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Portuguese Pages 355 [281] Year 2018
Psicologia Jurídica no Brasil Organizadores
Hebe Signorini Gonçalves Eduardo Ponte Brandão Organizadores Hebe Signorini Gonçalves Eduardo Ponte Brandão Psicologia Jurídica no Brasil 3ª edição
© NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 - CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ Fone: (21) 3546-2838 [email protected] www.naueditora.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P969 3.ed. Psicologia jurídica no Brasil / organizadores Hebe Signorini Gonçalves, Eduardo Ponte Brandão. - 3.ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2011. 352p. : 23 cm (Ensino da psicologia) Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-8128-018-9 1. Direito - Aspectos psicológicos. 2. Psicologia forense - Brasil. I. Gonçalves, Hebe Signorini. II. Brandão, Eduardo Ponte, 1969. III. Título. IV. Série
11-3066. CDU: 340.6 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora. 3ª edição: 2011 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PENSANDO A PSICOLOGIA APLICADA À JUSTIÇA Esther Maria de Magalhães Arantes DESCONSTRUINDO A MENORIDADE: A PSICOLOGIA E A PRODUÇÃO DA CATEGORIA MENOR Érika Piedade da Silva Santos A INTERLOCUÇÃO COM O DIREITO À LUZ DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS EM VARAS DE FAMÍLIA Eduardo Ponte Brandão O PSICÓLOGO E AS PRÁTICAS DE ADOÇÃO Lidia Natalia Dobrianskyj Weber O PAPEL DA PERÍCIA PSICOLÓGICA NA EXECUÇÃO PENAL Salo de Carvalho A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS NO SISTEMA PENAL Tania Kolker MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: LIMITES E POSSIBILIDADES DE ENFRENTAMENTO Rosana Morgado VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE Hebe Signorini Gonçalves O PSICÓLOGO, O SISTEMA DE JUSTIÇA E OS CASOS DE VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA IDOSOS José César Coimbra SOBRE OS AUTORES APRESENTAÇÃO
Passados sete anos da primeira edição de “Psicologia Jurídica no Brasil”, é tempo de revisitar os textos que a integraram. Em parte, a necessidade de uma nova versão do livro pode ser creditada às inúmeras inovações legais trazidas ao cenário nacional nos últimos anos. Do Novo Código Civil, em vigor desde 2003, à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), passando por projetos de lei que regulamentam as manifestações de violência contra crianças no ambiente doméstico (Lei da Palmada, PL 2654/2003) ou estabelecem parâmetros para o funcionamento do Sistema Socioeducativo (PL 1627/2007), assistimos a um adensamento da atividade legislativa em torno de matérias com potencial de regulação da vida. Não poderia haver melhor exemplo da relevância do campo da Psicologia Jurídica. Quando Michel Foucault afirma que “as luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”, ele alude justamente à lógica que sustenta relações igualitárias, mas que, operacionalizada por meio de mecanismos miúdos e cotidianos, alimenta-se de micropoderes essencialmente inigualitários e assimétricos – esses que constituem as disciplinas, uma espécie de contradireito ¹ . Passados mais de trinta e cinco anos desde a publicação de Vigiar e Punir, a expansão dos sistemas legais alcança cada vez mais as áreas privadas, imiscui-se nas subjetividades e leva a produção recente a falar de sociedade de controle, nos termos de Gilles Deleuze, ou de cultura do controle, se preferirmos a expressão de David Garland. O fato é que o desenho do controle exige, de um lado, que as ciências humanas e a Psicologia renovem seu arsenal teórico e metodológico de modo a dar conta das novas demandas que se impõem aos sujeitos, aprisionando-os e liberando-os a um só tempo, edificando outras formas de cuidados de si. De outro lado, igualmente importante é a demanda ética que essa mesma expansão aporta já que o convite ao posicionamento das ciências humanas e da Psicologia é cada vez mais frequente, ao mesmo tempo em que os limites entre as liberdades e as disciplinas parecem cada vez mais embaralhados. Tendo em vista a história da Psicologia Jurídica – originalmente constituída como campo de saber que auxilia os procedimentos e os atos jurídicos, que ajuda a avaliar a veracidade e a validade do testemunho, que produz diagnósticos e prediz condutas, que subsidia a decisão acerca da guarda, da visitação, da tutela e da interdição, que informa processos de sanção, progressão e regressão de penas ou medidas sócioeducativas – parece temerário ignorar que essas demandas permanecem vivas, ou retornam com força, a cada novo ímpeto legislativo. É à Psicologia que a lei remete a indagação acerca dos riscos que a progressão da medida penal ou socioeducativa representa para a sociedade de controle; é à Psicologia que se solicita a avaliação acerca da amplitude dos efeitos deletérios da punição física sobre o desenvolvimento de tal ou qual criança, condicionando a punibilidade dos pais; é ainda à Psicologia que a autoridade jurídica indaga a propriedade da adoção ou da modalidade de guarda (compartilhada, exclusiva etc.). O cenário que se desenha pode ser descrito a partir da noção de judicialização , já descrito como um “controle crescente da Justiça sobre a vida coletiva”, e “um dos maiores fatos políticos deste final do século XX” ² . Onde nada mais escapa ao controle do juiz, as ciências que o assessoram são igualmente conclamadas a diversificar, expandir mecanismos, inovar e modernizar as tecnologias de intervenção.
Impossível, por isso, não fazer ecoar as questões que atravessam – e que sobressaem – nos capítulos que compõem o presente livro. A Psicologia está a serviço de quê? Das decisões judiciais, constituindose como mero coadjuvante da autoridade estatal, ou da leitura informada das singularidades que definem cada sujeito instado a comparecer diante dos tribunais? É admissível supor que a Psicologia confira suporte tecnicamente ‘neutro’ em processos que movem a punição, ou a suposta ‘neutralidade’ é ela mesma mecanismo de assujeitamento, de controle e de segregação de indivíduos, famílias e grupos inteiros? E para além disso – porque o Direito também não é uno – com qual Direito a Psicologia quer dialogar? Essas são, sem dúvida, questões inesgotáveis num livro que, ademais, nunca teve pretensão de esgotá-las. Nosso eixo sempre foi, e segue sendo, a apropriação da Psicologia Jurídica não à luz de uma suposta unidade teórica ou de um objeto unívoco e sim sob o prisma de práticas que transitam na interface entre o Direito e a Psicologia e que são, por isso, sujeitas a focos de tensão, atritos, encontros e desencontros, exigindo constantes explorações e renovações; mais que encerrar questões, colocá-las em movimento; mais que encontrar respostas, formular as perguntas pertinentes. Apostamos na crença de uma construção possível entre aquilo que é totalizante no Direito e tudo quanto é singular na Psicologia; apostamos na ultrapassagem dos falsos dilemas que opõem a vida coletiva às questões prementes para a vida subjetiva; apostamos, afinal, nos melhores anseios políticos de legisladores, juízes e psicólogos. No seu formato original, o livro Psicologia Jurídica no Brasil foi um laboratório de ideias bem sucedido; ele percorreu os meios acadêmicos e profissionais em boa parte do território nacional. Por essa razão, a nova edição preocupa-se mais em trazer à tona as discussões que surgiram com as novas leis, as novas experiências e as contribuições mais recentes nascidas nos interstícios entre as áreas. O leitor encontrará ao longo dos capítulos uma discussão atualizada acerca da legislação promulgada ou em processo de discussão nos textos de Rosana Morgado, Eduardo Ponte Brandão, Hebe Signorini Gonçalves e Lídia Weber. Encontrará também uma atualização das questões práticas e teóricas nos textos de Ester Arantes e Érika Piedade, bem como uma leitura crítica da discussão recente em torno do exame criminológico, no trabalho de Tania Kolker, ou da perícia, no capítulo de autoria de Salo de Carvalho. A novidade temática fica por conta de César Coimbra, que introduz a discussão acerca da terceira idade, acompanhando as demandas mais recentes do campo. Mas essa é, antes de tudo, uma aposta de continuidade: na relevância do campo da Psicologia Jurídica, no vigor dos embates que lhe são constitutivos e, sobretudo, na via que a Psicologia Jurídica aporta à ciência – com seus muitos desafios e suas inúmeras perguntas em aberto – e ao exercício profissional do psicólogo e dos operadores do direito. Esperamos, como na primeira versão, que a discussão se multiplique e se potencialize – porque é a inquietude que nos move. Os organizadores Hebe Signorini Gonçalves
Eduardo Ponte Brandão 1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir . Petrópolis: Vozes, 1988 (6ª. ed.), p. 194-5. 2 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas . Rio de Janeiro: Revan, 2001 (2ª. ed.), p. 24. PENSANDO A PSICOLOGIA APLICADA À JUSTIÇA Esther Maria de Magalhães Arantes Introdução Talvez a crítica mais contundente dirigida à Psicologia tenha sido formulada por G EORGES C ANGUILHEM , em conferência realizada no Collège Philosophique, em dezembro de 1956 ¹ . À pergunta inicial “O que é a Psicologia?” segue-se outra: “Quem designa os psicólogos como instrumentos do instrumentalismo?”, numa apreciação crítica tanto da pretensão de cientificidade da Psicologia como do próprio fazer do psicólogo. Este buscaria, numa eficácia discutível, a sua importância de especialista. No entanto, e aí está o que de fato deve nos preocupar na argumentação de Canguilhem, esta eficacidade, ainda que mal fundada, não é ilusória. GEORGES C ANGUILHEM (1904-1995), historiador das ciências, particularmente da Biologia e da Medicina, autor de O Normal e o Patológico , é considerado um dos grandes filósofos contemporâneos. Segundo Michel Foucault, vamos encontrar a influência de seu pensamento “em todo o debate de ideias que precedeu ou sucedeu o movimento de 1968” na França. (FOUCAULT, 2000a: 353). Sobre o pensamento de Canguilhem, ver Machado (1982). Ao dizer da eficacidade do psicólogo que ela é discutível, não se quer dizer que ela é ilusória; quer-se simplesmente observar que esta eficacidade está sem dúvida mal fundada, enquanto não se fizer prova de que ela é devida à aplicação de uma ciência, isto é, enquanto o estatuto da psicologia não estiver fixado de tal maneira que se deve considerá-la como mais e melhor do que um empirismo composto, literariamente codificado para fins de ensinamento. De fato, de muitos trabalhos de psicologia, se tem a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem controle. (CANGUILHEM, 1972: 104-105) O objetivo de Canguilhem, nesta conferência, foi o de criticar o programa universitário de seu colega de École Normal Supérieure, Daniel Lagache, que postulava a unificação dos diferentes ramos da Psicologia, afirmando haver convergência entre a Psicologia experimental, dita naturalista , e a Psicologia clínica, dita humanista ² . À questão “Que é a psicologia?” pode-se responder fazendo aparecer a unidade de seu domínio, apesar da multiplicidade dos projetos metodológicos. É a este tipo que pertence a resposta brilhantemente dada pelo Professor Daniel Lagache, em 1947, a uma questão colocada, em 1936,
por Edouard Claparède. A unidade da psicologia é aqui procurada na sua definição possível como teoria geral da conduta, síntese da psicologia experimental, da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da etnologia. Observando bem, no entanto, se diz que talvez esta unidade se parece mais com um pacto de coexistência pacífica concluído entre profissionais do que com uma essência lógica, obtida pela revelação de uma constância numa variedade de casos. (CANGUILHEM, 1972: 105-106) Continuando suas críticas à Psicologia, Canguilhem, que aceitara ser o relator de Historie de la folie, tese de doutorado defendida por Michel Foucault em 1961, não poupou Lagache, mostrando que a pesquisa desenvolvida por Foucault fazia desmoronar o grande projeto de unidade da Psicologia (ROUDINESCO, 1994: 15-16). Apesar das críticas de Canguilhem e de outros autores, entre os quais Jacques Lacan, a proposta de Lagache teve ampla repercussão na França do pós-guerra. Em dezembro de 1980, numa conferência intitulada Le cerveau et la pensée, publicada posteriormente, Canguilhem voltou a criticar a Psicologia, desta vez por reduzir o pensamento ao funcionamento cerebral. Afirmando que a Filosofia nada tem a esperar dos serviços da Psicologia, conclamou os filósofos das novas gerações a resistirem à calamidade psicológica (CANGUILHEM, 1993). Diante de críticas tão duras, Roudinesco observou que, nessa conferência, Canguilhem não havia se preocupado em distinguir as querelas e discordâncias internas à própria Psicologia, fazendo uma crítica em bloco a saberes muito diferenciados (ROUDINESCO, 1993). Como o próprio Canguilhem havia dito na conferência de 1956, não há unidade na Psicologia ³ . Mesmo assim, e ainda se perguntando se não haveria certa obstinação por parte de Canguilhem em demolir os alicerces nos quais se fundamentam a Psicologia, Roudinesco presta uma homenagem “a um dos maiores filósofos do nosso tempo”, reconhecendo a pertinência e a atualidade de suas críticas, principalmente porque, segundo a autora, uma aliança vitoriosa entre o organicismo biológico e genético, a ciência da mente e a tecnologia estariam ganhando terreno, em todos os campos do saber. ...até o ponto de fazer emergir uma nova ilusão cientificista segundo a qual a intervenção cada vez mais ativa da ciência no cérebro humano permitirá conduzir o homem à imortalidade, ou seja, à cura da condição humana. (ROUDINESCO, 1993: 144) Não advindo, desta forma, a cientificidade da Psicologia de sua mera rotulação como ciência, seja natural, social ou humana, ou ciência pura ou aplicada; nem de sua adjetivação como Psicologia Jurídica, Social ou Escolar; ou ainda de sua definição como estudo da alma, do psiquismo, da conduta ou da subjetividade; sequer do uso de medidas, restaria à Psicologia, em geral, e à Psicologia Jurídica, em particular, serem pensadas apenas como técnicas ou ideologias? Em prefácio ao livro de Leila Maria T. de Brito, que versa sobre a atuação do psicólogo em Varas de Família, já havia escrito o que ainda considero central
em se tratando de pensar a Psicologia Jurídica, e que aqui relembro em parte (ARANTES, 1993). À indagação formulada pela autora: “Varas de família: uma questão para psicólogos?”, questão que deve ser entendida tanto como lugar de prática como prática a ser pensada, ponderei que se poderia responder de diversos modos: sim, se considerarmos um mercado de trabalho potencial ou em expansão para o qual existe, inclusive, justificativa legal; não, se a um Direito autoritário e burguês contrapomos uma Psicologia libertária, exterior ao próprio Direito; outra possibilidade é considerar a Psicologia como parte do problema e, deste modo, redesenhar a questão. Na realidade, a pergunta formulada por Brito, como no texto de Canguilhem, desdobra-se em várias outras, sendo que um primeiro grupo diz respeito a uma problematização que podemos chamar de epistemológica: o que é a Psicologia aplicada à Justiça ou Psicologia Jurídica, quais são os seus conceitos, em que se fundamenta sua pretensão de prática científica? Em artigo dedicado a pensar as Ciências Sociais e a Psicologia Social, Thomas Herbert (1972) pondera que colocar a uma ciência as questões “quem és tu?”, “por que estás aqui?” e “quais suas intenções?” pode parecer impertinência à qual ela tenderia a responder que “está aqui porque existe” e, quanto às suas intenções, “ela não as tem”, mas apenas “problemas a resolver”. No entanto, considera importante a distinção feita por Louis Althusser entre ciência desenvolvida e ciência em constituição. Na ciência desenvolvida, o objeto e o método são homogêneos e se engendram reciprocamente, o que não acontece com as ciências em desenvolvimento, como a Psicologia. Uma coisa é a transformação produtora do objeto científico, outra, a reprodução metódica deste objeto, que só pode acontecer, rigorosamente falando, se uma transformação produtora desse objeto já foi realizada. Quanto à função dos instrumentos, ela não é a mesma em cada um desses tempos da ciência. Exemplificando essa diferença, Herbert lembra-nos a transformação que a balança sofreu após o advento da Física moderna. Fora de seu papel técnico-comercial, ela servia para interrogar toda a superfície do real empírico: pesava-se o sangue, a urina, a lã, o ar atmosférico etc... e os resultados forneciam a “realização do real” sob diversas formas biológicas, metereológicas etc... Esta vagabundagem do instrumento foi detida pelo momento galileano, que lhe designou, no interior da ciência nascente, uma função nova, definida pela teoria científica mesma. Isto nos designa o duplo desprezo que não deve ser cometido: declarar científico todo uso dos instrumentos, esquecer o papel dos instrumentos na prática científica. (HERBERT, 1972: 31) Postas estas colocações iniciais, resta dizer que este é um primeiro conjunto de questões e que se apresenta como pertinente apenas a partir da reivindicação de cientificidade da Psicologia, à qual Canguilhem e Herbert, nos textos acima mencionados, se dedicam. Na realidade, mais do que copiar o modelo de cientificidade da Física, da Química ou da Biologia,
esperase que as chamadas Ciências Humanas desenvolvam algum tipo de rigor próprio, adequado ao seu campo de investigação. Um segundo conjunto diz respeito a uma Arqueologia e a uma Genealogia dos saberes sobre o homem, seguindo as indicações de Michel Foucault. Isto porque, mesmo do ponto de vista de uma certa leitura epistemológica, no caso as de Canguilhem e Thomas Herbert, não se trata de negar à Psicologia, Jurídica ou não, uma existência de fato e uma qualquer eficácia. Trata-se, então, de saber como e por que este campo se constituiu, quais os seus procedimentos e de que natureza é a sua eficácia. Não devemos esquecer que as análises genealógicas permitiram a Foucault identificar as práticas jurídicas, ou judiciárias, como das mais importantes na emergência das formas modernas de subjetividade e que, a partir do século XIX, mais do que punir, buscar-se-á a reforma psicológica e a correção moral dos indivíduos (FOUCAULT, 1979). Este segundo conjunto de questões diz respeito, então, a tudo aquilo que faz com que a Psicologia Jurídica exista como prática em uma sociedade como a nossa, independentemente de seu estatuto epistemológico. Como nos ensinou Roberto Machado, as análises arqueológicas e genealógicas não se norteiam pelos mesmos princípios que a história epistemológica (MACHADO, 1982). No caso específico da atuação dos psicólogos em Varas de Família, de acordo com a pesquisa de Brito já mencionada, para continuarmos utilizando o mesmo fio condutor, constatou-se o predomínio das atividades de perícia nos casos de separações litigiosas onde havia disputa pela guarda dos filhos. Sabemos que a perícia tem sido um procedimento muito utilizado na área jurídica, tendo por objetivo fornecer subsídios para a tomada de uma decisão, dentro do que impõe a lei. Em algumas áreas da justiça, a perícia pode ser solicitada para averiguação de periculosidade e das condições de discernimento ou sanidade mental das partes em litígio ou em julgamento. Embora não possamos rigorosamente dizer de que se trata quando nos referimos, como psicólogos, a categorias como essas, pelo menos do ponto de vista de uma ideologia jurídica, algo da ordem do objeto está apontado. No caso de Varas de Família, não se trata, pelo menos em princípio, de examinar alguma periculosidade, alguma ausência ou prejuízo da capacidade de discernimento ou sanidade mental. Como pano de fundo, temos o casal em dissolução e em disputa pela guarda dos filhos, cada um instruído no processo por seus respectivos advogados. Sabemos que muitas das alegações para a guarda dos filhos têm sido imputações de infidelidade, desvios de conduta, uso de drogas, doenças, ou mesmo a de o outro cônjuge possuir menor renda, trabalhar fora de casa ou não trabalhar, ou, ainda, possuir menor escolaridade. É sobre tais alegações, motivos da disputa, que trabalhará o juiz, formulando quesitos a serem investigados pelo perito que, de certa forma, comprovará ou não as alegações, formulando uma verdade sobre os sujeitos. Como resultado da perícia, uma das partes tenderá a ser apontada como aquela que reúne as melhores condições para a guarda dos filhos, já que tanto o pedido do juiz como a lógica do processo se dirigem e mesmo
impõem esta direção. Enganamo-nos todos, no entanto, ao acreditar que a verdade vem à luz e que se faz justiça nesse processo. O resultado parece ser, inevitavelmente, a fabricação de um dos cônjuges como não idôneo, moralmente condenável ou, pelo menos, temporariamente menos habilitado. Não se trata, evidentemente, de lançar aqui uma dúvida generalizada sobre os diversos tipos de perícia e seus usos pela Justiça; também não se trata de negar o sofrimento ou levantar suspeitas sobre a sinceridade com que os genitores formulam suas queixas, embora, aqui e ali, os advogados orientem a direção e a formulação das alegações, conhecedores que são dos juízes e das regras – e, vez ou outra, as partes estejam igualmente preocupadas com os filhos e o patrimônio. Podemos não saber como resolver problemas tão difíceis como esse ⁴ , podemos mesmo admitir que, em certos casos e em certas circunstâncias, um dos progenitores encontre-se em melhores condições para o exercício responsável da guarda dos filhos. Mas, uma questão tão delicada como essa não deve ser reduzida aos seus meros aspectos gerenciais; pelo menos não em nome das crianças ⁵ . Seria sábio, neste momento, dar mais ouvidos ao filósofo que ao administrador: “Onde querem chegar os psicólogos, fazendo o que fazem?” (CANGUILHEM, 1972: 122). A prática dos laudos, pareceres e relatórios técnicos Constata-se, no exercício profissional dos psicólogos no âmbito judiciário, a predominância das atividades de confecção de laudos, pareceres e relatórios, no pressuposto de que cabe à Psicologia, nesse contexto, uma atividade predominantemente avaliativa e de subsídio aos magistrados. Este pressuposto, embora defendido em textos clássicos de Psicologia ⁶ e regulamentado pela legislação brasileira, tem causado mal-estar entre a nova geração de psicólogos, que preferiria ter de si uma imagem menos comprometida com a manutenção da ordem social vigente, considerada injusta e excludente. Este mal-estar tem sido crescente, impulsionado, entre outras razões, pelo advento de uma literatura crítica que demonstra que a questão da interseção da Psicologia com o Direito não diz respeito apenas ao bom ou mau uso da técnica, ou à habilidade ou não do perito. ...deve-se reconhecer que o psicólogo contemporâneo é, na maioria das vezes, um prático profissional cuja “ciência” é totalmente inspirada nas “leis” da adaptação a um meio sócio-técnico – e não a um meio natural – o que confere sempre a estas operações de “medida” uma significação de apreciação e um alcance de perícia. (CANGUILHEM, 1972: 121) Para Canguilhem, ao buscar objetividade, a Psicologia transformou-se em instrumentalista, esquecendo-se de se situar em relação às circunstâncias nas quais se constituiu. Embora esta observação de Canguilhem se refira à Psicologia, ela pode ser estendida a outras áreas. Ao discorrer sobre a modernidade, José Américo Pessanha afirma ser uma de suas características a opção por um certo tipo
de razão ou conhecimento científico, de natureza operante ou instrumental, capaz de dominar e modificar o meio físico. Menos mal, talvez, se este tipo de racionalidade tivesse se limitado apenas a certos usos e a certos propósitos e não tivesse a pretensão de se constituir como único modo legítimo e verdadeiro de leitura do mundo. ...quando o Ocidente, através de Descartes e de Bacon, fez a escolha por uma forma de cientificidade e deixou de lado tudo que fosse dotado de alguma ambivalência, deixou de lado também as chamadas idéias obscuras. Com isso também deixou de lado tudo o que na condição humana é ligada ao corpo, ao tempo, à história e à concretude. (PESSANHA, 1993: 26) Não se trata de negar validade ao modelo das Ciências da Natureza ou à Matemática, mas apenas de reconhecer que as Ciências Humanas e Sociais não podem se reduzir ao discurso coagente da razão abstrata, pretendendo a produção de verdades a-históricas e universais. O fechamento da razão a um modelo pretensamente único e absoluto não traz, como consequência, o enriquecimento do pensamento, mas a intolerância à diferença. Nas palavras de Pessanha: Trata-se é de negar a matematização daquilo que não é matematizável, de negar a desumanização daquilo que precisa se manter humanizado, negar a extração da dimensão temporal daquilo que só pode ser compreendido temporalmente. Trata-se, portanto, de preservar a temporalidade do tempo, a humanidade do homem, a concretude do concreto. (PESSANHA, 1993: 31) Como se vê, não é apenas da Psicologia que se trata, mas de uma problemática que envolve as chamadas Ciências Humanas e Sociais. Robert Castel, ao analisar a questão moderna da loucura, mostra que o sucesso da Medicina Mental na França se deu por prover um novo tipo de gestão técnica dos antagonismos sociais, podendo a Psiquiatria, neste sentido, ser considerada uma Ciência Política, porque respondeu a um problema de governo. Ao fazê-lo, no entanto, reduziu a loucura às condições de sua administração. É portanto essa constituição de um administrável (poderíamos dizer com mais ousadia de um ‘administrativável’) que se trata de revelar: administrar a loucura no sentido de reduzir ativamente toda a sua realidade às condições de sua gestão em um quadro técnico. (CASTEL, 1978: 19) No Antigo Regime, a responsabilidade pela internação dos indivíduos considerados insanos era compartilhada pelo poder judiciário e executivo. Às portas da Revolução Francesa, qualificado o poder real como arbitrário e abolidas as lettres de cachet , ou ordenações do rei, como justificar o grande número de pessoas sequestradas que, apesar de tudo, não se queria libertar? Era importante para a nova ordem solucionar este impasse, já que não se podia ignorar o ordenamento jurídico que disciplinava a medida de privação de liberdade. Ao postularem a minoridade do louco e o seu isolamento como medida terapêutica necessária ao controle de sua periculosidade, os alienistas ofereceram uma justificativa médica à sua repressão.
A Lettre-de-Cachet “não era uma lei ou um decreto, mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa, individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia-se até mesmo obrigar alguém a se casar pela lettre-de-cachet . Na maioria das vezes, porém, ela era um instrumento de punição. Podia-se exilar alguém pela lettre-de- cachet , privá-lo de alguma função, prendê-lo etc. Ela era um dos grandes instrumentos de poder da monarquia absoluta francesa” (FOUCAULT, 1979: 76). Por outro lado, ainda segundo Foucault, as lettres-de-cachet eram solicitações diversas dos próprios súditos: maridos ultrajados, pais de família descontentes com o comportamento de um de seus membros, seja por vadiagem, bebedeira, prostituição etc. (Ibid.: 77) Mas não eram os loucos os únicos que colocavam problemas de governo após a abolição das lettres de cachet, uma vez que estas serviam tanto para sancionar as condutas consideradas imorais como as consideradas perigosas. No entanto, antes de se colocar como fator indispensável ao funcionamento do aparelho judiciário e de estender-se em direção a outros grupos, a Medicina necessitou primeiro legitimar-se como um poder face à Justiça. Em relação ao prisioneiro, por exemplo, a atuação médica se dará inicialmente visando à execução da pena, e só mais tarde se dedicará à avaliação da responsabilidade do criminoso (CASTEL, 1978: 38). Neste momento posterior, ao desfazer-se a rígida separação entre o normal e o patológico, sobre a qual repousavam as internações dos alienados, desfazimento iniciado pelas teorizações de Esquirol sobre as monomanias ⁷ e as de Morel sobre as degenerescências ⁸ , as atividades de perícia se estendem aos vários setores da vida pessoal e social, levando Castel a fazer à Psiquiatria pergunta similar àquela feita por Canguilhem à Psicologia: “Sem dúvida não é possível estabelecer limite para esse progresso. Mas seria o mínimo ousar perguntar ‘quem te fez rei’? a quem te faz sujeitosubmisso” (CASTEL, 1978: 20). Assim como para o louco e para o prisioneiro, será necessário encontrar uma nova forma de administrar os conflitos familiares e também uma nova forma de assistência. No Antigo Regime, em troca de seu grande poder, o chefe de família devia zelar para que nenhum de seus membros perturbasse a ordem pública. Este mecanismo de controle se tornará insuficiente e inadequado em função do aumento crescente do número de pessoas “desgarradas” ou que “escapavam” ao controle das famílias, como os pobres, os vagabundos, os viciosos e a infância abandonada, levando os novos filantropos a uma crítica feroz do arbítrio familiar e dos procedimentos da antiga caridade. Estes filantropos lutavam por uma nova racionalidade na assistência e, principalmente, para que a ajuda dada à família favorecesse sua promoção e não sua dependência. Neste contexto, multiplicaram-se as leis sobre o abandono, maus tratos, trabalho e mortalidade infantil, surgindo novos profissionais dedicados ao campo social: os chamados “técnicos” ou “trabalhadores sociais”. A partir de então, para compreendermos o que Jacques Donzelot chama de “complexo tutelar”, torna-se necessário entender as formas de agenciamento entre as suas principais instâncias: o judiciário, o psiquiátrico e o educacional (DONZELOT, 1980).
Mas todas essas práticas não incidem sobre conceitos universais como “doente mental”, “delinquente”, ou “carente”, que lhes seriam exteriores, como nos ensina Michel Foucault, senão que esses “universais” ou “essências” são aquilo mesmo que se produz nestas práticas. Recusar essas categorias como sendo “natureza humana” significa, ao mesmo tempo, reconhecer, nas práticas sociais concretas, a formação de um campo de experiência onde processos de subjetivação/ objetivação têm lugar. Significa, também, reconhecer o papel que trabalhadores sociais, técnicos e peritos desempenham neste campo de poder-saber. Pela análise genealógica as identidades aparecerão, portanto, não como essências, mas produções históricas a partir de práticas múltiplas que se imbricam e se agenciam. Havendo descontinuidade das práticas, novas identidades emergirão na paisagem enquanto objetos para um sujeito do conhecimento. É neste sentido que, a seguir, nos dedicaremos a pensar as condições históricas que possibilitaram a emergência de uma das mais intrigantes divisões existentes na sociedade brasileira: a separação da infância entre criança e menor . Sobre a emergência da categoria menor abandonado no Brasil Indagando-se sobre os usos da palavra menor , Londoño nos informa que, até meados do século XIX, esse termo foi utilizado de maneira pouco frequente e apenas para demarcar a idade das responsabilidades civis ou canônicas (LONDOÑO, 1991: 131-5). Até então, mais do que a divisão da infância entre criança e menor , existiam diferentes categorias de crianças, como o filho de família , o negrinho escravo , a criança indígena , o órfão e o exposto , sendo que estes dois últimos, por terem perdido o suporte familiar, encontravam-se, normalmente, recolhidos aos abrigos mantidos pela caridade. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, no século XVIII, foram fundados o Recolhimento das Órfãs e a Casa dos Expostos, ambos mantidos pela Irmandade da Misericórdia. Quanto aos castigos, crianças eram punidas, no Brasil colônia, de acordo com as Ordenações Filipinas, sem que houvesse muita diferenciação das penas em relação aos adultos. No entanto, a menoridade era um atenuante, não se podendo, por exemplo, aplicar a pena de morte aos menores de 17 anos. Embora a parte civil das Ordenações Filipinas tenha vigorado até a República, quando foi aprovado o Código Civil de 1916 ⁹ , a parte criminal foi mantida apenas até 1830, quando entrou em vigor o Código Criminal do Império. À época, o Código Criminal de 1830 foi considerado avançado, não causando maiores inquietações a idade em que o menor poderia responder penalmente por seus atos, a não ser quando estivesse misturado aos adultos nas cadeias. O que se demandava, para resolver o problema, era a construção de casas destinadas especificamente a eles, onde a ideia de correção deveria prevalecer sobre a ideia de punição. Como esclarece Simões, No Código Criminal de 1830, considera-se menor o indivíduo com menos de 14 anos. Além disso, ao ser julgado por ato criminoso, podia ser condenado à
prisão comum de adultos se o juiz concluísse pela consciência do mal que praticara (discernimento). O Código de 1890 não introduziu grandes modificações, pois considerava os limites de 9 e 14 anos, sendo absoluta a irresponsabilidade até aos 9 anos. Entre os 9 e os 15 anos a condenação dependia ainda do grau de discernimento que o juiz apurasse no menor. Com a Lei nº 4.242 de 1921 e, especialmente, o primeiro código de menores — o Código Mello Mattos de 1927 — inaugura-se no Brasil a segunda fase, que é a do direito específico. (SIMÕES, 1983: 86-7) Quanto aos menores ditos abandonados , em minucioso levantamento nos Relatórios Ministeriais do Império ¹⁰ constatamos (ARANTES, 2008), até o advento da Lei do Ventre Livre (1871), a inexistência de qualquer menção a tal categoria ¹¹ . Como dissemos, o que existiam eram categorias diferenciadas de crianças, cuja situação era descrita em diferentes Relatórios Ministeriais. As estatísticas sobre órfãos e expostos , por exemplo, eram apresentadas nos Relatórios do Ministério do Império, sob a rubrica “caridade” ou “estabelecimentos de caridade”, enquanto a situação dos menores criminosos , ou seja, sujeitos às leis penais por terem obrado com discernimento, era apresentada nos Relatórios do Ministério da Justiça, sob a rubrica “polícia” ou “prisões” ¹² . A partir da Lei do Ventre Livre, no entanto, e com o aumento da população de desempregados nas grandes cidades, tendo-se em vista a dificuldade crescente para administrar a questão penitenciária, uma preocupação passou a ser constante nos Relatórios do Ministério da Justiça, a saber: como proceder com os filhos desobedientes, os filhos de uniões ilícitas, enjeitados ou órfãos, os menores criminosos que obraram sem discernimento, os menores da lei de 28 de Setembro de 1871, os jovens vagabundos, ociosos e indigentes não sujeitos a ação da Justiça Criminal? É esta preocupação com as crianças que não são necessariamente órfãs ou expostas e, portanto, sujeitas ao recolhimento nos estabelecimentos caritativos, e nem criminosas , passíveis de condenação pelas leis penais, que vai se transformar no chamado “problema do menor” ao final do Império e início da República, ensejando a busca por um novo estatuto de tutela. Começase a identificar as crianças pobres nas ruas como sendo órfãs de pais vivos e futuros criminosos , buscando-se formas legais que permitissem serem elas recolhidas aos estabelecimentos ditos “preventivos” ¹³ . Mas esta não era uma questão simples, uma vez que não era prática admissível enviar crianças livres, não órfãs e não criminosas, aos estabelecimentos caritativos e correcionais. Tal obstáculo, no entanto, começará a ser vencido, alegando-se que o problema das prisões, que vinha sem solução ao longo de todo o Império, decorreria exatamente do “problema do menor abandonado”: é porque não se corrige preventivamente os menores abandonados que as prisões encontram-se superlotadas. Ao discutir a necessidade da construção de mais estabelecimentos prisionais, afirma o Ministro da Justiça Diogo Velho, em seu Relatório de 1875: Muito pouco, porém, conseguirá o governo fundando e organizando duas prisões centrais para corrigir os criminosos, se não se esmerar em tolher o desenvolvimento dos crimes pela educação correcional dos menores
delinqüentes e dos jovens vagabundos (...). Resta fundar estabelecimentos, com a disciplina severa de Mettray em França, Red Hill na Inglaterra, ou de Saint Hubert na Bélgica. (BRASIL, 1877) Caberia, então, ao Estado, neste novo arranjo, assistir caritativamente às crianças pobres como se fossem órfãs ou expostas e, ao mesmo tempo, corrigi-las e regenerá-las como se fossem condenados – só que preventivamente e com a justificativa de sua proteção. Ao apresentar o projeto de criação de uma Diretoria Geral da Assistência Pública no Distrito Federal, propõe o Ministro da Justiça, no Art. 1º, letra a: “A assistência orphanológica propriamente dita compreende a da infância desvalida ou moralmente abandonada e a delinqüência juvenil. A assistência pública será nesse sentido auxiliar da Justiça (...)”. Intensificou-se, então, a prática de recolhimento de crianças nas ruas do Rio de Janeiro, sendo elas apresentadas, inicialmente, ao Juiz de Órfãos e, posteriormente, ao Juiz de Menores, para receberem “destino” – em geral, o trabalho em casas de família, fábricas ou fazendas, ou encaminhadas às escolas de aprendizes de Guerra ou Marinha, constituindo esse aprendizado do trabalho em verdadeiro sequestro da infância pobre. Até então, mendigos , estrangeiros vadios , bêbados por hábito , ratoneiros , prostitutas , desordeiros , desobedientes , turbulentos , jogadores , vagabundos , capoeiras , dentre outros desqualificados , eram as categorias de gente que preocupavam o Chefe de Polícia da Corte. Deste elenco não fazia parte o menor abandonado . Até a Lei do Ventre Livre, a palavra menor aparece nos Relatórios do Ministério da Justiça apenas como item de identificação nas estatísticas policiais, que classificavam os presos entre homens e mulheres, livres e cativos, nacionais e estrangeiros, casados e solteiros, maiores e menores de idade. Quando muito, esses Relatórios lembravam que os presos menores de idade não deveriam ficar junto com os presos maiores de idade, evitando-se a promiscuidade. Já nos Relatórios do Ministério do Império, onde se relatava a situação dos órfãos e dos expostos, a preocupação maior era com os altos índices de mortalidade na Casa dos Expostos e com a ociosidade das meninas no Recolhimento das Órfãs. Outros estabelecimentos, como o Instituto dos Meninos Cegos, Instituto de Surdos-mudos e Asylo de Meninos Desvalidos, eram também atribuições do Ministro do Império. Já as Colônias Orphanológicas, fundadas após 1871, são relatadas pelo Ministro da Agricultura, juntamente com os Patronatos Agrícolas fundados na República.
Assim, o que se constata, ao longo de todo o Império é uma preocupação constante do Ministério da Justiça com as mudanças das leis penais e com a reforma do sistema carcerário, que deveria advir em consequência dessas mudanças, uma vez que a penalidade mais comum passa a ser a privação da liberdade e não mais as penas de morte, degredo e galés, possibilitando a existência de uma massa carcerária antes inexistente. Ao mesmo tempo, verifica-se que as propostas de reforma dos estabelecimentos prisionais traziam muitas dúvidas e questionamentos, indo desde qual modelo adotar para os estabelecimentos correcionais (se isolamento absoluto ou apenas parcial), até o que fazer com os outros presos “não correcionais” e, principalmente, como administrar prisões cada vez mais superlotadas, que tendiam a ser definidas como “escolas do crime”. Longas discussões foram feitas a este respeito, nomeando-se inúmeras comissões para estudar o assunto, incluindo visitas às prisões dos Estados Unidos da América e de países da Europa. Como marco desta preocupação de reforma das prisões, decidiu-se pela construção de uma Casa de Correção na Corte, inicialmente projetada para ser edificada em 4 raios com 200 celas cada, totalizando 800 celas. Seria adotado o sistema de isolamento em repouso noturno e trabalho coletivo durante o dia, em silêncio, não podendo haver comunicação entre os presos. Um sistema mais duro, de isolamento absoluto, foi condenado por muitos ministros da Justiça por supostamente conduzir os presos à demência, loucura e morte. Entretanto, a Casa de Correção da Corte foi edificada muito lentamente, ficando a construção e o próprio sistema a ser adotado sujeitos a idas e vindas, nem sempre havendo acordo sobre o que fazer. Um primeiro raio foi construído, ao mesmo tempo em que no local foram se agregando diversos tipos de presos, sendo este fato constantemente criticado. Fica evidente, nos Relatórios, com raras exceções, que a situação dos escravos no Calabouço da Corte não era objeto de maiores considerações. Medidas de natureza humanitária, quando tomadas, eram apenas no sentido de se evitar os excessos, como, por exemplo, diminuir o número de chibatadas que se poderia aplicar aos escravos de uma só vez, mas não de por um fim ao Calabouço. Assim, os Relatórios parecem apresentar situações de impasse, nunca se chegando a bom termo com as decisões tomadas. Na realidade, as novas leis penais, ao estipular que as prisões deveriam se tornar estabelecimentos correcionais com vistas à regeneração dos presos, colocava o Império diante de suas próprias contradições: o desejo de se apresentar como moderno e civilizado sem abolir a escravatura e sem diminuir as enormes desigualdades sociais existentes entre os diferentes estratos sociais. Desta forma, antes que um estabelecimento prisional terminasse de ser reformado, já se apresentava defasado em sua proposta, deficitário em termos de pessoal e equipamentos e superlotado, recebendo presos acima de sua capacidade e sem observância aos critérios de separação estabelecidos. Começa a tomar corpo, nos Relatórios do Ministério da Justiça, a ideia de que sanar os males da sociedade brasileira significaria não apenas transformar cárceres fétidos e insalubres em estabelecimentos correcionais, mas também construir um sistema abrangente de assistência pública, de cunho preventivo-correcional-repressivo, que deveria alcançar as diferentes categorias de indivíduos pertencentes à “classe última da sociedade”. Tal
sistema deveria se responsabilizar pela classificação desses elementos degradados da sociedade, enviando-os seja para os diferentes asilos, depósitos ou albergarias (de mendigos, de alienados, de meninos desvalidos), seja para os diferentes cárceres (Xadrez da Polícia, Cadeia, Casa de Detenção e Depósito de Presos) que foram sendo edificados no Rio de Janeiro a partir de meados do século XX, seja também enviando-os para fora do país, no caso dos estrangeiros, ou para as prisões nas ilhas marítimas, no caso dos nacionais. Assim, no projeto da Assistência Pública que começa a ser gestado no início da República, a Assistência ao Menor é pensada como braço da Justiça, propiciando a abusiva internação de crianças pobres nos estabelecimentos de Polícia, indiferenciando as categorias de “abandono”, “orfandade” e “delinquência”. O problema da infância delinqüente ou simplesmente abandonada ou orphanada, avulta dentre os serviços que mais urgentemente requerem prompta solução; porquanto, as três escolas existentes, das quaes só uma com organização regular, não podem attender às necessidades actuaes, tal é o numero de crianças que reclamam a sua internação nos estabelecimentos de Policia, e que são em bandos, apanhados na prática de crimes, no enxurro social, nas ruas da cidade, ou mandados pelos juízes de orphãos; accrescendo a circumntancia de achar-se a lotação daquellas escolas excedidas de quase o duplo. (Brasil. Relatórios Ministeriais. Ministério da Justiça. Ministro Rivadávia da Cunha Corrêa. Relatório dos anos de 1910-1911, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, p. 77) Essa compreensão da Assistência Pública ao Menor como auxiliar da Justiça, tendo caráter preventivo e correcional, é repetida em vários Relatórios. A solução do problema da assistência à infância, um dos mais complexos dentre os nossos problemas sociais, inclui as medidas de caráter judiciário – organização de tribunais para crianças e regime de sentença por tempo indeterminado –, além de outras medidas legislativas, afetando o próprio Direito Penal e Civil, no tocante à indagação sobre discernimento e perda do pátrio poder. (Brasil. Relatórios Ministeriais. Ministério da Justiça. Ministro Rivadávia da Cunha Corrêa. Relatório dos anos de 1911 e 1912, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, em abril de 1912: 91) Construiu-se, desta forma, sob a base da regulamentação da idade penal e do trabalho infantil, da possibilidade de destituição do pátrio poder em relação a menores ditos abandonados e do envio desses mesmos menores a estabelecimentos correcionais, uma legislação tutelar do menor separada do direito de família, que se ocupava, via de regra, do filho de família mais abastada. Essa junção de Assistência e Justiça, no entanto, nunca foi um arranjo pacífico, pois não raro os próprios Juízes de Menores reconheciam que se tratava, na grande maioria dos casos, de pobreza da criança e de sua família, e não de abandono. Aquilo que se rotulava como “abandono” (crianças nas ruas, mães solteiras ou viúvas, pais desempregados ou
internados em hospitais ou presídios, crianças pequenas cuidadas por irmãos apenas um pouco mais velhos etc.) sempre foi, na grande maioria das vezes, a própria condição de existência e sobrevivência das famílias pobres no Brasil. Todos os Juízes de Menores, desde Melo Matos até Burle de Figueiredo, Sabóia Lima e Saul de Gusmão, deram os seus melhores esforços à missão que lhes cumpria, exercendo as suas árduas funções com a maior dedicação. Todos sempre declararam que o problema dos menores abandonados e transviados é um problema essencialmente social, antes que judicial, de assistência social, de educação, antes de sê-lo de antropologia criminal, de ciência penitenciária ou de sociologia penal. As ações que desenvolveram o comprovam plenamente. (RUSSEL, 1952: 7) No entanto, em virtude de ser o Código de Menores de 1927 uma consolidação das leis de assistência e proteção a menores (BRASIL, 1927) – e por entender essa assistência como internação e aprendizado de um ofício –, o Juízo se esmerou em cumprir essa função ao longo de todo o período de vigência do Código de Menores, a despeito de possíveis discordâncias. Assim, o que se sempre esteve em jogo na chamada assistência ao menor abandonado, ao longo de quase todo o século XX, foi a constituição de um duplo estatuto de menoridade – a criança e o menor – forjado em relações de exploração e violência existentes na sociedade brasileira, mas sempre em nome de sua proteção. Ao final da década de 1980, no entanto, possibilitado pela ampla articulação de movimentos constituintes, o Estatuto da Criança e do Adolescente emergiu na cena democratizante pela qual atravessava o país como grande promessa. Muitos sonhos e esperanças foram depositados neste novo arranjo, onde a criança e o adolescente foram pensados como sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento, além do princípio da absoluta prioridade, abolindo-se, na forma da lei, a distinção entre criança e menor. Transcorridos 19 anos de sua aprovação, no entanto, forçoso reconhecer que as mudanças até agora obtidas não têm correspondido às nossas esperanças. Em nome do equilíbrio fiscal e do cumprimento de metas pactuadas com organismos internacionais, o Brasil deixou de investir, ou investiu de modo precário e insuficiente, nas políticas sociais básicas, como educação e saúde, inviabilizando, na prática, o cumprimento da própria Constituição Federal de 1988. Nesta conjuntura, onde os recursos para a garantia dos direitos sociais são sempre escassos ou onde tais recursos não são priorizados, onde falta o primeiro emprego para os jovens e o tecido social se esgarça, cresce o número de pessoas favoráveis a um endurecimento da legislação e do rebaixamento da idade penal, divulgandose, insistentemente, como causa do aumento da violência nos grandes centros urbanos, uma suposta impunidade proporcionada pelo Estatuto, cuja única finalidade seria a de “proteger bandidos” – criando, na população, uma indiferença face ao trágico destino de milhares de jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente quanto dos que se encontram privados de liberdade. Todas as estatísticas conhecidas apontam índices alarmantes de mortalidade por causas externas na faixa etária entre 14 e 24
anos, acrescentando-se a isto ser também esta a faixa etária que enche os estabelecimentos socioeducativos e os presídios. Especificamente em relação às unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, forçoso reconhecer sua inadequação em relação aos parâmetros preconizados pelo Estatuto, servindo, a grande maioria delas, apenas como contenção e encarceramento para os adolescentes ¹⁴ – fato que tem sido apontado por muitos como constituindo efetiva redução da idade penal no Brasil, uma vez que, a partir de 12 anos de idade, os adolescentes estariam sendo, na realidade, processados (condenados), cumprindo medidas de privação de liberdade (penas), em estabelecimentos socioeducativos (prisões). O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que estabelece parâmetros em relação à execução das Medidas Socioeducativas, carece ainda de implementação. Quanto às Medidas de Proteção Especial, em que pese o avanço representado pela formulação dos diversos Planos Nacionais – sobre a convivência familiar e comunitária, o combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, a erradicação do trabalho infantil, dentre outros –, resta dizer que a execução de tais Planos nem sempre se faz articulada a uma efetiva rede de garantia e promoção dos direitos, permanecendo as ações fragmentadas e meramente pontuais. Ressalte-se, ainda, em muitos serviços, a compreensão higienista e tutelarista, ainda vigente, do que seja proteção. Lembramos, por fim, a existência das inúmeras Propostas e Projetos existentes no Congresso Nacional, algumas das quais em franco retrocesso em relação ao ECA, como o chamado Projeto de Lei (PL) do “parto anônimo” ¹⁵ , que visa reeditar uma espécie de “Roda dos Expostos” e incumbir os profissionais e estabelecimentos de saúde de realizar procedimentos relativos à adoção dos recém-nascidos. Lembramos também a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da “redução da idade penal”, que coloca sob a equipe técnica a responsabilidade de decidir se o adolescente autor de ato infracional agiu ou não “com discernimento”. Diante das medidas propostas pelo Estatuto e de sua ainda insuficiente e muitas vezes inadequada implementação, torna-se relevante pensar quais as forças que afirmou e quais resistências possibilitou – exercício a que nos dedicaremos a seguir, ainda que de maneira breve. Sobre a Proteção Integral Pensar a questão dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil de hoje requer não apenas reconhecer a permanência de situações históricas de pobreza e exclusão social dificultando e mesmo impedindo o exercício pleno da cidadania, como também reconhecer que, a partir da nova legislação – o Estatuto da Criança e do Adolescente –, instalou-se um novo paradigma de proteção integral, nem sempre bem compreendido pelos operadores do próprio Sistema de Garantia de Direitos e Rede de Atendimento. Tal situação tem levado alguns autores a afirmar que vivemos uma dupla crise em relação ao Estatuto: de sua implementação e de sua interpretação ¹⁶ .
Se a permanência de bolsões de miséria e de práticas de exclusão social continua levando crianças e adolescentes a viverem situações de extrema vulnerabilidade, negando-lhes os direitos à vida, à saúde e à educação, por outro lado, a não problematização do que seja a Proteção Integral tem possibilitado o exercício da proteção como repressão e controle, negando às crianças e aos adolescentes os direitos à dignidade, à liberdade e à autonomia. No entanto, a Proteção Integral de que trata a legislação brasileira, ao reconhecer que crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais como pessoas em desenvolvimento e como sujeitos de direitos humanos, civis e sociais, é incompatível com procedimentos que os reduzam a meros objetos desta proteção. Neste sentido, os estudos na área da infância e adolescência vêm se revestindo de extrema complexidade, tanto pela novidade histórica dos direitos de que são titulares como também por dificuldades culturais em aceitar orientações sexuais, religiosas e estilos de vida que se afastam de uma pretensa normalidade médica, psicológica e social. Tais dificuldades são particularmente sentidas quando se trata de matéria objeto de disputa entre grupos religiosos e minoritários, como, por exemplo, o direito de liberdade de orientação sexual e do uso de preservativos para a prevenção da gravidez e doenças sexualmente transmissíveis ¹⁷ . Compreendemos, no entanto, que estas não são questões simples, na medida em que o reconhecimento da capacidade de crianças e adolescentes para o exercício de direitos sexuais, bem como de outros direitos, não é uma capacidade absoluta, não abolindo diferenças existentes entre crianças, adolescentes e adultos. Pensar estas questões requer, portanto, uma problematização tanto do “lugar social de crianças e adolescentes e as discriminações etárias e de gerações a que estão expostos”, como de “conceitos como proteção e desenvolvimento, de norma e direito e, sobretudo, de protagonismo social de crianças adolescentes” (MELO, 2008). Ou seja, requer o reconhecimento da existência de uma tensão (SOUZA, 2008) a ser constantemente pensada – e não necessariamente de uma contradição – entre pessoa em desenvolvimento e sujeito de direitos, entre proteção e autonomia. Consideramos este o maior desafio que temos pela frente: o de entendermos o caráter ético, jurídico, político e social da Proteção Integral. Tal desafio exigirá de todos nós, e em especial do psicólogo, uma análise de nossas implicações, para que possamos favorecer o protagonismo de crianças e adolescentes, e não comportamentos meramente adaptativos. Exigirá, igualmente, de todos os operadores do Sistema de Garantia de Direitos e da Rede de Atendimento, o esforço de um olhar novo, para que os direitos humanos sejam realmente considerados indivisíveis e interdependentes, evitando-se ações fragmentadas e apenas pontuais. Neste sentido, políticas públicas voltadas para a infância e adolescência não podem ignorar os dramas pessoais e familiares envolvidos nas denúncias de negligências, maus-tratos e omissões – agravadas, muitas vezes, por situações de pobreza e exclusão extrema, desemprego ou mesmo dependência química e sofrimento mental – evitando-se o que já está se tornando prática corrente: a criminalização da pobreza e a medicalização e a
judicialização de conflitos familiares. Queremos lembrar, aqui, os casos de mães pobres que, por decisão judicial, têm sido destituídas do poder familiar, algumas antes mesmo do nascimento dos filhos ¹⁸ . Para tal decisão, muitas vezes, são relevantes os laudos ou relatórios da equipe técnica, informando viver a mãe nas ruas vendendo balas ou fatos similares. Problemas sociais são, muitas vezes, revestidos de uma roupagem técnicojurídica, transformando a pobreza da família em situação de risco para a criança. Podemos, por exemplo, identificar o quanto de “carência de recursos materiais” existe nas chamadas situações de risco , negligência e omissão ? Embora o Estatuto afirme que a carência de recursos materiais não constitui, por si, fator determinante para a destituição do poder familiar, devendo a família ser encaminhada a programas de proteção, tal encaminhamento nem sempre acontece, optando-se por enviar a criança a abrigo e/ ou família substituta. São, neste sentido, as considerações da senadora Patrícia Saboya, por ocasião da votação da nova lei de adoção no Senado, Focada no direito à convivência familiar, já previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a nova lei avança ao estabelecer que o Poder Público esgote todos os recursos para reinserir as crianças em suas famílias de origem (...) (e) introduz o conceito de família extensa, que compreende os diversos graus de parentesco. Se a criança não puder voltar a viver com seus pais, poderá ser acolhida por parentes próximos como tios, avós ou primos. No entanto, para que essas tentativas de reinserção das crianças em seus lares de origem sejam bem-sucedidas, é de fundamental importância que o Poder Público ofereça instrumentos concretos para que essas famílias tenham condições de se reestruturar, afetiva e financeiramente. Neste sentido, devem ser adotadas Políticas Públicas de fortalecimento das famílias, que englobem geração de emprego e renda, além de assistência psicológica e social. (SABOYA, 2009) ¹⁹ Embora não esteja descartada a adoção de crianças e adolescentes, queremos enfatizar o caráter excepcional dessa medida, não devendo a adoção constituir a regra. Lembramos aqui, aos estudantes de Psicologia, que, para a destituição do poder familiar, há que existir um procedimento judicial próprio, na forma da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Civil, garantindo-se ampla defesa aos envolvidos, não bastando meras suposições quanto a situações denominadas de “risco”. Devem existir fatos comprovados ou suspeitados com “indícios veementes” que demonstrem que essa mãe e/ou pai põem em risco (ameaça) ou violam direitos de seu filho concretamente ²⁰ . Sobre as Propostas de Redução da Idade Penal Conforme se pode facilmente constatar pelo noticiário escrito e televisivo, sempre que um crime choca a opinião pública, entra na pauta a proposta de redução da idade penal. Em 2007, por ocasião da morte trágica do menino João Hélio, vitimado por um grupo de jovens, entre os quais um adolescente, a proposta voltou a ser nacionalmente discutida.
Apesar dos diversos posicionamentos contrários à redução da maioridade penal por entidades de classe e de defesa de direitos humanos, mas respaldados em sondagens de opinião que indicavam ser a população favorável à redução, no dia 26 de abril de 2007, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, por 12 votos a favor e 10 contra, o substitutivo do senador Demóstenes Torres, que altera o art. 228 da Constituição Federal, reduzindo a maioridade penal de 18 para 16 anos nos casos de crime considerados hediondos ou a estes equiparados, como o tráfico de drogas. O substitutivo aprovado foi redigido a partir de seis propostas de emenda à Constituição (PEC) que já tramitavam na Casa e deverá ainda ser submetido ao plenário do Senado, em dois turnos, para posterior envio à Câmara dos Deputados, também para votação em dois turnos. Apresentaram voto em separado, pela manutenção da idade penal em 18 anos, o senador Aloizio Mercadante (em 27/02/07) e a senadora Patrícia Saboya (em 26/04/07), sustentando, dentre outros, os seguintes argumentos: 1) a maioridade penal fixada na Constituição Federal constitui cláusula pétrea e está de acordo com padrão adotado pelos mais importantes documentos internacionais sobre o tema, ratificados ou apoiados pelo Brasil; 2) o rebaixamento da idade penal terá pouco impacto sobre os índices de criminalidade, na medida em que mais de 90% dos crimes são praticados por adultos, sendo adolescentes e jovens as maiores vítimas da violência; 3) o rebaixamento da idade penal importaria na participação definitiva de adolescentes em grupos do crime organizado existentes no sistema penitenciário, no afastamento das oportunidades de conclusão dos estudos e de profissionalização e na ausência de apoio terapêutico para reverter a conduta transgressora, contribuindo também para o aumento da população carcerária e o consequente agravamento da carência de vagas no sistema penitenciário brasileiro, considerado um dos piores do mundo. Como alternativa para combater o aumento de atos infracionais praticados por adolescentes, os senadores propõem, em consonância com o CONANDA, a imediata e total implantação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que prevê a formação continuada dos agentes socioeducadores; a priorização das medidas em meio aberto; a reforma das unidades de internação, mediante parâmetros pedagógicos e arquitetônicos; e a mobilização das comunidades e da imprensa para o acompanhamento e a resolução de um problema que é de toda a sociedade brasileira. Além dos aspectos acima, apontados pelos senadores, chamamos a atenção para outro, que toca diretamente aos psicólogos enquanto categoria profissional, que é a previsão que faz o substitutivo aprovado de uma junta técnica nomeada pelo juiz para decidir sobre a existência de discernimento nos menores de 18 e maiores de 16 anos: “somente serão penalmente imputáveis quando, ao tempo da ação ou omissão, tinham plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, atestada por laudo técnico, elaborado por junta nomeada pelo juiz”. Tal previsão demanda dos psicólogos, bem como dos demais profissionais de saúde, profunda reflexão e análise de implicação: aceitarão ocupar este
lugar? A fixação da idade penal em 18 anos, fixada na Constituição Federal de 1988, é uma decisão política que em nada implica acreditar que o adolescente saiba ou não o que está fazendo. Significa, antes de quaisquer outras considerações, que a sociedade oferece ao adolescente, mediante uma proposta socioeducativa bem definida, outra opção de vida que não a de seguir no cometimento de atos infracionais. Na realidade, o substitutivo aprovado na CCJ do Senado suscita o debate de questões que há muito estão sendo negligenciadas: o lamentável estado das prisões brasileiras, para o qual diversos estudos e pesquisas têm chamado a atenção; o fato de que o Estatuto da Criança e do Adolescente não foi ainda devidamente implantado, como igualmente tem sido demonstrado por estudos e visitas às unidades socioeducativas; e a legislação “antidrogas”, que tipifica como traficantes as pessoas envolvidas no varejo da droga. Em relação a este ponto, como é de conhecimento público, a política de combate às drogas tem elevado o número de mortes e superlotado as prisões e o sistema socioeducativo, sem, contudo, reduzir o consumo. O Substitutivo aprovado, ao permitir que se encaminhem ao sistema carcerário adolescentes de 16 anos tipificados como traficantes e que sairão ainda muito jovens das prisões, poderá agravar ainda mais o problema que queremos combater, na medida em que, longe de exceção, o envio de adolescentes às prisões poderá se tornar a regra. Ao pender o barco para as medidas punitivas e não para as políticas públicas básicas e de proteção e inserção social, longe de resolver os problemas que nos afligem, o Brasil pode estar caminhando para a consolidação e o aprofundamento da histórica divisão da infância brasileira entre crianças/ adolescentes e menores – divisão esta que foi justamente o que impulsionou os movimentos sociais a lutarem para que a Constituição de 1988 adotasse a Proteção Integral para toda a infância e juventude brasileira e não apenas para uma parte dela. Assim, ao mesmo tempo em que manifestamos total repúdio aos atos de violência praticados seja por adultos ou adolescentes, seja por agentes do próprio Estado, preocupa-nos a forma como o debate vem se instalando no país, aplicando-se aos adolescentes as categorias de anormais , monstros , degenerados , incorrigíveis e não humanos. Ainda que dominados pela dor dos acontecimentos, tristes por constatarmos o grau de ruptura social a que se chegou no Brasil, não podemos deixar que momentos de comoção nacional nos impeçam de buscar soluções efetivas, que certamente passam pela análise das causas da violência, e não pelo simples agravamento das penas. Queremos pensar que apenas por desconhecimento da realidade retratada no Mapa da Violência pode-se acreditar que os adolescentes são os responsáveis pela situação de criminalidade a que chegamos no Brasil. Acaso não está lá demonstrado o quanto o Brasil vitimiza seus adolescentes e jovens? Também não está retratado, nos inúmeros relatórios existentes sobre o tema, que a maioria dos atos infracionais que levam os adolescentes a receberem medidas de privação de liberdade no Brasil não envolve crimes contra a pessoa? Queremos também acreditar que apenas por desconhecimento das mazelas existentes nas prisões brasileiras pode-se imaginar que o rebaixamento da
idade penal seja solução de alguma coisa. Ao contrário, esta talvez seja a solução mais simplista e, portanto, a mais desastrosa. Não que os estabelecimentos destinados à privação de liberdade dos adolescentes estejam em melhores condições, como demonstram os diversos relatórios sobre o tema, confirmando uma realidade já sabida e inúmeras vezes denunciada: superlotação nas unidades, maus-tratos, ociosidade, precariedade ou ausência de projetos socioeducativos e sofrimento mental, dentre outros problemas. Compreendendo que a situação de violência que estamos vivenciando é fruto de um longo e complexo processo histórico que, contínua e insistentemente, tem condenado parte da população brasileira ao descaso e à subcidadania, privando-a de mecanismos de proteção social, queremos endossar as palavras do historiador Jean Hébrard (2007) quando identifica como um dos fatores que está na raiz da violência encontrada nas médias e grandes cidades brasileiras o fato da escola pública não ser o espaço no qual convivem crianças da classe média e crianças mais pobres, afirmando que a escola, como lugar onde se partilha uma cultura comum, “é absolutamente essencial numa democracia”. O que é a Psicologia? Para que ela serve? Segundo Foucault (1977), conhecemos já todos os inconvenientes e perigos que a prisão oferece e também a sua inutilidade em relação a uma suposta regeneração dos prisioneiros e, no entanto, as nossas sociedades não querem dela abrir mão. Sabemos, também, que o encarceramento não diz respeito apenas à privação de liberdade. É a este excesso, ao que excede a pena, que Foucault chamou de “o penitenciário”. O aparelho penitenciário, local de cumprimento da pena, é também lugar de uma “curiosa substituição”: ...das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é claro, nem mesmo exatamente o infrator, mas um objeto um pouco diferente e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva. Esse outro personagem que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado, é o delinqüente. O delinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza (...). O castigo legal se refere a um ato; a técnica punitiva a uma vida (...). Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do “biográfico” é importante na história da penalidade. (FOUCAULT, 1977: 223-224) A partir de sua atuação como psicólogo no sistema socioeducativo, no Rio de Janeiro, Bastos (2002) dedicou-se a pensar como se dá a construção deste biográfico na prática técnica dos psicólogos. Na reconstrução da história de vida dos sentenciados, incluindo adolescentes, este biográfico, segundo Foucault, visa mostrar como “o indivíduo já se parecia com seu delito antes mesmo de o ter praticado”. No exemplo que se segue, oferecido por Bastos,
a construção deste biográfico se apresenta claramente: “o pai é ausente... diz que a mãe morreu no parto... estudou apenas até a 2ª série... acha que como está nesta vida não tem mais jeito... foi expulso da escola... pouco sociável... disperso... impaciente... baixo grau de tolerância à frustração... vive nas ruas e diz que é mendigo... diz que nasceu para ser ladrão... disse que conhece mais gente que está presa do que gente em liberdade... tem um irmão mais velho que já foi preso...” (BASTOS, 2002: 115-119). Esta produção técnica, além de ser um discurso de “verdade”, é também um discurso que “faz rir”. Exemplificando, Bastos cita laudos periciais colhidos por Nogueira nos arquivos do Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, no Rio de Janeiro, de pessoas que haviam sido apreendidas por motivos banais como brigas, xingamentos, vadiagem, pequenos furtos e desacato à autoridade (NOGUEIRA, 2002). Vejamos um pequeno trecho, de um dos casos citados, do ano de 1924. ...É elle portador de estygmas phisicos de degeneração bem pronunciados (...). Nem mesmo lhe faltam as tatuagens, estygma physico adquirido que, com freqüência aparecem nos degenerados e nos delinqüentes. Vê-se, assim, no seu ante-braço direito, um pássaro com uma carta no bico; um vaso de planta e o nome de Idalina; no braço direito várias estrellas, um cometa e algumas lettras; no braço esquerdo as iniciais AP; no peito, iniciais, um pássaro e a expressão ‘Amo-te’. (NOGUEIRA, 2002, CF. BASTOS, 2002: 120) Além dos discursos que “fazem rir”, temos também os que “fazem chorar”, como o de um grupo de médicos, membros da Escola Nina Rodrigues, estudado por Marisa Corrêa. Este grupo foi importante na constituição da Medicina Legal no Brasil, sendo um dos mais atuantes Leonídio Ribeiro, fundador do Instituto de Identificação do Rio de Janeiro e ganhador do Prêmio Lombroso de 1933. É dele a citação abaixo: Na criança de um ano é, às vezes, possível já reconhecer o futuro criminoso. É na primeira infância, ou na puberdade, que se revelam as primeiras tendências para as atitudes anti-sociais, que se concretizam e agravam progressivamente, sob a influência geral do ambiente. Existem, na criança, os chamados ‘sinais de alarme’ de tais predisposições e tendências ao crime, sinais que podem ser de natureza morfológica, funcional ou psíquica. Especialmente sobre estes últimos é que devem estar vigilantes todas as mães, sabido que as crianças perversas, rebeldes, violentas, impulsivas, indiferentes e desatentas são principalmente as que precisam receber cuidados especiais para não se tornarem, afinal, elementos perigosos para a sociedade. (CORRÊA, 1982: 60-61) Em pesquisa sobre juventude e drogas, Batista estudou a evolução do problema no Rio de Janeiro, no período 1968-1988, a partir de processos encontrados nos arquivos do então Juizado de Menores (BATISTA, 1998). Além de análise quantitativa, Batista analisou os conteúdos dos laudos e pareceres das equipes técnicas formadas por assistentes sociais, psiquiatras e médicos das Delegacias de Menores, da FUNABEM e do Juizado de Menores, encontrados nos processos. Pela análise de Batista, é flagrante a construção de estereótipos, a partir de olhares cientificistas e preconceituosos, erigidos na virada do século XIX e
que ainda persistem na prática de muitas equipes técnicas: o preconceito em relação às favelas e bairros pobres (“o local onde reside propicia seu envolvimento com pessoas perniciosas à sua formação”); a atitude suspeita (“estava desempregado, perambulando em estado de vadiagem pela Zona Sul quando sua residência se encontrava na Zona Norte”); a criminalização do uso de drogas (“foi detido cheirando benzina”); a desqualificação familiar (“procede de família desagregada”); serviços que não são considerados trabalho (“está trabalhando em biscates, pois diz não ter paciência para aturar patrão; não está estudando nem trabalhando”); a hereditariedade (“o pai já fez tratamento nervoso”); os distúrbios de conduta (“autuado por práticas antissociais”). Tal caracterização leva sempre às mesmas recomendações: ressocializar, reeducar, recuperar, tratar, profissionalizar, remetendo as faltas e as dificuldades dos adolescentes a eles mesmos ou às suas famílias. No entanto, conclui Batista, mais do que “doença mental”, os processos revelam histórias de miséria e exclusão social. Diniz (2001), estudando uma amostra de 46 pareceres psicológicos, no período de 1995 a 1998, encontrados nos processos de adolescentes evadidos do sistema socioeducativo do Rio de Janeiro enquanto cumpriam Medida Socioeducativa de Internação, e com Mandato de Busca e Apreensão, constatou que a grande maioria pertencia ao sexo masculino, com idades entre 15 e 17 anos e poucos anos de escolaridade. Em sua maioria, estes adolescentes foram acusados de infrações análogas aos crimes contra o patrimônio e análogas à Lei de Entorpecentes. Dentre os motivos alegados pelos adolescentes para as fugas, destaco a existência, na mesma unidade de atendimento, de adolescentes pertencentes a grupos ou facções rivais: “fugiu por lá ter encontrado o gerente da boca, que disse que ele deveria pegar a carga”; “porque lá encontrou membros do comando rival, que estão em guerra, então teve que fugir de novo”. Outros motivos foram ameaças de estupro, por sofrer agressões, por ter a roupa furtada; por medo de ser punido ou encaminhado à Delegacia de Polícia por ter sido pego fumando maconha (DINIZ, 2001: 50). Diniz identifica dois “tipos” de adolescentes a partir dos pareceres psicológicos: aquele que foi “levado” ao ato infracional pelas circunstâncias ou pelas amizades e aquele que teria o “perfil” de infrator, facilitado pela ausência paterna, desestruturação familiar e por determinados traços ou características de personalidade como agressividade, impulsividade, malícia, dificuldades em lidar com limites, sentimentos de inferioridade etc. Como conclusão dos pareceres, a adequação à rotina institucional e a participação nas atividades propostas aparecem quase sempre como critério de que o adolescente está recuperado ou ressocializado. É importante dizer que um fator comum que une os estudos acima é a busca de alternativas para a atuação profissional, na esperança de que a Psicologia possa ser exercida de outra forma, além de trazer à luz o enorme sofrimento causado pelo encarceramento dos adolescentes. Para finalizar, retomamos, de outro modo, a pergunta feita inicialmente por Canguilhem: “Que é a Psicologia?”, possibilitada aqui pelas lembranças de Bastos (2002):
Numa de suas belíssimas aulas ele se dirigiu a alguns alunos do curso de psicologia e perguntou: “- O que vem a ser a psicologia?” “Para que ela serve?” Ante a nossa confusão, perplexidade e demora, Cláudio Ulpiano nos disse: “Depende das forças que se apoderam dela! Coloquem suas forças em batalha para produzirem uma psicologia afirmativa”. ²¹ Bibliografia ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Prefácio. In : BRITO, L. M. T. – Sepa-ran- do: um estudo sobre a atuação do psicólogo nas Varas de Família. Rio de Janeiro: Relume Dumará, UERJ, 1993. __. (org.). Relatório de Pesquisa FAPERJ – Edital Direitos Humanos, 2008: adolescentes, ato infracional e cidadania no Rio de Janeiro, 1900-2000. A construção do jovem “perigoso”. __. Pensando a Proteção Integral. Contribuições ao debate sobre as propostas de inquirição judicial de crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas de crimes. In : Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. Propostas do Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP, 2009. BATISTA,Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro . Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1998. BASTOS, Adilson Dias. De infrator a delinqüente: o biográfico em ação . Niterói: Dissertação de Mestrado, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, 2002. BRASIL. Relatórios Ministeriais: 1821-1960. Center for Research Libraries. Disponível em: http://www.crl.edu/pt-br/brazil/ministerial BRASIL. Ministério da Justiça. Ministro J. J. Seabra. Relatório dos anos de 1904 e 1905-2. Apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, em março de 1905, página 226. BRASIL, Ministério da Justiça. Ministro Manoel Antonio Duarte de Azevedo. Relatório do ano de 1873 apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 3ª Sessão da 15ª Legislatura, página 30. BRASIL. Ministério da Justiça. Ministro (Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque). Relatório do ano de 1874 apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 1ª Sessão da 16ª Legislatura. (Publicado em 1877). Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1869/000049.html . Acesso em janeiro de 2011. BRASIL. Decreto nº 17943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção a menores. BRITO, Leila Maria Torraca de. Ser educado por pai e mãe: utopia ou direito de filhos de pais separados. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Departamento de Psicologia, PUC-Rio, 1999.
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(1992), que todos os sistemas institucionais do planeta devem resolver histórica, política e juridicamente, pois é aí que o princípio da vida está ancorado. Ou seja: como ordenar o poder genealógico? Qual a relação entre o Direito e a vida? 5 A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, dispõe sobre o direito da criança ser educada por pai e mãe. A este respeito, ver: Brito (1999). 6 Sobre aspectos históricos da Psicologia Jurídica, ver Jacó-Vilela (2000). 7 De acordo com a máxima dos primeiros alienistas de que “não existe loucura sem delírio”, surge a dificuldade de se caracterizar a alienação mental, para efeitos de desresponsabilização jurídica, nos casos em que não se observa a presença de delírios no indivíduo que cometeu um crime ou infração penal. Em contraposição às manias, Esquirol postula as monomanias, ou loucura sem delírio, ampliando a noção de alienação mental. A monomania é como um delírio parcial, que não subverte inteiramente a faculdade da razão ou do entendimento (ver CASTEL, 1978: 164-165). 8 Com Morel ampliam-se as possibilidades de intervenção da medicina na vida social, ao postular as degenerescências como desvios em relação ao tipo normal da humanidade, transmitidos por hereditariedade. 9 “Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes a matérias de direito civil reguladas neste Código”. Ver: Pereira (2005: 22). 10 Todos os Relatórios Ministeriais do Império aqui citados podem ser consultados no site do Center for Research Libraries: http://www.crl.edu/ brazil 11 Exceção, de certa forma, é feita ao Decreto N. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecendo casas de asilos para os meninos encontrados em estado de pobreza. No entanto, apenas em 1875, justamente após a Lei do Ventre Livre, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Asilo de Meninos Desvalidos. Cabe lembrar que a categoria de “desvalido” não pode ser tomada como sinônimo de “abandonado”, correspondendo a diferentes práticas históricas. 12 Esta situação se modificará na República, quando atribuições do extinto Ministério do Império forem repassadas ao Ministério da Justiça. 13 Assim, da Lei do Ventre Livre e Abolição da Escravatura à aprovação do Código de Menores de 1927, um longo caminho teve que ser percorrido para que um novo tutor legal – que não o senhor de escravos e as instituições de caridade – fosse encontrado para a criança pobre, agora denominada menor abandonado . 14 Ver o Relatório do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e Conselho da Ordem dos advogados (OAB) sobre as visitas realizadas em unidades do Sistema Socioeducativo, em 15 de março de 2006.
15 Projeto de Lei nº 2.747, de 2008 (Apensos os Projetos de Lei nº 2.834, de 2008 e nº 3.220, de 2008). 16 Ver, por exemplo Mendez. 17 Ver Arantes, 2009. 18 Jornal O Globo, de 21 de junho de 2009, página 16: “Mãe perde a guarda da filha antes de menina nascer. Por ordem do juiz de Nova Friburgo, jovem de 23 anos ainda não conheceu o bebê; TJ reverte a decisão”. 19 O artigo foi veiculado no jornal O GLOBO e está disponível em vários sites, entre os quais http://www.senado.gov.br/web/senador/PatriciaSaboya/ ARTIGOSOBRENOVALEIADOCAO.doc . 20 Apontamentos feitos a partir de aulas e ensinamentos de Wanderlino Nogueira Netto. S/d. 21 “Cláudio Ulpiano, filósofo, ex-professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), já falecido. Responsável por introduzir nestes estabelecimentos o pensamento de Deleuze, Bérgson, Guattari, Nietzsche etc., através de suas aulas e grupos de estudo que, inclusive, atraíam pessoas de fora do mundo acadêmico” (BASTOS, 2002: 58). DESCONSTRUINDO A MENORIDADE: A PSICOLOGIA E A PRODUÇÃO DA CATEGORIA MENOR ¹ Érika Piedade da Silva Santos A psicologia e o menor : ruídos no processo de silenciamento Como psicólogos, habituamo-nos a pensar que o principal instrumento de nosso trabalho é a escuta subjetiva, a atenção ao “sujeito”. Naturalizamos o “indivíduo psicológico”, enquanto subjetividade intimizada ² , consciente de si e de seus sentimentos, e assim neutralizamos que sua própria constituição está diretamente relacionada às práticas políticas, econômicas e sociais da Modernidade (FIGUEIREDO, 1999). Em consonância com a análise desenvolvida por Foucault (2002), consideramos que a Psicologia se constitui enquanto discurso e, como tal, depende estreitamente do campo sociopolítico em que se insere. Nessa perspectiva, o surgimento do discurso psicológico emergiu como um acontecimento possível na composição de forças constituintes do mundo moderno. Sob o prisma arqueológico, no qual reflete sobre a importância dos registros discursivos na produção de realidades sociais, Foucault delineia a noção de épistèmé como a rede de ligações que se estabelecem, em cada período histórico, entre os discursos científicos e as produções sociais daí decorrentes, relacionando à cultura os modos de pensar dominantes em determinado contexto ³ . As ciências humanas – a sociologia, a análise das literaturas e dos mitos e a psicologia – nasceram ao final do século XVIII,
com a Épistèmé Moderna, como consequência da fragmentação do campo representacional da Epistèmé Clássica ⁴ e da concomitante assunção do paradigma da racionalidade empírica. Do novo modelo empírico derivaram a Economia, enquanto saber que analisa a produção das riquezas a partir do trabalho humano concebido como a origem de todo o valor objetivo; a Biologia, na forma de um saber que supera a História Natural e apresenta-se capaz de sistematizar e nomear semelhanças e diferenças entre os seres, constituindo-se como uma ciência sobre a vida que toma o homem como ser singular e privilegiado, o único dotado de consciência de si mesmo; e a Filologia, na qual a linguagem passa a assumir papel central na concepção do homem como ser singular, posto que o único dotado da palavra. Portanto, no enfoque discursivo, considera-se que as ciências humanas (FOUCAULT, 2002) só foram possíveis no século XIX a partir da emergência da figura do homem como duplo empírico-transcendental, ou seja, desde o momento em que ele passa a ser visto tanto como sujeito do conhecimento quanto como objeto a ser conhecido, inaugurando uma nova forma de pensamento. Na mesma obra, Foucault também se preocupa com os atravessamentos existentes entre as ciências empíricas e as ciências humanas, considerando que a Psicologia articula-se à Economia enquanto conhecimento sobre o comportamento individual: que tem substancial importância para a produção laboral, justamente no momento histórico em que o valor das coisas passa a ser medido levando em conta a quantidade de trabalho despendido em sua fabricação. Já a Biologia impacta os saberes psicológicos com a noção evolucionista, tomada como paradigma de desenvolvimento e também influente na própria determinação da conduta. Na verdade, o pensamento de Foucault se inclina para a análise das práticas, sejam elas discursivas (como as epistemológicas ⁵ ), sejam não discursivas, quer dizer, dispositivos interligados especialmente às relações de poder que se estabelecem em determinado sistema social. Atentando para as relações dos dispositivos com a arquitetura do poder, Foucault (2000) indica que a repetição de pequenas práticas insignificantes e descontínuas transborda na disseminação das grandes instituições e dos paradigmas sociais. Como eloquente exemplo desse surgimento vil e ordinário, Foucault discorre sobre o nascimento da prisão, que não emerge das grandes teorias penalistas do século XVII ⁶ , mas está atrelado à difusão de duas práticas: as “lettres de cachet” ⁷ e as clausuras, práticas que regulavam o confinamento nos conventos, o regime integral de permanência dos corpos dos operários nas fábricas e dos “doentes” nos hospitais (FOUCAULT, 2003B). Entre os séculos XVII e XVIII, foi inventada uma nova mecânica de poder, em princípio incompatível com a teoria da soberania (FOUCAULT, 2005a): a disciplina. Os mecanismos de poder que caracterizavam a soberania vinculavam-se à terra e aos seus produtos, ao deslocamento e à apropriação dos bens e da riqueza, enquanto que a disciplina se exerce sobre os corpos e sobre o que eles fazem, constrangendo-os no tempo e no trabalho e
sistematizando contínua e permanentemente a vigilância sobre cada indivíduo (FOUCAULT, 2005a). Apesar da separação entre os registros jurídicos e disciplinares, do alheamento das práticas disciplinares frente ao discurso legal, da diferença entre norma e lei (FOUCAULT, 2005a), houve uma espécie de deslizamento e conjugação entre os dois registros na segunda metade do século XIX, no que Foucault (2005b: 41) considera “jogo da dupla qualificação médica e judiciária”, no qual as circunstâncias atenuantes, a qualificação, a apreciação e o diagnóstico do criminoso e a associação entre crime e loucura passaram a prevalecer sobre a ocorrência do crime, emprestando relevo ao criminoso e entrelaçando as práticas jurídicas e disciplinares aos discursos médicos, psiquiátricos e psicológicos. A junção entre os dois tipos de discurso – o judiciário e o médico – circunscreve e inventa o indivíduo perigoso , ou seja, aquele que nem é louco e nem criminoso, mas que eventualmente pode ser perigoso. Além disso, também consolida a noção de perversidade em relação à loucura, ou seja, uma série de constantes biográficas conceituadas no exame médicolegal, como maldade, orgulho ou obstinação, que se organizam através de modelos de moral e família: ... a junção do médico com o judiciário implica e só pode ser efetuada pela reativação de um discurso essencialmente parentalpueril, parental-infantil, que é o discurso dos pais com os filhos, que é o discurso da moralização mesma da criança. (...) é o discurso que não apenas se organiza em torno do campo da perversidade, mas igualmente em torno do problema do perigo social: isto é, ele será também o discurso do medo, um discurso que terá por função detectar o perigo e opor-se a ele. (...) um discurso cuja organização epistemológica [é] toda ela comandada pelo medo e pela moralização. (FOUCAULT, 2005b: 44) Assim, no cumprimento de dupla estratégia de controle diante do perigo social pressentido nas massas e de moralização das condutas, o amálgama médico-jurídico revelou-se estratégia bastante potente na mecânica de poder do século XIX. Da articulação entre os discursos jurídicos e psicológicos no século XIX, centrados na imagem do “indivíduo”, bem como na necessidade de controle do “social”, do conhecimento sobre a psicologia do “criminoso”, da “testemunha” e da “vítima”, podemos depreender que a constituição da psicologia como saber esteve, desde o início, atravessada por demandas jurídicas e morais (FOUCAULT, 2005b; BRITO, 1993). No Brasil, as primeiras ideias “psi” estão associadas ao encontro com as práticas jurídicas e judiciárias, seja no universo da tipificação do louco/ criminoso nas primeiras décadas do século passado, seja na classificação e exame dos “menores” por psicologistas pouco após a promulgação da primeira lei sobre menores, em 1927. Expressando a ambição científica do período em conhecer o homem e a sociedade, a psicologia esteve a serviço de distinguir o indivíduo “normal” e controlar o “desviante” ⁸ . Na consideração de que o saber psicológico se inscreve nos discursos que construíram historicamente o homem na sociedade moderna, cabe pensar
forçosamente que as teorias e práticas psicológicas participam ativamente na constituição de cenários sociais que valorizam alguns comportamentos e repudiam outros. Em outros termos, considerar que a psicologia se constituiu enquanto discurso dependente do campo sociopolítico é radicalmente diferente de pensar que o conhecimento psicológico represente a verdade sobre o sujeito. Nessa perspectiva, a intenção do presente texto é conhecer alguns sentidos das práticas psicológicas que estiveram e estão historicamente presentes nas Varas de Infância e Juventude. Que práticas e alianças vêm sendo hoje construídas pela Psicologia face ao adolescente em conflito com a lei ? É possível problematizar novas formas de inserção dos discursos “psi” ou continuaremos acriticamente perpetuando a existência de infâncias desiguais em nosso país? Privilegiaremos os impactos da produção da categoria menor no Brasil e sua oposição à noção de criança , mapeando os discursos psicológicos na construção desses perfis. Crianças e Menores no Brasil Para compreendermos a invenção de práticas diferentes para as crianças e para os menores no Brasil, é necessário que retrocedamos ao século XIX para conhecermos a intrincada e complexa trama tutelar que o Estado brasileiro modelou para as crianças e os jovens em nosso país. No Brasil, as primeiras menções à expressão menor estão presentes no Código Criminal do Império, definindo as penas aplicáveis no caso de cometimento de crimes “por menores de idade”. A expressão resvalou do universo jurídico para o social ao final do século XIX, passando a designar as crianças nascidas nas camadas mais baixas da pirâmide social. Nesse trajeto, do jurídico ao social, a expressão assume conotação de controle, pois, ao segmentar setores sociais, cria categorias de crianças consideradas “suspeitas” e “potencialmente perigosas”, na associação entre o perigo e a pobreza, tal como sonhara a Epistéme Moderna e tal como o Higienismo propôs logo a seguir. Importante destacar que as dinâmicas sociais presentes no Brasil Colônia, e mesmo no Brasil Império, se caracterizavam pela supremacia do poder decisório dos patriarcas familiares, com ínfima participação do poder público (notadamente da Igreja Católica) ⁹ no âmbito privado.
