Sete aulas sobre linguagem, memória e história


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Sete aulas sobre linguagem, memória e história

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Jeanne Marie Gagnebin

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Imago

Copyright © Jeanne Marie Gagnebin, 1997

SUMARIO

Revisão.Nina Schipper, Mariflor Rocha e J M Gagnebin Capa: Barbara Szaniecki

Apresentação

9

.

CIP-Brasil Catalogação na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ 6129s

I. O Início da História e as Lágrimas de Tucídides

15

Il. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras

39

III. Morte da Memória, Memória da Morte: da Escrita em Platão

49

TV. Dizer o Tempo

69

Jeanne Marie Gagnebin Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e Histdna - Rio de Janeira . /mago Ed. 1997 192 p.

/Biblioteca Pierre Menard/

Inclui apéndice e bibliografia

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de Adorno e Benjamin

ISBN 85,3/20544 t /. Filosofia 2 Literatura – Filosofia.

3. Filosofia grega..

L Thula. lL Série.

cm97-0222

100

C00 – i

Reservados rodos os direitos Nenhuma pane desta obra poderá ser reproduzida sem permissão expressa da Editora 1997 IMAGO f0/TORA LTDA. Rua Santos Rodrigues 201-A – fstáno

VI. Do Conceito de Razão em Adorno VII. O Hino, a Brisa e a Tempestade: dos Anjos em Walter Benjamin

81 107

123

Apêndices I. Baudelaire, Benjamin e o Moderno II. O Camponês de Paris: Uma Topografia Espiritual Ill. Infância e Pensamento

139 155 169

20250430 – Rio de Janeiro – RJ Tel:/02 I/ 293 /092

Fontes Imptesso no Brasil Panted in Brazil

185

APRESENTAÇÃO

Recolher vários textos de épocas diferentes, espalhados em diversas revistas, para publicá-los urna segunda vez juntos — esse gesto não deixa de me assustar. Ele tem um perfume de veneração quase fetichista que não gostaria de reivindicar para mim. Tais coletâneas são organizadas, no mais das vezes, por discípulos saudosos, ou espertos editores que se aproveitam de algumas páginas inéditas do mestre para lançar mais um livro. Não se trata disso aqui. Para dizer a verdade, as razões que me convenceram da utilidade desse empreendimento, afora a charmosa insistência de Arthur Nestrovski, são de ordem contingente e material, o que me tranqüiliza. Dizem respeito à precariedade de nossas instituições, em particular de nossas revistas acadêmicas: quantas vezes um colega escreve um artigo que poderia lhe interessar e você nem sabe de sua existência ou, então, não consegue o número desejado do periódico! Reunir textos esparsos pode, assim, ter o mérito simultaneamente trivial e essencial de juntar materiais para a continuação do trabalho: do seu trabalho como autor e do trabalho dos leitores, quem sabe de um trabalho comum Nesse contexto de trabalho e de reflexão conjuntos, publico aqui sete aulas, seguidas de três apêndices, que também se inserem num espírito que pode ser chamado de pedagógico —embora esse adjetivo se preste a inúmeras confusões. Se, segundo a célebre fórmula kantiana, não se pode ensinar a filosofia, só se ensina a filosofar, então o tom pedagógico desses textos consistirá menos na transmissão, certamente importante, de saberes, e mais numa tentativa conjunta de elaboração de algumas questões. Elaboração demorada, paciente,

1 0 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTORIA

às vezes hesitante, às vezes precipitada, atravessada por ritmos e tempos diferentes como o caminhar e conversar de amigos, segundo as variações metafóricas em torno do método filosófico, de Platão e " sua "longa estrada até Benjamin e seu "método" como "desvio". Mas será que há uma questão central nesse itinerário múltiplo? A releitura desses textos me parece indicar, à revelia das intenções primeiras e explicitas da autora — pois as questões verdadeiras não nos pertencem, nem são o privilégio exclusivo da consciência clara — um núcleo de interrogação em redor do qual gravitam todos os ensaios, um núcleo que seria, simultaneamente, objeto do desejo e fundamento do pensamento, que o põe em movimento e se lhe esquiva; encontro essa interrogação formulada no texto sobre os livros X e XI das Confissões de Santo Agostinho, "Dizer o Tempo", o ensaio mais pedagógico de todos para mim, pois não sou nenhuma especialista em patrística. É a questão da relação transcendental mútua entre tempo e linguagem, porque não há linguagem que se diga sem se desdobrar nas várias dobras do tempo, nem tempo que possa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, sem ser recolhido e articulado por linguagem. Co-pertencer recíproco que ressalta a sua comum ligação à ausência: a linguagem só remete ao real, às "coisas", como se diz, porque presentifica sua ausência e, portanto, como o viu bem Maurice Blanchot, anuncia sempre sua morte; e o tempo não se deixa agarrar, mas só nos pertence no seu incessante escapulir, nesse movimento de promessa e de evasão que nos desapossa de qualquer posse, da dos objetos e daqueles que amamos, mas também da posse de nós mesmos. Essa questão genuinamente filosófica, talvez mesmo metafísica — ousei até usar o adjetivo "transcendental" —, pertence à tradição filosófica clássica; uma outra interrogação a acompanha, que geralmente s6 intervém na filosofia como seu não-dito, seu recalcado, talvez: a questão da diferença sexual. Hoje, relendo esses textos, me pergunto se as problemáticas não se cruzam e se enredam coin uma intensidade que não suspeitava quando procurava interrogar o uso das metafóras sexuais, ou as tentativas de partilha clara entre feminino e masculino, por exemplo, na obra de Platão. Pois a diferença sexual também remete a esse limite de nós mesmos que não podemos ultrapassar, que nos limita no duplo sentido de delimitação, portanto de definição, e de limitação, portanto de restrição. Também esse li mite, tão impensado pelo discurso filosófico, nos constitui e nos escapa corno o fazem temporalidade e linguagem, também ele é o

Apresenlacão :

1 1

signo incontestável de nossa incompletude, de nossa condição de mortal, como já dizia Homero. E seu reconhecimento pleno, com as angústias e alegrias que comporta, talvez não seja tão distante da atividade do pensamento e de seus jogos incessantes, sempre outros, entre alteridade e identidade. Por fim, gostaria de agradecer aos alunos, que, em todos esses anos, pela curiosidade e pelo entusiasmo, mas também pelas hesitações e dificuldades, me incitaram a continuar apostando nesse exercício simultaneamente sério e leve, essencial e lúdico, que se chama filosofia. Campinas, abril de 1996.

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

I. O INÍCIO DA HISTÓRIA E AS LAGRIMAS DE TUCÍDIDES Em memória de Celso M. Guimarães

Este artigo retoma algumas aulas de um curso de filosofia da história, dado há vários anos. A sua pretensão não é acrescentar um comentário original aos numerosos já existentes sobre as obras de Heródoto e Tucídides, l mas esboçar uma descrição da constituição deste tipo de discurso que, mais tarde, será chamado de história. Três aspectos serão ressaltados nesta análise das práticas narrativas de Heródoto e de Tucídides: a construção da memória do passado, a questão da causalidade e a posição do narrador. São estes três aspectos que emetem a uma concepção subjacente, explícita ou implícita, das relações entre o tempo da história dita "real" (o conjunto dos acontecimentos, Geschichte, em alemão) e o tempo da história contada (a narração dos acontecimentos, Geschichte, mas também Erzãhlung), isto é, a dinâmica temporal que preside à história enquanto saber (disciplina, "ciência", em alemão também Historie). Já menciu:lamos que os discursos de Heródoto e Tucídides receberão, mais tarde, o nome de história. Her6doto ficou, na tradição, como "o pai da história", enquanto se fazia de Tucídides o primeiro 1

Utilizamos em particular a excelente tradução (com introdução de Jacqueline de Romilly) de Heródoto e Tucídides, na Bibliotheque dela Pléiade ( Heródote, L'enquête, trad. et notes de A. Barguet; Thucydide, La Guerre du Peloponese, trad. et notes de D. Roussel). As traduçóes brasileiras de Mário da Gama Kury deixam muito a desejar e são, freqüentemente, corrigidas. Sobre Her6doto e Tucídides, citemos: François Châtelet, La naissance de l'histoire (Paris: Minuit, 1962), v. 1, pp. 10-18; Jacqueline de Romilly, na já citada introdução do volume da Pléiade; Marcel Détienne, L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981). Sobre Her6doto, o livro fundamental de François Hartog, Le miroir d'Hérodote —Essai sur la représentation de l'autre (Paris: Gallimard, 1980). Sobre Tucídides, Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris: Belles Lettres, 1967); e também Problèmes de la democratie grecque (Paris: Hermann, 1975).

16 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA 0 INICIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES

historiador crítico. Tais denominações repousam sobre atribuições posteriores, características, aliás, de qualquer ciência em busca de seu certificado de origem. Mas, nos textos de nossos primeiros "historiadores", a palavra "história" não existe (não se encontra, fora engano, nenhuma vez na obra de Tucídides), 2 ou, então, possui um sentido muito afastado do nosso. Pois quando Heródoto declara, nas primeiras linhas da sua obra, "Heródoto de Halicarnassos apresenta aqui os resultados da sua investigação (histories apodexis)...", a palavra historie não pode ser si mplesmente traduzida por história. O nosso conceito i mplica um gênero científico bem determinado; a palavra grega

historie tem, nesta época e neste contexto, uma significação muito .mais ampla: ela remete à palavra hictôr, "aquele que viu, testemunhou". O radical comum (v)id está ligado à visão (videre, em Latim ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei, pois a visão acarreta o saber). 3 Heródoto quer apresentar, mostrar (apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, então, de um relato de viagem, de um relatório de pesquisa, de uma narrativa informativa e agradável que engloba os aspectos da realidade dignos de menção e de memória. Não há nenhuma restrição a um objeto determinado: a historie pode pesquisar a tradição dos povos longínquos, as causas das enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota militar. Esta profusão de dados que nos parecem heterogéneos e que incomodam os sérios professores atuais, preocupados em distinguir a história da geografia ou a sociologia da antropologia, esta profusão não embaraça Heródoto, pelo contrário. O que diferencia a sua pesquisa de outras formas narrativas não é o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo de aquisição destes conhecimentos. Heródoto fala daquilo que ele mesmo viu, ou daquilo de que ouviu falar por outros; ele privilegia a palavra da testemunha, a sua própria ou a de outrem. Inúmeras vezes, I no decorrer da sua narrativa, o nosso viajante menciona as suas "fontes", se ele mesmo viu o que conta ou se só ouviu falar e, neste caso, se o " informante" tinha visto, ele mesmo, ou só ouvido falar. 4 Esta preocupação —que podemos relacionar com a crescente prática judiciária, na Grécia do século V, de audição de testemunhas — traz 2 3 4

0 que lá invalida o titulo da tradução brasileira: História da Guerra do Peloponeso, pois história não existe no titulo grego! Cf. Emile Benveniste, Vocabulaire des institutions indo-européens, citado por Hartog, op. cit., p. 272. A este respeito, cf. François Hartog, op. cit., 2". pane, cap. 2; e Marcel Détienne, op. cit., cap. 3.

1

17

consigo uma primeira diferença essencial entre a narrativa "histórica" de Heródoto e as narrativas míticas, a epopéia homérica por exemplo. Heródoto só quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar. O período cronológico alcançado se limita, portanto, a duas ou três gerações antes da sua visita, pois o resto do tempo se perde no não-mais-visto, isto é, no não-relatável. Em oposição ao nosso conceito de história, esta pesquisa, ligada à oralidade e à visão, não pretende abarcar um passado distante. Tal restrição também a delimita em relação ao discurso mítico, que fala de um tempo longínquo, de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual só as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber (idein) daquilo que não vimos. Muito mais que a consciência de inaugurar uma nova disciplina, designada posteriormente pelo nome de história, é esta oposição crescente à tradição mítica que determina, de maneira diversa, tanto a obra de Heródoto como a de Tucídides. É interessante notar que Heródoto, quando se refere às várias partes da sua obra, não usa a palavra história mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las; não fala da "história" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim de logos scita, de logos egipcio ou de logos a respeito de Darius etc. O próprio vocabulário insiste na grande oposição entre logos e mythos, na qual vai se enraizar a distinção entre o discurso científico, filosófico ou histórico e o discurso poético-mítico. Distinção progressiva que não tem nada de necessário, nem de evidente, nem de eterno, como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de estabelecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro "historiadorer, nesse sentido que o i..m.p__ o mimético_está na raiz do lúdico edo arslstico. Ele -repousasohre-vfaculdade de t teoria da reconhecer semelhanças e de.prnduzi-Ias na _yg lin age mimesis induz, yorta-nto á uma teoria da metáfora- Podemos avançar mais um passo no caminho esboçado por Aristóteles e dizer que conhecimento e semelhança, conhecimento e metáfora entretêm ligações estreitas, muitas vezes esquecidas, muitas vezes negadas. Veremos a i mportância destas considerações para a reflexão de Walter Benjamin. 1 Sobre a qual pode-se ler o artigo de Jacques Derrida (1972).

00

CONCEITO

OE

MIMESIS

NO

PENSAMENTO

DE AOORNO E BENJAMIN : B7

Críticas de Adorno ao conceito de mimesis Gostaria agora de passar ao meu segundo ponto, pulando alguns séculos. Mas vamos reencontrar a Grécia, pois as primeiras críticas de Adorno ao conceito de mimesis aparecem na sua célebre análise da Odisséia, na Dialética do Esclarecimento (1985). Seguindo o livro de Josef Friichtl (1986), gostaria de realçar que a posição de Adorno em relação ao conceito de mimesis evolui no decorrer dos seus escritos; podemos, no entanto, afirmar que a sua primeira atitude é de rejeição. Na Dialética do Esclarecimento (1985) em particular, Adorno retoma a critica platónica da passividade do sujeito na mimesis á~óì~~ld3 ea as -us e .e etnologia (Früchtl, 1986, p. 13). gra .s. . tanto a sicanálise como a etnolo•ia caracterizam a mimesis como um comportamento regressivo No Freu. .e • m 'o Principio do Prazer 1975), essa regressão remete à pulsão de morte, a este misterioso desejo de dissolução do sujeito no nada. Nos textos dos etnólogos franceses da época (em particular R. Caillois e M . Mauss), citados por Adorno e Horkheimer, o comportamento mimético é caracterizado como um comportamento regressivo de asslml acção ao perigo, na t e~ esasáalo. Seguindo o exemplo primeiro do mimetismo animal, por exemplo da borboleta imóvel que tem as mesmas linhas marrons e verdes que a folha sobre a qual repousa, o "primitivo" se cobre de folhagens para melhor desaparecer na floresta, para não ser visto pela onça que caça, mas também coloca uma máscara horrenda para apaziguar, pela aproximação e pela identificação, o deus aterrorizante de que depende. Esses rituais mágicos, analisados pelos etnólogos, apontam para um aspecto essencial do comportamento mimético: na ntativ e se libertar do medo, o sujeito renuncia a se diferenciar d o outrogue i temepara, ao i mitá-lo, aniquilar adistanciaque os separa, a distância - .ermite ao t .. . reconhecê-lo com.. n e devorá-lo ara t se salvar do perigo, o sujeito desiste. e si mesmo e,portanto, perde-se. Nessa dialética perversa jaz a insuficiência das práticas mágico-miméticas e a necessidade de encontrar outras formas de resistência e de luta contra o medo: toda reflexão de Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento consiste em mostrar como a razão ocidental nasce da recusa desse pensamento mítico-mágico, numa tentativa sempre renovada de livrar o homem do medo (que o esclarecimento não o consiga, mas, pelo contrário, aprisione ainda mais o homem, essa é a outra vertente dessa reflexão).

z

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

O comportamento mágico-mimético ameaça profundamente o sujeito que, ao querer se resguardar, arrisca o seu desaparecimento, a sua morte na assimilação ao outro. Hi,_ nn entanto < como já assiy]alamos an citar FFlirlru LCpmponenty óPundamente prazerpso _também e 'justamente n ss perda: muito orig_inÿriamente e profundamente, existe um desejo_ de dissolução, e aniquilamento dos ' fites ue, ao mesmo tempo, constituem e aprisionam o sujeito. Esse desejo — tao bem analisado por Bataille — remete à paixão e à sexualidade, ao êxtase religioso e místico, mas também, e inseparavelmente, à dor da loucura e à decomposição da morte. Nesse sentido, a análise de Adorno e Horkheimer descobre, como Platão, na mimesis, uma ameaça ao processo mesmo da civilização: ela não só faz regredir os homens a comportamentos mágicos e míticos, mas também ameaça o processo mesmo de construção e de elaboração de formas, de regras, de limites, processo que define a civilização e, no vncabu lário duos autores, que se ampara no processo de trabalho e no _ "progresso" racional-científico.

r

O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida, o terror da morte e da destruição, está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaça a cada instante a civilização. O caminho da civilização era o da obediência e do trabalho, sobre o qual a satisfação não brilha senão como mera aparência, como beleza destituída do seu poder (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 44-5). Na Dialética do Esclarecimento, a história de Ulisses é a descrição desse caminho penoso que rejeita a assimilação simbiótica mimética com a natureza para forjar um sujeito que se constitui mediante o trabalho e se toma, nesse prócésso, consciente de si na sua diferença radical, na sua separação do outro. Ulisses encarna esta passagem do mito ao logos: ele não é mais o herói mítico dotado pelos deuses de uma força fisica mágica: também não é ainda o indivíduo desamparado que só pode contar com a sua inteligência particular. Ulisses está no limiar, na passagem entre essas duas figuras. Com a ajuda de Atena, deusa da razão, e de Hermes, deus dos negócios, Ulisses consegue resistir às forças dissolutas e regressivas da magia, como a bela análise adomiana do episódio de Circe o ilustra: os seus companheiros ingênuos e esquecidos sucumbem à vontade imediata de beber o filtro

DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN : 89

oferecido por Circe, interpretando talvez esse gesto como a promessa de uma união sexual também imediata — isto é, sem mediações. Porque acreditaram no prazer imediato, porque confiaram demais no outro (aqui, não por acaso, na outra!) e porque regrediram a um desejo arcaico, os companheiros de Ulisses sucumbem à força da magia e são transformados, numa mimesis irônica, em porcos. Enquanto isso, Ulisses, prevenido por Hermes, resiste a Circe, ameaça-a com sua espada e a submete, podendo só depois dessa luta domar os seus poderes e dormir com ela, bela descrição daquilo que serão, doravante, as relações entre os sexos opostos. Adorno_e Horkheimer insistem com razão no preço pago pelo herói para paraescapar si mbiose magica e constituir-se em sujeito autônomo. Esse preço é alto. Ele poderia ser descrito com a transformação da mimesis originária, prazerosa e ameaçadora ao mesmo tempo, numa mimesis perversaque reproduz, na insensMilidade tto enrijecimento do sujeito, a dureza do processo pelo qual teve quepassar para se adaptar, ao mundo real e diríamos com Freud, deixar de ser crian a para se tncnar adulto Essa segunda mimesis se constrói sobre o recalque 'a primeira: ela caracteriza o sujeito que conseguiu resistir à tentação da regressão mas que perdeu, nessa luta tão necessária quanto fatal, a plasticidade e a exuberância da vida originária, quando não perdeu a vida tout court. Essa segunda mimesis, a adaptação forçada e violenta que, ao afirmar a superioridade do sujeito racional e distante, ao mesmo tempo o nega na sua integridade, dá a chave de um dos mais famosos ardis de Ulisses: a sua falsa auto-identificação como Oudeis ( Ninguém) diante do ciclope Polifemo. Para Adorno e Horkheimer, esse episódio tem uma significação exemplar: Ulisses só consegue escapar da devoração mítica porque antecipa, por assim dizer, a sua morte, chamando a si mesmo de Ninguém. Essa identificação com a destruição, essa renúncia simbólica a si mesmo caracteriza a mutilação imposta ao ser indeterminado e polimorfo (como diria Freud) pela laboriosa edificação do sujeito autônomo e definido. A erradicação da barbarie e a construção penosa da civilização implicam um processo violento de negação dos impulsos, isto é, de abdicação pelos sujeitos da sua vitalidade mais originária. Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o transforma [ macht] em sujeito e preserva a vida por uma imitação

90 :

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

mimética do amorfo ... Mas sua auto-afirmação é, como na epopéia inteira, como em toda civilização, uma autodenegação. Desse modo, o eu cai precisamente no circulo compulsivo da necessidade natural, ao qual tentava escapar pela assimilação [Angleichung] (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 71). Esse raciocínio de Adorno e Horkheimer nos lembra as descrições freudianas do mal-estar na civilização e nos faz entender melhor por que os nossos autores sempre insistiram na genealogia violenta da racionalidade iluminista, retomando também elementos da critica nietzschiana da moral. e ersa • - uma mf 'sis segunda e, poderíamos dizer, castradora, a uma mimesis primeira e polimorfa volta com toda sua violência secreta nos fenômenos de identificação e de repulsão de massa, como são o nazismo e o anti-semitismo Não por acaso que, terminada a leitura dos três capítulos que formam o corpus da Dialética do Esclarecimento, deparamo-nos com um outro texto menor, intitulado: Elementos do Anti-semitismo: Limites do Esclarecimento. A loucura fascista representa, aos olhos de Adorno e Horkheimer, que escrevem este texto em 1944, o li mite do esclarecimento no sentido de "fronteira", aquilo que o projeto iluminista de liberdade não consegue vencer, mas também no sentido de "delimitação", isto é, de determinação oculta, pois o núcleo secreto do esclarecimento jaz na sua interpenetração profunda com a violência. Reencontramos assim o tema fundamental da mimesis no parágrafo quinto, parágrafo central dessa crítica do anti-semitismo e que também representa, na obra de Adorno, a análise mais demorada do conceito de mimesis (Früchtl, 1986). Adorno e Horkheimer partem da justificativa tão freqüente dos anti-semitas: a idiossincrasia, isto é, uma repulsão incontrolável e incontrolada em relação a algo exterior, no caso os judeus. Essa justificativa recusa de antemão um questionamento crítico, pois apela para uma reação fisiológica, pretensamente natural, como de alguém que sofre de alergia ã poeira ou ao pêlo dos gatos. Nessa falsa naturalização jaz, no entanto, um elemento de verdade, a saber, a lembrança recalcada de reações miméticas originárias, esses "momentos da proto-história biológica", esses "sinais de perigo cujo ruído fazia os cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater". Tais reações, independentes do controle consciente, são uma forma ffsica primeira de mimesis, que transforma o homem ou o animal cheio de medo

B0 CONCEITO DE

MIMESIS

NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN : 91

num bicho imóvel, quase morto, cuja presença não é mais traída ao agressor por nenhum movimento: "A proteção pelo susto é uma forma de mimetismo. Essas reações de contração no homem são esquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo de sua sobrevivência, assimilando-se ao que é morto" (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 168). Ora, tal "mimese incontrolada" deve ser, nas palavras de Adorno e Horkheimer, "proscrita", se o homem quiser se livrar do medo originário e tentar dominar essa natureza ameaçadora, isto é, iniciar o programa de controle da racionalidade iluminista. Esse processo de civilização que, como vimos, substitui a magia pelo trabalho e pela reflexão, repousa portanto sobre a rejeição dos comportamentos miméticos arcaicos: não consegue, porém, erradicar essa lembrança originária: a resposta mimética, que era uma reação de aversão e 4e medo, reaparece na aversão ao mimetismo e no medo do mimetismo, na sua proibição pelas réis sociais e culturais. Essa dialética explicaria, segundo Adorno e Horkheimer, várias proibições tão religiosas como pedagógicas, como a proibição da imagem na religião judaica ou do lúdico na vida adulta, ou ainda de grupos sociais cujos hábitos não se encaixam nos valores do esforço, do sacrifício e do trabalho. Esses mecanismos de proibição são tanto mais fortes quando tentam impedir não só a recordação do medo primitivo, mas também a lembrança dessa felicidade originária, da qual já falamos, que se experimenta na dissolução dos limites subjetivos e na embriaguez da fusão com o infinito. Cito um belo parágrafo: O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes, bem como ás massas dominadas, a recaída em modos de viver miméticos — começando pela proibição de imagens na religião, passando pela proscrição social dos atores e dos ciganos e chegando enfim a uma pedagopiáque desacostuma as crianças de serem infantis — é a própria condição da civilização. A educação social e individual reforça nos homens seu comportamento objetivo enquanto trabalhadores e impede-os de se perderem nas flutuações da natureza ambiente. Toda diversão, todo abandono tem algo de mimetismo. Foi se enrijecendo contra isso que o ego se forjou (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 169).

DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOOANO E BENJAMIN : 93

92 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

Esse enrijecimento do eu, cujo modelo é Ulisses atado sem movimentos ao mastro do seu próprio navio para poder escutar as sereias sem lhes sucumbir, esse enrijecimento caracteriza a segunda mimesis perversa, a única permitida pela civilização iluminista. O anti-semitismo na sua forma nazista permite, na análise de Adorno e Horkheimer, a experiência triunfante do recalque da mimesis originária e do sucesso da mimesis segunda, dessa "mimese da mimese" (1985, p. 172). 0 oficial nazista rígido, de pé no seu uniforme apertado, personifica a ordem viril que recusa as formas fluidas e impõe a mesma imagem sempre repetida nas paradas militares: a "disciplina ritual" e as formas sempre idênticas ajudam a identificação com o Führer, que deve, de maneira terrorista, liberar os seus semelhantes do tenor antigo. Essa "identificação-mimesis perversa" precisa' , para seu sucesso completo, encontrar r \ um objeto de abjeção, um objeto que represente esses desejos miméticos mais originários, recalcados e proibidos: o contato físico imediato, a abolição da distância, este prazer da sujeira e do barro que as crianças ainda saboreiam, essa decomposição gostosa e ameaçadora na fluidez sem formas. Contra várias explicações que tentam mostrar, valendo-se de características sociais ou "biológicas" dos judeus, por que foram escolhidos como objeto de aversão, a análise adorniana faz o caminho inverso: é o anti-s gnftfl constrói o seu judeu, necesstri_o à suapróp Ia çgnstftuição. Isso não significa que os judeus não tenham, enquanto povo histórico, características históricas peculiares (como as têm os franceses, os alemães, os brasileiros, e assim por diante, desde a cozinha até as maneiras de falar em amor). Ironicamente, a importância dada pelos ritos religiosos judaicos à pureza, a proibição das imagens numa religião que se constituiu coma luta contra os ídolos, ou a ligação dos judeus com o comércio e o setor de circulação do dinheiro — pois foram proibidos durante muito tempo de possuir terras —, todas essas características históricas apontam muito mais para uma exacerbação das tendências civilizadoras iluministas do que para uma regressão à magia primitiva. Um único traço, também histórico, é claro, iria predispõ-los, segundo nossos autores, a servir de bode expiatório e de objeto privilegiado de abjeção: o fato de os judeus trazerem consigo a carga histórica de terem sido sempre vítimas, desde as perseguições de cunho religioso até hoje. É como se as perseguições do cristianismo triunfante tivessem deixado, nos seus inimigos prediletos, a marca da infâmia. Aqui também há um processo extremamente cruel de assimilação mimética: o rosto da vítima aterrori-

,

i

zada desencadeia mais tenor da parte do seu algoz. O judeu (o homossexual, o negro) que, muitas vezes, já tem uma atitude de acanhamento, que tenta, por medo, passar despercebido, chama justamente por isso a atenção, a irritação e a violência. "Os proscritos", escreve Adorno, "despertam o desejo de proscrever. No sinal que a violência deixa neles, inflama-se sem cessar a violência" (1985, p. 171). Mimesis infernal, pensada também por Freud e Nietzsche, que condena a vítima a se tornar novamente vítima e encoraja o torturador a continuar torturador. Façamos agora uma pequena pausa e tentemos resumir o que dissemos. Poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento de Adorno (e de Horkheimer) na época da Dialética do Esclarecimento, uma certa condenação da ifinesis_descrita antes de tudo como um processo social de identificação perversa. Trata-se de uma censura parecida com a censufã pTatônica, a respeito da perda de distância critica que ocorre no processo mimético entre o sujeito e aquilo a que se identifica. A análise de Adorno e Horkheimer reforça a censura platónica graças ao motivo freudiano do recalque: a mimesis — identificação perversa —, repousaria sobre o recalque de uma primeira mimesis arcaica, ao mesmo tempo ameaçadora e prazerosa: o medo individual da regressão ao amorfo engendraria uma regressão coletiva totalitária, cuja expressão mais acabada é o fascismo. Nesse contexto, o recurso de Adorno e Horkheimer à dialética hegeliana pode ser facilmente compreendido, pois ninguém mais que Hegel insistiu nas insuficiências das soluções pretensamente imediatas, isto é, sem mediação, que tentavam garantir a autenticidade do conhecimento. Como Hegel contra Jacobi, Adorno afirma, contra as filosofias da vida ou da intuição, muito freqüentes na época, que qualquer pretensa imediaticidade ( Unmittelbarkeit) já é uma construção do pensamento, uma "imediaticidade mediada" (vermittelte Unmittelbarkeit), que provém do profundo (e compreensível) desejo de poder chegar a um conhecimento total, definitivo, no qual o objeto seria realmente alcançado e no qual o sujeito poderia repousar feliz. Esse antigo e belo sonho da metafísica é enganoso: mesmo quando se perde numa Wesens-schau (visão da essência) inefável, o sujeito não desaparece, mas consegue, pelo trabalho do espirito, ampliar os limites da sua própria identidade. Ademais, o ideal de contemplação facilmente faz esquecer a necessidade de transformação da má realidade, transformação sem a qual, se aceitarmos a herança hegeliana e

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

marxista, não há éonhecimento verdadeiro. Num momento de crise tão profundo como o da Segunda Guerra Mundial, crise que ameaça a sobrevivência da razão, deve-se enfatizar essa necessidade de crítica edetransformação inerenteaoconhecimento, emparticularàreflexão filosófica. O_ pessimismo deAdorno eHorkheimer na Dialética do Esd`ci lievuser entend omo a expressão da re cusa-radical de..eu>rai em acordo, qu si mplesmente de firmar um come misso or com a realidade ex' e, realidade constituiria tambéme ineluta_velmenié pe~ os campos de concentração. Nessa concepção da realidade como uma totalidade socialmente culpada (gesellschaftlicher Schuldzusammenhang) intervém uma outra característica do pensamento dialético, a saber, a convicção de que partiéulár_e universal se determinam riu iâ_we tte, de que não se pode, portanto, analisar um elemento particular sem recorrer à sua inserção na totalidade social, de que a verdade desse particular só pode ser encontrada na sua determinação pelo universal. Estou resumindo de maneira terrivelmente rápida os dois traços essenciais do pensamento dialético, tal como Adorno o assumiu como um pensamento critico. Opa eiro traço seria_então essa coQ Qção do pensamento c_ o ~rocessomediatizado einfinitode transformação; o segundo, a•co- ermina ão reciproca entreparticular_e universa , concepçã o uma totalidade articulada, na qual partese todo sea€tmem mutuamente. Se pensarmos agora juntos esses dois traços, perceberemos que nao existe necessariamente uma relação entre eles, mbora e costume confundi-los amento critico tivesse que ser tamb m e necessariamente um pensamento da totalid.~ c¿ueria insistir aqui nessa distinção analítica. Se não nos deixarmos seduzir totalmente pela construção hegeliana do espirito absoluto, poderemos ainda nos permitir diferenciar a possibilidade de critica da possibilidade de totalização do pensamento. Introduzo esse ponto aqui porque ele me parece essencial para entender melhor o conflito que opôs Adorno e Benjamin, e que ressurge talvez também em várias discussões contemporâneas sobre a racionalidade e a irracionalidade da nossa (pós)modernidade. Em relação a Adorno e Benjamin, encontramos a melhor explicitação desse conflito na troca de cartas entre eles, de 1938, a respeito da primeira versão do ensaio de Benjamin sobre Baudelaire, que ele tinha escrito a pedido da Revista de Pesquisa Social, do instituto

D0 CONCEITO OE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 95

frankfurtiano de mesmo nome, exilado então em Nova York. Em nome da redação da revista, Adorno recusa o manuscrito e pede uma reformulação do texto. A sua crítica maior diz respeito ao método benjaminiano de estabelecer paralelos entre características da obra de Baudelaire e fenômenos históricos contemporâneos — por exemplo, os choques dos transeuntes nas mas obstruidas de Paris e o ritmo marcado dos versos baudelairianos — sem que haja uma mediação mais global por trás dessas associações esclarecedoras mas não sempre desprovidas de uma certa arbitrariedade. Cito os trechos mais i mportantes da carta de Adorno a Benjamin:

O sentimento de uma tal artificialidade se me impõe todas as vezes que o trabalho faz uma afirmação metafórica em lugar de uma afirmação ~rLlifii7 .. A razão (do meu desacordo teórico) está em que julgo in e Lz, do ponto de vista do método, tomar "materialisticamente" alguns traços singulares claramente reconhecíveis do âmbito da superestrutura, pondo-os em relação, sem mediação e até mesmo de maneira causal, com os traços correspondentes da infra-estrutura. A determinação materialista das formações culturais s6 é possível pela mediação através do processo global ... A "mediação" que faz falta e que encontro encoberta por uma conjuração materialista historiográfica nada mais é do que a teoria, que o seu trabalho se poupa. A renúncia à teoria afe áa empiria. De um lado, essa renúncia confere à empiria um traço lieiite als épico, de outro, tira dos fenômenos seu verdadeiro peso histórico-filosófico, transformando-os em fenômenos experienciados de maneira unicamente subjetiva. Pode-se formulá-Io também assim: o motivo teológico que consiste em nomear as coisas pelo seu nome inverte-se tendencialmente numa exposição deslumbrada da facticidade. Para falar de uma maneira drástica, poder-se-ia dizer que o trabalho se alojou no cruzamento da magia com o positivismo. E um lugar enfeitiçado: só a teoria conseguiria romper o feitiço... (Carta de 10 de novembro de 1938, tradução da autora). Há algo de assombroso na reserva com que Benjamin responde a essa carta muito dura. Ele explica a falta de construção teórica pela necessidade de reunir os "materiais filológicos" e defende a "representação deslumbrada da facticidade " como "a atitude autenticamen-

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, M E MO RIA E HISTORIA

te filológica". Nã'o responde ã principal objeção de Adorno, a saber, a falta de mediação a partir do processo global. Ora, a crítica de Adorno não era simplesmente uma observação metodológica de tipo acad@mico, mas continha uma suspeita política: a falta de boa teoria, isto é - - ... Adorno a a ' • 'a de dialética, de mediaça atroe s do . rocesso lobal essa falta imicana a t . - m uma aceitação Frftica da realidade. No ndo, o "recado" de Adorno a tenjamin é o seguinte: Benja~tn tenta ser marxista e critico mas, como se esquece da imprescindível dialética, cai no mais perigoso positivismo (atrás dessa objeção hã também, sem dúvida, a rivalidade nfluencias entre Adorno e Brecht). Este "lugar enfeitiçado", no qual, se do as palavras de Adorno, aloja-se o trabalho de Benjamin, também "o cruzamento da magia com o positivismo" — e é nesse lugar perigoso que reencontramos o nosso tema da mtmesis. Com efeito, as objeções de Adorno a Benjamin retomam várias das observações críticas do primeiro a respeito da mtmesis: pensamento mágico remanescente, falta de distanciamento crítico e identificação com o existente,Tmnossibilidadeáe uma vis otalizante e, em ugae- um apego sentimental ao particular, em vez da meação umafalsa i me ratrci ode, ou ainda, como o diz Adorno no começo do trecho ertado, 'uma afirmação metafórica em lugar de uma afirmação cogente". Em outros textos sobre seu amigo morto, Adorno ressaltará positivamente esses traços metafóricos e miméticos. Escreve, por exemplo, no ensaio Característica de W. Benjamin: O pensamento adere e se aferra ã coisa, como se quisesse transformar-se num tatear, num cheirar, num saborear. Por força de tal sensualidade de segundo grau, espera penetrar nas artérias de ouro que nenhum processo classificatório alcança, sem, no entanto, entregar-se por isso ao acaso da cega intuição sensível (Cohn, 1986, p- 28. Tradução brasileira modificada pela autora) . 2 Mas aqui, na correspondência com o amigo vivo (e também concorrente!), Adorno é formal: as tendências miméticas do pensamento benjaminiano apontam para a magia e para a aceitação do 2 "Der Gedanke rückt der Sache auf den Leib, als wollte er in Taste,,, Riechen, Schmecken $ich verwandeln. Kraft solcherzweiten Sinnlichkeit hoot er, in die Goldadem einzudringen, die kein klassifikatorisches Verfahren erreicht ohne dock darüber dem Zufall der blinden Anschauung sich zu überantworten."

00 CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 97

existente. Resumindo: um pensamento crítico deve ser dialético, não _pode ser mimético.

Do conceito de mimesis e da sua importância no pensamento de Walter Benjamin Gostaria de passar agora ao terceiro ponto da minha exposição e de defender a seguinte tese: as suspeitas de Adorno devem ser, ao mesmo tempo, confirmadas e invalidadas; se o conceito de mtmesis é bem um conceito-chave na reflexão benjaminiana, é porque ele tem um papel positivo, muito instigante e, poderíamos afirmar, até critico. Poderíamos dizer que a filosofia benjaminiana abre uma possibilidade — que me parece essencial para a nossa famosa "pós-modernidade" — de um pensamento que desista da visão da totalidade, mas que, no entanto, continue critico e perturbador. No fim da sua vida, Adorno parece ter reconhecido essa possibilidade. Ele se confrontou com ela na Dialética Negativa (1986): paralelamente, como veremos, reabilitou a categoria da mtmesis na sua Teoria Estética (1982). Mas vamos primeiro ã teoria benjaminiana da mtmesis. Ela se encontra, em primeiro lugar, na sua filosofia da linguagem. Benjamin escreveu vários ensaios sobre linguagem. Para simplificar, podemos dividi-los em dois grupos: os escritos de juventude, fortemente influenciados pela mística judaica ('Da Linguagem em Gera] e da Linguagem do Homem", de 1916, e "A Tarefa do Tradutor", de 1921) e dois textos curtos escritos depois de 1933, que pertencem, portanto, ã sua assim chamada fase "materialista". Nesses dois últimos textos ("Doutrina do Semelhante" e "Sobre a Capacidade Mimética"), Benjamin esboça uma teoria da mtmesis que também é uma teoria da origem da linguagem. Como Aristóteles na Poética (1979), Benjamin distingue dois momentos principais da atividade mimética especificamente humana: não apenas reconhecer, mas também produzir semelhanças. Essa produção mimética caracteriza a maior parte dos jogos, das brincadeiras infantis. A criança não brinca s6 de comerciante ou de bombeiro (atividades humanas), mas também de trem, de cavalo, de carro ou de máquina de lavar. Como já ressaltava Aristóteles, a mtmesis sera ligada por definição ao jogo e ao aprendizado, ao conhecimento e ao prazer de conhecer. O homem é capaz de produzir semelhanças porque reage, segundo Benjamin, as semelhanças jã existentes no mundo. De maneira paradoxal, essas semelhanças não permaneceram as mesmas no decorrer dos séculos. A

BB :

SETE

AULAS SOBRE

LINGUAGEM, MEMÓRIA

E

HISTORIA

originalidade da teoria benjaminiana está em supor uma história da capacidade mimética. Em outras palavras, as semelhanças não existem em si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventariadas pelo conhecimento humano de maneira diferente, de acordo com as épocas. Assim, reconhecemos hoje só uma parte mínima das semelhanças, comparável à ponta de um iceberg, se pensarmos em todas as semelhanças possíveis. As leis da similitude determinavam, outrora, um vasto saber presente na astrologia, na adivinhação e nas práticas rituais, para citar só alguns exemplos. Tal saber é hoje taxado de mágico, em oposição ao saber racional, e o progresso científico geralmente é compreendido como a eliminação crescente desses elementos mágicos. As reflexões de Benjamin vão numa direção totalmente outra. A sua tese principal é que a capacidade mimética humana não desapareceu em proveito de uma maneira de pensar abstrata e racional, mas se refugiou e se concentrou na linguagem e na escrita. Assistimos portanto (cf. M. Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966) não à sua decadência ( Verfall) mas à sua transformação. Segundo Benjamin, uma fonte comum une a leitura das constelações e dos planetas feita pelo astrólogo, a leitura do adivinho das entranhas de um animal e a leitura de um texto: da mesma maneira, o gesto mimético da dança aparenta-se ao da pintura e da escrita. Tal teoria contradiz, é óbvio, qualquer concepção da linguagem baseada no arbitrário do signo. Desde seus primeiros ensaios sobre a linguagem até os últimos, Benjamin não cessou de condenar essa concepção. Daí o seu interesse pelas hipóteses onomatopaicas sobre a origem da linguagem, hipóteses que ele, no entanto, julga restritivas demais porque ligadas a uma concepção estreita daquilo que constitui a semelhança. Com efeito, tendemos demais a assimilar semelhança, similitude (Ahnlichkeit) com reprodução (Abbildung), a pensar que a i magem de uma coisa é a sua cópia. Ou ainda, a definir a semelhança em termos de identidade, dizendo que dois objetos são semelhantes quando apresentam um certo número dos mesmos traços. Benjamin tenta pensar a semelhança independentemente de uma comparação entre elementos iguais, como uma relação analógica que garanta a autonomia da figuração simbólica. A atividade mimética sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação. Em vão procurar-se-ia uma similitude entre a palavra e a coisa baseada na imitação. Saber ler o futuro nas entranhas do animal sacrificado ou saber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página

DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN

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significa reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisa e as palavras ou as vísceras, mas uma relação comum de configuração. A imitação pode ter estado ou não presente na origem, ela pode se perder sem que a similitude se apague. Benjamin forja assim o conceito de "semelhança não-sensível" (unsinnliche Ahnlichkeit) e define a linguagem como o "grau último" da capacidade mimética humana e o "arquivo o mais completo dessa semelhança não-sensível". Ele explica essa transformação filogenética da capacidade mimética pelo exemplo ontogenético do aprendizado da linguagem falada e da escrita pela criança. Nas suas lembranas de criança (Berliner Kindheit um Neunzehnhundert, de 1932-33E ' Benjamin narra como ele costumava assimilar as palavras que não tinha "compreendido"; ele as transformava em cartas-enigmas e as mimava, ele as representava como charadas: Assim quis o acaso que se falasse uma vez em minha presença de gravuras [Kupferstich]. No dia seguinte, pus-me debaixo da cadeira e estendia a cabeça para fora; isso era um " esconderijo-de-cabeça" [Kopf-verstich]. Se, ao fazer isso, eu me desfigurava e a palavra também, eu só fazia o que devia fazer para criar raízes na vida. Aprendi em tempo a embrulhar-me nas palavras, que eram, de fato, nuvens. O dom de reconhecer semelhanças nada mais é do que um tênue residuo da antiga coerção a tornar-se semelhante e a comportar-se de maneira semelhante. Essa coerção, as palavras a exerciam sobre mim. Não as que me faziam semelhante a modelos de virtude, mas a apartamentos, a móveis, a roupas (Benjamin, Ges. Schr., IV-1, p. 261. Tradução da autora). Pelo movimento do seu corpo inteiro, a criança brinca/representa o nome e assim aprende a falar. O movimento da língua só é um caso particular dessa brincadeira, desse jogo. Para a criança, as palavras não são signos fixados pela convenção mas, primeiramente, sons a serem explorados. Benjamin diz que a criança entra nas palavras como entra em cavernas entre as quais ela cria caminhos estranhos. Essa atitude não se deve a uma pretensa "ingenuidade infantil". Pelo contrário, ela testemunha a importância do aspecto material da linguagem que os adultos geralmente esqueceram em proveito do seu 3 Para uma tradução em português, ver 1987).

"Infancia

em Berlim por volta de 1900" (Benjamin,

1 00: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

aspecto espiritual e conceitua], e que s6 a linguagem poética ainda lembra. O mesmo movimento mimético encontra-se no aprendizado da escrita. Quando a criança começa a escrever, quando ela desenha a letra, ela não só imita o modelo proposto pelo adulto mas, segundo Benjamin, ao escrever a palavra, ela desenha uma imagem (não uma cópia) da coisa, ela estabelece uma relação figurativa com o objeto. Benjamin era um grande colecionador de livros infantis e gostava sobretudo desses abecedários que juntam na mesma página, num quadro familiar e excêntrico, as imagens correspondentes a várias palavras que começam pela mesma letra, como se ela fosse a figura secreta da sua comunidade. Numa conversa relatada por um amigo, Benjamin teria mesmo defendido a hipótese, à primeira vista grotesca, de que "todas as palavras de qualquer lingua são parecidas na sua figuração escrita [Schrift-bild] com a coisa que elas designam" (Lembranças ..., 1968, p. 40). Não é também por acaso que Benjamin, num breve artigo, reflete sobre a escrita chinesa para explicar a relação entre pintura e escrita, a relação figurativa entre a escrita e o real, que não precisa necessariamente ser uma relação de imitação. Portanto, Benjamin recusa-se a operar uma partilha estrita entre a atividade mimética do desenho ou da pintura e a da escrita. Ele supõe estados históricos de transição da pintura à escrita por intermédio dos hieróglifos e da escrita rúnica. Benjamin vai aqui ao encontro das reflexões de Derrida, ao fazer derivar a escrita não de uma abstração ou de uma convenção (que o nosso alfabeto representaria perfeitamente), mas de um impulso mimético comum a qualquer inscrição, inscrição no espaço pela dança, inscrição numa parede pela pintura, inscrição numa página pela escrita. Tal concepção mimética da linguagem e da escrita não questiona só a tese lingüística do arbitrário do signo; ela acarreta também uma transformação da definição do sentido. Desde os seus primeiros escritos, Benjamin recusa a determinação do sentido como comunicação de uma mensagem, como transmissão de um significado que preexistiria à produção da fala. Os ensaios sobre a capacidade mimética e sobre a semelhança distinguem uma dimensão "semiótica" e uma dimensão "mimética" da linguagem. O adjetivo "semiótico" engloba justamente, de maneira bastante vaga, esse aspecto de transmissão dos significados, aquilo que geralmente é considerado como

00 CONCEITO DE MIMES/S NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN

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constitutivo do sentido. A dimensão mimética surgiria do semiótico assim como uma imagem fugaz e variável aparece e desaparece no primeiro plano de um cenário. O texto literal é o fundo único e imprescindível para a imagemcarta-enigmática poder se formar. O composto de sentido que se encontra nos sons da frase é portanto o fundo do qual o semelhante pode subitamente vir à luz, como um relâmpago, a partir de um tom (Benjamin, "Lehre vom Ahnlichen", p. 208-9. Tradução da autora) . 4 Essa imagem rápida, inerente à dimensão mimética da linguagem, constitui para Benjamin o sentido essencial — mas mutável — do texto. O sentido como transmissão do significado só seria de fato o pretexto, por certo imprescindível, que permitiria a elaboração de um outro texto. Aqueles que conhecem melhor o pensamento de Benjamin devem ter percebido que essas reflexões sobre a capacidade mimética, circunscritas primeiro ao domínio da Linguagem, também tem uma i mportancia fundamental para a sua teoria da história. Aliás, a mesma i magem do relâmpago doador de sentido que floresce e desaparece num instante, essa imagem caracteriza tanto a dimensão mimética da linguagem como a verdadeira experiência histórica, tal qual a descrevem as Teses "Sobre o Conceito de História" (Benjamin, 1985, p. 222-35). Trata-se, nesse último texto, de pensar um tempo histórico pleno, tempo da salvação do passado e, inseparavelmente, da ação política no presente. Esta relação entre passado e presente não pode ser pensada, segundo Benjamin, no modelo de uma cronologia linear, sucessão continua de pontos homogêneos, orientados ou não para um fim feliz, pois nesse caso passado e presente não entreteriam nenhuma ligação mais consistente; mas tampouco pode essa relação ser pensada como uma retomada do passado no presente no modo da simples repetição, pois nesse caso também não haveria essa transformação do passado na qual a ação política também consiste. O ressurgimento do passado no presente, a sua reatualização salvadora ocorre no momento favorável, no kairos histórico em que 4 "So ¡st der buchstãb!iche Text der Scant? der Fundus, in dem einzigund allein sick das Vexierbild formen /cairn. So ist der Sinnzusammenhan& der in den tauten des Satzes steckt, der Fundias, aus dem erstblitzartigAhnliches mit einem Nu aus einem Klangzum Vorschein kommen kann. "

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMO AIA E HISTORIA

semelhanças entre passado e presente afloram e possibilitam uma nova configuração de ambos. No ensaio sobre Proust, autor que influenciou profundamente sua filosofia da história, Benjamin ressalta que este surgimento — a memória involuntária de Proust — tem mais a ver com o esquecimento do que com a memória tradicional. Esta se apega demais ao esforço da consciência que procura reter o passado na sua identidade, na sua mesmice. Ora, o passado é realmente passado ou, como diz Proust, perdido, ele não volta enquanto tal, mas só pode ressurgir, diferente de si mesmo e, no entanto, semelhante, abrindo um caminho inesperado nas camadas do esquecimento. Se há uma retomada do passado, este nunca volta como era, na repetição de um passado idêntico: ao ressurgir no presente, ele não é o mesmo, ele se mostra como perdido e, ao mesmo tempo, como transformado por esse ressurgir; o passado é outro, mas, no entanto, semelhante a si mesmo. Nesse contexto, Benjamin insiste no "culto apaixonado das semelhanças" em Proust e ressalta que essa busca das semelhanças não pode ser confundida com a procura da identidade: o modelo dessa busca é o mundo do inconsciente, o "mundo dos sonhos, em que os acontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes a si mesmos" (Benjamin, 1985, p. 314). 5 Essa feliz não-coincidência consigo mesmo também atinge o presente, que pode deixar de ser o mesmo para se tornar também outro, novo, futuro verdadeiro. Conclusão: retomada do conceito de mimesis por Adorno Paremos agora um pouco, depois desse rápido percurso benjaminiano pelos caminhos da semelhança. Dois paradigmas de pensamento parecem se delinear nessa oposição entre Adorno e Benjamin. Do lado de Adorno (de Hegel e de Marx) e das exigências da dialética, temos um pensamento regido pela lógica da identidade e da não-identidade, no qual o movimento do processo decorre da contradição e das suas sucessivas figuras de resolução e de recomposição: um pensamento cuja dimensão temporal remete a uma linearidade essencial, pois a contradição só pode se desenvolver numa sucessão precisa de momentos. Modelo cuja forma bastarda será a de um determinismo desenvolvista, como se a simples sucessão dos momen-

s

Tradução

de S. P. Rouanet (modificada pela autora).

00 CONCEITO BE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOOANO E BENJAMIN : 103

as pudesse substituir o próprio processo de negatividade e de contradição. Do lado da mimesis, no sentido amplo que Benjamin deu a esse conceito, do lado de Nietzsche certamente e talvez também de Freud, encontramos uma Lógica não da identidade, mas da semelhança, portanto uma concepção nunca identitária do sujeito e da consciência. O movimento do pensamento não remete aqui a contradições sucessivas num processo progressivo, rhas muito mais a um fazer e desfazer lúdico e figurativo, ao movimento da metáfora. A dimensão temporal não consiste tanto na linearidade, mas mais na contigüidade, não num depois do outro, mas num ao lado do outro. Nessa descontinuidade fundamental há momentos privilegiados em que ocorrem condensações, reuniões entre dois instantes antes separados que se juntam para formar uma nova intensidade e, talvez, possibilitar a eclosão de um verdadeiro outro. Se essa diferenciação rápida tiver algo de verdadeiro, então compreenderemos melhor por que o conceito de mfmesis não pode ser si mplesmente reduzido aos de magia e de regressão: a mimesis indicaria muito mais uma dimensão essencial do pensar, esta dimensão de aproximação não violenta, lúdica, carinhosa, que o prazer suscitado pelas metáforas nos devolve. Ela aponta para aquilo que Adorno, na sua Teoria Estética, define como o Telos der Erkenntnis, o "Telos do conhecimento" (1982, p. 87): uma aproximação do outro que consiga compreendê-Io sem prendê-lo e oprimi-lo, que consiga dizê-lo sem desfigurá-lo. Essa proximidade na qual o espaço da diferença e da distãncia seja respeitado sem angústia, esse conhecimento sem violência nem dominação já era a idéia reguladora que orientava toda . crítica de Adorno na Dialética do Esclarecimento. E a idéia de uma reconciliação possível, mas cuja realização, em oposição ã dialética do espírito absoluto em Hegel, sempre nos escapa. Esse movimento de promessa e de reserva descreve a dialética que Adorno, no fim da sua vida, chama de "dialética negativa", pois nunca repousa em si mesma, nunca sossega na possibilidade da totalidade. O privilégio da obra de arte seria, segundo o último texto de Adorno, a sua Teoria estética, de manifestar, de dar a ver numa configuração sensível e histórica esse movimento da verdade. A arte é o "refúgio do comportamento mimético" (Adorno, 1982, p. 86), mas de uma mfinesis redimida que conseguiria fugir tanto da magia como da regressão. Cito na tradução portuguesa: "Mas o comportamento estético não é

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nem mimese imediata, nem mimese recalcada mas o processo que ela desencadeia e no qual se mantém modificada" (Adorno, 1982, p. 364). Algumas linhas abaixo Adorno retoma a associação entre o comportamento mimético originário e o calafrio do homem que estremece de medo perante o monstro. Vocês lembram que essa reação originária de "idiossincrasia" era citada por Adorno na sua crítica ao comportamento mimético perverso do anti-semita. Aqui, na última página da Teoria Estética, esse arrepio mimético originário reaparece, mas sob sua figura reconciliada: é o tremor do sujeito perante a beleza; essa febre sagrada que, no Fedro de Platão, aqui também citado por Adorno, apodera-se do amante quando vê o amado, pois este lhe lembra a visão da divindade. Ali, diz Adorno, o sujeito se deixa atingir, afetar pelo objeto, mas esse toque recíproco não produz feridas; o sujeito não apaga nem submete o outro a si mesmo num gesto prepotente. Experiência erótica e estética que também define, segundo o velho ensinamento platónico, a experiencia do conhecer verdadeiro, isto é, da união entre Eros e Logos.

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1 06 .

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Le Sophiste. Paris: Les Belles Lettres, 1925. Trad. Auguste Diés.

VI. DO CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO

Seltz, J. "Lembranças". In: Über Walter Benjamin. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1968.

A Marcos, que não desiste da totalidade

Para este carrefour sobre a Escola de Frankfurt escolhi três textos de Adorno que gostaria de ler e comentar com voces. Preferi este caminho de análise a um outro possível, ode uma introdução geral à problemática dos frankfurtianos. Tais introduções não passam, na maioria das vezes, de generalidades bastante vagas, pois não há, rigorosamente falando, uma unidade doutrinária na Escola de Frankfurt Há muito mais preocupações comuns, comuns aliás a muitos outros pensadores da época, como Lukács e Korsch, por exemplo, preocupações que acarretam reflexões e conclusões diferentes, às vezes antagônicas, nos abusivamente chamados "frankfurtianos". É só pensar, por exemplo, nas posições respectivas de Benjamin e de Adorno sobre a função da arte na modernidade ou de Adorno e de Marcuse a respeito da importancia do movimento estudantil. Vou, então, restringir-me à filosofia de Adorno e, em particular, a uma análise da função que o conceito de razão aí desempenha. A nossa hipótese de trabalho consiste na afirmação de que esta filosofia vive da tensão entre a crítica da racionalidade iluminista e a reabilitação paradoxal da metafísica. Gostaria de expor esta tese com três textos que datam de épocas diferentes: o primeiro, da Dialética do Esclarecimento, de 1944; o segundo, de Mínima Moralia, de 1947; e o terceiro, da Dialética Negativa, de 1966. Adianto também que esta exposição se apóia basicamente nas reflexões críticas de A. Wellmer l e J. Habermas. 2 1

Wellmer, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne (Frankfurt am Main: Surhkamp, 1985). 2 Habermas, J. DerPhilosophischeDiskurs derModeme(Frankfurt am Main: Surhkamp, 1985).

