Linguagem, Escrita e Alfabetização [Educacao] 8572447202, 9788572447201

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Portuguese Brazilian Pages 192 [194] Year 2012

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Table of contents :
SUMÁRIOApresentação
APRESENTAÇÃO1.
REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEMA
BREVE HISTÓRIA DO MEIO DE EXPRESSÃO ESCRITAOS
ESCRITA E ESCOLAA
A ORTOGRAFIA DO PORTUGUÊS: BREVE HISTÓRICOO
CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA GRÁFICO DO PORTUGUÊSO
REPRESENTAÇÃO DAS CONSOANTESRELAÇÕES
REPRESENTAÇÃO DAS VOGAIS E DOS DITONGOSEnquanto
QUADROS DE SÍNTESEApresentamos
CONSIDERAÇÕES FINAISNo
APÊNDICEProcuramos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAbaurre,
O AUTORCarlos
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Linguagem, Escrita e Alfabetização [Educacao]
 8572447202, 9788572447201

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LINGUAGEM ESCRITA E ALFABETIZAÇÃO

Conselho Acadêmico Ataliba Teixeira de Castilho Carlos Eduardo Lins da Silva José Luiz Fiorin Magda Soares Pedro Paulo Funari Rosângela Doin de Almeida Tania Regina de Luca

Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia sem a autorização escrita da editora. Os infratores estão sujeitos às penas da lei.

A Editora não é responsável pelo conteúdo deste livro. O Autor conhece os fatos narrados, pelos quais é responsável, assim como se responsabiliza pelos juízos emitidos.

Consulte nosso catálogo completo e últimos lançamentos em www.editoracontexto.com.br.

LINGUAGEM ESCRITA E ALFABETIZAÇÃO

CARLOS ALBERTO FARACO

Copyright © 2012 do Autor Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.) Montagem de capa Gustavo S. Vilas Boas Diagramação Estúdio Kenosis Preparação de textos Lilian Aquino Revisão Flávia Portellada Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Faraco, Carlos Alberto Linguagem escrita e alfabetização / Carlos Alberto Faraco. – 1. ed., 1ª reimpressão – São Paulo : Contexto, 2019. Bibliografia. ISBN 978-85-7244-720-1 1. Alfabetização 2. Educação de crianças 3. Escrita 4. Letramento 5. Linguagem – Aquisição 6. Português – Estudo e ensino 7. Prática de ensino I. Título. 12-04550

CDD-370.72

Índices para catálogo sistemático: 1. Alfabetização : Apropriação da linguagem escrita : Educação 370.72

2019 Editora Contexto Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa 05083-030 – São Paulo – sp pabx: (11) 3832 5838 [email protected] www.editoracontexto.com.br

Dedico esta nova edição do livro às seguintes professoras da rede municipal de educação de Curitiba, com quem tive a honra de trabalhar, na década de 1980, na grande Aventura da alfabetização. Suas preocupações pedagógicas, suas questões linguísticas e, principalmente, seu compromisso político com a escola pública fizeram toda a diferença e ainda repercutem positivamente no meu trabalho: Carmen Sigwalt Maria de Fátima Targino Cruz Maria do Rocio Virmond Torres Martha Christina F. Z. B. de Morais Rosângela Rosinski Lima Rosicler Schafaschek Sonia Monclaro Virmond.

SUMÁRIO

Apresentação

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Reexões sobre a linguagem

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Breve história do meio de expressão escrita

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Escrita e escola

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A linguagem verbal .......................................................21 As crianças e a linguagem verbal ..............................27 A origem da linguagem verbal ...................................33 Estrutura e funcionamento da língua .......................38 A variação linguística ...................................................44 A linguagem verbal escrita .........................................47

Os sistemas de escrita ................................................53 Os caminhos da escrita alfabética ............................60 A escrita e a cultura letrada ......................................61 Filólogos, gramáticos, linguistas .................................66

A educação linguística .................................................75 A situação brasileira ....................................................80 A mídia impressa e as outras mídias ........................83 Para um projeto pedagógico letrador .....................85 Formação dos professores ...................................... 103

A ortograa do português: breve histórico

107

O período medieval.................................................. 107 O Renascimento........................................................ 108

A ortograa pseudoetimológica ............................ 110 O século XX ................................................................ 116 O Acordo Ortográco de 1990 ............................ 117

Características do sistema gráco do português 121 Representação das consoantes

131

Representação das vogais e dos ditongos

151

Quadros de síntese

165

Considerações nais Apêndice Referências bibliográcas O autor

179 183 189 192

Relações biunívocas (100% regulares) .................. 131 Relações cruzadas previsíveis (regularidades contextuais) ................................................................ 133 Relações cruzadas parcialmente previsíveis e parcialmente arbitrárias........................................ 140 Relações cruzadas totalmente arbitrárias............ 148

Representação das vogais orais ............................. 152 Representação das vogais nasais ............................ 155 Representação dos ditongos .................................. 157 Representação dos ditongos decrescentes... 157 Representação dos ditongos crescentes ....... 161 Representação dos tritongos ................................. 163 Consoantes................................................................. 165 Vogais orais ................................................................. 167 Vogais nasais ............................................................... 168 Semivogais ................................................................... 169 Letras ........................................................................... 170 Dígrafos ....................................................................... 173 Nota sobre as letras k, w, y ..................................... 173

APRESENTAÇÃO

1. Este livro, como qualquer outro, tem sua história. Ela começa no fim da década de 1970. Um grupo de professoras alfabetizadoras da rede municipal de ensino de Curitiba (pr), atuando numa escola da periferia urbana, decidiu repensar sua prática pedagógica. Os procedimentos metodológicos a que estavam habituadas não apresentavam os resultados esperados. A maioria dos alunos demorava muito a se alfabetizar e uns tantos chegavam ao fim do primeiro ano sem um domínio mínimo do sistema alfabético, da leitura e da escrita. A frustração das docentes era grande, mas maior era a vontade de superar as dificuldades que enfrentavam. Todas tinham clareza de que a alfabetização não é um bicho de sete cabeças. Tinham também uma atitude positiva quanto à capacidade de aprendizagem dos alunos. Reconheciam as crianças como seres cognitivamente ativos e plenamente capazes de aprender a escrita. Faltava encontrar os caminhos que desencadeassem a dinâmica cognitiva numa direção eficaz. Entrei no grupo convidado por uma das professoras, que era minha aluna no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná. Fazia comigo a disciplina de Linguística i, na qual eu desenvolvia uma introdução ao estudo da linguagem verbal. Um dos temas centrais era justamente as características diferenciadoras da expressão oral e da expressão escrita.

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Esse tema servia de base para o estudo posterior de fonética e fonologia. Ao cabo deste, desembocávamos sempre na discussão de questões referentes à alfabetização, não só como consequência óbvia da temática estudada, mas também porque vários dos alunos trabalhavam como docentes no ensino de primeira à quarta série e traziam suas dúvidas e problemas pedagógicos concretos para uma disciplina que tratava de temas que se relacionavam diretamente com seu cotidiano docente. A professora-aluna entendeu que suas colegas da escola municipal se beneficiariam, em sua busca de alternativas pedagógicas para seu trabalho de alfabetizadoras, se pudessem compartilhar o saber que desenvolvíamos na disciplina, ou seja, um saber básico sobre a linguagem verbal, sua expressão escrita, a lógica da escrita alfabética, as características do sistema ortográfico do português e suas implicações pedagógicas. Comecei, então, a participar do grupo, aprendendo com as experiências, dificuldades e reflexões das alfabetizadoras, oferecendo-lhes, sempre que necessário, contribuições do saber linguístico para suas questões e construindo junto com elas as alternativas didático-pedagógicas. Muitas foram as reuniões, os debates, as sessões de estudo e os experimentos em sala de aula. Nestes, muitos foram os erros (buscou-se sempre aprender com eles), mas também muitos foram os acertos. Logo de início foi ficando claro que os alunos daquela escola não se encaixavam no perfil do aluno tradicional, ou seja, do aluno que vinha da classe média urbana, tendo pais com escolarização básica completa e chegando à escola familiarizado com a escrita, com seus usos e funções sociais e, muitas vezes, já conhecendo o alfabeto e até mesmo lendo, como resultado da vivência familiar com a escrita e da experiência da pré-escola.

Os alunos com que as professoras trabalhavam na escola municipal vinham da classe trabalhadora, habitavam um bairro da periferia urbana – a periferia que começava a crescer aceleradamente e que transformaria, em pouco tempo, a cara das nossas grandes cidades. Seus pais não tinham escolaridade básica completa. As mães eram, em geral, analfabetas ou com um ou dois anos de escola. Os pais tinham, em geral, mais tempo de escola. Alguns tinham concluído a quarta série; nenhum, a oitava. Em consequência, os alunos chegavam à escola sem uma vivência familiar significativa com a escrita e sem ter tido acesso à pré-escola. Perceber esse quadro socioeconômico e cultural foi fundamental para o grupo definir um princípio pedagógico de base: o processo de alfabetização deveria acontecer num ambiente de imersão na cultura escrita. O importante era não começar logo a trabalhar com o alfabeto, mas ir ambientando as crianças com o mundo da escrita como atividade social significativa. Era preciso preencher a lacuna que estes alunos traziam decorrente da falta de uma experiência substancial com a escrita anteriormente à entrada na escola. Em outros termos, era preciso adaptar os procedimentos didáticos a alunos que começavam a ter um contato efetivo com o mundo da escrita apenas aos 7 anos. Estavam, portanto, neste ponto específico, em grande desvantagem em relação àqueles que desde tenra idade tinham esse contato, ouvindo, por exemplo, histórias lidas para eles pelos adultos na hora de dormir; vendo seus pais lendo ou escrevendo regularmente; participando de jogos com as letras do alfabeto a começar pela clássica brincadeira com a primeira letra do nome da criança, dos pais, dos irmãos; ganhando e manuseando livros; manuseando revistas presentes em seu ambiente familiar e assim por diante.

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Essa desvantagem saltava aos olhos em especial das professoras que, além de trabalharem naquela escola municipal, alfabetizavam também em escolas que atendiam alunos de perfil escolar tradicional. Se estes últimos rapidamente se alfabetizavam, aqueles estavam sempre muito atrás. Mais tarde, incorporou-se ao vocabulário pedagógico o termo letramento como resultado de elaborações teóricas que procuravam abrigar uma compreensão ampla das práticas de escrita, das suas funções sociais e de seus efeitos cognitivos e culturais (cf. Soares, 1998 e 2003). No início da década de 1980, estávamos ainda distantes dessas discussões. Mas o trabalho e as reflexões que fazíamos nos levaram a uma compreensão que distinguia claramente a alfabetização em sentido estrito (o conhecimento do alfabeto e da lógica e mecanismos da escrita alfabética) da imersão na cultura escrita em suas múltiplas faces e no domínio de suas práticas socioculturais (a que mais tarde se deu o nome de letramento). A alfabetização – tradicional tarefa da escola – passou a ser entendida como uma parte do processo muito mais amplo do letramento. Nesse sentido, os eventos letradores antecedem a alfabetização, acompanham os momentos específicos de aprendizagem do alfabeto e do sistema alfabético e vão muito além desses momentos específicos. A alfabetização apenas fornece a chave do sistema gráfico. Não esgota em si o processo do letrar, que é muito mais amplo e se realiza em múltiplos eventos socioculturais, não apenas escolares. A criança que mergulha nas práticas de escrita desde tenra idade alcançará, por volta dos 5 anos, o momento em que estará madura para se alfabetizar, adquirindo a chave do sistema gráfico e dominando-o para poder participar com autonomia dos inúmeros eventos de letramento que se seguirão em sua vida escolar ou não.

Já as crianças que vão ter um contato mais efetivo com a escrita apenas ao entrar na escola exigirão, antes de começar a decifrar o sistema gráfico propriamente dito, experiências letradoras que lhes tornem significativa a escrita e despertem nelas a necessidade (e, consequentemente, o desejo) de aprender. São experiências que antecedem e acompanham o processo de alfabetização e se ampliam à medida que os alunos vão adquirindo autonomia nas suas relações com o sistema gráfico. Desse entendimento nasceram várias iniciativas das quais citamos algumas a seguir. As salas foram recobertas com material escrito: o alfabeto em lugar de destaque, o calendário (atualizado todos os dias com a participação dos alunos), o mural da “palavra do dia” (que desde o primeiro dia permitia, além da ativação da curiosidade e da percepção visual das crianças, uma conversa sobre temas evocados por ela), o espaço das quadrinhas, das parlendas e das letras de música (lidas para eles e com eles todos os dias, trocadas uma vez por semana, incentivando assim a pseudoleitura como atividade motivadora do desejo de aprender e da progressiva percepção visual significativa do escrito e de sua relação com a fala), o cantinho dos livros e das revistas (para serem manipulados à vontade em diferentes momentos do dia), o local com a foto de alguma placa de rua da redondeza da escola (farmácia, açougue, mercearia, etc.), a cartela e o crachá com o nome de cada um dos alunos (que serviria como um dos pontos de apoio para a iniciação ao alfabeto), o mural para fixação de material escrito coletado pelos alunos em seu cotidiano (rótulos, jornais, panfletos, embalagens, cartazes, publicidades, etc.) ou trazido pela professora, e assim por diante. Diariamente, passou-se a ler para os alunos uma história, um poema ou uma notícia de jornal, atividade que permitia não só aproximar os alunos dos sentidos e funções sociais da escrita, mas também motivavam várias atividades com a oralidade.

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Essas atividades eram complementadas com a audição e o canto de músicas infantis, com a hora da brincadeira (em que se recuperavam as tradicionais brincadeiras infantis que a nossa cultura criou historicamente e nas quais se exercitam ludicamente o movimento, o ritmo e o controle motor que participam direta ou indiretamente do ato de escrever), com a hora das atividades de desenho, recorte e colagem (com a professora escrevendo na folha o que a criança dizia ter desenhado), de escrita no quadro pela professora de um evento narrado pelos alunos, e assim por diante. Em meio a essas e outras atividades com a escrita, começava-se progressivamente o trabalho com o alfabeto, tendo os nomes de cada um, considerando sua força significativa, como ponto de partida. É interessante lembrar que vivia-se o tempo em que o discurso pedagógico estava pondo as cartilhas sob crítica cerrada. Houve quem entendesse que essa crítica (que focava principalmente o artificialismo dos textos e pseudotextos das cartilhas) era extensiva ao trabalho sistemático com o alfabeto. Muitos até deixaram de fazer esse trabalho sistemático, com óbvios resultados negativos. Nesse equívoco o grupo nunca caiu. Desde o início estava claro que não era possível aos alunos adquirir a chave da escrita alfabética sem um conhecimento das letras e uma compreensão da lógica do sistema, o que exigia um trabalho sistemático com o alfabeto, com as chamadas famílias silábicas e com o manuseio, sintético e analítico, de palavras, sentenças e textos. Tinha-se clareza de que este trabalho sistemático não pressupunha a adesão estrita a um único procedimento metodológico. Primeiro porque o grupo assumia o princípio de que nos processos cognitivos trilhamos muitos caminhos possíveis e não um único. É, por isso, necessário oferecer sempre ao aprendiz

vários modos possíveis de achegar-se ao objeto do conhecimento, de experimentá-lo e de manejá-lo. Nesse processo, o adulto é, claro, um interlocutor privilegiado (porque já domina o saber a ser dominado pela criança) e pode, portanto, organizar situações que vão permitir à criança internalizar esse saber, isto é, desenvolver, em meio a um processo cooperativo com o professor e com os seus pares, um controle consciente sobre uma nova função ou sistema conceitual. Nesse sentido, nunca se abriu mão do papel mediador do professor. Além disso, o grupo desenvolveu uma compreensão ampla do sistema gráfico do português, percebendo suas duas grandes balizas: a transparência fonológica (relações regulares e previsíveis entre letras e fonemas) e a memória etimológica (característica que introduz diversos graus de irregularidade e imprevisibilidade na nossa ortografia), como vamos explorar adiante neste livro. Se duas são as grandes balizas constitutivas do sistema gráfico do português, seu aprendizado não pode se basear em um único procedimento metodológico. Assim, ao lado de atividades típicas do chamado método sintético, desenvolviam-se atividades típicas do chamado método global. Ao lado de atividades dirigidas de escrita, utilizavam-se práticas de produção escrita espontânea. Se havia um roteiro básico de apresentação do alfabeto (por exemplo, primeiro as vogais e, depois, as consoantes e as famílias silábicas; primeiro as sílabas mais simples e comuns e, depois, as mais complexas), havia também desvios, atalhos, antecipações, complementos e readequações decorrentes das próprias ações cognitivas dos alunos. Se se aproveitava a economia de meios que a transparência fonológica da ortografia portuguesa favorece, não se deixava de trabalhar com os efeitos da memória etimológica.

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Os aspectos metodológicos relacionados ao conhecimento do sistema alfabético eram devidamente apreciados e ponderados. No entanto, não eram entendidos pelo grupo como constituindo o cerne dos problemas do processo de alfabetização. Assumia-se que a centralidade estava mais na efetiva articulação entre a concepção de linguagem escrita como atividade sociointeracional e significativa e seu ensino do que exclusivamente nas estratégias metodológicas para se chegar ao domínio do sistema alfabético. Este domínio não era, de modo algum, minimizado ou secundarizado, mas também não era posto no centro dos processos mais amplos de desenvolvimento da leitura e da escrita. Entendia-se que ter a chave do sistema alfabético é condição necessária, embora não suficiente para o domínio da linguagem escrita. Por isso, o trabalho focado no sistema alfabético não se fazia desvinculado de atividades significativas com a escrita. Nesse sentido, tinha-se a compreensão de que a ação didático-pedagógica não podia se pautar pelo pressuposto de que tudo aqui se resumiria ao domínio mecânico do sistema gráfico. O foco do processo deveria ser criar condições para que os alunos viessem a dominar a linguagem escrita como uma atividade sociointeracional significativa, ou seja, apreender a escrita como atividade humana (tendo, portanto, claros condicionantes sóciohistóricos), interacional (dá-se entre pessoas socialmente organizadas; destina-se a um interlocutor real ou presumido), significativa (produz significações para o interlocutor e pressupõe uma resposta compreensiva) e materializada na substância gráfica. O grupo sempre teve claro que, mesmo quando o trabalho escolar se concentra no domínio do sistema gráfico, não se pode perder de vista que o objetivo é o domínio da leitura e da escrita; e que, portanto, o trabalho com o sistema gráfico deve estar sempre subordinado a atividades significativas de escrita.

2. Pelas vicissitudes da história, esse grupo de alfabetizadoras veio a ocupar cargos de direção da rede municipal de ensino de Curitiba, o que redundou na difusão de suas discussões, formulações e práticas para outros muitos colegas que atuavam em situações muito semelhantes e enfrentavam idênticas dificuldades. Nesse período, já na segunda metade da década de 1980, o grupo produziu o documento Algumas diretrizes para a alfabetização, que tinha como objetivo oferecer subsídios teórico-práticos às escolas municipais de Curitiba. Esse documento foi publicado no jornal Escola Aberta, da Secretaria Municipal da Educação de Curitiba, ano v, n. 12, agosto de 1988, p. 6-13. Foi nesse momento que as professoras sentiram a necessidade de ter um conhecimento mais sistematizado da ortografia do português. Queriam com isso ter as bases para melhor organizar seu ensino (já que ele seguia um roteiro, mas não estava num trilho estreito, na medida em que ia respondendo também às demandas postas pelas circunstâncias). Queriam ter subsídios para entender as dificuldades ortográficas de seus alunos (boa parte das quais são sistemáticas e previsíveis) e, assim, auxiliá-los a superá-las. Nasceu, então, uma apostila na qual procurei apresentar, numa linguagem não técnica, informações sobre o sistema gráfico do português. O texto não se destinava a especialistas em estudos linguísticos. Fazia deliberadamente algumas simplificações descritivas e terminológicas, justificadas pelos objetivos e pelos interlocutores presumidos. Era, de fato, um exercício de divulgação científica. Tomei como referência, na ocasião, trabalhos como o de Myrian Barbosa da Silva (Leitura, ortografia e fonologia. São Paulo: Ática, 1981), o de Leda Bisol et al. (O sistema fonológico e a aprendizagem da escrita. Porto Alegre: ufrgs, 1984 – mimeo.) e,

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principalmente, o de Miriam Lemle (Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1987). Procurei ampliar as informações contidas neste último, bem como reelaborar algumas de suas interpretações dos fatos.

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3. No início dos anos 90, o prof. Ataliba T. de Castilho coordenou, na Editora Contexto, a coleção “Repensando a língua portuguesa” e me incluiu entre os autores convidados. Apresentei-lhe, então, a apostila que havia preparado para a rede municipal de ensino de Curitiba e ela foi aprovada e publicada, com algumas modificações, em 1992 com o título Escrita e alfabetização. Com o passar do tempo, estudantes e professores que utilizaram o livro apontaram a necessidade de ele ser complementado com informações sobre a língua escrita e os diversos sistemas de escrita, com uma breve história da ortografia do português (o que se tornou ainda mais pertinente com a entrada em vigor, em 2009, das disposições do Acordo Ortográfico de 1990 – fato que suscitou dúvidas, curiosidades e alguma polêmica). Resolvi, então, propor à Editora Contexto uma reescrita do livro de 1992, ampliando seus conteúdos. A proposta foi bem acolhida e o resultado é este que ora entrego aos colegas professores, aos estudantes e ao público em geral. O objetivo principal do livro continua o mesmo, ou seja, descrever, em linguagem não técnica, as características do sistema gráfico do português: fazer uma apresentação panorâmica desse sistema para que o alfabetizador possa organizar com autonomia suas atividades didático-pedagógicas de sistematização desse saber, possa interpretar as dificuldades ortográficas de seus alunos e possa conduzir adequadamente sua superação. Essa descrição, porém, não está mais isolada de outros conteúdos pertinentes, como na primeira versão do livro. Chega-se

agora a ela depois de um percurso com informações gerais sobre a linguagem verbal, a linguagem escrita, os sistemas de escrita, a cultura letrada, as relações da escola com a cultura letrada e as perspectivas de uma escola unitária e letradora, além de um breve histórico da ortografia do português. O livro ficou mais ambicioso, mas também (penso eu) mais útil para os colegas professores e futuros professores. Curitiba, novembro de 2011. 19

REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM

A LINGUAGEM VERBAL A linguagem verbal é marca constitutiva e, portanto, característica básica da espécie humana. Humanidade e linguagem verbal estão, assim, numa relação intrínseca de mútua dependência. Outras espécies animais têm também suas linguagens. No entanto, o estudo comparado da linguagem verbal e das linguagens dos outros animais deixa evidente que há diferenças profundas entre elas. E não se trata apenas de diferenças quantitativas, mas qualitativas: as linguagens dos outros animais não se aproximam nem remotamente da linguagem verbal. Não podem sequer ser consideradas como uma versão mais simples desta. Para deixar isso claro, basta lembrar algumas das características da linguagem verbal: a) ela permite a articulação de um número infinito de enunciados (tecnicamente, dizemos que a linguagem verbal faz uso infinito de meios finitos); b) seus signos – seja os da articulação sonora (fonemas, sílabas), seja os da articulação morfossintática (morfemas, palavras, locuções e sentenças) – são discretos, isto é, são decomponíveis

e recombináveis ao infinito (tecnicamente, dizemos, então, que a linguagem verbal é dotada de dupla articulação e de recursividade); c) seus signos não estão limitados à situação imediata: a linguagem verbal permite aos seres humanos falar do passado – dá-lhes, portanto, a condição da memória –; permite-lhes falar do futuro e de todo o inexistente; permite-lhes falar do que está na situação de comunicação e do que está dali ausente ou distante; permite-lhes mentir e criar realidades imaginárias; 22

d) seus signos admitem a significação figurada e, em geral, são semanticamente indeterminados, isto é, completam sua significação numa relação com as situações de uso em que ocorrem. Em outras palavras, os signos da linguagem verbal não têm uma significação una e fixa, mas deslizam entre múltiplas possibilidades significativas determinadas a cada nova situação de comunicação. É por essa indeterminação semântica que atendem as demandas expressivas postas pela variabilidade e imprevisibilidade da vida humana. As linguagens dos outros animais, em contrapartida, não apresentam nenhuma dessas características. a) elas têm um número sempre finito de enunciados; b) seus signos são massivos (isto é, não são decomponíveis e recombináveis; são desprovidos, portanto, da dupla articulação e da recursividade; só o todo do enunciado significa); c) seus signos respondem apenas à situação imediata e são semanticamente determinados, ou seja, carregam uma significação única e fixa (são unívocos) – indicam fonte de alimento ou perigos momentâneos, sinalizam domínio territorial ou ativam ritos de acasalamento.

Em razão disso é que se diz que enquanto o ser humano substitui a imediação da experiência pela mediação dos signos, os outros animais vivem exclusivamente na imediação da experiência. Algumas vezes lemos na imprensa notícias de que foram descobertas linguagens de alguns animais (pássaros, em especial) com a propriedade da recursividade. No entanto, em nenhuma dessas vezes se demonstrou suficientemente a alegação e, mais importante, nunca se demonstrou que a recursividade, nestes casos, se de fato existente, redunda, efetivamente, em infinitude. São frequentes também notícias de que alguns primatas em situação de laboratório adquiriram, por indução humana, uma linguagem não fônica (utilizando, por exemplo, artefatos com formas e cores diferentes) com a qual produzem alguns enunciados expressivos e adequados à situação experimental. De novo, por mais curiosos que estes eventos possam ser (e interessantes quanto às capacidades cognitivas não humanas), nenhum desses animais vai além de alguns poucos enunciados, ou seja, não alcançam nunca a infinitude da linguagem humana, nem a autonomia expressiva que a criança alcança sem qualquer treino. É preciso, portanto, cautela diante do efetivo sentido dessas pesquisas, nunca perdendo de vista as enormes diferenças quantitativas e qualitativas da linguagem humana frente à linguagem dos outros animais. Além disso, nós humanos somos seres de muitas linguagens. Expressamo-nos também pelos gestos, pelas expressões faciais, pelas posturas corporais, pelas imagens fixas e em movimento, pela música e assim por diante. Estas linguagens aparecem isoladamente (por exemplo, uma música, um quadro, o logotipo de uma empresa, uma mímica) ou em combinação: dançamos ao som de uma música; produzimos

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um filme publicitário que combina imagens e música. E podemos combinar todas estas linguagens com a linguagem verbal: musicamos um poema; compomos a letra para uma música; combinamos a fala com gestos e expressões faciais; cantamos (combinando o corpo com a música e a linguagem verbal); fazemos um filme (nele combinamos imagens, música e linguagem verbal); e assim por diante. Usamos essas linguagens, combinadas ou não, tanto em situações práticas do cotidiano, quanto em atividades artísticas. A mímica, por exemplo, está nas nossas brincadeiras e na nossa comunicação face a face (quando não podemos ou não queremos falar, mas precisamos ou queremos passar uma mensagem para alguém próximo de nós); mas é também uma das mais antigas atividades artísticas da humanidade e visível ainda hoje nas nossas ruas e praças ou nos nossos teatros. Combinamos imagens e palavras na publicidade impressa (outdoors, revistas e jornais), mas, com a mesma combinação de linguagens, criamos histórias em quadrinhos. Fazemos publicidade na televisão combinando imagens, música e palavras, e usamos a mesma combinação de linguagens para criar um filme ou um desenho animado. Usamos palavras escritas para deixar um bilhete avisando que não viremos jantar, mas também para compor poemas. Utilizamos cores para identificar diferentes estações do metrô e para ordenar o tráfego de veículos nas esquinas, mas também para pintar quadros ou grafitar paredes. Aproveitamos o movimento corporal e a música para apresentar comercialmente uma nova coleção de roupas num shopping, e igualmente para criar coreografias de balé clássico ou moderno ou de break dancing. Quando usamos, então, o termo linguagem, estamos nos referindo a um conjunto bastante complexo de formas de comunicação e significação. Esse complexo conjunto inclui a linguagem

verbal, mas também todas as outras linguagens como a música, o desenho, a pintura, a linguagem de sinais dos surdos, a escultura, a dança, os gráficos, os gestos e toda a expressão corporal – é essa pluralidade de linguagens que nos constitui como seres simbólicos e individualiza a nossa espécie. Nós humanos somos, pois, seres de muitas linguagens e vivemos não propriamente numa biosfera, mas numa densa semiosfera. E nela a linguagem verbal tem, por várias razões, um lugar especial. O linguista e filósofo russo Valentin N. Voloshinov (18951936) destaca, dentre as razões que conferem a ela esse lugar especial, as seguintes (1992: 37-40): a ubiquidade da linguagem verbal na vida humana e o fato de toda a realidade da linguagem verbal se dissolver por completo em sua função de ser signo (é, por isso, o meio mais puro e genuíno da comunicação social e dá forma a toda e qualquer manifestação simbólica humana). Além disso, pela possibilidade de ser produzida sem nenhuma intervenção de qualquer instrumento ou material extracorporal, a linguagem verbal se converteu no material sígnico por excelência da vida da consciência, dando materialidade ao nosso discurso interior. Por fim, Voloshinov destaca o fato de que é com a linguagem verbal que acompanhamos e comentamos todas as formas da criação da consciência social. Ao conjunto dessas formas ele dá o nome de criação ideológica, no sentido específico das formas simbólicas do espírito humano – conforme as definia o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945) – tais como as artes, as ciências, o direito, a filosofia, a religião, etc. Partes destas formas se materializam na linguagem verbal (a literatura, a filosofia e o direito, por exemplo) ou estão com ela

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combinadas (o canto, o cinema e a religião, por exemplo). No entanto, a compreensão de todas elas não ocorre sem a participação da linguagem verbal e particularmente do discurso interior. Isso, diz Voloshinov (1992: 39), não quer dizer que a linguagem verbal possa simplesmente substituir qualquer outro signo. Uma obra musical ou uma imagem pictórica não podem traduzir-se adequada e integralmente pela linguagem verbal; nem um ritual religioso pode ser substituído em sua totalidade exclusivamente pela linguagem verbal. Contudo, o processo de compreensão de todas estas manifestações semióticas se apoia na linguagem verbal e se faz acompanhar dela. Embora a linguagem verbal seja ubíqua e, por isso mesmo, nos seja profundamente familiar, nós ainda não conseguimos penetrar filosófica e cientificamente em todos seus segredos e mistérios. Sabemos mais do universo e das manifestações da vida do que sabemos da estrutura e do funcionamento da linguagem verbal. Nesse sentido, a linguagem verbal é um tanto quanto paradoxal: é um fenômeno ao mesmo tempo banal e altamente complexo. Estamos imersos nela e a pomos a funcionar no nosso cotidiano sem sequer nos darmos conta da sua complexidade. Boa parte de seu funcionamento é, aliás, inteiramente não consciente, isto é, falamos sem ter plena consciência de todos os mecanismos envolvidos nessa corriqueira atividade. No entanto, tudo o que diz respeito à linguagem verbal é sempre de grande complexidade: sua organização interna, seu potencial expressivo, sua base neurológica, seu funcionamento social, sua variabilidade, sua história, seu domínio pelas crianças. A complexidade é tanta que, apesar de dois milênios e meio de estudos sistemáticos, ainda são muitos os mistérios que embaraçam nossa compreensão desse fenômeno definidor da nossa espécie.