Segundo Lobo (2008), mesmo com a vinda da Corte para o Brasil os hábitos coloniais permaneceram inalterados em grande parte do país durante o século XIX (com exceção do Rio de Janeiro e da Bahia). Predominavam as pequenas vilas com as habitações parcamente mobiliadas; o convívio indiferente com a sujeira, fosse como estratégia para proteção contra mausolhados e feitiçarias, fosse porque aqui ainda não se desenvolvera uma sensibilidade higiênica; os hábitos familiares de reclusão nos espaços das varandas, “tão isoladas do mundo como se encontrassem nas profundezas de uma floresta...” (PRIORE, 2000: 86-87). Até a transferência da Corte, as famílias da elite pouco iam às ruas, permanecendo no interior das residências com camisolões, pés descalços, seios nus, camisas desabotoadas e chinelas, o que contrastava com o exagero de enfeites nas raras ocasiões em que saíam de casa, quando se cobriam com joias, rendas, sedas e mantilhas (LOBO, 2008). Perigo e pobreza foram paulatinamente associados pelas ciências humanas (antropologia, sociologia, psicologia) pois, desde o advento das Revoluções Burguesas, os aglomerados populacionais e as multidões nas ruas passaram a ser percebidas como potencialmente perigosas e desestabilizadoras da ordem. O higienismo, como discurso médico específico, será peça fundamental na conjugação entre pobreza e risco social, na medida em que se preocupava com a invenção do conceito de saúde, diferenciando-se da medicina clássica, que atuava diante do surgimento da doença. Assim, visando à saúde das populações, o higienismo criou toda uma sistemática de cuidados e controle dos corpos por especialistas em higiene social, o que incidiu na desqualificação dos comportamentos dos mais pobres e na produção de estratégias de controle sobre tais grupos. (COIMBRA e NASCIMENTO, 2003) Naquele contexto, a imagem da criança , inventada pela Modernidade, não existia. Postman (2002) considera que, apesar da crescente importância que o conceito de infância assumiu nos países protestantes europeus desde o século XVI, nos países católicos a instituição infância só apareceu muito mais tarde, com a perpetuação medieval da invisibilização da criança , precocemente associada ao adulto ¹⁰ ou, então, vista como um ser sem expressão social. Essa digressão nos permite compreender o choque cultural de Luccock no Brasil do século XIX, ao presenciar o funeral de uma criança: Foi ouvida uma mãe que assim se exprimia: “Ó como estou feliz! Ó como estou feliz, pois que morreu o último dos meus filhos! Que feliz estou! Quando eu morrer e chegar diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar, pois que ali estarão cinco criancinhas a me rodear e a puxar-me pela saia, exclamando: Entra, Mãe, entra! Ó que feliz estou!”, repetiu ainda, rindo à grande. Se isso fosse um exemplo isolado dos sentimentos maternais estranhos poderia ser considerado efeito de um desvio mental passageiro, o caso porém, é que a satisfação em tais momentos é geral demais... (LUCCOCK, 1820, apud LOBO, 2008: 309) Segundo Postman, o surgimento da infância está diretamente relacionado à invenção da tipografia e à disseminação do livro impresso:
...o Homem Letrado (...) [foi criado]. E ao chegar deixou para trás as crianças. Pois no mundo medieval, nem os jovens e nem os velhos sabiam ler e seu interesse era pelo aqui e agora, o “imediato e local’, como disse Munford. (...) Mas quando [surgiu] a prensa tipográfica (...), uma nova espécie de idade adulta [foi inventada]. (...) Depois da prensa tipográfica, os jovens teriam de aprender a ler (...) e para realizar isso precisariam de educação. Portanto a civilização européia reinventou as escolas. E, ao fazêlo, transformou a infância numa necessidade. (POSTMAN, 2002: 50) Para o mesmo autor, a consolidação da infância seguiu trajetórias distintas nos países católicos e nos países protestantes em razão da valorização da capacidade de ler a Bíblia na língua nacional pelos últimos, opostamente às sociedades em que predominava o catolicismo e, portanto, associavam a leitura às práticas hereges dos reformadores religiosos que contestavam os dogmas oficiais. Em meados do século dezesseis os católicos começaram a se afastar da alfabetização socializada, vendo a leitura como um agente desintegrador (...) e a leitura foi equiparada à heresia. (...) Um dos resultados do desinteresse dos católicos pela tipografia e da aliança que fizeram com ela os protestantes foi uma assombrosa inversão da geografia intelectual da Europa. (...) Entre outras coisas (...) a infância evoluiu desigualmente, porque após a filtragem das complexidades históricas, surge uma equação bastante simples: onde a infância foi sempre altamente valorizada, havia escolas e, onde havia escolas, o conceito de infância desenvolveu-se rapidamente. (POSTMAN, 2002: 51-53) Ratifica essa hipótese a constatação de que a escolarização não era valorizada no Brasil colônia, embora a vinda da família real tenha produzido mudanças nesse panorama. Segundo Lobo (2008), a mudança da comitiva real trouxe consigo os primeiros autores que reconheciam a importância do processo educacional, principalmente no período do 2º Império. Multiplicaram-se os internatos para meninos ricos, justificados por argumentos médico-pedagógicos que avaliavam positivamente o afastamento das crianças de suas famílias pois tais núcleos, recentemente emersos do universo colonial, ainda apresentavam características consideradas nocivas ao desenvolvimento da nova elite que os higienistas se propunham a formar, elite essa que deveria zelar pelos valores burgueses em ascensão. Afastar as crianças dos pais e do mundo externo significava, também, afastálas da cidade, lugar das aglomerações e dos abafamentos. As regras de higiene prescreviam as condições de salubridade dos colégios, a começar pela localização longe do centro da população, em situação mais elevada, em edifício espaçoso, vizinho à vegetação. (LOBO, 2008: 312) Além disso, no Brasil Colônia, o espaço das ruas era ocupado apenas pelos escravos e desclassificados; foi a chegada da nobreza portuguesa que tornou imperativo construir uma dimensão pública na qual as classes dominantes pudessem transitar. Em resposta a tal necessidade, os discursos higienistas estabeleceram concomitantemente a urgência da repressão dos desviantes e desclassificados nos espaços coletivos (que deveriam estar liberados para o
trânsito das famílias de bem ) e a valorização dos espaços privados associada ao cultivo da interioridade (ARIÈS, 1981; SENNETT, 1999). Não por acaso, a presença das camadas mais pobres nos espaços públicos, comum no período colonial, passou a ser vista como potencialmente conflitiva, violenta e contestadora da ordem instituída. A criminalização dos pobres e a patologização dos locais públicos expressavam os temores das classes dominantes e revelaram-se estratégias eficazes para a liberação daqueles lugares para a elite. Ao mesmo tempo, era imperativo investir na construção de um novo imaginário do trabalho, até então amplamente desqualificado pela população livre e branca, que identificava o trabalho como coisa de negro . Assim, fazia-se frente às resistências da população branca em trabalhar e construíase um sentimento de identidade nacional, visto que era comum, ainda no Brasil Império, que a população se identificasse regionalmente. Ser gaúcho , mineiro ou baiano era referência mais central que ser brasileiro (BAPTISTA, 1999). A montagem de sucessivas estratégias discursivas foi crucial para destacar o valor positivo do trabalho (“Deus ajuda quem cedo madruga!”); a disposição do brasileiro para o trabalho, exaltada na frase “Brasileiro é um povo trabalhador!”, parecia ignorar a franca contradição com o fato de que, por mais de três séculos, só os escravos trabalhavam no país. Outras expressões buscavam mais diretamente a coesão e a identidade brasileiras: a frase “ Brasileiro é honesto, brasileiro é alegre”, queria deixar para trás as formas mais tradicionais de reconhecimento que apelavam para os regionalismos. No período marcado pela Independência, pela passagem à República, pela abolição da escravatura e pelos grandes impactos potenciais dessas mudanças políticas, dominava a preocupação com o controle e com a ordem. Nessa conjuntura, o controle dos escravos recém-libertos e a preocupação com a temática da infância se mesclaram nas dimensões médicas, pedagógicas, policiais e jurídicas. O sistema de trabalho abandonava o escravagismo e exigia o disciplinamento das massas, sobretudo porque a oferta de postos de trabalho atraía imigrantes europeus, entre eles os descontentes com a disciplina por lá exigida (RAGO, 1985). A caracterização da irracionalidade das massas e das (psico)patologias sociais se tornaram estratégias de controle dessa multidão populacional que exigia o ingresso no cenário público.
Ademais, é importante enfatizar a contribuição de alguns argumentos eugenistas no incentivo da imigração européia, pois tais teóricos defendiam a importância da melhoria da raça brasileira, que eles avaliavam ter grandes riscos de degenerescência em função da quantidade de negros no país (cerca de ¾ da população), estimulando a entrada de imigrantes brancos que poderiam depurar a descendência (LOBO, 2008). Ao mesmo tempo, destacavam a incapacidade dos negros para se qualificarem pela aprendizagem, considerando-os incapazes para exercerem o trabalho livre, dificultando, ou quase inviabilizando, sua assimilação como mão-de-obra paga, principalmente nas cidades, empurrando-os para o trabalho braçal nas zonas rurais. Delineia-se, portanto, o impacto dos discursos científicos na naturalização das diferenças sociais. Assim, a pobreza foi associada a certos grupos ou indivíduos: a ociosidade, a indolência e os vícios seriam inerentes aos pobres, de modo que a miséria que os afetava seria derivada de sua preguiça e de sua inferioridade. Falamos aqui de um tempo que popularizou a antropometria, a medição de ossos, crânios e cérebros, tecnologia que identificava nos corpos os sinais tangíveis da inferioridade dos mais pobres (COIMBRA e NASCIMENTO, 2003). Assim, os impactos dos saberes científicos que estavam sendo construídos sobre a infância, dentre eles a pediatria, a pedagogia, a puericultura e as influências da Escola Positiva de Cesare Lombroso e de suas noções biodeterministas – a degenerescência, a predisposição ao crime, as tendências antissociais e a transmissão hereditária – revelaram-se fundamentais na diferenciação entre crianças (filhas das famílias ricas) e menores (filhos dos pobres), respaldando e naturalizando a lógica de dominação política pelo viés da anormalidade, da disfuncionalidade e da doença. Essas distinções visavam o enorme contingente de ex-escravos que passou a ocupar as ruas e a preocupar as classes mais altas (SANTOS, 2000b). De fato, a apropriação dos saberes médicos, psicológicos e antropológicos revelou-se estratégia eficaz para controlar esse contingente populacional e tranquilizar as famílias da elite, assustadas com o que os filhos de suas mãespretas lhes poderiam fazer (BATISTA, 2003). Nesse percurso, o corpo biológico é transformado em corpo (e problema) político, já que é expressão e face visível de algo que é da ordem da interioridade, mas que não pode mais fugir nem do escrutínio da ciência nem dos imperativos do controle. Na verdade, como já considerava Donzelot (1986), a distinção entre os conceitos criança e menor expressa origens de classe, sendo a infância nitidamente uma construção burguesa. No Brasil, as famílias provenientes da elite econômica e intelectual foram cooptadas e adestradas pelos discursos médico e pedagógico, que as identificaram com os ideais de conduta que se propunham implementar. Os segmentos mais pobres da população foram atingidos de forma distinta, através da captura de seus comportamentos e do controle de seus corpos pelos registros policiais e jurídicos. Dessa forma, durante todo século XX, a expressão menor
preencheu a necessidade de diferenciar os bem-nascidos e os potencialmente perigosos para a sociedade, introduzindo um traço diferencial entre crianças e menores em situação irregular , a estes últimos creditando riscos sociais de ruptura da ordem. Em função dos riscos que evidenciavam, os menores foram sistematicamente internados, afastados de suas famílias, enquanto que as crianças – que no século XIX tinham sido enviadas para os grandes internatos – passaram a ser educadas junto aos seus núcleos familiares de origem, após o disciplinamento das famílias da elite pelos apelos higienistas (RIZZINI e RIZZINI, 2004; AYRES, 2001). Na identificação das diferenças entre os grupos familiares de acordo com sua origem social, os discursos psicológicos que começavam a influenciar os meios acadêmicos europeus e norte-americanos instituíram parâmetros de normalidade. As condutas boas e saudáveis eram assimiladas aos modelos familiares dos mais ricos, ao passo que os padrões de conduta das camadas mais pobres passaram a ser vistos como desviantes, patológicos ou irregulares, como ocorreu com a condenação da liberalidade sexual e afetiva comum entre os ex-escravos e pessoas pertencentes aos grupos mais baixos do estrato social. A preocupação do projeto preventivista foi o trabalho e a família. (...) Nas fábricas, o cotidiano operário, devido ao grande número de negros e mestiços, foi convertido em risco e necessitado de atenção. A casa ‘promíscua’, o botequim como foco desencadeador do alcoolismo, as praças freqüentadas por vadios, os jogos, o ócio, tudo foi motivo de preocupação; em resumo, a produção científica da época e os programas de higiene mental localizaram no cotidiano das classes populares hábitos nocivos ao equilíbrio urbano. O ‘povo’ sem a tutela médica trouxe o caos à cidade. (BAPTISTA, 1999: 120) A tessitura das leis e instituições dirigidas ao menor Como visto, os conceitos médico-pedagógicos predominaram na definição da criança , enquanto os atravessamentos jurídico-policiais foram fundamentais para a categorização do menor . Não por acaso, a assimilação jurídica dos preceitos higienistas realizou-se, no Brasil, através da construção da Doutrina da Situação Irregular. Essa Doutrina foi a prerrogativa legal utilizada para embasar os dois Códigos de Menores que vigiram no Brasil: o primeiro promulgado em 1927 e o segundo, em 1979. Ressalte-se que, coincidentemente, ambos tiveram suas trajetórias ligadas a ditaduras políticas, sendo que o primeiro antecedeu em poucos anos o Estado Novo de Vargas, enquanto que o segundo foi promulgado em plena Ditadura Militar.
Ambos caracterizavam-se por partilhar o entendimento de que apenas os menores em situação irregular seriam alvo do Poder Tutelar do Estado – o que, na prática, elegia os menores abandonados, delinquentes, pervertidos ou em perigo de o ser, ou seja, os mais pobres. Esta concepção doutrinária identificava os menores como objeto do Direito (ARANTES, 2000) e criava mecanismos que permitiam ao Estado atuar diretamente nesses núcleos familiares: a suspensão do pátrio poder do pai ou da mãe que, por abuso de autoridade, negligência, incapacidade ou impossibilidade de exercer o seu poder, faltasse habitualmente ao cumprimento dos deveres paternos (RIZZINI e PILOTTI, 2009). Aqui, convém salientar que a ação destinada à menoridade era reconhecida, no próprio círculo jurídico, como uma atuação menor, pois, segundo alguns juristas, seus parâmetros não correspondiam aos princípios mais basilares do Direito. Essa avaliação serve como crivo analítico da prática proposta pelo modelo da Situação Irregular: intervenção sobre o menor , enquanto categoria forjada à parte da infância, e sobre sua família de origem, sem qualquer referência aos direitos de um ou de outro; em síntese, uma desqualificação da própria ideologia da igualdade perante a lei. Alegavam os defensores da Doutrina da Situação Irregular que a intervenção do Juiz seria sempre supostamente protetiva, o que garantiria a preservação dos interesses de seus tutelados sem a necessidade do recurso ao contraditório, à ampla defesa ou aos prazos de representação e contestação da sentença. Esses argumentos, contudo, ignoravam o interesse da ordem na criminalização do jovem pobre e na privação de sua liberdade através da internação (BATISTA, 1998), interesse forjado no olhar criminal do século XIX e perpetuado no modelo da Situação Irregular. Não por coincidência, as primeiras referências à utilização do discurso “psi” na sociedade brasileira datam das primeiras décadas do século XX, pouco após a criação do primeiro Juízo de Menores, em 1923, e da promulgação do Código de Menores de 1927, na corrente de preocupações com o destino que deveria ser dado à infância desadaptada e às crianças difíceis . A partir de então, os instrumentos de avaliação e diagnóstico psicológicos foram sendo paulatinamente incorporados pelas instituições de abrigo e/ou correção de menores, a despeito da própria profissão de psicólogo não ser ainda reconhecida à época ¹¹ . Dito de outro modo, o discurso e a prática psicológica sobre a infância caracterizaram-se no Brasil como instrumento de adaptação e controle da menoridade, constituindo-se o menor como um dos primeiros objetos de estudo que se conhece na história da psicologia brasileira (COIMBRA, 2002). Nesse momento, é importante destacar que, durante todo o século XVIII, na constituição das teorias do Direito Penal Positivo, emergiu como principal objeto desta ciência definir o que é o crime, visto como alguma forma de transgressão efetiva a uma norma escrita e codificada. Em contrapartida, durante o século XIX, outro objeto foi sendo paulatinamente elaborado, qual seja, o valor do conhecimento e da identificação da figura do criminoso (FOUCAULT, 2003), sendo secundário o efetivo cometimento da infração à
lei. Pretendeu-se, assim, atuar sobre o criminoso em potencial, sobre sua identidade interior e perigosa, controlando-o antes de qualquer ato criminoso, o que no Brasil foi sancionado através da apreensão por atitude suspeita no início do século XX: Na linguagem policial, a expressão ‘atitude suspeita’ não foi nunca usada para indicar que o jovem estivesse fazendo algo suspeito, mas para indicar que ele era considerado automaticamente suspeito pelos sinais de sua identificação com um determinado grupo social. (BARATTA, 1998: 12) O Laboratório de Biologia Infantil, inaugurado no Rio de Janeiro em 1936, pretendeu constituir critérios para a institucionalização de menores e oferecer subsídios para os programas desenvolvidos nos estabelecimentos correcionais, apresentando os fatores psíquicos, sociais, intelectuais e orgânicos que estariam na gênese do comportamento delinquente. Em outras palavras, o Laboratório queria estabelecer as bases científicas para a destinação asilar e para o tratamento dos menores qualificados em situação irregular e submetidos à tutela estatal. O que se pretendia era constituir um conjunto de critérios científicos para embasar as decisões judiciais, numa época em que a sociedade conferia grande crédito à ciência (OLIVEIRA, 2001). É digno de nota que, na composição da equipe do Laboratório de Biologia Infantil, estivesse representada a nata da intelectualidade de então; por seu intermédio, a sociedade brasileira foi apresentada às teorias mais avançadas da época, incorporadas do pensamento europeu com claros propósitos de controle social. Entre outros saberes, a psicanálise era, nas palavras de Nunes (1992: 72), valorizada enquanto um saber que poderia se tornar um instrumento útil para os programas de eugenia (...). O que interessava era a possibilidade que alguns de seus postulados abririam para o projeto de controle e transformação dos indivíduos. Com a anexação do Laboratório de Biologia Infantil ao Instituto Sete de Setembro em 1938, torna-se ainda mais claro seu modelo de ação: investigar e classificar social, médica, pedagógica e psiquicamente o menor , como meio de promover o resgate do “desviante, enquadrando-o à normatividade dos registros de mão-de-obra infanto-juvenil” (OLIVEIRA, 2001: 240). Vê-se assim que a apropriação de discursos psicológicos foi útil para capturar, objetalizar e adestrar os menores. As décadas que se seguiram assistiram à crise do complexo tutelar de assistência à infância, nos moldes propostos pelo Código de Menores de 1927. Essa crise tinha raízes tanto na crítica contundente aos parâmetros de exclusão e repressão que imperavam nas políticas para a infância quanto na necessidade de desonerar um sistema que se havia agigantado. Outra crítica relacionava-se à extrapolação da ação dos Juízos de Menores para além da esfera judicial, através da atuação no que seria (ou deveria ser) de competência executiva. No plano das práticas, as instituições alteraram a forma de tratamento destinado às famílias dos internos, passando a reinvesti-las de autoridade. O discurso oficial passou a defender a internação como último recurso e a postular que os menores fossem mantidos junto a seus familiares. Paralelamente, as primeiras ideias de defesa da importância da adoção de
crianças passaram a ser apresentadas à sociedade, pela primeira vez desvinculando a adoção de um cunho patrimonial e dando-lhe caráter assistencial. Na realidade, a proposta de que as famílias “abrissem seus corações” a novos membros não era habitual entre os brasileiros das primeiras décadas do século XX, que normalmente utilizavam o recurso jurídico da adoção para legitimar filhos bastardos, diante da inexistência de filhos legítimos, evitando-se que os bens familiares fossem herdados por outros que não os membros da família. Em 1959, a ONU sanciona a Declaração de Direitos da Criança, cujos efeitos, embora não tenham sido imediatos, marcarão as gerações futuras do pensamento sociojurídico brasileiro. Pouco depois da elaboração da Carta da Assembleia das Nações Unidas, aconteceu o Golpe Militar no Brasil, em 1964. A Política de Segurança Nacional pautava todas as ações federais e, neste contexto, também a menoridade foi alçada à condição de problema de segurança máxima. O regime militar proclamava que os grupos de menores que circulavam livremente pelas vias públicas colocavam em risco a segurança coletiva, pois participavam ostensivamente de crimes contra o patrimônio, seriam autores de homicídios (BAZÍLIO, 1985) e por isso deveriam ser controlados e contidos. Em consequência, o Estado passou a adotar um conjunto de medidas que tem por alvo a conduta antissocial do menor , como o recolhimento de jovens pela polícia e seu posterior encaminhamento à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), criada em 1964. O segundo Código de Menores surge no período da abertura política e se constitui numa tentativa de responder às críticas ao modelo repressivo em vigor, que ecoavam discussões internacionais sobre o garantismo legal e a criminologia crítica. Cedendo a essas críticas apenas em questões menores e em aspectos pouco relevantes, a lei Nº 6.697 – promulgada em 1979 – manteve a concepção de menor como objeto jurídico, na perspectiva doutrinária da Situação Irregular. O texto abria mão da classificação da infância em abandonada ou delinquente , mas disfarçava a categoria abandonado na análise das condições sociais e econômicas da família, defendendo a falta de condições materiais da família como argumento jurídico para a cassação, temporária ou definitiva, do pátrio poder. Com base em tais paradigmas, o Código de 1979 ampliou em muito o poder dos magistrados, praticamente centralizando sobre os juízes o poder de acusar, defender e sentenciar os processos sobre sua responsabilidade. As críticas ao Código de 1979 evidenciaram-se desde a sua promulgação e, na esteira do processo de redemocratização da sociedade brasileira, movimentos sociais se manifestaram a favor da publicação de um novo texto para a infância e juventude, articulando-se através do Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente (o Fórum DCA), cujo principal alvo político era a Reforma Constitucional. Esse movimento conquistou importante vitória ao inscrever, no texto constitucional de 1988, pela primeira vez na história brasileira, a concepção da criança e do adolescente como cidadãos e sujeitos de direitos sociais, políticos e jurídicos. O Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA, Lei 8069/90) é o texto legal que consolida esses direitos constitucionais. A Doutrina da Proteção Integral é a principal inspiração do ECA e se insere no contexto em que o Brasil assume – diante da comunidade internacional – o compromisso de implementar e defender a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção dos Direitos da Criança de 1989. Destaquese que o Brasil foi o primeiro país da América Latina a considerar tais normativas na constituição de uma lei para a infância e a adolescência. Dentre as inúmeras inovações introduzidas pelo ECA, enfatiza-se a submissão do texto legal aos princípios, regras, técnicas e conceitos da ciência jurídica: ao Juiz, cumpre compor litígios; ao Ministério Público, incumbe fiscalizar a lei e a titularidade das ações protetiva e socioeducativa; o advogado ou o defensor público devem representar a criança e o jovem no interior do processo legalmente constituído; as questões da Política Social passam à responsabilidade das administrações locais; além de ser nítida a valorização das avaliações da equipes técnicas interprofissionais, introduzindo o profissional psicólogo no quadro institucional das Varas de Infância e Juventude. A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente restituíram às crianças e aos menores brasileiros, ao menos na letra da lei, a igualdade jurídica. Apesar da importância dos dispositivos mencionados, no início da década de 1990 assistimos à entrada dos discursos neoliberais no cenário político brasileiro, o que, na prática, representou enorme entrave para que os princípios e ideais constitucionais e estatutários fossem efetivamente aplicados. Assim, o neoliberalismo redimensionou o papel do Estado, desqualificando a participação estatal nas políticas sociais de base (saúde, educação, trabalho etc.) e propugnando a filosofia do Estado Mínimo, caracterizada pelo retraimento nas ações sociais e incremento de sua face penal. Apesar da nova legislação propor a substituição do termo estigmatizante menor pelas expressões criança e adolescente , estas não são usadas ainda pela maior parte dos operadores do Direito (BULCÃO, 2002). Esse pode ser considerado um sinal de que, em que pese a promulgação do ECA, prevalece entre os operadores jurídicos o imaginário menorista. Observamos ainda que algumas ações estrategicamente dificultaram a efetivação do Estatuto , como ocorreu com o Juízo de Menores no Rio de Janeiro, criado em 1923 e que, em 1989, foi desmembrado em duas varas, sendo a 2ª Vara da Infância e Juventude formada com a competência exclusiva de processar e julgar os atos infracionais praticados por adolescentes. Tal ato tem sido alvo de vários questionamentos pois, se um dos principais pressupostos do Estatuto é a superação da distinção histórica entre as categorias menor e criança, a criação de um Juizado com a competência exclusiva de examinar os feitos relacionados à infração e ao delito termina por ratificar espaços de segregação, estigmatização e exclusão social, remetendo o jovem autor de infração penal a um atendimento jurídico diferenciado. Dessa forma, tal desmembramento choca-se com a concepção doutrinária da Proteção
Integral, construindo (ou mantendo) estruturas que se pautam no discurso penalista e criminalista (CURY, SILVA e MENDEZ, 1996). Com essa separação, o Tribunal de Justiça Fluminense assumiu posicionamento que deu margem a interpretações judiciais que cindiram a aplicabilidade das medidas protetivas e socioeducativas de acordo com a clientela atendida. Como desdobramento desse entendimento, a dimensão protetiva seria aplicável aos carentes , enquanto que somente a medida socioeducativa seria cabível aos infratores , interpretação que contradiz a própria lei 8069/90 (ECA), que estabelece a garantia de aplicação de medidas protetivas ao adolescente, ainda que cometa atos infracionais. Além disso, ancorado na inimputabilidade penal prevista no artigo 228 da Constituição Federal, o cometimento de infrações por adolescentes deverá ser compreendido através dos princípios previstos na Doutrina Proteção Integral, ou seja, deve-se avaliar e considerar quais sejam as medidas protetivas e socioeducativas mais adequadas para transformar positivamente a conduta dos jovens, pugnando por sua reeducação e ressocialização. Assim, contrapondo-se à segregação, estigmatização e penalização dos Códigos de Menores, o ECA propõe a inclusão social, a defesa de direitos das crianças e jovens e a aplicação de medidas protetivas e socioeducativas. Todavia, a perspectiva criminalizante e punitiva prevista nos Códigos de Menores inspira ainda parte expressiva das práticas institucionais que se dirigem aos adolescentes que cometem atos infracionais. Por sua vez, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança (CONANDA), órgão responsável pela deliberação e fiscalização de políticas de atenção a crianças e adolescentes em nível nacional, instituiu em 2006 o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), dispositivo que padroniza nacionalmente os procedimentos jurídicos que devem ser seguidos para os adolescentes em conflito com a lei, desde a apuração do ato infracional até a aplicação das medidas socioeducativas. Dentre outras transformações no atendimento, o SINASE prevê alterações na arquitetura das unidades de internação do sistema socioeducativo, que deverão atender, no limite, a 90 adolescentes por vez, em quartos para no máximo três jovens. Outro ponto destacado é a horizontalidade das construções, bem como priorização do direito à educação, saúde, lazer, cultura, esporte e profissionalização. Além disso, corroborando os resultados de pesquisas internacionais que associam elevados índices de reincidência à maior institucionalização, o SINASE prioriza as medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida) em detrimento das restritivas de liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento educacional), na perspectiva de que as duas últimas só devam ser aplicadas excepcionalmente e de forma breve. ¹² O Estatuto da Criança e do Adolescente contempla as mais modernas reflexões na área: seus princípios pautam-se na adoção plena de institutos jurídicos de defesa de direitos; oferecem as diretrizes e os meios para a formulação e a implementação de políticas públicas em prol da dignidade, da igualdade e da liberdade das crianças e jovens brasileiros; tratam o ato
infracional segundo os mais modernos parâmetros internacionais. Contudo, sua implementação efetiva requer condições para o exercício pleno da cidadania. Essas ainda não estão dadas. Desse contraste decorre o discurso recorrente segundo o qual não se instituiu a aplicação integral do texto legal. A distância entre as assertivas legais e as práticas em curso é preenchida pelos diversos atores segundo as formas como a sociedade consegue assimilar as propostas de mudança. Essa assimilação, por sua vez, é atravessada pelo impacto da mídia, que frequentemente conclama à punição, à prisão ou à internação dos jovens infratores, em particular se são pobres, fomentando a cultura do medo e a projeção paranoica dos temores sobre os destituídos. Nesse sentido, é importante analisarmos um discurso que vem ganhando fortes adeptos entre os juristas: aquele que prega que o inadequado funcionamento do sistema socioeducativo é derivado da ausência de um Direito Processual Penal Juvenil ¹³ . Alega-se que a constituição de um ramo de direito especializado garantiria a execução correta das Medidas Socioeducativas (MSE) que, aí sim, pugnariam pela ressocialização e reeducação. Em nosso entendimento, contrariamente, o precário funcionamento do sistema socioeducativo se articula à continuidade do olhar penal sobre o adolescente em conflito com a lei, ou seja, a prevalência da convicção de que o adolescente que comete algum ato infracional é um criminoso e que a internação nada mais é do que uma prisão juvenil. Importante frisar que o sistema jurídico brasileiro tem como pilares as normativas ditadas pela Constituição Federal de 1988 e que o artigo 228 esclarece que “ são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” , ou seja, a Carta Magna determina que os adolescentes jamais possam ser considerados como criminosos , o que é distorcido todos os dias nas práticas jurídicas e policiais que apresentam atos infracionais a partir das leis penais, mencionando os artigos do Código Penal (lei 2.848/1940) e da Lei de Entorpecentes (lei 11.343/2006), em flagrante contradito com o texto constitucional. Alegam tais atores que esta prática se justifica pelo artigo 112 do ECA, onde o ato infracional é definido como análogo ao crime ou à contravenção penal. Cabe aí a compreensão do que seja analogia ou comparação, ou seja, estratégias de aproximação de sentido, mas jamais de formação de identidade. Assim, na comparação estabelecida pelo legislador, o ato infracional não é tornado idêntico ao crime ou à contravenção penal, devendose considerar inclusive a abissal distância existente entre os princípios que regem a pretensão punitiva do direito penal e a concepção de proteção integral da pessoa em desenvolvimento – base doutrinária e principiológica que atravessa todo e qualquer processo que incida sobre crianças e adolescentes em nosso país. Por outro aspecto, mesmo que queiramos utilizar o Direito Penal como referência judicativa, esta não se sustenta no momento de caracterização do ato infracional praticado por adolescentes, pois os princípios existentes na perspectiva penalista consideram que, na hipótese de existência de duas leis
que rejam um ato criminoso, deverá forçosamente prevalecer aquela que possa favorecer ao réu sobre todas as demais (POLASTRI, 2009), o que, no caso em análise, indiscutivelmente é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Outro princípio jurídico que pode ser invocado deriva da ideia de que, entre uma lei geral e uma lei especial, prevalecerá a lei especial, ou seja, novamente, o ECA. Consoante o que dispõe o SINASE, não é demais destacar que há de se priorizar sempre que a criança e o adolescente que cometam um ato infracional sejam inseridas em medidas efetivamente protetivas e socioeducativas que pugnem por sua ressocialização e reeducação, não se concebendo, na correta interpretação dos princípios do ECA, que o caráter penal se dissemine para esta faixa etária. Donde cabe produzir os questionamentos a seguir: 1. Por que, no julgamento de segunda instância de processos de atos infracionais praticados por adolescentes, a competência para julgar recai sobre Câmaras Criminais ¹⁴ ? 2. Não seriam tais práticas afrontas ao preceito constitucional de inimputabilidade, na medida em que naturalizam a perspectiva criminal para os constitucionalmente inimputáveis? 3. Por que não criar turmas recursais próprias para a apelação de processos oriundos dessas varas, principalmente na concepção da especificidade da lei e do sistema de atendimento nas dinâmicas que se relacionam à questão da infância e juventude? Em suma, acreditamos que, apesar de hoje já ser fato suficientemente conhecido que as penas privativas de liberdade fracassam de forma reiterada em suas proposições preventiva e corretiva – o que, na análise de Baratta (1999), parece estar articulado a objetivos velados do próprio sistema penal –, o propósito punitivo permanece como emblema-mor da rede penal, sendo amplamente divulgado pela mídia formadora de opinião. De forma eloquente a perspectiva penal vem prevalecendo atualmente. Muito embora pretenda, como na primeira metade do século XX, o controle dos corpos e espaços potencialmente úteis para o mercado de trabalho, a prisão objetiva na nova lógica social a posse do tempo daqueles que são privados de sua liberdade (VIRILIO, 1996). Tal transformação é exemplificada na transformação dos clamores sociais diante da ideia da prisão. Assim, verificamos claramente que a profissionalização dos apenados perdeu sua razão de ser, ao passo que as demandas se repetem para que os prisioneiros permaneçam, pura e simplesmente, mais tempo presos, não para serem transformados positivamente nesse período, mas controlados no tempo em que a pena durar. Em todo caso, os questionamentos sobre o alcance das leis sobre os adolescentes não devem se restringir aos juristas, devendo ser exercício de cidadania de todo brasileiro e especificamente dos profissionais que trabalham com este público.
Alguns caminhos vêm se revelando mais receptivos à diferença, e veremos, a seguir, a formação do paradigma da Justiça Restaurativa no Brasil e como esse modelo pode nos apontar diretrizes que compatibilizem o princípio da Proteção Integral e a aplicação das medidas socioeducativas. Justiça Restaurativa no Brasil: o ECA e a responsabilização do adolescente em conflito com a lei O Brasil vem assistindo, desde 2003, à consolidação de três experiências pioneiras de práticas restaurativas, através da parceria estabelecida entre o Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (SLAKMON, VITTO e PINTO, 2005). A proposta do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” é participar da constituição do processo restaurativo como meio alternativo à resolução de conflitos no país. A iniciativa brasileira encontra amparo nas Resoluções promulgadas pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (26/1999; 14/2000 e 12/2002), que estabelecem princípios para construção de programas restaurativos no âmbito da Justiça Criminal, bem como na Declaração sobre os Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crimes e Abusos de Poder, produzida pelo ONU em 1985, que apresenta de forma inédita a ideia de que a atenção e cuidado com a vítima também sejam parte das políticas criminais. Nas Resoluções mencionadas, a ONU apresenta uma base ampla de princípios, procedimentos e resultados que definem o que se espera das práticas restaurativas, mas sem limitar as possibilidades de experimentação e constituição de processos díspares em função das diversidades regionais e culturais. Assim, merecem destaque as várias modalidades de aplicação dos processos restaurativos em países como a Argentina, Colômbia, África do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Estados Unidos. Atualmente, estão em curso no Brasil os projetos-piloto de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre (PINTO, 2005). Dentre estes, dois especificamente abordam dinâmicas envolvendo adolescentes em conflito com a lei: São Caetano do Sul e Porto Alegre. Apesar de tratarem da mesma população-alvo, os projetos de São Caetano do Sul e de Porto Alegre são substancialmente diferentes entre si, não obedecendo a um único modelo. Na primeira cidade, as intervenções acontecem nas escolas da rede municipal de ensino e consistem basicamente na formação de círculos restaurativos em que se fazem presentes adolescentes envolvidos em conflitos no ambiente escolar (ofensores e vítimas), um facilitador, uma liderança pedagógica, conselheiros tutelares e familiares dos adolescentes envolvidos. Apesar do apoio prestado pela Vara da Infância e Juventude local, os encontros e procedimentos ocorrem fora do espaço do Fórum, priorizando-se o ativismo comunitário. Em Porto Alegre, todavia, o foco é distinto, pois as práticas restaurativas acontecem no interior da Vara de Infância e Juventude, com a presença de facilitadores (normalmente membros das equipes técnicas interprofissionais do Juízo, ou seja, psicólogos e assistentes sociais), adolescentes (autores)
que já tenham processo de ato infracional instaurado naquele juízo, as vítimas dos atos praticados e familiares de ambas as partes. O procedimento apresenta consequentemente cunho judiciário, embora seja protagonizado por todos os interessados no deslinde do conflito. Em ambos os projetos, os resultados são muito positivos, indicando que a reincidência é praticamente inexistente e que o nível de satisfação das pessoas envolvidas é bastante elevado: ao término dos círculos ou reuniões restaurativas, os participantes vêm expressando que se sentiram atendidos em suas necessidades, entendendo que alcançaram a solução mais justa e viável para todos. Para que isso ocorra, parece fundamental que o ofensor possa encontrar apoio no grupo, conseguindo ressignificar seus atos, compreendendo-os do ponto de vista da vítima e reorientando seus posicionamentos; igualmente essencial é que a vítima também se sinta amparada e acolhida, de forma a poder expressar seus sentimentos e elaborar suas vivências traumáticas. O paradigma da Justiça Restaurativa é bastante oportuno na formação de uma nova cultura jurídica e social mais comprometida com o que ECA preconiza há quase vinte anos. Na ênfase da responsabilização, da participação ativa e do protagonismo juvenil, detectamos valiosos instrumentos para consecução das metas almejadas pela lei especial, ou seja, a reeducação, a ressocialização e a ressignificação pelo adolescente dos atos que vier a cometer. Além disso, a Justiça Restaurativa conclama toda a sociedade a se coresponsabilizar por construir uma realidade mais digna e mais justa, na acepção mais abrangente do que seja justiça social. Psicologia e Direito: Desafios do Presente Em 1992, na então recém-criada Vara para atendimento exclusivo de adolescentes em conflito com a lei (a 2ª Vara da Infância e Juventude, sob titularidade do MM Juiz Siro Darlan), foi criado o primeiro Núcleo de Psicólogos atuantes no Tribunal de Justiça do Estado, através do desvio de função de profissionais concursados para outros cargos. O Núcleo se manteve até fevereiro de 1999 e foi politicamente atuante, inclusive interpondo-se tecnicamente à naturalização de algumas dinâmicas institucionais para o adolescente em conflito com a lei.
Em 1998, no Rio de Janeiro, foi realizado o primeiro concurso de psicólogos para o Tribunal de Justiça do Estado, sendo os primeiros profissionais “psi” convocados, em fevereiro de 1999, para atuarem em Varas de Família; de Infância e Juventude e na Vara de Execuções Penais. A entrada dos psicólogos concursados no sistema foi atravessada por peculiaridades das Varas de Justiça em que foram lotados, caracterizando-se o início das atividades pela existência, ou não, de alianças com as assistentes sociais, com os funcionários dos cartórios, com a rede de recursos existentes e, também, com os juízes. Tão logo ocorreu a inserção dos primeiros psicólogos, delinearamse diversas demandas a este grupo profissional, principalmente a elaboração de laudos periciais anteriores ao momento das audiências judiciais, de modo a melhor embasar a decisão do magistrado. Além disso, solicitações de acompanhamentos posteriores às audiências e encaminhamentos para a rede também se tornaram reiteradas. Desde então, uma série de questionamentos sobre os alcances e limites éticos que atravessam as práticas psicológicas vem se constituindo, o que se torna nítido nos diversos encontros promovidos pela categoria em todo o Estado, ocasiões em que se discutiu desde a importância da devolução das entrevistas aos sujeitos atendidos (inclusive quando em conflito com a lei), a problematização sobre o que um laudo deve conter (preservando o sigilo sobre temas e questões que não tenham relação com o processo) e, ainda, sobre a implicação dos sujeitos nos processos em que estão envolvidos. Efetivamente, reconhecer que uma das principais contribuições do psicólogo consista em resgatar a autoria dos envolvidos na dinâmica processual é assunto exaustivamente explorado por psicólogos que atuam nas Varas de jurisdição voluntária. Mas o que dizer sobre a possibilidade de as pessoas participarem de processos de jurisdição não voluntária – quando o Estado inicia a ação, como é o caso dos processos de atos infracionais praticados por adolescentes – e se tornarem sujeitos nessas situações, podendo transformar o processo judicial em um instrumento de afirmação e potência subjetivas? Para tanto, o reconhecimento do potencial político da psicologia é essencial para pôr em marcha algumas práticas que apontam para a resolução desse impasse, tais como: cursos de sensibilização dos cartorários e funcionários das instituições que trabalham com Varas de Infância e Juventude diante da mudança de paradigma trazida pelo ECA; formação de alianças e de práticas alternativas ao projeto penal-represssivo, como a Justiça Restaurativa; além da própria utilização do laudo como instrumento político de marcação de singularidade e afirmação da diferença. Sobre esse último aspecto, e sem qualquer pretensão de construir modelos, partilhamos uma interessante experiência sobre a qual foi demandada a confecção de um laudo psicológico há alguns anos. Foi solicitado que produzíssemos um estudo psicológico sobre o adolescente Antônio ¹⁵ , 13 anos, com vistas à sua transferência para uma unidade de semiliberdade. O adolescente ficou abrigado desde os sete meses, permanecendo na primeira instituição asilar que funcionava sob regime de casa lar até os 9 anos, sendo depois transferido para outras três instituições, dada a dificuldade de vagas para meninos em sua cidade natal. Apesar do abandono familiar que vivenciou desde bebê, o processo de Destituição de Poder
Familiar só foi proposto quando a criança já estava com 9 anos, o que dificultou sua colocação em família adotiva, tendo sido realizada uma única e fracassada tentativa de adoção, aos 12 anos. Antônio já havia retornado há sete meses para o abrigo quando fugiu da instituição, sendo encontrado na estrada rodoviária que circundava o município. Ao ser encaminhado para o Conselho Tutelar, Antônio disse que se chamava João, que se perdera de sua família, que era muito feliz com seus pais e que desejava reencontrá-los. Ao tomar conhecimento do ocorrido, a direção do abrigo solicitou que o adolescente fosse transferido para uma “instituição para menores infratores”, posto que havia cometido “crime de falso testemunho” e que já teriam tido problemas com Antônio anteriormente, já que o jovem teria solicitado uma camisa de presente de aniversário e depois a teria “destruído”, levando-a para o colégio, onde a roupa foi assinada por todos de sua classe. Essa decisão foi ratificada pelo parecer da equipe técnica. O pedido de elaboração do estudo à equipe técnica do Juizado procurava manter um olhar punitivo que se dirigia sobre o menino e não construía uma relação com o mesmo. Na elaboração do texto, procuramos destacar o quanto Antônio era invisível na instituição em que estava há quase um ano e que não conseguia dimensioná-lo em sua complexidade, atentando para alguns de seus comportamentos e ignorando outros. Assim, o desejo de uma outra história (tal como a que contou para o conselheiro tutelar) e a vontade de tornar seu um objeto que lhe foi dado (tal como fez com a camisa que lhe deram) eram condutas identificadas negativamente pelo abrigo, tomadas como comportamentos destrutivos e até “criminosos”. Anteriormente ao laudo e à posterior devolução verbal que fizemos, o abrigo não questionara a responsabilidade do Estado na longa institucionalização daquele adolescente e, principalmente, no que o próprio Antônio pensava sobre tudo aquilo. Na intervenção, procuramos desmontar a produção do perfil delituoso que estava sendo imputado ao adolescente, implicando o abrigo nesse processo e demarcando a escolha de lentes que montaram um olhar de desconfiança e culpa sobre aquele jovem. Concluindo de forma não conclusiva A ciência é formada por repetições, padrões e assujeitamentos e o discurso psicológico há muito oscila entre a sedução do cientificismo e a assunção de posicionamentos mais críticos e políticos no mundo. Problematizar as articulações entre as aspirações científicas no discurso psicológico e a trajetória das práticas, que historicamente vem sendo constituídas pela psicologia frente à infância e juventude brasileiras, foi o propósito do presente texto. No atendimento às demandas da instituição judiciária, há sempre o risco de ratificarmos o entendimento estereotipado de um certo discurso jurídico sobre as pessoas que são as “partes” nos processos, impondo a elas os efeitos do saber psicológico, sem que efetivamente atuemos na defesa da subjetividade e da singularidade. Atentos às filigranas no processo avaliativo dos indivíduos, escapa-nos justamente que, na repetição da relação de
poder, “objetalizamos” os sujeitos que supostamente deveríamos acolher e escutar. Como perpetuadores de uma visão (clássica) da psicologia, consideramos muitas vezes que a qualidade da prática psicológica depende da capacidade de estabelecer diagnósticos através do recurso a técnicas formais. Nessa concepção, o psicólogo trabalha acriticamente diante da positividade da lei, distante e inatingível, que não deve ser questionada ou sequer conhecida, não sendo parte do conhecimento “psi” ¹⁶ . Consideramos fundamental atentarmos para a importância e urgência do questionamento ético-político das nossas práticas, o que implica inclusive o conhecimento da lei e de sua efetividade na sociedade. Além disso, já é hora de refletirmos sobre as crescentes demandas que são lançadas aos psicólogos do Judiciário em todo o país, pois entendemos que a instituição judiciária é palco de várias relações de poder, sendo evidente que o discurso psicológico forçosamente expressa posições diante das relações que ali se constelam, seja ratificando o instituído e docilizando os corpos na malha judiciária ¹⁷ , seja colocando-se a favor, consoante as palavras de Basaglia, da “positivação e politização da criatividade [como] estratégias de enfrentamento ao silêncio e à indiferença” (BAPTISTA, 1999: 117). Será possível construirmos uma realidade de práticas de liberdade e não de assujeitamento dentro da instituição Judiciária, ou nos amansaremos através de constructos assépticos que constroem a “patologia do adolescente”, a “imaturidade parental” ou a “repetição de padrões familiares”? Na indagação preciosa de Mello, ...será possível olhar as pessoas, sentir o cheiro das gentes, molharse com as águas da pobreza das ruas e ainda assim estar falando de psicologia? (...) Podemos, num ato voluntário de reconhecimento, aproximarmo-nos da humanidade que procura se furtar aos olhares carregados de desprezo e ou indiferença? (MELLO, 1999: 10) Acreditando que é possível a militância no espaço público e o estranhamento à indiferença e apatia dominantes, implicamo-nos na construção de um presente e um futuro em que a atenção à singularidade seja o norteador do trabalho diante de crianças, adolescentes e suas famílias, pois apostamos no encontro, como no dizer do poeta: Estou preso à vida e olho meus companheiros, estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Carlos Drummond de Andrade, Mãos Dadas. Bibliografia ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família . Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1981.
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3 “O descontínuo – o fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo (...). Em última análise, (...) as relações do pensamento como cultura” (FOUCAULT, 2002: 69). 4 No modelo epistemológico clássico, as ideias de ordenação, medição e representação estavam na base da relação com o mundo. Naquele contexto, a tarefa do ego cogito consistia em “reproduzir a ordem do mundo e não produzi-la” (CASTRO, 2009: 121). 5 Por práticas discursivas compreendemos “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram para uma época dada e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT apud CASTRO, 2009: 337). 6 Que pensavam primordialmente nas penas de morte, de suplício e humilhação, de talião e de degredo, como formas exemplares de castigo. 7 As lettres de cachet , que em português poderiam ser traduzidas como “cartas de encarceramento”, eram práticas em que pessoas comuns demandavam ao soberano que seus desafetos fossem presos, encarcerados até “aprenderem seu erro” e modificarem seu comportamento. Assim, filhos que colocassem em risco a honra do clã, devedores etc., seriam submetidos a tal procedimento, que, na época, não era identificado com uma pena, mas como estratégia de correção eficaz. A disseminação do modelo prisional procede, portanto, de práticas sociais que originariamente não foram pensadas juridicamente, tendo uma origem totalmente diversa. 8 A esse respeito, consultar as duas edições de Clio-psyché – Histórias da Psicologia no Brasil, ambas organizadas por Jacó-Vilela, Jabur e Conde Rodrigues; a primeira foi publicada em 1999 pela EdUERJ e a segunda, em 2001 pela Relume-Dumará. Ver ainda a coletânea organizada por Brito, Temas de Psicologia Jurídica, publicada em 1999 pela Relume-Dumará. 9 No período colonial o Tribunal da Inquisição esteve presente por três vezes no Brasil, em 1591 e 1618 na Bahia e em 1763 no Grão Pará, objetivando o controle sobre os cristãos-novos, detentores de riquezas que interessavam ao Reino português, além de também pretender evitar a “perdição da alma” das classes dirigentes que aqui habitavam, em contato direto com gentios e ex-judeus (LOBO, 2008: 77-78). 10 Freyre nos conta que, no Brasil Colônia, meninas e meninos, tão logo cumpriam o sacramento da primeira comunhão, eram automaticamente considerados adultos, podendo inclusive se casar (FREYRE, 2000). 11 A profissão “psicólogo” só viria a ser reconhecida legalmente no Brasil em 1962. 12 As discussões internacionais contemporâneas têm ressaltado a importância da descriminalização dos jovens, em particular no cometimento de "delitos de bagatela”. Entende-se que delitos menores, quando praticados por jovens, inscrevem-se em um processo amplo de descoberta de limites e
testagem da autoridade. Além disso, estudos recentes mostram que a repressão do Estado não reduz sua incidência. Ao contrário, faz com que ela aumente (SANTOS, 2000: 169-179). 13 Tramita atualmente no Congresso Nacional projeto de lei sobre a Execução das Medidas Socioeducativas nesta perspectiva (GOMES NETO e RUIZ DIAZ, s/d; ARANTES, 2004). 14 O Judiciário brasileiro tem constitucionalmente a previsão de que as pessoas insatisfeitas com as decisões de primeira instância dos juízes monocráticos (chamadas sentenças) podem recorrer a uma instância superior, hipótese em que seus processos serão julgados por grupos de desembargadores, que se reúnem em Câmaras, sendo suas decisões nomeadas como acórdãos. Em nosso país, a regra é de que os recursos derivados de processos de Varas de Infância sejam julgados em Câmaras Cíveis, com exceção dos atos infracionais praticados por adolescentes que, como no Rio de Janeiro, podem ser remetidos para Câmaras Criminais. Conforme já problematizado, essa prática considera subliminarmente a aplicabilidade do olhar penal ao adolescente em conflito com a lei, mesmo em contradição com o texto constitucional. 15 Os nomes das pessoas foram trocados com o objetivo de preservação das identidades. 16 A criminologia crítica, desde a década de 1970, alerta sobre a seletividade do sistema penal, que torna criminosas algumas condutas, enquanto naturaliza outras. Coimbra e Ayres tecem interessante análise sobre o papel que a criminalização da pobreza desempenhou na separação entre crianças e seus responsáveis no Brasil recente. Embora desde o advento da Constituição Federal de 1988 a miséria não possa mais ser elencada como razão para ruptura de laços familiares, a culpabilização dos núcleos familiares mais pobres continua agora sob a chancela da “violência doméstica” e da “negligência” (COIMBRA e AYRES, 2009). 17 Recordamo-nos nesse momento das palavras de Ramos e Shaine que, na apresentação do trabalho do psicólogo em São Paulo, referem-se à ideia de que é demandado ao psicólogo que “cozinhe” os conflitos, demarcando que, na acomodação dos primeiros psicólogos no Fórum de São Paulo, os locais escolhidos foram a cozinha e a copa (RAMOS e SHAINE, 1994). A INTERLOCUÇÃO COM O DIREITO À LUZ DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS EM VARAS DE FAMÍLIA Eduardo Ponte Brandão A prática do psicólogo em Varas de Família exige conhecimento básico dos códigos jurídicos que regulam as alianças no Brasil, e isso se deve a duas razões principais. Em primeiro lugar, há necessidade de um código compartilhado entre o psicólogo e os demais membros da equipe interprofissional, incluídos os operadores de Direito. Estes, como se sabe, surpreendem-se com os arranjos amorosos e familiares de hoje em dia, o que leva a uma interlocução entre os
mais diversos saberes. Sem o respaldo da equipe interprofissional, a ação do Juiz parece insuficiente para regular as relações entre os sexos e o parentesco. Em contrapartida, sem a compreensão exata do contexto onde se inscreve sua prática, o psicólogo não faz mais do que se esfalfar com os remos do barco na areia. De nada adianta se restringir à especificidade de seu campo, se o psicólogo desconhece, por exemplo, os critérios jurídicos que norteiam a decisão de uma guarda ou os deveres e direitos parentais. As referências usadas pelo psicólogo devem comunicar com as do Juiz, mesmo que as conclusões entre um e outro divirjam. Caso contrário, o psicólogo não poderá contribuir para o desenlace das dificuldades e dos conflitos com os quais o Judiciário se embaraça. Em segundo lugar, no atendimento à população, o psicólogo se depara com argumentos cujos valores já foram revistos e substituídos em lei. Assim, não é raro escutar pais que querem a guarda dos filhos porque o ex-cônjuge não cumpriu os deveres matrimoniais. Ou que caberia à mulher os cuidados infantis e ao homem, tão somente visitar e sustentar os filhos. Conhecer o que diz a lei torna-se imperativo, mesmo que seja para informar que tais valores não encontram respaldo sequer em nossa legislação. Por sua vez, o conhecimento da legislação não deve ser abstraído das condições de possibilidade de seu surgimento. Interessa ao psicólogo, sobretudo, saber como a doutrina jurídica se inscreve historicamente e se articula aos dispositivos modernos de poder. Como será observado ao longo do texto, as leis e as estruturas encarregadas de aplicá-las não só normatizam e reprimem, mas põem em funcionamento diversas práticas de poder cujo objetivo é menos julgar e punir do que curar, corrigir e educar cada sujeito a administrar a própria vida (FOUCAULT, 1997). Lançando mão dessa perspectiva, o psicólogo adquire algum domínio sobre as suas atribuições na instituição judiciária. Não lhe será indiferente interrogar se, a cada vez que falar ou escrever a respeito de certa situação familiar, ele estará ou não atendendo a mecanismos sutis de poder que, com o apoio das leis jurídicas, são mascarados pela pretensa isenção política de sua ciência. Do Código Civil de 1916 ao estatuto da mulher casada: a demarcação dos papéis familiares e a questão da guarda No Brasil Império, a família era regulada pelo Código Civil Português que, por sua vez, era inspirado no Código das Ordenações Filipinas (1603). A transposição do Direito português para a Colônia tinha o inconveniente de não corresponder à realidade social brasileira, na medida em que se aplicava apenas ao casamento dos que eram católicos. As Ordenações Filipinas, como praticamente toda a legislação civil portuguesa, permaneceram em vigor até 1916, ou seja, quase cem anos após a independência. Durante esse tempo, protestantes e judeus, por exemplo, não podiam ter seus casamentos reconhecidos pelo Estado. Tampouco o eram as uniões extramatrimoniais. A proclamação da República define um momento crucial de desvinculação entre Igreja e Estado. O Decreto 181 de 1890, de autoria de Ruy Barbosa, abole a jurisdição eclesiástica e passa a declarar como válido apenas o
casamento realizado perante as autoridades civis. Este Decreto é a principal manifestação legislativa concernente ao Direito de Família nas primeiras décadas da República e vigora até a publicação do primeiro Código Civil Brasileiro, em 1916. Com o Código de 1916, consolida-se a definição de família como sendo a união legalmente constituída pela via do casamento civil. O CONCUBINATO , em seu sentido etimológico, vem do vocábulo latino concubinatus , cujo sentido é o de dormir com outra pessoa, copular, deitarse com, repousar, descansar, ter relação carnal, estar na cama. Na Roma Antiga, o concubinatus era uma relação estável permitida entre homem e mulher livres e solteiros que, conquanto vivessem como se casados fossem, não detinham o affectio maritalis e a honor matrimonii . Inicialmente, não tinha qualquer efeito jurídico, embora não fosse proibido ou moralmente reprovável. Após a sua inclusão nas leis cristãs como prática lícita e usual, chegou a ser abolido pelo Imperador Leão (886 a 912 d.C.). Logo, a Igreja Católica teve papel primordial na reserva a respeito do concubinato, embora, em muitos momentos, o Direito Canônico tenha capturado a sua realidade social, regulando-o e concedendo-lhe efeitos com objetivo de assegurar a monogamia e a estabilidade do relacionamento, mas sem ratificá-lo . Em verdade, a Igreja Católica se voltou mesmo contra o concubinato no momento em que começou a ser praticado pelos clérigos, pondo em xeque sua própria estrutura. Foi nesse tempo que os padres foram proibidos de conviverem com mulheres que não as suas parentas e, mesmo assim, contanto que não se despertasse qualquer suspeita. Por fim, com o Concílio de Trento foi proibido o casamento presumido, determinando-se a obrigatoriedade de celebração formal do matrimônio, na presença do pároco, de duas testemunhas, em cerimônia pública e, desse modo, condenando-se o concubinato . Foram estabelecidas penalidades severas contra os concubinos que, sendo advertidos, não terminassem seu relacionamento, poderiam ser excomungados e qualificados de hereges (AZEVEDO apud GOMES, 2009). Ora, a conformidade ao modelo jurídico é o que legitima as alianças, regula as trocas exogâmicas e a transmissão dos bens familiares. Desse modo, convém observar nessa definição de família a defesa do casamento e o repúdio do legislador ao CONCUBINATO ¹ . Não que o Código Civil o proibisse, mas negava alguns possíveis direitos à concubina sob o propósito de proteger a família legítima. Assim, nem mesmo a prole advinda do relacionamento extramatrimonial obtinha reconhecimento jurídico. No Código de 1916, o modelo jurídico de família está fundamentado no patriarcado cuja origem remonta à tradição romano-cristã. A família é vista como núcleo fundamental da sociedade, legalizada através da ação do Estado, composta por pai, mãe e filhos (família nuclear) e, secundariamente, por outros membros ligados por laços consanguíneos ou de dependência (família extensa). Ela organiza-se num modelo hierárquico que tem o homem como chefe da sociedade conjugal e da administração dos bens comuns do casal e particulares da mulher. O homem é também detentor da autoridade sobre os filhos e representante legal da família. Por sua vez, a mulher casada é considerada relativamente incapaz, em oposição à situação jurídica
da mulher solteira maior de idade. Essa incapacidade retira da mulher o poder de decidir sobre a prole e o patrimônio, de competência masculina. A mulher casada precisa de autorização do marido para exercer profissão, para comerciar, além de estar fixada ao domicílio decidido por ele. Os compromissos que assumir sem autorização marital não têm eficácia jurídica. Somente na falta ou impedimento do pai é que caberia à mãe a função de exercer o pátrio poder (art. 380) ao qual os filhos estariam submetidos até a maioridade (art. 379). Segundo Barros (2001), o fato de o homem ter o poder dividido, no caso de sua falta ou seu impedimento, com a esposa e limitado à menoridade do filho torna-se expressão de um golpe no pátrio poder, embora discreto em face da autoridade que ele ainda detinha na família. Por sua vez, cabe frisar que o pátrio poder, oriundo do Direito Romano, alude a uma figura de autoridade que, desde essa época, não representa o tipo dominante em território nacional (ALMEIDA, 1987). Seguindo esse raciocínio, a ideia de declínio da autoridade paterna nem sempre é a mais adequada para a compreensão dos regimes de aliança e sexualidade surgidos historicamente no Brasil, quiçá no Ocidente moderno. Percebe-se, assim, que a abordagem jurídica é uma chave interpretativa sem dúvida valiosa das transformações que organizaram as alianças conjugais e familiares, mas não única. No que tange à separação do casal, o Código de 1916 prevê apenas a separação de corpos por justa causa, conhecido por desquite, preservando assim a indissolubilidade do matrimônio. Em outras palavras, a separação não desfaz o vínculo matrimonial; ela é introduzida na legislação para combater os desvios morais, partindo do pressuposto de que, se houve falência do matrimônio, foi porque um ou ambos os cônjuges são culpados – o que ficou conhecido como falta conjugal ² . Com o desquite, delega-se ao inocente no processo de separação o direito de ter os filhos consigo. Ao cônjuge culpado , é assegurado o direito de visita, salvo impedimento. Assim, há restrição da guarda a um dos genitores (guarda monoparental) a partir do critério de falta conjugal. Caso ambos sejam considerados culpados, a mãe fica com as filhas menores e com os filhos até os seis anos. Depois dessa idade, os filhos vão para a companhia do pai. Apenas motivos graves justificarão uma decisão judicial diversa dessa. O detentor da guarda exerce o pátrio poder em toda sua extensão (GOMES, 1981). Na definição dos direitos e deveres do marido e da mulher, pode-se confirmar a valoração diferenciada dos papéis sociais. Ao marido, de acordo com a lei, cabe suprir a manutenção da família, enquanto à mulher cabe zelar pela direção moral. Há uma tipificação das diferenças que justifica o código moral assimétrico e complementar como regra de convivência entre os sexos. Os perfis sociais atribuídos ao homem, à mulher e aos filhos já haviam sido desenhados pela política higienista que, desde 1830, se inscreveu como micropolítica no tecido social brasileiro. Com objetivo de salvar as famílias do “caos” higiênico em que elas se encontravam, o saber médico aliou-se às
políticas do Estado e fez surgir o modelo familiar pequeno-burguês, expulsando do lar doméstico os antigos hábitos coloniais (COSTA, 1999). Assim, a tipificação das diferenças entre os sexos, vinculada pela medicina à natureza biológica, foi absorvida pela legislação. Se o Código Civil de 1916 já normatizava em capítulo especial as relações familiares, é na década de 30, no momento de criação de um projeto político nacionalista e autoritário, que se desenha uma proposta clara sobre a função social da família. Trata-se de um projeto familiar articulado ao nível legal, abrangendo outros aspectos da legislação além das normas de direito civil. Tal projeto caracteriza-se por uma forma de pensar a família como elemento de uma política demográfica, tendo como objetivo último a construção da unidade política nacionalista: Nesse período foram promulgadas: a legislação sobre o trabalho feminino (origem da CLT); sobre casamento entre colaterais do 3º grau; sobre os efeitos civis do casamento religioso; sobre os incentivos financeiros ao casamento e à procriação; sobre o reconhecimento de filhos naturais e legislação penal, em especial no tocante aos crimes contra a família (Código penal de 1940) (ALVES & BARSTED, 1987: 169). Pode-se vislumbrar nessas regulamentações a preocupação do legislador em reforçar os padrões de moralidade já previstos no Código Civil, tais como: a valorização do casamento legal e monogâmico, o incentivo ao trabalho masculino e à dedicação da mulher ao lar, o temor higienista face aos cruzamentos consanguíneos e à sexualidade feminina e, finalmente, a defesa da harmonia e dos costumes na família (ALVES & BARSTED, 1987). No período seguinte, de 1946 a 1964, caracterizado politicamente como democrático, destacam-se a lei de reconhecimento de filhos ilegítimos (lei 883/49) e o “Estatuto da Mulher Casada” de 1962, que outorga plena capacidade jurídica à mulher. Com a vigência desse Estatuto, a decisão sobre a prole e o patrimônio deixa de ser exclusividade do homem. Ele revoga a incapacidade da mulher casada. Alguns exemplos podem ajudar a compreender o alcance jurídico dessa lei. Conforme a redação original do Código Civil de 1916, a mulher viúva que contraísse segundas núpcias perdia o pátrio poder sobre os filhos havidos do primeiro casamento; na vigência do Estatuto da Mulher Casada, ela passa a exercer esse direito sem qualquer interferência do marido. Na hipótese de ambos os cônjuges serem considerados culpados pelo desquite, os filhos menores passam a ser cuidados pela mãe, diversamente do que ocorria no regime anterior, em que os filhos varões, acima de seis anos, ficavam com o pai. Alves & Barsted (1987) afirmam que, a despeito de uma certa liberalização em relação ao casamento e regime de bens, o Estatuto da Mulher Casada não rompe algumas premissas básicas. O legislador mantém a assimetria entre os sexos, pendendo a balança para o poder patriarcal. É reafirmado na lei o papel do homem como sendo o chefe da família e a mulher, colaboradora do marido. Seguindo esse raciocínio, foi criado o instituto dos bens reservados da mulher, definidos como aqueles oriundos de sua profissão lucrativa e dos quais pode dispor livremente. Ora, pressupõe-se
então que sua economia própria é vista como paralela e dispensável ao sustento do lar, ao passo que, ao homem, cabe mantê-lo. Se, do período autoritário ao democrático, permanece inalterado o modelo jurídico de família nuclear, com laços extensos, centrado no pátrio poder e, portanto, assimétrico e hierárquico, por sua vez, ele começa a falir com as práticas sociais que marcam o final dos anos 60 e a década de 70. Novos arranjos e a difusão das práticas psicológicas O movimento feminista; a introdução da mulher no mercado de trabalho; a pílula anticoncepcional; a liberação sexual; o “milagre econômico” – marcado pela mobilidade social ascendente dos setores médios da população e o desenvolvimento industrial urbano – e a abertura para o consumo são alguns dos fatores significativos que colocam em xeque o modelo familiar preconizado pelas legislações, o que irá se refletir nas jurisprudências e nas propostas de reformulação do Código Civil. Nos estratos médio e alto da sociedade, começam a surgir novos arranjos conjugais e familiares, caracterizados, sobretudo, pelo individualismo (FIGUEIRA, 1987). Se até então a mulher estava comprometida com a imagem de mãe amorosa e responsável, na família individualizada ela descola-se em parte do destino “natural” da maternidade. “Nesta nova família”, escreve Russo, “cabe à dona-de-casa buscar uma certa independência do marido, ter sua renda própria, seu próprio carro, além de procurar abandonar o ar de matrona ao qual os filhos e o casamento a condenavam” (RUSSO, 1987: 195). Por sua vez, o homem desvincula-se, ao menos idealmente, do papel tradicional de “machista”, cuja relação privilegiada com o trabalho fora de casa e com os próprios interesses sexuais deixa de ser exclusividade de seu gênero. Com a mudança dos arranjos interpessoais, dissolve-se a hierarquia que dividia as esferas pertencentes a cada sexo e geração. As individualidades passam a subordinar as relações entre os membros da família, seja entre marido e mulher, seja entre pais e filhos. As roupas, os discursos, os comportamentos, os sentimentos etc. não são mais sinais exclusivos de cada sexo, posição e idade, de modo que os marcadores visíveis da diferença passam a ser única e exclusivamente as expressões do gosto pessoal (FIGUEIRA, 1987). Os membros da família passam a se perceber como iguais em suas diferenças pessoais. A ênfase no indivíduo faz-se acompanhar do ideal de igualdade de relacionamento, apontando para uma nova moral no campo das relações interpessoais. A tradição e a rede familiar cedem lugar às individualidades e seus prazeres correlatos de tal modo que se torna necessário o exame de si mesmo para que as relações entre homens e mulheres, maridos e esposas, pais e filhos possam ser negociadas. Não por coincidência, é nos anos 70 que se inicia um alto consumo da psicanálise (BIRMAN, 1995;FIGUEIRA,1987; KATZ,1979; RUSSO,1987). Nesse momento em que os papéis tradicionais da mulher, do homem e das gerações são postos em xeque, os saberes psi surgem como coordenadas
para as relações interpessoais, mesmo através das ideias mais virulentas, tais como, por exemplo, a da sexualidade infantil perverso-polimorfa como pano de fundo da sexualidade humana em geral ³ . Daí o sucesso das práticas terapêuticas, das colunas de aconselhamento psicológico em revistas femininas, do uso cotidiano do vocabulário psicanalítico, em suma, da necessidade crescente de se pedir a “palavra” de psicólogos e psicanalistas sobre questões que dizem respeito ao casamento e à família. O imenso consumo da psicanálise e da psicologia não implica pura e simplesmente a subversão de formas instituídas pela tradição, mas também a multiplicação de micropoderes que são mais persuasivos do que impositivos (FOUCAULT, 1997). É evidente que todo esse panorama de mudança nos anos 70 torna extremamente frágil não apenas os deveres correlatos entre os sexos, mas também o ideal de indissolubilidade do matrimônio. Vale acrescentar que nessa época o Brasil estava em pleno regime militar, sob a presidência do General Ernesto Geisel, cuja origem protestante luterana admite o divórcio. Ademais, havia certa insatisfação entre os militares na medida em que se obstruía a promoção dos desquitados, chegando ao generalato e até mesmo à Presidência da República apenas os casados. Desse modo, eles – ao lado de uma gama imensa de desquitados com famílias recompostas – influenciaram o Poder Executivo com objetivo de legitimar e regular o fim do casamento. Da lei do divórcio à Constituição: o privilégio da maternidade na atribuição da guarda, a abertura para as novas formas de família e os direitos da criança Em 26 de dezembro de 1977, é promulgada a Lei 6515, conhecida como Lei do Divórcio, que regulamenta a dissolução da sociedade conjugal e do casamento. A Lei do Divórcio abole o termo “desquite” e estabelece a possibilidade de somente um divórcio por cidadão. A restrição a um divórcio teve como intuito aplacar a oposição da Igreja Católica, cujo receio de que o divórcio aniquilaria a família brasileira evidentemente jamais se confirmou ⁴ . Entre os principais aspectos da lei, convém assinalar o art. 15, que regula a guarda dos filhos na dissolução do casal. Segundo o artigo, a guarda é conferida a apenas um dos genitores, sendo que o outro poderá visitar e ter os filhos em sua companhia, conforme fixar o Juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. Observa-se que tal perspectiva pode ser equivocadamente interpretada como não cabendo preocupações com o diaa-dia do filho ao genitor que não detém a guarda, ponto a que retornaremos adiante. No caso da separação judicial em que se atribui a um dos cônjuges a responsabilidade pela dissolução do casamento, a guarda dos filhos menores fica com o cônjuge que a ela não houver dado causa (art. 10), ou seja, com o cônjuge “inocente” da separação. Mantém-se, assim, o sistema vigente de definição da guarda, cujo critério de falta conjugal permanece incólume.
No tocante aos “alimentos”, a lei estipula a obrigação comum dos cônjuges (não só do pai) para a manutenção dos filhos, além de não discriminar o sexo responsável pela pensão, inferindo-se a obrigação conforme a necessidade e a possibilidade ⁵ . Contudo, a força da definição dos papéis sexuais permanece e revelase, sobretudo, no tocante aos cuidados e educação dos filhos. Diz a lei, no art. 10, §1º, que, “se pela separação forem responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficarão em poder da mãe, salvo se o Juiz verificar que tal solução possa advir prejuízo de ordem moral para eles”. Em outras palavras, o cuidado em relação aos filhos é visto como sendo responsabilidade natural da mulher, independente de qualquer outra condição, exceto a de ordem moral. A mulher, portanto, só perde a guarda dos filhos no caso de se conduzir contra os padrões de moralidade, critério de constatação subjetiva e, pior, deixado à aferição do juiz. Indubitavelmente o privilégio da maternidade acaba gerando dificuldades ao exercício da paternidade ou, simplesmente, afastando o homem da esfera de influência sobre os filhos. No Brasil, os tribunais até hoje se inclinam a atribuir a guarda à mãe, cabendo ao pai a visitação quinzenal, o que limita um relacionamento mais estreito com os filhos. E quando o pai pleiteia visitas menos espaçadas, o Judiciário costuma alegar que tal pedido pode aumentar as desavenças entre os ex-cônjuges (BRITO, 1999). ALIMENTOS são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provêlas por si, não sendo referidas apenas à subsistência material, mas também à formação intelectual, cultural etc. Compreende o que é imprescindível à vida da pessoa: a alimentação, o vestuário, a habitação, o tratamento médico, as diversões, parcelas despendidas com sepultamento e, se a pessoa alimentada for menor de idade, a sua instrução e educação (GOMES, 1981; ACQUAVIVA, 1993). Segundo Diniz (1993), há uma tendência no Estado-previdência de se impor a este o dever de socorrer os necessitados através de políticas sociais. Com objetivo de se aliviar desse encargo, o Estado o transfere, por meio da legislação, aos parentes dos que precisam de meios materiais para sobreviver e reforça o princípio da solidariedade que deve reger os laços de família. A desqualificação sócio-histórica do pai em relação aos cuidados infantis e a visão de que lhe cabe tão somente o suporte financeiro contribuem para que pais separados possam se valer de compensações materiais nos encontros com os seus filhos – por sua vez, visto como abusivo pelas mães, tornando-se mais um elemento de discórdia. “Mas”, nesse contexto de discussão, pergunta Brito, “não foi nesse lugar que o Estado os colocou?”(BRITO, 2003: 333) Todavia, observa-se, na última década, uma tendência de crescimento das solicitações dos homens pela custódia dos filhos (RIDENTI, 1998). A reivindicação no judiciário dos homens pela guarda dos filhos coloca em xeque as distinções construídas sócio-historicamente, naturalizadas pelo Direito de família ⁶ . O crescente interesse do homem em assumir os cuidados infantis coloca em questão a identificação da mulher aos ideais da maternidade, assumindo
contornos dramáticos nas situações em que ela “perde a guarda” para o exparceiro. Nesse contexto, Suannes (2008) assinala que os operadores do Direito, os profissionais de Saúde e de Educação e as instituições ligadas à proteção da infância veem com estranhamento e preconceito a mulher que não tem na maternidade a sua principal área de investimento – quer seja aquela que não deseja, ou aquela que não consegue cuidar dos filhos. Assim, o sentimento de humilhação ou de ressentimento da mulher que perde a guarda não decorre unicamente de sua posição subjetiva, mas também das acusações de negligência por parte de seu ex-companheiro e da instituição judiciária. Não obstante os movimentos de emancipação feminina, muitos dos pedidos de guarda em favor do pai ainda se apoiam no suposto fracasso materno, constituindo uma ferida narcísica à mulher. Com efeito, o discurso e os ritos institucionais aprofundam em vez de apaziguar a autodepreciação que a mulher experimenta, além de estimular ainda mais a disputa de guarda. “O fato de a criança estar com o pai é vivido por algumas mulheres como sinal de fracasso, não necessariamente na relação com o filho, mas com a própria feminilidade, como se essa situação evocasse prioritariamente a pergunta ‘que mulher sou eu’, e não ‘que mãe sou eu’” (SUANNES, 2008: 13). Deste modo, o pedido e a contestação da guarda por parte dessa mesma mulher visa mais restaurar o próprio narcisismo do que restabelecer a convivência diária com a criança, embora esse elemento também possa estar presente. Em suma, a sua questão central é a confirmação da feminilidade através da maternidade, embora revestida de conflito e com poucas chances de êxito. Em face a esse panorama, os atendimentos psicológicos nas Varas de Justiça devem ter o fim de provocar o questionamento do sujeito sobre o sentido da maternidade e o lugar ocupado pela criança em sua vida psíquica, trazendo à baila os problemas da naturalização da maternidade e da concepção da família como sendo, necessariamente, um ambiente de proteção e de acolhimento. Após a Lei do Divórcio, temos a Constituição Federal de 1988 que, sem dúvida, introduz significativas mudanças no que concerne aos direitos e deveres familiares. Com a Constituição, o concubinato passa a adquirir proteção do Estado, na condição de união estável (art. 226 §3º). O casamento deixa de ser a única forma legítima de constituição da família, tal como definia o Código Civil. O conceito de família amplia-se na medida em que a diversidade de uniões existentes no contexto brasileiro ganha legitimidade. Como afirmam Oliveira & Muniz (1990), não se pode mais falar numa forma exclusiva de família, e sim tratar da matéria no plural, passando-se a considerar também como entidade familiar a relação extramatrimonial estável, entre um homem e uma mulher, além daquela formada por qualquer dos genitores e seus descendentes, a família monoparental (art. 226§3º e §4º). A C ONSTITUIÇÃO é a Lei fundamental do Estado, cujo corpo de regras e princípios norteia os poderes públicos e asseguram as liberdades e os direitos individuais (Acquaviva, 1993). Depois da Constituição, é no Código Civil que se encontra a principal fonte legal sobre a família.
Se, antes, a tutela estatal tinha como objetivo afastar toda sorte de “uniões ilícitas”, objetivando consagrar o casamento como instituição essencial para, inclusive, assegurar os interesses do próprio Estado, por sua vez, a chamada Carta Magna prioriza a pessoa humana e sua dignidade, incluída a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Logo, o foco passa a ser o amparo de cada pessoa que integra o núcleo familiar no sentido de lhe despender proteção especial (§ 8º art. 226), acrescentando, no mesmo artigo, que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Pode-se considerar como extensão legal dessa ampliação do conceito de família a lei da paternidade (8.560), aprovada em 1992, que reconhece a igualdade de direitos entre todos os filhos, concebidos e nascidos no casamento ou fora dele, em relações estáveis ou em relações eventuais. Tal lei introduziu, vale dizer, o Ministério Público, conferindo interesse público à questão. Assim, em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o suposto pai é notificado pelo Juiz e o Ministério Público poderá dar início à ação de investigação de paternidade caso ele a negue. Ademais, a lei veda qualquer referência no registro de nascimento à natureza da filiação, ao estado civil dos pais ou à concepção decorrente de relação extraconjugal. Apesar dos avanços veiculados pela Constituição Federal, Uziel (2004; 2007) observa que ela ratifica a diferença entre os sexos para constituir entidade familiar, donde se inscreve uma contradição no texto legal: ao mesmo tempo em que veda a discriminação de cunho sexual, ele discrimina indiretamente a homoparentalidade. Tal segregação é tributária da norma calcada no modelo de família biológica, cuja matriz corresponde ao casal heterossexual e reprodutivo. Pode-se atribuir esse modelo normativo à influência da Igreja Católica Romana. Segundo Baiham (2001), encontra-se sub-repticiamente na Constituição Federal uma preferência do Estado pela família fundada no casamento. Ou seja, “enquanto o Estado dá reconhecimento explícito também para ‘uniões extraconjugais’, reconhece somente a união estável entre um homem e uma mulher e declara que a lei deve facilitar a conversão de tal união em casamento” (art. 226, § 3º.) (BAIHAM, 2001: 49). Tanto assim que o concubinato, quando há impedimento de casamento, não é reconhecido oficialmente (art. 1521), por exemplo no tipo adulterino, em que no mínimo uma das duas partes já vive em união estável ou casada ⁷ . A Constituição elimina também a chefia familiar, determinando a igualdade de direitos e deveres para ambos os cônjuges, homens e mulheres (art.226, §5º). No artigo 5, parágrafo I, está fixado que homens e mulheres são iguais perante a lei. Nesta Constituição se encontram, pela primeira vez no Brasil, os direitos da criança, expostos no artigo 227, a partir do conceito de proteção integral e do entendimento da criança como sujeito de direitos. Assim, diz a Carta Magna que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. No mesmo artigo, §6º, ficam proibidas discriminações entre filhos havidos dentro e fora do casamento e na adoção. Ao entendimento da criança e adolescente como sujeitos de direito, deve-se relacionar a questão da guarda com o texto da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Da Convenção Internacional ao Estatuto da Criança e do Adolescente: a primazia do interesse da criança, a divisão entre parentalidade e conjugalidade, os padrões de normalidade e a inserção das equipes interdisciplinares Ratificada no Brasil pelo Congresso Nacional em 1990, a Convenção Internacional de 1989 tem amplo alcance jurídico, pois obriga os países que a assinam a adaptar as respectivas legislações e apresentar periodicamente um relatório sobre as aplicações de suas normas. Com efeito, no mesmo ano, a legislação nacional é alterada com a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente que, baseado na doutrina da proteção integral, estabelece que crianças e adolescentes devem ser considerados como sujeitos de direitos, consagrando os direitos fundamentais da pessoa humana na legislação referente à infância (BRITO, 1996). A Convenção Internacional situa no artigo 9º o direito da criança de ser educada por seus pais, exceto quando o seu melhor interesse torne necessária a separação. Contudo, mesmo na situação em que a criança é separada da família, ela tem o direito de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos os pais. Reafirmando tal perspectiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe o direito de a criança e o adolescente serem criados e educados no seio da família (art. 19) e estabelece os deveres dos pais em relação aos filhos menores, “cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais” (art. 22). Brito (1996) adverte que os direitos representados na Convenção Internacional e no Estatuto da Criança e Adolescente contrapõem-se à ideia anteriormente veiculada pela Lei do Divórcio que, como vimos acima, não se detinha na relação da criança com o genitor que não possuía a guarda. Em uma pesquisa junto às Varas de Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a autora constata que habitualmente a guarda atribuída a um dos pais contribui para o afastamento do genitor descontínuo – termo usado por Françoise Dolto – das decisões que visam à educação e ao cuidado dos filhos (BRITO, 1993, 1996). Em vez do papel de pai de fim de semana, ao qual é relegado amiúde o genitor descontínuo, Brito ressalta que a separação do casal não deve conduzir ao fim ou à diminuição das funções parentais e da convivência entre pais e filhos:
Nestes casos, presencia-se o desaparecimento do casal conjugal, mas devese conservar o casal parental, garantindo-se a continuidade das relações pessoais da criança com seu pai e sua mãe. (BRITO, 1996: 141) O direito de a criança manter um relacionamento pessoal com seu pai e sua mãe não resulta da autoridade, e sim da responsabilidade parental em preservar o vínculo de filiação. Cabe então notar, através da representação dos direitos infantis, um nítido deslocamento do eixo da autoridade para o de responsabilidade parental (BRITO, 1999). Na medida em que os códigos jurídicos passam a priorizar o melhor interesse da criança, tal critério deve se sobrepor ao de falta conjugal em toda decisão judicial a respeito da guarda de filhos de pais separados e divorciados. As falhas no cumprimento do contrato matrimonial não devem ser deslocadas às funções parentais. Pode-se dizer que o interesse da criança é um critério usado juridicamente sempre que a situação da mesma solicita a intervenção do magistrado, visando a lhe assegurar um desenvolvimento adequado. Todavia, não deixa de ser, ao mesmo tempo, um operador relacionado a uma predição, seguindo certos padrões do que deva ser uma família ou infância saudável. Para respaldar suas avaliações, o juiz solicita subsídios da psicologia, entre outras áreas, cujos estudos correm amiúde o risco de estarem atrelados a uma certa noção standard de normalidade (BRITO, 1999). Sem desconsiderar a importância da proteção, o critério de interesse da criança fica à mercê das mais diversas interpretações, apoiando-se frequentemente nas idiossincrasias do examinador que, para agravar a situação, afere uma situação de fato e não de direito. Donde surge a necessidade de universalizar e elevar os interesses à categoria dos direitos, especialmente, como vimos acima, calcados nos direitos humanos. Tal passagem é fundamental para que a criança passe de objeto a sujeito de direitos (BRITO, 1999). Théry (2007) observa que a expressão “direito da criança” comporta dois sentidos contraditórios. De um lado, o sentido que a diferencia do adulto e, portanto, a faz portadora de necessidade de proteção. Assim sendo, são concebidos direitos peculiares à criança em vista de sua vulnerabilidade, podendo aquela ser, inclusive, irresponsável, por não possuir a autonomia inerente ao adulto. De outro lado, existe o sentido do direito que procura excluir a especificidade da proteção, cujo cordão em torno da criança é visto, desde uma certa tradição de origem anglo-saxônica, como forma moderna de opressão secular. Seguindo esse raciocínio, busca-se menos a proteção integral do que a aquisição de “novos direitos”, cujos defensores acreditam que a criança seja responsável por seu destino e capaz de exercer os direitos civis. Na crítica da autora, se a Convenção Internacional celebrou o direito da criança com base na vertente da proteção especial, ela também se apoiou na segunda corrente ao notabilizar os direitos à liberdade de opinião, de expressão, pensamento, consciência, associação, entre outros que supõem a capacidade jurídica da criança. Logo, há um emprego indiscriminado no campo dos direitos, com uma preocupante esfera de triunfo que se formou a partir da segunda corrente.
