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Portuguese Pages 562 Year 2009
MD Magno
Psicanálise & Polética Seminário 1981 2ª edição
O direito de impressão é pessoal e intransferível.
MD Magno
PSICANÁLISE & POLÉTICA Seminário 1981 2ª Edição
editora
é uma editora da
Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2007 © MD Magno Preparação do texto Potiguara Mendes da Silveira Jr. Editoração Eletrônica e Produção Gráfica NovaMente Editora Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso
M176p Magno, M. D. (Machado Dias), 1938Psicanálise e polética : seminário 1981 / M. D Magno ; preparação do texto: Potiguara Mendes da Silveira Jr. – 2. ed. - Rio de Janeiro : Novamente, 2009. 562 p. ; 16 X 23 cm. ISBN – 978-85-87727-47-3 1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. I. Silveira Júnior, Potiguara Mendes da. II. Título. CDD- 150.195 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá 22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefax: (55 21) 2445-3177 www.novamente.org.br
DEDICATÓRIA: A Luiz Carlos Miranda pelo estabelecimento do texto, desenho dos esquemas e pesquisa iconográfica das 4 sessões de Corte Real, publicadas como livro em 1982 Annita Iedda Cardoso Dias e Evany Cardoso pelo trabalho de transcrição de fitas e organização dos originais
Sumário
Primeira Parte
Auto Nomia 1. NÃO ME SONHEM NEM ME OUTREM A psicanálise é a crise – A psicanálise se fundamenta numa Ética, e a política no Saber – A psicanálise rememora seu fundamento ético para a pólis: Polética – O universal para o falante é a conjunção Lei/Desejo – Fundamento ético da Lei: Diferença – O assassínio está excluído da Lei – Relação das fórmulas quânticas à Lei – Binômio Lei/Desejo x fascismos e libertarismos – Polética como dissolução da cultura – Indicações para uma Diferocracia – O verdadeiro incesto é o impossível, por isso proibido – “A Lei não se fundamenta num saber” – Esclarecimentos sobre perversão e perversidade em sua relação com a Lei. 15
2. BOTEM UM TATU Totem e Tabu: lógica da produção do Simbólico – “Ambivalência” da Lei: aquilo que ela proíbe é seu fundamento – Entendimento da “ambivalência” da lei: a negação da função fálica indica a exceção que funda a regra – Crítica à distinção antropológica entre o fato “natural” da consangüinidade e o fato “cultural” da aliança – Remitificação de Totem e Tabu: o mito do Macaco Maluco – Psicanálise: aliança significante; Antropologia: aliança
de parentesco – Articulação do conceito de creodo à lógica da estrutura – Cultura como um caminho necessário (creodo) do Simbólico – Distinção entre ato de fundação da Lei e enunciado legal – O enunciado legal é afiançado pela enunciação da Lei. 35
3. TARZAN DA SILVA Apresentação da estória de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs – Proposição de três mitos a partir da estória de Tarzan – Mito da horda primitiva – Mito da instalação do simbólico – Mito da passagem de animal a humano – Análise da emergência do falante – Diferença ôntica como marca constitutiva do falante – Falta real no imaginário e fundação do simbólico como artifício – “A cultura não é o simbólico” – O inconsciente e a hipótese do simbólico puro. 55
4. DESDE O PARA ISSO: DE ADÃO A ÉDIPO Distinção entre a constituição da Lei e da ordem de parentesco a partir da leitura do Gênese – Jardim do Éden e expulsão do paraíso: origem do impossível – Caim e Abel: momento de fundação da Lei – Noé: competência simbólica e suas aplicações na ordenação de parentesco e na marcação territorial – Ordem de parentesco é creodo – A cultura é fundada com o Neolítico – “História e cultura são a mesma coisa” – Torre de Babel: totalitarismo da cultura x diferença do inconsciente. 81
5. ÉDIPO EM CALÚNIA A questão edipiana não se reduz à cultura – Resumo comentado de Édipo Rei – Incesto é o que permite transação – A função paterna instala a impossibilidade do incesto como relação – Conseqüência da função paterna: não-totalização das transações – Pregnância imaginária da cultura – Assunção da função paterna como dissolução da
cultura – Função paterna e ato-poético. 101
6. O GENE E TAL Questionamento da tese antropológica da oposição Natureza/Cultura – “O simbólico surge como artifício que vem em lugar daquilo que falta” – Fixões ou efeitos da função simbólica – Distinção entre a função legal (Lei) e suas possibilidades de regulação na cultura – Estrutura da metáfora e da metonímia em Lacan – Metáfora paterna é condição de regulação – Metáfora como produção (Lei) e como repetição do produzido (cultura) – Vocação genitiva e genital da cultura: ordem de parentesco como metáfora da reprodução sexuada – Três níveis de castração como modalidades da função legal: proibição de totalização; proibição da eliminação da diferença; proibição do incesto. 125
7. AINDA O GENE E TAL A vigência simbólica da diferença sexual é regente de toda e qualquer diferença – Hipótese da proibição do incesto como caso particular da diferença sexual – Duas funções da metáfora: desvelamento e ocultamento – Cultura é metáfora de agri e Neolítico – Édipo como proibição do incesto é uma metáfora – Superego é função repressiva cristalizada na proibição do incesto – Dois momentos do Édipo: Nome do Pai (Lei) e proibição do incesto (cultura) – Inclinação (em sentido orográfico) como metáfora de produção de cultura – Indicação da periclitância da cultura: entendimento de Lacan em oposição ao de Deleuze-Guattari. 145
8. ÉDIPO E OSOME Dupla articulação da cultura a partir da Lei – Ciclo tebano como explicitação da Lei: Nome do Pai, diferença sexual, laço social, ordem de parentesco e regulamento de
Estado – Pressão superegóica de um enunciado legal. 169
9. ANTI GONA Duas posturas da Lei: sociedade (associação dos falantes) e cultura (sintoma) – Antígona é o regime da diferença – Indiscernibilidade entre instauração do social e instauração da cultura na emergência da Lei – Lógica dessa indiscernibilidade a partir das fórmulas quânticas da sexuação – O real é o fundamento ético da Lei – O impossível não podendo ser dito (Lei), só se diz como interdito (lei) – Antígona é a questão da diferença entre Lei/Desejo e lei. 189
Segunda Parte
Corte Real 10. LE MIROIR DANS LA REINE ou LE MI-ROI DANS L’ARÈNE Com-sideração da obra de arte: seu lugar topológico coincide com o do analista – Atopoético da obra de arte é puro corte ou Córte Real – Entendimento topológico do espelho como lógica de emergência de sujeito – Relação de Velázquez com os critérios de “obstinado rigor” e “coisa mental” – Início da análise d’As Meninas quanto à ordem visual, composição perspéctica e personagens – Crítica das proposições de Michel Foucault sobre As Meninas – Os pontos dinâmicos do quadro são o espelho (reflexão do Casal Real) e a porta (lugar do Aposentador) – Velázquez pinta o quadro olhando-o num espelho – Dupla reflexão especular n’As Meninas explica o lugar do Casal Real – Planta baixa aproximada do quadro – Considerações sobre uso do espelho em dois outros quadros de Velázquez (Jesus em casa de Maria e Marta e Vênus no espelho) – Retomada da função topológica do espelho em psicanálise. 209
11. V.v.V. Análise de Vênus no espelho: Vênus e Velázquez em relação ao espelho; olhar recíproco entre Vênus e Velázquez; olhar do Cupido – Considerações iniciais sobre diferença sexual a partir da topologia do espelho – Três fases da construção da função do espelho – Emergência de sujeito: inserção significante (feminino) e libidinal (masculino) – Reconhecimento da diferença sexual como quarta fase da função do espelho. 247
12. E/ -SEXÃO Retomada da análise d’As Meninas – Descrição dos quadros Apolo e Mársias e Atena e Aracne reproduzido n’As Meninas – O quadro As Meninas é construção de espelho e sua explicitação – Operação viravesso do quadro – N’As Meninas luz é pura superfície de espelho – Consideração da diferença sexual a partir d’As Meninas – Sexo da obra de arte é neutro. 279
13. APARECEU A MARGARIDA Valor quiasmático do quadro enquanto reviramento – Esquema de emergência de Lei e Língua – Constituição sintomática da cultura – Arte é anterior à cultura – Lugar da Infanta Margarida n’As Meninas – Comentários sobre As Fiandeiras. 313
ANEXO AS TRÊS DEMOSTRAÇÕES DO VIRAVESSO (LUIZ CARLOS MIRANDA) 337
Terceira Parte
HETEROFAGIA 14. INTRODUÇÃO À HETEROFAGIA Resumo dos temas desenvolvidos nas seções anteriores – Reconhecimento da diferença é condição de operação da psicanálise – Sacação de Oswald de Andrade da antropofagia como sintomática fundamental do Brasil – Proposição da oposição homofagia/heterofagia para consideração da tese da antropofagia. 339
15. POR QUE ME AFANO COM MEU PAÍS Assassinato cultural é tentativa de eliminação da diferença – Exame do Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago – Significações da devoração da diferença – Vocação heterossexual do sintoma antropofágico (heterofagia). 357
16. PAPO DE TUCANO Alterofilismo (alteridade) de base do sintoma antropofágico – Masculino/feminino na sintomática brasileira – Entendimento do sintoma brasileiro requer estrutura da contrabanda – Vocação utópica do Brasil é pelo avesso. 379
17. A REVOLIÇÃO CARAÍBA Alterarquia é o que rege a heterofagia – Reinvenção da língua é exemplar da alterarquia – Sentido da esculhambação na sintomática brasileira – Discussão das distinções entre messianismo e utopia, querigma e carisma. 395
18. A POLÉTICA DO DLESEIJO Dleseijo: binômio Lei/Desejo – Escrição matêmica da diferença sexual segundo Lacan – Diferença sexual é produção neguentrópica no sujeito – Condições da “escolha” sexual – Considerações sobre o estilo: distinção entre clássico e barroco – Proposição do estilo heterófago como terceiro lugar. 411
19. O ORA QUE EMPROGRESSE Apresentação da carta de desligamento de MDMagno da École de la Cause Freudienne – Significações do ora que emprogresse – Indicações históricas sobre a heterofagia – Caracterização dos estilos clássico, barroco e maneirismo – Compatibilidade entre maneirismo e heterofagia – Obra de arte vigora na heterofagia – Distinção entre fantasia e fantasma. 437
20. EN L’ENDROIT OÙ VILLEGAIGNON PRINT TERRE Amor à instituição é sustentação de fascismo – Exigência de arqué (elástica e maneira) no processo de institucionalização – Crítica a MALU (Movimento Analítico Lacaniano Universal) – Exame da tese de Hauser sobre maneirismo – Impossível é referência que vigora nos quatro discursos – Proposição do discurso do capitalista – MALU é capitalização do projeto lacaniano. 461
21. NÃO É NÃO Distinção entre psicose (foraclusão do Nome do Pai) e feminino (suspensão do Nome do Pai) – Loucura essencial do falante não é psicose – Avessamento das fórmulas quânticas da sexuação para pensar a psicose – Há indecidibilidade na psicose como ausência da função de referência do sujeito – Quatro modalidades da instalação do sujeito: homem
e mulher (instalação do Nome do Pai); paranóia e esquizofrenia (foraclusão do Nome do Pai) – Possibilidades do feminino: da possessão ao êxtase místico. 485
22. VAE VICTIS Quatro matrizes (homem, mulher, psicose, esquizofrenia) e uma só estrutura (R, S, I, Sintoma) – Pseudo-psicose não pertence à matriz da psicose – Neurose como sublegenda das matrizes masculino e feminino – Estatuto fóbico da neurose – Histeria é acossamento da matriz feminina – Obsessivo é acossado pela matriz masculina – Distinção entre perversão e perversão propriamente dita – Para a psicanálise aceitar o regime da diferença é denunciar o que destrói a diferença. 513
23. NOLI ME TANGERE Psicanálise é competência de transação – Papel de Anísio Teixeira na cultura e formação brasileiras – O que interessa é a dissolução da cultura – Reconstrução do percurso do Seminário a partir da Lei da diferença – Caracterização da diferocracia: governo da diferonomia; minoriscito contínuo; articulação social baseada no simbólico – Discurso psicanalítico diante do campo social instituído: heterofagia – Função paterna situa a interdição como fundação simbólica. 533
ENSINO DE MD MAGNO 555
Não me sonhem nem me outrem
AUTO NOMIA
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Não me sonhem nem me outrem
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NÃO ME SONHEM NEM ME OUTREM O Seminário começa com a audição de Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque.
Já é a segunda vez que esta canção de Chico Buarque vem como epígrafe de meu Seminário. Segundo o rit-pareidi da cultura de massas, ela talvez já esteja velha, é natural. Entretanto, insisto na sua absoluta atualidade. Não é porque alguns senhores ou senhoras resolvem pronunciar, ou melhor, promover, certa “abertura”, que tenho, para ser simpático ou equânime, que perder minha memória. Não tenho que ter nenhuma equanimidade. Não deve promover nenhuma abertura quem não promove imediatamente, no mesmo ato, o fechamento. A abertura, a Real, aquela que nos distingue e nos aflige, não precisa de nenhuma promoção – e muito menos publicidade. Ela está, sempre esteve, estará sempre aberta – e foi isto o que nos demonstrou o velho “pai” Freud – enquanto houver seres falantes. Com a psicanálise, Freud não veio promover nenhuma abertura, veio apenas, mais uma vez, apontar para ela, dar testemunho de seu Real, desacobertar sua memória, isto é, comemorála. Promover a abertura é, primeiro, supor ser capaz de poder escamoteá-la, criando o fechamento. É, portanto, o auge da pretensão, o ápice da soberba, se não o cúmulo da barbárie. A barbárie, meus caros, não é senão esta pouca ou nenhuma vergonha de se tapar o sol da abertura, abertura real, com a peneira das tramas de politicagem. Ser bárbaro é não ter vergonha na cara: a Ver-gonha, as Ver-gonhas, aquelas descritas por Freud. Os homens, ou seja, os chamados seres falantes, os
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falesseres, têm vergonha na cara: portam esta hiância, esta greta, esta brecha, que os obriga a não serem canalhas – a não se tomarem pelo Outro. Há seres vivos que não têm vergonha na cara. Estes, nós chamamos de animais. Não são animados por nenhuma vergonha, porque se animam é pelo imaginário. Os animais são assim. Por isso, posso tratar deles, mas não faço com eles nenhum trato – e nem com seus irmãozinhos bárbaros, que não têm vergonha na cara. Nós outros, os falantes, temos, com nossa vergonha, a nossa rachadura: esta abertura do real, a nossa RACHA-DURA, essencialmente dura, de dureza e de duração insuperáveis. A referência de nossa Ver-gonha é esta rachadura e não nenhuma, qualquer que ela seja, linha-dura de moralismo inconseqüente, de aspiração totalitária, ainda que espelhada por fascismos mais ou menos duros, mais ou menos moles – até, às vezes, “simpáticos”, “alegres” ou “desejosos”. A nossa dura racha, o real do nosso furo, da nossa falta, em todos os sentidos da palavra, é disto que se trata. *
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Daí que, ao iniciar-se o Seminário, com o tema que agora temos, teimo em reafirmar a falta e colocar a sua essência de ausência como mastro, isto é, Falo. O tema deste ano, tal como foi divulgado nos cartazes, é “Psicanálise e Política”. Dizem muitos e exibem por aí, os órgãos da cultura de massa, com a cretinice que os caracteriza, que, por causa de certas abordagens deste tema, a psicanálise brasileira, bem tropical, carioca, está em crise. Dizem, também, alguns propagandistas da subsunção da psicanálise à política que há crise da psicanálise por toda parte, citando até a Escola Freudiana de Paris, sua dissolução e alguns dos sintomas subseqüentes. Posso cabidamente afiançar a vocês que não há nenhuma crise da psicanálise... a não ser no sentido mais radical do termo: a psicanálise não está nem nunca esteve em crise; ao contrário de nosso amigo Eduardo Portela, ela é a crise. Quem está em crise, graças a Deus e por causa mesmo da psicanálise, são alguns analistas, supostos, e junto com eles,
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algumas instituições ditas psicanalíticas... Mas, retornando, os cartazes dizem “Psicanálise e Política”, entretanto, o que aqui anunciei pelo fim do ano passado foi o tema: Psicanálise e Polética. A troca de fonema devemos, talvez, ao zelo de alguns preocupados com as acusações constantes que nos fazem de esotéricos. Não tem a menor importância, ou melhor, tem a maior importância, pois a psicanálise não deixa de se elaborar no esotérico, ou não deixa de fazer isto, ou seja, aquilo que não pode ser dito, não porque não seja permitido dizê-lo, mas porque dizê-lo é impossível. No título deste Seminário, esta pequena diferença fonêmica é irredutível. A psicanálise não tem qualquer espécie de relação com a política. Não há relação no sentido preciso e, mesmo, matemático do termo. O discurso psicanalítico não é um discurso político. A política, desde Aristóteles, tem seu fundamento no Saber e, daí, a sua necessária ancoragem numa ideologia. Ao passo que a psicanálise tem seu fundamento numa Ética – e não qualquer ética como a que se reduzem, também ideologicamente, moralismo ou amoralismo. Mas ela se fundamenta na ética talqualmente estabeleceu Freud, que tem como decorrência ações morais centradas no real. Lacan fez um longo Seminário em 1959/60 sobre a Ética da Psicanálise. Os moralismos e, correlativamente, as políticas são ortológicos, ou seja, determinam supostamente todos os enunciados, enquanto morais e imorais. E ensinam isto a partir propriamente de um logos pré-determinado, ao qual se submetem ortologicamente todos os enunciados; todos, segundo eles. Eles ensinam isto, transmitem, supõem poder transmitir isto, quer dizer, são (etimologicamente) ortopédicos. A ortopedia quer dizer a formação da criança moral, sadia, dentro destas posições políticas e ideológicas. São posições ortopédicas, naturalmente, nessa paixão pela transmissão, segundo seus princípios pederásticos enquanto vocação pedagógica (etimologicamente)... Mas, o que pode ser uma ética freudiana centrada no real? O trabalho de nosso Seminário deste ano será abordar algumas questões que, a partir desta ética freudiana, possamos tratar no que se refere àquilo que parece centrar, com o nome de política, algumas posturas discursivas do nosso tempo.
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Élisabeth Roudinesco, ex-membro da ex-Escola Freudiana de Paris, em seu livro Por uma política da psicanálise, p. 48, diz: “A ética não é uma moral militante encarregada de fazer passar o desejo pela rede de uma escola ou para o volante de uma teologia, ela é a política da psicanálise”. Eu quero dizer que a ética não é nem mesmo a política da psicanálise. Ela não é a manipulação e o controle da polis, o que me parece ser estar no âmago da política. Ela é a rememoração para a polis do seu fundamento ético, seu dela psicanálise. Podia ser também seu, da polis, pois é o fundamento que ela aponta como sendo o mesmo fundamento do ser falante: ela aponta insistentemente à polis seu fundamento ético. Ela faz, portanto, não uma política, mas uma Polética. Num livro sobre Psicanálise e política, que foi tema num certo congresso, supostamente baseado nos escritos de Lacan e arredores, p. 224, ed. franc., Armando Verdiglione, que é um leitor lacaniano de Milão, diz: “E em relação à matéria que há a fuga metonímica do discurso. Na linguagem, isso desliza: e aquilo leva à borda da matéria, às ‘fronteiras do sentido’ (Hjelmslev), a uma ruptura do limite gramatical. Só a borda da matéria é subversiva”. Eu não diria, aí, matéria, a qual não passa de ser o que diz Lacan nalgum lugar, na alíngua dele, la matière (l’âme à tiers). Ainda que fosse o nó ternário de Real, Simbólico e Imaginário, há um certo compromisso, talvez, neste texto de Verdiglione, com algum marxismo italiano tangencial, para substituir o que deveríamos botar aí no lugar de matéria pelo nome de ideal ou “mater-ia”. Querem criar o materialismo lacaniano, ou freudolacaniano, ou freudo-marxista, ou alguma coisa desta ordem. Entretanto, a psicanálise não é materialista no que toca ao fundamento da sua prática. Existe o materialismo psicanalítico, mas o que importa na psicanálise não é nenhum materialismo e sim, um paterialismo. É uma matéria do mesmo radical de madeira. Não é o pau, é madeira de dar em doido. E parecido com o Falo: não se trata de pau, trata-se de outra coisa, do paterialismo do pater. A função radicalmente subversiva não é indicada pela psicanálise senão no binômio LEI/DESEJO, que remete para a borda não da matéria, como diz Verdiglione, mas para a borda do Real, enquanto borda do furo, contorno de uma falta. Assim, a nossa Polética, não podendo ser mesmo política, pode, entretanto,
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ser um distanciamento, uma escansão, agindo com referência neste corte, nesta borda, e fundamentando-se numa ética que, ao mesmo tempo, aborda e transborda esta borda que é, afinal, significante. O significante do seu corte, o corte de sua interminável escansão, o significante e sua infinita ou infinitiva transação. Abordar esta borda é estar na transação significante. Em suma: uma Polética da Borda no máximo e, por mera proporção, uma política de bordel. Mas política do bordel apenas na medida em que seja nada mais do que um apelido para a nossa Polética. Quando repetimos, a diferença fonêmica é irredutível e, portanto, é preciso sustentar a diferença. Daí termos dado a esta primeira sessão o título tomado de um poema de Fernando Pessoa. Mas como vamos pedir que “não me sonhem nem me outrem”, justamente quando o que outrem mais faz é me sonhar e me outrar, é um movimento espontâneo? Talvez se possa pedir “não me sonhem” para não congelar minha diferença numa aparência, numa imagem que é produzida e requisitada pela demanda do sonhante. “Não me outrem”, não que eu possa exigir que não me tomem por um outro, o que, aliás, é o mais corriqueiro para o falante, mas não me tomem pelo Outro – o grande Outro –, fazendo de mim referência radical de uma totalidade que me encerra e coagula ao mesmo tempo que me congela também. Ora, o canalha é aquele que se toma pelo Outro, mas aquele que toma um outro pelo Outro é o protótipo daquele que chamamos um babaca. “Não me sonhem”, ou seja, não me aprisionem numa configuração imaginária, “nem me outrem”, ou seja, não sejam, por favor, tão babacas a ponto de me transformarem num canalha. Aliás, é o que pode dizer a própria psicanálise: “Não me sonhem nem me outrem”. Ninguém pode ser o Outro de um outro, pois, assim, cada um poderia ser eventualmente o Outro de um que é, também, o Outro – e, simplesmente, não há o Outro do Outro. *
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Se cada um é um outro para um outro, a alteridade pode vigorar entre um e outro. Daí o amor ser impossível: já que cada um é outro para o outro o amor é impossível, embora sempre seja recíproco. Recíproco não quer dizer
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que um ame o outro e o outro ame o um, pois isto é com freqüência – exceto, talvez, nalgum encontro, e mesmo dentro de um encontro – o que menos acontece. Recíproco quer dizer que um ama Outro e o outro também ama Outro. O Outro, é claro, seguramente, não é um. O amor, portanto, pode não ser também, ele próprio, o Outro e, por não ser o Outro, vige na mesma impossibilidade que há na relação sexual. A relação sexual é impossível, diz a psicanálise e o demonstra. E impossível inscrever-se a relação entre os sexos por enunciados. A relação sexual é impossível eqüivalendo a formular o que se enuncia como “o real é impossível” impossível de ser escrito, é claro... Ora, se Freud nos trouxe uma ética centrada no real, trata-se, então, de uma ética centrada no impossível, do impossível da relação sexual, do impossível de ser inscrito na estrutura. E isto nada tem a ver com as éticas centradas num Saber e que, por isso mesmo, são centradas na impotência e não na impossibilidade: impotência do saber em estabelecer a relação sexual. Centrada nesse impossível, na excentricidade, na borda deste furo real, enfim, é que vigora a Lei. A Lei que, como vimos, poderia ser enunciada com: “a relação sexual é impossível”, “o real é impossível de se inscrever na estrutura”. A Lei é Desejo. Não há oposição, há, segundo a psicanálise, o binômio: Lei/ Desejo. Quando Lacan repete, com Espinosa, que a essência do homem é o desejo, está também repetindo, com Freud, que a essência do homem é a Lei. O que há, então, de universal para o ser falante é o binômio Lei/Desejo. Este é o seu fundamento e o que estatui sua diferença. A Lei com a sua outra mesma face (unilátera) do desejo são as estruturas do simbólico, o qual é aquilo que vem em suplência do impossível real. Daí eu poder dizer que Lei/Desejo é o universal do falante e, talvez, seja só o que se possa colocar, para o homem, como universal. Aqui entramos pela questão da interdição do incesto, outra vez, na medida em que a única coisa que há de universal na questão do incesto é a Lei que lá vigora e não o anedotário a respeito do incesto. E mais, nem mesmo o incesto a não ser como Lei. Talvez, mesmo num incesto, a interdição só vigore na medida em que se possa comprová-la como Lei. Esta é uma questão que quero colocar
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como central do nosso trabalho, este ano. Este universal, a Lei, é pura diferença, remissão portanto ao impossível talqualmente em “a relação sexual é impossível”. Esta Lei é a diferença que, em seu agir, não gera senão diferença, exceto que toda e qualquer diferença se universaliza na Lei, em sua remissão à Lei como pura diferença – mas são diferenças, estritamente diferenças. Não sabemos o que seja a Lei. Talvez não possamos saber. Mas sabemos que ela gera diferença indefectivelmente. Por isso temos que supor que ela é a nossa diferença, em todos os sentidos. A Lei é a nossa diferença. A Lei, repito, Desejo. Estamos falando da Lei com L maiúsculo. Se supus a possibilidade do universal por remissão a ela, ela pode ser universal e eu posso dizer: “A Lei”. A Lei não são as leis, os regulamentos, exarados no seio da cultura e designadores dos conjuntos, ou melhor, de determinados grupos de falantes. A Lei a que estamos querendo nos referir é essa borda do real quando se pode dizer que a relação sexual é impossível, que o Real é o impossível, o impossível de ser inscrito. O referente da Lei enquanto tal é o furo do real enquanto impossível. Só podemos sacar o referente emergente no ato de formulação da Lei, porque o real é impossível de se abordar. A borda já é este ato significante de formulação da Lei. É o instante da enunciação que cai imediatamente em enunciado. Neste ato aí, de travessia, é que se poderia colocar um referente para a Lei. Todas as produções do ser falante vêm apenas em suplência ao impossível exarado na Lei. O falante produz tudo isso que produz como mera suplência a ser impossível para ele estabelecer a relação sexual. Toda lei, portanto, é meramente discursiva, toda lei no sentido de “as leis”, os regulamentos escritos nos códigos – códigos que são línguas. Dizer que a relação sexual é impossível é afirmar que dois sujeitos, dois falesseres, ainda que sejam um homem e uma mulher, não podem fazer UM, isto é: H + H’ < 1. Seja qual for o sexo destes falantes eles não são UM. Não havendo a relação, todo falante é solitário por este lado, mas, por outro, ser solitário, não poder estabelecer relação, não significa também ser UM porque lhe falta alguma coisa. Tanto é que ele tem que somar com outro e, nem assim, consegue dar UM. Mesmo para o falante isolado a unidade não é possível, em função do desejo. O sujeito não é em nada, de modo algum, igual a UM. Pelo
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contrário, ele é essa escansão que existe entre um e outro significante – mera escansão. Assim, a Lei pode ser enunciada talvez como: “A unidade do falesser é impossível, é impossível fazer UM”. Pode-se fazer mais um, isto está na reprodução sexuada do falante. Mesmo que um homem se junte com uma mulher em vocação reprodutiva, não só eles não somam UM, como não produzem Um, produzem apenas, e por acaso, mais UM. A Lei também pode ser enunciada como: “Há o desejo do Outro”. Por outro lado, a solidão, a plena solidão, é impossível. É um solitário que tenta ser solidário e cuja solidão é impossível. Solidariamente ele não soma UM e solitariamente ele não consegue ficar em solidão. E tão impossível a solidão quanto a união, ou seja: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não é porque ninguém queira. E porque é assim. Não é possível senão a transação. É possível, mas nunca dá UM. Sigamos, então, estes caminhos da Lei enquanto caminhos do desejo e continuemos perguntando por esse universal. Se a Lei se estatui por sua referência ao impossível real, ela pode ser enunciada como relação impossível, sexual ou qualquer outra, para o falante, inclusive a relação entre significante e significado. Então, a Lei é a diferença, a diferença na sua origem, em cada momento que ela brota. E é dela que se efetua qualquer diferenciação. Daí podermos enunciar que qualquer diferença é aceitável pela Lei. Qualquer dife-rença eqüivale a qualquer outra. Daí, talvez, que haja um certo lema de verdade: “Todos os homens são iguais perante a Lei”. Só que têm uns que são “muito mais iguais do que outros”, como dizia George Orwell... Entretanto, essa igualdade que é uma equivalência enquanto diferença diante da Lei é uma equivalência entre qualquer uma e qualquer outra diferença, mas não todas... Deixemos para mais adiante a questão do que terá a Lei a ver com o feminino. Não posso dizer que a equivalência entre as diferenças, entre qualquer diferença e qualquer outra diferença, diante da Lei, seja para todas estas diferenças. Não posso dizer isto logicamente, e daí decorre uma postura de universalização da Lei que me dá fundamento ético. Não posso falar de todas as diferenças, pois, se pudesse, teria a totalidade do Outro fechada. Se eu pensar por esta via, que seria uma via do feminino, nem
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poderia dizer nada a respeito do universal da Lei. Perguntando sobre o universal da Lei, enquanto Lei que vai exarar alguma coisa a respeito da diferença, repetindo aí o impossível, é que posso conceber que todos os seres falantes sejam universalizados por esta diferença. Se isto fosse verdade, se todos os seres falantes pudessem ser universalizados por esta diferença, alguma diferença não seria igual diante da Lei. Para a Lei funcionar sempre, isto é, para ser universal para todas as diferenças serem iguais diante dela, ela precisa excluir aquilo que a eliminaria ao mesmo tempo que aboliria a diferença que estatui a Lei. É um paradoxo, pois ao mesmo tempo que não posso me referir a toda diferença – mesmo porque não há tempo para pintar toda diferença, tempo lógico –, ainda posso dizer que qualquer diferença é equivalente, diante da Lei. Em relação a outra diferença, qualquer uma tem o mesmo valor de qualquer outra, mas não todas. Não só porque não têm como comparecer, como é preciso que a Lei faça exclusão mesmo de alguma diferença para que ela subsista como Lei. As diferenças se manifestam, se enunciam, mas a diferença que se enunciar abolindo a Lei, abolirá a diferença, portanto, abolirá a si mesma e abolirá todas. Esta diferença é excluída da Lei, quer dizer, ela tem o corpo ausente no real. Ela participa de tal modo do real que não pode ser proferida. Não só não pode porque abole a Lei, como ela é proibida de ser proferida, ainda que tangencialmente. Como poderia a Lei equalizar, eqüivaler todas as diferenças? Não é possível que ela pudesse equalizar a diferença que diz que ela se abole, porque no ato de dizer, esta diferença também se aboliria e estaria abolida a Lei. Então, esta diferença aí participa de tal modo do real que ela é impossível, realmente, de ser dita. Ela é proibida de ser proferida. *
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Existe uma diferença que participa, talvez, de tal modo da diferença, que se embute de tal modo no real, que ela não pode ser nem metaforizada, às vezes, em primeiro grau. Se um diferente pratica sobre outro diferente – diferente com aquelas diferenças que a Lei produziu pela sua ação – o assassínio, ele abole a Lei. Tenho aqui, por exemplo, uma série de diferenças, todas iguais perante a Lei,
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e uma delas pratica o assassínio de pelo menos uma diferença. Este ato corresponde a escapar da Lei, e aboli-la, porque se todas as diferenças se eqüivalerem diante da Lei, todas são aceitáveis. É possível estabelecer uma convivência conivente entre as diferenças, mas uma diferença que assassina outra, acabou de dizer que as diferenças não podem ser justificadas perante a Lei. Ela aboliu uma diferença e, com isto, com este ato, aboliu a Lei. Não pode nem ser dita a diferença que aboliu as outras porque ela não consegue se dizer a não ser aniquilando a Lei que dá segurança a ela. Ela é excluída, foracluída necessariamente do campo da Lei. Ela é excluída da fala porque se ela se diz, no que se diz, no que se apresenta, ela exclui a diferença, nem que seja sobre uma única diferença. Portanto, ela aboliu a Lei e, no que ela aboliu a Lei, se aboliu. Então, ela não consegue nem se dizer. Ela é da ordem do foracluído, do real. Não é tratável pela Lei. E indizível pela palavra. Toda metáfora que pre-tenda tangenciá-la é abominável de um certo modo, é pecaminosa. Não pensem vocês que não existe o pecado, o pecado existe. Se um diferente pratica sobre outro diferente o assassínio, ele abole a Lei. Se isto é verdadeiro, posso sugerir que o primeiro artigo da Lei, a decorrência deste raciocínio aí, é a exclusão do assassínio, a repressão, portanto, do assassino, para que a Lei possa vigorar. O assassínio está excluído da Lei, ele não pode ser proferido jamais. Quando o assassínio é praticado, ele cai numa ordem de Real tal que é impossível dar conta dele, ele se acorda fora da Lei. O assassino, o sujeito suposto autor do assassínio, o máximo que pode ser é reprimido – antes, é claro! Depois, não tem mais jeito. Como se pode reprimir, dominar, um assassino? E muito menos o assassino que escapou ao ato de assassinato? Talvez há que comparecer uma mestria do assassino que há em nós, o domínio deste assassino para que ele não venha abolir a Lei, e para que a Lei possa vigorar. A Lei só pode decretar o domínio do assassino. Nada mais! Não, de modo algum, o seu extermínio, porque o extermínio do assassino, ainda que hipocritamente legal, é um assassínio. A Lei entraria em contradição imediatamente, isto é, eliminaria a si mesma. Ela praticaria o mesmo ato do assassino, ainda que fingidamente assentada em seu valor de Lei. Estou dizendo que a pena de morte é abominável, uma lei indecente. Ao invés de ser um
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enunciado que se refere à Lei, ela se refere à mesma barbárie que cai no real. Então, não se pode dizer nada. A pena de morte não é legal, em lugar nenhum, mesmo que ela seja comandada pela igreja, como o foi tantas vezes. Acho que há um primeiro artigo da Lei viável por esta seqüência: uma Polética que tenha a ver com a Psicanálise. Ela pode se referir não só no estrito campo do discurso psicanalítico enquanto tal, em suas práticas, nas suas elaborações teóricas, porque aí temos necessariamente referência à Lei, mas nas suas transações com o chamado “mundo”, com o “mundo da política”. E esse princípio é intocável: a psicanálise não pode jamais compactuar com qualquer lei, legislação, ou qualquer atitude política, por mais liberal, de “abertura”, que inclua a barbárie, o assassínio... Freud jamais jantaria, como diz um amigo meu, com Hitler. Embora Hitler tenha querido jantar o Freud. *
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O que tem a ver a Lei com o feminino já que se tem aí o não-todo? Por um lado, a Lei vigora para todo falante, para todo homem – o homem das fórmulas quânticas: todo homem está dentro da Lei –, o seu primeiro artigo, que é conseqüência lógica da estrutura, só se formula no masculino para poder emprestar universalidade à Lei. Se digo, como está escrito nas fórmulas quânticas, que todo x é função fálica, é o mesmo que dizer: todo falante é função da Lei. Se houvesse outra Lei que não esta, ela entraria imediatamente em contradição com ela. A única coisa que extrapola o todo desta Lei é a exceção. Exceção, aliás, que funda a regra. Se houvesse outra Lei, o Outro que aí comparece entraria em contradição com a Lei. Portanto, não há outra lei. Há Lei. Ainda que se possa pensar neste Outro como Outro barrado, não há Outro do Outro, ainda que este seja barrado por esta contradição interna, por este paradoxo. Aí, talvez, seja o momento em que a Lei pula para o feminino e se torna paradoxal. Uma vez que é impossível inscrever o universal de outra Lei, não se pode senão desmoralizar a Lei... mas, dentro da Lei. Posso simplesmente alterar
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os enunciados legais, contestá-los, sem com isto, cair fora do regime da Lei. Isto é importante na diferença que tentei estabelecer entre as perversões, e o que chamei de perversão-propriamente-dita, a perversidade. O feminino não é o angélico, de modo algum. O que a estrutura, a lógica freudiana sobre a diferença dos sexos, vem colocar é o homem enquanto universal, de que todas as mulheres fazem parte. As mulheres são homens diferentes, porque estão divididas entre a função fálica e o que falta no Outro: S (A / ). Portanto, elas estão absolutamente dentro da Lei, mas não-todas. Uma mulher está debaixo da Lei, mas não-toda, ela desliza facilmente. As feministas ficaram chateadíssimas quando Freud disse que as mulheres são menos apanháveis pelos sistemas morais do que os homens. Elas deslizam em relação à Lei, o que não significa que não estejam debaixo da Lei, pois não são anjos. *
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Estamos num momento em que as políticas se revezam em fascistóides evidentes, em direitismos declarados ou esquerdismos de liberação que se supõem libertários de certos desejantes, ou numa dicotomização que acaba por cair, a meu ver, no mesmo lugar. Por um lado, temos o binômio Lei/Desejo que não é separável. O que vemos, nas mais diversas atitudes ditas políticas, dentro e fora das instituições psicanalíticas, e no mundo em geral, é a constante bipartição como se se pudesse separar ora Lei ora Desejo. É algo parecido com o que coloquei a respeito do alcoolismo: um grande pileque – de que fala Chico Buarque – que ficasse pulando da sobriedade da Lei ao porre do Desejo. Da sobriedade, da carranca do Pai Bedel à baderna do Pai Herói. Tem-se de conseguir articular uma referência à Lei/Desejo, como uma única coisa, uma única face. Mesmo do lado dos chamados adversários, destas esquerdas tipo partido comunista e outras esquerdas militantes, vamos encontrar esta bipartição. Mesmo em certas dicas, certas saídas, externadas por Lacan, como, por exemplo, o anti-edipismo de Deleuze, estão nesta partição fingindo que não. Não há nada no livro de Deleuze que não tenha sido inventado por Jacques Lacan ou por
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Freud, só que há muita coisa que foi inventada por Jacques Lacan e por Freud e que lá não está. Tudo que eles dizem a respeito desse desejismo, desejismo militante, como diz o Coronel Odorico Paraguassu, de Sucupira, é simplesmente escamoteamento do desejo enquanto Lei. Por outro lado, há aqueles que pensam abolir o desejo, entrar tudo numa certa lei que não seria o desejo. Então, nosso mastro de regulação vai ter que ser esse binômio Lei/Desejo. Temos que escutar nesses movimentos o mínimo a que se reduzem para fundamentar um pouco esta Polética. Seria bom tentarmos escutar nesses movimentos ditos libertários o que têm de fascistizantes. Certamente têm. O movimento feminista, por exemplo, nas militâncias que vemos por aí, fica chateadíssimo com Fellini quando ele diz isto claramente. Confundem a liberdade das mulheres, que só pode se referir à Lei/Desejo, com “sapatice”. É o movimento sapatão, isto se demonstra com maior facilidade, quando elas conseguem ser mais machonas do que os machos... Não estou xingando, podem trazer esta diferença que a gente descobre isto lá dentro com a maior facilidade... Talvez possamos colocar como núcleo deste trabalho a consideração da cultura enquanto tal. Não é forjar nenhum culturalismo que vai explicar, mediante as relações culturais, o comparecimento deste ou daquele significante de base, ainda que sintomaticamente explicitado. Não é isto que está interessando, embora seja importante. Já falei, por exemplo, que seria importante para a cultura brasileira conseguir destacar seus sintomas, mas, neste caso aqui, não se trata disto. O que me interessa é perguntar: que diabo é isso, a cultura? Está lá nas antropologias, etc., que o homem é ser cultural, o universo do homem é a cultura. Pergunto eu: será? Quer me parecer que não. O universal do homem é o simbólico e esta referência à Lei está esteada na sua referência ao real. É preciso questionar que o homem seja necessariamente um ser cultural e fazer esta crítica à cultura, sempre centrada no binômio Lei/Desejo. E, nesta crítica, talvez denunciarmos, dentro da cultura, os fascismos os menos suspeitos que devem aí estar. A psicanálise enquanto Polética talvez pudesse ser definida como um anti-fascismo. Ela tem a inconveniência de conceber, de pôr em evidência, mesmo dentro de turmas ditas, às vezes, pertencentes a seu campo, estas teorias
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e idéias ditas libertárias que são, na verdade, do mais arraigado fascismo. Daí, sempre se preferir que ela se cale ou que troque de discurso, fingindo que continua a mesma. Queremos, também, fazer a consideração da psicanálise com sua Polética como possível dissolução da cultura. E se conseguirmos tudo isto, talvez possamos chegar naquilo que eu chamaria, e que já indiquei ano passado como DIFEROCRACIA. Até mesmo a democracia pode ser a ditadura da maioria. Não que queiramos criar uma diferocracia como ideologia, o que seria uma estupidez igual, mas sim, esta Polética da psicanálise com o pensamento de uma diferocracia, que é o pensamento da justiça sobre as diferenças, mas não todas: é proibido matar. Aquelas moças lá de Minas Gerais escreveram a frase errada: “Quem ama não mata”. Outro dia eu disse que talvez pudesse ser: “Quem pensa não mata” – Mas, radicalmente é: “Quem fala não mata”. Quem ama tem uma grande vocação para matar. Aí é que escorrega o feminino. Escorregar pela ladeira do assassínio não é assassinar. Quando digo “uma” mulher, estou me referindo às fórmulas quânticas da sexuação. Lacan já disse: “É-se homem quando se deseja, é-se mulher quando se ama”, ou seja, quando se aspira a um certo objeto. Por isto mesmo que homem não chora. As pessoas acham um absurdo, vejam que machões!, dizem que homens não choram... e é absolutamente verdadeiro, homem não chora. Não tem machismo nisto, só mulheres choram. Alguém já viu um homem enquanto tal chorando? Ninguém chora por desejo, nem chora de dor, você berra, esperneia, grita, blasfema, mas você não chora. Você só chora de amor. E no feminino que se chora. Só que os idiotas pensam que quem tem pênis não chora, o que é muito diferente. Então, a indicação desta diferocracia como um modo de operação desta política da psicanálise não há, porque é uma Polética, ou seja, como um modo de abordagem do bordel. *
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O assassínio é possível porque sua diferença não é impossível. Ela, simplesmente, não pode ser aceita pela Lei como igual às outras, se não a Lei
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se abole. Esta diferença não é o real. Ela tem a ver com o real como qualquer diferença. Ela é uma diferença como qualquer outra – enquanto diferença posso equivalê-la a qualquer outra –, mas a Lei não pode igualá-la às demais diferenças porque ela abole a Lei. Este é o verdadeiro incesto, que é impossível de ser praticado sem abolir a Lei. O incesto é o impossível, por isto é que ele é proibido, já falei zil vezes. Não é que seja impossível você chegar ao ato do incesto, ao assassínio, mas, uma vez que age, que o ato se dá, imediatamente não posso mais nem tratá-lo no regime da proibição, porque ele escapa e cai no real. O incesto, cometido, cai no real. Por exemplo, se argumentarem que, na antropologia, o antropofagismo não é negação de uma diferença mas uma absorção da diferença para que o sujeito possa continuar vivendo dentro daquela cultura, poderíamos dizer que é assim como a tortura: eu torturo você e absorvo as diferenças que você deixou de me dar. Se a antropofagia é decorrência de um assassínio, o assassínio veio antes, é barbárie. Depois dessas leituras de Levi-Strauss, começamos a pensar que os índios são tão inteligentes, tão civilizados... Talvez, até, o termo possa ser “civilizado”, mas acho que nós somos é tão bárbaros quanto eles. Toda regressão é suspeita. Este culto da natureza, além de ser uma grande idiotice, é uma regressão suspeita. Todo mundo agora está no cultivo da natureza, alimentação natural, habitat natural. Que natureza? NÃO HÁ NENHUM NATURAL PARA O FALANTE. Aqui no Brasil é uma festa, basta aparecer um partido ecologista, um “Fürher”, que já tá o pessoal todo pronto... Se começo a dar desculpas culturais tipo sociológicas, tipo: isto é uma “absorção da diferença”... absorção da diferença comendo a carne? Por que não come a palavra do outro? Por que não deixa o outro falar e come a palavra dele, que é a diferença? A cultura só come pessoas, e no pior dos sentidos. Não é o caso da antropofagia de Oswald, que é uma antropofagia da palavra. Será que algum assassínio é diferente, é diferente do ato de querer calar a diferença do outro? Se argumentarem que não se cala definitivamente a diferença, que ela comparece depois em outro lugar... entretanto, no ato do assassino, a intenção não é de calar definitivamente a diferença do outro?