AS CRIANÇAS E A LINGUAGEM VERBAL Pouco sabemos, por exemplo, sobre como as crianças passam de não falantes a falantes. O que sabemos é que nenhuma teoria do conhecimento foi até agora capaz de dar conta desse processo. Observar a criança se tornando falante é uma das experiências mais maravilhosas que podemos ter: vamos assistindo o acontecimento, participamos dele como interlocutores, mas não sabemos explicar o que vai acontecendo. Há qualquer coisa aí que ainda nos escapa. Sabemos que se trata de um processo universal, isto é, ele acontece em todas as partes do mundo, com todas as crianças (salvo aquelas afetadas por profundas deficiências mentais ou acentuadas limitações auditivas) mais ou menos na mesma faixa etária (em torno dos dois anos). Mais ainda: é um processo que ocorre de modo espontâneo: não é preciso ensinar a língua da comunidade à criança, basta que ela esteja em contato com seus falantes. E ainda mais surpreendente é que, embora sejam limitados e precários os dados a que a criança tem acesso, ela sai do processo com conhecimento suficiente da estrutura básica da língua de sua comunidade, tornando-se um falante autônomo dessa língua. Isso significa dizer que ela não apenas entende e repete enunciados ouvidos, mas se torna capaz de produzir e entender enunciados novos, ou seja, adquire a propriedade da infinitude que é característica da linguagem verbal. Teorias do conhecimento que se pautam pelo pressuposto da imitação e da repetição não conseguem dar uma explicação minimamente plausível para esse evento. Em outras palavras, é evidente a pobreza dos dados a que a criança é exposta: a quantidade é pequena (ela nunca é exposta à língua toda – já que as expressões de qualquer língua são em número

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infinito); e a qualidade é relativamente baixa (são enunciados fragmentários, com muitos arranques em falso, lapsos e interrupções). Nada disso, porém, inviabiliza o efetivo domínio da língua da sua comunidade pela criança. Há um claro descompasso entre a quantidade e qualidade dos dados (finitos e precários) e o saber (infinito e suficiente) que resulta desse processo na criança. As características universais do processo têm alimentado a hipótese de que a linguagem verbal está geneticamente inscrita no cérebro humano, ou seja, de que ela é uma propriedade intrínseca da nossa espécie, conforme tem defendido, desde a década de 1950, o linguista estadunidense Noam Chomsky. Essa hipótese não está ainda suficientemente detalhada do ponto de vista material (ou seja, não foram descritos os dispositivos genéticos que se supõe existirem no cérebro). No entanto, nenhuma outra hipótese suficientemente plausível para dar conta do mesmo fenômeno foi até hoje formulada, o que mostra que este fenômeno, embora seja um evento corriqueiro, está longe de ser um evento banal. A hipótese (chamada de inatista ou genética) não afirma que as línguas propriamente ditas estão inscritas geneticamente no cérebro, mas sim a condição de todas as línguas – a chamada Gramática Universal. Esta é entendida como um saber inato que define “língua humana possível”, saber que, combinado com os dados da experiência, orienta cada criança em seu processo de descobrir a estrutura fonológica e morfossintática da língua de sua comunidade e de se tornar seu falante. Para muitos estudiosos a hipótese de um saber inato, de qualquer tipo que seja, é sempre indesejável por naturalizar excessivamente as realidades humanas. Se há ou não saberes inatos, não temos ainda meios empíricos para decidir porque, no fundo,

pouco sabemos sobre como o cérebro funciona e, consequentemente, nossas teorias da cognição estão ainda muito longe de recobrir a complexidade do que efetivamente ocorre em nossas atividades cognitivas. De qualquer forma, independentemente de nossas crenças de base (admitir ou não saberes inatos), há, no processo pelo qual a criança vai de não falante a falante, elementos que não temos condições ainda de destrinçar com clareza, em especial o salto qualitativo que inegavelmente ocorre num determinado momento do processo. A criança entende as enunciações na língua de sua comunidade muito antes de começar efetivamente a falar. Sua produção verbal é, de início, constituída de enunciados de um só elemento (“A!” – significando algo como “Quero água!” ou “Olhe, quanta água!” ou “Veja a água!”). Posteriormente, a criança passa a produzir enunciados com dois constituintes (“iiz au-au!” – significando algo como “Veja o nariz do cachorro!” ou “Cadê o nariz do cachorro?”). Chega, então, a uma fase em que produz enunciados de três elementos (“bô iiz au-au”), sempre sem palavras funcionais como artigos e preposições. E, sem que se perceba exatamente o momento e com que procedimentos cognitivos, ela começa, por volta dos dois anos, a produzir enunciados com todos os elementos sintáticos (“quebô o nariz do au-au”, por exemplo). Alguns fenômenos, como as orações relativas, serão incorporados em momentos posteriores do processo. A morfossintaxe básica, porém, já está consolidada nesta faixa etária. Apesar dos muitos estudos longitudinais que têm sido feitos sobre esse processo todo, estamos longe de esclarecer o que efetivamente ocorre. Assim, não temos de assumir obrigatoriamente a hipótese inatista, mas temos de ter clareza de que a questão continua em aberto.

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O que sabemos com relativa certeza é que a criança não domina a língua apenas por imitação. Se assim fosse, só produziria enunciados já ouvidos. A criança, claramente, não apenas absorve o que ocorre fora dela (a precariedade dos dados não impede seu domínio da língua). Ela se mostra um ser cognoscente ativo. Há, em seu cérebro, uma atividade cognitiva que opera sobre os dados que recebe do exterior. É esta atividade que ainda não fomos capazes de descrever. Podemos apenas observar indícios de que ela está acontecendo. Dentre inúmeros exemplos, pode-se citar os casos em que a criança cria expressões (“Quebrou o pedalou da bicicleta” ou “Perdi o assuou” ou “Tá aluzado” – em vez de “pedal”, “lenço” e “iluminado”); ou quando ela regulariza formas irregulares (“Se o pastel estasse quente, a gente não comia”); ou pluraliza elementos invariáveis (“Quelo esse aquis” – apontando para os livros que ela queria levar) e assim por diante. Observa-se também que a criança, com a mesma facilidade, espontaneidade e qualidade com que apreende sua língua primeira (a língua da casa), apreende outra(s) língua(s) se a sociedade em que ela vive for bilíngue ou multilíngue; ou tiver outra língua hegemônica que não a da casa (crianças filhas de imigrantes, por exemplo; ou cujos pais se deslocaram temporariamente para outro país por razões de estudo ou trabalho). E esta capacidade – até onde já se observou – se mantém ativa até por volta da pré-adolescência. Daí em diante, parece que o cérebro a desliga e o domínio de novas línguas pelos adolescentes e adultos (mesmo imersos numa nova comunidade linguística) já não se dá com a mesma facilidade, espontaneidade e qualidade como ocorre com a criança. Em suma, há mais coisas misteriosas entre o céu e a terra do que acredita nossa vã filosofia. A criança, no processo de se tornar falante, se mostra cognitivamente ativa, lançando mão de recursos

cerebrais que ainda não entendemos suficientemente (ela não é apenas um balde vazio que vai sendo enchido de fora para dentro). Obviamente, não podemos descartar a relevância, neste e em todos os demais processos cognitivos, da interação da criança com os adultos e crianças mais velhas. A interação pode não ser inteiramente suficiente para a dinâmica cognitiva (algo também acontece no cérebro da criança), mas é absolutamente necessária, como demonstraram, por exemplo, os estudos do desenvolvimento dos processos psicológicos superiores feitos pelo psicólogo russo Lev Vygotsky (1896-1934). A interação é constitutiva do nosso eu, da nossa identidade, da nossa vida mental. Já no século xviii, o filósofo alemão Friedrich Jacobi (1743-1819) levantou esse princípio de que sem o Tu não há o Eu, ou seja, é a inter-relação com os outros que nos constitui como pessoas e põe em movimento nossas atividades mentais (cf., para mais detalhes, Faraco, 2005b). No século xx, Valentin Voloshinov vai formular tese bastante semelhante, dando, agora, ênfase ao papel da linguagem verbal, entendida como atividade sociointeracional, nesse complexo processo. Para ele, a consciência adquire forma e existência por meio dos signos verbais que constituem as relações sociais e nelas circulam. Estes signos são o alimento da consciência. Nas palavras dele (tradução nossa): A consciência se constrói e se realiza mediante o material sígnico, criado no processo da comunicação social de um coletivo organizado. A consciência individual se alimenta de signos, cresce com base neles, reflete em si sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a da comunicação ideológica, a da interação sígnica em uma coletividade. (1992: 36)

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Em outros termos, nossa vida mental adquire sua dinâmica própria internalizando a dinâmica da interação socioverbal da comunidade em que vivemos. Raciocínio parecido foi desenvolvido por Vygotsky no estudo do desenvolvimento da atividade cognitiva humana. Ele mostrou como essa atividade nasce da interação entre os que já dominam um determinado saber e os que estão começando a dominá-lo. A atividade cognitiva é antes intersubjetiva e, uma vez internalizada, se torna intrassubjetiva. Ou seja, a lógica cognitiva social se torna, pela mediação dos outros, lógica cognitiva interiorizada (subjetiva), a dinâmica externa se torna dinâmica interna (2007: 56-8). É desse modo que cada pessoa adquire autonomia cognitiva. Os detalhes do processo todo, em especial em relação ao domínio da linguagem verbal pela criança, é que ainda nos escapam. De qualquer forma, são observáveis vários gestos dos adultos que contribuem para instituir as bases da interação com a criança. Estes gestos vão desde os primeiros enunciados dirigidos ao recém-nascido (construindo, desde a primeira hora, o bebê como interlocutor) até as trocas interativas com a criança já mais madura (verdadeiros jogos interacionais de perguntas e respostas e reiterações do dizer da criança), passando pelas interpretações que atribuímos, desde cedo, às ações da criança como o choro, os movimentos corporais e a direção do olhar. Estes gestos todos têm, certamente, papel decisivo na constituição do eu do novo ser e no desencadeamento de seus processos cognitivos. Os psicólogos relatam os inúmeros efeitos negativos da ausência dessa dinâmica interacional nos primeiros anos de vida da criança para o seu desenvolvimento emocional e cognitivo. Nesse sentido, embora não sejamos ainda capazes de dar conta de todos os fatores e processos que participam da cognição humana (em especial do domínio da língua), duas coisas

são bastante evidentes: a interação socioverbal tem aí um papel absolutamente necessário (não podemos, portanto, ignorá-la ou secundarizá-la); e, segundo, a criança é um ser cognitivamente ativo (não podemos, portanto, tratá-la como um mero receptáculo passivo do que vem do exterior).

A ORIGEM DA LINGUAGEM VERBAL Se é ainda misterioso o processo pelo qual a criança passa de não falante a falante, é ainda mais misteriosa a origem da linguagem verbal, ou seja, quando e como ela começou a se manifestar na linha evolutiva da espécie humana. Se fizéssemos uma lista dos dez maiores mistérios que nos assombram, certamente a origem da linguagem verbal estaria entre eles em lugar de especial destaque. Saber quando e como a linguagem verbal surgiu mexe fundo com nossa curiosidade. E maior é seu fascínio porque não temos a menor ideia de como as coisas aconteceram. A linguagem verbal é marca forte, constitutiva, distintiva da nossa espécie. Por isso, a discussão de suas origens está intrinsecamente ligada às discussões da origem da própria espécie. Dispomos hoje de uma boa quantidade de fósseis que fornecem evidência material interessante para hipóteses razoáveis sobre os longos e complexos caminhos da evolução das espécies dos quais emergiu o Homo sapiens. Temos, por exemplo, indícios convincentes de que nossa espécie se originou nas savanas do Leste da África e se espalhou pelo planeta seguindo rotas que a levaram à Europa e à Ásia e desta à América e à Oceania. Essas rotas têm sido estabelecidas em parte pelo estudo do dna das populações.

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Com base nesses dados, os paleontólogos têm sugerido que o Homo sapiens surgiu na Terra há aproximadamente 100 mil anos, embora se calcule que o ramo hominídeo dos primatas tenha se separado há 6 ou mais milhões de anos. Igualmente dispomos hoje de um precioso acervo de objetos criados pelos humanos (ferramentas e utensílios domésticos, por exemplo) e de registros pictóricos em rochas que nos permitem sustentar hipóteses plausíveis sobre os caminhos percorridos pela humanidade na construção de sua cultura material e simbólica. Com base nesses dados, os antropólogos costumam registrar um florescimento cultural bastante significativo por volta de 50 mil anos atrás. Para alguns, esse florescimento cultural, inimaginável sem a linguagem verbal, é indício de que ela já estava plenamente estruturada por essa época. Ela teria, então, surgido há mais de 50 mil anos. Confrontando as duas datas (a do surgimento da espécie e a do florescimento da cultura), há pesquisadores que defendem a hipótese de que a linguagem teve um desenvolvimento vagaroso e foi crescendo em complexidade ao longo de milênios. Outros, porém, considerando a relação intrínseca entre a espécie e a linguagem verbal e o prodigioso processo pelo qual um bebê humano se torna falante (fato que claramente não se dá por simples imitação ou por puro aprendizado a partir de um estágio zero, como se o cérebro fosse uma caixa vazia), defendem a hipótese de que a linguagem como a conhecemos surgiu junto com a espécie e está relacionada a uma mutação radical no conglomerado de genes dos hominídeos mais antigos. No momento, não temos nenhuma base para optar entre essas hipóteses. A linguagem verbal é um bem imaterial. Assim, de seu passado nada sobrou. Não temos, por exemplo, o menor indí-

cio de como teria sido o estágio semiótico imediatamente anterior à linguagem propriamente humana, isto é, a linguagem anterior à nossa linguagem. Ainda hoje nos espanta a enorme distância que há entre nossa linguagem e os sistemas de signos dos outros animais – como apontamos anteriormente. Mesmo no caso de outros primatas – alguns deles geneticamente muito próximos de nós como os chimpanzés (conforme atestam os recentes estudos comparativos dos genomas) – as diferenças não são apenas de grau (como se a linguagem humana estivesse apenas alguns degraus de complexidade acima desses outros sistemas). Há, de fato, um fosso qualitativo profundo. No passado, algumas pessoas propuseram que a linguagem verbal teria saído dos sistemas de signos dos outros animais (por imitação, por exemplo). No entanto, ninguém foi capaz de apresentar uma formulação plausível de como se deu o salto do muito simples para o muito complexo. E é justamente essa a questão crucial: qualquer hipótese que pretenda tirar a nossa linguagem dos sistemas de signos dos outros animais terá de dar conta do processo que gerou essa diferença qualitativa profunda. Uma outra dificuldade empírica que nos acompanha na discussão da origem da linguagem diz respeito ao fato de que, embora as línguas humanas sejam muito diferentes entre si, não há qualquer diferença substancial entre elas em termos de complexidade gramatical. Isso quer dizer que a menos complexa das sociedades humanas tem já uma língua gramaticalmente tão complexa quanto qualquer outra. Não existe, portanto, nenhuma língua humana que pudesse ser classificada de “primitiva” e que pudesse, portanto, fornecer indícios da história da nossa linguagem, aceitando a hipótese de que ela evoluiu vagarosamente ao longo de milênios.

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A linguística desenvolveu métodos que permitem reconstruir, com razoável sucesso, a história de uma língua e de famílias de línguas mesmo onde não há documentação escrita (a escrita só surgiu há cinco mil anos na história humana). Embora tenha sido possível fazer, em alguns casos, um recuo de dez mil anos, nenhum desses resultados sugere um estágio gramatical menos complexo que o conhecido hoje. Assim, sem uma mínima base empírica, parece que pouco podemos fazer neste assunto além de elucubrar. Precisamos, porém, ter claro que, se no mundo da ficção podemos afirmar qualquer coisa (a imaginação é livre), no âmbito da discussão científica nossas afirmações têm de ser demonstradas e sustentadas empiricamente. Não basta apenas afirmar. Modernamente, a questão da origem da linguagem verbal foi formulada no Ocidente apenas no século xviii. Até então, a cultura europeia aceitava como inquestionável a narrativa bíblica das origens, pela qual Deus criou diretamente o ser humano e deu-lhe, por um sopro, a vida. Embora o texto bíblico nada diga sobre isto, supõe-se que com o sopro da vida veio junto a linguagem, já que Deus logo entabulou um diálogo com Adão e lhe atribuiu a tarefa de dar nome aos outros seres vivos (cf. Gênesis, 2: 7-20). Nesse quadro de referências, havia muitas pessoas que acreditavam que a língua adâmica teria sido o hebraico. Com a progressiva secularização do pensamento, decorrente em parte das guerras religiosas e em parte do próprio desenvolvimento das ciências físicas, a narrativa bíblica foi perdendo a sua primazia e os filósofos, em consequência, começaram a se questionar como a humanidade se tornou falante. Dentre várias outras, são célebres as especulações do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ele sugeria, num livro

escrito em 1756, que a linguagem tinha se originado da expressão das paixões a partir do momento em que os humanos, antes dispersos, começaram a viver em sociedade. Para ele, foram o amor, o ódio, a piedade, a cólera que fizeram os humanos produzirem suas primeiras falas e, por isso, as primeiras línguas teriam sido cantantes e apaixonadas. No século xix, a questão se tornou bastante popular e multiplicaram-se “soluções” que poderíamos chamar de ingênuas, para não dizer inverossímeis. Todas elas propunham sempre uma origem muito simples para a linguagem humana e, por nunca considerarem a sua alta complexidade intrínseca, nada diziam sobre o mais importante, isto é, como se deu o grande salto do muito simples para o altamente complexo. E ainda mais: nunca foram capazes de oferecer uma explicação convincente para a origem da grande diversidade de línguas. Por curiosidade, lembremos aqui uma dessas “teorias”. Ela propunha que a linguagem havia surgido dos grunhidos que os humanos emitiam aliados ao esforço para levantar e carregar objetos pesados. Essas “teorias” absurdamente simplificadoras acabaram por levar os pesquisadores mais familiarizados com a complexidade das línguas a excluir o tema “origem da linguagem” da lista de investigações cientificamente aceitáveis. Em 1866, a Sociedade de Linguística de Paris incluiu esta restrição em seus estatutos. E não tratar do tema passou a ser uma espécie de senso comum entre os linguistas. Nas últimas décadas do século xx, porém, essa situação começou a se alterar e em 1996 foi realizada, na Universidade de Edimburgo (Escócia), a i Conferência Internacional sobre a Origem da Linguagem, seguida de outras a cada dois anos.

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A retomada do tema nas esferas científicas decorre de uma combinação de fatores, em especial dos resultados das pesquisas paleontológicas e dos extraordinários desdobramentos da biologia evolutiva e da genética, além da intensificação dos estudos de psicologia cognitiva, antropologia e linguística. Se todos esses estudos pouco ou nada contribuíram para iluminar minimamente a questão da origem da linguagem humana, muito têm contribuído para melhor formularmos as perguntas que devem ser respondidas, isto é, tornaram mais estritos os limites postos às nossas elucubrações. Mesmo assim, a questão está muito longe de ser resolvida, se é que teremos condições de resolvê-la um dia.

ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA Se a origem da linguagem é uma área atravessada por grandes mistérios e ainda longe de uma convincente abordagem científica (se é que, como acabamos de dizer, ela será possível um dia, considerando a inexistência absoluta de dados), as coisas não são mais fáceis na abordagem de outras faces da linguagem verbal. Uma observação fria da realidade deixa claro quão difícil é analisar cientificamente qualquer uma das muitas manifestações históricas da linguagem verbal – as diferentes línguas das sociedades humanas. Os linguistas, que são os estudiosos que se dedicam profissionalmente a esta tarefa, sabem disso muito bem porque se deparam continuamente com as inesgotáveis complexidades estruturais e funcionais das línguas. Para se ter uma ideia dessa complexidade, basta lembrar que qualquer língua é uma realidade estrutural infinita, conforme

dissemos no início deste capítulo. O número de sons da fala de que se serve uma língua é finito (em torno de três dezenas). O número de suas palavras (ainda que imenso) é finito (calcula-se que uma língua como o português tem algo em torno de meio milhão de palavras). O número de regras com as quais organizamos os enunciados é também finito (embora não tenhamos ainda ideia clara de sua quantidade). Apesar disso tudo, o número de enunciados possíveis numa língua qualquer é infinito, ou seja, a língua é uma organização tal que nos permite fazer uso infinito de meios finitos. Diante desse quadro, poderíamos supor que, sendo finitos os meios estruturais, bastaria que eles fossem descritos para alcançarmos uma apresentação científica completa de uma língua. No entanto, as coisas não são tão simples assim. Primeiro, porque a língua não se esgota em sua estrutura. Para analisá-la adequadamente, temos de considerar também seu funcionamento social. Segundo, porque nenhuma língua é uma estrutura homogênea e uniforme. Qualquer língua se multiplica a tal ponto em inúmeras variedades que muitos chegam a dizer que atrás de um nome – português, por exemplo – se escondem, de fato, muitas “línguas”. Qualquer língua é sempre, portanto, uma realidade plural e heterogênea. Incluem-se nessa pluralidade as variedades geográficas (os chamados dialetos), as variedades sociais (os dialetos dos vários segmentos sociais urbanos e rurais, os jargões profissionais, as gírias, os registros e gêneros próprios de cada atividade humana) e as variedades estilísticas (variedades próprias da fala, variedades próprias da escrita, estilos formais ou informais, familiares ou vulgares). E podemos acrescentar ainda a toda essa gama de variedades as peculiaridades de fala e escrita de cada um dos falantes – afinal,

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não há dois falantes que falem ou escrevam exatamente do mesmo modo, como resultado do fato de que nenhum ser humano tem uma experiência existencial exatamente igual à de qualquer outro ser humano. Essa dimensão singular da expressão levou o filósofo e linguista alemão Wilhelm von Humboldt (1767-1835) a afirmar que na linguagem a individualização de uma forma geral é tão fantástica que podemos dizer com igual correção que a humanidade como um todo tem uma só língua e que cada ser humano tem uma língua pessoal (1988: 53). Ele resumiu bem essa dupla face da realidade linguística humana. Se a olhamos pelo viés da humanidade como um todo (pelo viés da espécie humana), observamos que, embora as línguas sejam muito diferentes entre si, elas não diferem em seu grau de complexidade – o que significa dizer que as línguas são muito diferentes entre si, mas a linguagem verbal é uma só. Por outro lado, se a olhamos pelo viés de cada indivíduo, observamos que sua expressão linguística tem uma clara dimensão singular. Ou seja, embora cada um de nós se desenvolva numa densa teia de relações sociais, nenhum de nós é absolutamente igual a qualquer outra pessoa. Nesse sentido, mesmo quando dizemos que falamos a mesma língua, não há nenhuma garantia de total intercompreensão. Em outros termos, a ideia de senso comum de que basta falar uma mesma língua para haver entendimento direto entre dois falantes não se sustenta. Frequentemente (e não excepcionalmente) é preciso negociar (“traduzir”) as significações do que dizemos. É bastante evidente, portanto, a imensidão constitutiva de qualquer língua. E essa complexidade toda se amplifica enormemente se considerarmos ainda alguns outros fenômenos corriqueiros do funcionamento social da língua.

Lembremos, por exemplo, que, em situação de uso, um enunciado pode sempre significar seu contrário. Assim, digo João é muito honesto, mas, pelo mecanismo da ironia, faço este enunciado significar exatamente seu oposto, isto é, que João é desonesto. Por outro lado, um enunciado pode ter um significado bem diferente daquele que está contido em sua estrutura. Assim, alguém diz Está frio aqui e seu interlocutor identifica nesta expressão um pedido ou uma ordem para que as janelas sejam fechadas (sem que as janelas sequer tenham sido mencionadas!). São dois exemplos banais, mas ilustram bem o caráter fluido e movente da língua em uso. Talvez, como falantes, nem percebamos a frequência com que jogamos com as estruturas da língua, fazendo-as significar para além delas mesmas. A esses dois exemplos poderíamos ainda acrescentar o imenso continente que é o uso figurado da linguagem. Embora algumas pessoas pensem que a linguagem figurada só ocorre na poesia, nosso dizer cotidiano está repleto de comparações e gestos metafóricos e metonímicos. Diante de todo esse quadro praticamente inesgotável de recursos é que podemos afirmar que uma língua é um universo infinito e em contínuo movimento. Mesmo que conseguíssemos juntar num megadicionário todas as palavras da língua (com os diferentes sentidos de cada uma delas) e conseguíssemos apresentar numa megagramática todos os princípios que regem a construção dos enunciados estruturalmente possíveis na língua (cobrindo toda a gama de suas variedades), ainda assim a língua como tal nos escaparia. E isso porque ela não é uma realidade estática, que possa ser congelada num dicionário e numa gramática. Ela não é um tesouro, uma mera coleção de sons, palavras e enunciados. Ela é, de fato, uma realidade dinâmica, plástica, aberta, em contínuo

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movimento. E ela tem de ser assim, porque, de outro modo, ela não serviria para dar forma à miríade de eventos de expressão e interação que ocorrem continuamente no interior da sociedade que a fala (ou, como no caso do português, das sociedades que a falam). A língua é dinâmica, plástica, aberta e em contínuo movimento porque a experiência humana tem essas características. O ilimitado e a dinamicidade da língua têm a ver com o ilimitado e a dinamicidade da vida humana. Assim, no mesmo momento em que estivéssemos terminando nosso megadicionário, novos sentidos estariam sendo agregados às velhas palavras e novas palavras e expressões estariam sendo criadas ou incorporadas de outras línguas. Mesmo que conhecêssemos integralmente os princípios das alterações semânticas das palavras ou da criação e incorporação de novas palavras, sua manifestação e direção são, de fato, imprevisíveis. Ainda que conhecêssemos todos os princípios de construção dos enunciados da língua em todas as suas variedades, não teríamos como prever as direções do uso figurado ou do jogo com as estruturas que as faz significar para além delas mesmas. Além disso, não podemos perder de vista outro fato importante para apreendermos a complexidade da língua: ela passa continuamente por processos de mudança que vão alterando sua configuração estrutural. Esse movimento histórico alcança – em tempos diversos e em direções não necessariamente coincidentes (e, em geral, imprevisíveis) – todas as variedades constitutivas da língua. De novo, pouco sabemos sobre os fatores que condicionam essas mudanças e como eles agem. No entanto, sabemos que as mudanças nunca destroem a organização das variedades: há um redesenho constante da estrutura, mas nunca ocorre uma desestruturação da língua.

Como dizia o antropólogo e linguista alemão-estadunidense Edward Sapir (1884-1939), a língua muda, mas nunca perde sua plenitude estrutural e seu potencial significativo (1969: 33-4). A análise dos processos de mudança sugere que elas parecem emergir, entre outros possíveis fatores, do encontro das variedades ou, ainda, do contato com outras línguas. As diferentes maneiras de se pronunciar ou de se estruturar os enunciados parecem criar um caldo propício à mudança. Os linguistas costumam dizer, por isso, que as mudanças parecem emergir da heterogeneidade, isto é, fenômenos típicos de algumas variedades acabam por ser adotados progressivamente por falantes de outras variedades, resultando em alterações na pronúncia ou na estrutura dos enunciados destas últimas. E esse é um processo contínuo, impossível de ser estancado (cf., para mais detalhes, Faraco, 2005). Apesar de tudo que apontamos aqui, há quem não perceba a enormidade e a dinâmica da língua e acredite que ela possa ser reduzida a meia dúzia de regrinhas. Mesmo que nos restringíssemos à chamada norma culta, que alguns, infelizmente, tratam como uma camisa de força a ser amarrada nos falantes para limitar ou impedir suas ações de fala ou escrita, veríamos que também ela não escapa da variedade, nem da mudança, nem do movimento contínuo. É uma quimera achar que podemos abarcar a língua em sua totalidade. Quimera maior, porém, é querer domar a língua, estancar sua dinâmica, fixá-la num monumento pétreo. Isso não significa, obviamente, que devamos desistir de estudá-la cientificamente. Quanto mais a compreendermos, mais compreenderemos a nós mesmos, seres de linguagem que somos. Temos, no entanto, de estar cientes de que a língua sempre nos escapa. E nos maravilharmos com isso.

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Por outro lado, embora a chamada norma culta seja também um “peixe ensaboado”, isso não significa que não devamos nos ocupar dela. Não podemos relevar sua importância sociocultural como uma tentativa de se construir um espaço de relativa unidade por sobre a imensa variedade da língua (em especial para eventos de escrita e para os meios de comunicação de massa). Para que a norma culta cumpra de fato esse seu papel, nós precisamos superar criticamente a cultura do erro que tem sido tradicionalmente associada a ela entre nós, substituindo essa atitude negativa, inquisitorial, condenatória por uma atitude mais condizente seja com suas reais características, seja com sua relevância sociocultural, seja ainda com sua dinâmica. Para isso, é fundamental entendermos bem o fenômeno da variação linguística.

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA Não existe língua homogênea. O fato de darmos um nome singular a uma língua (português, chinês, quíchua, suaíli, tapirapé) não deve nos iludir e nos impedir de apreender e apreciar adequadamente a heterogeneidade constitutiva de qualquer língua. Uma língua é sempre uma realidade plural, isto é, uma língua é um conjunto de incontáveis variedades: inúmeros dialetos geográficos e sociais, variadíssimos estilos, incontáveis registros aliados às mais diversas atividades humanas. Uma língua é, nesse sentido, muitas línguas. Não há, como alguns acreditam, a língua de um lado e as suas variedades de outro. A língua é a própria soma de todas as variedades que, por razões históricas e socioculturais, são reconhecidas como constitutivas da mesma língua.

Convivemos cotidiana e corriqueiramente com essa enorme (talvez infinita) diversidade e não nos apercebemos da miríade de fatores que, em múltiplas relações, estão envolvidos na sua contínua produção. Não dispomos de nenhuma teoria capaz de explicar toda essa diversidade. De novo, o banal e o complexo, o corriqueiro e o mistério. As variedades se diferenciam pelo modo como os enunciados são pronunciados, como as sentenças são construídas, como os processos morfológicos se realizam e também pelas palavras que são mais comumente usadas e pelos sentidos agregados a cada uma delas. Sabemos que, muitas vezes, os falantes de diferentes variedades não se entendem de imediato, isto é, a compreensão entre eles não é direta. Apesar disso, eles se dizem falantes da mesma língua e, por isso, acabam por encontrar meios para se entender mais facilmente do que se fossem falantes de línguas diferentes. Isso é possível porque, segundo acreditamos, as variedades, embora diferentes, partilham, lá no fundo, um núcleo gramatical (alguns princípios gerais de organização como, por exemplo, a ordem das palavras na frase e propriedades morfológicas) e um vocabulário básico (por exemplo, o nome dos números, de algumas partes do corpo, das ações do cotidiano e assim por diante). Sabemos ainda pouco sobre o que constitui, de fato, esse núcleo. No entanto, acreditamos que ele exista e julgamos que ele resulte da história, ou seja, as comunidades vão se desdobrando, se estabelecendo em novos espaços, se diferenciando, se misturando e as variedades da língua, acompanhando esses processos, vão saindo umas das outras, vão se afastando e se aproximando, vão se interinfluenciando e se mesclando – conservando, porém, áreas de sobreposição. Dizemos, então, que falamos a mesma língua quando nossas variedades compartilham essas áreas de sobreposição básicas. É este

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núcleo comum que nos permite negociar significações e construir a mútua compreensão, mesmo quando, num primeiro momento, não conseguimos eventualmente nos compreender. Cada uma das variedades constitutivas da língua, por sua vez, é um todo muito bem organizado. Há princípios que regulam a combinação dos sons em sílabas e palavras; há outros que regem os processos morfológicos (a conjugação verbal, a formação de novas palavras, a acomodação de palavras importadas de outras línguas); há os que definem a construção das sentenças. Alguns aspectos dessa organização nós já fomos capazes de descrever; a maior parte, porém, continua sem uma descrição adequada. Apesar de não haver variedade sem organização interna, muitas vezes, por pura ignorância ou preconceito social, há quem ache que algumas variedades não têm “gramática”, são erradas, são deformações da “verdadeira” língua. Se pararmos para analisar, vamos ver que esses julgamentos alcançam as variedades que são faladas por grupos sociais que têm estado na periferia da vida econômica e, por isso, distantes dos quinhões maiores da riqueza material e imaterial da sociedade. O cerne do problema não está, portanto, na língua, mas na estrutura social profundamente marcada pela desigualdade. Temos aqui um exemplo de como a língua pode ser transformada num elemento de discriminação social. Não é fácil romper com essas atitudes preconceituosas e discriminatórias porque elas estão profundamente enraizadas na nossa cultura. Se tivermos, contudo, clareza de que o problema não está na língua – justamente porque todas as variedades são muito bem organizadas –, poderemos lutar contra essas atitudes negativas que tanto dano causam na escola, no trabalho e na vida em geral. Mas a língua não é só diversidade. Há também situações que favorecem certas tendências e processos unificadores. No mundo

contemporâneo, os meios de comunicação social (a televisão e o rádio, em especial) tornam algumas variedades amplamente audíveis em vastos espaços (o país inteiro, por exemplo). Isso as projeta em meio à diversidade e lhes dá uma certa força unificadora. Elas são até, muitas vezes, percebidas como exemplares nacionais da língua e também como modelos a serem imitados. Nesse sentido, podemos dizer, sem muito erro, que a norma linguística de referência (a norma culta) no Brasil de hoje é constituída pelas variedades privilegiadas pelos meios de comunicação social, ou seja, as variedades mais monitoradas da classe média urbana. Ao mesmo tempo, contudo, essas variedades podem também acirrar a diversidade: os falantes, ao perceberem que falam diferentemente das variedades privilegiadas pelos meios de comunicação social, podem resistir a imitá-las, preferindo, por várias razões, reforçar suas características locais. Em matéria de língua, os falantes vivem, então, no entrecruzamento das forças diversificadoras com as unificadoras, ou seja, vivem entre os fatores mais locais (que favorecem a diversidade) e os de caráter mais geral (que possibilitam uma certa unidade, um certo chão comum), vivem entre o centrífugo e o centrípeto. E a expressão escrita da linguagem verbal, por suas características peculiares, tende a favorecer as forças mais unificadoras, como discutiremos a seguir neste e no próximo capítulo.