Decorreu da Convenção uma campanha intempestiva fomentada pelos “ideólogos dos novos direitos”, ou, como chama Théry, pelos “partidários da autodeterminação das crianças” (THÉRY, 2007: 139). A incapacidade jurídica da menoridade passou a ser colocada em xeque, tendo sido feita, para tanto, uma apropriação indevida das ciências humanas. Passou-se a dizer que, se a criança não se diferencia do adulto enquanto pessoa humana, pois ambos são capazes de pensar, julgar, sentir e desejar, o dever de proteção é uma forma de abuso de autoridade que remonta à regra napoleônica do pátrio poder e da qual a criança precisa ser libertada para, “enfim”, ser reconhecida em sua cidadania plena. Muitos são os problemas políticos que pode gerar a noção de direitos sem deveres e responsabilidade, pois, em última instância, para exercê-los, é necessária a imposição do magistrado e a invocação daqueles que respondem pela criança. Portanto, um dos mais graves problemas é o direito da infância que passou a ser um forte vetor de intervenção do Estado na vida privada. A ideologia dos novos direitos da criança constrói um novo paternalismo, não familiar, e sim do Estado, utilizando-se da infância como base para a diluição do Direito na intimidade. Isso tem consequências para as práticas jurídicas ligadas ao Direito de família. Théry cita o caso de que, pelas leis francesas, a criança pode ser ouvida no divórcio dos pais, podendo ela tornar-se parte, designar um advogado e ser escutada em seus sentimentos, inclusive os relativos à fixação do local de moradia ⁸ . Donde a autonomia da criança, tal como, por exemplo, numa situação “normal” de divórcio, que se transforma em um meio de manipulação dos pais, tornando-a refém daquele mais forte. Essas propostas podem inquietar: o que é a autonomia da palavra da criança em caso de divórcio de seus pais? Será que não iremos, sob o pretexto de respeitar seu ponto de vista, favorecer as pressões e a instrumentalização por parte dos pais? Não iremos, ao perguntarlhe expressamente sua opinião sobre o local de moradia, obrigá-la a escolher entre o pai e a mãe? (THÉRY, 2007: 147) A criança em perigo pode, ela mesma, levar o caso ao juiz. Essa faculdade de apelar à justiça sob a alegação de não estarem os titulares cumprindo seus deveres imperiosos permite que a criança possa alertar sobre uma situação que coloca gravemente em questão a aplicação do direito (...). Mas isso é uma coisa totalmente distinta de reivindicar, em nome dos “direitos da criança”, que essa criança possa apelar ao juiz igualmente quando não houver perigo, quer dizer, quando o exercício da autoridade parental não estiver fundamentalmente posto em questão. (THÉRY, 2007: 153) Nesse panorama de grande complexidade entre os direitos e os interesses da criança e do adolescente, tornou-se de praxe a solicitação dos magistrados para a intervenção de equipes interdisciplinares com objetivo de subsidiar suas decisões. Seja com a tarefa de realizarem laudos ou pareceres, seja com a de serem “porta-vozes” do infante, os profissionais que compõem tais equipes indicam o melhor interesse da criança frente às disputas de guarda ou de regulamentação de visitas. Na maioria das vezes, o objetivo é, respectivamente, descobrir se é mais adequado atribuir a guarda
ao pai ou à mãe ou se as visitas a um dos genitores nos finais de semana serão benéficas ou não aos filhos. Entretanto, tal objetivo revela-se inadequado em face das circunstâncias que envolvem a maioria das disputas judiciais, marcadas muitas vezes por acusações mútuas. Não basta definir critérios norteadores para a indicação daquele que reúne melhores condições de guarda ou de visita, haja vista a prioridade legal em preservar a convivência e a responsabilidade de ambos os genitores. A lógica adversarial, o envolvimento das crianças no conflito e os prejuízos da perícia A disputa de guarda em um divórcio litigioso está baseada numa lógica adversarial em que um genitor tenta não somente mostrar que é mais apto para cuidar e educar os filhos, como também expor as falhas do outro para tal função. Tal lógica está embutida no conflito de interesses (denomina-se lide) em que duas pessoas pretendem desfrutar ao mesmo tempo daquilo que os processualistas chamam “bem da vida” (tudo que corresponde à aspiração de uma pessoa, seja material, afetiva etc.). Ora, no litígio, a prevalência dos interesses de um implica em não atendimento aos interesses do outro. À medida que os interesses se contrapõem, o Juiz tem que decidir qual pretensão das partes (como são chamadas as pessoas nos processos) está mais amparada na lei (SUANNES, 2000). Abre-se um leque infindável de acusações de uma parte contra a outra, cujas faltas morais teriam sido, como ambos argumentam, responsáveis pelo conflito atual. O que antes fazia parte do cotidiano do casal são agora práticas “bizarras” de um estranho que, por razões “desconhecidas”, foi outrora objeto de investimento amoroso (não sem uma certa dose de alienação sobre o fato de que, se o litígio persevera, é porque há ainda um vínculo entre um e outro, como veremos adiante). Em face desse panorama, é comum o psicólogo ser requisitado a responder à difícil demanda judicial de analisar o impedimento de visitas de um dos genitores ou apontar o genitor mais qualificado para o exercício da guarda. A demanda formulada pelo juiz tem como fim encontrar o genitor “certo” a quem dar a posse e guarda da criança, baseando-se repetidamente em uma linha divisória entre o bom e mau pai e mãe ou, em último caso, o “menos pior” (RAMOS & SHINE, 1999). Mesmo nas situações cuja complexidade impede uma visão maniqueísta, não restam muitas alternativas ao juiz senão sentenciar a favor de uma das partes e negar o pedido da outra. O que faz recair na dificuldade acima, a saber, de que o psicólogo, na condição de perito, é chamado a fornecer subsídios para a decisão judicial, apontando o genitor que atende melhor aos interesses da criança. Tal tarefa não deixa de acarretar algumas dificuldades dignas de uma análise mais cuidadosa. Em primeiro lugar, cabe interrogar se existem instrumentos de avaliação que objetivamente possam medir a capacidade de um genitor ser melhor do que outro. A arbitrariedade do entendimento sobre o que é ser bom ou mau genitor, isolado do contexto em que o conflito
se apresenta, pode resultar em definições estereotipadas que dificilmente recobrem a pluralidade das relações intrafamiliares ⁹ . Em segundo lugar, mas não menos importante, convém notar que a definição de um guardião tem como efeito simbólico a demissão do outro genitor como incapaz de exercer tal função. Em inúmeras situações, é comum o pai ou a mãe se sentir ultrajado na condição de visitante, visto imaginariamente como sendo não idôneo, moralmente condenável ou, na melhor das hipóteses, temporariamente menos habilitado, o que muitas vezes colabora para o afastamento de suas responsabilidades. Muitos pais terminam por acreditar que, por serem visitantes, devem se manter à distância dos filhos, pois consideram que a Justiça dá plenos poderes ao detentor da guarda. Sentindo-se impotentes no papel de coadjuvantes, esses pais esbarram nas decisões unilaterais das ex-mulheres a respeito da vida dos filhos, assim como elas, enquanto mães, sentem-se sobrecarregadas física, financeiramente e psicologicamente, haja vista o exmarido mal visitar as crianças. Em resumo, a guarda monoparental ou exclusiva provoca um desequilíbrio de poder entre o casal litigante, deixando um dos genitores numa posição frágil frente àquele que detém a guarda de seu filho. Assim, respaldar essa exclusividade através de argumentos psicológicos em nada poderá contribuir para uma divisão mais equitativa de responsabilidades parentais. Não é por menos que o laudo ou parecer psicológico acaba servindo de combustível para o fogo da desavença familiar, reacendido a cada decisão judicial. Se, por um lado, o psicólogo auxilia o magistrado a decidir o “melhor” guardião, por outro, ele fornece um poderoso instrumento – com argumentos técnicos sobre defeitos e virtudes de um e de outro – para as famílias darem prosseguimento aos processos judiciais. Nota-se frequentemente que a perpetuação do embate familiar, via poder judiciário, é um modo de dar continuidade ao trabalho de luto da separação ou é simplesmente um meio de manter o vínculo com o ex-companheiro. Vainer afirma que, nesse último caso, “o litígio está a serviço de uma busca de reencontro ou aproximação daquele ou daqueles que não se conformam em estar separados” (VAINER, 1999: 15). Embora o casal já tenha resolvido legalmente o término da união, continua-se atado à relação por meio de ações pendentes no judiciário. A cada vez que se inicia uma ação judicial, a parte interpelada é automaticamente obrigada a se envolver com o exparceiro, dificultando a efetivação da ruptura consagrada pelo Direito. Groeninga (2003) alerta sobre os riscos de a demanda judicial tornar crônico o conflito que é inerente aos ciclos de vida da família. As crises de transição de uma família (formação do casal conjugal, nascimento dos filhos, adolescência dos filhos, saída dos filhos do lar, morte dos avós, envelhecimento, doença e morte dos pais) são inevitáveis, sendo os pontos de maior vulnerabilidade e, portanto, mais propícios ao surgimento de sintomas, inclusive sob forma de litígio. Por seu turno, o engessamento e a não elaboração de tais conflitos fazem com que estes sejam transmitidos como padrão relacional de uma geração a outra.
Para agravar a situação, os filhos são usados como instrumento de vingança e constrangimento, não havendo bom-senso que faça apelo ao fim do conflito. É certamente impróprio indagar à criança com quem ela deseja ficar, pois sua decisão pode acarretar, num outro momento, graves sentimentos de culpa por rejeitar um dos genitores (BRITO, 1996). Os direitos de opinião (art. 12), de expressão e informação (art. 13), estabelecidos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, não implicam que ela deva depor contra ou a favor dos pais, e sim que ela tem liberdade de obter informações, emitir opiniões e de se expressar sobre os assuntos lhe digam respeito, sobretudo o processo de separação de seus pais. Ora, isso está a quilômetros de distância de lhe incumbir uma decisão judicial. Trata-se de um erro de interpretação da lei deslocar à criança responsabilidades que são contraditórias a sua condição de sujeito em desenvolvimento (BRITO, 1996). Seguindo esse raciocínio, Brito afirma que “acareações e considerações sobre o comportamento dos pais também devem ser evitadas” (BRITO, 1999a: 178). Além do mais, é comum a fantasia infantil de que os pais voltarão a conviver harmoniosamente no mesmo espaço doméstico. Embora vivendo num lar cujos pais estão infelizes com o casamento, as crianças não experimentam o divórcio como solução ou alívio para tal situação. Muitas preferem o casamento infeliz ao divórcio. (WALLERSTEIN & KELLY, 1998). Desse modo, pedir à criança que se posicione em relação ao divórcio soa inábil e, nesta medida, contrário aos seus interesses. ACAREAÇÃO é uma forma de extração da verdade no depoimento das testemunhas e das partes, quando houver divergências ou contradições, e consiste em colocar uns cara a cara com outros até se concluir pelos relatos verdadeiros. (ACQUAVIVA, 1993) Não é difícil a criança se sentir culpada pelo divórcio, de modo que ela imagina sua existência como um peso para os pais. É de fundamental importância o psicólogo atentar para esse aspecto, sem deixar de acolher, ao mesmo tempo, o silêncio que certas crianças apresentam durante as entrevistas. Tal silêncio não deve ser percebido necessariamente como negativo, podendo ser afirmado como um meio de a criança não querer compartilhar das querelas parentais e nem das exigências judiciais. Françoise Dolto (1989) esclarece que a criança deve ser ouvida sim pelo juiz, mas no sentido de que ela é membro da família e tem vontade de falar sobre o que se passa, assim como tirar dúvidas sobre tal situação. Ao final, é importante a criança saber que, diz Dolto, “o divórcio dos pais foi reconhecido como válido pela justiça e que, dali por diante, os pais terão outros direitos, mas que (...) eles não são liberáveis de seus deveres de ‘parentalidade’” (DOLTO, 1989: 26). Em contrapartida, ainda segundo Dolto, as crianças devem ouvir do Juiz algumas palavras a respeito de seus deveres filiais, a saber, a preservação das relações pessoais com as famílias de ambas as linhagens. Tal conversa
deve acontecer desde que o Juiz saiba conversar com crianças; caso contrário, deve encarregar uma pessoa dessa função, não havendo idade mínima para que não se possa explicar a situação (DOLTO, 1989). E, mesmo que a criança ou o adolescente insista em verbalizar com quem deseja ficar, não se pode perder de vista que há uma tendência nas situações de litígio de os filhos fazerem aliança com um dos genitores e perceberem o outro como “vilão” da separação. Segundo algumas pesquisas, a criança faz aliança com o genitor que dispõe de sua guarda e que, portanto, está mais próxima dela, independente do sexo (WALLERSTEIN & KELLY, 1998; BRITO, 1999a). O tempo de convivência prolongado aproxima a percepção do filho com a do guardião. Desse modo, na medida em que costuma ser demorado o intervalo entre a separação de fato do casal e a formalização jurídica do divórcio, o tempo transcorrido junto ao genitor que permanece com a criança ou o adolescente é o bastante para a consolidação das alianças. “Avaliar com quem a criança quer permanecer, ou com qual dos genitores é mais apegada, pode ser interpretado como a pesquisa do óbvio”, conclui Brito (BRITO, 1999a: 176). Para complicar o quadro, pedir à criança ou ao adolescente para expor com qual genitor deseja ficar acaba acirrando ainda mais as posições polarizadas e visões maniqueístas a respeito do litígio. O fato de o psicólogo restringir-se à tarefa pericial de definir o “melhor” genitor revela aí suas limitações, pois não contribui para uma melhor qualidade das relações entre as partes litigantes, tampouco coloca em xeque a lógica adversarial presente nos encaminhamentos jurídicos. Em função do enfrentamento que se impõe, a lógica adversarial favorece o aumento de tensão entre os ex-cônjuges, sem desfazer o entendimento habitual de que ao final do processo há sempre vencidos e vencedores (BRITO, 1999a). Em face desse panorama, a sugestão apresentada ao juiz deve contar, o máximo possível, com a participação da família, retirando-as do papel passivo a que são frequentemente relegadas no processo de perícia. Para tanto, devem-se privilegiar os recursos subjetivos, seja a partir do sujeito, seja a partir do sistema relacional da família, para a orientação e o encaminhamento dos impasses. Tais observações fazem perceber a necessidade de o psicólogo ampliar seu raio de ação para além da perícia técnica. Vejamos então outras linhas de atuação. Possibilidades e limites da intervenção psicanalítica: a lei e as leis, sujeito, discurso e desejo Nas Varas de Família, existe o consenso entre os operadores do Direito de que a criança é usada como “objeto” de capricho e de vingança por seus pais em vez de ser reconhecida como “sujeito”. Mas nem sempre se pode creditar essa objetificação da prole à má-fé de um ou ambos os genitores. Ao contrário, a imensa maioria dos pais acredita estar fazendo o que acredita ser melhor para os seus filhos. Donde nota-se a presença de afetos que permeiam não somente a capacidade de os genitores refletirem sobre a condução do conflito conjugal, mas também de aceitarem as decisões judiciais. O ressentimento, a angústia, a culpa, o ódio, entre outros afetos
que culminam na ruptura do laço conjugal, são transpostos para o laço que une a criança aos seus pais, tornando-o, assim, especialmente frágil. A indefinição das fronteiras entre conjugalidade e parentalidade torna-se suficiente para que as decisões judiciais sejam constantemente transgredidas, muitas vezes de modo indireto e inesperado, relançando os membros da família em um círculo vicioso de pendengas judiciais. O Direito de Família tem como função primordial garantir as fronteiras de parentesco e de filiação frente aos excessos dos conflitos conjugais. Em outras palavras, numa primeira aproximação entre o Direito e a Psicanálise, convém às práticas jurídicas, incluída a atuação do psicólogo, organizar as balizas da linhagem familiar, sem a qual a criança não poderá se constituir como sujeito. Pierre Legendre ¹⁰ ressalta que, sem as leis da genealogia, o homem não se constitui sequer como ser vivente, menos ainda como sujeito. Mesmo antes de nascer, o sujeito humano deve estar referido a um sistema de nominação familiar que institui o lugar de “filho de...” e “de...”. Com efeito, o Direito fornece uma morada institucional que inscreve esse sujeito no campo da ancestralidade. Melhor dizendo, cada criança é idealizada e imaginada por seus pais e ascendentes mesmo antes de nascer, o que, à luz da psicanálise, significa que ela é alienada ao desejo e ao narcisismo daqueles. Mas essa alienação face a face só adquire sentido se houver, desde antes, uma outra alienação, primordial, que institui essa relação, a saber, as leis do sistema de nominação ao qual nos referimos acima. Tais leis correspondem ao Princípio da Razão que, por sua vez, se manifesta por montagens institucionais, pautadas na função dogmática do Direito. O princípio da Razão ou, diz também Legendre, princípio do Pai, organiza o corpo social segundo as regras da interdição do incesto e da diferença sexual, por meio das quais é realizada a combinatória das filiações e de parentesco. Seguindo esse raciocínio, o Direito tem por função apontar e desembaraçar os nós em que essa combinatória é colocada em risco. Ao contrário do que acreditam os “ideólogos dos novos direitos da criança”, visto acima, o ser humano não se autofunda e nem se humaniza por conta própria. Ele deve estar referido às leis genealógicas e, portanto, ao pai. O pai não é simplesmente o progenitor, mas um intermediário entre a criança e a sua linhagem, que notifica a sua relação com a ancestralidade. O patronímico que a criança herda representa a continuação da linhagem e a reprodução ancestral da vida. Assim, as montagens institucionais introduzem-se como um terceiro termo na relação face a face (dual) entre pais e filhos. Elas criam as distinções e, portanto, conferem sentido à relação entre um e outro. Esse poder genealógico emana, por sua vez, do Estado que distribui e institui os lugares da cadeia de filiação e de parentesco. Nesse contexto de raciocínio, cada sociedade controla o incesto e fabrica a sua rede de trocas exogâmicas. Hurstel (1999) assinala que, apesar das
diferenças entre uma cultura e outra, há sempre o invariante de um significante primordial que marca o lugar simbólico do Pai ¹¹ . A Lei do Pai tem lugar de referência, representando um terceiro “em nome” do qual se funda o sistema. Portanto, é em nome da Lei que cada sociedade designa quem e quantos vão ocupar o lugar de pai para cada criança. A Lei é, portanto, um dos eixos centrais de articulação entre o Direito e a Psicanálise. Operadores do Direito e Psicanalistas “se reúnem”, escreve Mougin-Lemerle, à luz da teoria de Legendre, “como intérpretes da proibição do incesto que permite viver e transmitir a vida” (MOUGINLEMERLE, 1999: 4). Para Lacan, a Lei simbólica está presente desde as formulações de Freud sobre o complexo de Édipo e, sobretudo, o mito da horda primitiva descrito em Totem e Tabu (1913 [1912-13]). A Lei está apoiada inicialmente na interdição do incesto entre mãe e filho, cuja proibição é representada pelo pai simbólico. O pai é menos a figura do genitor do que um significante designado como Nome do Pai. O Nome do Pai é um “não” que impede o filho de gozar sexualmente da mãe, e esta de usar o filho como objeto de gozo (QUINET, 2003). É por excelência o significante da lei simbólica presente no Édipo. Ora, sabe-se que o nascimento de uma criança gera mudanças na trama familiar. Ao mesmo tempo em que ela une o pai e a mãe, ela os separa, introduzindo uma divisão não somente entre o casal, mas no próprio campo do desejo. Com o nascimento da criança, o pai angustia-se em face do desejo da mãe – “Que quer ela então?”, “Quem sou eu, pois, para ela?” (MILLER, 1998: 10) – cujas interrogações devem levar em conta o caráter enigmático que, desde as formulações de Freud, habita o desejo feminino. O COMPLEXO DE É DIPO foi descrito por Freud como sendo o conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta em relação aos pais, desempenhando papel fundamental na estruturação psíquica e na orientação do desejo humano. Por sua vez, em resposta às críticas da chamada escola culturalista, para a qual esse complexo seria inexistente em determinadas civilizações, Lacan assinala que o Édipo não é redutível à influência do casal parental sobre a criança, sendo, portanto, da ordem da estrutura. Em consonância às teses de Lévi-Strauss sobre as Estruturas Elementares do Parentesco , o Édipo constitui-se, para Lacan, como uma instância interditória que liga inseparavelmente o desejo à Lei. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1996) Do lado da mãe, se a criança é requerida a preencher a falta em que se apoia o desejo feminino, ela fica, como diz Lacan, em uma relação dual “aberta a todas as capturas fantasmáticas” e “torna-se ‘objeto’ da mãe” (LACAN, 1998: 1). Expliquemo-nos. O desejo proibido da mãe tende a ser concebido como relação de objeto. Nesse momento primordial entre mãe e bebê, este último se acha possuído pela angústia de não haver uma barreira de interdição que
o separe daquela (SAFOUAN, s/d). Mas, ao mesmo tempo, a criança vivencia uma dialética ¹² na qual ela percebe que a mãe deseja outra coisa que não ela, lançando-a para a entrada futura da metáfora paterna. Os cuidados dispensados pela mãe à criança não a devem desviar de desejar enquanto mulher. Em outras palavras, o “objeto criança” não deve ser tudo para a mãe, isto é, não deve saturar o seu desejo. A única via através da qual a mãe introduz o filho na ordem simbólica é a sua própria castração. A inscrição da metáfora paterna na criança só se fará presente a partir da eleição desejante de uma mulher por um homem cuja palavra é valorizada para representar a Lei simbólica. O casal está, portanto, na origem da inserção da criança na parentalidade (JULIEN, 2000), fazendo-se a observação de que ele não depende somente do desejo que a mulher dirige ao homem, mas também de que esse homem, representante da Lei e também castrado simbolicamente, se dirija a essa mulher enquanto causa de seu desejo. É digno de nota que o homem eleito por essa mulher não corresponde necessariamente ao genitor ou ao guardião legal da criança. Desde Freud, o complexo da castração está estreitamente relacionado com o complexo de Édipo, assumindo para este último função interditória e normativa (LAPLANCHE & PONTALIS, 1996). Na releitura de Lacan à luz da teoria do significante, a castração corresponde à incapacidade de obter do Outro a garantia de gozo, revelando uma impossibilidade estrutural para todo e qualquer sujeito. (KAUFMANN, 1996) Nos atendimentos às famílias em litígio, o psicólogo depara-se normalmente com a dificuldade especial em reconhecer se tal escolha é pautada pela castração e pelo desejo da mãe, ambos inscritos no campo da Lei, ou por um mero capricho de se eleger um “pai” que atenda mais ao narcisismo daquela do que às necessidades da criança, relegando esta última ao status de objeto, e não de sujeito. Donde a importância das formulações de Lacan, especialmente num contexto histórico, mais precisamente na França dos anos 50, em que se lamentava a carência do pai e exortava a restauração da família segundo padrões rígidos de moralidade e conduta. Lacan promoveu uma ruptura epistemológica ao situar o pai e sua função no campo discursivo, independente da conduta, papel ou realidade familiar (HURSTEL, 1999). Nas palavras de Lacan: Essa é uma dimensão (...) da ordem do significante, e que se encarna em pessoas que sustentam essa autoridade. Que essas pessoas faltem, vez por outra, ou que haja carência paterna, por exemplo, no sentido de o pai ser imbecil demais, não é o essencial. O essencial é que o sujeito (...) tenha adquirido a dimensão do Nome do Pai. Acontece efetivamente (...) que o pai muitas vezes está presente para lavar a louça da cozinha com o avental da mulher. Isso não basta, em absoluto, para determinar uma esquizofrenia. (LACAN, 1999: 162) Esse campo de teorização lacaniana, sem dúvida central, pode auxiliar o psicólogo a abordar as famílias em litígio sem fazer apelo às formas
instituídas de organização familiar, tampouco buscando adaptá-las a normas morais de comportamento. Feita essa observação, é preciso assinalar que, a despeito dessa e de outras formulações feitas por Lacan ao longo de seu pensamento, o referencial edipiano como matriz de constituição da subjetividade humana passou a ser objeto de questionamento de diversos autores (Foucault, Deleuze, DavidMénard, Tort, Butler, Birman, Fassin etc.), tanto no plano teórico quanto no das práticas políticas, tal como se observou na reivindicação de homossexuais por direitos civis de família que, por exemplo, na França culminou na formulação do PACS (Pacto de Solidariedade Civil). Admitir que Legendre oferece ferramentas teóricas de relevância às práticas ligadas às Varas de Família não impede que se interrogue sobre o lugar ocupado pelos psicólogos e pelos psicanalistas nesse contexto. Ora, cabe a eles serem os guardiões dos limites do simbólico e, por extensão, zelarem pelo cumprimento das leis jurídicas? Em que medida o psi , em nome de uma Lei universal, põe em ação práticas de poder, seja de disciplina, seja de normalização, sem levar em conta as novas formas de sociabilidade e de existência (BRANDÃO, 2010)? Sem pretender esgotar o assunto, convém limitarmo-nos a dizer que a articulação entre o Direito e a psicanálise não é inteiramente harmoniosa, cabendo mostrar os pontos de tensão entre um e outro domínio. Senão vejamos. Em uma pesquisa sobre a jurisprudência na maioria dos estados brasileiros, Pereira (2001) ¹³ aponta para os elementos de uma “moral sexual” que permeia os julgamentos em Direito de Família, comprovando a interferência dos valores de cada julgador na objetividade dos atos e fatos jurídicos. Frente à moralidade que permeia o Direito de Família, Pereira (2001) assinala a necessidade de repensar os seus paradigmas à luz da psicanálise. Assim, se “o sujeito do Direito é aquele que age consciente de seus direitos e deveres e segue leis estabelecidas em um dado ordenamento jurídico; para a Psicanálise”, escreve o autor, “o sujeito está assujeitado às leis regidas pelo inconsciente” (PEREIRA, 2001: 22). Na mesma medida, a concepção de sexualidade deve ser revista, pois, se o Direito a vê no sentido genital do termo, a psicanálise introduz uma nova reflexão ao situá-la na ordem do desejo. Não obstante as tentativas de interlocução, Guyomard (2007) acentua mais as diferenças do que as similitudes entre Lei simbólica e leis jurídicas e, portanto, entre a psicanálise e o Direito: Se se pretende e se sustenta que a psicanálise não é normativa, e que, portanto não está a serviço do poder, das instituições e das diferentes famílias, ela relativiza as leis. Ela não estabelece como norma e como critério de cura e adaptação às leis de uma sociedade. Muito pelo contrário, podemos dizer, se uma ciência mostrou que a adaptação às leis de uma sociedade era um sinal de doença que, sob certos aspectos, isso custava muito caro, essa ciência foi a psicanálise. (GUYOMARD, 2007: 5)
Em suma, a psicanálise coloca em pauta a singularidade, mesmo que conflitante aos pressupostos normativos da sociedade, das leis jurídicas e das práticas institucionais. Não é o bem coletivo que orienta as intervenções do psicanalista. Gondar (1999) opõe a ética do psi à moral que alicerça tanto os códigos jurídicos quanto as práticas institucionais. O psi não visa adequar o sujeito a regras, preceitos e normas, e sim colocar “em jogo a singularidade do sujeito – singularidade das práticas de si, em Foucault, singularidade do desejo, em Lacan” (GONDAR, 1999: 42). Por fim, cabe lembrar as diferenças assinaladas pelo próprio Freud (1906) entre o neurótico comum – cuja culpa é de caráter inconsciente e que a princípio colabora com o analista visando curar-se de seu sofrimento – e o criminoso, cujo esforço consciente é negar algo feito na realidade. Assim, a relação entre o método analítico e as variáveis de uma ação judicial não é sem dificuldades. Em um processo litigioso, o sujeito não fala o que vem à mente, ao contrário do que pressupõe a regra técnica fundamental da psicanálise, e sim o que pode favorecer a sua causa. Assim como tal sujeito preocupa-se em não dizer o que pode ser usado contra ele mesmo. Todavia, tais diferenças não impedem a inscrição da experiência analítica no dispositivo da perícia psicológica. Se “o sujeito não está ali”, escreve Barros, “numa posição de quem fala de si” (BARROS, 1999: 37), ainda assim é possível promover a retificação subjetiva por meio da qual ele poderá “separar-se desse outro, perder esse casamento, sem ficar perdido de verdade” (idem: 39). E se parte das pessoas atendidas num dispositivo pericial não quer ou se sente impedida de falar, não resta senão apontar as dificuldades delas em se reconhecerem ativamente no conflito. São limites de uma práxis em que o sujeito deve passar do estado de vítima para o de responsável por seus atos e palavras, cujas determinações inconscientes se impõem à sua revelia. Ainda assim, se tais pessoas retornam ao Judiciário, envolvidas com novas querelas familiares, permite-se então “avançar um pouco e construir os efeitos da intervenção na história desse sujeito, obtendo mais elementos para refletir e construir esse campo de intervenção” (BARROS, 1999: 40). A ênfase na fala do sujeito está também na reflexão de Duarte (2006), para a qual a criança produz sintomas como resposta aos impasses familiares, sobretudo os de ordem judicial. Assim, é importante não somente dar voz à criança de modo que ela possa sair da alienação e dizer, ela própria, enquanto sujeito, as angústias e fantasias que lhe acometem; é também fundamental dar oportunidade de escuta aos pais e parentes envolvidos. “O psicanalista é demandado a responder pelos fracassos e sintomas das crianças e, em muitos casos”, escreve Duarte, “é também solicitado pela ‘criança sofrida’ que existe em cada pai, em cada mãe e em outros familiares” (DUARTE, 2006: 210). Frequentemente a dissolução do vínculo entre os cônjuges os reenvia à separação de seus próprios pais, repetindo situações que, se estivessem mais elaboradas, tornariam o divórcio menos conflituoso.
O casal não é somente a origem virtual de uma nova família, mas o desprendimento da família de origem, donde provêm as identificações e a transmissão dos desejos parentais. A formação de um novo casal pressupõe a resolução trabalhosa, nem sempre acabada, de desenlace dos vínculos familiares. A ideia de pertencimento contínuo à cadeia de gerações pode ser no casal tanto fonte de prazer quanto de angústia, gerando uma série de conflitos que podem resultar na separação. E, dado seu caráter de contrato inconsciente, pode ocorrer de, na separação, os sujeitos saberem o que desejam fazer, mas não de quê ou de quem se separar (PUGET & BERENSTEIN, 1994). Lançar luz sobre o que representa o laço conjugal para cada sujeito pode ser bastante útil no atendimento judicial às famílias em litígio. Na perspectiva lacaniana, o laço conjugal corresponde amiúde a uma formação sintomática que pretende fixar o objeto causa do desejo, cuja tarefa é, vale dizer, impossível. A promessa de realizar o impossível insinua-se toda vez que, no casal, o parceiro se faz objeto de desejo do outro. Não há objeto capaz de satisfazer integralmente o desejo. Desejo é, por definição, desejo de outra coisa, tornando-se quase inevitável que ele se alimente do que está fora da conjugalidade (MELMAN, 1999). O que, evidentemente, não significa que o laço conjugal esteja fadado ao sofrimento, com a condição de ser levada em conta a dimensão da falta que está na base do desejo. Essa dimensão do impossível é assinalada por Julien (2000), para quem a aliança entre homem e mulher pressupõe três dimensões: o amor, o desejo e o gozo. Entre a incompletude amorosa e o inapreensível gozo do outro, só a lei do desejo assegura a conjugalidade. O desejo é, nas palavras do autor, o “dom daquilo que não temos e daquilo que não somos: é confissão da falta, do vazio” (idem: 35), sendo ele, assim, a única força motriz que instaura o vínculo entre os parceiros amorosos. Se as promessas impossíveis de realização amorosa devem ceder lugar à falta e, logo, ao desejo, Cardaci Brasil (1999) assinala ser importante que o sujeito deixe de ser idealizado para ser rebaixado por seu parceiro. O que torna o sujeito desejável é que ele consinta em carregar os objetos parciais que o outro lhe atribui em sua fantasia. Ou seja, “concordar em vestir a fantasia sem que nenhum dos dois saiba qual é ela”, de modo “que as promessas de amor e respeito sejam quebradas no momento do sexo” (CARDACI BRASIL, 1999: 107): Penso que umas das formas mais freqüentes – e, frente ao espelhamento proposto pelo amor, muitos casais buscam manter a alteridade pela disputa conjugal, onde cada um desvenda o outro em suas pequenas misérias e mesquinharias, transformando o ‘meu anjo’ no demônio mais obsceno, e a mais doce noiva, na megera mais rançosa! – é exatamente um rebaixamento do objeto idealizado pelo amor, que pode ser erótico e relançar o desejo! (CARDACI BRASIL, 1999: 108-9) Tal observação lança luz sobre as querelas que se inserem na cena conjugal e, particularmente, em disputas judiciais nas quais se observam tentativas inconscientes de relançar o desejo e o erotismo.
Podemos assim supor em algumas situações a presença do que Freud formulou como masoquismo moral. Nesse tipo de masoquismo, existe uma satisfação que não se resume ao ganho de prazer, uma vez que está relacionada ao sofrimento que a própria enfermidade comporta e, como se não bastasse, só se abre mão do sofrimento psíquico quando o sujeito o substitui por um outro atual: É também instrutivo descobrir (...) que uma neurose que desafiou todo esforço terapêutico pode desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um casamento infeliz , perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica perigosa. Em tais casos, uma forma de sofrimento foi substituída por outra e vemos que tudo quanto importava era a possibilidade de manter um determinado grau de sofrimento. (FREUD, 1990 [1924]: 207; grifo meu) Freud assinalou inúmeras vezes que não cabe ao analista impor os seus próprios ideais. Querer simplesmente fazer o bem e desfazer os conflitos em que as pessoas se embaraçam, supondo com isso resolver a relação do sujeito com seu desejo, é, por definição, impossível. Não há nada que ensine o sujeito a empregar seu desejo, de modo que, na experiência analítica, se obtêm destinos particulares para cada demanda que é formulada. Seguindo esse raciocínio, a inscrição da psicanálise no campo jurídico produz uma diversidade de efeitos, que vão desde a ressignificação do conflito, a resolução dos aspectos processuais, a dissolução de queixas com um simples gesto de oferecer os ouvidos ou, na pior das hipóteses, nada acontece e continuam-se as disputas familiares (BRANDÃO, 2002). A imprevisibilidade de sucesso da intervenção psicanalítica não deve ser razão para prescindir do que se constitui como central em sua experiência: a escuta do sujeito, por conseguinte, de sua fala, mesmo que isso não tenha efeitos instantâneos. A psicanálise é uma experiência discursiva. Seguindo esse raciocínio, Suannes (2000) propõe que se devolva a fala à pessoa e aos processos inconscientes que subjazem ao processo judicial. Em um litígio, os oponentes são incapazes de resolver o conflito por conta própria, de tal modo que recorrem a um terceiro, no caso, a autoridade judicial, com objetivo de satisfazer as suas exigências. A formalização dessa demanda ao juiz exige que a fala de cada sujeito seja representada por seu advogado que, por sua vez, fala de acordo com a lógica jurídica. Remontando o discurso de acordo com a lógica jurídica, o advogado demonstra que os interesses de seu cliente estão amparados na lei, ao mesmo tempo em que responsabiliza o outro pela ação ou omissão geradora do conflito. Há nessa passagem, da vivência de insatisfação do sujeito à enunciação jurídica do seu problema, uma mudança na configuração do conflito, em que o discurso de insatisfação cede lugar ao discurso de merecimento. Sem dúvida central, o discurso jurídico almeja tornar o conflito decidível, sendo necessário, para tanto, varrer os aspectos subjetivos do discurso dos sujeitos e transferir os atos decisórios, demitindo-os de se responsabilizarem pela tomada de decisões. Todavia, a configuração do conflito nos moldes jurídicos não deixa de gerar impasse, especialmente nas Varas de Família,
onde a natureza do vínculo entre as pessoas costuma resistir às resoluções judiciais: Nas ações de Vara de Família, (...) o ato jurídico não terá como conseqüência o rompimento dos laços psicológicos das pessoas envolvidas e, no caso de haver filhos em comum, não levará ao afastamento concreto e não impedirá a participação de um na vida do outro. Devido à natureza do vínculo existente entre as ‘partes’, (...) os problemas explicitados nos autos são, freqüentemente, deslocamento de questões que não encontraram outra via de representação. À medida que o aparente problema é resolvido, o conflito se coloca em outra questão, reacendendo o impasse. Este constante deslizamento de conflitos leva à cronificação do litígio. (SUANNES, 2000: 94) Seguindo esse raciocínio, a autora sugere que o objetivo primeiro seja “realizar um movimento de direção contrária na estruturação do problema jurídico” (SUANNES, 2000: 96), ou seja, fazer falar o sujeito, e não seus porta-vozes. O simples encaminhamento das partes para o estudo psicológico por si só já tem papel importante, à medida que nomeia a natureza do problema em pauta. Isto é, atribui o “estatuto de psicológico a algo que é vivido pelas famílias como um problema jurídico, concreto e externo a cada um deles” (SUANNES, 2000: 95). Uma vez encaminhado o estudo psicológico, a “questão não se coloca como oposição entre dois pólos, ou seja”, afirma Suannes, “não se trata de um conflito de interesses no qual o vínculo com o pai exclua a mãe de seu lugar, ou vice-versa” (idem: 96) ¹⁴ . Orientado por uma escuta analítica, não cabe ao psicólogo avaliar qual genitor é merecedor da guarda ou da visita aos filhos ou, tampouco, detectar qual deles estaria mais apto para exercer as funções parentais, e sim compreender que “a questão que faz aquela família sofrer e pedir ajuda no Judiciário não é, muitas vezes, aquela que está configurada nos autos” (SUANNES, 2000: 96). Com base na psicanálise, assim como na analítica institucional, Caffé (2003) observa que o lugar do perito é marcado pela norma e pela sanção que compõem a cena judiciária e, por isso, estão presentes na transferência que o sujeito dirige ao psicólogo. Desse modo, o psicólogo não deve suprimir o caráter normatizador e sancionador que lhe é outorgado nesse lugar transferencial, mas sim colocá-lo a seu serviço. A escuta analítica no campo da perícia pode indicar algo da posição do sujeito na cena jurídica, uma vez que esta é recriada na transferência dirigida ao psicólogo. A história singular dos sujeitos no litígio determina o modo como se constroem a cena judiciária e analítica. Tais singularidades que se referem à cena judicial são recriadas e potencializadas na transferência com o psicólogo posto no lugar de perito. Frente a esse panorama, a intervenção do psicólogo procura construir uma nova versão da cena judiciária. Tal como assinalado acima por Suannes, Caffé afirma que o dispositivo da “perícia psicanalítica” pressupõe um deslocamento da tradução jurídica da questão familiar para a fala dos
envolvidos, que passam a se expressar sem o intermédio dos operadores do Direito, recolocando-os na autoria de suas falas. Por fim, sem pretender esgotar todos os meios de interlocução da psicanálise com o Direito – que a acompanham desde a sua invenção por Freud –, limitamo-nos a apresentar algumas linhas de discussão. A inscrição da psicanálise no dispositivo de atendimento em Varas de Família pressupõe algumas aproximações com o campo do Direito – entre as quais, a preservação dos limites do interdito entre o casal e a criança –, assim como diferenças – sobretudo, no que tange à experiência ética do sujeito em detrimento à moralidade das leis e dos procedimentos jurídicos. Escutar o sujeito implica, como vimos, privilegiar sua fala e lhe abrir a possibilidade de reconhecer a falta da qual ele se esquivou desde quando se enlaçou amorosamente ao parceiro. Promover essa escuta, mesmo num dispositivo tão distante da experiência analítica, ou seja, no campo da perícia psicológica, afasta o profissional da tarefa de fornecer subsídios à decisão judicial sobre quem reúne condições para a guarda. O psicólogo oferece os ouvidos com um único propósito: permitir que cada sujeito não somente abra mão da parcela de gozo que o discurso jurídico promete (“ganhar a guarda”, “ser melhor pai ou mãe”, “estar do lado da lei” etc.), mas também fazê-lo agir de outra maneira frente à cena jurídica, aos conflitos do amor e à sua irredutível responsabilidade de elevar o filho à condição de sujeito. Vejamos então outras formas de intervenção psicológica em Varas de Família. Mediação familiar: a diversidade de práticas, a diferença em relação à arbitragem e à conciliação, o paradigma de entendimento mútuo, as experiências dos tribunais brasileiros À guisa de introdução ao tema da mediação, convém citar dois provérbios da tribo Maori, destacados por Lévi-Strauss, que apontam para o lugar fundamental dos conflitos familiares na estrutura social. O primeiro: “um laço estabelecido por meio de presentes pode se quebrar, mas isso não se dá com um laço humano”: significa que dois grupos podem trocar presentes e guerrear num outro momento, mas o intercasamento os liga permanentemente. O segundo ditado – “um laço humano é indestrutível, mas esse não é o caso da corda de um barco, que pode partir-se” – aponta para as vantagens dos casamentos no interior do grupo: “se as duas famílias brigam e se insultam, diziam, a coisa não é grave, pois resta apenas uma questão de família; assim, a guerra será evitada” (LÉVI-STRAUSS, 1987: 190). Em suma, o conflito entre as famílias, se ele existe, é o que faz laço, sem o qual os grupamentos humanos podem matar ou morrer. Seguindo esse raciocínio, a Psicologia e áreas afins em muito contribuem para o entendimento de que se o conflito está no cerne do sofrimento humano, ele é o meio pelo qual o sujeito define a sua existência e faz laço com o outro. Nesse sentido, ela se insere no contexto das mediações familiares.
A prática de mediação, implantada em diversos países e mais recentemente no Brasil, é informada por diversas teorias e técnicas, tendo em comum o objetivo de devolver ao casal a competência para gerar a própria solução do conflito. Alguns juristas admitem que, em certas áreas judicativas, o tradicional processo litigioso não é o melhor meio para a reivindicação efetiva dos direitos. Entende-se então que o movimento de acesso à justiça encontra razões para caminhar em direção a formas alternativas de resolução de conflitos, entre elas, a mediação. Preservando a relação, na medida em trata o litígio como perturbação temporária e não como ruptura definitiva, tal procedimento é mais acessível, rápido, informal e menos dispendioso (KRÜGER, 1998). A mediação possui não apenas os objetivos de resgatar a autonomia dos indivíduos e desafogar o judiciário, mas também o de restaurar o tecido social, inscrevendo-se como elemento-chave para a autocomposição das diferenças (MÜLLER, 2005). Nos Estados Unidos, a partir de 1974, têm-se registro dos primeiros trabalhos de mediação como alternativa de lidar com as sequelas do divórcio e de suas disputas baseadas no antagonismo, como vimos acima, entre vencedor e vencido. No Canadá, existem serviços de mediação desde os anos 70, cuja prática entra na legislação relativa ao divórcio em 1985. Por sua vez, a China aplica a mediação desde 1949, tanto em nível patrimonial como familiar, reduzindo consideravelmente o número de casos que chegam aos tribunais como litígio. O recurso da mediação é também desenvolvido em países como França, Israel, Austrália, Japão, entre outros (VAINER, 1999; CURSO, 2000). Na América do Sul, a Colômbia, a Bolívia e a Argentina antecederam o Brasil no emprego das resoluções alternativas de disputa. Somente no início dos anos 90, a mediação ingressa no Sul do país, tendo sido fundada em 1994 a matriz da instituição brasileira mais antiga que se tem notícia – o Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil (IMAB). Desde então, tal recurso passou a ser empregado em instituições privadas, chegando às públicas, especialmente, a partir das Defensorias Públicas. Há, hoje em dia, o Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – CONIMA, fundado em 1997. De modo geral, a mediação pode envolver todos os pontos do divórcio ou se limitar exclusivamente às questões de guarda e visita. A mediação pode ser também pública ou privada. Alguns programas de mediação excluem os advogados das partes, enquanto outros estimulam essa participação. Algumas práticas são liberais e não diretivas, enquanto outras são mais restritivas e condutoras (VAINER, 1999). Costuma-se apontar que mediação não é igual à arbitragem ou conciliação. Na arbitragem, a solução é decidida por um terceiro, ao qual as partes se submetem. Na conciliação, um terceiro auxilia a manter ou restabelecer a negociação entre os oponentes, reduzindo as animosidades, opinando e sugerindo novas alternativas. O conciliador atua diretamente no conflito,
visando ao acordo entre as partes. Por sua vez, na mediação, o terceiro também ajuda a compor a negociação, com a diferença de que as partes devam ser autoras das decisões. O mediador atua mais como facilitador do que interventor ativo, restabelecendo o diálogo para que surjam das partes as possibilidades de entendimento e desfecho do conflito. Ao contrário das outras práticas, a mediação deve incidir menos sobre o acordo do que sobre o resgate do canal de comunicação entre os oponentes (CURSO, 2000).
Quando os acordos são espontâneos e diretos sem auxílio de um terceiro.
Quando algum impasse dificulta a negociação e um terceiro auxilia a mantêla ou a restabelecê-la, reduzindo tensões e animosidades, opinando e sugerindo alternativas.
Quando algum impasse dificulta a negociação e um terceiro auxilia a mantêla ou a restabelecê-la, desde que as partes sejam autoras das decisões. Atuando na construção de um ambiente colaborativo e na desconstrução dos impasses, possibilita que um diálogo sobre as questões se estabeleça e decisões consensuais possam ter lugar.
Quando um terceiro, escolhido pelas partes (árbitro), decide, segundo critério de merecimento ou não, sobre as questões de litígio.
Quando um terceiro, não escolhido pelas partes, determina, segundo critério legal ou de merecimento, sobre as questões das partes. Evidentemente, os propósitos da mediação diferem de acordo com o país onde ela é praticada. Se o método norte-americano reduz a mediação unicamente à resolução de conflitos, a ponto de ser colocada lado a lado com a conciliação e a arbitragem como alternativas ao julgamento formal, a linha francesa não busca o desfecho imediato do conflito. Ao contrário do que recomenda o pragmatismo norte-americano, a perspectiva francesa supõe que o mediador deva criar condições para que os antagonistas se questionem e se reposicionem no conflito, este sendo visto como positivo, e não como algo a ser extirpado (SIX & MUSSAUD, 1998) ¹⁵ . Em consonância com os argumentos acima, Müller assinala que, apesar de o conflito ser mal visto em nossa sociedade, ele faz parte integral de nossas vidas. Desse modo, o conflito é, nas palavras da autora, “potencialmente construtivo ou transformativo quando oferece aos indivíduos a oportunidade de desenvolver e integrar suas capacidades de força individual e empatia (MÜLLER, 2005: 153)”, sendo a mediação um dos meios pelo qual se apreende tal potencial. Portanto, recomendamos que o mediador se esquive do furor conciliatório e de achar que sua ação somente obterá êxito se as partes opostas chegarem a um acordo. Muitas vezes existe algo de não negociável e até mesmo de insolúvel num conflito, justamente porque é o que garante um precário equilíbrio ao sujeito, assim como às alianças conjugais e familiares, mesmo que isso custe certa quota de sofrimento e angústia. Feita essa ressalva, a mediação compreende uma vantajosa mudança de paradigma na qual o antagonismo cede lugar ao entendimento mútuo das partes. A figura do mediador busca a resolução das controvérsias de forma pacífica, evitando o litígio e indo ao encontro de acordos que as partes possam compor entre si. Nessa perspectiva, o mediador evita fazer imposições e traz à discussão apenas o que o casal quer negociar, orientando e buscando ideias que facilitem a construção de um compromisso favorável aos antagonistas. É essencial obter previamente a concordância das partes para se submeterem ao processo mediatório. A recusa de uma delas ou ambas não pode se reverter numa sanção judicial e tampouco numa avaliação negativa da equipe interprofissional, sob risco de constranger a pessoa a um processo de negociação sem que ela esteja disponível para tanto. O mediador deve igualmente ter o cuidado de não se deter na análise das determinações psíquicas do conflito do casal. Se não fugir dessa tarefa, ele corre o risco de prolongar o atendimento para além do tempo disponível no judiciário, além de dar um caráter terapêutico sem garantir a resolução dos acordos necessários para o fim do litígio. Embora a mediação familiar possa ser identificada como empreitada essencialmente interdisciplinar, ela assume características específicas na medida em que é praticada por psicólogos. A saber, ela inclui “elementos que outros profissionais não consideram, tais como aspectos emocionais ou
aqueles que transcendem o discurso objetivo e podem ser compreendidos como a manifestação da subjetividade e da presença de conteúdos inconscientes” (RAMIREZ & MELLO, 2005, 161). Com efeito, o “mediador psicólogo” consegue manejar aspectos tais como a transferência e a contratransferência de uma maneira que, a princípio, o profissional do Direito não domina. De qualquer modo, é importante salientar que, do ponto de vista do papel do mediador, este deve integrar conhecimentos de diferentes disciplinas, abrindo-se a um processo de formação dinâmico e interdisciplinar (RAMIREZ & MELLO, 2005). Na medida em que o mediador está atento aos problemas de ordem afetiva, ele deixa os advogados livres para concretizar os acordos em termos jurídicos. Em outras palavras, a mediação encoraja os oponentes a se envolverem diretamente nas negociações enquanto libera o advogado para o suporte legal necessário, que muitas vezes não consegue fazer com que o cliente o ouça quanto aos prejuízos de sua postura (VAINER, 1999). Semelhante preocupação em devolver às famílias a responsabilidade pelo desfecho do litígio faz parte da rotina do Serviço Psicossocial Forense (SERPP), vinculado ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Compreendendo que o divórcio não é o fim da família e sim o início de uma organização binuclear, em que os pais são codependentes, mesmo separados, na tarefa de criar os filhos, a equipe interprofissional do SERPP tem como imperativo a distinção entre parentalidade e conjugalidade. Assim, ela evita que um membro da família avalie a competência parental do outro pela competência conjugal. Somente com o “divórcio psíquico” tornase possível “ajudar os filhos a aceitar o divórcio dos pais e estimulá-los a manter um contínuo relacionamento com ambos os cônjuges” (RIBEIRO, 1999: 165). Em uma abordagem sistêmica, busca-se então compreender a dinâmica relacional que deu origem ao litígio e o papel de cada membro do grupo familiar na perpetuação da crise. É importante que cada membro compreenda seu papel em tal dinâmica e experimente situações que sugiram mudanças. A equipe do SERPP realiza também entrevistas com os advogados das partes, sendo considerados peças chave para a reorganização do sistema familiar. Ao final, faz-se um relatório que, em vez de apresentar sugestões formuladas unilateralmente pelo profissional, expõe as que foram construídas pela família (RIBEIRO, 1999). Nesse compasso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal instituiu, em 2002, o Programa de Estímulo à Mediação e criou o Serviço de Mediação Forense. Com a expansão da experiência de mediação a diversas Varas Cíveis e de Família, esbarrou-se em algumas dificuldades, entre as quais: a sobrecarga de servidores que assumiram a mediação concomitante aos seus ofícios; o não comparecimento das partes em alguns casos; a ausência de legislação específica sobre mediação forense ¹⁶ ; a confusão de muitos advogados entre as técnicas de mediação e de conciliação; o
desconhecimento geral a respeito da primeira e a indefinição dos critérios para o encaminhamento dos processos ao Serviço de Mediação Forense. O Judiciário gaúcho implantou, por sua vez, em 1997, o Projeto de Mediação Familiar, através do Serviço Social Judiciário (SSJ) do Foro Central de Porto Alegre. Tal projeto trabalha com processos encaminhados pelo Projeto Conciliação em Família, tratando-se de ações que estão ingressando no Judiciário e, portanto, ainda não inseridas totalmente no modelo adversarial. As famílias participam inicialmente de uma audiência de conciliação e, não havendo consenso, são informadas pelo Juiz sobre a possibilidade de optarem pelo processo de mediação, dividido em etapas que se iniciam com encontros multifamiliares, passam por encontros individuais e terminam com a construção do entendimento mútuo (KRÜGER, 1998). Vale dizer que o encaminhamento de ações judiciais ao processo de mediação está limitado àquelas de interesse de crianças e/ou adolescentes. Diferentemente do Projeto do Distrito Federal, na experiência de Porto Alegre o mediador é servidor do Judiciário exclusivamente com formação em Serviço Social e, assim, treinado nas técnicas mediatórias. Foi também desenvolvido um Projeto de Mediação Familiar no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, cujos serviços foram aplicados nas Varas de Família dos Fóruns de Justiça e em algumas Casas da Cidadania do Estado. Neles, vale dizer, foi privilegiada a perspectiva interdisciplinar, valorizandose a abordagem de advogados, psicólogos e assistentes sociais na diluição do litígio e na interrupção da escalada do conflito intrafamiliar. Em vez de se ater a situações que envolvem crianças e adolescentes, como, por exemplo, em Porto Alegre, o projeto de Santa Catarina atende questões familiares relacionadas à separação, ao divórcio, à pensão alimentícia, dissolução de união estável, divisão de bens, assim como à regulamentação de visitas, guarda e modificação de guarda, ao reconhecimento de paternidade, entre outras. Uma importante característica a ser ressaltada é que ele atua tanto de forma preventiva, nos casos anteriores ao ingresso da ação judicial, quanto nas situações em que já existem processos. Por fim, além do aproveitamento dos profissionais do quadro do Poder Judiciário, o projeto de Santa Catarina conta com a participação de estagiários e profissionais voluntários, que recebem capacitação específica em mediação familiar. Logo, evita-se uma das dificuldades apresentadas no Distrito Federal, isto é, a sobrecarga dos servidores. Convém citar também a experiência do Tribunal de Justiça de Rondônia, cujo projeto de mediação e conciliação iniciou-se em 1998 com alunos de Direito, que intercedem nos casos em qualquer fase processual. Contudo, logo foi percebido que quanto antes houver a mediação, maior é a sua chance de sucesso. Esta se torna mais difícil depois que a parte ré da ação apresenta a contestação e a parte autora toma conhecimento da mesma. A contestação quase sempre vem acompanhada da narrativa de fatos pretéritos da vida conjugal e familiar, criando uma esfera de animosidade e de resistência ao fim do conflito.
Sem pretender ser exaustivo, vale mencionar o Projeto de Mediação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, iniciado em 2003. Nele, os juízes intimam as partes e os seus advogados a comparecerem na Central de Conciliação, onde é realizada uma primeira sessão, denominada tecnicamente de Pré-Mediação. Após escutar as partes e seus procuradores, o mediador explica a proposta e propõe a mediação. Se aceita, os presentes assinam o “ Termo de Aceitação de Mediação” que versa sobre as condições da proposta, entre as quais, a suspensão da tramitação processual. Ao final de até cinco encontros, as condições acordadas entre as partes são homologadas pelo Juiz ou, se frustrada a mediação, os autos retornam à Vara de origem. Por sua vez, a participação da Psicologia faz-se através de intervenções focais nos casos de litígios graves ou nos quais a presença de intensas questões subjetivas interfere no trabalho da mediação. Nessas circunstâncias, o mediador indica o acompanhamento das partes pela Psicologia, concomitantemente ou, se necessário, suspende temporariamente a realização da mediação. A diversidade de experiências expostas acima demonstra o quanto a prática de mediação está sujeita a entendimentos e a aplicações muitas vezes até díspares uma da outra. Daí a necessidade de promulgação de uma lei específica, de modo a estabelecer parâmetros reguladores de sua prática. Em 2007 foi arquivado o projeto de lei 94/02 que havia sido aprovado pelo Senado no ano anterior, o qual tornava obrigatória a tentativa de mediação do conflito antes de submetê-lo ao processo judicial tradicional. Apesar de não ter sido transformado em lei, vale destacar alguns aspectos do projeto, cuja discussão teve ampla repercussão social em face da expectativa, como vimos anteriormente, de ampliação das possibilidades de solução consensual e de alívio do volume de processos junto ao Poder Judiciário. O projeto de lei definia mediação como atividade técnica exercida por terceiro imparcial escolhido ou aceito pelas partes, cujo propósito era permitir a prevenção ou a solução de conflitos de modo consensual. A mediação poderia versar sobre todo o conflito ou parte dele e seria sigilosa, salvo estipulação em contrário das partes, observando-se, em qualquer hipótese, que o mediador deveria proceder com confidencialidade, vedandose a prestação de qualquer informação ao juiz. De acordo com o texto do projeto, a mediação judicial deveria ser feita por técnicos treinados e cadastrados nos tribunais de justiça ¹⁷ . Uma de suas inovações era que, a pedido de qualquer uma das partes ou do mediador, este último prestaria seus serviços em regime de comediação com profissional de outra área. Entretanto, a comediação seria obrigatória nas controvérsias ligadas ao Direito de Família, devendo dela sempre participar psiquiatra, psicólogo ou assistente social. Obtido ou frustrado o acordo, o mediador escreveria um termo, seja com a descrição circunstanciada das cláusulas da combinação ou assinalando sua impossibilidade, e o remeteria à Vara de origem, na qual o Juiz determinaria o arquivamento do processo ou, no caso de fracassado o acordo, providenciaria a retomada do processo judicial.
O projeto de lei previa ainda que, numa audiência preliminar, o juiz ouviria as partes e tentaria a conciliação, mesmo tendo sido já realizada a mediação. Ele poderia, inclusive, recrutar conciliadores para auxiliarem-no na tentativa de solução amigável dos conflitos. Além do mais, poderia lançar mão de outras formas adequadas de solução do conflito, tais como a arbitragem e a avaliação neutra de um terceiro. A avaliação deste último seria de caráter sigiloso, inclusive para o Juiz, e teria igualmente a finalidade de orientar as partes na tentativa de composição amigável do conflito. Em 2006, ou seja, no mesmo ano em que havia sido aprovado o projeto de lei, o Conselho Federal de Psicologia promovia o I Encontro Nacional de Psicologia – Mediação e Conciliação, pautando-se na crença “de que haja, na Psicologia, competência acumulada para contribuir com o desenvolvimento de uma cultura de conciliação”, assim como na “tarefa de construção de referências para a prática do psicólogo nesse campo” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2006: 8-9). Mesmo sendo a mediação acenada como uma prática de profundo interesse, veem-se pouco problematizadas as relações de poder entrevistas numa certa pedagogia que ela parece implicar, ou seja, a primazia do entendimento mútuo e do sentir-se bem . Acrescentam-se os temores de Théry lembrados por Garcia (2003), a saber, de que a mediação se transforme numa mistura de psicologismo e juridicismo. Tal mistura culmina no desencantamento do juiz com o ato de julgar, que se limita a delegar às partes ou a um especialista o cuidado de se chegar a uma decisão. Com efeito, complementa Garcia, a vida privada passa a ser invadida pelo novo arauto das soluções baseadas na boa vontade e no entrosamento: o psicólogo, representado amiúde na figura do mediador. Garcia assinala que não cabe ao mediador se transformar no parceiro do advogado, nem virar um bom conselheiro e tampouco fazer o trabalho de jurista. Se a prática de mediação criar condições para a aceitação da lei sem a interferência da força, isso já seria de per si um excelente resultado. Mas o importante é que a mediação não seja tão somente uma técnica de resolução de conflitos, mas o meio de regulação das alianças familiares cujas transformações dos últimos tempos expõem-nas a situações desconcertantes. Se a ordem simbólica tradicional foi pavimentada, por um lado, nos elementos básicos da família e nas noções de responsabilidade e de culpa, por outro, ela fracassa hoje em dia enquanto grade de interpretação das novas formas de relacionamento, das recomposições familiares, da homoparentalidade, das mudanças de organização do trabalho, da violência contemporânea, dos novos sintomas, entre outros. Podemos supor que a valorização da mediação está inscrita num conjunto de estratégias normativas que invadiram o campo da intimidade domésticofamiliar. Ora, boa parte dos relacionamentos interpessoais e dos agrupamentos familiares contemporâneos não se sustenta nas regras tradicionais e na autoridade ancestral. Ao contrário, as alianças são, em sua grande maioria, regidas pelas idiossincrasias individuais, pela realização
inesgotável dos desejos, pelo hedonismo e pelo culto à felicidade. Não há nenhuma regra explícita da tradição ou da consanguinidade que justifique o início e a manutenção de uma relação, podendo esta ser interrompida a qualquer tempo, liberando os parceiros para uma nova união (GIDDENS, 1993). Esse ideal normativo de relacionamento não se limita ao eixo entre cônjuges, mas atinge também o eixo entre pais e filhos. Assim, as relações parentais acabam importando as mesmas características de fragilidade que marcam os relacionamentos amorosos na atualidade (BAUMAN, 1998). Por conseguinte, a dimensão contratual transformou-se num meio de sustentação das alianças conjugal e familiar. Sendo assim, a mediação pode se inscrever nesse contexto contemporâneo como mais um componente ativo de invasão da norma contratual na relação entre cônjuges e, quiçá, entre pais e filhos. Em face desse panorama, cabe ressaltar a observação de Garcia, para quem o mediador não corresponde a um substituto indevido do juiz pronto para negar a justiça e impedir a aplicação da lei. Mas ele deve estar aberto às singularidades e ao lugar vazio inerente ao próprio Direito. Na bela definição do autor, o mediador é “um passageiro clandestino da seara do direito. Clandestino, mas fiel e solidário para com o destino da disciplina. Para isso ele estuda o direito com os grandes mestres, ele os freqüenta, traz perguntas, indagações, um verdadeiro mediador entre o real do mundo e a lei” (GARCIA, 2003: 354). Os impactos do divórcio, os acordos em relação aos filhos, a visita como forma de convivência, os pontos de encontro É muito comum a desorientação do casal e da família após a separação, impondo-se a cada um a busca de parâmetros para se situar frente à nova situação. O desnorteamento após a separação foi constatado na pesquisa do California Children of Divorce Project , o que motivou os profissionais a promoverem encontros sistemáticos com pais e filhos (WALLERSTEIN & KELLY, 1998). O divórcio é o ápice de um processo que se inicia com uma crescente perturbação do casamento e, após sua concretização, demoram-se anos até que os ex-cônjuges consigam conquistar uma estabilidade emocional. O problema é que um período de tempo que parece razoável aos adultos corresponde a uma parte significativa da experiência de vida da criança. Como diz Dolto (1989), a percepção infantil do tempo cronológico é diferente da percepção do adulto. Os filhos veem-se com pouco controle sobre as mudanças impostas pelo divórcio. Muitos não têm somente dificuldade para se ajustar a novos locais de residência ou à queda da situação econômica, mas também fazer frente ao colapso do apoio e da proteção que até encontravam na família. Com o divórcio, há uma diminuição da capacidade parental. Os pais passam a focar mais atenção em seus próprios problemas, tornando-se menos sensíveis às necessidades dos filhos. Ao mesmo tempo, relutam ou revelam uma inabilidade para explicar-lhes a situação vivenciada.
Os filhos sentem-se vulneráveis, rejeitados, culpados, solitários, sendo muitas vezes usados, para agravar a situação, como suporte emocional de um ou ambos os genitores, responsabilidade esta que não se sentem prontos a assumir. Não é por menos que a criança concentra amiúde seus esforços para reverter a decisão do divórcio e restaurar a harmonia familiar sem, contudo, lograr êxito. Um projeto institucional nos EUA – Famílias em Divórcio – foi desenvolvido por terapeutas de família e de casal em 1978, com fins de dar atendimento e suporte às famílias nas quais o divórcio já ocorreu ou que está em vias de ocorrer. Inicialmente, são atendidos os ex-cônjuges em separado, até o momento de se sentirem seguros o suficiente para a sessão conjunta. Uma vez ocorrida tal sessão, há uma avaliação em encontros novamente individuais, reforçando os êxitos conseguidos e estimulando novas tentativas de diálogo. A discussão a respeito dos filhos é um ponto fundamental para a elaboração do divórcio e a organização da família. O trabalho com os filhos é um dos pontos mais importantes desenvolvido no projeto, por meio dos quais se dilui a postura destrutiva dos pais, se lida melhor com as dificuldades da separação e são fortalecidos os vínculos fraternos. De inspiração sistêmica, os autores de tal projeto observam que as querelas entre as partes não provêm do processo de divórcio em si e sim dos antecedentes matrimoniais, não sendo a separação mais do que a continuação dos conflitos enraizados na união do casal. De diferentes tipos de casamento resultam diferentes tipos de divórcio (ISAACS apud VAINER, 1999). Deve-se atentar igualmente para a regulamentação de visitas, evitando-se modelos rígidos, burocráticos e preconcebidos de relacionamento que, ao final, possam criar dificuldades para o genitor descontínuo acompanhar e participar do desenvolvimento dos filhos. Com efeito, convêm ao psicólogo promover, junto aos demais profissionais, acordos de visitas que possam manter – como de direito – o estreito relacionamento da criança com seus pais. Para tanto, é recomendável que o tribunal informe também nas audiências sobre a necessidade de visitas do genitor, esclarecendo e ajudando na definição e execução dos acordos referentes aos filhos (BRITO, 1999a). O psicólogo pode sugerir ao Juiz a ampliação das visitas para os dias de semana, de modo a facilitar a participação do genitor descontínuo no cotidiano dos filhos. Contudo, observa Brito (1999a), a determinação da visita nos dias de semana, desacompanhada de explicações sobre o seu objetivo e da sensibilização dos genitores, parece insuficiente, haja vista alguns pais não a cumprirem para não atrapalhar a rotina dos filhos. Bruno (2003) considera essencial a discussão do conceito de visita enquanto forma de manutenção dos vínculos familiares, havendo uma problemática oposição entre os termos “visita” e “convivência”. O significado de visitar é ir-ver ou inspecionar, não estando presente no sentido da palavra a ideia de compartilhamento da vida diária ou, simplesmente, convivência. Este último
significa intimidade, familiaridade, trato diário etc., de modo que as regulamentações de visita, mesmo com a justificativa de manter a convivência, não a concretizam. Se os pais sabem compartilhar, independente da residência onde a criança permanecerá, a convivência com ambos está assegurada. Afinal, o direito da criança em manter contato com os genitores é dever dos adultos. Mas, considerando as situações em que isso não ocorre, deve-se alterar o paradigma de “regulamentações de visita” para o de “formas de convivência”. Há também situações em que alguns genitores acabam desaparecendo da vida de seus filhos por não suportarem os constantes desentendimentos com o ex-cônjuge e não concordarem com o papel de “visitantes”. Muitos também não suportam pegar os filhos na casa que um dia já foi sua. Farkas (2003) observa que existe um sentimento de perda por parte daquele que decide sair da relação, sendo difícil às vezes lidar emocionalmente com a renúncia à família e à convivência dos próprios filhos. Desse modo, a pessoa que fica na residência com os filhos tem, paradoxalmente, mais facilidade de realizar o luto da separação, pois enfrenta a realidade da ausência do ex-companheiro no dia-a-dia. Daí a importância em muitos desses casos de um outro local para o encontro do genitor descontínuo com os filhos, mesmo que para simplesmente pegar e trazê-los de volta. Em diversos países existem instituições sociais que facilitam o direito de visita nas situações de divórcio e separação, ou ainda nos casos em que a criança foi retirada da família: lieux d’accueil (muitos também chamados de “pontos de encontro” ¹⁸ ) na França e Suíça, acess services na Inglaterra, supervised visitation nos EUA, no Canadá, na Austrália etc. Na França, os pontos de encontro são utilizados quando não é mais possível a atribuição da autoridade parental conjunta, cuja concepção veremos adiante, ou quando um dos genitores é impedido judicialmente de permanecer sozinho com a criança. Basicamente, eles servem como lugar de encontro da criança com o genitor não guardião, de troca entre os genitores e até mesmo, por vezes, de hospedagem ao genitor ou à criança no fim de semana. Trata-se, assim, de instituições em que as visitas são “supervisionadas” por assistentes sociais, psicólogos e conselheiros conjugais, entre outros, constituindo-se como um local “neutro”, onde a criança é deixada por um dos pais e visitada pelo outro. O objetivo em geral é manter ou restabelecer um laço positivo e regular da criança com seus genitores (às vezes com avós ou outros parentes), protegendo-a em seus direitos e, ao mesmo tempo, responsabilizando aqueles que respondem por ela. Sobre a experiência da cidade de Lille (norte da França), Devriès (1998) comenta que os profissionais levam em conta a palavra da criança e dos seus pais, mas sem interpretá-la. Assim, a criança que recusa o visitante é recebida por um técnico fora da presença do pai com objetivo de provocar efeitos sobre a representação daquele, assim como da ruptura do casal parental. Para o autor, não se trata de uma terapia, embora se procure acarretar efeitos terapêuticos tanto sobre criança quanto sobre os pais.
Por sua vez, Bédère (1998) salienta que o ponto de encontro em Bordeaux não se inscreve no quadro da mediação, da gestão e do apaziguamento de conflitos, mas de desprendimento do litígio à medida que a palavra de cada qual envolvido é escutada. Embora recuse a executar pura e simplesmente as decisões da justiça e produzir relatórios sobre o conteúdo das visitas, o ponto de encontro procura fazer laço de trabalho com os operadores da Justiça para que suas intervenções façam sentido e sejam utilizadas de forma adequada. Experiência diversa pode ser identificada, por exemplo, em Montreal, Canadá, sobre a qual Filion descreve uma integração dos pontos de encontro com os serviços de mediação, haja vista os profissionais das instituições não poderem agir como mediadores. A inclusão do serviço de mediação no interior da própria instituição visa redefinir o exercício da parentalidade, responsabilizar os pais na retomada da gestão de suas dificuldades e soluções e, por fim, favorecer o exercício do direito de visita. Em face dessas breves exposições, duas questões se impõem: uma sobre a relação dos pontos de encontro com a mediação e a outra, com a Justiça. Segundo Bastard & Cárdia-Vonèche (1998), existem dois modelos de intervenção, não necessariamente opostos, entre a grande maioria dos lieux d’accueil na França. O primeiro modelo deriva das práticas de mediação, uma vez que se considera indispensável reduzir o conflito dos pais para manter o contato deles com a criança fora da instituição. Sem necessariamente colocar os genitores na presença um do outro, esses lieux d’accueil procuram iniciar uma negociação entre eles. Por seu turno, o segundo modelo, no qual se inclui a experiência de Bordeaux, se centra no respeito à lei e na restauração da relação da criança com o genitor descontínuo. Nessa perspectiva, o trabalho consiste em restabelecer ou preservar a relação de parentalidade, sem procurar reativar as relações entre os ex-cônjuges. Os serviços que seguem esse modelo apresentam grande homogeneidade nos modos de intervenção, têm a mesma denominação ( point de rencontre ), dividem a mesma referência teórica – a psicanálise – e aplicam os mesmos princípios de gratuidade de serviço e de confidencialidade. Apesar das diferenças, concluem os autores, esses dois modelos comungam do princípio de manutenção dos laços entre a criança e seus pais biológicos após o divórcio, oferecendo-se como um lugar apropriado para regular tais relações. A outra questão que se coloca é a respeito da relação dos pontos de encontro com a Justiça. Ora, na medida em que a maioria das famílias é encaminhada pelos Juízes de Família e de Infância e Juventude, os profissionais são levados a ter contatos estreitos com os operadores de Direito.
Mercier (1998), assistente social do ponto de encontro de Bruxelas, afirma que os magistrados aceitam que tais serviços não sejam meros auxiliares da justiça. O papel dos pontos de encontro é possibilitar à família a tomada das rédeas de seu próprio destino, sendo necessário, para tanto, que a experiência de julgamento e de interdito não recaia como constrangimento, mas como um “terceiro instaurado no espaço entre Eu ( moi ) e Outro”. Por sua vez, J-L Renchon (1998) concebe o ponto de encontro como um instrumento protetivo da infância ao qual o juiz recorre no quadro de procedimento judicativo. Assim, espera-se que sejam feitos relatórios concernentes ao desenrolar do exercício do direito de visita, garantido por medida judicial, sendo reservado à instituição o direito de não transmitir o conteúdo das entrevistas com a criança e os genitores. Por fim, indaga o autor, se os espaços de encontro adquirem significativa força simbólica por possuírem independência em relação ao poder judiciário, pode-se também discutir a força simbólica que resultaria de sua integração à dinâmica do procedimento judicial. As divergências a respeito das relações dos Espaços de Encontro com a Justiça não eliminam o consenso de que eles todos visam garantir o direito universal da criança e do adolescente de conviver com os seus pais. Guarda compartilhada e novo Código Civil: o reforço da responsabilidade parental, o fim da falta conjugal e do pátrio poder O direito inalienável da criança em manter o convívio familiar – consagrado, como vimos acima, na Convenção Internacional – constitui o eixo nevrálgico do dispositivo jurídico da guarda compartilhada. A criança tem o direito de ter contato, ser educada e ser conservada na responsabilidade legal de seus genitores, mesmo que separados, salvo quando o seu interesse torna necessária a guarda unilateral. Em outras palavras, o direito prevalece sobre a noção de interesse, mas não o exclui. Faz-se a ressalva de que o direito de convivência da criança não é o único fator implicado na responsabilização de genitores não casados em relação aos filhos. O questionamento dos tradicionais papéis de gênero, que fixam a convivência infantil à mãe, e o fim do critério de falta conjugal no estabelecimento da guarda são fatores também importantes que ganham expressão na guarda compartilhada (BRUNO, 2002). Melhor dizendo, as atribuições de gênero forjadas ao longo dos séculos XVIIXIX modificaram-se nas últimas décadas do século XX, de modo que as mulheres foram lançadas ao espaço público e os homens, conduzidos ao espaço privado. Com efeito, o Direito se adaptou a esses novos padrões, tal como observamos acima a propósito da Constituição Federal, que estabeleceu a isonomia conjugal e decretou o exercício do poder familiar em pé de igualdade pelo pai e pela mãe. Não há presunção legal de que a mãe é mais qualificada do que o pai. Por sua vez, se a ordem jurídica prima pela proteção integral da infância, é mais coerente que ambos os pais compartilhem o poder familiar ¹⁹ . Na França, a legislação estabelece que o Juiz deve priorizar o exercício em comum da autoridade parental, mesmo nos casos em que a separação não é
amigável. Por sua vez, a autoridade unilateral só deve ocorrer nos casos que atendem aos interesses da criança. Observa-se também que, em 1993, o termo “guarda”, junto ao Direito de Família Francês, é substituído pelo de “autoridade parental conjunta”, na medida em que aquele causava muitos conflitos. O genitor que possuía a “guarda” era considerado detentor de todos os direitos sobre a criança, de modo que, com a troca do vocábulo, espera-se produzir uma nova atitude dos genitores (BRITO, 1996). O dispositivo de guarda conjunta, ou compartilhada, tem o objetivo de reforçar os sentimentos de responsabilidade dos pais separados que não habitam com os filhos. Privilegia-se a continuidade da relação da criança com os dois genitores que, simultaneamente, devem se manter implicados nos cuidados relativos aos filhos, evitando-se, como resultado da separação conjugal, a exclusão de um dos pais do processo educativo e a consequente sobrecarga do outro. Há certa confusão entre os termos que definem as guardas que se diferenciam da guarda monoparental. A guarda compartilhada não corresponde necessariamente à guarda alternada, cujo pressuposto é de que a criança deve passar períodos alternados na companhia dos pais. Desse modo, deve-se distinguir a guarda física compartilhada – equivalente à alternada – da guarda legal compartilhada. Nesta última, os dois genitores exercem conjuntamente as decisões importantes aos filhos, embora somente um deles possua a guarda física (BRUNO, 2002). Em outras palavras, não se trata na guarda conjunta do deslocamento pendular da criança entre os lares de seus pais ou de qualquer outra divisão rígida de convivência. Dolto (1989) afirma que a guarda alternada é prejudicial até os doze ou treze anos de idade, uma vez que a quebra de um continuum espacialsocialafetivo leva a criança à dissociação, à passividade e a estados de devaneio. Não por menos, a guarda alternada foi proibida na França em 1984, ao mesmo tempo em que se valorizou a guarda compartilhada. Deve-se ressaltar que, se a guarda compartilhada prevê a permanência contínua na residência de um dos genitores, isso não significa que a criança seja desestimulada a conviver mais estreitamente com o outro e que a moradia deste não seja um “lar” para o seu filho. Ao contrário, a guarda compartilhada, mesmo sendo compreendida como legal e não física, deve incitar a convivência do filho com o genitor não coabitante para além dos tradicionais finais de semana quinzenais que eram relegados ao “pai visitante” e “provedor”. Mas, vale dizer, não é a divisão meramente quantitativa de tempo que traduz aquilo que é mais importante para a criança, e sim a qualidade do convívio, por meio da qual se constrói o laço de afinidade entre as gerações. Além do mais, acrescenta-se o fato de que os períodos de férias e finais de semana podem ser mais educativos do que o período escolar, na medida em que favorece um contato mais profundo e sem a obrigação de trabalho tanto para os pais quanto para os filhos (DOLTO, 1991). A legislação americana prevê que a homologação da guarda compartilhada deve ser precedida da apresentação de uma proposta dos pais, na qual figura o item de que compreendem que essa modalidade de guarda não
significa necessariamente tempo igual com a criança, entre outros quesitos, tais como o esquema de permanência da criança com cada um, as formas de resolução de questões não previamente definidas, a previsão de periodicidade de revisão da proposta etc. Observa-se que a guarda compartilhada, como os demais modelos, não é panaceia para todos os conflitos familiares. Como observa Grisard Filho (2003), ao mesmo tempo em que ela é benéfica para pais cooperativos, ela pode não funcionar para outras famílias. Contudo, a guarda compartilhada tem a vantagem de ser bem-sucedida mesmo quando o diálogo entre os pais não é bom, mas são capazes de discriminar seus conflitos conjugais do exercício da parentalidade. Segundo Motta (2005), não é necessário sequer que os pais sejam colaboradores e capazes de diálogo e entendimento para se estabelecer a guarda compartilhada, bastando para tanto que as partes não desqualifiquem um ao outro e nem lancem os filhos em conflitos de lealdade. Apesar das observações acima, não há consenso ainda entre os operadores do Direito se a guarda compartilhada deve ser imposta automaticamente por medida judicial ou homologada por iniciativa espontânea do casal. Brito (2003) rebate a contestação feita à guarda conjunta com base na necessidade de uma autoridade diretiva única na criação dos filhos. A autora indica que tal compreensão remonta ao ideal do casamento-fusão, no qual se supõe que o casal esteja “unido para sempre”. Ela observa que foram esses mesmos argumentos utilizados contra a igualdade entre homem e mulher na direção da sociedade conjugal, celebrada pela Constituição. À época, diziase que seriam estimuladas situações de confronto incontornáveis no âmbito familiar, jamais verificadas, ao menos por essas razões. Tais argumentos são semelhantes à ideia de que deve haver um comando único na guarda dos filhos, tornado inviável com a cogestão pressuposta na guarda conjunta. Ora, ressalta Brito, a autoridade conjunta não significa que o casal parental precise adotar práticas educativas iguais, mas que cada um deve aprender a conviver com as diferenças na educação dos filhos. Apoiando-se em Théry, Brito conclui que as diferenças nos códigos educativos por pais separados não são problema para a criança, pois a diversidade faz parte da socialização infantil. Bruno (2002) lança luz sobre as indicações e as contraindicações da guarda compartilhada. Além dos casos em que a criança possa ser exposta a uma situação de violência doméstica, pressupõe-se que seja também contraindicado impor a guarda compartilhada a casais que vivem em conflito. A manutenção do contato entre os ex-cônjuges pode perpetuar o conflito e fazer com que a criança se sinta prisioneira da desordem parental. Por sua vez, destacam-se veementes vantagens da guarda compartilhada, entre as quais de que ela auxilia no ajuste das crianças ao divórcio e reduz as dificuldades que estas enfrentam em se adequarem às novas rotinas de vida. Mas no fim das contas tais vantagens e desvantagens dependem de variáveis que devem ser analisadas não de forma absoluta, mas no entrecruzamento de umas com as outras. Assim, fatores tais como idade, sexo e
temperamento dos filhos, assim como a relação entre pais e filhos e dos genitores entre si, devem ser considerados como determinantes na adaptação dos filhos ao pós-divórcio dos pais. Além do mais, outros prérequisitos devem ser considerados no estabelecimento da guarda compartilhada: a capacidade de cada um dos pais de transmitir confiança e respeito ao outro genitor, focar no bem-estar da criança e não considerá-la como posse, estar disposto a fazer concessões, ser capaz de falar com o excônjuge ao menos no que diz respeito à criança, reconhecer e aceitar as diferenças, entre outras qualidades. Seguindo esse raciocínio, Bruno faz ressalvas quanto à aplicação da guarda compartilhada nos casos em que os litígios já estejam arraigados no relacionamento do ex-casal. Assim, sugere que seja estabelecido um projeto de análise da eficácia da medida num prazo mínimo de cinco anos. A conclusão é de que tais medidas têm como sentido a liberação da convivência da criança frente a qualquer conflito que seus pais tenham entre si. Todavia, é importante lançar alguns questionamentos em face dos argumentos da autora acima. Em primeiro lugar, o elenco de pré-requisitos deveria ser válido para todo e qualquer tipo de guarda e não somente em relação à guarda compartilhada. Melhor dizendo, condicionar a aplicação de guarda compartilhada a pré-requisitos não resolve o problema, a saber, a esfera de animosidade e de resistência à resolução do conflito. Como Grisard Filho adverte, a prática da guarda compartilhada “deve ser estimulada tanto no litígio quanto no consenso, até porque muitos litígios acontecem em razão da contrariedade de os pais serem colocados como visitantes” (GRISARD FILHO, 2005: 85). Em segundo lugar, decisões tais como: guarda, visita, pensão, entre outras, podem ser modificadas a qualquer momento. Desse modo, estabelecer prazos fixos para a revisão de alguma decisão referente à guarda pode engessar o dinamismo próprio aos ciclos familiares. Por fim, a ação de livrar a criança dos conflitos paternos deve ser feita de forma bastante criteriosa, sob o risco de reeditar a tutela higienista ao qual foi submetida a família pequeno-burguesa desde que foi estrategicamente valorizada na aurora da Modernidade. Certamente a criança deve ter a sua integridade preservada frente ao conflito parental, não obstante, faz parte de seu aprendizado tornar-se capaz de se servir das funções que seus pais ocupam, mesmo que fujam dos padrões tradicionais de “família normal”. Enquanto que em muitos países a visão da criança como sujeito de direitos promoveu em breve tempo alterações na legislação referente ao Direito de Família, no Brasil foi preciso a promulgação de uma lei específica, mesmo depois da reformulação recente do Código Civil. Com a vigência do Código Civil de 2002, que substitui o Código Civil de 1916, o critério de falta conjugal na definição da guarda é definitivamente revogado, sem que, por sua vez, tenha sido contemplado o instituto de guarda conjunta. Em outras palavras, cai por terra a falta conjugal, mas permanece a guarda monoparental.
Se antes, com a Lei do Divórcio, como vimos acima, no artigo 10, a mãe ficava com os filhos em não havendo acordo e sendo ambos os genitores responsáveis pelo fim do casamento, com o Código de 2002 a guarda é atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la (art. 1.584). Desse modo, as regras de cessão da guarda estão diretamente vinculadas ao interesse da criança e do adolescente. Um ponto importante do novo Código é que ele põe fim ao pátrio poder, cedendo lugar ao conceito de poder familiar (art. 1.631). Com efeito, o poder é estendido à mãe, pressupondo a divisão da responsabilidade na guarda, educação e sustento dos filhos. E, se houver divergência entre marido e mulher, não prevalece a vontade de nenhum dos dois, sendo o Judiciário que concede a solução. Outro aspecto é o estabelecimento de que a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos, senão quanto ao direito que aos primeiros cabe de terem em sua companhia os segundos (art. 1.632). A legislação inova também ao reduzir o grau de parentesco até quarto grau, legitimar a falta de amor como motivo para pedir a separação sem perda do direito de pensão, conceder efeito civil ao casamento religioso em qualquer culto, estabelecer a igualdade absoluta de todos os filhos, incluídos os adotados, abreviar a maioridade civil de 21 para 18 anos, negar o adultério como causa preponderante na separação, entre outros aspectos. Em contrapartida, o novo Código é objeto de críticas por não formular nada sobre união entre homossexuais, clonagem, inseminação artificial, proteção do sêmen, barriga de aluguel, transexualismo, exame de DNA para investigação de paternidade, entre outros assuntos relevantes postos na ordem do dia. Finalmente, a lei que institui e disciplina a guarda compartilhada (lei nº 11.698) foi sancionada em junho de 2008, alterando os artigos 1583 e 1584 do Código Civil de 2002. Nela, a guarda compartilhada é definida como “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” (art. 1583 § 1o). Tal Lei não elimina a guarda unilateral; ao contrário, a atribui ao genitor com mais aptidão a propiciar aos filhos afeto, saúde, segurança e educação. Tanto a guarda monoparental quanto a compartilhada pode ser requerida por consenso dos genitores ou decretada por ordem judicial. Por sua vez, o enunciado da Lei é claro quando diz que “quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada” (art. 1584§ 2o ). A equipe interdisciplinar pode orientar o juiz quanto às atribuições parentais e os períodos de convivência sob a guarda conjunta. Na medida em que o instituto da guarda compartilhada visa garantir o direito de convivência da criança com ambos os pais, ele vai de encontro a um fenômeno ao qual o psiquiatra americano Richard Gardner deu visibilidade em 1985, nomeando-o de “Síndrome de Alienação Parental”.
A síndrome de alienação parental A SAP corresponde às ações de um dos genitores, normalmente o guardião, que “programa” a criança para odiar o outro sem qualquer justificativa. Identificando-se com o genitor alienador, a criança aceita como verdadeiro tudo que ele lhe informa. Desse modo, são implantadas na criança “falsas memórias” a respeito do genitor alvo das acusações. Para conseguir realizar tais objetivos, o alienador lança mão, muitas vezes sutil e paulatinamente, de uma campanha denegridora em relação ao ex-cônjuge, ao mesmo tempo em que costuma se colocar como vítima frágil de suas ações. Tal campanha pode começar antes mesmo da separação e continuar por muito tempo depois. O alienador encoraja a criança a criticar o outro genitor e aceita como válida qualquer queixa que ela faça a respeito dele. As diferenças de valores e opinião do ex-cônjuge são qualificadas pelo genitor alienador como sendo abusivas. Com efeito, ele vê tais diferenças como falhas morais do outro, em vez de concebê-las como expressão da diversidade. Para agravar a situação, o alienador acha que o filho experimenta alto estresse quando em contato com o outro genitor. De fato, acontecem situações de as crianças apresentarem comportamento impróprio ou somatizações após a visita do genitor descontínuo. Tais sintomas são utilizados como “prova” de inadequação das visitas e, logo, como pretexto para interrompê-las (BRITO, 2003). A emoção de ver o genitor com o qual não encontra habitualmente pode fazer a criança vomitar ou ter outras reações psicossomáticas, sendo, como diz Dolto (1989), uma linguagem que a criança não sabe verbalizar. Não é sinal de recusa da criança de ver o outro genitor. “A linguagem é sempre positiva, e através do distúrbio ela está indicando algo que não sabe dizer” (DOLTO, 1989: 56) ²⁰ . A criança pode ter dificuldades de amar ambos os pais, porque acha que um deles é mais infeliz do que o outro e que foi esse outro que tornou aquele mais infeliz. Na medida em que o genitor alienador se coloca como sofredor, ele lança a criança num conflito de lealdade exclusiva ou, quando esta demonstra alguma proximidade com o genitor alvo, ameaça abandonála ou mandá-la viver com este último. O genitor alienador pode lançar mão, inclusive, de denúncias falsas de abuso sexual e induzir a criança a acreditar que ela própria foi vítima de tal violência. De acordo com estatísticas norte-americanas do Centro Nacional de Abuso Infantil , em 1988, as denúncias falsas ou errôneas de abuso sexual superaram em dobro o número dos casos constatados. Um dos elementos que facilitou o boom de erros diagnósticos era o hiato de conhecimento de psicólogos e de profissionais de saúde. Um erro comum desses especialistas era o fato de que se baseavam unicamente no discurso da mãe como fonte de informação. Outro problema era o emprego de práticas de efeito sugestivo e indutor como, por exemplo, as bonecas anatomicamente corretas. Com efeito, o Comitê de Especialistas da Associação Americana de
Psicólogos definiu que não havia teor científico nas considerações clínicas baseadas no jogo de bonecas, não podendo ser utilizadas para fins legais. Assim, as Varas de Família norte-americanas proibiram tais bonecas enquanto teste diagnóstico (CALÇADA, 2008). É importante lembrar sempre que, quando da acusação inicial, a criança pode ter sido influenciada por um dos pais propenso à alienação parental. Logo, antes de se precipitar em nome da proteção da criança, cabe ao psicólogo analisar minuciosa e cuidadosamente o contexto da acusação inicial de abuso contra um de seus genitores (CALÇADA, 2008; MOTTA, 2007). Dependendo do grau de alienação parental, diferentes medidas podem ser tomadas. Acredita-se que a maioria das situações pode ser revertida, mas, normalmente, a intervenção e o tratamento psicológicos não produzem efeitos se forem exercidos sem o procedimento judicial. Associado ao tratamento psicológico, Gardner e outros autores sugerem nos casos de alienação grave ou moderada a inversão de guarda, suspensão de visitas do alienador, imposição de multa, prestação de serviços comunitários, redução da pensão alimentícia e até mesmo ordem de prisão e suspensão ou perda do poder familiar. Em face desse panorama, no Brasil, foi sancionada a lei 12.318, que pune a conduta de pais e parentes alienadores – estabelecendo como punição advertência, multa, perda da guarda e suspensão da autoridade parental –, assim como a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente, tempos depois de muitos outros países já estabelecerem os meios legais de prevenir e punir a SAP ²¹ . Contudo, é importante frisar que a criminalização de conflitos de foro íntimo não parece ser uma das melhores saídas. Longe de propor a criminalização, Féres-Carneiro (2007) afirma que para compreender a SAP, é importante entender a separação conjugal. A concepção de casamento e a experiência de término da união conjugal são geralmente distintas entre homem e mulher, observando-se que a grande maioria das demandas de separação é feminina. Enquanto as mulheres concebem o casamento como uma relação amorosa, para os homens é valorizada a ideia de “constituição da família”. Desse modo, quando a relação conjugal não vai bem na vertente amorosa, a separação costuma ser inevitável para as mulheres. Uma vez que o projeto de constituir uma família é interrompido com a separação, para os homens os sentimentos que sobrevêm são de frustração e fracasso. Por sua vez, as mulheres vivenciam os sentimentos de mágoa e solidão na medida em que a “relação de amor” termina. A autora propõe a terapia de família como sendo a alternativa mais adequada, favorece a distinção entre os sentimentos da separação conjugal e os atributos parentais. Acrescentemos que a alienação parental nem sempre se faz através de atos voluntários e conscientes. É frequente a situação em que o “alienador” se isenta de interferir nas visitas do outro genitor, mostrando-se ostensivamente resignado à força da lei e se esquivando de falar mal do outro, chegando a ponto de dizer palavras de incentivo ao filho. Mas tal discurso encontra-se em desacordo com o seu desejo que, por sua vez, se
expressa de modos não verbais e que são facilmente decodificados pela criança ou pelo adolescente. Ademais, não se pode perder de vista o aspecto relacional. Desse modo, sem generalizar, pode haver alguma participação inconsciente do genitor alvo da alienação que o impede de superar as dificuldades de convivência com a prole. Acrescentamos, enfim, não ser recomendável que o atendimento psicológico às crianças seja pautado por tentativas de negociação em torno da vontade de ver ou não o pai ou a mãe. Existe uma demissão educativa que paira sobre a SAP e que, portanto, merece ser lembrada pelo psicólogo. Exercer uma autoridade e impor uma proibição, mesmo que esta vá ao encontro das vontades particulares da criança, é um ato performativo de linguagem que não precisa ser justificado, tampouco se sustentar com base em chantagens e ameaças (KEHL, 2003). Argumentar pura e simplesmente com a criança ou o adolescente a respeito de sua vontade pode gerar uma esfera de negociação infinita que termine por inviabilizar a aproximação desejada com o seu genitor. Segundo Dolto (1989), é um dito estruturante para a criança dizer que ela não tem o direito de fazer mal ao genitor que ama, porque faz mal a si mesma. Evidentemente, a dimensão psicológica não pode estar desatrelada do plano político-histórico. Nesse contexto, Valente (2007) delineia, à luz da SAP, um interessante questionamento da família centrada na figura da mãe, fruto de um assenhoramento histórico da mulher frente às relações familiares em geral e do modelo bipolar da família nuclear. A autora ressalta de antemão que, se Richard Gardner foi bem sucedido em identificar a SAP e, assim, contribuir para a proteção da criança, por um lado, por outro, ele lança mão da definição de síndrome, que é uma categoria médica e, como tal, obedece à lógica das ciências naturais. Contudo, convém alargar o conceito de SAP até às fronteiras das ciências humanas. Seguindo esse raciocínio, Valente remonta historicamente as disputas familiares em torno da criança a um status de cidadania concedido às mulheres, oriundo de lutas políticas nas quais elas reivindicavam a guarda dos filhos. A ideia de cuidado infantil foi remetida ao “universo feminino”, circunscrevendo a mulher ao espaço doméstico-familiar. Desde o advento da modernidade industrial, ela passou a assumir a identidade de “mãe amorosa”, cujas ações de cuidado não fariam parte do universo masculino. Todavia, a valorização da maternidade não eliminou a desigualdade entre os gêneros, pois se tratou de uma cidadania que foi concedida para proteger o ser frágil da mulher ou reequilibrar a família.