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Vejam Abel e Caim, na Bíblia... se dissermos que a diferença se restaura, isto eqüivale a supor um ser falante idêntico ao outro. Não se pode supor isto porque a identidade é que porta a diferença. Vejamos aquela história que dizem ai na “moralzinha” de executivos das grandes empresas: “Ninguém é insubstituível”. Absolutamente falso, pois ninguém é substituível, ninguém! Lá, ninguém é insubstituível, porque não é ninguém mesmo, é simplesmente uma peça da maquinaria. Se fosse alguém, era insubstituível. Talvez estejamos, agora, diante das condições estruturais e lógicas para considerarmos que nós somos os criadores do fascismo. Um fascista, um nazista pode botar milhares de judeus no fogo, mas, do outro lado, não se pode nem mesmo condenar à morte um único nazista, se não é festa, importa-se Eichman e todo mundo começa a brincar, estamos todos satisfeitos: “Vamos ver como era o nazismo, de novo!”. Senão está arriscado a estragar a brincadeira... Não é à toa que “não matarás” é o primeiro mandamento. Sem este, nenhum outro é possível, nenhum outro vigora. Ele não é a garantia da legislação, porque ele mesmo é garantido pela estrutura, mas ele é primeiro como comparecência, primeiro comparecimento necessário, primeiro enunciado necessário. E se “a ninguém é dado ignorar a lei”, isto é uma legislação cultural, mas que está garantindo alguma coisa. Ou seja, o sujeito transgride, há sanções e ele não pode se justificar dizendo que não conhecia. No que diz respeito à Lei como tal, a ignorância dela não justifica, porque não preciso nem aprender o enunciado “não matarás” para não ser estúpido a ponto de não ver que, ao matar, assassinei a minha possibilidade de relação intersubjetiva. Basta ser portador de inconsciente para saber. Ou seja, a Lei não se fundamenta num saber. A ninguém é dado justificar-se dizendo que ignorava a Lei porque não se trata de nenhum saber. Mas o mesmo código que diz isto, estabelece essa igno-rância em cima de uma lei que só funciona a partir do saber... Está aí a questão. *
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Gente dita lacaniana, que escreve textos por aí, confunde Lei com cultura, confunde a Lei com as legislações em vigor. Como o perverso é um cara que parece ir contra a lei, você faz alguma coisa contra o código tal, você é um perverso! O perverso, no sentido que dou, o da perversidade, é aquele que justamente assassina, que quer obnubilar a lei. Isto existe, é estrutural. A estrutura da perversidade é diferente da perversão, a qual, segundo Freud e Lacan, é, textualmente: a essência do homem. É a essência do homem enquanto père-version, que está na ordem da Lei, ou seja: a diferença que cada um porta, que tem o direito paterno de apresentá-la e reforçá-la diante de todos. Mas a tal perversão, que chamo de perversidade, esta é abolição do outro, é não considerar a diferença que o outro porta. Perverso quer dizer père-version no sentido das diversões paternas. O pensamento fascistizante sempre escolhe algumas perversões para serem o bode expiatório da sua perversidade. Quer dizer, cria um moralismo perversista abolindo diversões que não são aquelas coincidentes com seus interesses. Ele tapeia a todos, extrapola da Lei e diz que é o outro porque meteu na cabeça de todos que aquilo é que é perversão.
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BOTEM UM TATU Neste ano do deficiente físico... não é sem desdenhar a oportunidade oferecida pela sorte de se rememorar um pouco, e na borda do Real, a experiência dessa deficiência que, a rigor, é de nós todos. Por isso é que estou trazendo aqui o meu pé quebrado, sem interromper o Seminário que, aliás, não difere das outras vezes, senão, para vocês, por um pouco de ênfase imaginária. Todos estão vendo que manco... que, ao menos, esse cinema seja de lembrar que o sujeito é claudicante, aliás, como Édipo, que tem mesmo o nome de “pé troncho” ou “pé furado”. O pé que eu sempre trouxe era quebrado, uma vez que era incompleto, levando sua falta... porque, aqui, eu por acaso verso, alguma coisa, embora com rima, por vezes, entretanto, sem jamais mesmar o metro. O pé quebrado, encanado, certamente que o meu pensamento estará um tanto amarrado... eu costumo pensar com as pernas, andando. Por isso digo sempre, e algumas pessoas ao meu redor não querem aceitar, que não sou de modo algum um “intelectual”, porque, segundo minha observação, intelectual pensa com a bunda, sentado. Eu penso andando. Uma vez, tentei ser intelectual, por questões universitárias, resultou numa hemorróida... não dá certo. “O meu maior compromisso intelectual é com a cultura”, tem até psicanalista que diz isso... Teve um na TV que falou: “Meu compromisso primeiro é com a cultura, depois com a psicanálise”... eu, não entendi nada. A cultura – cu-leitura – tem algo de anal, claro!, no comando dela. E, dentro dela, só se
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pensa com fixação nalgum acento certo... daí que me pareceu que intelectual pensa com a bunda, o que não é a mesma coisa dizer que ele é um “bundão’ ... Vamos com calma! Pensar com as pernas é diferente. É preciso caminhar pela discussão, pelo discurso, capengar num discurso, ir de tropeção no seu impossível, ser deslocado para um outro, talvez, e assim por diante. A claudicância é congruente ao sujeito, que não deixa de estar requerido em cada discurso, pelo menos na disjunção que se apresenta em todos os discursos. Sabemos que o falante, o homem, é chamado de bípede. Lacan chamou os discursos, segundo suas formulações matêmicas, de quadrípodes. Quadrípodes e não quadrúpedes. Os quadrúpedes têm quatro patas, mesmo quando a gente só vê duas. Os falantes têm dois pés, e, se os discursos têm quatro pés, quadrípodes, é porque são dois do mesmo que se supõe agenciar os discursos, e dois de outrem, que o discurso necessariamente inclui. Daí o desencontro e a claudicação do discurso. *
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Gostaria de tomar hoje, um pouco, o Totem und Tabu de Freud. O título da nossa sessão de hoje é Botem um Tatu... uma troca de fonemas que pode ser interessante. Totem e Tabu é, segundo alguns, o famoso “romance antropológico” de Freud, aonde ele inventa um mito, o mito da origem, da origem da lei, no momento onde emerge a cultura, digamos assim, e o surgimento, portanto, do chamado Complexo de Édipo. Não é tão romance, nem tão mito. Este texto é, talvez, dos mais importantes na medida em que arma uma estrutura da qual ele vai tirar esse embasamento lógico da produção, da razão, edipiana na sua relação com o complexo de castração, como se fosse uma verdadeira estória da humanidade. Não se trata, aqui, de trabalhar o texto. Pedi a Clare Isabella Paine e Mary Kleinman que apresentassem suas anotações e questões. Tomaremos o
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final, pois o texto completo é longo, pega toda a antropologia disponível no seu tempo, discute uma série de coisas e vai cair necessariamente numa questão que era urgente na antropologia da época: o totemismo. Tudo isso é anterior a Lévi-Strauss. É, no entanto, aqui mesmo que Lévi-Strauss vai entender a questão da interdição do incesto. Depois, atendendo à fonologia de Jakobson, ele vai estruturar a chamada universalidade da interdição do incesto sobre os trabalhos de campo que tinha disponíveis e, daí, tirar toda aquela estrutura de parentesco que ele nos apresenta em Estruturas Elementares do Parentesco. *
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[Observações no decorrer da apresentação do texto de Freud:] ... O homem, em suma, o falante. Freud dá uma colher de chá aos historiadores, dizendo que isto pode ter sido uma carga cristalizada. Mas, no final, ele vai tentar mostrar isso como estrutura, quando diz que não se trata desse fato, que o que se descobre no psiquismo do neurótico é o que está atrás desse senso de culpa, são sempre realidades psíquicas. Não são realidades factuais, quer dizer, quanto mais hostil o impulso contra o pai, maior será o sentimento de culpa e maior será a reação moral, criando esse totemismo e esse tabu. Ele insiste por diversas vezes e termina o texto dizendo que o que importa é o ato. “No começo é o Ato”, diz ele citando Goethe. ... A criança, o neurótico e o primitivo, não são tão salvos por ele como quer a antropologia de Lévi-Strauss. Freud mostra que é nessa região aí que esse totemismo está em efervescência. ...
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Ele faz questão de uma “realidade concreta”. Um ato que a criança teria praticado, que só não foi efetivo por incompetência ou por impotência, mas que ela praticou mesmo. E na história da humanidade, miticamente pelo menos, e para dar uma resposta aos antropólogos e aos historiadores, isso teria acontecido mesmo. Por aí é que vamos tentar pensar a questão da Lei de que falávamos da vez anterior. *
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Tentamos situar a Lei como um fenômeno incutido na estrutura e chegamos a dizer que poderíamos destacar pela lógica de funcionamento da Lei, enquanto estrutural, um primeiro artigo, o “não matarás”, que seria a abolição da própria Lei. Então, se o primeiro artigo da Lei é “não matar”, como pode justamente a Lei ser fundada no assassínio do pai? É claro que Freud deu todas as explicações, sentimentos ambivalentes, etc., mas, porque houve um assassínio, vem depois a proibição do assassínio, e o controle fraterno contra o assassínio, com a Lei dizendo: “É proibido matar”. A pergunta que me coloco, então, é: qual é o pai que se mata quando se perpetra tal “assassínio”? Minha tentativa será de remitificar, mas, antes, tentar ver o que se pode tirar desse ato do assassínio do pai. Já coloquei em Seminários anteriores, sobretudo no do semestre passado, que na lógica de exceção em que se coloca esse pai como aquele que diz “não” à função fálica – lembrando das fórmulas quânticas onde se coloca, também, que existe pelo menos um que não é função fálica para que todo o seja – esta frase aquele que diz não à função fálica seria exatamente a que indica a exceção que funda a regra. Esse pai que cai no real, que está foracluído da regra, só pode ser pensado como um pai animal, como um bicho. Fazendo de conta que a gente não está interessado, que não conhece nada de Lévi-Strauss, eu me pergunto: o totemismo não será a teoria primitiva da evolução das espécies, não será um
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darwinismo primitivo? Através do totemismo estar-se-ia, talvez, exprimindo que o homem, como diz Darwin, descende dos macacos, ou de qualquer outro animal. Fazendo um parêntese, gostaria de lembrar que lá nos Estados Unidos da América existe uma antiga briga entre os evolucionistas e os criacionistas, as teorias da origem do homem, antropologia física, etc. Há até um juiz lá, agora, que proibiu, num certo Estado, que os professores ensinassem que os homens descendem dos macacos. Provavelmente ele está querendo ensinar que os homens descendem dos juizes, o que não é muito diferente. Mas, voltando, quero insistir em que, em toda essa estrutura complexa, e sobretudo nessa ambivalência emocional que Freud cita a todo momento, o que está por ser distinguido é o que Lacan destaca muito bem ao tratar da questão paterna, da metáfora paterna e do Nome do Pai. São os registros onde são situáveis as posições paternas. Freud está dizendo tudo isto, mas fica incutido numa situação única, ou seja, o pai enquanto foracluído, cai no real, e tem a mesma condição de um animal. Nos seus comportamentos fixados, enquanto isto que reconhecemos em outras instâncias, em outras articulações, como Pai Ideal, ele tem essa conformação imaginária com uma certa gestalt comportamental, como qualquer animal. Uma coisa é o animal enquanto real dado, outra é o seu comportamento, sua etologia, e, por fim, o assassínio desse pai, animal, criando um Pai Simbólico. Aí já se mudou de registro. Talvez esse assassínio, de que fala Freud, devesse estar entre aspas. Ele é uma exceção do ponto de vista lógico. A desculpa que Freud dá para a validade do assassínio é que ele não é individual, que ele é comum a todos. Mas está ali na fórmula quântica que “para que todos sejam função fálica é preciso que haja pelo menos um que diga não a essa função”. Ou, que não seja. Então, na verdade, o que está sendo racionalizado nessa frase é que a função universal para o falante, a função fálica, fundada neste cometimento, neste ato, é que é comum a todos. Ao mesmo tempo que isto justifica esse raciocínio, de certo modo, esconde o ato enquanto tal, na medida em que ele só foi válido porque praticado por todos. Então, cada um o pratica individualmente no que o pratica a coletividade. Ou seja, não é mais desculpa
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para o assassínio coletivo o que prega muita situação governamental. Por exemplo: condenar um sujeito à morte é um assassínio coletivo; ou não? Não se trata disso. Trata-se de mitificar esse ato no que ele está apontando a situação de universalidade que ele produz. Vemos aí um mito da fundação da cultura, e se estiverem certos os raciocínios que fizemos semestre passado, o que está sendo dito, de certo modo, é que a cultura, enquanto tal, assenta-se nesse ato que faz produzir imediatamente dois momentos de tabu: a proibição do assassínio e a proibição do incesto. Meu interesse maior é trabalhar isso. Esse mito composto por Freud, mesmo mostrando o funcionamento da estrutura, por mais estrutural que seja, por mais limpo de entonações conteudísticas, está fundamentado na emergência da cultura e de dentro da estrutura de cultura, ou seja, de dentro daquelas instituições, remetendo àquelas instituições que são a fundação da cultura. Dando um salto, estaríamos aí, então, na questão da passagem de Natureza a Cultura, digamos assim, que é como põe Lévi-Strauss. Que momento mítico é esse? Ou melhor: que referência histórica seria a desse momento mítico? Isto é o que importa. Poderíamos, ao menos como referência, dizer que é alguma coisa que se passa no paleolítico. Uma espécie de macaco, hominídeo, etc., que está nessa situação e, pelo menos, segundo alguns antropólogos, por exemplo, e pelos achados da antropologia, é o simbólico que teria emergido no final do paleolítico. E é lá pelo mesolítico que vai ser fundada a cultura, talvez... Quero insistir em que não se pode confundir – o que é freqüente em muitos textos – simbólico e cultura. A emergência do simbólico é concomitante, necessariamente, com a emergência da cultura? Esta é a pergunta que quero colocar a partir dos achados da psicanálise. Por exemplo, para construir a antropologia estrutural que construiu, Lévi-Strauss não precisou, de modo algum, fazer referência ao assassínio. Sua referência é à proibição do incesto, a qual seria o fundamento da cultura, na antropologia contemporânea. Levi-Strauss diz, em Estruturas Elementares do Parentesco, p. 35, (ed. franc.): “.. a proibição do incesto exprime a passagem do fato natural”, que não sei o que
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seja, “da consangüinidade para o fato cultural da aliança”. Se vocês têm alguma prática dos textos de Levi-Strauss vão se lembrar que ele mostra a relação que existe entre natureza da consangüinidade e os processos de reprodução, e, depois, a organização da cultura sobre o fenômeno da aliança, que se basearia, de certo modo como passe, como passagem, no fato cultural da consangüinidade. Isso passa quinhentas vezes pela nossa leitura e não nos perguntamos: o que a consangüinidade tem de natural para Lévi-Strauss poder dizer isso? Me parece uma mosca na sopa do texto, que a gente tem engolido com facilidade... Aliança, ordem de parentesco, nomeada e articulada, que funda a cultura... e antes havia a pura consangüinidade “natural”. A única maneira de a gente perguntar por uma consangüinidade natural seria perguntar aos bois, cavalos, cachorros, para ver se eles sabem o que é isso. Em estado de natureza a consangüinidade apareceria na fala deles. No entanto, essa pergunta pode ser feita quinhentas mil vezes que não será respondida. Ou seja: quando penso o dito fato da consangüinidade não foi preciso uma aplicação do simbólico, de maneira que posso desarticular a reprodução, estudá-la, observá-la em laboratório, produzir isolamento, de modo a poder traçar um quadro de reproduções? De novo, então: o que é que há de “natural”? O que é que há de “natural” na consangüinidade? Quando um sujeito falante diz que observa fenômenos de consangüinidade em determinado animal ou nele mesmo, está articulando simbolicamente um processo de reprodução e, para isso, teve que ter todo um aparelho de divisão desses acontecimentos, de modo a saber que cruzou este com aquele e deu aqueloutro... Isto porque, no esquema de reprodução de onde ele teria a idéia de consangüinidade, numa espécie ou num grupo qualquer, entre os cães, por exemplo, é a mistura de cachorro com cachorro, e o máximo que ele poderá observar é que só dá filhote se for macho com fêmea. É o máximo que nós podemos observar, se fizermos esse aparelho. E preciso certo artifício lógico. O cachorro não observa nada. Ele simplesmente tem sua maquininha etológica, seu imaginário de funcionamento que dá como resultado, como efeito absolutamente racional, a reprodução. Portanto, quando falo consangüinidade já estou no simbólico.
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Vamos pensar um pouco, ainda, nos animais que estão sendo observados. Uma coisa que está escrita nas cavernas de Lascaux, Altamira (na pré-história), etc., é uma observação acuradíssima dos animais, os quais certamente eram os pais deles. Pelo visto, no texto totêmico, tratava-se da família, quer dizer, da ascendência paterna dos nomes pré-históricos, que podemos, sem nenhum procedimento, nenhuma regra onde entre interdição do incesto, observar entre animais, mesmo cruzando filho com mãe, etc. Posso fazer tracinhos ou marquinhas sobre animais e dizer que este aqui foi o cruzamento desse com aquela e, este outro, deste com aqueloutra. Por acaso este aqui é a mãe dele, mas cruzou assim mesmo... e, assim, terei um quadro simbolicamente instituído da consangüinidade dos animais. O que não me impede de supor que, num certo momento mítico (posso inventar), os homens se reproduzissem à vontade e até marcassem as suas reproduções como fenômenos de consangüinidade – e isto se chama simbólico. Onde, então, Lévi-Strauss foi buscar essa mosca que engoli durante anos, de que o fato cultural da aliança é uma coisa, por um lado, de cá, e a coisa natural da consangüinidade é para o lado de lá, como se houvesse uma oposição entre natureza e cultura capaz de ser marcada por essa dicotomia. Não vejo mais como marcar essa dicotomia por esses dois lados, porque, simplesmente, a Natureza, não se sabe o que é. Toda vez que se aborda essa coisa que se quer chamar de Natureza, o que se produz é alguma articulação simbólica. Não há acesso a nenhuma Natureza para o ser falante. Seria o acesso ao real. Quando se fala de Natureza, ou estamos falando de um saber qualquer, como se fala da paisagem, das árvores, do riacho, ou estamos falando de um saber que já está se articulando num texto, um saber organizado. Ou estamos falando de alguma coisa que ainda fica de fora do que estamos dizendo? Sempre está fora do dito e, portanto, cai no real. Igualmente, aquele pai, aquele bicho que cai no real, do qual não se dá conta, enquanto bicho de carne e osso que está lá, é um real, porque quando o estudo à luz da anatomia e da filosofia, estou fazendo anatomia e filosofia e não estou falando mais dele.
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Existe a impossibilidade do simbólico em falar do real, mas nossa função é tentar o impossível. E aí estaremos falando do furo, do desejo, da nossa tentativa de abordar uma coisa que é inabordável – e, nisso, produzimos cada vez mais articulações simbólicas. Para falar da Natureza, o que chamamos de Natureza é um certo discurso e estaremos produzindo determinado saber sobre ela, ou estaremos falando histericamente sobre Natureza... ou ela é uma coisa inatingível, aquilo que não podemos dizer. Uma vez que estamos afetados de simbólico fica impossível articular qualquer coisa que não seja de dentro dele. E o que não é articulável aí, cai no real. Não é dizível. No momento, então, em que Lévi-Strauss apresenta a interdição do incesto como sendo aquilo que distingue o fato “natural” da consangüinidade do fato “cultural” da aliança, é preciso engolir, como um postulado, essa mosca enorme para continuar a pensar junto com ele. Simplesmente, não há nenhuma distinção aí entre Natureza e Cultura. Há distinção entre Cultura e qualquer outra coisa que não é Cultura, menos Natureza. E não se trata de distinção entre cultura e cultura, pois ele apresentou a cultura como fundamentada na aliança e, portanto, na interdição do incesto. Se esse fato, que podemos acompanhar simbolicamente e que, – no entanto, não cai no registro da cultura, porque lá o incesto não está colocado, e, no entanto, ainda podemos seguir os processos de reprodução, isto não é fazer diferenças entre culturas, e, sim, pois, a distinção entre cultura e algo que não é cultura – e, no entanto, está no simbólico. *
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Por outro lado, Freud, também, citou, naquela situação mítica lá, a fundação da cultura, da sociedade, da arte, da religião... sobre um mito que coloca como coisa primeira a proibição de matar. O que mostrei da vez anterior é que esta proibição é congruente com a estrutura. Aí não se tem nenhuma consciência, pois não é preciso nenhum superego alimentando isso, para, no meu movimento inconsciente, estar interditado de matar. Consciência é um
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fenômeno religioso, é a neurose obsessiva. Mas Freud coloca, também, a interdição do incesto. Foi aí que frisei que é alguma coisa “prática”. Esse momentozinho aí, Freud sempre dá a dica para a gente: o que é essa coisa “prática” além da interdição de matar? Deixemos em suspenso. Lévi-Strauss cita, p. 51, por exemplo, que sabemos o que os animais fazem, quais são as necessidades do cachorro, do urso, do salmão, de outras criaturas, porque, antigamente, os homens se casavam com eles e adquiriam esse saber de suas esposas animais. Eles aprenderam todos os seus usos e passaram esse conhecimento de geração em geração. Quer dizer, uma certa convivência animal com o animal – hoje em dia isso tem o nome de bestialismo ou zoofilia, mas consta lá no mito desses primitivos – de onde vem esse conhecimento que eles têm, que não é uma ciência no sentido que nós produzimos. Então, pergunto de novo: quem é esse pai que é assassinado, senão um animal? Mas não é um animal qualquer. É um animal que é pai mesmo, do cara. É aquele animal que Freud diz que tem que se elevar da animalidade. Quer dizer, mata-se o animal do falante para que este exista como falante. O que é diferente de um assassínio verdadeiro, que é matar um falante. Antes de o falante emergir, é o animal de onde ele provém, apesar do juiz americano. Ou, se não, é o juiz. Vou inventar um mito, para, através dele, ver se conseguimos pensar. Trata-se do mito do Macaco Maluco. Os antropólogos, os físicos, etc., têm todos as suas teorias a respeito de seus achados sobre o momento em que apareceu o homem enquanto tal, o dito “homo sapiens sapiens”. Mas, com todos aqueles parentescos esquisitos, eles não sabem distinguir em que momento apareceu o homem cultural. Prefiro dizer: o homem enquanto subdito, definitivamente, ao simbólico. Podemos supor, lá pelos idos do paleolítico, uma emergência simbólica. Mesmo entre animais, encontramos emergências simbólicas, mas não a subdicção à ordem simbólica, quer dizer, à determinação pelo simbólico do ser falante, tudo ali passando pelo simbólico. No início, era a horda. Podemos supor aquela horda com uma fera mais feroz do que as outras – aquela violência de que fala Freud, do pai
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– que diz: “Tudo meu, tudo meu, ninguém tasca!”. Isto certamente por uma configuração imaginária qualquer que lá está determinando esse comportamento. Isso é perfeitamente legal, no sentido pequeno do termo. A lei de funcionamento daquele bicho é regida por uma estrutura imaginária e, portanto, ele está certo. “O macaco está certo”, como diz Jô Soares. Essa violência e a tirania desse chefe, toma tudo para ele, todas as fêmeas, açambarca todos os bens, só deixa os restos, e tira da jogada uma grande parte dos indivíduos da espécie. Agora, vamos fazer um mito um pouco diferente. Eles eram tão animais quanto os outros, e, de repente, por um acidente, do qual não se pode dar conta, acontece uma mutação genética qualquer e aquele famigerado furo – de que tanto falamos aqui – comparece. Falta alguma coisa na composição desse imaginário que retira toda possibilidade de um imaginário, ainda que existente, dar conta dos comportamentos. Dar conta daquilo que chamei de um autossoma, de um corpo que se reproduz mais ou menos do mesmo tipo, mas cujos comportamentos não estão mais determinados imaginariamente porque faltou alguma coisa – um furo no imaginário desse bicho. Ele é um macaco como outro, porque é filho dele, tem a mesma aparência, o mesmo corpo real fundado numa genética de reprodução dos corpos, mas lhe falta uma completude imaginária. É algo como ele nascer prematuro, como o bebê lacaniano do estádio do espelho... Isso pode ter acontecido por um acidente genético ou pode ser que ele seja filho de um marciano, quer dizer, o pai é “corno”, baixou um troço marciano, um negócio qualquer, fez uma reprodução e criou uma mutação. O que aconteceria então, no mesmo bando, na mesma horda, com um grupo de indivíduos que, ao invés de serem macacos, simplesmente são macacos malucos? Eles não têm um comportamento de acordo, porque não sabem que comportamento ter. Não está escrito. Aí é que pintou o tal do real: não estava escrito, nunca esteve, portanto, nunca estará! Falta lá no imaginário deles um pedaço. Como, então, poderia se comportar um bicho desses, assim perdido? A tirar pelo mundo dos loucos, do que é pensável como tal, eles copiariam, por
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uma reflexão imaginária – o que acontece até com as nossas crianças –, os comportamentos. Mas não ipsis literis, eles são iletrados originalmente. Faltalhes letra para copiar tal qual. Com o aparecimento dessa falta, o surgimento do macaco maluco, com essa colagem imaginária que ele fez sobre os outros, no entanto, ele não tendo as marcações etológicas que os outros têm, é como se ele não se limitasse. Digamos que um macaquinho qualquer, depois de levar a terceira porrada do macaco, cai fora, fica na dele e se reduz ao seu lugarzinho ecológico e etológico. O macaco maluco, não. Ele é completamente debilóide, ele insiste. Por ter o furo, tem desejo, embora não saiba o que fazer daquilo... é uma loucura. Ele insiste até, talvez, à morte. Quantos milhões não foram massacrados por serem chatos! Massacrados por um gorila, naturalmente! O gorilão que é o dono da situação, lá na minha estorinha. Podemos, então, colocar milênios de experiência: essa mutação começa a aparecer, eles morrem aos milhões mas sobrevivem muitos. Pode ser até que, de repente, sejam a maioria daquela espécie e invadam a força paterna, façam aquele trucidamento de que fala Freud, matando um animal. Matando um animal que proibia que eles existissem na sua diferença. De modo algum, aquele animal poderia suportar a diferença – por absoluta incompatibilidade, incompatibilidade com a diferença. Eles têm, então, que produzir, eu não diria um assassínio, mas uma matança – porque posso matar boi à vontade, não estou fazendo crime nenhum – do gorila para conseguirem existir na sua diferença. Não é mera diferença entre dois bandos de animais. Não é a briga, a guerra entre dois bandos de animais que são diferentes enquanto tais. É uma diferença que se comporta como diferença que não sabe nem que estatuto se dar. Ou seja: porta um furo real. No momento dessa matança, e acabando com a lei menor de funcionamento dessa máquina imaginária, desse ethos particular que é esse bicho, eles podem, então, substituir essa ausência de LEI maior, nascida pela morte dessa lei menor, por um pacto que permita a sobrevivência das diferenças, inclusive das diferenças entre um e outro. Com isso, fundam a lei sobre o cadáver paterno. Está na Bíblia: “A criança é o pai do homem”. Criar-se-ia a tolerância
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legal diante das diferenças, ao mesmo tempo em que nasce, talvez, o fundamento da propriedade. Não estamos falando de cultura, mas a propriedade é possível de ser pensada e nasce necessariamente daí. A propriedade do meu sintoma particular, a propriedade dos meus objetos privilegiados, e a discussão com os outros quanto à divisão desses objetos. *
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A aliança de que fala Lévi-Strauss é a da troca de mulheres produzindo os casamentos e as linhas de parentesco. Embora isto se dê através de pactos, do surgimento da regra, posso ser um pouco mais sutil. Posso me perguntar: será possível fazer pactos simbólicos com o outro a partir do meu lugar de enunciação, antes ainda de ser marcado o meu lugar, de ser enunciado no contexto social? Posso fazer pactos com o outro a partir de um puro nome, o qual não esteja necessariamente me inscrevendo em determinado lugar social? Uma coisa é a aliança de parentesco, outra, é aliança divina, a que está na Bíblia por exemplo. No momento em que há essa transação de assassínio do pai e fundação da lei, a aliança que se faz é a divina, é a aliança com o grande Outro, com sua marca de diferenciação constante. Essa é a aliança que me funda como sujeito. Outro momento, muito “prático”, talvez, como diz Freud, já que emerge o sentido de propriedade – de pertinência, tal sintoma “pertence a...”, no sentido matemático –, é quando se fazem esses pactos: “Vamos dividir aqui as mulheres, estas são de cá, e essas são de lá...”. Não está dita aí nesse momento nenhuma marcação da aliança enquanto produção da ordem de parentesco, por exemplo: “Sou fulano de tal de linhagem tal...”. Nada disso está marcado. Talvez seja uma emergência que virá necessariamente, mas isso não está demarcado. Os fatos estão em vigor, mas a partir de que momento mítico temos as linhagens fundadas? Por exemplo, dizemos “sou cachorro, você é gato”, e escolhemos um totem para esquecer o pai gorila que a gente matou. Isso é uma nomeação, mas posso perfeitamente distribuir bens, etc., sobre essa nomeação sem ter ainda fundado um sistema
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de parentesco sobre essa nomeação? Lévi-Strauss diz que a relação de aliança vai fundar a linhagem de parentesco, mas é preciso saber o que ele está chamando de aliança. Para ele, é o nível de aliança em que eu faço um pacto com você, em que entram nessas trocas, nessas propriedades, regras de parentesco já. E se não forem de parentesco? Ele fala em momento sincrônico, mas, nessa sincronia, é necessária a ordem de parentesco. Será que é necessário à estrutura o surgimento da ordem de parentesco? Posso, por exemplo, optar pelo conceito de creodo da teoria das catástrofes. Num dado percurso, pode-se ter que necessariamente passar por determinado caminho. Por exemplo: se há um incêndio aqui, você tem que passar pela porta, porque é o único buraco nesta sala... Cre: “necessário, obrigatório”; -odo: “caminho”. Portanto, caminho necessário num certo percurso. Talvez, a partir do surgimento dessa diferença, da instalação da Lei, da aliança divina, do surgimento da propriedade, necessariamente se cairia na ordem de parentesco como creodo, mas não como função da estrutura. Minha questão é: a aliança de que fala Lévi-Strauss é uma aliança que funda a cultura ou é uma aliança que funda o simbólico? Pelo meu caminho, é uma aliança que funda a cultura. Só que tudo que está no simbólico é trazido, pelo pensamento de Lévi-Strauss, para dentro da cultura. Essa oscilação de Freud em torno da interdição do incesto, como uma “prática”, uma praticidade, portanto, me ajuda a pensar que talvez seja possível desarticular, na estrutura, o que é estrutura pura e simples do que é movimento da estrutura. Movimentos por caminhos (creodos) necessários. Uma coisa é eu supor que a estrutura do falante inclui necessariamente a cultura, quer dizer, apareceu a estrutura apareceu a cultura. Outra, é dizer que a estrutura funda a articulação simbólica. Emergiu o simbólico, ele está como dominância, mas não necessariamente a cultura, ainda que ela seja um creodo. O que quero saber é se o homem pode existir fora da cultura, porque, certamente, existiu o falante sem cultura. E poderá novamente existir, se meu raciocínio estiver certo.
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Se fundamento a cultura na aliança que se estabelece na interdição do incesto, estou dizendo que a cultura e a ordem de parentesco são a mesma coisa. Na estrutura que Freud apresentou, ele embutiu todo o processo e o conjugou no complexo de Édipo. Está lá a Lei, como proibição de matar – no sentido que dei da vez anterior e vim desenvolvendo até hoje – e está lá, também, como emergência imediata da interdição do incesto. Entretanto, Freud está trabalhando tudo isso, também, no regime da cultura. *
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A Lei pertence ao registro do simbólico e à ordem divina, no sentido de campo do Outro. A aliança que se faz é a aliança de responder à diferença que emerge nesse campo do Outro. Campo do Outro não é a cultura! Isto está claro no pensamento de Lacan. Encontramos todo tipo de deturpação, de apaziguamento, do pensamento de Lacan por aí, transformando o Outro na cultura. O simbólico é o lugar da cultura. Fora do simbólico não há cultura. A cultura emerge, talvez, como um caminho necessário dentro do simbólico, mas ela é aquilo sem o que o simbólico não pode se manifestar? Posso pensar falantes antes da cultura e, até, depois dela? Na medida em que vejo que na definição da antropologia, de Lévi-Strauss e em qualquer outra, a cultura não comparece senão dentro de uma ordem de parentesco, ou seja, senão dentro da interdição do incesto, onde a interdição do incesto é a lei, estou fazendo uma pergunta muito grave: é possível existir falantes fora da interdição do incesto, e dentro da Lei? Posso supor a Lei funcionando estritamente no reconhecimento de que o assassínio de uma diferença, de uma única diferença, ou seja, de um único falante, já é abolição, exterminação da Lei, e isto é suficiente para fundar a Lei. Ela emergiu como processo relacional, na condição pura e simples de não se abolir, de o assassínio ser proibido. O que está misturado, a meu ver, o que não foi distinguido claramente, embora esteja distinto em Lacan, é: “é proibido matar” e “é proibido o incesto”. Estas duas coisas são articuladas como se fossem sincronicamente inter-
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relacionadas na estrutura. Eu me pergunto se não posso estabelecer uma distinção mais clara. Nós outros somos seres culturais há milênios. É uma coisa extremamente difícil pensar fora da cultura mesmo porque o superego não deixa. A consciência começa a doer e aí é preciso um esforço de libertação do superego para, então, se pensar este jogo. Peço, então, ajuda às mulheres, que não crêem tanto quanto os homens, na lei. Peço ajuda contra a patota homossexual... Já denunciei aqui, no Seminário passado, que estamos subditos a um complô homossexual... masculino, é claro! Um complô homossexual contra a heterossexualidade. Peço ajuda às mulheres – que por acaso o sejam ou estejam nessa jogada –, que promovam algum deslize aí. O que está interessando, sobretudo, é a questão do feminino. O feminino está em jogo porque é o lugar onde se suspende o “para-todo” da função fálica e, portanto, me ajuda a me liberar de um superego violento que não me deixa pensar a ausência de cultura. Por isso as mulheres são incultas e... depravadas... desculpem... Elas têm uma relação com o superego, não deixam de ter, o jogo fálico não está ausente, embora completamente bagunçado. A consangüinidade observada e dita já está no campo do simbólico. Essa aliança, então, que deu a construção da ordem de parentesco, não é um rebatimento imaginário por sobre o reconhecimento dessa consangüinidade no campo do simbólico? De tanto fazer a taxionomia da reprodução animal ou da sua própria, o sujeito acabou descobrindo linhas seqüenciais de discurso e inventando a única coisa, talvez, que ele pudesse inventar como um caminho necessário: que se podia fazer a marcação do sujeito enquanto tal, do meu lugar ou do outro, e a marcação dos seus bens, a partir de linhas distribuídas como reflexo especular do acontecimento, escrito enquanto consangüinidade. *
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Saltos, é o que pretendo dar nestes Seminários, pensando com vocês... Quer me parecer que Freud inventou a psicanálise como um processo de
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dissolução, dissolução do sintoma, tentativa de dissolver o sintoma no seu meio que é o real, e dejetá-lo para o verbo. Talvez a psicanálise seja nada mais nada menos do que a dissolução da cultura. Se Freud inventou uma coisa de tão radical, que nenhuma das políticas, por mais aparentemente dissolventes, consegue ser tão radical e ir tão longe, ele talvez tenha inventado a dissolução da cultura, na medida em que isto coincide com a dissolução do complexo de Édipo, que é nada mais nada menos que o fundamento da cultura. O complexo de Édipo não é a mesma coisa que a mera interdição do incesto, como se lê em Lévi-Strauss, porque é uma estrutura tão complexa como essa que Freud apresenta do assassínio do pai, que coloca em jogo a Lei, a própria fundação da interdição do incesto... Na medida em que se crê no enunciado legal, retirando dele o ato de sua fundação, está-se acreditando numa especularidade de tal ordem que é parecida com o que rege imaginariamente um animal. Pode-se pensar na emergência da lei como ato, assim como na emergência do poético sem ficarse preso à mera recitação da poesia. Quando uma lei é dita, houve um ato. Esse ato é uma interpretação. Não posso carregar o enunciado sem carregar o ato junto, porque se faço o esquecimento do ato, caio numa configuração que é imaginarização do simbólico. Isto de tal maneira que estou, como faz um bom neurótico, querendo que o enunciado legal seja a minha definitiva garantia de imobilidade, ou seja, de tapar o sol. Por isso, posso chamar o superego de arcaico, na medida em que ele me pede que não movimente metonimicamente a produção esclerosada de metáfora. Uma coisa é produzir uma metáfora, que está no ato poético, outra é sentar em cima dela. Aí não é mais uma metáfora, é uma banalidade. É preciso, então, distinguir a produção da metáfora da sagração da metáfora, distinguir o ato de fundação da Lei, do enunciado legal, que quer me aprisionar como se eu fosse um animal. Por que Lacan ao tratar da questão da Lei, no Seminário 2, citando aquele caso da mão cortada, que o pai seria condenado a ter a mão amputada, diz: “há sempre algo na lei que é incompreensível”? Eu diria mais: é inaceitável. Em que a lei é inaceitável? Primeiro porque a verdade não se diz toda. A
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emergência da lei, como vimos da vez anterior, precisa de desenvolvimento simbólico porque ela não se dá toda, jamais. Ao passo que quando uma lei é escrita, é dita, o enunciado enquanto tal é sempre absurdo. “Se você fizer isto, terá a cabeça cortada”, mas porquê? Por que tenho que ficar aprisionado nesse regime, nesse regime do enunciado? Sobretudo quando a punição é drástica a ponto de eliminar a minha diferença, quando sou condenado à morte. Aí, então, é absurdamente inaceitável. Qualquer enunciado legal é um jogo que tem seus limites. É preciso manter esse pacto de pé, porque, do contrário, não posso dar fiança ao enunciado para aquém de suas possibilidades distintivas. Quantos sentidos tem um enunciado? É preciso que eu o consolide de certo modo para que haja um basteamento, tê-lo congelado, para ele funcionar. Um enunciado legal é inaceitável porque é um enunciado, e não uma enunciação. Quando uma mulher faz a suspensão da metáfora, o que ela está fazendo? Ela está dizendo que isso é um absurdo. Por que “cadeira” não pode significar “teto”? O pior é que pode, o deslizamento metonímico é possível... *
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Leiam, para a próxima vez, o Tarzan of the Apes, de Edgar Rice Burroughs. E, também, outra vez, o Édipo. Intitulei o nosso caso de hoje, o “caso especial”, de Botem um Tatu, para enfatizar essa questão que, naquele pai assassinado, matado, o assassínio é posterior, quando ele vira simbólico. No momento de matar aquele bicho, o que se está matando é um animal, e é isto que está no totemismo. Mário de Andrade tinha colocado nosso clã de brasileiros como o clã do jabuti. O jabuti é um bicho interessantíssimo que tem uma farta mitologia no Brasil, com uma porção de estorinhas. Vejam no Dicionário do Folclore Brasileiro, do Câmara Cascudo. Ele é uma espécie de tartaruga terrestre. Couto de Magalhães fez várias anotações de histórias brasileiras com o jabuti. Ele seria nosso pai animal, então, segundo Mário de Andrade. Jabuti é o herói
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invencível das histórias indígenas do extremo norte, cheio de astúcia e habilidade, vencendo os animais violentos, etc. Essa mitologia do jabuti pegou no Norte do Brasil, sobretudo quando os negros chegaram, pois eles tinham mitologia semelhante. Em certas regiões há um congraçamento de mitologias, quer dizer, de totemismo. Então, o clã do jabuti é alguma coisa mais nomeada lá pelo lado Norte. Mas justamente as mesmíssimas histórias, contos, danças folclóricas, permaneceram na parte Sul – e, também, em alguns pontos da parte Norte – mais do lado indígena do que do lado negro, aparecendo aí não o jabuti, mas o tatu. De um ponto de vista mais indígena, somos do clã do tatu. É interessantíssima a questão do tatu. Por isso me permiti dizer que a questão do Totem und Tabu é a questão do Botem um Tatu lá nesse lugar, porque o pai morto pode ser esse bicho. Os indígenas têm das carnes do tatu uma concepção muito original, afirmando que elas reúnem em si as virtudes de todas as outras carnes, e que, por via disso mesmo, podem ser comidas sempre e impunemente, sem o perigo de infringir qualquer proibição de comer certa e determinada qualidade de carne. O tatu é, então, muito interessante, sobretudo depois dos escritos do Freud, na medida em que há uma certa universalidade animal em sua carne. E, mais, o nosso pai tribal é um animal que já teria essa “universalidade” em sua carne.