A LINGUAGEM VERBAL ESCRITA O meio básico de expressão da linguagem verbal é a oralidade, ou seja, a expressão articulada de sons produzidos pelo aparelho fonador. Com o passar do tempo, a humanidade criou

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um segundo meio de expressão – a escrita. Se comparado ao meio oral (que – supõe-se – tem perto de cem mil anos, como discutimos anteriormente), o meio escrito é recentíssimo: foi desenvolvido apenas há aproximadamente cinco mil anos. Por outro lado, enquanto todos os grupos humanos conheceram no passado e conhecem no presente o meio oral de expressão, apenas alguns grupos desenvolveram o meio escrito no passado e há ainda hoje línguas que não dispõem de expressão escrita. Assim como o meio oral precedeu em milênios o meio escrito na história da humanidade, ele também o precede na história do indivíduo: as crianças passam a falar por volta dos dois anos (e, como dissemos antes, o fazem espontaneamente, isto é, sem necessidade de ensino sistemático); contudo, só começam a se apropriar da escrita por volta dos cinco anos (e, em geral, dependem, para isso, de ensino formal). Há grandes diferenças entre os dois meios de expressão da linguagem verbal (cf., para mais detalhes, Jahandarie, 1999, cap. 8). O meio oral, por exemplo, conta, na composição do processo de significação, com o apoio gestual e facial, e dispõe de uma ampla gama de recursos prosódicos, ou seja, a cadeia falada tem uma linha melódica que lhe é dada pela entoação e pelo jogo da intensidade e duração com que se proferem os segmentos sonoros. Tudo isso falta ao meio escrito. Ele é, de certa forma, um meio parco de expressão. Para compensar estas enormes faltas, criaram-se alguns recursos gráficos (como a pontuação ou a mudança de fonte). Estes, no entanto, por mais indispensáveis e úteis que sejam, não conseguem jamais alcançar o peso e as nuanças significativas da prosódia ou ainda do apoio gestual e facial que acompanham a fala. Um dos grandes desafios de quem aprende a escrever é, então, adequar sua expressão a este meio parco de recursos. É

ser capaz de ir da abundância de recursos da oralidade para a exiguidade de recursos da escrita, desenvolvendo a capacidade de explorar as características do meio escrito para fazê-lo significar adequadamente, de modo a compensar suas lacunas. Outro dado importante a lembrar é o fato de que o meio oral se realiza fundamentalmente na comunicação face a face. O interlocutor, portanto, está presente e isso dá à fala uma dinâmica bastante peculiar: ela pode se apoiar extensamente em informações contextuais. Com isso, pode dispensar um elevado grau de explicitação textual e não precisa ser detalhadamente planejada – vai definindo seu rumo à medida que se processa e em consonância com as reações dos interlocutores. A temática da conversa pode, em razão disso tudo, ser difusa e coesivamente aberta. A comunicação pelo meio escrito, por sua vez, não conta com a presença física do interlocutor. E isso tem profundas implicações para o ato de escrever: é preciso, por exemplo, preencher essa ausência por uma imagem do interlocutor. Escreve-se para alguém ler e é preciso, então, definir quem será o interlocutor – imagem que pode ter como referente um indivíduo bem concreto, como numa carta pessoal, ou uma determinada categoria de indivíduos, como, por exemplo, o público leitor de um jornal. Por outro lado, pelo fato de não ser possível apelar extensamente ao contexto imediato, é preciso que o escrito alcance alto grau de explicitação textual. E, como não se pode contar com a presença física do interlocutor, é preciso prever suas possíveis reações e a elas responder ou adequar o texto antecipadamente. O ato de escrever exige, então, cuidadoso planejamento prévio; sua temática não pode ser difusa, mas deve ser centrada, sequencialmente bem trabalhada e apoiada em recursos coesivos estritamente controlados. Falhas graves em qualquer desses aspectos comprometem a compreensão e, por consequência, a interlocução.

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Um dos grandes desafios de quem começa a trabalhar com a escrita é, então, aprender a ajustar sua expressão à ausência física do interlocutor e à impossibilidade de contar com as referências contextuais imediatas. No primeiro caso, é preciso tornar a imagem do interlocutor elemento constitutivo do ato de escrever (em outras palavras, quem escreve deve exercer dois papéis – deve ser o autor e, ao mesmo tempo, deve colocar-se na posição de seu provável leitor, monitorando assim o que escreve). No segundo, é preciso controlar a textualização de modo a garantir que a significação se realize mesmo na ausência do apoio contextual imediato. Apesar das limitações e das exigências estritas que caracterizam o meio escrito, este tem sobre o meio oral a vantagem da permanência. A fala é efêmera e evanescente (os romanos tinham já um dito que resumia bem este caráter fugaz, volátil da fala: verba volant, scripta manent – as palavras (faladas) voam, os escritos permanecem). Já o meio escrito dura enquanto durar seu suporte. Assim é que podemos ler textos antiquíssimos, embora muito pouca coisa tenha sobrado do que foi dito oralmente há poucos instantes. Essa propriedade de permanência do meio escrito é responsável pela importância que ele adquiriu na história humana. Com a escrita, a humanidade pôde transcender os limites do tempo, do espaço, da comunicação face a face e da cultura apenas oral e local. Tornou-se possível também o registro do conhecimento e, com isso, criaram-se as bases para ampliá-lo exponencialmente. Não é à toa, portanto, que se diz ter sido a invenção da escrita a maior realização tecnológica da humanidade. É verdade que o século xx trouxe a possibilidade técnica de se gravar o falado, de estancar seu caráter evanescente. No entanto, a maior parte dos eventos apenas falados continua sem registro, até

mesmo por razões de ordem prática: eles são incontáveis e, salvo em casos muito específicos, é absolutamente irrelevante gravá-los. O século xx trouxe também várias possibilidades técnicas de transcender a milenar limitação do meio oral à interação face a face. A comunicação oral adquiriu a possibilidade de ser mediada tecnologicamente por meio do telefone, do rádio, da televisão, do computador. Romperam-se assim os limites do espaço próximo e se amplificou enormemente o alcance do meio oral. Em alguns casos, como o da televisão, por exemplo, o número de destinatários alcançáveis simultaneamente por uma só fonte enunciativa pode facilmente chegar à cifra de muitos e muitos milhões. Neste último caso, ganha-se incalculavelmente em extensão, mas perde-se a possibilidade da alternância contígua de locutores e da réplica imediata. Isso cria, evidentemente, outras condições para a comunicação oral humana. Amplifica-se, em grandezas quase incalculáveis, o que, de certa forma, já estava presente na comunicação face a face institucionalizada como na escola, na igreja ou no tribunal – lugares em que a fonte da enunciação se dirige a muitos simultaneamente e a eventual alternância de locutores e a possibilidade de réplica costumam ser rigidamente controladas por regras explícitas ou implícitas. Mas, apesar disso, podem ainda eventualmente ocorrer. Essa possibilidade desaparece nos meios de comunicação de massa como a televisão (salvo – por ora pelo menos – em simulacros). O meio escrito, por ser tradicionalmente destinado à comunicação à distância, só admitia a alternância não contígua de locutores e a réplica remota. Isso, de certa forma, continua acontecendo, embora o desenvolvimento da comunicação mediada por computador tenha trazido a possibilidade da sincronia, ou seja, da

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troca de mensagens escritas on-line, o que acarreta também novas condições para a comunicação pelo meio escrito. Destaque-se, nesse sentido, que o desenvolvimento da internet e sua difusão social (calcula-se hoje que o Brasil conta com 75 milhões de internautas – cf. O Estado de S. Paulo, 10 jan. 2010, p. B12) têm expandido enormemente o uso da escrita em e-mails, blogs, sites e redes sociais. Pode-se afirmar que nunca se escreveu tanto e nunca antes tanta gente se envolveu cotidianamente com a escrita em proporções semelhantes. Essa expansão tem, claro, acarretado mudanças significativas no modo de realizar as práticas sociais de escrita: relativizam-se, em muitos espaços do meio eletrônico, várias das tradições discursivas historicamente constituídas na era do domínio soberano do livro e das outras mídias impressas. Os textos saem quase no ritmo da fala (estão se constituindo outros gêneros e outros padrões de textualidade), predominam as variedades linguísticas pouco monitoradas e até mesmo a forma de grafar as palavras passa por um processo de estenografização (o chamado internetês). Isso tudo, no entanto, não significa que as tradições discursivas historicamente constituídas serão simplesmente abandonadas. Elas continuarão valendo para determinadas situações, influenciarão as novas tradições que estão em construção, assim como receberão influências destas novas tradições. Estamos vivendo, portanto, um tempo pleno de novas experiências interacionais e de consequentes mudanças na expressão verbal, seja na oralidade, seja na escrita.

BREVE HISTÓRIA DO MEIO DE EXPRESSÃO ESCRITA

OS SISTEMAS DE ESCRITA A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal se deu, como dissemos no capítulo anterior, há aproximadamente cinco mil anos na Mesopotâmia. A escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, é o mais antigo sistema de escrita conhecido até hoje (cf., para mais detalhes, Higounet, 2003). Os estudiosos destacam que o surgimento da escrita acompanhou o surgimento de sociedades humanas mais complexas, com atividades produtivas e comerciais extensivas e com poder estatal estruturado. O aumento da complexidade da vida econômica, social e política trouxe consigo a necessidade do desenvolvimento de sistemas de registros gráficos de contabilidade (estoques de grãos e animais, por exemplo) e administração (decisões governamentais e acordos diplomáticos). A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal respondeu basicamente a esta necessidade. Ao lado dessas dimensões pragmáticas, o desenvolvimento da escrita permitiu também o registro da cultura oral como um todo: poemas, narrativas épicas e religiosas, saberes variados.

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A escrita é fundamentalmente um desenho e, nesse sentido, dá continuidade à antiga experiência humana com o registro figurativo do mundo que observava (os animais desenhados nas paredes da caverna de Altamira, na Espanha, por exemplo) ou das ações que aí ocorriam (as cenas de caça desenhadas nas paredes da caverna de Lascaux, na França, por exemplo). Progressivamente (e sob determinadas demandas práticas), a humanidade percebeu que podia também desenhar a linguagem verbal, ou seja, transpô-la para uma superfície e fixar seu caráter efêmero e evanescente. Nesse processo, variou o elemento verbal tomado como referência. Em alguns contextos, criaram-se signos gráficos que representavam palavras (sistemas logográficos). É o caso da escrita inicial dos sumérios (desenvolvida por volta do quarto milênio antes de Cristo), dos egípcios (terceiro milênio antes de Cristo) e dos chineses (segundo milênio antes de Cristo) – a única dessas escritas antigas ainda em uso. Em outros contextos, criaram-se sistemas silábicos em que cada signo representa uma sílaba, como na escrita da língua da ilha de Chipre anterior à ocupação grega (séculos v e iv a.C.), na escrita da corte dos reis persas aquemênidas em Persépolis (séculos vi a iv a.C.) e na escrita japonesa atual (desenvolvida no século iv d.C.). Os signos dos sistemas de base logográfica foram, de início, verdadeiros pictogramas, ou seja, tinham semelhança com o objeto representado. Com o passar do tempo, os pictogramas foram perdendo esse caráter figurativo e se transformaram em logogramas, signos abstratos que passaram a evocar a palavra em si sem a mediação da imagem do objeto, o que garantiu maior amplitude e funcionalidade ao ato de escrever, já que nem todas as palavras fazem referência a objetos visíveis e figuráveis.

Por outro lado, os sistemas logográficos, a partir de logogramas representativos de palavras monossilábicas, desenvolveram, com o passar do tempo e por um processo de abstração, signos de caráter puramente silábico, ou seja – como destaca o linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) em seu Curso de linguística geral (1970: 36) – certos logogramas, distanciados de seu valor inicial, terminam por representar unidades composicionais da articulação sonora em si. Para entender o processo de abstração subjacente a essa sutil mas profunda transformação, bastaria imaginar que, se a escrita do português fosse logográfica, haveria um logograma para a palavra pé. Com o tempo, este logograma passaria a ser usado também para representar a sílaba /pé/ em qualquer palavra como, por exemplo, a sílaba inicial de pele, pedra, pérola. Ou seja, o signo, além de sua função logográfica, teria adquirido a propriedade de representar uma sequência sonora silábica. De novo, essa mudança aumentou a funcionalidade do sistema de escrita pela sensível diminuição do estoque de signos necessários: uma escrita silábica precisa de muitíssimo menos signos do que uma escrita logográfica. Por esse processo, os sistemas logográficos se tornaram mistos, com sua base logográfica suplementada por silabários. A partir destas representações silábicas se chegou, posteriormente, à escrita alfabética, cujo elemento verbal de referência não são as palavras ou as sílabas, mas as consoantes e as vogais. Embora as unidades verbais tomadas como referência para a construção da escrita alfabética sejam consoantes e vogais, é preciso deixar claro que essa escrita nunca é fonética no sentido estrito do termo, isto é, as letras não representam diretamente os sons da fala, mas sim as unidades funcionais da língua (chamadas tecnicamente de fonemas), que são abstratas.

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A escrita alfabética é, assim, uma escrita de base fonológica, ou seja, toma como referência uma representação abstrata da articulação sonora da língua e não propriamente sua pronúncia. Considerando que a pronúncia varia muito entre regiões, grupos sociais, estilos de fala e mesmo na linha do tempo, uma escrita estritamente fonética seria de pouco alcance e baixa funcionalidade. Apesar disso, o senso comum acredita que a escrita alfabética é fonética e são várias as pessoas que, diante das peculiaridades da ortografia do português, propõem mirabolantes reformas pelas quais cada letra passaria a representar um único som da fala e cada som da fala seria representado por uma única letra. Embora estejam propondo com essas reformas radicais uma solução aparentemente racional para as dificuldades da ortografia, tais reformas inviabilizariam a própria escrita da língua por abrirem mão justamente da sua grande qualidade, ou seja, o grau de abstração da pronúncia (cf., para uma discussão sobre este tema, Lemle, 1981). É esta abstração que garante uma escrita comum e mutuamente compreensível aos falantes das mais diferentes variedades da língua. Dispomos, por exemplo, de uma única forma ortográfica – dente – embora sejam muitas as pronúncias dessa palavra nas diferentes variedades da língua: [d .ti], [d .tI], [d .ti], [d .ti], [d t].1 Os criadores da escrita alfabética tiveram essa fina percepção de que nem toda diferença fônica é relevante e, consequentemente, as letras poderiam remeter não a sons da fala, mas a unidades sonoras abstratas, isto é, àquelas (e apenas àquelas) que têm efetiva funcionalidade na articulação sonora da língua. Desse modo, anteciparam em milênios, na sua genial criação, as formulações teóricas que vieram a ser construídas somente nos últimos dois séculos – primeiro com o desenvolvimento

da fonética, a ciência que tem os sons da fala como objeto; e, posteriormente, com o desenvolvimento da fonologia, a ciência linguística que estuda a organização do sistema sonoro da língua, ou seja, a organização funcional abstrata que preside as emissões concretas da fala. Essa distinção entre fonética e fonologia se faz necessária porque nem todas as diferenças fonéticas têm relevância funcional numa língua. Assim, por exemplo, as duas vogais da palavra casa [ka.z] são foneticamente diferentes (a primeira é uma vogal aberta e a segunda uma vogal média). No entanto, essa diferença fonética não é funcional em português: sua oposição não serve para distinguir palavras e os falantes, em geral, nem sequer percebem a diferença. Dizemos, então, que as duas vogais em questão [a] e [] realizam foneticamente uma única unidade fonológica / a /. Os linguistas que criaram a fonologia deram o nome de fonema a essa unidade fonológica. No caso das duas vogais de casa [ka.z], temos dois sons da fala que realizam foneticamente o mesmo fonema. E, por isso, podem ser grafadas pela mesma letra justamente porque a escrita alfabética remete à realidade fonológica e não fonética. Posteriormente, os teóricos mostraram que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao estudo das letras. Ou seja, há inúmeras formas de desenhar concretamente uma mesma letra (maiúscula ou minúscula, manuscrita ou de fôrma, além das variadas fontes gráficas). Essas diferenças não impedem que reconheçamos todas como realizando a mesma unidade gráfica abstrata a que os teóricos deram o nome de grafema. No fundo, um sistema alfabético, tomando as consoantes e vogais como os elementos linguísticos de referência (e não as palavras ou as sílabas), tem, como princípio de base, uma correlação

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entre fonemas (unidades sonoras abstratas) e grafemas (unidades gráficas abstratas). O seu domínio pressupõe que o aprendiz – mesmo partindo de sons e letras – alcance operativamente esse nível de abstração, ou seja, saiba se desvincular de uma excessiva dependência da fala e, ao mesmo tempo, saiba reconhecer atrás de diferentes formatos gráficos um único grafema. Nesse processo, a mediação da língua falada é inevitável – afinal, o modo de expressão escrita, embora goze de relativa autonomia, tem o modo oral como ponto de referência. Assim, a tendência do aprendiz é depositar grande confiança nessa relação e apoiar-se nela para seus passos iniciais na apreensão do sistema alfabético. Contudo, o domínio efetivo da escrita alfabética vai exigir um salto de qualidade, ou seja, ascender ao patamar das relações abstratas que a caracterizam. Embora as diferenças entre fonética e fonologia, e entre unidades concretas e unidades abstratas sejam necessárias e de fácil apreensão, o discurso pedagógico sobre a alfabetização costuma confundir som da fala e fonema, além de não levar em conta os níveis de abstração envolvidos na escrita alfabética, no seu domínio e no seu uso. Nada impede, obviamente, que a entrada na lógica da escrita alfabética se faça pela mediação dos sons da fala. Mas será preciso não estabelecer uma correlação absoluta entre fonação e escrita para não falsear os princípios que regem, de fato, a escrita alfabética. Como bem disse Vygotsky (2007: 141): A compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada; no entanto, gradualmente essa via é reduzida, abreviada, e a linguagem falada desaparece como elo intermediário.

É preciso lembrar ainda que, no caso específico da ortografia da língua portuguesa, além do pressuposto alfabético de base (relações regulares entre fonemas e grafemas), opera-se também com a memória etimológica (como discutiremos mais detalhadamente em capítulos posteriores). Escreve-se, por exemplo, homem com uma letra inicial que não remete a nenhum fonema, mas preserva um elemento gráfico que estava presente em sua ancestral latina. A memória etimológica tem uma função cultural relevante, mas introduz graus de irregularidades e imprevisibilidades a exigir estratégias de aprendizagem específicas, sem a confiança excessiva na mediação dos sons da fala. Em outras palavras, a entrada na escrita alfabética, seu domínio e seu uso autônomo exigem múltiplas oportunidades de aprendizagem. A metodologia deverá, assim, combinar diferentes estratégias. Se a mediação dos sons pode ser um auxiliar produtivo no caso das relações regulares e previsíveis, ela será, em geral, inútil nos casos de memória etimológica, que exigem uma abordagem integral da palavra (ou seja, uma aproximação pelo todo da palavra e não pelas suas partes). Esta abordagem integral, por sua vez, poderá ser útil como recurso complementar nos casos das relações regulares, oferecendo ao aprendiz caminhos diversos (da parte para o todo e do todo para a parte) para suas ações cognitivas. Outra situação que exemplifica muito bem a relativa distância entre o oral e o escrito é o da segmentação das unidades. Na escrita, escrevemos palavra por palavra, separando cada uma com espaços em branco. O critério de segmentação é basicamente lexical. Já na fala, a segmentação se dá por blocos fonético-fonológicos que reúnem, numa só emissão de voz, várias palavras. O critério de segmentação é basicamente prosódico: a emissão oral

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segue padrões de ritmo e métrica que nos levam, por exemplo, a juntar o fim de uma palavra com o começo de outra. Não há, portanto, coincidência entre o segmento da fala e o segmento da escrita. Escrevemos as asas azuis das araras, mas dizemos [a.za. za.za.zuys.da.za.ra.ras]. Um dos resultados dessa não coincidência é que os alunos, quando começam a produzir sua escrita, costumam grafar várias palavras juntas. Abaurre e Cagliari (1985) mostraram que essas junções não são aleatórias, mas revelam que o aprendiz está tomando estritamente a cadeia sonora como referência para a escrita. Não está, portanto, “errando”, mas operando com uma hipótese que remete diretamente à cadeia falada. Uma das exigências para o efetivo domínio da escrita é aprender, durante o processo, a superar essa hipótese, desvinculando a escrita da fala.

OS CAMINHOS DA ESCRITA ALFABÉTICA A progressiva passagem de sistemas logográficos para sistemas silábicos e alfabéticos é também, como já observamos acima, uma progressão de economia de meios não desprezível. Assim, se um sistema logográfico precisa de muitos milhares de signos, um sistema silábico não precisa mais do que um estoque de cinquenta ou sessenta deles e um sistema alfabético funciona perfeitamente com não muito mais do que duas a três dezenas de signos. Essa escala de economia de meios dá, obviamente, grande versatilidade e funcionalidade ao sistema alfabético, além de favorecer um domínio mais rápido da notação escrita. O princípio da escrita alfabética já é visível na escrita ugarítica. Os escribas de Ugarit, importante centro urbano portuário na costa do Mediterrâneo oriental (onde hoje está o litoral da

Síria), adaptaram, por volta do século xv a.C., os signos da escrita cuneiforme dos sumérios para representar não palavras ou sílabas, mas basicamente consoantes. Quase ao mesmo tempo, os fenícios desenvolveram também uma escrita alfabética basicamente consonântica e cujos signos (as letras) serviram de fundamento para o alfabeto hebraico e também para o alfabeto grego e, por meio deste, para o alfabeto latino – o mais amplamente usado no mundo moderno. Os gregos (por volta do ano 1.000 a.C.) adotaram e adaptaram as letras fenícias, acrescentando-lhes símbolos para a notação integral das vogais. Este alfabeto, com 23 letras, serviu de modelo para outros alfabetos europeus (o dos godos e dos eslavos, por exemplo), em especial para o alfabeto latino que começa a ser delineado por volta do século vii ou vi a.C. e alcança seu formato clássico por volta do século i a.C. A diversidade de formas de escrita, observável na história e na atualidade, é exemplo tanto da engenhosidade humana, quanto da vasta riqueza cultural da humanidade.

A ESCRITA E A CULTURA LETRADA A criação da escrita teve duradouros impactos na cultura humana. Se, de início, o meio escrito teve funções essencialmente práticas, logo passou a ser usado no registro da poesia, das crenças, da memória coletiva, das leis sociais e do conhecimento em geral. Paralelamente à cultura oral, foi, então, tomando forma a cultura letrada que transformou profundamente a vida humana. A inscrição das leis foi dando a base para a organização de sociedades cada vez mais complexas; a fixação das crenças acabou por estruturar religiões que espalharam suas visões de mundo e

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preceitos de vida por grandes espaços geográficos; a escrita do imaginário favoreceu a transmigração intercultural de símbolos, valores e arquétipos, resultando numa explosiva espiral criativa; a escrita amplificou enormemente o potencial de memória da humanidade; e, por fim, o registro do conhecimento permitiu o seu crescimento exponencial na medida em que facilitou o desenvolvimento de modos de organização intelectual mais sistemáticos e monitorados e, portanto, de práticas cognitivas mais abstratas e formalizadas que levaram, por exemplo, ao desenvolvimento da matemática, das ciências e das tecnologias. Quando falamos, então, de cultura letrada estamos nos referindo não apenas aos sistemas de transcrição gráfica da linguagem verbal (a escrita não se esgota na notação), mas, fundamentalmente, de uma vasta e complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas socioculturais que a criação destes sistemas tornou possível. Mencionamos anteriormente que o meio de expressão escrita, diferentemente do meio de expressão oral, exige, para seu domínio, atividades de ensino sistemático. Dessa forma, a instituição escolar, em qualquer dos seus formatos históricos, é fruto da criação da escrita e existe milenarmente para dar acesso ao código gráfico e, principalmente, para transmitir a cultura letrada. Podemos dizer, então, que escrita, escola e cultura letrada estão historicamente em relação simbiótica. A prática continuada da escrita foi motivando o desenvolvimento e a consolidação de várias tradições discursivas. Dentre elas, podemos citar, por exemplo, as convenções gráficas corporificadas nos diferentes desenhos dos logogramas, dos silabogramas e das letras, na composição da página, nas direções de sua ocupação – se da direita para a esquerda, como na escrita árabe; ou se da esquerda para a direita, como na escrita latina.

Inclui-se também nas tradições discursivas da escrita a formatação dos modos de dizer, materializados estes em diferentes gêneros e tipos de textos e no privilegiamento de determinados elementos lexicais e morfossintáticos da língua considerados adequados para a expressão escrita. Nesse sentido, a própria prática histórica da escrita foi delimitando as variedades da língua passíveis de ocorrerem nela (realidade linguística a que damos hoje o nome de norma culta escrita). Aprender as práticas escritas exige um mergulhar em todas essas tradições discursivas. Trata-se de uma complexa experiência cognitiva que não começa nem termina com o domínio do alfabeto. A alfabetização é apenas o momento específico de aprendizado do sistema de notações gráficas. E dizemos que não começa nem termina com a alfabetização porque, como mostrou detalhadamente Vygotsky, a criança, em seus primeiros anos de vida e anteriormente ao aprendizado do alfabeto, deve vivenciar todo um conjunto de experiências simbólico-cognitivas (conjunto a que ele deu o nome de pré-história da escrita) materializadas principalmente nos jogos e brinquedos infantis e nos rabiscos e desenhos. Segundo Vygotsky (2007: 140-1), os gestos de representação simbólica presentes em cada uma dessas atividades devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento em direção à linguagem escrita. Haverá descontinuidades, saltos, retrocessos e avanços, mas subjacente a todas estas atividades semióticas há um mesmo funcionamento simbólico a caracterizar sua unificação e continuidade: nos jogos e brincadeiras, nos rabiscos e desenhos, e na escrita, há uma realidade simbólica em que determinado objeto representa outro – a vassoura “funcionando” como um cavalo, o

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desenho de uma árvore no lugar da árvore e, finalmente, as letras representando a linguagem verbal. Por outro lado, a criança deve também passar pela percepção das funções sociais da escrita alcançada, em especial, pela observação do uso da escrita pelos adultos, pela experiência da leitura que os adultos fazem para ela, pelo manuseio de livros e revistas, pelos jogos com letras e números, etc. As experiências simbólico-cognitivas do desenho e do brinquedo e o contato com a língua escrita mediado pelos adultos são fatores constitutivos do processo de letramento da criança e a preparam para o trabalho escolar sistemático com o alfabeto e a linguagem verbal escrita. A eventual falta destas experiências da pré-história da escrita nos anos anteriores à escolarização – o que é comum na vida das crianças pertencentes a segmentos sociais pouco letrados (com pais analfabetos ou apenas precariamente alfabetizados e escolarizados) – afeta negativamente o processo de alfabetização. Nosso sistema escolar público tem vivido agudamente este problema que se manifesta nas grandes dificuldades que tem enfrentado para alfabetizar as crianças. Nossa escola tem ainda de descobrir meios para preencher, antes e durante a iniciação ao alfabeto, essa lacuna de letramento. Temos de reconhecer que ainda nos falta uma pedagogia da alfabetização de crianças oriundas de meio social pouco letrado adequadamente inserida numa pedagogia do letramento. Dominado o alfabeto (desvendada a lógica da notação gráfica), o processo deve, então, continuar com novas experiências sociocognitivas de letramento que passam pela fixação das convenções gráficas (a ocupação da página, a grafia das palavras, a acentuação e a pontuação), mas principalmente pela familiari-

zação com os gêneros e tipos de textos de ampla circulação social (sua leitura e produção), o que inclui, por fim e paralelamente, o domínio das características da norma culta escrita. Neste ponto, é interessante lembrar que a própria conquista do alfabeto e da lógica da escrita alfabética pela criança passa por estágios de desenvolvimento, como mostrou, na década de 1920, o psicólogo russo Alexander Luria (1902-1977); e, posteriormente, dentro do quadro da psicologia piagetiana, a psicóloga argentina Emilia Ferreiro em seu trabalho conjunto, nos finais da década de 1970, com a pedagoga argentino-espanhola Ana Teberosky. Estes estudos mostram a criança, diante da escrita, como um ser cognitivo ativo, levantando e experimentando hipóteses, fazendo invenções e tentativas num processo que, dinamicamente inter-relacionado com a mediação dos adultos, resulta no desvendamento da lógica da escrita alfabética. Luria (1988: 188) considera indispensável que os educadores que trabalham com crianças de idade escolar estejam familiarizados com esta ação cognitiva ativa da criança para poderem exercer adequadamente seu papel de mediadores do conhecimento e para não caírem no equívoco de reduzir a criança a um ser cognitivo passivo. É nesse sentido que Vygotsky (2007: 144) vai afirmar que cabe ao educador “fazer com que a escrita seja desenvolvimento organizado, mais do que aprendizado”. A observação de toda essa rede de processos cognitivos envolvidos no domínio da escrita mostra como este meio de expressão verbal foi progressivamente se tornando uma elaborada e complexa arte, revestindo-se de sofisticados procedimentos técnicos e sendo recoberta por expectativas socioculturais específicas quanto a seu modo de realização e por uma densa teia de valores sociais. Com isso tudo, o meio escrito de expressão adquiriu também relativa autonomia frente ao meio de expressão oral. Longe

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de ser mera transcrição da fala ou mero instrumento auxiliar, secundário, suplementar da expressão oral, a escrita é, na verdade, um modo específico de verbalizar, é uma forma de expressão da linguagem verbal com características e dinâmicas próprias. Nesse sentido, dominar o meio oral não é condição suficiente para dominar o meio escrito. Embora inter-relacionados por serem meios de expressão da mesma linguagem verbal, cada um tem seu próprio modo de existir. São, no fundo, irredutíveis um ao outro e, por isso mesmo, demandam, para seu domínio, experiências e trajetórias cognitivas específicas. A importância que a escrita foi adquirindo na vida das sociedades humanas e o prestígio daí resultante puseram o texto escrito – em especial os textos canônicos (religiosos ou artísticos) da cultura – no centro das preocupações intelectuais. O cuidado em garantir o registro e a transmissão sem alterações do texto religioso (como na cultura hindu) ou do texto literário (como na cultura grega) redundou no desenvolvimento de ramos do conhecimento dedicados especificamente ao estudo do texto escrito e da linguagem verbal como um todo.

FILÓLOGOS, GRAMÁTICOS, LINGUISTAS Dentre estes estudos, está a filologia criada pelos eruditos agregados à Biblioteca de Alexandria, a maior biblioteca do mundo antigo, fundada no século iii a.C. Nela se reuniu uma grande coleção de manuscritos gregos antigos com textos de poetas, dramaturgos, filósofos e historiadores. Seu corpo de estudiosos se dedicou não só a catalogar todo esse precioso acervo, mas principalmente a estabelecer, a partir do

estudo criterioso dos fragmentos disponíveis, o texto que se poderia considerar como definitivo da obra de cada um dos autores gregos clássicos. Por razões óbvias, os grandes poemas de Homero (Ilíada e Odisseia), escritos provavelmente no século viii a.C., receberam particular atenção dos estudiosos alexandrinos. Esse criterioso trabalho se fazia necessário porque os manuscritos do mesmo texto variavam entre si ou estavam danificados e rasurados; tinham lacunas, trechos obscuros, acréscimos ou cortes indevidos. Dedicando-se a fixar uma forma aceitável dos textos clássicos, os sábios alexandrinos preservaram e nos legaram todo um conjunto de obras fundamentais da cultura humana. Para realizar esse trabalho inestimável, os sábios alexandrinos tiveram de criar os métodos que, mesmo aperfeiçoados posteriormente, constituem ainda hoje a base de qualquer atividade de edição crítica dos textos reconhecidos como clássicos da cultura – textos literários, filosóficos, religiosos. Os livros da Bíblia, por exemplo, têm sido objeto de intenso trabalho filológico desde o século xvi, período em que se iniciaram suas traduções para as línguas modernas. Foi preciso, então, fixar bons textos de referência a partir dos manuscritos antigos, trabalho que se estende até hoje como consequência da eventual descoberta de novos manuscritos. Em resumo, podemos dizer que o objeto de estudo do filólogo são manifestações escritas antigas culturalmente importantes e seu objetivo é fixar esses textos numa forma que possa ser considerada confiável, isto é, a mais próxima possível do original. Para isso, o filólogo tem de comparar diferentes manuscritos ou (depois da invenção da imprensa) diferentes edições de um mesmo texto, buscando livrá-lo de defeitos decorrentes do processo de sua transmissão. O produto de seu trabalho é uma edição crítica do texto.