Vimos acima como isso se refletiu nas legislações brasileiras, assim como também o fato de que essa primazia da maternidade cedeu lugar, de modo geral, à doutrina de “melhor interesse da criança”, colocando os pais em igualdade na disputa de direitos em torno dos filhos. Contudo, observa Valente, as leis de igualdade entre homens e mulheres foram fundadas num fundo de desigualdade, haja vista a manutenção de expectativas e obrigações diferenciadas. As disputas familiares são uma extensão do campo de batalha da política de gênero. Esta é a chave explicativa para compreender que, quando a mulher se sente ameaçada da perda do espaço ao qual ela foi destinada ao longo dos últimos séculos, tal como ocorre numa disputa de guarda, ela tende a reagir. Com efeito, os profissionais devem entender que o movimento de negar o acesso do pai à criança não resulta de caráter mórbido, mas se refere à busca do reconhecimento de identificação e de cidadania. Tais profissionais, inclusive os psicólogos, devem buscar formas de romper esse assenhoramento feminino, já que não faz mais do que perpetuar a desigualdade entre os gêneros. A ruptura pressupõe, vale dizer, um aspecto político, pois ela requer a superação da cidadania por concessão em prol da cidadania em sua plenitude. Para tanto, ressalta a autora, é preciso ouvir os pais alienadores com respeito e acuidade, evitando-se assim se tornar mais um componente do litígio (VALENTE, 2007). Leis mais recentes e considerações finais A matéria de Família costuma ser uma das mais dinâmicas do Direito. Recentemente, surgiram duas modificações que se somam aos marcos reguladores das famílias no Brasil, sendo, portanto, dignas de menção. Em primeiro lugar, foi sancionada em julho de 2009 a lei 12.004, que altera o artigo 2o da Lei da Paternidade (8.560), vista acima, estabelecendo que o homem que se recusar a fazer teste de DNA em uma ação judicial de investigação de paternidade será considerado pai da criança. Em segundo, foi sancionada em abril de 2009 a Lei 11.924, que autoriza o enteado ou enteada a adotar o sobrenome do padrasto ou da madrasta, devendo, para tanto, haver solicitação do registro a um juiz e comprovação de que o padrasto ou a madrasta concorda com o ato. De acordo com a proposta, a adoção do sobrenome pelo enteado ou enteada não é obrigatória e não exclui o nome do pai biológico. Por ora, o projeto não recebeu sanção presidencial. À guisa de conclusão, vale ressaltar que o modelo de família na legislação brasileira não é reflexo das relações vivenciadas em toda a extensão da sociedade, muito mais heterogênea do que a lei pode pretender, e sim a codificação nascida da preocupação do Estado em reconhecer, nos termos legais, os laços familiares, a definição do poder marital e paterno e a regulamentação do regime de bens. Ao regular as relações entre pais e filhos, marido e mulher e dependentes de vários matizes, e ao organizar a
estrutura do casamento e do regime de bens, o legislador cumpre uma função não só normativa, mas, principalmente, valorativa, que codifica ao nível do Direito o lugar que cada membro da família e do casal deve ocupar (ALVES & BARSTED, 1987). Por sua vez, no plano das práticas, isto é, ao serem aplicadas, as leis apoiam e são apoiadas por micropoderes, periféricos ao sistema estatal, que penetram no lar doméstico, invadem o cotidiano e se multiplicam sob a forma de práticas médicas, terapêuticas, sociais e educativas (FOUCAULT, 1997). Há uma colonização recíproca entre o Direito e as práticas de disciplina e normalização. Ao mesmo tempo em que a legislação absorve valores imanentes às práticas de normalização médica ou psicológica, entre outros saberes, ela serve de vetor e suporte para procedimentos de vigilância, controle e exame irredutíveis às regras do Direito e de suas respectivas sanções (FOUCAULT, 1997). A doutrina da proteção integral e a prevalência do interesse da criança na definição da guarda fazem surgir a necessidade de subsídios psicológicos, entre outros saberes, para a decisão judicial. Contudo, a restrição do psicólogo ao papel de perito não faz mais do que perpetuar o conflito que permeia a maioria das ações judiciais, impondo prejuízos emocionais, sobretudo para as crianças e os adolescentes envolvidos. Observam-se outras possibilidades de atuação que possam promover relações mais saudáveis entre os familiares, além de atender aos interesses objetivos da instância judiciária. São inegáveis as contribuições que a prática psicológica pode oferecer a essa matéria do Direito, haja vista a dificuldade de se abordar hoje em dia as relações humanas como se fossem determinadas pela objetividade jurídica (PEREIRA, 2001). Todavia, não se deve perder de vista que o saber psicológico aplicado às Varas de Família não é isento das relações de poder, cabendo interrogar se as práticas que visam a resolver os impasses do cotidiano fazem proliferar mecanismos de tutela cada vez mais sofisticados e menos visíveis. Em face desse panorama, pensar a psicologia jurídica é incidir estrategicamente nos jogos de poder que operam nos interstícios das alianças entre o Direito e a Psicologia. Cabe concluir com as palavras de Foucault que, num debate com Gilles Deleuze sobre “Os intelectuais e o poder”, diz: O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso. É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática: ela é uma prática. Mas local e regional (...): não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e insidioso. (FOUCAULT, 1979: 71) Bibliografia
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foram apontados outros dados significativos: houve o crescimento no número de lares com pais masculinos que têm a guarda dos filhos menores de 16 anos, de 7,8%, em 1997, para 9,8%, em 2007. Ocorreu também um aumento geral no número de famílias lideradas por pais separados com filhos menores de 16 anos, de 19,2% em 1997 para 21,8% em 2007. Em contrapartida, houve baixa no número de mulheres que chefiam famílias nos quais todos os filhos são menores de 16 anos, de 92,2% em 1997 para 90,2% em 2007. 7 Pereira observa que conferir efeitos jurídicos ao concubinato adulterino significa quebrar o sistema jurídico pátrio fundado no princípio da monogamia. “A amante, amásia — ou qualquer nomeação que se dê à pessoa que, paralelamente ao vínculo do casamento, mantém uma outra relação (...) — será sempre a outra, ou o outro, que não tem lugar oficial em uma sociedade monogâmica. (...) É um paradoxo para o Direito proteger as duas situações concomitantemente. Isto poderia destruir toda a lógica do nosso ordenamento jurídico, que gira em torno da monogamia” (PEREIRA, 2004: 7). 8 No Brasil, a ação de divórcio é personalíssima, e somente marido e esposa são titulares. Como em qualquer outra ação, as crianças podem ser ouvidas pelo juiz caso este ache necessário, mas o Ministério Público já atua obrigatoriamente na defesa dos seus interesses que são considerados prioritários. Há a hipótese de nomeação de um curador especial em caso de conflitos de interesses. 9 Sobre as tentativas de aferição psicológica para definição da guarda e as críticas que lhes são dirigidas, cf. Brito, 1999a. 10 Jurista e psicanalista francês. Diretor de estudos da École pratique des hautes études; fundador e professor emérito do Laboratoire européen pour l'étude de la filiation. 11 A concepção de significante paterno foi criada por Jacques Lacan (1901-1981) que, como veremos mais adiante, iniciou o seu pensamento principalmente a partir da releitura dos textos de Freud à luz da antropologia estrutural de Lévi-Strauss e da linguística de Saussure. Desde o momento em que inaugura a reflexão teórica a respeito da função e do campo da palavra e da linguagem, Lacan assinala a primazia do significante – tida por Saussure como a representação psíquica do som – sobre o significado e torna célebre a fórmula “o significante representa o sujeito para um outro significante”. 12 Dita por Lacan, fálica, para maiores esclarecimentos, cf. Lacan, 1999. 13 Advogado especialista em Direito de Família; presidente nacional do IBDFAM. 14 Convém observar que o encaminhamento psicológico não é, por si só, suficiente para reconfigurar o conflito. Como eu mesmo observo, se “fosse assim, a primeira reação frente ao psicólogo não seria semelhante à manifestada em face do juiz, quando testemunhas e documentos são mencionados a torto e a direito” (BRANDÃO, 2002: 50).
15 Dos Estados Unidos provém um grande número de estudos relativos à psicoterapia de casal e de sua necessidade no decorrer do processo judiciário, sendo uma obrigação social o atendimento a situações traumáticas relacionadas à separação. Mas de uma maneira geral o foco prende-se aos problemas adversariais ou à necessidade do entendimento mútuo, sem que sejam verificadas tentativas de sistematização clínica das determinações psíquicas do problema e, desse modo, a atenção acaba se concentrando nas consequências e nas técnicas para remediá-las (VAINER, 1999). 16 O projeto de Lei foi aprovado pelo Senado somente em 2006, porém arquivado em 2007, como veremos adiante. 17 Antes de seu arquivamento, foi aprovado um substitutivo que limitava os mediadores judiciais aos advogados com pelo menos três anos de efetivo exercício de atividades jurídicas, capacitados, selecionados e inscritos no Registro de Mediadores. Certamente, convém dizer, tal limitação é controversa se considerarmos a natureza supostamente interdisciplinar de seu exercício. 18 Points de rencontre. 19 Mesmo que a guarda seja unilateral, o poder familiar cabe a ambos os genitores. 20 Para garantir as visitas e a convivência com o genitor descontínuo, Dolto (1989) sugere lugares neutros formados por equipes interprofissionais, cuja proposta parece ser idêntica ao point de rencontre , abordado anteriormente. Ela acrescenta que o genitor contínuo não deve manter a criança consigo mesmo quando ela apresenta um dito pelo corpo, se recuse a ver o outro genitor ou quando este não comparece, de modo que a criança sinta que a lei tem importância e que ela tem que respeitá-la. 21 Por exemplo, a Argentina, cuja lei 2427 de 1996 estabelece que genitores alienadores podem ser punidos com prisão efetiva (CALÇADA, 2008). O PSICÓLOGO E AS PRÁTICAS DE ADOÇÃO Lidia Natalia Dobrianskyj Weber Fontes históricas, assim como mitos e lendas, mostram que a adoção é uma instituição com séculos de existência. Desde as primeiras civilizações, costumava-se adotar uma criança como uma forma de manutenção da família ou para perpetuar o culto ancestral doméstico. O objetivo principal desta medida não era necessariamente “proteger a criança”, pois a filosofia do “melhor interesse para a criança” tem origens recentes em todo o mundo. No passado, a adoção tinha somente o objetivo de ser um instrumento para suprir as necessidades de casais inférteis, e não como um meio que pudesse dar uma família para crianças abandonadas. Esta modalidade de adoção é conhecida como “adoção clássica” e ainda hoje, no Brasil, este tipo de adoção predomina, em detrimento da chamada “adoção moderna”, cujo objetivo é garantir o direito a toda criança de crescer e ser educada em uma família.
O conceito de adoção tem variado ao longo da história, tanto de maneira legal quanto de maneira informal. Do conceito jurídico de “obtenção de um filho através da Lei” até a “adoção com reais vantagens para a criança” do nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), um longo caminho foi percorrido em todo o mundo. Transformar as concepções pessoais embasadas em noções jurídicas, sociais e históricas é um árduo trabalho de conscientização social e nem sempre leis e legisladores são suficientes para a mudança de comportamento. Existem diferentes definições de adoção e entre elas está a de Robert (1989: 25), para quem a adoção é “a criação jurídica de um laço de filiação entre duas pessoas”, sendo que todas as palavras desta definição são importantes: é a criação , através da esfera jurídica , e filiação . No Brasil, é bastante conhecido o sistema de “adoção” que foge do processo legal, chamada – de modo pejorativo – de “adoção à brasileira”, que ocorre quando uma pessoa registra como seu filho legítimo uma criança nascida de outra mulher. Em verdade, trata-se de uma adoção informal, ilegal, mas que não ocorre somente no Brasil, portanto é um termo inadequado. A adoção está embasada em uma realidade biológica, social, psicológica e afetiva, e essa sua multideterminação torna-a mais complexa, apesar de que, para os pais, a adoção significa simplesmente ter um filho (WEBER, 2001). Além de fontes históricas tradicionais, mitos, lendas, histórias em quadrinhos, filmes e novelas tratam do tema adoção. A cultura através de histórias fictícias permite às pessoas elaborarem situações afetivas que são desconhecidas e temidas ao longo dos tempos, instituindo-se pontes conceituais que lhe favorecem a compreensão. Devemos lembrar que antes da adoção sempre existe uma história que remete ao abandono (mesmo que tenha sido uma “entrega” para adoção) ou à morte de seus pais, e isso jamais pode ser esquecido quando se deseja entender a perfilhação (WEBER, 2001). Muitos mitos gregos e romanos tratam deste tema: Hércules, um semideus, foi adotado por Anfitrião, que o preparou para a vida como seu filho de sangue; a deusa Atenea adotou Erictônio, uma criança nascida da semente que Hefesto, o guerreiro divino, havia derramado na terra enquanto tentava unir-se a ela através da força; o épico Ilíada, de Homero, também traz uma história de adoção: Páris era o filho do Rei de Tróia, Priamo, que foi rejeitado ao nascer devido ao medo dos pais de uma maldição dos deuses e foi criado por um fiel colaborador de seu pai em um local afastado. Na vida adulta, Páris conhece sua história e procura seus pais genéticos, que acabam por acolhê-lo; a fundação de Roma também envolve uma história de adoção dos gêmeos, Rômulo e Remo, que foram abandonados e “adotados” por uma loba e, posteriormente, educados por pastores; a história de Édipo é um referencial bastante conhecido para a Psicologia; existem ainda muitas figuras místicas que passaram por fugas, adoções e heroísmo, como Perseu, Hermes e Pan, entre outros.
Na Bíblia encontramos a história de nascimento e da vida de Moisés, “filho das águas”, retirado do rio pela filha do Faraó, que decidiu criá-lo; a literatura em geral apresenta incontáveis exemplos de adoções, tais como Tom Jones de Henry Fielding, Grandes esperanças de Dickens, O conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, Os Miseráveis de Victor Hugo, Huckleberry Finn de Mark Twain, Les Natchez de Chateaubriand, entre outros. Também existem inúmeros personagens infantis contemporâneos que exploram o tema: Mowgli , o “menino-lobo”; Bambam é filho adotivo de Beth e Barney no desenho Os Flinstones ; O Rei Leão trata de questões sobre a origem biológica e sobre o compromisso assumido pela família adotiva; Super-homem é um símbolo da necessidade dos adotivos de conhecerem suas raízes; Tarzan é uma bela história de adoções especiais; e Pinóquio também representa uma bonita simbologia da transformação de uma criança em filho (para uma revisão mais detalhada de mitos, lendas e histórias, ver WEBER, 2001). Um filme de animação recente, A Família do Futuro ( Meet the Robinsons, lançado em 2007), adequou-se às questões difíceis e polêmicas da atualidade, tais como crianças vivendo em instituições e o desejo de uma criança idealizada por parte dos adotantes. No final do filme, a família do futuro é aquela que adota Lewis, um garoto diferente, de 12 anos, mostrando que é possível superar obstáculos. A Adoção: História e Legislação A questão de como lidar com crianças órfãs e abandonadas existe há muitos séculos. Desde a Antiguidade, todos os povos conviveram com o problema do abandono e, consequentemente, com atos jurídicos para a criação de laços de parentesco. O mais antigo conjunto de leis sobre adoção foi escrito no Código de Hammurabi, que reflete a sociedade mesopotâmica do II milênio a.C. O mais antigo registro de uma adoção foi o de Sargon I, o rei fundador da Babylônia, no século 28 a.C. Os bárbaros, os hebreus e os egípcios recolhiam as crianças sem pais e as assimilavam aos filhos legítimos. Por outro lado, todos os outros povos, particularmente os persas, os assírios, os gregos e os romanos controlavam a demografia com severidade. O pai ou o Estado decidiam se deixavam o recém-nascido viver, se o jogavam à rua ou o matavam. É sabido que na vida romana o direito à vida era concedido, geralmente pelo pai, em um ritual. Para os gregos a adoção era resultado de necessidades jurídicas e religiosas, pois pensavam que uma família e seus costumes domésticos não deviam extinguir-se e, como a herança somente poderia ser deixada para um descendente direto, era possível adotar um estranho, que se converteria em filho legítimo. Em Roma, o direito de um pai sobre seus filhos era ilimitado, assim como relatam as leis de Justiniano: “O poder legal que temos sobre nossos filhos é um atributo especial dos cidadãos romanos, porque nenhum outro homem tem o poder sobre seus filhos como nós” (ROIG e OCHOTORENA, 1993: 13). Neste ritual, o recém-nascido era colocado aos pés de seus pais. Se o pai desejava reconhecê-lo, tomava-o nos braços, se não, a criança era levada para fora e colocada na rua. Se a criança não morresse de frio ou de fome, pertencia a qualquer pessoa que desejasse cuidar dela para fazê-la sua escrava (WEBER, 2009).
Na Idade Média, o papel da Igreja no que diz respeito a questões de parentesco formulava o princípio de não superpor as relações entre duas pessoas. Em virtude deste princípio, que estabelecia o carnal depois do espiritual na criação do vínculo de parentesco, “Leão VI estendeu a capacidade de adotar às mulheres e aos eunucos – não obstante sua incapacidade de gerar” (VEYNE, 1990, p. 473). Porém, a adoção teve um repentino eclipse em toda a Idade Média para reaparecer somente com a Revolução Francesa, pois o direito feudal considerava imprópria a convivência de senhores com rústicos e plebeus em uma mesma família (ARIÈS e CHARTIER, 1991). Borgui (1990) relata que a Igreja, durante a Idade Média, não via com muito agrado tal instituto por ele ser oposto ao casamento, pois, se pessoas podiam gerar filhos não naturais para imitação da natureza e amparo delas na velhice, podiam, por conseguinte, dispensar o matrimônio. Havia “tutores” que se encarregavam dos órfãos, mas a prática de confiar os cuidados e a educação de uma criança, órfã ou não, a outra pessoa, continuou. No caso desses “pais adotivos” ou “de criação”, os laços de afeto e gratidão prescindiam a consagração legal de uma nova situação (ARIÈS e CHARTIER, 1991: 474). Na Idade Moderna, a referência primeira à adoção é encontrada na Dinamarca no ano de 1683, sendo que houve influência dessa legislação no Código Napoleônico. Houve o retorno da adoção com a Revolução Francesa, dessa vez com interesse um pouco maior do adotado e por ocasião da morte dos pais. Do ponto de vista estritamente jurídico, a adoção não existia na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX, mas somente acontecia através da instituição do “aprendizado”: órfãos abandonados ou crianças cedidas pelos pais genéticos integravam-se como aprendizes superiores. Durante séculos, o nascimento de um filho “ilegítimo” era ostensivamente reprovado, ocasionando inúmeros abortos, infanticídios ou nascimentos clandestinos e o posterior abandono da criança. Tentou-se criar um mecanismo social, embora hipócrita, que solucionasse estes escândalos – a Roda dos Enjeitados ou dos Expostos (PERROT, 1991). Dessa história inicial sobre a adoção é possível tirar pelo menos duas conclusões: a primeira é que a adoção nos moldes legais foi uma exceção e a segunda, que a adoção servia especialmente aos interesses dos adultos e não aos da criança (WEBER, 2001). A maioria dos países europeus, com exceção da Inglaterra, construiu sua lei baseada no Código Romano e, posteriormente, no Napoleônico. A Lei americana não foi derivada do direito romano ou napoleônico. Suas raízes estão nas leis inglesas, que não previam a adoção. A maior barreira para a introdução da adoção na Lei comum estava em conflito com o princípio de herança. A terra somente poderia ser transmitida de uma pessoa a outra se estas estivessem ligadas por laços de sangue e não poderia ser dada em vida e nem após a morte por simples vontade do proprietário. A adoção começou realmente a adquirir um sentido mais social, voltando-se ao interesse da criança, após a Primeira Guerra Mundial, por causa do grande número de crianças órfãs e abandonadas. Então a adoção começou a ser entendida como uma solução para a ausência de pais e o bem-estar da criança . No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, este renovado interesse público pela adoção foi incentivado somente a recém-nascidos.
Pilotti (1988) descreve que, na América Latina, existem indícios de que algumas formas de adoção eram praticadas na época colonial em muitos países, mas ela foi ignorada e omitida nas legislações latino-americanas até princípios do século XX. Com o passar do tempo, houve a mudança dessa limitação legislativa, seguindo o exemplo das legislações sobre adoção dos países europeus que não criavam estado civil entre adotantes e adotados, mantendo o vínculo de sangue entre estes últimos e seus pais genéticos. Atualmente, os norte-americanos são, em todo o mundo, os que mais recorrem à adoção e “estima-se que o número de crianças adotadas nos Estados Unidos esteja em torno de cinco a nove milhões, e este aspecto mostra como é importante para a sociedade americana entender e enfrentar as dificuldades nesse tipo de filiação” (SAMUELS, 1990: 6). No Brasil, o abandono de crianças não é uma situação recente. Marcílio (1998: 12) relata que “o ato de expor os filhos foi introduzido no Brasil pelos brancos europeus, pois o índio não abandonava os próprios filhos. Nos períodos colonial e imperial, crianças legítimas e ilegítimas eram abandonadas em diversos locais urbanos, na tentativa dos pais de livraremse do filho indesejado, não amado ou ilegítimo”. Para estas crianças, denominadas enjeitadas , desvalidas ou expostas , foi copiado o “modelo” europeu: a “Roda dos Expostos”, que permitia o abandono anônimo de bebês. As Rodas dos Expostos existiram no Brasil até a década de 1950 e fomos o último país do mundo a acabar com elas. As teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro mostraram-se, inicialmente, favoráveis à utilização da Roda como medida moralizadora e de proteção à mulher. Consistiam, algumas delas, em argumentar sobre a fragilidade da natureza feminina, facilmente levada pelos sentidos e vítima dos libertinos e celibatários – homens inescrupulosos que não se continham ante a tentação de seduzirem as mulheres, tornando-as sem honra e obrigando-as a abandonarem os filhos à caridade pública (ARANTES, 1995: 192). Costa (1988) fez uma completa reconstrução histórica da legislação brasileira sobre adoção (até anteriormente ao Estatuto da Criança e do Adolescente), mostrando que o instituto foi introduzido no Brasil a partir das Ordenações Filipinas, e a Lei de 22 de setembro de 1828 foi o primeiro dispositivo legal a respeito da adoção. À época, os textos jurídicos eram recheados de citações romanas, “ironicamente menosprezando a herança através da tradição judaica e sua influência na ideologia cristã, como nos exemplos de Moisés e Ester e o caso da sabedoria de Salomão na solução de disputa de duas mães por um filho” (COSTA, 1988: 28). No entanto, a referência à adoção nos textos jurídicos era bastante rara anteriormente à elaboração do Código Civil de 1916. Costa argumenta que a inclusão da adoção neste código foi motivo de acirrada polêmica, e a mesma obteve lugar graças à autoridade e pertinácia de Clóvis Beviláqua, que alegou que “a adoção estava muito em uso em vários estados brasileiros”.
As possibilidades de adoção que constam Código Civil brasileiro de 1916 assemelhavam-se àquelas ditadas pelo Código Napoleônico. Eram excessivamente rígidas e, consequentemente, isto dificultava o seu uso social: somente podiam adotar crianças os maiores de 50 anos, sem filhos legítimos ou legitimados. Em 1927 foi criado o primeiro Código de Menores brasileiro (e o primeiro da América Latina), que apresenta definições de abandono e suspensão de pátrio poder (atualmente chamado de poder familiar), diferença entre menor abandonado e delinquente e uma dupla definição de abandono – físico e moral - mas não trouxe nenhuma contribuição à questão da adoção e nem contribuiu para diminuir o número de crianças abandonadas no país, apenas enfatizou a institucionalização de crianças como uma forma de “proteção” à infância. Na Bahia, no ano de 1941, foi oficializada a primeira Agência de Colocação Familiar, que serviu de modelo para outras agências estaduais que se criaram durante esta década (COSTA, 1988). Porém, ao longo do tempo, desvirtua-se o conceito de “proteção” à criança órfã e abandonada para a colocação legal de crianças em famílias com o objetivo de serem utilizadas como serviçais. A Lei 3.133/57 trouxe algumas modificações importantes para a adoção, mas ainda estava longe de ser um recurso simples: a idade mínima do adotante foi reduzida para 30 anos, e a diferença de idade entre adotante e adotado também foi diminuída para 16 anos, permitindo-se a adoção mesmo se o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos. Como na Lei anterior, o vínculo de parentesco restringiu-se ao adotante e ao adotado, mantendo-se o conceito de filiação aditiva ¹ ; os casados somente poderiam adotar depois de transcorridos cinco anos do casamento. Um passo mais amplo foi dado através da Lei 4.655/65, que criou a Legitimação Adotiva , pela qual o adotado ficava quase com os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorresse com filho legítimo superveniente à adoção. De acordo com Bulhões de Carvalho (1977), com esta lei, passaram a coexistir duas modalidades de adoção, regidas diferentemente: uma pelo Código Civil e outra pela nova Lei. O que distinguia a Legitimação Adotiva era a preocupação com o destinatário – a criança abandonada ou que já estivesse há três anos sob a guarda dos legitimantes e com menos de sete anos de idade - com a equiparação em termos de direitos e deveres com os outros filhos do casal e o desligamento com a família de origem (excetuando-se os impedimentos matrimoniais).
Foi somente com a Lei 6.697/79, com a instituição do novo Código de Menores, que houve maior progresso na questão da adoção de crianças: passou-se a admitir uma forma de adoção simples , que era autorizada pelo juiz e aplicável aos menores em situação irregular, e houve substituição da legitimação adotiva pela adoção plena . Com a instituição deste Código passou a haver três procedimentos básicos para a adoção: a adoção simples e a adoção plena, regidas pelo Código de Menores, e a adoção do Código Civil, feita através de escritura em cartório, através de um contrato entre as partes, e denominada também de “adoção tradicional ou adoção civil”. Com o cenário político e social do país nos anos 80, embasado pela Declaração Universal de Direitos da Criança de 1959 e, posteriormente, com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças de 1989, que previa a observação dos direitos humanos das crianças, ocorreu um movimento significativo em relação à proteção da infância. Rizzini (1995: 103) ressalta que, assim como no início do século, a ruptura se deu por intermédio da esfera jurídica com o advento da revogação do Código de Menores. Desta vez, contudo, através de um movimento social sem precedentes na história da assistência à infância no Brasil, que contou com a participação de diversos segmentos da sociedade civil. Deste processo, resultaram a elaboração e a aprovação de uma nova Lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei 8.069, de 13.07.90), considerada uma das leis mais avançadas do mundo. O modo como a adoção foi tratada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente derivou do art. 227 da Constituição Federal, conhecida como a nossa “Constituição Cidadã”: § 6º “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. A importância do ECA para o reconhecimento dos direitos da criança no Brasil é fundamental, em especial no que diz respeito à adoção, pois passa a estabelecer como Lei a igualdade de tratamento entre filhos genéticos e adotivos. Ocorreu maior facilitação para realizar uma adoção com a promulgação do ECA: a idade mínima exigida para o adotante que, antes era de 30 anos, passou a ser de 20 anos, respeitada a diferença de 16 anos entre a pessoa que adota e a que é adotada; autorizou a adoção por pessoas solteiras, viúvas, conviventes e divorciadas; possibilitou a adoção unilateral, que é aquela em que o marido, ou companheiro, pode adotar o filho de sua esposa (ou companheira) sem que haja o rompimento dos laços de família da criança com a sua mãe genética; admitiu a adoção póstuma, na hipótese de o candidato à adoção falecer no curso do processo, e garantiu o pleno direito à sucessão do filho adotado. No ECA, houve o avanço para a teoria da proteção integral em lugar da mera proteção ao menor em situação irregular. Também houve unificação das duas formas de adoção previstas no Código de Menores: a adoção plena e a adoção simples, que passam a não existir mais; existe a adoção, que é plena e irrevogável, e será “deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”. O ECA passa a promover a adoção como primordialmente um ato de amor, e não simplesmente uma questão de interesse do adotante. É importante ressaltar que, com a implantação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, o termo menor caiu em desuso a partir de movimentos de pesquisadores e de defesa dos direitos (WEBER, 2001: 61). No dizer de Marcílio (1998: 227), o Estatuto da Criança e do Adolescente foi tão euforicamente recebido que se chegou a afirmar que “ele promove, literalmente, uma revolução copernicana neste campo”, mas, apesar de todo otimismo previsto, a realidade mostra que ainda há muito chão pela frente para que os direitos cheguem à vida real. No entanto, apesar dos avanços legislativos, todo o processo jurídico para a adoção é considerado “lento e burocrático” pela maioria dos adotantes, tanto aqueles que passaram pelo processo quanto por aqueles que nunca entraram em um Juizado da Infância e da Juventude (WEBER e CORNÉLIO, 1995; WEBER 2001; WEBER, PEREIRA e DESSEN, 2008). A percepção destas dificuldades e “burocracias”, no linguajar dos adotantes, passa a ser, de certa forma, um incentivo para que ocorram ilegalidades na esfera da adoção, acrescidas do fato de que os brasileiros, em geral, querem adotar bebês da cor branca, cujo número é reduzido para a adoção (de certa forma, porque a maioria tende a ser acolhido por uma adoção informal). No Brasil, é bastante difundida a prática de registrar uma criança como filho legítimo, através de um registro falso em cartório, apesar da Lei prever sanções civis para este tipo de adoção: 1. Anulação de registro: na “adoção à brasileira”, registra-se o filho como próprio, ou seja, nascido daqueles pais. (...) Trata-se de uma simulação e a consequência é, desde logo, a anulação do Registro Civil, que cancela todo ato simulado. 2. Perda da criança: mesmo tendo em vista o fim nobre, como o ato impugnado se revestiu de ilicitude, pode ocorrer, também, desde logo, a tomada da criança dos pais “falsos” ou “postiços”. O art. 242 do Código Penal estatui: “dar parto alheio como próprio; registrar, como seu, filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. Pena – reclusão de dois a seis anos”. Em 1981, foi incluído parágrafo único, que tem a seguinte redação: “Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza: Pena – detenção de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena”. Mesmo dentro desse espírito de “reconhecida nobreza”, o juiz condena e impõe a pena e, em um segundo momento, concede o perdão judicial. O réu não cumpre pena nem se torna reincidente, mas há inscrição do seu nome no rol dos culpados. Importante se faz a contemplação de campanhas de esclarecimento à população e uma adequada equipe técnica para lidar com a questão nos Juizados da Infância e da Juventude. Em 15 de abril de 2002, foi decretada a Lei No. 10.421, que estende à mãe adotiva o direito à licença-maternidade, alterando a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei No. 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei No. 8.213, de 24 de julho de 1991, designando a devida importância da constituição da família por adoção. Um resumo dessa Lei assegura que: Art. 392-A. À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança será concedida licença-maternidade nos termos do art. 392, observado o disposto no seu § 5º.
§ 1º No caso de adoção ou guarda judicial de criança até 1 (um) ano de idade, o período de licença será de 120 (cento e vinte) dias. § 2 º No caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir de 1 (um) ano até 4 (quatro) anos de idade, o período de licença será de 60 (sessenta) dias. § 3º No caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir de 4 (quatro) anos até 8 (oito) anos de idade, o período de licença será de 30 (trinta) dias. § 4º A licença-maternidade só será concedida mediante apresentação do termo judicial de guarda à adotante ou guardiã”. A Lei, embora extremamente oportuna, diferencia e traz maiores privilégios para adoção de bebês até um ano de idade, fazendo com que crianças institucionalizadas continuem encontrando poucas oportunidades de adoção pelos brasileiros, que preferem adotar bebês recém-nascidos, brancos e saudáveis (WEBER e KOSSOBUDZKI, 1996; WEBER e CORNÉLIO, 1995; VARGAS e WEBER, 1996; WEBER, 2005; WEBER, 2006; WEBER e PEREIRA, 2008). Outro movimento da sociedade civil, formado por pessoas que fazem parte de famílias por adoção e por profissionais ligados a esta área, contribuiu enormemente para reflexão e soluções acerca da institucionalização e adoção no Brasil. Trata-se dos Grupos de Apoio à Adoção, sendo que, atualmente, existe mais de uma centena de grupos espalhados pelo país (ANGAAD, 2009). Os participantes desde grupos entendem que é preciso um processo maior de esclarecimento e conscientização acerca da importância da legalidade do processo de adoção, assim como a facilitação e desentrave burocrático que ainda reveste a questão do abandono de crianças nas instituições, que passam a ser crianças abandonadas de fato, embora nem sempre de direito. A não existência de uma definição de “abandono” no ECA permite que crianças permaneçam longos anos em instituições, configurando-se em “filhos de ninguém”, sem condições de reintegração com sua família de origem e sem possibilidade legal de serem adotados, pois o poder familiar ainda pertence a seus pais genéticos. Os Grupos de Apoio iniciaram seu trabalho sistemático de maneira tímida, porém contínua e incisiva, há pouco mais de 10 anos. Fizeram diversos movimentos de pressão sobre os órgãos competentes que trabalham com as questões da adoção, o que ajudou na proposta e na aprovação, em 2009, da Lei Nº 12010/09, Lei Nacional da Adoção, que em seu artigo primeiro afirma: “Esta Lei dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, na forma prevista pela Lei n o 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente”. A Lei Nacional de Adoção chega, ao mesmo tempo, festejada e criticada. De maneira geral, houve um avanço em vários aspectos e o mais importante deles é justamente o prazo máximo de dois anos para permanência de uma criança ou adolescente em um abrigo, que, aliás, passou a se chamar “instituição de acolhimento”. Há também possibilidade de “acolhimento familiar” sob forma de guarda, sendo que esta modalidade deverá ser priorizada ao acolhimento institucional ou abrigamento, portanto, cada Comarca deverá manter um cadastro de interessados a acolher crianças
temporariamente. É preciso lembrar que o Cadastro Nacional de Adoção foi criado em 2 de abril de 2008 pelo Conselho Nacional de Justiça, mas sua efetividade ainda desafia a realidade. Dentre outras mudanças importantes estão a reavaliação semestral de cada criança acolhida institucionalmente, a prioridade para manter a criança ou reintegrá-la à família de origem, a possibilidade de acolhimento institucional urgente e excepcional (sendo necessária a comunicação aos Juizados em 24 horas), a guia de acolhimento, que deve ser expedida por autoridade judiciária, e a procura de local de acolhimento próximo à residência da família de origem. Outro aspecto inovador foi a menção de assistência pré e perinatal pelo Sistema Único de Saúde (SUS) a gestantes ou mães que manifestam interesse em entregar seus filhos para adoção, em uma tentativa de minimizar o número de bebês abandonados em locais públicos no país. Apesar de o aspecto anterior ter sido bastante inovador, também houve aumento do prazo para a genitora retratar o seu consentimento para adoção, sendo que “o consentimento é retratável até a data da publicação da sentença constitutiva da adoção”. Há que se pensar que esse prazo pode ser excessivo e concorrer com todos os riscos de problemas relacionados à vinculação afetiva. Por fim, é preciso enaltecer o artigo que torna obrigatória a preparação de pretendentes à adoção. No entanto, a Lei aponta que devem ser programas oferecidos pela Justiça da Infância e da Juventude, mas o panorama atual retrata que, nos poucos locais que possuem programa de preparação de adotantes, este é oferecido, na maioria das vezes, por voluntários dos Grupos de Apoio à Adoção. A esperança é que a mudança de paradigma apontada pela nova Lei Nacional da Adoção ultrapasse os inevitáveis obstáculos. Perfil das Famílias por Adoção no Brasil O Cadastro Nacional de Adoção reúne os pretendentes à adoção e as crianças que estão disponíveis para tal e, em 2009, havia “22.859 brasileiros interessados em se tornar pais adotivos e 3.519 crianças esperando uma nova família” (BRÍGIDO, 2009). No entanto, não existem estatísticas oficiais e agrupadas em relação ao número total de crianças acolhidas no Brasil nem das famílias que já adotaram. Pesquisas continuam apontando que somente um máximo de 10% das crianças abrigadas no país estão disponíveis para adoção, pois seus pais foram destituídos do poder familiar (PRADA, WILLIAMS e WEBER, 2007) e mostram que ainda existe um grande número de adoções informais no nosso país (SOEJIMA e WEBER, 2008; WEBER, 2006). Para saber as características e o perfil de adotantes e adotados no Brasil, seria necessário reportar-se aos mais de dois mil Juizados do país. Pesquisas centradas em universidades, embora trabalhem com amostras nacionais que incluem adoções informais, desvendam os dados apenas parcialmente. Porém, dados obtidos com 10 anos de diferença entre as coletas apontam poucas mudanças, apesar de apresentarem uma tendência de maior aceitação de crianças com mais idade e cor da pele diferente dos adotantes (WEBER, 2001; WEBER, 2006; WEBER, PEREIRA e DESSEN, 2008; WEBER e PEREIRA, 2009). Desta maneira, um breve resumo dos principais dados encontrados por Weber será apresentado a seguir. Sobre os adotantes
• Estado civil dos adotantes: casados, 85%; solteiros e separados, 14%; • Idade dos adotantes : a idade média da mãe adotiva no momento da adoção era de 32 anos e do pai adotivo, 37 anos; • Cor da pele dos adotantes : 85% são brancos; • Religião : predomina a religião católica (52%); há 14% de protestantes, 14% de outras ou nenhuma religião e 20% de espíritas, o que mostra que estes estão suprarrepresentados nas famílias adotivas pesquisadas, pois aparecem em maior número do que na população em geral; • Escolaridade dos pais adotivos : cerca de 60% dos pais adotivos está cursando ou concluui curso superior; • Renda salarial familiar : variada, encontrando-se famílias cuja renda é de três salários mínimos mensais até famílias com mais de 100 salários mínimos por mês. A maioria das famílias adotantes (70%) possui renda familiar variando entre 5 e 30 salários mínimos mensais; • Profissão dos adotantes : a maioria das mães adotivas têm profissões que exigem nível superior ou secundário e 20% não exercem atividade remunerada fora do lar ou estão aposentadas. Os pais adotivos, em sua maioria, exercem atividades profissionais que exigem nível superior ou secundário e cerca de 5% estão aposentados; observa-se que 90% das mães adotivas solteiras têm curso superior e profissão compatível com a escolaridade; • Existência de filhos genéticos : cerca de 30% das famílias adotivas têm filhos genéticos, sendo que 80% dos filhos genéticos foram gerados antes da adoção; • Motivo para não ter filhos genéticos : 70% afirmaram que não geraram filhos por questões de infertilidade ou esterilidade; 14% decidiram não têlos, 9% são solteiros; e 7% relataram que ainda pretendem ter filhos genéticos; • Número de filhos adotados : 64% adotaram somente uma criança e 36% adotaram duas ou mais crianças; • Idade da criança adotada : 86% adotaram uma criança até 2 anos e 14% adotaram crianças com mais de dois anos de idade; • Cor da criança adotada : 84% foram adoções intraétnicas e 16% foram adoções interétnicas, sendo que a maioria foram crianças pardas adotadas por adotantes de cor branca; • Saúde da criança adotada : a maioria absoluta de crianças era perfeitamente saudável ou com pequenos problemas sem gravidade (93%); • Gênero da criança adotada : uma leve preferência por meninas (52%) em relação a meninos (48%) não é estatisticamente significativa. Adoção legal ou informal
• Tipo da adoção : 62% das adoções foram oficiais e 38% foram informais ou ilegais e adotantes com nível de escolaridade e renda superior apresentaram maior tendência em realizar adoções legais. Adotantes com menor renda familiar apresentaram tendência para realizar adoções informais e também adoções altruístas, ou seja, já possuíam filhos genéticos e adotaram crianças com mais idade e cor de pele diferente; • Tipo das adoções versus período de tempo passado desde a primeira adoção : maior frequência de adoções informais ocorreu antes de 1991, ou seja, antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Motivação para a adoção • Motivação para adoção : a maioria dos adotantes (63%) adotou uma criança para resolver uma necessidade em sua vida: não pôde gerar filhos genéticos, ainda era solteiro ou um filho seu havia falecido; 35% dos adotantes alegaram motivações altruístas (encontrar uma criança abandonada, compromisso social etc.) quando decidiram adotar uma criança A adoção cuja motivação é altruísta ocorreu com maior frequência em famílias com menor renda familiar; • Motivação para adoção versus escolha das características da criança versus nível sociocultural dos adotantes : os adotantes de melhor nível sociocultural tiveram como motivação para adoção a infertilidade e fizeram maiores exigências em relação aos atributos físicos da criança a ser adotada. Opiniões sobre situação atual da adoção no país • Pessoa apta para adotar uma criança segundo os filhos adotivos: os filhos adotivos pensam que uma pessoa apta para adotar uma criança é aquela que “possui condições financeiras” (28%), “deve ter muito amor” (39%) e “ser responsável” (19%); • Fatores para o êxito de uma adoção : a maioria dos pais adotivos (69%) e dos filhos adotivos (58%) afirmou que o “amor” é o fator essencial para o sucesso de uma adoção. No entanto, os filhos adotivos foram os que enfatizaram a necessidade de “diálogo”; • Importância da preparação para a adoção : a maioria dos pais concorda que a preparação é importante para a adoção, embora não tenham tido qualquer tipo de preparação prévia à adoção; • Preparação prévia para a adoção versus atributos dos filhos adotivos segundo os adotantes: pais que tiveram algum tipo de preparação para a adoção citaram, com maior frequência, atributos positivos em relação ao seu filho adotivo e tiveram escolhas mais flexíveis sobre a criança a ser adotada. Desenvolvimento, educação e relacionamento dos filhos adotivos
• Principais características atribuídas aos filhos adotivos por seus pais : a maioria absoluta dos pais adotivos referiu-se, em primeiro lugar, a características positivas de seu filho adotivo e, em especial, a de “ser afetivo”, “ser alegre”; • Dificuldades na educação do filho adotivo segundo seus pais: a maioria absoluta dos pais adotivos afirmou não ter encontrado dificuldades na educação do filho adotivo, ou mencionou que as dificuldades foram naturais, como em qualquer família; • Dificuldades na educação do filho adotivo versus idade da criança no momento da adoção: pais que adotaram crianças com idade acima de dois anos relataram maiores dificuldades na sua educação; • Dificuldades na educação do filho adotivo e do filho genético : a maioria absoluta dos adotantes que têm filhos genéticos afirmou que as dificuldades encontradas na educação dos seus filhos foram semelhantes; • Dificuldades no relacionamento afetivo com o filho adotivo: a maioria absoluta dos pais adotivos afirma que não encontrou dificuldades no relacionamento afetivo com o filho adotivo; • Dificuldades no relacionamento afetivo com o filho adotivo versus motivação para adoção : ter adotado uma criança por infertilidade ou por altruísmo não tem relação com encontrar dificuldades no relacionamento afetivo com o filho adotivo. Preconceito e discriminação social pela família adotiva • Filhos adotivos pensam que as pessoas tratam de maneira diferente as pessoas adotadas? Aproximadamente metade dos filhos adotivos afirmou que, de maneira geral, os outros tratam de maneira diferente e discriminam as crianças que foram adotadas; • Sentimentos dos filhos adotivos em relação à sua possível parecença com os pais adotivos: a maioria dos filhos adotivos está satisfeita com a sua situação, sejam parecidos ou não com os pais adotivos; • Filhos adotivos indicam as pessoas que os discriminaram: a maioria das atitudes discriminatórias em relação aos filhos adotivos veio de amigos e da família extensa; • Sentimento de vergonha sobre a adoção de membros da família adotiva: este dado revela diferenças entre os três grupos pesquisados: a maioria absoluta dos pais e filhos adotivos afirmou que nunca sentiram vergonha da sua situação ou, ao contrário, sentem orgulho; • Sentimento de vergonha dos filhos adotivos versus idade em que ocorreu a revelação: filhos adotivos que souberam de sua adoção depois dos seis anos e/ ou por terceiros sentem mais vergonha da sua condição. Alguns fatores principais da dinâmica da família por adoção
• Pais adotivos revelaram a adoção ao seu filho adotivo? A maioria absoluta dos pais adotivos contou a origem ao seu filho e somente 5% não fizeram esta revelação; • Filhos adotivos indicam a pessoa que fez a revelação sobre adoção : foi a mãe ou ambos os pais que falaram com o filho sobre a adoção e isso ocorreu de forma natural. Alguns relataram que a revelação ocorreu de maneira formal e outros que souberam da sua adoção em um momento de conflito, em meio a brigas familiares; • Idade em que o filho adotivo soube de sua adoção : a maioria absoluta dos filhos que foram adotados precocemente (83%) afirmou que soube de sua adoção pela mãe e/ou pai antes dos seis anos de idade; o restante soube sobre sua história de maneira pouco adequada: tardiamente pelos pais ou por terceiros; • Tipo de informação que os filhos adotivos têm sobre sua família de origem : a maioria absoluta dos filhos adotivos não tem nenhuma informação sobre sua origem, somente sabe que era uma família pobre e afirma que ter informações sobre sua família de origem não é importante; cerca de 30% dos filhos pensam que é bom conhecer sua história, mas não necessariamente conhecer pessoalmente a família de origem; • Sentimento dos filhos adotivos em relação a seus pais adotivos: a maioria absoluta (95%) afirmou que sente amor e os percebe como pais. Quando os dados foram comparados com um grupo de filhos genéticos, os filhos por adoção percebem seus pais como mais participativos e responsivos. Os Papéis do Psicólogo nas Equipes Técnicas dos Juizados da Infância e da Juventude: Algumas Considerações sobre Seleção e Acompanhamento A participação do psicólogo em processos de decisão jurídica está marcada pelo seu caráter multidisciplinar e é uma prática cada vez mais reconhecida. Os critérios para a adoção não têm sido constantes através dos anos, pois recebem influência de variáveis legais, psicológicas, sociais, jurídicas etc., que contribuem para a construção de sua imagem e seu valor atual. A importância da intervenção profissional do psicólogo vem determinada por uma dupla necessidade de prognosticar o êxito e prevenir possíveis disfunções. A adoção é sempre uma situação complexa, pois sua essência consiste em criar um processo segundo o qual se realiza a transição de uma criança da família biológica à família adotiva. Neste processo estão presentes outras tantas variáveis importantes para o desenvolvimento psicológico e social da criança, especialmente como foram vividas e refletidas, tais como abandono, ruptura, institucionalização etc. A motivação dos candidatos à adoção Dados de pesquisas (WEBER, 1999, 2001, 2006, 2009; WEBER e PEREIRA, 2009) revelam que a maioria dos adotantes pensou em adotar muito antes de ir a um Juizado e, no Brasil, ainda existe grande número de adoções informais/ ilegais. Assim, é preciso analisar que existem alguns sinalizadores importantes para que os adotantes pensem antes em adoção: artigos de jornais, programas de TV, encontros, congressos etc. O principal motivo
ainda é a infertilidade, mas a motivação pelo altruísmo, ou a combinação de infertilidade e altruísmo, tem sido uma característica que está figurando mais frequentemente nos dados de pesquisas. Se as pesquisas não têm necessariamente encontrado maiores dificuldades nas famílias adotivas que adotaram por motivos altruístas, então é preciso pensar no recrutamento de pessoas, sendo que as campanhas para isso deviam entender quem consideraria uma adoção e como converter a disposição em uma ação. É preciso compreender que, apesar de a infertilidade ser a principal razão para o desejo de adotar, não necessariamente quem realmente adota é infértil. Há quem já tenha filhos genéticos e não possa mais ter outros filhos, ou pode ter decidido pela adoção de um segundo ou terceiro filho. Existem pessoas solteiras que não são inférteis, mas querem filhos e há verdadeiros atos de generosidade motivados social ou religiosamente, definidos pelos adotantes como compaixão, empatia, desejo de contribuir e convicção de que tem algo a dar. Parker (1999) afirma que os dados de pesquisas americanas revelam que a melhor combinação para que os adotantes tenham uma avaliação positiva da adoção tem sido a junção de infertilidade e altruísmo, pois a maioria dos adotantes nessas condições tem consciência de que há uma mistura de suas próprias necessidades e as da criança. Um importante grupo de adotantes nos Estados Unidos (cerca de 34%) tem sido os foster parents , o caso de nossos ”pais sociais” das Casas-Lares ou programas como “pais de plantão”, e há que se definir e repensar melhor este tipo de situação. Geralmente, eles são pouco considerados em nossa realidade porque são “contratados para cuidar” e não estão necessariamente na “fila” do cadastro, mas o nascimento de um vínculo de afeto que certamente pode beneficiar a criança não deve ser desprezado. O tema ainda é carregado de polêmica. Há argumentos que mostram que a institucionalização da figura dos pais sociais carrega o risco de perpetuar a situação de abrigo das crianças submetidas a essa forma de cuidado e, nesse sentido, os “pais sociais” entrariam em conflito com o que prega o ECA, cuja prioridade é colocar as crianças em condições o mais próximas possível da vida familiar. Outros argumentos enfatizam que as casas-lares, e, consequentemente, os pais sociais, parecem ser uma boa alternativa para uma fase de transição que tenta minimizar os efeitos maléficos da institucionalização. Na impossibilidade de se acabar rapidamente com as grandes instituições, as casas-lares, que geralmente abrigam dez crianças no máximo, poderiam ser uma alternativa viável para que a criança outrora abrigada em grandes instituições possa ter uma vida mais próxima de um ambiente familiar. Com a Lei Nacional de Adoção, passa a ser aprovada oficialmente a família de acolhimento que terá a guarda temporária da criança. A polêmica revela que muito ainda há para se discutir sobre o tema e pesquisas a planejar que possibilitem a compreensão mais acurada das variáveis importantes em todo esse processo, bem como estudos sobre preparação de pais-sociais e famílias acolhedoras. A motivação sempre deve ser um fator de investigação dos candidatos, embora ninguém tenha muito claro quais são os sinalizadores realmente negativos, a não ser aqueles que indiquem casos patológicos. A importância da motivação está ligada ao fato de que ela está fortemente relacionada às expectativas que os adotantes têm da adoção, ou seja, reflete no compromisso e satisfação da adoção, mas se falamos em uma preparação
para adoção e não apenas uma seleção de candidatos “naturalmente mais aptos”, a situação muda de figura. Técnicos e pesquisadores (como JOFRÉ, 1996) indicam casos em que a adoção não seria indicada pela motivação dos candidatos, tais como a perda recente de um bebê ou famílias que possam ter filhos genéticos, mas optam por uma adoção. Questionamos todos os pareceres negativos antecipados, ou seja, ninguém deveria ser excluído a priori , antes de ter passado pelo processo de preparação para a adoção, pelo qual se poderia conhecer mais completamente os motivos e expectativas dos postulantes. Algumas equipes técnicas têm políticas que excluem os candidatos em fases muito precoces, e isso pode fazer com que muitos candidatos desistam e procurem outra maneira informal de adotar, ou que apareçam nos Juizados com as famosas “adoções prontas”. De fato, parece existir uma velada hierarquia para se escolher um candidato como aprovado em alguns casos; por exemplo, os solteiros parecem somente conseguir se um casal não for encontrado. Os serviços de adoção precisam rever seus critérios de tempos em tempos, pois há mudanças sociais pertinentes que devem ser incorporadas. Ao se falar de candidatos à adoção, não é possível deixar de lado outro importante tema sempre presente nos debates: a adoção por homossexuais. Embora a legislação brasileira não contemple a adoção por casais homossexuais , uma vez que não existe juridicamente o casamento entre parceiros do mesmo sexo, já existem alguns casos nacionais em que pessoas declaradamente homossexuais realizaram uma adoção como solteiros. O tema da orientação sexual de uma pessoa e do direito ou não de adotar uma criança é essencialmente polêmico e a discussão está presente até mesmo em outros países. Lasnik (1979) destaca que uma pessoa homossexual procurar uma criança para adoção não é sinônimo de consegui-la, mesmo nos Estados Unidos, e não é sequer possível saber quantos homossexuais já adotaram uma criança. No entanto, em todo o mundo, maior número de homossexuais tem se submetido ao processo de habilitação para adoção, ao contrário do que ocorria no passado, quando recorriam mais frequentemente à inseminação artificial (SAMUELS, 1990). O número de pesquisas sobre o assunto ainda é pequeno, mas alguns autores, como McIntyre (1994), afirmam que a pesquisa sobre crianças serem criadas por pais homossexuais documenta que pais do mesmo sexo são tão efetivos quanto casais tradicionais. Patterson (1997) analisou as evidências da influência na identidade sexual, desenvolvimento pessoal e relacionamento social em crianças adotadas. Examinou o ajustamento de crianças criadas por mães homossexuais (mães biológicas e adotivas) e os resultados mostraram que, tanto os níveis de ajustamento maternal quanto a autoestima e o desenvolvimento social e pessoal das crianças são compatíveis com crianças criadas por um casal tradicional. O tema não pode mais ser negado e são necessárias mais pesquisas que possam esclarecer a dinâmica dos relacionamentos, mas também é preciso refletir que, mais importante do que a orientação sexual dos pais adotivos, o aspecto principal é a habilidade dos pais em proporcionar para a criança um ambiente afetivo, educativo e estável. No Brasil, já ocorreram alguns casos em que foram deferidas adoções por pares homossexuais e ambos os nomes foram incluídos na nova certidão de nascimento da criança. O período de espera
O período de espera é uma fase de transição para a parentalidade, na qual os indivíduos não são nem pais, mas também não são “pais em espera”, como ocorre na gravidez. Assim, nesse período de espera os candidatos não têm muito ainda a comemorar e nem têm sinais positivos de que eles realmente serão pais de uma criança. Nem os candidatos à adoção nem as outras pessoas têm definidos papéis para acompanhar e apoiar essa fase de transição para a parentalidade. Além do mais, essa transição típica ocorre em um contexto de perdas e privações associadas com a infertilidade e com o desejo de uma criança (BRODZINSKY e SCHECHTER, 1990). Diferentemente da gravidez, os adotantes esperam uma criança na sua ausência, ou seja, sem a segurança de que ela realmente venha e sem ter sinais de sua presença física (SANDELOWSKI, HARRIS e HOLDITCH-DAVIS, 1993). Pesquisas mostram que os candidatos ficam cada vez mais inseguros quanto maior o tempo de espera. Cassin e Jacquemin (2001) afirmam que os pretendentes apresentam tais ansiedades em função de seu histórico de perdas e suas expectativas sobre a adoção, pois ter filhos é uma determinação macrossocial e, ao mesmo tempo, um dispositivo de poder microssocial. Neste período os candidatos ficam usualmente ruminando sobre como foi a concepção dessa criança sem a sua real presença física; pensam sobre o critério de seleção da criança e em sua história de vida; geralmente listam uma série de características da criança, tais como sexo, idade, estado de saúde e outros, por ocasião de sua candidatura. Nesse caso, eles simulam uma ação de escolha e, assim, eles podem imaginar com mais facilidade essa criança que ainda não existe. Assim como os pais genéticos sabem o sexo do seu bebê, os pais adotivos às vezes podem saber o sexo da criança que poderão ter (SANDELOWSKI, HARRIS e HOLDITCH-DAVIS, 1993). Não é possível exigir que todos os candidatos esperem a todo momento uma criança virtual sem sequer imaginar algumas de suas características, mas o que a equipe deve fazer é encontrar maneiras de refletir sobre os desejos de cada um e como eles se coadunam com as características das crianças que esperam uma família.
O período de espera tem sido relatado por muitos como difícil e frustrante e os psicólogos da equipe técnica podem criar formas de manter os candidatos como verdadeiros participantes do processo. Esse tempo pode ser muito longo, mas algumas vezes pode ocorrer ser muito curto, dependendo de muitas variáveis, como a exigência dos candidatos e as crianças disponíveis. É importante que os adotantes sejam informados sobre o andamento do seu processo, pois o relato é que os candidatos sentem-se esquecidos e isolados. Sandelowski, Harris e Holditch-Davis (1993) concluem em sua pesquisa que este período de espera pode ser tão rico quanto o período de espera de um filho genético, não necessariamente um estado depressivo e ansioso. Se os candidatos ficam isolados, muitos podem desistir e partir para outro tipo de adoção, como mostram os relatos de Weber (1999, 2001, 2009). Pode ocorrer uma espécie de barganha quando uma criança é proposta. Na dificuldade de se obter um bebê do sexo feminino, por exemplo, é oferecida uma outra criança, e os adotantes sentem-se pressionados a concordar, especialmente se estão esperando há muito tempo. Não basta pressionar, é preciso preparar. O longo tempo de espera pode fazer com que aceitem uma criança somente para acabar com a ansiedade, e isso pode trazer frustração e desapontamento. Na maioria dos casos de crianças mais velhas consideradas para adoção é preciso lembrar que suas vidas geralmente estiveram rodeadas de circunstâncias difíceis, com inúmeras decepções e privações importantes. Assim, a equipe profissional precisa estudar cuidadosamente o passado da criança para determinar suas necessidades específicas e áreas mais vulneráveis para procurar um lar adotivo especialmente adequado às necessidades da criança, no qual as pessoas estejam preparadas para recebê-la. A seleção de candidatos A orientação atual sobre a adoção indica a necessidade de que o processo adotivo se realize sob a supervisão de profissionais como a única forma de garantir a pais genéticos e adotivos, e especialmente à criança, que os procedimentos utilizados correspondem ao mais alto nível técnico e ético. Isso é de vital importância, pois toda decisão relacionada com o futuro de uma criança não pode, e nem deve, estar sujeita à improvisação nem à participação de principiantes nestas áreas. A apreciação que a equipe profissional faz do caso deveria constituir o antecedente fundamental para o juiz, que é quem deve resolver a respeito da conveniência da adoção para uma criança determinada (SANDELOWSKI, HARRIS e HOLDITCH-DAVIS, 1993). Não é possível esquecer, como relatam Cassin e Jacquemin (2001), que coexistem atualmente uma legislação pós-moderna e costumes clássicos, ou seja, a maioria absoluta das pessoas no Brasil ainda adota crianças por infertilidade ou dificuldade em gerar filhos genéticos. A equipe técnica deve ter consciência de que os adotantes afirmam que é muito doloroso falar de sua infertilidade/dificuldade nas entrevistas. Eles entendem que devem ser questionados a respeito disso, mas sempre com sensibilidade e de uma vez só, por uma uma só pessoa – não a assistente social, depois a psicóloga, depois o juiz etc. Há aqueles que querem uma segunda adoção e têm de
falar tudo de novo sobre sua infertilidade e com pessoas diferentes (PARKER, 1999). A equipe técnica não deve atuar apenas nas situações prontas, mas entender o seu papel profilático, como afirma Vargas (2000: 59): Uma das questões técnicas mais relevantes no trabalho do psicólogo com a adoção é a possibilidade de atuação preventiva. A obrigatoriedade de um contato inicial mediante avaliação para o cadastro de candidatos e a observação dos vínculos familiares em formação, durante o estágio de convivência, facilitam que a intervenção do psicólogo venha a ter um caráter mais orientador e de suporte do que perícia. A atuação de uma equipe técnica da qual um psicólogo faça parte deve levar em conta a reflexão sobre as práticas da equipe e a constante avaliação dos resultados e satisfação dos candidatos, para fugir do aspecto essencialmente burocrático do processo, como assegura Pilotti (1988: 37): Se bem que são inegáveis as vantagens que apresenta a cooperação de instituições especializadas no desenvolvimento de um processo de adoção, não é demais indicar que não são alheias ao risco de cair em burocratismos que, em vez de incentivar a adoção, trazem obstáculos. O desafio de uma instituição que se dedica à adoção consiste em cumprir rigorosamente com as normas técnicas que definem seu funcionamento, mas tratando de evitar processos excessivamente longos e difíceis. Anteriormente, a avaliação de candidatos consistia apenas em critérios de seleção de moradia, ingresso e composição familiar. Agora, a tendência marca a necessidade de estabelecer um processo de assessoria constante para as famílias adotivas, tanto antes quanto depois da colocação da criança. Em vez de ter o objetivo de encontrar pais ideais, a equipe técnica dos Juizados da Infância e da Juventude deve saber recrutar candidatos para o grande número de crianças que precisam de uma família e ajudar os postulantes a se tornarem pais capazes de satisfazer as necessidades de um filho adotivo. “Os profissionais da adoção tornam-se, assim, agentes transformadores em potencial, através de uma práxis com os futuros pais adotivos a partir de grupos operativos, cuja vivência, aliada ao acesso a informações, transcende a avaliação judiciária e propicia novos referenciais, atitudes e conceitos em torno da família e adoção” (CASSIN e JACQUEMIN, 2001: 249). Assim, a primeira tarefa de uma equipe de adoção é garantir que os candidatos estejam dentro dos limites das disposições legais em vigor no país, e a sua segunda importante fase seria iniciar um programa de trabalho com os postulantes aceitos, elaborado especialmente para assessorar, informar e avaliar os interessados e não apenas “selecionar” os mais aptos (WEBER, 1997). Diversos modelos de seleção de candidatos e aspectos norteadores deste processo têm sido discutidos e apresentados por pesquisadores contemporâneos. Alguns serão mostrados a seguir.
Pilotti (1988) apresenta sugestões para nortear o processo de seleção: 1. Os pais adotivos devem ser selecionados de acordo com a sua capacidade para exercer os papéis inerentes à paternidade e maternidade, como também se baseando no potencial que demonstrarem para se tornar pais capazes de satisfazer as necessidades de uma criança durante as diferentes etapas do seu desenvolvimento; 2. Nessa seleção, são sempre prioritários os interesses da criança; 3. A equipe técnica das Varas de Adoção deve definir e informar claramente aos interessados os requisitos e procedimentos que regem o processo de seleção, a fim de evitar possíveis interpretações errôneas; 4. A posição socioeconômica dos postulantes ou sua capacidade para exercer influências de diversas índoles não deve constituir um elemento de importância no processo de adoção. Em seguida, Pilotti (1988) mostra quais aspectos de avaliação da idoneidade dos candidatos devem ser investigados, embora não indique de que maneira isso pode ser feito: 1. Investigar a personalidade e maturidade dos candidatos; o modelo de se relacionar com a própria família; qualidade da união matrimonial; adaptação no lugar de trabalho; atividades comunitárias e atitudes perante a tolerância e a disciplina. Maturidade: capacidade para dar e receber afeto; habilidade para assumir a responsabilidade de cuidar, guiar e proteger a outra pessoa; flexibilidade para mudanças segundo as necessidades dos outros; habilidade para enfrentar problemas, desilusões e frustrações; 2. Verificar a qualidade da união conjugal e atitudes para com as crianças. Os futuros pais adotivos devem ser simplesmente pessoas comuns, caracterizadas tanto pelas debilidades e carências quanto pelos aspectos positivos, mas devem ter habilidade e afeto para com as crianças. Devem ter a capacidade de aceitar a criança que adotarão como ela é, sem noções preconceituosas de como se desenvolverá física e emocionalmente. Devem sert tolerantes para aceitar a realidade dos antecedentes do filho; 3. Verificar a capacidade de lidar com a infertilidade e reações quanto a isso; 4. Determinar se as motivações estão baseadas em necessidades emotivamente sãs: desejo de levar uma existência mais completa e realizada; assumir responsabilidades inerentes à paternidade e maternidade; ajudar uma criança; contribuir para o desenvolvimento de outro ser humano e, principalmente, o desejo de dar e receber afeto. Em relação às motivações, pesquisas recentes (WEBER e CORNÉLIO, 1995; WEBER, 1998; WEBER, 2001) têm demonstrado que não parece existir uma correlação significativa entre a motivação dos candidatos e a satisfação com
a adoção, seja do ponto de vista dos pais adotivos seja dos filhos adotivos. Assim, é necessária uma relação menos dogmática quanto a essa questão. Alguns autores apresentam as características que os candidatos a pais adotivos deveriam ter, valorizando a capacitação pela equipe técnica. Segundo Sanz (1997) os serviços de adoção deveriam valorizar os candidatos e contribuírem para sua capacitação mediante um programa que contenha tanto aspectos genéricos como específicos de cada caso, com o objetivo de desenvolver posições preventivas da intervenção. Nesta capacitação, os pais adotivos devem estar dispostos a: 1. Ser os primeiros a revelar a adoção a seu filho e estar dispostos a responder às suas perguntas; 2. Expressar empatia, compreensão e respeito às necessidades do adotado em conhecer seus antecedentes e as razões pela quais foi adotado; 3. Contatar a instituição ou serviço de adoção para solicitar mais dados sobre os antecedentes da criança se as informações de que dispõem são insuficientes; 4. Comunicar-se abertamente com seu filho sobre a adoção e criar uma atmosfera em que a criança se sinta livre para perguntar o que desejar; 5. Continuar falando da adoção depois de fazer a revelação inicial; 6. Adaptar o nível de conversação ao nível de maturidade cognitiva e emocional da criança; 7. Entender os sentimentos da criança e as causas dos mesmos, tanto aqueles que têm sua base na adoção, como aqueles que não têm. Outros autores entendem que a equipe técnica tem mais a oferecer e enfatizam a necessidade de não apenas selecionar, mas fornecer, por meio de técnicas aprofundadas, um “curso de preparação” (AMORÓS, 1987), com os objetivos de: 1. Ajudar os candidatos a tomarem consciência de sentimentos e atitudes que surgem durante a adoção; 2. Apoiar os pais adotivos a aceitarem as diferenças do filho adotivo; 3. Potencializar a capacidade dos pais para enfrentarem de maneira adequada a educação da criança adotada; 4. Apoiar os pais na elaboração e aceitação das origens da criança adotada; 5. Auxiliar os pais a assumirem a importância da revelação e trabalharem os elementos para facilitar a influência positiva deste momento: quando, o que e como informar. Segundo Sanz (1997), a finalidade da intervenção com candidatos e com pais adotivos deve ser a de apoiar o processo de adoção, e não simplesmente
atender situações familiares disfuncionais que, apesar de serem um risco, têm de ser atendidas com outros recursos dentro dos circuitos de saúde, educação etc. Concordamos com Biniés (1997), que relata a sinalização de muitas mudanças nos últimos anos no que se refere à seleção de candidatos à adoção, e a primeira delas é que deve prevalecer o interesse da criança. Neste sentido, pelo menos nos países desenvolvidos, foi ultrapassada a quase exclusividade das adoções de bebês saudáveis para o desenvolvimento de um trabalho que possibilitasse a adoção de crianças com certas particularidades (crianças mais velhas, de raças diferentes, com problemas de saúde entre outras). A segunda mudança importante refere-se ao modelo do processo de seleção. Inicialmente eram utilizados modelos de seleção que tinham somente o objetivo de classificar e descobrir atributos desejáveis em candidatos a pais adotivos, realizados por meio de diversas entrevistas e baterias de perguntas e testes. Este modelo – que ainda é muito utilizado no Brasil – marca um claro distanciamento e uma posição somente interrogadora que pouco facilita a troca de atitudes, desejos, motivações, medos e ansiedades entre os candidatos e os profissionais. Atualmente deve ser privilegiado o modelo de preparação/educação que tem por base atividades pedagógicas e treinamento para o novo papel de pais adotivos. Neste modelo, todos os candidatos aptos idônea e legalmente passam por uma série de atividades educativas preparatórias. Tem a característica de ser um modelo aberto e flexível, e as atividades realizadas em grupos de vivências auxiliam os candidatos a compreender melhor a criança adotada, responder adequadamente às suas necessidades e sentimentos e, ao mesmo tempo, verificar se é isso mesmo que pensaram sobre uma adoção, confrontando as suas próprias motivações e habilidades com as demandas da realidade que se lhes apresenta. De acordo com Biniés (1997) os objetivos deste modelo são: a. Ajudar os candidatos a explorarem a natureza da parentalidade por adoção e compreenderem seus próprios sentimentos e as dificuldades que podem apresentar-se nas relações adotivas; b. Preparar os candidatos a reconhecerem se são capazes de aceitar a adoção e mesmo a renunciar a ela voluntariamente se perceberem que não é exatamente o que buscam; c. Facilitar aos candidatos a realização de uma avaliação de sua própria motivação, de suas habilidades e necessidades; d. Proporcionar orientações para as habilidades necessárias para a educação da criança adotiva. As pesquisas mostram que, para a compreensão de um papel novo em nossa vida ou para mudanças de atitudes e comportamentos importantes, não basta frequentar e assistir a palestras. Neste modelo de preparação/ educação são utilizados grupos de discussão com atividades e vivências
participativas (treinamento de papéis, brainstorming , trabalhos em pequenos grupos, vídeos, fotografias, desenhos, treinamento de habilidades sociais, treinamento de práticas educativas) que têm o objetivo de atender a três aspectos dos participantes: 1. Refletir atitudes e comportamentos emocionais, como a disposição para aceitar o passado da criança, seus sentimentos e recordações sobre a sua família; disposição para mostrar respeito pela família genética e as circunstâncias que levaram à separação definitiva; ajudar a criança a conservar e valorizar a sua própria história; aceitar os sentimentos de ambivalência e insegurança da criança e seus desejos de conhecer mais sobre o seu passado etc.; 2. Desenvolver habilidades que permitam enfrentar de maneira competente a tarefa de educar uma criança adotada com todas as suas características; 3. Discutir ideias e sentimentos sobre o processo de adoção e suas implicações, os problemas mais comuns, os recursos existentes na comunidade para apoiar as famílias etc. É preciso entender que sempre existe uma porcentagem de risco em um processo de seleção e, portanto, não é possível depositar todas as garantias de sucesso neste processo. A equipe técnica tende a imaginar que, fazendo uma seleção ótima, estaria garantido o sucesso da relação familiar. Isso é impossível de saber. No entanto, a passagem de um tipo de seleção basicamente de valoração dos atributos dos candidatos para um processo de seleção no qual se oferece, primeiramente, uma preparação, garante um marco de reflexão teórica importante. Além do mais, outro fator deve ser repensado pelas equipes técnicas: o acompanhamento e assessoramento posterior das famílias por adoção, uma vez que se sabe que a incorporação de uma criança em uma família sempre desencadeia uma espécie de crise familiar. O pensamento preventivo em um processo de acompanhamento é imprescindível. Jofré (1996) sinaliza que as equipes técnicas que intervêm no processo de seleção de candidatos deveriam ser as mesmas que intervenham na seleção de uma família para uma criança concreta, assim como no período de adaptação criança-família e no acompanhamento posterior. Além do mais, não é possível esquecer a atuação da equipe técnica que trabalha com adoção dos Juizados da Infância e da Juventude, que devem estar sistematicamente conectados com os Conselhos Municipais de Direitos da Criança, os Conselhos Tutelares e as ONGs que trabalham com a inserção da criança na família. Como salienta Vargas (2000: 139), essa aliança traz diversas vantagens: a. A prevenção das “adoções prontas” (adoções intuitu personae ), na identificação/orientação pelos Conselhos Tutelares e ONGs, assim como das redes de informantes/intermediários não legais que atuam nas mesmas;
b. A prevenção do abandono, através da identificação das mães na própria rede que estimula as entregas diretas, trabalhando sua decisão de entrega e prevenindo assim reincidência, ou avaliando com as mesmas os recursos que possuem ou que possam obter para criar seu filho. c. A preparação de candidaturas com potencial para realizar as adoções necessárias – que já vem sendo realizado de forma independente pelas Associações de Pais e Grupos de Apoio à Adoção -: poderia ter o respaldo maior da Rede de Atendimento, recebendo estrutura para um atendimento mais técnico, pautado na orientação preventiva e melhor instrumentalizado para atender a demandas mais complexas. d. O acompanhamento durante o estágio de convivência poderia ser mais sistemático e efetivamente preventivo caso fosse realizado por profissionais desvinculados da avaliação do Judiciário em local adequado às necessidades do grupo em formação, como o próprio ambiente domiciliar. Weber (2001: 247), em consonância com a obrigatoriedade da preparação de adotantes colocada pela Lei Nacional de Adoção, apresenta uma sugestão de preparação/educação dividida em dois grupos distintos: o primeiro grupo seria composto por aqueles que já têm filhos adotivos e/ou genéticos e outro, por aqueles que não os têm, pois as habilidades refletidas nesta preparação podem ser diferentes. No entanto, é possível pensar que um grupo mais heterogêneo também possa trazer vantagens. Esta preparação deve necessariamente incluir a criança, inclusive sob condições que serão apenas utilizadas no futuro próximo. A seguir, o esquema de Weber (2001):
Figura 1: Representação gráfica de um possível procedimento para preparação de adotantes e adotados (WEBER, 2001: 247). A conclusão é a necessidade de uma mudança de paradigma, ou seja, de a equipe técnica ter uma conduta pedagógica e não simplesmente avaliativa, “retirando-se o foco de suas atribuições da perícia para recolocá-las num patamar mais amplo que inclua o preparo e a reflexão dos pretendentes” (CASSIN e JACQUEMIN, 2001: 249). É preciso ainda refletir sobre as famosas “adoções prontas” e, se “há pouco a fazer” nestes casos, por que não estabelecer condicionalmente a participação de tais adotantes em grupos de preparação? Granato (1996: 107) ressalta que “o tema da adoção intuitu personae não tem sido focalizado pelos estudiosos da adoção, mas é dos mais angustiantes e perturbadores para aqueles que efetivamente trabalham nesse campo e ocorre com uma frequência muito superior à que se imagina”. Na realidade brasileira que se apresenta, não é possível apenas aguardar candidatos que procuram por um bebê recém-nascido, mas também traçar estratégias de recrutamento de pretendentes que possam desenvolver habilidades para a adoção de crianças com outras características, que lotam as instituições de abrigamento. Não é possível ter respostas para tudo, mas é possível refletir sistematicamente sobre nossas
práticas sociais, profissionais e pessoais, como poeticamente relata Marcel Proust: “A verdadeira viagem da descoberta consiste não em buscar novas paisagens, mas em ter olhos novos”. Bibliografia AMORÓS, Pere. La adopción y el acogimiento familiar. Madrid: Narcea, S.A. de Ediciones, 1987. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE GRUPOS DE APOIO À ADOÇÃO – ANGAAD. Grupos de Apoio à Adoção. 2009. São Paulo. Em www.angaad.org.br . ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Rostos de crianças no Brasil. In : PILOTTI, Francisco e RIZZINI, Irene (orgs.). A arte de governar crianças . Rio de Janeiro: Amais, 1995, p. 171-220. ARIÈS, Philippe e CHARTIER, Roger. História da vida privada 3: da Renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. BINIÉS, Puri. Quién puede ser padre adoptivo? critérios de selectión. Infancia y Adoptión, 2, 1997, p. 11-20. BORGUI, Hugo. A nova adoção no direito civil brasileiro. Revista dos Tribunais, 1990, 661, p. 242-246. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei No. 8069, de 134; 07; 1990. Diário Oficial da União, v. 60, no. 131, São Paulo, 15 de julho de 1990. BRÍGIDO, Carolina. Adoção, uma equação que não fecha no país . O Globo. Publicado em 22 de julho de 2009. Recuperado em 25 de setembro de 2009. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2009/07/25/adocao-umaequacao-que-nao-fecha-no-pais-756974183.asp BRODZINSKY, David M. e SCHECHTER, Marshal D. (orgs.). The psychology of adoption. New York: Oxford University Press, 1990. BULHÕES DECARVALHO, Francisco P. Direito do menor. Rio de Janeiro: Forense, 1977. CASSIN, Walter C. e JAQUECMIN, André. O psicólogo judiciário e a cultura da adoção: limites, contradições e perspectivas. In : BIASOLI-ALVES, Zélia M. M. e CREMONEZI, Denise A. J. (Eds.), IV Seminário de Pesquisa, tomo II, Livro de artigos. Ribeirão Preto, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2001. COSTA, Maria Cecília S. Os “filhos do coração” – adoção em camadas médias brasileiras. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1988. GRANATO, Eunice F. R. A adoção no Brasil na atualidade . Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, São Paulo, 1996.
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Salo de Carvalho Introdução A investigação objetiva analisar o papel dos técnicos na execução da pena criminal, sobretudo da pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado (carcerário). Ao longo dos 25 anos de vigência da Lei de Execução Penal (LEP), consolidou-se determinada forma de atuar dos peritoscriminólogos voltada quase exclusivamente à satisfação das demandas do Poder Judiciário através da elaboração de laudos e pareceres. No entanto, alteração produzida com o advento da Lei 10.792/03 possibilitou reavaliar o papel dos atores da execução, dentre eles o do corpo criminológico formado por profissionais das áreas da psicologia, medicina (psiquiatria) e serviço social. A hipótese que orienta essa pesquisa é a de que, na atualidade, existem condições legais de superação do antigo modelo, com a incorporação, por parte dos criminólogos que atuam nas instituições carcerárias, de práticas voltadas à redução dos danos causados pelo processo de prisionalização. Os laudos e as perícias criminológicas na Lei de Execução Penal Em 1984, com a edição da LEP, instituiu-se a avaliação criminológica como requisito para que o condenado atingisse a última fase da individualização da pena (individualização executiva). Após a aplicação da sanção (individualização judicial), caberia aos técnicos do sistema carcerário classificar os condenados com intuito de definir programa ressocializador e avaliar seu comportamento durante a execução, de forma a orientar a decisão do magistrado. Conforme determina a LEP, “os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal” (art. 5º). Os condenados à pena privativa de liberdade, principalmente aqueles a quem foram determinadas penas com modalidade de cumprimento em regime fechado, seriam submetidos ao diagnóstico para obtenção de elementos necessários à adequada classificação, objetivando estabelecer os parâmetros do tratamento penal . A Comissão Técnica de Classificação (CTC), para obtenção dos dados reveladores da personalidade, deveria realizar inúmeros procedimentos de prova, dentre os quais requisitar de repartições ou de estabelecimentos privados informações do condenado e entrevistar pessoas, ou seja, realizar todas as diligências que considerasse necessárias (art. 9o, LEP). Determinação legal aditiva à CTC, conforme a redação original da LEP, era a de acompanhar a execução das penas privativas de liberdade (art. 6o, LEP) ² , propondo à autoridade competente as progressões (art. 112, LEP) e regressões (art. 118, LEP) dos regimes, bem como as conversões de penas (art. 180, LEP). Presidido pelo Diretor da instituição carcerária, sua estrutura era composta, no mínimo, por dois chefes de serviço , um psiquiatra , um psicólogo e um assistente social (art. 7º, LEP).