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TARZAN DA SILVA Um Seminário como este, é tipo de fala de analisando, onde tenho o direito de ser histérico. Os temas que vão sendo trazidos têm uma certa orientação, são encadeados de forma a chegar a determinado ponto. É claro que se eu não tivesse esse determinado ponto, não pretenderia fazer um Seminário. A gente finge que não sabe onde quer chegar, mas já chegou, talvez, mais ou menos perto. Faço questão que as pessoas participem no Seminário, mas gostaria que tivessem a paciência e o cuidado de um pouco de rigor, para ficarmos dentro da linha... pois se utilizarmos nosso tempo para esclarecimentos muito parciais, vai-se perder a linha de endereçamento. E como uma espécie de sinfonia ou de peça musical, em que os sistemas vão se sucedendo, retornando, se recompondo com outros. É preciso talvez, conseguir ver o arcabouço para poder retornar – a gente retorna constantemente – e não ficar assustados, como alguns me disseram que ficaram, dada a quantidade de “coisas novas” que foram apresentadas mais ou menos bruscamente. *
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Abordaremos um pouco, então, o texto de Tarzan. Da vez anterior, tentei forjar rapidamente um mito, que chamei o mito do macaco maluco, para mostrar a passagem que na antropologia está como passagem da Natureza à Cultura. Vamos, agora, fazer um outro mito.
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Peço o testemunho de um escritor, Edgar Rice Burroughs. Todo mundo conhece, a maioria das pessoas viu isso na infância, sobretudo os homens – os chamados “rapazes” – gostavam muito de ler Tarzan. Isto na minha geração, hoje, não sei. Tarzan é uma estória inventada, segundo certos autores, a partir de fatos reais. Eu o entendo – estou tratando do Tarzan original, do primeiro livro chamado Tarzan of the Apes, Tarzan dos macacos – como uma mera invenção mítica da origem do Homem. Como todo mito, tem muitas partes forçadas, mas acho interessante tomá-lo como um mito inventado recentemente. Não farei, aqui, nenhuma análise estrutural da mitologia, segundo Lévi-Strauss. Apenas abordarei certos comparecimentos nesse grande mito que Burroughs teria inventado, construído. Ele se constitui de uma porção de pequenos mitos. Trata-se, pois, de abordá-los para ver se podemos ter, diante de uma produção literária, uma visão possível disso que eu estava mostrando da vez anterior. O livro foi escrito entre 1º de dezembro de 1911 e 14 de maio de 1912. É bem recente. Burroughs tinha 35 anos. A narrativa começa em 1888. Separaremos as origens da família de Tarzan, que se deslocou para a África, e a história, vamos dizer assim, propriamente do Tarzan. Ele é produzido quando já está sem os pais, no meio dos animais. Criança, ele vai sacando as coisas. Vamos fazer vários cortes para entendermos melhor certa montagem que me parece acontecer no mito. A estória, então, começada em 88, século passado, gira em torno de um jovem nobre inglês chamado John Clayton, que era o pai do Tarzan. Ele era nobre, Lorde Greystoke. Esse sujeito terá existido, segundo alguns pesquisadores. Eles eram recém-casados. O casal deixou o porto de Dover com destino a Freetown, na África, que era a capital da colônia britânica de Serra Leoa, onde chegaram um mês depois. De lá embarcaram num pequeno navio, um brigue – que, aliás, tem um nome que, em português, soa muito interessante para ser a origem de Tarzan: “Fuwalda” – alugado por Clayton para atingir uma vila num dos deltas do rio Niger, de onde contava, subindo o rio, embrenhar-se no continente africano, numa missão, aventura, etc. O texto de Burroughs diz: “E aqui eles vão desaparecendo dos olhos e do conhecimento dos homens”.
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Vejamos, dentro desse barco, um primeiro mito. A tripulação se compunha de um bando de marinheiros muito rudes, de oficiais não menos rudes e de um capitão brutal, quase animalesco. Aí começam as peripécias do casal Clayton. Diz o texto, apontando a selvageria ou, digamos, a barbárie, do capitão: “O capitão era um bruto no tratamento com seus homens. Ele só conhecia dois argumentos com eles, o cassetete e o revólver”. Está bem qualificado que esse sujeito não usa a palavra, só a força. J. Clayton, diante desse tratamento rude que vê o capitão aplicar a vários marinheiros, intervém falando com ele e exigindo uma certa referência à lei e não à violência. Ele aparece no texto como civilizador e civilizado. O casal é como que suposto no lugar de sujeito que tem como referência a lei. Num certo momento, o Clayton salva um marinheiro de ser, se não morto, pelo menos massacrado pelo capitão. Então, um dia, este marinheiro vai procurá-lo para dizer que estava se montando um motim contra o capitão e que ele tomasse cuidado. Clayton é incitado pela mulher a procurar o capitão para adverti-lo porque, senão, estaria participando do motim. O capitão lhe diz que não iria acontecer nada disto, que ele não metesse o nariz onde não era chamado, que não interferisse na disciplina do navio - disciplina era aquela lei de ferro estritamente produzida pelo capitão segundo sua autoridade. A esta altura, a tripulação inicia realmente um motim violento. Antes, eles entraram na cabina dos Clayton e roubaram as armas para que eles não interferissem. Puseram um bilhete para que ficassem de boca fechada e não dissessem nada ao capitão. Ficaram aprisionados dentro da cabine. Com o motim, os oficiais e o capitão foram assassinados e jogados na água. Num certo momento, um daqueles marinheiros quis matar o John Clayton e, certamente, mataria a mulher também, mas os outros, sabendo a posição dele, sabendo que fizera uma intervenção em outro nível, não deixaram que fossem mortos. Mas, também, não podiam ficar com eles. Abandonaram, então, o casal com toda a bagagem - que era imensa - numa praia do rio. Neste momento, aí, se tratarmos como mito o que está acontecendo, estamos vendo um bando de ferozes, quase animais - uma verdadeira horda, no sentido freudiano -, dominado por um capitão onipotente. Eles matam a
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tripulação e o capitão, e respeitam, de certo modo, uma emergência de lei ali na figura dos Clayton, sobretudo a de John Clayton. Em vez de matá-los também, os isolam. Quase uma espécie de reconhecimento de um significante que vem no lugar do Outro, daquela grande confusão, indicar este mesmo Outro como lugar possível de uma Lei. O pai violento, que seria mais ou menos igual ao pai animal, fora assassinado, morto. Pai morto na figura simbólica de Clayton que é, então, isolado, deixado à margem num isolamento, situado num lugar. Quando eles são abandonados lá, temos o seguinte texto de J. Clayton: “Não há nada que se possa fazer. O trabalho terá que ser a nossa salvação”. Tinham alguns utensílios e, agora, só resta o trabalho no meio da floresta, sem nenhuma relação com sua espécie. Aí, a Sra. Clayton responde: “Se fôssemos apenas você e eu, poderíamos suportar isto agora, mas...”. Ela está se referindo ao fato de estar grávida, coisa que vem atrapalhar mais ainda a luta pela sobrevivência. A resposta de Clayton é: “Centenas de milhares de anos atrás, nossos ancestrais do passado remoto se defrontaram com os mesmos problemas que teremos possivelmente que enfrentar nestas mesmas florestas. Nós estamos aqui e isto é evidência da vitória deles. Eles conseguiram com instrumentos e armas de pedra e osso... Certamente que nós conseguiremos também”. Eu diria que aqui termina o mito que é da mesma ordem do mito da horda primitiva de Freud: assassínio do pai, recolocação de um pai simbólico, etc. *
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Começa, então, uma outra versão mítica. Agora eles estão lá em carne e osso. Funcionaram da primeira vez como simbólico e agora estão lá simbólica, real e imaginariamente perdidos na floresta. Este segundo mito, ou a segunda parte do grande mito, digamos que seja, talvez, o mito da instalação do simbólico. Desde o primeiro mito, o do barco, estamos vendo uma tentativa de fazer valer a Lei, valer o simbólico no seio de uma barbárie. Agora, pelos acontecimentos que virão, a regressão se torna ainda maior.
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Abandonados num lugar selvagem, os Clayton se vêem sozinhos do ponto de vista da espécie e cercados pela selva e pela selvageria. O ambiente natural – isto é, não tratado pelo simbólico –, a floresta e os animais mais ou menos ferozes começam a aparecer a distância. Com a bagagem trazida e com muito trabalho, instalam uma espécie de núcleo simbólico no meio da selva. Constroem uma cabana, fazem móveis, têm os apetrechos que trouxeram e com eles fazem outros: ferramentas, utensílios, armas, armas de fogo, livros de vários tipos, etc. Isto é, produtos culturais que aqui, no caso, tratando como mito, valem como instalação do simbólico no lugar de uma falta real no imaginário da sua espécie. No meio de uma selva falta-lhes, realmente, qualquer imaginário. E um núcleo simbólico se instala ali cobrindo esta falta. De repente, começam as investidas dos animais, os quais Clayton consegue rechaçar ou caçar com suas armas de fogo. A Sra. Clayton havia, logo depois que chegou, vislumbrado a distância, durante a noite, o que lhe pareceu ser uma espécie de homem brutal, grandalhão e selvagem. Na realidade era um macacão, um símio de grande porte. John, um dia no trabalho, é atacado por este símio. O gorila avança sobre ele, fortíssimo. Ele está desarmado. Sua mulher o socorre, pega uma arma e atira no macaco. O macaco o ataca mais violentamente ainda. John cai desmaiado. Ela atira outra vez no macaco, pelas costas. O macaco então avança para ela e a machuca bastante. Ela, que estava grávida, fica bastante ferida. John se recupera e investe contra o macaco que, já muito ferido pelos dois tiros, acaba sendo morto. Os dois se recolhem para a cabana. Depois desta luta, desta refrega com um animalzão, eles se trancam no reduto simbólico – um nicho simbólico instalado no meio do campo em que o Outro se apresenta selvagemente. Acontece, então, uma segunda instalação de simbólico: uma espécie de natal, natal africano. Naquela mesma noite, em função da refrega, a Sra. Clayton entra em trabalho de parto e nasce uma criança do sexo macho, que é Tarzan. Ou seja, Lorde John Clayton Jr. Durante um ano eles cuidam da criança, ficam fechados ali, só acrescentando seus utensílios, cuidando do ambiente, da alimentação da criança... Ao mesmo tempo Clayton, pai, escrevia um diário.
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Interessante, que ele escrevia em francês. Uma sutileza muito interessante no texto, porque se trata de um sujeito que lida com o simbólico com desenvoltura. A Sra. Clayton nunca se recuperou daquela brutalidade da fera que a atacou. Vem adoecendo e acaba morrendo no dia em que a criança faz um ano. Um ano de idade é antes do estádio do espelho. Outra pequena sutileza do texto. A criança está numa fase de um pequeno animal incompetente, diferente dos outros animais. John fica numa situação de horror, com dificuldades... De repente, diz o texto, há um grande silêncio, a única coisa que se escuta é o choro da criança na selva... Então esta segunda instalação – o filho daqueles que portavam a diferença, que vem de uma ordem simbólica – emerge no meio da selva: um ser que porta – de alguma origem, que aqui é mítica, veio da Inglaterra, de Marte, como diz Moustapha Safouan, ou de algum outro lugar – a diferença, independentemente da existência destes pais míticos. Por outro lado, no meio daquele bando de macacos que cercava o meio ambiente havia um parecido com aquele capitão do barco, que dominava a horda. Ele se chamava Kerchak, é o mais forte de todos, o mais violento e impõe sua lei – com “l” minúsculo – a todo o bando. Era o rei dos macacos. Ele tinha aproximadamente 20 anos de idade e era tão violento que nenhuma outra fera ousava enfrentá-lo, nem mesmo o elefante. O texto diz: “Não havia nenhum símio por toda a floresta, na qual ele mandava, que ousasse contestar seu direito a comandar, seu direito de fazer a lei”, his right to law. Lei no sentido de regra de comportamento. O texto também se refere a uma tribo de antropóides que ele comandava. Havia uma fêmea no meio desse bando, chamada Kala, que era a mais jovem “esposa” de um macaco chamado Tublat. Apesar de jovem, Kala era forte e dotada de um grande instinto materno, interesse materno. Ela tinha um filhote de colo. Quando Kerchak estava enfurecido, atacava todos do bando, os quais imediatamente se refugiavam nos galhos mais altos, porque ele era muito pesadão e lá não podia ir. Num desses dias que está com essa raiva toda, ele ataca Kala. Ela tenta fugir dele, mas deixa cair o filhote, que bate no chão e morre. O texto chama atenção para o fato de que quando morre o filhote, passa a raiva de Kerchak. É uma raiva assassina. Uma vez
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que conseguiu matar alguém, fica calmo e deixa para lá. Os macacos todos voltam com muito cuidado para ver se ele não está com raiva ainda, e continuam a obedecer suas ordens. Kala vai junto. Ela não aceita a morte do filhote e continua a carregá-lo morto no colo. Os macacos resolvem, então, mais uma vez, atacar a cabana dos Clayton. Lá estão vivos apenas John Clayton e o filho. Kerchak conduz o bando para atacar a casa. Como Clayton está deprimido, debruçado em cima de uma mesa, não presta atenção em nada, nem na criança chorando no berço. Ele não percebe que os macacos estão chegando. Quando os macacos vêem que está tudo muito silencioso, também chegam em silêncio, encontram a porta aberta, entram sorrateiramente e atacam o Clayton, que não tem tempo de pegar a arma. Matam-no e depredam a cabana. Kala, quando vê aquele bebê vivo dentro do berço, joga lá dentro o filho morto e pega o outro para ela. Há uma semelhança imaginária qualquer que permite que ela faça esta troca. Aí, mais uma repetição: outra vez, no seio de uma indiferença animal, instala-se um ser que porta a diferença simbólica. Imaginariamente, é filho de macaco (porque parece), mas, por uma filiação estranha, exótica, que veio de fora, de algum outro lugar, porta uma diferença ôntica qualquer que, certamente, vai funcionar. Aí termina este segundo mito da emergência, da instalação do simbólico num lugar onde ele não existia. *
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Talvez aí comece um terceiro, que é o mito da passagem de animal a humano. Nós outros estamos sabendo que Tarzan é filho do Clayton, etc., mas se abordo como mito, isto não interessa. Posso tomar esta estória como o mito do nascimento do homem na selva, posso tomar os pais ingleses como alguma coisa estrangeira, tão estrangeira que é completamente fora do universo selvagem. Temos agora aquela criança reconhecidamente filha de macacos. Tanto Kala o reconheceu, pegou-o, que os outros macacos não chiaram. Ela ficou com o bebê: tinha uma aparência “macacóide” então era filho! E, no
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entanto, portava a diferença por ter outra origem, por ter um momento originário diverso. Kala cuida de Tarzan como se fosse um macaquinho. E ele, que não tem outra coisa para aprender a não ser a macaquice, mesmo cercado de macacos por todos os lados, reage muito bem. Aprende o que lhe é oferecido para aprender. Aprende o comportamento do bando: subir nas árvores, acompanhar o bando, obedecer ao Kerchak... Não é a criança lobo, é a criança macaco mesmo, aquela que ficou na cabeça de Darwin. De repente, o mito apresenta um espelho. Ele já era mais crescidinho. Trata-se de um espelho que não é toda a estrutura do estádio do espelho, é uma apresentação parciária... Tarzan, de repente, é o patinho feio. Um dia ele está brincando com o priminho dele, tem sede e, como faz todo animal, vai beber água na superfície, onde ela está mais limpa e mais arejada. Quando chega perto, junto com o primo, vê que o primo é lindo, todo peludo, olhinhos pequeninos, e ele é feio, pelado, branquelo... O primo se parece com todos aqueles animais belíssimos, inclusive com aquela que ele reconhecia como sua mãe. Ele era horrível. O mito apresenta aí o momento em que ele vê que há uma diferença entre ele e uma outra criança, ao mesmo tempo em que há uma igualdade, porque são tratados como iguais. Então, há um momento depressivo. Eles se reconhecem companheiros um do outro, primos, ao mesmo tempo que há uma diferença que é depressiva: o outro que é normal, parece melhor – normal que dizer “macaco”. Ele e o primo, neste momento, são atacados por uma leoa. Ela avança sobre eles e, mais uma vez, eles apresentam uma diferença imediata. É que o macaco, que funciona na base do instinto, dos comportamentos imaginários programados, faz o que deve fazer: reage ao ataque da leoa, que o mata e come. Mas Tarzan, quando vê a situação, pula para dentro do lago. Ele descobre, naquele momento, que pode nadar e fica fora do alcance da leoa. A partir deste dia, Kala começa a achar estranho, porque os macacos, muito raramente, e só forçados por uma situação extrema, conseguem entrar na água. Tarzan não, onde vê água mergulha, começa a nadar e se divertir. Quer dizer, uma vez que adquiriu a natação, e mesmo dentro de uma situação
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traumática, e talvez por isso, ele transforma aquilo num prazer, num momento de escape. Nadar é uma técnica que ele desenvolveu a partir da diferença que porta, o que lhe permitiu fazer o que o macaco não pode. Surge, então, outra diferença, que comparece como técnica, mas que está na dependência de uma função simbólica que se ainda não se articulou, está para se articular no mito. Tublat, aquele que era o macho da Kala, o padrasto de Tarzan, se não o pai, ele detesta Tarzan. Trata-se de um mito de luta de prestígio, a fêmea fica de bobeira com o bebê, o filhote... Talvez Tublat saque a diferença... Tarzan também odeia o macacão. Os dois brigam e, nessa briga, Tarzan aprende uma porção de molecagens, a jogar pedra, fruta, e depois sair correndo para um lugar onde ele não pode pegá-lo. Tarzan começa a manipular os cipós, consegue fazer uma armadilha, o macaco vem correndo e cai, coisas dessa ordem... De repente, ele inventa um nó. De tanto mexer no cipó, ele inventa o nó e, diz o texto: “Era um germe de pensamento para o magnífico sucesso que viria mais tarde”. Não é à toa que Lacan – eu ia dizer Tarzan – situa na concretude do nó uma espécie de núcleo lógico concreto da possibilidade simbólica, da escrita mesmo, do real do psiquismo, real da nossa lógica, o concreto da nossa lógica. Ele inventa o nó e o texto apresenta esta invenção como uma grande diferença, maior do que aquela outra da natação. Certamente que, tendo inventado o nó, a vida de Tublat torna-se um inferno, porque Tarzan podia, então, fazer as maiores safadezas com ele, puxar-lhe o pé, laçá-lo de longe, pular de uma árvore para outra. O bando de símios costumava fazer várias abordagens na cabana que fora abandonada pelos Clayton. Tarzan, que sempre ia junto, achava aquilo fascinante e misterioso. O texto mostra o tempo todo que tudo que pinta e aponta para a diferença específica deixa-o meio encucado. Eles têm uma certa linguagem. Eles se comunicam com limitações. Aliás, pessoas mal informadas querem dizer que é uma tolice circular as diferenças, a nossa diferença, como sendo a de sermos falantes. Querem apontar certas pesquisas etológicas que mostram que há uma certa linguagem entre os animais. É claro que há uma fala dos animais! Lacan, num belo pedaço de Seminário, nos diz que ele conversa
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com a cadela dele, que, afinal, fala, fala coisas para ele... O que é completamente diferente de ser determinado pelo simbólico. Existe uma relação de fala entre os animais e até dos animais conosco, mas isto não significa uma determinação de fala, sobretudo porque estão presos a uma fala que é limitada e é sempre a mesma. Lacan chama atenção para o fato de que a cadela dele jamais o toma por outro, contrariamente a nós, que sempre tomamos outrem por outros. É uma fala que, sendo estruturada imaginariamente, funciona como um código... como certos lingüistas querem fazer funcionar nossa língua. Kala, então, tinha lhe dito, na sua linguagem de animal naturalmente, que o pai dele era um estranho macaco branco, que ele procedia de alguma coisa estranha, mas ele não sabia que Kala não era sua mãe. Isto é interessantíssimo: o pai é de outra ordem. A mãe pode ser macaca mesmo, não tem a menor importância. O que é importante no mito é supor que o Clayton tivesse transado com a Kala e que, por um incidente qualquer, deu certo. Tratase de uma diferença que, se surgir no real, se equaciona como diferença simbólica. Não se trata do “Sr. macaco seu pai”, o Tublat. Há uma paternidade outra, só existente no nível do simbólico. Seja qual for a indicação, ainda que de fala animal, o portador desta diferença ôntica, da falta real, e no imaginário, acaba vindo a funcionar como marcação simbólica. É neste momento que acho mais importante o mito: seja como for que tenha surgido a humanização, qualquer historinha que seja, o importante é que, por uma diferença ôntica que é uma brecha, uma falta, um furo, uma coisa desta qualquer, o sujeito não tem outra saída senão funcionar simbolicamente. Um dia, quando a macacada vai em volta da cabana, Tarzan entra pela chaminé. É o único buraco realmente aberto. Não reconhece porta nem janela, pois está tudo fechado. Quando chega lá dentro, descobre os três esqueletos, do Clayton, da Sra. Clayton e do macaco que estava no lugar dele. Descobre as roupas, as armas, os livros com letras e figuras humanas como a dele. Neste momento, poderemos encontrar mais uma articulação, mais um momento do estádio do espelho – o primeiro momento foi de diferença pura, imaginária –, uma outra funcionalidade, também com imagens, mas
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entrando uma organização tipo letra, já em movimento: aquelas letras que vêm, afinal de contas, de seu pai. Foram portadas por ele. Ele mexe naquilo tudo e leva uma faca – algo que corta. “Levar uma faca” tem dois sentidos: portar uma faca ou levar uma facada. Justamente quando sai da cabana aparece um daqueles gorilas. Um gorilão chamado Bolgani, que o ataca. Ao invés de fugir como fazia sempre, Tarzan ficou. Tinha uma ferramenta, um utensílio, um artificio. (Tratarei disso com mais calma, o artifício faz parte do simbólico e não necessariamente da cultura. A cultura tem artifícios, mas o que determina o artifício é o simbólico. Também a cultura, supõe-se que ela seja um artifício, criado pelo simbólico. Minha questão continua sendo questionar se a cultura é condição sine qua non. Quero dizer que a condição sine qua non é o simbólico. A cultura é um artifício também, utensílio, ferramenta). Mas Tarzan não tem mais medo, porque tem a faca, que é um artifício com o qual pode enfrentar as armas naturais do gorila – e o mata com sua faca. O artifício valeu mais do que a natureza, ele violenta a natureza do outro, na medida em que ela é limitada e não conta com o artifício. Quando Kala (“Kala” é a mãe, o pai deve ser o “Falo”) ouve a gritaria do macacão, sente falta de Tarzan, corre para socorrê-lo. Encontra-o meio ferido e o macaco morto. Kala cuida dos ferimentos e Tarzan se recupera depois de um longo período. De certo modo, guardadas as devidas proporções, podemos colocar Bolgani, o macaco que Tarzan matou, em certa semelhança com Kerchak, o capitão dos gorilas. Tarzan mata um animal tirano, que não tem como levar um papo e quer impor a sua força de qualquer modo. Quando se recupera da doença, o primeiro pensamento que lhe vem à cabeça é recuperar a faca, que, na verdade, é a referência do artifício que ele tem. Um objeto que lhe dá uma referência simbólica. Burroughs termina o primeiro livro do Tarzan of the Apes com essa referência de Tarzan a um objeto que não existiria sem a vigência do simbólico. Experiências feitas em laboratório de psicologia, com macacos, demonstram que existem certas habilidades técnicas, tecnológicas – eu tiraria
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o “lógico” – que fazem parte de seu esquema imaginário. Mas é limitado. Já tentaram fazê-los falar, mas não conseguiram. E, no entanto, não encontram nenhuma real diferença fisiológica que proíba isso. É muito interessante. No nível em que estão as pesquisas não existe nenhuma diferença anatômica e fisiológica que não permita que eles falem. No entanto, não falam. *
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O segundo livro, então, começa quando Tarzan vai reencontrar sua faca no, agora, esqueleto do macaco que ele havia matado. Ele pega a faca de volta e procura, de novo, a cabana dos pais – os pais míticos, pois os pais dele são macacos. Desta vez, já tocado por sérios acontecimentos, ele não entra pela chaminé. Abre uma porta, entra e faz uma pesquisa apurada de todo o conteúdo da cabana. Interessa-se mais pelos livros, onde acha figuras de vários bichos, paisagens e, sobretudo, figuras parecidas com a dele, cuja diferença em relação aos macacos já notara no espelho. Está aí se compondo o estádio do espelho, longamente. Ele começa a imitar o que acontece dentro dos livros, em termos de figuras e, mesmo, a copiar, como se fosse um mero desenho, tanto as figuras quanto as letras, sem saber o que era. Precisa copiar as letras. Aparece uma grafia de Tarzan que miticamente, é por cópia... Certamente que a escrita só apareceu por uma exigência simbólica. Ao copiar a diferença, que não era imaginária, alguma coisa ele viu na grafia, alguma coisa supôs nas entrelinhas. Um dia, os macacos matam um outro macaco gigante, de outra tribo, e vão fazer uma grande festa – parece até o almoço do texto do Freud – sob a liderança de Kerchak. Irão despedaçar o gorila morto e comer-lhe as carnes. Tarzan, que devia ser o menos dotado de todos para conseguir um pedaço de carne, neste momento, em que tem uma faca, consegue o maior pedaço. Agarrou um membro inteiro, decepou e saiu correndo. Tublat, que é o pai dele, fica danado da vida e avança contra ele. Começa a persegui-lo. Tarzan facilmente foge dele. Tublat fica com raiva porque não conseguiu pegá-lo,
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começa a avançar contra as fêmeas e bate também em Kala. Tarzan avança contra ele – e o mata com sua faca. Já é a segunda vez que Tarzan mata um macaco. Tarzan mata animais. Ele está ficando com a origem simbólica em desenvolvimento. Ele matou o pai animal como tinha matado o outro gorila, da mesma espécie que o pai. Há tribos primitivas que chamam todas as pessoas da mesma geração de “pai” e “mãe”. Façamos, aqui, uma diferença. Freud chama “assassínio do pai” neste momento, eu diria uma “matança”: to kill é diferente de to murder. No texto, assassinar é diferente de matar. Não se diz assassinar um porco, e, sim, matar um porco, uma galinha. Quando Tarzan mata o pai macaco, ele dá um berro de vitória e diz: “Eu sou Tarzan, sou um grande matador – killer, em inglês –, que todos respeitem Tarzan dos macacos e sua mãe Kala”. Ele arranja uma grande confusão aí. É um macaco e está lutando, em prestígio, para ser um macaco muito importante. Depois de dizer-se mais poderoso. ele desafia todos os símios. Dia seguinte, continua a querer exercitar esse poder de matador. Vai atrás de Sabor, a leoa que matou o primo dele à beira do lago. Tarzan tinha a maior vontade de arrancar sua pele para fazer um casaco – talvez inveja dos macacos peludos. De repente, há uma grande tempestade, ele sente muito frio e começa a entender o que eram aquelas coisas dentro da cabana, o que eram as roupas. Fez uma corda, e este ganho ele não larga mais. Um dia, tenta pegar um búfalo com a corda e verifica que o búfalo tem mais força e o derruba, ele que subira na árvore para ficar fora do alcance do bicho. Tarzan sai correndo e pensa: “Se fosse a leoa eu estava frito porque ela iria me comer”. Então, reconhece certa limitação na sua técnica e nos seus utensílios artificiais... e vê que não pode, por enquanto, avançar sobre a leoa. Reconhecimento da limitação. Limitação que ele só pôde reconhecer porque não a tinha. Um macaco não precisa reconhecer sua limitação, a limitação está nele, ele funciona dentro de seus limites. Este momento é interessante porque, digamos assim, ainda na relação especular com o bicho, ele vai reconhecer a limitação por via do utensílio, do uso de uma técnica, corda, e não uma limitação que lhe vem pronta em seu imaginário. Aquilo que
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chamamos de estádio do espelho se monta, se articula lentamente para ele. Não que haja nenhuma seqüência genética, psicologia genética no caso. O texto está indicando, com uma série de experiências, a montagem de uma estrutura que só se dá depois, e sobrevirá de chofre, naturalmente. Já há um desejo aí em jogo, que o texto escamoteia. Quando se lembrou da roupa, ele poderia ter ido lá pegar. Mas ele gostou daquela pele. Afinal de contas, um casaco de pele é outra coisa... *
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De repente, Burroughs não tem como mostrar certos aspectos diferenciais e Tarzan, que era sozinho como ser humano, na emergência de ser falante no meio da selva, vai ter que encontrar outros seres humanos. Um dia aparecem outros homens e Tarzan percebe que ele, que era o rei da selva, que controlava os macacos, tinha sua segurança meio abalada pela presença de outros homens, o que é, também, um outro momento de limitação. Embora estes homens fossem de cor diferente – eram negros de uma tribo primitiva que existiria no seio da África –, portavam, também, coisas artificiais portavam o simbólico: armas, enfeites, utensílios. Quando ele vê essa gente pela primeira vez, está trepado numa árvore. Percebe que eram guerreiros e que fugiam de outros guerreiros que queriam matá-los porque teriam roubado marfim. É a primeira vez que ele vê outros homens e sente uma certa limitação. Um dia, Kilonga, que é filho do chefe daquela tribo de guerreiros, saiu pela floresta e se perdeu. Como era muito tarde, ele subiu numa árvore e fez um ninhozinho para dormir com segurança. No dia seguinte, o bando de macacos, de que Tarzan fazia parte, procurava comida e, justamente, Kala se depara com Kilonga. Ele joga a lança para matá-la. A lança bate nela. Ela se vira para atacá-lo como qualquer animal faria. Mas ele tem, também, arco e flecha envenenada, e mata Kala. Morre a mãe de Tarzan. Tarzan chora muito e consegue saber, por indicação de outros macacos, quem foi que a matou e resolve vingar a morte da mãe. Neste momento, tendo
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percebido que aquela gente é da mesma espécie que ele, fica em dúvida e se pergunta se poderá fazer justiça a pessoas da própria espécie, da própria raça. De qualquer forma, vai à procura de Kilonga para matá-lo. Ele está acostumado a lidar com animais na luta de prestígio, e vê Kilonga caçando javali com arco e flecha, coisa que ele não conhecia e que foi exatamente o que matou sua mãe. Depois, viu o primitivo fazendo uma fogueira e assando a carne para comer. Ele ficou tão interessado na novidade técnica que suspendeu a raiva para aprender aquele negócio que ele achou um barato. Quando o Kilonga se afasta, ele desce e vai lá experimentar a fogueira, assa a carne, come e acha muito bom. Aprende aquele negócio todo, adquire mais uma técnica e, depois, recomeça a perseguir o Kilonga. Luta corporalmente com ele e o mata com uma facada. Depois, examina muito o corpo de Kilonga. Ele ainda tinha dúvidas. Afinal de contas o outro era preto e ele branco. Talvez fosse macaco, ele não sabia, embora percebesse que era mais do lado dele. Examina muito o negro e, depois, se pergunta se poderia comer o cadáver. Afinal de contas, se matou – lei da selva – come. (Eu tinha um amigo que dizia que, ao invés de fazer pena de morte ou prisão, uma pessoa que mata outra deveria, agora, comê-la. Aí as pessoas parariam de assassinar. Matou para quê, se não está com fome?). Tarzan se dá conta que não se trata de um macaco e fica nesta questão. Será que ele pode comer? O texto diz: “Será que os homens podem comer os homens?”. Ele não come, larga o cadáver e se manda. Há uma pequena emergência, aí, de uma espécie de sanção do “proibido matar”. Uma emergência de lei que, no texto, parece ser animal mas não é senão uma emergência humana. Tarzan vai para cima da árvore, vê a aldeia da tribo do Kilonga e, de lá, enxerga uma mulher com um caldeirão de veneno preparando as flechas. Ele estava vidrado nas flechas e no arco, que era um outro poder. De repente, vem um guerreiro da tribo, vê o cadáver do Kilonga e sai correndo para avisar o pessoal. Eles todos vêm pegar o cadáver. Tarzan aproveita que o pessoal deixou a aldeia vazia, corre lá dentro e rouba as flechas que já estavam preparadas. De curiosidade, entra numa cabana mais enfeitada, que era, digamos assim, o templo da religião da tribo. Lá dentro, ele acha uma
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porção de coisas que vemos que têm algo parecido com a casa dos Clayton: enfeites, armas, etc. Descobre, também, uma porção de crânios, caveiras – devia ser alguma coisa que fazia parte da religião desses primitivos. É interessante notar, no texto, que a emergência do simbólico em Tarzan vai se dando rapidamente. Veremos, mesmo, mais adiante, que estes primitivos ainda ousavam matar-se uns aos outros – ainda que fosse aquela coisa que é permitida quando feita pelo grupo. Tarzan acha aquilo tudo muito engraçado e, de safadeza com a tribo, monta uma espécie de boneco, como se fosse um deus ou espantalho. Espantalho que seria o deus humanizado – uma crítica que o texto apresenta, uma crítica àquela adoração. Quando a tribo volta, ele cai fora roubando o arco e as flechas. Começa a usar o arco e as flechas entre os macacos, cada vez mais os dominando com sua presença tecnológica. Um dia, ele retorna à cabana dos Clayton. Olha longamente o retrato do seu pai, com quem ele se identifica. Tudo era um barato! Nesse momento, mais uma montagenzinha do estádio do espelho: ele começa a ver que é tanto diferente dos macacos quanto dos homens daquela tribo. Ele é particular, tem uma diferença. Poderíamos, mesmo, dizer que há nesta manipulação do retrato, dos livros, das figuras, das letras, etc., uma espécie de momento em que se completa o estádio do espelho, e que ele é marcado com o Nome do Pai, um reconhecimento que, miticamente, é feito entre Tarzan e o retrato do pai. Nesse momento ele encontra um medalhão do pai e pendura no pescoço. Interessantíssimo isto no livro! Ele investe na marca simbólica. Pendura no pescoço e continua a estudar os livros, identificando-se definitivamente com seu pai. Talvez exista aí uma primeira emergência da Lei. E vai haver uma segunda. Um dia, acabam-se as flechas envenenadas que ele havia roubado. Ele resolve voltar lá para conseguir mais. Quando chega à tribo de Kilonga, que morreu, encontra um festival: os primitivos, dançando, batendo tambores em volta de um homem amarrado numa estaca, que seria certamente morto e deglutido, ou coisa dessa ordem. Aproveita e rouba as flechas, já que todos
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estavam distraídos. Aí há um momento interessantíssimo. Uma vez terminado o estádio do espelho, e sua particularidade remetendo necessariamente ao simbólico, há uma fundação de culpa assentada na Lei. Tarzan pega um crânio daqueles que encontrou dentro da cabana dos primitivos e, de passagem, depois de ter pego as flechas, de cima da árvore, joga-o no meio da festa. Quando os primitivos vêem a caveira caindo do céu, tomam isto como sinal de agouro, saem espavoridos e não matam o prisioneiro. Espavoridos porque estaria acontecendo uma coisa terrível – isto nos faz lembrar aqueles crânios que os artistas renascentistas e pós-renascentistas faziam em processo de deformação anamorfótica, jogando-os por cima da onipotência dos reis; está num quadro de Holbein e em outros trabalhos. Lança aquilo que é a presença da morte. Os animais não são mortais, e se os primitivos insistem em matar é porque esqueceram da mortalidade, justamente porque matam. Então, quando pinta a morte para todos é a Lei que pinta junto. Neste momento, vejo uma pequena emergência da Lei como reconhecimento de que “não se pode matar”, assim como tinha já reconhecido que “não se pode comer o humano”. Daí por diante, Tarzan não mata mais ninguém. Pelo contrário, ele se torna um salvador de vidas em perigo. Ele mata os animais, mas não mata as pessoas. De repente, ele se encontra com Sabor, a tal da leoa que ele não esqueceu e cuja pele queria. Ele está com as flechas e enche a leoa de flechada, mas ela, sempre muito forte e vigorosa, não morre de saída e avança para ele. Mesmo assim Tarzan consegue matá-la com a faca. Arranca a pele e leva para fazer o casaco – desse desejo ele não abre mão – e volta para o meio dos macacos como sempre. Outra vez grita para eles que acaba de fazer o que nenhum deles jamais conseguiu, matar um indivíduo da espécie dos leões. Eles tinham enfrentado tudo, mas leão não, porque eles não são bestas: “Não vou que eu não sou leão”. Mais do que isto, ele berra alto para os macacos: “Tarzan não é um macaco. Tarzan, ele é...”, não acha a palavra... mas é mais inteligente que os antropólogos, que dizem que nós somos homens. O bando de símios vai lá e verifica perplexo a proeza de Tarzan. Respeitam-no e não ousam abrir o
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bico. Kerchak, o capitão da equipe, estava lá, se enfurece e resolve desafiar Tarzan. Ele adorou, já havia matado um gorilão que apareceu quando ele saía da cabana, matou o pai, mas o gorilão chefe, o poderoso chefão, ainda não matou. Ele entra em luta corporal com Kerchak, que é a última figura animal que tinha que matar para ficar demonstrada toda a diferença e dominar os animais. Ele mata Kerchak com sua faca. Outra vez, a faca... Aí termina o segundo livro do Tarzan of the Apes. Ele se torna, então, o rei dos macacos. O jovem Lorde Clayton é quem manda na selva. *
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Esta historinha toda é para pensarmos juntos, na tentativa de demonstrar o mito do surgimento da diferença, do surgimento da Lei. Tarzan se deparou até com uma cultura – a dos negros no interior da África –, mas que tinha uma barbárie tal que ainda permitia o assassínio e a deglutição. O mito deste surgimento, o testemunho deste escritor, eu gostaria de comparar com o mito de Édipo e, também, com o mito do nascimento de Cristo, em outra oportunidade. Acho que está mais ou menos indicada, no tratamento da estória de Tarzan como mito, a possibilidade da emergência do falante como diferença ôntica, a emergência da Lei como um “não matar”, independentemente da criação de uma cultura. Tarzan pega, miticamente, emprestada a faca, utensílio do pai, as flechas de outra cultura. etc., mas, do ponto de vista do seu movimento com estes objetos, eles são artifícios, achados ou roubados. Miticamente foi preciso o autor botar uma cultura para ele achar uma flecha, mas ele podia têla inventado, como inventou o nó. Ninguém o ensinou. Não se pode tratar este texto como se fosse uma narrativa inteira e na ordem direta. É melhor tratarmos um pouco como se trata o sonho, o mito, podendo trocar as ordens. Se tomarmos como uma narrativa tipo romance, onde as coisas têm começo, meio e fim, teríamos que considerar o John Clayton que também lutou, tentou impor a sua questão simbólica e fracassou, por um acidente ou coisa desta ordem. Prefiro não começar a história de
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Tarzan no mito de sua origem, de seus antepassados brancos, e, sim, em sua emergência como um bebê nas mãos de uma macaca. Um filhote, um macaco, como coloquei da vez anterior, que, aparentemente, foi aceito. Logo, se o imaginário do bicho aceitou, é. Um filhote nas mãos de macacos e que, no entanto, porta a diferença. E no qual o mito, para dar um pouco de verossimilhança, faz com que seja um lorde inglês. Tiremos as Inglaterras da face da terra e lá coloquemos, miticamente, num passado remoto, um bando de macacóides, ou o que se quiser, desde que não sejam humanos, falantes, determinados pelo simbólico. Suponhamos, então, que houvesse ali, não em um, mas em milhares de Tarzans, pintado uma diferença, uma diferença real. Aí poderemos entender que o significante não pede licença para existir, ele só pede um lugar onde possa se ancorar. Não precisa de uma cabana, pode ser uma árvore. Para o macaco, uma árvore é tudo menos uma árvore! “Árvore” é uma palavra. O tratamento que um sujeito defeituoso, do ponto de vista do imaginário, dá a uma árvore, a uma pedra, não será jamais o de simplesmente acomodar-se ao imaginário dado. A pedra que lá está no real vai, para esse bicho novo, deslizar, como significante. Isto é que é significante. Não é preciso nenhuma fundação genética, do ponto de vista espiritual, a não ser miticamente, para que o sujeito venha a apoderar-se do significante, porque tudo que ele aborda é significante. Ser significante significa que um real tocado escapa da limitação estritamente imaginária. Um macaco enquanto tal pega uma pedra real? Não! Ele tem relações imaginárias com o ambiente e ponto! Mas estes que portam a diferença, eles pegam uma pedra tão real que é significante. Porque o real se coloca, ou seja, porque falta o imaginário para fechar o circuito dele com a pedra, é preciso que o simbólico pinte. Isto é que é o significante. Qualquer troço que pintou diante do ser é significante. O significante se apóia no real, o que é diferente de coalescer isto tudo numa letra. Significante não é letra, tanto é que o mito foi inventar, nas letras que lá estavam, para ele coalescer significantes e sintomaticamente estabelecer o Nome do Pai. A letra é o significante situado em relação a um campo significante delimitado. A faca,
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por exemplo, enquanto faca é objeto, mas enquanto esquema protético da anatomia de Tarzan é uma letra. Tarzan é como todo ser falante, um biônico. O homem não é um animal anatômico, é um animal biônico, cheio de próteses. Qual é a anatomia do homem? Será que um tratado de anatomia, do ponto de vista médico, é a descrição de um animal? A minha anatomia tem asas, tem motor.. “A anatomia é o destino”, é claro!, e o pessoal pensa que é aquele negócio de peru e xota. Não é isto... Ninguém anda sem muleta. Falei, na vez anterior, sobre o deficiente físico, que todos nós somos deficientes físicos, por mais prótese que a gente tenha... Há uma falta real de imaginário em Tarzan. Se ele fosse um macaco, seria simplesmente um macaco com um imaginário e com todos os comportamentos aprontados, por mais elásticos que fossem. Há um código lá inscrito que, por mais elástico, situa um macaco como um macaco. Ele tem o mesmo circuito num programa, do ponto de vista computacional. O macaco é macaco na medida em que tem um corpo próprio. Isto para distinguir o que chamo de autossoma, genético, de um etossoma, que está marcado no corpo dele como seus comportamentos, enquanto macaco. O código não aumenta no sentido de diversificação. Pode aumentar em tamanho, pode ser muito elástico. Os psicólogos vivem metidos dentro de laboratórios de aprendizagem com ratos, etc.. quando estão, simplesmente, elasticizando as competências - no sentido chomskiano do termo – que são estritamente imaginárias, programáticas, cibernéticas, daquele bicho. Aprendizagem do rato, o “homem dos ratos”, Skinner... Não adianta botar a filha na jaula, como ele botou, porque ela vai falar, há uma diferença... Há um texto muito engraçado, de Lacan, chamado O rato no labirinto, no Seminário 20, em que ele fala do “homem dos ratos”... Há uma falta. Não há completude imaginária no falante. Ele tem um imaginário que, no entanto, não se fecha, tem uma racha, uma abertura... Algum conjunto aberto, e exatamente nessa brecha é que tudo se subverte no imaginário. O real não é senão a falta, aquilo que sempre falta, falta inscrever-se. Isto é que Lacan veio trazer como a diferença ôntica do falante, não ontológica, mas ôntica e inabordável. Uma vez que o falante porta o real da falta, da falta de
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inscrição, não tem outra coisa a não ser tornar tudo significante, tudo deslizante. Não adianta Deleuze, e até ditos lacanianos como Serge Leclaire, que teve a graça de me dizer que estava contra o “imperialismo do significante...”. Não entendi nada, perguntei o que era isso e ele não quis me explicar. Não estou dizendo que o conceito de significante não seja superável, mas, por favor, primeiro superem! Não tenho nada, até segunda ordem, que seja ferramenta mais apurada. Faca melhor do que esta não me deram, então, não adianta xingar a faca. Se não, é mera rebeldia: “Papai criou o significante, eu estou com raiva dele, então vou dizer que é imperialista”. Não se trata disso. Há uma vergonhosa (hontologie, de Lacan) falta real no imaginário que posso reconhecer, simplesmente, por experiência. O ser falante nasce absolutamente incompetente, faltoso, incompleto, e sucumbe se algo não vier socorrer essa falta, se algum expediente não for inventado. Antigamente, víamos nos livros de ciências naturais que o homem não tem as mesmas ferramentas naturais que outros bichos, unhas, couro, esporas... Este era o tipo de argumento que usavam. Já é uma incompetência bem grande quando lidamos com uma anatomia originária, e, mais do que isto, uma prematuração que encontramos no bebê de qualquer sujeito falante. Está lá, é dado, não tem como sair desta! As poucas crianças encontradas entre os animais - as crianças lobo, etc. – ou sucumbem, ou sobrevivem absolutamente na imitação do animal e socorridas pelo expediente do animal que as elege, como foi com Tarzan. Se não, ele não sobrevive, fica numa infantilização longa, numa longa infância, se não perene. Então, na verdade, há uma falta constitutiva. Ele não tem como chamar-se, como reconhecer-se de tal ou qual espécie, com sua corporeidade e com seus relacionamentos fundados no comportamento dado. Ele saca isso de dentro do seu imaginário. Falta alguma coisa. Não é falta no sentido de estar faltando isto ou aquilo, é falta radical. Tem uma abertura, então, não se fecha. Tem uma brecha, uma ferida e, por aí, é que ele pode tomar todo e qualquer surgimento diante dele não como um deslanchador de estruturas de imaginários gestálticos aprontados, mas, simplesmente, como algo que chamamos de significante, justamente porque desliza. É aqui não sendo aqui. Acompanha o