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Como parte desse trabalho envolve um estudo pormenorizado das palavras e de seus sentidos nos textos, os filólogos se dedicam também ao estudo da etimologia (isto é, a investigação da origem e da história das palavras) e se envolvem diretamente com a feitura de dicionários. Assim é que os organizadores dos dois mais importantes dicionários brasileiros contemporâneos da língua portuguesa – Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Antônio Houaiss – se consideravam filólogos. O estudo criterioso dos textos levou os filólogos alexandrinos a descrever e comentar a língua que ali encontravam: aspectos de métrica, ortografia e pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, conjunções, etc.); a estrutura sintática da oração simples (sujeito, predicado, complementos, adjuntos) e dos períodos (coordenação e subordinação); o uso das figuras de linguagem, as características da individualização estilística e assim por diante. Com o tempo, esses estudos passaram a constituir um ramo autônomo do conhecimento: a gramática. Costuma-se atribuir a um desses filólogos alexandrinos, Dionísio Trácio, do século ii a.C., a autoria da primeira gramática conhecida. Ao consolidar descrições de aspectos da língua grega, sua obra foi tomada como modelo dos estudos gramaticais posteriores. Dionísio Trácio conceituava a gramática como “o conhecimento empírico do comumente dito nas obras dos poetas e prosadores” (cf. Chapanski, 2003), ou seja, o estudo da língua conforme usada comumente pelos escritores em seus textos. Enquanto a filologia estudava e comentava os textos dos grandes escritores (fixando-lhes a melhor forma), a gramática se concentrava no estudo das características da língua correntes na sua escrita.

O objeto do gramático era, portanto, a língua escrita exemplar, ou seja, a língua dos grandes escritores. E o gramático perseguia dois objetivos: descrever essa língua e, ao fazê-lo, estabelecer um modelo, um padrão a ser seguido por todos os que se dedicassem a escrever. Por isso, a gramática já de início se tornou matéria da escola – instituição que, em princípio, teria como uma de suas tarefas ensinar as pessoas a escrever bem. A filologia e a gramática são, portanto, ramos do conhecimento criados pela cultura helenística nos três últimos séculos anteriores à nossa era. Já a linguística, o terceiro ramo do conhecimento dedicado ao estudo sistemático da linguagem verbal, se constituiu no contexto da ciência moderna, a partir do século xviii. Dos três especialistas, o mais conhecido do público em geral é o gramático. E isso certamente porque, bem ou mal, todos estudamos um pouco de gramática na escola. Essa antiga ligação entre gramática e ensino da língua contribui para familiarizar o público com o trabalho do gramático. Já dos outros dois especialistas o público sabe muito pouco. A razão disso talvez seja o fato de que suas respectivas atividades se realizem basicamente no contexto da pesquisa universitária, que é, em geral, menos visível para o público pelo seu grau maior de especialização. Dos três, o gramático é o especialista que tem uma preocupação nitidamente normativa, isto é, ele se ocupa em estabelecer, a partir daquilo que é corrente nos escritores, as normas do chamado “bom uso” para a escrita, isto é, os modelos de língua consagrados pelas tradições discursivas para as principais práticas sociais da escrita. O gramático é também o especialista que mais recebe críticas. E a razão principal para isso é o fato de que muitos deles

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não pesquisam criteriosamente o uso corrente entre os escritores (como defendia seu patrono Dionísio Trácio). Contentam-se em reproduzir, talvez por inércia, usos que já não são comuns (a língua é um fenômeno que muda continuamente) e condenam, sem muito fundamento, novas formas de expressão já amplamente disseminadas entre os escritores. Com isso, a gramática vai perdendo sua funcionalidade como instrumento de referência normativa. Em consequência, a escola e quem escreve ficam sem um manual confiável. Alguns dos nossos gramáticos, talvez por terem sólida formação filológica e linguística, produziram gramáticas um pouco mais arejadas. É o caso de Celso Cunha (cuja gramática tem sido editada em coautoria com o filólogo português Lindley Cintra), Evanildo Bechara e José Carlos de Azeredo. Mas há ainda um longo caminho a ser percorrido até alcançarmos, no Brasil, uma boa gramática normativa de referência, isto é, atualizada e realista.2 Por outro lado, é preciso ter claro que o modelo de descrição gramatical criado pelos gregos é insuficiente para descrever toda a complexidade de uma língua ou para dar conta da enorme diversidade gramatical das línguas do mundo. É um modelo ainda útil (a classificação das palavras, por exemplo, é a que se usa na organização dos dicionários) e pode ser um bom ponto de partida para a descrição. Contudo, desde o século xix, no contexto da ciência moderna, tem havido sucessivos esforços no sentido de encontrar modelos mais adequados para a tarefa de descrever uma língua e de dar conta da diversidade estrutural das línguas do mundo. A tarefa é hercúlea e está longe de ser alcançada. Só para se ter uma ideia da complexidade dos fenômenos linguísticos basta lembrar que nenhuma língua do mundo foi ainda satisfatoriamente

descrita. Quer dizer: embora a(s) língua(s) seja(m) tão banal(is) na nossa vida, não conseguimos ainda dar a ela(s) uma representação científica abrangente. E aqui entra em cena a linguística, que é a disciplina científica moderna que tem como objeto as línguas em si mesmas consideradas. O que distingue, então, o linguista dos outros especialistas? São muitas as diferenças, mas podemos resumi-las às seguintes: a) o linguista se interessa por todo e qualquer fenômeno linguístico (o filólogo só se interessa por uma parte das manifestações linguísticas, ou seja, pelos textos escritos canônicos; e o gramático só se interessa pela chamada norma culta); b) enquanto o filólogo e o gramático dirigem seu foco de atenção para a língua escrita, o linguista dá prioridade aos fenômenos da língua falada. Isso porque a fala é a modalidade de expressão universal: todas as línguas têm uma face oral, apenas algumas têm também uma face escrita. Apesar dessa primazia, o linguista, na medida em que se interessa por todo e qualquer fenômeno linguístico, se volta também para a língua escrita (a chamada linguística textual, por exemplo, tem trazido muitas contribuições para uma compreensão mais refinada da escrita). Nesse caso, o linguista não se limita à escrita de prestígio, mas estuda toda e qualquer manifestação escrita; c) por fim, enquanto o gramático é essencialmente normativo, o linguista enquanto tal não o é. Em termos simples, o linguista diz como a língua é; o gramático diz como certos comportamentos linguísticos devem ser.

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Esse último ponto tem gerado vários equívocos. Alguns gramáticos (e, por consequência, pessoas da mídia e mesmo professores) têm dito que os linguistas são contra a norma culta e seu ensino porque, segundo esses detratores, para os linguistas “tudo vale”. Embora algumas vezes a falação contra os linguistas chegue a ser sanguínea e raivosa, tudo não passa de um tigre de papel. Claro que para os linguistas tudo vale: como bons cientistas, eles querem descrever e compreender todo e qualquer fenômeno linguístico, inclusive a norma culta. Foram, aliás, os linguistas, na chamada sociolinguística, que desenvolveram os melhores métodos para descrever a norma culta. Justamente por isso, os linguistas são críticos do excessivo conservadorismo e anacronismo das nossas gramáticas tradicionais. Mas, exatamente por entenderem as funções socioculturais da norma culta e por terem desenvolvido os métodos para sua descrição, os linguistas defendem, sem subterfúgios, o seu ensino, mas também a urgente necessidade de se elaborarem referenciais normativos sustentados pelos fatos e não pela mera opinião. Em resumo, as três especialidades não se excluem. Ao contrário. Cada uma delas tem suas tarefas específicas e deve cumpri-las bem, sendo absolutamente indispensável o intercâmbio dos respectivos resultados. Sem uma sólida base filológica e linguística, uma gramática deixa muito a desejar. Por outro lado, a informação filológica é indispensável para o linguista que estuda a história da língua. Ainda: conhecer o saber gramatical acumulado é sempre ponto de partida para os estudos linguísticos e filológicos. Por fim, os instrumentos descritivos desenvolvidos pela linguística, seguindo

os pressupostos da atividade científica moderna, são fundamentais para renovar a gramática e a filologia.

NOTAS 1

Utilizamos aqui, para representar a fala, as convenções do Alfabeto Fonético Internacional. No Apêndice, o leitor encontra um rol dos símbolos usados no livro. Por oportuno, lembramos que transcrições postas entre colchetes são fonéticas e entre barras, fonológicas.

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Não nos faltam, para isso, bons materiais resultantes de pesquisas empíricas sistemáticas. Vale aqui mencionar a Gramática do português culto falado no Brasil (coordenada por Ataliba de Castilho), a Gramática de usos do português (organizada por Maria Helena Moura Neves), o Dicionário de usos do português do Brasil (organizado por Francisco da Silva Borba), as Gramáticas de Castilho, Perini e Bagno, além dos muitos estudos de sociolinguística e dialetologia da realidade linguística brasileira.

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ESCRITA E ESCOLA

A EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA À relação simbiótica que mencionamos anteriormente entre escrita, cultura letrada e escola agregaram-se, portanto, o estudo do texto e o saber gramatical, que passaram a ser tidos como os fundamentos da educação linguística. É precisamente essa teia de relações que vamos encontrar definida na obra pedagógica clássica da cultura greco-romana, a Institutio Oratoria, escrita pelo professor romano de retórica Marco Fábio Quintiliano em 96 d.C.1 Nesse trabalho, o objetivo principal do autor é dar diretrizes para o ensino de retórica, ou seja, para a formação do homem que fala bem em público. A educação formal em Roma era voltada exclusivamente para os jovens aristocratas do sexo masculino e seu ideal era formar bons oradores, ou seja, homens capazes de defender teses frente aos juízes e de discursar no Fórum ou no Senado com excelência e beleza. O centro da educação romana estava, portanto, na educação linguística. E Quintiliano a dividia em três momentos: a) iniciava-se pela alfabetização (ou seja, pelo domínio do código alfabético);

b) passava pelas aulas do grammaticus (o professor responsável pelo exercício da leitura e do comentário dos textos dos grandes escritores – encarados como os modelos a serem criativamente seguidos pelos aprendizes – e também pelo ensino de gramática, ou seja, das propriedades da língua escrita); c) e terminava com o professor de retórica com quem, então, se trabalhava o que, segundo Quintiliano, era o mais importante na educação linguística: a aquisição da competência oratória. 76

Neste ponto, é importante destacar que a prática da oratória como desenvolvida na cultura greco-romana é, de fato, um elemento típico da cultura letrada. Embora seja uma prática oral, seu desenvolvimento histórico e suas características refletem claramente as competências que a escrita deu à humanidade. A articulação e a apresentação oral de um longo argumento decorrem dos modos de organização intelectual mais sistemáticos e monitorados e, portanto, das práticas cognitivas mais abstratas e formalizadas que a escrita viabilizou. Nesse sentido, um discurso oral tem, no seu substrato, o modo de articulação do texto escrito. Em outras palavras, a escrita teve efeitos significativos até mesmo sobre a oralidade. Daí estarem imbricados, na pedagogia de Quintiliano, o trabalho com a língua escrita e o desenvolvimento das práticas oratórias. A educação para a escrita foi, na Antiguidade, sempre para poucos porque, durante milênios, a escrita foi prática socialmente muito restrita. Esteve vinculada apenas aos núcleos do poder econômico, político e religioso. Só no último milênio e meio é que este perfil começou a ser progressivamente alterado. E alguns acontecimentos desse percurso merecem especial destaque. Primeiro, o desenvolvimento do design do códice – o objeto antecessor imediato do livro como o conhecemos hoje. Por

volta do século v d.C., o códice já havia substituído na Europa os antigos rolos de papiro. O segundo acontecimento fundamental foi o desenvolvimento da tecnologia do papel; e, finalmente, a invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg no século xv. O códice introduziu inúmeras vantagens sobre os antigos rolos, em especial a possibilidade de encadernar um texto longo integralmente num só volume, com todas as decorrentes facilidades para seu manuseio. A tecnologia do papel, por sua vez, permitiu diminuir sensivelmente o tamanho dos volumes. E a prensa de tipos móveis viabilizou a produção do livro em grande escala. Com isso, foi possível amplificar o alcance social da língua escrita – multiplicou-se a prática social da escrita, ampliou-se o público leitor e a prática social da leitura individual e silenciosa, e iniciou-se a construção de grandes bibliotecas públicas. Podemos, então, dizer que desde o século xv a humanidade ingressou na era do livro. E este se manteve por 500 anos como o suporte central, soberano e quase exclusivo do registro e da circulação da cultura letrada. Todo esse processo histórico que acabamos de resumir foi responsável, portanto, pelo despertar da necessidade de se disseminar o domínio da leitura e da escrita. O século xvi vai, então, conhecer a primeira grande onda moderna de alfabetização de expressivos segmentos sociais – a tecnologia permitia a multiplicação de livros, os ideais humanistas do Renascimento estimulavam o saber letrado e a Reforma religiosa conduzida por Lutero, ao formular o princípio do sacerdócio universal de todos os crentes, desencadeava a necessidade de todos terem acesso direto ao texto bíblico. Para alcançar este último objetivo, dois pré-requisitos se impunham: era preciso traduzir o texto bíblico para as línguas

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modernas e, ao mesmo tempo, alfabetizar o maior número possível de pessoas. A difusão do pensamento religioso reformado foi acompanhada de uma intensa atividade de tradução da Bíblia (iniciada pelo próprio Lutero, que fez a tradução para o alemão) e de um forte movimento pedagógico alfabetizador. Abria-se assim a modernidade. De um lado, as línguas vernáculas, ou seja, as línguas vivas modernas, começavam a ocupar o centro da vida cultural escrita, progressivamente substituindo o latim. E, de outro, a humanidade conhecia seu primeiro grande ciclo de expansão no número de alfabetizados e leitores, em especial nos países europeus que adotaram os princípios da Reforma. No início do século xvii, em 1627, foi publicado o primeiro tratado pedagógico moderno, a Didática Magna de Jan Comenius (intelectual ligado à tradição religiosa reformada).2 Pode-se dizer que sua obra é a síntese pedagógica desse novo tempo. Nela, o autor defende, por exemplo, que toda a juventude, de um e de outro sexo, deve ser enviada às escolas públicas, ou seja, deve-se ensinar tudo a todos (e não só aos jovens aristocratas do sexo masculino). Por isso mesmo, a educação fundamental deve ser primordialmente na língua materna e não em latim. Com esta última proposta, Comenius reflete todo o processo renascentista de valorização das línguas modernas e rompe com a tradição pedagógica medieval que tinha o latim como língua de ensino e como objeto central da educação linguística. Esse ideal pedagógico medieval sobrevivia na pedagogia dos jesuítas conforme consubstanciada no documento Ratio Studiorum, que, publicado em 1599, orientou até o século xviii a educação nos países católicos, conduzida basicamente por aquela ordem religiosa.3 Nesse sentido (e também pelo fato de a Ratio Studiorum limitar a educação aos jovens do sexo masculino), o pensamento

de Comenius contrasta fortemente com o que postulavam os jesuítas. No fundo, mais uma manifestação do embate entre o moderno e o arcaico. Comenius se distancia também da pedagogia medieval e dos jesuítas ao defender que não se deve aprender a língua a partir da gramática, mas a partir dos autores apropriados. Ou seja, a gramática deve ser apenas auxiliar (como era, aliás, em Quintiliano). O núcleo da educação linguística deve ser, primeiro, o contato direto e permanente com os textos dos bons autores e, segundo, a prática contínua com vistas a desenvolver as competências de fala, leitura e escrita. Foi durante o período medieval que a gramática pulou da posição de saber auxiliar para a de saber central. Como sabemos, a língua da cultura letrada na Europa ocidental foi o latim mesmo depois do fim do Império Romano e assim permaneceu durante toda a Idade Média. No entanto, quanto mais distante das fontes vivas, mais complexo o seu domínio. O latim, nestas circunstâncias, era, de fato, uma língua segunda (não era mais a língua materna de ninguém) e artificial (não dispunha mais de referências vivas). Para se aprender tal língua, era preciso conhecer prévia e detalhadamente sua estrutura gramatical, o que só se alcançava (em decorrência da falta de modelos vivos) pelo seu estudo sistemático e altamente monitorado. Não é de admirar, portanto, que o ensino da gramática tenha passado a ocupar o lugar central na educação linguística medieval e que os jesuítas, dentro do espírito conservador da Contrarreforma, o tenham mantido na mesma posição. Ainda hoje está presente nas discussões sobre o ensino de língua materna este antigo embate – ou seja, saber que lugar deve ocupar o ensino da gramática na educação linguística: lugar auxiliar

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(como nas concepções de Quintiliano e Comenius) ou lugar central (como na concepção medieval consolidada pela Ratio Studiorum). Uma segunda grande onda alfabetizadora veio a ocorrer de meados do século xix em diante. Agora, o móvel eram, principalmente, as demandas da produção industrial que, à medida que crescia e se sofisticava tecnologicamente, ia exigindo trabalhadores cada vez mais qualificados. Soma-se a essa demanda econômica o desenvolvimento do pensamento político saído das revoluções burguesas do século xvii (inglesa) e xviii (americana e francesa). Esta nova maneira de pensar a sociedade e o poder político colocou, como justificativa do exercício do poder político, a soberania do povo no lugar do (chamado) direito divino dos reis. E transformou os indivíduos de súditos de um monarca em cidadãos com igualdade de direitos políticos. Ter acesso à educação passou a ser um requisito básico para o exercício pleno da cidadania e democratizá-la passou a ser meta das sociedades industriais avançadas. Como decorrência desses fatores econômicos e políticos, os países europeus industrializados e os Estados Unidos já haviam universalizado, no fim do século xix, o ensino fundamental de quatro séries e vieram a universalizar o de oito séries na metade do século xx e o ensino médio por volta da metade da década de 1950.

A SITUAÇÃO BRASILEIRA Esta onda alfabetizadora e educacional não alcançou, porém, os países periféricos. Ainda hoje o Brasil, por exemplo, se ressente desse atraso. Só muito lentamente foi diminuindo sua população analfabeta. O número de analfabetos no país é ainda relativamente elevado – as estatísticas dizem que cerca de 11% da população adulta é analfabeta.

Pior, no entanto, é saber que, conforme dados publicados pelo ibge no ano de 2009 (cf. Folha de S.Paulo, 14 jul. 2009), 12% das crianças brasileiras de 8 e 9 anos são analfabetas – índice que chega a 23% no Nordeste e a absurdos 38% no estado do Maranhão.4 Não só não temos conseguido eliminar o analfabetismo adulto, como continuamos a produzir novas gerações de analfabetos. Os índices do Censo Escolar mec-ibge mostram que há uma forte correlação negativa entre índices de analfabetismo e o idh (Índice de Desenvolvimento Humano) de cada região: quanto maior o índice de analfabetismo, menor o índice de desenvolvimento humano. Portanto, nosso desenvolvimento social se ressente fortemente da lacuna histórica que nos acompanha há séculos. Acrescentemos a estes dados, o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional – inaf.5 Em sua quinta edição (realizada em 2005), o inaf mostrou que só 26% dos brasileiros na faixa de 15 a 64 anos são plenamente alfabetizados. Ou seja, leem corriqueiramente, entendem textos longos medianamente complexos e escrevem com relativa fluência. Este percentual equivale a aproximadamente 30 milhões de pessoas numa população de quase 200 milhões. Aproximam-se desse dado os resultados de Retratos da Leitura no Brasil, pesquisa periodicamente realizada pela Câmara Brasileira do Livro. Em sua versão de 2007, essa pesquisa indica que são só 26 milhões os brasileiros que consomem livros regularmente.6 Por outro lado, nós entramos no século xxi sem ainda ter universalizado sequer a educação fundamental de oito séries. Quanto ao ensino médio, não temos ainda qualquer horizonte visível de universalização. Ainda hoje, mais de cem anos depois da formalização da disciplina de língua portuguesa na escola (que ocorreu oficialmente

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em 1872), o nível de letramento da maioria das nossas crianças e adolescentes é baixíssimo e, pior, não tem evoluído desde que começamos a avaliar o domínio de leitura das crianças da quarta e da oitava séries e dos jovens concluintes do ensino médio. O saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e a Prova Brasil – o primeiro criado em 1993 e realizado a cada dois anos até 2005 quando foi substituído pela Prova Brasil, que vem se realizando até hoje – revelam índices baixíssimos de domínio da leitura.7 O saeb de 2003, por exemplo, apontou que apenas 5% dos alunos da quarta série tinham desempenho adequado nos testes de compreensão de leitura; apenas 9% dos alunos da oitava série e apenas 6% dos concluintes do ensino médio. Uma conclusão óbvia desses dados que não evoluem há quase vinte anos é que o nosso sistema escolar não sabe letrar a maioria de seus alunos. Não conseguimos ainda, portanto, renovar nosso ensino de língua materna; falta-nos criar uma pedagogia capaz de responder efetivamente à demanda da educação letradora democrática. Apesar desse atraso e dessas lacunas, a história não nos dá descanso. Hoje, já não basta letrar para o livro e seus parceiros da mídia impressa (jornais e revistas). As bases tecnológicas do registro e da circulação da informação e do conhecimento se alteraram profundamente. De certo modo, estamos vivendo uma revolução tecnológica semelhante à que ocorreu com a invenção da prensa de tipos móveis. É mais que evidente que terminou o ciclo de 500 anos do domínio exclusivo e soberano da mídia impressa.

A MÍDIA IMPRESSA E AS OUTRAS MÍDIAS Este ciclo de 500 anos está se encerrando principalmente em decorrência da criação e disseminação dos meios técnicos que viabilizaram a chamada comunicação de massa – o cinema a partir dos primeiros anos do século xx, o rádio a partir da década de 1920, a televisão a partir da década de 1950 e, finalmente, a internet a partir da década de 1990. Com esses novos meios, criaram-se alternativas robustas para a circulação massiva da informação. O cinema, o rádio e a televisão preencheram um imenso vazio. Em todo o mundo, a massa dos analfabetos (plenos ou funcionais) foi finalmente alcançada pela informação, pela sedução da oralidade e principalmente pela sedução da imagem. A parcela efetivamente letrada da população mundial perdeu a sua quase exclusividade de acesso à informação. Por outro lado, a literatura – referência central na era do livro – conheceu, neste mesmo período, competidores poderosos no cinema e na televisão. Livro algum consegue alcançar um quantitativo de público semelhante ao de um filme ou de uma novela ou série televisiva. Isso tudo não significa dizer que o livro e a mídia impressa em geral estejam mortos. A mídia impressa continua conosco e temos de continuar a lidar com ela e a letrar para ela. As mudanças tecnológicas que o século xx produziu não destruíram (nem vão destruir) a mídia impressa. Estão sim redesenhando suas funções culturais, ao mesmo tempo que redesenham o próprio sentido de palavras como alfabetização e letramento. Mergulhar na cultura letrada implica hoje aprender a transitar por vários suportes tecnológicos simultaneamente (todos eles, aliás, direta ou indiretamente correlacionados com a língua escrita

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e frutos da cultura letrada). É preciso dominar a base material dos suportes tecnológicos. Mas não só isso. Se a alfabetização para a mídia impressa não se esgota no domínio do alfabeto, mas pressupõe a imersão nas tradições discursivas das práticas sociais de escrita e a apreensão da lógica cognitiva que subjaz a ela, do mesmo modo a alfabetização e o letramento para o mundo virtual multimidiático e hipertextual não se esgota no domínio das suas bases materiais. A sociedade e a cultura atuais estão construindo novas tradições discursivas e desenvolvendo novas lógicas cognitivas a partir do cruzamento de linguagens e suportes que a tecnologia permite. Sem perder os ganhos do grande ciclo do livro, passamos a dispor de outros muitos caminhos para a informação e para o conhecimento. O próprio livro, objeto ícone da mídia impressa, está adquirindo um novo suporte digital com várias consequências para a difusão da informação, do conhecimento e da literatura, e para as práticas de leitura. Temos de aprender a conciliar isso tudo. Temos de aprender a transitar neste mundo infinito e sem limites. Temos de aprender a desenvolver nossas capacidades críticas e produtivas neste meio. Alcançar estas metas no Brasil, porém, não é tarefa fácil, considerando que entramos na era da imagem e do meio virtual multimidiático e hipertextual sem ter sequer universalizado o domínio do alfabeto e sem ter democratizado o acesso à mídia impressa. Ou seja, as mudanças tecnológicas e culturais nos alcançaram sem que tivéssemos consolidado razoavelmente a cultura do livro e da linguagem escrita. Estamos ainda, portanto, desafiados a formular e concretizar um projeto político-pedagógico capaz de vencer este atraso e, ao mesmo tempo, responder às novas realidades e demandas postas pelas tecnologias da informação e da comunicação.

PARA UM PROJETO PEDAGÓGICO LETRADOR Parece-nos que a pedra angular deste projeto político-pedagógico deverá ser um compromisso com a expansão do letramento da maioria dos alunos, já que eles vêm de segmentos sociais historicamente excluídos do acesso pleno à escrita e à cultura letrada. Não se trata (como destacamos anteriormente) de dar aqui uma interpretação restrita ao termo letramento. Ele não diz respeito apenas à alfabetização e ao domínio do saber enciclopédico tradicionalmente cultuado e transmitido pela escola. A cultura letrada pressupõe obviamente a alfabetização e compreende um certo acúmulo relativo de saberes cuja construção e expansão só se tornaram possíveis pela criação da escrita e redundaram, por exemplo, na matemática, nas ciências e tecnologias que, apropriadas pelo capital, trouxeram as mudanças produtivas e socioculturais da atualidade. No entanto, o mais importante não é em si esse produto histórico que a escrita viabilizou, mas as práticas cognitivas e socioculturais que se desenvolveram com seu surgimento e expansão. Como bem sintetiza Britto (2004: 133): O aspecto mais significativo do desenvolvimento da escrita, contudo, foi a expansão da possibilidade de memória registrada e de formas de organização intelectual mais sistemáticas e monitoradas. A principal diferença entre o texto escrito e a oralidade não está na reorganização do fluxo sintático, mais controlado e descontextualizado, mas na possibilidade de novas performances cognitivas, entre as quais se destacam certos processos de formalização do

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pensamento, o que teria conduzido, entre outras coisas, ao desenvolvimento da matemática e das ciências positivas e instaurando uma cultura escrita, que supõe produtos culturais e modos de participação que vão além do conhecimento de normas de uso do código.

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Quando falamos de cultura letrada estamos nos referindo, então, a uma complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas sociais vinculadas direta ou indiretamente com a leitura e a escrita. A imersão nessa rede é requisito para transitar com autonomia nas novas condições de existência dadas no mundo contemporâneo. Como destaca Britto (2004: 134): Quanto maior o letramento, maiores serão, entre outras coisas, a manipulação de textos escritos, a realização de leitura autônoma (sem intervenção ou apoio de outra pessoa), a interação com discursos menos contextualizados ou mais autorreferidos, a convivência com domínios de raciocínio abstrato, a produção de textos para registro, comunicação ou planejamento, enfim, maiores serão a capacidade e as oportunidades do sujeito de realizar tarefas que exijam monitoração, inferências diversas e ajustamento constante. Neste sentido, o letramento, mais que alfabetização ou o domínio das regras de escrita, é um estado ou condição de quem se envolve em numerosas e variadas práticas sociais de leitura e da escrita. Nossa escola fundamental e média não tem conseguido oferecer essa indispensável imersão na cultura letrada à maioria da população escolar. Num outro projeto pedagógico, será preciso,

então, rediscutir sim o ensino de português. Mas não apenas ele. Uma escola letradora – que toma as práticas socioculturais da cultura letrada como um eixo organizador das atividades escolares que articula trabalho, ciência e cultura (nos termos da escola unitária defendida por Kuenzer, 2000) – terá forçosamente de ultrapassar a concepção de que o letramento é tarefa exclusiva do professor de português. As práticas cognitivas de todas as áreas escolares, as suas diferentes formas de linguagem, a articulação verbal específi ca dos saberes aí constituídos, as diferentes formas de interação oral e escrita presentes em cada área põem a escola disciplinar tradicional sob radicais interrogações, apontando a possibilidade de uma efetiva educação transdisciplinar como defendem Britto (2004) e Kuenzer (2000) – uma educação que não abandone as especificidades de cada área, mas seja capaz de articulá-las em sínteses superiores, sem as quais não se pode compreender o mundo contemporâneo e não se pode agir eticamente nele com autonomia intelectual e pensamento crítico. A escola atual, no entanto, está longe dessa perspectiva. Ela ainda é arraigadamente disciplinar. A área de língua portuguesa chega, inclusive, a ser dividida em três subdisciplinas (gramática, redação, literatura), o que, além de revelar uma concepção fragmentadora do ensino, deixa transparentes os eixos que norteiam a ação escolar nessa área. Há uma clara perspectiva conteudística preocupada em transmitir um saber gramatical rarefeito e perpassado de um normativismo anacrônico e estéril; e em repassar um saber enciclopédico sobre autores, obras e “escolas” literárias. Está, portanto, longe de oferecer uma experiência de reflexão científica sobre a organização e o funcionamento social da linguagem. E está mais longe ainda de contribuir para uma expe-

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riência viva com a literatura e com as outras práticas discursivas da sociedade contemporânea. Uma consulta ao material didático apostilado que circula com grande sucesso na rede particular de ensino (e também em algumas redes públicas) é suficiente para desvelar como a escola se pensa. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (pcns) têm contribuído pouco para alterar a prática escolar tradicional. Elaborados no contexto da reforma do ensino proposta na sequência da aprovação, em 1996, da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, os pcns buscaram, em princípio, expressar os desafios da contemporaneidade para a educação. Afastaram-se da maneira tradicional de estabelecer a programação escolar: não arrolam conteúdos, mas dão destaque ao domínio das competências sociocognitivas que garantem o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. Há, evidentemente, várias razões para a pouca reverberação escolar dos pcns, a começar pelo próprio fosso que separa a universidade e a escola média (embora os professores desta sejam formados por aquela). Por outro lado, a transmissão do saber pronto e apostilado dá, certamente, mais segurança à prática escolar, em especial àquela de um professor sobrecarregado de aulas, mal remunerado e sem formação adequada. Nesse sentido, embora os pcns procurem dar um norte para projetos pedagógicos inovadores, a programação escolar tradicional é que, de fato, continua pautando o fazer da escola. Mesmo o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que adquiriu força ao ter seus resultados adotados pelas instituições de ensino superior em seus processos de seleção, tem repercutido pouco no sentido de alterar a ação tradicional da escola. Na área de língua portuguesa, o Enem, paradoxalmente, reforça essa ação, pelo menos em seu conceitual.