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Escrito no exílio por Adorno e Horkheimer, o livro Dialética do

Esclarecimento é tido como uma das mais negras, das mais pessimistas obras da filosofia contemporánea (Habermas, p. 150). Pessimismo cuja justificativa maior se encontra certamente na dramática época histórica da sua redação: de um lado, o nazismo triunfante, do outro, o stalinismo e, no meio, o exílio dos autores, a constatação do profundo aburguesamento da classe operária no capitalismo avançado. Para onde quer que se dirijam os olhares só há dominação e morte e, pior ainda, acomodação à morte e resignação à dominação. Adorno e Horkheimer tentam entender como o antigo ideal de razão emancipadora, ideal explicito no Iluminismo, mas, segundo eles, já presente na origem da racionalidade ocidental, como este ideal deu à luz um sistema social no qual racionalidade e dominação são inseparáveis. Essa "meta-história da razão" (Wellmer) pretende ser, ao mesmo tempo, também uma história do poder social-político. A primeira hipótese da Dialética do Esclarecimento, hipótese afirmada, nunca discutida, é, portanto, a de que estruturas da organização racional e estruturas da organização social não só se correspondem como se apóiam mutuamente. Hipótese oriunda certamente da crítica marxista à ideologia, mas que tem, além disso, a pretensão de reconstruir o quadro transcendental do desenvolvimento da razão na sociedade ocidental. A tese principal do livro consiste na proposição enunciada no prefácio:

O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia (Dialética do Esclarecimento, p. 15). [Ver bibliografia, p. 122 abaixo.]

Segundo Habermas (pp. 131-138), temos três passos (que correspondem aos capítulos iniciais) na argumentação que mostram essa imbricação da razão e do mito, a sua superação posterior e, finalmente, o enclausuramento da razão num pensamento tão constrangedor e ameaçador como as lendas míticas: 1. O primeiro passo mostra a imbricação, desde o início, entre esclarecimento e mito, isto é, entre uma faculdade de emancipação e de crítica e aquilo que pretende combater, as forças cegas da natureza que negam a autonomia do sujeito. Na sua luta contra o mito, a razão fica, por assim dizer, contagiada pelas forças às quais se opõe e cairá

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no seu desenvolvimento ulterior, nos mesmos mecanismos de ofuscamento que criticava originariamente no mito. Esse processo é ilustrado na constituição do sujeito racional de maneira privilegiada na belíssima análise da Odisséia, que não retomarei aqui. Esse desenvolvimento ulterior da racionalidade iluminista é analisado nas suas contradições no capitulo consagrado à moral. 2. O segundo passo (sobre a Juliette, de Sade) tratará das peripécias da ética iluminista (isto é, no fundo, da concepção de prática do esclarecimento), tanto na sua constituição em Kant como na sua autodestruição em Nietzsche e Sade. Como tinham mostrado que o esclarecimento já estava embutido no mito, Adorno e Horkheimer mostram agora que as insuficiências e os paradoxos da moral iluminista já se encontravam em sua origem no paradigma kantiano e se reproduzem na radicalidade oposta de Nietzsche e Sade. 3. Enfim, num terceiro passo, a possibilidade de uma saída estética será questionada. O capitulo sobre indústria cultural encarrega-se de negar — notadamente contra Walter Benjamin — a possibilidade de uma transcendência dentro da modernidade, também no dominio estético. Esse capítulo, talvez o mais dogmático, será submetido a vários remanejamentos e criticas, inclusive da parte dos próprios autores. Podemos fazer duas observações a propósito deste brevíssimo resumo da Dialética do Esclarecimento:, — A sua pretensão critica recobre o campo das três críticas kantianas; os primeiros capítulos, sobre o entrelaçamento da razão e do mito, correspondem à Critica da Razão Pura; o terceiro, sobre a moral iluminista, à Critica da Razão Prática; e, enfim, o último, sobre indústria cultural, à Critica do Juizo. O alcance epistemológico do livro é, portanto, geral. E como sublinha Habermas (op. cit., p. 145), toda a filosofia de Adorno, até os últimos escritos, Negative Dialektik e Aesthetische Theorie, retomam e variam a problemática já esboçada nessa obra de juventude. Tratar-se-á sempre de saber como um pensamento crítico é possível, ainda que ele também se inscreva dentro de um conjunto social totalitário e afirmativo, ou, mais precisamente em relação à idéia de razão, como manter a esperança de emancipação do esclarecimento quando este se tornou, ele mesmo, a figura mais acabada do cerceamento mítico contra o qual pretendia lutar.

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Questão ao mesmo tempo transcendental e prática, que remete ã necessidade da critica tanto no sentido kantiano quanto no sentido marxista: questão que só pode ser colocada desta forma, devemos observá-lo, porque a filosofia adorniana repousa numa visão dialética do real que pressupõe, em particular, a existência de um sistema social-político totalizante, isto é, no qual a totalidade determina integralmente os elementos particulares, enquanto estes só podem ser compreendidos como constitutivos dessa totalidade. É essa pressuposição dialética, na boa tradição hegeliana e marxista, que torna a questão da possibilidade da ruptura crítica tão necessária e tão dramática.

próprio pensar é desencadeado pelo medo. O saber enraíza-se nessa tensão entre medo e emancipação. — O problemático desse desenvolvimento do pensamento não se encontra, segundo Adorno e Horkheimer, nessa sua origem. Encontra-se na "solução" levantada para escapar ao medo. O saber que deve liberar do medo é definido como um poder no sentido forte de domínio: é só quando os homens se tornam "senhores" que eles conseguem ficar sem medo. Esse processo de dominação é cada vez mais amplo no decorrer da história: os mitos — enquanto falas — já representavam uma tentativa de dominar a angústia, dando-lhes um(s) nome(s); mais tarde, a crítica aos mitos e à concepção animista da natureza configura um domínio do logos (razão e linguagem) sobre si mesmo, um autodomínio, portanto. O processo de desmitologização culmina no de dessacralização, em particular, na denúncia moderna da religião: os deuses não passariam de projeções humanas, encarnações dos seus medos e dos seus desejos:

Depois desta breve introdução, podemos agora ler o nosso primeiro texto. No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. (...) Os deuses não podem livrar os homens do medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles trazem como nome. Do medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fonte de angústia (Dialética do Esclarecimento, pp. 19 e 29). Gostaria de ressaltar duas hipóteses-chaves da Dialética do Esclarecimento neste belo texto: — O progresso do pensamento fora do mito para o esclarecimento, progresso questionável e questionado, não é desencadeado por um interesse desinteressado pelo conhecimento "enquanto tal". Origina-se muito mais num sentimento básico, no medo que acomete o frágil homem frente As forças da natureza e à violência social. 0

...não podem livrar os homens do medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles trazem como nomes. A crítica da religião permite a façanha, característica da nossa modernidade, da tomada de poder dos homens sobre os deuses, do humano sobre o divino e o sagrado. Tendo chegado af, o homem dever-se-ia encontrar livre do medo, pois não há mais nenhuma figura onipotente que possa ameaçá-lo. Ora, paradoxalmente, a erradicação do medo pelo esclarecimento não produz mais a sua libertação, pelo contrário, sempre segundo Adorno e Horkheimer, a ...terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. Poderíamos também dizer que a luz branca da razão, do esclarecimento, transforma-se na escura luz devoradora da onipotência: ao querer se livrar do medo pelo domínio total (e totalitário) sobre o real, a razão do esclarecimento não pode mais tolerar nada que lhe escapa, nem deuses, nem estrelas, nem sonhos. O esclarecimento precisa tudo controlar para se sentir seguro. Ao tentar isso, cai num processo de coerção tão ameaçador como o cego destino mítico. Isso se deve a duas razões interligadas: 1) como o esclarecimento pretende

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abarcar tudo, qualquer força que viesse de fora se tornaria intensamente ameaçadora, pois colocaria em questão essa totalidade fechada (no pensamento mítico, a relação com o fora era, sem dúvida, angustiante, mas, ao mesmo tempo, comum, normal, pois os próprios mitos tematizavam essa intervenção do outro); 2) a denegação da existência de um fora que lhe escapasse e a afirmação do seu controle todo poderoso não fortalecem a razão, apesar das aparências: tomam-na simplesmente mais frágil porque mais entregue às suas próprias interdições, aos seus próprios tabus. Resumindo: a razão triunfante só vence ao preço de uma proibição ditatorial sobre si mesma, a própria razão se torna o deus ameaçador mítico em relação a si mesma. O grande tema iluminista da autonomia da razão (isto é, o fato de ela se dar as suas próprias leis e de não aceitar obedecer a nenhum poder exterior) transforma-se, na análise de Adorno e Horkheimer, no tema do autodomínio, e mais, da auto-repressão da razão sabre si mesma. Vocês devem ter percebido que a argumentação de Adorno e de Horkheimer retoma motivos marxistas, freudianos e, como o ressaltam Wellmer (p. 15 e ss.) e Habermas (p. 144 e ss.), nietzschianos. Seguindo esses dois comentadores, gostaria de explicitar rapidamente esse parentesco com Nietzsche. A relação de Adorno e Horkheimer a Nietzsche é, como diz Habermas, zwiespaeltig ("cindida") (p. 145). Se criticam o Iluminismo, continuam, porém, iluministas, pois retomam e reafirmam o ideal de emancipação da razão, denunciando as suas perversões, mas reivindicando o valor de verdade da sua exigência critica. Nesse contexto, Nietzsche é condenado como sendo, em última análise, um irracionalista (essa denúncia do irracionalismo orientará também os vários textos de Habermas a respeito de Nietzsche). No entanto, como o mostram Wellmer e Habermas, Nietzsche está presente na hipótese epistemológica maior da Dialética do Esclarecimento, a saber, na redução genealógica da racionalidade iluminista a uma dinâmica do poder. Podemos desdobrar essa denúncia nos dois traços principais da razão iluminista, segundo nossos autores, no seu caráter instrumentalista e no seu apego à identidade. O conceito de "razão instrumental" (cf. Horkheimer, Zur Kritik der Instrumentellen Vernunft, 1947) remete à diferença entre entendimento e razão (Habermas, p. 144) e denuncia o formalismo da razão como um mero instrumento de cálculo e de dominação. Esse tema é profundamente nietzschiano, pois afirma que os conceitos não têm um outro valor de verdade

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senão o de ser, exclusivamente, instrumentos arbitrários que permitem se apoderar da realidade ("arbitrários" no sentido igualmente nietzschiano de que eles servem mais ou menos bem aos interesses daqueles que os usam, não no sentido clássico de que representariam esquemas de apreensão mais ou menos fiéis ao real). Assim desaparece, como Habermas não se cansa de repetir a propósito de Nietzsche e dos seus seguidores (cf. p. 144), a diferença entre validade (Geltung) e poder ( Macht), e isso dentro da própria razão filosófica que, pelo menos na sua origem, na luta de Platão contra a sofistica, pretendia resguardar a não-identificação dessas duas instâncias. A denúncia da instrumentalidade da razão é retomada e ampliada na crítica adorniana do conceito de identidade, critica esta que percorre toda a sua obra — tanto é que Wellmer pilde intitular um dos seus ensaios "Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen" ("Adorno, Defensor do Não-Idêntico" ). Esta discussão do conceito de identidade, em particular do seu caráter arbitrário e coercitivo, que impede a razão de pensar a pluralidade e a multiplicidade, é comum a toda a reflexão contemporánea (cf., por exemplo, Heidegger, Deleuze etc.). A sua fonte se encontra, é claro, na dialética hegeliana, mas também e em particular no que diz respeito ao caráter coercitivo do conceito de identidade, em Nietzsche. Wellmer menciona (p. 148) dois fragmentos póstumos de Nietzsche que cito a seguir (tradução caseira): A lógica está ligada à seguinte condição: contanto que haja casos idênticos. Com efeito, para que possamos pensar e concluir logicamente, essa condição tem a obrigação de ser fingida como antes comprovada. Isto é: a vontade de verdade lógica só se pode cumprir depois de ter sido aceita uma falsificação de princípio de todo acontecer. Disso resulta que aqui reina uma pulsão (Trieb) capaz dos dois meios, primeiro da falsificação, e depois do cumprimento do seu ponto de vista: a lógica não nasce da 3 vontade de verdade. 3 "DieLogik istgeknuepft au die Bedingung:gesetzt, es gibt identischeFaelle. Tatsaechlich, damit logisch gedacht undgeschlossen werde, muss dieseBedigung erst ais erfuelit fingiert werden. Das heissh der W illezur logischen Wahrheitkann erstsich voliziehen, nachdem einegrundzaetzliche Faelschung alles Geschehens angenommen Woraus sich ergibt, dass hier ein Trieb waiter, der beiden Mittel faehig ist, tuent der Faelschung und dann der Durchfuemngseines GesichtspunMes: die Logik stammt nicht aus dem Witten zur Wahrheit" (Ed. Schlechta, vol. III, p. 476).

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E: A obrigação de formar conceitos, gêneros, formas, fins, leis ("um mundo de casos idênticos") não deve ser entendida como se pudéssemos assim fixar o mundo verdadeiro, mas como a obrigação de nos ajeitar um mundo sob medida, no qual a nossa existência seja possível: — criamos assim um mundo que é calculável, simplificado, compreensível etc., para n6s. 4 No decorrer de toda a sua obra Adorno retoma, e mesmo intensifica, esta tese nietzschiana: o pensamento opera com representações, conceitos, idéias etc. que pressupõem uma ordenação arbitrária (Nietzsche diz, de maneira bastante paradoxal, uma "falsificação") da multiplicidade do real. Essa ordenação não é simplesmente imprescindível à sobrevivência do ser humano; ela contém em si um momento de dominação, pois pretende fazer entrar a pluralidade concreta na camisa-de-força do idêntico. Ou ainda: o conceito de identidade não é somente uma condição necessária ao funcionamento da racionalidade ocidental, é mais que isso — ele configura uma tomada de poder nada inocente sobre a realidade, e só consegue apreendê-la pela violentação. Duas breves observações se impõem neste ponto da nossa exposição: Pode-se e deve-se aplicar à noção de identidade, tal qual Adorno a emprega, a mesma critica que ele aplica à razão iluminista, isto é: Adorno encobre com um único conceito uma multiplicidade de usos e contextos nos quais as palavras "identidade", "identificar", "identificação" etc. funcionam. Essa observação de Herbert Schnaedelbach s provém da preocuPação atual da filosofia analítica com uma clarificação da linguagem filosófica, pois, segundo essa direção anaIftica, a maioria dos problemas filosóficos remeteria a um uso confuso das palavras e a uma substancialização desse uso (cf. Wittgenstein). Sem querer entrar nesse debate, podemos notar, com Schnaedelbach, 4 "Man soil die Noetigung, Begdffe, Gattungen, Formen, Zwecke, Gesetze zu bilden nine Welt der identischen Faelle) nichtso verstehen, ais ob wirdamit die wahre Weltzu /ixieren instande waeren, sondem ais Noetigung, uns Bine Welt zurechtzumachen, bei der unte Existenz ermoeglicht wind: wir schaffen damit eive Welt, die berechenbar, vereinfacht, verstaendlich usw, fuer uns (Id., p. 526). 5 Schnaedelbach, Herbert. "Dialektik ais Vernunftkritik, zur Konstruktion des Rationalen bei Adorno", in Adorno Konferenz 1983. Frankfurt am Main: suhrkamp, 1983, especialmente pp. 69 e ss.

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que Adorno não distingue, por exemplo, "identificação" e "adequação", "identidade" e "igualdade", "identificar com algo" e "identificar como algo" etc. Isso lhe permite, entre outras coisas, uma aproximação talvez rápida demais entre a lógica da identidade e a lógica capitalista da troca ou entre a lógica da identidade e a constituição repressiva do sujeito. Não é aqui o lugar de desenvolver estas observações, que quis, porém, mencionar, pois me parecem muito instigantes e ajudariam talvez a não sucumbir totalmente aos encantos da radicalidade adorniana. Segunda observação que nos levará a nosso segundo texto. Como Wellmer o ressalta (pp. 148-149), a idéia de uma ligação entre formas de pensamento e formas de dominação da natureza não remete só a Nietzsche, mas, é claro, também a Marx, com a diferença de que esse processo de dominação da natureza é pensado positivamente em Marx como fazendo parte do processo de trabalho. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer radicalizam então a tese marxista da correspondência entre formas de pensamento e formas de trabalho ao denunciar, no próprio conceito marxista de trabalho, um momento de violência. Ou, dito de outra maneira: o pensamento de Marx também se inscreve na racionalidade iluminista e incorpora suas características de dominação. Essa crítica a Marx não impede que, agora contra Nietzsche, Adorno e Horkheimer compartilhem do mesmo conceito enfático de verdade que o marxista, quando denunciam o caráter ideológico da racionalidade instrumental. Não afirmam somente, como Nietzsche, que o pensamento identificador domina, violenta e, nesse sentido, falsifica o real (relativismo dos valores, perspectivismo etc.). Dizem também, com Marx, que essa violência não remete somente a uma condição transcendental do conhecimento humano, mas muito mais a uma dominação prática, que essa "falsificação" não provém só de um perspectivismo universal, mas que ela é muito mais "uma aparência socialmente necessária", como Marx o elucida no parágrafo sobre o valor fetiche da mercadoria. Há, portanto, diz Wellmer — que sigo totalmente nesse ponto —, uma concepção normativa da verdade que funciona como critério de denúncia e orienta a exigência de emancipação comum a Marx, Adorno e Horkheimer. S6 que essa verdade não pode ser pensada, na critica adomiana, nem com os instrumentos da nossa racionalidade identificadora nem com os valores vigentes da nossa sociedade, embora — e isto é a cruz da

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMORIA E HISTORIA

preender sua própria impossibilidade, a fim de salvaguardar sua possibilidade. Mas, tendo em vista as exigências que dal decorrem para o pensamento, a questão da realidade ou irrealidade da redenção se torna quase indiferente. ]

dialética adórniana — não haja outros meios ã disposição. Cito

Wellmer (p. 149):

Adorno e Horkheimer retém com a perspectiva utópica da teoria marxista também um conceito enfático de verdade que deve, porém, ser pensado ao mesmo tempo exterritorialmente em relação ao mundo do pensamento identificador, ao contexto de ofuscamento da racionalidade instrumental . 6 É essa contradição entre a necessidade de pensar a verdade na sua figura de não-identidade, de diferença, de outro e a impossibilidade de escapar à falsa totalidade ideológico-social que tematiza o nosso segundo texto: A única filosofia ainda responsável em face do desespero seria urna tentativa de considerar todas as coisas como elas se apresentariam na perspectiva da redenção. O conhecimento não tem outra luz que aquela que a redenção irradia sobre o mundo: todo o resto se esgota na mera reprodução e permanece um fragmento de técnica. Seria preciso abrir perspectivas nas quais o mundo se mostrasse em suas alienações, em suas descontinuidades e em suas fraturas, da mesma maneira que aparecerá um dia, carente e deformado, sob a luz do messianismo. O que importa antes de mais nada ao pensador é abrir tais perspectivas, sem arbítrio e sem violência, derivando-as do contato sensível com os objetos. É o mais simples, porque a situação reclama imperiosamente tal conhecimento, e porque a negatividade consumada, vista em seu conjunto, coincide com a imagem especular do seu contrário. Mas é também algo totalmente i mpossível, porque pressupõe um lugar, subtraído à gravitação do existente, ainda que de forma infinitesimal, ao passo que todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso, deve ser arrancado pela violência ao que é, e está afetado precisamente por essa razão, pela mesma deformação e pela mesma insuficiência daquilo a que pretende escapar. Quanto mais apaixonadamente o pensamento quer isolar-se de seus condicionamentos, em busca do incondicionado, tanto mais inconsciente e portanto mais fatídica é sua absorção pelo mundo. Precisa com-

Não vou me demorar no comentário deste belíssimo texto, que, parece, se basta a si mesmo, e que conclui a série de aforismos Minima Moralia, subtítulo Reflexionen aus dem beschaedigten Leben (Reflexões a Partir da Vida Danificada), um dos mais pungentes livros de Adorno. Gostaria de ressaltar tres pontos. 1. Todo o texto remete, não há dúvida, a motivos da teologia, em particular da teologia neggativa. O motivo mais forte é, como Michael Theunissen observa, o da prolepse, isto é, a presença antecipada do futuro no presente. Assim, Adorno evoca um conhecimento "na perspectiva da redenção" e afirma que o "conhecimento não tem outra luz que aquela que a redenção irradia sobre o mundo". Atrás dessas formulações há a bela idéia de que todas as feridas do mundo só poderão ser realmente conhecidas e reconhecidas no dia em que puderem igualmente ser enfim curadas; antes desse dia não há possibilidade de conhec@-las integralmente, pois o próprio sofrimento do mundo afeta a nossa percepção, tornando-a grosseira e indiferenciada. Paralisia que poderíamos, talvez, interpretar também como uma estratégia canhestra de sobrevivência: não podemos nem queremos enxergar a amplidão do desastre, pois esta vista nos mataria; só o ousaremos quando houver, justamente, possibilidade de redimir este nosso mundo e este nosso olhar; mas paralisia que também remete àquilo que Adorno chama várias vezes de Verblendungzusammenhang, de contexto de ofuscamento, isto é, ao fato de o nosso conhecimento, de o nosso pensamento racional em geral, não poder se furtar ao contexto social-politico de dominação. Essa contaminação do pensamento por aquilo contra o qual pretende lutar nos leva à nossa segunda observação. 2. À luz da redenção se opõe, pois, no próprio texto, a escuridão da "negatividade consumada". No pensamento de Adorno de Minima Moralia o corpo social na sua totalidade é alienado. Mais: o sistema Habermas, J. "O idealismo alemão dos filósofos judeus", ensaio no qua] este fragmento de Minima Moralia é traduzido, trad. de B. Freitag e S. P. Rouanet, in Habermas (sdo Paulo: Ática, 1980), p. 99. 8 Theunissen, Michael. "Negativitaet bei Adorno", in Adomo-Konferenz 1983, op. cit., especialmente pp. 54 ss. 7

6 "Adorno und Horkheimer batten mit der utopischen Perspektivedermanschen Theoriezugleich einen emphatischen Begrii der Wahreit fat, der aber nun gleichsam exterritodal gedacht werden muss zur Welt des identilrzierenden Denkens, mm Verblendunszuzammenhang der instrumentellen Rationalitaet" (op. cit., p. 149).

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DD CONCEITO DE RAZÃO EM ADORNO

capitalista, entendido dialeticamente no sentido marxista, condiciona também as formas de resistência a ele. O pensamento não escapa a essa determinação implacável. Ciente disso, ele deseja fugir do contexto social alienado e, justamente nesse movimento de raiva, reproduz a violência da totalidade.

...Todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso, deve ser arrancado pela violencia ao que é e está afetado precisamente por essa razão, pela mesma deformação e pela mesma insuficiência daquilo a que se pretende escapar.

Nesse total ofuscamento, nenhuma alternativa se oferece: ou o pensar se resigna à sua determinação e deixa de lutar, ou cisma em ser incondicionado e esconde assim ainda mais o seu condicionamento; em ambos os casos, não se furta ao contexto geral de alienação. A esperança de redenção e à sua luz salvadora se contrapõe, assim, no mesmo texto, a noite da totalidade fechada nas suas determinações inelutáveis. É justamente esta contradição que define, em última análise, o esforço do pensamento: sabe do seu condicionamento irremediável, mas vive, no entanto, da esperança de poder escapar a esta estranha fatalidade dialética, de poder chegar a "um lugar subtraído à gravitação do existente". Podemos mesmo dizer que, para Adorno, o verdadeiro pensamento crítico não consiste em outro movimento que essa auto-reflexão sobre sua determinação e sobre a libertação dessa sua determinação. Por isso, coma diz no fim do nosso texto, a questão de saber se há ou não redenção se toma secundária, em vista de saber se tal pensamento, que se salvaria a si mesmo no seu mais profundo dilaceramento, é possível. Por isso, podemos acrescentar, não há volta a teologia — que pressupõe a

existência do absoluto — , mas sim permanência na filosofia, mais precisamente na filosofia da auto-reflexão do espirito, numa fiel continuação da dialética hegeliana, o que desembocará na construção da

Dialética Negativa. 3.

Temos já neste texto uma indicação preciosa do que poderia ser um pensamento certamente racional, porém não dominador. Ao lado das altas abstrações da auto-reflexão encontramos, com efeito, uma outra exigência para o conhecer: aquilo que Adorno chama de "contato sensível com os objetos" (Fühlung mit den Gegenstiinden).

Esse

aspecto de respeito pelo sensível (repito e insisto, não pelo irracional,

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Adorno não é um dos numerosos pais do irracionalismo contemporâneo) assinala uma certa humildade do pensar que quer seguir com ternura os contornos do sensível, gratuitamente, por simples prazer e respeito, sem calcular antes qua] poderia ser o "lucro" que daí resultaria ou não. Esse gesto deverá assumir uma importáncia crescente na filosofia de Adorno, alimentando toda a sua revalorização do conceito de mimesis, não como mera imitação nem como intuição aconceitual, mas, justamente, como uma flexibilidade aconchegante à singularidade e à multiplicidade do concreto: o que desembocará na sua teoria estética (cf. Schnaedelbach, op. cit., p. 81, e Wellmer, op. cit., p. 153). Espero que tenhamos agora elementos suficientes para chegar ao nosso último texto que se encontra na Dialética Negativa, que é um pouco a suma teórica de Adorno ao lado de e junto com a sua Teoria Estética. Transcrevo este parágrafo, situado nas últimas páginas da obra: Dialética é a autoconsciência do contexto objetivo de ofuscamento mas não lhe escapou ainda. Irromper dele a partir de dentro é objetivamente sua meta. A força para a irrupção lhe advém a partir do próprio contexto de imanência; a ela caberia ainda uma vez aplicar a palavra de Hegel: a dialética absorve a força do adversário e a emprega contra ele; não só no singular, visto dialeticamente, mas também, por fim, no todo. Ela apreende com os meios da lógica o seu caráter de coerção, esperando que ele ceda. Pois essa coerção é, ela mesma, a aparência mítica, a identidade imposta. O absoluto, entretanto, como se afigura à metafísica, seria o não-idêntico que tão-só afloraria depois que a coerção à identidade se tivesse desfeito. Sem a tese da identidade a dialética não é o todo; mas então também não seria urna falta capital abandoná-la num passo dialético. É da determinação da dialética negativa não tranqüilizar-se em si mesma como se ela fosse total; esta é a sua figura de esperança. 9 9 Negative Dialektik, p. 396 (trad. JMG). "Dialektik ist das Selbstbewubtsein des objektiven Verblendungszusammenhangs, nicht bereits diesem entronnem. Aus ihm von innen her auszubrechen, ist abjektiv ihr Ziel. Die Kraft zum Ausbruch wdchst ihr aus dem lmmanenzzusa,nmenhang zu; au(sie ware, noch einmal, Hegels Diktum anzuwenden, Dialektik absorbiere die Kraft des Gegners, wende sie gegen ihn; nicht mur im dialektisch Einzelnen sondem am Ende im Ganzen. Sic fabt mit den Mitteln von Logik doren Zwangscharakter, hoffend, dap erweiche.