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movimento da falta. Não se consegue produzir uma ontologia, uma filosofia, muito menos uma metafísica... é um dado bruto. Falta, e porque há falta, substituições são feitas a partir dos elementos que são todos tomados como significantes, porque eles não são nada, eles não funcionam. A letra, então, que designa a marcação simbólica relativa a essa falta, é a letra, também, do conjunto vazio. Esta falta não é senão portar um conjunto de coisa alguma, numa certa região de nossa prática. Olhamos para o animal e não lhe falta nada para ser o animal que é. Ultrapassou seus limites, ele morre e acabou-se. E, pior que isso, ele não consegue nem morrer. Atingir a morte ninguém atinge, e nós morremos para atingir a morte, isto é importante. Pode-se, também, chamar a falta de outra coisa, de vazio como faz o zen, ou de excesso... Deleuze, por exemplo, diz que não falta nada, que há excesso. Quero dizer que é exatamente porque falta, numa comparatividade imaginária, em relação aos três registros – real, simbólico e imaginário –, porque naquele registro que dá sustentação aos animais alguma coisa falta, o excesso se funda. Só que é o excesso de outro nível, do registro do simbólico. Não é imaginário. Ele pode até se imaginarizar, e se imaginariza freqüentemente. Está aí a neurose. Mas o nível de produção é simbólico, substituição de uma coisa por outra, o tempo todo. É de artifício. Não adianta uma ideologia da natureza, não existe esse troço. É uma ideologia discursiva como outra qualquer, o discurso da árvore, da água limpa, etc., tem tanto valor quanto o discurso da água suja... É questão de prática, interesse... Não sei de saída o que sou. Um animal sabe o que é. Tenho uma falta que subverte toda a estrutura. Qualquer coisa de fora, ou qualquer coisa da minha corporeidade, é puramente significante. Estou completamente esfacelado, com uma série de significantes que vem de fora e que eu não tinha. Mas, num certo momento, através da minha imagem, que para mim é completamente outra, por reforço de treinagem de um outro, pela palavra assertiva de um outro, faço daquela imagem a minha suposta imagem: “Ah! Então eu sou aquele cara lá”. O que é já o regime de metáfora: “Eu sou como você”. Isto é o que se situa no estádio do espelho. Esta pregnância imaginária
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que tomo de outro – o espelho está simplesmente como a lógica do acontecimento –, eu não posso nem assumi-la sem a sua intervenção simbólica, se eu não tiver a assertiva de outro, através de alguma coisa que não é simplesmente ver a retratação, de me dizer de algum modo: “Sim, trata-se de sua imagem”. Só posso colar isto no regime do imaginário, e numa assertiva que vem do lado simbólico que nos prega ali naquele lugar. É isto que Lacan chama de instância paterna. Significa simplesmente a chegada da metáfora, a chegada do simbólico através de via metafórica. *
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Neste mito do Tarzan, que retomaremos, do ponto de vista estrito, se esquecermos toda aquela mítica de sua vinda da Inglaterra, etc. – como até hoje se vê, compra-se por aí uma porção de livrinhos bastante delirantes que dizem que o homem veio de seres de outros planetas que desceram aqui, “serão os deuses astronautas?”, coisas dessa ordem, na mesma tentativa de buscar, de inventar uma historinha para a nossa origem –, veremos que isto não interessa, seja qual for a história, até um acidente atômico ou uma explosão solar num certo momento... o que acontece é que apareceu e está aí! Se pegarmos, então, o mito de Tarzan nesta mesma linha – aquela criança, filho de macaco que, por portar o simbólico, começa a ser um macaco maluco e agir através de artifício –, veremos que há uma produção de artifício assentada na insistência do simbólico que vem em substituição à falta real e, com isto, temos aquilo que se pode chamar de cultura. É preciso distinguir a cultura, do simbólico. A cultura não é o simbólico. A Lei existe em função do simbólico, ainda que a cultura não se tenha estabelecido. Com isto, faço a distinção entre a Lei que diz “não matar” e a instituição da cultura que diz “é proibido o incesto”. Quero passar uma faca aí no meio porque está tudo embrulhado na teoria até hoje. Freud tem razão em dizer que não cometer o incesto é uma prática que interessa à formação da sociedade, justamente porque organiza os grupos. Funciona como reforço
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imaginário dizendo que eu sou um homem de uma espécie e você é um homem de outra espécie. Minha briga é aí. Quero me perguntar se não é, justamente, a interdição do incesto pouco trabalhada, pouco levada às suas últimas conseqüências abstratas, que vem re-imaginarizar e separar os homens em espécies. A interdição do incesto é universal? É condição sine qua non da convivência dos sujeitos? Ou é uma longa fase na história da humanidade? Esta é uma grave questão. É interessante que no mito de Tarzan não se fala de incesto, como também não se fala no Gênese, na Bíblia. Por que este recalcamento? No Tarzan, trata-se da diferença e, de repente, pinta a questão de não matar o homem. Trata-se de interdição, não necessariamente de incesto. Temos, então, um ser que porta esta falta real e, certamente, tudo que ele tocar será significante. E, no encadeamento deste significante, de retorno, ele só pode recuperar isto no simbólico. Portanto, o simbólico pré-existe à sua própria recuperação. É o só-depois. É o movimento do simbólico que só se articula no só-depois. Ele pré-existe à sua própria instalação. No que há a falta, e tudo é tratado de modo significante, tudo se coalesce em forma de lei e o simbólico pré-existe à própria assunção do simbólico. Só funciona como nó. Se não se fizer, como Freud fez, a hipótese do simbólico puro, não se chega à psicanálise. É preciso inventar o inconsciente como um lugar, uma tópica, onde os significantes apenas se articulam uns com os outros, o lugar onde se dá o processo primário, metáfora-metonímia, onde, simplesmente, não há tempo e ninguém diz qual é a metáfora privilegiada. Tem que “sartar”! É claro que, porque existe real, simbólico e imaginário entrelaçados, estas coisas se coalescem, se decantam sintomaticamente, incorporam-se... Mas o inconsciente, no seu funcionamento, é simbólico puro. *
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A intervenção psicanalítica pretende ser no mesmo nível e na mesma ordem do inconsciente. Nada tem a ver com os sentimentos, as emoções,
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estas coisas que os psicólogos pretendem tratar... Porque tudo isto se borda e se entretece em pura relação significante. É lá que se tem que mexer. O resto não interessa. Para que vou falar com o padre, se posso falar com o papa... Se posso tocar no lugar da determinação, para que vou fazer biodança?
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DESDE O PARA ISSO: DE ADÃO A ÉDIPO Convido vocês para um pouco de reflexão, de leitura, sobre pelo menos três ocorrências da nossa cultura. A primeira, é o chamado Gênese, o primeiro livro da Bíblia, no Velho Testamento. A outra seria a historinha de Édipo, o mito que existe ao seu redor. Leiam Édipo Rei e Édipo em Colona, de Sófocles. E, finalmente, outra estorinha também muito interessante, que está bem inserida em nossa cultura: o nascimento de Jesus Cristo. Está, aliás, na televisão, por causa da Páscoa. *
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Outro dia, alguém me disse: “A Bíblia só tem sexo”. Eu disse que isto não é verdadeiro, mas é uma inferência que as pessoas fazem, não do texto do Gênese, mas do modo como ele costuma ser narrado para as crianças – e ficamos com isso na cabeça. É o modo como ele é tratado no cotidiano, por esse cristianismo de rua, e quem sabe mesmo se com certo interesse da dominação católica... Existem algumas evidências de incesto dentro do Velho Testamento, mas um incesto assim meio secundário, feito pai-com-filha, como mostramos naquelas sessões sobre o alcoolismo*, no Seminário passado, sobre as filhas de Lot – incesto com o pai, por uma razão muito justa para a cultura * Publicadas com o título de O porre e o porre do Quincas Berro Dágua. Rio de Janeiro, Aoutra Editora, 1985. Seminário de 1980.
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ocidental: fazer a procriação do seu grupo. O que me interessa é o Gênese até o capítulo 12, por aí, até Babel. Trata-se de procurar aí, já que esse é o começo, aonde está alguma regra de interdição do incesto. Por outro lado, naquela historinha que as pessoas narram no cotidiano religioso, dá para inferir que haja um grande incesto na existência do ser humano. Se no começo eram Adão e Eva, e todo mundo descende deles, teve que haver incesto para haver procriação. Mas a Bíblia nada diz a este respeito. E muito menos diz que o homem começou com Adão e Eva. Leiamos com cuidado o capítulo 1, aonde fala da criação dos céus e da terra, e de tudo o que neles há. A cada conjunto de produções, de criações, que Deus fazia – comentaremos quem é Deus depois –, Ele ia contando os dias da terra. Só no sexto dia, na véspera do repouso, que seria algo como o domingo de hoje – por isso é que os casais até hoje só fazem sexo aos sábados – é que Ele vai criar o homem. “E disse Deus”, parágrafos 26-7, “façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arraste sobre a terra. Criou, pois, Deus, o homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Homem e mulher, acho que é um abuso do termo, porque, certamente, machos e fêmeas os criou. Veremos por que mais adiante. Imediatamente, Deus abençoou esses novos produtos e lhes disse: “Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”. Quer dizer que, imediatamente, aquilo começou a se multiplicar. Se essa tradução é válida, deve ter sido assim como foram criados os animas, que foram uma porção... Mais adiante, quando Ele produz o Jardim do Éden, cap. 2, 16-l7, diz: “Ordenou o Senhor Deus ao homem: de toda árvore do jardim, pode comer livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás. Porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Esta era aquela árvore que, digamos, portava simbolicamente o conhecimento do bem e do mal. Ou seja, portava a diferença entre bem e mal. Posso inferir daí que o conhecimento do bem e do mal é o conhecimento da morte. Não pode comer da árvore da morte. A árvore da morte é a mesma coisa que a
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árvore do sexo. Ou seja, todo ser sexuado morre, diferentemente de todo ser assexuado, porque é a reprodução de um indivíduo que porta a semente, mas não se subdivide. A secção, portanto, já está instalada naquela árvore. Imediatamente depois, como uma conseqüência lógica, Deus se manca de que tinha proferido uma coisa espantosa e continua, cap. 2, 18: “Disse mais o Senhor Deus: não é bom que o homem seja só”. Espantoso, porque quando se lê os capítulos anteriores, ele não estava só, pois Ele os criara com o mesmo nome – aliás, de Adão – criou os machos e fêmeas, talvez aos borbotões, porque ele mandou aquilo proliferar. Já devia, então, ter uma porção, quando ele pensou o segundo pensamento. O sétimo dia deve ter durado milênios. “Far-lhe-ei uma ajudante”, continua Ele. Impressionante que a coisa que vem, nova, vai se chamar “ajudante” do homem. Como Ele vai fabricar essa ajudante? Está no feminino, “uma” ajudante. Antigamente, quando criou Adão, Ele o criou com dois sexos. São o mesmo indivíduo: Adões de dois sexos. “Então o Senhor Deus”, cap. 2, 2122, “fez cair um sono pesado sobre o homem” – portanto, sobre macho e fêmea – “e este adormeceu. Tomou-lhe uma das costelas e fechou a carne no seu lugar. E da costela que o Senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e a trouxe ao homem”. Como é que tem duas criações? É uma estupidez do texto? Depois de passar milênios nas mãos das pessoas? É porque são autores dispersos, que não se encontraram? Isso deve ter um sentido, senão não passava... Depois desse troço todo, parou, e descansou. É depois do descanso, na outra semana, que Ele começa a pensar que o homem – que já era uma porção de machos e fêmeas – precisava de uma ajudante... Para perceber o quê? Para ajudar a fazer o quê? Vejamos que Ele pensou nessa ajuda imediatamente depois que tirou a inocência do homem. O homem foi criado assim feito bicho, ele se reproduzia aos milhares, machos e fêmeas... E, justamente, diante de um ato de proibição, ao proibir que comesse de pelo menos uma, árvore, que é exceção no paraíso, sem explicar coisa alguma. Essa proibição já é bem clara, como tentei explicar aqui de outras vezes, como indicação do impossível. É impossível
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comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sem dar de cara com o impossível, com o Real, com a morte! Esta morte, certamente, não é nenhuma morte física, é aquela que Lacan chama de segunda morte, essa com que nos deparamos todos os dias. Não é a morte de ninguém, é a instância da morte, a instância letal. Então, no momento em que Ele indica que o impossível está lá – no momento em que faz um furo naquele Imaginário que estava lá, em que cria o real para o ser falante, para o homem –, imediatamente, pensa em ajudar o homem a entender isto. Ele cria a mulher como artifício e entendimento da morte, do real, do conhecimento da árvore do bem e do mal – artifício, portanto, do conhecimento da diferença. Ele funda a Outra. O homem macho e fêmea, já tinha fundado, criado, e, uma vez que é indicado o impossível, que pinta o real, que falta alguma coisa no imaginário, o furo é criado e Ele vai precisar colocar a Outra, ou o Outro, talvez, até, se colocar. E, imediatamente, a coisa pinta como desejo, já que é o furo. Como pintou a mulher? Aqui já não é a fêmea. Quero distinguir isto. A mulher vai aparecer certamente num sonho do homem. Ele cai num sono profundo para sonhar esse negócio de que veio Deus, tirou uma costela dele, tapou e pintou a mulher. A diferença pintou como sonho que realiza um desejo que, naquele momento, é criado para o homem, como produção de falta do seu corpo. Pintou, então, no inconsciente dele, por via onírica, uma historinha que desse conta da proibição que já devia estar lá. A ajudante que veio aparecer, veio como resultado de uma elocubração de desejo, que se fundava naquele momento, porque era criada a interdição, a falta, como resultado de uma articulação, de um sonho, ou de alguma coisa que venha a produzi-la como diferença. Lacan está careca de dizer: “A mulher não existe”. O máximo que podemos fazer é sonhá-la, digo eu. Em sonho aparece uma historinha que, traduzida, talvez pudesse significar que alguma coisa foi tirada e pintou do outro lado como diferença, como falta. O que já é manifestação do desejo, que foi criado desde o momento em que o furo apareceu na fala divina de proibição do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
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Essa tal mulher, que não é a fêmea, vai realmente ajudar o homem, no sentido genérico do termo, a entender as coisas. Engraçado que, nesse capítulo 2, a coisa termina assim: “E ambos estavam nus, o homem e a mulher, e não se envergonhavam”. Apesar de terem sonhado essa diferença, de terem sacado a proibição como alguma coisa de estranha, certamente neles mesmos, eles ainda não tinham vergonha de portarem esse furo. Vão precisar de toda uma articulação para ter vergonha na cara, para que o furo compareça e eles articulem alguma coisa sobre ele. Quando estamos no regime da narrativa, não podemos esquecer que o que comparece às vezes como cronologia é narrativa sucessiva do que é cultural. O fato de eles ainda não se envergonharem significa que uma batida está faltando, porque a coisa já está dada, desde o momento em que foi proibido comer daquela tal árvore lá. Foi proibido porque é impossível. Quando é impossível é sinal de que não se pode fazer isso porque dá necessariamente naquilo: “Não ponha a mão no fogo, porque queima”. E o Deus aqui não é idiota, ele diz. “Não coma, porque morre”. É absolutamente verdadeiro. A interdição é uma maneira de dizer o impossível. Não se pode fazer o sujeito experimentar a morte, pela qual ele não passou, a não ser dizendo. “Não chega lá, que dá nisso!”. A morte que nós vivemos não é aquela que vai ocorrer se a gente morrer, é aquela que não se pode atingir. *
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Imediatamente depois disso, pinta a tal da serpente, no capítulo 3: “Ora a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor tinha feito”. Há muito tempo, e em muitas culturas, que a serpente aparece como esse animal astuto. Talvez por alguma relação imaginária com os movimentos de enrolar, de estender, o imprevisível de seu bote, talvez, até, a sua configuração, que lembra o pênis, alguma coisa que funciona sintomaticamente, que a gente não sabe de onde vem... é uma astúcia, toda especial. Em suma, essa tal serpente, ou seja, o grilo, na cabeça de Eva, podia ser uma serpente,
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ou podia ser um grilo. Não sabemos, por exemplo, se naquele tempo se dizia que o cara estava “com serpente na cabeça”, quando se queria dizer que tinha alguma coisa na cabeça de alguém: “Está com minhoca na cuca”. Pinta um grilo, uma minhoca, na cabeça de Eva... Certamente tinha que ser na dela, pois ela foi criada para isso, para ajudar o homem a pensar a respeito da proibição. Ela representa a falta. Ela não é a falta, ela a representa para o imaginário. Os corpos femininos são representantes, do ponto de vista de representações, do imaginário da falta, da falta do pênis. O que não significa que não falte ao Outro, na virada do simbólico. Aí é que entra toda aquela tolice da criança, no pensamento de Freud: como ele via no imaginário dos corpos a diferença, ele tenta equacionar, pressionado por essa diferença imaginária, por essa representação. Mas, voltando, a serpente diz, cap. 3, 1-5: “É assim que Deus disse: não comereis de toda a árvore do Jardim? Respondeu a mulher à serpente: dos frutos das árvores do jardim, podemos comer”. Vemos que ela também foi informada, não precisou Adão nenhum lhe dizer. “Mas o fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus, não podeis comê-1o, nem nele tocareis, para que não morrais.” E a serpente, como bom grilo que era. respondeu: “Certamente não morrereis”. O pior é que estava dizendo a verdade, porque o morrer aí não era o morrer físico. Não é à toa que a serpente é símbolo da ciência até hoje. Ou seja, sofre de certa histeria. Senão, vejamos: “Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. E o pessoal fica esperando até hoje, deve ser a serpente da vida... O que a mulher não sabia é que Deus era igualzinho a ela, que Ele também não sabia, não conhecia a morte, Ele também estava proibido de comer, a não ser como morte, como exceção. Só Ele pensava como exceção. Quer dizer, para o homem, Deus sabe; para a mulher, Deus não sabe coisa nenhuma. Mas, só depois é que ela vai sacar isso. “Então, vendo a mulher”. cap. 3, 6-7. “que aquela árvore era boa para se comer, que era agradável aos olhos” – ela tinha que ver que era bom, ela fora trazida para isso, para ajudar o homem a conhecer essas coisas –, “e que
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era uma árvore a ser desejada para o seu conhecimento, tomou do seu fruto, comeu e deu de comer a seu marido” – duvido muito que tenha a palavra “marido” na Bíblia: deu ao seu homem – “e ele também comeu. Então, foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus”. Quer dizer, ao conseguir fechar o círculo, que tinha começado com a proibição, passou ao sonho da diferença, e depois se concretizou, justamente, ao fazer o que era proibido e não conseguir. Isto é, dar de cara com o real, com o impossível. Aí se manca, de uma vez por todas, que há uma grande diferença, e percebe que são duas. Perceber que são duas é perceber justamente que há uma diferença radical, mais nada. A coisa está desvelada agora. A diferença pintou a olhos vistos no imaginário das representações. Já tinha pintado no inconsciente, em forma de sonho... Nesse momento, Deus chama pelo homem, e ele se esconde, cap. 3, 9-15: “Onde estás? O homem respondeu: ouvi a tua voz no jardim, tive medo porque estava nu e me escondi”. Quer dizer, ele deu toda a bandeira. Desse momento em diante, ele não podia deixar de fazer isto, as coisas estavam desveladas. “Quem te mostrou que estavas nu? Comeste da árvore que ordenei que não comesse?”. Aí diz o homem: “A mulher que me destes por companheira deu-me da árvore, e eu comi. E o senhor Deus perguntou à mulher: que é isso que fizestes? Respondeu a mulher: a serpente enganou-me, e eu comi”. A serpente era o grilo que ele mesmo colocou na cabeça da mulher, quando ela foi criada. Aí vem aquela história toda, aquele pito divino no casal humano, falante, reconhecedor da diferença aonde a Lei já começa a pintar, como possibilidade de ser reconhecida como tal... Diz Deus, mais abaixo, à serpente: “Colocarei inimizade entre ti e a mulher... esta te ferirá na cabeça, e tu a ferirás no calcanhar”. Elas estão presas: toda mulher tem uma cobra no pé, e toda cobra pega no pé da mulher. O grilo continua lá mordendo. A mulher pisa na cobra o tempo todo. Está lá a diferença, ainda questionando... Nada se universaliza, a coisa fica em aberto, como está no esquema de Lacan. Aí vem a questão do suor do rosto, do trabalho, esse negócio todo, que é uma conseqüência muito espontânea de ter deixado de ser animal. Está determinado
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pelo simbólico daí por diante. Nesse momento entre, então, cap. 3, 20: “Chamou Adão a sua mulher Eva, porque era a mãe de todos os viventes”. Não é a mãe de todos os homens, é a mãe de ‘todos os viventes’. Quer dizer, pintou a diferença, sacaram até na ordem do vivo. Então, é o próprio Deus quem vai fazer roupas para eles e dizer que se vistam. Aí Deus fica preocupado com as artes do casal primevo e os expulsa do paraíso. Isto por uma razão muito lógica: eis que “o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal”. Isto é dito por Deus. Ou seja, a serpente estava certa. Quer dizer, Deus sofre dessa diferença, cap. 3,22: “E agora, que ele não estenda sua mão e tome também da árvore da vida e coma, e viva eternamente”. Por isso é que ele os expulsou do paraíso. Não foi, na verdade, para punir pelo fato de terem feito aquilo. A punição já foi aquela – e não é uma punição de obsessivo – conseqüência lógica do fato de reconhecer a diferença, pelo menos do falante: vai ter que trabalhar, que deixar de ser animal... E expulso para não continuar naquele desejo de totalização... de comer da árvore da vida, e se tornar imortal. Se o homem comesse da árvore da vida, ele superaria Deus? Por que não? Ele já se tornou como um de nós, com o conhecimento do bem e do mal, se se tornasse eterno... Será que Deus é eterno? Não tem nada por aqui me dizendo que Ele seja. Certamente, se todos os homens morrerem, Ele acaba. É preciso ter sempre um homem saudando Deus. Se o homem comesse da árvore da vida e vivesse eternamente, se a morte não fosse o estatuto mesmo da diferença, o que deveria acontecer? O medo de Deus é que o homem venha a acabar com a morte que experimentou na primeira vez. Há duas maneiras de o sujeito escpar da morte: uma é ser animal, pois animal não morre, falece. Ele não tem nenhuma angústia de morte. Outra, é tornar-se imortal, nunca mais morrer. E já que não vai morrer mais, dá na mesma. Seria um arqui-animal, porque sem morte não existe o falante. É interessante notar que Ele bota, para barrar o retorno do homem ao paraíso, uma espada flamejante. É uma espada sozinha. Talvez, uma lâmina
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cortando, barrando a entrada por um corte, por uma barra... Não tem anjo nenhum portando a espada – isso só tem nas figurinhas da igreja católica. Os querubins estão aí. Querubim é um arqui-anjo. E um anjo nada mais é do que um significante, uma coisa besta, como diz Lacan. É puro significante. Continuando, o texto diz, Cap. 3, 24: “E havendo lançado fora o homem, pôs ao oriente do Jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante, que se movia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida”. Quer dizer, o significante é trazido, mas há uma espada sozinha, flamejante, circundando o Jardim do Éden. Ele colocou um corte, onde estavam os querubins... É igual à piroca voadora dos gregos. Aí acabou-se a festa. Termina o terceiro capítulo. *
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O capítulo 4 é o tal de Abel e Caim, ou Caim e Abel... Todo mundo conhece a história. Os dois eram irmãos, filhos de Adão e Eva. Eram, pelo menos, os nomeados. É interessante que, no Velho Testamento, o sujeito tem uma porção de filhos, mas, de vez em quando, ele nomeia algum, e outros não. Quer dizer, a nomeação vale mais do que a consangüinidade. Como vimos, cap. 1, 28, já estava tudo procriando a granel. De repente. é que pintou a diferença. Esses dois, Adão e Eva, é que foram depois da diferença. Ambos são, então, filhos de Adão e Eva. Um é pastor e o outro é lavrador, e eles fazem oferendas ao Senhor. Cada um oferece o que tem, naturalmente. O senhor atentou mais para Abel e para a sua oferta de carne. E não há nenhuma explicação de por que ele queria carne e não verdura. É uma preferência que o Velho Testamento não explica. Isto é uma coisa que – assim como no momento em que Deus ordenou que não comesse já temos toda a diferença que foi contada num sonho. e em reconhecimento –, aqui, no textinho de Abel e Caim, já esta tudo embutido, a meu ver. Mas, continuando, Caim ficou danado da vida, e, Cap. 4. 6-7, “Deus lhe perguntou: por que ficaste irado? E por que tua fisionomia esmoreceu? Se por ventura procederes
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bem” – claro que Deus já estava sabendo que Caim ia matar Abel – “não serás tu aceito? E se não procederes bem, o pecado jaz à porta. E sobre ti, será o teu desejo, mas sobre ele deves dominar”. Que desejo é esse que Deus viu na cara de Caim? Ele viu que Caim ficou danado da vida com a diferença de recepção das oferendas, e que Caim estava doido para matar o Abel. O desejo dele era: “Eu mato esse desgraçado!”. Ao ver isto, Deus diz: “Eu sei que você tem esse desejo, mas você deve dominálo’’. Esta é a grande proibição, fundadora da Lei. A Lei que foi apresentada até aqui é, simplesmente, de que o real é impossível de ser tocado. É uma lei que indica para o real, pura e simplesmente. Ela na verdade não proíbe. A aparência de proibição que ela tem é de indicar o real; de não se poder tocá-lo. Quando se diz para uma criança: “Você não pode botar a mão no fogo”, isto não é só uma proibição, porque, se puser, queima mesmo. Agora, é só uma proibição dizer. “Você não pode matar o seu irmão”, porque se ele for matar, ele consegue. O que barra, então, é a proibição que vem como possibilidade de dominar esse desejo. Ela é que funda a Lei entre os homens. O fundamento da Lei, que se escora, justamente, na Lei da diferença, é a proibição de matar, e a ordem de dominar, pelo menos esse desejo. No entanto, Caim não consegue dominar esse desejo – que é único proibido e é o que funda a Lei – e mata Abel. Deus sente o cheiro de sangue de Abel na terra e diz para Caim, Cap. 4, l0-15: “A voz do sangue do teu irmão está clamando por mim desde a terra. Agora maldito és tu, desde a terra, que abriu a sua boca para, da tua mão, receber o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais, ela, a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim ao Senhor: “é maior a minha punição do que posso suportar”. Isso é extremamente importante. “Eis que hoje me lanças da face da terra e, também, da tua presença ficarei escondido: serei fugitivo e vagabundo na terra, e qualquer um que me encontrar, matar-me-á”. Ele cria a Lei. O Senhor, porém, lhe disse: “Portanto, quem quer que mate Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o matasse quem quer que o encontrasse”. Falávamos, da outra vez, da pena de
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morte. É o cúmulo do assassínio você desmoralizar o assassino, assassinando. Isso é que era o pedido, a imploração de Pierre Rivière, lá do livro organizado por Michel Foucault: “Se vocês me matarem, aí fico livre da justiça, porque vocês são tão assassinos quanto eu”. É nisso aí que a punição é maior do que a que ele pode suportar. Ele pode suportar até que o matem, mas suportar carregar a sua ousadia contra a Lei que funda a diferença entre os homens, sem receber o mesmo tipo de barbárie, é carregar isso para o resto da vida. Por isso é que ele está marcado. Chamo a atenção para o fato de que a Lei se funda nesse momento aí do Velho Testamento. Está embutido na história de Caim e Abel. Não é na expulsão do paraíso, que é uma conseqüência espontânea de haver a palavra, de haver a diferença que é condição de o real ter surgido. É, repito, nesse momento que se funda a Lei, a única que está fundada na diferença. A interdição do Incesto é outra história... Pintou o real, pintou a diferença, necessariamente tinha que pintar todo aquele processo com a serpente, para equacionar essa diferença, o sono, etc. Aí está o simbólico, que emergiu porque existe o real e o imaginário, que, este, está furado. Uma vez que pinta o simbólico, a diferença vem comparecer nítidamente, o homem passa a ter vergonha na cara, a portar a diferença. Ou seja, não posso jamais ficar inteiramente à vontade diante de nenhum outro ser humano, pelo simples fato de que eu não teria a mínima relação com ele. Ou seja, não há relação de espécie alguma entre dois seres falantes, porque não há relação entre significante e significado. Tenho que ter vergonha na cara porque jamais, ninguém, nenhum outro ser falante, será idêntico a mim, de modo que eu possa ficar inteiramente à vontade. Posso acrescentar imensamente o número dos meus “à vontade”, mas ele não é absolutamente absoluto. Aí está o simbólico, em sua desarmonia, me deixando com vergonha. Entretanto, sobre esse simbólico, porque a diferença pintou, e se tornou na cara, como vergonha – insisto em dizer como Freud, VERgonha, Verwerfung, Verleugnung –, pinta aquela possibilidade de, se a diferença é radical, qualquer ato de assassínio é destruir a diferença. É a Lei de que é impossível eu destruir a dife-
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rença, acabar com a Lei, que me funda, a mim também. Por isso, fico, se sou um assassino, se sou Caim, marcado como aquele que passou por cima da Lei e, justamente por isso, os outros não podem me tocar. Caim não pode matar Abel. Não é impossibilidade, é proibição pura e simples. Isto tem um resultado: se ele assassinar um único diferente, ele assassinou a diferença como tal e, portanto, ele se destituiu eticamente, e acabou com a sua posição de falante. Ele é um falante que é como se fosse um animal, pois ele eliminou a diferença. Ele carrega essa marca de ser um animal, mesmo sendo um homem, de agir como se fosse um animal. Não tem outra Lei no Velho Testamento – e eu suponho que não existe outra. O Velho Testamento brinca com essa tentativa, essa tentação de totalidade. Nesse momento aí não há cultura nenhuma a ser fundada, está fundada a Lei, que tem referência no real da diferença, e no simbólico, ocupando esse real. É preciso entender a escansão que estou tentando fazer: não há nenhum incesto aqui, nem para fundar a Lei. Isto é suficiente para fazer os homens verem o próximo como diferença pura e simples. Ter vergonha na cara é respeitar o próximo. Não é amar o próximo, não! Ninguém tem que amar o próximo. Isto é uma besteira! Basta simplesmente respeitá-lo como diferente... Estou propondo, então, que se coloque a origem da Lei explicitada, como transação entre falantes, na relação entre Caim e Abel e seu fundamento lógico está lá no paraíso perdido. Abel morreu. Adão e Eva só tinham dois filhos. Sobrou Caim, que começou a fazer gente, é claro! Com quem? É um incesto? É com Eva? Aqui não diz nada disso. Fêmeas, havia aos quilos. Desde lá, Cap. 1, 28, estavam procriando a granel. Seja quem for que ele tomasse como mulher, e quantas mulheres fossem, ele começou a fazer filho... “E Caim”, cap. 4, 16-24, “saiu da presença do Senhor para morar na terra de Nod, a oriente do Éden. E Caim conheceu sua mulher, a qual concebeu e deu à luz Enoc”. Se tomarmos a filharada de Caim: ele teve Enoc, com essa tal mulher que ele conheceu; Enoc teve um filho chamado Irad; Irad teve
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Maviavel; o qual teve Metusael: o qual teve Lamec. Esse conjunto de gerações sucessivas termina em Lamec. Esse tal Lamec, uma vez, chegou em casa e disse às duas mulheres, Ada e Sela – ele tinha duas, oficiais: “Ouvi a minha voz, escutai, mulheres de Lamec, as minhas palavras, pois matei um homem, por me ferir, e um mancebo, por me pisar”. O bicho era violento. “Se Caim há de ser vingado sete vezes, com certeza Lamec o será setenta e sete vezes”. Tornou a assassinar. Aqui termina, some, a geração de Caim. Começou com assassínio, e termina com assassínio. Passadas cinco gerações, termina a descendência de Caim, com um assassínio. Imediatamente, corta, tipo cinema. E, de repente, Adão conhece outra vez sua mulher, Eva, Cap. 4, 25-26, que deu à luz um filho que tem o nome de Set. Abruptamente se interrompe a geração de Caim e começa outra filharada de Adão que vai dar nessa turma toda do Velho Testamento. *
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Passemos ao capítulo 5, que vai tratar justamente da genealogia do tal Set. Ele viveu 912 anos. Enós foi seu primeiro filho nomeado, e vai ser o responsável por sua genealogia. Ele viveu 905 anos e seu filho se chama Cainã, que viveu 910 anos. Seu filho se chama MalalieI e viveu 895 anos. Jared, seu filho, viveu 972 anos. Este teve um filho chamado Henoc, que viveu 365 anos. Morreu cedo. A Biblia diz, Cap. 5,24: “Deus o tomou”. Depois vem o tal de Matusalém, que viveu 979 anos. Nem Adão viveu tanto. Ele teve um filho chamado Lamec, o tal com o mesmo nome que encerrou a geração de Caim. De repente, esse Lamec não mata ninguém, só imita o outro, parece até o João XXIII... Ele tem um filho que vocês conhecem muito, é o chamado Noé. Noé é uma esperança. Lamec diz, Cap. 5, 29: “Este nos consolará acerca das nossas obras e do trabalho das nossas mãos, os quais provêm da terra que o Senhor amaldiçoou”. Noé teve três filhos machos: Shem, Ham e Jafé. *
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Todo mundo conhece a historinha de Noé. Este já é o capítulo 6. Tem a corrupção do gênero humano, aquela baderna, aquele negócio todo, ninguém estava entendendo nada... a Bíblia fala aqui dos gigantes. Nota-se que há uma certa desordem sexual, também. Ela é, mesmo, permitida. Se não vejamos, Cap. 6, 1-2: “Sucedeu que quando os homens começaram a se multiplicar sobre a terra, e deles nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, e tomaram para si como mulheres todas as que escolheram”. Há uma certa bagunça, tanto do ponto de vista da violência, ou seja, uma certa imitação da descendência , como, também, uma desorganização nas reproduções. Mas, Cap. 6, 8-9: “Noé foi bem visto pelo Senhor. Estas são as gerações de Noé. Ele era justo e perfeito em suas gerações, e andava com Deus”. Noé, ele é, portanto, o tal cara que inventou a família. A Bíblia não falou em família, até então... Só fala de Noé em diante. Isto é que chamo de “creodo”. Nesse momento aí, denuncio uma incapacidade de se organizar nas suas relações interpessoais de reprodução, etc. Não dá para se pensar em termos de conversões, porque já era uma bagunça antes. Certamente, Noé conseguiu inventar uma organização que mantinha uma repetição ordenada. Ele simboliza aquele momento em que, rebatendo os processos da aliança sobre os processos da consangüinidade – que nada tem de natural, que são a observação detalhada das reproduções animais –, ele começou a fazer do modelo animal de reprodução um computador da sua espécie. Isso é que é a chamada família: um computador copiado da reprodução animal, sobre os falantes, para dar alguma ordem. Noé seria talvez o símbolo do fundador do Neolítico, no qual ainda estamos. Ainda não se fala de interdição do incesto, mas Noé dá uma organização. Ele faz um pacto com Deus, tem o dilúvio para acabar com a bagunça, mata os bagunceiros todos, e se cria aquela, separação de Noé, com a sua própria linhagem. A arca é extremamente importante: ele bota os bichinhos todos lá dentro, vai se acasalar e fazer seus filhos se acasalarem, na mesma ordem que os bichinhos. Este é o mito que eu quis criar, ou recriar, pois acho
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que está aí, todo mundo vê. Essa cópia da reprodução animal é aquilo que Lévi-Strauss quer colocar como sendo da natureza. Não tem natureza nenhuma. É simplesmente aplicação de sua competência simbólica na observação da reprodução animal, e tomando aquilo como se fosse um ábaco, um computador que pode dar organização à coisa, em espécie, sobre a reprodução dos outros. Assim como posso utilizar o ciclo da lua para a lavoura, por exemplo, utilizo um ciclo reprodutivo, que descobri nos animais, para nomear a minha espécie. Parece, então, que Noé bota uma ordem. Não se fala em interdição do incesto, mas se fala nos filhos de Noé conseguindo uma mulher, fazendo isso e aquilo, sem nenhum retorno. Se antes não se falava de incesto, ele não estava também desproibido. Não estava em questão. *
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A Lei se funda na proibição de matar, de eliminar a diferença. A Lei se funda na vergonha na cara, e no respeito à diferença, por razões lógicas e reais, e apontando para o real – e isto é suficiente para a existência do ser humano. Entretanto, por incapacidade, por falta de ferramentas simbólicas preparadas, o creodo – quer dizer, aquilo que estava na cara – era estudar a reprodução animal, usá-la como computador, e inventar o Neolítico, inventar a cultura. Cultura, para mim, não é a produção dos artifícios. Isto é efeito do simbólico, e posso dar o nome que quiser. O que chamo propriamente de cultura é aquilo que suponho ter-se fundado com o Neolítico. Ainda que fosse no Mesolítico, é de fundação neolítica. Trata-se da marcação territorial – e isto é uma dica que está no livro de Deleuze –, da organização, da demarcação das pessoas, da interdição do incesto, para poder separar direitinho as reproduções, as linhagens em ninhadas, como na “criação” dos bichos, e, portanto, da fundação da ordem de parentesco como computador, para dar lugar a cada indivíduo nascido como sujeito, numa estrutura de nomeação. Até hoje, essas duas coisas são apresentadas como se estivessem engrazadas e inseparáveis: a fundação da Lei e a interdição do incesto. Quero supor que
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se pode fazer distinção. Ainda que a interdição do incesto fosse caminho necessário, se é um creodo, tem que funcionar sempre. Em qualquer cultura, assim chamada, que compareça, será desse modo. Está aí o totemismo que não me deixa mentir. Mas, ser um caminho necessário não significa ser universal. Não significa que o Neolítico vá durar sempre, e que tenha durado sempre. Tanto é que teve um começo. Cultura é igual a neurose, é a mesma estrutura. É aonde quero ir, dar uns saltos pelo menos... porque o trabalho da psicanálise é uma dissolução da cultura. História e cultura são a mesma coisa. Muitos historiadores – o pessoal da esquerda – querem fazer revolução dentro da cultura: dá a volta, e fica no mesmo lugar. A história nada mais é que essa produção fabular de vir contando, montando as suas idéias, a respeito dos acontecimentos, no âmbito restrito da cultura. Por isso, uma certa histeria muito convicta fala em “ciência da história” – a serpente que vai afinal se entregar. Sem cultura, não há história. Ou seja, a história é uma coisa que arremeda, talvez, esse modo de computar as coisas, esse modo reprodutivo de computar as coisas. A história não tem nenhum interesse para a psicanálise. O que não é a mesma coisa que isso que chamamos a estória individual do analisando, sua fábula pessoal, seu mito, seu culto individual. Justamente – é o que veremos adiante – porque somos seres que surgimos dentro da tal da cultura, não há como não pintar o Édipo: essa estrutura que Freud vai descobrir em cada um, que é cada um estar dentro da cultura. Porque o computador da espécie tem sido, durante esses milênios, edipiano – marcando os lugares. Eu me pergunto se não há uma pequena diferença entre o Deus até Noé, e depois de Noé. Antes de Noé, é um Deus simplesmente criador. Depois, é um Deus constituidor de povos. Javé, criando um pacto de fundação de um certo povo, tem o modelo da cultura por trás. O Deus da psicanálise é Outro. Noé queria um corte para que ele pudesse começar tudo. É um afogamento geral. O afogamento é um nível de renascimento em qualquer lugar. Por isso, precisamos de outro dilúvio. Não adianta querer fabricar. Isso
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é coisa de Deus. Por isso, não acredito em revoluções. Toda revolução é cultural. É preciso que Deus funcione, para trazer outro dilúvio. *
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Deus, então, fica contente com essa historinha toda da arca, com aquele negócio todo, o “saco” noético... Deus, Cap. 8, 21-22, diz: “Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice. Nem tornarei mais a ferir todo vivente como acabo de fazer. Enquanto a terra durar, não deixará de haver a sementeira e a seiva, o frio e o calor, verão e inverno’’. Quer dizer, eterniza a cultura. É preciso aparecer o João apocalíptico, para prometer alguma coisa que preste. Mas, vamos retornar à questão de Abel e Caim que deixamos em aberto: por que animal era interessante e vegetal não? Por que Deus abençoa os seus filhos e diz – o que já tinha dito para os homens, mesmo antes do surgimento de Adão e Eva, que eles deviam dominar todos os outros seres –, cap . 9, 1-6: “Sede frutíferos, multiplicai-vos e enchei a terra. Terá medo e pavor de vós todo animal da terra, toda ave do céu, tudo que se move sobre a terra e todos os peixes do mar, e nas vossas mãos estão eles entregues. Tudo o que se move e vive vos servirá de mantimento, bem como a erva verde. Tudo que vos tenho dado. A carne, porém, com a sua vida, isto é, com o seu sangue, não comereis’’. É um recurso de uma certa cultura judaica que começa a aparecer. Ele, então, repete: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem terá o seu sangue derramado”. Na cultura, a pena de morte, a retaliação, aí aparece, mas agora já organizada por alguma lei cultural. A ética radical da Lei não permite isto: não se toca em Caim. Quando a cultura se arruma assim direitinho, para poder se organizar, é preciso matar quem mata. Espantoso! De qualquer forma, Ele dá esse domínio sobre todas as coisas. Os amantes da natureza que se cuidem, porque , na verdade, é direito do falante, que não tem nada a ver com a natureza, dominar os outros seres. Apesar da Sociedade Protetora dos Animais, a gente come carne, graças a Deus! Podemos
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matar à vontade os seres vivos... Mas, agora, se a gente achar, de repente, que não vale a pena destruir alguma espécie, tão bonitinha, então, faz-se um pacto. Não há nenhum crime em se matar, e sim em se assassinar. Não se assassinam vacas, se assassinam pessoas. Por que será, então, novamente, que Deus achou mais engraçada a produção de Abel, mais do que a de Caim? É um negócio estranho. Abel matou animais e serviu a Deus... Todos nós conhecemos pessoas que, certamente, amam os animais. Acham um crime matar o bichinho! São herbívoros. O homem é um animal onívoro, feito porco, come de tudo, mas há uns herbívoros, tipo vegetariano, que não concebem que se possa comer carne, porque tomam como assassínio matar o bicho. Exatamente como Caim! Caim não matava bicho, mas ele matou Abel. Eu me pergunto se a coragem de ver o sangue de um ser que seria como eu, se eu não falasse, não é justamente dada a mim pelo saber de que o sangue do falante, eu não posso derramar. Quem gosta muito de bicho... geralmente gosta mais do que de gente. Eu farejo essa coisa na relação de Abel e Caim. Posso reinar sobre a natureza, matar o animal, não preciso tremer porque enfiei uma faca no bicho, ou fiz uma tourada, por mais bárbara que ela pareça... é um bicho. A coragem de sangrar os animais, isto para existir é preciso que eu tenha distanciado esse sangramento do imaginário, de comparar esse sangramento com o sangramento do homem. São sangramentos completamente diversos. Não tenho que preservar, por exemplo, uma determinada espécie animal porque seja criminoso destruí-la. Mesmo porque ela pode desaparecer espontaneamente. Por que devo preservar algumas espécies sem matar? Porque há outros homens que gostam delas e as querem. Eu não respeito aquela espécie. Eu respeito a opinião de outrem que gosta daquela espécie. Se ninguém gostasse, eu podia matar que dava na mesma. Os filhos de Noé, então, que saíram da arca, foram Shem, Ham e Jafé. E destes foi povoada toda a terra. Aí a Bíblia vai apresentar a genealogia com as famílias, com as descendências desses três.