O exame não se propõe a ser um teste de domínio de conteúdos (não é, portanto, um teste de saber enciclopédico), mas visa testar competências e habilidades dos egressos da escola média. Em outros termos, o conceitual que sustenta o Enem procura dirigir o foco da avaliação não para os conteúdos que os alunos dominam, mas para as relações cognitivas que são capazes de estabelecer e para aquilo que são capazes de fazer com os conteúdos e essas relações cognitivas. À primeira vista, as diretrizes pedagógicas do Enem parecem estar mudando significativamente a direção da avaliação escolar da língua no país: deixam de verificar o conhecimento de conteúdos gramaticais e de história literária e pautam a avaliação por uma grande competência e por algumas habilidades de uso. No entanto, apesar dessa aparente inovação, o Enem, na área da língua, apenas reproduz a velha concepção pedagógica que toma a parte pelo todo. Ao estabelecer o domínio da norma culta como a competência máxima a ser atingida ao fim da escolaridade média, o Enem isola a norma do conjunto a que ela pertence e no interior do qual ela tem efetivo sentido social, isto é, o grande caldo das práticas sociais da cultura letrada. Em consequência disso, as diretrizes do Enem vão no sentido contrário àquele do discurso pedagógico que vem circulando entre nós, desde pelo menos a década de 1980. Esse discurso, em contraposição a um ensino centrado no conhecimento de nomenclaturas e conteúdos gramaticais, tem colocado o domínio das atividades de fala em situações formais e das atividades de leitura e de escrita como primordiais no ensino e, corretamente, subordina o domínio da norma culta ao amadurecimento daquelas atividades. Por outro lado, aquelas diretrizes, ao inverterem o discurso pedagógico e ao isolarem a norma culta, apenas reiteram, sob um

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manto de aparente inovação, a clássica reificação e fetichização escolar da norma culta. O produto maior da escolaridade na área da língua não pode ser o domínio de um objeto recortado no abstrato (como tradicionalmente se faz na escola brasileira), mas – como temos intensa e extensamente debatido há décadas (embora sem maior repercussão nas práticas escolares efetivas) – o domínio de práticas sociais próprias da cultura letrada, no interior das quais (e só aí) faz sentido falar de norma culta. As diretrizes do Enem não deixam o domínio das práticas de escrita totalmente de fora do processo de avaliação. Contudo, a forma como o conjunto está apresentado deixa claro o equívoco de se priorizar o conhecimento da norma e a ele subordinar o domínio das práticas de leitura e produção de textos. Isso posto, pode-se afirmar que mesmo as incisivas intervenções do Estado brasileiro, nos últimos dez/doze anos, no sentido de redirecionar a escola fundamental e média – como os pcns, o Enem e, mais recentemente (a partir de 2005), a extensão do Programa Nacional do Livro Didático para o ensino médio – não têm conseguido estimular uma ação inovadora e transformadora. O caminho do possível ainda está por se fazer. Vale, então, repisar aqui algumas das coordenadas que, nas últimas décadas, têm sido formuladas, com base numa determinada concepção de linguagem, sobre possíveis ações pedagógicas na área específica de língua portuguesa. Elas podem subsidiar a elaboração de projetos pedagógicos comprometidos com a perspectiva de uma escola letradora, não só por delinear uma nova prática de ensino da língua, mas também por dar diretrizes para o desenvolvimento das práticas de linguagem(ns) através do currículo, isto é, aquelas que são indispensáveis seja na especificidade de cada área, seja na articulação transdisciplinar.

Entre nós, as concepções mais tradicionais tendem a reduzir a linguagem ora a um conjunto de regras (a uma gramática); ora a um monumento (a um conjunto de expressões ditas corretas); ora a um mero instrumento de comunicação e expressão (a uma ferramenta bem-acabada que os falantes usam em certas circunstâncias). Podemos observar que todas essas concepções têm algo em comum: elas entendem a linguagem como uma realidade em si (um sistema gramatical, um monumento, um instrumento); como se ela tivesse vida própria, despregada de seus falantes, da dinâmica das relações sociais, dos movimentos da história. Nossa concepção recusa esses olhares que alienam a linguagem de sua realidade social concreta. Inspirado nos trabalhos do Círculo de Bakhtin (cf. Faraco, 2009 e a bibliografia ali comentada), nós a concebemos como um conjunto aberto e múltiplo de práticas sociointeracionais, orais ou escritas, desenvolvidas por sujeitos historicamente situados. Pensar a linguagem desse modo é perceber que ela não existe em si, mas só existe efetivamente no contexto das relações sociais: ela é elemento constitutivo dessas múltiplas relações e nelas se constitui continuamente. Por outro lado, os próprios falantes tomam forma como sujeitos históricos e como realidades psíquicas em meio a essa intrincada rede de relações socioverbais e pela interiorização da própria dinâmica da interação socioverbal. Somos, nesse sentido, seres de linguagem, constituídos e vivendo num complexo feixe de relações socioverbais. De forma alguma, podemos ser reduzidos a meros aplicadores de regras de um sistema gramatical; ou a meros reprodutores de um certo monumento linguístico cristalizado; ou, ainda, a meros usuários de um instrumento externo a nós.

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Desse modo, ensinar português é, fundamentalmente, oferecer aos alunos a oportunidade de amadurecer e ampliar o domínio que eles já têm das práticas orais de linguagem e especialmente garantir-lhes o domínio das práticas escritas. Em língua materna, a escola, obviamente, nunca parte do zero: os alunos têm uma experiência linguística acumulada. Cabe-nos, no entanto, criar condições para que esse domínio dê um salto de qualidade, tornando-se mais maduro e mais amplo. Na saída do Ensino Médio é fundamental que nossos alunos tenham adquirido efetiva autonomia naquelas práticas de linguagem que devem ser de domínio comum de todos os cidadãos, que são indispensáveis à vida cidadã e que transcendem os limites das vivências cotidianas informais. Trata-se tanto do domínio amplo da leitura, da escrita e da fala em situações formais, quanto do desenvolvimento de uma compreensão da própria realidade da linguagem nas suas dimensões sociais, históricas e estruturais. Concebendo a linguagem como um conjunto de práticas sociointeracionais, garantimos um tratamento pedagógico não burocrático à leitura, à escrita e à oralidade. Vamos encará-las como atividades sociais significativas entre sujeitos históricos, realizadas sob condições concretas. Em qualquer atividade de linguagem é, assim, fundamental reconhecer sua realidade sociointeracional; reconhecer a presença do outro, mesmo quando não diretamente visível – quer daquele que nos convida à interlocução, autor que é dos textos que lemos ou ouvimos; quer daquele a quem convidamos à interlocução, destinatário que é dos nossos textos escritos ou orais. Ler pressupõe, em primeiro lugar, familiarizar-se com diferentes tipos de textos oriundos das mais variadas práticas sociais

(em especial da literatura, do jornalismo, da divulgação científica, da publicidade). Pressupõe também o desenvolvimento de uma atitude de leitor crítico, o que significa, entre outros aspectos, perder a ingenuidade diante do texto dos outros, percebendo que atrás de cada um há um sujeito, com uma certa experiência histórica, com um determinado universo de valores, com uma intenção. Ler pressupõe também uma compreensão responsiva, o que implica reagir ao texto, dar-lhe uma resposta, concordando com ele, ou dele discordando; rindo dele, emocionando-se com ele, aplaudindo-o, refutando-o, assimilando-o, fazendo-lhe a paródia, e assim por diante. Neste ponto, é importante dizer que ler e texto não estão aqui sendo usados como termos restritos à linguagem escrita. Estamos entendendo ler em sentido mais amplo, como a ação de recepção crítica e responsiva de textos escritos ou falados. E mais: por extensão queremos abranger também a recepção (leitura) de manifestações (textos) em outras linguagens, combinadas ou não com a linguagem verbal. Essa extensão nos ajuda a compreender de forma integrada a linguagem verbal e as outras linguagens (as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a televisão, a publicidade, as charges, os quadrinhos, a infografia, bem como a linguagem matemática e as linguagens científicas), percebendo seu chão comum (são todas atividades sociointeracionais entre sujeitos históricos) e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos; seus diferentes modos de composição e de geração de significados). Ao mesmo tempo, aquela extensão nos permite propor, para a leitura das outras linguagens, as mesmas ações que previmos para a leitura dos enunciados falados ou escritos, ou seja, a leitura crítica e responsiva.

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Obviamente, cabe à área de língua portuguesa, em sua especificidade, se concentrar nas atividades de leitura dos textos em linguagem verbal. No entanto, não pode deixar de oferecer aos estudantes uma experiência de leitura de outras linguagens, considerando, de um lado, que somos seres de múltiplas linguagens; e, de outro, que a sociedade contemporânea amplificou a circulação de textos nas mais variadas linguagens, exigindo uma múltipla capacidade de leitura compreensiva, crítica e responsiva de seus cidadãos. Quanto à leitura dos textos em linguagem verbal, é importante dizer também que, em língua portuguesa, jamais podemos descuidar da relação dos alunos com o texto literário. Essa é, sem dúvida, uma das mais significativas experiências de leitura que a escola pode e deve oferecer, abrindo os horizontes dos nossos alunos para a riqueza do modo estético de representar o mundo e de trabalhar a linguagem. Além de merecerem uma abordagem que dê destaque às suas especificidades, os textos literários abrem um fértil espaço para um trabalho integrado com textos verbais oriundos de outras esferas da atividade humana (por exemplo, do jornalismo ou da divulgação científica), criando uma rede para múltiplas leituras do mundo e para a compreensão e apreensão do potencial expressivo da linguagem. Os textos literários permitem também um trabalho integrado com outras linguagens (artes plásticas, música, cinema), criando condições para a percepção do fazer artístico em geral, seja de suas especificidades, seja de suas dimensões histórico-culturais. O primordial aqui é conquistar os alunos para a leitura em geral e para a incorporação da literatura (e da arte) em suas vidas. E isso depende de eles sentirem a força e a beleza do estético por dentro, como expressando sentidos de vida. O pior que a escola

pode fazer é burocratizar essa relação, tornando o texto literário mero meio para estudos gramaticais ou teóricos; ou cercando-o de enfadonhas obrigações e excessos de tecnicalidades. Mesmo o estudo da história literária não pode se perder em tecnicalidades ou conhecimentos estáticos. Há que se aproveitar a história literária para uma compreensão dinâmica da nossa história cultural, oferecendo aos alunos a possibilidade de apreender o presente como resultado e parte de toda uma complexa história. Quanto à produção de texto, cabe, em primeiro lugar, reiterar que o ato de escrever deve ser visto como uma atividade sociointeracional. Ou, dito de outra forma, escrevemos para alguém ler. Isso implica reconhecer que o interlocutor é um dos condicionantes do nosso texto. Em consequência, a escrita cobra de nós uma ação de contínua adequação do nosso dizer às circunstâncias de sua produção. Por isso, ao propor atividades de escrita, é preciso buscar sempre contextualizá-las e, ao mesmo tempo, insistir para que o aluno mostre seu texto para os colegas. É uma das formas que temos para contornar um certo artificialismo inerente à prática escolar de escrita, transformando-a numa atividade efetivamente geradora de sentidos. Claro, há também outras formas como a divulgação dos textos no jornal da escola, em murais da classe, em livros artesanal e coletivamente produzidos ou, ainda, no jornal do bairro, da igreja ou da cidade. De qualquer modo, o olhar do colega será um fator fundamental para o aluno aprender a incorporar ativamente a figura do interlocutor no seu processo de escrita. Acrescente-se a isso outra importante atividade: a apreciação coletiva de textos sob a orientação do professor. Outra vez, essa atividade permite que o aluno perceba o texto como leitor

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e aprenda a fazer o que todos os que escrevem com autonomia fazem, isto é, monitorar a sua própria escrita, sendo, ao mesmo tempo, autor e leitor. Essa importante e indispensável atividade era já proposta por Quintiliano em seu livro Institutio Oratoria, do ano 96 d.C. a que fizemos referência anteriormente. Dizia ele: “Se o texto é ruim, percebi que é útil que o aluno reescreva depois de ter o texto analisado junto comigo e ele estimulado a fazer ainda melhor” (2, iv, 13). Todas essas balizas devem conduzir cada aluno a perceber a relevância da prática da refacção de seus textos. Embora o refazer seja inerente ao ato de escrever (nenhum texto sai pronto da primeira vez – basta ver o testemunho dos grandes escritores), o aluno precisa vivenciá-la numa prática significativa de escrita. Por tudo isso, é importante que se crie um ambiente de “oficina” para as práticas de escrita, isto é, a escrita não deve jamais ser encarada como uma tarefa burocrática, mas como uma atividade em que a turma se sinta coletivamente envolvida com a preparação, apreciação e refacção dos textos. Em todo esse processo, os alunos deverão ir percebendo, aos poucos, quanto a prática significativa da escrita (isto é, a escrita como uma atividade sociointeracional) é desafiadora e cativante: envolve, entre outras ações, determinar os interlocutores, adequar-se ao gênero, planejar o texto, organizar sua sequência, articular suas partes, selecionar a variedade linguística (mais ou menos formal), dialogar com os discursos que circulam socialmente. Além, é claro, de transitar pelos imensos recursos expressivos acumulados ao longo do incessante fazer histórico com a linguagem, realizando aí escolhas em vista das intenções, dos interlocutores e da construção de um modo personalizado de dizer (isto é, da construção de seu estilo) como parte do próprio processo de desenvolvimento da sua identidade como autor.

Ao mesmo tempo, por meio dessa prática, se evita o caminho que sugere ser o domínio da escrita decorrente de exercícios mecânicos ou do controle de algumas técnicas. O amadurecimento de nossa condição de autores só se dá em meio a um conjunto de experiências com a linguagem e a cultura letrada. Temos, como dissemos anteriormente, de mergulhar nas tradições discursivas características da escrita. Esse amadurecimento requer leitura diversificada, compreensiva, crítica e responsiva; pressupõe uma significativa ampliação de repertório (uma leitura ampla do mundo); está aliado ao desenvolvimento de uma oralidade mais sofisticada; exige uma reflexão básica sobre o funcionamento estrutural e social da linguagem e uma compreensão de nosso lugar neste funcionamento. Em outras palavras, só obtemos esse amadurecimento a longo prazo e explorando múltiplos caminhos. Daí a importância de um programa de ensino bastante diversificado e consistente para o conjunto das séries escolares, em especial na escola pública, cujos alunos, em sua maioria, vêm de segmentos sociais que não têm suficiente experiência com a linguagem escrita e a cultura letrada. Por outro lado, a escola não pode descuidar da oralidade, seja pelo efeito positivo que seu desenvolvimento tem sobre o conjunto das práticas de linguagem, seja pela relevância que o falar em situações formais tem para a vida cidadã. Não precisamos, é claro, ensinar aquelas práticas que aprendemos espontaneamente no nosso cotidiano (a conversa informal e corriqueira). No entanto, a escola precisa oferecer aos alunos a oportunidade de amadurecer o falar com segurança e fluência em situações formais (isto é, no espaço público, diante de um conjunto plural de interlocutores), seja em atividades de transmissão de informações, seja no debate.

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As práticas com a oralidade, em especial aquelas que envolvem debate, são uma oportunidade especial para o amadurecimento do convívio democrático, seja pelo exercício do direito à livre expressão, seja pelo reconhecimento do direito do outro à livre expressão, seja, sobretudo, pela polêmica civilizada, a qual pressupõe, entre outros fatores, uma escuta respeitosa, uma enunciação clara e sustentada de opiniões e a abertura para novos argumentos e pontos de vista. Trata-se de um conjunto de práticas profundamente transformadoras, considerando os séculos de predomínio, entre nós, de uma cultura política autoritária. Por fim, não podem faltar na programação escolar as atividades de reflexão sistemática sobre a linguagem verbal, ou seja, atividades que se voltem para a compreensão da realidade da linguagem nas suas dimensões sociais, históricas e estruturais. Entendemos que não cabe, ao ensino de português, concentrar-se exclusivamente numa dimensão prática, ou seja, oferecer aos alunos o domínio das atividades sociointeracionais de fala, de leitura, de escrita. Junto com esse importante trabalho, é necessário realizar sempre uma ação reflexiva sobre a própria linguagem, integrando as práticas socioverbais e o pensar sobre elas. Esse pensar envolve tanto a compreensão da realidade estrutural da linguagem (isto é, de sua organização gramatical), quanto, e especialmente, a compreensão de sua realidade social e histórica (isto é, da variação linguística). Num país que ainda demoniza a variação linguística, refletir sobre ela na escola tem uma relevância toda especial: os alunos precisam aprender a perceber, sem preconceito, a linguagem como um conjunto múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas, sociais e estilísticas; e a entender essa variabilidade como correlacionada com a vida e a história dos diferentes grupos sociais de falantes.

Só assim desenvolverão uma necessária atitude crítica diante dos pesados preconceitos linguísticos que embaraçam seriamente nossas relações sociais. Com isso, a escola estará estimulando práticas positivas frente às diferenças e contribuindo para a reconstrução do imaginário nacional sobre nossa realidade linguística. Acreditamos que a escola ainda não encontrou um caminho pedagógico adequado para tratar da variação linguística (ver Bagno, 2007). Parece faltar ainda uma superação crítica da “cultura do erro” – que tão profundamente molda nosso modo de olhar a linguagem. Parece que temos ainda medo da variação e continuamos uma sociedade que não quer reconhecer sua cara linguística. Só enfrentando o desafio de construir uma pedagogia da variação é que teremos condições de tratar adequadamente do problema da norma culta, reconhecendo a importância de a escola garantir aos alunos o acesso ao padrão culto real (e não o padrão anacrônico ainda apresentado por nossas gramáticas e livros didáticos) e condições para seu domínio. Os padrões de língua constituem, numa sociedade moderna e democrática, caracterizada por complexidade e pluralidade em elevado grau, indispensáveis elementos de agregação social e cultural. Isso, porque, embora emergindo continuamente da diversidade sociolinguística, eles transcendem os limites do regional e do específico, contribuindo para a construção de uma relativa unidade linguística. A norma culta não é mais, como foi no passado, bem exclusivo dos grupos sociais dominantes; ela precisa ser cultivada e difundida como um fator de inclusão sociocultural dos cidadãos. No Brasil, paradoxalmente, o padrão culto, em especial o padrão escrito, pelo seu caráter artificial e arbitrário, tem sido fator de lastimável exclusão (cf. Faraco, 2008).

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A norma culta não é um objeto abstrato e com vida própria, que deva ser estudado em si. A norma culta precisa ser compreendida, antes de mais nada, no contexto amplo da cultura letrada: ela é constituinte dessa dimensão cultural e nasceu, como valor sócio-histórico, de seu desenvolvimento. Em consequência, seu aprendizado é, antes de tudo, um efeito de um convívio amplo com material linguístico em norma culta. Seu estudo mais sistemático tem de ser, nesse sentido, complementar e não visto como um a priori. Além disso, a norma culta precisa ser compreendida não como a única manifestação da língua, mas como uma dentre as suas muitas variedades, tendo funções socioverbais específicas: ela é esperada em situações formais de fala e, principalmente, na maior parte das práticas de escrita. Nesse sentido, ela não pode ser um objetivo escolar isolado de outros. Ela não pode ser estudada por si, mas sempre subordinada ao processo pedagógico geral de amadurecimento do domínio das práticas orais e escritas de que ela é ingrediente. Por outro lado, ao trabalharmos com a norma culta, não podemos nos render ao normativismo, atitude que tradicionalmente sustentou o seu estudo na escola. O normativismo toma a norma culta em si (desvinculada de suas funções próprias) e como um monumento pétreo (invariável e inflexível), apresentando-a ao estudante como uma camisa de força. O normativismo, por não dimensionar adequadamente a variação linguística, condena como erro (em termos absolutos) todas as formas que não estão de acordo com aquilo que está prescrito dogmaticamente nos velhos manuais de gramática. Essa codificação foi artificial na origem (o padrão brasileiro foi fixado aleatoriamente por intelectuais elitistas do século

xix – que recusaram as peculiaridades do padrão real falado no Brasil – cf. Faraco, 2008) e ficou congelada nas nossas gramáticas. Como o padrão real falado continuou mudando no tempo, esse artificialismo é cada vez maior entre nós, o que complica enormemente nossas relações com a norma culta (somos um país perdido em confusão nessa área) e, por consequência, seu ensino. Acreditamos que a escola, renovando criticamente seus modos de ensinar a norma culta, poderá contribuir significativamente para superarmos os nós que tradicionalmente embaraçam o seu domínio no Brasil e para reconstruirmos o imaginário nacional sobre a língua portuguesa que aqui se fala e se escreve. Quanto à realidade estrutural da linguagem, algumas considerações são, de início, necessárias. Lembremos, em primeiro lugar, que o ensino de português centrou-se historicamente no estudo gramatical (como herança da concepção pedagógica que moldou, direta ou indiretamente, nosso sistema educacional – a pedagogia da Ratio Studiorum dos jesuítas). Embora concordemos com todas as críticas que, nos últimos cinquenta anos, apontaram o equívoco dessa centralidade, acreditamos que os conteúdos gramaticais não devem desaparecer de todo da programação escolar. No entanto, entendemos que também aqui a escola ainda não encontrou um caminho pedagógico alternativo para lidar com a questão gramatical – um caminho que não ponha a gramática no centro do ensino, mas que não deixe de oferecer aos estudantes a oportunidade de refletir sobre a organização estrutural da linguagem verbal. Essa reflexão, por seu turno, não deve ser pensada como um objetivo em si, mas como um saber auxiliar ao amadurecimento das práticas orais e escritas da linguagem e, portanto, a ele integrado – como, aliás, já recomendava Quintiliano no primeiro século da nossa era.

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Construir uma pedagogia da gramática é, fundamentalmente, desenvolver a capacidade de pensar cientificamente a linguagem. Pode-se fazer isso, por exemplo, abordando os temas gramaticais por meio de diferentes trajetos, combinando percursos mais intuitivos (que estimulam a capacidade de observação dos fenômenos da língua) e percursos mais expositivos (que estimulam a construção de um saber mais sistematizado daqueles mesmos fenômenos). Outra coordenada importante diz respeito à necessidade de limitar o estudo de conteúdos gramaticais a um conjunto básico e com clara pertinência funcional. De novo, vale fazer referência a Quintiliano. Já há quase dois milênios dizia ele, com muita propriedade: “Nada do que diz respeito à gramática fará mal, salvo o que é inútil” (1, vii, 34). Assim, não é preciso abordar todos os temas gramaticais, nem perder tempo com aqueles detalhes e preciosismos que devem ficar para os especialistas. Nesse sentido, a pergunta crucial é: que informações nos têm sido, de fato, úteis na nossa própria experiência de falantes e observando a experiência de outros falantes? De um lado estão, certamente, os elementos gramaticais indispensáveis para se entender as referências que ocorrem nos verbetes do dicionário (considerando que, pela vida afora, recorremos a ele em nossas atividades de leitura e escrita). Aqui entra fundamentalmente a classificação das palavras, a qual se articula com uma visão geral da estrutura do léxico e de seus mecanismos de expansão. De outro lado estão os dados gramaticais que contribuem tanto para a compreensão de certas propriedades da norma culta (em especial fenômenos de concordância e regência), quanto para um trabalho mais consciente de construção e entendimento dos textos. Aqui entra a sintaxe das sentenças simples e complexas.

O estudo de conteúdos gramaticais, pautado por critérios de relevância funcional e articulando intuição e sistematização, encontra um terceiro trajeto importante na discussão coletiva de textos dos alunos. Como vimos anteriormente, expor os alunos a seus textos (para que os vivenciem com um olhar externo) é atividade indispensável para eles desenvolverem a capacidade de monitorar a sua própria escrita (de assumir, ao escrever, dois papéis – o de autor e o de leitor). O eixo organizador dessa atividade é verificar (intuitivamente) se o texto está claro (considerando que ele se destina a um interlocutor) e que ajustes são eventualmente necessários para aperfeiçoá-lo – seja para deixá-lo mais claro, mais adequado aos interlocutores; seja para explorar alternativas expressivas, saídas do vasto estoque de possibilidades que a língua nos oferece; seja ainda para aperfeiçoar sua textualidade. O importante em toda essa dimensão do ensino de português é que os tópicos sejam desenvolvidos sempre subordinados ao domínio das atividades de fala e escrita, isto é, sejam sempre pensados por um critério de efetiva relevância funcional. Tanto a pedagogia da variação, quanto a da norma culta e a da gramática não podem – como temos enfatizado neste livro – ser pensadas em si e isoladamente dos objetivos maiores, quais sejam o domínio da oralidade e da escrita. O trabalho com a variação, a norma culta e a gramática tem de ser, como já propunha Quintiliano, auxiliar, suplementar ao trabalho com a leitura, a escrita e a oralidade.

FORMAÇÃO DOS PROFESSORES Um projeto político-pedagógico assim concebido pressupõe, obviamente, um professor adequadamente formado para

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ele. Nessa formação, é indispensável um estudo das propriedades da linguagem verbal e de seus meios de expressão, bem como das consequências pedagógicas dessas propriedades, conforme tentamos mostrar neste livro. Mais importante, porém, é garantir que todo professor (e não apenas o professor de português, considerando que todas as atividades escolares são, no fundo, relacionadas à cultura letrada) esteja bem letrado. Dito de modo simples e direto: nenhuma escola será letradora se seus professores não forem eles bem letrados. Impossível desenvolver nos alunos as práticas sociais de leitura e escrita sem que os professores sejam leitores maduros e pessoas que dominem a escrita com autonomia. Como vimos neste capítulo, há um déficit significativo no letramento da população brasileira. Não é de admirar, portanto, que nossa escola tenha se mostrado, até agora, incapaz de letrar efetivamente a maioria de seus alunos, em especial os que vêm de segmentos sociais com pouca experiência letrada e que, em geral, estão na escola pública. O grande desafio educacional da sociedade brasileira é quebrar o ciclo deste atraso, investindo no letramento dos professores já em exercício, reestruturando a formação geral dos novos professores e repensando as práticas escolares.

NOTAS 1

O livro de Quintiliano pode ser lido em tradução para o inglês no endereço http://honeyl. public.iastate.edu/quintilian/ (acessado em 20/12/2009). Os capítulos iv a ix do livro 1 podem ser lidos em português em Pereira, 2005.

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Há uma edição recente do livro de Comenius em português (São Paulo: Martins Fontes, 2006). O texto em português é também acessível no endereço eletrônico http://www. ebooksbrasil.org/adobeebook/didaticamagna.pdf (consultado em 20/12/2009).

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O texto da Ratio Studiorum pode ser lido em português no livro Código pedagógico dos jesuítas, organizado por Margarida Miranda (Lisboa: Esfera do Caos, 2009). Há tradução para o inglês disponível no endereço eletrônico http://www.bc.edu/libraries/collections/ collinfo/digitalcollections/ratio/ratio1599.pdf (acessado em 20/12/2009).

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Estes dados estão disponíveis na página do ibge (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Endereço eletrônico: www.ibge.gov.br (acessado em 10/01/2010).

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Os dados do inaf podem ser consultados na página do Instituto Paulo Montenegro/ Ibope. Endereço eletrônico www.ipm.org.br (acessado em 10/01/2010).

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Os dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil podem ser consultados na página do Instituto Pró-Livro/ Câmara Brasileira do Livro. Disponível em: www.prolivro.org.br (acessado em 10/01/2010).

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Os dados do saeb e da Prova Brasil estão disponíveis na página do inep – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais: www.inep.gov.br (acessado em 10/01/2010). 105

A ORTOGRAFIA DO PORTUGUÊS: BREVE HISTÓRICO

O PERÍODO MEDIEVAL A língua que chamamos hoje de português começou a ser escrita por volta do século xiii. Nesse início, não havia propriamente uma ortografia, ou seja, não havia uma norma gráfica geral. Os textos eram manuscritos e não tinham ampla circulação social (não se faziam deles várias cópias). Eram documentos jurídicoadministrativos (testamentos, escrituras, ordenações) de interesse pessoal, local, ou das ordens religiosas ou da chancelaria real. Em seguida, começaram também a ser registrados por escrito textos poéticos da tradição oral. Os escribas, em geral, criavam uma espécie de “ortografia” pessoal, combinando as grafias latinas tradicionais com representações fonético-fonológicas tentativas (em especial na representação gráfica dos novos fonemas surgidos no processo de constituição da língua). Daí decorria uma grande diversidade gráfica: a mesma palavra tinha diferentes grafias conforme a região em que o texto era escrito e até dentro de um mesmo texto.

O RENASCIMENTO

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A invenção da imprensa de tipos móveis no século xv e a consequente possibilidade de se publicar livros em grande escala trouxeram a necessidade de se fixar uma ortografia, ou seja, uma norma gráfica geral para cada uma das diversas línguas europeias modernas. Essa meta foi alcançada em épocas e por caminhos diferentes para cada uma dessas línguas. A língua toscana (que ficou, depois, conhecida como língua italiana), por exemplo, foi das primeiras a ter sua ortografia fixada. O trabalho – conduzido basicamente pelos editores em comum acordo com escritores – estava já concluído nos fins do século xvi. Como a iniciativa e a condução do processo tinham sido dos editores, o critério adotado foi o da transparência fonológica. Com isso, a ortografia do italiano não ficou sobrecarregada com o peso do critério etimológico e vigora até hoje sem maiores mudanças, salvo pequenos ajustes. No outro extremo está o português: só se conseguiu fixar uma ortografia no início do século xx, mais precisamente em 1911, com a adoção da chamada ortografia simplificada, que, apesar de adotar o princípio da transparência fonológica, manteve grafias de base etimológica. É interessante lembrar que os primeiros autores a escrever gramáticas do português no século xvi e a discutir nelas questões ortográficas – Fernão de Oliveira (1536) e João de Barros (1540) – eram ambos defensores de uma escrita não etimológica. Fernão de Oliveira, embora não tenha escrito sistematicamente sobre ortografia em sua gramática, deixa claro este seu posicionamento ao adotar explicitamente um princípio geral que ele

encontra em Quintiliano (livro i, 7), qual seja, as palavras devem ser escritas como as pronunciamos (1975: 65) e não registrando sua etimologia.1 Assim, ao comentar como se deveria grafar as palavras de origem grega, ele descarta o uso de recursos gráficos de base etimológica, como a letra k e as sequências ph, ps (e, mais à frente no texto, a sequência th). Diz ele no capítulo ix (1975: 50): Tiramos de entre as nossas letras o k porque, sem dúvida, ele entre nós não faz nada, nem eu vi nunca em escritura de Portugal esta letra k escrita. Ora, pois as dicções gregas, quando vêm ter entre nós, tão longe de sua terra, já não lhes lembra a sua ortografia, e nós as fazemos conformar com a melodia das nossas vozes, e com as nossas letras lhes podemos servir. Portanto, k, nem ph, nem ps, nunca as ouvimos na nossa linguagem, nem as havemos mister. E adiante em seu texto, diz ainda no capítulo xxiv (1975: 70): As dicções que trazemos de outras línguas escrevê-las-emos com as nossas letras que nelas soam, como ditongo, filósofo e gramática, porque tudo o mais é impedimento aos que não sabem essas línguas donde elas vieram, senão quando ainda forem tão novas entre nós que seja necessário pronunciá-las com a melodia de seu nascimento; mas nós trabalhemos quanto pudermos de as amansar e conformar com a nossa: autor e reitor não as escrevamos com c antes de t, como os Latinos fazem, porque a nossa língua não consente acabar as nossas sílabas em c nem em outra letra muda, como ac, ab e ad.

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Fernão de Oliveira, também seguindo Quintiliano (que dizia que a ortografia é também serva do uso), agrega ao princípio geral de escrever as palavras só “com as nossas letras que nelas soam” uma certa concessão ao costume (1975: 63). Ao discutir o uso da letra q, por exemplo, ele diz que, em princípio, ela poderia ser dispensada e ser sempre substituída pelo c. Isso, porém, poderia ser trabalhoso aos “vulgares”, ou seja, às pessoas comuns, porque romperia com a tradição. Mantido o q, ele diz ser de parecer que o u que o acompanha, quando não pronunciado, seria também dispensável e poderíamos escrever, por exemplo, qeixume e qina. Mas conclui seu arrazoado dizendo (1975: 63): “E, porém, o costume vale muito, sem o qual a escritura, porventura, ficaria duvidosa”. Para Fernão de Oliveira, a ortografia deveria ser, então, fundamentalmente fonológica (para usarmos um termo de hoje), com algumas concessões aos costumes. Quatro anos depois deste trabalho, João de Barros foi na mesma direção. Define cinco regras ortográficas gerais (1971: 373-74), sendo a primeira e principal: “escrever todalas dições com tantas lêteras com quantas â[s] pronunçiamos, sem poer consoantes oçiosas”. E exemplifica com a própria palavra ortografia – que não devemos escrever com th e ph como os latinos, mas “ao nosso modo”, sem usar recursos gráficos etimológicos (“consoantes ociosas”).