Diferiam da CTC, cujo labor tinha como escopo avaliar o cotidiano do condenado, os afazeres dos técnicos do Centro de Observação Criminológica (COC). Este local autônomo da instituição carcerária realizaria exames periciais e pesquisas criminológicas que retratariam o perfil do preso, fornecendo instrumentos de auxílio nas decisões judiciais dos incidentes da execução, notadamente nos casos de livramento condicional e de progressão de regime. Desta forma, enquanto a CTC atuaria no local da execução, como observatório do cotidiano do apenado, o COC teria por função realizar exames criminológicos mais sofisticados, com intuito de auxiliar os órgãos judiciais da execução. Não obstante os dispositivos da LEP, o Código Penal determinava funções ao corpo criminológico (COC), mormente realizar prognósticos de não delinquência , requisito subjetivo obrigatório para concessão do livramento condicional – “para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir” (art. 83, parágrafo único, CP). E, segundo o Código, nos casos em que o apenado havia praticado delitos considerados graves, eram estabelecidas condições especialíssimas para concessão do direito ao livramento condicional – última etapa do sistema progressivo da pena. A ESTRUTURA DA EXECUÇÃO da pena no Brasil é moldada pelo sistema progressivo (art. 33 do Código Penal); ou seja, após cumprimento de um determinado período de tempo, dependendo do ‘mérito’ e da ‘avaliação da personalidade’ (laudos e pareceres), o apenado será transferido a um regime menos gravoso ( p. ex., progressão do regime fechado ao semiaberto e deste ao aberto). O livramento condicional, apesar de ser considerado a última etapa deste sistema, no qual o condenado readquire sua liberdade submetendo-se a um controle por parte das agências judiciais e penitenciárias, a legislação prevê a possibilidade de alcance do direito sem a passagem pelas instâncias intermediárias (art. 83 do Código Penal). No entanto, da mesma forma que o sistema permite a transferência para regime menos severo, em face de prática de faltas graves ( p. ex., participação em fuga, rebelião ou motim – art. 50, incisos I e II da Lei de Execução), o condenado pode regredir seu reime (art. 118 da Lei de Execução). Conforme a doutrina, ...o dispositivo se inspira na reclamada defesa social e tem por objetivo a prevenção geral. Se após o exame criminológico (ou resultar da convicção do juiz) ainda revelar o condenado sinais de desajustamento aos valores jurídico-criminais, deverá continuar a sofrer imposição daquela pena até o seu limite final se a tanto for necessária em nome da prevenção especial. (FRANCO, 1993: 535) O exame pericial que se estabeleceu na prática forense, após a Reforma Penal de 1984, como idôneo para a prognose das condições do detento, foi o
de cessação de periculosidade, em avaliação análoga àquela realizada pelo inimputável sujeito à aplicação de medida de segurança quando do incidente de insanidade mental (art. 175, LEP ³ ). Caso contrário, na ausência do exame, o juízo seria absolutamente hipotético, cabendo com exclusividade ao julgador atribuir o grau de periculosidade do condenado (COSTA JR., 1999: 206). ⁴ Conclui Alvino Augusto de Sá, ao discutir a natureza dos exames criminológicos e as formas de prognose, que ...o parecer da CTC deveria voltar-se eminentemente para a execução, para a terapêutica penal e seu aproveitamento por parte do sentenciado. Já o exame criminológico é peça pericial, analisa o binômio delito-delinquente e o foco central para o qual devem convergir todas as avaliações é a motivação criminal, a dinâmica criminal, isto é, o conjunto dos fatores que nos ajudam a compreender a origem e desenvolvimento da conduta criminal do examinado. Ao se estabelecerem as relações compreensivas entre essa conduta e esses fatores, se estará fazendo um diagnóstico criminológico. Na discussão, devem ser sopesados todos os elementos desse diagnóstico e contrabalanceados com os dados referentes à evolução terapêutico-penal, de forma a se convergir o trabalho para um prognóstico criminológico, do qual resultará a conclusão final. (SÁ, 1993: 43) Em outras palavras, a decisão sobre a periculosidade depende exclusivamente da análise do juiz, que utiliza, como instrumento de prova, o parecer da CTC e o exame do COC. A atuação pericial e o controle da identidade do preso A hipótese que fundamentou inúmeras análises críticas sobre os exames e os prognósticos criminológicos foi acerca da definição de matriz inquisitiva de processo na execução penal. Neste quadro, a LEP estabelecia rito e conteúdo de provas que violavam direitos fundamentais do cidadão preso, notadamente os procedimentos relativos à reconstrução e à valoração de sua personalidade que se encontram em oposição aos direitos de livre manifestação do pensamento de preservação da intimidade e da vida privada, e que reforçam, no âmbito social, o estigma delinquente. A afirmativa adquire consistência na análise metodológica empregada pelos técnicos do sistema penitenciário (psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras). Percebe Hoenisch que o trabalho do perito, principalmente do psicólogo, era fundado na técnica de reconstituição de vida pregressa , que “via de regra vem a confirmar o rótulo de criminoso” (HOENISCH, 2002: 110) . Desta forma, “a elaboração dos exames psiquiátricos obedece a um determinismo causal, onde o ‘nosólogo’ não só descreve a doença/ delito do paciente/ preso, mas também prescreve a sua conduta futura” (IBRAHIM, 1995: 52-53). O sistema penalógico adotado pela LEP psiquiatrizava a decisão do magistrado. A constante delegação, por parte dos magistrados, da motivação do ato decisório ao perito, que o realiza a partir de julgamentos morais
sobre as opções e as condições de vida do condenado, estabelecia mecanismo de (auto)reprodução da violência pelo reforço da identidade criminosa ( self-fullfilling profecy) . Lembra Vera Malaguti Batista, ao estudar a atuação dos operadores secundários do sistema, dentre eles os técnicos que atuam na execução penal, que “estes quadros técnicos, que entraram no sistema para ‘humanizá-lo’, revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social” (BATISTA, 1997: 77). Sabe-se que os mais perversos modelos de controle social punitivo são aqueles que fundem o discurso do direito com o discurso da psiquiatria, ou seja, que regridem aos modelos positivistas de coalizão conceitual do jurídico com a criminologia naturalista. O sonho da medição da periculosidade, forjado no interior do paradigma criminológico positivista (etiológico), encontra guarida nesse sistema. Assim, retomando conceitos como propensão ao delito , causas da delinquência e personalidade voltada para o crime , o discurso etiológico se reproduzia, condicionando o ato judicial ao exame clínico-criminológico – “psicólogos, psiquiatras, pedagogos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos de caso e diagnósticos, da maneira mais acrítica, com as mesmas categorias utilizadas na introdução das idéias de Lombroso no Brasil”(BATISTA, 1997: 86). Eugenio Raúl Zaffaroni sustenta que o ideal de medição da periculosidade representa as pretensões mais ambiciosas desta criminologia etiológicoindividualista equivocada (ZAFFARONI, 1988: 244). O periculosômetro , como ironiza o pensador porteño, cientificamente denominado de prognósticos estatísticos, consiste em estudar quantidade mais ou menos numerosa de reincidentes, quantificar suas causas e projetar seu futuro. Maria Palma Wolff lembra que A TEORIA ESTRUTURAL-FUNCIONALISTA da anomia e da criminalidade constitui a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciais biopsicopatológicos do delinquente e, por consequência, à variante positivista do princípio do bem e do mal. A teoria estruturalfuncionalista da anomia e da criminalidade, segundo a leitura de Baratta, afirmaria que: (1) as causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos e naturais (clima, raça), nem em uma situação patológica da estrutura social; (2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social; (3) somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social. Segundo Durkheim, o fenômeno criminal é encontrado em todo tipo de sociedade, ou seja, não existiria nenhuma na qual não exista uma criminalidade. O delito faz parte da sociedade como elemento funcional, da fisiologia e não de sua patologia (BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal , p. 59-61). ...esta discricionaridade dos profissionais embasada em critérios, que não são tão neutros e científicos como pretendem ser, faz com que, muitas vezes, o parecer técnico afigure-se quase como um exercício de suposições, de
futurologia. Isto, a partir de um discurso que já está dado como única verdade, bastando ajustá-lo a cada caso avaliado. (WOLFF, 2003: 93) A despatologização do delito ocorreu com a TEORIA ESTRUTURALFUNCIONALISTA de Durkheim, no início do século passado, incrementando verdadeiro giro copernicano na criminologia contemporânea, que culminou com a consolidação (acadêmica) do paradigma da reação social e, posteriormente, com a criminologia crítica. O reducionismo sociobiológico, modelo em voga no Brasil, revelava-se, portanto, obsoleto. No entanto, mesmo desqualificado epistemologicamente, acabava por seguir ditando as regras na execução da pena, sobretudo em decorrência de sua adesão pelos técnicos do sistema penitenciário. Apesar de a instrução probatória na primeira fase do processo penal (processo de conhecimento) ser sustentada por premissas acusatórias vinculadas ao direito penal do fato, todo processo de execução das penas e os procedimentos que demandavam avaliação pericial eram balizados por juízos inquisitórios sobre a identidade do sujeito. Estas avaliações moralizadoras sobre a personalidade do encarcerado conformam modelo de direito penal de autor e práticas criminológicas etiológicas refutadas pelo sistema constitucional de garantias, visto a notória oposição às garantias da inviolabilidade da intimidade, do respeito à vida privada e à liberdade de consciência e de opção. Roberto Lyra, na vigência do Código de 40, chamava atenção para a estrutura antissecular deste tipo de prova: ...virão laudos que são piores do que devassas a pretexto de anamneses, com diagnósticos arbitrários e prognósticos fatalistas. A vida do réu e também a da vítima são vasculhadas. O anátema atinge a família por uma conjectura atávica. O labéu ultrapassa gerações. Remotos e ridículos preconceitos distribuem estigmas. O processo penal, além de todas as ocupações e preocupações, será atado ao torvelinho dos habituais e tendenciosos falsários bem pagos, com humilhações e vexames para o acusado e sua família, para a vítima e sua família, com base em ‘quadrinhos’ e formulários. (LYRA, 1977: 132) ⁵ Outrossim, além de violar os direitos fundamentais da pessoa presa pelo conteúdo moral do juízo, em relação à forma o laudo atuava como substitutivo da fundamentação judicial. O papel de sustentação (e de legitimação) das decisões assumido pela criminologia oficial foi percebido com precisão por Michel Foucault. Ao responder indagação sobre o porquê de sua crítica à criminologia ser tão rude, Foucault afirma que os textos criminológicos “não têm pé nem cabeça (...). Tem-se a impressão de que o discurso da criminologia possui uma tal utilidade, de que é tão fortemente exigido e tornado necessário pelo funcionamento do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo simplesmente ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteiramente utilitário” (FOUCAULT, 1986: 138). A utilidade ressaltada seria a de fornecer argumentos ao julgamento, permitindo aos magistrados boa-consciência , caracterizando sua isenção de responsabilidade pelo ato ⁶ .
O juiz da execução penal, de acordo com esta hipótese, desde a instituição dos postulados da criminologia clínico-administrativa, deixou de decidir, passando apenas a homologar laudos técnicos. Seu julgamento passa a ser informado por um conjunto de microdecisões (micropoderes) que sustentarão ‘cientificamente’ o ato decisório. Assim, perdida no emaranhado burocrático, a decisão torna-se impessoal, sendo inominável o sujeito prolator. Lembra Foucault que ...o juiz de nossos dias – magistrado ou jurado – faz outra coisa, bem diferente de ‘julgar’. Ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicam em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos e psicólogos, magistrados da aplicação da pena, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; que uns, depois das sentenças, só têm o direito de fazer executar a pena fixada pelo tribunal, e principalmente que outros – os peritos – não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento, mas para esclarecer a decisão dos juízes. (FOUCAULT, 1991: 24) Ferrajoli afirma que estes modelos correcionalistas de reeducação – “qualquer coisa que se entenda com esta palavra” ⁷ – acabam se tornando aflição aditiva à pena privativa de liberdade e, sobretudo, prática profundamente autoritária. “Esta comporta uma diminuição da liberdade interior do detento, que viola o primeiro princípio do liberalismo: o direito de cada um ser e permanecer ele mesmo; e, portanto, a negação ao Estado de indagar sobre a personalidade psíquica do cidadão e de transformá-lo moralmente através de medidas de premiação ou de punição por aquilo que ele é e não por aquilo que ele fez” ⁸ . Converge, nesta perspectiva, Fabrizio Ramacci, ao criticar as teorias da emenda que sustentam a Lei Penitenciária italiana. Leciona que ...a exasperação da idéia de correção, ínsita na doutrina de emenda, é bloqueada pela proibição constitucional de tratamento contrário ao senso de humanidade, tanto nas formas de violência à pessoa, quanto nas de violência à personalidade (v.g. lavagem cerebral) porque contrastante com a dignidade humana (art. 3 da Constituição) e com a liberdade de desenvolver e inclusive manter a própria personalidade (art. 2 da Constituição). (RAMACCI, 1991: 133) A importância probatória dos pareceres e dos laudos periciais na reforma penal de 1984 O sistema progressivo, baseado na ideia de mérito do condenado, foi eleito em 1984 como o instrumento hábil para atingir a finalidade de reinserção social. Típico dos modelos estatais intervencionistas, o escopo ressocializador legitimou a ação dos aparelhos punitivos para avaliação e formatação da identidade do preso. Assim, o condenado ressocializado, no discurso da LEP, era aquele adequado às regras do estabelecimento carcerário e ao programa individualizador, ou seja, o sujeito disciplinado e ordeiro que se submetia e respondia satisfatoriamente ao tratamento penal .
Segundo o nível de ressocialização, o condenado atingiria índices positivos ou negativos, condições para o desencarceramento progressivo (progressão de regime). Assim, para alcançar o gozo dos direitos de progressão previstos na LEP, o apenado deveria cumprir requisitos de ordem objetiva e subjetiva, segundo o art. 112. O critério objetivo foi vinculado ao tempo de cumprimento da sanção: um sexto da pena no regime anterior ou, no caso de prática de crime hediondo, dois quintos (primário) e um quinto (reincidente) ⁹ . O pressuposto subjetivo foi determinado pelo mérito do condenado (art. 112, parágrafo único), ao ser instituída a necessidade de o preso ser submetido à Comissão Técnica de Classificação (CTC), para elaboração de parecer, ou ao Centro de Observação Criminológico (COC), para fins de exame pericial – prognósticos de não reincidência e/ou medição do grau de adaptabilidade e arrependimento. Em relação ao livramento condicional (art. 83 do Código Penal), a duplicidade de requisitos igualmente se impunha: (a) requisito objetivo, vinculado ao tempo – cumprimento de um terço (condenado primário), metade (reincidente), ou dois terços (crimes hediondos) ¹⁰ da pena – e à reparação do dano; e (b) requisito subjetivo, relacionado com o comprovado comportamento satisfatório . E, em caso de condenação por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o parágrafo único do art. 83 do Código Penal remetia o condenado à avaliação técnica, concretizada em laudo criminológico. O comportamento carcerário satisfatório, apesar de ser requisito subjetivo, sempre esteve vinculado à comprovação processual, de forma que foram estabelecidas condições de objetivação do critério. Doutrina e a jurisprudência fixaram como elemento a indicar o bom comportamento carcerário a ausência de registro, no prontuário do preso, de sanção por falta grave devidamente homologada pelo juiz competente. Ao magistrado caberia avaliar se o procedimento de apuração seguiu os requisitos formais e materiais do devido processo legal (ampla defesa, contraditório, recurso, assistência de advogado etc). A estrutura meritocrática da LEP, porém, era potencializada pela presença dos demais requisitos subjetivos, sobretudo nos casos de crimes graves. Se a ausência de falta grave comprovava comportamento satisfatório no que diz respeito à adequação do condenado às regras prisionais e à sua boa relação de convivência, os exames criminológicos atestariam o grau de ressocialização do preso a partir da ausência de conflitos internos . O mérito representaria, pois, (a) o bom convívio com as pessoas com as quais deveria relacionar-se (bom comportamento) e (b) a sadia relação do apenado consigo mesmo (adaptabilidade), sobretudo com a internalização dos limites estabelecidos pela lei (prognóstico de não reincidência) e a demonstração de arrependimento (consciência do delito). Definidos os critérios, são estabelecidas as provas processuais que os validariam: (a) ausência de sanção em Processo Administrativo Disciplinar (bom comportamento); e (b) parecer técnico (CTC) e/ou laudo criminológico (COC) favorável (atestado grau de ressocialização).
Os laudos e pareceres criminológicos que ingressavam no processo de execução penal como prova pericial adquiriram, no passar dos anos, tamanha importância que acabaram (re)criando sistema de prova tarifada ¹¹ . O sistema de tarifas legais (prova tarifada), apesar de estar superado na legislação processual atual por força da adoção do sistema do livre convencimento judicial motivado (art. 157 e art. 182 do CPP), institui verdadeira armadilha, mormente nos casos de pareceres desfavoráveis: em face da linguagem técnica, o parecer aprisiona a decisão do juiz, sem deixar alternativas ao intérprete. E exatamente por expor juízo probabilístico, empiricamente indemonstrável ( possibilidade de vir a cometer delito no futuro ), as perícias impediam o direito ao contraditório, obstaculizando os direitos ao devido processo legal e à presunção de não culpabilidade em relação a fatos futuros. Em que pese a deturpação material gerada no sistema de prova e a consequente revivificação da prova tarifada com a adoção de valores irrefutáveis, a crítica aos laudos foi historicamente direcionada à ilegitimidade de os técnicos realizarem julgamentos morais dos presos. A categoria ressocialização, encarada como índice de valoração da vida do periciando, invariavelmente cedeu espaço à violação da intimidade, em decorrência da possibilidade da avaliação e do julgamento morais da história pessoal e das opções de vida do objeto de análise. Veja-se, p. ex ., que, se eventualmente o preso houvesse silenciado ou negado o delito durante a primeira fase do processo (processo de conhecimento), fato absolutamente possível e do qual não pode haver qualquer prejuízo, tais posturas perante os técnicos revelariam a incapacidade de arrependimento e/ou torpeza moral , contraindicando o direito postulado. As perícias técnicas, fundamentadas no discurso correcionalista, instrumentalizaram práticas em absoluta ofensa ao princípio ilustrado da secularização. Sua funcionalidade à teoria da prevenção especial positiva (ressocialização), segundo a crítica criminológica, segue processo de inversão ideológica do discurso dos direitos humanos, pois de forma apenas superficial orientaram política penitenciária de humanização das penas. A função disciplinadora do agir criminológico, oculta no ideal ressocializador, expõe a programação da sanção criminal no século passado: não mais intimidar ou reprimir, mas criar condições ótimas de controle e de formatação da identidade do preso de forma a impor o arrependimento e a dosar os níveis de probabilidade de delinquência futura. Não por outro motivo o positivismo criminológico deixou os direitos dos apenados reféns de discurso dúbio que pendia entre as noções, sempre abertas e isentas de significado, porém altamente funcionais, de disciplina e ressocialização. Outrossim, no aspecto processual, agregava sistema administrativo altamente burocratizado que substancialmente se sobrepunha à jurisdicionalização da execução da pena. A exclusão dos laudos e pareceres criminológicos pela lei 10.792/03 e a sua manutenção pela jurisprudência Não obstante a Lei 10.792/03 ter institucionalizado o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) – espécie absolutamente autoritária e desumana de
execução da pena ¹² –, a nova Lei pretendeu modificar a estrutura da individualização científica do sistema progressivo, fato que merece atenção. A alteração projetada pela Lei 10.792/03 ocorre em relação aos requisitos e ao procedimento para que o condenado alcance os direitos públicos subjetivos instrumentalizados pelos incidentes da execução penal, notadamente a progressão de regime e o livramento condicional. No que tange ao procedimento, a nova redação do art. 112 da LEP reforça o devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e do contraditório, recapacitando o princípio da jurisdicionalização, norteador formal da redação do código penitenciário ¹³ . O antigo parágrafo único do art. 112, que previa decisão judicial precedida de parecer da CTC ou exame do COC, é substituído por dois importantes parágrafos, os quais remodelam a forma dos atos processuais. O parágrafo primeiro do art. 112 define que a decisão sobre progressão de regime deve ser fundamentada pelo juiz e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor ¹⁴ ; o parágrafo segundo projeta procedimento idêntico à concessão de livramento condicional, indulto e comutação das penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes ¹⁵ . Assim, à exceção da remição ¹⁶ , comutação ¹⁷ e unificação ¹⁸ , os principais incidentes em execução penal serão orientados pela estrutura do devido processo legal constitucional baseado no sistema acusatório, no qual juiz, agente do ministério público, defesa, membros do conselho penitenciário e técnicos possuem papéis claros e determinados, sem sobreposições ou apropriações. O contraditório pleno entre as partes (acusação e defesa) pretende derrogar os procedimentos inquisitoriais que tendiam a diminuir os direitos e garantias dos condenados na execução. Desta forma, entendeuse na reforma ser necessário reestruturar o sistema executivo, aproximandoo da estrutura acusatória que rege o processo de conhecimento, ou seja, aquele que inicia com o recebimento da denúncia e termina com a decisão judicial (no caso condenatória) transitada em julgado. Não obstante a alteração do procedimento (forma dos atos do processo de execução), em relação aos requisitos (conteúdo) para concessão dos direitos na execução há significativa alteração. A substituição do texto anterior ¹⁹ e a exclusão da referência aos laudos e aos pareceres criminológicos produzem dois efeitos distintos: (1º) retira o caráter vinculativo que as perícias e os pareceres criminológicos tinham sobre a decisão judicial, notadamente porque deixam de ser peça processual a informar o incidente executivo ; ou (2º) vedam a possibilidade de CTC’s e COC’s produzir material opinativo (pareceres) destinado à instrução do incidente executivo (prova técnico-pericial), seja progressão de regime, livramento condicional, indulto ou comutação. Parece não haver dúvida de que a redação da Lei 10.792/03 deixa clara a opção legislativa em retirar do cenário jurídico a obrigatoriedade dos laudos e pareceres criminológicos. As justificativas apresentadas para exclusão deste requisito subjetivo foram as inúmeras falhas, distorções e/ ou impossibilidades técnicas e materiais de realização da prova pericial ou do
parecer técnico. Entende-se, portanto, que, se a reforma penitenciária optou pela remoção do requisito, não caberia ao julgador revivificar o antigo modelo, sujeitando o apenado ao laudo ou ao parecer. Sustenta-se, inclusive, que eventuais entraves ao alcance dos direitos previstos na LEP em face de perícias ou de pareceres desfavoráveis caracterizam ofensa à legalidade penal, em virtude de se vedar efeito retroativo à lei penal anterior mais favorável. Apesar de a Lei 10.792/03 institucionalizar regime bárbaro de execução de pena (RDD) – fundamentalmente por isolar o condenado em regime gótico de execução da pena –, o texto normativo inovou na retirada dos laudos e dos pareceres técnicos, peças processuais cuja eficácia histórica foi a de manter absoluta sobreposição do discurso da criminologia administrativa e psiquiatrizada sobre o sistema jurisdicional de garantias. No entanto, após meia década de vigência da Lei 10.792/03, é possível diagnosticar a eficácia da modificação legislativa pela posição dos Tribunais Superiores em relação ao tema da investigação. Recentes acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) refletem o entendimento consolidado sobre a matéria: “HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. REQUISITOS SUBJETIVOS. PROGRESSÃO DEFERIDA PELO JUÍZO DE EXECUÇÕES CRIMINAIS E CASSADA PELO TRIBUNAL ESTADUAL. ACÓRDÃO CARENTE DE FUNDAMENTAÇÃO VÁLIDA. INCISO IX DO ART. 93 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a aferição do pressuposto subjetivo para a progressão de regime prisional admite balizamento pelo exame criminológico, desde que o juiz demonstre a necessidade de realização deste. 1. Na concreta situação dos autos, de posse do laudo técnico psicológico e demais elementos de convicção, o Juízo da Execução Penal entendeu satisfeito o requisito subjetivo e deferiu a progressão de regime. Decisão que, desmotivadamente, foi reformada pelo Tribunal de Justiça. Ofensa ao inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal. Precedentes. 2. Ordem concedida.” (STF – 1ª Turma – HC 95111/RS – Relator Min. Carlos Britto, j. 03/02/2009) “HABEAS CORPUS. AGRAVO EM EXECUÇÃO: DEVOLUTIVI-DADE. ELABORAÇÃO DE EXAME CRIMINOLÓGICO PARA FINS DE PROGRESSÃO: POSSIBILIDADE, MESMO COM A SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 10.792/03. NECESSIDADE, CONTUDO, DE DECISÃO FUNDAMENTADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O Agravo em Execução previsto no art. 197 da Lei de Execução Penal devolve toda a matéria objeto da decisão recorrida ao Tribunal ad quem, nada impedindo, em tese, que, ao julgar o recurso, se proceda à nova análise quanto ao preenchimento dos requisitos de ordem objetiva e subjetiva para progressão de regime.
Conforme entendimento firmado neste Supremo Tribunal, a 2. superveniência da Lei n. 10.792/2003 não dispensou, mas apenas tornou facultativa a realização de exames criminológicos, que se realiza para a aferição da personalidade e do grau de periculosidade do sentenciado (v.g., Habeas Corpus n. 85.963, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ 27.10.2006). 3. As avaliações psicossociais estão compreendidas no gênero “exame criminológico” e podem servir de subsídio técnico para a formação da livre convicção do magistrado. 4. Ao analisar os requisitos de ordem subjetiva, o Tribunal ad quem pode se amparar – de acordo com a sua livre convicção – em laudos psicossociais elaborados em atendimento à requisição do Juízo das Execuções, e a par dos quais a decisão recorrida foi prolatada (Código de Processo Penal, art. 157 e 182). 5. Não se presta o procedimento sumário e documental do Habeas Corpus ao reexame de prova pericial em que se traduz o exame criminológico. 6. Na linha dos precedentes deste Supremo Tribunal posteriores à Lei n. 10.792/03, o exame criminológico, embora facultativo, deve ser feito por decisão devidamente fundamentada, com a indicação dos motivos pelos quais, considerando-se as circunstâncias do caso concreto, ele seria necessário. 7. Ordem concedida para restabelecer a decisão proferida pelo Juízo das Execuções.” (STF – 1ª Turma – HC 94503/RS – Relatora Min. Cármen Lúcia, j. 28/10/2008) No mesmo sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. LIVRAMENTO CONDICIONAL. REQUISITO SUBJETIVO NÃO PREENCHIDO. DECISÃO FUNDAMENTADA COM BASE NOS LAUDOS TÉCNICOS. POSSIBILIDADE. 1. Para aferição do requisito subjetivo para a concessão do benefício de livramento condicional, não mais se exige, de plano, a realização de exame criminológico, contudo uma vez realizado, observadas as peculiaridades do caso concreto, este deve ser considerado para fins de concessão ou negativa do benefício. 2. Na hipótese, foi devidamente negado pelo Juízo das Execuções Criminais e Tribunal a quo o pedido de livramento condicional, ante a ausência de atendimento do requisito subjetivo, com fundamento nos laudos técnicos e sua conclusão desfavorável ao Reeducando. 3. Ordem denegada.” (STJ – Habeas Corpus 118.379/RS – Rel. Ministra Laurita Vaz, DJe 09/02/2009)
“HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. PROGRESSÃO DE REGIME. LAUDOS TÉCNICOS DESFAVORÁVEIS. CONSIDERAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA, COM RECOMENDAÇÃO. 1. O exame criminológico e os laudos técnicos, anteriormente indispensáveis para se aferir o preenchimento do requisito subjetivo exigido para a concessão de benefícios, após o advento da nova legislação tornaram-se recursos excepcionais, mas, se realizados e desfavoráveis, nada obsta que sejam considerados na análise do pedido de progressão. 2. Ordem denegada.” (STJ – Habeas Corpus 52.560/PR – Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 19/12/2008) A interpretação dos Tribunais Superiores acerca do laudo criminológico, que tende a ser universalizada aos Tribunais locais, é a de sua facultatividade. Diferentemente do que é sustentado no presente artigo, o entendimento majoritário é o de que a Lei 10.792/03, ao retirar do parágrafo único do art. 112 da LEP a necessidade do laudo ou do parecer, não excluiu do julgador a possibilidade de requisição e posterior valoração. Assim, caberá às partes, no caso concreto, se entenderem necessário, requisitar a perícia técnica ao juiz. Em casos episódicos, segundo o novo regramento, poderia o magistrado designar de ofício. A modificação legislativa, porém, possibilitou aos Tribunais fixar o entendimento de que a negativa da progressão de regime ou do livramento condicional com base exclusiva no laudo é incabível, sendo dever do magistrado fundamentar adequadamente sua decisão, contrária ou aderente à manifestação dos experts . O posicionamento dos Tribunais frente à Lei 10.792/03 renova a atualidade do debate acerca do papel dos técnicos, especialmente o dos psicólogos, na execução das penas privativas de liberdade. Considerações finais: a função dos psicólogos no sistema penitenciário: o atuar criminológico O discurso psiquiátrico-disciplinar da reforma de 1984 que originou a LEP, baseado nos princípios moralizadores da Nova Defesa Social, propunha legitimar o discurso jurídico, atuando como seu suporte. Neste quadro, produzia dois efeitos em áreas distintas: (a) no plano epistemológico, reforçava o narcisismo da ciência do direito penal que historicamente entendeu os demais saberes como meramente auxiliares, funcionais ou instrumentais aos seus objetivos (CARVALHO, 2004: 79-98); (b) no plano processual, ao impregnar a decisão judicial com elementos alienígenas, criava terceiro discurso, não jurídico e não psiquiátrico, autoproclamado criminológico que, apesar da absoluta carência epistemológica, era altamente funcional ²⁰ .
Foucault entendeu este duplo efeito como derivado de técnica de normalização do poder, a qual não é apenas resultado do encontro entre o saber médico e o poder judiciário, mas da composição de certo tipo de poder, para além da psiquiatria e do direito, que colonizou e repeliu ambos (FOUCAULT, 2002: 31-32). Cria-se, pois, discurso absolutamente independente, que resolve de forma autônoma os problemas da execução da pena (e das medidas de segurança), sem quaisquer referências aos limites impostos pelo direito ou pela ciência médico-psiquiátrica. A técnica criminológica, ao se autoproclamar como ‘o’ discurso da verdade no processo de execução penal, acabou por reeditar, conforme destacado, um sistema de prova tarifada típico dos modelos jurídicos inquisitivos prémodernos, incapacitando as normas de garantia ao obstruir qualquer espécie de contraprova ou de contra-argumento, configurando o que se denomina como situação de irrefutabilidade de hipóteses. Assim, não apenas no plano processual, mas igualmente no plano material, o discurso correcionalista de matriz psiquiátrica alterou a face do direito penal. Enquanto o objeto de discussão do direito é (deveria ser) o fato concreto, impossibilitando avaliações morais sobre a história de vida do sujeito, no discurso criminológico oficial (burocrático) houve a prevalência da valorização da identidade da pessoa como fator decisório, como fonte de verdade. Não por outro motivo “os diagnósticos [laudos e pareceres criminológicos] são repletos de conteúdo moral e com duvidosas doses de cientificidade” (BATISTA, 1997: 84). A sobreposição dos discursos científicos e a criação de terceiro parâmetro para decisão sobre os incidentes de execução parecem ter sido um dos principais problemas processuais do modelo de execução penal instituído em 1984. Este ‘nó’ teórico derivado da incorporação dos ideais do movimento da Nova Defesa Social, na consolidação do que Garland denomina de welfarismo penal ²¹ , resulta em situação jurídica na qual as garantias do cidadão preso são abandonadas em detrimento de juízos técnicos moralizadores e normalizadores em seu conteúdo, e, em sua forma, contrários aos parâmetros definidos pelo estatuto jurídico – p. ex., direitos derivados das garantias individuais, como o direito à imunização da valoração de sua intimidade, de sua vida privada e de sua vida familiar, agregados aos tradicionais direitos individuais ao silêncio, à não autoincriminação, à presunção de inocência, ao contraditório, entre outros previstos no art. 5º da Constituição da República. Não obstante, conclui Vera Malaguti Batista que, apesar de aparentemente científicos, os laudos criminológicos não são em nada neutros, pois se destacam pela construção e consolidação de estereótipos (BATISTA, 1997: 77). Com o advento da Lei 10.792/03 e com a consolidação jurisprudencial sobre a não obrigatoriedade do laudo, restaria indagar qual a função dos criminólogos, dentre eles os profissionais da psicologia, para além das avaliações e das perícias que eventualmente sejam determinadas judicialmente?
A questão colocada tem o intuito de criticar a antiga postura que reduzia o técnico à exclusiva função de redigir laudos criminológicos. Apesar da postura conservadora do Poder Judiciário em manter a possibilidade de o juiz requisitar o laudo, entende-se que o papel dos profissionais da psicologia, da psiquiatria e do serviço social, que atuam na execução, seja outro, de maior relevância, para além do mero auxílio técnico probatório à decisão judicial. Correta, neste sentido, a análise de Miriam Guindani, ao concluir que, ao longo da vigência da LEP, ...os profissionais do serviço social [da psicologia e da psiquiatria, inclui-se] foram relegados à função de tarefeiros, para simplesmente atender às demandas de avaliação e perícia para fins de individualização, progressão de regime ou livramento condicional. Assim, perdeu sua identidade como categoria, ficando relegado, muitas vezes, a um papel de ‘executor de laudos’. As ações passaram a ocorrer através das equipes de CTC, enquanto o tratamento penal previsto em lei tornou-se, com algumas exceções, secundário. (GUINDANE, 2002: 35) A conclusão em relação ao profissional da psicologia é idêntica, pois, conforme enunciam Hoenisch e Pacheco, “a despeito das diversas possibilidades de trabalho do psicólogo, observa-se uma restrita atuação à confecção de laudos técnicos” (HOENISCH, PACHECO, 2002: 191-204). Para além do posicionamento dos operadores do direito que atuam nos Tribunais Superiores, é possível sustentar que a reforma disposta na Lei 10.792/03 redesenha a pesada e burocrática máquina executivopenitenciária, alterando substancialmente o papel dos atores da execução (psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais). Segundo a nova redação do art. 6o da LEP ²² , parece ser esperado do técnico trabalho no sentido da criação de condições que reduzam os danos produzidos pela execução da pena, de construção de mecanismos que minimizem os efeitos perversos da sanção penal. Caberia, portanto, às CTC’s, a missão de efetiva elaboração de programas individualizadores, seguido do imprescindível trabalho de acompanhamento do preso durante a execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direito. Em relação aos COC’s, caberia à perícia técnica o auxílio na obtenção de elementos precisos àquela individualização, sobretudo no caso de condenado à pena privativa de liberdade em regime fechado. Em síntese, a reforma legislativa permite entender o trabalho do técnico como propositivo (não impositivo ), no sentido de elaborar programa de tratamento penal objetivando a redução dos danos causados pelo processo de prisionalização. Embora entendendo inadequada a categoria, fundamentalmente pelo conteúdo ideológico que historicamente representou, utilizase o termo tratamento penal : ...entendendo-o não como uma finalidade em si do cumprimento da pena, mas como um conjunto de práticas educativas e terapêuticas que podem ter significados e funções diferenciadas no processo de cumprimento da pena, dependendo dos diferentes fatores teóricos, políticos e institucionais, que o envolvem. (WOLFF, 2003: 96)
Atividade pautada em princípios de redução de danos possibilitaria construir com o apenado técnicas que possibilitassem minimizar os efeitos deletérios do encarceramento, sobretudo o da estigmatização, gestando espécie de clínica de vulnerabilidade. Se constatados problemas de ordem pessoal ou familiar, caberia ao técnico, em comunhão e com a anuência do apenado, colocar em prática instrumentos de manejo do problema, fornecendo elementos para superação da crise. A elaboração conjunta do programa de redução de danos, com a prévia anuência do cidadão preso, é condição fundamental para que haja mútuo comprometimento. A imposição de programas de ressocialização , não obstante ferir a mais elementar premissa do tratamento (voluntariedade), somente é admissível em sistemas nos quais o encarcerado é percebido como objeto de execução da pena, como ente coisificado entregue ao laboratório criminológico do cárcere ou, nas palavras de Foucault, “objeto de uma tecnologia e de um saber de reparação, de readaptação, de reinserção, de correção” (FOUCAULT, 2002: 26-27). Neste momento de rediscussão do papel dos técnicos da execução penal em face das alterações determinadas pela Lei 10.792/03, importante lembrar as recomendações do Relatório Final da investigação desenvolvida pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) no final da década de 80. Diagnostica o relatório que inexiste nos ordenamentos jurídicos latinoamericanos qualquer tipo de intervenção participativa do apenado na eleição do programa de reinserção ao qual estará subordinado. Em regra, segundo informa o documento, os relatórios sobre condenados tendem a ser estigmatizantes, agregando expedientes com sentido infamante altamente negativo que: ...al par de resultar una agresión a la personalidad, totalmente contraria a los fines que se propone formalmente el sistema, importa en una seria violación a la esfera íntima de la persona, que no se encuentra afectada por la pena privativa de liberdad más que en la estricta medida de lo que, conforme a la naturaleza de las cosas, se desprende del mero hecho de la privación de libertad. (ZAFFARONI, 1988: 209) Ademais, acrescenta o informe que a pena privativa de liberdade não pode ter, sob nenhuma justificativa, o efeito de comprometer a personalidade e a intimidade do condenado, de tal sorte que os técnicos que atuam na execução não estão isentos do segredo profissional inerente aos seus cargos. Assim, enumera propostas que parecem poder ser incorporadas pelas aberturas fornecidas com a nova Lei: (1ª) que a observação e a classificação dos condenados ocorra em período de tempo razoavelmente breve, com a participação de equipe multidisciplinar controlada pelo juiz da execução penal, possibilitando a intervenção do apenado na estruturação do programa ao qual será submetido ; (2ª) que os informes das comissões de classificação se abstenham de penetrar em aspectos concernentes à esfera íntima da pessoa, baseando-se em modelos adequados às características culturais de cada comunidade; (3ª) que os profissionais e funcionários intervenientes fiquem submetidos às regras do segredo profissional ou funcional e que seus
informes não sejam agregados indiscriminadamente aos autos do processo (ZAFFARONI, 1988: 209-210). Para finalizar, importante lembrar Anabela Miranda Rodrigues quando sustenta que ...o ‘tratamento’, quer seja realizado em liberdade, quer em caso de sua privação, é sempre um direito do indivíduo e não um dever que lhe possa ser imposto coativamente, caso em que sempre se abre a via de uma qualquer manipulação da pessoa humana, redobrada quando esse tratamento afeta a sua consciência ou a sua escala de valores. O ‘direito de não ser tratado’ é parte integrante do ‘direito de ser diferente’ que deve ser assegurado em toda sociedade verdadeiramente pluralista e democrática. ( apud FRANCO, 1986: 106) Bibliografia BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal . Rio de Janeiro: Revan/ICC, 1999. BATISTA, Vera Malagutti. O proclamado e o escondido: a violência da neutralidade técnica. In : Discursos sediciosos (03). Rio de Janeiro: ICC/ Revan, 1997, p. 77-86. CARVALHO, Salo. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. __. Tântalo no divã. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais (50). São Paulo: RT, 2004. COSTA JR., Paulo José. Direito Penal: curso completo . São Paulo: Saraiva, 1999. FERRAJOLI, Luigi. Quattro proposte di riforma delle pene. In : BORRÈ, Giuseppe e PALOMBARINI, Giovanni. Il sistema sanzionatorio penale e le alternative di tutela. Roma: Franco Angeli, s/d, p. 37.50. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões . 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. ___. Sobre a Prisão. In : FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder . 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. ___. Os anormais . São Paulo: Martins Fontes, 2002. FRANCO, Alberto Silva. Temas de Direito Penal: breves anotações sobre a Lei n o 7.209/84 . São Paulo: Saraiva, 1986. ___. (et alii). Código Penal e sua interpretação judicial. 4ª ed. São Paulo: RT, 1993. GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Oxford: Oxford University Press, 2001.
GUINDANI, Miriam Krenzinger A. Violência e prisão: uma viagem na busca de um olhar complexo. Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC/RS para obtenção do título de doutor. Porto Alegre, 2002. HOENISCH, Julio César Diniz. Divã de Procusto: critérios para perícia criminal no Rio Grande do Sul. Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação em Psicologia da PUC/RS para obtenção do título de mestre. Porto Alegre, 2002. ___ e PACHECO, Pedro. A Psicologia e suas transições: desconstruindo a ‘lente’ da Psicologia na Perícia. In : CARVALHO, Salo (coord.). Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 191-204. IBRAHIM, Elza. Exame Criminológico. In : RAUTER, Cristina et alii. (coord.). Execução Penal: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 51-56. LYRA, Roberto. Direito Penal normativo . 2ª ed. Rio de Janeiro: Konfino, 1977. RAMACCI, Fabrizio. Corso di Diritto Penale: principi costituzionali e interpretazione della Legge Penale. Torino: Giappichelli, 1991. RAUTER, Cristina. Criminologia e poder político no Brasil. Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Filosofia da PUC/RJ para obtenção do título de mestre. Rio de Janeiro, 1982. SÁ, Alvino Augusto. Equipe criminológica: convergências e divergências. In : Revista Brasileira de Ciências Criminais (2). São Paulo: RT, 1993, p. 41–45. WOLFF, Maria Palma. Antologia de vidas e histórias na prisão. Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em Direito Fundamentais e Liberdades Públicas da Universidade de Zaragoza para obtenção do título de Doutor. Zaragoza, 2003. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 1988. __. Sistemas penales y derechos humanos. Buenos Aires: Depalma, 1986. 1 Os resultados apresentados neste artigo são fruto de pesquisa financiada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, desenvolvida junto ao seu Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais. 2 “Art. 6º. A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o programa individualizador e acompanhará a execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, devendo propor, à autoridade competente, as progressões e regressões dos regimes, bem como as conversões.” (Redação Original). 3 À guisa de ilustração: “a verificação dos requisitos inseridos no art. 83 e seus incisos, impondo-se também a realização da perícia, para verificar a superação das condições e circunstâncias que levaram o condenado a
delinqüir, consoante o conteúdo do parágrafo único do mesmo dispositivo, e ressalva, ainda, que a norma, destinada ao sentenciado por crime violento, caracteriza exigência necessária diante da extinção da medida de segurança para os imputáveis” (TA/RS, HC 285039624, Rel. Talai Selistre). 4 Nesse sentido, “a verificação das condições pessoais e subjetivas do sentenciado não se faz só e necessariamente por exame similar ao antigo exame de verificação de cessação de periculosidade. Por outros meios, inclusive sem qualquer tipo de verificação pericial, pode concluir-se de tal ausência de perigosidade na devolução do sentenciado à comunidade” (TJRS, RA, Rel. Gilberto Niederauer Corrêa – RTJE 36/364). 5 Foucault, em Os Anormais , lembra que “(...) o exame psiquiátrico permite constituir um duplo psicológico-ético do delito. Isto é, deslegalizar a infração tal como formulada pelo código, para fazer aparecer por trás dela seu duplo, que com ela se parece como um irmão, ou uma irmã, não sei, e que faz dela não mais, justamente, uma infração no sentido legal do termo, mas uma irregularidade em relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas, morais, etc.” (FOUCAULT, 2002: 20-21). 6 Afirma Foucault: “a partir do momento em que se suprime a idéia de vingança, que outrora era atributo do soberano, lesado em sua soberania pelo crime, a punição só pode ter significação numa tecnologia de reforma. E os juízes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredito que tinha ainda conotações punitivas, a um veredito que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condição de que seja transformador do indivíduo. Mas os instrumentos que lhes foram dados, a pena de morte, outrora o campo de trabalhos forçados, atualmente a reclusão ou a detenção, sabe-se muito bem que não transformam. Daí a necessidade de passar a tarefa para pessoas que vão formular, sobre o crime e sobre os criminosos, um discurso que poderá justificar as medidas em questão“ (FOUCAULT, 1986: 139). 7 FERRAJOLI, Quattro Proposte di Riforma delle Pene, p. 46. 8 Ibid., p. 46. 9 Redação conforme o art. 2º, § 2º, da Lei dos Crimes Hediondos: “a progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.” (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007). 10 Requisito incluído pela Lei nº 8.072/90. 11 A Constituição de 1988, ao adotar sistema de prova baseado no princípio do livre convencimento motivado, refuta a ideia de prova tarifada. No sistema da prova tarifada, o Magistrado está vinculado à graduação prévia e hierarquizada de provas, não podendo, como ocorre na estrutura do livre convencimento, deixar de apreciar determinados elementos em detrimento de outros, mesmo que fundamente sua decisão. De acordo com a Constituição (art. 93, IX), o Código de Processo Penal permite, no caso de laudo pericial, que o juiz rejeite a opinião dos técnicos, desde que demonstre
os motivos: “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitálo, no todo ou em parte” (art. 182, CPP). 12 No que tange às críticas ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), conferir Carvalho, Tântalo no Divã , p. 91-118. 13 A jurisdicionalização da pena (sistema jurisdicionalizado) submete todos os atos de execução ao juiz, limitando os poderes do administrador, absolutos no sistema oposto (sistema administrativizado). 14 “Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.” (Redação dada pela Lei 10.792/03). “§ 1º. A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor.” (Redação dada pela Lei 10.792/03). 15 “Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes.” (Art. 112, § 2º, LEP, incluído pela Lei 10.792/03) 16 Redução proporcional da pena pelos dias de trabalho ou de estudo na instituição prisional, na razão de um dia de pena por três de trabalho/ estudo. 17 O indulto é causa de extinção de punibilidade no qual o Poder Executivo, através da Presidência da República, extingue (indulto) ou diminui (indulto parcial ou comutação) pena para determinados condenados que cumprem as condições estabelecidas no Decreto de Indulto. Os Decretos de Indulto são publicados anualmente, antes do natal, e os requisitos são constantemente alterados. 18 Soma de penas em caso de nova condenação. 19 “A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário.” (Art. 112, parágrafo único, redação original da Lei 7.210/84). 20 Neste sentido sustenta Cristina Rauter que “a 'colonização' do judiciário pelas ciências humanas, pela via da Criminologia, corresponde a um processo de implantação de uma tecnologia disciplinar, com efeitos ao nível do discurso e também das práticas sociais” (RAUTER, 1982: 80). 21 Segundo Garland, a estrutura penal-welfare passa a ser o resultado híbrido que combina o legalismo liberal do processo e seu castigo proporcional com compromissos correcionalistas baseados na reabilitação, no bem-estar e no conhecimento criminológico (GARLAND, 2001: 27).
22 “Art. 6º. A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório.” (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1.12.2003) A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS NO SISTEMA PENAL Tania Kolker Durante muito tempo, os saberes e os fazeres dos profissionais de saúde nas prisões estavam quase que irremediavelmente alinhados com as teorias mais conservadoras sobre o crime, os criminosos e as prisões, cabendo-lhes apenas o papel de operadores técnicos do poder disciplinar. Esse quadro só começa a mudar nas últimas décadas, quando aparecem os primeiros estudos foucaultianos sobre a prisão e são dados os primeiros passos na construção das bases da escola que viria a ser conhecida como Criminologia Crítica. Além disso, com as contribuições do movimento da reforma penal internacional e com o desenvolvimento da cultura de direitos humanos, o leque de contribuições teórico-políticas sobre o tema amplia-se consideravelmente e começam a ser criadas as condições para a formação de um novo tipo de profissional, quando não mais engajado politicamente, pelo menos familiarizado com leituras mais críticas e desnaturalizadoras. Sendo, porém, a criminalidade um fenômeno tão complexo e sujeito a múltiplas determinações, e o tratamento penal do crime objeto de tantas controvérsias, é longo e multifacetado o caminho dos que desejam construir um conhecimento mais crítico e transformador sobre esse campo de intervenção. Para tal, é preciso estabelecer o diálogo entre saberes tão distintos como história, sociologia, economia, direito penal, criminologia, psicologia jurídica, entre outros. É fundamental entender o papel da criminalização da pobreza, da demonização das drogas, da espetacularização da violência, da criação da figura do inimigo interno e da funcionalidade do fracasso da prisão, especialmente no contexto atual das sociedades neoliberais globalizadas. Mas é também necessário conhecer os autores que no passado construíram esse objeto que passou a ser visto como a causa dos crimes e a razão de ser das prisões: o criminoso. Meu objetivo nesse texto é delinear um trajeto, propondo um percurso para os leitores desejosos de conhecer os principais autores e as principais ideias que vêm sendo travadas no conflagrado território dos discursos sobre as prisões e manicômios judiciários e, com isso, fornecer elementos para a problematização da atuação dos psicólogos e demais profissionais da saúde mental nessas instituições. A prisão, tal qual a conhecemos na atualidade, é uma instituição que nasce com o capitalismo e desde então vem sendo utilizada para administrar, seja pela via da correção, seja pela via da neutralização, as classes tidas como perigosas. Embora hoje seja universalmente usada como forma de sancionar a maioria dos crimes, durante muitos séculos servia apenas para guardar os criminosos até o julgamento, ou para tornar possível a aplicação de outras penas, como a de trabalho forçado. Até a sua consagração, em fins do século XVIII, diversas outras formas punitivas foram adotadas, sempre de maneira relacionada ao modelo político-econômico vigente, em geral respondendo à
necessidade de formação, aproveitamento e/ou controle da mão de obra pouco qualificada, ou como instrumento para a gestão das classes consideradas perigosas (por sua pobreza e marginalidade, e não apenas por sua criminalidade) ¹ . Assim, a escravidão como punição esteve par a par com a economia escravista; as fianças e indenizações nasceram com a economia monetária; os suplícios e a pena capital foram as penas preferenciais no período feudal, atingindo apenas aos extratos mais pobres da população; o trabalho nas galés serviu para satisfazer a necessidade de remadores; o banimento e a deportação estiveram associados ao processo de exploração colonial e a prisão com ou sem trabalho forçado esteve intimamente ligada à emergência e ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. A pena privativa de liberdade veio responder à necessidade de formação de mão de obra para alimentar a máquina capitalística. Desde então, toda a evolução posterior do trabalho nos cárceres (do trabalho produtivo, ao trabalho não produtivo e finalmente à ausência de trabalho) esteve vinculada ao valor da mão de obra e do preço dos salários na sociedade livre. Assim, nos períodos em que a mão de obra era escassa, os presos eram obrigados ao trabalho; quando o exército de reserva se expandia e já não havia a necessidade da mão de obra do preso, o trabalho nos cárceres tinha apenas a função de contribuir para a formação de uma subjetividade operária e, mais recentemente, quando a tecnologia começou a tornar os homens prescindíveis, o trabalho penal começou a desaparecer. Ver em Melossi e Pavarini, 1980; em Castro, 1983; em Pavarini, 1996; e em Rusche e Kirchheimer, 1999. Para melhor entender a função histórica da prisão e o papel historicamente atribuído ao saber médico-psicológico nessas instituições, convém voltarmos um pouco atrás no tempo, a princípio em companhia de Foucault e Castel. Com eles, é possível ver como as diferentes formas de assistir e/ou punir dispensadas aos doentes, deficientes, pobres, desempregados, marginais e criminosos de nossa história estão ligadas entre si, como estas estratégias estão intimamente relacionadas com as sucessivas políticas voltadas para o controle das classes trabalhadoras e como as nossas ações, enquanto técnicos, estão atravessadas por essas determinações. Mendigos, vagabundos, criminosos e trabalhadores Na obra de Castel vemos que, a partir da dissolução da ordem feudal tem início intenso processo migratório que em pouco tempo vai inchar as cidades, criar extensos bolsões de pobreza e constituir o exército de reserva urbano, aumentando enormemente o número de pessoas involuntariamente desocupadas e sem residência fixa. Forçados a vagar em busca de trabalho, aqueles que não se enquadram na nova ordem econômica vão ficando pelas estradas e são empurrados para a miséria, a mendicância ou o crime. Sem outra alternativa, essas pessoas passam a compor a clientela dos dois tipos de dispositivos que se firmarão ao longo de todo o século XIV e dos três seguintes: a assistência, só acessível aos pobres válidos para o trabalho e com residência conhecida, e a internação/reclusão, nesse momento destinada ao enclausuramento dos doentes venéreos, loucos, pobres sem domicílio, mendigos e vagabundos irredutíveis , menores abandonados e
moças necessitadas de correção. Na medida em que vão piorando as condições de trabalho, são criadas as leis para coagir o povo a aceitá-las e para punir a recusa ao trabalho. É quando internação ² e reclusão se igualam e têm apenas uma função: absorver a massa de desviantes, neutralizando-os pelo isolamento e corrigindo-os através da tríade trabalho forçado/orações/ disciplina (CASTEL, 1998). Essa preocupação administrativa com as populações pobres logo fará emergir novos sujeitos sociais e novos objetos de intervenção. Nos séculos seguintes, e especialmente no período que ficou conhecido como mercantilista, todos os esforços serão empenhados pelos Estados, por um lado, para manter sob controle a mão de obra disponível e, por outro, punir os não enquadráveis nessa nova configuração. A pobreza, que nos séculos anteriores era valorizada espiritualmente, torna-se motivo de desonra e é criminalizada. A mendicância, a vagabundagem ou a delinquência, que até então se constituíam em estratégias eventuais de sobrevivência, muitas vezes para fazer frente a períodos sem trabalho, pouco a pouco vão se tornando destinos irreversíveis. Mesmo as massas ocupadas são agora severamente punidas ao menor sinal de associação, desobediência ou insurreição. Nesse leque de situações facilmente intercambiáveis – onde, segundo Castel, a “criminalidade representa[ria] a franja externa, alimentada pela área fluida da vagabundagem, ela própria alimentada por uma zona de vulnerabilidade mais ampla, feita da instabilidade das relações de trabalho e da fragilidade dos vínculos sociais” (CASTEL, 1998: 135) –, o que, na verdade, concorrerá para a constituição daqueles que serão os futuros mendigos, vagabundos ou delinquentes são as próprias instituições criadas para geri-los. Nesse processo, a figura do mendigo é recortada e passa a ser percebida “como uma espécie de povo [que corre o risco de se tornar] independente”, que não conhece “nem lei, nem religião, nem autoridade, nem polícia”, tal como “uma nação libertina e indolente que nunca tivesse tido regras” (CASTEL, 1998: 75). A mendicância é, então, perseguida em toda a Europa pré-capitalista e, para conjurar tal ameaça, é criado o dispositivo da internação, constituído por uma vasta rede de casas de trabalho, casas de detenção e hospitais cuja função principal será a transformação dessas massas inúteis ou potencialmente perigosas em força de trabalho ³ . Outro personagem que emergirá dessa nova classificação e que merecerá um tratamento rigoroso é o vagabundo, que se assemelha aos mendigos por ser pobre e não estar trabalhando, mas que deles se diferencia por não ter pertencimento comunitário. Esta categoria tão ampla que, segundo Castel, até o século XVI abarcará “pessoas que mendiguem sem motivo, velhacos, mendigos que simulem enfermidades, ociosos, luxuriosos, rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes, malabaristas, cantores, exibidores de curiosidades, arrancadores de dentes, vendedores de teriaga, jogadores de dados, prostitutas, e até operários, ou rapazes barbeiro”, a partir de então irá ganhando contornos mais precisos (CASTEL, 1998: 120). Assim , em 1566, um decreto real estabelecerá que:
...vagabundos são pessoas ociosas, preguiçosas, pessoas que não pertencem a nenhum senhor, pessoas abandonadas, pessoas sem domicílio, ofício e ocupação. (CASTEL, 1998: 121) E outro de 1701 declarará que: ...vagabundos e pessoas sem fé nem lei [são] aqueles que não têm profissão, nem ofício, nem domicílio certo, nem lugar para subsistir e que não são reconhecidos e não podem valer-se da recomendação de pessoas dignas de fé que atestem sobre a sua boa conduta e bons costumes. (CASTEL, 1998: 121) Ao longo deste período aparecerá farta legislação que determinará como os vagabundos devem ser tratados: na Inglaterra de 1547, os que se recusam a trabalhar são entregues a senhores como escravos por dois anos, se reincidem uma vez, são sentenciados à escravidão pelo resto da vida e, se voltam a reincidir, são condenados à morte (CASTEL, 1998). Na França de meados do século XVI, os vagabundos são obrigados a trabalhar na construção de fortalezas e estradas. Em Bruxelas, um decreto estabelece punição para os trabalhadores que deixem seus senhores para tornarem-se mendigos ou vagabundos (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1999). Devido à sua situação extraterritorial, os vagabundos são punidos também com o banimento, o trabalho forçado nas galeras ou a deportação para as colônias. Castel nos explica o motivo deste tratamento especial: A existência dessas populações instáveis, disponíveis para todas as aventuras, representa uma ameaça para a ordem pública. (...) Não só os vagabundos, individualmente, cometem delitos, mas também a insegurança que representam pode assumir uma dimensão coletiva. Pela formação de grupos que expoliam o campo e desembocam às vezes no roubo a mão armada organizado, por sua participação nas “emoções” e nos motins populares também, os vagabundos, separados de tudo e vinculados a nada, representam um perigo, real ou fantasmático, de desestabilização social. (CASTEL, 1998: 138) Afinal,
...quem nada tem e não está ligado a nada é levado a fazer com que as coisas não permaneçam como são. Quem nada tem para preservar corre o risco de querer apropriar-se de tudo. A função de “classe perigosa”, que em geral é atribuída ao proletariado do século XIX, já é assumida pelos vagabundos. (...) Realmente, saber que a maioria dos indivíduos rotulados de mendigos ou vagabundos era, de fato, formada por pobres coitados levados a tal situação pela miséria e pelo isolamento social, pela falta de trabalho e pela ausência de suportes relacionais, não podia desembocar em nenhuma política concreta no quadro das sociedades pré-industriais. Em contrapartida, estigmatizando ao máximo os vagabundos, criavam-se os meios regulamentares e policiais para enfrentar os tumultos pontuais provocados pela reduzida proporção de vagabundos verdadeiramente perigosos. Podia-se também, sem dúvida, pesar um pouco sobre o que, então, funcionava como mercado de trabalho, tentando obrigar inativos a se empregarem por qualquer valor a fim de fazer os salários caírem. (CASTEL, 1998: 138-139) Mas, precisaremos chegar ao final do século XVIII para assistir ao processo de especialização das instituições encarregadas do sequestro ⁴ das populações marginalizadas. Nesse momento em que cresce a população miserável ⁵ , desenvolve-se a produção e multiplicam-se as riquezas e as propriedades, é preciso aperfeiçoar os instrumentos de controle social. Com o aparecimento dos grandes armazéns – que estocam matériasprimas e mercadorias passíveis de serem roubadas – e das grandes oficinas – que reúnem centenas de trabalhadores descontentes, e onde há máquinas que podem ser danificadas – nasce uma nova necessidade de segurança e aparecem os primeiros rudimentos da Polícia (FOUCAULT, 1993). Os crimes contra a propriedade passam a prevalecer sobre os crimes de sangue e os criminosos do século anterior, geralmente “homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera” (CASTEL, 1998: 71) são agora substituídos por bandos profissionalizados e organizados. Para fazer frente a esse novo quadro e ao aparecimento de formas embrionárias de organização das massas trabalhadoras, novas leis repressivas são criadas e a Justiça – que durante toda a alta Idade Média funcionara através de tribunais arbitrais – vai sendo progressivamente substituída por um conjunto de instituições controladas pelo Estado, que terá a função de administrar as massas revoltosas e assegurar a ordem pública. Começa, então, a ser constituído o embrião daquilo que se tornará o aparelho judiciário. A este respeito, Foucault dirá que: A partir de uma certa época, o sistema penal, que tinha essencialmente uma função fiscal na Idade Média, dedicou-se à luta antisediciosa. A repressão das revoltas populares tinha sido até então, sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada, ou melhor, prevenida, por um sistema complexo justiçapolícia-prisão. (FOUCAULT, 1992: 50) Para ele, a Justiça, a serviço da burguesia, assumirá como um de seus papéis ...fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a ‘gatunagem’; trata-se para a
burguesia de impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da ‘literatura’, certas categorias da moral dita ‘universal’ que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada. (FOUCAULT,1992: 50-51) Ou ainda nas palavras do autor: Já que a sociedade industrial exige que a riqueza esteja diretamente nas mãos não daqueles que a possuem, mas daqueles que permitem a extração do lucro, fazendo-os trabalhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma moral rigorosa: daí esta formidável ofensiva de moralização que incidiu sobre a população do século XIX. (...) Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto separando-o da delinqüência, portanto separando nitidamente o grupo de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. (FOUCAULT, 1992: 132-133) O nascimento das prisões e a produção da delinquência Com Foucault, é possível entender o papel do dispositivo disciplinar na gênese da subjetividade individuada e a importância da vigilância, das sanções normalizadoras e dos exames na emergência das ciências do homem ⁶ . Como veremos ao longo de sua obra, a partir da emergência da prisão e das demais instituições de controle que compõem o diagrama disciplinar, vai sendo construída a máquina panóptica ⁷ , que além de produzir subjetividades e agir sobre a conduta dos desviantes, objeto das diversas formas de internamento ou reclusão, será um lugar de produção de saberes e, portanto, de constituição de objetos e sujeitos do conhecimento, o que fará dos exames e perícias uma ferramenta crucial ⁸ . Nesse momento, que corresponde à formação de um novo modo de exercer o poder, o que está em jogo é a produção de um outro tipo de subjetividade e de uma outra forma de gerir os homens que implica em uma vigilância individual, perpétua e ininterrupta, ou seja, na adoção de uma nova tecnologia, denominada por Foucault de disciplina. Esta tecnologia, que também será colocada em prática nas escolas, nos conventos, nas fábricas, nos hospitais e nos quartéis, atravessará a sociedade de ponta a ponta constituindo quadros administráveis que permitirão a transformação das multidões confusas e perigosas em multiplicidades organizadas e manipuláveis. Segundo Foucault, é quando as classes dominantes descobrem que do ponto de vista da economia do poder é “mais eficaz e mais rentável vigiar que punir ” (FOUCAULT, 1992: 130). Trata-se, segundo ele, ...de estabelecer uma nova economia do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, [de fazer com que] seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte de maneira contínua e até o mais fino grau do corpo social, [de tornálo] mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos. (FOUCAULT, 1993: 75)
Para a nova ordem jurídico-administrativa, fundada no contrato, onde a punição dos criminosos deixa de ser uma prerrogativa do rei para tornar-se um direito da sociedade e em que o cidadão é sujeito e ao mesmo tempo assujeitado, ...o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conseqüências do crime, entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir (...) [Deve] calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada, mas a desordem futura. (FOUCAULT, 1993: 85) Com o fim dos suplícios que dominaram o sistema de punições no período feudal, nasce uma nova maneira de conceber as penas que já não visará tanto ao corpo e sim à alma. A partir de então, de acordo com o princípio de igualdade jurídica, todos devem ser tratados de forma igual perante a lei e não há crime se não houver uma lei anterior que o tipifique ⁹ . Aparece a noção de infração, que – diferentemente do dano ou ofensa que diziam respeito apenas ao acusado, à vítima e ao soberano lesado em sua autoridade – implica em ataque ao próprio Estado, à sua lei e à sociedade. E o criminoso passa a ser visto como alguém que voluntariamente rompeu o pacto social devendo, portanto, ser considerado como inimigo da sociedade (FOUCAULT, 1996). Além disso, a pena passa a ser quantificada e o tempo se torna a sua medida principal. Para essa sociedade onde a liberdade é um dos maiores bens, a punição predominante será a suspensão temporária da liberdade. A prisão torna-se a punição por excelência, mas, diferente da velha prisão-masmorra do período anterior, a prisão-observatório de agora permitirá punir e ao mesmo tempo isolar, vigiar, controlar, conhecer e corrigir. Neste momento, a obra de enquadrar e individualizar a população marginal se verá completa: se para o senso comum a prisão nasce para dar conta da delinquência, para esta leitura, que podemos chamar de genealógica, a delinquência será um efeito-instrumento da prisão. Para Foucault: A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãos gêmeos. Ninguém creia que foi a descoberta do delinqüente por uma racionalidade científica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técnicas penitenciárias. Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a existência ‘objetiva’ de uma delinqüência que a abstração e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber. Elas apareceram as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta o objeto a que aplica seus instrumentos. (FOUCAULT, 1993: 226) Os infratores, uma vez captados pelas malhas da lei, serão submetidos a uma operação que antes de visar corrigi-los, vai transformá-los em delinquentes. Não importa se o infrator em questão foi premido pela necessidade, ou foi flagrado no seu único crime. A máquina penitenciária irá tragá-lo por uma de suas entradas possíveis e, quando o devolver, se um dia o fizer, já será na qualidade de delinquente. Marcados para sempre pela infâmia; afastados do seu meio social, em geral por muitos anos e
irreversivelmente; ocupados com um trabalho inútil, que de nada lhes servirá quando voltarem à liberdade; submetidos a condições que só estimularão a sua revolta; estigmatizados por sua folha corrida ¹⁰ ; recusados no mercado de trabalho por seus antecedentes penais e, doravante sob a vigilância frequente da polícia, os condenados à pena de prisão serão também condenados à reincidência. Segundo Foucault: O aparelho penitenciário, com todo o programa tecnológico de que é acompanhado, efetua uma curiosa substituição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é claro, nem mesmo exatamente o infrator, mas um objeto um pouco diferente e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva. Esse outro personagem, que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado, é o delinquente. (FOUCAULT, 1993: 223) Foucault nos fala da operação de transformação do infrator em delinquente em sua obra Vigiar e Punir. Destaca-se neste empreendimento o papel da investigação biográfica: O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza. (...) Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do ‘biográfico’ é importante na história da penalidade. Porque ela faz existir o ‘criminoso’ antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. (...) O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato (autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). (FOUCAULT, 1993: 223-224) Para captar essa nova objetividade, novos sujeitos serão investidos de poder e novas técnicas de exame serão desenvolvidas, mas antes será preciso esperar pela nova reforma penal, inspirada nas doutrinas positivistas. É quando será constituído “um conhecimento positivo dos delinquentes e de suas espécies, muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias” (FOUCAULT, 1993: 225), que será conhecido como criminologia. O conhecimento “objetivo” dos delinquentes e a parceria Psiquiatria-Justiça Estamos agora no século XIX, período caracterizado pelas grandes revoltas e sublevações populares cuja disseminação deve ser impedida a todo custo. Segundo Hobsbawn, “nunca na história da Europa e poucas vezes em qualquer outro lugar, o revolucionarismo foi tão endêmico, tão geral, tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como por contágio espontâneo” (HOBSBAWN, 1998: 127). Não por acaso, aparecem no período diversos estudos sobre as massas e sua tendência a agir criminosamente , por contágio e irracionalmente, levada por impulsos de momento. ¹¹ Aumentam as riquezas e a produtividade, crescem as cidades, mas, como sempre, o enriquecimento de poucos se faz com a espoliação e a segregação dos demais. A mecanização das fábricas vai deixando sem trabalho inúmeros
artesãos que antes figuravam entre os trabalhadores mais qualificados, engrossando ainda mais o contingente de indigentes. Armazéns, celeiros e fábricas são saqueados, máquinas são destruídas, as multidões tomam as ruas e a massa trabalhadora começa a mostrar cada vez maior capacidade de organização. Crescem a indigência e a criminalidade, inflamando as discussões sobre o crime e o tratamento dos criminosos, e a penalidade, antes vista como uma reação penal à infração, passa a funcionar como um meio de agir sobre o comportamento e as disposições do infrator. Por sua vez, a reincidência passa a ser cada vez mais debatida nos meios jurídicos e afins: se em um primeiro momento, este fenômeno permitia ver o fracasso da prisão em seus objetivos de corrigir o criminoso e prevenir novos crimes; logo, essa responsabilidade será atribuída ao próprio delinquente, visto como um tipo natural : “O efeito ‘delinqüência’ produzido pela prisão tornase problema do delinquente, ao qual a prisão deve dar uma resposta adequada” (FOUCAULT, 1997: 31). Com a justificativa de que a punição deve visar a prevenção de novos crimes e evitar a reincidência, a pena agora deve levar “em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade” (FOUCAULT, 1993: 90). Dessa forma, como dirá Foucault em suas conferências brasileiras, ...toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. [Nasce] a noção de periculosidade [que] significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. (FOUCAULT, 1996: 85) Por sua vez, naturalizada a reincidência, esta servirá ...de justificativa para uma rápida modernização das técnicas de controle e repressão utilizadas pelos aparelhos policiais, dando lugar ao aparecimento de uma ‘polícia científica’ (...). Porém, os efeitos da modernização da polícia não se restringiram apenas ao ‘mundo do crime’; logo se fizeram sentir por todo o tecido social, principalmente junto às camadas da população que exigiam maiores cuidados em termos de contenção, vigilância e disciplinarização. (...) No bojo desse processo, apresentando-se inicialmente como panacéia para o problema da reincidência criminal, constituiu-se uma das mais importantes técnicas de controle que hoje nos atinge a todos: a identificação pessoal através das impressões digitais. (CARRARA, 1998: 64) Para Foucault, se anteriormente julgar era estabelecer a verdade de um crime e apontar o seu autor, agora o objetivo é julgar também as paixões, as vontades e as disposições. Isto quer dizer que se punem as agressões, mas por meio delas as agressividades; os crimes sexuais, mas, ao mesmo tempo, as perversões; os assassinatos, mas através deles os impulsos e desejos (FOUCAULT, 1993: 21). Importa agora não apenas estabelecer que lei sanciona esta infração, mas verificar, também, até que ponto a vontade do réu determinou o crime, se o infrator apresenta alguma periculosidade e de
que maneira ele será melhor corrigido. Isso significa que, a partir de agora, o juiz já não julgará sozinho. De um lado, a Medicina Mental será chamada ao tribunal para decidir sobre a responsabilidade e a periculosidade do criminoso, avaliando se ele se encontrava em estado de loucura na hora do ato e se ele é acessível à sanção penal e, de outro, uma nova modalidade de técnicos avaliará o efeito da pena sobre o condenado e se ele merece ou não ser posto em liberdade. Para responder a esses novos mandatos, emergem diversas instituições, laterais à justiça, com as funções de vigilância e correção. E com elas aparecem também os novos atores que doravante se encarregarão de produzir diagnósticos e prognósticos acerca do preso e de acompanhar as transformações que estão se operando em seu comportamento, tornando possíveis um conhecimento individualizado do criminoso e uma individualização possíveis um conhecimento individualizado das penas (por exemplo, através da abreviação ou o prolongamento das mesmas) que funcionarão como julgamentos adicionais. É quando, segundo Foucault, A partir do século XVIII, estabelece-se uma colaboração entre a medicina e a justiça. Esta parceria, tão importante para o destino do infrator quanto para o futuro dessas duas instituições, fará nascer uma nova esfera de competência – a perícia –, um novo saber – a psiquiatria –, novos estabelecimentos – as, prisões, os asilos e os manicômios judiciários, e uma nova necessidade de distinguir o louco do criminoso, o irresponsável do responsável, o punível do tratável. Nos primeiros anos, como os loucos infratores só eram punidos quando comprovada sua intenção de causar dolo e sua permanência com as famílias era permitida por lei, as perícias só deviam responder se o imputado cometeu a infração em estado de demência. No entanto, com a reforma da lei – que acaba com a exclusão recíproca entre o discurso punitivo e o discurso terapêutico – e a consolidação do poder psiquiátrico – que além de ocupar-se da esfera do patológico, atribui-se também o controle do anormal –, as perícias passam também a avaliar a periculosidade e a capacidade de adaptação dos infratores. (CASTEL, 1978; FOUCAULT, 2001) ...todo aquele ‘arbitrário’ que, no antigo regime penal, permitia aos juízes modular a pena e aos príncipes eventualmente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se reconstituir, progressivamente, do lado do poder que gere e controla a punição. (FOUCAULT, 1993: 219-220) Essa será a chave de muitos dos excessos que a autonomia da instância carcerária viabilizará. Como nos diz Foucault: ...esse excesso é desde muito cedo constatado, desde o nascimento da prisão, seja sob a forma de práticas reais, seja sob a forma de projetos. Ele não veio, em seguida, como um efeito secundário. A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão. Podemos ver o sinal dessa autonomia nas violências ‘inúteis’ dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem o privilégio das quatro paredes. (FOUCAULT, 1993: 220)
A prisão, enquanto instrumento de modulação da pena, adquire um poder tal que, além de ser o lugar onde a duração do castigo é decidida e um certo saber sobre o criminoso é produzido, é também o palco onde se definirá, de acordo com as normas disciplinares vigentes em cada estabelecimento, quais novas punições se acrescentarão às determinadas por lei. É quando a tortura, muito usada no período feudal para fins de prova, ganhará novos objetivos, mas a própria individualização da pena, introduzida pelos reformadores sob a justificativa da humanização, servirá também para a gestão e o controle dos comportamentos. Nesse lugar que funcionará como um microtribunal, os presos serão observados dia e noite, avaliados, classificados, punidos ou recompensados. Segundo Foucault, dessa observação se extrairá um saber cujo objetivo não é mais determinar se alguma coisa se passou ou não, como fazia o inquérito no período anterior, mas sim avaliar se um indivíduo se comporta de acordo com a norma, se está progredindo ou não, se deve ser punido ou merece ser recompensado. Trata-se, pois, de ...um novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de vigilância, de exame, organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos de ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia etc. (FOUCAULT, 1996: 88) O dispositivo da periculosidade e a indeterminação das sanções O fim do século XIX é marcado por intensas discussões sobre o crime, a criminalidade e as penas. Criticada por não conseguir dar uma resposta eficaz ao aumento da criminalidade e da reincidência, a E SCOLA C LÁSSICA , que consagrara a igualdade e a liberdade individual, começa a perder espaço para as ideias positivistas. Nesse momento em que se assiste o acirramento das questões sociais, o avanço da organização das classes trabalhadoras ¹² e a intensificação das greves e agitações operárias (segundo Del Olmo chamadas de delitos das multidões), os saberes da época são convocados a munir o poder de novas estratégias para ampliar o leque e a duração das sanções, de maneira a abarcar todo o universo de desviantes e/ ou delinquentes potenciais e a garantir a sua neutralização provisória ou permanente. Assumindo a tarefa de justificar as desigualdades e privilégios de uma sociedade que queria se definir como igualitária, desviar a atenção das causas sociais e políticas dos delitos para a esfera do individual, patologizar os criminosos e resistentes ¹³ e legitimar a intervenção estatal contra os inadaptados, a Escola Positivista passa a trabalhar com a tese da predisposição hereditária para o delito e propõe que os traços reveladores da personalidade criminosa devem ser procurados na constituição física, na biografia e/ou no meio social do réu. Diferentemente dos liberais que tinham como objeto os delitos e as penas, os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal voltam-se para o homem delinquente e as características que os distinguem dos demais. Com esse objetivo, tentam individualizar os fatores que condicionam o comportamento criminoso e, apoiados em pressupostos deterministas e na noção de hereditariedade, passam a criticar a noção de livre arbítrio e a questionar a responsabilidade dos criminosos. Segundo eles, a liberdade de escolha não podia ser considerada relevante no
julgamento de um ato criminoso, uma vez que o comportamento humano estava predeterminado por causas inatas. No entanto, se os criminosos não podiam ser considerados, sob esse ponto de vista, moralmente responsáveis, deviam ser tratados como socialmente responsáveis pelo perigo que podiam representar. Assim, entendendo que a sociedade tinha o direito de se defender desse perigo e que as leis não tinham o mesmo efeito de intimidação sobre os diferentes homens, os positivistas – em oposição à Escola Clássica que retirava da esfera penal os infratores considerados irresponsáveis –, propõem que é preciso criar sanções diferenciadas para neutralizar os delinquentes natos, reservando as penas tradicionais aos criminosos ocasionais, suscetíveis de serem disciplinados e incorporados ao mercado de trabalho. A E SCOLA C LÁSSICA , baseada nos ideais do Iluminismo, atravessou parte dos séculos XVIII e XIX. As obras principais desse período foram Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria (1764) e Programa do Curso de Direito Penal de Francesco Carrara (1859). Para os clássicos, o criminoso é aquele que, no exercício do livre arbítrio – que implica na perfeita capacidade de entender a ilicitude de um ato e de agir pautado por esse entendimento – viola livre e conscientemente a norma penal, sendo, portanto inteiramente responsável por seus atos. Nesse momento, os loucos são colocados fora do Direito Comum. Para a maior parte das legislações à época eles estão isentos de pena. Na verdade, de acordo com Sérgio Carrara, ... através do crime, juristas, criminalistas, criminólogos, antropólogos criminais, médico-legistas, psiquiatras, todos fortemente influenciados por doutrinas positivistas ou cientificistas, discutiam uma questão política maior: os limites ‘reais’ e necessários da liberdade individual, que excessivamente protegida nas sociedades liberais, era apontada como causa de agitações sociais ou, ao menos, como empecilho à sua resolução. (...) Cumpria então reformar códigos e leis para assentar as bases jurídico-políticas de uma ampla reforma institucional que fornecesse ao Estado e às suas organizações os instrumentos necessários para uma intervenção social mais incisiva e eficaz. (CARRARA, 1998: 65) A oportunidade foi dada com o dispositivo da periculosidade e com o recurso à individualização e à indeterminação temporal das sanções. Desde o século anterior, à medida que a estrutura jurídico-política da sociedade contratual se generalizava, os mendigos, vagabundos e criminosos vinham sendo cada vez mais reprimidos. Como vimos acima, estes eram indiscriminadamente captados pelas teias de uma mesma rede que cada vez mais se estendia pela sociedade. A partir do século XIX, no entanto, essa malha começa a se especializar. Pouco a pouco, repressão e assistência se dissociam, inúmeras prisões são construídas e os loucos são internados em locais especiais. Vistos como incapazes de trabalhar e de responder por seus atos, ao mesmo tempo inocentes e potencialmente perigosos, que não transgride(m) a uma lei precisa, mas pode(m) violar a todas , passam a ser tratados como um foco especial de desordem. Segundo Castel (1998), por sua singular imunidade às regras do mundo do trabalho e da lei, era como se ameaçassem a própria estrutura que presidia a organização da sociedade. Para administrálos,
portanto, era preciso construir-lhes um estatuto diferente. Não podendo gerir seus bens, deviam ser tutelados, não sendo passíveis de sanção, deviam ser submetidos à internação. Com o movimento alienista começam a ser constituídas as bases teóricas que justificarão a sequestração dos loucos com base em sua imprevisibilidade, amoralidade e suposta tendência para o crime. Portadores de uma alienação, muitas vezes só visível aos especialistas, os diagnosticados como monomaníacos tornam-se objetos de suspeição e devem ser internados para evitar que cometam crimes. Criminalizada a loucura e patologizado o crime, os alienistas passam a ser chamados aos tribunais, ao mesmo tempo em que emergem a figura do monstro moral e a preocupação com a inteligibilidade dos atos criminosos sem causa aparente, cometidos por sujeitos dotados de razão. Progressivamente, o julgamento da racionalidade-responsabilidade se desloca do ato criminal para a pessoa individual, que passa a ser avaliada através de suas motivações profundas e história de vida, dimensões agora indispensáveis para apreciar as possibilidades de emenda e escolher a sanção mais adequada para a neutralização do infrator. O interesse da medicina mental vai ampliando e deixa de se restringir aos crimes monstruosos – só encontrados nos casos extremos – para se ocupar dos crimes dos indivíduos a serem corrigidos. Por sua vez, as perícias param de funcionar segundo o modo dicotômico (ou louco, ou perigoso) e vão se tornando uma atividade de triagem e classificação, estendendo seu domínio a um número crescente de indivíduos (CASTEL, 1978). Diferenciando-se da Escola Clássica, que partia do pressuposto que o criminoso era uma pessoa normal e via na pena um meio de defesa contra o crime atuando como um dissuasivo, uma contramotivação à repetição da infração, a Escola Positivista entende o crime como a manifestação de uma degeneração, anormalidade ou atavismo e se propõe a defender a sociedade do criminoso. Isso significa que, enquanto para a doutrina anterior, o fim da pena seria a eliminação do perigo social que adviria da impunidade do delito e a reeducação do condenado seria um resultado acessório, para o Direito Penal Positivo, a pena como meio de defesa social pretendia intervir diretamente sobre a subjetividade do indivíduo criminoso, reeducando-o, ou pelo menos neutralizando-o (BISSOLI FILHO, 1998). Nesse momento em que o delito passa a ser tratado como um índice de anormalidade e o cárcere se converte em aparelho de normalização, é toda a ideologia punitiva que está em transformação. Segundo Salo de Carvalho, a partir de então: Do estudo das relações objetivas e subjetivas entre o fato e o resultado, a ciência penal parte para a anamnese reconstrutiva da personalidade do indivíduo desde os seus primórdios, julgando e punindo sua história de vida. A um direito penal do fato-crime se sobrepõe um direito penal do autor fundado na periculosidade, independente da relação e proporcionalidade entre a lesão do bem jurídico tutelado e a norma jurídica. A um modelo processual acusatório baseado na presunção de inocência e nas possibilidades fáticas de comprovação e refutação de hipóteses, impõe-se um modelo inquisitorial de julgamento da personalidade do réu e suas ‘tendências’. A uma estrutura retributiva da pena, cominada com escopo de reprovar a violação da norma, impõe-se a tarefa de influenciar e modificar o ‘ser’ do ‘Outro’. (CARVALHO, 2003: 62-63; os grifos são nossos)
Dentre os autores mais relevantes que se dedicaram ao estudo “científico” dos criminosos e que forneceram as bases “científicas” deste novo sistema punitivo, quatro merecem menção especial ¹⁴ . O primeiro foi Morel, que apresenta sua tese sobre a degeneração em 1857, definindo-a como o conjunto de “desvios doentios do tipo normal da humanidade, hereditariamente transmissíveis, com evolução progressiva no sentido da decadência” (MOREL, apud CARRARA, 1998: 82). Para ele, a espécie humana partiria do tipo primitivo ideal que conteria os elementos principais para a continuidade da raça, de modo que qualquer desvio das condições normais levariam a uma degenerescência de natureza. Traçando um perfil dos degenerados que de certa maneira antecipa o criminoso nato de Lombroso, Morel diz que Os indivíduos nascidos dessas condições fatais assinalam-se desde cedo pela depravação de suas tendências. São bizarros, irritáveis, violentos, suportando dificilmente o freio da disciplina e mostrando-se na maioria dos casos, refratários a toda a educação. Eles entregam-se instintivamente ao mal, e seus atos, prejudiciais e perversos, são indevidamente, em muitas circunstâncias, designados sob o nome de monomanias (...). Do ponto de vista físico, tem uma constituição franzina e débil. Sua estatura é pouco elevada, suas cabeças pequenas e mal conformadas, a freqüência e a gravidade das convulsões da infância, nestes seres degenerados, produzem o estrabismo ou as deformidades das extremidades inferiores, bem como anomalias e/ ou interrupção do desenvolvimento na estrutura íntimas dos órgãos. (MOREL, apud DARMON, 1991: 42) Produzindo, então, uma nova classificação das doenças mentais baseada em um critério etiológico, este autor afirma que a origem da maioria das doenças mentais era degenerativa, razão pela qual elas deveriam ser consideradas incuráveis e capazes de comprometer as gerações futuras ¹⁵ . Como a degeneração engendrava tipos antropológicos desviantes que progressivamente distinguiam-se do indivíduo normal, até chegar aos hereditariamente destinados a uma vida imoral, à alienação e ao crime, parecia agora impossível distinguir o criminoso do louco, o punível do tratável e todos que diferissem do tipo normal deviam ser considerados alienados. No entanto, se tal formulação poderia liberar da prisão a maior parte dos transgressores e representar o fracasso da medicina mental no trato com os criminosos, ela agora ampliava a sua competência a todo ato considerado excêntrico, indisciplinado, imoral ou criminoso e abria as portas para as terapêuticas voltadas para a profilaxia social das populações. Seguindo adiante no século – em 1870 – aparecem as teses de Lombroso, que propõe a existência dos criminosos natos ¹⁶ e entende o crime como um fenômeno atávico, reafirmando a incorrigibilidade dessa classe de criminosos ¹⁷ . De forma semelhante aos degenerados, esse novo tipo também não podia escolher ser honesto, pois o crime fazia parte da sua natureza e era o resultado de sua inferioridade biológica. Além da natureza criminosa, esses homens tinham como característica uma série de sinais e atributos que os identificavam. Destacavam-se pela ausência de pelos, os braços excessivamente compridos, os maxilares superdesenvolvidos, a vaidade, a imprevidência, a instabilidade emocional, a imprudência, a
impulsividade, a preguiça, o caráter vingativo, a crueldade, a tendência para a obscenidade, para o jogo, para a bebida e para o crime, a homossexualidade, a insensibilidade à dor, o gosto pelas gírias e tatuagens, entre outros. Além disso, como eram incapazes de sentir remorso ou culpa, entre eles a reincidência era a regra. Mas, se eles eram incorrigíveis, o que propunha a Escola Positivista do Direito Penal, nesse momento representada por Lombroso, senão a neutralização temporária ou definitiva dos infratores assim considerados? Segundo Carrara, Para os positivistas responder a tais questões era justamente reformular todos os preceitos jurídicos então em vigor e fundar um novo direito que (...) operasse sobre uma concepção cientificista da pessoa humana. Era esse o trabalho reformador da Escola Positiva. Antes de mais nada, tratava-se de dar um novo sentido à pena, libertando-a de tudo o que, nela, poderia representar expiação de uma culpa, ou aplicação de um castigo. A pena deveria converter-se em “medida de defesa social”, e sua duração e modalidade não deveriam mais ser deduzidas da gravidade legal do crime cometido (...), ou ainda do grau de consciência que o autor tivesse tido de seu crime. O critério da reação legal a ser acionada frente aos crimes deveria ser apenas o próprio criminoso (...) classificando-o segundo as causas que o teriam levado à delinqüência, pois somente através de tal classificação científica poder-se-ia estabelecer uma intervenção penal adequada e eficaz. (...) Desta maneira, por exemplo, qualquer indivíduo que apresentasse os estigmas somáticos e psicológicos indicativos de uma criminalidade nata (portador de um grau máximo de periculosidade e de um grau mínimo de regenerabilidade) deveria ser fisicamente eliminado ou segregado para sempre, independentemente do tipo ou da gravidade do crime cometido. (CARRARA, 1998: 110-111) Seguindo os passos de Lombroso, porém tentando evitar as críticas recebidas pelo seu antecessor, surge Garófalo com um discurso em que se começa a reconhecer várias aproximações com o atual, mas que ainda mantém a crença na hereditariedade e na visão dos delinquentes como um tipo antropológico. Em sua obra de 1878, ele continua a sustentar que as causas do delito devem ser procuradas no delinquente, ou em suas predisposições hereditárias, e a atribuir a tendência ao delito a um tipo de anomalia moral ¹⁸ , mas já abre mão, pelo menos em casos especiais, da crença na incurabilidade dos delinquentes. Negociando com a perspectiva correcionalista que começava a ganhar força e admitindo graus diferenciados de capacidade de adaptação dos delinquentes ¹⁹ , Garófalo orienta sua pesquisa para os aspectos da personalidade envolvidos no comportamento criminal e cunha o conceito que pode ser considerado como precursor da noção de periculosidade. Embora questionando os seus contemporâneos que negavam a existência de tendências criminosas inatas ou acreditavam que elas só existiam em uma minoria de casos e criticando a crença na eficácia da educação sobre os instintos criminosos, Garófalo propõe uma diferenciação das sanções, levando em conta os caracteres psicológicos dos delinquentes, que será fundamental para o aggiornamento da Criminologia Positivista.