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De repente, como o inconsciente não perdoa, chega ao capítulo 11: “Toda a terra tinha uma só língua e um só idioma”. Os homens resolvem fazer o seguinte, Cap. 11, 4: “Edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cujo cume toque no céu, e façamos um nome para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra”. É o que começaram a fazer. Agora não há mais restrições para tudo o que tentaram fazer. Teve uma “parana” na cultura. Já que conseguiram montar aquele negócio tão bonitinho e tão complicado, resolveram criar um estado absoluto, mesmo povo, mesma língua, mesmo nome... e, agora, uma mesma cidade: levantar uma torre como um marco único da existência do homem. O que fez o inconsciente? Bandalhou com elas. É o episódio da Torre de Babel. Deus chega lá e diz, Cap. 11-7: “Eia!, desçamos e confundamos sua linguagem, para que não entenda um a língua do outro. Assim, o Senhor os espalhou dali para a face de toda a terra. E cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu nome de Babel. Porque ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra. E dali, o Senhor os espalhou sobre a face de toda a terra”. Depois que conseguiu fundar o partido de Noé, a família, a cultura, a “parana” veio e criou-se o estado totalitário. Como o inconsciente não se submete a isto, imediatamente começaram a pintar as diferenças... bandalhou-se o coreto. Ou seja, se quisermos apostar no inconsciente, como fazia Freud, não há totalitarismo que se agüente. Pode assassinar muita gente, mas o coreto sempre se bagunça, graças a Deus! Mais uma vez, no texto, apesar do totalitarismo, depois de Noé, a diferença pinta e exige ser respeitada. Porque se não o for, não se entende. Agora, tem que ser respeitada, porque, se não, não há entendimento possível. Tudo é mal-entendido, graças a Deus! Primeiro tentaram abordar a árvore do bem e do mal, e pintou a diferença. Tentaram, de novo, fazer a mesma coisa, pintou a diferença. É o mesmo relato, mas o importante é que os momentos são diversos. No começo,
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uma certa inocência, e pinta a diferença. Depois, constituiu-se aquela coisa toda, precisa-se totalizar, fazer um monumento único, uma língua única, uma marca única, e isso fracassa, graças a Deus!
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ÉDIPO EM CALÚNIA As pessoas insistem em me disciplinar... Disciplina não é rigor. Rigor é coisa de psicótico, disciplina é coisa de obsessivo, nada tem a ver uma coisa com a outra. Da vez anterior, a tentativa foi suspeitar no Velho Testamento dois tempos de constituição daquilo que, na antropologia estrutural, e mesmo também em certos aspectos da teoria psicanalítica, parece estar conjuminado num só movimento. Ou seja, aquilo que é constitutivo da Lei e aquilo que é constitutivo da ordem de parentesco. Nossa tentativa é destrinchar esses dois momentos, na suposição de que a Lei em sua fundação independe da interdição do incesto. Falamos, então, dessa passagem de Adão a Édipo, no Velho Testamento, como um exemplo de instauração de Lei, e daquele momento. que eu suspeitava estar em Noé, quando alguma coisa lineariza a ordem computacional que teria sido rebatida, digamos assim, imaginariamente sobre a consangüinidade, descrita na reprodução animal. *
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Continuamos, hoje, com o projeto, pensando, talvez um pouco aleatoriamente, sobre os textos de Sófocles: Edipo Rei e Edipo em Colona. O enfoque freudiano não está, na verdade, em questão. Isto, em função da suposição que adiantei: a cultura se instala como ordem de parentesco e
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como alguma coisa da ordem de um creodo. No funcionamento das ordenações do falante terei que supor que, uma vez que se está mergulhado no campo da cultura, isso funciona, se queira ou não. Daí uma questão que virá mais tarde para aqueles que estão interessados em ler Deleuze, por exemplo, que sempre questiona por este lado: a possibilidade de se desconsiderar o que é edipiano de dentro da cultura que é edipiana. Isto porque aquele trabalho de Deleuze e Guattari apresenta as coisas como se pudéssemos desconsiderar a edipianização que, na prática analítica, o analisando traz necessariamente, indefectivelmente. O que eles apontam talvez até fosse muito bonito, se fosse verdade. Não por nenhuma esquizofrenização, mas se aquela idéia de “rizoma”, aquela proliferação multifacetada e independente de qualquer unificação, fosse viável, seria até muito interessante. Talvez seja exatamente o que a psicanálise pretenda produzir a partir do seu trabalho. Quero supor que é alguma coisa assim, o que é inteiramente diferente de supor – como é preconizado no texto deles – que não há nenhuma edipianização de fato e de direito. Eles fazem, mesmo, acusação à psicanálise como campo de ação, como prática. Não ousam acusar Lacan disso porque tudo que eles têm foi tirado de Lacan. Se alguém faz rizoanálise, é Lacan mesmo. Praticou isso e, talvez, tenha trazido isso como invenção técnica, Não se está dizendo aqui que esse Édipo freudiano não existe aí, que ele é forçado, que é uma barra forçada por Freud, ou que é uma solução forçada como um gabinete psicanalítico. Muito pelo contrário. O chato é que nunca pinta em cima do divã alguém que não seja Édipo. Quem dera que pintasse! Imaginem se um cara chegasse, deitasse e começasse a rizomizar. Seria um barato! Porque é um saco ouvir Édipo o dia inteiro... Todo mundo está careca de conhecer esse cara, e ele se repete sem a menor novidade. Em verdade, não aparece nenhum rizoma, aparece, sim, é um fecaloma, aquilo que, em bom português, se chama cagalhão: aquele desejo edipiano, grosso e sólido, em cima do divã. Não estamos, portanto, pretendendo dizer que, nisso que estamos procurando, se está tirando a evidência de uma estrutura edipiana, já que, se
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for verdade que a cultura herda aquele creodo, todo mundo caiu lá e, até hoje, não se sai. Estou dizendo que a cultura é o Édipo, se isso estiver certo. De qualquer forma, Lévi-Strauss está certo quando diz que a interdição do incesto é a cultura, é claro! Talvez toda a obra de Lévi-Strauss seja decorrente dessa oposição fundamental entre Natureza e Cultura, quando, do nosso ponto de vista, não há possibilidade de se fazer essa oposição, simplesmente porque não se conhece o que seja a “natureza”. *
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Eu gostaria, então, de fazer algumas considerações sobre o tal do Édipo. Não da estrutura edipiana apresentada por Freud no corpo da prática psicanalítica, mas retomando algumas coisas do mito enquanto tal, sem muita ordenação, por enquanto. Farei um breve resumo, retirado do Édipo Rei: um oráculo proíbe Laio, rei de Tebas, de ter uma posteridade – o termo é “proíbe”. Se nascer um filho, esse filho matará seu pai e se tornará o marido de sua mãe. Contudo, Laio e Jocasta têm um filho. Imediatamente, o pai fura os calcanhares do recém-nascido para que ali se possa passar um laço e carregar o corpo. Depois, ele o entrega a um escravo com a ordem de expô-lo no Citeron. Tomado de piedade, o escravo cede a criança a um pastor de Corinto, que a leva ao rei do seu país, Polibos. Este, que não tem filhos, cria-o como seu próprio filho, com o nome que ele tinha como criança encontrada, criança achada: Édipo, que quer dizer pés atados, furados. Que terror é isso, essa tentativa de amarrar os pés das pessoas? Na carta de Lacan, a respeito da dissolução da Escola Freudiana de Paris, é uma das coisas que ele diz: “Querem amarrar os meus pés”. Como se dissesse: “Vale tudo, Escola, tudo bem!, mas amarrar os meus pés, não!” Tornado adolescente, jovem, Édipo conclui dos ditos de um bêbedo – alguém que estava de pileque, enfiando veritas – que, talvez, não seja filho do rei. Ele corre a Delfos, para consultar Apolo. Deixando de responder sobre
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este ponto, o Deus lhe prediz simplesmente que ele matará seu pai e casará com sua mãe. Então, ele foge de Corinto para longe daqueles que ele supõe serem seus pais. Em sua fuga, ele encontra Laio num cruzamento de estrada. Provocado e atacado, ele o mata com toda a sua guarda. Ele cometeu, então, aí, o crime de parricídio. E a profecia começa a se realizar. Ele chega a Tebas, onde a esfinge, monstro com cabeça de mulher e corpo de leoa, dizima os tebanos, matando todos aqueles que se mostram incapazes de resolver seus enigmas. Édipo triunfa, encontrando a solução para o enigma e livrando Tebas do monstro. Os tebanos lhe oferecem a realeza, o lugar que fora ocupado por Laio, e a mão de Jocasta. O oráculo está cumprido: Édipo é marido de sua mãe e tem dois filhos, Etéocles e Polinices, e duas filhas, Antígona e Ismênia. Esta introdução é necessária, porque Sófocles começa o drama com Édipo já instalado, com filharada e tudo. Tebas é tomada por um mal misterioso, uma espécie de peste ou coisa assim. Os homens morrem em massa, as mulheres, os animais, as terras ficam estéreis. O povo suplica ao rei a salvação da cidade mais uma vez, já que ele havia salvo a cidade da esfinge. A essa altura, ele enviou a Delfos o irmão de sua mulher. Creonte, que vai ser o rei no lugar dele, o cunhado, o tio, no caso... Este último retorna com a resposta do Deus: a cidade suja do sangue derramado deve ser purificada pelo castigo do culpado. Trata-se, evidentemente, do assassino de Laio. Édipo se engaja em castigar o culpado. O espectador assiste, então, à busca, em cujo decorrer, pouco a pouco, a verdade vem à luz, Édipo fica convencido de sua dupla culpabilidade: parricídio e incesto. Jocasta se mata e Édipo fura os olhos. Nesta tragédia de Sófocles, Édipo aparece como um homem cheio de boas intenções – talvez seja isto que o perde – contra quem o destino investe e cujos esforços para triunfo da justiça chegam, finalmente, à sua ruína. Vemos sua ansiedade crescer à medida que o círculo se fecha em torno dele, até o desastre final. Embora não premiada pelos juizes atenienses, essa peça, Édipo Rei, foi sempre altamente apreciada, e com justiça. Sua data é incerta, em
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torno dos 430 a.C. Isso é um resumo. O mito apresenta uma grande variedade de textos. *
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Alguma coisa disse para Laio que ele não podia ter filhos. Essa proibição aí não aparece assim nos textos do mito que eu pude ver. Por que ele não podia ter filhos? Por uma razão muito simples: se tivesse o filho, o filho mataria e casaria com a mãe. De onde Laio tirou essa idéia? O que significa um oráculo? Do nosso ponto de vista, pode ser simplesmente uma emergência do inconsciente. Não precisava ninguém ter dito a ele que ele deveria temer isso... Se não por nada, pelo fato de que Laio não é filho de chocadeira, pelo fato de que tenha sido filho de alguém, deve ter tido os mesmos desejos incestuosos e parricidas. Portanto, sabia o que vinha pela frente. Mas, se pensarmos assim, vamos ao infinito para trás, e sempre será assim. Consideremos, então, Laio como começo, é o jeito que temos. Vamos fazer de conta que ele é inocente – coisa que ele não é. Ele, então, sabe disso. Ele podia, por exemplo, absolver-se da questão, simplesmente não tendo filhos. Mas ele não tem controle sobre isso: a pílula ainda não tinha sido inventada, a vasectomia... Bom, podia cortar o saco, mas ele não era burro. Então, ele continua na dele, e, de repente, aparece o tal do filho. Ele quer se livrar dele, de qualquer maneira. Mas não é bem de qualquer maneira. Urano e Saturno, lá na mitologia desse povo, devoraram os filhos. Até o dia em que um dos filhos, Júpiter, conseguiu escapar, fez a revolução do filho e arrumou as coisas de outro modo. Laio não pensa nisso. Ele teme tanto a verdade – que ele já conhece, que é a dele mesmo – e, simplesmente, fura e amarra os pés da criança. Ou seja, ele empecilha simbolicamente seus movimentos e a expõe no Citeron. Essa exposição da criança é uma coisa que aconteceu em várias culturas, sobretudo na cultura grega. É uma espécie de jogo de azar. Acontece, por exemplo, no Velho Testamento, na vida de Moisés, a criança é posta num cestinho, jogado no rio. É o que Jean-Jacques Rousseau
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fazia com os filhos dele: botava na porta do asilo e caía fora. Ou seja: “Eu não vou matar, não vou me tornar um criminoso”. Expô-lo, quer dizer, colocá-lo numa situação tal em que, se for salvo, tudo bem!, se não for... Mas, fica expulso da situação prevista do seu nascimento. Isso se fazia muito com os filhos considerados bastardos. Para não ser assassinato – como faziam, por exemplo, os senhores de escravos, nos Estados Unidos, onde, quando a mulher transava com um crioulo daqueles e aparecia mulatinho, eles matavam na hora – e como não queriam nessas ocasiões exercer esse crime, então expunham. Expunham à situação drástica que poderia resultar na morte, no desaparecimento... Laio estava, então, entregando ao destino, ao acaso. Em função desse acaso, certamente que alguma coisa ia suceder, e ele não vai precisar nem ficar sabendo. Mas, do nosso ponto de vista, já que é o destino do Édipo que está em jogo, pelo oráculo, vai se cumprir esse destino. Laio não fez outra coisa senão entregar ao destino. Esses atos de exposição têm sempre um sentido de começo absoluto. O sujeito é deslocado da sua situação e se dá a ele um começo radicalmente novo. Quer dizer, se ele não morresse, não acontecia nada daquilo. Entretanto, mesmo com esse recomeço absoluto, porque ele foi entregue ao destino, e como o destino não o matou, ele vai cair no mesmo destino. Vai cair porque está cercado, ele não tem saída. É feito o analista: por mais que queira não escutar Édipo, o Édipo volta e fala nos ouvidos dele. Simplesmente porque a situação em volta é edipianizada. Cai-se necessariamente no modelo que está em vigor. Ora, Laio está sempre fazendo das suas. Ele está fazendo o quê, ao ouvir o oráculo e não assumir a paternidade, mesmo com essa perspectiva que o oráculo lhe contou? Ele está sendo um Édipo absoluto. O tipo de Édipo não resolvido, é o Laio. . . Tal pai, tal filho, aí no caso. Se Laio pudesse supor, ou tivesse aprendido, a diferença entre o Pai Ideal e o Pai Simbólico, ele não ia fazer uma besteira dessas. Se esse assassínio do pai é simbólico, ele não seria morto por nada. Assim como, se essa transação com a mãe é necessária de saída, ele podia suportá-la se remetesse a uma posição paterna, simbólica, o
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acontecimento que o oráculo estava narrando com toda a verdade. Quer dizer, na verdade, Édipo cai nessa porcaria toda da vida dele justamente porque não lhe é apontada a paternidade. Não estou dizendo que ele seja um psicótico, foraclusão do Nome do Pai. Estou dizendo que essa diferença entre a paternidade imaginária e a paternidade simbólica é evitada, Laio é que não quer se encontrar com isso. Laio é que não saca, e não sacando, passa adiante para Édipo a questão. Édipo, na tentativa de sair de alguma boa maneira do que disse o oráculo, faz a mesma besteira. Como ele não sabe que o oráculo está se referindo a essa transa edipiana, que vai ser resolvida em nível simbólico, ele foge do que supõe serem os pais dele para não matar o Pai Imaginário, e vai cair justamente nas mãos do mais imaginário de todos, que é Laio. Quer dizer, o projeto já está pronto na mão de Laio. Dizem alguns que as versões mais primitivas do mito de Édipo não falam de incesto, mas, apenas, de parricídio. Mais uma vez, retornamos àquela questão que foi apontada no Velho Testamento. Quando se vai procurar as versões mais arcaicas do mito de Édipo – Sófocles não está apresentando uma versão muito arcaica – digamos, de alto momento cultural da Grécia, o pensamento ateniense do ciclo tebano, ele não comete incesto: ele simplesmente mata Laio. O crime é parricídio. Parricídio, mas ele não sabe o que está fazendo. Então, o crime é assassínio, do ponto de vista de Édipo. Laio sempre foi meio picareta. Ele estava fugindo do rei Pélopes porque quis faturar seu filho, Crisipo, sem sua permissão. Fato que era considerado, pelo menos, deselegante na Grécia. Pélopes corre atrás dele para lhe dar uma surra ou qualquer coisa assim, e é nesse momento que Laio encontra Édipo e é morto. Laio está sempre ludibriando possibilidades legais, está sempre incapaz de transar simbolicamente com os outros. Na verdade, o complexo de Édipo devia se chamar complexo de Laio, que é quem prepara a tragédia de Édipo por um não reconhecimento do simbólico: ele não pode transmitir o que não tem. Existem vários trabalhos em torno do mito do Édipo, que nos dizem que esse mito tem várias narrativas. Nas versões mais arcaicas, como dissemos,
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não se fala de incesto. Laio teria, por esse mesmo motivo, afastado Édipo, e ele mata Laio. Mesmo o casamento dele não é com Jocasta, é com outra pessoa. Quer dizer, o mito vai sendo reforçado, analisado, talvez com o tempo, e, cada vez mais, estruturado. *
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O incesto vem antes ou depois da morte de Laio? No texto de Sófocles, como é de se supor em várias representações e narrativas do mito, ele mata Laio e, depois, casa com Jocasta. Mas isso é linearização de uma estrutura edipiana. Podemos ler ao contrário e dizer que ele, primeiro, se não casou, transou Jocasta, e, depois, matou Laio, ou matou no que transou, ou transou no que matou. Por que podemos dizer isso? Porque basta nos lembrarmos da carência fálica das mulheres. Se é verdade que as mulheres, no drama da castração, se supõem em falta até do ponto de vista imaginário – quer dizer, essa imaginarização do Falo aparece como falta de pênis e vai se consubstanciar posteriormente na possibilidade de ter um filho –, o momento da gravidez, do nascimento da criança, é um verdadeiro instante de complementação imaginária. Ou, pelo menos, de indicação de um elemento qualquer capaz de portar, para essa mulher, uma indicação fálica, que ela estaria supondo não ter. Não é não ter o Falo, é não ter essa indicação fálica, que ela estaria supondo não ter. Ou seja, não suportando ter que ser o Falo, porque não tem, ela imita o homem, tendo que conseguir um Falo para ela. E isso vai se portar sobre o filho. Podemos ver isso em qualquer experiência analítica com mulheres grávidas e seus maridos. Esse momento de adoção do Falo pelas ditas mulheres é um momento em que se dá essa hipótese imaginária de complementação. Não é de suplementação, mas de complementação, como se fosse um fechamento, como se ela conseguisse o Falo, configurado em pênis, que ela não teve. Aquela equação: pênis-criança-fezes, etc. É como se Jocasta dispensasse Laio. A transação se torna mais ou menos da mesma cepa da masturbação masculina. Aproveitando-se desse feto,
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dessa criança, o macho é dispensado, e ela fica na sua transa com a criança. Podemos dizer que nesse momento de aparecimento da criança há um deslocamento de desejo. Se o pai era o suporte do desejo da mãe, se Laio era o suporte do desejo de Jocasta, nesse momento, há uma destransação desse desejo, e ele é situado sobre o filho, o que é alguma coisa como expor Laio, deixá-lo entregue às baratas. No texto de Sófocles, quando Édipo descobre que é incestuoso, Jocasta diz: “Deixa pra lá! Quem se dá bem é quem não liga pra isso. Não esquenta a cabeça, fica numa boa”. Sófocles é quem esquenta a cabeça. Jocasta, ela, se remete exatamente a esse momento primeiro, digamos assim, do incesto, em que não se trata de esquentar a cabeça, se trata de transar o filho, e ficar numa boa. Logicamente, então, o incesto só é proibido porque cometido. Na verdade, do ponto de vista do que nos interessa – não estamos aí, ainda, na estruturação da ordem do parentesco –, do ponto de vista da transação que a criança tem com a mãe, e que a mãe tem com a criança antes de a criança ter com a mãe, que a criança teve antes de nascer, num passado que ela vai assumir depois, podemos dizer que tudo começa pelo incesto. É uma forte transação entre Edipo e Jocasta muito antes de Édipo se dar conta de que existe. Até nos sonhos da mãe antes ainda daquela gravidez. Se não houvesse um sim inicial para o incesto, como ele iria ser recalcado? Ele seria foracluído, mas ele não é foracluído, ele é interditado, portanto, recalcado. Antes de mais nada, há um sim. Um sim que, na verdade, é falso. A criança e a mãe, é uma transação de tentativa de locupletação de uma falta. Existe, então, um sim primeiro na entrada do incesto. Quando ele vem a ser proibido, é no sentido de que isso não pode continuar. Essa situação não pode continuar porque ela é, sobretudo, imaginarizada. Mas o incesto é impossível. Ou seja, nenhuma transação ainda que incestuosa completaria coisa alguma. O incesto é proibido porque ele é intentado antes de qualquer proibição, e a proibição vem mostrar o impossível de se manter tal situação como verdadeira. Não é porque é feio. É porque não é verdadeira. Depois do recalque, o sujeito denega o incesto. Todo sujeito que passou
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por essa situação incestuosa e sofreu recalque dessa situação primeira, está, freqüentemente, num processo de denegação. Se o sujeito analisa sua situação edipiana, ele não vai chegar a conclusão de que o incesto simplesmente não está na dele, porque ele não está na do incesto. Ele vai chegar à conclusão de que ele só está no recalque. A denegação é prova de que o sujeito é incestuoso, mas o momento da fundação dessa proibição não é uma denegação, é uma indicação do impossível que está em jogo naquele ato, que está sendo cometido mesmo – não vai ser cometido, já foi. É como se a mãe dispensasse o pai na medida em que ela se apoderaria de um Falo qualquer imaginarizado ao máximo. É aí nesse momento que criança fica numa grande confusão: ela não sabe qual é o desejo da mãe e, se isto não é bem demarcado, ela fica como se tivesse que ser o Falo que corresponde ao desejo da mãe. Então, a função da paternidade no nível do simbólico é simplesmente dizer: “Deixa pra lá, que depois eu acabo com essa bagunça. Tô sacando muito bem qual é! Isso não vai dar certo e eu vou dizer que não dá”. E vai ficar no dito. Não estou pensando em nenhuma ordem de parentesco, estou pensando nessa transação a três, nesse trio. Se Laio, então, não fosse um debilóide, se a debilidade mental dele não fosse tão grande, quando ouvisse o oráculo dizia: “Ah! já saquei, foi o mesmo que já passei. Deixa a mãe transar com o garoto, e o garoto transar com a mãe, que, no devido momento, explico pra ele que não se trata disso e ele vai entender, porque eu tenho palavra!” Mas Laio não tem palavra, também não foi analisado. Ou, pelo menos, não teve, também, pai. Fazendo, então, uma infinitização disso, para trás, Laio não tinha como dizer a Édipo, e Édipo não tem como dizer isso, a não ser tragicamente, furando os próprios olhos. O que não é nenhuma punição, é rigor. É uma demonstração de suspensão do imaginário, queda no simbólico. Infinitizando para trás, então, vemos que a paternidade ali sempre falhou. Se não, Laio não estava nessa. *
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Por isso, Édipo é um começo absoluto. A paternidade dele vai falhar.