A ORTOGRAFIA PSEUDOETIMOLÓGICA Essa concepção pragmática não venceu, porém, os debates posteriores e, do fim do século xvi até o início do século xx com

a adoção da ortografia simplificada, a ortografia do português viveu sob a égide de um pensamento fortemente etimologizante, fundado no princípio de que se devia conservar, na forma gráfica das palavras, as letras que ocorriam na escrita originária grega e latina, mesmo que nenhum valor fonológico representassem. É o período das consoantes dobradas sem valor fonológico, das consoantes ditas mudas, dos símbolos de etimologia grega (ph, th, rh, y). Os estudiosos chamam de pseudoetimológico este período de aproximadamente 350 anos. E o fazem com razão porque em muitos casos não se conhece a etimologia ou ela é controversa. Como estabelecer, nestas circunstâncias, a ortografia a não ser por pura arbitrariedade? Acrescente-se a este problema o fato de que muitos teóricos propunham grafias com consoantes dobradas não porque fossem elas etimológicas, mas por “analogia”, aumentando, sem limite plausível, o grau de arbitrariedade da ortografia do português. Assim, se escrevíamos affetar e afferir com dois efes para lembrar que eram palavras compostas em latim, escrevíamos affamado e affastar com dois efes por “analogia”, já que nenhum fato etimológico justificava tal duplicação da consoante. Em consequência, a ortografia do português nesse longo período oscilou enormemente, tamanha foi a dose de arbitrariedade e fantasia que a dominou. Quando os filólogos Gonçalves Viana e Guilherme Abreu publicaram, em 1885, o livro Bases da ortografia portuguesa, descreveram assim a situação que se vivia: Todos nós, os que lemos, e mais ainda os que escrevemos para o público, sabemos quão diverjentes são as ortografias das várias Redacções e estabelecimentos tipográficos. Teem

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escritores “suas ortografias” próprias, como “as” teem as imprensas particulares e as do Estado. E nas do Estado são diferentes “as ortografias” da Imprensa Nacional e “as” da Imprensa da Universidade. Com a exposição que vamos fazer dos princípios mais jerais em que assenta a reforma ortográfica, por nós iniciada, temos em vista mostrar, a todo o país capaz de pensar e ler, que o nosso intuito é realizar uma das verdadeiras condições da vida nacional – existência de ortografia “uniforme e cientificamente sistemática” a que deva chamar-se “Ortografia Portuguesa”. Num julgamento da situação em que a ortografia da língua se encontrava no início do século xx, o filólogo brasileiro Mário Barreto, num dos artigos que publicou em 1911 em seu livro Novos estudos da língua portuguesa, diz (1911: 35): É mal antigo, sentido e confessado por todos os sábios, literatos e filólogos distintos a anarquia em que laboramos a respeito de ortografia. Há uma porção de tratados de ortografia, mas ortografia nacional, assente, harmónica, não existe nenhuma. O que existe é uma cacografia alabirintada, uma escrita incerta, contraditória, arbitrária, caótica. Vários tentames se teem feito no empenho (empenho mui louvável) de se pôr termo á vergonhosa desordem gráfica, mas teem sido todos infrutuosos, e a razão dos malôgros não é outra senão que tais tentativas de reformação ortográfica são meramente arbitrárias e individuais, – sistemas ou arremedos de sistemas que a fantasia de cada um enjenhou – e não se esteiam no conhecimento histórico da língua. Em fim, veio

o problema, até aqui havido por insolúvel, a desatar-se nas mãos autorizadas de Gonçálvez Viana, o qual compreendeu que não era possível nem sensata uma reforma ortográfica que desatendesse á etimologia e ás tradições da língua. E assente nestas bases o profundo filólogo presenteou ao público um sistema de escritura simplificada e racional. Gonçálvez Viana fêz obra, que todos os espíritos judiciosos, e não pirrônicos, hão de aceitar, louvar e agradecer: simplificou, uniformizou, racionalizou a ortografia, regularizando a tradição, e pondo os hábitos em harmonia com os princípios históricos. A reforma ortográfica que elaborou o eminente foneticista tem por fim – já o dissemos, mas convém insistir nisto – respeitar a tradição lingùística, e restaurá-la onde quer que ela foi alterada, porque, para ser respeitável e respeitada, a tradição deve ser racional, e não baseada em convenções e caprichos sustentados por grosseiros erros. Este texto de Mário Barreto testemunha, de um lado, a anarquia ortográfica do português que ainda prevalecia entrado já o século xx. Por outro lado, testemunha também o efeito de 350 anos de domínio do princípio de que se deveria grafar as palavras com base na etimologia. Ou seja, quando é proposta a ortografia simplificada (livrando a nossa ortografia dos excessos etimologizantes), dá-se um passo importante no sentido de fixar uma ortografia com grande transparência fonológica, mas se mantém ainda, para uma parte do léxico, um compromisso etimológico. E é esta duplicidade que caracteriza a ortografia moderna do português: ela é basicamente fonológica, mas com memória etimológica. Daí, grafarmos o fonema / s / de oito maneiras diferentes, para ficar no exemplo mais gritante.

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A memória etimológica é, certamente, um fator de complicações, seja para o falante nativo, seja para quem aprende o português como língua estrangeira. No entanto, nestas alturas, já não temos alternativa, salvo conviver com ela. E, claro, desenvolvendo métodos adequados para ensiná-la. O português precisou esperar 350 anos para fixar sua ortografia. Não se passa imune por três séculos e meio de predomínio do pensamento etimologizante. Esse longo período assentou uma tradição que, mesmo com a eliminação de seus excessos, não foi possível abandonar integralmente porque, como já dizia Fernão de Oliveira, o costume vale muito. Todos os grandes tratadistas da ortografia portuguesa, do século xvi ao xvii, foram defensores da escrita etimológica, com exceção de Luís António Verney, autor do livro que mais polêmica causou em Portugal no século xvii, Verdadeiro método de estudar (1746). E foi polêmico não propriamente pela sua proposta de reforma ortográfica (que mereceu pouca atenção, embora muito bem fundamentada), mas por sua crítica às práticas pedagógicas vigentes. O primeiro desses tratadistas foi Pero Magalhães de Gândavo. Em seu livro, publicado em 1574 (Regras que ensinam a maneira de escrever e orthographia da lingua portuguesa), ele defendeu explicitamente no Prólogo ao Leitor “guardar a orthographia cõforme a ethymologia & pronunciação dos vocabulos”. E isso porque, segundo ele, quanto mais chegarmos ao latim a ortografia das palavras, “tanto mais sera nossa lingua mais polida, e ficara nesta parte mais singular & appurada que as outras” (1574: 31). Seguiu-o, dois anos depois, o tratado de Duarte Nunes do Lião (Orthographia da lingoa portuguesa), mais substancioso e influente. Já na página 7 (verso), tratando da letra h, Duarte Nunes

reiterava o princípio da escrita etimológica, dizendo que, ainda que tal letra pareça ociosa porque não a pronunciamos, “he porem necessaria, para guardar a orthographia dos nomes Latinos & Gregos, para por ella se conhecer a origem, & etymologia dos vocabulos”. Todos os tratadistas que vieram daí para frente, nos séculos xvii e xviii, se pautaram pelas mesmas bases. Curiosamente, porém, todos os tratados, embora fundamentalmente etimologizantes, reproduziram o princípio de Quintiliano de que devemos escrever sem letras ociosas, o qual, em Duarte Nunes, aparece como a primeira de suas 20 regras gerais. A tratadística ortográfica portuguesa viveu, portanto, uma contradição contínua na sua doutrina: repetia o princípio, mas não o seguia. Acendia uma vela ao mestre latino, mas se entregava de fato à escrita etimológica. Movia essa tratadística o desejo de ter uma língua nobilitada, o que só se alcançava, na visão da maioria dos intelectuais do período, por um estrito alinhamento com a língua e a cultura clássica. Síntese dessa concepção nobilitadora vamos encontrar em João de Moraes Madureira Feijó, o grande tratadista ortográfico do século xviii, em seu livro de 1734 (Orthographia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a Lingua Portugueza). Nele, defendendo a necessidade de se imitar a ortografia latina na portuguesa, diz (1734: 7): meu empenho naõ he mostrar a grande abundancia de vocabulos que a nossa lingua tem herdado como filha, da latina como mãy, he sim convencer a sem razaõ daquelles, que reconhecendo-a por filha legitima nas palavras, a querem fazer bastarda na Orthografia.

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Essa concepção de que a ortografia do português deveria ser essencialmente de base etimológica só foi abandonada no início do século xx com a criação e oficialização da ortografia simplificada – a única reforma ortográfica que efetivamente ocorreu na história da nossa ortografia, ou seja, a única vez em que se alteraram substancialmente as bases do sistema gráfico.

O SÉCULO XX 116

No caso do português, quando finalmente se conseguiu fixar uma ortografia, no início do século xx, foi por uma decisão do Estado português. Assim como a duplicidade ortográfica que acabou por se estabelecer no correr do século xx foi decorrência de atitudes do Estado brasileiro que sistematicamente deixou de cumprir os acordos assinados com Portugal. Só em 1931, o governo brasileiro, na sequência do primeiro Acordo Ortográfico assinado pela Academia Brasileira de Letras e pela Academia das Ciências de Lisboa naquele mesmo ano, adotou oficialmente a ortografia simplificada, tornando-a obrigatória no país em 1933. Esta decisão, porém, foi revertida pela Assembleia Constituinte que redigiu a Constituição de 1934. Nesta foi inserida, como último artigo, a seguinte disposição: “Esta Constituição, escrita na mesma ortografia da de 1891 e que fica adotada no País, será promulgada pela Mesa da Assembléia, depois de assinada pelos Deputados presentes, e entrará em vigor na data de sua publicação”. Um ato arbitrário que significou um enorme retrocesso nos caminhos da resolução do problema ortográfico. Durante os anos seguintes, o Brasil viveu um caos ortográfico, até que o Decreto n. 292 (23/2/1938), emitido pelo governo do

Estado Novo (que, por ato de força, tinha substituído a Constituição de 1934 pela de 1937) retoma os termos do Acordo de 1931. Em 1943, a Academia Brasileira de Letras publica o Formulário Ortográfico e o Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Como havia divergências entre este e o Vocabulário publicado pela Academia das Ciências de Lisboa em 1940, Brasil e Portugal assinaram novo Acordo em 1945 que, no entanto, não foi ratificado pelo Parlamento brasileiro. Em consequência, a Lei n. 2.623, de 1955, oficializou, no Brasil, a ortografia do Pequeno volp de 1943. E, assim, cada país ficou com sua própria ortografia.

O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990 A necessidade de se buscar a unificação ortográfica ficou novamente manifesta na década de 1980. Naquele período, superados os traumas do processo da descolonização, os países de língua oficial portuguesa começaram a desenvolver um entendimento de que deveriam estabelecer uma cooperação multilateral permanente, tendo os seus entrecruzamentos históricos e a língua comum como fatores de aproximação. O Acordo Ortográfico de 1990 emergiu dessa conjuntura. Dado o caráter oficial das duas ortografias, foi preciso, para se chegar a ele, seguir os ritos do Direito Internacional, ou seja, construir diplomaticamente um texto consensual e, depois, aguardar que cada Estado signatário soberanamente ratificasse o referido texto e o inserisse em sua ordem jurídica, processo que não estava, nos fins de 2011, inteiramente concluído, faltando ainda as ratificações de Angola e Moçambique.

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Apesar disso, a ortografia definida no Acordo de 1990 já está em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 e começa a entrar em vigor nos demais países que já a ratificaram. A meta principal do Acordo não foi propriamente ortográfica, mas fundamentalmente política: abolir a duplicidade de ortografias oficiais. Apreciado, como alguns o fizeram no Brasil, apenas pelos pormenores ortográficos, o Acordo perde seu efetivo significado. As alterações ortográficas para se alcançar a ortografia unificada são mínimas e marginais ao sistema e podem assim ser resumidas: para os brasileiros, a eliminação do trema e de alguns acentos de pouco uso; e, para os usuários da ortografia lusitana (portugueses, africanos e timorenses), a eliminação das consoantes chamadas mudas por não corresponderem a nenhum elemento fonológico e serem grafadas exclusivamente por uma razão de ordem etimológica. E, para todos, o fim dos acentos diferenciais em algumas poucas palavras paroxítonas, acentos que não tinham sido alcançados pela abolição dos diferenciais efetivada no início da década de 1970.2 A intenção do Acordo não foi, em nenhum momento, propor uma reforma ortográfica, ou seja, alterar as bases do sistema ortográfico, mas apenas fazer ajustes que viabilizassem a unificação. Estamos diante de uma reforma quando as bases do sistema se alteram. A rigor, a ortografia do português só conheceu uma reforma – a de 1911 quando se adotou a ortografia simplificada e se abandonou o critério etimológico como o principal critério estruturador do sistema. Houve quem dissesse que o Acordo Ortográfico foi tímido; que mexeu pouco; que se poderia ter aproveitado a oportunidade para uma efetiva reforma, eliminando, por exemplo, as grafias que seguem ainda o critério etimológico, ampliando com isso o grau de transparência fonológica da escrita do português.

Há, certamente, um equívoco nessa argumentação: uma reforma ortográfica radical é hoje totalmente inviável e indesejável. Claro, do ponto de vista meramente técnico e dissertando em tese, não é irracional defender uma ortografia não etimológica, como fez, aliás, Saussure em seu Curso de linguística geral, quando expressou sua opinião de que o princípio da escrita etimológica é errado (1970: 38). No entanto, a ortografia não é apenas uma questão técnica e que possa ser discutida em abstrato. É também uma questão de amplo alcance educacional, cultural, político e econômico. Nela se emaranham costumes, valores identitários, disposições políticas, preferências de certos momentos históricos, além, claro, de referências ao sistema fonológico da língua. As repercussões de uma reforma ortográfica radical são hoje de tal monta que é impensável propô-la. Reformas radicais como a que se fez na escrita do turco na década de 1920, na qual se chegou a trocar o próprio alfabeto (abandonando-se o alfabeto árabe e se adotando o alfabeto latino), só foram possíveis porque 98% da população eram analfabetos, a indústria do livro era absolutamente insignificante, assim como a circulação de outros tipos de material impresso (jornais, revistas). Se, no passado, houve condições semelhantes para se fazer uma reforma radical da ortografia do português, este tempo já passou há muito. Em virtude da própria história da nossa ortografia, teremos de conviver com seus dois princípios – o da transparência fonológica e o da memória etimológica.3

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NOTAS 1

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O verbo “pronunciar” aparece aí não no sentido de se criar uma escrita fonética, mas sim de base fonológica. A distinção teórica entre realidade fonética e realidade fonológica só apareceu posteriormente. No entanto, as descrições das “vozes” do português (hoje usaríamos o termo fonemas) feitas por Oliveira são fundadas numa clara percepção da realidade fonológica da língua. Nesse sentido, ele antecipou em séculos a perspectiva da análise fonológica.

2

Para uma apresentação detalhada das disposições do Acordo Ortográfico, ver Proença Filho, 2009.

3

Para mais detalhes sobre a história da ortografia do português, ver Maurício Silva, 2009.

CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA GRÁFICO DO PORTUGUÊS

O professor alfabetizador precisa, entre outras coisas, ter um bom conhecimento da organização do nosso sistema gráfico para poder melhor sistematizar seu ensino; para entender as dificuldades ortográficas de seus alunos e para auxiliá-los a superá-las. Neste livro, pretendemos alcançar três objetivos: (a) expor os princípios estruturadores do sistema gráfico do português (mostrando algumas consequências desses princípios para o processo de apropriação da grafia); (b) descrever, em linhas gerais, o sistema gráfico do português; (c) fornecer alguns subsídios para a sistematização do seu ensino. A língua portuguesa tem uma representação gráfica alfabética com memória etimológica. Dizer que a representação gráfica é alfabética significa dizer que as unidades gráficas (letras) representam basicamente unidades sonoras (consoantes e vogais) e não palavras (como pode ocorrer na escrita chinesa) ou sílabas (como na escrita japonesa). A escrita alfabética tem, em tese, o princípio geral de que cada unidade sonora funcional (fonema) será representada por uma determinada letra (grafema) e de que cada letra (grafema) representará uma unidade sonora funcional (fonema).

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Dizer, por outro lado, que o sistema gráfico admite também o princípio da memória etimológica significa dizer que ele toma como critério para fixar a forma gráfica de certas palavras não apenas as unidades sonoras funcionais que a compõem, mas também sua origem. Assim, escrevemos monge com g (e não com j) por ser uma palavra de origem grega; e pajé com j (e não com g) por ser uma palavra de origem tupi. Escrevemos homem com h não porque haja uma unidade sonora antes do o em português, mas porque em latim se grafava homo com h (resquício de um tempo na história do latim em que havia uma consoante antes do o). Ao operar também com a memória etimológica, o sistema gráfico relativiza o princípio geral da escrita alfabética (a relação fonema/grafema não será sempre regular), introduzindo (para o usuário) uma certa faixa de representações arbitrárias. Serão estas representações que trarão dificuldades especiais não só para o alfabetizando, mas igualmente para o já alfabetizado. Nos casos em que a memória etimológica se faz presente, não há outra alternativa: somos obrigados a decorar a forma gráfica da palavra (temos de saber de cor, por exemplo, que excelente se escreve com xc e que essência se escreve com ss, embora o fonema seja o mesmo nas duas palavras); e, no caso de dúvida, temos de ir, pela vida afora, ao dicionário. Em consequência disso, uma das coisas essenciais que o aluno deverá aprender, no processo de apropriação da grafia, é que, embora grande parte das representações gráficas seja perfeitamente previsível pelo princípio da relação unidade sonora (fonema)/letra (grafema), há uma certa dose de representações arbitrárias, as quais exigem estratégias cognitivas próprias. Ele deverá saber, por exemplo, em que casos pode haver situações arbitrárias; deverá saber que é

preciso memorizar a forma da palavra e que, nas dúvidas, deverá ir ao dicionário. É bom lembrar que o ensino dessas estratégias cognitivas para operar com as representações arbitrárias não é tarefa exclusiva do professor de primeira série. Como se trata de uma dificuldade permanente para todos os usuários da escrita (na medida em que essas representações são imprevisíveis e exigem memorização), os professores de todas as séries seguintes deverão, sempre que se faça necessário, retomar essa questão. Podemos ir até mais longe e dizer que aspectos do sistema gráfico (os mais raros) devem ser introduzidos em outras séries do ensino fundamental, reservando-se a primeira série (ou o primeiro ciclo) para sistematizar os aspectos básicos. Felizmente para todos nós, o que predomina no sistema não são as representações arbitrárias, mas as regulares. Antes, porém, de comentar as representações regulares, é importante destacar uma outra característica do sistema gráfico: sua relativa neutralidade em relação à pronúncia. Como destacamos anteriormente, muita gente pensa que a grafia representa diretamente a pronúncia. Trata-se de um equívoco. Primeiro, pela razão exposta acima: o sistema tem memória etimológica. Em segundo lugar, porque a grafia – mesmo quando mantém constante a relação unidade sonora/letra – é, em certo sentido, neutra em relação à pronúncia. Ou dizendo de outra maneira, há muitas formas de pronunciar uma palavra (conforme a variedade da língua que se fala), mas há uma única forma de grafá-la. Alguns falantes dizem [d .tI]; outros dizem [d .ti]; outros [d .ti]; outros [d .ti]; outros ainda [d t]. Há, porém, uma única forma de grafar essa palavra: dente – que, de fato, não representa diretamente nenhuma das pronúncias possíveis.

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Essa neutralidade da grafia em relação à pronúncia é extremamente vantajosa: trata-se de um sistema uniforme que serve para grafar as muitas variedades da língua, permitindo uma base segura de comunicação entre falantes de variedades diferentes. Se não fosse essa uniformidade, a grafia perderia sua utilidade como sistema de representação da língua falada. É claro que essa neutralidade não é absoluta. Quando se criou o sistema gráfico para o português, tomou-se como referência uma certa variedade da língua. Assim, embora o primeiro som de varrer fosse [b] em algumas variedades do português e [v] em outras, fixou-se a grafia com a letra v, porque foi a variedade em que se pronunciava [v] que serviu de referência (seus falantes é que estavam – em decorrência de sua posição na estrutura social – escrevendo; e não os falantes das outras variedades). Nesse sentido, existe uma proximidade maior entre a grafia e algumas pronúncias. Essa proximidade, porém, é bastante relativa: de um lado porque (não devemos nunca esquecer!) o sistema gráfico tem memória etimológica; de outro, porque as formas de pronunciar a língua vão se alterando com o passar do tempo e a grafia se mantém constante. Um exemplo disso é a pronúncia do fonema / l / em final de sílaba. Quando se fixou a grafia, havia uma diferença sonora entre mau e mal: a primeira se dizia [ m a w ] e a segunda [mal]. Em consequência, receberam grafias diferentes. Hoje, a maioria dos brasileiros não as distingue mais na fala: ambas são ditas [m a w]. Ocorreu uma mudança na pronúncia das variedades brasileiras da língua que afetou o / l / no final de sílaba, transformando-o em [w]. A grafia, porém, mantém a diferença; e a questão de saber se [w] se grafa com l ou u passou a ser, para o usuário brasileiro, uma opção arbitrária. Ele tem de memorizar que [kawda] de açúcar se escreve com l (calda), mas

que [kawda] de bicho, de vestido ou de cometa se escreve com u (cauda). Para os portugueses, que não alteraram a pronúncia do / l / no final de sílaba, essa diferença gráfica não apresenta nenhuma dificuldade porque ainda corresponde a uma diferença fonético-fonológica. O fato de ter havido mudança e de a mudança ter criado, para o usuário brasileiro, uma situação arbitrária, não significa que o brasileiro antes de ser alfabetizado tenha de “corrigir” sua pronúncia; não significa também que o professor deva introduzir uma pronúncia artificial em sala de aula para que o aluno não “erre”. Significa apenas que a representação gráfica do [w] deve ser tratada em estágios mais avançados do processo de apropriação da grafia da mesma forma como nós tratamos outras áreas em que há mais de uma representação gráfica para a mesma unidade sonora e a escolha entre elas se faz de forma arbitrária. Qualquer outro procedimento (“corrigir” pronúncia ou pronúncia artificial) será enganoso porque estaremos escondendo do aluno a estratégia correta para lidar com representações arbitrárias, dificultando-lhe o domínio da grafia. Concluindo esses comentários, podemos dizer que mudanças na pronúncia acabam distanciando a realidade sonora de suas representações gráficas, ampliando o grau de neutralidade da grafia frente às diferentes pronúncias e criando, em consequência, certas dificuldades para o usuário onde antes não havia. Quando a mudança afeta a pronúncia de todo um país (como no caso do / l / no final de sílaba, discutido acima), a dificuldade ortográfica criada será dificuldade para todos. Há, porém, casos em que a mudança se dá apenas em algumas variedades da língua. Nessa situação, só para esses falantes se cria um distanciamento maior entre a realidade sonora e a representação gráfica; e, em consequência, só para eles haverá dificuldades ortográficas especiais.

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Um exemplo disso é a pronúncia do encontro consonantal /cons + l/: variedades rurais do português brasileiro (hoje também presentes no contexto urbano, trazidas pelos migrantes) substituíram o / l / desse encontro por / r /. Dizem [gro.bo] e não [glo.bo]; [kra.ro] e não [kla.ro]. Ou, em outras palavras, nessas variedades globo e gruta iniciam com o mesmo encontro consonantal [gr]. Para esses falantes, saber quando esse encontro consonantal se grafa com l ou r é uma questão arbitrária: eles têm de aprender de cor que [gro.bo] se escreve com l e [gru.ta] com r. Já uma criança que fala uma variedade tradicionalmente urbana do português não terá essa dificuldade: nessas variedades, o encontro consonantal de globo é diferente do de gruta e essa diferença está diretamente marcada na grafia porque estava presente na variedade que serviu de referência quando da criação e fixação da ortografia do português. Algumas observações são oportunas nesse ponto: primeiro, é interessante observar que o problema ortográfico do encontro consonantal que acabamos de discutir é exatamente da mesma natureza do problema que afeta a grafia de [w]: nas duas situações, a opção gráfica é arbitrária e exige os procedimentos didáticos e as estratégias cognitivas apropriadas para tratar os casos de arbitrariedade do sistema; a única diferença entre as duas situações é que a dificuldade é para praticamente todos os falantes brasileiros no caso de [w] e só para falantes de algumas variedades no caso do encontro consonantal; segundo, vale repetir a observação que fizemos acima: os falantes de variedades rurais do português não precisam primeiro “corrigir” sua pronúncia para então serem alfabetizados; podemos alfabetizá-los diretamente, tendo apenas o cuidado de deixar o encontro consonantal mais para o fim do processo de aquisição

da grafia e de ensiná-los a operar com a dificuldade do mesmo modo como fazemos em outras situações semelhantes. Como no caso do encontro consonantal haverá uma clara diferença entre a pronúncia desses alunos e a do professor (diferentemente do caso do [w] em que professor e alunos têm em geral a mesma pronúncia); isso poderá diminuir a dificuldade dos alunos, desde que o professor tenha sensibilidade suficiente para mostrar isso a eles. Por fim, a eventual substituição da pronúncia [r] pela pronúncia [l] por parte do aluno poderá ocorrer mais tarde e é até desejável que ocorra, tendo em vista o fato de que as populações tradicionalmente urbanas menosprezam aquela pronúncia rural e desmerecem seus falantes. Tal substituição, porém, deverá ser resultado não de uma imposição opressiva, mas de um processo pelo qual o aluno amadureça seu contato com a variedade padrão, processo que, de fato, só acontecerá depois de certo tempo de vida escolar e, mesmo assim, só se a escola souber conduzi-lo; uma terceira observação é pertinente aqui: os mesmos cuidados didáticos que temos de ter com os falantes de variedades rurais do português brasileiro no caso do encontro consonantal discutido acima haveremos eventualmente de ter com alunos oriundos de famílias de ascendência japonesa, porque eles tendem, muitas vezes, a substituir, na fala, o [l] pelo [r] naqueles encontros consonantais. Esta pronúncia não é resultado de mudanças da língua portuguesa (como no caso do falante de variedade rural), mas de transferência de características do sistema fonológico do japonês. Essa situação de interferência da língua dos ascendentes na pronúncia do português é comum em algumas áreas da região Sul,

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em especial em certas áreas de maior concentração das populações descendentes de imigrantes. Os alfabetizadores desta região devem estar conscientes disso para poder tratar o fato de forma adequada quando ele ocorrer. Quando descrevermos adiante o sistema gráfico do português, comentaremos outros casos de variação dialetal ou de transferência da língua dos ascendentes que podem implicar certa dificuldade no processo de domínio do sistema gráfico. Nessa parte do texto, interessa-nos apenas alertar o alfabetizador para o fato de que ele precisa estar atento a essas realidades para saber lidar com elas, auxiliando o aluno a desenvolver as estratégias adequadas para o enfrentamento das dificuldades. Voltando agora às características gerais do sistema gráfico da língua portuguesa, podemos concentrar a discussão nos tipos de relações possíveis no sistema entre unidades sonoras e unidades gráficas. O sistema comporta dois tipos de relações (consultar o Apêndice para a lista dos símbolos): a) as relações biunívocas: a uma determinada unidade sonora corresponde uma certa unidade gráfica; e esta unidade gráfica só representa aquela unidade sonora. Exemplo: a unidade sonora / p / é representada sempre pela unidade gráfica (letra) p; e a letra p só representa a unidade sonora / p /. As relações biunívocas constituem situações de regularidade, digamos assim, absoluta. b) as relações cruzadas: uma unidade sonora tem mais de uma representação gráfica possível. Exemplo: a unidade sonora / ã / pode ser representada por ã (irmã), por am (samba), por an (manga);

uma unidade gráfica representa mais de uma unidade sonora. Exemplo: a letra r pode representar a unidade sonora / R / (erre forte) como em rato; e a unidade sonora / r / (erre fraco) como em aranha. A existência de relações cruzadas no sistema pode sugerir, numa primeira análise, que não há regularidade. Há, porém, um bom número de relações cruzadas que são perfeitamente previsíveis, o que facilita bastante o ensino e o uso do sistema gráfico porque é possível estabelecer regras. A diferença entre essa situação (regularidade relativa) e a primeira (regularidade absoluta) é que a previsibilidade aqui é determinada pelo contexto, isto é, pela posição da unidade sonora ou da unidade gráfica na sílaba ou na palavra; ou ainda pelo elemento que a segue. Exemplos: • / k / é representado por c antes das vogais posteriores (grafadas a - o - u) e por qu antes das vogais anteriores (grafadas e - i): calo, colo, coro, curtir, quilo, quero, cheque; • a letra r, se no início da palavra, sempre representa / R / (erre forte): rato; no meio da palavra, entre vogais (V - V), representa sempre / r / (erre fraco): querido; • a letra m, no início de sílaba, representa sempre a unidade sonora / m / que, em português, só ocorre nessa posição: mato, cama, palma. No fim da sílaba, a letra m, combinada com uma letra vogal, representa unidades sonoras vogais nasais: campo, bumbo, sempre. A situação fica complexa quando, no mesmo contexto, duas ou mais unidades gráficas representam a mesma unidade sonora e não é possível estabelecer uma regra. Exemplos: • /  /, diante das vogais anteriores (grafadas e - i), pode ser representada por g ou j (gilete, jiló, gelo, jenipapo);

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• /  / pode ser representado por x ou ch (enxada, encharcado, chato, xale); • / w / pode ser representado por l ou por u (soldado, saudade); • / s /, entre vogais, pode ser representado por ss, c/ç, sc/sç, x, xc, xs (passe, lace, laça, nasce, nasça, próximo, excelente, exsudar).

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Nestes últimos casos, a ocorrência de uma ou outra representação gráfica se torna (para o usuário) arbitrária, por não ser previsível por meio de uma regra. Em consequência, temos de aprender a memorizar a forma da palavra; temos de confiar não numa correspondência unidade sonora/unidade gráfica, mas em nossa memória visual (e até motora); temos de aprender as situações em que pode haver tais representações arbitrárias para poder tirar as dúvidas consultando o dicionário; temos de desenvolver, como se diz na gíria, certos macetes de memória (ou – em linguagem mais formal – certos recursos mnemônicos) para guardar de cor a forma da palavra. Podemos, por exemplo, trabalhar com famílias de palavras: não precisamos decorar isoladamente que homem, humano, humanidade, humanista, humanitário são escritas com h; podemos memorizar que todas as palavras parentes de homem se escrevem com h. Ou, ainda, que se xadrez é com x, enxadrezado será com x; se charco é com ch, encharcar é com ch. Vamos, a seguir, apresentar cada um dos casos discutidos aqui (relações biunívocas, relações cruzadas previsíveis, relações cruzadas imprevisíveis), resumindo, depois, todas as informações em alguns poucos quadros.

REPRESENTAÇÃO DAS CONSOANTES

RELAÇÕES BIUNÍVOCAS (100% REGULARES) A unidade gráfica (letra ou dígrafo) representa uma e só aquela unidade sonora; e a unidade sonora é representada por uma e só aquela unidade gráfica. Unidade sonora /p/ /b/ /f/ /v/ /  / (a) / t / (b) / d / (b) /  / (c)

Unidade gráfica p b f v nh t d lh

(pato – mapa – prato – apto) (bala – cabana – cobra – obter) (faca – café – frade – afta) (vaca – cavalo – nevralgia) (nhoque – banho) (tabela – pata – trago) (dar – lado – droga – advogado) (palha – lhama)

OBSERVAÇÕES

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a) a unidade sonora /  / é raríssima em início de palavra (normalmente são palavras emprestadas de outras línguas, em especial de línguas indígenas brasileiras); em geral /  / ocorre entre vogais; b) incluímos / t / e / d / neste quadro, porque a relação com as letras t e d é, em princípio, biunívoca, embora diante de / i /, / t / seja, em muitas variedades do português do Brasil, pronunciada [ t ] como em tia e cantina; e / d / seja, nessas mesmas variedades, pronunciada [ d ] como em dia e médico. Essa diferença de pronúncia não causa maiores dificuldades de escrita: primeiro porque o falante identifica [ t ] com / t / e [ d ] com / d /, isto é, toma, nos dois casos, um como variante do outro, relacionando ambos de forma biunívoca com as letras t e d respectivamente. De outro lado, não há dificuldade porque [ t ] e [ d ] não têm outra representação que não as letras t e d, salvo nos casos de tcheco (como no nome do país “República Tcheca”); e de algumas outras palavras e nomes estrangeiros de uso praticamente nulo. É importante dizer que o alfabetizador não precisa se preocupar com estas palavras: a grafia tch não é produtiva na língua. Além disso, aprender a escrever “República Tcheca” pode ficar para as aulas de geografia em série mais avançada da escolarização. Com as palavras exóticas de uso praticamente nulo, ninguém precisa, na verdade, se ocupar: quando for necessário conhecer sua grafia, o dicionário resolverá o problema. c) A unidade /  / é muito rara no início de palavras. Quanto à sua representação, é preciso fazer duas observações: Há variedades rurais do português brasileiro (hoje presentes no contexto urbano e, aparentemente, em desaparecimento) que substituíram /  / por / y /: dizem [pa.ya] e não [pa.a]; [te.ya] e

não [te.a]. Essa substituição cria uma convergência com ditongos, tornando-se arbitrário para os falantes daquelas variedades saber quando / y / se grafa com lh e quando se grafa com i. Assim, palha e telha poderão ocorrer como paia e teia na grafia inicial desses falantes. As condições de superação dessa dificuldade são semelhantes ao caso do encontro consonantal comentado anteriormente. De qualquer forma, há indícios de que esta pronúncia rural está começando a desaparecer no contexto urbano. Em alguns poucos casos, dizemos /  / e grafamos li ou le, como em família, óleo, Itália, italiano. Trata-se, na verdade, de uma pronúncia flutuante – podemos dizer [i.ta.a] ou [i.ta.li.a] – e poderá trazer uma certa dificuldade para o alfabetizando que grafará, por exemplo, familha por família. A superação dessa dificuldade supõe a memorização da forma gráfica da palavra e é nessa direção que o professor deve trabalhar quando se der o caso. O contraste julho/Júlio pode auxiliar a introdução do trabalho sistemático aqui.