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Adorno retoma aqui, numa continuidade notável, a idéiamestra da Dialética do Esclarecimento, segundo a qual a racionalidade se reverte em mitologia ao impor mecanismos coercitivos tão absolutos como outrora, o pensamento identificador em particular. S6 que, mais dialético talvez do que na primeira obra, ele consegue vislumbrar, digamos, não uma saída, mas talvez uma possibilidade de superação. Essa se encontra, seguindo a lição de Hegel, na auto-reflexão do pensamento sobre o seu próprio caráter coercitivo: "ela (a dialética) apreende com os meios da lógica o seu caráter de coerção, esperando que ele ceda." Notemos aqui que o pensar não desiste dos seus próprios instrumentos para chegar além de si mesmo. Adorno não propõe um intuicionismo imediato nem um irracionalismo ingênuo para escapar da lógica identificadora. Propõe, sim, na boa tradição plat©nica, um demorar e um treinar na linguagem e na ratio, no logos, para enxergar a sua insuficiência e indicar, talvez, o que seria seu outro fundador. l ° Diz ele na mesma Dialética Negativa que o esforFo da filosofia consiste em "ir além do conceito através do conceito", o que soa como um comentário da Sétima Carta de Platão. Essa esperança (a palavra volta várias vezes em momentos-chaves do texto: "esperando que ceda" — "esta é a sua figura de esperança") parecia ausente da Dialética do Esclarecimento, já surgia timidamente sob uma forma quase teológica no texto de Minima Moralia, e, aqui, está afirmada como a condição transcendental de um pensar verdadeiro. Notemos a propósito, com Michael Theunissen, l que ela é um argumento de peso contra a interpretação muito comum da filosofia adorniana como uma filosofia pessimista. Theunissen fala até do otimismo da Dialética Negativa. O que gostaria de ressaltar é, no entanto, um outro aspecto. A figura da esperança em Adorno torna-se cada vez mais inerente ao próprio movimento do espirito. Poderíamos talvez dizer que ele escreve uma Dialética Negativa (e, certamente, uma Teoria Estética) para escapar da tentação da teologia negativa. Que ele o tivesse ou não conseguido, Dera, jener Zwang ist selber der mythisehe Schein, die eriwungene Identitdt. Das Absolute jedoch, wit' es der Metaphysik vorschwebt, ware das Nichtidentische das en! hervortrate, nachdem der Identitdtszwangzergmg. Ohnetdentitatsthese ist Dial ektik nicht das Gauze; dann aber ouch keine Kardinalsiinde, sie in einem dialektischen Schdtt zu verlassen. Es liegt in der Bestimmung negntiver Dialektik, dap sie sich nicht bei sich beruhigt, ais ware sie total; das ist ihre Gestalt vo,i Hoffnung." 10 Cf. Schnaedelbach, op. cit., pp. 67, 75-6. 11 "Ueber den Btgriff durch den Begriff hinauszugehen", Negative Dialektik, p. 25. 12 Op. cit., pp. 49-50.

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isto é uma outra questão. Mas há, sem dúvida nenhuma, nesse movimento do pensamento através e além de si mesmo, um esforço notável de reabilitação da metafísica, da filosofia, contra a sua redução à racionalidade identificadora do positivismo ou do senso dito comum. Partindo assim de uma crítica da razão do esclarecimento, como o vimos, Adorno chega a uma salvação do conceito de razão, entendido agora como o logos pleno, capaz de dizer também os seus li mites e, ao faze-1o, de indicar a sua auto-superação. Não há, portanto, ã diferença de Heidegger, destruição da metafísica em Adorno, mas si m muito mais a sua Aufhebung, destruição e conservação ao mesmo tempo. l3 Aufhebung certamente no sentido hegeliano, mas, contra a filosofia hegeliana do espírito absoluto, Aufhebung que não intenciona nenhuma totalidade positiva; ao contrário — e é par isso que se chama negativa —, a dialética adorniana desiste do absoluto, isto é, no fundo, da própria possibilidade de uma totalidade realmente verdadeira. "É da determinação da dialética negativa não tranqüilizar-se em si mesma como se fosse total; esta é a sua figura de esperança." É a sua figura de esperança, certamente, e é, também, podemos nos arriscar a dizer, a sua mais alta figura de autonegação e, nesse sentido, a última despedida da razão ocidental ã bela idéia de totalidade dialética. Talvez Adorno seja o último filósofo que ainda tentou pensar juntas totalidade e razão — só que, para salvar um conceito de razão verdadeira, viu-se obrigado a abrir mão de um conceito de totalidade verdadeira.

13 Cf. Theunissen, op. cit., p. 59.

BIBLIOGRAFIA

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Talvez sejam os anjos a figura mais conhecida de Walter Benjamin, este autor judeu, alemão, filólogo e filósofo, teólogo e marxista, que foi, primeiro, desconhecido e que se tornou, de repente, quase famoso demais, por demais na moda. Assim, as numerosas comemorações que marcaram, em 1992, o centenário de seu nascimento, trazem, várias vezes, como emblema o Angelus Novus, essa gravura de Klee que Benjamin comprou em 1921 em Munique, que ele considerava como sendo uma das suas mais preciosas aquisições e que ele descreveu de maneira lancinante em sua nona tese "Sobre o Conceito de História": por exemplo, a capa do livro de Stéphane Mosês, O Anjo da História, livro consagrado a Rosenzweig, Benjamin e Scholem (Seuil, 1992) ou, do outro ‘ lado do Atlãntico, o grande cartaz impresso pelo Instituto Goethe de Buenos Aires para seu Colóquio Internacional de outubro de 1992 sobre Walter Benjamin. Se os anjos povoam, portanto, o pensamento de Benjamin, esse povoamento subverte, como tantas vezes em Benjamin, a idéia mesma de uma posição estável, de uma pátria definitivamente conquistada, de um enraizamento substancial, seja ele de ordem teórica ou existencial. Por isso, qualquer estudo dessa figura, que tenderia a reconduzir suas aparições paradoxais a uma única função essencial, corre o risco de aprisionar, mais uma vez, Benjamin nesta alternativa que ele não quis resolver, durante sua vida inteira, e isso apesar da insistência dos seus numerosos (e opostos) amigos: qual seja,' essa alternativa, a de ser o autêntico e último testemunho da tradição mística judaica ou; então, o precursor de uma tradição marxista renovada. A análise das figuras angelicais benjaminianas não escapa sempre a essa dicotomia, seja com

124: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTÕRIA

Scholem brandindo o manuscrito autobiográfico póstumo Agesilaus Santander 1 como se esse fosse o signo irrefutável da participação fundamental de seu amigo à tradição mística, mesmo cabalística judaica, signo, portanto, da superficialidade de seu interesse pelo marxismo; ou, pelo contrário, que a presença dos anjos em Benjamin, seja silenciada ou, então, taxada de simples metáfora — como se tal simplicidade pudesse existir! —das esperanças dos vencidos humilhados em sua luta pela liberação. Gostaria de examinar aqui a presença dos anjos na obra de Benjamin, mais especificamente de examinar aquilo que essa presença contém de evasão e de perda, aquilo que faz que ela não nos preencha nem nos liberte, mas nos escape, até nos ameace. Ao mesmo tempo evasivos e insistentes, os anjos surgem nesses textos às vezes discretamente, incógnitos por assim dizer, às vezes mais claramente, da claridade do fogo purificador, para desaparecer tão de repente como apareceram — a tal ponto que, muitas vezes, o leitor quase não os percebe. Essas características estilísticas reproduzem, de maneira notável, na própria estrutura dos textos, a temporalidade especifica dos anjos tal qual a descreve "o motivo talmúdico do vir a ser e do parecer dos anjos diante de Deus, a propósito de que um livro cabalístico diz que desaparecem como faísca sobre o carvão". 2 Esses anjos fulgurantes e efémeros que Benjamin conhecia graças às pesquisas de Scholem são, sem dúvida alguma, os que mais marcaram seu pensamento; e isso com tal força que voltam em três textos diferentes e distantes cronologicamente: no artigo de 1921 escrito para anunciar a publicação de uma revista — que nunca devia sair! — intitulada justamente, Angelus Novus, no grande ensaio crítico de 1931 sobre Karl Kraus e, por fim, nos fragmentos autobiográficos de

agosto de 1931 reunidos sob o nome de Agesilaus Santander. Das conversas com seu amigo, Benjamin não retém tanto a imagem dos arcanjos mensageiros que transmitem a vontade divina ou a imagem dos querubins em chamas que guardam o domínio de Yahvé. Esses 1

2

Agesilaus Santander, publicado por Gershom Scholem primeiro no volume coletivo Zur Aktalitdt Wafter Benjamins (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972), pp. 94-102, cam os comentários de Scholem intitulados: "Walter Benjamin und sein Engel", idem, pp. 87-138. As duas versões do fragmento são retomadas na edição das obras completas ( Gesammelteschriften, vol. VII, pp. 520-523). Como tantas vezes, o comentário de Scholem é muito instrutivo por suas referências precisas á tradição mística judaica, mas bastante insuportável no seu tom personalizante e antimarxista. G. Scholem, idem, pp. 108.

0 NINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM

WALTER BENJAMIN

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anjos gloriosos e imponentes se apagam frente a outros que poderiam ser chamados de "menores", que só vivem no instante de seu hino para, em seguida, se desvanecer na noite. No texto pragmático da revista Angelus Novus, Benjamin os descreve da seguinte maneira: Pois os anjos — novos a cada instante em inúmeras multidões — são, segundo uma lenda talmúdica, mesmo criados para, depois de terem cantado seu hino na frente de Deus, cessar e desaparecer no nada. Que uma tal atualidade que é a única verdadeira, caiba 3 à revista, é isso que seu nome deveria significar. Eis um texto muito estranho para anunciar uma nova revista! Contra os protestos de perenidade, de essencialidade ou de profundidade costumeiros nesses casos, Benjamin reivindica uma atualidade si multaneamente resplandecente e frágil, o tempo de cantar um hino e, em seguida, de se aniquilar. Nenhuma pretensão, portanto, nem à duração nem a esse conceito trivial de atualidade que, tantas vezes, serve de álibi aos professores desarmados para convencer seus alunos a estudar os velhos textos. Os anjos talmúdicos são mais o indicio de um outro tempo que o das comemorações; eles introduzem, na cronologia linear e morosa que costumamos chamar de história, uma cesura imperceptível mas que transforma esse continuum histórico, tão ocupado a se perpetuar a si mesmo. Aqui intervém um dos temas essenciais da filosofia de Benjamin, do primeiro até o último de seus escritos, o tema da critica a uma "concepção do tempo homogêneo e vazio"; deve-se interromper esse desenrolar tranqüilo, produto da saga das classes dominantes e da inércia espiritual dos historiadores, para que uma outra história possa dizer-se, entrecortada, lacunar, feita de sobressaltos e de espasmos que surgem no presente como a imagem breve e brilhante de um instante perdido ou recalcado: a história dos vencidos que não é nenhuma nova gesta heróica e apologética, mas sim, uma narrativa recortada, descontínua, frágil e sempre ameaçada pelo esquecimento. A atualidade dos anjos talmúdicos está à altura de sua intensidade, essa jubilação do hino cantado na frente do trono de Deus, e de seu aniquilamento consecutivo. Esses dois aspectos, o jubilat6rio e o aniquilador, são inseparáveis, ou melhor, é justamente a união de 3

W. Benjamin, "Ankündingung der Zeitschift Angelus Novus", Gs. 5chr. 11-1, p. 246. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

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ambos que permite pensar, segundo Benjamin, o conceito de uma verdadeira atualidade: fulgurante, evanescente e destruidora. Os anjos são aqui os portadores de uma destruição necessária, sua própria, certamente e, mais profundamente ainda, a destruição de um tempo que teria a pretensão de se perpetuar a si mesmo. Esse lado destruidor sem o qual não pode haver nem atualidade verdadeira nem, como veremos, verdadeira redenção, fica mais realçado na passagem paralela do ensaio sobre Karl Kraus. Aqui também, podemos notá-lo, trata-se de descrever a atividade de Kraus como editor de uma revista de nome abrasador e purificador: Die Fackel, a tocha. Essa "obra efêmera", nos diz Benjamin no fim de seu ensaio, já "começou a durar" graças à crítica corrosiva que seu autor empreende da imprensa burguesa. A atividade angelical de Kraus nasce de um empreendimento obstinado de destruição sempre recomeçada, pois sempre rapidamente caduca, da linguagem tão segura de si mesma dos bem-pensantes e dos bem-apessoados. A verdade da operação crítica surge desta união radical entre destruição e salvação: ao arrancar as palavras e as obras do contexto lenitivo que, às vezes o próprio autor, e, quase sempre, a história literária tradicional se apressam em lhes emprestar, a crítica quebra sua unidade factícia e, simultaneamente, expõe sua força de estranheza e de subversão. Esse tema caro a Benjamin desde seus primeiros escritos adquire, no ensaio sobre Kraus, a dimensão de uma luta do "humanismo real", irreverente e transformador, o humanismo de Karl Marx e de Karl Kraus, contra o "ideal clássico do humanismo" que devia engendrar a matança da Primeira Guerra e as repressões sanguinárias que se seguiram. A figura do anjo intervém aí como o "mensageiro do humanismo real", mas sob os traços de um Unmensch, de um não-homem, do inumano, de uma "criatura nascida de uma criança e de um devorador de homens", "nenhum novo homem", um "novo anjo", "talvez um deles que, segundo o Talmud, novos em cada instante e em multidões inúmeras, são criados para, deois de alçar sua voz diante de Deus, cessar e desaparecer no nada." Os anjos talmúdicos se tornaram aqui anjos exterminadores e purificadores, nada têm de suaves e sorridentes criaturas protetoras, mas, para salvar aquilo que ainda resta da humanidade real dos homens e não se reduz à fraseologia, assumem os traços de inumano, até do monstruoso. 4

0 HINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

W. Benjamin, "Karl Kraus", Gs. Schr. II-I, p. 367. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

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Essas características ao mesmo tempo ameaçadoras e redentoras são reencontradas no anjo das duas versões do fragmento autobiográfico intitulado Agesilaus Santander que Scholem publicou e comentou em 1972, numa coletânea de ensaios de diversos autores, por ocasião dos oitenta anos do nascimento de Benjamin. Scholem chega a decifrar o título enigmático desses textos como sendo o anagrama de Angelus Santanas. Nesses fragmentos bastante esotéricos que Benjamin, isso deve ser notado, não pensou em publicar durante sua vida, o Angelus Novus de Klee reaparece como um dos anjos talmúdicos, mas ele é descrito de maneira mais precisa, com suas "garras afiadas" e o "bater s cortante de uma faca" de suas asas. Um novo tema intervém: o do nome secreto que, segundo a tradição judaica, seu anjo poderia revelar a cada homem; mas esse motivo é, por assim dizer, enviesado, como que pervertido pela ação profundamente desestruturante que o anjo exerce aqui. Com efeito, ele não revela nenhum nome escondido e mais verdadeiro, recusando assim ao seu protegido a descoberta de sua essência invisível. Talvez seja isso um castigo, pois Benjamin o teria i mpedido, ao se apoderar do quadro de Mee, de cantar seu hino e de desaparecer. Deste modo o "bom anjo" originário se transforma, nesse texto, num anjo certamente próximo, mas igualmente imprevisível, malicioso, até ameaçador. O anjo cujo nome não tem mais nada de "semelhante ao homem" não anuncia mais a plenitude do nome verdadeiro e secreto, mas se refugia nos intersticios da ausência e da separação: Mas o anjo parece com tudo aquilo de que tive que me separar: os homens e também os objetos. Nos objetos que não tenho mais, ele mora. Ele os torna transparentes e atrás de cada um aparece aquele a quem foram destinados. Por isso, ninguém pode me superar na arte de presentear. Sim, talvez fosse o anjo atraído por alguém que d3 presentes e vai embora de mãos vazias. 6 Como o observou Jürgen Ebach, esse anjo canhestro e inquietante é a réplica, ao mesmo tempo fiel e invertida, do anjo com o

Oto aqui de preferencia a segunda versão do fragmento Agesilaus Santander, op. cit., pp. 100-102. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin. 6 Jurgen Ebach, "Agesilaus Santander und Benedix Schdniliess: Die venvandelten Namen Walter Benjamins" in Antike und Moderne. Zu Walter Benjamins 'Passager", reunidos e editados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausen und Neumann, 1986), pp. 150/51. 5

128: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

B HINO, A BRISA E A TEMPESTADE _ DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 129

qual, segundo a tradição, lutou Jacó: não revela seu nome, não tem a força de abençoar, anuncia o vazio, a separação e a ausência em vez do reencontro com o irmão e com a pátria. Jürgen Ebach ressalta igualmente que a tradição dos anjos efêmeros que cantam seu hino diante de Deus, que essa tradição tinha se constituido principalmente a partir dos comentários dessa passagem do Gênese, o que ressalta ainda mais as estranhas afinidades entre a história de Jacó e esse texto de Benjamin (que traz o nome do último dos filhos de Jacó!). O fato de Benjamin sofrer da perna e ter dificuldade de andar na época em que escreveu essas linhas pode ser um indício a mais dessa proximidade com Jacó, aquele que Deus/o Anjo não conseguiu vencer, mas que ele tornou coxo. Os anjos de Benjamin parecem assim progressivamente atingidos por uma espécie de incapacidade ou de deformação, bem como as bizarras criaturas de Kafka, esses ajudantes e esses mensageiros que poderiam, pois, ser anjos potenciais, mas que só conseguem incomodar aqueles que deveriam ajudar e que não transmitem mais nenhuma mensagem. Na sua carta a Scholem a respeito do livro Kafka de Marx Brod, Benjamin fala do "mundo tão claro (heiter) e atravessado por anjos" de Kafka, "complemento preciso de sua época que se deu por tarefa suprimir em grandes massas os habitantes deste planeta". Ele acrescenta que esse mundo complementar, portanto essa espécie de anexo ao mesmo tempo secundário e preciso, torna Kafka parente de Klee, esse outro grande inventor de anjos deformados, deslocados, dos quais não se sabe sempre, como das criaturas de Kafka, se eles estão nascendo, se eles são jovens anjos — outra tradução possível de Angeli Novi — que aprendem a voar, como o parecem indicar os nomes que lhes deu o pintor, 7 ou se eles não seriam mais anjos abortados, quase disformes, incapazes de voar, de ajudar e de transmitir qualquer mensagem divina. Mas são, no entanto, os únicos anjos que ainda restam, esses seres "inacabados e inábeis para quem a esperança existe", 8 como o diz Benjamin das figuras de Kafka. Chegamos aqui a um dos paradoxos essenciais desta pequena angelologia benjaminiana. Como os ajudantes e os mensageiros de

Kafka que, sem dúvida, seriam os únicos a deter a solução, mas que são, ao mesmo tempo, frágeis, ligeiramente ridículos, canhestros e deslocados, assim também os anjos de Benjamin se caracterizam mais por sua fraqueza, até sua impotência, que por seu poder. Eles não escapam ao "desencantamento do mundo" e, em particular, a essa espécie de anacronismo risível da teologia, "hoje pequena e feia e que não ousa se deixar ver", como o diz tão bem Benjamin na sua primeira tese "Sobre o Conceito de História". São essas transformações da teologia, devemos observá-lo, absolutamente essenciais para entender seu papel no pensamento de Benjamin, que deveriam induzir à prudência qualquer interpretação predominantemente religiosa de sua obra. Longe de serem gloriosos mensageiros ou testemunhas inequívocas da transcendência, os anjos não possuem mais o esplendor do sagrado, mas participam, eles também, das hesitações, das dúvidas, dos desamparos do mundo profano. Se ficaram seres desajeitados e muitas vezes incapazes, eles continuam porém, ou talvez mesmo por isso, a ser anjos, porque é mais na incapacidade e na fraqueza antes que na força e na potência que poderia ainda se dar, segundo Benjamin, algo como uma relação ao divino. Dois muito belos trechos da "Infância Berlinense", essa seqüência de quadros ao mesmo tempo autobiográficos e coletivos, colocam em cena esses anjos desamparados e, no entanto, ativos: o Anjo da Morte e o Anjo de Natal. O Anjo da Morte aparece num texto inquietante, "Acidentes e Crimes", que descreve o menino em seus passeios citadinos, à procura, sim, à espreita da desgraça: um acidente, uma morte, um roubo, um incêndio ou um afogamento, tudo na grande cidade parece prestes a acolher uma infelicidade que não ocorre ou que já sumiu quando a criança, ofegante, chega no local. Mais fundamentalmente que a sempre possível infelicidade, é sua prevenção onipresente que torna a atmosfera da grande cidade tão sufocante: os carros-fortes com as janelas cheias de grades, os salva-vidas que, como um anel, "prometiam em casamento com a morte" cada uma das muitas pontes do rio, e, enfim, as persianas fechadas do grande hospital onde agonizavam os "doentes graves".

7 8

Ver a esse respeito Peter von Haselberg, "Benjamins Engel", in Materia/en zu Benjamins Thesen "über den Begriff der Geschichte", textos reunidos e editados por Peter Bulthaup (Frankfut am Main: Suhrkamp, 1975), pp. 348 ss. Walter Benjamin, "Franz Kafka", in Ges. Sc?,,. J!-2, p. 415. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin. A grande carta de Benjamin a Scholem sobre Kafka é da mesma época. Cf. W. Benjamin, Briefe (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966), vol. II, pp. 756-765.

Ao ouvirem falar do Anjo da Morte, comenta Benjamin — que assinalou com o dedo as casas dos egípcios, onde os primogênitos deveriam morrer, os judeus devem ter visualizado aquelas casas com tanto terror quanto eu aquelas ¡anelas fechadas. Mas será aue

130: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

o Anjo da Morte cumpria realmente sua obra? Ou será que um belo dia as persianas se abriam, e o doente grave assomava à janela como convalescente? Não se deveria o ter ajudado — ajudar a morte, o fogo ou apenas o granizo que tamborilava nos vidros da minha janela sem jamais quebra-la?

9

Nessa estranha descrição, mesmo o Anjo da Morte, o Anjo vingador e justiceiro de Yahvé se revela um anjo sem letra maiúscula e sem grande eficácia, um anjo que deve nachhelfen, como diz o alemão, "ajudar depois" a fim de que sua obra não se perca a meio caminho, mas possa se cumprir. O verdadeiro perigo que espreita o menino burguês e protegido não é, portanto, como esse texto o faz perceber tão bem, nem o acidente, nem o roubo, nem a ruina de seus pais, mas, sim, que nada vá realmente até seu cumprimento, nem a revolta dos infelizes, nem mesmo o terror da morte, nem a perigosa plenitude da vida. Como o diz muito bem Anna Stussi no seu belo comentário à "Infancia Berlinense": "O desejo da morte e do fogo aniquiladores é o desejo da vida plena que s6 se tomaria possível na quebra (Zertrtlmmerun ) dos limites impostos pelos vidros, pelas persianas e pelas grades. i1 $ O que manifesta aqui a impotência do anjo, portanto, é, sem dúvida, a fraqueza da tradição teológica e de qualquer tradição totalizadora, pois é a própria tradição que "adoeceu"; mas, também se manifesta, no seio dessa mesma impotência, uma nova exigência, especificamente política, pois aqui são os homens que, paradoxalmente, poderiam ajudar os anjos a acabar sua obra necessária e purificadora. Podemos mesmo ir mais longe na interpretação e dizer que a intervenção do anjo não se manifesta mais na sua eficácia soberana, mas, sim, neste apelo, ao mesmo tempo imperceptível e lancinante, a interromper o escoamento moroso da infelicidade cotidiana e a instaurar o perigoso transtorno da felicidade. Esse apelo se transforma na voz de uma "presença estrangeira" no quadro da mesma "Infância Berlinense" intitulado "Um anjo de Natal". O texto inteiro está construido em cima da antítese, simultaneamente bem conhecida e mantida escondida pelos adultos, entre a abundancia dos ricos e a miséria dos pobres; esse contraste, exacer9 W. Benjamin, "Infancia em Berlim por volta de 1900", em Obras Escolhidas, vol. II (Sao Paulo: Braslllense, 1987), p. 131 (tradução modificada). 10 Anna Stussi, Erinnentng an die Zukunft (Gdttlngen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1977), p. 239. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin.

0 HINO. A BRISA E A TEMPESTAOE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 131

bado pelos preparativos de Natal, encontra seu correspondente sensível na oposição entre o calor luminoso das velas e das árvores de Natal e a escuridão dos pátios internos onde os pobres vêm tocar realejo para receber algum trocado. O menino se mantém no li miar (uma noção privilegiada no pensamento de Benjamin) entre esses dois mundos: ele espera pela hora dos presentes no seu quarto de menino mimado, mas ele não acendeu a luz e, nesse fim de tarde de inverno, seu olhar é atraído pelas janelas dos apartamentos mais pobres que dão para o pátio. Essas janelas escuras ou somente iluminadas pela triste luz do gás só fazem aumentar o brilho da árvore que espera por ele na sala. Nesse intervalo entre a escuridão da miséria e a luz das festividades acessíveis aos ricos passa, de repente, o sopro de uma outra vida: ....parecia-me que essas janelas natalinas continham em si a solidão, a velhice e a indigência — tudo aquilo que os pobres calam. Então de novo me veio à lembrança a distribuição de,presentes preparada por meus pais; porém, mal me desviara da janela com o coração pesado, como só o faz a proximidade de uma alegria certeira, senti uma presença estranha no quarto. Não era nada além de um vento, de modo que as palavras que se formaram em meus lábios foram como as pregas que um velame inerte lança subitamente à brisa fresca: "O Menino Deus volta todos os anos/A terra onde vivemos nós, humanos": com tais palavras se volatili11 zou também o anjo que nelas começara a tomar forma.

A "presença estrangeira/estranha" que só se manifesta um instante, o tempo de esboçar seu hino, faz surgir o pressentimento de uma outra felicidade possível, outra que a felicidade, como o diz Benjamin, "certeira", assegurada pela posição social e pela previsibilidade da ternura dos pais. Essa presença de um outro ausente não nega a realidade do dado, da segurança da riqueza e dos presentes, mas introduz o murchar passageiro dessa segurança, como a brisa que faz pregas nas velas de um barco segundo a bela imagem de Benjamin — para partir de verdade, o navio precisa de um outro ela, do elã consciente do navegador que sabe aproveitar o vento favorável. Essa 11 "Infancia em Berlim...", idem pp. 121/22.

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

"brisa fresca" não tem, portanto, nada da violência irresistível do furacão, ela quase não se percebe e, já, não está mais. É a irmã desta "leve brisa" na qual Elias reconhece a presença de Yahvé, o Deus todopoderoso que não se manifesta nem na tempestade nem no terremoto, mas sim num sopro refrescante (Primeiro Livro dos Reis, cap. 14). Isso quer dizer também o quanto ela é renovadora, preciosa e, simultaneamente, frágil, como a volta anual do menino Jesus na Terra que corre o risco de passar desapercebida, paradoxalmente sufocada pela rotina das festividades. O menino que a pressentira sairá do seu quarto e se juntará ã festa; mas algo fica como um mal-estar em relação a seus esplendores, como uma distância entre a criança, ávida de presentes, e si mesma, distancia oriunda da escuridão das janelas no pátio e da imperceptível presença de uma alteridade radical: Chamaram-me para o aposento defronte, no qual a árvore entrará em sua glória, o que dela me alienou até que, desprovida de seu

suporte, terminou a festa enterrada na neve ou reluzente sob a chuva, ld onde um realejo a tinha iniciado. 12 Esse mal-estar, essa distancia testemunha a passagem do anjo que, como seu irmão do fragmento Agesilaus Santander, desestrutura a identidade bem estabelecida do sujeito e da história; mas essa desestruturação se mostra aqui, de maneira mais clara, ser um desamparo benéfico pois faz entrever durante um instante, o tempo de um hino ou de três versos de um canto de Natal, que infelicidade e felicidade poderiam ser radicalmente outras, que a primeira não é nenhuma necessidade nem a segunda uma segurança. O anjo de Natal é a encarnação breve e frágil desses encontros muitas vezes falhos, as vezes felizes, nos quais a história dos homens poderia, de repente, não seguir mais a inércia de seu curso, mas interromper-se, bifurcar, abrir um novo caminho. Nesse momento então, os sofrimentos do passado não seriam, certamente, nem abolidos nem reconciliados, mas as esperanças malogradas seriam reconhecidas, nomeadas, retomadas na fidelidade de uma memória ativa e inovadora. Essa concepção simultaneamente revolucionária e messiânica de uma restituição integral da história — Benjamin cita a noção de apokatastais de Origines — baseia a filosofia da história do último Benjamin e se 12 Idem, grifos meus.