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Ele vai custar a sacar a relação simbólica. Mas, pressionado de algum modo, um dia, ele vai sacar, suspender esse imaginário, e cair na margem, como veremos em Édipo em Colona. Ele será aquele ponto que traça a margem do seu povo, como paternidade. Ele agora, Édipo, é o simbólico daquele povo. Édipo é o mito da fundação do Nome do Pai, como se inaugurasse essa fundação com reconhecimento do simbólico vigendo acima das, digamos, tentações imaginárias. O mito é excelente porque, mais uma vez, ele só vai se dar conta dessa paternidade simbólica depois que casa com Jocasta, assim como o bebê só vai entrar “numa” de interdição de incesto depois que transa com a mãe. Transa, mas não fecha. A transação jamais deixa de acontecer – começa-se por ela. Não é a transação que é proibida, o que é proibido é a permanência na transação. Mais do que isto: é proibido crer que a transação o seja, ou seja, que seja uma relação. A relação sexual com a mãe é impossível, como é impossível qualquer relação sexual. O grande e terrível erro do Édipo não é que ele transa com a mãe, é que ele acredita na efetividade da transação. Devem existir questões práticas que reduzem o que é de estrutura lógica de fundação a enunciados morais. Ao invés de se entender que é preciso suspender o imaginário, conceber o simbólico como fundação paterna e perceber a impossibilidade de realização de qualquer relação, a começar pela do incesto, pensa-se moralizando no nível da vulgaridade prática, na interdição da transação. O que é impossível – é impossível proibir a transação! Aquela libidinagem uterina – até que inventem a tal da chocadeira, o bebê de proveta mais apurado – vai funcionar... É preciso tirar a santarrice desses enunciados e entender o que há de estrutural no processo. Lacan já disse que A mulher só podia ser abordada como mãe, numa “relação” sexual. Como A mulher não existe, ela só comparece, digamos assim, como mãe, não comparece de outro modo. No regime estrutural do sujeito – estrutural significando real, simbólico e imaginário –, a idéia de A Mulher é aquilo que ele tomou como mãe. Mas, A Mulher não existe, é alguma coisa que vem em substituição a essa inexistência, uma configuração da mulher em
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termos de mãe. Assim como os objetos parciais que a gente pode bolinar na relação com os corpos ditos femininos são objetos da mãe. São aqueles objetos primeiros, não há outros. Isso, aliás, é sempre uma reedição, seja corpo macho ou fêmeo, do corpo da mãe. E, mais, sempre se feminiza porque sempre comparece com aqueles objetos, ou metáforas, ou metonímias deles. Mesmo um pênis, não é macho. Podemos talvez suspeitar no mito de Édipo alguns níveis diversos de construção. Esse nível mais evidente, que tratamos mais cotidianamente como primeiro, que é o assassínio do pai e o incesto com a mãe, ou vice-versa, tem por trás outros níveis de abordagem possível. A distinção entre pai adotivo e pai genitor, por exemplo. Isto é importante para chegarmos, depois, àquela questão do genital. Há uma absoluta incompetência, até o momento da descoberta, tanto em Laio quanto em Édipo, de distinguir o que é um pai adotivo do que é um pai genitor. Até segunda ordem, não há menor comprovação possível de pai genitor. Há suspeitas, mas comprovação não se tem. Pai adotivo é, na verdade, todo e qualquer pai que assume a paternidade, até que ele seja mesmo chamado de pai do sujeito. Assumir a paternidade é ser o pai adotivo. Todo pai é adotivo, em última instância. Laio, ele supõe ser pai genitor. Recusa-se a ser pai adotivo para distinguir a paternidade, assim como Édipo consegue um pai adotivo, que ele supõe que seja genitor, foge dele (porque acha que é genitor) e cai na mão do genitor... que vai ser assassinado por incompetência de ser adotivo. Mais ou menos o contrário, na ordem mítica, do que acontece com Tarzan: o pai genitor, sendo inglês, vai funcionar como pai simbólico, porque é morto antes da tomada de consciência dele. Ou seja, ele é apresentado como pai, digamos, verdadeiro, no sentido da palavra, nos dois sentidos, mas o mito quer passá-lo como aquele que seria indicador do simbólico na estrutura de Tarzan. E o macacão, lá, seria suposto por ele pai genitor, sem conseguir ser pai simbólico. Talvez se encontre essa dicotomia sempre presente nesses mitos: a confusão do pai genitor com o pai simbólico, o pai adotivo, aquele que assume a paternidade. Outra coisa importante – que não sei se alguém já tratou, pois não
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tenho conhecimento – é o fato de que quando Édipo quer ter certeza a respeito da verdade, ele manda Creonte saber. Isto porque a historinha de que Laio lhe fizera o que fez na infância, a ele que não sabia que era ele, certamente, que se contava, que corria por ali subrepticiamente. Ele, juntando as peças, podia supor isso, mas denegou o tempo todo e, até, deu uma bruta esculhambação e ameaçou romper com Creonte. Tipo analisando que ameaça romper com o analista, porque este lhe aponta a verdade. Édipo chama, então, o testemunho de Tirésias, quando fica na dúvida. Tirésias é o poeta, no sentido de profeta, de vate. Ele é cego e transexual, e é, freqüentemente, chamado para dar testemunho a respeito da verdade. Tirésias, geralmente, ou não quer se meter no assunto, ou diz a verdade. E é o que faz nesse momento. Acaba dizendo a verdade a Édipo. Ele se rebela contra Tirésias, mas seu testemunho é intocável, e também comprovável. Édipo não pode fugir disto. Se, por um lado, Édipo está metido nessa embrulhada em função da não-decisão paterna para ele, vinda de Laio, chega afinal, através de uma série de relações lógicas que vai tecendo, a descobrir que a situação é aquela mesma, e que não pode ficar numa boa pensando que se locupletou, que está tudo acabado, tudo formidável, porque a peste sobrevém. Na verdade, aí nesse mito tem alguma coisa parecida com a Torre de Babel. A Torre de Babel vem dizer que não existe a linguagem, que ela é impossível. Muito menos a dominação de uma linguagem, e muito menos ainda a dominação de uma língua. Que tudo fica fracionado em alínguas. O particular aparece destruindo qualquer totalização. Édipo fica numa boa, é o rei, conseguiu a felicidade do reino, etc., mas vem a peste, do mesmo modo que sobrevém a bagunça na linguagem. A peste começa a dizimar aquela felicidade toda, justamente porque essa felicidade está fundada no imaginário de uma totalização, de uma regra plena, de uma arrumação perfeita. Se tomarmos essa peste e essa dizimação como ação do inconsciente, ela vem em função da suposição de que o incesto é possível. A Torre de Babel é o lugar do incesto onde se supôs que era possível a língua materna totalizar e locupletar a todos. O Senhor
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vem e promove a desarrumação. Esse Senhor aí, em psicanálise, se chama o Outro, o inconsciente. O Senhor é quem manda. É a Outra, Deus aí é feminino. E isto que se dá não deixa de ser uma interpretação, pois quem interpreta é o inconsciente. Quero situar que aquela felicidade tebana era da ordem do incesto. Era a suposição de que a relação estava dada. E sobrevêm alguma coisa dizendo do impossível de se manter aquela situação. Ora, o que Édipo não tinha sacado era esse impossível dito numa interdição: não há porque não pode. O verbo poder é ambíguo. É da mesma ordem da bagunça linguística que acontece na Torre de Babel. Como Édipo vai resolver a situação? Simplesmente podendo fazer referência àquele que sobrevive na margem do discurso, que é o poeta. Este é o testemunho fundamental, que vai lhe mostrar que ele é um babaca. Ou seja, que ele acredita que pode ficar numa boa, em totalização. Eis a ambigüidade da situação edipiana. Ao contrário do que dizem as interpretações farsantes, ou mal-farsantes, inteiramente cômicas, do Édipo: Édipo teria instalado uma bagunça, uma coisa que não pode acontecer, então, vem a punição e o cega, mata Jocasta, etc. De modo algum foi o que aconteceu. Simplesmente, com o testemunho do poeta, de Tirésias, ele pode reconhecer que aquela felicidade é falsa, que a totalização não é possível e a coisa começa a degringolar espontaneamente. Ou seja, em função de haver inconsciente, e no reconhecimento da função paterna, há o momento em que ele reconhece e, aí, pode, ele próprio, assumir essa função simbólica. Ele se torna paternidade. Tirésias vem mostrar que essa paternidade tem sua garantia não na ordem em que ele crê viver, mas na relativa desordem em que é preciso navegar. A garantia de sobreviver no seio da desordem relativa, que é a ordem relativa, é justamente a garantia de poder navegar ali. É a referência simbólica. Isto é, pode-se transar com os acontecimentos, mas num jogo que não se fecha, não se locupleta. A função paterna, se isto é verdadeiro, fica demonstrada como aquela que dá garantia ao desejo. E não àquela felicidade que Édipo pensou ter conseguido. O interessante é que, ao reconhecer
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radicalmente isto, Édipo deixa de ser rei e passa a ser poeta. Certamente, é no lugar de Tirésias que ele cai, quando se lê Êdipo em Colona. *
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A função poética não é possível sem o Nome do Pai, sem assunção desse limite, dessa borda de particularização significante, que é a instância paterna. Ao contrário do que, sonhando com o Pai Ideal, o obsessivo, por exemplo, pensa, que o Pai é pura lei, lei no sentido de legiferação, de regras de comportamento, para se conseguir a felicidade geral da nação. Édipo entende a precariedade de sua situação, como a de qualquer sujeito falante, e dispersa o imaginário. Jocasta se mata... enquanto o quê? É uma punição porque ela transou com o filho? Se for assim, todas as mulheres têm que ser mortas, pelo menos as que têm filho, porque essa transação, como já vimos, é inelutável. Por que essa metáfora de Jocasta se matar? Ela “se mata” enquanto função materna. Se emerge a função paterna, é a mãe que é dispensada enquanto tal. Será que se poderia dizer que uma mulher é uma mãe morta? É uma pergunta espantosa. Existe mãe simbólica? A mãe enquanto portadora da palavra do pai, não se poderia, a não ser metaforicamente, chamar isso de mãe simbólica. Mãe simbólica não existe. A mãe é objeto a, sempre recai no imaginário, não há saída. Não é só Édipo que assume a castração aí – esse furar os olhos não é nenhuma punição, é assumir a castração, metaforizado nisso –, pois, no mesmo momento, Jocasta assume também. Porque para ela, enquanto representante imaginária, não basta furar os olhos – mesmo porque ela já estava vendo tudo há muito tempo –, ela tem que desaparecer daquele lugar, tem que se negar enquanto mãe. Afinal de contas, se Édipo assume a castração, quem é castrada por excelência é a mãe. A suposição que Édipo faz antes da castração é a de que ele é o Falo da mãe. No momento em que assume a castração, pode se referenciar ao Falo, ou seja, tem o Falo ou tem algo a ver com o Falo, ele não o é. Está aí a
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função fálica que não é senão eco da função paterna. Não se pode confundir Falo enquanto o significante que garante a castração, com a imaginarização dele. Essa felicidade de certas mulheres, sobretudo mães, Jocasta em especial, é atribuir-se imaginariamente a posição fálica – não é assumir uma posição fálica enquanto significante paterno. Isto ela só pode transmitir da palavra de um outro. O que está havendo é um assumir-se imaginariamente como Falo, ou colocar imaginariamente a criança no lugar do Falo. É uma espécie de produção metafórica que congela imaginariamente o Falo. Esta é a grande descoberta de Édipo, nesse momento: não se trata de imaginarizar o Falo, mas de se referenciar a ele, e nada mais. Com o que, a mãe vira simples mulher e as filhas também, para ele pelo menos. Ele fica com aquelas filhas, deambulando em torno de Tebas, mas, para ele, elas são meros significantes novos, como quem diz cruzeiros novos, quer dizer, têm uma outra impostação. O surgimento de Tirésias, em Édipo, é o que me parece principal. É o momento em que Édipo pode arcar com aquilo que Tirésias tem a dizer. Ou seja, ele pode dizer por Tirésias, dizer como Tirésias. É um negócio terrível. Há um passe aí. E é um passe que não abomina o incesto. Tirésias fala do lugar do analista, como Édipo, também, vai começar a falar, logo depois, como Édipo em Colona. Quando ele diz algo, é uma interpretação que soa como violenta para o pessoal que está em volta. Isto é não só referenciar-se ao Nome do Pai, como assumir esse lugar, de demarcação, de escansão dos desejos. Mas não há aí abominação do incesto. Há, sim, verificação dele, pura e simplesmente. Fazendo um parêntese, o autista, por exemplo, é aquele que não precisa falar, porque se ele fala a linguagem, que não existe, é como se ele falasse o tempo todo. Ele não precisa da diferença da língua. Quer dizer, no fundo, nem mãe ele tem. Não há diferenciação entre ele e a mãe, logo não tem mãe. Então, ele é a mãe? Autista é a mãe. É interessante este caminho, pois a maternidade é um autismo. Não é à toa que Jesus Cristo chamava a mãe dele de mulher... Não há nenhum distanciamento entre o autista e a mãe, logo posso dizer que ele e a mãe são a mesma coisa. Ele é a mãe, é mãe de si-mesmo ou coisa parecida. Lá mesmo na relação do chamado fort-da, há alguma coisa
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que prepara o reconhecimento da distância, que é, se eu não disser reconhecimento, posso dizer o sofrimento das batidas entre presença e ausência da mãe, situada aí já como um objeto, como um mesmo ser. Não há ainda necessidade nenhuma da simbolização distinguindo aí. Ela virá só-depois dessa experiência, que é de presença e ausência de um objeto. Portanto, nesse momento do fort-da, não posso dizer que a criança está misturada com a mãe. A mãe já é objeto para ela. Embora não saiba que tipo de objeto, faça confusões, o objeto escape... Tanto é que o autista não precisa estar do lado da mãe, para ter a mãe. O objeto não se ausentifica, justamente porque ele é a própria mãe. O objeto é ele. Se você tira o objeto dele, a anatomia vai junto. O objeto dele faz parte da anatomia. É interessante notar que em pelo menos três dos evangelistas, Mateus 12, Marcos 13, e Lucas 8, se repete aquele dia em que apareceram a mãe de Jesus e seus irmãos, e lhe disseram: “Sua mãe e seus irmãos estão aí querendo falar contigo”. Ele disse: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?”. Isto tem a ver com o que estamos tratando aqui. Do mesmo modo que a função edipiana, através da redundância de enunciados míticos, é transformada em vocação policialesca dos costumes e dos comportamentos, encontramos isso ocorrendo freqüentemente, como, por exemplo, nesse momento aí do Novo Testamento. Todo esse culto da mãe de Jesus Cristo, que nasceu no século XII ou XIII, se não me falha a memória, não existia antes. Está absolutamente recusada na palavra de Cristo. O tempo todo ele fala no pai, que é o mais abstrato e celeste. O próprio São José é à parte... Cristo se refere à função paterna, que é o que dá garantia à sua palavra e situa a fraternidade no nível da referência a essa palavra do pai. Ele diz: “Minha mãe, meu irmão, são aqueles que estão na mesma ordem de palavra em que estou”. Faz referência ao mesmo pai. “Mãe não está na mesma ordem discursiva”. Se suspeitasse que fosse o contrário, teria que puxar as orelhas desse rapaz. Isto é a fundação do racismo. A ordem fraterna a mais generalizada só pode ser subdita à lei que é a função paterna. E a função paterna não garante este ou aquele discurso. Está garantindo a lei, portanto o Desejo. Estou falando aí de nossa experiência, e
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que se acrescenta cada dia mais, dessa impostação racista. Hoje, por exemplo, tomei um táxi na cidade. O sujeito dirigia perigosamente. Eu estava sentado lá atrás, com as cuecas na mão. Esse cara pode me matar. E o rapaz pegou uns panfletozinhos e me deu. Tratava-se de uma irmandade desse tipo. O jovem era protestante, de uma certa comunidade que tem uma estação de rádio, e ele a ouvia incessantemente no carro, tocando músicas de compositores brasileiros os mais desconhecidos. Por acaso, conheço alguns deles, que ninguém sabe quem é, tipo professor de Escola de Música, que faz aquelas cantatas, aqueles negócios, uma coisa horrorosa, que ele simplesmente não podia suportar. Mas, por obsessão, ele tem que ouvir aquela rádio. E quando ele passava pelos carros, dava aquele papelzinho falando assim: “Irmão!”. Na suposição de que o cara ia entrar na dele. Quer dizer, aquela neurose obsessiva, dirigindo um carro, jamais pensou por um instante que eu não quisesse ser irmão dele... e morrer no trânsito. Isso ele não pensou. Essa referência a um discurso fundando uma tal fraternidade chamase racismo. Isto é uma coisa que não consigo – é um fracasso! – transmitir aqui neste Colégio: que isso é um racismo. A insistência das pessoas em formar cartéis entre irmãos, em evitar certas colocações que são explosivas, é uma acostumação a essa ordem racista em que vivemos. É um fracasso! Certamente que meu! Se não conseguirmos desvincular essas coisas, estaremos fazendo mais uma irmandade desse tipo. A única maneira que pode dar um pouco certo é na referência à lei. Ela é tão difícil de se instalar justamente porque a pressão imaginária é muito alta. Quer dizer, a castração é recusada com freqüência. A gente se recusa a enfrentar a castração, e com muita veemência. Enfrentar a castração é poder suportar a diferença, desde que a lei esteja em vigor. Suportar diferença sem lei, não se consegue. Porque não se consegue fazer vigorar a lei é que as pessoas se tornam racistas, arranjam um recanto edipiano de conforto, e o resto é outra gente, não interessa. As sociedades psicanalíticas não são outra coisa senão isso. Essas que existem por aí... Lacan reclamou naquele momento de dissolução: “Estão querendo amarrar os meus pés”. Ou seja: “Estão querendo fazer um racismo da Escola
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Freudiana de Paris!”. É disso que ele estava reclamando! Todo mundo estava metendo as unhas uns nos outros, por questões, às vezes, as mais idiotas. Vemos a dificuldade que há. Quer dizer, a psicanálise é a dissolução: e a dissolução terá fim? Quero supor que tem. Mas, se esse fim é remoto para cada um, é possível, pelo menos, que se viva o trabalho da dissolução o tempo todo. Freud era um sujeito prudente. Não tinha a menor vocação para ser Jesus Cristo, de abrir os braços para ser crucificado, o que demonstra que ele tinha um pouco de saúde. Esse negócio de dar pérolas aos porcos, vamos com calma... Entendo que está indicado claramente no Mal-Estar na Cultura que a função da psicanálise é a dissolução da cultura. É claro que ele passa todas as manteigas necessárias para um leitor desavisado. Ele não está dando aquele livro para analisandos dele, com os quais vai trabalhar mais ou menos longamente. Há prudência no texto, muito necessária, talvez, naquele momento, talvez mais do que hoje. Mas acho que, se se espremer, vai significar que ele está falando claramente que se trata da dissolução do complexo de Édipo, que é fundador da cultura. Freqüentemente, quando se aponta uma coisa desse tipo, o sujeito diz: “Mas isso vai tirar as minhas bases, e como é que fica?”. Estamos tocando aí no núcleo da castração. O terror que temos de que, se for tirada a regra, ficaremos sem lei, é, simplesmente, prova de que não sabemos dela. Se não, não se teria medo de retirar a regra. Estou tentando, desde o começo deste Seminário – e não cheguei lá ainda –, justamente mostrar que a cultura não é o simbólico. O simbólico é alguma coisa que é lugar onde a cultura pode se instalar, mas ela não é o simbólico. Se Lévi-Strauss está certo – e acho que está –, se a interdição do incesto é essa estrutura edipiana, dissolver o complexo de Edipo é simplesmente alguma coisa como uma faca de dois gumes. Dissolver é algo da ordem da abolição. Freud disse, deixou claro, que a psicanálise pretende destruir o complexo de Édipo. Não precisa de cultura para haver superego. Se a lei está em vigor,
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existe pelo menos uma função superegóica: é proibido matar a diferença! Vamos supor uma abolição cultural de certo nível, em que a ordem de parentesco seja embaralhada – porque há outros modos de computação que podem suportar as relações inter-subjetivas –, nem por isso o teorema da castração fica abolido. Teorema este a que Lacan reduziu o Édipo! Ele continua gerindo o processo, pois a castração é a noção da impossibilidade da relação, da impossibilidade de totalização. Reconhecido isto, pode-se até casar com a mãe, o que, aliás, Édipo faz. Mesmo do ponto de vista mítico, da narrativa, temos que casar, ele casa, mas a mãe se mata, ele vai embora, etc. Entretanto, ficaram lá quatro filhos. Isto não vai ser abolido. Nem as noites que ele passou com Jocasta, os gozos que tiveram juntos. Isto não vai ser apagado. É preciso distinguir aí. É preciso entender que nada se diz fora da metáfora. O que é mãe na metáfora? É a mãe do rapaz? Não. É a suposição de completude, mais nada. Só isso. Quando falamos em castração, não precisamos de mãe. Ninguém precisa da senhora sua mãe para sonhar com completude. Basta, por exemplo, um ditador: essas “senhoras grávidas” que vocês conhecem de perto, que retomam o poder freqüentemente. A cultura não é o saber, é uma certa forma de congelamento do saber. Se a cultura é imaginária, dissolvida a cultura, fica-se disponível para qualquer coisa. Por que não? O que caracteriza o sujeito que é preso a uma formação cultural congelada? Uma absoluta falta de imaginação. Se sou determinado pelo simbólico, preciso me desvincular radicalmente de um aprisionamento imaginário... para poder criar imaginários à vontade. Basta vermos os pintores, os que realmente o são. São aqueles que, simplesmente, inventam um imaginário novo. Certamente que por via simbólica. Não existe nenhum pré-verbal. Isto está na cabeça da Ligia Clark. Não existe nenhum pré-verbal para o ser falante. Ninguém pinta com suas relações imaginárias de ego. Pinta com a palavra na cabeça, dissolvendo a tinta com palavras... e não com terebintina. Trata-se de poder submeter o imaginário a quem ele, de fato, de começo, se submete, que é o simbólico.
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Desde o começo de cada um que o imaginário que lhe foi trazido, o foi por via simbólica. É uma espécie de coagulação de um texto. Esse texto toma uma figura, toma pregnância. É possível que essa tal cultura venha a acabar no registro de poético. É suponível que possa acontecer. Não é nenhum voto, nenhuma suposição de uma revolução que se possa fazer. É simplesmente o que está aí. Acontecerá ou não. É o que se pode pensar a respeito. Assim é que acho uma sonhação meio exótica, meio inaceitável como princípio, no pensamento de DeleuzeGuattari. Eles falam como se Édipo tivesse sido realmente dissolvido, como se estivessem vivendo nalguma pós-cultura. Pode ser um texto ótimo. Tudo bem, mas, simplesmente, não se vê isso. A cada momento se reencontra no divã o chato do Édipo, que enche o saco de qualquer um. Se Édipo pode aceitar interpretação de Tirésias como sendo a que lhe ocorre, ele só pode ter conseguido uma transferência com Tirésías. Por isso funciona. Eis senão quando, num jogo de atritos, mais ou menos amorosos e odientos, ele consegue aceitar a interpretação de Tirésias como verdadeira. E, aí, ele saca. O sujeito suposto saber está subdito à palavra de Tirésias, o último recurso. É o poeta. Ele fica fora da transação, fica no limite. Suponhamos que a cultura seja um tipo de arrolamento. O que é que mora ali? É o ato de arrolamento. O que interessa é o ato de arrolar as coisas. Isto é que é o ato-poético, como o Nome do Pai: o desejo que está em jogo nesse risco. O pai corre o risco de fazer essa elipse que arrola e omite. Está no limite. Se arrola e omite, pode ser outro, o risco. O risco é sempre outro. Porque, exatamente, o que a cultura faz é só se compreender por dentro. Ela esquece dos seus limites e não transa com aquela gente do lado de lá, isto é, da borda. Ela não chega à beirada, pensa que pode cair no abismo. Esta pergunta vem sempre: “Se tirar isso, como é que fica?”. Pensa-se que a Terra é chata. Se se chegar à beirada, se cai no abismo. Não se pode mudar a fronteira? Por que não? Ficar em disponibilidade para outros arrolamentos significantes... Os artistas estão carecas de dizer isto. Só há salvação para Édipo se ele se tornar Tirésias. Não há outra.
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Assim como só há uma análise que dá certo: quando o sujeito vira psicanalista. Se não virar, não deu certo. Pode até servir para o gasto, mas não deu certo. *
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[RESPOSTAS A PERGUNTAS] (...) Você usou a palavra “conhecimento”, e a colocou em dois níveis. Num primeiro nível, você colocou conhecimento como conhecimento da distância, da escansão entre bem e mal. Quer dizer, simplesmente, da diferença. Em outro nível, você colocou a situação molar, que é mais próxima disso que chamamos conhecimento, mesmo na clínica, que é a construção desse aparelho de Estado, de língua, ou de gramaticalidade das instituições. Mas existe uma diferença, um corte radical entre esses dois momentos do conhecimento. Se é, até, que devemos usar a mesma palavra Se a Bíblia diz que ele tomou conhecimento da árvore do conhecimento do bem e do mal, posso achar que a tradução é ruim, ou, se lá mesmo no livro originário diz “conhecimento”, preciso saber o que é o conhecimento dessa gente. Porque, quando se diz que Adão “conheceu” sua mulher, ele conheceu o quê? Conheceu a diferença. Esse verbo “conhecer” fica meio precário nessa situação. Uma coisa é essa construção de um conhecimento, de uma episteme que segura tudo isso, para usar o termo de Foucault, e, outra coisa, é reconhecer uma origem que é sacação – tiremos a palavra conhecimento da estrutura. Na verdade, não há, ali, nenhum conhecimento em jogo, no sentido em que se pode falar de conhecimento disso. Isso é organização de um saber em cima de uma verdade articulada sintomaticamente. Já a estrutura é o fundamento de toda e qualquer possibilidade de articulação. Jamais conhecerei isso. Eu sofro disso, e saco isso. Como posso conhecer o corte? Eu sento e faço uma teoria do corte. Lacan fez. Mas a própria construção dessa teoria é aberta o
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suficiente para não me entregar o conhecimento dela, para não me entregar, vamos dizer assim, a paranóia completa da conceitualização desse corte. Porque se ele é corte puro, ele corta a minha mão quando eu segurar. (...) Eu não diria que somos fundados na ordem do discurso. Somos fundados na ordem da Lei, na ordem do impossível de saber, por exemplo, de se conhecer. Uma coisa é eu estar fundado na ordem do ser falante, e, outra, é eu me fundar na ordem discursiva. O fato simplesmente de que alguma coisa tem que ser colocada no lugar da outra, é a minha instalação do simbólico. Os discursos que vão se congelar, ou que vão se estatuir a partir daí são outra história.
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O gene e tal
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Com o titulo de Édipo em Calúnia, vimos como Édipo é caluniado quando se supõe que ele insiste em ter o reino e a mãe. Ao passo que, na verdade, trata-se de um ato-poético – e aí é que entra Tirésias – que o libera da cultura. Ele aspira é por outra formação. *
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Ainda, insistindo, nossa questão é: o que é cultura? O resultado da Antropologia Estrutural ligou definitivamente, pelo menos até segunda ordem, interdição de incesto e cultura. Nas Estruturas Elementares do Parentesco, edição francesa, p. 14, diz Lévi-Strauss: “A proibição do incesto está, ao mesmo tempo, no limiar da cultura, dentro da cultura e, num certo sentido tentaremos demonstrar isso –, ela é a própria cultura”. Na consideração que vinha fazendo anteriormente e que desenvolve ulteriormente, chega mesmo, segundo as operações do texto, a demonstrar isto em função da oposição: Natureza/Cultura. O pensamento dessa antropologia estrutural é dependente do reconhecimento dessa oposição. É uma espécie de oposição de base, sobre a qual se estabelecem as operações que indicam que a cultura se funda na interdição do incesto, como regra universal para a antropologia. Mas, ainda em
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função das nossas questões anteriores, pergunto: o que é essa cultura de que se está falando aí? Apesar de ser dita estrutural, essa estrutura que Lévi-Strauss demonstra é, em última instância, de nível semiológico. É a apresentação de um mínimo sistêmico que explica as significações pertinentes a isso que ali está como cultura. Ou seja, nos dá a possibilidade de tirar uma significação e, às vezes, até, com aparência de significado, dos fenômenos que ocorrem no seio disto que ele chama de cultura. Na verdade, então, toda a operação deságua na questão da significação, ou melhor, para falar mais amplamente, na semiologização do campo da sociedade, que lá está confundida com cultura. Sociedade e cultura são termos que se trocam com muita facilidade nos textos de Lévi-Strauss. A minha questão é que a sociedade, talvez, não seja a mesma coisa que cultura, e que cultura talvez seja, confirmando a definição de Lévi-Strauss, isso que se estatui sobre a interdição do incesto. Com a ressalva de que, talvez, a cultura não seja universal, e, muito menos, portanto, a interdição do incesto que a garante. Talvez pudéssemos chamar essa impostação geral na antropologia e, em particular, na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, de: nat/cult. O nat/ cult é essa tentativa de equacionar a oposição natureza/cultura para, depois, quase que eliminar a oposição e apresentar a cultura como natureza do homem. Se a interdição do incesto é suposta universal – ainda que na base do sabonete Lever, porque a única garantia que Lévi-Strauss nos dá, como já disse, é que 9 entre 10 estrelas da antropologia preferem a interdição do incesto – de que tipo de universal está se tratando aí? Universal histórico, que abrangeria passado, presente e futuro? É o que ele tenta. Só que o universal é estrutural. Lacan diz mesmo que esse universal aí, só o é, na medida em que é inscrito no simbólico. Quer dizer, é sua inscrição no simbólico que o torna universal. É claro que tudo que está inscrito no simbólico é percorrido por um sujeito qualquer. É ambígua essa colocação de Lacan. O nat/cult é essa reafirmação dos ditos achados da antropologia anterior: a questão da interdição do incesto fundando o social, que, no
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caso, é cultura e num regime de universalidade. É isso que quero questionar.
Temos aí a tal Natureza, a tal Cultura entendida até como sociedade, a possibilidade de um passe, portanto, de uma escansão, que se chamaria proibição do incesto, que estou escrevendo: i, na cult, temos os efeitos da determinação
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simbólica. O que a cultura produz são efeitos da determinação simbólica do falante. Talvez, pudéssemos colocar Édipo e castração no regime dessa proibição do incesto, aonde Freud, na verdade, encontrou, também, a mesma coisa.
Se é que existe uma falta, este é o esquema que a psicanálise vai nos dar: uma barra irredutível, a barra da castração. Do lado direito, temos os efeitos dessa barragem. Do lado esquerdo, situa-se a falta e o que fica rasurado é a natureza. Não há nenhuma passagem de natureza a cultura, porque natureza é alguma coisa que não entra, que é foracluída, quer dizer, cai no real. E eu diria que os efeitos desses acontecimentos – que poderia chamar de factício, artifício, feitiço, se não fetiche, fictício, da coisa feita, em suma, da fixão – são as coisas que vão se ficcionar, em função do simbólico, em artifícios, em artefatos. Do lado direito, quero situar – o que pretendo desenvolver no Seminário do próximo ano – o lugar aonde as músicas são feitas. Copiando o que Lacan chama de “alíngua”, eu chamaria aquele lugar de “amúsica”. Talvez,
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a tal cultura seja apenas uma certa música, uma região desse lado direito. Na borda, entre o limiar da cultura e a fixão em geral, a proibição do incesto seria exatamente isso que constituiria essa borda. Essa fixão, essas fixões, essas amúsicas, ou as amúsicas, são, todas, os efeitos da função simbólica, estejam eles articulados ou não com o conceito de cultura. Em função da fundação pela interdição do incesto, eu diria que o que a cultura articula num primeiro plano é, justamente, a chamada ordem de parentesco, seja ela qual for, que Lévi-Strauss teria demonstrado estar assentada nas estruturas elementares como efeito mesmo da proibição do incesto. Como vemos, estou questionando o esquema de cima com o de baixo. Em existindo, então, essa falta, funcionando uma barra irredutível, uma foraclusão (de qualquer aspecto) da natureza, jogando isso no real, impossibilitando essa abordagem, isso poria, a partir dessa barra onde se situa a castração, o fenômeno do simbólico. O simbólico surge como artificio, como coisa factícia que vem em lugar daquilo que falta. Não tendo um nome melhor para essas fixões, eu as chamaria de amúsicas – construtos que podem ser muitos talvez – e eu colocaria a cultura apenas como uma dessas possibilidades. Aquela mesma possibilidade de que fala Lévi-Strauss, na medida em que ela é dita assentar-se na interdição do incesto, mas não na medida em que isso seria o universal do falante. Mesmo porque é uma comparação evidente no centro do livro Estruturas Elementares do Parentesco, que a interdição do incesto funcionaria como funciona a linguagem. Sei que estou fazendo uma série de perguntas aparentemente cretinas em função da postura estrutural do pensamento de Lévi-Strauss, que não me parece escapar disso, mas, é preciso questionar. Por exemplo, é possível falarse uma língua fora da proibição do incesto? Na perspectiva de Lévi-Strauss, uma língua é da mesma ordem da interdição do incesto, na medida em que ela produz algumas estruturas de regramentos, alguma função de regra - mas não nesse embrulho em que se misturam as coisas –, situando com certa clareza, do ponto de vista, por exemplo, etnográfico, a proibição do incesto enquanto tal, enquanto especificamente fundadora de ordem de parentesco, ou enquanto
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mera interdição, que eqüivaleria a qualquer outra. Ou seja, existe um terceiro, um terceiro na relação da fundação do simbólico, de onde emana, certamente, a possibilidade de Lei. Minha questão continua sendo: por que se tem insistido nessa exigência de proibição do incesto enquanto tal? Nunca fiquei convencido disso, alguma coisa está embrulhada aí. È preciso desembrulhar. Temos que levar em conta o fato de que a repetição, do lado da cultura, de certos enunciados que remeteriam a estruturas que não se dizem necessariamente mediante aqueles enunciados, acaba por fundar uma estrutura superegóica, à qual a gente se submete, mesmo sem se submeter à ordem legal, à ordem da Lei, no sentido em que a tenho colocado. Nada garante que uma submissão a superegos signifique submissão à Lei. Posso mudar de um estado fascista, com uma farta, ampla, geral e irrestrita submissão a um comandamento superegóico, sem que, no entanto, eu possa fazer uma referência “divina”, no sentido da nossa gíria carioca até, à Lei. Facilmente se confunde superego com Lei. Por isso, peço que trabalhem o Mal-Estar na Cultura, para acompanharmos certos conceitos de Freud e distinguir um pouco as coisas. O superego é algo que se funda, segundo Freud, por deglutição, introjeção, de uma autoridade externa. Autoridade esta que pode estar munida, por exemplo, de um revólver, como a polícia. Não é necessária a referência à Lei enquanto tal. Embutimos um superego de comandos, antiincestuosos, os quais, em certas culturas, são exacerbados e tomam séries longuíssimas, a ponto de o sujeito poder considerar como infração do incesto um sujeito simplesmente tocar um membro da mesma metade, qualquer que ela seja, do ponto de vista etnográfico. Precisamos distinguir o remetimento legal da introjeção superegóica. Legal, no sentido de fundação de lei, na estrutura do falante. É evidente que, se tomarmos determinada cultura, observaremos que nela há interdição do incesto regulando as relações, uma interdição qualquer, por mais variadas que sejam reguladas as relações de parentesco. Encontraremos aí, sobretudo, alguma coisa que terá em instância mais antiga, mais anterior, referência a essa instalação da Lei, à instalação do que chamamos Nome do Pai, à castração
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en-quanto tal. É claro! Porque está tudo amarrado. Posso mesmo pegar o chamado Édipo enquanto mito e verificar que há lá diversos níveis, dos quais talvez o mais próximo seja esse da interdição do incesto. Mas será que esses níveis não são para ser distintos? Será que não são níveis diferentes, dos quais, alguns, talvez, sejam dispensáveis? Para poder abolir essa interdição do incesto enquanto tal, tenho que dizer que a Lei se situa muito bem fora dela. A que nível tenho que descer para garantir a Lei, mesmo que a interdição do incesto seja suspensa? Nas Estruturas Elementares do Parentesco, p. 27, Lévi-Strauss diz: “O problema da proibição do incesto não é tanto o de procurar que configurações históricas, diferentes segundo os grupos, explicam as modalidades da instituição em tal ou tal sociedade particular. O problema consiste em se perguntar que causas profundas e onipresentes fazem com que, em todas as sociedades, em todas as épocas, exista uma regulamentação das relações entre os sexos”. A psicanálise está plenamente de acordo, nada tem a dizer contra. Mas que causas profundas fazem com que, em todas as épocas, exista uma regulamentação da relação entre os sexos? Que regulamentação? Por que tem que ser interdição do incesto? Perguntando de novo: quais são essas causas profundas? Elas pretendem regular o quê? E como? A tal interdição do incesto é conjuminada no pensamento estrutural, como se vê, p. 72, por exemplo, à exogamia. A proibição do incesto e a exogamia constituem regras substancialmente idênticas, diz ele, e só diferem uma da outra por um caráter secundário. E ele explica a secundariedade desse caráter. Na verdade, se são regras idênticas, se repetem a mesma coisa, podemos perguntar por que, ao invés de se falar em interdição do incesto, não se fala em exogamia? Em vez de é proibido o incesto, é obrigado a exogamia? Segundo esse texto, dá na mesma. Que diabo é isso, a exogamia? Não do ponto de vista meramente antropológico. Lacan chamou a instalação do sujeito na ordem do simbólico de função metafórica que vai instalar o sujeito no campo do Outro, permitir um processo de subjetivação e a metáfora, no caso, paterna, e que é como já mostrei no Seminário do ano passado, metáfora e nada mais. É poder situar-se metafori-
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camente no campo do Outro, ou seja, sintomaticamente. *
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O que é a metáfora para Lacan? Vou fazer uma retomada, em parênteses. A Instância da letra, Écrits, p. 515.
S , e, partindo desse algoritmo, vai fazer a função de Ele escreve: _ s significante como a função de 1 sobre o significado: f(S)1_ , e diz: “É da s
copresença não apenas dos elementos da cadeia significante horizontal, mas de suas atinências verticais, no significado, que mostramos os efeitos, repartidos segundo duas estruturas fundamentais na metonímia e na metáfora. Podemos simbolizá-las assim: f(S. . . S’)S~ =S(-)s”. Esta é a fórmula da metonímia: função de passagem de um significante para outro, congruente com significante, numa relação barrada, (-), ou seja, não-relação com significado. ~ S’)S=S(+)s: Para a fórmula da metáfora, temos: f(_ função de significante s com significante, um sobre o outro, congruente com significante com travessia para significado, (+). Ou seja, uma possibilidade de atravessamento da barra, que não é, de modo algum, a conquista de um significado. É uma produção de significação porque, se faz algo que parece uma travessia de significante, não é uma colagem de significante para significado. A estrutura da metonímia é “a conexão do significante ao significante, que permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta do ser na relação de objeto, servindo-se do valor de remetimento da significação para investi-la do desejo, visando essa falta que ele suporta”. Por isso, ele diz que a metonímia, esse remetimento à falta, tem a estrutura do desejo. “O sinal – colocado entre ( ) manifestando aqui a manutenção da barra –, que, no algoritmo primeiro, marca a irredutibilidade em que se constitui, nas relações do significante ao significado, a resistência da significação”. Aí, a significação resiste. O remetimento é ao deslocamento, ao deslizamento, e, portanto, a função que está em destaque é o desejo.
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A estrutura metafórica, por sua vez, “indicando que é na substituição do significante pelo significante” – substituição agora, não mais deslizamento – “que se produz um efeito de significação que é de poesia ou de criação, dito de outro modo, de advento da significação em questão. O sinal + colocado entre ( ) manifestando aqui o atravessamento da barra – e o valor constituinte desse atravessamento para a emergência da significação”. Lacan não diz que na estrutura metafórica o significado se produz. Existe apenas uma emergência de significação possibilitada, e não a fundação de um significado. Ou seja, há alguma referência, inter-significante de tal maneira que se monta uma arrumação qualquer que passa a se dar como se fosse significação atribuída àquele significante. É isso que chamei do “fazde-conta” da metáfora paterna. Faz-de-conta porque é uma emergência de uma significação e não prende nenhum significado. É isso que relacionei com o “ponto de basta”: esta elasticidade de uma parada, de uma meiatrava, de uma pequena coagulação que empresta significação, mas não fecha o significado. No texto sobre Schreber, Écrits, p. 557, Lacan retoma a questão da metáfora para explicar a foraclusão do Nome do Pai, já que ele está falando de metáfora paterna. Apresenta de outro modo a fórmula de metáfora:
_S, , _S/’ S( _1s ). Significante sobre significante outro, ponto, repetição desse
S/ x outro significante sobre x, que vai dar em significante função de 1 sobre
significado. Escreve agora deste modo para explicar que a substituição que aí se dá é a de um significante por outro que se oculta. Um significante se oculta, dando lugar a outro, na tentativa de atravessar para uma certa significação, que vai fazer surgir a relação de um significante a um suposto significado. Esses dois S / são exatamente para mostrar que eles estão ocultados, o sujeito rasurou – no texto está só barrado, parece que é sujeito, mas é só significante. Nesse momento ele vai mostrar aquela formulinha, substituindo alguns lugares.
Quer dizer, se
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esse significante, nome do Pai, não surge, não emerge no lugar daquilo que é significante para o sujeito, como desejo da mãe em função do que é significado para o sujeito – essa palavra aí, no caso, me parece ruim, pois Lacan quer dizer: expresso ao sujeito de algum modo, como o desejo da mãe –, o desejo da mãe fica ocultado para haver emergência do Nome do Pai como função significante, permitindo, portanto, o Falo surgir em lugar de significado do Nome do Pai. Trata-se de uma função emprestada de significação ao Nome do Pai por esse significante oculto, que é desejo da mãe, e que compareceu como expressão, digamos, de significado do sujeito. Mas o engraçado é que o que vai emergir como significado é o Falo, que é só significante. É um troca-troca de significantes. Na verdade, Lacan estava demonstrando, nesse trabalho, que não comparece jamais o tal significado e que a relação não existe. É apenas transação de significante com significante, ou deslizando ou fazendo uma atribuição que não é senão um tour de force de emergência de significação possível. Nada mais. Não é outra coisa que vai comparecer, na verdade, naquelas fundações do lado da chamada cultura, naquele nosso esquema anterior. Foi, aliás, uma coisa de que tentei falar um pouco na introdução de um texto sobre Guimarães Rosa, de que posso pensar perfeitamente essa articulação como dupla atribuição significante ao mesmo conjunto significante. Ou seja, isso que é significado ao sujeito, no caso da fórmula, é um significante que serviu como média e extrema razão. No pensamento de Lacan, nessas fórmulas que construiu, esse significante como média e extrema razão entre o que é significado ao sujeito e o significante paterno, não é senão esse conjunto significante que foi empacotado, digamos assim, no mesmo campo expressivo, no mesmo conjunto emprestado ao sujeito. O que foi significado ao sujeito? Um pacote, um arrolamento de coisas que exprimem o desejo da mãe. Esse pacote – já que o significado não existe, e que o pré-verbal simplesmente não é pensável – não é senão um pacote significante que remete a essa coisa que não é dita, mas que é o significante que promove a significação daquilo que se chama o desejo da mãe.
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Na verdade, temos algo bem simples. Se pensarmos numa relação significante significado, ou significante/significação, deixando o significado fora, o máximo que teremos é uma relação de significante a conjunto de significantes. É como no dicionário: uma palavra é definida por um conjunto que é arrolado e timbrado com essa palavra. Jamais poderemos saber o que é mesa, por exemplo, se não formos para outro verbete, olharmos todo o dicionário e voltarmos de novo... Depende de certas acomodações que me permitem falar de “mesa”. Agarro um pouco, faço uma espécie de arrolamento que – nessa tentativa de segurar de mão aberta, pois não dá para fechar – é o conceito. Simplesmente, o que acontece é que esse significante é ocultado e aparece outro. Qual é a troca que se dá? É que posso ter um conjunto de significantes que merece, por seu aspecto mesmo de conjunto, ser nomeado por um novo significante. E, depois, posso descobrir que considerados, digamos assim, os significantes enquanto traços mínimos dessa composição, esquecida a secundariedade, as cadeias infinitamente grandes podem também ser nomeados por outro significante. A metáfora é assim. Cada vez que uma metáfora se produz – já que ela não produz significado, faz emergência de significação –, por mais que ela arrole, condense – metáfora e condensação é quase a mesma coisa – ela acaba produzindo efeito metonímico, simplesmente porque trocou significante. Quer dizer, só posso discernir isso historicamente, pois se, enquanto deslocamento, tenho metonímia, enquanto arrolamento, tenho metáfora. Mas é impossível produzir uma coisa sem outra. De algum modo, romper o limite é o gozo. Simplesmente, porque é impossível que se chame, mesmo um conjunto de dois significantes, sem de certa forma esgarçar pelo menos a circunscrição – há um gozo nisso. Por isso, Lacan diz que a poesia se faz aí. É a única transgressão possível, se é que é transgressão... Não chega a ser transgressão, porque a Lei é isso. É, na verdade, cumprimento da Lei. É quando o sujeito se instala como tal no campo do Outro que ele precisa, a não ser que caia na estrutura psicótica, assentar-se metaforicamente ali: conduzir-se sintomaticamente para poder referenciar-se à Lei, uma vez
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que o Nome do Pai, como Lacan o define, é aquele significante que, no campo do Outro, é significante desse Outro, como lugar da Lei. Que Lei? Justamente essa que dá fundação à possibilidade de produzir metáfora, ou seja, produz esse esgarçamento. A Lei se funda como (e funda o) desejo, e não como proibição. Só se diz como proibição na medida em que não se pode dizer tudo. A proibição se diz como limite. No entanto, o que importa é esse dizer, e não o limite. Não é, falando melhor ainda, a limitação, o coágulo, mas essa fundação limiar do dizer. E como não se pode dizer tudo, algo se diz, e nesse ato, há movimento de desejo, no que há movimento metonímico/metafórico. Por isso, não há nenhuma possibilidade de se fazer metáfora, sem fazer metonímia. Se há binômio Lei/ Desejo, metáfora e metonímia não se separam senão teoricamente. Se aplicarmos aquele esqueminha à fórmula do Booz, de Lacan, veremos que dá certo. Sa gerbe, sa femme, un homme, o feixe de traços que demarcam Booz, uma coisa é substituída pela outra. O nome Booz é substituído por sa gerbe na medida em que ambos são feixes de coisas, de traços, têm aspectos de deslizamentos nas cadeias. *
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Retomei isso simplesmente para mostrar que essa formação chamada cultura – e que se garante pela interdição do incesto – é uma metáfora, assim como o Édipo. O que importa é que se entra nesse regime por via metafórica, por via sintomática, e é preciso distinguir o que é a produção de metáfora, do que é o metaforizado. Lacan engraza Lei/Desejo no Nome do Pai porque esse momento, que é de congelamento, de certa forma de arrolamento, exigiu ao mesmo tempo um deslocamento. Outra coisa é pensar na repetição da metáfora produzida, em congelamento, o que está na cabeça do chamado Pai Ideal. Isto é justamente não reconhecer a função paterna, porque só se pode reconhecer a função paterna na medida em que se reconhecer a metáfora como tal, como produção
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e significação e não como significado produzido. Uma coisa é o momento poético da produção da metáfora. Outra, é a repetição banal do produzido. Aí, pergunto: será que não se pode suspeitar, na tal proibição do incesto – dita por vias edipianas, de complexo de Édipo – níveis diferentes de produção? Há algum tempo, escrevi um texto intitulado Gerúndio, onde fui anotar uma velha suspeita disso que estou tentando articular outra vez: não será possível pensar a existência de três níveis de castração? Essa valorização do genital que a história inglesa da psicanálise foi encontrar não sei em que lugar da obra de Freud – porque lá não se diz isso –, o que quer dizer? Será que tem algo a ver com essa questão da cultura, com a interdição do incesto? E em que nível? Genital vem do latim genitalis e significa “que engendra”. Deu genitus, que é o particípio passado do verbo gigno que é “engendrar”. E tem o termo “genitivo” que indica um caso gramatical na língua, que vem de genitivus. Tudo vindo desse verbo que quer dizer “engendrar”. O engraçado é que o caso genitivo explicita, em qualquer língua, a posse. Ainda que se faça uma distinção entre propriedade e posse, segundo o direito romano, o genitivo explicita alguma coisa dessa ordem. “Estar na propriedade” é o caso genitivo em que uma coisa é atribuída a determinado sujeito, como objeto seu. “Estar na posse” é estar na fruição desse objeto. Quer dizer, o sujeito pode até ser proprietário e não estar na posse, ele pode alienar o objeto. O que me interessa é o genitivo enquanto tal, pensar o que ele tem a ver com o genital. Isto porque o tal genital, que a psicanálise inglesa tanto preza, por razões óbvias – óbvias porque se trata de herança de famílias e Lacan já disse que não basta portar as relíquias do gens para ser herdeiro –, se transforma, em última instância, no amor do genital. É um espanto. Como é que pode haver amor genital? Fico imaginando assim aquele tipo de coisa que acontece nas histórias em quadrinhos de americano: duas piroquinhas conversando, elas se apaixonam, coisas assim... Retomando, Lévi-Strauss situou a exogamia no mesmo nível da interdição do incesto. O que é exogamia? Segundo o Vocabulário das Instituições IndoEuropéias, de Émile Benveniste, no verbete “o princípio da exogamia e suas
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aplicações”, p. 226, temos que “é preciso lembrar que, segundo o princípio da exogamia, os sexos diferentes pertencem sempre a metades diferentes, não há casamentos possíveis a não ser entre membros de metades opostas”. O princípio de exogamia é isso. As pessoas são divididas em metades e o casamento só é possibilitado com metades diferentes, é claro! Ele faz um lembrete, de que se esquece freqüentemente que os sexos são divididos em metades diferentes. É por isso que só pode casar mulher com homem. Se quisessem fazer uma outra arrumação, podiam casar mulher com mulher, bastava rachar ao meio uma metade. Isto no momento me serve para perguntar se essa vocação genitiva, genital, da cultura não se esteia estritamente no processo de reprodução, nos interesses reprodutivos. Daí, a descoberta, lá em algum neolítico passado, de que o genital só funciona pela distribuição dos gametas, tudo sendo reduzido, então, a esse momento, a essa articulação. Por outro lado, uma invenção de metáfora, a produção de um computador para organizar essa zorra – computador que situei miticamente em Noé –, e que, copiando as séries reprodutivas daquilo que Lévi-Strauss chama consangüinidade, vem instalar a cultura, como creodo. Mas não se trata aí, de modo algum, de passagem de Natureza a Cultura. Natureza não se dá, como já disse, a não ser como articulação do lado do simbólico, o que houve foi uma certa atribuição de filiação em função de uma observação muito precisa, mediante escansões que são, em última instância, da mesma ordem de um aparelho que divide metades. Se fui capaz de montar um computadorzinho para separar os animais que estou criando para a minha posse, para a minha riqueza, e separar as reproduções, as linhagens, etc., estou fazendo, aí, uma ascensão de metades de deslizamentos. Posso metaforizar isso para o bem dos seres falantes, com o que terei a possibilidade de uma computação, da ordem disto que é posto como a ordem de parentesco. Isto me dá não só o resultado da operação genital, metades diferentes, situadas por comparação anatômica. Eis senão quando, o homem deve ter descoberto que se não transar macho com fêmea, não há possibilidade de reprodução. E em seguida a isso, o funcionamento de um genitivo, ou seja: filho de quem? O genitivo se mistura muito facilmente com o genital na medida em que a propriedade e a posse são do interesse do sujeito – e sempre são.