RELAÇÕES CRUZADAS PREVISÍVEIS (REGULARIDADES CONTEXTUAIS) PRIMEIRO CASO A unidade sonora ocorre, em português, só em um ou em alguns contextos na sílaba ou na palavra e, nesse(s) contexto(s), a relação é biunívoca e, portanto, 100% regular. O que ocorre de especial é que a unidade gráfica, em outros contextos na sílaba ou na palavra, representa outra(s) unidade(s) sonora(s). É nesse sentido que a relação é cruzada: a unidade gráfica tem mais de um valor no sistema.

133

/l/

(erre fraco)

/r/

/n/

A unidade sonora / l / ocorre, na maioria das variedades do português do Brasil, só no início de sílaba ou no encontro consonantal

A unidade sonora / r / ocorre, em português, entre vogais (V-V) ou no encontro consonantal

A unidade sonora / n / só ocorre, em português, no início de sílaba

m

A unidade sonora / m / só ocorre, em português, no início de sílaba

/m/

(lado, mala, planta)

l

(cara, branco, prato)

r

(nata, cano, repugnar, carne)

n

(mato, cama, admito, palma)

Unidade Gráfica

Ocorrências

Unidade Sonora

• A letra l, em fim de sílaba, representa, na maioria das variedades do português do Brasil, a semivogal / w /: mal, soldado, mel, anil.

• A letra r, em todos os outros contextos, representa a unidade sonora / R / (erre forte): rato, marco, honra.

• A letra n, em fim de sílaba, participa da representação das vogais nasais (em relação complementar com a letra m). Ex.: tinta, pente, manco. • Em fim de palavra, a letra n é muito rara. Representa a semivogal / y / ou / w / em ditongos nasais decrescentes. Ex.: hífen, nêutron.

• A letra m, em fim de sílaba, participa da representação das vogais nasais. Ex.: campo, limpo, bomba. • Em fim de palavra, representa a semivogal / y / ou / w / em ditongos decrescentes nasais. Ex.: porém, falam.

Relações Cruzadas

Observações dialetais 1 e 2 1. Indivíduos bilíngues descendentes de italianos ou de alemães tendem a trocar, na sua pronúncia do português, o erre forte pelo fraco (italianos) e vice-versa (alemães). Isso ocorre porque na língua de seus antepassados essa diferença (forte x fraco) não é significativa. Esses fatores poderão criar alguns problemas para os alfabetizandos dessas etnias que escreverão “fero” por ferro ou “esperrar” por esperar. Mesmo falantes monolíngues de português poderão apresentar essa troca nos inícios do processo de apropriação da grafia. Sua superação parece estar correlacionada com um aumento da consciência perceptiva das diferenças fônicas. Será talvez útil trabalhar, em contextos significativos, com pares de palavras em que os dois sons estão em oposição (caro/ carro; amarei/amarrei; era/erra). 2. Em variedades rurais do português brasileiro, o / l / de fim de sílaba foi substituído por um erre retroflexo (pronunciado com a ponta da língua virada para trás): diz-se [ba.de] e não [baw.de]. Para falantes dessas variedades, saber quando grafar esse erre com a letra l (balde) ou com a letra r (carta) é uma questão arbitrária, do mesmo modo que para os falantes de variedades urbanas é uma questão arbitrária saber se / w / é grafado com l (balde) ou com u (auto). As estratégias didáticas e cognitivas são idênticas: trabalhar com a memorização da forma gráfica da palavra. Com os falantes de variedades rurais, porém, o professor deve ter cuidado para não ridicularizar a pronúncia deles. Como dissemos antes, eles podem perfeitamente ser alfabetizados sem antes urbanizar sua pronúncia. A eventual substituição da pronúncia do erre retroflexo por / w / poderá ocorrer progressivamente (em decorrência da própria experiência escolar) e é até desejável

135

136

que ocorra, tendo em vista o fato de que as populações tradicionalmente urbanas tendem a ridicularizar aquela pronúncia rural e discriminar seus falantes. O processo, porém, é longo e dependerá, em grande parte, das atitudes adequadas do professor. Eglê P. Franchi, em seu livro, discute muito bem essa questão, mostrando ao professor como ele pode agir de forma a auxiliar seu aluno nessa tarefa. Ainda um último comentário: nas variedades rurais, o / l / de fim de palavra, transformado em erre retroflexo, tende a desaparecer, da mesma forma que todos os erres de fim de palavra desaparecem nessas variedades: diz-se [ko.ro.nE] e não [ko.ro.nEw] (coronel), da mesma forma que se diz [ku.yE] e não [ku.yER] ou [ku.ER] (colher). A abordagem didática desse fato deverá seguir as mesmas coordenadas expostas acima. As variedades urbanas normalmente só cortam o erre final da forma infinitiva do verbo, o que as afasta menos da representação gráfica.

SEGUNDO CASO A unidade sonora tem mais de uma representação gráfica, cada uma num contexto determinado (as representações estão numa relação de distribuição complementar). Trata-se de um caso de relação cruzada, porque as unidades gráficas têm outros valores no sistema.

/k/

/R/

Unidade Sonora

a) A letra c, –  quando a unidade sonora / k / for seguida das vogais posteriores (orais: / u / - / o / - /  / - / a /; ou nasais /  / - / õ / - / ã /. Ex.: curto, cocho, cola, calo, cumpro, compra, canto. – quando a unidade sonora / k / estiver em encontro consonantal (claro, critico); ou – o que é bastante raro – no fim de sílaba (pacto, técnico). b) O dígrafo qu, quando a unidade sonora / k / for seguida das vogais anteriores (orais: / i / - / e / - / E /; ou nasais: / / - /  / ) Ex.: quilo, querer, quero, quinto, quente. c) A letra q, – quando a unidade sonora / k / for seguida de ditongo iniciado pela semivogal / w /, representada na escrita por u seguido de a ou o (quatro, quando, quota) ou por u seguido de e ou i (cinquenta, tranquilo); – quando a unidade sonora / k / for seguida de / u / forte (tônico) seguido de vogal (adequo, adequa, adeque).

b) A letra r, nos demais casos, isto é: início de palavra (rato, roupa); fim de sílaba (marco); fim de palavra (cantar); precedido de vogal nasal (na escrita v + n: honra, tenro); precedido de consoante (desrespeito); precedido de semivogal (na escrita l: melro).

a) O dígrafo rr, quando a unidade sonora estiver entre vogais (V-V). Ex.: carro, terra.

Unidades Gráficas

/ k / + / e / - / i / = qu

/k/+/a/-/o/-/u/=c

A letra c, diante das letras i e e, representa a unidade sonora / s /. Isso não é problema aqui porque / k / diante de e ou i é representado pelo dígrafo qu. Há, portanto, uma distribuição complementar altamente regular:

A letra r pode representar a unidade sonora / r / (erre fraco). Observar, porém, que / r / só ocorre em dois contextos: V-V e no encontro consonantal. Assim, os dois valores da letra r (ora representa / R /, ora / r /) são perfeitamente previsíveis. O único contexto em que / R / e / r / podem ambos ocorrer é entre vogais (V-V), caso em que o sistema gráfico usa o dígrafo rr para / R / e a letra r para / r /.

Relações Cruzadas

OBSERVAÇÃO Como se vê pela descrição acima, a sequência gráfica qu pode funcionar como dígrafo (a letra u não representa nenhuma unidade sonora – queda) ou como duas unidades gráficas distintas (a letra u representa / w / – quadrado, tranquilo; e mais raramente / u / – adequo). Na sistematização da grafia, deve-se trabalhar, de início, com as representações complementares c/qu (dígrafo), deixando as demais situações para momentos mais avançados do processo. 138

/g/

Unidade Sonora

b) O dígrafo gu, quando a unidade sonora / g / for seguida das vogais anteriores (orais: / i / - / e / - / E /; ou nasais: / / - / /). Ex.: guia, gueto, guerra, guincho, briguento.

– quando a unidade sonora / g / for seguida de ditongo iniciado pela semivogal / w /, representada na escrita por u (água, aguente, linguiça, águo).

– quando a unidade sonora / g / estiver em encontro consonantal (globo, gruta); ou o que é bastante raro no fim de sílaba (repugnar);

a) A letra g, – quando a unidade sonora / g / for seguida das vogais posteriores (orais: / u / - / o / - /  / - / a /; ou nasais /  / - / õ / - / ã /. Ex.: gula, gota, gola, galo, bagunça, gongo, ganso;

Unidades Gráficas

Relações Cruzadas

/ g / + / e / - / i / = gu

/g/+/a/-/o/-/u/=g

A letra g, diante das letras e / i, representa a unidade sonora /  /. Isso não é problema na representação de / g /, porque aqui há uma distribuição complementar altamente regular:

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OBSERVAÇÃO Como se pode ver, a sequência gráfica gu pode funcionar como dígrafo (a letra u não representa nenhuma unidade sonora – guia) ou como duas unidades gráficas distintas (a letra u representa / w / – água; e mais raramente / u / – averiguo). Na sistematização da grafia, deve-se, de início, trabalhar com as representações complementares g/gu (dígrafo), deixando os demais casos para momentos mais avançados do processo. 140

RELAÇÕES CRUZADAS PARCIALMENTE PREVISÍVEIS E PARCIALMENTE ARBITRÁRIAS A unidade sonora tem mais de uma representação gráfica: em alguns casos a representação gráfica é previsível pelo contexto e, em outros, não.

Unidade Sonora

Unidades Gráficas a) A letra j, quando a unidade sonora for seguida das vogais posteriores (orais: / u / - / o / - /  / - / a /; ou nasais /  / - / õ / - / ã /). Ex.: juba, jogo, jovem, laranja, juntar, jongo, jangada (100% regular).

//

b) as letras g ou j, quando a unidade sonora for seguida das vogais anteriores (orais: / i / - / e / - / E /; ou nasais: / / - /  /. Ex.: girar/geral/germe; jirau/jenipapo/jegue; gingação/jinsém; nojento/argentino (arbitrária).

OBSERVAÇÕES a) no primeiro caso, há uma relação biunívoca entre /  / e j. Vale observar que a letra j, no sistema gráfico do português, só representa a unidade sonora /  /; b) no segundo caso, /  / tem duas representações: a letra g e a letra j; e a escolha é (para o usuário) arbitrária e trará natural dificuldade para os alfabetizandos. Alguns fatos podem auxiliar o controle dessa dificuldade: • diante de e e i, a letra g é mais frequente que a letra j; • a letra j ocorre: – em palavras derivadas de outras que se escrevem com j: laranja/laranjeira; loja/lojista; sujo/sujeira; e em todas as formas dos verbos em -jar: viajar/viaje/ viajem; encorajar/encoraje/encorajem; – em palavras de origem tupi, africana ou popular. (Ex.: pajé, jeca, cafajeste, jiboia, jiló, lambujem). É claro que esta é uma afirmação que faz pouco sentido para a maioria dos usuários. Contudo, em séries mais avançadas da escola, no estudo de composição do vocabulário da língua, poderá ser útil. Nas séries iniciais, talvez o melhor recurso seja trabalhar diretamente com a memorização da forma das palavras mais frequentes. • a letra g ocorre: – em palavras derivadas de outras que se escrevem com g: vertigem/ vertiginoso; ferrugem/ ferruginoso; e em todas as formas dos verbos em -ger e -gir: eleger (elegi/elegem); fugir (fugi/fogem);

141

– na maioria das palavras terminadas em -gem (aprendizagem, ferrugem, coragem); – nas palavras terminadas em -ágio, -égio, -ígio, -ógio, -úgio (estágio, colégio, prestígio, relógio, refúgio). Observação dialetal 3

142

Para algumas variedades do português brasileiro, a unidade sonora /  / só ocorre em início de sílaba (são as variedades localizadas de São Paulo para o Sul, com exceção da região litorânea de Santa Catarina); para outras (principalmente as variedades localizadas do Rio de Janeiro para cima), /  / também ocorre no fim de sílaba, representada graficamente pela letra s: diz-se [me.mu] e não [mez.mu] (mesmo). Isso não deve trazer problemas para os alfabetizandos, porque a representação gráfica é regular. Ver, adiante, no estudo da unidade sonora / /, a observação dialetal 4.

/z/

Unidade Sonora

a) A letra z tem outro valor no sistema gráfico, mas nunca no início de palavra. A letra z, no fim de palavra, representa a unidade sonora / s /: paz, faz, traz. b) Ver observação dialetal 3.

c) A letra z tem outro valor no sistema gráfico, mas nunca nesse contexto.

d) Nessa situação, há poucos casos em que o / z / é representado por s: em geral, trata-se de palavras de uso quase nulo, com exceção talvez de esôfago. Por outro lado, a letra x nesse contexto pode representar /  / em apenas duas palavras (exu, exido), ambas de uso quase nulo. A letra z nunca ocorre nesse contexto.

b) no fim de sílaba, sempre a letra s (a letra z nunca ocorre em fim de sílaba no interior das palavras): desde, mesmo, pasmo, gosmento.

c) no início de sílabas precedido de vogal nasal (grafada com auxílio de n) ou consoante, sempre z: banzo, zonzo, cerzir, marzipã.

d) no seguinte contexto: e – V (i.e., a unidade sonora / z / precedida de e e seguida de vogal), quase só a letra x: exato, exame, exímio, exemplo, exótico, exumar.

Observações

a) no início de palavras, sempre a letra z: zebra, zangado, zombar, zunido.

1. Representações regulares (só z, só s, só x):

Unidades Gráficas

143

Unidades Gráficas

2. Representação arbitrária (s ou z) Entre vogais, / z / pode ser representado pela letra s (mais frequentemente) e pela letra z: casar, mesa, meses, azar, reza, luzes.

Unidade Sonora

/z/

Observações

b) a letra z ocorre sempre: – nas palavras derivadas de outras escritas com z (cruz/ cruzada; rapaz/rapaziada; feliz/felizardo); – nos substantivos terminados em -eza, derivados de adjetivos (pobre/pobreza; triste/tristeza; mole/moleza); – nos verbos em -izar que derivam de palavras cuja raiz não termina em s (suave/suavizar útil/utilizar; deslize/ deslizar).

a) A letra s ocorre sempre: – depois de ditongos (pausa, coisa, lousa); – nas palavras terminadas em -oso/-osa (formoso/ formosa; doloroso; vaidosa); – nas palavras derivadas de outras escritas com s (empresa/empresário; mesa/mesinha; casar/casamento); – nos femininos em -esa e -isa (duque/duquesa; inglês/ inglesa; sacerdote/sacerdotisa); – nos verbos em -isar que derivam de palavras com s (análise/analisar; pesquisa/pesquisar; aviso/avisar).

144

/s/

Unidade Sonora

• com e, será s na grande maioria dos casos (resfolegar, resto, emprestar).

Sit. arbitrária Exceções: sexto, texto, têxtil e derivados (sêxtuplo, textual, pretexto, textura, sexteto).

• será s com todas as vogais, menos e (pasta, piscar, posto, poste, fustigar).

100% regular

no contexto Cons. + Vog. + / s /

• com e será s na grande maioria (mais de 3.000 no volp). – Minoria em x ( ± 450 no volp, das quais ± 50 são de uso mais frequente); – Absolutamente raro com xs (3 palavras no volp).

• será s com todas as vogais, menos e (astro, isto, ostentar).

no contexto Vogal + / s /

b) quase sempre a letra s: quando a unidade sonora /s/ ocorre em fim de sílaba

– se a unidade sonora / s / estiver no fim da palavra e for marca de plural: casas, bares.

1. Representações regulares a) sempre a letra s: – se a unidade sonora / s / estiver no início da palavra, seguida das vogais posteriores (orais: / u / - / o / - /  / - / a /; ou nasais: /  / - / õ / - / ã /): sujo, soltar, sola, sala, suntuoso, sonda, santo;

Unidades Gráficas

145

/s/

Unidade Sonora

c) letra s ou c (+ e/i) ou letra s ou ç (+ a/o/u): no início de sílaba quando a unidade sonora / s / é precedida de consoante ou vogal nasal (grafada com auxílio de n) Ex.: pense/ lance; versificar/ parcimônia; pensar/ lançar; persuadir/ forçudo. d) no contexto V-V (entre vogais): • a vogal que segue é a/o/u ss ou ç – passado, traça, passo (verbo passar), paço (palácio), assunto, açúcar; ss ou sç – assado, crasso, assumir, cresça, desço. observação: o dígrafo xs é absolutamente raro (exsolver, exsudar). • a vogal que segue é e/i ss ou c (passe – cassino / receber – recibo) ss ou sc (nascente – nascimento) ss ou x (máximo – sintaxe) ss ou xc (excelente – excitar) observações: - as representações sc – x – xc são mais raras; - a representação xs é totalmente rara e só aparece seguida de i: são apenas 5 palavras da família do verbo exsicar no volp.

2. Representações arbitrárias a) letra c ou s: no início de palavra quando a unidade sonora / s / é seguida de vogais anteriores (na escrita i ou e) Ex.: cisco, cesta, cetro; sílaba, sereno, sete. b) letra s ou z: no final de palavra (salvo na marca de plural – sempre s) Ex.: mês, gás, quis, pus; vez, paz, giz, luz.

Unidades Gráficas

146

OBSERVAÇÕES a) no contexto V-V, a letra s nunca ocorre representando / s / e o dígrafo ss é a representação mais frequente, o que permite, no começo, operar com uma relação de complementariedade: / s / no início de palavra + a/o/u, sempre s; no meio da palavra, entre vogais, quase sempre ss. A introdução das outras representações deve ficar para etapas posteriores, trabalhando-se primeiro as regulares e, depois, as arbitrárias, evitando sempre as muito raras; b) com as representações arbitrárias, o mais correto parece ser trabalhar com a forma global da palavra e com as respectivas famílias. É importante observar, nesse sentido, que, nas representações arbitrárias, há muitos homônimos homófonos, mas heterógrafos (palavras com a mesma pronúncia, mas com grafias diferentes): sinto/cinto; sela/cela; trás/traz; lasso/laço. Esses contrastes devem ficar para séries posteriores: no início, importa que o aluno fixe a forma das palavras mais frequentes; c) trabalhando com famílias de palavras, é interessante observar que quando é sc diante de e ou i, será sç diante de a/o/u (nascer/ nascimento/nasço/nasça), quando é c diante de e/i, será ç diante de a/o/u (dance/dança/danço; doce/doçura); d) usa-se c/ç e não ss: • depois de ditongos: feição, louça, traição; • nos sufixos: -aça / -aço / -ação / -ecer / -iço / -ança / -uço: barcaça, ricaço, armação, entardecer, caniço, criança, dentuço; • nos vocábulos de origem tupi, africana ou árabe (araçá, Iguaçu, paçoca, açúcar, muçulmano). É claro que esta é uma afirmação que faz pouco sentido para a maioria dos usuários. Contudo,

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em séries mais avançadas da escola, no estudo da composição do vocabulário da língua, poderá ser útil. Nas séries iniciais, talvez o melhor recurso seja trabalhar diretamente com a memorização da forma das palavras mais frequentes. e) usa-se ss e não c em correlações constantes entre palavras: CED - CESS (conceder / concessão) GRED - GRESS (agredir / agressão) PRIM - PRESS (oprima / opressão) TIR - SSÃO (omitir / omissão) 148

MET - MISS (submetei / submissão)

RELAÇÕES CRUZADAS TOTALMENTE ARBITRÁRIAS A unidade sonora tem mais de uma representação gráfica e a ocorrência de uma ou outra é imprevisível. Unidade Sonora //

Unidades Gráficas a letra x ou o dígrafo ch chave, chiste, encharcado, macho, xale, xisto, enxadrezado, faxineiro

OBSERVAÇÕES a) o dígrafo ch só representa /  /; b) a letra x tem outros valores no sistema gráfico; c) a representação de /  / por ch é mais frequente que por x; d) usa-se sempre x:

• depois de ditongos: caixa, paixão, frouxo, rouxinol; • em vocábulos de origem indígena ou africana: abacaxi, xavante; • geralmente depois da sílaba inicial EN: enxada, enxame, enxuto, enxofre. Nesse caso, serão com ch algumas poucas palavras (enchova) e palavras derivadas de outras escritas com ch (cheio/encher/ enchimento/preencher).

Observação dialetal 4 Para algumas variedades do português brasileiro, a unidade sonora /  / só ocorre em início de sílaba; para outras, ocorre também no fim de sílaba (representada graficamente pela letra s – pasta; ou x – extra) e de palavra (representada por s – mês; ou z – faz). Essa situação dialetal não deve trazer maiores transtornos para o alfabetizando: as eventuais dificuldades (x ou s; s ou z) não são decorrentes das diferentes pronúncias, mas da arbitrariedade da representação gráfica. Além disso, há a questão da frequência: s ocorre mais que x e z.

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REPRESENTAÇÃO DAS VOGAIS E DOS DITONGOS

Enquanto temos, no alfabeto, apenas 5 letras vogais (a, e, i, o, u), temos, no sistema fonológico do português, 12 unidades sonoras vogais (7 orais: / i / - / e / - / E / - / a / - /  / - / o / - / u /; 5 nasais: / / - / / - / ã / - / õ / - / /). Para dar conta dessa diferença quantitativa (5 letras/12 unidades sonoras), o sistema gráfico precisa fazer alguns arranjos (por exemplo: combinar letras vogais com a letra n ou m para fazer a representação das unidades sonoras nasais, como em manto - mundo - ponto), ou ainda permitir que a mesma letra represente mais de uma unidade sonora (por exemplo: a letra e pode representar as unidades / e / ou / E /: preço/presto). Embora não haja propriamente relações biunívocas na representação das unidades sonoras vogais, há significativas regularidades no sistema gráfico, permitindo-nos prever as áreas que podem causar dificuldades para o aprendiz e o usuário. Na representação das vogais e na percepção das eventuais dificuldades, é fundamental ter clareza quanto à natureza da sílaba (forte, fraca final de palavra, fraca pré-forte, etc.). Um outro aspecto a considerar é que algumas palavras que começam com vogal são grafadas com h, por razões etimológicas. Saber quando as palavras começam com h é (para os usuários)

uma situação arbitrária. É preciso, assim, fixar a forma dessas palavras, preocupando-se, de início, com as mais frequentes. Em séries avançadas do ensino fundamental, será importante mostrar aos alunos que, na derivação de palavras por meio de prefixos, há casos em que o h desaparece (honra/desonra; haver/reaver). Essa questão (correlacionada também com o uso do hífen) não é assunto para as etapas de introdução e fixação do sistema gráfico.

REPRESENTAÇÃO DAS VOGAIS ORAIS 152

NA SÍLABA FORTE Unidade sonora Unidade gráfica /a/

a

ato – gato

/i/

i

ilha – milho

/u/

u

uva – muda

/e/

e

erro – medo

/E/

e

ela – quero

/o/

o

ovo – gota

//

o

obra – poça

NA SÍLABA FRACA FINAL DE PALAVRA (_ # #, SEGUIDA OU NÃO DE / S /) • / E / e /  / não ocorrem nesta posição; • / i / e / u / são muito raras nesta posição e são representadas sempre por i (júri) e u (não há palavras paroxítonas terminadas em u; o / u / que ocorre aqui é sempre seguido de / s /: bônus, vírus);

• / e / - / o / - / a / sofrem um fechamento nesta posição. O fechamento do / a / não causa problema porque o som que resulta não se confunde com nenhum outro e sua representação se faz pela letra a. Já o fechamento do / e / e do / o / normalmente causa problema para os alfabetizandos, porque em grande parte das variantes do português brasileiro o / e / é, nesta posição, realizado como / i / e o / o /, como / u /, isto é, os sons resultantes do fechamento de / e / e / o / se confundem com / i / e / u /, respectivamente. Os falantes dizem [pE.li] (pele) e [pa.tu] (pato), tendendo – no início – a grafar peli e patu. Esse não é, porém, um problema de difícil solução porque é regular e o usuário não está diante de escolhas arbitrárias (a grafia i e u, nesta posição, é – como dissemos acima – muito rara). Não se justifica, portanto, a criação duma pronúncia artificial; basta que o professor mostre a regularidade do fenômeno. (Não será incorreto dizer que pronunciamos / i / nesse contexto e grafamos e; pronunciamos / u / e grafamos o.)

OBSERVAÇÃO Nas palavras proparoxítonas (relativamente raras em português), há uma sílaba fraca medial. Nessa posição, as vogais em geral não se alteram (lâmpada, música, pêssego, pêndulo, cômoda). Poderá ocorrer, em alguns contextos, a supressão dessa vogal: diz-se abobra e não abóbora; oclos e não óculos; chacra e não chácara. São palavras de uso muito frequente e que se transformam em paroxítonas (acentuação básica do português) pela supressão da vogal fraca medial, o que é favorecido pelo fato de a última sílaba começar por / l / ou / r /: a supressão da vogal faz resultar um encontro consonantal normal na língua.

153

NA(S) SÍLABA(S) ANTERIOR(ES) À SÍLABA FORTE – A(S) CHAMADA(S) SÍLABA(S) PRETÔNICA(S):

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• / E / e /  / só ocorrem, nesta posição, em palavras derivadas com alguns sufixos: -mente (certamente, somente); -(z)inho (pertinho, portinha, cafezinho, pozinho); -íssimo (belíssimo, fortíssimo). Em algumas variedades do português brasileiro, porém, o / e / e o / o / pretônicos são pronunciados abertos: pegar é dito [pE.gaR]; geografia é dito [E.gra.fi.a] (para detalhes, ver Myrian Barbosa da Silva, Leitura, ortografia e fonologia, em que se estuda o dialeto de Salvador, Bahia, confrontando fonologia e grafia); • As outras vogais ocorrem nesta posição e são representadas pelas mesmas letras que as representam em sílaba forte: / i / (inimigo), / e / (receber), / a / (casamento), / o / (logradouro), / u / (murmurar); • As vogais / e / e / o / podem sofrer um fechamento nesta posição, passando a / i / e / u / respectivamente. Assim, pode-se dizer [mi.ni.nu] por [me.ni.nu] (menino); [ku.ru.a] por [ko.ru.a] (coruja). Duas observações são importantes aqui: primeiro, que esse fechamento (diferente do fechamento dessas mesmas vogais em sílaba fraca final) ocorre apenas em alguns casos, não em todos. Assim, podemos dizer [ku.ru.a] por [ko.ru.a] e [mi.ni.nu] por [me.ni.nu], mas não dizemos [mu.raR] por [mo.raR] (morar) ou [fi.a.m.tu] por [fe.a.m.tu] (fechamento): nestes dois últimos exemplos, / o / e / e / se mantêm constantes); segundo, o fechamento, quando ocorre, é flutuante: algumas vezes dizemos [me.ni.nu], outras vezes dizemos [mi. ni.nu], dependendo (ao que tudo indica) do grau de formalidade

de nossa fala – / e / e / o / em situações mais formais; / i / e / u / em situações mais informais. Essa oscilação costuma trazer problemas para o alfabetizando (ele tende a escrever minino e curuja). A superação dessa dificuldade inicial passa certamente pela percepção dos casos em que oscilamos na pronúncia. Quando podemos dizer a mesma palavra com / i / ou / e /, grafamos com e; quando podemos dizer com / u / ou / o /, grafamos com o. Os principais contextos em que ocorre essa oscilação: 1. palavras iniciadas por / es / (grafado es ou ex): escola, esporte, espada, expediente, experimento, extermínio; 2. palavras que têm / i / ou / u / na sílaba forte (o chamado fenômeno da harmonia vocálica): seguro, coruja, menino, cortina. Obs.: nesse caso, a harmonia pode ser também condicionada pela presença de / i / ou / u / na sílaba seguinte não forte: Portugal, costurar, medicamento. 3. em hiatos como nas palavras teatro, voar, joelho, leoa.

REPRESENTAÇÃO DAS VOGAIS NASAIS As vogais nasais têm uma representação básica: a letra vogal seguida de m (quando a sílaba seguinte começa com p ou b) ou n (quando a sílaba seguinte começa com uma das demais consoantes). Trata-se de uma representação quase biunívoca (só não é biunívoca porque as vogais nasais podem ter outras representações, embora mais raras). Temos um caso, portanto, de alto grau de regularidade:

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/ / / / /ã/ /õ/ / / 156

— im: timbre, limpo — in: tinta, trinco — em: tempo, sempre — en: tentar, pensão — am: lamber, campo — an: mandar, manco — om: bomba, pompa — on: conta, longo — um: bumbo, cumprir — un: mundo

OBSERVAÇÕES a) A vogal / ã / no fim de palavra (e em palavras derivadas com os sufixos -zinha e -mente) é sempre representada por ã. Exemplos: lã, irmã, órfã, ímã; irmãzinha, cristãmente. b) As demais vogais nasais, quando no fim de palavra, são, em geral, ditas ditongadas. Nesse caso, a letra m (e, raramente, a letra n) estará representando uma semivogal (como veremos adiante, na discussão dos ditongos). Exemplos: rim, bem, bom, atum. A letra n é rara; e só ocorre com e (hífen) e o (nêutron, próton). Ocorre também no plural das palavras terminadas em m (atuns, bons, bens, rins). c) As vogais nasais, quando estão em sílaba forte e a sílaba seguinte começa por consoante nasal, são representadas só pela letra vogal: cano, minha, venha, ponho, unha. É interessante observar que a nasalidade das vogais nesse contexto é, com exceção de / ã /, bastante flutuante. Essa flutuação se acentua se a vogal estiver em sílaba fraca (incluindo / ã /): alguns dizem [ã.nE.la]; outros, [a.nE.la]. Não parece haver dificuldades maiores para os alfabetizandos aqui.

REPRESENTAÇÃO DOS DITONGOS Podemos conceituar ditongo como o encontro de duas vogais ditas numa única sílaba (num único impulso de voz). Uma dessas vogais será / i / ou / u /, pronunciadas com maior fechamento da passagem do ar, o que as transforma em semivogais, passando a ser representadas pelos símbolos / y / e / w / do Alfabeto Fonético Internacional. Os ditongos podem ser orais ou nasais, de acordo com a saída do ar (predominantemente pela boca ou pelo nariz); e decrescentes ou crescentes, de acordo com a posição da vogal básica (antes ou depois da semivogal). Na grafia dos ditongos, as semivogais têm mais de uma representação (havendo, porém, certo grau de previsibilidade); e as vogais mantêm a mesma letra que as representa fora do ditongo.