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encontra já em germe em seus ensaios críticos de juventude, consagrados a temas ou a aspectos da tradição cultural muitas vezes esquecidos, desconhecidos, até excêntricos e taxados de menores. Devemos porém notar, para não cair no erro de fazer de Benjamin o defensor de uma espécie de acumulação positivista e arquivista da infinita história dos vencidos, devemos notar, então, que a salvação do passado não é simplesmente sua conservação integral, mas, mais profundamente, a interrupção do desenrolar incansável da cronologia, isto é a redenção, a liberação, sim, a dissolução e o desenlace (Er-lõsung) dessa temporalidade infinita e infernal: só nesse momento poderia se realizar a atualidade dos anjos talmúdicos na qual cada instante ficaria tão pleno do seu próprio canto que poderia desvanecer-se com alegria frente ao próximo. Mas o último anjo de Benjamin, o mais conhecido sem dúvida, não é o de um tempo jubilatório e efêmero, mas, naturalmente, o da nona tese "Sobre o Conceito de História"; se não falei dele até agora, é também para mostrar que ele não é único, mesmo que seja, sem dúvida, o mais patético, mas que ele se inscreve numa linhagem bastante complexa. Cito: Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele esta representado um anjo, que parece estar na iminência de afastar-se de algo em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estendidas. O Anjo da história deve parecer assim, Ele tem o seu rosto voltado para o passado. Onde diante de n6s aparece uma cadeia de acontecimentos, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem gostaria de demorar-se, acordar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e é tão forte que o anjo não mais pode fechá-las. Esta tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual volta as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade. 13 Reencontramos aqui numerosos elementos das aparições angelicais precedentes. Trata-se de novo do Angelus Novus de Klee, do qual 13 W. Benjamin, "Sobre o Conceito de História", tradução manuscrita de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos L. Müller (Gs. Schr. 1-2, pp. 697/8).

134: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTORIA

não se sabe se ele alça realmente v6o; aqui ele é arrastado pela tempestade e suas asas não conseguem mais se dobrar e se desdobrar, no movimento harmonioso do v6o. Esse misto de estar imobilizado no mesmo lugar e de fugir adiante de si corresponde à sua expressão desatinada, a seus "olhos arregalados" que não conseguem mais se fechar, como essa boca "aberta" da qual não parece sair nenhum som. Esse anjo ao mesmo tempo petrificado e jogado para a frente é a própria figura da impotência angelical, e, em particular, da impotência em "demorar-se, acordar os mortos e juntar os destroços", i.é, interromper o curso nefasto do tempo e emprender a obra salvadora da memória. Esse anjo é literalmente atrelado ao passado, não tanto porque seu rosto se dirige para ele —Jürgen Ebach mostrou bem que essa idéia de passado estendido diante dos olhos corresponde ao hebraico bíblico (e)fánin, lifnè, o que se estende diante do olhar, i.é, o passado -, 14 mas porque não consegue parar, não pode virar a cabeça e enxergar outra coisa. Em outros termos, é a exclusividade dessa crispação desesperada em relação ao passado que impede a possibilidade de sua retomada transformadora na cesura do presente. A bem dizer, como o observou Stéphane Mosès, não há mais aqui presente no sentido forte de possibilidade de mudança, de invenção, de suspensão e de subversão. Ora, essa impotência desvairada é produzida, segundo a metáfora benjaminiana, por uma "tempestade" (Sturm) que "sopra" do "Paraíso" e cuja violência é irresistivel; tempestade que é signo da maldição divina em relação ao casal originário, Adão e Eva, banidos para fora do Jardim, em total oposição, portanto, com a "brisa leve" do encontro entre Deus e Elias. Um pouco como se sobrasse apenas, neste último período tão sombrio da vida de Benjamin que, é bom lembrá-lo, escreve as teses "Sobre o Conceito de História" no exílio, sob o choque do pacto de agosto de 1939 entre Hitler e Stálin, como se sobrasse, então, da tradição bíblica judaica, apenas a imagem do Deus vingador, colérico e onipotente que quer destruir o mundo pecador. O "pecado" sendo aqui não, miticamente, o pecado original que nos expulsa do Paraíso, mas, de maneira muito mais insidiosa, real e histórica, essa funesta acomodação à maldição divina, essa transformação perversa da infelicidade em necessidade graças, em particular, à ideologia do progresso que 14 Jurgen Ebach. "Der Blick des Engels", em Walter Benjamin: Profane Edeuchmng und rettendeKritik, textos reunidos e editados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausen mid Neumann, 1985), pp. 72/73.

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Benjamin combate sem folga nesse texto que também devia ser seu último texto: "O que nós chamamos de progresso é essa tempestade", diz ele e deve-se ressaltar o "nós" em oposição ao olhar do anjo. Dito de maneira teológica, bastante herética talvez, é quando os homens se resignam à ira divina e cessam de lembrar a Deus sua bondade, de reivindicar seu petdão e, como Jacó, de Lutar com Ele até o raiar da aurora, é nesse momento que eles se perdem contra si mesmos e, igualmente, contra Deus. Dito de maneira política e profana, é quando os homens se resignam ao curso inelutável da infelicidade, dele fazem uma necessidade supra-histórica que chamam, depois, do nome ambíguo de progresso, é nesse momento que eles cessam de poder tomar em mãos sua história e de poder agir sobre o presente e no presente, que eles continuam fixados no passado e se abstem de inventar seu futuro. Neste presente pervertido que só é continuação do idêntico, nenhum anjo mais consegue se abrir passagem. Pois, o que todos anjos de Benjamin, sem exceção, desejam profundamente, é a felicidade; essa não é nem a volta a um paraíso de antes da história, nem tampouco a avidez devoradora da modernidade, sempre em busca de novidades. A felicidade é muito mais, segundo a fórmula do anjo Agesilaus Santander, "O confronto ( Widerstreit) onde se opõem o estrecimento do único, do novo, do ainda não-vivido com a beatitude do mais uma vez, do repossuir, do (já) vivido". 15 Essa bela (e profundamente erótica) definição da felicidade se encontra igualmente numa passagem do ensaio sobre Proust, na qual Benjamin fala de uma "figura hínica da felicidade", a do "inaudito" e "daquilo que nunca existiu", e de uma "figura elegíaca da felicidade", "a restauração eterna da primeira felicidade original", acrescentando que a "vontade de felicidade" sempre é inseparavelmente dupla, que a felicidade requer numa só vez o hino e a elegia. Tensão de um tempo simultaneamente sempre novo e sempre retomado como o é a atualidade angelical na qual cada anjo canta seu hino e deixa, sem rancor nem ressentimento, seu lugar ao próximo anjo, juntamente semelhante e diferente. Essa temporalidade feliz descreveria também, em oposição ao tempo inelutável e infinito da necessidade, seja ele justificado ou não pelas diversas formas de teodicéia, descreveria, então, o único sentido 15 Agesilaus Santander, op. cit., p. 102. Inspiro-me na tradução e nos comentários de Stéphane Mosés, L'Ange de l'Histoire (Paris: Seuil, 1992).

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MEMORIA E HISTORIA

verdadeiro e libertador que poderia ainda conter a noção de progresso. Num fragmento do Livro das Passagens, com efeito (Passagen-Werk), reencontramos, graças à reflexão estética, esta união entre o "autenticamente novo" e a doce regularidade da volta, aqui a volta do amanhecer: Há em toda obra de arte verdadeira um lugar em que aquele nela i merso é como que acariciado pelo sopro de vento fresco que anuncia a chegada da manhã. Resulta daí que a arte, que foi muitas vezes considerada como refratária a qualquer relação com o progresso, que a arte pode servir à sua autêntica definição. O progresso não habita a continuidade do decorrer temporal, mas as suas interferências: ali onde algo verdadeiramente novo se faz sentir pela primeira vez com a sobriedade do amanhecer. 16 Nas "interferências", nas cesuras do continuo histórico, ali onde o tempo pára e onde retomamos fôlego, ali também, de repente, sopra um vento fresco, aquele no qual o Deus bíblico gostava de se manifestar aos profetas, aquele que lembra aos homens a possibilidade e a urgência da felicidade.

16 W. Benjamin,lassagen-Werk, em Gs. Sdv. V-1, p. 593. Trad. J.M.G

I. BAUDELAIRE, BENJAMIN E O MODERNO Aquilo que sabemos que, em breve, já não teremos diante de n6s toma-se imagem. Walter Benjamin

Walter Benjamin escreveu vários ensaios sobre Baudelaire. Esses textos fazem parte do projeto mais amplo de uma reconstrução histórico-filosófica do século XIX, o famoso Passagen-Werk, que devia ser uma espécie de arqueologia da época moderna, vista através da descrição privilegiada das "passagens" parisienses, essas galerias repletas de lojas que ligavam entre si alguns faubourgs da cidade. O Passagen-Werk ficou inacabado como o ficou também o livro de conjunto sobre Baudelaire, Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo. ) Na edição critica alemã das obras de Benjamin foram publicados, de maneira independente, os seguintes textos: "A Paris do Segundo Império em Baudelaire" (três capítulos: "A Boêmia", "O Flaneut", "A Modernidade") (vol. 1-1), "Sobre Alguns Temas em Baudelaire" (vol. 1-1), um conjunto de reflexões intitulado "Parque Central" (vol.1-1), várias anotações ligadas à redação desses ensaios (vol. 1-3), enfim, o Caderno "J" do Passagen-Werk, intitulado "Baudelaire" (vol. 5-1). A editora Brasiliense, no terceiro volume das Obras Escolhidas de W. Benjamin, nos oferece agora, na tradução, infelizmente muitas vezes pouco precisa, de J. C. Barbosa e E. Alves Batista, 2 os tres primeiros textos, já publicados em outras coletàneas e dois cadernos do Passagen-Werk, inéditos em portugu@s, "O Flaneur" "Charles Baudelaire, En Lyriker im Zeitalter des Hochkapltalismus", em Walter Benjamin, Gesammeit Schri ten, 1-2 (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974). Citado, a partir de agora, como G. S.. Sobre a história da publicação, cf. G. S. 1-3, páginas 1.064 e seguintes. 2 Flávio R. Kothe traduziu "A Paris do Segundo Império em Baudelaire" e "Parque Central", em Walter Benjamin, Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 50 (São Paulo: Ativa, 1985); Edson A. Cabral e José B. de Oliveira Damlão, "Sobre Alguns Temas em Baudelaire", no volume dos Pensadores, editora Abril. 1

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140: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

(cadernos "M") e "Jogo e Prostituição" (caderno "O " ), cuja escolha deveria ter sido justificada, pois outros cadernos são muito mais importantes (par exemplo o "N", "Er kenntnistnistheoretisches, Theorie

des Fortschriffts" ou o "J", "Baudelaire").

Vale a pena lembrar rapidamente a história conturbada da publicação dos ensaios benjaminianos sobre Baudelaire, pois ela testemunha, de maneira exemplar, as dificuldades de toda ordem, que Benjamin enfrentou nos seus últimos anos de vida. Essa história também nos previne contra uma interpretação apressada e globalizante que leria nesses textos uma teoria acabada da poesia moderna e da grande cidade, enquanto são partes, importantes, sem dúvida, de uma obra maior que não chegou a se realizar. História que também diz respeito às difíceis relações de Benjamin com o Instituto de Pesquisa Social, do qual dependia financeiramente, em particular com o amigo/discípulo/rival Adorno. Benjamin escreveu o primeiro ensaio, "A Paris do Segundo Império", em fins de 1938 e o enviou à revista do Instituto. Numa carta que devia tornar-se famosa (de 10 de novembro de 38), Adorno o criticou severamente, deplorando a sua falta de articulação teórica, em particular, de argumentação dialética. Em nome da redação, pediu um remanejamento profundo do texto. Benjamin atendeu rapidamente às exigências desse "parecer negativo", o que indica certamente mais uma urgência económica que um acordo com as criticas de Adorno quanto ao fundo. Fruto dessa segunda redação é o ensaio "Sobre Alguns Temas em Baudelaire", escrito entre fevereiro e julho de 39, que retoma principalmente os materiais trabalhados no segundo capitulo da primeira versão ("O Planeur") e lhes acrescenta elementos teóricos novos, ligados a uma explicitação dos conceitos de choque, de memória e de tempo em Baudelaire. Durante o ano de vida que lhe sobrou, Benjamin não chegou a reformular os primeiros e terceiros capítulos. A Revista de Pesquisa Social aceitou esse manuscrito e o publicou no seu número de janeiro de 40, o último, aliás, a sair na Europa antes da transferência definitiva da revista para Nova York. Devemos ressaltar que as categorias, tidas pelo próprio Benjamin como imprescindíveis a uma interpretação inovadora da poesia baudelairiana, 3 as categorias de alegoria e de fetiche assim como a sua inter-relação, não puderam ser explicitadas de maneira abrangente 3 Cf. a esse respeito W. Menninghaus, Walter Benjamins T heodedersprachmagie (Frankfurt am Main: 5uhrkamp, 1980), em particular páginas 134 e seguintes.

por Benjamin (as anotações de "Parque Central" indicam várias pistas dessa reflexão interrompida). Ao ler Benjamin sobre Baudelaire devemos, portanto, nos contentar com os fragmentos de uma interpretação e não esperar uma construção teórica acabada. Apesar disso, a leitura benjaminiana provocou mudanças consideráveis na compreensão tradicional de Baudelaire, pois relaciona, de maneira convincente, a estrutura íntima dessa obra às novas condições de produção da arte na modernidade. É justamente esse conceito-chave tanto para a poesia de Baudelaire como para a interpretação de Benjamin, esse tão falado conceito de "modernidade", que gostaria de explicitar aqui. Proponho proceder em três passos principais: primeiro, apresentar uma breve história do conceito; segundo, uma análise do texto programático de Baudelaire, "O Pintor da Vida 4 Moderna" e, enfim, uma descrição sucinta da transformação e da ampliação da categoria de modernidade em Benjamin. A referência critica básica desse artigo é o livro de H. R. Jauss, consagrado à 5 consciência da modernidade na literatura. Jauss relata o surgimento do conceito de modernidade, mostra o seu lugar central em Baudelaire e, num apêndice, critica a interpretação benjaminiana. Segundo o nosso crítico, Benjamin teria cometido vários erros de leitura, negligenciando as conotações positivas da modernidade em Baudelaire, em proveito de uma denúncia, de cunho materialista, da alienação da vida urbana contemporânea. Nesse artigo pretendo verificar as críticas de Jauss para tentar explicitar, em seguida, as razões dessa relativa infidelidade benjaminiana em relação a Baudelaire. A nossa hipótese é a de que Benjamin elabora uma reflexão a fundo sobre a modernidade, deixando de lado uma simples determinação cronológica para elucidar, a partir do exemplo privilegiado de Baudelaire, as ligações essenciais entre escrita e consciência do tempo (e da morte): é essa relação específica que será decisiva para a definição benjaminiana da "modernidade". Segundo Jauss, a palavra "modernidade" remete a uma oposição muito antiga, já existente na Antigüidade, entre "antigo" e "moder4

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"Le Peintre dela Vie Modem?, em Baudelaire, Oeuvres Completes, tradução de Suely Cassai em A Modernidade de Baudelaire (São Paulo: Paz e Terra, 1988), páginas 159-212. Citado a partir de agora como "0 Pintor...", na tradução mencionada, As vezes ligeiramente modificada. H. R. Jauss, Literaturgeschichte ais Provokation (Frankfurt am Main: 5uhrkamp, 1970), primeiro capítulo: "Literarische Tradition und Gegenwürtiges Bewusstsein der Modemitat", páginas 11-66.

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no". Essa oposição indica, inicialmente, uma relação meramente temporal, moderno sendo sinónimo de "atual"; antigo, de "de outrora". O debate não discute o caráter inovador do moderno ou atrasado do antigo, mas, muito mais, o caráter exemplar do passado para o presente. Os homens da Renascença, por exemplo, reivindicam uma filiação a partir dos verdadeiros antiquli, isto é, os gregos e romanos, cujo valor paradigmático é ressaltado em oposição à barbárie da obscura Idade Média. A famosa Querelle des Anciens et des Modernes, na tumultuada sessão da Academia Francesa de 27 de janeiro de 1687, tem por eixo essa questão do valor exemplar e eterno dos Anciens. Os Modernes, agrupados em redor de Charles Perrault, propõem outras normas, oriundas da racionalidade cartesiana e da confiança no progresso das ciências. Eles se dizem, aliás, os verdadeiros Anciens, pois representam, aos seus próprios olhos, o coroamento da humanidade, cuja infancia seria a Antigüidade, enquanto a Renascença configuraria a sua idade madura. Jauss observa que a Querelle, apesar de propor uma mudança de valores, continua se desenrolando no mesmo quadro lógico de uma definição do moderno pela sua relação privilegiada com o passado, ou pela negação dessa relação. Essa vai se deslocar paulatinamente em direção ao futuro, uma evolução, aliás, que já estava inscrita na consciência iluminista dos Modernes de 1687. Os romances utópicos do século XVIII estão cada vez mais preocupados com a imagem que o amanhã possa ter do hoje. A consciência do presente está cada vez mais orientada pela concepção de um progresso histórico em detrimento de um olhar retrospectivo. Paralelamente a essa evolução, devemos mencionar, segundo Jauss, a emergência de um outro sentimento, à primeira vista contraditório com o iluminismo, o romantismo. Ele surge (mesmo sem ser nomeado) nos romances de Madame de Staël e de Chateaubriand e será, mais tarde, objeto de discussões apaixonadas no Romantismo alemão. O sentimento romántico é caracterizado por uma nova relação do presente com a história e a natureza. Ambas são vivenciadas sob o signo nostálgico do "não mais". A história é o reino defunto da infancia da humanidade; a natureza, o da sua inocência perdida. O presente é vivido como um afastamento doloroso dessa harmonia passada. A beleza vai ser definida como a forma ideal dessa ausencia, dessa falha constitutiva (saudade essencial à compreensão da beleza em Baudelaire, como veremos). Assim, o passado não é mais vivido, como um antigo paradigmático e eterno, mas como aquilo que foi

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definitivamente perdido. A nostalgia romántica se opõe, sem dúvida, ao otimismo iluminista; mas ambos movimentos convergem em direção a um afastamento progressivo da consciência do presente em relação ao passado. Essa ligação se rompe definitivamente com a Revolução Francesa, a "Grande Revolução", que instaura a idéia de um novo radical na história. O presente, o atual, o "moderno" implica agora esse sentimento de ruptura com o passado, ruptura valorizada positivamente, pois pretende ser a promessa de uma melhora decisiva. Ora, ao se tomar sinônimo de "novo", o conceito de "moderno" assume uma dimensão certamente essencial para a nossa compreensão de "modernidade", mas, ao mesmo tempo, uma dinâmica interna que ameaça implodir a sua relação com o tempo. Com efeito, o novo está, por definição, destinado a se transformar no seu contrário, no não-novo, no obsoleto, e o moderno, conseqüentemente, designa um espaço de atualidade cada vez mais restrito. Em outras palavras, o moderno fica rapidamente antigo, a linha de demarcação entre os dois conceitos, outrora tão clara, está cada vez mais fluida. Ao se definir pela novidade, a modernidade adquire uma característica que, ao mesmo tempo, a constitui e a destrói. Talvez assistamos hoje, com a famosa temática da "pós-modernidade", ao resultado lógico desse processo de autodevoração, dessa interpretação fundante e dissolvente do antigo pelo moderno, do moderno pelo antigo. A teoria da modernidade em Baudelaire, tal como a desenvolve no seu famoso ensaio, "O Pintor da Vida Moderna" (1859), repousa sobre esse caráter paradoxal do moderno. Baudelaire se opõe à concepção acadêmica e tradicional do Belo como forma eterna e absoluta, ironizando os turistas apressados que atravessam o Louvre em sua busca, parando religiosamente na frente dos quadros famosos e obrigatórios, negligenciando os "menores". Contra essa idéia atemporal do Belo, Baudelaire pretende desenvolver uma "teoria racional e histórica do belo" que dê conta do elemento temporal, histórico, fugitivo da beleza. Esse vela, mas, ao mesmo tempo, mostra e exprime o eterno da Beleza que só pode se manifestar sob essa aparência transitória e fugaz. O exemplo privilegiado de Baudelaire é a moda, (categoria que tomar-se-à muito importante para Benjamin), que, longe de ser um fenômeno superficial, dá a ver, mostra a beleza em cada uma das suas configurações históricas. A importancia desse elemento temporal acarreta mudanças na escolha dos objetos da criação artistica, como o exprimem os títulos dos capítulos do ensaio,

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

consagrado às gravuras de Constantin Guys: "O Croqui de Costumes", "Os Anais da Guerra", "O Militar", "O Dandy", "As Mulheres e as Cortesãs", "As Carruagens". Essa lista diz muito bem a preocupação de Guys com o mais atual, o mais recente, o mais novo, numa palavra, o mais modemo. 6 O próprio artista não fica imune a essa transformação. No seu capitulo central, "O Artista, Homem do Mundo, Homem das Multidões e Criança", Baudelaire dá uma interpretação significativa da recusa do seu amigo Guys de ser mencionado com o nome inteiro e do seu pedido de aparecer no texto só através das iniciais C. G.. Esse desejo manifesta que Guys (G.!) recusa o estatuto tradicional de artista, misto de originalidade incompreensível e de limitação virtuosística ao ofício, e reivindica o anonimato e a universalidade de "Homem do Mundo". Esse se caracteriza pelo seu interesse sempre renovado pelo universal e pelo mundano, por tudo o que acontece fora do seu quarto, para onde só regressará, à noite, para transcrever suas impressões. Nesse contexto, Baudelaire cita o conto de Poe, "O Homem das Multidões", cujo herói, recém-saído de uma grave enfermidade, está sentado à mesa de um café, olhando com interesse a multidão dos passantes. O espetáculo multicolor e sempre diferente é avivado pelo sentimento da saúde recuperada, pelo gosto renovado pela vida que estava quase perdida. A chave do caráter de Guys, afirma Baudelaire, é um estado de espirito próximo, uma espécie de convalescença perpétua:

Ora, a convalescença é como uma volta à infancia. O convalescente goza, no mais alto grau, como a criança, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais. (...) A criança vê tudo como novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe: afirmo que a inspiração tem alguma relação com a congestão, e que todo pensamento sublime é acompanhado de um estremecimento nervoso, mais ou menos intenso, que repercute até no cerebelo. O homem de gênio tem nervos sólidos; na criança, eles são fracos. Naquele, a razão ganhou um lugar considerável; nesta, a sensibi6

M. Berman, Tudo que é Sólido Desmancha no Ar (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), esp. páginas 123 seguintes), nao parece ter percebido o sentido profundo desses assuntos, aparentemente superficiais, para a estética baudelairiana.

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lidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o genio é somente a infancia reencontrada pela vontade; a infancia agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espirito analítico que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. ? Parágrafo exemplar das convicções estéticas de Baudelaire: a verdadeira arte é uma busca incessante do "novo" (palavra sempre ressaltada pelo autor). Mas esse não é nenhuma substancia como se existissem coisas novas a serem procuradas: encontradas, elas já tomar-se-iam antigas. O novo é uma certa qualidade do olhar, própria do artista, do convalescente e da criança, olhar ao mesmo tempo privilegiado e profundamente antinatural, sim, anormal, quase doente (cf. as comparações com a ebriedade e com a congestão). A criança tem esse dom de maneira natural, mas não tem os meios da razão que possibilitam a sua expressão. Ao se tomar um adulto, ela adquire a razão e, geralmente, perde a intensidade da visão, não consegue então ver o novo porque perdeu a capacidade de encontrá-lo. Assim, só um retomo organizado à infancia permite a conjunção da curiosidade, da intensidade (próprias da criança) e da organização voluntária e racional (própria do adulto) que geram a expressão artística. O artista luta para manter essa união; a poesia de Baudelaire está atravessada pela tensão dessa busca voluntária, organizada, da novidade e da embriaguez, luta contraditória e esgotante contra o aborrecimento ("L'Ennui" com E maiúsculo das Flores do Mal), contra os perigos do acostumar-se e do acomodar-se (haverá, com outros meios, uma luta idêntica em Proust e nos Surrealistas). Se o novo depende muito mais da intensidade do olhar que da pretensa novidade das coisas observadas, isso significa que o observador deve transformar-se sem parar: uma identidade estanque impediria a flexibilidade necessária a uma constante renovação da percepção. O artista moderno é "homem do mundo" e "homem das multidões" também no sentido profundo de uma dissolução da particularidade na universalidade alheia. Esse processo explica a relação privilegiada de C. G. com a multidão que Baudelaire compara a um "imenso reservatório de eletricidade" do qual, por assim dizer, o artista tiraria a sua energia e a sua força. É uma relação prazerosa, "imenso júbilo (de) eleger domi8 cilio no numeroso, no movimento, no fugidio e no infinito", que 7 "0 Pintor... t op. cit. , páginas 168/69. 8 Idem, página 170.

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MEMÓRIA E HISTORIA

nasce de duas causas principais: na multidão, o artista encontra-se escondido, disfarçado como o príncipe que passeia sob os trapos de um mendigo no seu reino e, como "incógnito", pode ver a verdade; da mesma maneira, os seus contemporâneos não percebem o artista que observa as suas grandezas e as suas burrices, ao vaguear pelas mas. O prazer do disfarce é realçado por aquele da dissolução da própria identidade em proveito da multiplicidade alheia: Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável pelo não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. 9 Essa notáveis metáforas indicam que a característica do artista é uma plasticidade generalizada e não mais uma função bem definida e unívoca, da mesma maneira como a idéia de um Belo absoluto cedeu lugar a uma beleza múltipla. Baudelaire ressalta nesse texto o lado prazeroso dessa dissolução; em outros textos, os seus aspectos perigosos e ameaçadores também são evocados (nos poemas sobre a miséria do poeta, por exemplo). Segundo Benjamin, o próprio Baudelaire encarnava essa desagregação da identidade: ao pintar o seu retrato, Courbet ter-se-ia queixado de que Baudelaire nunca parecia o mesmo. Agora, esse "eu insaciável pelo não-eu" não anseia só pela absorção da vida alheia (como o faria qualquer flaveur que soubesse olhar), mas pela sua "reprodução". A ênfase de Baudelaire muda de tom. Se a idéia do Belo, se a identidade do poeta, se a própria vida não tem mais uma definição fixa, essa fluidez não atinge o produto da criação artística. Pelo contrário, a obra se ergue como aquilo que dura e perdura em oposição ao transitório e ao fugidio, sendo, por isso, mais viva que a vida. Embora sejam mercadorias como todos os outros produtos na sociedade capitalista, os poemas continuam, para Baudelaire, a ser também, pela sua perfeição, signos da eternidade. O oficio do escritor é de criar esse antídoto precioso contra a fugacidade da vida e a voracidade do tempo. Essa convicção (que será também 9 Idem, página 171.