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Posso imaginar uma sociedade onde haja propriedade privada, etc., mas onde a transmissão dos bens, a questão da herança, fica prejudicada porque não se tem uma regra de definição do genitivo como ordem de parentesco. O que estou perguntando é: a chamada interdição do incesto não vem como garantia do genitivo genitalizado na apropriação? Isso é o que a antropologia está careca de mostrar. Lacan, quanto a ele, vem marcar um lugar para o sujeito, mas lugar este cujo interesse fundamental é saber o que é de quem. E mais do que isto: quem é de quem. Ficaria difícil estabelecer as heranças sem um código qualquer. Mas por que tem que ser tal código? Sabemos que o direito romano tem uma série de desvios interessantes. Era comum, por exemplo, um patrício adotar uma pessoa, não uma criança, uma pessoa... Todo pai é adotivo em última instância, mas o que vemos é uma insistência imaginária, narcísica, engrossada em seus argumentos por esse método de computação copiado talvez de uma observação dos animais. Isto garantindo ao sujeito que quando ele passa seus bens, coisa que ninguém gosta de passar, ele pelo menos está passando pela Lei, que o receptor é a sua repetição, porque está demonstrado que ele é seu produto genital e genitivo segundo tal ordem de parentesco. Vocês conhecem a implicância do chamado Karl Marx com a tal da família. Lévi-Strauss situa o fundamento da interdição do incesto baseado na família, no princípio da troca, na possibilidade das negociações. Ou seja, é preciso sempre ter as coisas estabelecidas segundo metades diferentes para se separar em x do lado dos machos e y do lado das fêmeas. Mas, por que essa insistência numa separação tão imaginária? Esta é a minha questão. Algum cacoete existe no percurso da chamada humanidade, cacoete que posso supor – antes de desenvolver melhor – que seja um creodo, isto é, alguma coisa forçosamente obrigou a passagem por ali. Uma espécie de bacia orográfica com as águas correndo por ali, certamente por facilidade imaginária... E o homem desemboca no simbólico, constrói coisas espantosamente abstratas, as mais altas matemáticas, a tecnologia mais avançada... e continua neolítico nas suas concepções de lugares, como sujeito.
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Como lembrou Benveniste, as metades são divididas conforme a anatomia. O interesse disto só pode ser reprodutivo, genital, mas os enganos não deixam de se impor no processo. É como aquela estória do papa: é preciso “pegar” nele para ver se é papa mesmo, pois a Joana XXIII deu o golpe na paróquia. Então, saímos separando os bichinhos, iguaizinhos com iguaizinhos... é claro que, no caso dos pintos, há um interesse específico, uns vão para a granja botar ovos, outros para o corte. Esse rebatimento imaginário produziu uma função de separação de metades, de qualquer tipo de ordem que seja, por vigência imaginária. Ou seja, ao invés de perguntar aos falantes como é que se separam as coisas, vão perguntar ao tal japonês que é o único a saber separar pintinhos... Insisto em que alguma coisa tornou-se um creodo, se é que se tornou, pois só se poderia garantir isto se se pudesse provar (coisa que a antropologia suspeita, mas não demonstra) que se encontraria a interdição do incesto em toda e qualquer cultura. Supondo isto, posso, no máximo, conjeturar que é uma espécie de creodo, quer dizer, de pressão, de vertente imaginária que conduziria espontaneamente para este lado. Em não se sabendo o que fazer, nada se cria, tudo se copia, então, parte-se para este logro, e copia-se o modo de articulação de um computador que é dado num processo supostamente natural, mas que só pode ser percebido por vias de articulação simbólica. Mas dado em função do interesse da reprodução e da posse. É claro que, uma vez esse narcisismo instalado – o sujeito reconhecerse na sua prole, transmitir os bens a essa repetição sua –, estamos diante daquilo que é o mais difícil de dissolver. Talvez, a psicanálise tenha esta função precípua: dissolver esse narcisismo. Esse narcisismo defende com unhas e dentes a permanência desse estado de coisas, dando-nos a impressão de ser necessário, e vai acrescentando obsessivamente, com apoio no superego, não por vias de Lei, as regras, a ponto de, para o sujeito que nasce naquela agressividade que o caracteriza – no lugar onde estão situados os discursos, essas falas todas –, impregnado de tal modo dos enunciados, o que se obscurece mais é a função legal desse fenômeno. O sujeito fica embotado de pressão superegóica.
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Vamos supor que, no interesse de uma hegemonia genital, e para se distribuírem as séries de modo que elas nunca tenham retorno, se propusesse a interdição do incesto, e, para isto, bastasse garantir, por exemplo, o incesto com a mãe como proibido, ou mesmo com a irmã. Mas essa interdição logo começa a permear todas as funções cotidianas do sujeito, sobretudo quanto à reprodução. Mas tomemos incestos impossíveis de saída. Estou falando de incesto do ponto de vista estruturador das ordens de parentesco. Por exemplo, a relação do pai com o filho, ou da mãe com a filha, é incesto? Como, se não há reprodução em jogo? A coisa passa da ordem lógica, com a qual foi criada por um interesse específico, para a ordem religiosa, para a obsessão. Daí Freud insistir no Mal-Estar na Cultura, assim como a psicanálise na sua prática, que há que tentar demolir o superego para se chegar à estrutura. O superego não deixa sacar que, por trás da sua bobagem, o que interessa é a estrutura. Há que reduzir à função mínima, senão não se chega à lógica das coisas. Isto fica em suspenso por enquanto. Isto foi apenas para colocar uma pedrinha no sapato da questão. *
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Em função desse genital e desse genitivo é que me pergunto sobre as possibilidades de distinção, na castração, de níveis diversos. Nesse momento aí, vamos nos perguntar se é possível pensar na instalação da Lei fora da interdição do incesto. Quando fiz uma tentativa de leitura dos primeiros capítulos do Gênese, foi no sentido de mostrar que, parece, podemos encontrar a Lei se fundando no episódio de Abel e Caim. Isto sem que ali haja algo a ver, necessariamente, com interdição do incesto. Há que haver é uma relação de cada um deles com o Pai, com Deus-Pai, em função de um desejo que está em jogo. O desejo ali é do reconhecimento de Deus-Pai. É claro que em função dos objetos que foram colocados lá... Também frisei como certos autores colocam
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que o mito arcaico de Édipo não fala de incesto, fala de parricídio. Édipo se casa com outra pessoa, não com a mãe, e o clima é o mesmo em função do parricídio. O que está em jogo aí é a questão da existência do sujeito. Até segunda ordem, existe função de acoplamento de fulano com sicrano e, como mostra Lacan, da postura sexual do sujeito, ou seja, seu entendimento e opção diante da diferença sexual. Mas não necessariamente incesto, enquanto incesto tenha a ver com essa proibição que funda a regra de parentesco. Eu diria – sem me aprofundar hoje – que é possível encontrarmos três níveis na castração. O que interessa, na verdade, é a castração. O primeiro nível – fazendo a ordem inversa –, o nível mais antigo, mais radical, mais de base, é a castração enquanto proibição de totalização para significar uma impossibilidade. Alguma coisa vai ser dita proibindo o impulso de toda completa ligação. Não porque isto seja possível, mas justo porque é impossível, ou seja, a proibição é dita, porque não se pode dizer o impossível. É proibido grudar com a mãe, grudar com qualquer coisa, simplesmente porque essa coisa não totaliza pois não é A COISA. É proibido dizer tudo porque não se pode dizer tudo. É proibido dizer A Verdade porque ela não pode ser dita, é impossível. Pode-se dizer alguma verdade, mas não toda. Este seria um nível mais radical. Num segundo nível, talvez, pudéssemos situar o complexo de Édipo – excluindo daí, portanto, a interdição do incesto como fundadora do parentesco – com “é proibido matar”, no caso, “matar o pai”. O que está sendo dito nesta proibição? Posso dizer simplesmente que é proibido matar. No complexo de Édipo é proibido matar o pai, em função da eliminação da diferença diante da convergência de desejo. Ou seja, o mesmo objeto é erigido em objeto de desejo por mais de um sujeito. Nessa convergência vem a luta de prestígio e o impulso é de eliminar o outro e ficar com o objeto só para si. Nisto está a assunção do parricídio no complexo de Édipo. É criminoso Édipo matar o pai, sobretudo porque ele não quer admitir – talvez na suposição de que o objeto possa completá-lo – que este objeto só é desejável porque é desejado por alguém, se não, não o seria nem por ele. A
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tentativa de eliminar a diferença passa a ser a de eliminar o desejo do outro. O que está em jogo, então, é a tentativa de eliminar a diferença, e suponho que podemos situar a Lei neste nível. Lacan, aliás, reduziu perfeitamente o complexo de Édipo, e abandonou a teatralidade edipiana, como se pode ver em Scilicei 4, p. 14, no L’étourdit. Apresentando as fórmulas quânticas da sexuação, levando em conta o complexo de Édipo, ele diz: “É mesmo a essa lógica que se resume tudo que diz respeito ao complexo de Édipo”. Tudo se reduz pura e simplesmente à lógica das fórmulas quânticas da sexuação, ou seja, ao reconhecimento da diferença sexual que é, em última instância, segundo esse tipo de pensamento, na verdade, o reconhecimento da diferença, puramente. E outro nível, o terceiro, que se apresenta na cultura como interdição do incesto, e que eu ponho na conta de uma castração imaginarizada. Imaginarizada pois que, já no nível anterior, há fundação de metáfora para reconhecimento da diferença, há vigência do Nome do Pai, que é de instalação divina. No terceiro nível trata-se não de produção de metáfora, mas de congelamento numa metáfora que, praticamente, interessou. Recorro aí, novamente, à questão da praticidade para Lacan, e ao Totem e Tabu, onde se trata de uma proibição que existe para que a coisa não se desarvore. Uso o verbo desarvorar fazendo uma referência a Deleuze/Guattari, no texto chamado Rizoma, onde mostram essa obsessão na nossa cultura de tomar a árvore como metáfora de tudo. Tudo menos desarvorar-se. E a árvore genealógica não é senão a impossibilitação de qualquer confusão entre o genital e o genitor. Então, trata-se dessa reposição constante de um narcisismo arborescente. Eu disse: referência paterna no nível divino. Se tomarmos aquele mesmo Vocabulário de Émile Benveniste, quando ele trata do conceito de paternidade, veremos como o autor chama atenção para o fato de que a fundação mais arcaica que podemos elaborar em função disso, do termo paternidade, exclui a paternidade por inteiro. Ele diz que o problema verdadeiro é muito mais importante: pater, será que isto designa exclusivamente a
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paternidade física? O termo pater é pregnante no emprego mitológico, ele é a qualificação permanente do Deus Supremo dos indo-europeus, figura invocativa do nome divino de Júpiter. A própria origem do nome de Júpiter vem de uma fórmula de invocação: Zeus Pater, Zeus Pai, Zópater, Júpiter. Oh Deus Pai! Este é o único Nome do Pai possível. Nada no pensamento de Lacan leva a pensar outra coisa. A área dessa alteração divina é bastante vasta para que se possa, de direito, recortar o período indo-europeu como o emprego mitológico desse Nome do Pai. Ora, nessa figuração original, a relação de paternidade física está excluída. Estamos fora do parentesco estrito. Pater não pode designar o pai, no sentido pessoal, e não se passa facilmente, do ponto de vista linguístico, de uma a outra acepção. São duas representações distintas e podem, segundo as línguas, mostrar-se irredutíveis uma à outra. Aí, Benveniste mostra uma série de classificações, a partir do indoeuropeu, para apontar que alguma coisa passou, sem nenhuma possibilidade de articulação linguística, dessa referência paterna ao Nome do Pai enquanto tal, que é a referência bíblica – não deixa de ser – para o genital, mas, originariamente, são dois textos completamente diferentes, irredutíveis. Mais do que isto, ele vai mostrar que o termo “irmão” é a mesma coisa. A fraternidade se reporta ao Pai e existe um outro termo com várias correspondências em outras línguas, que designa o filho da mãe, aquele que se genitaliza. Daí a importância de Lacan ter pensado a articulação do Nome do Pai e mostrado que ela funciona mesmo independentemente da referência a essa outra que Benveniste citou como esse Papai do Céu. *
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Aquele que estaria no lugar do reprodutor, ou de ser responsável, ali, pela criação do sujeito, e a paternidade. Na verdade, se o sujeito chega a se referir ao Nome do Pai, e só há um, a esse ser que nunca chegou a existir, porque sempre esteve morto, nenhuma paternidade do mundo funciona
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mais. Porque tudo cai numa cadeia. Eu diria mesmo que uma coisa de se observar numa análise é o momento em que o pai real vira irmão.
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AINDA O GENE E TAL Justo quando estamos falando de Psicanálise e Polética, e tratando dessa questão da interdição do incesto, da formação da cultura, estão acontecendo coisas interessantes. Trouxe, a título de ilustração, sem pretender me deter muito, três acontecimentos jornalísticos. Um trata de uma nova direita norte-americana, que se intitula, muito apropriadamente, moral majority, maioria moral. Se quiserem se dar ao trabalho de ler o artigo, verão como é interessante e como tem a ver com o que estamos pretendendo abordar. Sobretudo, tem muito a ver com o Mal-Estar na Cultura, de Freud. Um outro acontecimento interessante. Não acreditem que costumo ler as Seleções do Reader’s Digest, mas eu passava na banca e havia uma publicidade tão grande, escrita assim: “Incesto, o derradeiro tabu”. Isto no número de abril de 1981, páginas 47 a 50. Por cima da capa, uma sobrecapa colada com letras ainda maiores: “Silenciar não ajuda – Incesto, o derradeiro tabu”. E havia mais, um fato que a gente esquece: “mais de 30 milhões de exemplares vendidos em 16 idiomas”. Pensei cá comigo assim: “Será que alguém está pensando em abordar a questão do incesto como último tabu”? E fui ler. É uma porcariazinha de quatro páginas, aonde se conta o caso de uma menina de 12 anos, cujo pai passou da paquera ao ato. Ela, certamente, começou a apresentar deficiências na escola – geralmente, os americanos, quando têm problemas, apresentam deficiências na escola –, a professora desconfiou que
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havia algum problema, começou a conversar com ela, e ela acabou se abrindo. Papo de psicóloga, contou aquela coisa toda... A coisa, então, tomou um caráter psicopolicial e, naturalmente, eles foram tratados: o pai foi posto para fora de casa, textualmente, para que Peggy, a garotinha, pudesse viver com sua mãe e irmãos. Mas foi permitido ao pai continuar a trabalhar para poder sustentá-los, o que é uma grande sacanagem. Descaradamente eles dizem isso assim, sem a menor vergonha. Imediatamente, ele passou a se juntar aos “Pais Unidos”, que é um grupo de ofensores das suas mulheres, que se encontram regularmente para discutir os seus problemas e que agora possui 46 dependências em 15 estados norte-americanos. A coisa vai bem. É por isso que o Colégio Freudiano é desse tamanhinho. O pai já apresentou 600 horas de serviço à comunidade, em lugar da prisão, e por aí vai... Depois, temos as indicações dessa instituição, com seus 28 programas na Califórnia, terra do nosso “amigo” , que está citado no artigo sobre a moral majority, o chamado Reagan, e 18 outros estados, 200 programas de tele-educação... É aquele negócio, aí temos que lembrar do nosso amigo Michel Foucault, quando fala dessa obrigatoriedade de confessar... E o conselho final: “Não escondam isso, vocês não estão sozinhos e podem ser ajudados”. É claro que não estão sozinhos. Quem quiser, pode ir lá. Existe toda uma armadura, além das institucionais e normais, tem todo um aparelho, toda essa coisa linda, para tentar não coibir, mas tentar ajudar, e curar essas coisas. O outro caso foi em Minas, negócio de brasileiro – vocês viram n’O Globo? Apareceu Diadorim, afinal, Guimarães Rosa já tinha escrito esta história, antes de ela acontecer. Uma moça, filha de rico fazendeiro, usando os poderes, talvez, que ela tem, foi na cidade vizinha, fez outro registro com o nome no masculino, casou com outra moça, na Igreja. Elas têm 10 anos de casadas e têm um filho. Tudo direitinho. Certamente deve ter havido uma grande conivência para tudo isso acontecer, porque a família tinha testemunha, tinha tudo... e, a certa altura, a denúncia aparece, etc. Ela confessou que o filho era de um pedreiro que lá passou... Ela conseguiu um espermatozóide emprestado e, agora, estão fazendo um escândalo. Interessante que no primeiro artigo de jornal que saiu, a coisa estava assim meio sobre celeuma jurídica. Diz o jornal que o
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código civil não prevê o caso. Vejam só que foraclusão. Várias proibições são previstas e esqueceram que podiam dar esse golpe. Não passou pela cabeça dos redatores justamente porque não deve ter passado outra coisa. A diferença sexual deve ter sido recalcada. Nos impedimentos do artigo 208 não há menção a casamento de pessoas do mesmo sexo. Esqueceram. E a moça, que é a tal da José Dolores Durões, fazendeiro, agora está sendo processado, etc. Há um processo de anulação do casamento. Os juízes e os advogados começaram a brigar porque foi o pai dela quem pediu a anulação do casamento. Certamente, ele estava careca de saber que não era o caso. Ele pediu a anulação para o filho dela não herdar a fazenda, porque é filho da outra... Isto dez anos depois. É ilegal porque não foi uma das partes que pediu. O casamento é feito entre as partes, o juiz é testemunha. Agora o juiz está querendo botar todo mundo na cadeia, os vizinhos, o gato, o papagaio, etc. O engraçado é que o advogado de defesa sentiu-se tão pressionado que, de repente, deu o parecer que a promotoria estava com toda a razão. Ou seja, ele não sabe se comportar nem profissionalmente. Quer dizer, começam a pintar coisas interessantíssimas que a gente precisava pensar. Aí retornamos ao tal do incesto, e pensando como minoria, certamente em contraposição àquela indecência que é a tal da moral majority... *
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Gostaria de retomar de onde paramos da vez anterior, ou seja: a possibilidade de destrinchar no tal complexo de Édipo, na tal proibição do incesto, etc., alguns níveis que parecem estar imbricados sem muita distinção. Isto não significa que estamos descobrindo nada de muito novo. A meu ver, Lacan já nos deu quase todas as dicas a respeito. Por exemplo, de que o complexo de Édipo é o complexo de castração. No L’Étourdit, que é um dos textos mais densos que Lacan escreveu – não faz parte dos Écrits porque é posterior – tratando das fórmulas apelidadas quânticas da sexuação, que ele estabeleceu sobre a diferença sexual, ele diz, como já vimos, que “é mesmo a esta lógica
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que se resume tudo o que diz respeito ao complexo de Édipo”. Podemos, então, dizer que se o complexo de Édipo é o complexo da castração, trata-se de pensar a castração. E, se tudo que é do complexo de Édipo, que é do complexo da castração, se resume na lógica da diferença sexual, com referência nessas fórmulas quânticas, é isto que tem que ser pensado. Ao mesmo tempo, uma referenciazinha à questão da Lei. Nos Écrits, p. 852, coisa antiga, Lacan diz: “A Lei está a serviço do desejo que ela institui pela interdição do incesto”. A Lei, então, está imbricada no complexo de castração e, portanto, em última instância, segundo o percurso de Lacan, na questão central da psicanálise, por onde tudo passa, que é a questão da diferença sexual. Aí vem a questão da diferença entre amor e desejo, referenciada à diferença sexual. Isto num texto de Ornicar?, 19, p. 9: “É quando um homem é mulher que ele ama, quer dizer, no momento em que ele aspira por algo que é seu objeto. Por outro lado, é enquanto homem que ele deseja, isto é, que ele se suporta por algo que se chama propriamente tesão”, bander em francês. Noutro lugar, falando de uma postura em final de análise, diz que é quando o sujeito assumiria seu sexo. Assumir seu sexo é, para um homem, como está definido nas fórmulas quânticas, reconhecer que há mulheres, e, para uma mulher, reconhecer que há homens. Então, simplesmente, para um homem reconhecer que há mulheres, é o sujeito ter-se situado numa postura masculina e reconhecer a diferença, e vice-versamente. É quando um homem é mulher que ele ama. Homem, aqui, no sentido da espécie – a espécie se define pelo masculino. Quer dizer, no momento em que ele aspira por algo que é seu objeto, ele é mulher. Uma coisa é bander, ter tesão por objeto, outra, é viver em aspiração por ele. Aspirar, lembra furo. Com referência à interdição do incesto, e do ponto de vista da Lei, em Ornicar?, 11, p. 7, Lacan chama a atenção para que “a Lei não tem absolutamente nada a ver com as leis do mundo real, é simplesmente a lei do amor, quer dizer” – aí temos que falar em francês – “la père-version” – a versão paterna, a pater versão que, em francês, soa perversion, perversão.
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O que quer dizer isso tudo? Como podemos tentar juntar esses caquinhos? Peço-lhes que me acompanhem – criticamente, de preferência – num começo de tentativa de distinguir momentos imbricados no complexo de Édipo e na castração. Em algum lugar – nos Écrits, se não me engano –, falando da questão do surgimento desse desejo que é garantido pela Lei mediante a proibição do incesto, Lacan diz que “o gozo deve ser proibido no plano do mito para ser permitido no plano da realidade cotidiana”, estou citando de cabeça. Essa proibição é um embargo ao gozo. Ele aparece miticamente como embargado para que, no plano do cotidiano, possa ser diluído. Está mal citado, mas acho que a referência, aí, no caso, é que o que o mito apresenta como embargo, como proibição, é o que possibilita a produção de gozo, naturalmente que fálico, no cotidiano. Esta citação antiga de Lacan é de antes da referenciação ao gozo do Outro. A coisa fica, mesmo, superada, pois no outro texto dos Écrits, p. 852, que citei há pouco, a Lei está a serviço do desejo que ela institui pela interdição do incesto. Em suma, poderíamos dizer que essa coisa que é fundamental, nuclear, em toda a estruturação da psicanálise, em todo acontecimento psicanalítico, não é senão, em última instância, a vigência simbólica da diferença sexual, a qual é regente, digamos assim, de toda e qual-quer diferença, no plano freudiano. Quer dizer, o reconhecimento da diferença no plano sexual, como regente de toda e qualquer diferença, e o não reconhecimento da diferença como homossexualização generalizada e, portanto, uma espécie de assassínio da diferença. Em última instância, temos, então, a diferença sexual como regente da diferença, contendo o que seja reconhecido pelo sujeito. E nisto se resumiria o que é todo o engrazamento do complexo de castração. *
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O tal complexo de Édipo, que aparece indefectivelmente nos falantes culturais, que são os que nós temos, naturalmente que nodula, amarra tudo isso
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na diferença: a diferença sexual, a castração simbólica enquanto tal, a introdução da Lei e a proibição do incesto. Será que podemos tentar separar esses três níveis, esses três momentos, e verificar que – se chamarmos isso de um conjunto da diferença sexual, uma espécie de conjunto significante portador do núcleo psicanalítico – talvez essas outras coisas fossem todas parciárias, subconjuntos desse conjunto, e não necessárias? Talvez a chamada proibição do incesto seja um modo de aparecimento não necessário da diferença sexual. Assim como há uma memória encobridora, pode haver uma proibição encobridora. O que sempre comparece nos textos de Freud, e no divã, é o complexo de Édipo entrelaçado à castração. Mas, se há um nível lógico fundamental, uma formalização possível do acontecimento, este nível da castração é subjugante do outro. O anedótico que vai entrar aí é o subjugado. A coisa, entretanto, comparece primeiro pelo anedotário. Não fosse assim, Freud jamais descobriria que se estava realizando o complexo de Édipo, pois o que ele estava procurando é o que se formaliza por trás daquilo. O anedotário, então, é que está subjugado ao acontecimento formal. Se não, não adiantaria nada. Lacan disse que foi ele quem inventou o simbólico. Ele disse também, por outro lado, que quando se lê Freud, não se consegue distinguir real, simbólico e imaginário, numa primeira leitura. Isto porque Freud, lidando direto com o fenômeno que lhe aparecia, apresentava um nó a quatro: esses três entrelaçados e um quarto nó, o do sintoma. Mas é preciso saber distinguir o que está ali entrelaçado. Num dos Seminários mais recentes (1977) de Lacan, Vers un signlficant nouveau, publicado em Ornicar?, 17/18, p. 12-13, ele diz: “Um chamado Rodney Needham” – que organizou um livro intitulado La Parenté en Question –, “que não é o Needham que se ocupou com tanto cuidado da ciência chinesa, imagina estar fazendo melhor do que os outros, observando, com toda razão, aliás” – atenção para esse detalhezinho: com toda razão –, “que o parentesco deve ser posto em questão pela razão de que comporta nos fatos uma variedade maior do que” – é a isso que ele se refere – “os analisandos dizem. Mas o que resta muito evidente” – chocante, como diriam hoje – “é que
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os analisandos, eles, não falam senão disso. A observação incontestável de que o parentesco tem valores diferentes em diferentes culturas” – e aí chegamos ao ponto das culturas – “não impede que sejam repisadas pelos analisandos as suas relações com seus pais” – parents, que significa também parentes –, “aliás, próximos, é um fato que o analista tem que suportar. Não há nenhum exemplo de que o analisando note a especificidade que diferencia sua relação particular aos seus parentes [pais] mais ou menos imediatos. O fato de que ele não fala senão disto, tapa todas as nuances de sua relação específica”. Ele está mostrando que o analisando sempre fala disso, e sem mostrar nuances de cultura para cultura, que era a crítica do Needham. Lacan diz que é “com razão” que se deve fazer a crítica disto, mas não é essa a crítica. “De sorte que O Parentesco em Questão – obra patrocinada por esse Needham – finalmente valoriza esse fato primordial que” – e é isso que Lacan quer enfatizar – “é da alíngua que se trata, que o analisando só fala disso porque seus parentes próximos lhe ensinaram alíngua”. Foi reduzida a questão do parentesco à decantação, à deposição sobre o sujeito de uma língua. Quer dizer, aquilo vem na alíngua. Não é a questão dos pais que interessa. É a questão da alíngua. “A função da verdade é, aqui, de algum modo, amortecida por algo de prevalente; seria preciso dizer que a cultura está tamponada, amortecida, e que, nessa ocasião, far-se-ia melhor, talvez, evocar a metáfora.” Vejam, então, como isto é rigoroso: Lacan disse que nesse acontecimento de o analisando falar sem distinguir diferenças, há apenas essa relação que não é senão uma transmissão que vem por alíngua; e segue dizendo que a função verdade está ainda obscurecida, a cultura não comparece nesse nível, e seria talvez melhor evocar a questão da metáfora. E segue: “– já que ‘cultura’ é também uma metáfora, aquela de agri do mesmo nome”. Foi exatamente daqui que tirei a dica do Neolítico, que, para mim, significa: a cultura é a metáfora de agri. A cultura é uma metáfora de dimensão neolítica. Lacan não diz agricultura. “Seria preciso substituir a agri em questão pelo termo de bouillon de culture.” Aí está uma palavra difícil de traduzir: bouillon, que é um caldo, ao mesmo tempo que carrega uma
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coisa que caldo em português não diz, que é a fervura, a borbulhância, ou seja, é um caldo quente e borbulhante. Bouillon é uma espécie de sopa “lavoisier” fervendo. Em português mal traduzido, então, seria, continua Lacan: “uma caldo-cultura; seria melhor chamar cultura de um caldo de linguagem”. Seria, digamos, a “cozido-cultura” em lugar de agricultura e isto daria alguma coisa completamente diferente da cultura. Está aí toda a dica de que não é por essa via em que o moço, o Needham, está indo, de diferença de cultura para cultura, mas, sim, a cultura posta em questão, como, nada mais, nada menos, metáfora. Ou seja, sintoma, conforme definido no rigor da teoria lacaniana. Sintoma é metáfora. Então, quando estamos vivendo na cultura, seja ela qual for – e não pelo fato de haver diferença cultural, mas pelo fato de haver cultura –, estamos metidos num certo sintoma. E sintoma tem data, não é algo que existiu sempre. Uma metáfora é algo localizado. Metáfora e significado são a mesma coisa. Não há significado no sentido saussureano, o máximo que podemos ter é significado no sentido lacaniano: metáfora produzida num certo momento, passagem a certa significação. No que ela é produzida é desvelamento de sentido, mas no que é um produto, é ocultamento de significante. São as duas faces da coisa, ou a mesma face ambígua. Quando perde o sentido, salta o significante tresloucado, em busca de novas e possíveis amarrações. Por isso é rico aquele pedacinho de texto: estamos metidos num sintoma chamado agricultura, e que chamo de neolítico. Então, não fará parte desse sintoma – chamado neolítico, chamado agricultura, chamado cultura, em última instância, como metáfora de agri –, não será o núcleo disso, dessa metáfora, o Édipo? Não o Édipo por inteiro – porque Édipo é uma grande metáfora para várias metaforazinhas –, mas essa metáfora chamada proibição do incesto. Proibição do incesto é estrutural, ou é metáfora? Se é estrutural, é condição sine qua non do falante. Se é metáfora, se é sintoma, é um aparelho de significância, produzindo significação num certo prazo. O sintoma é inaugural do falante, instala o falante, mas não tem que ser esse. Não estou dizendo que a interdição do incesto é o sintoma, ela é um sintoma. É um, como uma mulher. Uma mulher é um sintoma. Existem sintomas,
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não o sintoma. Se você mantém um sintoma, sabe o que fazer com ele e sabe, sobretudo, dizê-lo, o que acontece? Se tenho uma metáfora, chamada sintoma, sobre a qual eu me esteio, e, de repente, sei fazer com ela, no sentido de savoir-faire, o que posso fazer, senão continuar a metaforizar... e, portanto, dissolver? Dissolver não significa acabar com a possibilidade de metáfora. Lacan diz: dissolver no real. O real é isso: o impossível à espera de ser dito. Não é esperança, é attendre. Consigo ler em Lacan uma denúncia da cultura, esta sendo pura metáfora. Tanto é que a ordem de parentesco, o sofrimento edipiano, etc., reduzido a tudo isso que vimos ser reduzido e, aqui, no caso, no seu surgimento em divã, o próprio anedotário, não é senão exposição de alíngua, ou seja, de sintoma. Nada impede que o superego continue, como coloca Freud, considerado como herdeiro do complexo de Édipo. Isto na medida em que possamos distinguir essa metáfora da estrutura que a garante, pois existe uma estrutura que garante a metáfora. Metáfora não aparece sozinha. Vamos escalonar isso. Há. primeiramente, garantia estrutural do surgimento da Lei por alguma via que vai criar um universal possível, dizível, nem que seja dizer “não” ao gozo fálico, criando castração, nesse nível abstrato. Em seguida, a conteudização, a sintomatização disso num regime chamado edipiano. Aí eu poderia dizer que o complexo de Édipo é herdeiro da Lei, se seguir o raciocínio que estou seguindo. Só que podia ser o complexo de Édipo quanto podia ser outro, pela mesma Lei. Qualquer outra invenção seria plausível, desde que estivesse conforme com a Lei. Em última instância, qual é a Lei? A relação sexual é impossível, a diferença existe, o real é impossível. Não está proibido aí de transar com a mãe, mas isso tem que ser dito de algum modo. A Lei é essa impossível totalização, impossível relação sexual, etc., e isso se quantifica, se conteudiza, num anedotário chamado Édipo. O superego passa a ser o herdeiro do Édipo. O superego não é Lei, de modo algum. Ele é uma espécie de parasita da Lei. O senso de culpa, como Freud coloca, é senso de falta. Não é senso de exigência de punição no nível da consciência. É aquilo que comparece, como estrutura, no regime da falta, de pura dívida simbólica, o que vai ser
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fagocitado pelo superego e outras estruturas, para fundar o aparelho de consciência e toda a estrutura da neurose obsessiva. O que vem primeiro é o regime de fundação da falta. A castração não é senão reconhecimento disso, puramente, e isso legisla a possibilidade de eu inventar sintomaticamente. Quer dizer, de metaforicamente inserir isso num contexto de língua, digamos, onde isto é narrativa tipo mito, coisa dessa ordem, complexo de Édipo... A culpa é nada mais, nada menos que efeito da falta. A fagocitose disso é que vai dar consciência, de culpa, que é estrutura obsessiva. O tal trognon, como Lacan chama, e que gosto de traduzir por “cagalhão”, vai pintar ali dentro: coloco o anedótico edipiano como uma metáfora possível, legal. Não estou dizendo que o complexo de Édipo é legal, nem que a interdição do incesto é ilegal. Ela não é fora da Lei, simplesmente. Ela é um dos enunciados possíveis. Existem metáforas e metáforas. Existem metáforas mais bem construídas poeticamente do que outras. Existem até metáforas mais abrangentes do que outras. Só me pergunto: por que essa metáfora tão careta, essa “má poesia”, o Édipo? Se não vejamos, você está fazendo doce, aqueles docinhos que a gente enrola na mão, brigadeiro, e você edipianiza, dá aquele anedotário da receita. Aí, dá aquele trognon dentro, aquele negociozinho condensado. Às vezes você cospe fora porque está ruim de gosto... Por que esse lugar de cristalização pintando assim? Por que pinta esse negócio chamado superego aí? Por pressão externa, disse Freud. Se o movimento intersubjetivo, mediante uma palavra qualquer, vai situar o sujeito, e vai – mal dizendo – “transmitir” ou “imprimir” a Lei, isso vem por um anedotário, e esse anedotário é fartamente recomposto com uma sintomática da mais grave, de mil falas, neuróticas, etc. Ora, qual é a pressão que o sujeito sente de fora? É uma pressão com relação a enunciados dados, sobre comportamentos, etc., dentro da qual, eventualmente, está a interdição, mas essa pressão – que quero chamar, agora, de repressão – não é um recalque. Há uma distinção muito grande. O recalque está instalado para que qualquer coisa possa funcionar em nível de inserção nesse campo todo, mas o que vem como superego é todo um construto. O nome está claro em Freud: superego quer dizer um egão, o alterego, o grande
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ego externo. Ou seja, um objetão imaginário, o qual, imaginariamente, reprime, em função de enunciados interessados em passar os conteúdos, produzindo em cada relação intersubjetiva, mesmo que isso tenha a ver com a lei enquanto proibição, um grande imaginário de “podes” e “não-podes”. Isto é que vai cristalizar o tal superego. As pessoas, sem se darem conta de que estão agindo no segundo nível, chamado edipiano, estão simplesmente no movimento dos enunciados. Como elas constroem esse objeto? Por essa via, puramente repressiva, de apresentação de enunciados válidos ou não-válidos. Nesse sentido, encontramos tanto em Freud, quanto em Lacan: “Cuidado com o superego, esse cara não presta!”. Se prestasse, o ego também prestava. Daí que, necessariamente, uma análise de reforço de ego acaba sendo uma análise de reforço de superego. O imaginário da cultura é muito pregnante pelo mesmo motivo que se encontra no narcisismo de cada sujeito uma forte predominância imaginária. Afinal de contas, a chamada cultura que se absorve, se assume, etc., passa a ser uma extensão corporal – que me desculpe o cadáver de McLuhan – muito grande, mesmo que pareça, digamos, adjacências, de sua construção egóica. Como não teria importância? O que é o homem culto? Ele vai para a Academia Brasileira de Letras, o ego vai ficando cada vez maior. Se o ego não crescesse no ritmo do superego, não se entrava nos lugares onde se indicam os grandes egos. Por isso essa coisa é estranha, esse objeto não identificado, esse trognon aí, porque, de fato, ele não teria modo de surgimento, se não estivesse embutido dentro desse conjunto da diferença sexual, que estou colocando como o núcleo da psicanálise. Assim como um recalque secundário só apareceria com um recalque primário. Quer dizer, o superego tem possibilidade de dizer “eu sou legal”, mas, de que modo? Ora, toda e qualquer interdição que se pronunciar carrega a estrutura da interdição, o que nada tem a ver com a proliferação de congelamentos imaginários com exigência de inserção de tal sintoma. O que imediatamente vem na chamada consciência da nossa partezinha obsessiva: “Mas como é que vou ficar sem o sintoma?”. Sim, mas outro não serve? Tem que ser esse?