REPRESENTAÇÃO DOS DITONGOS DECRESCENTES ORAIS A semivogal / y / é, neste caso, sempre representada pela letra i; a semivogal / w / tem mais de uma representação: a letra u, a letra l e, mais raramente, a letra o. A representação básica de / w / é a letra u; ocorre, porém, que na maioria das variedades do português brasileiro a consoante / l / no fim de sílaba (grafada com a letra l) foi substituída por / w /. Com isso, criou-se um ditongo onde antes não havia e / w / passou a ter a letra l como uma de suas representações. Nesse processo de mudança, palavras que eram ditas e grafadas de forma diferente tornaram-se homófonas (mal/mau; alto/

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auto; calda/cauda; calção/caução). Essa situação toda (duplicidade de representação gráfica de / w / e palavras homófonas) criou para o usuário uma área de dificuldade: ele tem de escolher entre l e u, sem que haja condições de previsibilidade. O usuário terá de memorizar a forma das palavras, utilizando-se de certos recursos auxiliares (por exemplo: as formas verbais sempre terminam com u – feriu, leu, cantou; as palavras aparentadas mantêm a grafia – pauta/pautado; balde/baldinho; sol/solar; o ditongo /w / sempre se grafa com l – sol, lençol). Não nos parece adequada a atitude de certos professores que introduzem uma pronúncia artificial em sala para que o aluno não “erre”: trata-se de uma grafia arbitrária e o aluno deverá aprender a lidar com ela de forma adequada (memorizar a forma da palavra em vez de confiar na relação unidade sonora/letra). Introduzir uma pronúncia artificial afasta o aluno da estratégia correta para controlar essa dificuldade: como se orientará o aluno quando o professor não estiver presente? Semivogais Vogais

/y/

/w/ u

/a/

ai pai, vai, gaita

/e/

ei rei, sei, leite

/E/

éi papéis, anéis

/o/

oi boi, foi, moita

au mau pauta eu meu europeu éu céu chapéu ou comprou couro

l al mal balde el delgado selvagem el mel anel ol soldado solto

o ao — — —

Semivogais Vogais

/y/ u

//

ói mói, lençóis

/i/



/u/

ui fui, azuis

— iu feriu, viu riu —

/w/ l ol sol lençol il funil, vil canil ul azul

o — io navio, pavio rio — 159

OBSERVAÇÕES a) os ditongos acentuados perdem seus acentos quando em sílaba fraca. Nesse contexto, só ocorrem em palavras derivadas: papeizinhos, lençoizinhos, chapeuzinho; b) alguns desses ditongos são reduzidos na fala (aparece só a vogal básica): / ay / muda para / a / – caixa, baixa, faixa; / ey / para / e / – peixe, deixe, feijão; / ow / para / o / – couro, ouro, trouxe. Essa redução pode causar dificuldades aos alfabetizandos que escreverão, numa fase inicial, “pexe”, “oro”, “baxa”. A saída didática mais adequada parece ser trabalhar com a forma global das palavras mais frequentes, mostrando ao aluno que temos aí a possibilidade de duas pronúncias: mais formal, com ditongo; menos formal, sem o ditongo. Isso poderá trazer uma dificuldade ao inverso: a palavra não tem ditongo e o aluno grafa com ditongo (“bouca” por boca; “meixer” por mexer). Essa instabilidade só será vencida à medida que o aluno for fixando a forma global da palavra. O mesmo vale para os casos em que certas variedades da língua mudaram a realização das

vogais em alguns contextos, pronunciando-as com a semivogal (forma-se um ditongo que não tem representação gráfica como tal): dizem [t r e y s] e não [t r e s] (três); [f a y s] e não [f a s] (faz). O alfabetizando tenderá, no início, a escrever “treis” por três; “faiz” ou “fais” por faz.

NASAIS

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Semivogais Vogais

/

/

/ã/

ão: pão, órfão. • nas formas verbais: -ão (quando forte) falarão, ouvirão, venderão. -am (quando fraco) falaram, ouviram, venderam.

/ /



/ /

— om (plural ons): bom/bons, som, com.

/õ/

/ /

um (plural uns): álbum/álbuns, um, atum.

/ / ãe: mãe, pães. • -ai, quando seguido de consoante nasal: faina, paina. • muito raramente ãi: cãibra. em (plural ens): bem/ bens; ém: contém, porém, também. • raramente en: hífen, líquen. im (plural ins): rim/rins, sim, assim. õe: põe, corações • nas formas verbais, marca-se a diferença singular/plural, acrescentando-se um m: (ele) põe/(eles) põem. - ui (raro) muito

OBSERVAÇÕES O ditongo nasal / /, quando em sílaba fraca final, tende, em algumas variedades do português, a perder a nasalidade e converter-se numa só vogal: diz-se [ko.ra.i] e não [ko.ra. ] (coragem); [o.mi] e não [o.m ] (homem). Esse fenômeno poderá trazer dificuldades iniciais para o alfabetizando. Vale aqui a observação didática feita a propósito dos ditongos orais.

REPRESENTAÇÃO DOS DITONGOS CRESCENTES Os ditongos crescentes são mais raros em português. Além disso, são, em geral, muito flutuantes, i.e., podem ser transformados em hiato (cada vogal é dita em impulsos de voz distintos): diz-se tanto [gl.ri.a] quanto [gl.rya] (glória). A semivogal / y / é grafada basicamente com a letra i e mais raramente com e; a semivogal / w / é grafada basicamente com a letra u e mais raramente com o.

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ORAIS Semivogais

/w/

Vogais

/e/

ua água quase ue tênue

oa nódoa mágoa oe coelho

/E/

ue sequestro

oe goela moela

/a/

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/y/

/o/

ui tranquilo linguiça uo aquoso

//

uo quota

/i/

/u/



— — — —

NASAIS Ditongo

Representação Gráfica

/ wã / /w / /w /

uan – quando uen – frequente uin – arguindo

ia glória diabo ie série cárie ie quieto — io piolho médio io quiosque iu miudeza

ea área nívea — — — eo gêmeo áureo — —

REPRESENTAÇÃO DOS TRITONGOS Os tritongos são raríssimos em português. Em razão disso, não devem ser trabalhados sistematicamente nas fases iniciais do processo de apropriação da grafia. Tritongos orais / way / / wow / / wey / / wiw /

Tritongos nasais / ã / / õ / /

/

Representação Gráfica uai – Uruguai, Paraguai, quais uou – enxaguou, apaziguou uei – enxaguei, averiguei uiu – delinquiu

Representação Gráfica uão – saguão ou uam – mínguam uõe – saguões uem – deságuem

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QUADROS DE SÍNTESE

Apresentamos abaixo, de forma resumida, as informações constantes nos dois capítulos anteriores do texto. Esses quadros isoladamente não fazem muito sentido: eles pressupõem as informações apresentadas anteriormente. Os símbolos utilizados encontram-se descritos no Apêndice.

CONSOANTES

/p/ /b/ /f/ /v/ // /t/ /d/ // / m / (só em # –) / n / (só em # –) / r / só em: V-V C-V

Representação Gráfica biunívoca regular no contexto P – b – f – v – nh – t – d – lh – m (cama/mato) – n (cana/não) – r (arara) (gruta)



arbitrária – – – – – – – – – – –

Unidade sonora biunívoca /l/ só em: (lado, #– cabelo) l (planta) C-V /R/



/k/ — /g/ 166

//

— —

/z/

Representação Gráfica regular no contexto



V-V: rr (carro) outros: r (rato, honra) • – + a/o/u: c (calo) • – + e/ i: qu (quero) • – + u + V: q (adeqúe)   – + / w / + V: q (quando) • – + a/o/u: g (gola) • – + e/ i: gu (guerra)   – + / w /: g (aguenta) • – + a/o/u: j (janela) # # – ou C – V: z (zebra) – (banzo)

arbitrária





— • – + e/ i: g ou j (jeito/gente) V -s ou z (casar - azar)

• V – # + Cons.: s (desde) • e – V: x (exato) letra s

/s/

# # – + a/o/u: (sapo/ sola / surra) – # # (se for marca de plural): (livros)

• # # – + e/ i: s ou c (seu/ céu) • – # #: s ou z (trás/paz) • n # – + e/ i: s ou c (pense/lance) • n # – + a/ o/ u: s ou ç (pensa/lança) • (c) e – ##: s ou x (teste/texto/esta/extra) V – + a/ o/ u: ss ou ç – sç – xs (raro) passa/poço/nasça/exsudar

//





V – + e/ i: ss ou c – sc – x – xc – xs (raro) passe/receita/nascer/ máximo/excelente/exsicar x ou ch xarope/chato

VOGAIS ORAIS Representação Gráfica

Unidade Sonora /a/ /i/ /u/ /o/

Sílaba forte a (caro) i pilha u uva o corro

//

o obra

/e/

e erro

/E/

e ela

(á) (página) (í) país (ú) saúva (ô) avô

Sílaba fraca final

outras

a cela i (raro) beribéri u (raro) bônus

a amor i música u pêndulo o (dito [ u ] ) pato o acomodar (pode ser dito [ u ] – coruja) (ó) o — avó (só ocorre em palavras derivadas) portinha/ fortíssimo (ê) e e pêssego (dito [ i ]) refrescar bule (pode ser dito [ i ] – menino) (é) médico — e (só ocorre em palavras derivadas) pezinho/ belíssimo

OBSERVAÇÃO Embora não tenhamos discutido a acentuação gráfica, achamos relevante, neste quadro, registrar a possibilidade de ocorrência da letra com acento.

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VOGAIS NASAIS Unidade Sonora

Representação Gráfica (regularidade no contexto) – # + cons. –##

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/ã/

ã (lã)

/ /



/ /



/ /



/õ/



p/b am (campo) im (limpo) em (tempo) um (bumbo) om (pomba)

demais an (manco) in (tinta) en (pente) un (mundo) on (longo)

__# + cons. nasal a (cama) i (vinha) e (venho) u (unha) o (ponho)

OBSERVAÇÕES As vogais nasais poderão receber acento gráfico: circunflexo para a/e/o (lâmpada, pêndulo, recôndito) e agudo para i/ u (límpido, lúcido).

/w/

/y/

Unidade sonora

ã + –: o (coração – falarão)

(raro: o – escolha arbitrária – mágoa)

u água

(raro: e – escolha arbitrária – área)

u + –: i muito

i ou e + –: m (n no plural) rim/ bem/ bens e + –: n (raro) hífen

i série

orais

crescentes

ã/õ + –: e mãe/ põe

nasais

u ou o ou l u ou o + –: m (n no plural) mau/ ao/ atum/ atuns/ bom/ bons calda o + –: n (raro) – nêutron (escolha a + –: m arbitrária) (formas verbais com ditongo em sílabas fracas) falam/ falaram

i pai

orais

decrescentes

ditongos nasais

u quando

i criança

Representação Gráfica

u quais

i Uruguai

orais

depois da vogal em sílaba fraca: m mínguam

depois da vogal em sílaba forte: o saguão

antes da vogal: u saguão

e + –: m deságuem

õ + –: e saguões

nasais

tritongos

SEMIVOGAIS

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OBSERVAÇÕES a) Como se vê, a representação básica de / y / é a letra i, estando as representações com as letras e e m (n) restritas à situação de ditongos decrescentes nasais e tritongos nasais;

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b) A representação básica de / w / é a letra u. À semelhança das representações de / y /, a ocorrência das letras o e m (n) está restrita à situação de ditongos decrescentes nasais e tritongos nasais. A representação mais complexa de / w / está, porém, nos ditongos decrescentes orais. Nesse caso, a escolha entre u e l (e mais raramente o) é arbitrária.

LETRAS Para completar essa síntese, podemos fazer um quadro, partindo das letras do alfabeto e indicando seus valores no sistema gráfico como representação das unidades sonoras. Vale aqui a observação que fizemos no início deste capítulo: o quadro isoladamente não faz muito sentido; ele pressupõe as informações apresentadas na descrição do sistema.

Letra

Unidades Sonoras

a

• / a / caro • / ã / cama (no fim da sílaba seguida de consoante nasal) • / ã / campo, tanto (seguida de m – + p/ b – ou n – + demais cons.)

b

/ b / bala

c

• +a/o/u: / k / calo, cola, Curitiba • +e/i: / s / celeste, cintura

ç

+ a/o/u: / s / poça, caçar, dança (nunca ocorre no início de palavra)

d

/ d / dado

e

• / e / preço • / E / peste • / / lembro, tentar (seguida de m – + p/b – ou n – + demais cons.) • / / venho (no fim da sílaba seguida de cons. nasal) • / y / mãe, área, saguões

f

/ f / faca

g

• + a/o/u: / g / galo, gola, gula • + e/i: /  / gente, gilete

h

• nenhuma relação com unidades sonoras; etimológico no início de palavras • participa dos dígrafos ch, lh, nh

i

• / i / ilha • / / vinha (no fim da sílaba seguida de cons. nasal) • / / limpo, tinta (seguida de m – + p/b – ou n – + demais cons.) • / y / pai, série

j

/  / janela, joelho, jeito

l

• / l / lama, calo, planta (no início de sílaba ou no encontro consonantal) • / w / mal, soldado (no fim de sílaba)

m

• / m / mão, cama (no início de sílaba) • / / tampa, tempo, limpo, pomba, bumbo (compõe a representação das vogais nasais seguidas de p ou b) • / / falam, mínguam, atum • / ỹ / ontem, bem, rim

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Letra

Unidades Sonoras

n

• / n / não, cana (no início de sílaba) • / / manco, tentar, pingo, pondo, mundo • / ỹ / no plural de palavras terminadas em em/ im: bens, homens, rins • / ỹ / (raro) hífen • / / sempre no plural de palavra terminada em om/um: bons, álbuns • / / (raro) nêutron

o

• / o / poço • /  / posso • / õ / ponho (no fim da sílaba seguida de cons. nasal) • / õ / pondo, tombo seguida de m – + p/b – ou n – + demais cons.) • / / pensão, saguão, mágoa

p

/ p / pato

q

• /participa do dígrafo qu representando / k /: quero, quilo • / k / diante de / u / + V: adeqúe • / k / diante de / w / + V: quadrado, tranquilo

r

• / r / (erre fraco) entre vogais (arara) ou no encontro consonantal (branco) • / R / (erre forte) nos demais contextos, menos entre vogais (neste caso o erre forte é representado pelo dígrafo rr – correr, carroça) rato, honra, cantar

s

• / z / entre vogais (mesa, casa) e no fim de sílaba diante de cons. sonora (desde, mesmo) / s / nos demais contextos

t

/ t / tatu

u

/ u / uva / / unha (no fim da sílaba seguida de cons. nasal) • / / mundo, bumbo (seguida de m – + p/b – ou n – + demais cons.) / w / mau, pauta, água, saguão

v

/ v / vaso

x

• / s / entre vogais (máximo) e depois de e (texto, extra) • / z / entre a vogal e e outra vogal (exame, exato) • /  / xarope, paixão • / ks / sexo, tórax • / gz / hexâmetro

z

• / s / no fim de palavras: paz, giz, traz / z / nos demais casos: zebra, banzo, azar

DÍGRAFOS Dígrafos

Unidades sonoras

nh

/  / canhão

lh

/  / galho

ch

/  / cheio

rr

/ R / quando entre vogais: carro

ss

/ s / quando entre vogais: passa em alternância com c/ç/x e com os dígrafos sc, sç, xc, xs: lace, laço, máximo, nascer, nasça, excelente, exsudar.

qu

/ k / + e/i quero, quilo

gu

/ g / + e/i guerra, guidão

NOTA SOBRE AS LETRAS K, W,Y Além dessas 23 letras, o alfabeto do português tem outras três – k, w, y – que são de uso restrito e aparecem apenas: a) em abreviaturas (por exemplo, km – abreviatura de quilômetro; w – de watt; yd – de jarda) e símbolos (por exemplo, K = potássio, Y = ítrio), bem como em palavras estrangeiras de uso internacional (por exemplo, quilowatt); b) em nomes próprios estrangeiros e em palavras deles derivadas (por exemplo: Kant, kantismo; Darwin, darwinismo; Taylor, taylorismo); c) em topônimos originários de outras línguas e seus derivados, por exemplo: Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano. Nos demais casos, isto é, no aportuguesamento da grafia de uma palavra estrangeira, o k é substituído por qu antes de e, i e por c antes de outra letra (por exemplo: quepe e caqui); o w,

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por v ou u, dependendo da pronúncia (por exemplo: sanduíche e vombate); o y, por i (por exemplo: iate e ioga). O texto do Acordo Ortográfico (ao) de 1990 (em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009) “incluiu” estas três letras na lista geral do nosso alfabeto. Na época da implantação do ao, a imprensa deu grande destaque a esta “inclusão” como se fosse uma novidade. Contudo, nada de fato mudou. O Formulário Ortográfico de 1943 dizia que o nosso alfabeto tinha fundamentalmente 23 letras. E acrescentava: “Além dessas letras, há três que só se podem usar em casos especiais: k, w, y”. Ou seja, nosso alfabeto tinha já 26 letras (23 fundamentais e 3 especiais) muito antes do ao de 1990. O que o Acordo fez foi apenas reunir as duas disposições anteriores numa só, dizendo que nosso alfabeto tem 26 letras, mantendo a observação de que as letras k, w, y são usadas apenas em casos especiais. E isso foi feito apenas para acolher, no Formulário Ortográfico, a tradição de ordenamento dessas letras especiais seguida pelos dicionários (o k entre o j e o l; o w entre o v e o x; o y entre o x e o z). Desse modo, a apresentação das letras do alfabeto no processo de alfabetização pode continuar como tem sido feita desde que o Formulário Ortográfico de 1943 entrou em vigor, isto é, deixando as três letras especiais para um momento mais avançado do estudo.

COMO CLASSIFICAR AS TRÊS LETRAS ESPECIAIS? Quando da implantação do ao em 2009, houve quem levantasse a dúvida de como se deveria classificar as letras especiais. Até aquele momento, parece que a escola nunca se preocupou

em classificá-las e isso possivelmente porque, no discurso escolar tradicional, havia o entendimento de que estas três letras não pertenciam ao nosso alfabeto. Com a redação que o Acordo Ortográfico deu à composição do alfabeto, essa questão passou a chamar a atenção dos professores. Embora não haja nenhuma normatização de como devemos classificar as letras do alfabeto (a Nomenclatura Gramatical Brasileira não trata disso, nem o Formulário Ortográfico de 1943, nem o Acordo Ortográfico de 1990), é da tradição escolar dizer, a propósito do alfabeto de 23 letras, que, fora as 5 vogais (a, e, i, o, u), as demais letras são consoantes. Se tentarmos descobrir o critério subjacente a esta classificação, veremos que, em princípio, ele pode assim ser resumido: a letra será consoante se representar pelo menos um fonema que seja consoante; e será vogal se representar fundamentalmente um fonema vocálico. Por este critério, as letras k (que sempre representa um fonema consonântico) e w (que ora representa uma consoante – como em wagneriano; ora uma semivogal, como em web) deverão ser classificadas como consoantes, embora os grandes dicionários atuais não o façam (com exceção do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa): o Aurélio: século XXI, por exemplo, não classifica nenhuma das letras do alfabeto; o Houaiss classifica só as 23 letras fundamentais, apresentando o k, o w, o y como “letras emprestadas” (o k e o y do alfabeto grego e o w de alfabetos de outras línguas). Com o critério que resumimos acima, ficamos, porém, com dois problemas: como classificar o h – que é uma letra que não representa nenhum fonema no alfabeto português?

175

como classificar o y – que geralmente representa uma semivogal (yeti, yakisoba), algumas poucas vezes o ditongo / ay / (como em byroniano) e raras vezes a vogal i (em palavras estrangeiras ainda não aportuguesadas ortograficamente, como hobby; em antropônimos como Ygor ou em termos técnicos da mineralogia como yftisita e ytérbio)?

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Quanto ao h, é interessante observar que o Formulário Ortográfico de 1943, embora não classificasse as letras do alfabeto, diz que o h “não é propriamente consoante, mas um símbolo que, em razão da etimologia e da tradição escrita do nosso idioma, se conserva no princípio de várias palavras e no fim de algumas interjeições”. Apesar dessa afirmação de que o h não é consoante, a tradição escolar o classifica como tal, assim como alguns dicionários (como o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa). Quanto ao y, não dispomos de nenhuma referência para saber como classificá-lo no alfabeto português. O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que classifica o k e o w como consoantes, deixa o y sem classificação. Diz apenas que ele é a 25ª letra do nosso alfabeto. Assim, por ele, o alfabeto português teria 20 consoantes, 5 vogais e uma letra não classificada. Até a instituição da ortografia unificada (1911), os tratados de ortografia e as gramáticas do português classificavam o y como vogal porque era letra fundamental da ortografia de base etimológica (que predominou do século xvi ao xx) e representava o fonema / i / em palavras de origem grega. Com a ortografia simplificada, o y deixou de ser letra fundamental do nosso alfabeto e sua ocorrência se reduziu aos casos

especiais a que já nos referimos. Classificá-la deixou de ser relevante (como atestam o tratamento que lhe é dado pelos dicionários contemporâneos da língua). Desse modo, se quisermos classificar o y, penso que não temos saída senão tomar uma decisão aleatória. No alfabeto grego, o y é uma vogal. No entanto, classificá-lo como vogal no alfabeto português moderno seria, certamente, muito estranho porque ele raramente representa um fonema vocálico. Como vimos, ele representa mais frequentemente uma semivogal e, em pouquíssimos casos, um ditongo. Diante desse quadro tão heterogêneo e considerando que tecnicamente, em fonologia, uma semivogal é considerada um fonema consonântico, talvez a melhor saída seja classificar o y como consoante. Seria a 25ª letra e a 20ª consoante do alfabeto português moderno. Mas podemos também recuperar a tradição anterior à reforma que instituiu a ortografia unificada (1911) e classificar o y como vogal. Podemos, ainda, seguir os principais dicionários da língua que, simplesmente, não classificam o y.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No correr do livro, fizemos, em vários momentos, comentários quanto a eventuais procedimentos e cuidados didáticos no trabalho sistemático com a grafia. Nesta parte final, além de resumir alguns daqueles pontos, gostaríamos apenas de fazer observações adicionais. Vale reforçar, de saída, a afirmação de que alfabetizar em sentido amplo é mais que apenas ensinar a grafar e a reconhecer o grafado. O ensino sistemático da grafia é apenas parte do processo mais amplo de domínio da linguagem escrita e deve estar sempre subordinado a este. Defendemos também a ideia de que a ordem de apresentação sistemática dos elementos da grafia é bastante relativa, cabendo ao professor a elaboração da ordem mais adequada a partir do saber que ele tem do sistema gráfico e da situação concreta de seus alunos. Posto isso, podemos acrescentar que as decisões do professor quanto à ordenação do ensino dos diferentes aspectos do sistema gráfico deverão levar em conta a articulação de dois critérios: o grau de regularidade do fenômeno (primeiro os mais regulares e produtivos; depois os irregulares) e sua frequência (primeiro os mais frequentes; depois os mais raros; deixando os raríssimos para outras séries do ensino fundamental). Não deve ter sido difícil perceber, pela exposição do sistema gráfico, que a escola tem criado certos mitos em torno de

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facilidades/dificuldades gráficas. Acreditamos (e já vimos vários professores procedendo desta forma) que o professor pode ter diferentes pontos de partida e criar diferentes ordenações (e ele fará isso necessariamente se trabalhar com a leitura e produção de textos desde o início). Suas opções, em cada caso, aproveitarão, no começo, as muitas regularidades do sistema assumindo que é mais simples (e mais produtivo) aprender primeiro situações previsíveis e depois as imprevisíveis. Se tomarmos isoladamente a grafia de cada palavra, não faz sentido falar em grafias fáceis ou difíceis. Podemos, nessa perspectiva, concordar com Cagliari quando diz que para a criança: tudo é igualmente difícil no começo; portanto, escrever “peixe”, “trens” ou “pata”, “macaco” apresenta o mesmo grau de dificuldade, em princípio; o que significa, em outras palavras, que (deixando de lado os métodos) qualquer criança pode escrever ou aprender a escrever qualquer palavra desde que queira fazer isto, uma vez que não faz sentido dizer que há letras mais difíceis que outras para se aprender a escrever” (1986: 107). Contudo, aprender a grafar palavra por palavra – embora possa ser visto como uma estratégia plausível – seria uma tarefa excessivamente onerosa, considerando que podemos simplificar o processo, aproveitando as muitas regularidades do sistema gráfico em suas relações com o sistema fonológico da língua. Assim, aprendendo que / ka / se grafa sempre ca (sílaba que ocorre em inúmeras palavras da língua), podemos abreviar a tarefa de ensinar e aprender a grafar.

Nessa perspectiva, faz um certo sentido falar em dificuldade e facilidade. As dificuldades maiores emergem justamente dos casos em que o sistema tem duas ou mais grafias e nenhum (ou quase nenhum grau) de previsibilidade. Desse modo, não nos parece inadequado iniciar a sistematização da grafia por casos de relações biunívocas. O aluno criará uma hipótese generalizante de que cada letra representa uma unidade sonora, o que, em parte, é correto num sistema alfabético. Inadequado será permanecer nessa hipótese e, pior, não encontrar no professor o auxílio necessário para superá-la. O aluno deverá relativizar essa hipótese, percebendo aos poucos que o sistema tem algumas representações arbitrárias para cujo domínio ele deve memorizar a forma gráfica global da palavra. Para isso, podem ser bastante úteis certos recursos mnemônicos (por exemplo, relações de parentesco entre palavras), alguns dos quais exploramos no corpo do livro. Cabe, é claro, ao professor avaliar o momento mais propício (e a forma de linguagem adequada) para passá-los aos alunos. Em qualquer situação, o que o professor não deve esquecer é que ele é um construtor de andaimes que criam condições para que os alunos internalizem o novo saber. É preciso, portanto, trabalhar, na alfabetização, sempre com elementos verbais plenos de significado para a criança e em meio a atividades significativas com a leitura e com a escrita. Como nos mostrou Vygotsky, a internalização de um saber qualquer é um processo ativo que emerge de formas de vida coletiva, de interação entre o aprendiz, seus pares e membros mais experientes de sua comunidade. Nessa perspectiva, os “erros” observados na grafia dos alunos devem ser encarados como parte do processo de internalização do sistema. Em geral, esses “erros” são previsíveis e decorrem em boa

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parte, das próprias características do sistema gráfico e da hipótese generalizante de que há correlações uniformes e biunívocas entre letras e unidades sonoras, entre oralidade e escrita. O aluno, ao orientar-se por esse critério, transfere diretamente para a grafia as características de sua fala, o que, como vimos, nem sempre é possível. Cabe ao professor criar novas situações, utilizar diferentes estratégias para que os alunos possam superar progressivamente essas dificuldades.1 O domínio da linguagem escrita é, sem dúvida, um dos mais importantes saberes que podemos e devemos transmitir às nossas crianças. É por ele que elas se tornam capazes de entrar no universo inesgotável da cultura letrada – valiosíssimo patrimônio da humanidade e condição absolutamente necessária para a participação na vida sociocultural. Como pais, educadores e cidadãos não podemos, em nenhuma hipótese, nos descuidar dessa tarefa.

NOTA 1

Depois da publicação da versão anterior do livro, apareceram alguns trabalhos muito interessantes seja sobre a fonética e fonologia do português (Thaïs Cristófaro Silva, Fonética e fonologia do português, 8.ed., São Paulo, Contexto, 2005; Exercícios de fonética e fonologia, São Paulo, Contexto, 2003; e Luiz Carlos Cagliari, Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu, São Paulo, Scipione, 1998), seja sobre o sistema ortográfico (Leonor Scliar-Cabral, Princípios do sistema alfabético do português do Brasil, São Paulo, Contexto, 2003; Guia prático de alfabetização, São Paulo, Contexto, 2003; e Jaime Luiz Zorzi, Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico, Porto Alegre, Artes Médicas, 1998). Ficam eles aqui recomendados para quem deseja aprofundar seus estudos do assunto.

APÊNDICE

Procuramos usar o menor número possível de símbolos neste livro. Em geral, eles estão descritos no próprio contexto da discussão. Reunimos, neste Apêndice, os símbolos utilizados com o objetivo de facilitar a consulta a partes do texto. Qualquer pessoa que trabalha com grafia e fala, precisa distinguir claramente os dois universos: um, a fala, composto de sons produzidos pelo aparelho fonador humano e transcritos, quando necessário, com apoio dos símbolos do chamado Alfabeto Fonético Internacional; o outro, a grafia, composto de desenhos codificados nas letras do alfabeto (no caso da grafia do português, letras do alfabeto latino, que é diferente do alfabeto grego, usado na grafia da língua grega; do alfabeto cirílico, usado na grafia da língua russa). Misturar esses dois níveis (como fazem, por exemplo, as introduções de muitas cartilhas, quando não autores de livros sobre alfabetização) resulta, normalmente, em confusões que acabam por atrapalhar o professor em suas atividades de ensino. Dito isso, podemos arrolar as convenções utilizadas no texto: 1. Símbolos entre barras: / a / - / ã / - / y / - / z / ... Representação de uma unidade sonora (tecnicamente chamada de fonema). Nessa representação, utilizamos, na maioria dos casos, símbolos retirados do Alfabeto Fonético Internacional, que é um sistema utilizado pelos linguistas para a transcrição dos

sons da fala. Nesse Alfabeto, há um único símbolo para cada som da fala. Fizemos algumas simplificações. Para marcar som da fala propriamente dito (pronúncia), usamos os colchetes – exemplo a pronúncia da unidade sonora / t / diante de / i / será representada assim: [ t ]. Símbolos presentes no texto: • Representação das 19 consoantes do português:

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/p/ /b/ /t/ [ t ] /d/ [ d ] /f/ /v/ /s/ /z/ // / / /k/ /g/ /r/ /R/ /m/ /n/ // /l/ //

primeiro som da palavra pato bato tempo pronúncia do / t / diante de / i / em algumas variedades do português do Brasil (tia, por ex.) dama pronúncia do / d / diante de / i / em algumas variedades do português do Brasil (dia, por ex.) faca vaca sapo, céu zebra chato, xarope gente, jeito caro, quilo gola, guerra (erre fraco) caro (erre forte) rato mão não nhoque lado lhama

• Representação das 2 semivogais do português: /y/ /w/

pai mau

• Representação das 7 vogais orais do português: /i/ /e/ /E/ /a/ /u/ /o/ / /

ilha ema esta, é asa uva ovo, avô olha, avó

Observação: salvo em dois momentos, não nos preocupamos em usar sinais especiais para as vogais átonas. Usamos, porém, para efeito de argumentação o [  ] e o [ I ]. • Representação das 5 vogais nasais do português: / / / / /ã/ / / /õ/

tinta tempo canto mundo tonto

2. Símbolos em itálico: a – c – l - i Identificação das letras, principalmente quando necessário deixar clara a diferença entre letra e unidade sonora. 3. Abreviaturas C (ou cons.): consoante V: vogal

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C nas: Consoante nasal ( / m / - / n / - /  / ) C so: consoante sonora (são aquelas pronunciadas com vibração das cordas vocais como / z / - /  / - / v / - / g / - / b / / d / – que se opõem às surdas correspondentes: / s / - /  /- / f / / k / - / p / - / t /. São também sonoras: / m / - / n / - /  / / R / - / r / - / l / - /  /.

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4. Contextos Muitas vezes é necessário descrever o contexto (o que vem antes e/ou o que vem depois) do som ou da letra. Os símbolos utilizados são os seguintes (o travessão indica que a unidade sob discussão ocorre naquele espaço): a) # #

b) # c) d)

:

: #: # #:

e) V-V: f ) C-V: g)

# C so:

começo de palavra. (por exemplo, / z / no começo de palavra é sempre grafado com a letra z. Representa-se isso assim no texto: :z /z/## começo de sílaba fim de sílaba fim de palavra Observação: é claro que fim/começo de palavra correspondem sempre a fim/começo de sílaba. Contudo, é necessário, em algumas situações, distinguir os dois. Assim, “fim de sílaba” significa no texto “fim de sílaba no interior da palavra”. unidade entre vogais (como / r / em caro). unidade precedida de consoante e seguida de vogal (como / r / em brusco). a unidade fecha a sílaba e a sílaba seguinte começa com consoante sonora. Exemplo: [dez.de]

h)

# C nas: a unidade fecha a sílaba e a sílaba seguinte começa com consoante nasal. Exemplo: [kã.ma] # C: a unidade fecha a sílaba e a sílaba seguinte i) começa com consoante. Foi necessário na representação das vogais nasais, em que a escolha m/n depende da consoante da sílaba seguinte. + a/o/u: a unidade é seguida das vogais representadas j) por a, o, u. Foi a forma que encontramos para simplificar a descrição do contexto. V: a unidade está entre a vogal / e / e uma outra 1) e vogal qualquer. É o contexto em que / z / sempre é grafado por x. # : a unidade está no fim da sílaba e precedida m) (c) e pela vogal / e /, podendo esta ser precedida de consoante. São contextos de / s / em peste, este, extra... V: utilizado na descrição das representações de n) C # / s / e / z /. Por exemplo, quando / z / é precedido de vogal nasal ou consoante e seguida de vogal, será grafado sempre pela letra z. Como vogal nasal nesse contexto é sempre grafada com m ou n, utilizamos c (querendo dizer “letra consoante”) para simplificar a descrição do contexto.

5. Outro símbolo / —. — / : o ponto é símbolo de limite de sílaba na transcrição com o Alfabeto Fonético Internacional. Exemplo: / gru.ta /.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O AUTOR

Carlos Alberto Faraco é mestre em Linguística pela Unicamp e doutor em Linguística Românica pela Salford University. Foi professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná (ufpr). Fez um estágio de pós-doutorado na University of Califórnia e foi reitor da ufpr. Publicou diversas obras como autor, coautor e organizador.