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a de Proust) explica por que vários comentadores puderam ler a obra de Baudelaire como um manifesto da arte pela arte — a interpretação de Benjamin tem o grande mérito de relativizar essa 10 leitura, indicando as razões sociais dessa separação entre arte e vida. A descrição baudelairiana do trabalho do pintor ficou famosa. C. G. é o último a voltar para casa e, enquanto todos dormem, se põe à obra nessa "fantástica esgrima" cujos traços heróicos foram tão bem ressaltados por Benjamin. É uma luta contra o tempo, ou melhor, contra o esquecimento, que explica a energia sombria com a qual C. G. pinta "como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso 11 mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo " . Nas suas noites estudiosas, ele recria a realidade diurna que só adquire vida e forma através do seu trabalho: "e as coisas renascem no papel, naturais e mais que naturais, belas e mais que belas...." 12 Essas coisas "naturais e mais que naturais" chamam a atenção. A arte consegue criar uma natureza mais verdadeira que a própria natureza, que não oferece, segundo Baudelaire, nenhum critério de verdade. Pelo contrário, num anti-rousseauismo veemente, Baudelaire afirma que a natureza é má, ligada que está ao pecado original, ao vício e à violência. As conseqüências estéticas de tal posição são claras. Contra uma concepção mimética que ordena à arte imitar a natureza, Baudelaire defende uma arte "mnemônica" (capítulo 5 desse ensaio) que passa pela mediação da memória e da imaginação. C. G. não passeia pela cidade para copiar o real mas para armazenar uma série de impressões que, mais tarde, na solidão da criação, serão transformadas em imagens. Ele não pinta segundo a natureza mas, segundo a memória, que, segundo Baudelaire, permitir-lhe-á captar a síntese, a totalidade, a essência, em vez de ficar preso ao aleatório. É sempre a mesma luta contra o tempo que não pode ser detido na realidade concreta, sempre ef@mera, mas só pela força da memória, essa "memória ressurreicionista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: 'Lázaro, levante-te"' 13 Ou ainda, em outras palavras: o real precisa ter morrido para poder ressuscitar na memória, adquirir uma outra vida que o salve do esquecimento (Proust também falará das "ressurreições da memória") 10 Cf. Jauss, op. cit., páginas 58/59. 11 "O Pintor...", op. cit., página 173. 12 Idem. 13 Idem, página 180.

BAUDELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO 1413 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

Recusa da natureza enquanto critério de verdade e transfiguração do real pela memória e pela imaginação, essas bases da estética baudelairiana impõem à arte uma tarefa extenuante: a de corrigir a natureza. O "Elogio da Maquilagem", penúltimo capitulo do nosso ensaio, pode ser lido com um elogio disfarçado, "maquilado", da arte. Maquilagem e arte não devem sublinhar as belezas naturais, mas criar um "outro" ser, ideal e espiritual. É esse esforço permanente de "reformulação da natureza" que a "moda", sob sua aparente superficialidade, encarna, e que a "modernidade", como expressão cambiante do entrosamento do efêmero e do eterno na beleza, manifesta. 14 Habermas, que lê Baudelaire através dos óculos de Benjamin, afirma que a modernidade baudelairiana não remete à trivialidade da(s) novidade(s), mas sim a um conceito pleno de atualidade com "recorte do tempo e da eternidade", indicando assim que é essa consciência aguda da transitoriedade e da eternidade da obra que a define como pertencente à modernidade. Ao citar a definição da modernidade do "Pintor da Vida Moderna", a "modernidade é o transitório, o ef@mero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável", Benjamin conclui de 15 maneira depreciativa: "Não se pode dizer que isso vá fundo na questão." Jauss observa o tom peremptório dessa crltica 16 e afirma que Benjamin não captou o sentido fundamentalmente positivo de "modernidade" em Baudelaire por duas razões: ele não entende a dialética entre antigo e moderno, em particular o fato de que "antigo" não remete mais, em Baudelaire, ao paradigma da Antigüidade mas, sim, ao par obsoleto-novo; por isso Benjamin criticaria a ausência em Baudelaire de uma confrontação teórica mais apurada com a arte da Antigüidade, enquanto tal ausencia é devida a uma mudança de paradigmas teóricos, segundo Jauss. Nas suas análises, Benjamin sublinharia o apego de Baudelaire a uma imagem idealizada de natureza e sua aversão pela grande cidade, insistindo na crueldade da modernidade sem perceber os traços positivos desse conceito em Baudelaire. Curiosamente, Jauss deduz esses mal-entendidos da postura marxista de Benjamin, que queria ler a obra de Baudelaire como uma denúncia do capitalismo e não como uma descrição positiva da emergência da modernidade. 14 J. Habermas, Der Philosophische Diskurs der Moderne (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985), esp. páginas 17 e seguintes. 15 Walter Benjamin, Obras Escolhidas (Sao Paulo: Brasiliense, 1989), vol. 3, página 81. 16 Jauss, op. cit., página 59.

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Ora, se podemos concordar com a justeza de várias das observações de Jauss, não precisamos aceitar o seu balanço final. A nossa hipótese é muito mais que Benjamin descobre "em" Baudelaire uma modernidade que não coincide com a modernidade "segundo" Baudelaire, notadamente com as descrições entusiastas do "Pintor da Vida Moderna". Nas Flores do Mal e no Spleen de Paris o heroísmo de C. Guys é substituído pela alternativa dilacerante entre conquista do belo e do novo e o triunfo do Aborrecimento, do tempo que tudo derrota e devora. Baudelaire não seria, então, o primeiro poeta moderno por ter tematizado a modernidade, mas porque a sua obra inteira remete à questão da possibilidade ou da impossibilidade da poesia lírica em nossa época. Essa questão é parte integrante das preocupações teóricas de Benjamin, a partir do fim dos anos vinte, a respeito das mutações sofridas pela produção estética nos séculos XIX e XX. Os principais conceitos dessa reflexão orientam as análises da poesia de Baudelaire: a experiência (Erfahrung) na sua oposição à experiência vivida (Erlebnis), a memória (Geddchtnis), o lembrar (erinnern), a rememoração (Eingedenken), a harmonia do símbolo e a discrepáncia da alegoria, enfim, o valor de culto da arte tradicional e a perda da aura na arte moderna. Com apoio nos comentários muito esclarecedores de W. Menninghaus, 17 podemos afirmar que, para Benjamin, a característica da literatura da modernidade consiste na sua relação privilegiada com o tempo, ou antes, com a temporalidade e com a morte. Nesse sentido a modernidade se relaciona com a Antigüidade, não porque dependeria dela coma de um modelo, mas porque a Antigüidade revela uma propriedade comum a ambas, a sua Gebrechlichkeit (fragilidade). É porque o antigo nos aparece como ruína que o aproximamos do moderno, igualmente fadado à destruição. Benjamin não insiste tanto na recusa da grande cidade por Baudelaire, mas muito mais no fato de que a sua poesia urbana é uma poesia da transitoriedade e da fragilidade. É porque os poemas de Baudelaire dizem a cidade na sua destrutibilidade que, paradoxalmente, eles perduram, ao contrário da poesia triunfalista de um Verhaeren, por exemplo, que via na cidade moderna o apogeu do progresso humano: "Seu conceito da caducidade da grande metrópole 18 está na origem da perenidade dos poemas que escreveu sobre Paris." 17 W. Menninghaus, op. cit., esp. Minas 134 e seguintes. tradução de R. F. Kothe, op. cit., pagina 107. A 18 A Paris do Segundo Império em Baudelaire, tradução no vol. 3 da Brasiliense não está exata.

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM

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MEMÓRIA E HISTÓRIA

O caráter histólico e efêmero da beleza, que Baudelaire interpretava no "Pintor da Vida Moderna" de maneira positiva como expressão do sempre-novo, revela-se aqui na sua negatividade, como ameaça constante de desaparecimento, como a ligação essencial ao tempo e à morte. Esse sentimento agudo da transitoriedade já caracterizava várias épocas do passado, em particular a idade barroca cara a Benjamin; mas essa consciência opunha então a eternidade divina à fugacidade humana, num horizonte teológico ainda estável. O que é próprio da modernidade é o desmoronamento desse horizonte e, conseqüentemente, a falta de um pólo duradouro que servia, outrora, de razão e de consolo do efêmero. A cidade moderna não é um lugar de passagem em oposição à perenidade da Cidade de Deus mas, na sua mais profana e material natureza, o palco isolado de transformações incessantes que revelam sua fragilidade: "A forma de uma cidade/Muda mais rápido — ài de mim! — que o coração de um mortal." 19 Esse verso do poema "O Cisne", várias vezes citado por Benjamin, retoma e transforma o clássico motivo da inconstância humana; perto das mudanças aceleradas da cidade moderna, até o coração humano aparece como estável (essa aceleração também explica, em outros textos de Benjamin, o fi m da narração tradicional). No mesmo ano em que Baudelaire escreve "O Pintor da Vida Moderna", o prefeito Haussmann começa os seus trabalhos de "reurbanização" de Paris, revelando os bolsões de miséria que o velho centro escondia, destruindo quarteirões inteiros e abrindo novas elas, cavando e erguendo, criando essa paisagem urbana tão característica (e tão.familiar aos habitantes das grandes cidades brasileiras de hoje!), onde minas e obras se confundem. Haussmann realiza materialmente a aproximação do antigo e do moderno pela manifestação da caducidade do presente: às minas do passado correspondem as de hoje; a morte não habita só os palácios de ontem, mas já se apoderou dos edificios que estamos construindo. É esta convergência do passado e do presente na forma do seu futuro comum, a morte, que caracteriza a consciência temporal da modernidade. O sempre-novo revela-se na sua obsolescência essencial, no brilho da vida fulgura a chama da destruição. Benjamin tenta mostrar que essa apreensão da temporalidade está inseparável da produção capitalista, notadamente do seccionamento do tempo no trabalho industrial e do 19 Tradução de Kothe, op. cit., página 106. A tradução de I. Junqueira, citada no vol. 3, da Brasiliense, página 81, está errada: "De uma cidade a história/ Depressa muda mais que um coração infiel."

BAUOELAIRE, BENJAMIN E 0

MODERNO :

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caráter fetiche da mercadoria, "novidade" sempre prestes a se tomar sucata. Sem dúvida, Adorno teve boas razões de criticar a falta de rigor dialético dessas hipóteses; deixou, porém, escapar o que era realmente o achado dialético de Benjamin, isto é, a explicação "materialista" da ressurgência, na modema obra de Baudelaire, de uma antiga figura retórica, a alegoria. Em estreita analogia com suas análises do drama barroco, Benjamin lê a alegoria baudelairiana como o fito da desvalorização dos objetos transformados em mercadorias: "A desvalorização especifica do mundo dos objetos, tal que se apresenta na merca2 doria, é o fundamento da intenção alegórica em Baudelaire." 0 Essa desvalorização se intensifica pelo processo de corrosão do tempo que caracteriza a consciência da modernidade. Duplo desgaste que o mesmo poema, "O Cisne", tematiza, ao celebrar a grandeza e a caducidade de Paris: Paris change! Mais rien dans ma mélancolie

N'a bougé! Palais neufs, échafaudages, blocs, Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie, Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs. Paris muda! Mas nada na minha melancolia Mudou! Novos palácios, andaimes, blocos Antigas alamedas, tudo para mim se torna alegoria 21 E minhas caras lembranças são mais pesadas que rochedos. À inconstancia da cidade Baudelaire opõe —como o poeta barroco — a continuidade da sua melancolia, à falta de solidez dos edifícios, o peso de pedra das suas lembranças. Souvenirs e Mélancolie, duas palavras essenciais para entender, segundo Benjamin, a tentativa baudelairiana de opor à temporalidade moderna um outro tempo, luminoso e espesso como mel, o tempo de urna harmonia ancestral, de uma vie antérieure (uma "vida anterior", titulo de um dos mais belos poemas das Flores do Mal). No capitulo 10 de Alguns Temas em Baudelaire, Benjamin consegue desvendar a "arquitetura secreta" das Flores do Mal graças à oposição central entre o tempo devorador e vazio da modernidade e o tempo pleno e resplandecente de um 22 Oposição que Benjamin explicita nas categolembrar imemorial. rias-chaves da sua própria filosofia: ao tempo pleno da vie antérieure 20 W. Benjamin, Ges. Sch. 1-3, página 1151. Cf. Meninghaus, op. cit., páginas 150 e seguintes. 21 Baudelaire, Les Fleurs du Mal, op. cit., página 82, tradução de J. M. G. 22 Cf. Menninghaus, id.

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SETE

AULAS SOBRE

LINGUAGEM MEMÓRIA

E

BAUOELAIRE, BENJAMIN E 0 MODERNO

HISTÓRIA

correspondem a experiência no sentido enfático do termo (Erfahrung), o símbolo na sua harmonia e o valor de culto da arte; ao tempo vazio da modernidade, a experiência vivida individual e isolada (Erlebnis), a dispersão do sentido na alegoria e a desauratização da arte. Benjamin descobre essa tensão já no titulo do primeiro livro das Flores do Mal, "Spleen e Ideal". O Ideal (palavra tão antiga como a filosofia!) remete a uma harmonia perdida que o dizer poético tenta lembrar, harmonia da linguagem da natureza e da linguagem humana, dos sentidos entre si, do espirito e da sensualidade como o canta o famoso poema das "Correspondências". Nessa paisagem ideal que descreve a saudade de uma fusão anterior a qualquer separação, o tempo não escoa mais, mas se imobiliza no ritmo regular das ondas marítimas, imagem privilegiada da felicidade em Baudelaire. Mas existe um outro tempo, o do Spleen (palavra bem moderna, um anglicismo!), o tempo inimigo ("L'Ennemi") que devora cada vida, cada momento de felicidade, cada visão da beleza e, por isso, destrói o próprio poeta: — O douleur, 6 douleur! Le Temps mange la vie,

Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le coeur 23 Du sang que nous perdons croît et se fortifie! — Ó dor, 6 dor! O Tempo destrói a vida, E o inimigo obscuro que nos rói o coração Do sangue que perdemos cresce e se fortifica! Na interpretação de Benjamin, esse tempo não remete somente à antiga meditação sobre a vaidade da vida humana e a fugacidade dos prazeres; ele também indica a alienação do trabalho no capitalismo, submetido ao tempo abstrato, inumano e insaciável dos relógios (e dos cronómetros). No lazer, o mesmo ritmo recortado impera na figura do jogador, a que Baudelaire dedica vários poemas. O último poema de "Spleen e Ideal", "L'Horloge" ("O Relógio"), conclui o ciclo pela advertência dessa destruição inelutável, dessa devoração eficaz e cruel que gangrena a própria beleza.

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nessa luta, perdida de antemão, contra o tempo devastador. Baudelaire não escreve só para contar um passado desaparecido, mas, muito mais, para opor à destruição a frágil perenidade do poema; a escrita descreve o trabalho do tempo e da morte, mas, ao dizê-lo, luta contra ele. Benjamin cita nesse contexto uma anedota sobre o escritor Maxime du Camp, já no limiar da velhice; seus olhos diminuidos tiveram a visão súbita da futura Paris, em ruinas; decidiu, então, escrever o livro que a Antigüidade não nos legou, a descrição de uma cidade viva, mas destinada à morte. Essa inspiração, comenta Benjamin, também orienta a idéia baudelairiana de "modernidade". Ela tira a sua força do desejo de descrever não só o que dura, mas sobre tudo o que, desde já, pertence à morte. Encontramos o mesmo gesto em Proust, que só começará a evocar os vultos da sua juventude depois de tê-los reconhecido sob as máscaras da dança dos mortos, no famoso episódio do baile na casa do Príncipe de Guermantes. Em suas obras, Baudelaire e Proust dizem a morte d obra, estabelecendo, entre escrita e morte, essa relação de luta e de conivência que caracteriza a literatura moderna. No último e belíssimo poema das Flores do Mal, "Le Voyage" ("A Viagem"), que resume todas as andanças do poeta, é a morte que será encarregada de cuidar desse objeto do desejo moderno, do novo:

O Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre! Ce pays nous ennuie, 6 Mort! Apareillons!, (...)

Nous voulons, tant ce feu nous bride le cerveau, Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe? Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau! Ó Morte, velho capitão, é tempo! levantemos ancora! Este pais nos aborrece, 6 Morte! Aparelhemos! Queremos, pois este fogo nos queima tanto o cérebro, Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, 24 pouco importa! No fundo do Desconhecido para achar o novol

Podemos observar que uma alternância temporal semelhante guiará a busca de Proust e a interrogação de Benjamin a respeito do verdadeiro tempo histórico. Benjamin detecta a origem da poesia baudelairiana

A grandeza e a modernidade de Baudelaire não provém portanto, segundo Benjamin, somente das suas descrições, em versos inesque-

23 Les Fleurs du Mal, op. cit., página 16, tradução J. M. G.

24 Idem, pagina 127, tradução J. M. G.

1 54: SETE AI)lAS SOBRE LINGUAGEM , MEMÓRIA E HISTÓRIA

II. O CAMPONÊS DE PARIS:

cíveis, da felicidade imemorial, ou dos seus ensaios que proclamam a busca do sempre novo:

UMA TOPOGRAFIA ESPIRITUAL

As Flores do Mal não seriam, porém, o que são, fossem regidas apenas por esse éxito. O que as torna inconfundíveis é, antes, o fato de terem extraído à ineficácia do mesmo lenitivo ((melhor: do mesmo consolo)), à insuficiência ((melhor: falha)) do mesmo ardor, ao fracasso da mesma obra — poemas que nada ficam devendo àqueles em que as correspondances celebram suas festas. 2$

Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico, que ficaria preso à nostalgia do passado, nem um poeta triunfalista modernoso, que limitar-se-ia à apologia do existente. A sua verdadeira modernidade consiste em ousar afirmar, ao mesmo tempo e cam a mesma intensidade, a força e a fragilidade da lembrança, o desejo de volta e a impossibilidade do retomo, o vigor do presente e a sua morte próxima. Se essa tensão define, na leitura benjaminiana, a modernidade de Baudelaire, talvez possamos afirmar que ela também descreve, na nossa interpretação, a modernidade de Benjamin.

Não se encontrar numa cidade não significa muito.

Mas se perder numa cidade como alguém se perde numa floresta requer instrução. s Walter Benjamin

No seu belo livro sobre a relação de Walter Benjamin com o Surrealismo, 2 o pesquisador alemão Josef Fürnkãs observa que se pode ler o Camponês de Paris, em particular o famoso "Prefácio a uma Mitologia Moderna", como uma paródia de meditação cartesiana. Textos fundantes do pensamento francês até hoje, as Meditações e o Discurso do Método de Descartes encontram nessa homenagem a Paris, capital da douce — e racionalista — França, seu apogeu irônico, aniquilador e simultaneamente glorificador pois, para solapar a bela prosa clássica e austera de Descartes, Aragon precisa soltar as rédeas da língua francesa até o limite do incompreensível, como o observou a tradutora. O resultado dessa operação provocativa e jubilatória é este texto labiríntico sobre o labirinto da cidade e sobre o labirinto do pensar. Ainda hoje pode-se entrar em Paris por várias portas cujos nomes remetem à cidade de origem: Porte d'Orléans, Porte de la Vilette, Porte de Versailles etc. O primeiro olhar sobre a capital fica como que entremesclado à perspectiva da cidade de origem, antes que ambos se juntem na única imagem, insular e luminosa do coração de Paris. Assim também podemos entrar num texto e, em particular, neste 3 livro-cidade emblemático do Surrealismo, por várias portas. Entremos pela Porta Descartes. Tomemos a avenida clássica do monólogo "Infância em Berlim porvolta de 1900", Tiergarten, em: Obras Escolhidas, vol.11 (Sao Paulo: Brasiliense, 1987), trad. modificada. Benjamin-Weimarer Einbahnstrasse und 2 Josef Fürnkas, surrealisnius als Erkenntnis. Walter Pariser Passagen (Stuttgart: J. B. Metzler, 1988), pp. 51 ss. 3 Ao lado de Nadja, de André Breton, publicado dois anos mais tarde. 1

25 W. Benjamin, Obras Esc lhidas vol.3, op. cit., página 134.

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

interior, desse "'eu" pensante cuja imediatez leva ao critério da evidência e da clareza para julgar a verdade do real. Mas aqui, já, uma curva perigosa se anuncia: como, pois, decidir que a evidência é critério de verdade, se também nossos erros nos oferecem o mesmo sentimento: "Não haveria erro sem o próprio sentimento da evidência. Sem esse, ninguém jamais se deteria no erro" (p. 38). 4 No quarto fechado, o eu cartesiano se recolhia na interioridade da dúvida radical e da auto-reflexão para escapar ao engano. O eu do Camponês de Paris deambula nas Passagens pouco iluminadas e se desfaz nas semelhanças entre as certezas do erro e as erranças da certeza. Com efeito, não se trata mais de não ser enganado — esse medo constante de Descartes —, s mas sim de aproveitar o(s) erro(s), a(s) erráncia(s), o errar sob todas as suas formas para poder fugir da prisão da identidade, da razão, do cotidiano e do aborrecimento; busca de Baudelaire e de Rimbaud retomada pelo Surrealismo com um frenesi que a experiência da chacina da Primeira Guerra, a esperança concreta da revolução e, quase que simultaneamente, a descoberta do inconsciente e das potencialidades infinitas da psiquê humana, podem, em parte, motivar. Não se trata, porém, de opor ao racionalismo iluminista um irracionalismo barato. A pretensão teórico e prático-literária é muito mais elevada. As certezas do pensamento cartesiano são abandonadas em proveito de uma pesquisa de ordem (queiram desculpar o jargão técnico!) transcendental: "... exprimer, soit verbalement, soit par écrit soit de toute autre manière, le fonctionnement réel de la pensée" [exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, ou de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento] . 6 Ora, como dizer com palavras o funcionamento do pensamento quando este só pode se realizar através delas? Para essa questão típica da reflexão filosófica transcendental, os surrealistas recusam a solução kantiana (a critica a Kant também habita essas páginas, em particular na Galerie du Baromètre, perto do Theatre Moderne, pp. 87 ss.) e retomam a antiga tentativa, que não pretende ser uma solução, da tradição 4 Todas as citações de O Camponês de Paris referem-se ã tradução de Flávia Nascimento, editada pela Imago em 1996, na Coleção lazuli. 5 Retomo aqui o comentário respeitoso de F. Alquié que fala de uma "affectivité profonde de Descartes", de "sa peur constante d'être trompé" a propósito da decepção do filósofo em relação ao ensino tradicional. Cf. Descartes, Oeuvres philosophiques, vol. I (Paris: Garnier, 1963), p. 559. 6 Segundo a famosa definição/gozação séria do Surrealismo por Breton no Manifeste du Surréalisme (Paris: Éditions du Sagittaire, 1924), p. 42. Grifos meus.

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mística: empurrar, por assim dizer, a linguagem até seus próprios limites, bater em seus muros para provocar uma rachadura, cavar seus fundamentos para fazê-la — em parte — desmoronar. Operação perigosa, próxima da loucura e da desrazâo (não por acaso, Nadja acabará enclausurada num asilo), mas necessariamente desarrazoada pois, aqui, a razão não consegue mais oferecer socorro algum: "É em vão que, cavando há vinte e seis anos com um pedaço de razão quebrada, um subterrâneo que parte de seu colchão de palha, você acredita chegar às bordas do mar" (p. 78). O grande tema iluminista da libertação do medo' deixa lugar à metáfora da evasão da prisão de uma racionalidade e de uma linguagem que são denunciadas como empobrecedoras, restritivas, superficiais, castradoras, mais tarde também se dirá burguesas. Apesar de todos os chavões que esses adjetivos podem evocar, não se deve liquidar esse desejo como se fosse uma "revolta adolescente" qualquer; insisto na exigência profundamente metafísica (Aragon usa inúmeras vezes esse termo!) que subjaz a esse gesto provocativo: configurar os limites das palavras de dentro da linguagem, desenhar, com o lápis do raciocínio, as fronteiras da razão, expressar o funcionamento do pensamento através do pensamento. Tentativa impossível e apaixonante que sempre reinicia em novos enxames de palavras, até a exaustão. E, mais uma vez como na tradição mística, jorram as metáforas da fronteira e de sua efêmera transposição: limiares, escadas, portas semi-abertas, margens do abismo, "fechaduras que se trancam mal sobre o infinito" (p. 44), enfim, não por acaso, "nessas espécies de galerias cobertas... que se chamam, de maneira desconcertante, de passagens" (p. 44). Entendemos agora o valor insubstituível da errância e do erro nesse itinerário na cidade e no pensamento. Somente a experiência do errar, em todos os seus sentidos, nos faz apalpar, coma que pelo avesso, a experiência de uma verdade que não seria, primeiramente, a coerência de nosso pensamento, mas sim o movimento mesmo de sua produção: hesitante, avançando "aos solavancos e aos pedaços" (Adorno), abrupto, atravessado por ritmos diversos. Errar é, simultaneamente, perda das referências conhecidas e aprendizagem do desco7

Cf. Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, trad. de Guido de Almeida (Rio de Janeiro: Zahar, 1985), p. 11: "No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores."

158: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM

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MEMÓRIA E HISTORIA

nhecido, apavorante e apaixonante. Passeamos por Paris, sim, mas passeamos por "Passagens", entre o fora e o dentro, entre a luz do dia e a luz artificial, entre a noite e o dia, entre a vida do comércio e a morte dessas galerias fadadas a uma destruição próxima; passeamos pelo parque, mas o parque é natureza artificial, jardim construído, miniatura de Alpes suíços atravessados por um trem de subúrbio pobre. Isto é: passeamos por Paris porque aí podemos nos perder e, sobretudo, perder a nós mesmos. Num longo livro recém-publicado sobre o mito de Paris, 8 Karlheinz Stierle lembra muito acertadamente que o topos literário da cidade serviu, inúmeras vezes, de metáfora privilegiada para a alma e para o pensamento. Podemos citar Platão e sua República, descrição de uma cidade justa que deveria ajudar a alcançar a definição da alma justa. E reencontramos Descartes que, na segunda parte do Discurso do Método, esboça os fundamentos seguros do pensamento pelo paradigma da fundação urbanística e arquitetõnica: ... permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, vê-se que os edificios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no correr do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície, que, embora considerando os seus edifícios cada qual à parte, se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui um grande, ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando de razão que assim os dispós. 9 8 Karlheinz Stierle, Der Mythos von Paris. Zeichen und Bewu(itsein der Stadt (Cologne: Danser Verlag, 1993).

Nessa evocação emblemática de uma cidade ordenada segundo a razão ao mesmo tempo universal e solitária de um só arquiteto-filósofo esclarecido, o eu do cogito, Descartes rejeita as obras dos outros por causa de seu caráter contingente, pois que ligado ao tempo e à história em vez de surgir somente da vontade e da razão. A crítica à tradição (à história e, no mesmo trecho, à infância, ambas comuns a todos e fontes de erro) desemboca no ideal de uma construção atemporal, cujo desenho siga a ordem eterna das razões estabelecidas, em última instância, pela e na bondade divina. Impossível perder-se nessa cidade modelar e, da mesma maneira, não se dará nenhum passo na atividade espiritual sem seguir o mapa traçado pelas certezas e evidencias da razão. No Discurso do Método, isto é, do caminho certo, a topologia urbana já serve de metáfora privilegiada do pensamento. Ora, a dimensão histórica da cidade, que a exigência de tabula rasa de um Descartes desejava justamente corrigir, para não dizer recalcar, será ressaltada na literatura contemporânea, como o observa K. Stier10 le. A antiga oposição entre cidade terrestre, temporal e efêmera, e Cidade de Deus, a-histórica e eterna, volta na lírica de um Baudelaire sobre Paris; a cidade é o lugar do novo, sim, mas sobretudo do transitório e do já caduco, signos de um tempo mortal. Walter Benjamin analisou a relação entre a harmonia de um tempo imemorial e a ameaça de uma temporalidade devoradora, travestida na vã busca da novid.hle, como sendo o núcleo do conceito baudelairiano de modernidade. Stierle também cita os sonhos paradigmáticos de Freud sobre Roma ou sobre Pompéia como imagens privilegiadas, no espaço da cidade e no "espaço" do inconsciente, de várias camadas temporais: aos monumentos históricos de épocas diferentes, pelos quais caminha o passante, correspondem os blocos e os fragmentos mnemônicos de idades diversas que atravessa o sonhador. De Freud também essa belís9 Descartes, Discurso do Método, trad. Bento Prado Júnior e Jacó Guinsburg (São Paulo: Ed. Abril, Coleção Os Pensadores, 1979), p. 34. Uma bela retomada —crítica! —dessa metáfora ecoa nas Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein: "(Und mit wieviel Hdusem, oder Strassen, fange eine Stadt an, Stadt ni sein?) Unsere Sprache kann man ansehen als eine alee Stadt: Ein Gewinkei aos Gasschen und Pldtzen, alcen und neuen Hdusem, und Hdusem mit Zuhauten aus verschiedenen Zeiten; und dies umgeben von einer Menge neuer Vororte mit geraden und regelmassigen Strassen und mit einfirmigen Hdusem". Em: Schd/tenr (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969), p. 296. 10 Karlheinz Stierle, op. cit., pp. 17 ss .