De qualquer maneira, mantendo a distinção entre os delinquentes típicos e inassimiláveis e os que são susceptíveis de adaptação , Garófalo propõe um sistema de penas em que a eliminação do delinquente, absoluta (pena de morte) ou relativa (prisão temporária, deportação ou relegação) ainda cobre a maior parte das sanções. Concordando com Lombroso, que atribui à pena capital o mérito de melhoramento da raça, e afirmando que há indivíduos que são incompatíveis com a civilização, o autor defende a pena de morte para os que se revelarem destituídos do sentimento de piedade e refere que ...esses delinqüentes representam verdadeiras monstruosidades psíquicas e não podem inspirar a ninguém a simpatia, que é o ponto de partida e o fundamento da piedade. Esses indivíduos colocam-se fora da humanidade, (...) que por isso mesmo, tem o direito de suprimi-los. (GARÓFALO, 1997: 163) Para distingui-los e determinar a medida punitiva mais adequada a cada caso, recomenda a avaliação do grau de temibilidade ²⁰ do criminoso que ele define como: ...a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade de mal previsto que se deve temer por parte do mesmo. (GARÓFALO apud MECLER, 1996: 26) Nesse momento aparece Ferri, o mais importante representante da Escola Positiva que – embora também procure as causas do crime nos homens – já logra uma maior sintonia com o pensamento sociológico/jurídico da época. Segundo ele: Ao falar do delinqüente nato, a Escola Italiana não se refere a um tipo exclusivamente anatômico: o homem delinqüente é uma personalidade completa, ao mesmo tempo biológica, psicológica e social. A delinqüência é produto de uma ordem tripla de fatores: fator antropológico, fator de meio físico e fator de meio social. Um homem pode ter os estigmas da delinqüência e, contudo morrer sem haver cometido jamais um delito, se encontrou em seu meio uma força de suficiente resistência. E vice-versa, um homem pode encontrar em seus antecedentes hereditários a força para resistir à influência de seu meio. (FERRI apud DEL OLMO, 2004: 92) No entanto, atribuindo às diferentes classes sociais uma natureza específica e tratando as desigualdades sociais de forma espantosamente preconceituosa, Ferri divide as camadas sociais em três categorias: ...a classe moralmente mais elevada que não comete delitos porque é honesta por sua constituição orgânica, pelo efeito do senso moral (...) [pelo] hábito adquirido e hereditariamente transmitido (...) mantido pelas condições favoráveis de existência social (...) Outra classe mais baixa [que] é composta de indivíduos refratários a todo sentimento de honestidade, porque privados de toda educação e impregnados (...) da miséria material e moral (...) [que] herdam de seus antepassados (...). A terceira classe [dos que] não nasceram para o delito, mas não são completamente honestos. (FERRI, apud RAUTER,1982: 29)
Como seus antecessores, Ferri também defende a tese da hereditariedade e abraça a causa da defesa social ²¹ . Contudo, além de já operar mais propriamente com o conceito de periculosidade, dos quatro é ele quem mais se abre às justificativas terapêuticas para a individualização e indeterminação temporal das sanções, levando-se em conta as probabilidades de reincidência. Para o autor, somente a adaptação das sanções à natureza e à periculosidade do delinquente pode fornecer à sociedade a arma necessária ao sucesso da luta contra o crime. Segundo suas próprias palavras: ...na justiça penal trata-se de ver não se o delinqüente ofendeu ou não ‘um direito’ ou antes ‘um bem jurídico’ e transgrediu ou não ‘a proibição’ ou antes ‘a norma penal’, mas de procurar como e em virtude de que ele cometeu essa ação criminosa e qual a periculosidade que revelou em tal ação e quais as probabilidades que apresenta de voltar, depois da condenação, a uma vida regular e por isso qual sanção repressiva que lhe é mais conforme, não ‘ao crime’ por ele levado a efeito, mas à sua ‘personalidade de delinqüente’ pelo crime praticado. (FERRI, apud BISSOLI FILHO, 1998: 37) Esse pequeno desvio vai levá-lo a defender que: Esta distinción de los delincuentes según su peligrosidad deriva de que su conducta antisocial aparece determinada por tendencias congénitas o por atrofia del sentido moral, o por impulsos pasionales, o, en fin, por influjos prevalentes del ambiente familiar y social y por las deficiencias y defectos de los mismos sistemas carcelarios que son como estufas para el cultivo de los microbios criminales. Y sólo en virtud de esta distinción y clasificación psico-antropológica de los delincuentes le será posible al legislador realizar en la práctica, con las sanciones represivas, aquel doble objetivo de la defensa social y de la corrección de los condenados, que los sistemas penales hasta ahora en uso no han podido conseguir, por estar orientados y aplicarse siguiendo el criterio exterior de la gravedad de los delitos y no el de la relación íntima de las diferentes condiciones personales de los culpables. (FERRI, apud RIBEIRO, 1998: 16) A consolidação da ideologia do tratamento e a transnacionalização das políticas criminais Essas teses, progressivamente adaptadas aos discursos e práticas da época e difundidas em um momento de grande efervescência nos meios jurídicos europeus, foram decisivas para a consolidação da criminologia como “ciência” e a para a progressiva construção da delinquência como uma condição tratável. A partir dos anos 1870 são realizados vários Congressos Penitenciários Internacionais, com o objetivo de definir normas universais para tratamento dos delinquentes e em 1889 é fundada a União Internacional de Direito Penal (UIDP), que em pouco tempo se torna a maior difusora dos princípios da defesa social ²² . O 1º Congresso Penitenciário Internacional ocorre em Londres em 1872, o 2º em Estocolmo, no ano de 1878 e o 3º em Roma, em 1885. Este último conta com as presenças de Lombroso, Garófalo e Ferri, que, no mesmo ano, também estão à frente do I Congresso Internacional de Antropologia Criminal pregando a teoria do
criminoso nato. No II Congresso de Antropologia Criminal, em 1889, as teorias lombrosianas sofrem forte oposição por parte dos próceres da Escola Francesa de Sociologia (Gabriel Tarde, Lacassagne, Topinard e outros, que põem ênfase nos aspectos sociais da criminogênese) e os positivistas só retornam no IV Congresso, com o discurso um pouco mais adaptado às novas tendências punitivas – agora baseadas na ideologia do tratamento e defensoras da “reabilitação” dos delinquentes. Com essa virada estratégica, no VI Congresso (em 1906) comemora-se o jubileu científico de Lombroso e no VII, e último Congresso de Antropologia Criminal, ainda comparece o debate sobre a questão racial e sua relação com os delitos, mas já predominam as visões sociológicas sobre o crime e ganha cada vez mais força a discussão sobre a sentença indeterminada. Quanto às discussões sobre o conceito de periculosidade, no Congresso Penitenciário Internacional de 1905 já se levanta a questão da periculosidade dos reincidentes, em 1907-1908 incluem-se os loucos e deficientes mentais entre os perigosos; em 1910, discute-se o problema da conciliação entre esta noção e as garantias de liberdade individual ²³ ; no mesmo ano se decide pela necessidade de estabelecer medidas especiais de segurança contra os delinquentes considerados perigosos e, em 1913, é feita nova definição das categorias que devem ser consideradas perigosas, incluindo agora os alcoólicos, os mendigos e os vagabundos (BRUNO, apud BISSOLI FILHO, 1996: 132). Pouco a pouco, a ideia da periculosidade vai concernindo a todos os criminosos e delinquentes potenciais, de tal maneira que já não é necessário cometer um delito para ser considerado perigoso. Já que o verdadeiro fim do direito penal é a defesa social, é possível justificar a intervenção no seio das classes perigosas sem esperar pelo delito (BISSOLI FILHO, 1996: 136-137). De qualquer maneira, a 1ª Guerra Mundial acaba interrompendo a sequência dos congressos internacionais e impede o IX Congresso Penitenciário previsto para 1915 em Londres. A UIDP reorganiza-se e passa a chamar-se Associação Internacional de Direito Penal e uma das questões em torno da qual girará o I Congresso desta entidade será: a medida de segurança deve substituir a pena ou simplesmente complementá-la (DEL OLMO, 2004)? Quando, enfim, os positivistas deixam a cena, surge inicialmente a concepção dualista do Direito Penal (ou sistema do duplo-binário), ainda mais rigorosa que a anterior, fará coexistir, durante algum tempo, os dois tipos de resposta penal: a pena como retribuição ao crime e a medida de segurança a ser acrescentada à primeira nos casos considerados perigosos ²⁴ . No entanto, logo novas mudanças são introduzidas e o sistema conhecido como duplo binário é substituído pelo vicariante. Com ele, penas e medidas de segurança passam a ser consideradas sanções de natureza diversa, aplicadas para situações diversas: as primeiras para os imputáveis e as segundas, reservadas para os inimputáveis. O estudo das causas dos crimes é transferido dos fatores biológicos e psicológicos para os sociais e a ideologia defensivista é retomada sob o disfarce de um discurso mais humanizado e aparentemente progressista. Finda a Segunda Guerra, nasce o movimento que viria a ser conhecido como a Nova Defesa Social e realiza-se o I Congresso de Defesa Social, que tinha
como um de seus objetivos “a transformação do atual sistema penal e penitenciário no sistema educativo e curativo dirigido à personalidade do indivíduo” (DEL OLMO, 2004: 118). Este modelo, que também se apoiará na noção de periculosidade e fará da indeterminação do tempo de reclusão uma de suas principais estratégias de controle ²⁵ , introduzirá o sistema progressivo das penas, responsável tanto pelos efeitos supostamente reabilitadores, quanto inabilitadores, que deverão ser vistos como duas formas inseparáveis e complementares de gestão das populações carcerárias. As primeiras se aplicarão “a la gran mayoría, que tratan de hacer lo posible por salir cuanto antes y por sufrir lo menos posible mientras dure el calvario de la pena (y las otras) a la categoría de presos etiquetados como incorregibles, inadaptados, rebeldes y peligrosos” (BILBAO, 1994: 125). A partir de então, o instrumento que permitirá operar esse poder e discriminar/ produzir os dois grupos será o exame cujo objetivo será prognosticar o risco de reincidência (ESPÍ, 1994). Com a repaginação proporcionada pela nova versão defensivista das políticas criminais, mesmo tendo caído em descrédito, a Escola Positiva de Direito Penal deixará entre nós várias heranças: continuarão a fazer parte de nossas legislações o princípio de individualização das penas; os exames que visarão o estudo da personalidade e da história de vida dos condenados e que avaliarão a probabilidade de estes virem a reincidir no delito (exame que será conhecido como criminológico); o conceito de periculosidade e as medidas de segurança por tempo indeterminado. Além disso, como legado dessa escola, manter-se-á a tradição, inteiramente maniqueísta de perceber os que delinquem como um outro perigoso, pernicioso à sociedade, desumano, verdadeiro monstro e por isso incapaz de viver entre os homens de bem. Dessa maneira, será sempre possível justificar para eles os tratamentos mais cruéis e ainda garantir a aprovação da opinião pública. Afinal, como nos diz Chomsky, “quando você oprime alguém precisa alegar alguma coisa. A justificativa acaba sendo o nível de depravação e vício moral do oprimido (...). Examine a conquista britânica da Irlanda, a primeira das conquistas coloniais ocidentais. Ela foi descrita nos mesmos termos que a conquista da África. Os irlandeses eram uma raça diferente, não eram humanos, não eram como nós. Eles tinham que ser esmagados e destruídos” (CHOMSKY, apud COIMBRA, 2001: 63) . É o que veremos nas doutrinas de segurança nacional das ditaduras militares latino-americanas, nas políticas transnacionais de combate às drogas e na guerra ao terrorismo. Segundo Dornelles, as matrizes deste pensamento vão se reproduzir nos discursos neopositivistas de corte pseudossociológico que mascarando os determinantes socioeconômicos desse tipo de produção e partindo das categorias normal/anormal para explicar os comportamentos e situações sociais ‘desviantes’ (como morar em áreas irregulares, exercer atividades informais ou praticar atos considerados delituosos), entenderão o crime como resultado ...de um ambiente disfuncional patológico, como um foco irradiador do contágio de um mal que se alastra para as ‘áreas saudáveis’ da sociedade, [quando] os mecanismos de autodefesa imunológica falha[m] na sua tarefa de proteção do ‘corpo social’. (DORNELLES, 1997)
A subversão e a droga na América Latina Chegamos então ao século XX quando, sob o impacto das duas grandes guerras mundiais, é criada a Organização das Nações Unidas (ONU) ²⁶ . Pouco a pouco, são desenvolvidos diversos instrumentos legais para a proteção internacional dos direitos humanos, entre os quais viriam a se destacar a Declaração Universal de Direitos Humanos, os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos, Cruéis, Desumanos e Degradantes, entre outros ²⁷ . Paralelamente, a partir dos anos sessenta, são implantadas ditaduras militares em diversos países das Américas e, sob a alegação da necessidade de fortalecer o Estado contra o comunismo, assiste-se à emergência de uma nova doutrina de segurança (Doutrina de Segurança Nacional), que elegerá como inimigo número um a figura do subversivo. Mediante a lógica da guerra e a construção de um discurso de emergência, as polícias são militarizadas e aparelhadas para o combate interno; as legislações são reformuladas de maneira a garantir um ilimitado poder punitivo e se legitima um tratamento diferenciado, segundo o grau de perigo representado pelo inimigo. Nesse momento, os cárceres passam a receber também presos políticos; as penas de morte e de banimento voltam a fazer parte dos Códigos Penais; a tortura – que nunca deixara de ser utilizada contra as parcelas desfavorecidas da sociedade – é institucionalizada e passa a ser instrumentalizada para o controle da subversão ; sem falar nas detenções ilegais e sem processo e no sequestro, execução e desaparecimentos forçados por causas políticas ²⁸ . Terminadas as ditaduras, termina também a legitimação oficial à prática da tortura, que, no entanto, continua a ser praticada e a amparar-se na certeza da impunidade. Após um breve interregno, no qual os sistemas penais começam a adequar-se às novas regras do Estado de Direito e as forças progressistas se esforçam para livrar nossa legislação do entulho autoritário, a cena política volta a convulsionar-se e as promessas democráticas nem bem começam a tornar-se realidade e já assistem à sua demolição. Com a implantação das reformas neoliberais, o capitalismo ganha novo impulso e passa a dispensar os ditadores de plantão. As novas regras da economia reduzem os investimentos em políticas públicas inclusivas, ao mesmo tempo em que aumentam as taxas de desemprego e emprego precário, tornando sem efeito as antigas estratégias dos trabalhadores e lançando em situação de total vulnerabilidade um contingente antes inimaginável de pessoas. Não tendo mais sequer como reintegrá-las ao mercado formal de trabalho, as políticas de segurança migram da ideologia de segurança nacional para a ideologia da segurança urbana e inventam outra função para as prisões ²⁹ . Sem perspectivas de vida, legiões de jovens são empurradas para o tráfico, morrendo antes dos 25 anos ou engordando as estatísticas penitenciárias ³⁰ . Como apontam Batista (1998) e Baratta (1997), não é a toa que nesse momento as drogas se convertem na nova justificativa para a criminalização da pobreza e a reedição de legislações de emergência: para esta nova ordem, é muito mais funcional alimentar o medo e o conflito quebrando todas as antigas formas de sociabilidade e solidariedade. Se, como nos diz Bauman, em breve 20% da força de trabalho será suficiente para mover a economia, o que fazer com os outros 80% da faixa vulnerável ou excluída, que já não têm mais
utilidade? É preciso ter um pretexto para tornar mais repressivo o controle social punitivo. É preciso, portanto, gerar novos mecanismos reguladores da insatisfação da sociedade, sendo os principais o encarceramento maciço e a manipulação da insegurança e do medo (ZAFFARONI, 1997; BAUMAN, 2000). Movidas por esses novos desígnios, as políticas de segurança pública intensificam o controle, o encarceramento e até o extermínio das classes vistas como perigosas, atingindo especialmente aos pobres, jovens e negros, moradores das áreas pobres. Para sociedades excludentes e elitistas, onde “segurança pública não significa segurança e bem-estar do público, mas, ao contrário, expressa a manutenção de uma ordem desigual e injusta” (DORNELLES, 1997: 113), uma polícia violenta e corrupta é absolutamente funcional. Assim, favelas e bairros populares são invadidos a qualquer hora e sob qualquer pretexto por uma polícia que extorque, forja flagrantes, tortura e mata, e é nesse contexto que vai sendo construído o imaginário social que permite que grande parte de nossa população seja percebida como perigosa e não como beneficiária dos direitos mais essenciais. Identificá-los, pois, como monstros indesejáveis faz parte desse grande empreendimento de reengenharia social. Tendo em vista as novas subjetividades que se querem produzir, a gestão midiática do medo e da indiferença cumpre um papel fundamental. A violência é oferecida como espetáculo diário aos consumidores em busca de entretenimento e adrenalina, para os quais a exposição repetida a cenas de violência promove ao mesmo tempo terror e banalização. Para isso, espetaculariza-se e cria-se um ambiente de pânico e comoção social generalizados por um lado, ou banaliza-se e justifica-se a violência por um outro. O objetivo é a aprovação da opinião pública a um tratamento maniqueísta da violência de acordo com a classe social da vítima ou a posição social do perpetrador. Assistimos, então, a uma divisão entre a ‘cidade legal’ e a ‘cidade ilegal’ (DORNELLES, 1997) e à configuração de uma situação absolutamente conflagrada que garante que determinados territórios passem a ser tratados como se estivessem fora do ordenamento jurídico. Adotando-se, mais uma vez, a lógica da guerra, os excessos são considerados inevitáveis, seus alvos preferenciais são tratados como ameaças à segurança dos verdadeiros cidadãos ,e nesses locais onde a ordem jurídica normal é suspensa – e a suspensão é tornada a regra –, o Estado se comporta como se estivesse desobrigado a observar a lei. Desprovidos de proteção jurídica, os habitantes destas áreas, especialmente os jovens, pobres e negros, podem ser presos por mera suspeição ou até eliminados, se assim a segurança da sociedade o exigir ³¹ . Pelos mesmos motivos, ganham vulto os movimentos que pedem mais lei e ordem, abusamse das medidas preventivas e cautelares ³² , entopem-se os manicômios judiciários de pequenos usuários/revendedores de drogas, clama-se pela redução da maioridade penal ou aplicam-se simulacros de medidas de segurança a adolescentes infratores ³³ . Coerentemente com este novo diagrama, vemos também aparecer uma nova onda de pesquisas buscando a correlação entre a conduta criminosa e/ou violenta e as constituições psíquicas ou neurobiológicas, o retorno dos discursos periculosistas e contrários à reforma psiquiátrica, o aparecimento de extensa campanha midiática pela volta do modelo de assistência centrado no hospital
psiquiátrico e o incremento da utilização dos saberes psi para a avaliação, gestão técnica e até o interrogatório dos inimigos da vez (KOLKER, 2009). É quando os discursos periculosistas, nascidos no século anterior, tornam-se insuficientes. Para sustentar as políticas de encarceramento em massa que se disseminam pelo mundo afora, é preciso adaptar a noção de periculosidade às novas estratégias de controle social, que agem mais difusamente. Será, então, formulado o conceito de risco social, que permitirá uma significativa ampliação na escala da intervenção das medidas preventivistas ³⁴ . Segundo Pegoraro, a …gestión del riesgo implica la posibilidad de multiplicar las intervenciones, abarcando así ya no la ‘peligrosidad’ – siempre encarnada en algún individuo – sino factores, ambientes, situaciones, que se convierten en blanco de tales intervenciones ya sea preventivas o represivas (PEGORARO, 1999: 227) ³⁵ . De acordo com De Giorgi, emergirá uma política criminal preocupada em isolar e gerir em vez de reformar, de tal forma que “as novas estratégias penais se caracterizarão cada vez mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão preventiva das populações consideradas portadoras deste risco. Mais do que aprisionar criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco individual, trata-se agora de gerir, ao nível de populações inteiras, uma carga de risco que não se pode (e, de resto, não se está interessado em) reduzir” (DE GIORGI, 2006: 97). E é nesse momento que a própria criminalidade violenta passa a ser estratégica ³⁶ , justificando a militarização da segurança pública, a tolerância com as práticas ilegais e violentas da polícia, o endurecimento penal e a criação de regimes disciplinares cada vez mais duros (que na prática são ainda piores que as antigas celas de isolamento), quando não legitimam a tortura e a execução sumária dos etiquetados como perigosos. A influência do positivismo nas instituições e legislação penal brasileira Todas essas discussões sobre periculosidade e risco envolveram os meios jurídicos e acadêmicos brasileiros, produzindo efeitos em nossas legislações e instituições desde o alvorecer de nossa produção criminológica. Com a proclamação da República, que permite uma abertura ainda que virtual dos canais de poder a representantes da sociedade civil; com a abolição da escravatura, que põe fim ao impedimento legal à participação dos descendentes africanos na vida urbana; e com a imigração estrangeira que traz para o Brasil trabalhadores com mais consciência de classe, novas estratégias tornam-se necessárias para deter os reclamos por cidadania dessa parcela da sociedade e justificar o tratamento desigual a elas conferido. Não por acaso, a mais importante delas foi a justificativa científica para o racismo, que vinha legitimar a crença na superioridade da raça branca e marcar as discussões sobre o tema da defesa social em nosso país (CORRÊA, 2001). Nos períodos de crises sociais que se seguiram à proclamação da República, primeiro as teorias positivistas italianas e posteriormente as teorias eugenistas alemãs vão oferecer as ferramentas teóricas necessárias ao
controle social das classes potencialmente perigosas. Diversos trabalhos são escritos e vários congressos são realizados demonstrando a periculosidade dos negros e das diversas categorias marginais, como as crianças abandonadas, os loucos, os homossexuais, os alcoólatras, as prostitutas e os criminosos. Um bom exemplar dessa safra de teóricos foi Nina Rodrigues que, atribuindo à raça negra a debilidade física e mental de nosso povo e questionando a noção de livre arbítrio, define os graus de irresponsabilidade social de acordo com parâmetros de raça, idade e sexo e cultura. Coerentemente com os ideais positivistas verde-amarelos, ele afirma que “a igualdade política não pode compensar a desigualdade moral e física” e pergunta: Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus atos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? (...) Porventura pode-se conceber que a consciência do direito e do dever que têm essas raças inferiores seja a mesma que possui a raça branca civilizada? (...) A escala vai aqui do produto inteiramente inaproveitável e degenerado, ao produto válido e capaz de superior manifestação de atividade mental. ( apud CORRÊA, 2001: 141) Para ele, que condenava a “estúpida panaceia da prisão celular” (CORRÊA, 2001: 145), a melhor maneira de resolver o problema dessas populações consideradas deletérias para o desenvolvimento do país era o isolamento em asilos. Outro bom exemplo desse movimento foi o acordo firmado entre os governos dos países do Cone Sul, estabelecendo a obrigação de trocarem informações a respeito dos dados individuais das pessoas consideradas perigosas ³⁷ . Mais do que identificar e classificar os tipos perigosos, a escola positivista brasileira propõe, portanto, uma espécie de cadastro geral dos perigosos. Os anos passam e três décadas depois os positivistas brasileiros ainda continuam em ação. Apresentando pesquisas que “comprovam” a possibilidade de se prevenir o crime, Leonídio Ribeiro observa que ... isso seria possível desde que se lograsse classificar biotipologicamente, desde a primeira infância, todos os indivíduos, especialmente aqueles que, pela sua constituição e tendências, pudessem ser considerados como prédelinqüentes. ³⁸ ( apud CORRÊA, 2001: 187) Estas ideias – que se colocavam contra os ideais liberais – pressionavam a favor de legislações que incorporassem as medidas preventivistas. Assim, ao mesmo tempo em que, tardiamente, os nossos primeiros códigos penais introduziam os princípios liberais, eram introduzidos também os primeiros traços dos ideais positivistas. Para o Código Republicano de 1890, que antecedeu a maior parte dessas discussões, não eram considerados criminosos os indivíduos isentos de culpabilidade em virtude de affecção mental, como também estavam livres de pena os menores de 9 anos, os maiores de 9 e menores de 14 que não tinham discernimento, os portadores de imbecilidade nata, enfraquecimento senil e os surdos-mudos ³⁹ . Em compensação, para os maiores de 9 e menores de 14 que houvessem obrado com discernimento, a legislação previa o recolhimento em estabelecimentos
disciplinares industriais; para os vadios e capoeiras reincidentes, a internação em colônias penais; para os toxicômanos, a internação curativa e para os ébrios habituais que fossem nocivos ou perigosos a si próprios, a outrem ou a ordem pública, a internação em estabelecimento correcional (RIBEIRO, 1998: 12-13). Mas é no Código Penal de 1940, inspirado no Código Italiano de 1930, que verdadeiramente se pode ver a força da influência positivista. Na Exposição de Motivos do Ministro Campos, lê-se o seguinte: 1. É notório que as medidas puramente repressivas e propriamente penais se revelaram insuficientes na luta contra a criminalidade, em particular contra as suas formas habituais (no sentido de reincidentes). Ao lado disto existe a criminalidade dos doentes mentais perigosos. Estes, isentos de pena, não eram submetidos a nenhuma medida de segurança ou de custódia, senão nos casos de imediata periculosidade. Para corrigir a anomalia, foram instituídas, ao lado das penas que têm finalidade repressiva e intimidante, as medidas de segurança. Estas, embora aplicáveis em regra post delictum , são essencialmente preventivas, destinadas à segregação, vigilância, reeducação e tratamento dos indivíduos perigosos, ainda que moralmente irresponsáveis. (OLIVEIRA, 1987: 7) Esse Código, que incorporava o Princípio de Individualização das Penas e o sistema do duplo binário, introduziu também o critério da periculosidade para a aplicação da pena, consagrou o dispositivo da medida de segurança a ser cumprido em estabelecimento especial e ofereceu aos juízes a liberdade de escolher entre os diversos tipos de sanção ⁴⁰ ou aplicar cumulativamente sanções de espécies diversas. Por outro lado estabeleceu, como o seu modelo europeu, que ... entre o mínimo e o máximo, ele [o Juiz] graduará a quantidade de pena de acordo com a personalidade e os antecedentes do criminoso, os motivos determinantes, as circunstâncias e as conseqüências do crime. Em suma, individualizará a pena, adotando a quantidade que lhe pareça mais adequada ao caso concreto. (OLIVEIRA, 1987: 7) Para efeitos de individualização, o Código de 1940 distingue os primários e os reincidentes, as circunstâncias agravantes e atenuantes e introduz uma aplicação subjetivista da pena. Assim, é estabelecido que: 1. O Juiz, ao fixar a pena, não deve ter em conta somente o fato criminoso, nas suas circunstâncias objetivas e conseqüências, mas também o delinqüente, a sua personalidade, seus antecedentes, a intensidade do dolo ou grau de culpa e os motivos determinantes (art. 42). O réu terá de ser apreciado através de todos os fatores endógenos e exógenos, de sua individualidade moral (...) e da sua maior ou menor desatenção à disciplina social. Ao Juiz incumbirá investigar, tanto quanto possível, os elementos que possam contribuir para o exato conhecimento do caráter ou índole do réu – o que importa dizer que serão pesquisados o seu curriculum vitae , as suas condições de vida individual, familiar e social, a sua conduta contemporânea ou subseqüente ao crime, a sua maior ou menor periculosidade (probabilidade de vir ou tornar o agente
a praticar fato previsto como crime). Esta, em certos casos, é presumida pela lei ⁴¹ , para o efeito da aplicação obrigatória da medida de segurança; mas fora desses casos, fica ao prudente arbítrio do Juiz o seu reconhecimento. (Idem, art. 77) Importante para a aplicação deste instrumento legal é a avaliação da responsabilidade penal que deverá ser feita mediante perícia médica. Adotando o sistema biopsicológico de avaliação, o Código estabeleceu, em seu artigo 22: É isento de pena o agente que, por doença mental, ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (OLIVEIRA, 1987: 15) Atribuindo à pena a função de retribuir o dano e corrigir o condenado, o Código de 1940 impõe como condição para a concessão de livramento condicional não apenas que o preso apresente bom comportamento, mas também, que fique demonstrada através de exame a cessação da sua periculosidade. Por sua vez, para que o internado por medida de segurança seja desinternado, a mesma condição será exigida. As medidas de segurança, definidas como medidas de prevenção e assistência social e destinadas àqueles que, sendo ou não penalmente responsáveis, forem considerados perigosos, serão impostas por tempo indeterminado e deverão perdurar até que fique comprovada, através de exame pericial, a cessação do estado perigoso (OLIVEIRA, 1987: 24).
Com a revisão de 1984 e a entrada em vigor da Lei de Execuções Penais, uma nova política criminal e penitenciária começa a ser desenhada. Segundo a Exposição de Motivos da Nova Parte Geral, o objetivo é restringir a pena privativa de liberdade aos casos de verdadeira necessidade. São reconhecidos os altos custos dos estabelecimentos penais e os efeitos deletérios da prisão para os infratores primários e ocasionais – que perdem paulatinamente a aptidão para o trabalho e são expostos a situações de violência e corrupção altamente danosas – e é proposto, de forma manifestamente cautelosa, um novo elenco de penas alternativas à reclusão. O Princípio de Individualização das Penas é aperfeiçoado e são estabelecidos os instrumentos e os procedimentos que fornecerão as bases para um tratamento individualizado do preso. É também aperfeiçoado e ampliado o sistema de progressão/regressão das penas, que agora poderão ser cumpridas em regime fechado, semiaberto ou aberto, de acordo com as condições do preso. Desaparece da legislação o sistema do duplo binário dispensando a aplicação da medida de segurança aos imputáveis e, aos semi-imputáveis, passa a ser aplicada a pena ou a medida de segurança, de acordo com a necessidade de cada caso. Quanto às medidas de segurança para os portadores de transtornos mentais, praticamente não há nenhuma diferença. Apesar de o Código ter excluído a periculosidade presumida, o conceito continua a ser aplicado aos inimputáveis ⁴² . Isso significa que os exames de verificação de cessação de periculosidade deixam de ser aplicados aos imputáveis, mas são substituídos pelos exames criminológicos, que vão ser usados para instruir os pedidos de livramento condicional e progressão de regime, devendo informar se o interno está em condições de receber o benefício pleiteado ⁴³ . Com a Lei de Execução Penal, são estabelecidas as novas condições que devem ser garantidas aos presos e internados para o cumprimento de suas sanções. Estes passam a ter direito à assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Curiosamente não há menção à assistência psicológica. Para orientar a individualização da execução penal, os presos condenados devem ser classificados segundo os seus antecedentes e personalidade. Esta classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação (CTC), presidida pelo Diretor e composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, que terão como atribuições estudar e propor medidas que aprimorem a execução penal, acompanhar a execução das penas, elaborar o programa individualizador, apurar as infrações disciplinares e realizar os exames criminológicos (exame cujo objetivo é avaliar as condições dos presos com direito a livramento condicional ou progressão de regime). Os condenados à pena privativa de liberdade estão, por sua vez, obrigados ao trabalho, com finalidade produtiva e educativa, e sob remuneração. Além disso, têm o direito de descontar um dia de prisão para cada três dias trabalhados. Devem também se submeter à disciplina estabelecida e, no caso de infringir as regras, são sujeitos a sanções disciplinares. Isto é o que determinava a lei brasileira, pelo menos até dezembro de 2003, quando entrou em vigor a Lei 10.792, alterando alguns artigos da Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984, aumentando o poder discricionário dos diretores prisionais, tornando legal um regime disciplinar inquestionavelmente cruel e reduzindo consideravelmente o papel das CTCs,
consideradas muitas vezes como uma fundamental instância de mediação entre os presos e a administração prisional. Com essa lei deixam de ser obrigatórios os exames criminológicos, responsáveis por um dos principais gargalos que lentificavam os trâmites judiciários na obtenção dos livramentos condicionais e progressões de regime. No entanto, esta, que poderia ter sido uma medida interessante – uma vez que tais exames cultivam uma perspectiva periculosista – terminou por jogar fora o bebê junto à água do banho, limitando ainda mais o papel dos psicólogos nas prisões. Por outro lado, seguindo o exemplo norte-americano que vem espalhando cárceres de segurança máxima por toda a América e alterando a legislação penal de maneira a ampliar o poder da instância executiva, a lei 10.792/03 introduz na execução penal o famigerado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que inclui no cardápio de punições (inclusive para os presos provisórios) o isolamento em cela individual por até trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada. Prisões e violência
Nossas prisões são muito diferentes do que estabelece a Lei de Execução Penal. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, até 2008 tínhamos cerca de 450 mil presos nas delegacias e prisões brasileiras ⁴⁴ . Por falta de vagas nas unidades penais, diversas pessoas literalmente amontoadas cumprem suas penas, parcial ou totalmente, em delegacias ou casas de custódia. Muitas nunca ouviram falar em CTC e nunca foram assistidas por psicólogo ou assistente social. Como bem o diz Cristina Rauter, a realidade de nossas prisões é muito pouco panóptica. Nossas prisões são na verdade depósitos, mais ou menos caóticos, cuja finalidade parece ser apenas a exclusão e o castigo (RAUTER, 1982: 23-24). Mais de 90% não têm acesso a advogado particular e, por falta de assistência jurídica ou devido à lentidão da Justiça brasileira, muitos continuam presos mesmo após terminada a pena, ou cumprem-na em regime fechado, apesar de terem direito a livramento condicional ou a cumpri-la em regime mais brando. Passam meses ou anos em celas desumanas e infestadas de baratas e ratos; são expostos a todo tipo de violência (entre os próprios presos ou por parte do corpo funcional); geralmente recebem alimentação insuficiente e de má qualidade, sem falar nas muitas vezes em que esta é deixada intencionalmente ao sol para que estrague. O fornecimento de água é precário, as caixas de água nunca são lavadas e, na falta de água corrente, os presos frequentemente armazenam água para o banho e preparo de pequenas refeições em latões enferrujados e imundos. Apesar de viverem em condições absolutamente insalubres, a assistência médica oferecida aos presos geralmente é precária ⁴⁵ , obstruída ou até cobrada por atravessadores e até a implantação do Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário não contava com a cobertura do SUS ⁴⁶ . São poucas as unidades penais que oferecem oportunidade de estudo ou trabalho para os presos, as punições por infração disciplinar são manejadas sádica e arbitrariamente e a tortura individual ou coletiva é cometida impunemente. Em nome da segurança da unidade, frequentemente os presos têm os seus objetos pessoais examinados e destruídos e seus familiares, que segundo a lei não podem ser atingidos pela pena, são frequentemente tratados com desrespeito e obrigados a submeter-se às revistas corporais ⁴⁷ (KOLKER, 2002: 89-97). Se, como foi dito acima, os formuladores da Lei de Execução Penal pretenderam algum dia restringir a pena privativa de liberdade aos casos de verdadeira necessidade e reconheceram os efeitos deletérios das prisões , não foi essa a tendência que se firmou nas décadas que se seguiram. Pelo contrário, no Brasil – como aliás na maioria dos países –, lado a lado com a progressiva formulação dos instrumentos de proteção dos direitos humanos, começaram também a circular os discursos sobre o medo da violência e do crime que viriam a alimentar as campanhas pela lei e pela ordem ⁴⁸ , aumentando muito os índices de encarceramento, agravando cada vez mais as penas, exigindo cada vez mais rigor no trato com os bandidos, que por sua vez passam a responder com cada vez mais ousadia e violência, inclusive matando ou torturando ⁴⁹ suas vítimas. A criatura fugia, enfim, ao controle do criador e o pânico, tornado real, tomava conta das cidades. Para sustentar as novas demandas de segurança, nossos legisladores entraram em ação e, entre as principais leis produzidas para atender estes reclamos, podemos citar a Lei dos Crimes Hediondos ⁵⁰ e a lei que criou o RDD.
A atuação dos psicólogos nas unidades prisionais O dia-a-dia dos psicólogos nas prisões transcorre em meio a centenas de papéis. São infindáveis laudos, relatórios ou pareceres, feitos ou por fazer, e mesmo assim, a qualquer hora que entremos nas galerias, ouviremos dos presos as eternas queixas de que ainda não foram chamados para fazer seus exames. Pudera, as unidades penais de nosso país costumam alojar cerca de 500 presos, algumas atingem a marca dos 1000 e com sorte as equipes técnicas chegam a contar com dois profissionais da área de psicologia. Além disso, há as inúmeras sessões da CTC para apurar as infrações disciplinares. Assoberbados de tarefas disciplinadoras ou de juízos a emitir sobre os presos, a maioria dos psicólogos das unidades prisionais fica impossibilitada de realizar algum trabalho mais transformador nessas comissões ou estabelecer outro tipo de relações institucionais com os demais funcionários, internos e/ ou seus familiares. Além disso, como vimos acima, sequer está previsto na Lei de Execução Penal a assistência psicológica aos reclusos. Por outro lado, os psicólogos, assim como os demais técnicos que trabalham nessas instituições, dificilmente têm contacto com o funcionamento interno das prisões. Geralmente por problemas de segurança ou por falta de tempo, mas muitas vezes por desinformação ou desinteresse, não costumam ter acesso às galerias, desconhecendo e/ou silenciando acerca dos reais problemas dos estabelecimentos onde trabalham, inclusive no que diz respeito às costumeiras sessões de tortura (KOLKER, 2002). Todas essas questões, no entanto, estão ainda à espera de uma discussão mais profunda, tanto no próprio sistema penal, como nos sindicatos e conselhos profissionais. Falemos, pois, dos antigos Exames de Verificação de Cessação de Periculosidade (EVCP), ou atuais exames criminológicos, tornados dispensáveis pela Lei 10.792/2003 ⁵¹ . Como dizia Rauter em 1989, a partir de 1984, com a consagração do princípio de individualização das penas, ampliavam-se as “oportunidades em que um condenado deve[ria] ser tornado alvo de uma avaliação técnica” e cresciam em importância “os procedimentos que visa[vam] diagnosticar, analisar ou estudar a personalidade e a história de vida dos condenados”, com “o objetivo de adequar o tratamento penitenciário às características e necessidades de cada preso” ou de “prever futuros comportamentos delinqüenciais ” (RAUTER, 1989: 9). Buscando, naquele momento, identificar os pressupostos em que se baseavam os antigos EVCP ⁵² , Rauter (1989) concluiu que um determinismo cego, mecânico e simplista os caracterizavam. Assim, fatores como a morte precoce da mãe; o abandono do pai; a separação litigiosa dos dois; mães que trabalhavam fora e deixavam os filhos com os vizinhos; abandono precoce da escola; passagem na infância por instituição correcional; casos de alcoolismo, dependência de drogas, ou antecedentes penais na família, vistos em conjunto ou isoladamente, sempre culminavam na conclusão de que o resultado óbvio seria a prática de crime e, enfim, a reclusão. Segundo a pesquisa realizada pela autora, não se levavam em conta os processos de criminalização e a seletividade das leis, das polícias e do sistema judiciário ⁵³ ; tampouco eram examinadas as razões externas ao
preso que podiam, por exemplo, determinar a sua reincidência. Seguindo apenas critérios técnicos, os exames buscavam no preso e somente nele as condições que fizessem presumir que ele não voltaria a delinquir . Passados exatamente 21 anos, muita coisa mudou nos discursos e práticas dos psicólogos que trabalham nas prisões brasileiras que, com a perspectiva da dispensa da obrigatoriedade dos exames criminológicos para a progressão de regime e livramento condicional, se sentiram liberados para a realização de tarefas clínico-institucionais mais críticas e transformadoras. Nas duas décadas que se seguiram ao período pesquisado por Rauter, o país foi adaptando o funcionamento de suas instituições às regras do Estado de Direito, ao mesmo tempo em que a legislação penal foi caminhando para um terrível retrocesso ⁵⁴ . Nesse ínterim, embora não fosse mais possível empunhar o discurso do tratamento penitenciário (sabidamente inexistente) para justificar a necessidade dos exames, o destino dos presos continuava subordinado aos pareceres técnicos. Por sua vez, mesmo sem acreditar na eficácia da prisão como instrumento de tratamento do preso ou na capacidade de qualquer exame de prever comportamentos, os técnicos continuavam a ter que empregar seu tempo e competência nestas avaliações, que só serviam para impedi-los de desempenhar tarefas mais relevantes e prolongar o tempo de reclusão dos internos. Curiosamente, foi justamente a promulgação da lei que pretendia abolir os exames, seguida imediatamente de um intenso movimento nos Poderes Judiciário e Legislativo exigindo a sua manutenção, que permitiu a visibilização dos conflitos éticos – antes silenciados – vividos pelos psicólogos desse campo. Nesse momento, adotando posição mais proativa e apoiados por seus conselhos profissionais, psicólogos de várias partes do país iniciam um processo de discussão a respeito das atribuições que lhe são conferidas pela LEP. Encampada também pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), a mobilização dos psicólogos do sistema prisional culmina na realização de dois encontros nacionais ⁵⁵ , na circulação de um abaixo-assinado de repercussão em todo o país e na construção de uma parceria com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), com o objetivo de construir diretrizes para a atuação dos psicólogos que atuam no sistema prisional. Como resultado do esforço conjunto desses vários atores institucionais é publicado o documento “Diretrizes para Atuação e Formação dos Psicólogos do Sistema Prisional Brasileiro”, que, além de fornecer um atualizado retrato do trabalho dos psicólogos nas prisões brasileiras, permite entrever que já estão dadas as condições para uma mudança de paradigma de suas práticas ⁵⁶ . É o que se pode ver, por exemplo, no artigo 5.2.2 deste documento, que trata dos exames criminológicos e das CTCs: • Como categoria é atribuição do psicólogo apontar aos envolvidos no campo da execução penal que a realização do exame criminológico, na qualidade de dispositivo disciplinar que viola, entre outros, o direito à intimidade e à personalidade, não deve ser mantido como sua atribuição, devendo ser prioritária a construção de propostas para desenvolver formas de aboli-lo. • Enquanto não for abolido, o psicólogo, na construção de seus laudos e pareceres, deve contribuir para a desconstrução de tal exame, questionando conceitos como periculosidade e irresponsabilidade penal (...).
• Enquanto existir a comissão técnica de classificação, o psicólogo deve ter entendimento do papel institucional que ocupa, dando evidência ao Código de Ética Profissional e instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos nas opiniões que emitir sobre todas as pautas a serem debatidas e estimulando os temas sobre saúde, educação e programas de reintegração social. Paralelamente prosseguem as iniciativas regionais visando a problematização do trabalho dos psicólogos nas prisões; verifica-se intenso trabalho legislativo com o objetivo de reintroduzir a exigência do exame ⁵⁷ ; o Judiciário e o Ministério Público continuam a exigi-lo na maioria dos Estados; e assiste-se aos esforços por parte de certos técnicos de desenvolver instrumentos supostamente científicos com o objetivo de “avaliar de maneira segura e objetiva o grau de periculosidade e de readaptabilidade à vida comunitária dos condenados” ⁵⁸ . Se as argumentações a favor da manutenção dos pareceres da CTC/ Exames Criminológicos, ou mesmo de melhores condições para a aplicação dos instrumentos de avaliação dos requisitos subjetivos, encontram base no que está disposto na LEP e no artigo 83 do Código Penal, elas também ferem os Princípios Constitucionais que garantem o direito de inviolabilidade à intimidade do preso. Segundo Salo de Carvalho, a imposição legal de avaliação da personalidade do réu ou condenado possibilita ao juiz e ao criminólogo ...uma ampla discricionariedade em uma esfera na qual seria ilegítimo opinar: a interioridade da pessoa. A questão que se coloca não é se existem ou não condições mínimas de o julgador estabelecer este juízo (...). O problema levantado é que, mesmo se houvesse condições plenas de realização, esta avaliação seria ilegítima sob o prisma do direito penal de garantias. Percebe-se, portanto, que a noção de personalidade do acusado padece de profunda anemia significativa e que, agregada ao conceito de conduta social (...) conforma substrato legitimante de decisões extremamente autoritárias e sem o mínimo controle jurisdicional, visto que tais hipóteses são irrefutáveis do ponto de vista probatório, dado seu caráter subjetivista. Outrossim, por sua indefinição e verdadeira impossibilidade de comprovação e refutação em juízo, nota-se que as noções de personalidade e conduta social se confundem jurisprudencial e conceitualmente com a de periculosidade, sendo sua determinação inclinada a juízos e prognósticos de tendências delinqüenciais, na melhor orientação de um direito penal do autor. (CARVALHO, 2003: 134) No Rio de Janeiro, os psicólogos da Secretaria de Administração Penitenciária encaminharam ao seu Conselho Profissional pedido de parecer a respeito dos dilemas éticos decorrentes da sua participação nas CTCs e elaboração do Exame Criminológico. Em 07-08-2007, o CRP-05, através do Ofício nº. 582/07, esclareceu que não é ético o psicólogo: • Julgar e punir sua clientela; • Ser carcereiro e/ou contribuir para o isolamento das pessoas;
• Desrespeitar as singularidades de sua clientela, enquadrando-a, disciplinando-a e normatizando-a; • Colaborar com processos que levem à perda de direitos das pessoas; • Emitir pareceres sem fundamentação técnica-científica baseados, por exemplo, em apenas uma entrevista; e • Opinar e/ou decidir pela privação de liberdade das pessoas. Por sua vez, Espí (1994) fala da ausência de bases teóricas e metodológicas que sustentem a possibilidade de prever comportamentos humanos. Para ele, contar com a possibilidade de prognosticar comportamentos e com base nestes prognósticos tomar decisões que afetem a vida dos reclusos, aumentando ou diminuindo o tempo de seu encarceramento, “denota la pervivencia de concepciones sustancialistas y deterministas sobre el ser humano”. Segundo ele, como é justamente este o instrumento chave do poder carcerário, reconhecer a inconsistência de una peça chave da ‘ideologia ressocializadora’ como é a predição do comportamento dos reclusos, “obligaría a un drástico replanteamiento de la filosofía del tratamiento penitenciário” ⁵⁹ (ESPÍ, 1994: 208). Valendo-nos, pois, dos esclarecimentos acima, entendemos que, mesmo que estes pareceres/exames criminológicos tenham seu fundamento no princípio de individualização das penas, referendado no inciso XLVI ⁶⁰ , do artigo 5º da Constituição Federal, é urgente adequar os dispositivos legais que dele decorrem ao espírito garantista de nossa Constituição Federal. Caso contrário, o mesmo princípio da individualização que autoriza um tratamento diferenciado de acordo com a personalidade do preso implicará na violação da sua privacidade e dos princípios de igualdade e legalidade, também axiais em nosso sistema legal. Se é verdade que a LEP inspirou-se na ideologia correcionalista da defesa social e, como tal, concebeu a pena como instrumento de transformação do condenado cuja evolução deve ser verificada através de exame, continuar a tratá-lo como objeto a ser transformado e não como um sujeito de direitos implica em uma grave violação ao princípio de dignidade da pessoa, também estabelecido no inciso do artigo 5º da nossa Carta Magna. Pelo mesmo motivo, condicionar a concessão da progressão de regime e do livramento condicional à constatação de condições pessoais que façam presumir que o preso não voltará a delinquir (artigo 83 do CP) não só afronta o princípio da presunção de inocência – uma vez que diz respeito a fatos futuros não alcançados pela condenação –, como fere o direito do examinado de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. De qualquer maneira, entendendo a individualização da pena como uma das garantias fundamentais do preso, e não como a mola mestra de um sistema que se erigiu em defesa da sociedade, é possível dimensionar a contradição de um sistema que fala em “ressocialização” e mantém detentos algemados pelos pés, amontoados em contêineres metálicos que chegam a atingir 50ºC (instalações apelidadas pelos seus usuários de micro-ondas), ou ainda se vale da detenção de meninas adolescentes na mesma carceragem que presos adultos do sexo masculino ⁶¹ . Por outro lado, agora sob uma perspectiva mais garantista e apoiada em uma lógica de redução de danos, a
finalidade da individualização da pena poderia voltar-se tão somente para a adequação da execução às condições do condenado, ou mesmo ao desenvolvimento de suas aptidões, desde que respeitadas sua intimidade e vontade e mantido o objetivo de torná-la o menos aflitiva possível. O fato é que a dispensa do EC e da avaliação da CTC para a obtenção dos benefícios não obstaria a avaliação dos requisitos para a aplicação do sistema progressivo de penas e, pelo contrário, liberaria os técnicos para as novas tarefas que lhe são conferidas pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário ⁶² . Como podemos ver no Parecer da Defensoria Pública de São Paulo, A lei, ao estabelecer o cumprimento da pena de forma progressiva, estipulou requisitos para tanto. Portanto, não cabe ao órgão julgador supor, com base em laudos desprovidos de critérios objetivos e científicos, que o sentenciado não se ajustará à forma mais branda de cumprimento da pena. Não pode uma suposição tal, indemonstrável concretamente, restringir a liberdade de alguém, visto que, do contrário, estar-se-ia utilizando fundamentos morais para a privação da liberdade individual, servindo a persecução penal como verdadeiro instrumento de ‘vingança estatal’. A alteração legal não aniquilou o processo de individualização da pena, apenas restringiu-o ao exame do bom comportamento carcerário ⁶³ , que mais se coaduna com o modelo garantista da Constituição Federal. Por tudo o que foi exposto acima, compete-nos contribuir para a adequação da execução penal aos princípios garantistas vigentes e, portanto, aproveitar esta oportunidade de problematização da legislação para fomentar esta discussão. Na impossibilidade de concluir... Inspirando-me em Pavarini, que, contratado para escrever um livro introduzindo os conceitos de criminologia, preocupou-se muito mais em colocar problemas do que propor definições, chego ao fim de minha exposição sem apontar nenhuma direção aos psicólogos que desejem experimentar práticas mais transformadoras. Longe de mim tal pretensão. Até porque não existem fórmulas. Como o autor italiano, que confessou que “no conseguiría escribir um manual de criminologia porque no sabría decir con certeza que és la criminologia”, mas poderia “ayudar a comprender qué ofrece y pra qué sirve esta criminologia” (PAVARINI, 1996: 22) , penso que serei mais útil se ajudar o leitor a problematizar sua prática e a indagar a serviço de quê quer investir seus saberes e competências. Na impossibilidade de concluir, deixo, então, um mal-estar, uma inquietação ainda sem forma, uma provocação ao pensamento, à problematização ou, quem sabe... à invenção. Afinal, as práticas verdadeiramente transformadoras só se fazem naqueles momentos fugazes e inesperados dos acontecimentos, dos bons encontros, que são possíveis mesmo numa prisão. Jurandir Freire, em um antigo, mas ainda importante texto, já nos alertava que é impossível prever o comportamento humano como quem prevê a dilatação do metal pelo calor. É impossível controlar a imprevisibilidade dos homens. Para ele, qualquer tentativa neste sentido só pode estar a serviço de uma mascarada cumplicidade com as razões de Estado. E avaliar uma
pessoa segundo seu grau de adaptação às normas sociais não pode ser considerado outra coisa (COSTA, 1989). Isso significa que o mandato dos técnicos da área psi que trabalham em prisões, e dentre eles o dos psicólogos, precisa ser urgentemente repensado. Se vimos acima que as prisões produzem efeitos de subjetivação e que o sistema penal, ao configurar a delinquência, contribui para a produção e reprodução dos delinquentes, o que podemos fazer para trabalhar pela desconstrução dessas carreiras, para a produção de desvios nessa trajetória que se quer preconizar como irreversível? Como utilizar nossas competências não para reafirmar destinos, e sim para conduzir o desvio para outras direções mais criativas e a favor da vida? Embora alguns autores entendam o crime como fenômeno natural, nem tudo está dominado no campo da criminologia. Castro (1983) e Baratta (1997), dois dos grandes expoentes da Criminologia Crítica, ajudam-nos a escapar das explicações tautológicas. Para eles, não é possível entender o acontecimento-crime sem levar em conta a ação seletiva e configuradora de carreiras criminais exercidas pelas agências de controle social. De qualquer maneira, as questões levantadas até aqui nos indicam que em vez de perguntarmos se o exame criminológico é essencial ou não ao tratamento penitenciário e à individualização da pena, devemos problematizar o que se entende por tratamento penitenciário e indagar a quem serve essa concepção de individualização da pena. Prosseguindo (em que pese a impossibilidade de compatibilizar tratamento e pena), devemos pensar se quando adotamos o conceito de tratamento penitenciário estamos nos referindo ao conjunto de meios e intervenções dirigidas ao recluso com a finalidade de promover a reforma de sua conduta, de acordo com as exigências da disciplina carcerária, ou ao repertório de recursos oferecidos aos mesmos para alimentar seus vínculos afetivos/sociais e estimular/ cultivar os seus interesses profissionais, culturais, artísticos, esportivos etc., com o objetivo de tornar menos duras as condições de vida nos cárceres e reduzir os danos decorrentes do confinamento. Precisamos também nos indagar se quando dizemos que o tratamento penitenciário deve responder às necessidades específicas de cada sujeito estamos nos referindo aos instrumentos para a intervenção em sua conduta e personalidade para adaptá-las às exigências do meio ou aos meios para melhorar as condições de vida nos cárceres, qualificar a assistência em saúde, potencializar as ações de saúde mental e desenvolver ações voltadas para a prevenção dos riscos de doenças e agravos à saúde dos presos, internados e profissionais do sistema prisional ⁶⁴ . Dependendo da maneira como respondemos às perguntas acima, podemos concluir que o trabalho dos psicólogos e demais profissionais de saúde nas prisões, ao invés de permitir a utilização dos recursos que contribuiriam de forma mais potente com a vida em liberdade, ou pelo menos com a minimização dos danos decorrentes da prisionização, colaborarão bem mais com a produção e a fixação de identidades criminosas e para a redução significativa do potencial de transformação destes destinos. Encerrando, para ajudar a esquentar essa discussão, deixo algumas palavras de Guattari já tão repetidas por seus leitores, mas tão vivas ainda...
...devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no campo do trabalho social – todos aqueles, enfim, cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização, ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. (GUATTARI, 1986: 29) Bibliografia BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997. BARROS, R. D. B. Grupo: a afirmação de um simulacro . tese de doutoramento apresentada no Departamento de Psicologia Clínica da PUC. São Paulo, 1994. BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1998. BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. __. Globalização: as conseqüências humanas . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BEIRAS, I. R. Lineamentos garantistas para una transformación radical y reduccionista de la cárcel: una visión desde España in Cuaderno Negro Revista sobre la cárcel y la filosofía del castigo. A. Buenos Aires: Marambio Avaria, 2004. BILBAO, C. M. Reproducción de lo carcelario: el caso de las ideologías resocializadoras, In: Tratamiento penitenciario y derechos fundamentales. Barcelona: Editorial J. M. Bosch S.A., 1994. BISSOLI FILHO, F. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal . Santa Catarina: Editora Obra Jurídica, 1998. CARRARA, S. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário no início do século. São Paulo: EDUERJ-EDUSP, 1998. CARVALHO, S. Penas e garantias . Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2003. CASTEL, R. A ordem psiquiátrica: a idade do ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Edições Graal,1978. __. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário . Petrópolis: Editora Vozes, 1998. CASTRO, L. A. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1983.
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8 Se com o inquérito do período feudal tratava-se de saber o que havia ocorrido e de reconstituir um acontecimento determinando o seu autor, no exame trata-se de construir um novo tipo de saber, cujo objetivo é o controle e a correção dos indivíduos. 9 No período feudal, os castigos não estavam definidos em lei, ficando por conta da vontade do senhor. 10 Termo que no jargão policial significa atestado de antecedentes criminais. 11 A este respeito, ver, por exemplo, A Opinião e as Massas, de Gabriel Tarde. Ver também em Barros (1994) uma importante discussão sobre as multidões e a constituição do modo-indivíduo, para a qual concorreram as diversas instituições nascidas com a modernidade, como a escola, o hospital, a prisão etc. 12 Esse foi um período de grande efervescência com a criação da Associação Internacional de Trabalhadores, em 1864, a publicação do primeiro volume de “O Capital”, por Marx, em 1867 e a Comuna de Paris, em 1871. 13 Para ilustrar o discurso da época destaco um texto de Charles Fèrè, datado de 1884: “Dando a oportunidade a instintos criminosos e estimulando predisposições à insanidade mental, as grandes revoluções sociais podem revelar fatores hereditários, anomalias (monstruosités) psíquicas e demonstrar o elo entre estes dois defeitos de um modo quase experimental. Pode-se citar entre os que tiveram um papel particularmente nocivo nas insurreições do século um bom número de indivíduos tratados por insanidade ou que tinham loucos na família” ( apud HARRIS, 1993: 75). 14 Como vimos, a noção de monomania, cunhada no início do século XIX, também foi fundamental para a criminalização da loucura e para a percepção dos loucos como perigosos. No entanto, somente com a teoria da degeneração os pilares do direito penal liberal começam a ser questionados e passa-se do crime visto como sintoma de uma doença capaz de ser tratada para o crime como um atributo de certos indivíduos, que os acompanharia do nascimento até a morte. 15 Morel incluía entre as principais causas de degeneração a constituição geológica dos solos, o pauperismo, a fome, as profissões insalubres, o álcool, o ópio, as doenças infecciosas ou congênitas, as influências hereditárias, a imoralidade dos costumes etc., e considerava degenerados os gênios, os imbecis, os excêntricos, os loucos, os santos, os suicidas, os imorais, os perversos sexuais, os criminosos, entre outros (CARRARA, 1998). 16 Houve também quem propusesse as categorias de vagabundo nato (Professor Benedikt, 1891) e de pobre nato (Alfredo Niceforo, 1907). Segundo Benedikt, "existem indivíduos, e também raças inteiras, nos quais a vagabundagem é congênita" (DARMON, 1991: 73). 17 Não por acaso, Lombroso dedica dois dos seus livros ao estudo dos revolucionários de sua época: Il delito político e le revoluzioni e Gli anarchisti ( apud DEL OLMO, 2004).
18 Segundo Garófalo, “o delito é o efeito de causas individuais atuando num particular ambiente físico ou em particulares contingências sociais; mas, como estas condições existem também para os que não delinqüem, elas não podem ser senão causas ocasionais: o verdadeiro fator do delito deve procurar-se no modo de ser especial do indivíduo, que a natureza criou delinqüente” (GARÓFALO, 1997: 68). 19 A princípio, as teorias positivistas eram voltadas basicamente para justificar a neutralização/eliminação dos indivíduos considerados incorrigíveis, mas, na medida em que foi tornando-se hegemônica a ideologia do tratamento, elas foram obrigadas a admitir a capacidade de reabilitação de certos delinquentes. 20 Segundo Delgado esse conceito aparece pela primeira vez em Feuerbach, no ano de 1799, referindo-se à "qualidade de uma pessoa que faz presumir fundadamente que violará o Direito" (DELGADO, 1992: 94). 21 Entre os livros de Ferri podemos citar A Defesa Social, de 1878 e A Escola Positiva do Direito Criminal, de 1883. 22 Segundo Del Olmo, a criação da União respondeu ao crescimento da delinquência e da reincidência e tinha como finalidade a coordenação das tendências reformadoras que vinham ganhando forma em diversos países do mundo. Até o início da 1ª Guerra Mundial, foram realizados 12 congressos e “neste processo destaca-se a atuação dos Estados Unidos, que em pouco tempo será um dos maiores propulsores da transnacionalização do controle social” (DEL OLMO, 2004: 75). 23 Em 1910, no VIII Congresso Penitenciário Internacional realizado em Washington, é aprovada a sentença indeterminada e a individualização das penas e são estabelecidos “os princípios fundamentais dos métodos penitenciários modernos: nenhum indivíduo deve ser considerado incapaz de recuperação; é de interesse público fazer esforços para a recuperação dos delinquentes; esta recuperação deve ser alcançada sob a influência de uma instrução religiosa e moral, de uma educação intelectual e física, de um trabalho eficaz para garantir ao recluso a possibilidade de ganhar a vida no futuro; um período de tratamento relativamente grande é preferível às penas curtas de prisão (...); o tratamento reformador deve ser combinado com um sistema de liberdade condicional e deve ser adotado um sistema especial de tratamento para os criminosos adolescentes, reincidentes ou não”. Idem, p. 106. 24 Este sistema foi adotado pelo Código Penal italiano de 1930 e inspirou diversas outras legislações penais. No nosso país, foi adotado em 1940, até a reforma de 1984. 25 Para Bilbao, a indeterminação do tempo, agora dentro da margem de variação estabelecida pelo legislador e da sentença prolatada pelo Juiz, continuará sendo “el fundamento de las estrategias del control carcelario que consiguen establecer cuánto tiempo, y en que condiciones, ha de permanecer el reo en la cárcel, mediante un complejo y pormenorizado sistema de dominación cujo motor es la tecnología disciplinaria” (BILBAO, 1994: 124).
26 Como nos mostrará Del Olmo (2004), a partir da criação das Nações Unidas, o processo de transnacionalização do controle social continuará a ser gestado sob a coordenação desse novo organismo. Em 1929 a Comissão Penal e Penitenciária redigirá as regras gerais para o tratamento dos reclusos, que serão ratificadas pela Sociedade das Nações em 1934 e servirão como base para a formulação das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, posteriormente adotadas pela ONU em 1955. 27 Progressivamente são também estabelecidos diversos dispositivos internacionais para garantir um tratamento legal e humano para os presos. Ver as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Presos de 1955, o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei de 1979 e os Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão de 1988. Disponível em http:// www.dhnet.org.br . 28 A esse respeito ver Arquidiocese de São Paulo, Brasil: nunca mais, RJ, Editora Vozes, 1985 e Clínica e Política: subjetividade e violação dos direitos humanos , organizado por Cristina Rauter, Eduardo Passos e Regina Benevides, Rio de Janeiro, Editora Te Corá, 2002. 29 Segundo Bauman, nas atuais circunstâncias, o confinamento é uma alternativa ao emprego, uma maneira de neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ao qual se reintegrar (BAUMAN, 1998: 119-120). 30 De acordo com os dados do PRODERJ referentes ao ano 2000, 96,0% da população prisional de nosso Estado era constituída por homens, 62,6% por pardos e negros, 67,1% por analfabetos ou apenas alfabetizados, 37,9% tinha idade inferior a 25 anos e 59,4% estava presa por porte (5,1%) ou tráfico de drogas (54,4%). 31 A este respeito, recomendamos a leitura de Giorgio Agambem. Ver especialmente Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002 e Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. 32 A prisão preventiva é uma medida de natureza cautelar que implica na privação da liberdade antes mesmo da sentença condenatória. Segundo Zaffaroni, cerca de ¾ da população carcerária latino-americana é constituída por presos à espera de julgamento. Ver Zaffaroni, 1997: 70-71 33 Refiro-me à Unidade Experimental de Saúde inaugurada em 2006, no Estado de São Paulo, para abrigar adolescentes autores de atos infracionais, que tiveram a medida convertida em medida protetiva, por serem portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade. 34 O conceito de risco também servirá ao aggiornamento da psiquiatria em tempos de Contra-Reforma Psiquiátrica: veja-se, por exemplo, a proposta do Instituto de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes de prevenção de doenças mentais em adultos a partir de ações voltadas à infância e adolescência ( http://inpd.org.br/blog/2009/04/ ).
35 Também para Sotomayor, “dado el viraje que se está desarrollando en las sociedades tardo-capitalistas el control social no se dirige ahora sobre el sujeto individualmente considerado, sino sobre grupos enteros, poblaciones y ambientes, y la peligrosidad va dejando de ser, en general una noción referida a un individuo en particular para serlo respecto de determinadas ‘situaciones o grupos de riesgo’” (SOTOMAYOR, 1996: 145). 36 Para Cristina Rauter “O dispositivo da criminalidade se constitui hoje numa das principais ferramentas de controle social”. Segundo ela, “para pensar o fenômeno da criminalidade no contemporâneo, temos que considerar como parte de uma mesma engrenagem os discursos, as práticas, as instituições onde se operam essas práticas e esses discursos e os efeitos subjetivos que estes produzem no campo extrainstitucional. Assim, consideramos como fazendo parte desse dispositivo o medo da criminalidade que se espalha nas cidades, as demandas punitivas produzidas através de discursos lei e ordem disseminados pela mídia, os efeitos subjetivos dessas campanhas, incluindo-se aqueles menos diretos, como a produção da apatia e o desânimo indo até o surgimento de múltiplas patologias que irão levar à utilização de medicação psiquiátrica, patologias somáticas, etc” (RAUTER, 2009: 213). 37 Ao que Corrêa e Del Olmo indicam, o esforço de transnacionalização da segurança pública imposto pelos EUA à América Latina começou bem antes da terrível Operação Condor, que nos anos 70 reuniu os governos militares do Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile e Bolívia. 38 Como resultado dessas discussões foi instituído em nosso país o sistema nacional de identificação (as carteiras de identidade) e o cadastramento datiloscópico. 39 Os loucos, como no Código anterior, eram entregues às suas famílias ou recolhidos a hospitais de alienados, mas somente se assim o exigisse a segurança da ordem pública. 40 As sanções estabelecidas por esse novo Código são: reclusão, detenção, multa, perda de função pública, interdições de direitos, publicação de sentença e medidas de segurança. 41 Para os efeitos dessa lei são considerados presumidamente perigosos: os inimputáveis e semi-imputáveis que nos termos do artigo 22 são isentos de pena; os ébrios habituais condenados por crime cometido em estado de embriaguez; os reincidentes em crime doloso e os condenados por crime cometido através de associação, bando ou quadrilha de malfeitores. 42 Para um melhor exame do tema das medidas de segurança, ver Mattos, 2006. Segundo o autor, “o portador de sofrimento mental que comete crime é o exemplo mais acabado, literalmente, tanto de um direito penal do autor como do direito penal do inimigo. Ao inimigo, convém ser imposta a ausência de limites constitucionais da pena, sentido estrito. Deve e pode ser julgado, não de acordo com a sua culpabilidade, mas sim de acordo com a sua presumida periculosidade. Isto é, não se julga o fato cometido (...), mas o ‘perigo’ que o agente pode ir a representar” (MATTOS, 2006: 156).
43 De acordo com o parágrafo único do artigo 83 deste Código, "para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir". 44 Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população carcerária brasileira cresceu 89% entre os anos de 2000 e 2008. De acordo com o site do CNJ, no período referido, o total de presos provisórios ou condenados em estabelecimentos prisionais ou em delegacias policiais saltou de 232.755 para 440.013. Pelo menos 50% ainda não foi a julgamento. 45 A assistência médica oferecida aos presos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro é a que oferece a melhor estrutura (ambulatorial e hospitalar) e tem o maior número de programas (DST-Aids, tuberculose, prevenção ao câncer ginecológico etc.). Ainda assim, fazer chegar esses serviços aos presos é um desafio nem sempre bem sucedido. 46 Refiro-me à Portaria Interministerial Nº. 1.777, de 09/09/2003, que estabelece que em cada unidade prisional haverá uma equipe integrada por médico, psicólogo, enfermeiro, assistente social, entre outros, responsável por ações de prevenção dos agravos psicossociais decorrentes do confinamento e de atenção às situações de prejuízo à saúde decorrente do uso de álcool e drogas, na perspectiva da redução de danos. Ver em http:// portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ Portaria%20n%201.777%20de%202003.pdf . 47 Por outro lado, os alojamentos dos guardas – igualmente desassistidos pelo Estado – frequentemente são pouco melhores do que os dos presos; a relação entre o número de guardas e presos é sempre muitíssimo abaixo da recomendável, agravando o stress dos funcionários, e é alto o número de agentes com história de alcoolismo e abuso de drogas, ou que respondem a processos. 48 Segundo Zaffaroni, a capacidade reprodutora de violência dos meios de comunicação é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel para melhor excitar a indignação moral, basta que a televisão dê exagerada publicidade a vários casos de violência ou crueldade gratuita para que, imediatamente, as demandas de papéis vinculados ao estereótipo assumam conteúdos de maior crueldade e, por conseguinte, os que assumem o papel correspondente ao estereótipo ajustem a sua conduta a esses papéis (ZAFFARONI, apud BATISTA, 1998). 49 Uso aqui esta terminologia utilizada pela legislação brasileira, embora eu defenda a definição estabelecida na Convenção da ONU Contra a Tortura, que reserva esta tipificação apenas aos crimes que envolvam agentes do Estado. 50 A Lei 8.072 de 25 de julho de 1990 incluiu o tráfico de drogas no rol de crimes hediondos e estabeleceu que os condenados por crimes hediondos deveriam cumprir suas penas integralmente em regime fechado. Com a decisão do STF de 2006 de que tal dispositivo violava o Princípio de Individualização da Pena, a lei foi alterada e os condenados aos crimes
previstos neste artigo passaram a ter direito à progressão de regime após o cumprimento de 2/5 da pena, quando primários, ou 3/5, quando reincidentes (Lei nº 11.464/07). Desde então, foram apresentados no Congresso 17 projetos que visam regulamentar ou impedir a progressão de regime para pessoas condenadas por crimes hediondos. 51 Os exames criminológicos foram abolidos pela Lei 10.792/2003, mas na prática continuam a ser exigidos em vários estados. 52 Atualmente, só são submetidos aos EVCPs os internados por medida de segurança. Com a Lei de Execução Penal o exame aplicado aos presos sentenciados passou a denominar-se Exame Criminológico. 53 Um bom exemplo desta ação seletiva e do papel dos diferentes níveis do complexo policial-judiciário-psiquiátrico nesta seleção é o diferente tratamento dado aos jovens que são flagrados portando drogas: para os jovens das classes favorecidas é geralmente lançado mão do paradigma médico e aos demais, o paradigma criminal. Ver em Batista, 1998. 54 Esse foi também o período em que a reforma dos currículos universitários, a contratação de novos técnicos para compor as CTCs, agora através de concursos, e a renovação dos quadros que atuavam nos Conselhos Profissionais viabilizou um reposicionamento crítico no trabalho do técnico prisional. 55 Refiro-me ao I Encontro Nacional dos Psicólogos do Sistema Prisional, realizado em novembro de 2005 e ao II Encontro Nacional dos Psicólogos do Sistema Prisional, realizado em novembro de 2008. 56 O documento contendo as diretrizes, desenvolvido através da parceria CFP-DEPEN/MJ em 2007, pode ser consultado no site http:// dhepsi.nucleoead.net/moodle/file.php/1/Publicacoes/ Diretrizesparaatuacao.pdf . 57 A este respeito ver os Projetos de Lei 75/2007 e 190/2007, o primeiro do Senador Gerson Camata e o segundo da Senadora Maria do Carmo Alves, reintroduzindo o exame criminológico para progressão de regime, livramento condicional, indulto e comutação de pena. Ver também o parecer da Conselheira Valdirene Daufemback, do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (CNPCP), de 30/11/2008, publicado sob o n ° 08001.003932/2008-71. 58 Refiro-me ao estudo que valida a Escala Hare – PCL-R para utilização no Brasil. Não é de estranhar, portanto, que a psiquiatra Hilda Morana tenha sido convidada pelas Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, e Direitos Humanos e Minorias para o debate sobre a necessidade de alterações na Lei de Execução Penal. A este respeito ver http://www.direitoshumanos.etc.br/index.php? option=com_content&view=article&id=8539:seguranca-e-direitos-humanosvao-debater-lei-de-execucao-penal&catid=58:segurancapublica&Itemid=245 .
59 Segundo Espí, para a ideologia ressocializadora “de lo que se trata es complementar o rectificar una supuesta socialización deficiente o defectuosa que há llevado el individuo a delinqüir. Se considera, pues, que la persona no ha hecho propios los comportamientos y los valores sociales que se entienden normales, adecuados, ha sido mal socializado y, en consecuencia, es necesario reeducarle, resocializarle, mediante el tratamiento penitenciario (ESPÍ, 1994: 201). 60 De acordo com os incisos XLVIII do Artigo 5º, a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, a privação ou restrição da liberdade; a perda de bens; a multa; a prestação social alternativa; a suspensão ou interdição de direitos. 61 A este respeito ver “Na ONU, organizações apresentam novas denúncias sobre o sistema prisional do Espírito Santo”, disponível em http:// www.recid.org.br/index.php?option=com_myblog&show=Na-ONUorganizacoes-apresentam-novas-denuncias-sobre-o-sistema-prisional-doEspirito-Santo.html&Itemid=90 e reportagem da Folha de São Paulo “Minas tem 300 adolescentes em carceragem para adultos”, publicada na Folha Online de 21/02/2008 em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ ult95u374813.shtml . 62 Para atender ao PNSSP deverá ser criada uma equipe de saúde para cada 500 reclusos, constituída por médico, enfermeiro, odontólogo, psicólogo, assistente social, auxiliar de enfermagem e auxiliar de consultório dentário. Nas unidades prisionais onde já houver quadro de saúde as equipes devem ser complementadas de maneira a cobrir 40% das unidades prisionais no 1º ano, 60% no 2º ano, 80% no 3º ano e 100% no 4º ano. Como a maioria dos psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais em exercício nas unidades prisionais está vinculada às CTCs dos estabelecimentos e ocupa a maior parte de sua carga horária com a realização dos exames criminológicos, será necessária uma profunda reestruturação da política de recursos humanos dos sistemas penitenciários do país. 63 Por impossibilidade de espaço, no escopo deste trabalho, terei que me abster de problematizar o que consistiria um “bom comportamento carcerário”. 64 Neste ponto estamos de acordo com Iñaki Rivera Beiras, quando ele diz que “‘él problema de la cárcel’ no se va a resolver ‘en la carcel’ sino, en todo caso, en el exterior de la misma, en la sociedad que crea, que produce, que alimenta y que reproduce a la cárcel” (BEIRAS, 2004: 179) e com Baratta, que diz que “A pesar de esto, la finalidad de una reintegración del condenado a la sociedad no deve ser abandonada, sino que debe ser reinterpretada y reconstruida sobre una base diferente (...). La reintegración social del condenado no puede perseguirse a través de ella, sino que debe perseguirse a pesar de ella, o sea buscando hacer menos negativas las condiciones que la vida en la cárcel comporta en relación con esta finalidad (BARATTA, apud BEIRAS, 2004: 178). MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: LIMITES E POSSIBILIDADES DE ENFRENTAMENTO
Rosana Morgado Violência doméstica: o que é? À primeira vista a pergunta pode parecer simples, mas apresenta-se como necessária para que possamos estabelecer um campo comum de diálogo. Diferentes segmentos da sociedade, aqui representados por instituições de saúde, educação, assistência social e do campo jurídico, veiculam compreensões diversificadas sobre este fenômeno social. O presente artigo ¹ tem por objetivo oferecer subsídios que propiciem um amadurecimento conceitual sobre a temática, elemento fundamental para o exercício profissional competente. A violência doméstica contra a mulher não é recente. Um dos grandes mitos em torno do fenômeno refere-se à ideia de que sua existência se restringe às classes de menor poder econômico. Contudo, diferentes pesquisas, nacionais e internacionais, indicam tratar-se de um fenômeno antigo, presente em todas as classes sociais e em todas as sociedades, das mais desenvolvidas às mais vulneráveis economicamente, compreendendo um conjunto de relações sociais que complexificam sua natureza e suas formas de enfrentamento. Verifica-se uma forte tendência, especialmente em nossa sociedade, de tratálo como um fenômeno de menor importância e restrito ao âmbito das relações interpessoais. Um famoso provérbio popular nos serve de exemplo: “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Com vistas à ruptura com esta forma de compreensão, propõe-se que analisemos a violência doméstica como um fenômeno que se expressa nas relações interpessoais, diferentemente de pensá-lo como fruto das relações interpessoais. Esta perspectiva de análise pressupõe, tal como propõe Almeida (2007: 28), pensá-lo como um processo “macro e micropolítico, que se desenvolve em escala societal e interpessoal”. Nesta direção, enfatiza a autora, “não há lugar para a polarização entre violência estrutural e interpessoal e, portanto, entre vitimização e vitimação” ² , conforme formulação proposta por Azevedo e Guerra (1989). A linha de análise que adotamos pressupõe ainda que façamos um esforço para dessacralizar a família, analisando-a como uma instituição social que – como as demais instituições sociais – está atravessada por relações de poder hierarquizadas com base nas dimensões estruturantes da sociedade: classe, gênero e etnia. Sem este esforço, a utilização de categorias para classificar as famílias como desestruturadas, desajustadas ou disfuncionais continuará a fazer parte dos pareceres profissionais, perpetuando formas de intervenção culpabilizadoras e patologizantes do fenômeno (MORGADO, 2001a).
Por esta razão, é importante enfatizar que a violência doméstica contra a mulher é um fenômeno social grave , que traz inúmeras consequências físicas e psicológicas para as vítimas e também para as crianças e adolescentes que a presenciam. É rotineira e de longa duração, pois frequentemente muito tempo se passa até que a mulher a denuncie. Desenvolve-se um processo que alguns autores qualificam de “escalada da violência”, onde se mesclam atos de violência emocional, física e sexual. No Brasil, somente a partir da década de 70 foi possível a publicização deste fenômeno. Os movimentos feministas, articulados a outros movimentos sociais, puderam de forma mais enfática denunciar as atrocidades cometidas nos lares de milhares de mulheres. A perspectiva de análise das relações de gênero, associada aos demais campos de conhecimento, trouxe subsídios de extrema relevância para a compreensão e o enfrentamento do fenômeno. Em 1993, foi consignada na Declaração e no Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos a construção de um consenso internacional em torno da compreensão da “violência de gênero como uma violação dos direitos humanos” (ALMEIDA, 2007: 10), consenso este ratificado e ampliado através de outros inúmeros instrumentos nacionais e internacionais ³ . Almeida identifica e analisa as várias categorias utilizadas para a designação do fenômeno: violência contra a mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero e, sinalizando a “incompletude conceitual de todas as formulações”, destaca que seus diversos significados têm implicações teóricas e práticas (ALMEIDA, 2007: 23). Embora construa sua argumentação para a explicitação do significado da violência de gênero, destaca o mérito existente no uso das categorias de violência intrafamiliar e de violência doméstica. Diz a autora: O mérito (...) reside na possibilidade de desmistificação do caráter sacrossanto da família e da intocabilidade do espaço privado. Revelam que a família pode ser uma instituição violenta, a despeito dos laços de afeto que, frequentemente, alicerçam-na, e que a esfera privada não está isenta de regulação pelo poder público. Ao contrário, não há uma cisão entre as esferas pública e privada, o que pode ser valorado positivamente na perspectiva de se assegurarem direitos. (ALMEIDA, 2007: 25) A importância da utilização da categoria violência doméstica, em nossa concepção, tem por premissas: (a) a clara identificação que esta categoria guarda com o caráter político e público conferido ao fenômeno, a partir das denúncias realizadas pelos movimentos feministas; e o fato de que a utilização do termo doméstico (b) possibilita perceber com maior evidência o caráter das diversas e diferenciadas relações interpessoais, para além dos laços de consanguinidade; e (c) permite maiores possibilidades de ruptura com a dimensão de sacralidade da instituição família e de sua culpabilização, bem como da patologização do fenômeno. Para analisar o fenômeno da violência doméstica contra a mulher, partimos da premissa de que o lugar historicamente ocupado por ela conferelhe
algumas possibilidades, mas lhe impõe fortes limites de atuação contra seus agressores diretos, assim como contra os agressores de crianças e adolescentes sob sua responsabilidade. A sociedade brasileira, herdeira de um sistema patriarcal, continua conferindo ao homem um lugar de privilégios, seja como marido/ companheiro, seja como pai. Assim, a atribuição de funções em nossa sociedade, determinada pelas condições de inserção de classe, gênero e etnia, configura uma inserção subordinada da mulher. Os sujeitos sociais, portadores de relativa autonomia frente aos processos socializadores, incorporam e reproduzem, com maior ou menor autonomia, as funções que lhes são atribuídas. Sobre as mulheres brasileiras recaem imensas responsabilidades: a de donade-casa, de trabalhadora, amante, companheira e mãe. Exige-se, para todas as funções, esmero, dedicação e competência. Entretanto, a expectativa do bom desempenho, quase que exclusivo, destas funções pelas mulheres constitui-se em uma atribuição social, nem sempre visível ou explicitada, que se modifica de acordo com os embates travados no interior da sociedade, imprimindo-lhe um movimento constante em direção da manutenção da ordem vigente e/ou de transformações sociais. Na medida em que a inserção social mais ampla da mulher se dá de forma subordinada, sua inserção na família não poderia fugir a este modelo. Embora a mãe figure como a “rainha do lar”, a magnitude de seu reinado tem, por limite, o poder exercido pelo homem (marido e pai). Da perspectiva aqui adotada, sobre o conceito de gênero, concordamos com a afirmação de Saffioti: Este conceito (gênero) não se resume a uma categoria de análise, não obstante apresentar muita utilidade enquanto tal. Gênero também diz respeito a uma categoria histórica, cuja investigação tem demandado muito investimento (...): o gênero é a construção social do masculino e do feminino. O conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres. (...) A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. (SAFFIOTI, 1999: 83) Ao enfatizar a dimensão relacional da categoria de gênero, compreendemos que também os homens, em seu processo de socialização para assumir a condição masculina nas sociedades contemporâneas, sofrem enormes prejuízos, pois também a eles é imposto um modelo do que devem ser socialmente. Este artigo, contudo, analisa alguns aspectos das condições de socialização feminina relativos ao campo jurídico e estratégias de enfrentamento do fenômeno, privilegiando a análise das condições subordinadas da inserção da mulher, posto que a violência doméstica, historicamente, atinge majoritariamente as mulheres. A socialização feminina
Inúmeros são os casos em que as mulheres vítimas de violência doméstica relatam a convivência por anos em relações violentas, seja com excompanheiros seja nas famílias de origem. Este aspecto merece ser problematizado, pois se difunde a ideia, tal qual no que tange à infância, de que as mulheres devem tomar cuidados especiais com estranhos. Se, por um lado, todos os sujeitos sociais devem tomar cuidados com desconhecidos, este não tem sido o maior problema enfrentado pelas mulheres (ou crianças e adolescentes) quando analisamos a violência doméstica e em particular a conjugal. Nas palavras de Saffioti e Almeida: Embora na socialização feminina estejam sempre presentes a suspeita contra os desconhecidos e a prevenção de uma eventual aproximação com estes elementos, os agressores de mulheres são, geralmente, parentes ou pessoas conhecidas, que se aproveitam da confiança desfrutada junto às suas vítimas. (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 4) Os profissionais da Casa Viva Maria, um abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica localizado em Porto Alegre, identificaram, dentre os prontuários das mulheres atendidas, que em 69 deles (62,7%) “estava registrado que a violência é comportamento usual, frequente e rotineiro na vida do casal” (MENEGHEL e col. , 2000: 751). Diversos depoimentos – além do dado acima – corroboram estudos nacionais e internacionais que evidenciam, através de diferentes índices, o quanto o lar tem sido um local extremamente perigoso para as mulheres. Giffin, utilizando índices de violência doméstica contra a mulher debatidos por Heise (1994), analisa dados de diferentes sociedades, que permitem subsidiar esta perspectiva de análise. A autora nos traz para o debate: Embora baseados em definições variadas do fenômeno estudado, 35 estudos de 24 países revelam que entre 20% (Colômbia, dados de uma amostra nacional) e 75% (Índia, 218 homens e mulheres num estudo local) das mulheres já foram vítimas de violência física ou sexual dos parceiros. Em estudos com amostras nacionais dos Estados Unidos e Canadá, 28% e 25% das mulheres, respectivamente, reportam que foram vítimas deste tipo de violência. Em cidades dos Estados Unidos, uma entre cada seis mulheres grávidas já foi vítima da violência dos parceiros durante gestação. De 10% a 14% de todas as mulheres norte-americanas declararam que os maridos as forçam a fazer sexo contra a sua vontade (...). (GIFFIN, 1994: 146) Um estudo realizado na África do Sul, Austrália, Canadá, Estados Unidos e Israel atesta que, entre as mulheres vítimas de assassinato, cerca de 40 a 70% foram mortas por seus maridos e namorados, normalmente no contexto de um relacionamento de abusos constantes (OMS, 2002).
No que tange à violência física no Brasil, os dados extraídos do suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1988, intitulado Participação Político-Social – Justiça e Vitimização, apontam que: “quase dois terços (65,8%) das vítimas de violência física de parentes são mulheres, sendo homens apenas 34,2%” (SAFFIOTI, 1997a: 48). Quanto ao estupro, baseando-se ainda em Heise, Giffin destaca que: Dados obtidos de centros de atendimento a vítimas de estupro em sete países mostram que de 36% a 58% das vítimas de estupro ou tentativa de estupro têm menos de 16 anos; 18% a 32% têm menos de 11 anos; e em 60% a 78% dos casos, o agressor é uma pessoa conhecida. Dados dos Estados Unidos indicam que de 27% a 62% das mulheres sofrem pelo menos um evento de abuso sexual (não necessariamente estupro) antes dos 18 anos, enquanto um estudo do Governo do Canadá estima que 25% das meninas sofrem algum tipo de abuso sexual antes dos 17 anos. (GIFFIN, 1994: 147) No Brasil, no que se refere à violência sexual, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinado a investigar a violência contra a mulher (CPI,1992), cobrindo crimes cometidos contra a mulher no período janeiro/ 91-agosto/92, afirma existirem “dados comprovando que mais de 50% dos casos de estupro ocorrem dentro da própria família” (SAFFIOTI, 1997a: 169). O impacto da violência doméstica contra a mulher e sua relação com os diferentes aspectos no campo da saúde vem, progressivamente, sendo objeto de análise de pesquisas e publicações. Em 1996, a Quadragésima Nona Assembléia Mundial de Saúde adotou a Resolução WHA4925, “declarando a violência como um problema importante, e crescente, de saúde pública no mundo” (OMS, 2002: XX). Em 2002, a publicação do “Relatório Mundial sobre Violência e Saúde”, contendo nove capítulos, dedica dois especialmente à análise do fenômeno da violência no âmbito das relações interpessoais, contemplando aspectos dessa mesma discussão em outros dois capítulos. No que se refere à “violência perpetrada por parceiros íntimos” (capítulo 4), afirma que: “a violência de gênero é cada vez mais encarada como um importante problema de saúde pública” (OMS, 2002: 91). De acordo com o Relatório, “em 48 pesquisas realizadas com populações do mundo todo, de 10% a 69% das mulheres relataram ter sofrido agressão física por um parceiro íntimo em alguma ocasião de sua vida” (OMS, 2002: 91). Quanto à violência sexual, mesmo destacando a existência de um número pequeno de pesquisas sobre o tema, “os dados disponíveis sugerem que, em alguns países, quase uma em quatro mulheres pode vivenciar a violência perpetrada por um parceiro íntimo e quase um terço das adolescentes relatam que sua primeira experiência sexual foi forçada” (OMS, 2002: 148).
Deslandes e col . , analisando a gravidade do fenômeno, ressaltam: “A violência doméstica e o estupro seriam a sexta causa de anos de vida perdidos por morte ou incapacidade física em mulheres de 15 a 44 anos – mais do que todos os tipos de câncer, acidentes de trânsito e guerras” (DESLANDES e col., 2000: 130). O Ministério da Saúde/CLAVES publica em 2005 o livro intitulado Impacto da violência na saúde dos brasileiros e, no capítulo de número quatro, dedicado à análise da violência contra a mulher, com base em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2004, destaca: do universo de 2.502 mulheres, em 187 municípios de 24 estados “um terço (33%) delas admite ter sido vítima [de maus-tratos e abusos], em algum momento de sua vida” (MS/CLAVES, 2005: 125). A perspectiva de análise das relações de gênero, ancorada dentre outros aspectos nas estatísticas citadas, conduz diferentes autores a estabelecerem conexões entre a violência doméstica e a dominação masculina. Autores ingleses, como Dobash and Dobash, propõem que a correta interpretação da violência entre maridos e esposas seja analisada como extensão da dominação e do controle dos maridos sobre as esposas ( apud PAHL, 1985: 12). Os dados mundiais disponíveis suscitam a necessidade de retomar-se a ideia de que a violência doméstica (seja contra crianças e adolescentes ou contra a mulher) expressa um conjunto de “relações de violência” que se desenvolvem a partir de uma “escalada da violência”. Tal como observam Saffioti e Almeida, As relações de violência são extremamente tensas e quase invariavelmente caminham para o pólo negativo: a violência tende a descrever uma escalada, começando por agressões verbais, passando para as físicas e/ou sexuais e podendo atingir a ameaça de morte e até mesmo o homicídio. (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 35) O cotidiano de relações violentas entre cônjuges, na Inglaterra, é também discutido por Pahl (1985), realçando o fato de não serem episódios isolados, mas parte frequente da relação do casal. Nesta direção, considera-se fecunda a ideia retomada por Almeida, a partir de autoras feministas anglosaxãs, ao problematizar a violência doméstica como um processo de “terror doméstico”. Segundo a autora: ...passa a se configurar um quadro de terror doméstico, compreendido por uma série de pequenos assassinatos diários da mulher, formada por cenas de violência cotidianas, por ameaças de morte dirigidas à mulher ou mesmo a seus filhos e a outros familiares, por tentativas de homicídios anteriores. (ALMEIDA, 1999: 12) Essas relações, contudo, são permeadas por sentimentos e comportamentos contraditórios. As relações de violência comportam, ao mesmo tempo, momentos de violência, sedução, afeto, presentes, arrependimentos, dentre outros. Ou, como observa Almeida: “a mistura deste clima de afeto e arrependimento favorece a criação de uma situação propícia à tentativa de
resolução do conflito no interior da relação violenta” (ALMEIDA, 1999: 11). O depoimento abaixo é exemplar para tal discussão. De acordo com a Sra. Laura ⁴ : Após a separação, “ele [o marido] a cercava tentando o retorno”; ela diz que embora ele tenha “mudado da água para o vinho”, não confia mais nele, “nem penso em reatar”. “Não consigo aceitar o que ele fez com nossa filha”. [Ele havia perpetrado abuso sexual incestuoso] Ele a ameaçava muito, “mandava bilhetes amorosos, presentes e falava baixo”. (...) Comportamentos que se alternavam “com muitas ameaças”. O comportamento que alterna afeto e violências nutre-se, dentre outros fatores, dos sentimentos de ambivalência vividos por estas mulheres. Apesar de referirem-se às inúmeras e frequentes violências que marcam suas relações, muitas delas afirmam amar seus companheiros/agressores. São exemplos desta ambivalência: “eu gostava e não gostava dele, quando ele me tratava bem eu esquecia o que ele fazia de mal pra mim”; “eu era apaixonada por ele, mas não gostava dele na cama, pois as relações eram forçadas”; “eu estava cega porque gostava dele”. A perspectiva aqui adotada situa-se na compreensão de que os processos sociais comportam e engendram, simultaneamente, limites e possibilidades de transformação. Neste sentido, compreender as histórias de violência destas mulheres como decorrentes exclusivamente de sua inserção subordinada no atual ordenamento das relações de gênero, se por um lado as retira da condição de culpadas, pode, por outro, situá-las na posição de “vítimas das circunstâncias”. Julgamos que esta postura é também preocupante, pois revela uma visão de determinação da estrutura sobre os sujeitos que acaba por não percebê-los como capazes de construir possibilidades de enfrentamento e ruptura de tal ordenamento. A formulação de Heise (1994) nos parece mais adequada. Ao analisar mulheres adultas, que na infância foram vítimas de abusos (não só o sexual), considera que elas têm “menos possibilidade de se proteger, [são] menos seguras do seu valor e dos seus limites pessoais, e mais propensas a aceitar a vitimização como sendo parte da sua condição de mulher” ( apud, GIFFIN, 1994: 148). Para subsidiar sua análise, Heise argumenta que “sessenta e oito por cento das mulheres que foram vítimas [de abuso sexual incestuoso] quando crianças relatam que posteriormente foram vítimas de estupro ou tentativa de estupro, em contraste com 17% verificados em um grupo de controle (dados dos Estados Unidos)” ( apud GIFFIN, 1994: 148). A convivência prolongada com relações de violência, a legitimação social para sua perpetuação e a formação de uma identidade de gênero subordinada conformam um campo propício para a internalização da banalização da violência sofrida, direta e indiretamente. Identifica-se, neste campo, um dos espaços desencadeadores da minimização do seu próprio sofrimento ou do de sua prole.