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

sim a declaração de amor a Paris ou ao mito de Paris: "Também Paris, por muitos anos, fora objeto de meus desejos; e o sentimento de felicidade com que pus o pé, pela primeira vez, nas suas ruas, parecia uma garantia de que outros desejos seriam realizados" 11 A cidade como palco do inconsciente não é mais o lugar regrado e seguro das certezas racionais (duramente conquistadas, aliás), mas sim a paisagem esburacada e fugidia do desejo: ruínas a serem descobertas e interpretadas como na arqueologia, rastros a serem decifrados e (per)seguidos como num romance de detetive ou de cowboy. Vários autores já apontaram para a significativa contemporaneidade do romance de detetive, da pesquisa arqueológica e da psicanálise, três novos modos de interpretação e de

leitura. Avançamos aqui mais um patamar nessa pequena metaforologia urbana: a cidade é imagem do pensamento, imagem também do inconsciente e, como o pensamento ou o inconsciente, deve ser lida e interpretada. A cidade se torna escrita a ser decifrada e o texto — em particular o texto sobre a cidade! — se transforma, por sua vez, numa paisagem a ser percorrida. 12 Essa reverberação mútua entre texto/escrita e cidade/escrita encontra no Camponês de Paris uma das suas mais felizes expressões, por vezes cheia de angústia e de mistério, por outras, de alegria e de humor. Poder-se-ia evocar também Kafka, Borges ou Italo Calvino. O livro está povoado de placas, de propagandas, de outdoors e de inscrições como as mas e os muros de Paris por ele descritos. Em Rua de Mão Única, homenagem ao Surrealismo (à revolução e à sua amiga Asja Lacis também), Benjamin observou profeticamente que a escrita "é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico". Se, continuava Benjamin, "há séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se" nos manuscritos e, depois, nos livros impressos, "ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão (...) filmes e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade". 13 Ora, esse processo de verticalização e de evasão 11 Idem, p. 20. A citação se encontra na Interpretação dos Sonhos, cap. V, subcapltulo B, 5. Grifos de Freud. 12 A este respeito, ver J. Fürnkãs, op. cit., pp. 62 ss. Ver também os recentes livros-cidades de Willi Bolle, Fisiognomia da Metrópole Moderna. Representação da História em Walter Benjamin (São Paulo: Edusp, 1994), e de Renato Cordeiro Gomes, Todas as Cidades, a Cidade (Rio de Janeiro: Rocco, 1994).

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fora das páginas tranqüilas dos livros encontra seu correspondente irõnico, como Benjamin já o nota a respeito do Coup de Des de 14 Mallarmé, na reapropriação pelo livro da escrita citadina que lhe tinha escapado. Graças à reprodução de textos que parecem oriundos das ruas, portanto da "realidade" material e não da "ficção" literária, o livro também parodia o que ele poderia nos dar a crer que é: um mapa, um guia, um Michelin ou um Baedeker que permitiria nos orientar nos bairros descritos com uma precisão pretensamente realista. Toda segunda parte do Camponês de Paris, "O Sentimento da Natureza no Parque Buttes Chaumont", com suas descrições topográficas minuciosas (cap. VII) e com sua cópia (!) das inscrições da coluna do termômetro (cap. XIII), verdadeiros pastiches de um guia para turista, joga com essa alternancia entre a descrição realista e a embriaguez noturna dos três amigos, como também joga com a ambigüidade entre natureza e artifício (Flávia Nascimento, na sua "Apresentação", nos lembra que o parque é um jardim artificial erguido por Haussmann num terreno que, antigamente, era um depósito de lixo!). O leitor que se aventurar neste texto pensando encontrar nele uma trama clara com início, meio e fim conclusivo, se achará tão desnorteado como seu irmão, o turista aplicado, que deseja visitar o Buttes Chaumont com a ajuda desse guia de bolso: "Azar, então que isso tenha um ar inacabado, azar se o caminhante que percorre o Buttes Chaumont com meu livro nas mãos percebe que mal falei desse jardim e que negligenciei o essencial dele" (ver p. 209). Negligenciou Aragon realmente o essencial? Ou será que essa afirmação não significa mais uma pirueta literária auto-irônica? Nessa desorientação textual e geográfica, reencontramos o tema da errância e do erro. Não há, na periferia da cidade, nenhum jardin à la française com suas alamedas geométricas e suas árvores artisticamente podadas. O parque participa da mesma estrutura labiríntica que, no coração da capital, a rede escura das Passagens. Esse "grande arrabalde equivoco" (p. 161), ou o centro comercial, a natureza — "meu inconsciente" (p. 150) — ou a ficção do Theatre moderne, esses lugares aparentemente opostos tecem a mesma rede labiríntica que é a teia do Obras Escolhidas, 13 W. Benjamin, Rua de mão única, trad. de Rubens R. Torres Filho, em: vol. I , (São Paulo: Brasiliense, 1987), p. 28. op. cit., cap. 7, pp. 14 W. B njamin, idem, p. 28. Fürnkãs, op. cit., pp. 223 ss. W. Bolle, 271 s.

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espírito e do texto. Labirinto sem minotauro (p. 136), esse espaço não pertence mais à mitologia clássica, mas sim à moderna; talvez ele seja menos ameaçador pois nenhum monstro devorador nele mora; dele, porém, nenhum Ícaro consegue mais se salvar. Seus meandros não são mais fruto da invenção especifica de um arquiteto engenhoso para esconder a fera; eles descrevem os caminhos e os descaminhos do próprio espírito: O espírito cai na armadilha dessas redes que o arrastam sem volta em direção ao desenlace de seu destino, o labirinto sem Minotauro, onde reaparece, transfigurado como a virgem, o erro com os dedos radium, essa minha amante cantante, minha sombra patética (p. 136). O passeio iniciático pelas Passagens e pelo Parque pode se ater a cantos misteriosos, a escadas escuras, a ambíguas vendedoras de lenços ou a pudicos banhos públicos. Todos podem levar ao mistério, à vertigem, ao insólito, provocar o frisson e a embriaguez. Todos têm esse poder como, igualmente, nenhum deles o detém em particular; pois, muito mais fundamentalmente que uma topologia de lugares sagrados, o Camponês de Paris elabora uma encenação do divino, uma ascese da revelação. Os lugares enquanto espaços reais importam pouco; só se transformam em espaços epifànicos graças à força dessa atenção distraída que muitos comentadores relacionaram com a atenção flutuante de Freud e cujas raízes mergulham tanto na attentio da tradição mística como na hipersensibilidade dos "doentes mentais". A força do Surrealismo, como já o afirmava em 1929 Walter Benjamin, não provém de uma fruição equivoca de fenômenos ocultos, de uma celebração complacente do mistério, mas, sim, contra qualquer leitura irracionalista apressada, de sua capacidade Empar de vislumbrar o maravilhoso no coração do cotidiano: De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica 15 Sobre o motivo do labirinto no pensamento filosófico, cf. Olgaria Matos, Os Arcanos do Inteiramente Outro (Sao Paulo: Brasiliense, 1989), pp. 80 ss. e O Iluminismo Visionário: Benjamin, Leitor de Descartes e de Kant (Sao Paulo: Brasiliense, 1993), pp. 37 ss.

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dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. 16 As andanças do eu narrador no Camponês de Paris podem parecer o passeio esotérico de um sujeito esquisito nos labirintos de galerias equívocas, entre a baixa prostituição e a revelação do sagrado. Elas se descobrem como sendo, antes, a mensuração si multaneamente desvairada e exata de um labirinto espiritual, como o reconhecimento sempre reiniciado de pontos de fuga abissais. Não se envereda, portanto, pelos caminhos do irracionalismo e do irreal, mas pelas alamedas, ao mesmo tempo reais e surreais, da terra: "Depois, sem dificuldade desde então, pus-me a descobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que In_ escoltavam, andando ao longo das atéias da terra" (p. 141). Ou, como Breton o nota em pé de página no Manifesto do Surrealismo: "O que há de admirável no fantástico é que 17 não guarda mais nada de fantástico: não é outra coisa que o real." Cabe observar aqui que essa "iluminação profana", segundo a bela expressão de Benjamin, pode levar tanto aos arcanos do inefável quanto à lucidez austera da militancia revolucionária. Por baixo, por detrás do dito real, ou melhor, a ele inseparavelmente entrelaçado se perfila, pois, um outro surreal desconhecido, infinito, mas ao alcance da mão para quem souber olhar. Assim também, no Camponês de Paris, essas descrições de cenas triviais e cotidianas que, subitamente, parecem outras, quando uma paisagem comum se metamorfoseia sob a luminosidade do luar: Os homens vivem com os olhos fechados em meio aos precipícios mágicos. Eles manejam inocentemente símbolos negros, seus lábios ignorantes repetem sem saber encantamentos terríveis, fórmulas semelhantes a revólveres. Há razões para estremecer ao ver uma família burguesa que toma seu café com leite pela manhã, sem observar o inconhecfvel que transparece nos quadrados vermelhos e brancos da toalha de mesa (p. 201),

adverte o Camponês já no fim do seu passeio noturno. 16 W. Benjamin, "O Surrealismo — o Último Instantâneo da Inteligência Européia", em: Obras Escolhidas, vol. I, trad. S. P. Rouanet (São Paulo: Brasiliense, 1985), p. 33. 17 André Breton, op. cit., p. 25.

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Qual é a via de acesso, qual é o método para alcançar esse desconhecido escondido e transparente? As respostas podem variar: escritura automática, drogas, sonhos, paixão, embriaguez. Mas há um caminho unanime: o da imagem. E mais precisamente da imagem verbal, da metáfora, do pensamento figurativo em oposição ao pensamento "abstrato" ou "lógico" (p. 140) que se outorga a si mesmo as prerrogativas do rigor e da verdade. Os Surrealistas colocam aqui o dedo na ferida originária da metafísica ocidental, nesse rasgo entre mythos e logos, antigamente solidários na unidade da primazia da palavra e, pouco a pouco, separados, distinguidos e até opostos na constituição do discurso racional (histórico, filosófico, científico, Ibgico) contra o 18 discurso poético-sagrado ( mítico, ficcional). A insistência de Aragon no motivo da "mitologia moderna" está ligada à ênfase da dimensão heurística, descobridora das imagens, "pois cada imagem a cada lance força-nos a revisar todo o Universo" (p. 93), dimensão mais preciosa ainda na medida que advém da própria dinâmica da linguagem, e não de fora, da consciência ou da intenção de um sujeito soberano, pretensamente anterior a suas palavras. Essa dimensão figurativa, imagética, portanto sensível do pensamento, se não pede ser totalmente afastada e rejeitada — pois os conceitos também são, originariamente, metáforas, como mesmo Hegel o reconhece — foi, no entanto, duramente submetida às regras de um outro tipo de conhecimento, abstrato e dedutivo, portanto mais verdadeiro. Por que esse "portanto"? Talvez porque nosso ideal de conhecimento, desde suas fontes gregas, tão claras e tão incertas, seja um ideal de estabilidade, de duração, de equilíbrio, às vezes mesmo de atemporalidade, para não dizer de eternidade ("oh, hybris!" exclamar-se-ia Homero, de cuja existência nós não temos certeza). Nesse contexto, é importante notar que a "mitologia" de Aragon não remete, como tantas outras mitologias contemporâneas, ao reencontro com uma pseudo-eternidade, mas sim, conseqüentemente, à fugacidade, à caducidade, ao efêmero. A dimensão da imagem e a dimensão do efêmero são inseparáveis como o assinala o magnífico eno de francês do pequeno poema concreto consagrado ao efêmero (p. 117): "E P H É MÈ R E (...) Les faits m'errent (....)." "Os fatos me erram" — e as imagens me guiam, poderíamos acrescentar. Ao reassumir, então, esse lado negligenciado do pensar que é a i maginação, no sentido concreto 18 Sobre esse processo, veros livros de Marcel Détienne, Les maîtres de vérité dans la Grèce archaique (Paris: Maspéro, 1967) e L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981).

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de produção de imagens, o poeta também reassume a vertente instável, fugidia, evanescente — enfim, ligada à história, ao tempo e à morte — do pensamento. Nas lendas dessa "mitologia moderna", mesmo os deuses nascem e morrem como os mortais: A ligação intima que eu descobria assim entre a atividade figurativa e a atividade metafísica de meu espirito, em cem circunstâncias que despertavam ao mesmo tempo em minha consciência, voltou-me em direção das criações míticas, que outrora eu condenara bastante sumariamente. Não Ode me escapar por muito tempo que a propriedade de meu pensamento, a propriedade da evolução de meu pensamento, era um mecanismo em todos os pontos análogo à génese mítica e que, sem dúvida, eu não pensava nada que não determinasse imediatamente em meu espírito a formação de um deus, por mais efêmero, por menos consciente que ele fosse. Pareceu-me que o homem está pleno de deus como uma esponja imersa em pleno céu. Esses deuses vivem, atingem o apogeu de sua força, depois morrem, deixando para outros deuses seus altares perfumados (p. 142). O estilo arcaizante, cheio de conjuntivos, das duas primeiras frases dessa citação, não deixa de lembrar, parodisticamente, a prosa cartesiana! Lembrando o gesto doloroso da alegoria baudelairiana e, em particular, os poemas de Baudelaire sobre Paris, a peregrinação do Camponês se torna tanto mais mitológica quanto mais é atravessada, por todos os poros da escrita e por todas as esquinas da cidade, pela consciência da temporalidade, da historicidade e da caducidade desse espaço urbano e psíquico. Assim, a descrição da Passagem da Ópera é iniciada poucos meses antes de sua destruição, sendo, portanto, si multaneamente, uma descrição ao vivo e uma homenagem póstuma. Como em Baudelaire é, pois, a consciência da morte que desperta o olhar mitologizante — porque o presente já é visto como ruína de um tempo passado — e o desejo de escritura — sabe-se que as primeiras inscrições são as funerárias, rastros gravados em monumentos que lembram a presença do ausente. Como o ressaltam todos os comentadores, a própria ambigüidade da palavra "passagem" alude, igualmente, à transgressão do último limiar, à morte. Morte de cada um, em sua singularidade irredutível, mas também morte coletiva configurada pelo passado ( mesmo radical da palavra "passagem"), recen-

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te ou afastado, que nos escapa. "Santuários dum culto do efêmero" (p. 44), "grande ataúde de vidro" (p. 62), as Passagens também são o cenário dos jogos amorosos, dos rendez-vous, das vãs esperas e da prostituição, porque Eros é o parceiro predileto de Thanatos, como o sabe "o cãozinho Sigmund Freud" (sic!) que também vagueia por aí (p. 63). Na mesma "passagem" do texto e da Ópera, o poeta nos diz abandonar, por um instante, seu "microscópio" e tentar retomar uma distancia maior tanto do "objeto" do texto como da própria atividade de elaboração textual. O que essa pausa lhe permitirá enxergar? Uma única e mesma configuração no turbilhão da galeria e no gesto da mão: o movimento da escritura, da inscrição de signos complexos, desesperados, efêmeros, que significam uma só coisa: Tento ler nessa rápida escritura e a única palavra que creio distinguir em meio a esses caracteres cuneiformes incessantemente transformados não é Justiça, é Morte. Ó Morte, encantadora criança um pouco poeirenta, eis um pequeno palácio para teus galanteios. Aproxima-te suavemente com teus calcanhares torneados, desa19 massa o tafetá de teu vestido e dança (p. 62). Esse pequeno palacete é, naturalmente, a Passagem da Ópera e, por conversão metonímica, a cidade inteira de Paris. Mas também é, sem dúvida, o texto que se está escrevendo, isto é, este livro que temos em mãos, a literatura inteira. Onipresente nas ruas e nas páginas, a Morte com M maiúsculo (como nos versos de Baudelaire) não aparece, porém, como em suas representações clássicas, como uma mulher alta, imponente, pálida e patética; mais pudica e mais ironicamente, ela é uma dançarina simultaneamente menina e antiga, uma criança empoeirada (lembra os dançarinos, os tolos e os bufões nietzschianos). Mesmo a morte não consegue mais se vestir com as dobras solenes da eternidade, mas, tal os adolescentes de hoje nas ruas das megalópoles, arruma-se com os farrapos da moda e do efêmero. Continua cruel, sim, mas é descrita com essa leveza lúcida que guia os passos errantes do Camponês e que, talvez, seja a única forma possível de seriedade que nos resta. Cuidado, pois, ao entrar nesse livro: como as Passagens e as ruas parisienses, ele leva à rememoração do passado, à perda da identidade, aos subterrâneos da consciência, 19 Na página anter.or, o tinteiro do escritor, visto de perto e aumentado por esta visão, lembrava a Morgue, o Necrotério!

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aos "Infernos" — isto é, na mitologia grega, ao Hades, reino do invisível e da morte. Mas leva brincando, com ternura, com humor, coma alegria das imagens. Como seu próprio assunto, este livro é um lugar de passagem, uma porta entreaberta, uma soleira. Ele pode, talvez até deva assustar. Mas também, nas palavras de Benjamin que mesclam a topologia onírica de Freud e a topologia literária de Aragon, ele pode ser um guia precioso para ousarmos enfrentar nossos sonhos e nossas fantasias, nossos abismos, nossos diversos infernos, nossa infancia inquieta e nossa errãncia adulta, nossa morte enfim:

Mostravam-se na Grécia Antiga lugares pelos quais se podia descer aos infernos. Também nossa existência desperta é um país onde há vários pontos que descem aos infernos, um país cheio de lugares pouco visíveis, onde deságuam os sonhos. De dia passamos por eles sem suspeitar nada, mas é só o sono chegar que voltamos tateantes a eles, com gestos rápidos, e nos perdemos em escuros corredores. O labirinto das casas da cidade se parece, à luz clara do dia, com a consciência; as passagens (são as galerias que levam à sua existência passada) desembocam de dia nas ruas sem que as percebamos. Mas à noite, entre as massas escuras das casas, sua escuridão mais compacta se destaca, assustadora; e o passante tardio apressa-se a passar por elas sem entrar, exceto quando o 20 animamos a emprender uma viagem pelo beco estreito.

20 W. Benjamin, Passagen-Werk, em Gesammelte Schriften V, vol. 2, p. 1046 (Trad. J. M. G.). Aproveitei a tradução de uma parte desse texto por S. P. Rouanet em As Razões do Iluminismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 118. Ver também os artigos de S. P. Rouanet e de Nelson Brissac Peixoto no "Dossiê Walter Benjamin", Revista USP, n. 15, 1992, "E a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?".

III. INFÂNCIA E PENSAMENTO A Rafaela e Cristina, com quem aprendi muito

sobre infância e mais ainda sobre pensamento.

Há pouco menos de um ano, a Folha de S. Paulo publicava no suplemento de domingo "Mais!" uma série de artigos sobre a idéia da infância e sua atual crise, no limiar do século XXI. Sem querer entrar no mérito dos vários artigos, na maioria de orientação psicanalítica, podemos ressaltar que o simples questionamento da noção de infância já é salutar em si, pois nos lembra, nas pegadas do historiador francês Philippe Ariès, que essa noção de uma idade profundamente diferente — e a ser respeitada nas suas diferenças — da idade e da vida adultas, que essa idéia é relativamente nova. Sua emergência é geralmente localizada no século XVIII, com o triunfo do individualismo burguês no Ocidente e de seus ideais de felicidade e emancipação. Marco privilegiado dessa — nossa — concepção moderna de infância seria o livro de Jean-Jacques Rousseau de 1762, o Emilio, que transforma a prática pedagógica de uma boa parte da elite esclarecida. Voltaremos a ele. Se a noção de infância não é, portanto, nenhuma categoria dita natural, mas é, sim, profundamente histórica, cabe porém ressaltar que entre pensamento filosófico e infância as ligações são estreitas e tão antigas como a própria filosofia, o que não invalida a historicidade nem da noção de infância, nem dessa estranha disciplina que ninguém consegue definir direito, a filosofia. Ligações privilegiadas, não só porque as crianças colocam a seus pais encabulados as grandes questões filosóficas sobre o sentido da vida, sobre a morte ou os limites do universo, ou porque, num certo sentido, os filósofos seriam, no fundo, grandes crianças, que brincam de maneira séria e esquisita com palavras difíceis, em vez

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de se preocupar com os negócios realmente importantes da vida adulta; mas também e antes de tudo porque reflexão filosófica e reflexão pedagógica nascem juntas, porque é em redor da questão da paidéia que se constitui o primeiro "sistema" que se autodenomina de "filosófico", o pensamento de Platão. A problemática da paidéia justa —da formação justa, poderíamos, pelo menos transitoriamente, traduzir — se coloca, como o sublinha o filósofo contemporâneo Jean-François Lyotard, porque Elle a pour présupposé que l'esprit des hommes ne leur est pas donné comme il faut, et doit être ré-formé. Le monstre des philosophes c'est l'enfance. C'est aussi leur complice. L'enfance leur dit que l'esprit n'est pas donné. Mais qu'il est possible. tem por pressuposto que o espirito dos homens não lhes é dado de maneira completa e deve ser reformado. O monstro dos filósofos é a infância. Ela também é sua cúmplice. A criança lhes diz que o espirito não é (um) dado. Mas que ele é (um) possível.' Não vou fazer aqui uma história do conceito de formação; não tenho competência para isso. Gostaria simplesmente de apresentar a vocês alguns momentos dessa relação entre a infância e o pensamento, pensamento filosófico, sem dúvida, portanto um tipo específico de pensamento, sim, mas, ao mesmo tempo, um pensamento que aspira a uma certa universalidade (na aceitação kantiana que distingue a filosofia da escola, académica, de especialistas, da filosofia no seu sentido mais amplo, que trata de questões comuns a todos os homens). Podemos, desde o início, apontar para duas grandes linhas que vão guiar minha exposição. A primeira, que nasce com Platão, atravessa a pedagogia cristã com Santo Agostinho, por exemplo, e chega até nós através do racionalismo cartesiano, nos diz que a infância é um mal necessário, uma condição próxima do estado animalesco e primitivo; que, como as crianças são seres privados de razão, elas devem ser corrigidas nas suas tendências selvagens, irrefletidas, egoístas, que ameaçam a construção consensual da cidade humana graças à edificação racional, o que pressupõe o 1 J. F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants (Paris: Galilée, 1986), p. 156

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sacrifício das paixões imediatas e destrutivas. Freud e a necessidade da repressão para chegar à sublimação criadora de valores culturais já estão em germe nessa pedagogia de origem platônica. A segunda linha, é importante ressaltá-lo, também nasce em Platão, atravessa o renascimento com Montaigne e chega a nossas escolas ditas alternativas através do romantismo de Rousseau. Ela nos assegura que não serve de nada querer encher as crianças de ensinamentos, de regras, de normas, de conteúdos, mas que a verdadeira educação consiste muito mais num preparo adequado de suas almas para que nelas, por impulso próprio e natural, possa crescer e se desenvolver a inteligência de cada criança, no respeito do ritmo e dos interesses próprios de cada criança particular. À primeira vista contraditórias, essas duas linhas podem conduzir, em contextos diferentes, o discurso pedagógico de um mesmo pensador. Assim, Platão, que nos assegura nas Leis (808 d/e) que, como as ovelhas não podem ficar sem pastor, senão se perdem, assim também e mais ainda nenhuma criança pode ficar sem alguém que a vigie e controle em todos os seus movimentos, pois a "criança é, de todos os animais, o mais intratável" (ho de pais pantôn theriôn esti dusmetacheiristotaton), na medida em que seu pensamento, ao mesmo tempo cheio de potencialidades e sem nenhuma orientação reta ainda, o torna "o mais ardiloso, o mais hábil e o mais atrevido" de todos os bichos (epiboulon kai drinu kai hybristotaton theriôn gignetai). Essa criança, ameaçadora na sua força animal bruta, deve ser domesticada e amestrada segundo normas e regras educacionais fundadas na ordem da razão (logos) e do bem tanto ético quanto político, em vista da construção da cidade justa. Empreendimento que Platão descreve detalhadamente —e sem esconder suas numerosas dificuldades — em vários livros da República. Mas é na mesma obra que encontramos, algumas páginas depois da famosa, assim chamada "alegoria da caverna", a afirmação enfática da capacidade de aprender humana, faculdade inata e universal em todos, mesmo que não sempre na mesma proporção, faculdade inata, universal, natural portanto, que permite a Platão criticar a educação tradicional ateniense, baseada no aprendizado de conteúdos externos, oriundos da poesia homérica, e determinar a justa paidéia como um movimento interior à própria alma:

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A educação (paidéia) é, portanto, a arte que se propõe este fim, a conversão (periagoge) da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgão da alma, pois que este já a possui; mas como ele está mal disposto e não olha para onde deveria, a educação se esforça por levá-lo ã boa direção. 2 Educação-repressão, ou educação como um amoroso ajudar das faculdades naturais de cada criança para que cresçam na boa direção? Essa alternativa, apontada pelos escritos de Platão, nos remete, mais profundamente, ao estatuto paradoxal da infância e dos "infantes", isto é, desses seres humanos, sim, mas no entanto privados de fala, isto é, privados daquilo que, segundo toda tradição metafísica ocidental, é o próprio do homem: a linguagem, portanto a razão, linguagem e razão que permitem a instituição de uma ordem política. Lembremos que logos significa, indistintamente, ambos os conceitos, que não há, portanto, linguagem sem uma racionalidade nela inscrita, nem razão que não possa se dizer e se explicitar em palavras. Cabe também ressaltar aqui, já que estamos nas etimologias, que a palavra "infância" não remete primeiro a uma certa idade, mas, sim, ãquilo que caracteriza o início da vida humana: a incapacidade, mais, a ausência de fala (do verbo latim fari, falar, dizer e do seu particípio presente, fans). A criança, o in-fans é primeiro aquele que não fala, portanto aquele animal monstruoso (como o dizia Lyotard), no sentido preciso de que não tem nem rugido, nem canto, nem miar, nem Latir, como os outros bichos, mas que tampouco tem o meio de expressão próprio de sua espécie: a linguagem articulada. Qual é a significação dessa ausência primordial? Até, digamos, Rousseau, essa ausência foi interpretada como o signo inequívoco de nossa natureza corrupta, pois é nele, nesse não-falar infantil obscuro que se escondem tanto nossa proximidade com o animal, como nosso afastamento de sua simplicidade instintiva. Diferentemente dos pequenos bichos que nunca aprenderão a falar e a pensar, os pequenos homens desenvolvem essa faculdade e, portanto, a possibilidade da escolha do mal contra o bem. Se não só nascêssemos, mas também ficássemos sem linguagem, seríamos bichos talvez cruéis, mas sem a possibilidade de ser 2 Platão. República, 518 d. Trad. J. Guinsburg (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965).

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moralmente ruins, pois a propensão ao mal só pode ser atribuída a um ser dotado de inteligência, de razão e de linguagem, capaz de escolher conscientemente entre o bem e o mal. A infância reúne assim, no pensamento de um Santo Agostinho, por exemplo, a selvageria bruta do animal e a disponibilidade, simultaneamente infinita e latente, do homem para o mal. Ela é o testemunho vergonhoso do pecado que nos marca, já ao nascer, e contra o qual só podemos tentar lutar quando sairmos dela, quando pudermos entender os conselhos bondosos de nossos pais e lhes responder pelas nossas palavras e nossas ações. Longe de ser a idade da inocência, a infância é descrita por Santo Agostinho, em particular no Livro I das Confissões, como duplamente marcada pelo pecado: não só cada criança, cada infans — palavra cuja etimologia é realçada por Agostinho em oposição ao puer: qui non farer, I, 8,13 — é signo, pelo seu nascimento, do comércio carnal e libidinoso de seus pais, isto é, profundamente marcado pelo pecado original; mas também cada criancinha manifesta desejos e ódios, cuja intensidade desproporcional será justamente censurada numa idade mais avançada e que só é tolerada nela, na criancinha sem fala nem razão, porque é fraca, portanto e felizmente, impotente. Cito Agostinho, na época ainda nenhum santo, segundo suas próprias palavras:

— Em que podia pecar, nesse tempo? Em desejar ardentemente, chorando, os peitos de minha mãe? Se agora suspirasse com a mesma avidez não pelos seios maternos, mas pelo alimento que é próprio da minha idade, seria escarnecido e justamente censurado (...). —Assim, a debilidade dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças. Vi e observei uma, cheia de inveja, que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico, para o irmãozinho de leite. 3

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Quid ergo [zinc peccabam?An quia uberibus inhibiam plorans? Nam si nunc fadam, non quidem uberibus, sed escae congruente annis meis ita inhians, deridebor atque reprenhendar iustissime (...) Ita imbecillitas membromm infantilium innocens est, non animum infantium. Vide ego et expertus sum zeiantem parvulum: nondum loquebaturet intuebaturpallidus amaro aspecto conlactaneum suam. Santo Agostinho, Confissões, Livro I, 7,11. São Paulo: Editora Abril, Coleção Os Pensadores, tradução ligeiramente modificada de J. Oliveira Santos, S. J. e A. Ambrosio de Pina, S. J.

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Podemos rir ou sorrir desses exemplos de Santo Agostinho. Devemos observar que ambos tratam, em termos freudianos, da primeira manifestação da libido, do desejo e da necessidade do leite materno, mas não para ressaltar sua importância para o coitadinho e, por via de conseqüência, para ressaltar a obrigação de a mãe responder a essa imposição, como Rousseau o interpretará e, depois dele, Freud e nós todos. Não, pelo contrário, Agostinho vê nesse desejo, cuja violência não pode ser temperada nem pela linguagem nem pela razão — pois o infans não as entende —, a prova da violência de nossas paixões e de nossos desejos voluptuosos, sem freio. A criança evidencia, portanto, nossa natureza pecadora, pois nela não fala ainda nenhuma voz da razão, cuja luz é o reflexo da luz divina em nós, mas, sim, só grita a força da concupiscência. Como o mostra Elisabeth Badinter em cujas análises me apoio aqui 4, mesmo com a passagem do pensamento filosófico

medieval, impregnado de teologia, para o pensamento da renascença e do racionalismo, que proclamam a independência da razão em relação ds exigências da fé, mesmo no racionalismo de um Descartes, por exemplo, a infdncia continua sendo um lugar de perdição e de confusão. Se ela não é mais o terreno privilegiado do pecado, continua sendo o território primordial e essencial do erro, do preconceito, da crença cega, todos esses vícios do pensamento dos quais devemos nos libertar. Para o pai do racionalismo moderno, é nosso universal pertencer d infdncia, a essa idade sem razão e sem linguagem, que constitui nosso enraizamento tenaz e infeliz no marasmo da não-razão. Ou ainda: se pudéssemos ter nascido já adultos, isto é, já em plena posse do uso de nossa razão, então a luta da razão contra os vários preconceitos que a ofuscam não seria tão árdua, reta filosofia e felicidade humana cresceriam mais rapidamente e com mais liberdade. Cito a segunda parte do Discurso do Método: E assim ainda, pensei que, como todos nós fomos crianças antes de sermos homens, e como nos foi preciso por muito tempo sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que eram amiúde contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhas4

Elisabeth Lyotard, L'amouren plus, histoire de l'amour maternel (Paris: Flammarion, 1980), pp. 42-52.

PENSAMENTO :

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sem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão purosoutãosólidoscomoseriam, setivéssemosousointeirode nossa razãodesdeo nascimentoesenãotivéssemos sido guiados senão por ela. 5 A infância se assemelha aqui, como o assinala em nota Gérard

Lebrun, ã tradição histórica. Ambas já existem antes de nós chegarmos â razão, nelas nascemos e crescemos, ambas são, por assim dizer, um mal necessário. Necessário porque o ser humano não é nenhum deus, mas é defeituoso, fraco, falho; precisa, portanto, do socorro dos outros para se desenvolver. Esses outros, pais ou professores presentes, mestres ou pensadores do passado, muitas vezes nos confundem em vez de nos esclarecer; são, simultaneamente, imprescindíveis e perigosos. Como Platão, Descartes reivindica, portanto, o direito de criticar a tradição e o direito â independência da razão, o que implica uma reforma da educação. Como Platão ainda, Descartes só quer salvar da infância o que a educação tradicional geralmente não percebe: a saber, o brotar de uma razão balbuciante que, muitas vezes, é sufocado pelo acúmulo de informações escuras e paradoxais. Já que existe esse período infeliz da infância, devemos nos apressar em nos livrar dele da melhor maneira: isto é, criando as condições propícias ao crescimento rápido da luz natural da alma, do nous platônico, da razão cartesiana, para enfim nos tomarmos adultos; isto é, como o dirá Kant, sem medo de usarmos nosso entendimento, sem medo de sermos independentes e autônomos, sem medo de sairmos da minoridade. Esses belos motivos, caros ao iluminismo, celebram juntos a idade da razão — a idade adulta — e a emancipação ética e política, em oposição â idade da des-razão — a "in-fância" — e â sujeição aos mandamentos de outrem. A infância tem, nesta tradição de pensamento, um estatuto paradoxal: território perigoso das paixões, do pecado e do erro, zona escura sem os caminhos que traçam as palavras e que ilumina a razão, ela é, no entanto, na nossa miséria humana, o 5

René Descartes, Discurso do Método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Ed. Abri!, Coleção Os Pensadores, 1979, p. 35. Et ainsi encore je pensai que, pour ce que nous avons tous été enfants avant que d'être hommes, et qu'il nous a fallu longtemps être gouvernés par nos appétits et par nos précepteurs, qui étaient souvent contraires les uns aux autres, et qui, ni les uns ni les autres, ne nous conseillaient peut-être pas toujours le meilleur, il est presque i mpossible que nos jugements soient si purs, ni si solides qu'ils auraient été, si nous avions eu l'usage entier de notre raison dés le point de notre naissance, et que nous n'eussions jamais été conduits que par elle." (Discours de la méthode, seconde partie. Oeuvres philosophiques. Paris: Gamier, 1963, vol. I, pp. 580-81.)

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SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMÓRIA E HISTÓRIA

único solo à disposição de onde possa brotar, naturalmente, essa mesma razão que lhe faz falta. Desprovida de logos — linguagem e razão —a infancia o detém, porém, em potência. Cabe à educação/formação realizar essa potencialidade e transformar esses pequenos seres egoístas, tirânicos e choraminguentos em homens dotados de linguagem, isto é, capazes de pensar e agir racionalmente, de se tomar os cidadãos responsáveis e independentes de uma res pública. Podemos agora verificar que a relação do pensamento, em particular do pensamento filosófico, com a infancia, se constitui através de uma mediação conceituai cujos principais momentos são uma certa concepção de natureza e uma certa concepção de razão. Confiança na pureza e no poder da razão (rastro da inteligência divina em nossa alma) e desconfiança em relação à natureza humana, marcada pelo pecado ou pelo erro, esses dois fatores levam a uma representação paradoxal da infancia como sendo, simultaneamente, o outro ameaçador da razão, mas também o terreno exclusivo de sua eclosão. Ora, o corte introduzido por Rousseau em relação a nossas representações de infancia, portanto também de pedagogia, pode ser explicado por uma certa inversão dos dois momentos que assinalava: com Rousseau, começamos a desconfiar da razão e a confiar ilimitadamente na natureza. Vejamos mais de perto. Devemos, de antemão, notar que a desconfiança rousseauniana em relação à razão raciocinante e às palavras insidiosas não é tão nova como pode parecer à primeira vista. Já na época de Platão, contra o desenvolvimento rápido e muito bemsucedido da retórica e da sofística, cresce em Atenas uma grande desconfiança em relação a esses profissionais da palavra que não usam a linguagem para dizer a verdade, mas, sim, para confundir, seduzir e enganar. Contra os belos artifícios da retórica e da sofística, Platão quer, justamente, salvar um outro tipo de discurso — o qual chama de filosofia —, o discurso da transparência e da verdade. As relações entre sofistica e filosofia são complexas, e não vou me demorar nelas aqui. S6 queria assinalar que filosofia e sofistica não são tão facilmente distinguíveis como, várias vezes, a argumentação platônica pretende. Se para Platão e para toda tradição filosófica clássica, a figura de Sócrates, por exemplo, é a figura do primeiro filósofo, pai fundador e mártir ao mesmo tempo, não há, porém, dúvida nenhuma que seus concidadãos, que não eram bobos, condenaram Sócrates à morte por se tratar de mais um desses profissionais da palavra subversiva e

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habilidosa, de um sofista talvez mais refinado que os outros. Mas voltemos ao ideal platônico de um discurso transparente e verdadeiro. Ele também orienta toda escrita de Rousseau, só que agora sua garantia maior não provém da clareza da razão, mas sim da sinceridade — palavra-chave em Rousseau —, do sentimento. Enquanto em Platão ainda reina a exigência de uma palavra comum, racional, compartilhada na amizade e na temperança, uma palavra política que obedece tanto às leis divinas como às leis humanas, em Rousseau a possibilidade dessa ordem ao mesmo tempo querida pelos deuses e edificada pelos homens, dessa ordem comum ao cosmos e à polis, se desfez. O abismo entre natureza e cultura, physis e nomos, já presente na discussão entre Platão e a sofistica, parece, depois de vários séculos de cristianismo e sobretudo, de absolutismo político, intransponível. A coerência de um discurso não assegura a retidão das intenções do seu autor. Platão já sabia disso, mas propunha, para corrigir os efeitos de manipulação de uma coerência meramente formal, uma ordem mais elevada da razão, fruto do convívio e da discussão amigáveis de duas almas que abdicam dos seus interesses particulares para chegar a um consenso racional. Em Rousseau, à racionalidade formal, calculista e manipuladora não se opõe a explicitação paciente de um logos mais elevado, mas, sim, a intensidade do sentimento que une cada um consigo mesmo, longe dos olhos dos outros e das convenções i mpostas. Somente essa imediaticidade do sentimento de si, essa busca de uma sinceridade radical do eu em relação a si mesmo, garante a veracidade da linguagem. Nesse contexto, é característico que as primeiras palavras nasçam, segundo a teoria rousseauniana da origem das línguas, da efusão dos sentimentos individuais através do canto e não da discussão dialética entre varios parceiros diferentes. Em oposição às palavras sedutoras, lisonjeiras, enganadoras e a uma razão calculista, ligada a uma ordem social injusta, Rousseau tenta edificar um discurso sincero e um contrato social oriundo da vontade geral. No nosso contexto, podemos ressaltar a valorização rousseauniana não s6 da natureza — contra os artifícios da cultura —, mas também da linguagem sem palavras dos sentimentos contra as armadilhas da linguagem mais elaborada. Essa valorização absoluta da natureza primeira e originária leva Rousseau a elaborar uma teoria da deformação, do aviltamento, da decadência através da história e da cultura, em nítida oposição ao otimismo da filosofia da história iluminista, baseado na certeza de um progresso talvez lento, mas

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seguro. Em termos pedagógicos, os papéis se transformam radicalmente: em vez de corrigir a natureza infantil e de querer, o mais rapidamente possível, a tomar adulta, o educador do Emilio deve, pelo contrário, escutar com atenção a voz da natureza na criança, ajudar seu desenvolvimento harmonioso segundo regras ditadas não pelas convenções sociais, mas oriundas da maturação natural das falculdades infantis. Cito Émile:

Posons pour maxime incontestable que les premiers mouvements de la nature sont toujours droits: il n'y a point de perversité originelle dans le coeur humain. Il ne se trouve pas un seul vice dont on ne puisse dire comment et par y est entré. La seule passion naturelle d l'homme est l'amour de soi-même ou l'amour propre pris dans un sens étendu (...). Jusqu'à ce que le guide de l'amour-propre qui est la raison puisse naître, il importe donc qu'un enfant ne fasse rien parce qu'il est vu ou entendu, rien en un mot par rapport aux autres, mais seulement ce que la nature lui demande, et alors il ne fera rien que de bien . 6 ou il

Tradução "caseira": Aceitemos como máxima incontestável que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos: não há nenhuma perversidade originária no coração humano. Não se encontra nele nenhum vicio do qual não se possa dizer como e por que caminho penetrou ali. A única paixão natural ao homem é o amor de si mesmo ou amor-próprio, entendido no sentido amplo (...). Até que o guia do amor-próprio, que a razão, possa nascer, importa, portanto, que uma criança não faça nada porque é vista ou ouvida, numa palavra, nada em relação aos outros, mas somente aquilo que a natureza lhe pede e então não fará nada senão o bem. A "máxima incontestável" da retidão natural leva à defesa de uma educação que não só protege as crianças, mas as defende contra a dureza e a arbitrariedade da sociedade adulta. Uma primeira conseqüência é a necessidade de isolar os pequenos, de mantê-los afastados do mundo artificial da cultura, por exemplo numa bela propriedade de campo (no Emilio), num sítio, num jardim de infância ou numa 6

Jean-Jacques Rousseau, bulle (Paris: Édition Pléiade, 1969), vol. IV, p. 322.

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escola alternativa, para as crianças se desenvolverem natural e harmoniosamente, em constante proximidade com a natureza harmoniosa. Uma segunda conseqüência consiste em respeitar os ritmos naturais do crescimento, em particular, em respeitar justamente na criança sua ausência de linguagem articulada, de não apressá-la a aprender nem a andar, nem a falar, nem a escrever. O in-fans não é mais, pois, o rastro vergonhoso de nossa natureza corrupta e animal, mas sim, muito mais, o testemunho precioso de uma linguagem dos sentimentos autênticos e verdadeiros, ainda não corrompidos pela convivência mundana. Assim se elabora uma pedagogia do respeito à criança, da celebração de sua naturalidade, de sua autenticidade, de sua inocência em oposição ao mundo adulto pervertido onde reinam as convenções; isto é, entre outras, uma linguagem retórica falsa e uma racionalidade artificial, separada dos sentimentos originários. Simultaneamente se valoriza um espaço pedagógico à parte — a escola — e um tempo de formação ditado pelos ritmos naturais do crescimento infantil, portanto bastante comprido. Essa pedagogia, da qual não é preciso dizer o quanto nos impregna até hoje, acarreta uma infância prolongada, uma adolescência cada vez mais estendida, pelo menos para aquelas crianças que têm direito à infancia e não são jogadas o mais rapidamente possível no mercado de trabalho. Conhecemos à saciedade um dos seus maiores problemas: a saber, a inserção dessa eterna criança supostamente boa e natural na dura realidade adulta, cheia de obrigações impostas. Dos sofrimentos de Emílio crescido, apaixonado e infeliz até nossa relutância em passar da infância feliz para a resignação da vida adulta e do trabalho, o caminho é reto. Não podemos deixar de observar aqui que a educação ideal, tal qual Rousseau a imagina para Emilio, em particular esse respeito profundo pelos movimentos naturais do menino em oposição à arbitrariedade de regras sociais convencionais, que essa educação não é a mesma que receberá Sofia, apesar de seu belo nome: para as meninas — e para as mulheres em geral — o olhar do outro, isto é, as convenções sociais e o desejo masculino que Rousseau não parece perceber aqui como sendo arbitrários, o olhar do outro continua a ditar as regras de sua virtude. Essa contradição apontada por várias pesquisadoras, 7 nos remete não só aos "preconceitos machistas" de Rousseau, mas também à dificuldade de uma definição de natureza que não seja, predominan-

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temente, a imagem invertida e idealizada de um estado sociocultural do qual sofremos. Rousseau, aliás, sabe dessa dificuldade, como suas observações metodológicas no inicio do Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens o ressaltam. Em relação â felicidade perdida da infância, parece ser menos lúcido. Trata-se, pois, de assegurar na infancia o lugar privilegiado de uma felicidade e de uma proximidade da natureza que o adulto tem por missão sagrada não s6 reconhecer e defender, mas também reencontrar como fundamento intimo de si mesmo. Em outras palavras, Jean-Jacques precisa da criança feliz e inocente para poder acreditar e nos fazer acreditar no seu esforço de homem adulto, mas sincero, de autenticidade e de transparência. Ou ainda: a inocência infantil é a garantia da trans8 parência interior, tal qual a reivindica a escrita adulta das Confissões. Essas observações querem simplesmente indicar por que somos, me parece, ainda hoje, tão rousseaufstas, mesmo sem ter lido nenhuma Linha do Emilio. É que depois da infância —território do pecado—, Rousseau inaugurou um motivo muito mais forte hoje: a infancia como paraíso, perdido mas próximo. Numa época de "desencantamento" (Entzauberung der Welt de Max Weber) como a nossa, numa época que não consegue mais crer nem na vida depois da morte, nem no progresso histórico, nem na emancipação da sociedade, esforçamo-nos para, pelo menos, acreditar ainda na possibilidade da felicidade individual. E nisso a construção de uma infância idealizada nos ajuda: fomos, sim, crianças felizes e inocentes, e nossos filhos só podem (e devem) ser, igualmente, belos, alegres, ingênuos e despreocupados. E mesmo que nossa vida adulta profissional, social e sentimental seja decepcionante e frustrante, no mínimo devemos ser pais amorosos, abnegados, companheiros, enfim, pais (sobretudo mães!) exemplares, como se, de repente, no reino encantado da infância e da filiação, pudéssemos nos livrar das mágoas e das insuficiências que carregamos na existência restante. Como diz Contardo Calligaris no número do "Mais!" citado no início de minha exposição: Delas (das crianças) esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi, a 7

INFANCIA

SETE AULAS SOB RE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

Elisabeth De Fontenay, "Pour Émile, Sophie ou l'invention du ménage". Em Temps Modernes, maio de 1976, n. 38, e Badinter, op. cit. 8 A esse respeito, ver o bellssimo livro de Jean Starobinski, A Transparência e o Obstáculo (São Paulo: Companhia das Letras, 1994).

E PENSAMENTO : 1B1

nossa, mas graças a qual podemos amar a n6s mesmos. Olhamos para elas como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos. A criança é a caricatura da felicidade impossível: vestida de feliz, isenta das fadigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupada.

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Não quero concluir com essa denúncia, talvez ela mesma bastante complacente, do nosso narcisismo em relação â infancia, em relação as crianças, em particular a nossos filhos. Gostaria, por fim, de apontar para algumas pistas que a reflexão filosófica contemporânea abre nesse campo de ressonâncias mútuas entre infância e pensamento. Penso especificamente em textos de Walter Benjamim, de JeanFrançois Lyotard e de Giorgio Agamben. 10 O belo livro de Walter Benjamin não é, propriamente, uma autobiografia. Não se trata, para Benjamin, de contar sua infância ou de resguardar lembranças felizes. Sobretudo não se trata de idealizá-la, de descrever um paraíso perdido que o adulto possa ressuscitar pela escrita. O que interessa a Benjamin11 é tentar elaborar uma certa experiência (Erfahrung) cam a in-fância. Essa experiência é dupla: primeiro, ela remete sempre ã reflexão do adulto que, ao lembrar o passado, não o lembra tal como realmente foi, mas, sim, somente através do prisma do presente projetado sobre ele. Essa reflexão sobre o passado visto através do presente descobre na infância perdida signos, sinais que o presente deve decifrar, caminhos e sendas que ele pode retomar, apelos aos quais deve responder pois, justamente, não se realizaram, foram pistas abandonadas, trilhas não percorridas. Nesse sentido, a lembrança da infância não é idealização, mas, sim, realização do possível esquecido ou recalcado. A experiência da infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente, isto é, releitura crítica do presente da vida adulta. 9 Suplemento Mais! da Folha de S. Paulo, 24/07/1994, p. 6/4. 10 Walter Benjamin, "Berliner Kindheit um 1900" em Gesammelte Schriften W-1 (Frankfurt am Main: suhrkamp, 1972). Trad. brasileira em Obras Escolhidas II (são Paulo: Brasillense, 1987). J.F. Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants, op. cit. Do mesmo autor, ver também L'inhumain, (Paris: Galilée, 1988). Giorgio Agamben, Enfance et histoire (Paris: Fayot, 1988). l i Ver a "Introdução" do próprio Benjamin para a última versão da "Infancla Berlinense", no volume VIT das Gesammelte Schriften.

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Há uma segunda dimensão dessa experiência crítica da infância. Benjamin não ressalta a ingenuidade ou a inocência infantis, mas, sim, a inabilidade, a desorientação, a falta de desenvoltura das crianças em oposição à "segurança" dos adultos. Mas essa incapacidade infantil é preciosa: não porque ela nos permite lançar um olhar retrospectivo comovido e cheio de benevolência sobre os coitadinhos que fomos, ou que nos cercam hoje. Mas porque contém a experiência preciosa e essencial ao homem do seu desajustamento em relação ao mundo, da sua insegurança primeira, enfim, da sua não-soberania. Essa fraqueza infantil também aponta para verdades que os adultos não querem mais ouvir: verdade política da presença constante dos pequenos e dos humilhados que a criança percebe, simplesmente, porque ela mesma, sendo pequena, tem outro campo de percepção; ela vê aquilo que o adulto não vê mais, os pobres que moram nos porões cujas janelas beiram a calçada, ou as figuras menores na base das estátuas erigidas para os vencedores. A incapacidade infantil de entender direito certas palavras, ou de manusear direito certos objetos também recorda que, fundamentalmente, nem os objetos nem as palavras estão ai somente á disposição para nos obedecer, mas que nos escapam, nos questionam, podem ser outra coisa que nossos instrumentos dóceis. ] As imagens da infância evocadas por Benjamin tentam pensar aquilo que, profundamente, jaz neste prefixo in — da palavra in-fancia. O que significa para o pensamento humano essa ausência originária e universal de linguagem, de palavras, de razão, esse antes do logos que não é nem silêncio inefável, nem mutismo consciente, mas desnudamento e miséria no limiar da existência e da fala? Retomando esta questão, Giorgio Agamben nos indica que essa experiência inefável da in-fãncia — inefável não porque seria um início paradisíaco além das palavras, mas porque a in-fãncia está aquém das palavras, ao mesmo tempo sem palavras, sem linguagem e, porém, condição de possibilidade de sua eclosão —, que essa experiência da infância "exclui que a linguagem possa se apresentar como totalidade e verdade" 13 Nem domínio do pecado nem jardim do paraíso, a infância habita muito mais, como seu limite interior e fundador, nossa linguagem e nossa razão humanas. Ela é o signo sempre presente de que a humanidade do homem não repousa somente sobre 12 A esse respeito, ver J. M. Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin (São Paulo: Perspectiva, 1997), cap. IV. 13 Enfance et histoire, op. cit. p. 66.

I NFANCIA E

PENSAMENTO :

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sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas, sobre esse vazio que nossas palavras, tais como fios num motivo de renda, não deveriam encobrir, mas, sim, muito mais, acolher e bordar. É porque a in-fãncia não é a humanidade completa e acabada, é porque a in-fãncia é, como diz fortemente Lyotard, in-humana, que, talvez, ela nos indique o que há de mais verdadeiro no pensamento humano: a saber, sua incompletude, isto é, também, a invenção do possível.

FONTES

I. O Infcfo da História e as Lágrimas de Tucidides Publicado na revista Margem, n.l, publicação da Faculdade de Ciências Sociais da PUC/SP e dos Programas de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e História (São Paulo: EDUC, março de 1992).

II. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras Texto apresentado para uma mesa-redonda no Sedes Sapientiae, em outubro de 1979, São Paulo e, mais tarde, para a Semana de Filosofia da PUC/SP em outubro de 1984. Foi publicado nos Cadernos PUC/SP, n. 21, "Filosofia, Linguagem, Arte" (São Paulo: EDUC, 1985). O original em francês com o post-scriptum em anexo foi publicado na revista Les Cahiers du Grif (Paris: Éditions Tierce, 1992), "Provenances de la pensée. Femmes/Philosophie".

III. Morte da Memória, Memória da Morte: da Escrita em Platão Texto apresentado no Colóquio Interdisciplinar de Estudos Gregos, PUC/SP, em 27 de abril de 1994, e, igualmente, como Conferência no Instituto de Estudos Avançados da USP, em 8 de novembro do mesmo ano. Inédito. A versão original francesa deve ser publicada em breve na revista Etudes Philosophiques (Paris: PUF).

IV. Dizer o Tempo Texto apresentado no Congresso de Literatura e História na UNICAMP, na mesa-redonda de 26 de setembro de 1994, sobre "A construção do tempo e da memória na história e na literatura". Publicado no número especial consagrado ao Tempo dos Cadernos de Subjetividade, n. 1/2, 1994, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clinica da PUC/SP.

V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de Adorno e Benjamin Texto apresentado no Ciclo de Conferências sobre a Escola de Frankfurt, realizado na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus

1 86: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMÓRIA E HISTÓRIA

de Araraquara, em 1990. Publicado na revista Perspectiva, Editora da UNESP, n. 16, 1993.

VI. Do Conceito de Razão em Adorno Texto apresentado no Colóquio de Filosofia para os 80 anos da formação do curso de Filosofia da PUC/SP, entre 15 e 18 de agosto de 1988. Publicado no livro coletivo que reúne as contribuições desse colóquio: Um passado revisado: 80 anos do Curso de Filosofia da PUC/SP, org. Salma Tannus Muchail (São Paulo: EDUC, 1992).

VII. O Nino, a Brisa e a Tempestade: os Anjos em Walter Benjamin Versão brasileira do artigo publicado pela revista Autrement, Paris, março de 1996, n. 162, "Le réveil des anges".

Jeanne Marie Gagnebin nasceu em Lausanne (Suíça) em 1949. Depois de uma formação clássica em filosofia e literatura em Genebra, concluiu seu doutorado na Alemanha com uma tese sobre a filosofia da história de Walter Benjamin. Desses anos todos provém tanto um apego ã tradição clássica quanto uma inquietação, nascida da ebulição dos anos pós-68, que questiona essa mesma tradição. Radicada

Apêndices

I. Baudelaire, Benjamin e o Moderno Resenha publicada no Caderno "Letras" da Folha de S. Paulo, 7 de outubro de 1989.

II. O Camponês de Paris: Uma Topografia Espiritual Posfácio a Aragon, O Camponês deParis. Tradução de Flávia Nascimento (Rio de Janeiro: Imago, 1996).

III. Infdncia e Pensamento Conferência apresentada no seminário "Infáncia, Escola, Modernidade", promovido pela Universidade Federal do Paraná e pela Secretaria de Estado da Educação, em Curitiba, no dia 22 de maio de 1995.

no Brasil desde 1978, Jeanne Marie Gagnebin é professora titular de filosofia da PUC/SP e professora Livre-docente de teoria literária da Unicamp. Publicou, entre outros, História e Narração em Walter Benjamin (Perspectiva, 1994).

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