A situação descrita a seguir parece nos oferecer estes subsídios: a Sra. Letícia, separada há dois anos do Sr. Jorge (pai biológico da filha em comum, da qual abusou sexualmente), relata que, quando estava casada, “gostava e não gostava dele, quando ele me tratava bem eu esquecia o que ele fazia de mal para mim”. “Ele sempre foi um ótimo pai durante o tempo em que convivemos juntos” (grifo nosso). A Sra. Letícia refere-se ao Sr. Jorge como um ótimo pai, mesmo constando do processo as informações, por ela trazidas, de que o Sr. Jorge perpetrava violência física contra os filhos em sua presença (seu filho uma vez ficou com um olho roxo e não foi à escola por 15 dias e, em outra ocasião, o pai deu uma cotovelada no filho, que quebrou-lhe um dente) e que ela já tinha “sofrido ameaça de morte” e que “não podia nem varrer a varanda, pois ele era muito ciumento”. Por estas razões, ela abandonou o companheiro, indo para outra cidade, deixando seus filhos com uma irmã, “pois não aguentava mais”. A justificativa da dependência econômica para permanência na relação, evocada frequentemente pela literatura e presente no senso comum, mostrase, a nosso ver, insuficiente e falaciosa. Pahl (1985: 11), ao realizar entrevistas com 42 mulheres inglesas vítimas de violência doméstica que haviam procurado um abrigo, também identifica que, em alguns casos, eram elas que supriam materialmente a família. Em um dos depoimentos, Suzy relata que seu marido ficou aproximadamente dois ou três anos sem trabalhar, não olhava as crianças, jogava a cinza no chão da casa e exigia que ela fizesse xícaras e xícaras de café para servir a ele. Relembra ainda que, um dia, grávida de seis meses, pediu a ele que esperasse para receber uma xícara de chá e que disto resultou que batesse nela, sendo necessário ser levada ao hospital por uma ambulância. O depoimento acima, tomado como exemplo, oferece os subsídios necessários à posição de Duque-Anazola. Diz a autora: Que sirvam de exemplo os depoimentos em que mulheres exercendo atividades remuneradas e sendo, ao menos em parte, responsáveis pela renda familiar submetem-se à autoridade masculina, mesmo quando falta a esta o argumento da provisão do sustento. (DUQUE-ARRAZOLA, 1997: 397) Ao aceitarmos a imediaticidade do argumento econômico como justificativa da manutenção da relação, trazido por vezes pelas próprias mulheres envolvidas, desprezamos as possibilidades de analisar a complexidade de seus sentimentos e atitudes, bem como suas possibilidades e limites de enfrentamento. Nesta direção, percebe-se que rotineiramente, no transcorrer dos anos, um dos sentimentos mais dilapidados ao longo da vida destas mulheres foi sua autoestima. Na pesquisa realizada por Deslandes no CRAMI/Campinas, destaca a autora que: “nos seus relatos, termos como trapos, caco e lixo foram empregados para se auto designarem nos momentos de crise pessoal e familiar” (DESLANDES, 1993: 73).
Em pesquisa conduzida em uma unidade de saúde no Rio de Janeiro que se destacou como o primeiro hospital a prestar serviços de atenção à violência sexual, Moraes (2007) destaca que, ...a despeito das oportunidades que esse tipo de atendimento vem criando para as mulheres sexualmente violentadas, as dores e queixas trazidas por muitas vítimas mostram que a passagem de questões da esfera privada para a pública ainda não consolidou um atendimento capaz de promover rompimentos com a solidão, a vergonha e o isolamento. (MORAES, 2007: 45) A mulher pode passar, assim, a se autorrepresentar como vítima e a encenar, naquele momento, como observa Saffioti, o papel de atriz: No momento da queixa, a atriz desempenha um papel, que a vitimiza. Vitimizar-se significa perceber-se exclusivamente enquanto objeto da ação, no caso violência, do outro. Isto não quer dizer que a mulher, enquanto sujeito, seja passiva ou não-sujeito (...). Os homens dispensam a mulheres um tratamento de não-sujeitos e, muitas vezes, as representações que as mulheres têm de si mesmas caminham nesta direção. (SAFFIOTI, 1997b: 70) Esta “atuação” parece se desenvolver visando obter maior solidariedade social e amparo jurídico para a sua denúncia: por esta razão, merecerá maior reflexão e análise no próximo item. Legitimação social e respaldo jurídico A perspectiva de análise das relações de gênero, em interlocução com outros campos do conhecimento, tem contribuído para desvendar os diferentes mecanismos de legitimação social que respaldam e promovem a violência doméstica contra a mulher, bem como contra crianças e adolescentes. A longa trajetória histórica de legitimação social da violência doméstica contra mulheres, face a um período menor de repúdio a esta violência, é identificada por Pahl (1985) também na sociedade inglesa. Para a autora, a lei inglesa – que até o século XIX permitia ao marido bater em sua mulher – reflete o quanto as estruturas hierárquicas e patriarcais, na família, são sustentadas pelas leis. Considere-se o caso abaixo como ilustrativo do ainda atual ordenamento das relações de gênero que, comportando um processo de “permanências e mudanças”, reatualiza o valor da função de mãe, sobrepondo-o aos direitos da cidadã mulher. Em Belo Horizonte, em 1980, o julgamento de um marido pelo assassinato de sua ex-esposa alegando, como motivo do crime, que ela ia a bailes que “mulheres honestas” não deviam frequentar, culminou com a fixação da pena em 1 ano e 8 meses, sendo concedido ao réu o direito de sursis . Conheçamos a sentença do Juiz: O réu é primário e tem bons antecedentes. O grau de culpa não foi grave. A motivação do crime foi o réu ter suposto que estava praticando um crime em defesa de seu lar. As circunstâncias do crime não revelam nenhuma
crueldade ou perversidade por parte do réu. As conseqüências do fato delituoso foram fatais para a vítima causandolhe morte. O crime teve pequena repercussão social. (ARDAILLON e DEBERT, 1987: 63; grifo nosso) Mediante a apelação, houve um novo julgamento, no qual o réu foi condenado a 2 anos e 8 meses de prisão. De acordo com a nova sentença, “... suas conseqüências [do crime] foram graves, portanto redundaram na morte de uma jovem mãe de dois filhos de tenra idade, ainda inteiramente dependentes de sua proteção” (ARDAILLON e DEBERT, 1987: 63). A indagação a ser feita, que já encontra resposta nas duas sentenças acima, incide sobre o valor atribuído à vida de uma mulher (ou da mulher). Na primeira, nenhum valor, pois mesmo estando o homem separado, considerou-se legítimo que “seu” lar fosse “defendido” através de um homicídio. Na segunda sentença, o único mérito que possuía esta mulher, para continuar viva, era o de ser mãe de crianças pequenas. A culpabilização da mulher pelo fracasso em assumir com perfeição as tarefas do lar, por uma educação que não produza filhos bem ajustados ou pela intranquilidade do marido mantém-se, com “permanências e mudanças”, como uma marca histórica até os dias de hoje. Esta responsabilidade, atribuída ainda quase que de forma exclusiva à mulher, constitui-se em um dos sustentáculos para sua culpabilização pela não ruptura de uma relação de violência, seja contra ela ou contra suas filhas. Mesmo nas sociedades europeias tal postura mostra-se ainda presente. Por esta razão, os profissionais do The London Rape Crisis Centre (1999: 152), um centro de atendimento para mulheres vítimas de violência sexual, afirmam que tal responsabilidade deve equiparar-se à de todos os adultos que cuidam de crianças. Por esta razão, enfatizam que, quando uma menina é vítima de abuso sexual, o principal responsável por tal violência é aquele que a cometeu. A reatualização da perspectiva que coloca a mulher como pilar de sustentação moral e afetiva da família conduz diferentes segmentos sociais, ainda atualmente, a formular perguntas altamente culpabilizadoras, tais como: “por que você mantém a relação violenta?”; “por que você não se separou antes?” (ALMEIDA, 1999: 12). Um provérbio é frequentemente difundido quando se torna pública a violência doméstica contra a mulher: “Fulana... Ah! Fulana é mulher de malandro...”. Neste sentido, concordamos com a afirmação de Almeida (1999: 12): são “desconsiderados os mecanismos existentes, em nossa sociedade, que inviabilizam a saída da relação violenta, permanecendo em evidência somente o denominado fracasso da mulher para levar a cabo o processo de ruptura”. A Lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais – JECRIM, em um primeiro momento foi vista por pesquisadores e grupos feministas como uma importante vitória para agilizar a responsabilização de autores de agressão. Com base nas argumentações, dentre outros, de Musumeci (2000), não duvidamos da importância dos Juizados Especiais para conferir agilidade aos processos judiciais, para desafogar a justiça tradicional, para despenalizar pequenos delitos e para acelerar a resolução de disputas em torno de interesses específicos. Contudo, já em 2000, “o problema surge quando se
trata dos crimes contra a pessoa, mesmo quando considerados pela lei como menos ofensivos. Como calcular, o preço de um, dois ou três hematomas?” (MUSUMECI, 2000: 2). Continua Musumeci: O acusado (nas situações de violência doméstica) é convocado para comparecer a um JECRIM – Juizado Especial Criminal, onde poderá efetuar uma composição civil (reparação de danos com o consentimento da vítima) ou uma transação penal (caso seja frustrada a composição civil). De um modo geral a transação penal resulta em pagamento de multa, ou de uma ou mais cestas básicas a uma instituição assistencial, conforme o delito e o poder aquisitivo do acusado. Em nenhum dos dois casos o agressor perde a primariedade. Ileso, ele recebe, indiretamente, a informação de que o preço da violência é baixo. Não custa caro espancar a mulher. A sociedade, por sua vez, recebe a mensagem de que a violência pode ser negociada. Como um bem danificado, ela é conversível em valor monetário ou em espécie. Ao fim desse percurso, a vítima compreende, então de forma oblíqua e dolorosa, que não vale a pena pedir ajuda. (MUSUMECI, 2000: 2) O dilema pode ser assim resumido: “como evitar que um instrumento inovador, como os Juizados Especiais, venha a contribuir para a banalização da violência doméstica, endossando subrepticiamente a desqualificação das mulheres agredidas?” (MUSUMECI, 2000: 3). Importante vitória foi obtida em 2002. A aprovação da Lei 10.455/02, que modificou o parágrafo único da Lei 9.099/95, passou a prever que o juiz pudesse determinar o afastamento do agressor do lar ou local de convivência com a vítima. O enfrentamento do fenômeno da violência doméstica deve ser compreendido em uma perspectiva histórica, demandando um permanente processo de mobilização e articulação que resulte em diferentes proposições; para Basterd (2007: 120), “um elemento fundamental na demanda por políticas públicas sociais é a formulação de direitos garantidos em leis”; nesse quadro é que podemos compreender a importância da aprovação, em agosto de 2006, da Lei 11.340/06, mais conhecida por Lei Maria da Penha ⁵ . Maria da Penha, farmacêutica, foi vítima de violência doméstica por longos seis anos. Em 1983, sofreu duas tentativas de homicídio por parte de seu marido, ficando paraplégica. Por articulação dos movimentos sociais, o caso chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acatou, pela primeira vez, a denúncia de um crime de violência doméstica. O constrangimento internacional sofrido pelo Estado brasileiro, responsabilizado por negligência, possibilitou que o marido, o economista Marco Antônio Heredia Viveiros, em 2003, fosse preso para cumprir pena de reclusão (AMORIM, 2007: 72). Importantes diferenças podem ser destacadas com a criação da lei: tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher; retira dos JECRIM a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher; institui a criação de Juizados Especiais de violência doméstica e familiar
contra a mulher com competência cível e criminal; a renúncia da mulher à queixa apresentada só é possível perante o juiz; é vedada a entrega da intimação pela mulher ao agressor; possibilita a prisão do agressor em flagrante; altera o Código de Processo Penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher; altera o artigo 61 do Código Penal e passa a considerar este tipo de violência como agravante da pena; define a pena de reclusão, entre 3 meses e 3 anos, para os crimes de violência doméstica; aumenta a pena em 1/3 se a violência doméstica for cometida contra mulher portadora de deficiência; e altera a Lei de Execuções Penais para permitir que o juiz determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação (LEAL e ANDRADE: 2008). Além disso, no que se refere à processualidade, o crime de violência doméstica deve gerar inquérito policial a ser remetido ao Ministério Público e julgado nos Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Dados parciais da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) revelam que, durante os primeiros oito meses de vigência da Lei Maria da Penha (outubro de 2006 a maio de 2007), foram instaurados 32.630 inquéritos policiais, 10.450 processos criminais, 864 prisões em flagrante e 77 prisões preventivas e mais de 5 mil medidas protetivas de urgência foram aplicadas. Passados quase três anos de sua aprovação, a Lei Maria da Penha não representa uma unanimidade: seus avanços e limites estão em debate. É possível, contudo, analisar seu significado enfatizando a importância desta e de outras leis específicas, que visam oferecer respaldo e proteção a sujeitos sociais em maiores condições de vulnerabilidade. No caso da Lei Maria da Penha, ela propicia a intervenção qualificada de profissionais com respaldo jurídico como forma efetiva de oferecer suporte a estratégias que, para além do campo jurídico, permitam fazer frente ao fenômeno. Ao ser sancionada, “a Lei Maria da Penha cumpre com os anseios das mulheres brasileiras por uma legislação que reconheça a gravidade da violência doméstica e familiar que as acomete. Responde com notável precisão às recomendações dos Comitês da ONU e da OEA ao Estado Brasileiro” (BASTERD, 2007: 135). Estratégias de enfrentamento: limites e possibilidades Ao desconsiderar a complexidade do fenômeno, diferentes segmentos da sociedade têm, como expectativa e exigência, a ruptura imediata da relação, seja diante da violência doméstica contra a própria mulher, seja diante de violências contra seus filhos. O não rompimento imediato da relação tem atuado como uma das principais alegações para que estas mulheres sejam consideradas e denominadas passivas ou cúmplices da(s) relação(ões) de violência(s). Saffioti e Almeida (1995), ao analisarem diversos processos de denúncias realizadas por mulheres que sofreram violência doméstica, identificaram a existência de uma postura de enfrentamento das violências sofridas, e não de passividade.
Em um dos casos analisados pelas autoras, diante da “interrupção do fluxo do numerário para suprir as necessidades alimentares da família”, Luísa inventou “uma nova forma de enfrentar o marido na questão da falta absoluta de dinheiro”. Diz Luísa: “Primeiro, eu deixei acabar tudo. Acabou tudo, não tinha mais nada. Aí, ele veio para comer, botei o prato, as travessas todas na mesa, vazias” (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 90). Prosseguem as autoras: Embora Luísa se submetesse ao poder discricionariamente exercido por seu marido, sua vontade não deixava de tentar-se afirmar, vez por outra. Ele insistia em quebrar esta vontade, em anular a identidade da esposa. Para sujeitá-la à sua tirania, lançava mão de duas estratégias: a indiferença e a violência. (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 91) Em uma outra entrevista concedida às autoras, Tânia rememorou suas dificuldades em concluir a dissertação de Mestrado, pois seu marido não a “ajudava com as tarefas domésticas”. Por esta razão, quando foi a vez dele realizar sua dissertação, ela também não o ajudou, ficando “o dia inteiro em casa, de perna para cima, lendo Agatha Christie” (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 134). Neste sentido, Saffioti e Almeida afirmam que: Esta mulher não combatia a gramática sexual hegemônica apenas do ponto de vista da oratória. Instituía práticas feministas em sua relação amorosa, atualizando uma nova gramática de gênero. Obviamente, se tratava de práticas subversivas e, portanto, em competição com a matriz dominante de inteligibilidade cultural de gênero. (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 134) A discussão sobre as possibilidades e limites que têm as mulheres para enfrentarem e/ou romperem relações de violência constitui-se num campo prenhe de debates. Identificam-se, na literatura, três principais tendências de análise sobre a participação da mulher nas relações de violência. A primeira assenta-se na percepção de que os homens violentos são algozes e as mulheres, subordinadas pelas relações de dominação de gênero, as vítimas. Esta perspectiva ancorou-se, principalmente, na formulação de Chauí (1985) sobre a violência. Escreve a autora: Entenderemos por violência uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos de relações interpessoais. (...) Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (CHAUÍ, 1985: 35)
A perspectiva acima, elaborada em um momento de fortes confrontos e de denúncia da opressão e violência masculinas, por um lado ofereceu inequívoca contribuição para romper-se com o muro de conivências que cercava o segredo da violência doméstica. Possibilitou ainda desnudar o processo de transformação das diferenças em desigualdades e seu uso para efeitos de dominação. Contudo, acabou por favorecer uma análise “vitimista” em relação à mulher, contribuindo para que inúmeras mulheres vítimas de violência doméstica a internalizassem. Considera-se que esta concepção teve, como principal base de sustentação, o fato de terem sido as Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher – DEAMS (assim chamadas no Rio de Janeiro), o primeiro espaço institucional público de acolhimento das denúncias de violência doméstica. A denúncia da opressão e violência masculinas expressa na violência doméstica, por exemplo, ao ser encaminhada à instância jurídica propiciou, de fato, a polarização entre culpados e vítimas. Uma segunda tendência do debate é representada por Gregori (1989; 1993), para quem as mulheres não são vistas como vítimas passivas na relação de violência. No entanto, ao enfatizar tal compreensão, Gregori acaba por situar em um mesmo patamar de igualdade as violências perpetradas pelos homens e as formas de reação encontradas pelas mulheres, estabelecendo uma dimensão de cumplicidade entre ambos. Considerando os argumentos trazidos por Saffioti e Almeida (1995), ao se posicionarem contrariamente às duas concepções acima, julgamos a posição adotada pelas autoras como a mais pertinente para a análise deste processo; elas adotam parcialmente a formulação de Chauí, mas refutam a ideia de que na relação de violência a mulher possa ser considerada como não sujeito, ou como “coisa”, como quer Chauí. Em suas palavras: As vítimas, embora possam se sentir paralisadas pelo medo e/ou tratadas como objetos inanimados, não deixam, pelo menos, de esboçar reações de defesa. (...) A posição vitimista, na qual a vítima figura como passiva, sem vontade e inteiramente heterônoma, além de não dar conta da realidade histórica, revela um pensamento extraordinariamente autoritário. (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 35) Saffioti, em um artigo posterior, reafirma sua postura: Mesmo quando permanecem na relação por décadas, as mulheres reagem à violência, variando muito as estratégias. A compreensão desse fenômeno é importante, porquanto há quem as considerem não-sujeitos e, por via de conseqüência, passivas. (...) Mulheres em geral, e especialmente quando são vítimas de violência, recebem tratamento de não-sujeitos. Isto, todavia, é diferente de ser não-sujeito(...). (SAFFIOTI, 1999: 85) No que tange à concepção proposta por Gregori, que implica em cumplicidade entre homens e mulheres, Saffioti contesta-a veementemente: Esta discussão, entretanto, não autoriza ninguém a concluir pela cumplicidade da mulher com a violência de gênero. Dada a organização social de gênero, de acordo com a qual o homem tem poder praticamente de
vida ou morte sobre a mulher (a impunidade de espancadores e homicidas revela isto) no plano de facto , a mulher, ao fim e ao cabo, é vítima, na medida em que desfruta de parcelas de poder muito menores para mudar a situação. (...) Para poder ser cúmplice do homem, a mulher teria de se situar no mesmo patamar que seu parceiro na estrutura de poder. (SAFFIOTI, 1997b: 71) Levando em conta esses argumentos, consideramos que a distinção entre ceder e consentir oferece potencial heurístico de compreensão dos sentimentos, limites e possibilidades das mulheres em situação de violência doméstica. Com base na análise da história do estupro, Vigarello (1998) propõe que se discuta, nos dias atuais, sobre o consentimento dado ou não pela mulher no momento do estupro. Escreve o autor: Mais profundamente ainda, o julgamento do estupro mobiliza a interrogação sobre o possível consentimento da vítima, a análise de suas decisões, de sua vontade e de sua autonomia. (...) Os juízes clássicos só acreditam na queixa de uma mulher se todos os sinais físicos, os objetos quebrados, os ferimentos visíveis, os testemunhos concordantes confirmam suas declarações. O não-consentimento da mulher, as formas manifestas de sua vontade só existem em seus vestígios materiais e em seus indícios corporais. A história do estupro é, então, a dos obstáculos à dissolução de uma ligação demasiado imediata entre a pessoa e seus atos; o lento reconhecimento de que um sujeito pode estar ‘ausente’ dos gestos que é condenado a sofrer ou a efetuar, o que supõe uma consideração muito particular: a existência de uma consciência distinta daquilo que ela “faz” (VIGARELLO, 1998: 9). A relevância desta discussão para o caso brasileiro pode ser exemplificada através do depoimento de um policial, registrado em 1991, pelo Centro de Defesa dos Direitos da Mulher de Minas Gerais, incorporado ao relatório do Americas Watch (1992: 56). Diz o policial: Ninguém consegue abrir as pernas bem fechadas de uma mulher, a não ser que ela seja ameaçada com uma arma ou tema pela própria vida. A maioria dos casos acontece porque a mulher deixa, porque ela quer. Depois se arrepende e vem dar uma de vítima, vem registrar queixa. Muitas mulheres criam condições favoráveis ao crime. Saffioti e Almeida (1995) analisam a diferença existente entre consentir e ceder: Efetivamente, há uma diferença qualitativa entre o consentimento e a cessão. O primeiro conceito está vinculado à idéia de contrato e presume que ambas as partes se situem no mesmo patamar de poder. Ou seja, só podem consentir em algo ou estabelecer um contrato pessoas socialmente iguais. (...) A falocracia admite a imaturidade da criança. O problema reside na mulher adulta. Esta é considerada capaz de discernir entre o que lhe convém e o que lhe desagrada/ prejudica. Mas a consideração é feita apenas em termos de idade e em termos de igualdade formal entre homens e mulheres. Nunca se põe com clareza a inferioridade social da mulher frente ao homem. Assim, a mulher adulta é capaz de consentir. A rigor, contudo, o
consentimento lhe escapa, só lhe restando a cessão. Ela cede aos desejos do marido, mas não consente na relação sexual, pois, neste caso, o consentimento só pode estar alicerçado no desejo (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995: 31). O centro desta polêmica reside no fato de a violência doméstica constituir-se em um fenômeno, na maioria das vezes, de longa duração, demandando, assim, a necessidade de problematizar-se acerca das responsabilidades de cada um dos sujeitos envolvidos. O amadurecimento dessa discussão tem possibilitado a ruptura com a concepção de oposição binária entre algozes e vítimas passivas, realçando que o atual ordenamento das relações de gênero comporta e engendra, simultaneamente, os limites e possibilidades de sua transformação. Nesta linha de argumentação, Rocha-Coutinho (1994) chama a atenção para uma situação delicada: se a mulher age tal como a sociedade espera, é considerada fraca, incompetente e incapaz; quando rompe essa expectativa, no entanto, é criticada por agir como homem. A autora descortina diferentes estratégias utilizadas pelas mulheres brasileiras sem, contudo, deixar de enfatizar que elas estão circunscritas a relações de poder desiguais, nas quais o homem tem tido primazia. Observa a autora: “de seu lugar de subordinação na sociedade, [as mulheres] sempre articularam formas de subsistir e resistir ao poder reconhecido dos homens na sociedade (...) embora tenha sido negado às mulheres o acesso legítimo a muitas atividades e recursos importantes, elas sem dúvida também fazem uso de certas formas estruturadas para controlar eventos que as afetam e que afetam as pessoas próximas a elas” (ROCHA-COUTINHO, 1994: 19-22). No sentido de ilustrar as contradições e limites expressos nessas estratégias, concorda-se com Rocha-Coutinho, quando tece comentários sobre, por exemplo, a mulher “mostrar-se indefesa”. Observa a autora: ...a fim de levar o outro, mais especificamente o marido e os filhos, a um comportamento desejado, a mulher, neste caso, usa uma característica intimamente associada a ela – ser frágil, indefesa e incapaz – (...) para obter o que almeja (como em “Não consigo fazer isto, faz para mim, faz”) (...). O uso desta estratégia, no entanto, geralmente situa seu usuário em uma posição de mais baixo poder e auto-estima. Isto porque, ao usar esta forma de controle, frequentemente a mulher está dando a entender ao outro que ela não pode fazer uso de outra estratégia porque ela, de fato, admite ser fraca, indefesa ou não saber nada. (ROCHA-COUTINHO, 1994: 146) A afirmação de que a mulher não é vítima passiva e dispõe de parcelas de poder tem conduzido diferentes segmentos sociais a imputarem unicamente à mulher a responsabilidade de superação das relações de violência. Estas relações passam a ser tratadas como conflituosas, localizando na mulher a capacidade de, através do manejo do conflito, transformar seus maridos violentos em companheiros ideais. De pronto, recusamos as ideias de que homens perpetradores de violência não têm jeito e de que para eles caberia a pena máxima . No entanto, ao mesmo tempo, julgamos excessivo alocar na mulher, vítima desse homem violento, a responsabilidade por sua transformação.
Essa perspectiva foi defendida pela autora inglesa Arabella Melville (1998) em seu livro intitulado Difficult men: strategies for women who choose not to leave . O próprio título já oferece subsídios para depreender-se sobre que bases se constituirão as propostas da autora, ela própria vítima de violência doméstica. Em nossa perspectiva, qualificar um homem perpetrador de violência como um homem difícil revela um modo de relativizar as violências por ele cometidas, contribuindo para a banalização do fenômeno. A entrevista de Cláudia, concedida à Revista Maria, Maria (1999: 7), pode ser tomada como exemplar para a discussão: Minha história é complicada e simples ao mesmo tempo, pois eu fui tentando agüentar, por achar que isso era só uma fase dele. É um grande erro da mulher achar que vai modificar um homem violento; quanto mais ela fica, mais ela dá forças para a brutalidade dele. Eu me lembro dele esmurrando a minha cabeça. (...) Eu estava totalmente sob o controle dele, eu não fazia absolutamente nada, eu estava em pânico. Eu não podia trabalhar direito, tinha que voltar cedo para casa. (...) Ele fazendo o que fazia e eu pedindo: por favor, tenha calma. (...) Ele quebrava as minhas coisas, cortava minhas calcinhas, os meus vestidos. Eu só consegui sair dessa relação quando, de fato, não agüentava mais, quando não conseguia me mexer mais, quando não conseguia sarar de uma violência, porque sempre vinha outra. Eu acho que as mulheres ficam muito tempo acreditando que a violência do companheiro é apenas uma fase ruim que vai passar. Rocha-Coutinho, sinalizando para contradições ainda presentes na formação da identidade da mulher, enfatiza que: ...a necessidade da mulher de agradar, de ser perfeita, de se voltar para os outros, bem como sua delicadeza e docilidade continuam presentes (...) no discurso social e, mais que isso, parecem estar ainda atuando, mesmo que de forma contraditória, no interior destas mulheres. (ROCHA-COUTINHO, 1994: 150) Partilhamos, pois, do pressuposto de que as mulheres não são vítimas passivas, e que também não se comportam passivamente diante das violências sofridas. Consideramos que, mesmo enfrentando condições ainda extremamente desfavoráveis, elas podem construir, individual e coletivamente, estratégias de ruptura face às condições de dominação. Neste sentido, merecem análise dois graves limites que interferem drasticamente nas possibilidades de ruptura da violência doméstica: o “perigo real de morte” e a ausência de políticas públicas. Diferentes autores e alguns índices estatísticos têm demonstrado que o momento em que a mulher busca romper a relação de violência configura-se como um dos momentos de maior perigo para a sua integridade física, bem como para sua própria vida. Os assassinatos da jornalista Sandra Gomide, em 2001, e da jovem Eloá Cristina Pimentel, de apenas 15 anos de idade, em 2008, ambos em de São Paulo, ocorridos no momento de ruptura da relação, oferecem indícios sobre a atualidade e urgência desse debate. Também na sociedade inglesa este “perigo real de morte” é assinalado por Hague e Malos (1999). Segundo esses autores, os documentos dos abrigos ingleses
mostram que, em vários casos, mulheres foram mortas logo após a ruptura da relação violenta na frente de seus filhos, dentro ou próximo aos abrigos. Impõe-se, como urgente ao debate nacional, a construção de propostas que enfrentem o “perigo real de morte”, presente no momento de ruptura da relação. Consideramos que a construção de estatísticas, com a abrangência nacional de homicídios, discriminadas por sexo e relacionadas ao grau de parentesco, pode oferecer um subsídio fundamental para a estruturação de políticas públicas voltadas para as mulheres em situação de violência. Esta dimensão da violência doméstica possibilita a discussão de outro aspecto a ela diretamente associado: o sentimento de posse do homem/ marido que, ao ser atingido pela ruptura, busca a qualquer custo a recomposição da relação ⁶ . Este comportamento dos homens/maridos é percebido também na sociedade inglesa. De acordo com Hague e Malos (1999), os perpetradores de violência doméstica não medem esforços na procura de suas parceiras. Realçam ainda a possibilidade de graves consequências, quando eles as encontram. Nesta direção, vale a pena lembrar o emblemático assassinato de Eliane de Garmmont. Eliane, no final do ano de 1979, concedeu uma entrevista para a Revista Nova, na qual relatou os inúmeros episódios de violência que, ao longo dos treze anos de convivência, marcaram seu relacionamento com Lindomar. Relatou também como vinha buscando reconstruir sua vida, vislumbrando a possibilidade de gravar um disco no ano seguinte. Na entrevista, chegou a afirmar: “[Ele] Tá percebendo que está me perdendo... é disso que ele está com medo... novo papo, faz quatro dias, quero ver que bicho dá. Tá bem mais amável... Eu acho que ele tá sendo sincero. Não tenho mais medo dele. Dele me matar? Não. Hoje sou muito mais esperta do que antes...” Em 30 de abril de 1980, Lindomar Cabral, mais conhecido pelo nome artístico de Lindomar Castilho, separado de Eliane há três meses, assassinou-a em um Bar-Café, com um revólver com balas para tiros de precisão, comprado por ele fazia pouco tempo (ARDAILLON e DEBERT, 1987: 65-68). O caso relatado acima mostra que, em se tratando do chamado espaço privado do lar, estabelecem-se “um território físico e um território simbólico, nos quais o homem detém praticamente domínio total” (SAFFIOTI, 1997b: 46). O sentimento de propriedade, a impunidade e a ausência de políticas públicas atuam, dentre outros, como alicerces de manutenção desta violência. No que se refere às condições concretas de apoio às mulheres/ mães brasileiras que buscam auxílio para romperem com o ciclo de violência, uma pergunta pode ser feita: a quem recorrer? De fato, a violência doméstica, seja contra a mulher, seja contra crianças e adolescentes, ainda não atingiu um status capaz de desencadear a estruturação de políticas públicas que a enfrentem. Isto se deve não só às particularidades que marcam o fenômeno, mas também à forma como o Estado brasileiro vem enfrentando toda a problemática social. Percebe-se, de forma mais contundente, os reflexos da política econômica implementada
especialmente nos últimos dez anos. O desmantelamento de direitos socialmente adquiridos, a dilapidação do patrimônio público e a progressiva retirada, por parte do Estado, do financiamento de programas públicos, exemplificam este processo. A aprovação, em 2004, do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), que tem seu Capítulo 4 destinado ao “Enfrentamento à violência contra as mulheres” e a aprovação em 2007 do “Pacto Nacional pelo enfrentamento à violência contra a mulher”, bem como a própria aprovação da Lei Maria da Penha constituem-se, sem dúvida, em importantes exemplos de compromissos, diretrizes e metas assumidos pelo Estado brasileiro. Os serviços que esses documentos propõem estão estruturados basicamente em três eixos: delegacias especializadas no atendimento à mulher; centros e núcleos de atendimento à mulher e casas-abrigo. Com distribuição desigual no território nacional, são contabilizadas hoje mais de três centenas de delegacias especializadas, 40,7% delas no estado de São Paulo, 13% em Minas Gerais e 2,3% no Rio de Janeiro, muitas das quais com infraestrutura precária. O último levantamento nacional contabilizou pouco mais de quatro dezenas de casas-abrigo e de centros de referência (ALMEIDA, 2007: 11). Além de escassos, É importante se reconhecer que esses serviços não integram uma política pública. Antes, é um campo acentuadamente fragmentado, com ações, equipes e financiamentos descontínuos. As concepções sobre violência de gênero são as mais diferenciadas, evidenciando a necessidade de programas de formação continuada. Excetuando-se as delegacias, os serviços existentes prestam, em geral, atendimentos e orientações, individuais e/ou grupais, de naturezas psicológica, social e jurídica. Contudo, dispõem de quadro reduzido de profissionais especializados nessas áreas e de parcos investimentos financeiros e materiais. Além disso, não atuam em concertação, embora reconheçam a necessidade de constituição de redes. Há que se enfrentar, ainda, a carência de dados oficiais globais sobre a violência de gênero, o que dificulta a formulação de diagnósticos e políticas públicas. (ALMEIDA, 2007: 12) Em nossa perspectiva, a ainda incipiente implementação de políticas públicas para o enfrentamento da violência doméstica reflete uma modalidade de gestão: já que a não implementação de programas pode ser entendida como uma escolha do poder público (ALMEIDA, 1998). No plano internacional, e também no Brasil, o fosso entre as propostas legislativas – geralmente avançadas – e as políticas públicas – em geral insatisfatórias – só acentua a “drástica realidade de violação dos direitos humanos” em geral, e dos direitos das mulheres em particular (ALMEIDA, 2007: 10). A impunidade dos crimes cometidos contra mulheres revela uma outra dimensão da forma de gestão do Estado sobre o fenômeno. Dados do relatório do Americas Watch (1992: 60) oferecem subsídios ao debate: “...dos mais de 2.000 crimes de violência contra a mulher, incluindo o estupro, registrados na delegacia do Rio de Janeiro em 1990, nenhum resultou na punição do acusado (...)”. E ainda: “Mais de 70% de todos os casos registrados de violência contra mulheres no Brasil acontecem dentro
de casa. Desses casos, um número estatisticamente insignificante resulta na punição do acusado”. Na perspectiva de Saffioti e Almeida (1995: 100), “...a organização social de gênero torna a sociedade extremamente complacente no julgamento moral dos crimes cometidos por homens contra mulheres”. As dificuldades concretas enfrentadas pelas mulheres ao buscarem ajuda para romperem a relação de violência são também percebidas nas relações de consanguinidade, o que faz com que seja extremamente difícil, para elas, conseguir algum tipo de ajuda na própria família. O depoimento de uma das mulheres abrigadas na Casa Viva Maria, de Porto Alegre, reafirma as imensas dificuldades enfrentadas nesta busca de ajuda: Toda vez que eu procurava ajuda todo mundo me virava as costas. Por isso que eu deixei chegar ao ponto que chegou, que ele fizesse o que ele fez comigo. O mundo tinha acabado, eu não ia viver mais, minha vida não tinha mais valor, eu não tinha mais força. Eu não sabia se valia a pena continuar ou me matar. Eu não consegui me encontrar ainda, mas tenho um objetivo: voltar para minha casa, criar minha filha. (MENEGHEL et al ., 2000: 752) Este processo é também identificado por Pahl (1985) na sociedade inglesa. A autora chama atenção para o fato de que as mulheres buscam, em um primeiro momento, apoio na família (especialmente mães e irmãs) e em relações próximas, e só quando esta ajuda informal se mostra inadequada é que os serviços de apoio são procurados. Neste sentido, a discussão sobre o empoderamento ( empowerment ) parece constituir-se em um caminho também fecundo para subsidiar a formulação de propostas político-profissionais, deslocando do campo individual a exclusividade da construção de estratégias de enfrentamento e ruptura das relações de violência. Arilha (1995) ressalta que, embora ainda não se tenha uma compreensão uniforme do conceito de empoderamento, ele tem como principais objetivos ...o desafio à dominação masculina e subordinação feminina, a transformação das estruturas e instituições que reforçam e perpetuam as discriminações de gênero e a desigualdades sociais, e possibilitar que as mulheres pobres [não só] tenham acesso e controle a seus recursos materiais e de informações. É sempre motivado ou acelerado pelas pressões externas que ocorrem através de movimentos de pessoas, grupos, ou instituições que tentam promover mudanças de percepção e de consciência. No caso das mulheres isto implica necessariamente em adquirir consciência de gênero. (ARILHA, 1995: 11) Ao realçar as contradições que envolvem este processo, a autora enfatiza ainda que ...o processo de empowerment não é linear, não acontece por etapas, mas ao contrário, é um processo que se constrói de forma espiral, resultante de uma interação crítica e constante das mulheres com suas condições sociais, econômicas, suas concepções religiosas, as condições legais e estruturais de suas sociedades. (ARILHA, 1995: 11)
Para finalizar, queremos ressaltar que o investimento continuado, realizado através de serviços públicos de qualidade, de caráter interdisciplinar e intersetorial, pode fortalecer nas mulheres o sentimento que julgamos fundamental, para alicerçar o enfrentamento com vistas à ruptura das relações de violência: a autoestima. Este sentimento, se tratado como um processo que se articula aos demais aspectos relacionados ao fenômeno, aparece como uma “aquisição lenta, paciente, disciplinada e cotidiana. Uma construção deliberada e trabalhosa” (MENEGHEL et al ., 2000: 752) cuja importância nos é trazida pelo depoimento de uma das mulheres abrigadas na Casa Viva Maria, em Porto Alegre: A auto-estima começa com um emprego. Daí tu te anima... Faz a gente enxergar outras coisas, novos valores, uma potencialidade muito grande. A gente vai descobrindo e colocando em prática. Esse exercício é diário. De início é difícil, é muito difícil. A gente descobre uma potencialidade grande na gente. (MENEGHEL et al ., 2000: 752) Bibliografia ALMEIDA, SUELY S. Efeitos devastadores. In : Maria, Maria. Ano I No. 0. Brasília: UNIFEM, 1999. __. Essa violência mal-dita. In : ALMEIDA. S. (org.). Violência de gênero e políticas públicas . Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Série Didáticos, 2007. AMORIM, Maria Stella de. A lei da pancadaria feminina. Revista Insight/ Inteligência. jul/set., 2007. AMERICAS WATCH. Injustiça criminal: a violência contra a mulher no Brasil. EUA: Human Rights Watch, 1992. ARDAILLON, Danielle e DEBERT, Guita G. Quando a vítima é mulher: análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio . Brasília: Ministério da Justiça/ CNDM, 1987. ARILHA, Margareth. Contracepção, empowerment e entiltlement: um cruzamento necessário na vida das mulheres. In : BERQUEÓ, Elza (org.). Reflexões sobre gênero e fecundidade no Brasil. São Paulo: Carlos Chagas, 1995. AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1989. BASTERD, Leila L. A resposta legislativa à violência contra as mulheres no Brasil. In : ALMEIDA, Suely S. (org.). Violência de gênero e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Série Didáticos, 2007. CHAUÍ, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In : Perspectivas Antropológicas da Mulher. vol. 4, Rio de Janeiro: Zahar, 1985. DESLANDES, Suely . Maus-tratos na infância: um desafio para o sistema público de saúde. Análise da atuação do CRAMI – Campinas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: ENSP., 1993.
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mas não necessariamente em interseção com ela – coexiste a violência inerente às relações interpessoais (...). A vitimização – enquanto violência interpessoal – (...) pressupõe necessariamente o abuso , enquanto ação (ou omissão) (...) capaz de criar dano físico ou psicológico” (AZEVEDO e GUERRA (1989: 26-35). 3 Para maior detalhamento, consultar Almeida (2007). 4 Os depoimentos foram extraídos de casos acompanhados pela ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência, no Rio de Janeiro, utilizados como fonte para a realização da pesquisa de doutoramento. Todos os nomes são fictícios. 5 O longo e rico processo que culminou na aprovação da Lei, iniciado em 2001, envolvendo diferentes segmentos da sociedade na constituição de um Consórcio, pode ser consultado em Basterd (2007). 6 "Dormindo com o inimigo", uma produção norte-americana de 1991, retrata o longo e incansável percurso do homem/marido em busca de sua mulher que, para escapar à violência doméstica, havia forjado a própria morte, mudado de cidade e assumido uma nova identidade. Embora se trate de uma ficção, o filme retrata inúmeros aspectos da trajetória de mulheres e homens reais. VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE Hebe Signorini Gonçalves Algumas palavras iniciais No momento em que se impunha a revisão da edição de 2004 do livro Psicologia Jurídica no Brasil, em decorrência de mudanças significativas no cenário político e legal brasileiro, o enquadre normativo do tema da violência contra a criança e o adolescente parecia, ao contrário, estabilizado. Os princípios firmados nos artigos 227 e 228 da Constituição Federal, que sustentam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), datam do final dos anos 90 e são, ainda hoje, os textos que definem tanto o tema quanto as coordenadas de intervenção. A inovação mais recente, do ponto de vista normativo, é a edição da Portaria 1968/2001 do Ministério da Saúde, dispondo sobre a comunicação, às autoridades competentes, de casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes atendidos nas entidades do Sistema Único de Saúde. A primeira versão deste texto não chegou a explorar seu alcance. Até porque, assim colocada, a Portaria 1968/01 pode parecer um dispositivo de menor importância. Afinal, ela repisa tanto o art. 13 do ECA, que estabelece a obrigatoriedade da notificação de casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos, quanto o art. 245, que endereça ao médico, ao professor ou ao responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, a responsabilidade de notificar. Há que se reconhecer, contudo, que a Portaria produz dois efeitos imediatos: de um lado, ela reafirma o fenômeno da violência contra a criança como objeto da saúde e das políticas de saúde; de outro, falando diretamente ao
profissional de saúde por meio da edição de uma norma específica, contribui para o aumento do número de notificações, ao menos daquelas que se originam nos equipamentos de saúde. O que o texto explora, nessa edição atualizada, define-se nesse contexto. Todos sabemos que a Organização Mundial de Saúde declarou, em 1996, na sua Quadragésima Nona Assembleia Mundial, que a violência é um problema de crescente importância mundial e é, além disso, um problema de saúde pública. Resta explorar os sentidos e o alcance dessa assunção, bem como suas repercussões no Brasil – objetivo sobre o qual nos debruçamos nessa versão. A estabilização normativa, no entanto, se rompe quando – já às portas da publicação desta edição – o país assiste à apresentação de Projeto de Lei (PL 7672/ 2010 ) com o qual se quer “estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante”. Ainda que o PL se constitua, como o próprio nome anuncia, apenas em projeto, impossível não abordar o tema quando se trata de discutir o lugar da Psicologia no sistema jurídico. A Portaria 1968/01 e o PL 7672/1010 dialogam entre si, ambos inscritos como dispositivos biopolíticos. Essas são as questões que exploro ao longo do texto. Violência, essa íntima desconhecida Na sociedade contemporânea, a vivência da violência ¹ é tão usual e cotidiana, anunciada e discutida com tanta frequência, que somos levados a crer que sabemos muito sobre ela. É tão comum que a experimentemos, na condição de vítimas diretas ou de ouvintes de um outro mais ou menos íntimo, que um impulso de sobrevivência ou autopreservação nos leva a buscar algum mínimo de informação que nos permita entender sua lógica, aquilatar sua extensão e avaliar o perigo que ela representa, reunindo recursos para dela nos protegermos. Nessa tarefa, temos sido auxiliados pela imprensa, que a discute à exaustão, e ainda pela literatura especializada, que disseca suas várias formas de expressão, traz dados de incidência e levanta hipóteses acerca das causas que a produzem ou das consequências que a ela se sucedem. Essa proximidade forçada tende a anular a sensação de estranhamento que até há pouco dominava a consciência coletiva. A indagação que ainda persiste é aquela que visa encontrar a forma de minimizar os efeitos perniciosos da violência, ou os meios de reduzir sua escalada, que parece incontrolável. Em outras palavras, tomamos o evento violento como um mal necessário e uma condição quase indissociável da vida moderna. Dito de outro modo, banalizamos a violência. Faço alusão aqui à expressão consagrada por Hannah Arendt, e a tomo em seu sentido original. Para Arendt, a banalização pode ser entendida como a corrupção da consciência que se sedimenta em pequenos hábitos do cotidiano e condiciona a forma pela qual os indivíduos, suprimindo a capacidade de pensar criticamente, se acostumam e se acomodam ao arbítrio, à barbárie, à covardia e ao cinismo. A essa constatação crítica de Arendt, associo uma afirmação mais recente, desta vez de Pierre Bourdieu (BOURDIEU e col., 1999). Nas ciências, e especialmente nas ciências humanas, ensina o autor, é preciso suportar a
tensão do desconhecido e do estranhamento, pois são eles os motores do conhecimento. A banalização, ao anular o estranhamento, reforça a percepção imediata, coloca maior relevo na experiência vivida, e restringe nossa capacidade de exercitar a compreensão para além do que nos é dado a perceber da realidade objetiva. Como ensina Bourdieu, os fatos não falam; eles são uma evidência da realidade objetiva que o conhecimento precisa decifrar. Essa é a primeira razão pela qual quero tratar aqui não apenas daquilo que já se sabe acerca do tema da violência contra a criança, mas também das muitas lacunas e indagações ainda presentes nesse campo. A violência contra a criança tem sido exaustivamente estudada nos últimos 50 anos, mas uma leitura atenta de tudo quanto se produziu nessas décadas mostra interpretações divergentes entre os muitos estudiosos e, mais que responder, levanta indagações que requerem nova investigação. Em suma, dispomos de mais perguntas que respostas, o que deve ser tomado como um convite à manutenção das sensações de estranhamento que Bourdieu tanto valoriza. Além disso, essa produção está em grande parte limitada a um saber que é taxonômico. Com isso, quero dizer que o conhecimento acumulado até aqui nos permite classificar os eventos observáveis e estabelecer correlações entre eles. No entanto, os conceitos ainda não foram adequadamente estabelecidos nem as relações entre os diversos fenômenos suficientemente compreendidas (CALHOUN e CLARK-JONES, 1998). Em consequência, dispomos de poucos elementos que nos permitam compreender a natureza dos eventos violentos, tanto em termos dos motivos que os desencadeiam quanto dos efeitos que eles produzem. Ou seja: não é possível fazer referência a causas, consequências e menos ainda à dinâmica dos eventos violentos, mas apenas a relações verificáveis entre certos eventos – uma análise incompleta e imprecisa, portanto. As classificações que orientam nossa percepção acerca do fenômeno da violência têm servido, apesar de sua incompletude, para orientar nossa visão de mundo. Ao definir tipos, elas organizam nossa percepção e oferecem, por isso, certo conforto diante dos anseios que a violência nos provoca. A classificação apresenta-nos um mundo organizado e cria a ilusão de ordem diante do caos. Ao abrir As palavras e as coisas com a célebre referência ao texto de Borges, Foucault (1990: 5) mostra que ele “perturba todas as familiaridades do pensamento (...), abalando todas as superfícies ordenadas” às quais nos habituamos e entre as quais circulamos, organizadas pela ordem erigida pelos códigos culturais e pela razão científica. Os códigos fundamentais de uma cultura (...) fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. Na outra extremidade do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos explicam porque há em geral uma ordem, a que lei geral obedece, que princípio pode justificá-la, por que razão é esta a ordem estabelecida e não outra. Mas, entre essas duas regiões tão distantes, reina um domínio (...) que é mais confuso, mais obscuro e, sem dúvida, menos fácil de analisar. É aí que uma cultura, afastando-se insensivelmente das ordens empíricas (...), fá-las perder sua transparência original (...).
Como se, libertando-se por uma parte de seus grilhões lingüísticos, perceptivos, práticos, a cultura aplicasse sobre estes um segundo grilhão que os neutralizasse [e] os fizesse aparecer ao mesmo tempo que os excluísse. (FOUCAULT, 1990: 10) A ironia de Borges confronta esses códigos, pois aproxima aquilo que a razão já nos ensinou a afastar e brinca, por isso, com a lógica e com as regularidades acabadas. Invocando uma ordem outra, impensável porque afronta quaisquer dos limites previamente traçados, supostamente acabados, Borges provoca a irreverente e bem-humorada perplexidade com que Foucault (1990) anuncia a analítica das formas de classificação. Ian Hacking é um filósofo para quem a ciência não apenas pensa o mundo: ela permanentemente o constrói e o reconstrói. Nos anos 60, seus primeiros estudos examinaram as regularidades estatísticas; na década seguinte, debruçaram-se sobre as epidemias europeias do século XVII para identificar ali os primeiros registros numéricos de óbitos, tomados como base para o cálculo de probabilidades, a que se seguiu a descoberta de regularidades, logo tomadas como elemento que anuncia a chance de ler o mundo como previsível; em suas palavras, a percepção de que o acaso pode ser tratado como fenômeno probabilístico, e como tal regido por leis identificáveis, “foi algo que realmente fez com que as pessoas sentissem e vivenciassem o mundo no qual viviam de uma maneira totalmente diferente, e que hoje está institucionalizada em todos os aspectos da nossa vida” (HACKING, 2009: 468). É com base na regularidade, deduzida do registro numérico, que a ciência deduz as classes e produz as classificações. No entender do autor, a atividade classificatória está longe de se constituir como representação neutra do empírico: ela induz algo, produz uma maneira de ver e habitar o mundo. Neste sentido, as reflexões de Hacking (2001) aproximam-se das questões postas por Foucault (1990); em ambos, sobreleva a preocupação acerca do formato da relação entre aquilo que é da ordem empírica e aquilo que pertence aos códigos de leitura nascidos da ordem cultural ou científica. O texto de Hacking (2001) nos interessa de perto, pois ele dedica todo um capítulo ao tema da violência contra a criança e o adolescente. Sob o título Hacer-clases: el caso del abuso infantil , o autor traça a história da produção da ideia de abuso, iniciando pelo percurso histórico de sua construção e chegando aos efeitos que induz ² . Já de início, ele busca traçar a linha divisória entre aquilo que designa como “um mal real” e a “construção do conceito” ³ . Não se trata, então, do mesmo? O conceito de abuso não fala do empírico, tornando-o compreensível? Não, responde Hacking (2001): a ideia se assenta em um “mal real”, mas o amplia:
La idea surgió explícitamente en un momento dado (1961) en un lugar determinado (Denver) y en el seno de los debates entre personas autorizadas (pediatras). La referencia inmediata eran niños pequeños apaleados, pero la referencia se amplió muy rapidamente. Adquirió nuevas connotaciones. La idea acabo incardinándose en una nueva legislación, se associó con ciertas prácticas e introdujo cambios relevantes en una amplia gama de actividades profesionales en las que se incluían trabajadores sociales, policías, maestros de escuela, padres y fisgones profesionales. Adquirió un nuevo peso moral: el abuso infantil se convirtió en el peor vicio posible. (HACKING, 2001: 208) Quando fala do “mal real”, Hacking (2001) se refere a períodos da história em que a agressão física contra crianças era retratada por artistas – como Goya em 1799, na gravura Si quebró el cántaro, da série Los Caprichos – ou à ação da New York Society for the Prevention of Cruelty to Children (NYSPCC), fundada em 1875 e ainda atuante nos Estados Unidos. Em seu site, a NYSPCC anuncia: Child protection didn’t begin in a vacuum. It was part of a wave of reform, a spontaneous reaction to a sequence of events unprecedented in the magnitude of their impact. Between 1820 and 1870, as the nation experienced the industrial revolution, the Civil War and the onset of a massive tide of immigration, the population of New York City increased seven-fold, to over a million people, half of whom were foreign born. Public and private service systems were overwhelmed, riots were frequent, crime was rampant and the child cruelty and exploitation they engendered was as common as the sixteen-hour work day. (NYSPCC, 2010) Podemos entender, assim, porque Hacking (2001) sustenta que a questão surge como uma das primeiras causas sociopolíticas dos anos 60: uma das últimas grandes cruzadas vitorianas, seguindo-se às lutas contra a escravatura, o trabalho infantil, o consumo e a venda indiscriminada de álcool, o voto universal, a vivissecção e a crueldade contra os animais. Tratase de um movimento que se esteia na moral e culmina na formulação do conceito (agora sim amparado na ciência) de abuso contra a criança. Crueldade e abuso, por isso, constituem a seu ver dois tipos de classificação que não são idênticos e guardam entre si algumas diferenças relevantes: primeiro, a mentalidade vitoriana entendia a crueldade como evento que preponderava entre os pobres, enquanto que o abuso foi desde o início anunciado como presente em todas as classes; segundo, o pensamento vitoriano não compactuava com a crueldade, mas não se assustava com ela nem fazia referência a grupos ou situações de risco, abordagem central na produção científica sobre o abuso desde os anos 60; terceiro, a crueldade não se constituiu – ao contrário do abuso – como um problema médico que levou a classificar os pais como doentes nem tampouco integrantes de uma “classe de ser humano sobre a qual fosse possível um conhecimento especializado”; finalmente, o abuso sexual não integrava aquilo que era designado como crueldade; ainda que reconhecido como delito, era tratado por legislação específica (HACKING, 2001: 223). A associação entre abuso e pobreza; a introdução da noção de risco de abuso ; a abordagem do tema como questão social e originalmente restrita
às agressões físicas representam o conjunto de mudanças responsáveis pela transição entre o mal real (o plano empírico) e o conceito (o plano científico e representacional). Levando em conta a sugestão de Foucault (1990), para quem os grilhões linguísticos neutralizam o real e imprimem a ele um sentido que exclui outro; e considerando ainda que o real, aprisionado em classificações, inventa uma visão de mundo (HACKING, 2001), valeria buscar o que se oculta nas classes de abuso que emergiram ao longo das últimas décadas. Hacking (2001) debruçou-se sobre essa tarefa e dispôs-se a enfrentála em sua vertente mais difícil. Ao contextualizar o surgimento do conceito de abuso , ele aproxima dois eventos que tiveram lugar nos Estados Unidos dos anos 80: de um lado, a enorme visibilidade científica e midiática dos eventos qualificados como abusivos; de outro, a redução sem precedentes dos fundos públicos destinados a famílias pobres com filhos pequenos. Assim, enquanto se ouvia mais e mais dos horrores dos abusos, as verbas sociais eram reduzidas e a ajuda aos pobres minguava. Em 1990, uma Comissão especialmente constituída pela Casa Branca declara que ...el abuso infantil era una “emergência nacional”. La comissión dijo que su primera tarea era “alertar a la nación de la existencia del problema”. ¿Y luego qué? “Queremos un sistema en el que qualquier miembro de una familia pueda conseguir ayuda com facilidad tan pronto como algún vecino informe de un supuesto abuso.” Pero sin traer a colación cuestiones desagradables como la porquería, el riesgo y el hedor a orina en los vestíbulos, los ascensores que no funcionam, los cristales rotos por todas partes o la cancelación de los programas de ayuda para alimentos. Solo nos dicen que tu papá está abusando de tu hermanita. (HACKING, 2001: 220-1) Para explorar melhor os sentidos da afirmativa transcrita acima, vou-me valer dos argumentos de Fassin (2008), cujos trabalhos têm por propósito construir o que ele qualifica como a genealogia das políticas de saúde pública para além de uma historiografia propriamente médica. Em Faire de la santé publique , ele traça esse percurso histórico, no qual recolho alguns elementos. Em primeiro lugar, um dado histórico: aquilo que hoje se pode chamar de saúde pública guarda proximidade com procedimentos do século I a.C. no Império Romano: aliando o domínio clínico dos gregos à engenharia e à administração pública romanas, o Império funda um sistema que chega a integrar o saneamento das cidades, a assistência aos pobres sob custeio do Estado, as enfermarias para escravos e os hospícios caritativos para indigentes. Não se trata de generosidade, mas antes de uma inflexão política e sociológica que culmina na concepção do Estado como responsável pela defesa (contra inimigos externos e internos) e também pelo bem-estar da população; nasce uma nova forma de governar em que a responsabilidade pelo cidadão é a um só tempo prerrogativa e obrigação pública, em que “a saúde pública manifesta um poder que se exerce sobre os sujeitos em nome de seu bem-estar” (FASSIN, 2008: 7). “O poder do soberano chega a ser então, segundo a fórmula de Michel Foucault (...), um ‘poder pastoral’ cujo exercício legitima o assujeitamento”. (FASSIN, 2008: 6)
Um segundo momento relevante para a análise que desenvolvo pode ser situado no século XVIII, quando – sob o domínio do saber médico – tem lugar a ruptura epistemológica promovida pela introdução do cálculo numérico; a apologia dos números, dos estudos de massa e da análise dos riscos distancia a saúde pública da clínica e faz da estatística “a base fundamental e única de todas as ciências médicas”. A quantificação dos fenômenos e a interpretação da medida é mais que um novo instrumento para o exercício do saber médico: significa a entrada em cena de uma “maneira inédita de pensar a relação entre individuo e sociedade, entre o particular e o geral” (FASSIN, 2008: 8). Assistimos ao ingresso da biopolítica na saúde pública – o governo da vida. La ambición de conocimiento exhaustivo de un pueblo, su territorio y sus instituciones, se combina con una voluntad de intervención que hace del Estado un gestionador y garante de las cosas de la vida. Esta doble intención se perpetuará bajo formas diversas y a veces radicales como el eugenismo en el siglo XX: Ciencia de las cifras (en la acepción actual) pero también ciencia del Estado (en el sentido etimológico), la estadística está en el corazón del proyecto sanitario moderno. (FASSIN, 2008: 9) Nesse percurso, a saúde pública viu crescer o elenco de questões sobre as quais se debruça; nascida com a peste e as grandes endemias, hoje trata também das contaminações locais; antes voltada para a doença e os vetores de contaminação, hoje analisa inclusive os eventos violentos. Trata-se em todos os casos, é verdade, de questões afetas ao bem-estar coletivo, mas, considerando a expansão quantitativa dos eventos e qualitativa das questões, a ação da saúde pública hoje se define, antes de mais nada, como uma disputa em torno de prioridades. É por isso que Fassin (2008) vem afirmar o papel central dos critérios que hoje fazem com que um dado problema social seja incorporado à agenda da saúde pública: a frequência, a gravidade, as características dos grupos envolvidos, a relação entre o custo e a eficácia das medidas de prevenção e tratamento. Nada, em suma, que se refira à dinâmica da situação tratada (o histórico das relações interpessoais que permitam compreender o sentido que a violência adquire em dado contexto), mas antes, variáveis que remetem à espetacularização dos temas e a seu alcance midiático, à possibilidade de mobilização dos usuários: uma construção calcada na dupla operação de medicalização e politização dos fatos sociais. Lembrando Foucault (1985: 134), ...deveríamos falar de “bio-política” para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do podersaber um agente de transformação da vida humana (...) Fora do mundo ocidental, a fome existe numa escala maior do que nunca; e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e, em todo caso, mais graves do que antes do nascimento da microbiologia. Mas, o que se poderia chamar de “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas. (FOUCAULT, 15: 134) O exemplo clássico invocado por Fassin (2008) para ilustrar esse processo é o mesmo do qual tratamos: o abuso infantil. Tomando de empréstimo elementos listados por Hacking (2001), ele mostra que o tratamento do
abuso infantil conheceu duas fases: a primeira se traduz numa abordagem social e jurídica, quando os golpes físicos eram lidos como correção strictu sensu , vinculados ao poder paterno e ao espaço doméstico, até que uma lei francesa de 1889 coloca no horizonte, a depender da gravidade da correção, a possibilidade de perda do poder parental; a lei ressignifica, portanto, a correção, inscreve-a no domínio público, no mundo jurídico e no discurso dos trabalhadores sociais – não dos médicos. Em meados do século XX, a Medicina entra em cena e, desde então, multiplicam-se as publicações, os golpes passam a ser qualificados como síndrome com direito a inscrição no Index Medicus de 1965, trabalhadores sociais e associações de pais transformam o abuso em causa política. Nesse percurso, o traço social que caracterizava os golpes esvanece: passa a quadro clínico cuja legibilidade se atrela à lógica médica ⁴ . Ao mesmo tempo, a síndrome incorpora formas adicionais de abuso (o abuso sexual e o incesto são trazidos em 1977) e o limiar de gravidade dos golpes é reduzido: a definição passa a operar no limite daquilo que é qualificado como bem-estar – ou tipo ideal –, lógica que permite compreender a explosão numérica dos casos registrados ⁵ . Contabilizam-se, ademais, os custos para o sistema de saúde, estimados pela OMS (2002: 12) em 1,9% do PIB no Brasil, 5,0% na Colômbia, 4,3% em El Salvador, 1,3% no México, 1,5% no Peru e 0,3% na Venezuela – para ficarmos com a América Latina. Entre a absorção de novas categorias de abuso à definição da síndrome, em meio à redução do limiar de gravidade que anuncia um evento como violento, fecha-se o cerco sanitário que define a violência como uma questão de saúde pública e ampliam-se as exigências de estudos epidemiológicos capazes de melhor apreender sua extensão. De fato, grande parte dos trabalhos produzidos na área da violência contra a criança tem cunho epidemiológico. Quando a comunidade científica reconheceu que certos ferimentos infligidos aos corpos das crianças tinham como origem a agressão paterna ou materna, rompeu-se o grande ciclo da civilização que fez da família o centro e o núcleo da proteção à criança (GONÇALVES, 1999). A ruptura com essa visão idílica da vida em família gerou grande esforço acadêmico, empreendido de início pela comunidade médica, para compreender quem eram as crianças submetidas ao sofrimento no interior da família e quem eram os pais autores das agressões que a investigação médica constatava. Estabelecer o perfil da vítima preferencial e o perfil do agressor mais comum foi crucial para traçar estratégias de intervenção que levassem ao diagnóstico precoce da violência em família e às ações de caráter preventivo que permitissem evitar a ocorrência de novos eventos violentos. O conjunto dessa produção deu a conhecer a extensão do fenômeno abusivo, cuidando, ao mesmo tempo, de elucidar aspectos até então tidos como desconhecidos; foram esses trabalhos que, ao detalhar as variáveis correlatas ao abuso, permitiram estabelecer que certos eventos próprios da dinâmica familiar – por exemplo, o desgaste ocasionado pelas dificuldades cotidianas tais como a separação do casal parental ou as dificuldades financeiras – estavam positivamente correlacionados à prática de violência contra a prole. Foram os mesmos estudos de perfil epidemiológico, acompanhando as vítimas de violência durante algum tempo após a
constatação do abuso, que identificaram certos efeitos adversos de longo prazo, que se sucediam ao evento violento e tinham nele sua causa provável. No entanto, quando esses mesmos estudos foram reproduzidos em outras culturas, verificou-se que as características da dinâmica familiar que precipitavam a violência eram outros (KORBIN, 1988). Constatou-se também que os efeitos observados a partir da violência eram diversos, podendo mesmo não haver qualquer consequência adversa verificável (LEVETT, 1994). Até hoje, tais diferenças não encontraram uma explicação consensual. De fato, os estudos comparativos representam hoje uma área importante de investigação, pois tudo indica que a descoberta dessas diferenças, e sua posterior elucidação, pode lançar luz sobre aspectos ainda desconhecidos da vida em família, e dos fatores que precipitam ou impedem a ocorrência de eventos violentos contra a criança. Essa variabilidade é singular e em si mesma elucidativa. Ela nos ensina que a questão da violência contra a criança encerra ainda muitas surpresas, e se não estivermos atentos a elas corremos o risco de agir pautados nas crenças advindas do senso comum, que tende a reforçar escalas de valores autorreferentes, desconhecer a diversidade e convocar o tipo ideal. Em resumo, dispomos de um saber provisório, que está sendo construído, e isso recomenda postura cuidadosa e abandono das certezas. Se essa é uma dificuldade inegável, pode por outro lado representar um instigante e profícuo desafio para aqueles que hoje se propõem a investigar o tema da violência contra a criança – pois há muito ainda a descobrir – e para todos os que se propõem a atuar em programas de proteção à criança vítima de violência – uma vez que cada caso singular encerra surpresas e requer que tudo aquilo que sabemos seja posto sob o crivo crítico do exame já que a violência contra a criança não tem causas nem consequências necessárias (BELSKY, 1993). Definições, indícios, consequências e tipologia Definições É impossível eleger uma única definição para o tema do qual tratamos. A razão dessa dificuldade é que, a rigor, o conceito não está ainda estabelecido. Em trabalho sobre o tema, Minayo (2002) afirma que a violência doméstica contra a criança e o adolescente pode ser considerada como uma das formas de manifestação da violência, caracterizada como aquela que é exercida contra a criança na esfera privada. Essa forma estaria, segundo a autora, associada a outras modalidades de violência, como a violência estrutural – entendida como aquela que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes – e a delinquência, caracterizada como a forma de violência que tem como autores crianças e jovens transgressores. No entender de Maria Cecília Minayo, a violência é um fenômeno polissêmico e complexo que pode manifestar-se das formas mais variadas; mas em vários textos a autora sublinha que essas formas são conexas entre si e que, na medida em que se realimentam mutuamente, cada uma delas
contribui para uma escalada global da violência, com prejuízos para a saúde do indivíduo e para a saúde coletiva. Outros autores, embora reconheçam a conexão entre as várias modalidades de violência, defendem que a vitimização da criança é um tipo específico e singular de violência. Por exemplo, Azevedo (2002) afirma que a violência estrutural pode ser compreendida como uma forma de violência entre classes sociais, enquanto que a violência doméstica contra a criança é uma violência intraclasses. Tomando esse recorte como pressuposto, a autora propõe que o combate a um e outro tipo deve sustentar-se em diretrizes políticas distintas, assim como em enquadres metodológicos diversos entre si. Na mesma linha, Guerra (1998) sustenta que a violência doméstica tem relação com a violência estrutural, mas agrega outros determinantes além dos sociais; a favor dessa argumentação, a autora lembra que a violência doméstica permeia todas as classes sociais e é, em sua natureza, interpessoal. A discussão retratada acima, ainda que de forma breve e resumida, serve para ilustrar algumas das grandes dificuldades em definir o fenômeno do qual tratamos. Como o leitor pode perceber facilmente, há uma enorme diferença entre as posições sumariadas. Se não se excluem, elas ao menos privilegiam estratégias diversas de enfrentamento. Da primeira, deriva uma linha de estudos que coloca ênfase na análise dos determinantes socioculturais da violência e destaca a importância da prevenção à violência ancorada no combate às desigualdades sociais e aos valores culturais que endossam ou sustentam práticas violentas no interior da família; tratase, portanto, de uma tentativa de resgatar o traço societário que condiciona a ocorrência de eventos violentos, ainda que não esclareça como a questão pode ser convertida a e abordada no interior da lógica da saúde. Da segunda, depreende-se uma ênfase nos aspectos interpessoais e subjetivos e uma estratégia de intervenção que se apoia sobretudo no sujeito; aqui, a tônica é posta na lógica da moderna saúde pública, tratada mais estritamente como questão do campo da biopolítica e da gestão da vida, segundo a crítica de Fassin (2008).
As divergências de conceituação não se esgotam aí. Dialogando com autores de fora do país, Azevedo (1989) levantou uma polêmica que ainda percorre a discussão teórica: o tema da intencionalidade como diferencial para considerar ou não um ato como violento. Vejamos como essa questão se coloca nos casos de abuso físico contra a criança. Ainda nos anos 60, Kempe e Helfer propunham definir o abuso como um dano não acidental, resultante de atos de ação ou omissão dos pais ou responsáveis. Na década de 70, David Gil assume que a intencionalidade é central na definição do abuso, mas argumenta que ela nem sempre é clara, e por vezes a violência é determinada por elementos intencionais que permanecem inconscientes. Nos anos 80, Garbarino discute esse argumento e levanta os problemas que aquelas “razões inconscientes” podem trazer tanto em termos de amplitude quanto de operacionalidade: para este último autor, a definição de Gil leva a que todo dano seja tratado como produto de uma ação abusiva, inclusive os acidentais, o que pode colocar a necessidade potencial de intervir em todo e qualquer caso em que seja identificado ferimento na criança ⁶ . A definição adotada oficialmente no Brasil, como veremos a seguir, acolhe a intencionalidade como critério para qualificar o ato como violento. Outro aspecto controverso do conceito é o grau de comprometimento, físico ou psíquico, que decorre do ato. Aqui, a polêmica mais importante pode ser traduzida na célebre pergunta sobre se um tapa pode ou não ser considerado como um ato de violência. Enquanto alguns autores consideram que qualquer agressão ao corpo da criança deve ser definida e abordada como um ato abusivo, outros acreditam que um tapa e um espancamento são fenômenos diversos na sua natureza, e por isso, cada um deles induz ações também diversas entre si. Por exemplo, Emery e Laumann-Billings (1998) propõem distinguir entre duas formas de violência em família: (1) a leve, ou moderada, que designam como “maus-tratos em família”, e (2) a grave, para a qual reservam a classificação de “violência familiar”. O primeiro tipo engloba risco ou dano físico ou sexual mínimo, enquanto que o segundo abarca injúrias físicas graves, traumas psicológicos profundos ou violação sexual. Os próprios autores argumentam que essa distinção envolve certo grau de arbitrariedade, mas tem alto valor operacional; com base nela, os profissionais teriam mais segurança para optar por apoiar a família e trabalhar em prol da melhoria das relações entre pais e filhos ou por afastar temporária ou definitivamente da casa pais excessivamente violentos ou abusivos. Simons et al (1991) também já apresentaram a proposta de criar subcategorias de violência, conforme sua gravidade, cada uma das quais abrindo um elenco de alternativas de ação. Apesar da questão ser controversa, o PL 7672/2010 adota como referência única modelos de intervenção usualmente defendidos para os casos graves e moderados de violência, como veremos ao final deste texto. Há ainda uma dificuldade adicional que merece ser nomeada. Como veremos logo a seguir, as definições incorporam a referência direta ao dano que a violência produz na criança. Ocorre que esse dano só pode ser verificado a posteriori, frequentemente transcorrido algum prazo após o evento violento; além disso, os efeitos da violência sobre o corpo ou a psique da criança variam em larga escala, tanto em natureza quanto em intensidade. Caímos, portanto, numa circularidade. Como resultado, definimos o ato como “violento” antes e independente de qualquer efeito verificável, o que termina
gerando problemas tanto para a pesquisa da violência quanto para a proteção da criança. Em outro texto (GONÇALVES, 1999), já citei um trabalho que considero bastante elucidativo. Trata-se de um estudo conduzido numa pequena aldeia africana em que a iniciação sexual de meninas de cinco ou seis anos de idade é feita por seus irmãos, pais ou parentes próximos. Como faz parte de ritos de iniciação seculares, essa prática não é vista como violenta nem produz qualquer dano às meninas a ela submetidas. Ao contrário, é parte importante de sua identidade e inserção na estrutura tribal, e portanto seus efeitos não são danosos, mas benéficos. Chamaríamos a isso de violência contra a criança? Essas dificuldades são próprias do estágio do conhecimento produzido, como já vimos fortemente impregnado da constatação empírica. Quero convidar o leitor a manter em mente tais dificuldades e limites na leitura dos tópicos a seguir, em que passo a tratar daquilo que já se sabe no campo da violência contra a criança. Indícios A importância de reconhecer a violência a partir de sinais e indícios deriva de uma situação singular: todo profissional que se disponha a trabalhar na área deve estar preparado para lidar com um problema que não só não é anunciado como eventualmente pode ser negado, ou escamoteado, pela criança e pela família. A condenação moral da violência, e em particular a condenação moral da violência de pais contra filhos, faz com que o ato cotidiano que implica risco de ser submetido ao crivo moral seja sonegado à consciência de seu autor e mais ainda ao conhecimento do profissional que o interroga. Ambroise Tardieu, em 1860, e Henry Kempe, em 1961 ⁷ , relataram que após examinarem os corpos mortos ou feridos de crianças dirigiam-se aos pais para buscar entender como o ferimento havia sido produzido; as respostas que recebiam deles eram contraditórias entre si, incoerentes com o dano observado e às vezes claramente fantasiosas. Isso os levou a recomendar aos médicos que privilegiassem a evidência física e desconfiassem do discurso dos pais, que podem ocultar dados, esconder motivações e, com isso, comprometer a recuperação e a proteção da criança. Desde então, firmou-se a preocupação em identificar sinais e sintomas de modo que o diagnóstico da violência possa ser estabelecido independente da explicação dos pais ou responsáveis. A literatura disponível lista uma série de efeitos que foram observados em crianças vítimas de violência; esses mesmo efeitos têm sido tomados como indícios e foram elevados à categoria de sintomas que podem auxiliar o diagnóstico retroativo da violência. Ou seja: como se sabe que várias crianças reagiram à violência com os sintomas listados abaixo, o profissional deve suspeitar que ao sintoma corresponda à mesma causa e deve por isso investigar se a violência ocorreu na história de vida passada da criança. Os textos que abordam sinais e indícios de violência contra a criança fazem dois alertas: em primeiro lugar, recomendam ao profissional que se detenha
no exame cuidadoso e circunstanciado do caso sempre que identificar os sinais e sintomas listados acima; em segundo lugar, que o profissional esteja atento para o fato de que nenhum desses sinais é indício seguro de que a violência ocorreu. É por essa razão que a suspeita de violência deve ser tratada com parcimônia e a investigação de sua ocorrência deve prescindir de qualquer postura prévia condenatória. Sinais que recomendam investigação (BRIGGS, 1991) • Discrepância entre a história relatada e os sintomas observados; divergência entre os diversos relatos; ou dificuldade ou hesitação em prestar as informações solicitadas. • Demora em buscar atendimento. A experiência indica que, quando o dano é produzido pela violência, os responsáveis relutam em buscar auxílio. • História repetida de acidentes, ou evidências de traumas frequentes. Crianças em pleno desenvolvimento físico não costumam se acidentar com frequência. • Atraso no desenvolvimento que não podem ser explicados por causas orgânicas ou por outras dificuldades específicas. • Traumas na região genital ou anal podem indicar que a criança sofreu ou vem sofrendo violência sexual. • Fraturas em crianças menores de 3 anos merecem investigação; não é comum que crianças novas, usualmente pouco expostas a acidentes graves, sofram fraturas importantes; segundo o conhecimento médico, alguns tipos de fratura – identificáveis em radiografias – são indícios seguros de violência. • Doenças crônicas sem tratamento podem ser indício de violência se os pais têm como prover o tratamento e se foram devidamente orientados quanto à sua importância. • Criança fora da rede escolar, pode ser indício de violência. • Queimaduras extensas, hematomas ou ruptura de órgãos internos são lesões graves que merecem ser investigadas. • Ausência de contato físico com a criança; atitude distante dos pais ou responsáveis e ausência de resposta ao choro ou ao sofrimento da criança são sinais de comprometimento do vínculo entre pais e filhos, tido como substrato de uma relação pautada na violência. Consequências A violência em família pode acarretar uma enorme gama de consequências para a criança, e esses efeitos variam do físico – ferimentos externos ou internos – ao psíquico – distúrbios mais ou menos graves que podem envolver agressividade, ansiedade ou depressão. Como já vimos, certos
eventos que não hesitamos em chamar violentos podem não produzir qualquer consequência para a criança. Muitos dos efeitos da violência nos são dados a conhecer com base em estudos longitudinais; as vítimas de um dado ato de violência são identificadas e acompanhadas durante largo tempo, ao longo do qual são observadas suas reações, tentando ao mesmo tempo discriminar quais delas podem ser atribuídas ao evento original. Comparativamente, são acompanhadas outras crianças que não sofreram a mesma violência, para que possam ser estudadas diferenças e semelhanças entre os dois grupos. Como o leitor pode deduzir, os efeitos da violência são identificados a posteriori, e é comum que um tempo longo (anos, às vezes) transcorra entre a violência original e o aparecimento de um efeito observável. Pode ser difícil estabelecer a relação entre dois fatos distantes entre si na cadeia temporal, até porque durante esse intervalo de tempo a criança seguiu o curso de seu desenvolvimento, com mudanças importantes na dinâmica de vida, e pode haver presenciado transformações significativas na família ou em seu entorno social mais próximo. Mariana foi levada ao médico pela mãe; a menina vinha apresentando secreção vaginal há tempos, que não cedia aos medicamentos. A médica levanta a suspeita de abuso sexual e encaminha a criança a atendimento especializado. O pai comparece à primeira consulta com o profissional que faria a investigação de abuso. Permanece em pé durante todo o tempo e declara-se “constrangido”. Explica que sabe que “essas coisas acontecem”, e como a filha não convive com outros adultos nem com crianças maiores e além disso “é muito agarrada com ele”, sabe que o único suspeito é ele próprio. Exames posteriores terminaram comprovando que a secreção vaginal de Mariana provinha de outros problemas que não o abuso. A família nunca mais retornou ao atendimento. O nome é fictício; a história é verídica. A dificuldade em correlacionar causa e efeito existe até mesmo quando se trata de eventos fatais. Estudos nacionais e internacionais (por exemplo, Mello Jorge, Gawryszewski e Latorre, 1997) são unânimes em afirmar que o número de mortes que têm como causa a violência são provavelmente subestimados, pois nem sempre é possível estabelecer com segurança a circunstância precisa do evento que produziu um desfecho fatal. O leitor já deve ter observado que as estatísticas disponíveis mostram o crescimento em todo o mundo dos índices de mortalidade por causas externas; deve observar, contudo, que a denominação causas externas engloba não só os eventos intencionalmente produzidos – comumente relacionados à violência – como também os eventos acidentais, não intencionais. A dificuldade em distinguir entre ambos é um empecilho para determinar o grau em que os índices de mortalidade por causas externas pode ser atribuído à violência. Essa discussão se aplica aos índices de mortalidade e é ainda mais importante na determinação dos índices de morbidade (casos não fatais). Embora seja difícil determinar o impacto preciso que a violência vai produzir sobre uma criança, sabe-se que ele depende de um conjunto de circunstâncias. Um levantamento publicado por Emery e Laumann-Billings (1998) mostra que esses efeitos dependem
(a) da própria natureza da violência: uma agressão física produz efeitos específicos que diferem daqueles gerados pela agressão sexual; essa especificidade será tratada adiante; (b) de características individuais da criança, que pré-existem à violência; por exemplo, um elevado grau de autoestima tende a minimizar ou mesmo a neutralizar os efeitos adversos da violência; (c) da natureza da relação entre agressor e vítima; como regra, sabe-se que a violência praticada por um desconhecido, ou por um parente distante, produz menos dano para a criança que aquela cujo autor é um parente próximo; a proximidade do vínculo deve ser levada em conta; (d) da resposta social à violência sofrida: o auxílio de profissionais especializados ou a intervenção dos operadores do direito são fatores que contribuem para reduzir o dano oriundo da violência; (e) do apoio que a criança recebe por parte dos outros significativos, em especial no núcleo familiar; a reação do núcleo familiar aos eventos violentos impacta também a criança, minimizando ou exacerbando o efeito do ato violento, conforme a família mantenha a capacidade de suportar a criança ou se desorganize em razão dos eventos dos quais toma consciência. CAUSAS EXTERNAS é uma denominação adotada pela Classificação Internacional de Doenças (CID), organizada e atualizada permanentemente pela Organização Mundial da Saúde. A expressão designa um conjunto de causas de origem externa ao corpo do indivíduo, que podem produzir doença ou morte, seja por ação intencional – por exemplo os homicídios – seja por acidente – por exemplo os acidentes automobilísticos. A CID é referência internacional na classificação de doenças que podem produzir a morte (índices de mortalidade) ou não (índices de morbidade). Em suma, a reação da criança depende não só da violência de per si, mas também, e em grande medida, do processo que tem curso após o evento violento. Tipologia Violência física A violência física pode ser definida como atos violentos com uso da força física de forma intencional, não acidental, praticada por pais, responsáveis, familiares ou pessoas próximas da criança ou do adolescente, com o objetivo de ferir, lesar ou destruir a vítima, deixando ou não marcas evidentes em seu corpo (BRASIL/ MS, 2002). A definição integra o documento citado acima, publicado pelo Governo federal. Com base nela, somente serão considerados abusivos os atos intencionais com propósito lesivo para a criança. Descartam-se, portanto, os danos ocasionados por acidentes, assim como aqueles cuja finalidade pode ser considerada educativa. Esse último aspecto levanta uma polêmica que não pode ser ignorada.
A punição com finalidade educativa institucionalizou-se na Suméria primitiva, foi durante muito tempo aceita nas escolas americanas, admitida até recentemente nas escolas inglesas (GUERRA, 1985) e ainda é adotada por força de cultura em muitas famílias em todo o mundo. Historiadores admitem que os castigos severos da Antiguidade foram sendo progressivamente abandonados e que hoje a punição física, quando admitida, é mais branda ou sofre controle mais estrito (ARIÈS, 1978; DEMAUSE, 1982). No Brasil, a punição corporal com propósitos educativos é amplamente disseminada e tem seu uso legitimado pela cultura. Já vimos que o dano que a violência causa à criança depende da reação social e familiar que se segue ao ato dito violento; já vimos também que a violência se define, inclusive, pelo dano que a ela se sucede. Lazerle (1996) fez um amplo levantamento da literatura acerca dos efeitos da punição corporal com finalidade educativa; segundo ele, 40% das pesquisas mostram que a punição corporal não produz qualquer dano à criança; mais que isso, 26% dos trabalhos indicam efeitos benéficos dessa modalidade punitiva, entre os quais a introjeção de valores da cultura. Day et al (1998) mostraram ainda que a qualidade do vínculo entre pais e filhos e a extensão em que o casal adota outras técnicas autoritárias de disciplinamento, tem grande relação com os efeitos que a violência provoca. Esses dados mostram que é o contexto social e cultural em que a punição ocorre, e não a punição de per si, que determina o dano. Para Baumrid (1996), isso indica que há muito ainda a pensar nesse campo. Levar em conta determinantes culturais parece essencial no Brasil, onde a punição corporal é aceita e largamente praticada. A paternidade e as formas de seu exercício não nascem nem se esgotam na família nuclear. Antes de sermos filhos de nossos pais, somos filhos da construção cultural que os antecedeu, que informa os modos pelos quais somos educados e que delimita opções concretas sobre métodos educativos que são postos em prática. Nenhuma família inventa o sistema de parentesco e nenhum indivíduo é soberano para fundar regras ou operá-las (LEGENDRE, 1996). É por isso que o trato desse tema tangencia a questão da identidade cultural, aspecto que não deve ser relevado. No Brasil, a autoridade e a hierarquia são fortemente pautadas na violência, o que contribui para que o uso da punição corporal com finalidade educativa seja disseminado e comum. É uma ilusão, no entanto, achar que a própria cultura não controle seus excessos. Já foi verificado (GONÇALVES, 2003) que a punição corporal é aceita apenas dentro de rígidos limites. Quando praticada segundo essas regras, ela é endossada pelo social e por isso seus efeitos são diferentes (e menos danosos) daqueles provocados pela violência severa, que a cultura condena. O peso do contexto cultural será tanto menor quanto maior for o dano físico que a violência provoca. Nas formas mais severas, o contexto tem menor influência, e isso parece óbvio quando pensamos nas formas extremas em que a violência física leva à morte. Levar em conta esse continuum parece, no entanto, sumamente importante, pois é ele que recomenda evitar que uma mesma norma oriente indiscriminadamente as ações de proteção à criança.
Violência sexual A conceituação de violência sexual tem estreita relação com o feminismo. Até os anos 70, a noção de abuso cunhada por Kempe remetia exclusivamente ao abuso ou ao abandono físico. Precisamente em 17 de abril de 1971, a feminista Florence Rush, em discurso proferido na Conferência Feminista Radical de Nova Iorque, defende que o abuso físico está conectado ao abuso sexual e ao incesto e propõe a inclusão dessas modalidades no conceito de síndrome formulado por Kempe (HACKING, 2001). O feminismo concebe o abuso sexual de mulheres e crianças como uma decorrência dos valores patriarcais (BOTTOMS, 1993). Há que se reconhecer que, embora o abuso sexual atinja crianças de ambos os sexos, as meninas e as jovens adolescentes são vítimas preferenciais, enquanto que os autores são quase sempre do sexo masculino (BERKOWITZ et. al, 1994; SILVA e DACHELET, 1994). Há aí, portanto, um forte viés sexista. No entanto, apesar do empenho do feminismo na denúncia da violência sexual contra mulheres e meninas, o abuso sexual contra crianças só foi considerado um problema de grande magnitude nos anos 80 (BOTTOMS, 1993), A violência sexual consiste em todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, cujo agressor está em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente. Tem por intenção estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual. Apresenta-se sob a forma de práticas eróticas e sexuais impostas à criança ou ao adolescente pela violência física, ameaças ou indução de sua vontade. Esse fenômeno violento pode variar desde atos em que não se produz o contato sexual (voyerismo, exibicionismo, produção de fotos) até diferentes tipos de ações que incluem contato sexual sem ou com penetração. Engloba ainda a situação de exploração sexual visando lucros, como é o caso da prostituição e da pornografia (BRASIL/MS, 2002). A definição acima permite circunscrever algumas questões que merecem discussão. Em primeiro lugar, convém observar que os atos designados como abuso ou violência sexual podem ou não envolver contato físico com a criança; por isso, não se deve esperar que essa modalidade de violência apresente, necessariamente, um sinal corporal visível. Esse alerta parece importante porque a concepção de violência sexual firmou-se historicamente com base em indícios físicos: a ruptura himenal, ou mesmo as marcas corporais de defesa, foram os primeiros indícios que a sociedade aceitou como prova inconteste da violência sexual (VIGARELLO, 1998). Permanece ainda, na consciência contemporânea, uma mentalidade de buscar na evidência corporal a prova do abuso. No entanto, essas só serão mais facilmente encontradas quando houve penetração ou se a violência sexual foi praticada com o uso da força física (mais frequente em casos de abuso extrafamiliar). Mais comum é que o abuso sexual contra a criança tome a forma de manipulação ou sexo oral (CRAISSATI e MCCLURG, 1996), ou ocorra no interior de um jogo de sedução gradual, principalmente quando acontece dentro da família (BERKOWITZ et al, 1994). Nesses casos, as marcas são menos visíveis e, do ponto de vista da produção de provas da ocorrência do abuso, exigência comum nos aparelhos judiciários, esse é um aspecto que deve ser levado em conta.
Outra questão que merece destaque é a referência à diferença de estágios de desenvolvimento entre a criança e o autor da violência sexual. Esse aspecto parece ter grande importância, pois é ele que permite distinguir a violência dos jogos sexuais entre crianças ou entre adolescentes. Sabe-se que os jogos sexuais fazem parte do desenvolvimento da criança, e é também com base neles que a sexualidade busca sua expressão mais sadia. Por outro lado, a consciência contemporânea condena com veemência toda e qualquer forma de violência sexual contra a criança. O senso comum considera essa a forma mais grave de abuso (GONÇALVES, 2003); a literatura registra que o abuso sexual produz uma sensação de incômodo na maioria das pessoas, e há autores que defendem ser esta a forma extrema da violência contra a criança (AMAZARRAY e KOLLER, 1998). Essa convergência entre o senso comum e a academia, fortalecida, além do mais, pelas inúmeras campanhas que têm sido veiculadas na mídia em todo o mundo, contribuem para consolidar a percepção de que a violência sexual contra a criança deve ser alvo de forte condenação moral. No rastro dessa percepção, podem-se produzir certos excessos que terminam colocando em foco os jogos sexuais entre iguais. Não falo aqui em tese: de fato, já testemunhei “suspeitas de violência sexual” levantadas por pais assustados por descobrirem suas filhas participando de jogos sexuais com colegas do sexo oposto e da mesma idade. Levando esses limites em conta, Finkelhor (1994) recomenda que só seja nomeado como abuso sexual o ato cujos protagonistas têm entre si uma diferença de 5 anos (quando a vítima é menor que 12), ou de 10 anos (se a vítima tiver entre 13 e 16 anos). O critério de idade, contudo, não deve ignorar o uso da força física ou a exploração de autoridade. Friedman (1990) tende a desprezar a idade para conceder maior relevo à habilidade da vítima em consentir no ato; para ele, isso permitiria uma análise mais completa da situação por parte tanto das autoridades jurídicas quanto dos técnicos envolvidos no caso. Hiperatividade ou retraimento; baixa autoestima; dificuldades de relacionamento com outras crianças ou com adultos, acompanhada de reações de medo, fobia ou vergonha; culpa, depressão, ansiedade e outros transtornos afetivos; distorção da imagem corporal; enurese e/ou encoprese; amadurecimento sexual precoce ou masturbação compulsiva; gravidez e tentativas de suicídio têm sido associados à violência sexual (BERKOWITZ et al, 1994; BANYARD e WILLIAMs, 1996; BOTTOMS, 1993). De novo, essas reações estão sujeitas a certas condições de contexto. Se o abuso é acompanhado de violência física, as consequências de curto prazo tendem a ser mais traumáticas, como ansiedade, depressão e distúrbios do sono (BANYARD e WILLIAMS, 1996). Há estudos que indicam que, nestes casos, a vivência traumática da violência tem mais impacto que o caráter sexual da agressão (VIEIRA, 1990). A reação da criança vai depender ainda da duração do abuso (um episódio único é menos traumático que o abuso continuado), da presença ou ausência de figuras de apoio para a criança (familiares, profissionais ou amigos) e da proximidade do vínculo entre a criança e aquele que a agrediu (agravando a
vivência de traição de confiança) (AMAZARRAY e KOLLER, 1998; BANYARD e WILLIAMS, 1996). Duração, apoio e vínculo são temas que colocam em xeque o papel dos adultos significativos, em particular dos membros da família. Não é raro que o abuso sexual intrafamiliar perdure por certo tempo e seja praticado por adultos com os quais a criança mantém importante relação afetiva. A isso, soma-se a dificuldade da família em manter íntegras suas funções, inclusive sua capacidade de apoiar e proteger a criança. Para que se tenha uma ideia dessa dificuldade, basta constatar que pouquíssimas denúncias chegam aos tribunais, e a principal razão para isso é a pressão contrária exercida pela própria família (SILVA e DACHELET, 1994). A ação repressiva ao abuso sexual intrafamiliar conta com forte oposição do núcleo familiar, o que é em geral atribuído ao receio de perder o esteio econômico (se o agressor é o provedor da casa) ou mesmo à dificuldade em realizar as rupturas afetivas que a revelação do abuso impõe. Por todas essas razões, Furniss (1993) recomenda que tanto a criança quanto a família sejam alvo de ação profissional especializada como forma de minimizar os sentimentos de desamparo, perda de controle, autocensura e culpa que acometem a todos os membros quando se revela o abuso sexual familiar. Finalmente, investigações recentes têm mostrado que a idade da criança à época do abuso é outro fator que influencia suas reações. Para uma criança muito nova, o contato sexual pode ser desagradável ou mesmo assustador; por outro lado, ela não alcança o pleno significado sexual do ato (BANYARD e WILLIAMS, 1996) e desconhece por completo sua condenação moral; essa condenação – que acentua o valor transgressor da violência sexual e contribui para acentuar a culpa e a vergonha – só pode ser atribuído pela sociedade e pela família. Negligência O termo negligência designa as omissões dos pais ou de outros responsáveis (inclusive institucionais) pela criança e pelo adolescente quando deixam de prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento físico, emocional e social. O abandono é considerado uma forma extrema de negligência. A negligência significa a omissão de cuidados básicos, como a privação de medicamentos, a falta de atendimento aos cuidados necessários com a saúde, a ausência de proteção contra as inclemências do meio como o frio e o calor e o não provimento de estímulos e condições para a frequência à escola (BRASIL/MS, 2002).
A definição acima faz ressaltar uma dúvida essencial: como diferenciar entre negligência e pobreza? A negligência se aproxima da pobreza e da desigualdade social, e isso pode haver contribuído para que muito tempo haja transcorrido até que se iniciassem os estudos sobre ela. Em 1984, Wolock e Horowitz reclamavam da ausência de estudos sobre negligência em território americano. Em 1994, Dubowitz afirmava que a negligência recebia menos atenção do que qualquer outro tipo de violência, embora pudesse ser tão ou mais danosa para a criança. Guerra e Leme (s/d) sustentam que o fenômeno da negligência implica em que se ponha na mesa a polêmica discussão acerca da distribuição de renda e a distribuição de recursos na área social. Barreto, Phebo e Suarez Ojeda (1996) sugerem um recorte para essa diferenciação: é preciso observar, dizem os autores, o grau de privação em todos os membros da família. Se a privação – afetiva ou material – acomete toda a prole, assim como os pais ou responsáveis, não se trata de violência, e sim de um comprometimento estrutural da dinâmica da família; se ao contrário ela atinge apenas um dos filhos ou unicamente a prole, então sim podemos falar em negligência. O investimento na inserção social da família e no fortalecimento dos vínculos comunitários tem sido defendido como uma estratégia básica de combate à violência doméstica contra a criança. No caso da negligência, essa parece ser uma ação fundamental. Coohey (1996) comparou os vínculos sociais de famílias negligentes e não negligentes; ela verificou que essas famílias não diferem nem em termos de mobilidade social nem em termos de acesso a recursos sociais. No entanto, as famílias negligentes percebem seu entorno social como mais pobre em termos de vínculos afetivos, e referem-se constantemente à solidão a que são relegadas pela comunidade. A autora supõe que esse sentimento de exclusão social, que parece subjetivo mais que objetivo, possa resultar em apatia, imobilismo e fracasso no provimento das necessidades da criança, desencadeando ou agravando a negligência em família. Por isso, recomenda que a inserção em redes sociais de apoio vise não apenas o fortalecimento do auxílio efetivo e concreto – com a oferta de recursos materiais – mas também e sobretudo o fortalecimento dos vínculos afetivos entre a família e a comunidade. Embora o Brasil não disponha de dados estatísticos em escala nacional, levantamentos pontuais indicam que a negligência é um dos tipos de violência mais detectados nos diversos serviços estruturados para lidar com a violência contra a criança. Há poucos estudos que avaliem as razões para tal. Uma hipótese a ser levantada é que a desigualdade social possa efetivamente haver colaborado para que o provimento das necessidades das crianças tenha se tornado mais difícil, acentuando suas necessidades insatisfeitas; nesta hipótese, os índices elevados de negligência poderiam estar acobertando a dificuldade da distinção conceitual e prática entre violência e pobreza. Outra hipótese é que a vida nas comunidades, tradicionalmente pautadas pela solidariedade social e fortemente ancoradas nas relações de vizinhança (ARAGÃO, 1983), esteja sofrendo em razão da ruptura do tecido social que decorre inclusive da escalada da criminalidade e da delinquência. As hipóteses não se excluem, e merecem verificação.
Violência psicológica A violência psicológica constitui toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da criança ou do adolescente para atender às necessidades psíquicas dos adultos. Todas essas formas de maus-tratos psicológicos causam dano ao desenvolvimento e ao crescimento biopsicossocial da criança e do adolescente, podendo provocar efeitos muito deletérios na formação de sua personalidade e na sua forma de encarar a vida. Pela falta de materialidade do ato que atinge, sobretudo, o campo emocional e espiritual da vítima e pela falta de evidências imediatas de maus-tratos, este tipo de violência é dos mais difíceis de serem identificados (BRASIL/MS, 2002). O National Clearing House Center, agência americana que normatiza todo procedimento na área da violência contra a criança, chama a atenção para o fato de que alguns casos de violência psicológica são facilmente identificáveis, como por exemplo os castigos bizarros; outros, menos graves, são extremamente difíceis de serem identificados, mesmo porque não é o ato em si que provoca o dano à criança, mas sua repetição e persistência. Por isso, o NICHC acredita que as agências de proteção à criança podem não ser capazes de intervir em muitos casos. De fato, embora alguns autores acreditem que a violência psicológica subjaz a toda e qualquer forma de abuso (GUERRA, 1998), ela é quase sempre a modalidade de menor incidência tanto em outros países como nos diversos serviços brasileiros que apresentam essas estatísticas. Mais comumente, a referência à violência psicológica sofrida na infância é identificada por indivíduos adultos, o que Bottoms (1993) atribui a uma interpretação mais sofisticada de fatos ocorridos na infância, só possível com a maturidade. Notificação e as dificuldades da intervenção na família O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) estabelece: Art. 5 – Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art. 13 – Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. A lei determina, portanto, que ao tomar ciência ou suspeitar de que uma criança esteja sofrendo maus-tratos, o profissional deve notificar a autoridade competente (o Conselho Tutelar da localidade ou, na sua ausência, a autoridade judiciária). O artigo 245 da Lei 8069/90 estabelece penalidades aplicáveis aos profissionais de saúde e educação que descumprirem essa determinação legal. Embora à primeira vista esse pareça um procedimento simples, ele envolve dois aspectos vitais no trato da violência contra a criança: o primeiro diz
respeito à decisão do profissional quanto ao ato de notificar ⁸ ; o segundo, às ações que se seguem à notificação. Já vimos que a noção de violência contra a criança abarca grande dificuldade técnica e teórica: os conceitos nem sempre são precisos, a intencionalidade é de difícil determinação, o ato é às vezes de difícil detecção e a diferenciação entre o que deve ou não ser considerado violência nem sempre é imediata. Essas questões sem dúvida acodem o profissional quando, à frente de uma criança e na presença de sua família, deve decidir se aquela é ou não uma situação a ser notificada. A postura mais radical recomenda que o profissional siga à risca a letra da lei e notifique o caso tão logo a suspeita o assalte. Para discutir essa questão, quero agora retomar um pouco de história, o que espero possa nos auxiliar a pensar as implicações colocadas no tão delicado ato de notificar. A história da notificação nos remete ainda uma vez aos postulados americanos. A notificação foi proposta pela primeira vez nos Estados Unidos em 1963. Ao longo daquela década, todos os Estados americanos a adotaram como norma legal, recomendando que fossem notificados às autoridades os casos constatados de violência contra a criança. Nos anos 70, o número de notificações cresceu significativamente (BESHAROV, 1993). Contudo, muitos pais e responsáveis consideraram que a notificação contra eles equivalia a uma acusação formal; como não foi possível confirmar a ocorrência de violência, esses pais processaram os profissionais, que foram então obrigados a responder em juízo pelos seus atos; a partir daí, houve uma queda consistente no número de notificações. A decisão de incluir a possibilidade de notificar uma “suspeita” foi tomada com o propósito de solucionar esse impasse: o registro de uma suspeita não equivale à acusação e protege o profissional dos processos jurídicos por difamação. A notificação da suspeita de maus-tratos tem sido questionada por muitos autores. Argumenta-se que, ao permitir a notificação da suspeita, o sistema legal não exige que o profissional a fundamente, transferindo essa tarefa às agências de proteção (cuja tarefa de investigar é, em certa medida, similar aos nossos Conselhos Tutelares). Argumenta-se, além disso, que a transferência dessa responsabilidade sobrecarrega as agências de proteção, dificultando em larga medida seu trabalho. Por último, levanta-se uma questão ética: a suspeita, independente da confirmação posterior, carrega a condenação moral dos pais, dos responsáveis ou daqueles contra os quais ela pesa, e implica num julgamento moral que nem mesmo a absolvição jurídica tem o poder de neutralizar. De fato, o processo por violência contra a criança imprime um estigma que submete igualmente inocentes e culpados, e causa um dano irreparável às famílias investigadas por falsas denúncias (BESHAROV, 1993). Não nos iludamos: as denúncias não comprovadas chegam a 60% nos Estados Unidos (BESHAROV, 1993) e 90% no Brasil (GONÇALVES e col., 1999). Alguns autores argumentam mesmo que, ao estimular a notificação da suspeita de maus-tratos, a legislação termina pecando contra a proteção da criança. Por impingir aos operadores do direito uma sobrecarga de casos a investigar, torna impossível estabelecer prioridades, investigar os casos de
forma meticulosa ou decidir com mais propriedade o melhor encaminhamento de cada um. Como resultado disso, 40% dos casos notificados não são objeto de qualquer averiguação ou assistência (EMERY e LAUMANN-BILLINGS, 1998), e uma porcentagem importante de mortes por maus-tratos vitima crianças cujas situações já haviam sido encaminhadas às agências de proteção (BESHAROV, 1993). No que se refere à decisão de notificar, o profissional se vê quase elevado à condição de perito, já que sua decisão assenta num caráter técnico cuja racionalidade condiciona o destino dos envolvidos. Quero lembrar aqui que, na definição de Castel (1978), perito é aquele que define se um problema existe ou não, qual é a sua ‘verdadeira’ natureza e como deve ser tratado. Pela autoridade que a sociedade confere ao perito em razão de sua competência técnica, seu parecer é como regra levado em conta e, assim, a perícia opera no sentido de transformar o julgamento técnico do especialista em realidade social. Aqui, começamos a nos defrontar com os efeitos sociais e éticos da conceituação de violência e de seu valor social como instrumento de intervenção na vida das famílias, e, por extensão, nos modos de construção do social. Vale determo-nos nas implicações e nos desdobramentos do trabalho assim chamado “técnico”. A decisão de notificar sucede, ou conclui, um conjunto de tomadas de posição do profissional que tem início com a escolha de um ou outro conceito operacional de violência; com base nessa primeira escolha, vamos verificar se a situação em exame preenche os requisitos da definição e se pode ser qualificada de violenta; em seguida, o profissional passa a colher uma série de informações que visam desenhar o contexto da situação que examina, trabalhando por vezes sob a difícil recomendação de suspeitar dos depoimentos que colhe; finalmente, vai debruçar-se sobre todos os elementos disponíveis para decidir o que deve ser privilegiado, de modo a encerrar sua avaliação. É impossível imaginar que esse percurso possa ser absolutamente isento dos valores de quem procede à avaliação. Vou trazer aqui, como ilustração, um estudo feito no Canadá, por Tourigny e Bouchard (1994). Eles verificaram que, enquanto 14% das famílias canadenses são notificadas por abusarem fisicamente dos filhos, 44% das famílias haitianas residentes no Canadá o são pelo mesmo motivo. Uma análise acurada desses índices mostrou que eles se deviam menos a diferenças objetivas de métodos educativos e mais ao confronto cultural entre a comunidade canadense e os imigrantes haitianos, desencadeada por fatores externos ao tema da violência contra a criança. Assim, uma aparente política de proteção à criança pode estar contaminada por um confronto que a excede. O Conselho Tutelar é o órgão encarregado pela legislação de zelar pelos direitos da criança e do adolescente sempre que eles forem ameaçados ou violados. Os casos de violência em família estão incluídos nessa atribuição. Ao Conselho Tutelar compete receber a notificação e proceder a uma primeira avaliação dos fatos relatados, verificar sua procedência e decidir pelo encaminhamento ao Ministério Público. Observe-se que o Conselho
Tutelar não determina se a violência ocorreu, nem tampouco requer perícia. Nessa investida preliminar, o Conselho Tutelar tem a atribuição de apurar os fatos e decidir pelo seu encaminhamento, com autoridade para aplicar medidas de proteção à criança previstas no art. 101 (I a VII) ou de atendimento aos pais ou responsáveis previstas no art. 129 (I a VII) da Lei 8069/90. A sobrecarga que compromete o trabalho das agências de proteção americanas atinge também os Conselhos Tutelares instalados no Brasil. Os Conselhos têm funcionado em condições adversas, enfrentando graves problemas de infraestrutura; a aplicação de medidas enfrenta, além disso, uma enorme escassez de serviços de retaguarda, o que reduz sua capacidade de responder à demanda. Esses motivos aconselham a que a notificação de violência seja encaminhada com os subsídios que só uma investigação cuidadosa pode oferecer (GONÇALVES e FERREIRA, 2002). Mas, sobretudo em nome da proteção à criança, cabe lembrar que o art. 100 da Lei 8069/90 estipula que, sempre que possível, deve-se dar preferência à aplicação das medidas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Não bastassem os imperativos teóricos, morais e éticos que recomendam uma avaliação criteriosa da possibilidade de ocorrência da violência contra a criança em família, que se afaste do julgamento moral, é preciso ter em conta que o enquadre legal recomenda que se privilegie o convívio familiar. O respeito aos valores familiares não deve ser interpretado como permissividade ou autorização à prática da violência, mas antes como regra que recomenda a negociação com as regras da cultura e o respeito à autoridade parental, ainda que seja imperioso transformar as formas de seu exercício. Para isso, e antes de apartar pais e filhos, cabe suprir as necessidades mais prementes da família, inclusive aquelas que dizem respeito a recursos pessoais e sociais que instrumentalizam sua tarefa de construir, na próxima geração, um ambiente menos contaminado pela violência. Observações acerca do Projeto de Lei 7672/2010 – a Lei da Palmada Em 2010, o PL-7672 é enviado ao plenário da Câmara Federal. Ele “altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante”. Define o castigo corporal como a “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente” e o tratamento cruel ou degradante como a “conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente”. Estabelece que “os pais, integrantes da família ampliada, responsáveis ou qualquer outra pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar crianças e adolescentes que utilizarem castigo corporal ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação, ou a qualquer outro pretexto” estarão sujeitos às medidas previstas no art. 129, incisos I, III, IV, VI e VII, do Estatuto, sem prejuízo de outras sanções. Entre as responsabilidades públicas, elenca a promoção e a
realização de campanhas educativas e a divulgação do ECA e de outros instrumentos de proteção aos direitos humanos; a inclusão nos currículos escolares de conteúdos relativos aos direitos humanos e prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente; a integração com os órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Conselho Tutelar e de entidades não governamentais em todos os níveis da Federação; a formação continuada dos profissionais que atuem na promoção dos direitos de crianças e adolescentes; e o apoio e incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos que envolvam violência contra criança e adolescente. Na justificativa, amparado no conjunto de normativas nacionais e internacionais que definem os direitos de crianças e adolescentes, o PL lembra que – consubstanciado “um profundo questionamento à prática do castigo corporal como método de disciplina” – o conjunto das nações vem sendo conclamado a adotar a “proibição legal, explícita e absoluta” da prática dos castigos corporais, e que a ameaça e as sanções sobre o “perpetrador de ações disciplinares exageradas, seja o pai, o responsável ou profissional de instituição”, tem como finalidade intimidar aquelas mesmas práticas. Alerta ao mesmo tempo que “a decisão de submeter sanções aos pais, ou de interferir formalmente na família de outras maneiras, seja tomada com muito cuidado”, premissa que o PL afirma atender. O PL-7672 retoma, com alterações, proposta de mesmo teor formulada em 2003. Naquele ano, o PL-2654 propunha do mesmo modo emprestar força de lei a um conjunto de medidas aplicáveis a todos aqueles que lançassem mão da punição física, sob qualquer alegação. Conquanto haja diferenças entre ambos, as medidas aplicáveis permanecem as mesmas: aquelas já previstas no art. 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente, incisos I, III, IV, VI e VII (esta, incluída no PL-7672). A elas, portanto: ECA, Título IV – Das Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsável Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; III – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; IV – encaminhamento a cursos ou programas de orientação; VI – obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado; VII – advertência. As medidas estabelecidas no bojo do art. 129 são referidas por duas vezes no Estatuto. A primeira no § 3o do art. 19, que trata do direito à convivência familiar e comunitária; neste caso, a lei estipula que a manutenção ou a reintegração de criança ou do adolescente à família terá prioridade sobre outras medidas, e se para tanto for necessário, a autoridade deve incluir os pais ou responsáveis em programas de auxílio e orientação enumerados no art. 129 (I a IV); a segunda, no art. 136 inciso II, quando ao definir as
atribuições do Conselho Tutelar, discrimina o atendimento e aconselhamento aos pais ou responsável, aplicando se couber as medidas listadas no art. 129 (incisos I a VII). O que desejo ressaltar aqui é que o art. 129 inscreve-se num conjunto de significados que remete à família, extensa ou ampliada, e neste sentido é que tem sido apreendido pelo conjunto dos operadores jurídicos e dos trabalhadores sociais. Difícil imaginar, neste contexto, que as medidas aplicáveis – e por extensão o alcance do PL-7672 – chegue a abarcar outro autor de punição ou tratamento cruel e degradante para além do núcleo familiar. Sancionada a lei, poucos irão se deter em apreender aquilo que a teoria jurídica define como a intenção do legislador. Os juízes, mais familiarizados com os textos legais, podem compreender o alcance mais geral da lei e fazê-la valer para todos aqueles que podem ser definidos como responsáveis pela criança e pelo adolescente. Mas o ECA coloca em cena um conjunto amplo de atores sociais, boa parte dos quais oriunda do campo das ciências humanas. Se o PL associa os conceitos de punição física e de tratamento cruel ou degradante a um conjunto de medidas usualmente aplicado à família, de nada adianta enumerar como sujeitos às mesmas medidas “qualquer outra pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar crianças e adolescentes”: as próprias medidas induzem o olhar ao núcleo familiar. E mais: se a designação “qualquer outra pessoa” abarca o conjunto de profissionais – funcionários e dirigentes de instituições escolares e de saúde, de abrigos e de unidades de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, policiais e operadores de direito etc. – urge perguntar se a esses cabe o mesmo conjunto de medidas. Seriam eles encaminhados a programas de auxílio e orientação? Advertidos? Por que a obrigatoriedade da notificação tem-se restringido à violência dita “doméstica”? Por que não é ainda obrigatória a denúncia de maus-tratos, abusos e violências cometidos contra crianças, adolescentes e adultos sob a guarda do Estado? Essas mesmas questões, colocadas em 2002 por Cecília Coimbra, ainda aguardam resposta. Seguirão aguardando enquanto a lei não discriminar, com a necessária clareza, a palmada dos abusos e das violências de toda ordem, endereçando a cada qual a medida cabível, com o rigor necessário. Não se trata, aqui, de um mesmo evento com gravidades diversas: trata-se de questões de natureza diversa na sua essência, que a noção de violência que rege a biopolítica da saúde só tem confundido, agora secundada pela lei. Em resumo, o PL quer tratar da violência em todas as frentes, mas termina por endereçar a questão à família, como a se ela estivesse centrada exclusivamente ali; estatiza assim as regulações sobre o relacionamento doméstico e abstém-se de tratar a matéria que deveria privilegiar: as relações institucionais, nos espaços em que crianças e adolescentes são postos sob tutela, direta ou indireta, do Estado – porque, no que se trata de abusos contra crianças e adolescentes, convém lembrar que ...a questão correta sobre os horrores cometidos (...) não é, portanto, aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão atrozes para com os seres humanos; mais honesto e sobretudo mais útil seria
indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integramente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentava como delito. (AGAMBEN, 2004: 178) Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG (1ª reimpressão), 2004. AMAZARRAY, M. R. e KOLLER, S. H. Alguns aspectos observados no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicologia, Reflexão e Crítica 11 (3), 1998. ARAGÃO, L. T. Em nome da mãe: posição estrutural e disposições sociais que envolvem a categoria mãe na civilização mediterrânea e na sociedade brasileira. Perspectivas antropológicas da mulher 3, 1983, p. 109-145. ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978. AZEVEDO, M. A. Contribuições brasileiras à prevenção da violência doméstica contra crianças e adolescentes. In: WESTPHAL, M. F. (org.). Violência e Criança. São Paulo: EDUSP, 2002, p. 125-135. AZEVEDO, M. A. e GUERRA, V. N. A. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1989. BANYARD, V. L. e WILLIAMS, L. M. Characteristics of child sexual abuse as correlates of women’s adjustment: a prospective study. Journal of Marriage and Family 58, 1996, p. 853-865. BARRETO PHEBO, L. e SUAREZ OJEDA, E. Maltrato de niños y adolescentes: una perspectiva internacional. Boletin De La Oficina Sanitaria Panamericana 121(2), 1996, p. 123-37. BAUMRID, D. A blanket injunction against disciplinary use of spanking is not warrented by the data. Pediatrics 98 (4). Suplement, 1996, p. 828-831. BELSKY, J. Etiology of child maltreatment: a developmental-ecological analysis. Psychological Bulletin 114 (3), 1993, p. 413-434. BERKOWITZ, C. D.; BROSS, D. C.; CHADWICK, D. L. e WITWORTH, J. M. Diagnóstico e tratamento do abuso sexual em crianças segundo a Associação Médica Americana. Supl. JAMA/Clínica Pediátrica, 2 (3), 1994, p. 224-232. BESHAROV, D. J. Overreporting and underreporting are twin problems. In: GELLES, R. J. & LOSEKE, D. R. (eds.). Current controversies on family violence. Newbury Park: Sage Publications, 1993, p. 257-272. BOURDIEU, P.; CAMBOREDON, J. C. e PASSERON, J. C. A profissão de sociólogo: pressupostos epistemológicos. Petrópolis: Vozes, 1999.
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4 Se para o leitor ainda não estão claras a distinção entre os dois modelos de ação e a diversidade de efeitos que eles produzem, convido à leitura do texto de Nascimento, Cunha e Vicente (2008). Ali, as autoras discutem dois casos de violência contra a criança; em um deles, o enquadre eminentemente social operado sob a ótica do bem-estar conduz à reintegração da criança na família; no outro, a abordagem se atrela à proteção da criança ameaçada pelo evento dito “violento” e leva à destituição do poder familiar e ao encaminhamento da criança à adoção. 5 A discussão dos limiares é mais nítida no caso invocado por Fassin (2008) como exemplar. Não vou reproduzi-la aqui na totalidade, apenas lembro que a intoxicação por chumbo – o saturnismo infantil – historicamente adotou a dose de 60 µg/dL como prejudicial à saúde; em 1991, o Center for Disease Control fixou o limite aceitável em 10 µg/dL; entre 1984 e 1986, foram diagnosticados 20 casos em Paris; em 2008, havia 85 mil casos identificados na França. 6 Poderíamos acrescentar que tomar o acidente (o evento não intencional) como violência amplia ainda mais o escopo daquilo que já é abrangido pelo conceito, fazendo crescer significativamente as estatísticas – e a possibilidade da espetacularização. 7 Para essa história, consultar Gonçalves, 1999 8 A segurança individual da criança está acima do sigilo profissional e limita a confidencialidade da relação com o paciente. Os diversos conselhos profissionais já se pronunciaram sobre isso. O PSICÓLOGO, O SISTEMA DE JUSTIÇA E OS CASOS DE VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA IDOSOS José César Coimbra Viver é envelhecer, nada mais Simone de Beauvoir Doze anos após o episódio da clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, o Relatório de Inspeção a Instituições de Longa Permanência para Idosos (CFP, 2008a) nos oferece dados importantes para uma constatação: uma sombra ainda paira sobre as questões relacionadas à garantia de direitos do idoso, deixando transparecer uma gama de graus variados de violência institucional ¹ . É inegável que, no intervalo de tempo assinalado, o tema do idoso adquiriu visibilidade e mobilizou não apenas o universo acadêmico, mas também a sociedade em geral e o poder público em seus diversos segmentos. Uma busca em base de dados como SciELO, BVS e Google Acadêmico revela grande quantidade de referências sobre o assunto; da mesma forma, no poder executivo, em qualquer uma de suas esferas, podem ser encontradas secretarias ou programas que se concentram, dentro de sua área de competência, na atenção ao idoso, assim como diversos programas universitários, inclusive as chamadas universidades da terceira idade.
Novelas e filmes que abordam a velhice também se fazem presentes de forma constante ao longo do tempo e não apenas no Brasil. Dessa forma, é quase impossível não nos depararmos, em nosso cotidiano, de algum modo, com questões associadas à velhice. A atenção sobre o tema que se deduz dos exemplos acima aponta para o fato já exaustivamente divulgado no Brasil: o número de idosos está aumentando e o perfil demográfico do país está em transição; para tanto concorrem a queda da taxa de natalidade, as melhorias na área social e os avanços da tecnologia aplicada à saúde (IBGE, 2002). Desse contexto originam-se discussões reiteradas, visíveis em diversos meios, acerca da pressão no sistema previdenciário e na seguridade social que adviria da mudança do perfil demográfico brasileiro. Embora não seja especificamente o foco deste trabalho, podemos ponderar que esse quadro sugere que a sociedade brasileira encontra-se ante a exigência de novas formas de sociabilidade que se nos impõe. Para ficarmos em um exemplo: é significativo o aumento dos domicílios sob a responsabilidade dos idosos, inclusive aqueles onde há filhos com mais de 18 anos (IBGE, 2002). Esse último aspecto, contudo, não se opõe à constatação de que há um aumento na população de idosos que reside sozinha e que, em geral, essa população é do sexo feminino, reflexo das taxas mais altas de mortalidade estarem associadas ao sexo masculino (IBGE, 2002). O exemplo extremo de exigências que esse conjunto de características traz à família, à sociedade e ao poder público pôde ser visto na França quando da canícula em 2003, durante a qual chegaram a morrer 250 pessoas em um único dia, todas idosas (WINCKLER, 2009). Cabe apontar que para alguns autores a alteração do perfil demográfico não seria per se a principal razão para a atenção que vem sendo dedicada ao tema idoso e seus equivalentes. Prado e Sayd (2006), por exemplo, ao analisarem as pretensões da gerontologia em constituir-se como ciência do envelhecimento, sinalizam para que não se perca de vista que a velhice, antes de tudo, seria uma construção social que não se definiria a partir de invariantes biológicos. Nessa linha, podem ser destacados ainda Groisman (2002) e Guedes (2000) que, tal como os autores anteriores, abordam as querelas e as inter-relações entre geriatria e gerontologia. Não exploraremos as vias analisadas por esses autores. Contudo, podemos assinalar que as considerações feitas nos trabalhos indicados tornam visível a dimensão social da construção da velhice; ao mesmo tempo, destacam as implicações políticas da busca do estatuto de cientificidade perseguido por esses saberes, os quais teriam ainda como marca uma fragilidade epistemológica persistente. Feita a ressalva acima, deve ser mencionado que o Brasil possui hoje marcos legais e princípios normativos voltados para a velhice, tais como, por exemplo, a Política Nacional do Idoso, Lei 8842/94 (BRASIL, 1994) e o Estatuto do Idoso, Lei 10741/03 (BRASIL, 2003). Nesse rol devem ser citados ainda o Decreto 5109/04, que criou o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (BRASIL, 2004) e mesmo o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH 3 (BRASIL, 2009). O Estatuto do Idoso – EI, em particular, reveste-se de muita importância para a discussão que compõe este artigo. Isso porque ele trouxe
modificações significativas à organização judicial, a qual precisou adaptar-se às novas demandas que se originaram a partir de sua promulgação. Parte dessas modificações, por exemplo, pode ser notada em seu artigo 70, o qual indica que pode haver criação de varas especializadas e exclusivas do idoso. No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça optou por agregar à competência da Vara da Infância e da Juventude aquela relativa às medidas protetivas do idoso. Essa alternativa também foi adotada por outros Tribunais, tais como os do Mato Grosso do Sul e Amazonas. Contudo, podemos encontrar no país outras formas de organização judicial relativas ao idoso, as quais já estariam em funcionamento ou cuja criação teria sido aprovada, como, por exemplo, Maranhão e Paraíba (Varas exclusivas do Idoso) ou Piauí (Vara do Idoso e das Pessoas Portadoras de Deficiência). A Justiça Federal instalou a primeira Vara do Idoso em 2005, em Maringá. Deve ser mencionado que uma visita aos sítios na web dos tribunais brasileiros, com algumas exceções, não permite facilmente o acesso à informação quanto ao modo como o respectivo tribunal lida com esse tema; as observações precedentes podem ser repetidas para os sítios do Ministério Público dos diversos estados do país. De modo diferente, o sítio da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (AMPID) ² oferece um amplo aspecto de informações e questões sobre os temas que são concernentes à esfera de ação dessa organização ³ . O silêncio que se deduz do parágrafo precedente atualiza-se de outras maneiras que concernem a este artigo: i) nos concursos de ingresso aos diversos tribunais do país, particularmente no que se refere aos cargos que compõem as equipes interprofissionais, não são frequentes programas e questões que toquem esse tema e ii) nos cursos de psicologia, sobretudo nas disciplinas que enfocam a interface com o universo judicial, também é infrequente a incorporação de referências relativas ao idoso. Sobre a mescla de visibilidade e invisibilidade que tange a velhice e que se fez presente até agora escreve Agra do Ó (2008): ...vivemos numa época em que um notável desenvolvimento científico mescla-se a um silenciamento ou a uma espetacularização acerca da morte. (...) Cada vez mais sabemos sobre o corpo e a velhice e, ao mesmo tempo, isolamos a morte no espaço privado e privatizado do interior das câmaras inacessíveis dos hospitais. Mais que isso: somos cada vez menos capazes de nos sensibilizar frente ao momento em que o corpo dá sinais de que se transforma. O nosso desejo é a permanência, é a vida eterna, é a eterna juventude, a rigidez, a força e a beleza. Os nossos maiores temores são o inesperado e a finitude, e deles nos afastamos com vigor. Em tal contexto o velho passa a ser um sujeito vazio, impossível de ser compreendido, em relação ao qual não se tem sequer paciência. O velho é aquele outro em relação ao qual o jovem não consegue construir nenhuma identificação. Conseqüentemente não é possível, sem esforço, a solidariedade (entendida como um jogo entre iguais). O idoso é jogado para as margens da experiência social e cultural, e seu acolhimento dependerá de sua incorporação ao mercado. ⁴ (AGRA DO Ó, 2008: 398-399)
A despeito dessas considerações, é preciso frisar que, quanto ao universo judicial, boa parte dos estados do país possui promotorias de justiça e, em menor proporção, delegacias especializadas na garantia de direitos do idoso (PASINATO, CAMARANO e MACHADO, 2006). No que se refere ao estado do Rio de Janeiro, a assunção da competência relativa ao idoso por parte da Justiça da Infância e da Juventude – ocorrida em 2005 – não implicou modificações do seu quadro de psicólogos e assistentes sociais. A essa época, diferentemente do que ocorre agora, havia apenas uma vara da infância e da juventude para toda a cidade do Rio de Janeiro com a competência relativa às medidas protetivas. Não deve passar despercebido que a cidade do Rio de Janeiro é a que apresenta o maior contingente de idosos do país (IBGE, 2002). Pelo que foi apresentado até aqui, podemos entender que o sistema judicial ⁵ é convidado a participar do conjunto de ações articuladas em prol da garantia de direitos do idoso, a ponto de se vislumbrar a possibilidade de criação de varas específicas para esse fim, no que tange ao Poder Judiciário. A interrogação sobre como o sistema judicial lida com as questões relativas ao idoso assume neste artigo a forma de uma pergunta que se pauta em outro recorte: de que modo o psicólogo que atua nesse sistema intervém nos casos referentes à violência contra o idoso? O pano de fundo dessa pergunta deve ser entendido com base na seguinte hipótese: os casos relativos a idosos levam ao extremo as dificuldades experimentadas no cotidiano de trabalho em outras áreas que compõem esse sistema (família e infância e juventude, por exemplo). É nessa perspectiva que podemos destacar a questão que sempre se revela viva nesse tipo de reflexão: seriam esses psicólogos exclusivamente peritos? Isto é, sua atuação caracterizar-se-ia somente pela capacidade de fornecer subsídios à decisão da autoridade judicial? A díade especialistajuiz seria eficaz frente às exigências que o tema idoso traz ao poder público, em particular ao sistema judicial? Poderia o sistema judicial responder às exigências de garantia de direitos e responsabilização sem estar em sintonia com os demais atores que intervêm na política de atenção ao idoso? As leis O EI é uma peça-chave na construção deste artigo, uma vez que ele representa a expressão acabada de um conjunto normativo que começou a se constituir quase uma década antes com a Política Nacional do Idoso. Tal como no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) – ECA, destacase logo no artigo 2º o princípio da proteção integral como diretriz para as interpretações de todos os demais artigos que se seguem, além da menção, no artigo 1º, da finalidade da lei e da definição etária do idoso: “regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos”. Isso implica dizer, como já notado (GONÇALVES e FONSECA, 2003: 3), que o EI opera uma discriminação positiva, a qual ressalta que, ao lado dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, o idoso é alvo de garantias de direito específicas (BRASIL, 2003). Assim como o ECA (art. 4°), o EI (art. 3º) nomeia diversos atores que são responsáveis pelos cuidados relativos ao idoso. Nota-se, portanto, que a família seria um dos agentes envolvidos nesse cuidado, longe, contudo, de
ocupar esse lugar de forma solitária. Essa diretriz, de resto, é derivada do artigo 230 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Todavia, tanto o ECA quanto o EI estabelecem responsabilidades que são devidas pela família, antes que por qualquer outro agente. É dessa forma que podemos observar, por exemplo, no ECA, a excepcionalidade tanto da colocação em família substituta (art.19) como do abrigamento (art.101, parágrafo único). Essa perspectiva é dominante também no EI, quando a família aparece com primazia frente ao atendimento asilar (art.3º, parágrafo único, V). Mantendo-nos na órbita do ECA e do EI, cabe uma distinção importante quanto às possibilidades de acolhimento familiar na esfera da infância e na esfera da terceira idade. Os programas do tipo família acolhedora são bastante disseminados na esfera da infância, embora não se proponham a substituir o acolhimento institucional (CABRAL, 2004). Na esfera do idoso, esse tipo de programa, embora tenha contado com algumas experiências sobre as quais não existem avaliações significativas, é vedado pelo Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI, 2008). O argumento para esse veto refere-se ao fato de que esse recurso não estaria amparado no marco jurídico da Política Nacional do Idoso, ao contrário do que se deduz do ECA, art. 34, ou das diretrizes do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA (BRASIL, 2006). Todavia, esse veto não impede que haja movimentos ao largo das estruturas estatais, os quais buscam constituir formas alternativas de cuidados para o idoso ⁶ . Ainda nessa breve comparação entre o ECA e o EI devemos observar como cada uma dessas legislações invocam os serviços auxiliares do Poder Judiciário – entenda-se, neste artigo, psicólogos e assistentes sociais ⁷ . O ECA, à diferença dos Códigos de Menores de 1927 e 1979, textualmente impõe ao Poder Judiciário a previsão de recursos para a manutenção de equipe interprofissional que componha a Justiça da Infância e da Juventude (art. 150). Não por outro motivo, é inegável que o crescimento de vagas para os cargos de psicólogos nos tribunais de justiça, de modo geral, ocorreu a partir da promulgação do ECA. Ainda nessa linha, cabe mencionar que no art. 151 é estabelecido um rol de atribuições à mencionada equipe, o qual não está circunscrito à função pericial. Entendamos aqui função pericial como sendo aquela que visa prioritariamente a subsidiar o juiz na tomada de decisão com base em conhecimento especializado. Quanto ao EI, não há nenhuma menção equivalente a esse artigo. É possível que esse contexto, em parte, responda pela quase total inexistência de aumento de profissionais que compõem as varas que acumularam a competência para a matéria relativa ao idoso. Nesse contexto, devemos lembrar que, de modo geral, não existem ainda varas especializadas e exclusivas nesse tema. Contudo, a falta de previsão legal para a referida equipe interprofissional no judiciário não implicou a inexistência de demanda para suas intervenções – assim como também das equipes que compõem o Ministério Público. Ao mesmo tempo, devemos destacar que (i) a falta de uma diretriz inteligível pelos diversos atores que compõem o sistema de justiça sobre o papel da equipe interprofissional na matéria relativa ao idoso – que, de certo modo, no ECA é estabelecida no art.151 – e (ii) a falta de clareza sobre como os diferentes segmentos da política de atendimento se suplementam, conforme desenhado nos artigos 3º, 46 e 47 do EI, acabam por (iii) produzir equívocos no funcionamento dessa rede, além de (iv) possivelmente ancorar a equipe interprofissional na função pericial, como veremos adiante.
Pode ser lido no EI acerca da política de atendimento: Art.46. A política de atendimento ao idoso far-se-á por meio do conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios [grifo nosso]. Art. 47. São linhas de ação da política de atendimento: I – políticas sociais básicas, previstas na Lei n° 8842, de 4 de janeiro de 1994; II – políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que necessitarem; III – serviços especiais de prevenção e atendimento às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; IV – serviço de identificação e localização de parentes ou responsáveis por idosos abandonados em hospitais e instituições de longa permanência; V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos dos idosos; VI – mobilização da opinião pública no sentido da participação dos diversos segmentos da sociedade no atendimento do idoso. As violências Ainda que as definições de violência sofram variações históricas e culturais, havendo, portanto, dificuldades significativas de conceituação (GONÇALVES, 2003; VIGARELLO, 1998), assume-se, de forma imprecisa, que a violência contra idosos data de tempos antigos (KRUG et al., 2002). Embora a esfera intrafamiliar concentre nossa atenção neste artigo, devemos reconhecer que a violência não está ali encerrada. Mesmo as formas que encontram expressão na família muitas vezes podem não estar desconectadas de uma vasta corrente de causas e efeitos que encontram ali sua atualização (FALEIROS, 2006; 2007; KRUG et al., 2002; SANTOS et al., 2007). A Organização Mundial da Saúde (OMS), com base na Action on Elder Abuse e na International Network for the Prevention of Elder Abuse , estabelece que: ...o abuso ⁸ de idosos é um ato simples ou repetido, ou ausência de ação apropriada, que ocorre no contexto de qualquer relacionamento em que haja uma expectativa de confiança, que causa dano ou tensão a uma pessoa idosa. (KRUG et al., 2002: 126) De modo semelhante, mas um pouco mais amplo que a definição acima, a própria OMS define violência como: O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (KRUG et al., 2002: 5)
Em geral, os levantamentos realizados em outros países encontram concomitância de formas distintas de violência em um mesmo caso (KRUG et al., 2002; PASINATO, CAMARANO e MACHADO, 2006). No Brasil, a par das dificuldades em realizar esse tipo de levantamento, nota-se a prevalência de certos tipos de violência sobre outros. Assim, abandono/negligência e violência física aparecem com certo destaque nos estudos realizados aqui, sem que as demais formas também deixem de ter expressão significativa (PASINATO, CAMARANO e MACHADO, 2006). Nesse contexto, a existência de amostras relativas à violência financeira poderia ser um indicador dos efeitos da violência social ou estrutural a que a referida família estaria submetida, tais como, por exemplo, desemprego e precarização das condições de trabalho (ibid.; BORGES, 2006), os quais constituiriam o terreno no qual ocorreria a exploração do idoso ⁹ . Entendamos violência financeira tal como definida por Krug et al.: “extorsão e controle do dinheiro da pensão, apropriação de bens móveis e imóveis, e exploração de idosos para forçá-los a tomar conta dos netos (2002: 128)”. Da mesma forma, os números relacionados ao abandono e negligência podem também apontar para o mau funcionamento de políticas públicas, sobretudo aquelas que teriam por objetivo oferecer suporte à família no cuidado devido ao idoso (PASINATO, CAMARANO e MACHADO, 2006). Esses indicadores são muito relevantes, em particular no momento em que a configuração familiar passa por diversas modificações, inclusive no que tange à participação ativa da mulher no mercado de trabalho o que, por conseguinte, poderia tornar mais difícil a sustentabilidade de uma rede de amparo informal ao idoso (ibid.). Corroborando as indicações acima, sobre formas prevalentes de violência, o entrecruzamento dessas formas e o que poderíamos denominar de violência estrutural, Minayo conclui que: Pode-se observar uma convergência entre as causas externas específicas de mortalidade de idosos, entre os motivos de internação por maus-tratos e as expressões de violência, muito mais amplas, difusas, naturalizadas e reproduzidas na cotidianeidade das relações sociais no interior das famílias, nas instituições e em diferentes contextos sociais. Mortes no trânsito (primeira causa específica de morte) e quedas (primeira causa específica de internação) resultam, na maioria das vezes, de negligências, omissões e maus-tratos. É importante ressaltar, também, a universalidade do problema e sua dimensão histórica, presente nas sociedades complexas e contemporâneas e nas comunidades primitivas. ¹⁰ (MINAYO, 2003: 790) Estudo realizado no estado do Rio de Janeiro (MIRANDA e MELLO, 2007) destaca que o grupo populacional de idosos não sofre de forma homogênea os efeitos da violência, seja quanto ao gênero, seja quanto à idade, seja mesmo quanto à etnia e classe socioeconômica. Essa variabilidade é encontrada também nos levantamentos relativos à violência interpessoal que não têm como alvo os idosos. Podemos dizer que a violência contra idosos é classificada, com ligeiras variações entre os autores, em: física, verbal, psicológica (emocional), sexual, econômica, negligência e autonegligência (BLAY e SPÍNDOLA, 2007;
GONÇALVES e FONSECA, 2003; BRASIL, 2005; KRUG et al., 2002). Os primeiros estudos desse tipo de violência ocorreram na década de 1970, tendo sido criada, em 1989, uma revista totalmente dedicada ao assunto, o Journal of Elder Abuse & Neglect (PASINATO, CAMARANO e MACHADO, 2006). Souza et al. (2004) entendem que um dos fatores de risco de violência intrafamiliar é a relação idoso/cuidador e o respectivo contexto situacional. Os fatores de risco listados não significam a indicação necessária de que o cuidador seria o mais provável agressor, mas que ele poderia não ter as condições de zelar pelos cuidados devidos ao idoso. Essa relação pode ser dividida em três eixos, aos quais são acrescentadas variáveis que potencializariam os riscos, sobretudo em função das condições de estresse e das dificuldades em lidar com ele: idoso (mais longevo, do sexo feminino, dependente de cuidados diretos); cuidador (idade superior a 60 anos, sexo feminino, com dependência da renda do idoso, único presente em tempo integral ou doente); ambiente situacional (convivência intergeracional, isolamento social, dependência mútua cuidador/idoso, membros alcoolistas na família). Essas considerações são reforçadas por outros levantamentos, os quais encontram quase que as mesmas variáveis, embora, por vezes, um pouco divergentes ou voltadas à caracterização de um suposto perfil do agressor (BRASIL, 2005; KRUG et al., 2002): preponderância dos filhos homens como agressores, seguidos de noras, genros e, por fim, o cônjuge; residente na mesma casa que a vítima e que “se vinga do idoso que com ele mantinha vínculos afetivos frouxos, que abandonou a família ou foi muito agressivo e violento no passado” (KRUG et al., 2002: 130). Chama a atenção que o estado do Rio de Janeiro seja aquele onde há maior número de idosos vítimas de violência, quando não se considera exclusivamente a violência intrafamiliar: homicídios, atropelamentos e tombos estão em posição de destaque, com particular ênfase para os acidentes que ocorrem no transporte (BELISÁRIO, 2002). De forma geral, os acidentes de transportes e as quedas são as causas principais de mortes violentas dos idosos brasileiros, sendo que a maior parte das quedas ocorre em casa (BRASIL, 2005; COUTINHO, BLOCH e RODRIGUES, 2009). Nesse conjunto, as mortes por outras formas de violência que não a intrafamiliar e outros tipos de acidentes totalizam 2,8% das ocorrências no Brasil em 2000 (BRASIL, 2005); em 2002 morreram 14.973 idosos devido a acidentes e violências no Brasil, isto é, 41 óbitos por dia com largo destaque para as diferenças de gênero: 65,76% de homens e 34,24% de mulheres (ibid.). Em que pese a obrigatoriedade de notificar as suspeitas ou confirmações de maus-tratos contra idosos, conforme artigo 19 do EI, é possível, tal como ocorre nos casos relativos à infância, levantar a hipótese de ocorrências de subnotificações e, em alguns casos, de supernotificações ¹¹ , o que falsearia em parte os números levantados. Não obstante essas considerações, levantamento recente do Ministério da Saúde afirma que 86% dos diversos tipos de violência praticados contra o idoso entre 2006 e 2007 estariam relacionados à violência doméstica ¹² (KRAKOVICS, 2009: 2). É dado por certo que hoje em praticamente todo o território nacional há instâncias para denúncias relacionadas à violência contra o idoso (PASINATO, CAMARANO e MACHADO, 2006), embora a operacionalização
desses serviços esteja longe de ser adequada (ibid). Esse quadro, per se é um indicador acerca das dificuldades do funcionamento eficaz de uma rede de proteção ao idoso (SOUZA et al., 2008), tal como previsto no EI. As redes, os casos Quando nos debruçamos sobre o Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa (BRASIL, 2005), é forçoso reconhecer que, quatro anos depois de seu lançamento, pouco foi realizado. Ali, mais uma vez, o entrelaçamento de ações é vislumbrado como alternativa importante, destacando-se intervenções que ultrapassam em muito o campo individual, tendo, por foco, a própria sociedade. Em março de 2009, uma das ações descritas no Plano, mas que só então começava a realizar-se, era um Disque Denúncia, a ser gerido pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (KRAKOVICS, 2009: 2). Esse recurso talvez venha a facilitar a centralização dos números relativos a esse tipo de serviço e, por consequência, criar condições mais propícias para um levantamento de dados relativos à violência contra o idoso em território nacional. No campo das ações psi, podemos dizer que ao Relatório citado na primeira parte deste artigo (CFP, 2008a) seguiu-se o Seminário Nacional Envelhecimento e Subjetividade, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2008b: 3). Algumas teses discutidas nesse Seminário foram comuns àquelas apresentadas na 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa – 2ª CNDPI. Uma delas refere-se à necessidade de mobilização social em prol da garantia de direitos da pessoa idosa, tal como previsto no EI; observa-se que o tema mobilização implica também o tema articulação, o qual, como vimos, ainda permanece um ponto que necessita de aperfeiçoamento na esfera do idoso. Entre um e outro evento, nota-se a amplitude com que as questões ligadas à violência contra o idoso são tratadas, embora pouco surja acerca do modo como o sistema judicial intervém nessas questões. Dito de outro modo, particularmente quanto ao Seminário, o universo legal é mencionado quase que exclusivamente para que seja apontada sua não efetividade. Não por acaso, precisamos sublinhar que o tema da 2ª CNDPI foi justamente a avaliação da rede nacional de proteção e defesa dos direitos da pessoa idosa – Renadi, cuja construção ocupou a 1ª Conferência, em 2006. A Renadi se define: ...como organização da atuação pública, tanto por parte do Estado quanto da sociedade civil , na implementação de um conjunto descentralizado e articulado de programas e ações e órgãos direcionados à efetivação dos direitos da pessoa idosa no país. (CNDPI, 2009, grifos nossos) Nota-se que a definição acima está em linha com a definição básica de rede: “sistemas de nodos e conexões” (FRANCO, 2008: 113). Todavia, cumpre indicar que alguns autores não entendem que a descentralização seja uma característica que permita de modo exclusivo definir o funcionamento de rede; para tanto, fazem a distinção entre funcionamento ‘distribuído’ (que equivaleria de fato à rede, devido a sua disposição horizontal, sem centros ou hierarquia), ‘descentralizado’ (que seria o mesmo que ‘multicentrado’, ou seja, constituído por vários centros) e ‘centralizado’ (FRANCO, 2008: 116).
Outro aspecto importante relacionado à noção de rede é sua equivalência com a noção de sustentatibilidade. Isto é, os dispositivos de autorregulação devem ser capazes de ajustar o funcionamento da rede de acordo com as condições que se impõem a ela (FRANCO, 2008). Deduz-se, assim, que as redes são flexíveis, plásticas e mutáveis a fim de encontrar as condições mais adequadas ao seu funcionamento. No que se refere ao funcionamento de uma rede de proteção ao idoso, Souza et al. (2008) realizaram um trabalho que aborda parte das questões apontadas. Essas pesquisadoras, investigando o universo relativo ao Rio de Janeiro, concluem que as organizações que poderiam compor a rede mencionada não funcionavam, de fato, de forma articulada e integrada, tal como prescrito no EI. Assim, as autoras não apenas afirmam que as conexões entre os nodos dessa rede seriam frágeis, mas também que (i) o número de instituições de proteção não seria suficiente; (ii) a capacitação profissional não contemplaria as questões em jogo; (iii) que não se avançou ainda no fomento à constituição de redes informais de apoio e proteção aos idosos. Quando analisamos as situações judiciais nas quais o idoso aparece como suposta vítima de violência intrafamiliar, deparamo-nos mais diretamente com as dificuldades existentes, seja na atuação intersetorial, seja na definição dos objetivos que deveriam nortear a intervenção de cada um dos atores convocados à garantia de direitos do idoso. Em outras palavras, a noção de eficácia não aparece associada à finalidade das ações realizadas junto ao idoso ou, ao menos, a referida finalidade não teria, paradoxalmente, o idoso como preocupação principal. As noções de eficiência, eficácia e efetividade não aparecem com destaque em trabalhos psi , embora sejam uma constante nos campos que envolvem os problemas de gestão ou estratégia. Entendemos que as proposições sobre articulação, definição de atribuições e funcionamento em rede não podem prescindir de discussões que contemplem as questões suscitadas por aquelas noções. Além disso, ‘eficiência’ é um dos princípios da administração pública, tal como previsto no artigo 37 da Constituição Federal. Aqui, vamos entender ‘eficácia’ como a relação maximizada entre resultados obtidos e objetivos pretendidos; ‘eficiência’ como a medida sobre o melhor uso (ou forma mais econômica) dos recursos disponíveis; e a ‘efetividade’ como a capacidade de produzir um efeito ¹³ (CHIAVENATO, 2004: 65). Vejamos um exemplo extraído de Alves (2001), que realizou uma pesquisa com base nos registros do serviço ‘Ligue Idoso/Ouvidoria’, no Rio de Janeiro. A denúncia analisada era relativa ao abandono de uma idosa, em cidade no interior do estado do Rio de Janeiro. Os parentes teriam levado a idosa para lá e não ofereceram o suporte necessário à sua subsistência. Ela estaria, no momento da denúncia, sem condições de cuidar de sua higiene, desnutrida, doente e sem acompanhamento médico. A primeira intervenção, após o registro no ‘Ligue Idoso/Ouvidoria’, foi da Secretaria de Ação Social do município: um médico e uma assistente social fizeram a visita domiciliar. A resposta da equipe foi a seguinte:
...a idosa é lúcida, não sofre maus tratos físicos, nem está abandonada, há uma pessoa que mora em outra casa do sítio. Mas, será encaminhada ao hospital público da região para exames médicos. Sua casa (nos fundos do sítio) é desorganizada e suja porque a idosa não cuida da casa e não permite que ninguém entre na casa para fazê-lo. (ALVES, 2001: 14) A autora aponta que há diferenças significativas entre o relato dos profissionais que procedem à análise do caso e o teor das denúncias: A denúncia tende sempre a acentuar a gravidade do caso e a condição de objeto da vítima, ao passo que os pareceres institucionais acabam por ressaltar outras motivações e outra organização do caso, sem, no entanto, tirar a vítima de sua condição. [No caso mencionado] A idosa está mesmo numa situação de risco que exige solução, mas a situação é produzida pela insistência da idosa em ‘não cuidar da casa e não deixar que alguém o faça’. (ibid.: 14) Outro aspecto que marca as intervenções em casos referentes à suspeita de violência intrafamiliar contra idosos pode ser apreendido a partir de mais um caso analisado por Alves: Os idosos vêm sofrendo agressões físicas por seu filho, 43 anos, desempregado, alcoólatra. Quando está alcoolizado, agride fisicamente os seus pais, precisa os vizinhos interferirem para tentar socorrê-los. A prefeitura envia um assistente social que relata a seguinte visita domiciliar: “conversou-se com o casal e o filho, que estava alcoolizado. Este verbalizou que de fato maltrata os pais quando faz uso de bebida alcoólica, mas que, a partir de agora, jamais o fará. Orientamos o casal sobre seus direitos e demos uma advertência verbal ao filho”. (ALVES, 2001: 15) A autora conclui que é preponderante a crença de que os acordos verbais feitos para a solução do conflito serão efetivos, sobretudo em função da autoridade da organização que tenha intervindo no caso. Essa observação da autora sugere que a crença mencionada não encontraria contrapartida na articulação dos atores convocados a intervir. Isto é, as formas de acompanhamento dos casos ou de verificação dos resultados oriundos das intervenções feitas seriam falhas. A dificuldade que se apresenta no caso, de certo modo, está em linha com a observação de que os pareceres institucionais não alteraram, de modo geral, a condição do idoso envolvido no contexto de violência. Como vimos, a distância entre a perspectiva das supostas vítimas e a dos profissionais seria uma constante, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista do idoso, as situações não encontrariam alterações, a despeito do quantum de trabalho despendido pelos serviços acionados. É exatamente esse tipo de argumento que consideramos de valia ao analisarmos o funcionamento de um sistema de garantia de direitos, bem como o lugar que o psicólogo nele ocupa. Bruno (2005), ao estudar casos referentes à violência financeira, chega, de certa forma, à mesma conclusão. Ela afirma que, nos casos analisados, a despeito da maioria deles ter revelado denúncias improcedentes, persistiriam de forma clara padrões de conflito intrafamiliar. Isto é, a exclusão da existência de violência financeira, mesmo que confirmada, não significaria a inexistência de situações de
violência ou conflito que envolveriam o idoso e seus familiares. Em síntese, esse quadro desdobrar-se-ia nos seguintes efeitos: (i) a quase negação dos direitos dos idosos; (ii) a banalização da lei por parte dos familiares denunciados; (iii) eventual reconfiguração do padrão de convivência. Dito de outro modo: Nas situações analisadas, observou-se que a postura dos familiares denunciados com freqüência por outros familiares suscita a idéia de uma certa banalização da lei, sem conhecimento de seu propósito principal: proteger. O que a princípio figurou-se como apropriação de bens, surgiu posteriormente como parte de um conflito intrafamiliar, no qual os direitos dos idosos foram postos num plano menor. No entanto, a reivindicação dos mesmos serviu como argumento capaz de ultrapassar o espaço doméstico e atingir a esfera pública. Dirimida a questão e descartada a hipótese de abuso financeiro, a letra da lei é inserida na ordem familiar para advertir cada integrante de que a violência é problema de todos e que o acionamento do poder público para combatê-la expõe a intimidade do cenário onde a violência surge e mostra a quem o braço da lei pode alcançar, visando à garantia de que seja cumprida. Dessa forma, o esclarecimento das denúncias oportuniza a disseminação das leis que protegem a pessoa idosa a todos os cidadãos que demandam assistência, ainda que tenham chegado aos serviços de prevenção e atendimento às vítimas sem motivos consistentes para fazê-lo. (BRUNO, 2005: não paginado) As redes, os casos e o sistema de justiça Ainda que faltem levantamentos mais sistemáticos sobre o atendimento de casos de violência contra idosos no sistema judicial, podemos dizer que os exemplos de Alves (2001) e Bruno (2005) são relativamente fáceis de serem encontrados no cotidiano das varas e promotorias de justiça. As promotorias, em particular, possuem papel destacado no EI, conforme seu capítulo II, no qual são descritas as competências do Ministério Público. Como notado nos casos citados na seção anterior, o apelo a um serviço de disque denúncia aparece com destaque, sendo que, por vezes, o próprio idoso terá lançado mão desse recurso com o intuito de buscar ajuda para aquilo que entende ser um problema. Em regra, esse idoso é do sexo feminino e viúva; a violência gira em torno de abandono, negligência ou abuso financeiro. Muitos estudos, realizados por profissionais de diversas especialidades – psiquiatria, serviço social, psicologia, enfermagem, além de diligências feitas pela polícia – se sucedem e se repetem, havendo, por vezes, um intervalo de tempo muito reduzido entre um e outro estudo. Ao final, independentemente do teor da decisão judicial, as relações entre o idoso e boa parte dos familiares poderá estar pior do que no momento anterior à ação judicial. Isso ocorre, sobretudo, em função das personagens envolvidas terem sido capturadas pela lógica adversarial, a qual, usualmente, dita a relação entre as partes em um processo judicial. O exemplo de Bruno pauta-se nessa possibilidade quando indica situações em que há “familiares denunciados com frequência por outros familiares”. No âmbito da lógica adversarial, tratar-se-á de provar uma tese, a qual, em geral, implica demonstrar que o outro mente, não é digno de confiança ou, no caso do idoso, que já teria sido feito tudo em prol do mesmo, sem sucesso
ou, ainda, que existiria um culpado pela violência perpetrada. Como notado acima, a improcedência de uma denúncia não significa a inexistência de uma perturbação ou conflito na relação intrafamiliar, a qual pode ser disfuncional aos seus integrantes, em particular ao idoso. A reiteração de estudos realizados por equipes multidisciplinares deve atrair nossa atenção. Embora não existam ainda pesquisas sistemáticas que analisem o número de estudos interprofissionais realizados ao longo do processo judicial na esfera do idoso, empiricamente é notado que há situações em que esses estudos são abundantes. Se existem séries de estudos com o objetivo de auxiliar as ações do Ministério Público, ou a tomada de decisão judicial, e estas não ocorrem, qual poderia ser a razão? O que estaria na base da demanda das autoridades envolvidas que, aparentemente, não poderia ser respondido a contento? O que guiaria efetivamente a intervenção das referidas equipes? Em parte devemos lembrar que o EI, à diferença do ECA, não estabelece uma linha diretriz para a pletora de intervenções interprofissionais possíveis. Um corolário dessa disposição é que, à falta dessa diretriz, o funcionamento dos operadores do direito e daqueles que a eles são associados acabaria por ter como alvo exclusivo a produção da prova e seu julgamento. Dessa forma, as ações e produtos oriundos das intervenções interprofissionais acabariam por se situar quase que inteiramente na esfera pericial. Todavia, os exemplos citados na seção anterior mostraram que as situações ou não são inteiramente definidas pelas razões que teriam acionado o sistema de proteção ou as medidas aplicadas não teriam garantido minimamente alteração da situação que motivou o acionamento do sistema. Talvez possa ser dito que a complexidade das situações apresentadas – complexidade que se intensifica em função da carência que por vezes caracteriza parte da população idosa – situa-se além do alcance das ferramentas disponíveis e modus operandi do sistema judicial. Deve ser acrescentado também que o EI, ao não prever equipe interprofissional nas varas relativas ao idoso, ao mesmo tempo em que acentua a necessidade do funcionamento de uma política de atendimento articulada, talvez aponte para o reconhecimento de que aspectos relevantes dessa proteção não deveriam estar ancorados no sistema judicial. Nesse sentido, haveria indicações para uma possível ‘não judicialização’ dos conflitos intrafamiliares, embora não existam ainda sinais consistentes de formas de atuação que reforcem essa interpretação. Mesmo equipes externas ao sistema judicial podem acabar capturadas pela lógica processual, acabando por tornar esse sistema o destinatário principal do trabalho realizado. Desse quadro não estão excluídos os profissionais que compõem a equipe interprofissional da vara que possui a competência para o idoso, apesar do EI, como vimos, não prever a existência desse tipo de equipe. Todavia, o EI ressalta a necessidade de um conjunto de ações articulado em prol da garantia de direitos do idoso, tal como também já destacamos. É essa articulação que os exemplos utilizados até aqui permitem notar o quanto é claudicante. É comum que essa equipe intervenha depois da realização de uma série de estudos feita por profissionais de outro campo do sistema judicial – como aqueles ligados ao Ministério Público, por exemplo – ou mesmo daqueles inseridos na Saúde ou na Assistência Social.
Nessas situações, a equipe interprofissional pode não escapar ao círculo vicioso comentado anteriormente: a produção de laudos com vistas a identificar um culpado, ou verificar a procedência ou improcedência de uma denúncia, pode acabar por ser sua atividade principal. Nesse caso, o sistema terá dificuldades de propor alternativas, mesmo que fique caracterizado, na sucessão de estudos, que dificilmente as questões sobre a eventual responsabilidade exclusiva de um familiar possa ser estabelecida. É justamente nesse contexto que o sistema emperraria, pois talvez ele não esteja ainda preparado para lidar com os conflitos presentes na vida familiar do idoso. As redes, os especialistas e o sistema de justiça Nosso percurso até aqui nos permite observar um risco nas demandas dirigidas ao sistema judicial. Parte dos casos pode revestir-se de dois sentidos, os quais guardam entre si uma ligação muito estreita: (i) a judicialização da vida privada – ou, ao menos, de seus conflitos e (ii) a ampliação ao acesso à justiça. Esses dois pontos são motivos de estudos recorrentes no campo do Direito (CAPPELLETTI e GARTH, 1988; GARAPON, 2001; LOPES, 2005; SADEK, 2001), embora não especificamente no que tange aos idosos. Neste artigo somos levados a nos interrogar sobre as formas atuais de resolução adequada de conflitos quando os suportes familiares não se mostram eficazes para isso. Nesse contexto, nota-se que, na falta de uma rede informal de apoio ao idoso, quase que não resta alternativa para a modalização do conflito que não seja o apelo à máquina judicial. Se compararmos com a situação da infância, em que pesem problemas por todos conhecidos, podemos apontar que a existência dos conselhos tutelares, por exemplo, responde, em tese, a um aparato extrajudicial que pode servir a esse fim. Como já sinalizamos, uma série de modificações no funcionamento familiar, inclusive no que se relaciona às novas condições do mundo do trabalho, ao lado da consolidação de uma cultura na qual a juventude e seus predicados são diariamente incensados, tudo isso pode acabar por se tornar um campo propício a conflitos, cujas negociações e garantias, muitas vezes, têm o sistema judicial como único destinatário, como sugerido há pouco. Tal como vimos, faltariam exatamente a um possível sistema de garantia de direitos do idoso instâncias que pudessem ocupar a função de mediadores capazes de pluralizar as possibilidades de encaminhamento desse tipo de demanda. Garapon (2001) afirma que a justiça expressar-se-ia através de três formas, duas das quais estariam superadas, segundo o autor. A primeira delas estaria associada ao pleno poder da autoridade judicial: seria a justiça da sala de audiências, onde o juiz seria antes de tudo um bom jurista, tendo o monopólio da produção normativa; na segunda forma, os especialistas ganham destaque, tendo sido a eles delegados poderes para intervir na realidade familiar. Ao nos voltarmos para os parágrafos anteriores, veremos que os exemplos utilizados neste artigo encontram-se basicamente inseridos no campo de possibilidades instaurado por essas duas formas de expressão. A essas duas formas, Garapon (2001) acrescenta o que chama de ‘casas de justiça’. Nessa forma haveria o reconhecimento da existência de instâncias diversas de debate que não permitiriam a adesão a um critério único de verdade, “seja ele relativo à ciência ou à lei” (Ibid: 238). Isto é, a palavra do
especialista ou a do juiz não seria tomada como índice de verdade que prevaleceria ante qualquer circunstância. De outro modo, essa terceira via implicaria o reconhecimento de que há foros de jurisdição (Ibid: 237) diversos e que essa multiplicação de instâncias implica uma nova maneira de julgar. Não por acaso, Garapon (2001) concede particular interesse às práticas de mediação e, com elas, o que poderíamos entender como equivalentes do que o autor chama de ‘casas de justiça’: centros de mediação, espaços que seriam, aparentemente , independentes da justiça, mas que permitiriam a recomposição das possibilidades de convivência a partir dos conflitos e diferenças trazidos à cena. É com base nesse contexto que podemos acompanhar o autor em dois momentos de sua conclusão: À Justiça não cabe resolver todos os problemas, dar a última palavra em matéria de ciência ou de história, definir o bem público e responsabilizar-se pelo bem-estar das pessoas. (GARAPON, 2001: 265) Tudo aquilo que não constitui tema para debate, porque é enviado para peritos ou para juízes, acaba ressurgindo sob a forma de violência ou de desconfiança a respeito da política. (ibid.: 268) Haveria uma relação explícita entre as preocupações do autor e os enunciados utilizados neste artigo referentes aos casos de violência contra o idoso? Souza e alli (2008: 10) fazem um diagnóstico que aponta nessa direção, embora enfocando um momento mais específico das intervenções com vistas à proteção do idoso: A pouca agilidade do sistema, causada pelas idas e vindas do processo entre distintas instituições, para esclarecimentos das dúvidas, leva a população a perceber o inquérito policial como uma forma de burocratização da justiça. Tudo isso, em última instância, significa que entre o direito constituído e a garantia do direito do idoso ainda há um longo caminho a ser percorrido (...). (SOUZA et al., 2008: 10) As autoras afirmam ainda: Concluímos afirmando que o fluxo institucional de captação, registro, atendimento e encaminhamento dos casos de desrespeito e violência contra o idoso no Rio de Janeiro ainda carece de articulação, integração e agilidade, o que poderia resultar no aumento de sua eficiência, expresso, sobretudo, na maior resolutividade dos casos. No caso específico da realidade da comunidade estudada, várias experiências de movimentos e instituições locais em defesa dos direitos de seus moradores foram vilmente boicotadas e esfaceladas pelo tráfico. Isso tem se constituído um importante fator impeditivo do fortalecimento das redes informais locais, do mesmo modo que dificulta a entrada das instituições formais na comunidade. (SOUZA et al., 2008: 11) O tema mediação foi aqui utilizado por talvez ser um dos que mais perfeitamente revelaria as dificuldades da intervenção judicial que se situam
no estilo de justiça do tipo ‘sala de audiências’ ou ‘de gabinete’, conforme a notação de Garapon vista acima. Isso é particularmente verdadeiro para aquelas situações que envolvem relações interpessoais contínuas, nas quais podemos incluir, de modo geral, as relações comunitárias e familiares. Ao mesmo tempo, esse tema também permite a abordagem do que poderia ser a articulação de ações governamentais e não governamentais, tal como previsto no EI. A interrogação que assim se coloca às formas de funcionamento judicial e, por extensão, a todos que se incluem nesse campo, não é exclusiva ao tema do idoso. Todavia, naquilo que se refere a esse segmento, essa interrogação é mais aguda pela escassez de alternativas no próprio terreno das políticas públicas, ou pelo lugar que a velhice ocupa no imaginário social, em particular no que se refere àqueles que estão inseridos nos estratos socioeconomicamente desfavorecidos. Se compararmos, por exemplo, as condições relativas ao acolhimento institucional de crianças ou adolescentes (IPEA/CONANDA, 2004) e os de idosos (CFP, 2008a), notam-se as diferenças entre um e outro conjunto de equipamentos, ainda que existam problemas comuns. Podemos dizer que, no que tange à infância, alguns passos a mais já teriam sido dados rumo a um melhor funcionamento. Da mesma forma, o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), conceito sugerido no ECA – ainda que se reconheça haver muito a fazer para seu aperfeiçoamento –, tem uma visibilidade e poder de organização que a Renadi – que seria, grosso modo, um equivalente para a esfera do idoso – só agora começa a adquirir. É com base nesse contexto que uma análise sobre as demandas dirigidas ao judiciário e as respostas que daí se originam se faz necessária. Em meio a um campo em que os recursos são sempre escassos frente às demandas apresentadas, podemos ver que: As partes, quando buscam auxílio do Estado para solução de seus conflitos, frequentemente têm o conflito acentuado ante procedimentos que abstratamente se apresentam como brilhantes modelos de lógica jurídicaprocessual – contudo, no cotidiano, acabam por frequentemente se mostrar ineficientes na medida em que enfraquecem os relacionamentos sociais preexistentes entre as partes em conflito. Exemplificativamente, quando um juiz de direito sentencia determinando com quem ficará a guarda de um filho ou os valores a serem pagos a título de alimentos, põe fim, para fins do direito positivado, a um determinado litígio, todavia, além de não resolver a relação conflituosa, muitas vezes acirra o próprio conflito, criando novas dificuldades para os pais e para os filhos. (COSTA, 2004, apud AZEVEDO, 2009: 26) Ainda aqui cabe mencionar o quanto a produção teórica no campo da psicologia jurídica está distante de uma reflexão que tenha por foco a articulação intersetorial. Talvez por isso não sejam visíveis nesse campo estudos e relatos que tenham por tema ‘redes’ ou mesmo ‘redes sociais’. Tais temas contam hoje com uma vasta bibliografia, com autores que inclusive são utilizados de modo sistemático na esfera psi e não se circunscrevem necessariamente a um domínio de conhecimento exclusivo
(CASTELLS, 1999; MATURANA, 2003). Isso seria particularmente importante quando também se notam poucos relatos e raros trabalhos que tratem do funcionamento das equipes interprofissionais dentro do sistema judicial e da relação dessas equipes com os demais entes do sistema de garantia de direitos, seja da infância e adolescência, seja do idoso, por exemplo. Como vimos nos exemplos utilizados neste artigo, a discussão sobre o funcionamento do sistema de garantia de direitos e sobre as interrelações dos agentes que o compõem não pode se afastar das questões referentes à finitude dos recursos (humanos e materiais) e da própria (in)eficácia de parte das ações realizadas nesse campo. Como já notado: A área de amparo à terceira idade é um dos exemplos que mais chama atenção para a necessidade de uma “intersetorialidade” na ação pública, pois os idosos muitas vezes são “vítimas” de projetos implantados sem qualquer articulação pelos órgãos de educação, de assistência social e de saúde. (PORTO, 2002) Conclusões e Perspectivas Devemos reconhecer que a tentativa de responsabilização individual nos casos de violência contra o idoso está, em muitos casos, longe de produzir os efeitos desejados de proteção. No mesmo movimento, o lugar dos especialistas, ao menos no que se refere à sua inserção em um possível sistema de garantia de direitos, também resta por mostrar caminhos que permitam à velhice encontrar formas de expressão que possam levar em conta a singularidade do idoso, tal como indicado, a seu modo, por Guattari e Rolnik (1986: 43). As proposições desses autores não estão distantes das considerações elaboradas pelo CFP (2008a) sobre as condições de institucionalização dos idosos e da necessária construção de alternativas ao que está dado. Essas possíveis novas formas de expressão implicariam a quebra do isolamento que, neste artigo, não se refere tanto às instituições de acolhimento. Referese, aqui, à quase total inapreensibilidade do idoso nas diversas redes que poderiam ampará-lo. Isto é, as questões relativas à eficácia das ações em prol da garantia dos direitos do idoso, tais como as apresentamos, precisam ser trazidas para primeiro plano, a fim de que possamos avançar sobre as dificuldades que emperram a constituição de uma rede de proteção efetiva. A despeito da consideração precedente, devemos sublinhar que o EI potencialmente promove o rearranjo das forças envolvidas na política de atendimento ao idoso. Contudo, sua implementação ainda carece de muitos passos, em particular para o que nos interessa neste escrito, no sentido da articulação dos agentes que compõem a política de atendimento. Em que pese essa observação, não se pode desconsiderar as iniciativas já tomadas para a constituição de redes de proteção ao idoso. Nesse sentido, o próprio EI seria uma peça importante. A discussão sobre o funcionamento eficaz dessa política de atendimento, ou da rede que a sustentaria, exige a colocação em pauta do que definiria o papel e a função do psicólogo, sobretudo na esfera do sistema de justiça. A elaboração de laudos, embora seja uma condição necessária do trabalho realizado, não se mostra em si como condição suficiente frente às exigências
que as questões relativas ao idoso nos apresentam. Nesse tópico, mais do que nunca, permanece em nosso horizonte a interrogação sobre o destinatário do trabalho realizado. Os exemplos utilizados aqui, de certo modo, apontam que muitas vezes o destinatário do trabalho é, quase de modo exclusivo, o próprio sistema judicial. Não devemos esquecer, contudo, que o sistema de justiça não é estático e outras formas de expressão também podem ser concebidas para ele, tal como descrito por Garapon (2001). É nesse deslocamento possível que a existência de conflitos na esfera familiar não necessariamente será assimilada sempre à violência e, quanto a esta, outros modos de intervenção poderão ser construídos. Nesse movimento, talvez o psicólogo encontre modos plurais de definir o seu trabalho e de delinear suas intervenções, as quais só poderão ter sentido na rede a ser estabelecida. Nessa rede por vir, mas cuja construção já começou, o não lugar da equipe interprofissional no EI poderá ser ressignificado com base na prática que então estará sendo realizada. Bibliografia AGRA DO Ó, Alarcon. Norbert Elias e uma narrativa acerca do envelhecimento e da morte. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 2008, vol.15, n.2, 2008, p. 389-400. ALVES, Andréa Moraes. Construção social da violência contra os idosos. Textos sobre Envelhecimento. Rio de Janeiro, v.3, n.6, 2001. AMATO, Rogério. Medindo a situação do idoso. Folha de S.Paulo . Opinião. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2905200909.htm . Acesso em 29 mai. 2009. AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de mediação judicial . Brasília: Ministério da Justiça, 2009. BEAUVOIR, Simone. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BELISÁRIO, Roberto . Velhos sofrem violência em casa e nas ruas. Com Ciência, 2002. Disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/ envelhecimento/env03.htm Acesso em 13 mar. 2009. ESPÍNDOLA, Cybele Ribeiro e BLAY, Sérgio Luís. Prevalência de maus-tratos na terceira idade: revisão sistemática. Revista de Saúde Pública , 41(2), 2007, p. 301-306. BORGES, Ângela. Desemprego e precarização nas regiões metropolitanas: um olhar a partir das famílias. Parcerias Estratégicas, n.22, 2006, p. 145-167. BRASIL. Código de Processo Civil, Lei n.5869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, de 17 jan. 1973, p.1.
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10 Acerca dessa consideração, interessante destacar o esforço do estado de São Paulo na criação de indicadores para a avaliação de políticas voltadas para a terceira idade, bem como as dificuldades da cidade de São Paulo em lidar com essa parcela da população: Amato, 2009; Galvão, 2009. 11 Para uma discussão sobre essas noções, ver Gonçalves e Ferreira, 2002. 12 Ainda que seja cabível a distinção entre acidente e violência, cabe registrar que também é possível notar o quanto uma e outra definições podem, em situações concretas, ter os seus limites apagados. Para as considerações sobre esse argumento, ver Minayo, 1994. 13 Para uma análise histórico-filosófica sobre a noção de eficácia e de distinções acerca de sua presença no pensamento oriental e ocidental, ver Jullien, 1998. SOBRE OS AUTORES Esther Maria de Magalhães Arantes Psicóloga e Professora do Departamento de Psicologia da PUC- Rio e da Faculdade de Educação da UERJ. Doutora em Educação pela Universidade de Boston/EUA. Pesquisadora nas áreas da História da assistência à infância no Brasil e Psicologia e Direitos Humanos. Membro colaborador da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro; membro do Grupo de Trabalho Subjetividade, conhecimento e práticas sociais da associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. Autora do livro A criança e seus direitos: Estatuto da Criança e do adolescente e Código de Menores em debate. Érika Piedade da Silva Santos Psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professora do curso de pós-graduação em Psicologia Jurídica do IAVM/ Universidade Cândido Mendes. Doutoranda em Estudos da Subjetividade e Política pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Mestre em Direito da Cidade pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Especialista em Psicologia Jurídica pela UERJ. Eduardo Ponte Brandão Psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor do curso de pós-graduação em Psicologia Jurídica e do curso de graduação à distância em Pedagogia do IAVM/ Universidade Cândido Mendes; professor de graduação em Psicologia da Uni IBMR -LAUREATE INTERNATIONAL UNIVERSITIES. Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Membro correspondente do Fórum Clínico do Campo Lacaniano. Autor do livro Nem Édipo, nem Barbárie e de diversos artigos, entre os quais, “Por Uma Ética e Política da Convivência: breve exame da ‘Síndrome de Alienação Parental’ à luz da genealogia de Foucault”; “Sexo e Beleza na Contemporaneidade”; “Sobre a Ética das Práticas Psi: Felicidade e Cidadania”, etc.
Lidia Natalia Dobrianskyj Weber Psicóloga e Professora da graduação em Psicologia e do Mestrado e Doutorado em Educação da UFPR. Especialista em Antropologia Filosófica e Especialista em Origens Filosóficas e Científicas da Psicologia pela UFPR; Mestre e Doutora em Psicologia Experimental pela USP; Pós-doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela UnB. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq: "Infância, Adolescência, Família e Comunidade"; Coordenadora do Núcleo de Análise do Comportamento da UFPR; GT Desenvolvimento Familiar da ANPEPP. Membro da American Psychological Association; Society for Research in Child Development; International Society for Child Abuse & Neglect. É autora dos livros: Filhos adotivos, pais adotados; Eduque com carinho; O filho por adoção; etc. Salo de Carvalho Advogado e Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais, Faculdade de Direito, UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Mestre pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e Doutor em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná. Também é Pós-Doutor em Criminologia (Universidade Pompeu Fabra/ Barcelona). Pesquisador na área de Criminologia do Departamento de Ciências Penais (UFRGS). Autor de livros, entre os quais Antimanual de Criminologia . Tania Kolker Médica, psicanalista; terapeuta do projeto clínico do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro; consultora do Programa para as Américas da Associação para a Prevenção da Tortura (APT); membro do Comitê Estadual de Combate à Tortura (RJ); membro do Grupo Multidisciplinar de Peritos Independentes para a Prevenção da Tortura e da Violência Institucional da Secretaria de Direitos Humanos; coordenadora do Programa de Desinstitucionalização e Reinserção Social dos pacientes internados em hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (RJ); organizadora do Manual "Saúde e Direitos Humanos nas Prisões" e autora de diversos artigos sobre a tortura nas prisões, o papel dos profissionais de saúde e dos mecanismos de monitoramento na prevenção à tortura nos espaços de confinamento; os efeitos transgeracionais da violência de Estado, entre outros. Rosana Morgado Assistente Social e Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ. Doutora em Sociologia pela PUC-SP. Pesquisadora do NETiJ- Núcleo de Estudos e Trabalhos sobre Família, Infância e Juventude (ESS/ UFRJ), na linha de pesquisa intitulada Estado, Sociedade e Direitos Humanos. Autora de diversos artigos, entre os quais, “Política da infância e juventude: Estatuto da Criança e do Adolescente e Serviço Social”; “Palmada de Amor... Dói”. Hebe Signorini Gonçalves Professora do Instituto de Psicologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia do mesmo Instituto. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas. Autora do livro Infância e Violência no Brasil e de artigos no campo da infância e juventude e na área da violência. José César Coimbra Psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Chefe do Serviço de Apoio aos Psicólogos da Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro. Professor do curso de pós-graduação em Psicologia Jurídica do IAVM/ Universidade Cândido Mendes. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social/ UniRio; Mestre em Teoria Psicanalítica/ UFRJ; Especialista em Psicanálise/ UFF e em Psicologia Jurídica/ Uerj. Autor do livro Considerações acerca do Tempo, da Memória e do Esquecimento e de artigos, entre os quais, “As Metamorfoses da Máquina Judiciária e os Paradoxos no Enfrentamento da Violência: o Uso da Palavra e suas Vicissitudes”; “Sobre a Duração e a Causalidade: um Ensaio sobre o Tempo em H. Bergson”.