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Continuemos então, na possibilidade de distinguir esses níveis no Édipo. Lacan reforça mais adiante no mesmo texto, p. 13-14: “É um fato que as línguas [les langues] – que escrevo l’ élangue – se esforçam longamente em se traduzir uma na outra, mas que o único saber resta sendo o saber das línguas. O parentesco não se traduz em fato” – atenção, isso é importantíssimo: o parentesco não se traduz em fato, em que pese a consangüinidade de LéviStrauss –, “mas só tem de comum o seguinte, que os analisandos sempre falam dele”. Por que falam? Porque estão nele, estão nessa, não são essa. Se o sintoma transmitido é este, dificilmente poderia pintar outro. Evidentemente que pode, mesmo sendo este o transmitido, mas genericamente, é este que passa, ou, pelo menos, é este que a cultura diz – o que significa que é este que o sujeito em particular tem a dizer. Lacan diz que o único saber que há é o saber das línguas. Todo saber é regulado pelas línguas – as línguas, o sintoma, enquanto línguas que se falam realmente. Não há outro saber senão este. Por mais abstrato e matemizado que seja, por exemplo, um tratado de matemática, em última instância, para falar, terá que apelar para uma língua, para dizer o que está lá. É importante para ele que lá esteja dito isto, porque a estrutura de parentesco se reduz a essa deposição, a esse depósito sintomático chamado alíngua. Mas não é porque eu me esforço por transmitir um sintoma, que ele vai pegar. Se não, a pedagogia seria rainha das ciências: transmitiu, colou! Retomemos o nosso brinquedo: a possibilidade de pensarmos o Édipo como subdito a essa coisa que é fundamental, que é o teorema da castração, o qual não é senão a diferença enquanto tal, ou seja, a diferença sexual. Isto, até segunda ordem, para o pensamento psicanalítico, é o que fundamenta, condição sine qua non da existência do falante como tal. Será que posso, pelo menos por enquanto, pensar dois momentos que estão ditos no Édipo? Ou seja, o que se diz enquanto estrutura suficiente para castração, e o que se diz enquanto sintomatização, quer dizer, metaforização
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especial, particular. Nesse primeiro momento, me pergunto: não entra aí a Lei, enquanto pura produção de metáfora? Não esta ou aquela metáfora, mas enquanto produção de metáfora, portanto, vigência do Nome do Pai – que é um termo da teoria psicanalítica, mas pode ser o Nome do x. Digamos que existe aí uma fundação de inter-subjetividade. É nisso que se funda a possibilidade de reconhecimento do Outro, portanto, de fazer vigorar a Lei de “não matarás”, ou seja, “não destruirás a diferença por ser diferente”. É a “transação” inter-subjetiva, já que a relação não existe. No segundo tempo é que tenho a proibição do incesto que é, ela sim, fundação da cultura. A cultura se fundaria num modo particular, num sintoma particular de dizer a possibilidade do vigor da Lei. Aí é que está o genital, o genitivo, o esquecimento de botar na Lei que o homem pode se casar com homem e mulher pode se casar com mulher, se os dois se distraírem. É uma espécie de foraclusão. Aqui é que se funda a ordem do parentesco. Já o Nome do Pai do primeiro momento é como está no Velho Testamento e como está equacionado por Lacan: é referência divina. Esta Lei nada tem a ver com as leis, as regras. Édipo, por sua vez, é um enunciado legal que fundou a cultura, e não a Lei enquanto tal. Ele é metáfora da Lei, porque a Lei não consegue se dizer. Como se dizer a interdição sem dizer o enunciado? É proibido o quê? Aqui, neste caso, praticar o incesto. Nesse segundo momento, gostaria de falar do recalcamento da diferença enquanto tal, na medida em que ela aparece metaforicamente como diferença disso com aquilo. É o lugar onde se dá o recalque imaginário. Então, um significante que nunca vai se achar, foi metaforizado como: “É proibido”. Esse significante é outra vez metaforizado como: “casar com a mãe”. Só que este “é proibido” primeiro, não é proibido, é alguma coisa que não se soube dizer ainda. Como é que se diz a Lei enquanto tal? É a questão que se delonga na psicanálise, de como instalar esse terceiro, sem ser nesse anedotário do Édipo, da proibição do incesto. É preciso muita prática do discurso analítico para poder tirar todo esse imaginário cultural que está na nossa frente, para vazar isso e sair do outro lado. Vamos esquematizar um pouquinho, tipo reprodução, consangüinidade:
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Papai, mamãe, trepou, nasceu neném. É uma configuração tipo reprodutiva, onde estabeleci a questão em nível de parentesco.
“Papai” vai funcionar como terceiro, cortar essa tendência coagulante entre esses dois, etc., e, então, está montado o quadro do Édipo. Se tirarmos esses nomes e pusermos letras, quaisquer que sejam, A, B e C, dará no mesmo.
Está aí uma relação inter-subjetiva que age como sempre. Aí, critico o termo creodo que utilizei. Ele é ruim, pois creodo quer dizer que há um caminho necessário. Ou seja, tenho um labirinto, desses que vêm nas revistinhas para a gente cobrir, e que, geralmente, só apresentam um caminho possível. Um creodo é isso: só há um caminho possível para chegar de A a B. A cultura não é bem um creodo. Se fosse sempre se passaria por ela, seria um universal. Usei mal o termo querendo fazer boa metáfora, mas foi ruim. Prefiro voltar a termos antigos. É inclinação, no sentido orográfico: a água vai pelo caminho em que o ângulo seja mais fácil. Ora, nada mais fácil do que copiar a imagem. Então, é possível que por inclinação – como se diria nos velhos tempos, o que, naturalmente, não quer dizer coisa nenhuma – o homem, o ser falante, teria caído nessa porque era mais fácil: “Vamos organizar esta zorra, copiemos o imaginário!”. Acontece que o simbólico fica cada vez mais rebelde. A invenção das máquinas, essas coisas todas que aparecem recentemente, impõem uma certa pressão simbólica, queiramos ou não. Os computadores irritam, não porque, como nos filmezinhos de science-fiction, viram monstrinhos, mas porque simbolizam demais, numeram e simbolizam demais. Então, há que imaginarizar o computador do monstrinho, ou seja, é a re-imaginarização de uma coisa que está fazendo uma pressão simbólica. Será que preciso de um
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computador tão mixuruca, tipo árvore de parentesco, para organizar a zorra de hoje? Esta é a questão. *
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Gostaria de continuar, implicando com esses dois níveis. Resumindo o quadro: o complexo de Édipo que Freud descobriu – porque não podia descobrir outra coisa, estava lá – até hoje comparece no divã, consegue, de modo mítico, expor a instância legal, expor a interdição do incesto como sintoma que porta essa instância legal, consegue indicar a diferença sexual, indicar a castração, mas esses dois níveis são absolutamente distintos. Há, num primeiro nível, a introdução da Lei com referência ao Nome do Pai, que é diferente de referência paterna que é, no segundo nível, referência a essa instância terceira que funciona nesse quadro segundo essa narrativa. Essa narrativa não se chama Édipo, chama-se “proibição do incesto”. Essa narrativa é o modo metafórico de apresentação do sintoma, de instalação, localização da Lei. Seria uma espécie de S1 da cultura. O que é o S1 para o sujeito? É o modo de instalação significante dele, contingente. Estou me perguntando, é uma grave questão: a proibição do incesto, é ela o S1 da cultura? É ela a localização do traço unário na cultura? Estou distinguindo, dentro da fundação de um S1, o movimento de intervenção do Nome do Pai, produtor de metáfora e, em seguida, o modo de instalação, porque isso tem que ser dito de algum modo como enunciado. Há dois movimentos na produção de um S1: a intervenção do Nome do Pai enquanto tal em pura abstração e a queda disso num campo agri-cultural, no caso, ou agrícola. Dando um salto, não estará surgindo por aí uma sintomática outra que pode pegar de sopetão a cultura? A árvore do parentesco anda desmoralizada, e tenho a impressão de que vai brotando uma sintomática nova. Se não, vejamos, para se manter a eminência, o vigor e a supremacia de um enunciado, é preciso um nível de redundância extremamente forte. Acontece, por exemplo, que no campo da ciência, de uma determinada teoria científica, consegue-se redundar
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muito bem, mas não se tem força suficiente para não ser, daqui a pouco, invadida por outra. Essa metáfora chamada cultura tem tido uma força de redundância extrema porque tem esteios fortíssimos em toda função narcísica, em toda essa inclinação de que falei. Entretanto, algo está acontecendo por aí, com uma invasão simbólica cada vez mais fracionante, que vem tirando, mesmo com a permanência, digamos, legal, no sentido jurídico, essa figura. Os comportamentos a estão engolindo. É aquilo que Lacan diz: a agri-cultura está meio desmoralizada, o bouillon é que está fervendo cada vez mais. Não acho que eu esteja dando nenhum passo de vanguarda, estou me perguntando como se pode pensar esta zorra. Porque a zorra já pintou e a cultura não tem se sustentado enquanto tal em seus aspectos mais superficiais. Estaria me sentindo delirante se, simplesmente, estivesse inventando esta questão. Só me permito estar falando disto porque é a maneira que suponho ter para interpretar algo que estou escutando, algo que passa pelos meus ouvidos, pela minha escuta da cultura. Não estou supondo, de modo algum, que o meu analisando vá fazer isto ou aquilo. O que parece é que ele está falando de um troço assim e esse enunciado não se aguentaria, num determinado prazo a não ser por terrorismo. Terrorismo de Estado, terrorismo de cultura, não terrorismo tipo vagabundo, desse que atira no João Paulo... E qual seria o outro Estado possível? Não faço a menor idéia. Se soubesse, não estava contando a vocês. Eu simplesmente me espanto com esta zorra, e suponho que é por aqui a reflexão. Lacan diz que o racismo vem do futuro. Isto sem nenhum otimismo quanto ao que vai acontecer para frente, e a gente fica embananado com esta frase. O que me ocorre no momento é supor, por exemplo, que, se não se cai no conto da cultura, se a coisa começa a fracionar, por exigência ou necessidade de interseção de enunciados, a coisa pode se exacerbar em núcleos muito diversos, e fundando um certo racismo, que não é senão uma repetição discursiva. Racismo é um discurso brigando com outro. É um discurso se supondo fundamental. O que me parece, assim de longe, que me chega a longa distância, é que, talvez, se esteja atravessando uma barra em que isto impera, mas não está conseguindo governar. Reina, mas não governa. Dá para perceber isto na
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zorra. Aí teremos que pegar material em jornal, cinema, televisão... As pessoas estão pensando em lutas partidárias, que são reflexos de lutas de discursinhos isolados, etc., quando, na verdade, isto aqui talvez esteja em ponto de ebulição, quer dizer, vai virar bouillon. Como passar de agricultura para a sem-cultura, para o caldo? Por exemplo, um Gilles Deleuze... aponto no seu texto que ele embroma. Embroma e cai nessa da cultura, pois não consegue sair. Se não vejamos seu último livro. Mille Plateaux, p. 134, onde ele dá a volta e estabelece um universal, quase idêntico ao que propus aqui. Vejam bem, metaforizando, a distância que existe entre Deleuze e Lacan é, ou melhor não é, mas faz de conta, a mesma que existe entre um politeísmo e um monoteísmo. Lacan é monoteísta e Deleuze é politeísta. Desconfio que todo politeísmo acaba em nazismo, por mais boa vontade que tenha, pois deixa de fazer referência a Uma Lei. Posso ter essa ebulição de metaforinhas isoladas – é aonde quero chegar aqui no meu Seminário, àquilo que gosto de dizer que é a diferocracia –, quinhentas mil ebulições, desde que a referência não seja esquecida. Essas ebulições ocultam mais uma vez isso que será a zorra, que tem sido. E lá nessa página, vemos como Deleuze usa os termos de maioria (como citei no início, de moral majority) e minoria. Ele diz que é preciso partir para minorias cada vez menores. O conceito de minoria é radical em oposição ao conceito de maioria. Aliás, não é nem mesmo uma oposição, pois a maioria, para ele, é um enunciado da ordenação, uma ordem que vier. As minorias são brotos, são articuladas no sentido de sintomático, religioso. Estou aí de pleno acordo, só que quando ele vai atingindo esse fracionamento das minorias, vai precisar de um termo que recai na cultura. Ele diz que a minoria, em seu fracionamento, em sua divisão extrema, funda, em última instância, um universal. Caiu lá. Quer dizer, qualquer minoria tem como universal a aproximação disso, ser minoria, ser particularidade. Não estou dizendo a mesma coisa quando falo em diferocracia, que é aonde quero chegar e que é, exatamente, a possibilidade dessa ebulição, de um respeito recíproco de zil possibilidades de articulações sintomáticas. Esse universal não é efeito disso não. A diferença é que ele acha que esse universal pinta como efeito,
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enquanto que eu quero supor, com Lacan, que ele é estrutural. Como bom monoteísta, fico com Lacan. Ele está dizendo que esses surgimentos todos aparecem e são denunciados ali como mera repetição de um pensamento velho, porque, afinal de contas, é velho. Afinal, se é isso que a gente está aqui articulando, é apenas uma metáfora. O que está como uma dispersão muito grande, o fato de estarmos nesse caminho, como esquecimento do primeiro nível que coloquei, vai criar uma micro-política, como a chama Deleuze-Guattari, que fica apenas no segundo nível. E isto do mesmo modo que a cultura, como totalizante, até agora, faz o mesmo, desemboca na mesma configuração, também, por esquecimento da mesma coisa. Guattari teve uma briga comigo, em plena praia de Copacabana, por causa da Lei. Ele diz que não há esse troço. Se quiserem, podemos chamar o Guattari aqui para ele falar. Mas o que eles dizem nada tem a ver com Lei. O que existe para eles é um ritmo politeísta, uma grande dispersão de elementos brotando, cada um na sua especificação, no segundo nível. Considero isto um esquecimento do primeiro nível e, portanto, algo que pode dar numa vocação nazista. Não havendo nenhuma referência para reconsiderar o outro como outro, na sua diferença, e dar um basta na minha intervenção no outro. Neste nível, vale tudo, vale aparecer um Hitler dizendo: “Vamos fazer um deveniranimal... nazista”. Aí, ele diz que é um movimento de política da diferença e não consegue realizá-lo, mas enche o nosso saco, e enche o forno de judeus. E cai numa perversidade, numa perversão propriamente dita. E com isto eu não posso concordar, não entra na minha cabeça. Em Mille Plateaux, segundo ele, é da ordem da psicose, para mim é da ordem da perversidade, pura e simples. Se ele entra na ordem da psicose pura e simples, seria esta aqui, a não ser que ele me defina outra ordem de psicose. Ele quer o acontecimento independente da Lei, no momento mesmo do aparecimento do acontecimento. Pintou o aparecimento do instante histórico, o aparecimento no momento, é muito bonito, pode até ser curtido, estou com ele e não abro. Agora, se isso esconde a referência à possibilidade de manter um distanciamento, e um basta às ações neste primeiro nível, isso
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recai necessariamente em perversidade pura e simples. Se há uma ocultação disto que promove a manutenção do distanciamento em relação ao outro, como respeito limítrofe em relação ao outro, simplesmente se cai numa tal perversidade que, aí, vai-se candidatar a Hitler. Basta aparecer um candidato para ganhar. Há um rapaz que faz crítica muito interessante a essa coisa toda. É um jovem francês que escreveu Le Testament de Dieu. Foi discípulo de Lacan, mas é preciso ler com cuidado, porque milita no campo político, põe paradigmas como, por exemplo, pensamento judaico, e isso pinta meio religioso. Falta-lhe inventiva, então vai buscar aparelhos usados, e aí é perigoso também. Nós, hoje em dia, estamos entre esses racismos todos e a vitória de João Paulo. Na diferocracia, como a coloco, o segundo nível em que há os enunciados não é anárquico. O enunciado não pode ser abolido, pois como se poderia dizer as coisas sem enunciado? Isso pode ser extremamente fracionado, sem que uma legislação, no sentido jurídico, venha totalizar, quer dizer, é anti-totalitário, é extremamente fracionário, mas que se dê o máximo de atenção a esta via do primeiro nível, e que a coisa seja pensada daí para lá, e não ao contrário. É exatamente o oposto da tese de Deleuze, a qual é pensar nesse segundo nível e que daí surgiria, por efeito, um universal que é a minoria. Mas por que dizer que não há vigência da Lei, se pinta um universal no meu nariz? Por que esconder isso se esse nível tem o perigo de uma filiação, de um regimezinho sem limites em relação ao outro, a ponto de provocar histeria, grandes assassínios? Acho que um cara intoxicado por Deleuze está sujeito a se tornar um assassino a longo prazo. Essa minoria seria o absoluto em sua singularidade? E isso é extremamente perigoso porque para as minorias tudo é grupal, é estatístico demais para se considerar isso não perigoso. Que as minorias se encontrem em pequenos grupos, tudo bem. Agora, o que é que vai garantir a auto-limitação desses grupos? A alteração que a psicanálise pode fazer é a referência constante a esse primeiro nível. Se existe a possibilidade de uma intervenção política, digamos, no pensamento psicanalítico, é simplesmente apontar para isso o tempo todo.
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Deleuze resta na ambigüidade porque, quando fala em Lei, só pode, para ser rigoroso com seu pensamento, dizer que não existe a Lei, que existem essas leis aí. Então, a Lei é neurotizante, ao mesmo tempo que, subrepticiamente, ele põe um universal. A compulsão à repetição está contida nesse primeiro nível, pois isso não se instala sem esse movimento de repetição. Por isso é que preciso fazer referência a isso. É o caminho avesso: Deleuze/ Guattari pegaram Lacan, e o que disseram nada tem que Lacan não dissesse, a não ser esse avesso de, digamos, que a Lei vai ser efeito dessa bagunça. *
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PERGUNTAS
• P – Na sua colocação inicial, a Lei se dá e incide sempre como um dado inescutável. Ela nunca pode ser informada, ela aponta sempre para um imaginário, um conteúdo. Ela seria uma existência, um contingente, através do qual essa Lei poderia ser deduzida e admitida a sua atividade estruturante prévia ao acontecimento dado. Ela sempre aparece dentro dessa organização imaginária, dentro da viabilização no campo das coisas, no campo dos contatos... Para dizer melhor, dentro de um enunciado.
• P – ... dentro de um enunciado: Deleuze diz que a pressuposição de um universal só pode ser admitida a partir da primeira leitura de uma ordenação específica de determinado enunciado. Nós temos, na base, um jogo de diferenças, mas todo jogo se caracteriza por uma determinada organização, uma determinada ordem, mas uma ordem que, como você parece que admite de inicio, só pode ser deduzida a partir do confronto dessas unidades. Agora, a questão é saber se essa dedução, ou seja, essa organização que pode ser deduzida, tem uma função prévia, ou seja, é anterior à organização, anterior ao próprio aparecimento do acontecimento, do minoritário, do imaginário, ou seja, ela só é um efeito
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possível dessa organização imaginária. Fala-se de uma crítica que Deleuze faria à psicanálise, de uma imposição, de uma edipianização do sujeito falante, na medida em que ela tornaria algo que se dá como um efeito histórico em determinada injunção discursiva, em determinado enunciado que é emitido pelo confronto de diferenças que são particulares em determinada geografia, em determinada história. Ela tomaria esse efeito e o anteporia ao próprio acontecimento, impondo assim uma repetição, portanto, fazendo um fascismo e traindo a história. E aí a questão é que, realmente, não cabe um paralelismo entre Lacan e Deleuze, mas há um nó, um nó entre os dois. Eles estão tratando de um mesmo segmento, mas apontando para direções opostas. Não é reconhecido a Freud, nem a ninguém até hoje, conseguir tirar essa função da Lei, a não ser por essa emergência empírica no trato do divã. Aí Deleuze diz o que diz, que a psicanálise teria inventado o Édipo, feito um rebatimento do Édipo, e esse rebatimento se apresentaria como um universal que fascistamente estaria reconfigurando como necessário, etc. Mas eu não consigo, até segunda ordem, verificar que Deleuze esteja falando do primeiro nível. Ele está falando do segundo nível e, aí, isso é verdade. Tirante a teoria e a prática de Lacan, é possível que a psicanálise esteja metida aí. Por isso digo que não reconheço psicanálise por aí. Aí rebate, edipianiza tudo mesmo, porque não consegue ler o que está por trás e vem primeiro – não em sentido cronológico – como coisa expressa a partir dessa emergência. Vejo Deleuze fundando uma estratégia para hoje, porque só posso repetir esse acontecimento. Ele está pedindo que se esqueça tudo isso, se denuncie essa edipianização, se produza essa mesma política, para daqui surgir o quê? “Esqueçamos a psicanálise, a filosofia, vamos produzir a zorra toda de novo para ver se pinta a Lei, se pinta o tal universal”, que ele já disse qual é. Aí é que eu me pergunto se ele não está chovendo no molhado, porque o nível de abstração que ele pede – não é por ser muito abstrato, é porque é outro abstrato – eu consigo encontrar no primeiro nível que coloquei. Por que ele finge que não encontra? Suponho que seja por uma questão de estratégia: “A guerra no momento é explodir o segundo nível”.
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Então explodamos. Aí posso até dizer: Deleuze não é um filosofo, não é um analista, não é nada, é um estratego que está usando de um poder de fala, etc., para fazer funcionar certa coisa. Está bem, mas se isso comporta o esquecimento do primeiro nível que é estruturante e que já se tem condição de apontar, ele não está apontando para novidade nenhuma. Ele não está esperando nenhuma outra coisa senão esse segundo nível mesmo.
•
P – Se o projeto da psicanálise seria a liberação do simbólico, da cultura, ou seja, deixar que a função metáfora se exerça, sem um segmento duro, cristalizando, ou seja, que essa Lei faça com que se possa correr as cadeias significantes da maneira mais flexível possível, como é que posso pressupor a possível leitura, ou dedução da Lei a partir de um determinado contingente discursivo? Se posso ler, deduzir essa Lei a partir de um determinado discurso, de um determinado enunciado, isso quer dizer que ela já existe numa certa completude, ou seja, já tem uma certa pré-existência, já tem um caráter factual, já se deu, já está ali – ela está antes do acontecimento. Se não é isso, como é, então, que posso entender, compreender a Lei? Jamais compreenderei a Lei. Jamais. Tenho que partir desse pressuposto. Você sabe o que é a psicanálise? É essa questão: o que é a psicanálise? Isso já situa seu modo de operação. Quer dizer, na medida em que, só-depois, continuo reconhecendo o abstrato da Lei que funciona neste enunciado, é que vejo a repetição dela. Não que ela lá estivesse antes, mas estaria antes, porque só-depois é reconhecida. Que pinte outra coisa, tudo bem! Mas, essa Lei sendo reconhecida, ela está em nível de abstração fora dessa estrutura que chamo edipiana. Ela pode determinar esta estrutura, mas é fora dela. E os próprios Deleuze/Guattari, quando pensam nessa coisa toda, acabam desembocando aqui. A não ser que eles falem de uma esperança de desembocar em outra coisa. No percurso que eles fazem, acabam
desembocando no universal da diferença. • P – Mas, supondo que este universal estaria como efeito, é diferente de admiti-lo como estruturante.
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Ainda o gene e tal
Mas a psicanálise só o admite como estruturante só-depois. O que existe em Lacan é fazer vigorar aquilo que ele supõe ser o discurso psicanalítico, para que pinte a coisa, inclusive nisto. Fica-se de saco cheio, não se inventa uma perversão nova, nem se deixa de falar em papai e mamãe. É um saco! Um analista velho, um velho analista, diz ele, já está de saco cheio porque essas são as anedotinhas contadas. Melhor do que repetir papai e mamãe, seria pintar uma perversão nova. Mas não pinta! *
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É preciso ressalvar o seguinte: vocês estão escutando a minha leitura de Lacan. Porque vocês encontram muitos alunos do Lacan que apresentam aquele significante que o Deleuze indica. Eu não entendo aquele significante como sendo de Lacan. Estou mostrando a minha leitura de Lacan. Não tenho outra.
13/MAI
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ÉDIPO E OSOME Édipo é aquele personagem da mitologia grega antiga, e osome são da mitologia de hoje. Vamos ver qual é a relação entre Édipo e osome. No final da vez anterior, alguém me chamou a atenção para que eu devia retornar e retomar a questão da Lei. Talvez não estivesse ainda muito claro como ela é fundamental no desenvolvimento do que tenho tentado colocar. Na verdade, tentarei, então, fragmentariamente, retratar a Lei e apresentar outra leitura de Édipo. Claro que fazendo alguma referência ao que é anotado como memória do mito, mas, fundamentalmente, pensando nos textos de Sófocles que foram os indicadores de Freud. *
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Já falei aqui da situação em calúnia de Édipo. Há uma certa calúnia em relação à sua figura na medida em que, para expor o que naquela época parecia de difícil aceitação – a requisição, o pedido da criança em relação à mãe, a sexualidade infantil funcionando ali, etc. –, Freud teve que ressaltar essa faceta do assassínio de Laio, do casamento com Jocasta e, até mesmo, chamar momentaneamente de complexo de Édipo essa tentativa de completação com a mãe. Entretanto, pessoas que vêem só esse tipo de coisa, esquecem que é através desse Édipo, e ao longo do tempo, que Freud vai articular o teorema da castração e vai reexpor a diferença dos sexos. Na leitura de Lacan, o que
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vai aparecer de uma vez por todas é a generalidade do fenômeno edipiano, sua abrangência maior, suas franjas, reduzindo, em última instância, toda a questão do Édipo à castração. E, ulteriormente, há o teorema formulado nas fórmulas quânticas da sexuação, da diferença sexual. A calúnia que se faz a Édipo é aproveitar o folclore psicanalítico, veiculado sobretudo pela IPA e seus seguidores, em torno dessa fantasiazinha, dessa aparência sintomática mínima com que Édipo se apresenta, desse romancezinho familiar com a mãe, e a necessidade de cortar aí – quando isso é apenas uma primeira movimentação do campo edipiano. Nosso interesse é mostrar uma dupla articulação fundamental, ou fundadora, da cultura. Ou seja, na tentativa de distinguir o momento de entrada da Lei e o momento de fundação da cultura, é preciso estabelecer que aí vai surgir uma dicotomia. Isto, pensando que a cultura, no entrelaço, se articula duplamente. Por um lado, há a instauração da Lei enquanto tal e, nesse momento, eu gostaria de tentar a distinção entre sociedade e cultura. A Lei talvez seja suficiente para fundar o social pura e simplesmente, a relação entre falantes, ao passo que a cultura, para se fundar, exige uma segunda articulação: a proibição do incesto como fundadora de ordem de parentesco. É preciso, então, agora, detalhar alguns momentos importantes do Édipo. Por exemplo, ele mata Laio e se dirige para Tebas. No caminho, encontra a Esfinge que lá estava para propor enigmas e devorar as pessoas que não os resolvessem. Édipo resolve o enigma, etc., e acontece aquilo tudo... Já abordei diversas vezes, em anos sucessivos, essa questão do texto de Sófocles dizendo coisas as mais diversas. Hoje vamos dizer outras que, talvez, até, fiquem em contradição com as anteriores, mas vamos ver aonde isso vai chegar. Uma coisa que sempre fica meio mal tratada na historinha de Édipo é essa moça aí, esse personagem esquisito, a Esfinge. O que ela está situando no mito e no texto? Se pesquisarmos pela mitologia encontraremos que, na cultura grega daquele momento, ela é um monstro que nem por isso deixa de ter aspectos de divindade, no sentido do politeísmo grego, de origem infernal. Ela é uma composição muito estranha, como outras divindades oriundas do mesmo lugar.
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Ela tem como mãe Échdna, de quem consegue tirar o rosto e os peitos de mulher, melhor dizendo, de fêmea, de fêmea de homem. O pai, Tífon, emprestalhe o rabo de dragão. Não é uma herança genética, pois eles dizem que ela herda ou, digamos, toma emprestado de sua irmã, Quimera, o corpo de leão, e das suas irmãs, as Harpias, as asas. A Esfinge é, portanto, o tipo de monstro criado por pesadelo numa condensação – no sentido mais simples da exposição freudiana – de elementos formando um ser mais ou menos aterrador por causa dessa estranheza metafórica. É alguma coisa meio terrível que precisava ser destrinchada aos pedacinhos para ser reconsiderada. Quimera, sua irmã, é um ser infernal do mesmo tipo: tem cabeça de leão ou de cabra, segundo a tradição, rabo de dragão, vomita fogo, persegue e mata os homens por alguns motivos. Foi um tal Belerofonte, montado em seu cavalo Pégaso, que conseguiu, a pedido de um certo rei, matar Quimera fazendo virar o feitiço contra o feiticeiro. Ele lhe joga lanças de bronze, se não me engano. Ela bota aquele fogo para fora, o qual esquenta as lanças, e ela morre queimada pelo próprio fogo. Uma luta oniricamente composta, muito estranha. As outras irmãs da Esfinge são as Erínias, seres infernais da mesma ordem. Elas são três, uma das quais é a mais conhecida no jargão comum: Alecto, Tisífone e Megera. Quando se quer dizer de uma mulher terrível, que enche o saco do próximo, diz-se que é uma megera. As Erínias viviam percorrendo a superfície da terra para atormentar os mortais culpados. Aliás, se observarmos bem a estrutura da narrativa sobre a Quimera e, também, sobre a Esfinge, recairemos na mesma coisa: são seres infernais, tipo sonho mau, que perseguem os mortais culpados. Elas perseguem sem trégua os criminosos que, por suas ações nefastas, perturbaram a ordem pública e social. Isto parece que fica claro nas referências gregas. Às vezes, elas enviavam verdadeiras produções coletivas a todo um povo, cidade, região, em forma de epidemia. Baixa uma epidemia em determinado povo e ele pensa que está sendo castigado por ter alguma culpa. As Erínias seriam as transportadoras dessa perseguição. Porém, mais freqüentemente, elas perseguem o criminoso suposto inspirando-lhe remorso, angústia sem fim e – o que mais nos interessa – medo do castigo.
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Édipo, então, encontra a Esfinge, que é um ser desse tipo, lá postada no meio do caminho, fazendo a devastação. Alguma coisa aconteceu de culposo em Tebas para que ela tenha sido posta como enviada para punir devorando pessoas que não conseguissem “transar” com ela numa boa, ou seja, decifrar o enigma. Édipo não é nenhum analista nesse começo da história. Essa decifração não é do mesmo nível de uma interpretação. Ela havia sido, então, enviada para essa região chamada Beócia. Em português, um “beócio”, antigamente, era, como se diz hoje, um “babaca”. Isso é apenas um adendo porque não tem nada a ver, eles não sabiam que a gente ia chamar o beócio de babaca. É engraçado porque dá na mesma dentro da historia. A região da Beócia foi ocupada pela Esfinge, perto da cidade de Tebas, para punir a cidade de um certo crime. Aquele, como vimos, que Laio havia cometido quando Édipo o encontra e mata. Laio estava em visita no reino vizinho e “faturou” Crisipo, o filho de Pélopes, sem nenhuma “contratação” com seu pai. Isso era um verdadeiro crime – sobretudo, deselegância – entre os gregos. Podia “comer” o garoto, desde que o pai permitisse. Segundo os textos, a Esfinge foi posta lá para punir Tebas do crime de Laio. É uma punição de ultrapassagem de uma determinada lei local. Insisto em fazer diferença entre a Lei que Lacan situou como nada tendo a ver com essas leis do mundo real, como ele diz, a Lei que é do coração, ou seja, la père-version, e as leis que, por enquanto, é melhor chamarmos de regulamentos locais. O interessante é que em algum lugar, como veremos, certas instâncias tipo Esfinge, Erínias, etc., estão para punir a ultrapassagem de uma lei de um determinado local, ou seja, de um regulamento de comportamento social. Por isso elas vão punir crimes contra a ordem pública e social, quer dizer, a ordem daquela cultura ali. Laio não foi punido por esse crime, é o povo dele que estava debaixo da pressão da Esfinge, o que nos mostra que Laio estava um pouco “cagando” para o tal regulamento. O povo é que estava sentindo uma pressão culposa em função do ato de Laio. E Édipo mata Laio nesse momento de fuga. Quer dizer, não se trata aí, segundo o mito, de nenhuma instância primitiva. Trata-se do confronto de Édipo com Laio, em
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função do que havia sido predito como destino. Não há nenhuma punição pessoal para Laio, o povo dele é que é o punido. Édipo mata Laio cortando o timão do seu carro. Laio morre nesse desembestamento porque perdeu o timão, porque Édipo tirou-lhe o governo do carro. Édipo enfrenta, então, a Esfinge. Ela lhe pergunta: “Qual o animal que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia, e três à noite?”. Ele podia ter respondido, como disse Lacan em seu Seminário: “É o quadrípode de Lacan”. Mas ele não conhecia Lacan e, então, respondeu: “O homem” – ele anda de quatro na infância, na idade adulta fica de pé e, na velhice, se apóia numa bengala. A Esfinge é tão babaca quanto os tebanos, de tal forma que aceita isso como uma interpretação, fica desesperada, se joga de cima do penhasco e morre. Quem é a Esfinge? Vou propor que a consideremos como titular de uma inculpação. Ela vem inculpar os outros, portanto, é a culpa titular de uma inculpação emanada do superego. O que é um pesadelo desse tipo, senão o desejo de punir-se por pressão superegóica? Quer dizer, transformando a base lógica daquilo que falamos da vez anterior como senso de culpa instalado na própria estrutura, em perseguição proveniente de um superego. O superego, afinal, é aquele tal que vem como herdeiro do complexo de Édipo. Freud o situa assim, sendo que existe uma transa muito diversificada do superego com o sujeito: ele “transa” um pouco obsessivamente com os chamados homens, e um pouco mais frouxamente com as chamadas mulheres. Isto em função justamente de o complexo de Édipo não ter a mesma operação na diferença sexual, segundo Freud. Como o complexo de Édipo não é o mesmo para os dois sexos, o superego também não pode ser o mesmo, já que ele é herdeiro dessa transação. O superego – simplificando alguns pontos que interessam – é formado, do ponto de vista da segunda tópica freudiana, por identificação parental. Quer dizer, identificação com os ideais tal como são ditos pelos pais. Ele é superego porque é uma parte do ego que se diferencia, se distingue do ego para pressioná-lo segundo essa identificação parental. Portanto, se tenho que considerar, segundo a perspectiva de Lacan, o ego como uma produção de
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objeto, tenho que considerar o superego como parte retirada daí, no mesmo nível, ou seja, na mesma pressão imaginária do ego. E, mais que isso, Freud insiste em que esse superego não é tirado das ações dos pais, dos ditos diretos dos pais, mas, sim, mesmo, que vem pela textualidade desse tipo parental do superego parental. É uma coisa em cadeia. Em algum lugar está composta uma produção imaginária egóica, tipo imaginária objetal, que vai sendo transmitida de avô para neto. A Esfinge, então, pode ser considerada, neste momento, como essa produção superegóica, esse objeto, esse animal montado oniricamente, metaforicamente, como representante arcaico de um superego parental, ou melhor, é o superego parental postado no caminho... Existem superegos e superegos... De acordo com sua herança, cada um tem o superego que merece... Édipo encontra a Esfinge no caminho. Quem é Édipo para a Esfinge, nesse momento, e até para ele mesmo que não sabe, ou, pelo menos, não sabe que sabe? Édipo, para a Esfinge, não é senão um estrangeiro. Édipo se confronta bem com ela porque, se a Esfinge é um superego forte, Édipo é um ego forte. Isso está evidenciado na história dele, até então. Ele é corajoso, ouve falar das coisas, sai de casa para enfrentar o destino, não quer que aquilo aconteça, encaminha-se decisivamente para o outro lugar, encontra Laio, sai no tapa e mata não só Laio como seus acompanhantes. No texto de Sófocles sobra um dos acompanhantes de Laio. Ele consegue fugir, mas vai contar em Tebas que quem matou todos foi um verdadeiro exército. Ele ficou com vergonha de dizer que chegou um cara sozinho e acabou com todo mundo. Então, vê-se que Édipo é um machinho, fortinho, arrogante, um ego forte, faz e acontece, um grande decifrador de coisas que dizem a ele. Um barato, o cara! É o próprio catedrático. A Esfinge estava lá para punir quem? Os tebanos. Ela não podia, se a minha via é certa, puni-los a não ser que, superegoicamente, tivesse poderes para isso. Ou seja, que os tebanos tivessem um pavor da Esfinge com relação ao dito crime praticado. Se achassem que aquilo não era crime, eles estariam pouco se incomodando com a porcaria da Esfinge. Mas os tebanos, só
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de ver a Esfinge, já começavam a tremer e, certamente, a gaguejar e não dizer nada. Édipo vem machinho arrogante, sapiente, estrangeiro, particular. Quando a Esfinge diz aquilo, ele toma uma interpretação. As representações na iconografia grega, a respeito de Édipo, em muitos autores que observei, chamam a atenção para isso: Édipo conversando com a Esfinge, na maior, com as pernas cruzadas, numa boa. O desenho é muito sugestivo, ele não estava com nenhum medo: “Se ela veio aqui para assustar, não me toca, não tenho nada que ver com isso”. Então, quando ela propôs um enigma, que lhe parecia muito vagabundo, ele respondeu: “É isso, e agora, o que você vai fazer?”. Ela tem que se precipitar, porque não o atinge. Não o atinge porque é uma luta de prestígio entre dois egos, sendo que um é supostamente super de outrem. Na verdade, é luta de ego de Édipo com ego de tebano, e ele tira de letra, não se assusta. E aquele superego simplesmente não vale, desaba. Desaba, porque ele serve para ser superego de tebano, mas não de Édipo. Se esta nossa via serve, os tebanos são aqueles cujo superego supostamente é o mesmo de Laio, só que Laio – talvez por isso mesmo tenha conseguido ser rei – conseguiu driblar o superego dos tebanos, que supostamente era o dele. Os tebanos estão horrorizados com os atos de Laio, ele ultrapassou uma lei local. Isso, de certa forma contradizendo outras visões anteriores, até nossas, é uma herança que Édipo tem de Laio. Ele pouco se lixa, em certos momentos, para o superego local. Isto, por arrogância, não por superego, mas por hiperego. É a briga de superego com hiperego. Quando Édipo responde à Esfinge o que respondeu, “é o homem”, ele está funcionando não como nenhum analista, e, sim, como uma espécie de resolvedor de quebra-cabeça. Um semiólogo, digamos assim, que saca qual é a significação do texto, no máximo um hermeneuta que dá uma interpretação, tipo entendimento do sentido. Mas, podemos dizer que uma coisa que, talvez, Édipo não sacasse naquele momento, só vai sacar muito mais tarde, é que ele estava dizendo a seguinte resposta: “É o homem”, ou seja, “sou eu”. “Sou eu”, dito aí no sentido narcísico da força de Édipo. Vamos dizer que, também, em outro sentido, ele só vai saber mais tarde, trata-se de Édipo, a resposta. Na
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medida em que, primeiro, ele é quadrúpede, como verdadeiro animal egóico; depois, ele se instala sobre dois pés numa arrogância de rei; e lá no final, em Colona, é que ele vai ser cambeta mesmo, como seu nome sugere. Pensemos nesse ritmo ternário de ter dois pés e se apoiar em alguma coisa para poder caminhar, momento em que ele vai, talvez, conseguir ser poeta e pai. *
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O que acontece? Para entendermos com mais precisão, teríamos que percorrer a visão do ciclo tebano na obra de Sófocles. Digo Édipo em Calúnia porque é aí que se reforçam os anti-edipianos. Eles reforçam o retrato de Édipo no momento de Édipo Rei, estritamente nesse momento, e sem dar muita conta no final, como que chamando de punição Édipo furar os olhos, Jocasta se enforcar... Sentimento de culpa, coisa dessa ordem, talvez não seja bem isso que vai comparecer em Édipo em Colona, onde se mostra outro tipo de arcabouço. E mais, a coisa continua, porque, embora Sófocles termine Édipo em Colona dizendo que aí se encerra toda a história, como se esse texto teatral fosse o epílogo de Édipo Rei, a história não se fecha. Os descendentes continuam carregando a dita maldição dos filhos de Édipo, e, na verdade, eventualmente, também, carregando a força paterna de Édipo. Quer dizer, a instalação de Édipo como Nome do Pai, como encontraremos em Antígona, que começa exatamente com a palavra de Antígona dizendo para Ismênia, sua irmã: “Você é o meu sangue, minha irmã, minha cara, você sabe todas as infelicidades” – eu poderia traduzir por azares – “que Édipo legou aos seus”, etc. O texto começa dessa herança. Precisamos ver como percorre, de Édipo-Rei até Antígona, todo esse processamento do Édipo, para não ficarmos na historinha tola de que Édipo é matar Laio por amor a Jocasta, virar rei, perceber que fez uma besteira, se punir e acabou. Não é isso. Édipo, na verdade, não resolve, ele derruba a Esfinge, chega lá e oferecem a ele o reino. Ele não pediu nada. Isso estava a prêmio para quem acabasse com aquela perseguição da Esfinge.
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Continuamos aí na pregnância egóica de Édipo: aquele heroizinho que chega, aquela macheza toda, toma o reino, casa com Jocasta, instala uma felicidade em Tebas, reina em termos de bem-estar social, tem quatro filhos, Ismênia, Antígona, Etéocles e Polinices. Está aí o Creonte que é o tio e cunhado dele ao mesmo tempo... É o momento de Édipo bípede, de pé, reinando. As outras duas patas são de Jocasta. O homem é sempre quadrúpede. Ou anda de quatro, ou anda pendurado nas duas patas de outrem, junto com as dele. Ou, senão, começa a andar só nas suas e mais um pedacinho de pau, onde se apoia, e falta a quarta pata, e ele fica meio cambeta. Aí pinta a peste no reino. Quem traz? Aqueles seres infernais, tipo Esfinge, que vêm punir alguma falta contra a ordem social. A peste se espalha pelo mesmo motivo pelo qual esteve lá a Esfinge: alguma transgressão na ordem instituída. Isto é evidente nos mitos gregos: uma transgressão do status quo social traz a punição. Então, uma vez mais, é preciso perguntar: que superego aí traz a peste? Há todo aquele desenvolvimento: o surgimento de Tirésias, que não quer denunciar, é preciso que Édipo denuncie a ele. Tirésias, que tem ouvido de analista, como que diz: “Se você está dizendo que fui eu, é porque foi você”. Édipo, primeiro, se recusa a qualquer culpa, não aceita aquilo. Para ele, é alguma transação para tomar o reino, feita pelo irmão de Jocasta, Creonte, ou é alguma tentativa de Tirésias de derrubá-lo. Mas, de repente, a coisa se comprova de tal maneira, Tirésias insiste, sem nenhum medo, que ele reconhece, afinal, que certamente foi ele mesmo que transgrediu a lei local. Transgrediu a regra de ser proibido casar-se com Jocasta, já que ele era filho dela. E, mais, matou Laio, matou o rei dali. Édipo reconhece isso e podemos dizer que, nesse momento, reconhece sobretudo o quê? Que matou o pai e casou com a mãe? Não, o reconhecimento é para outros, a ordem instalada começa a reconhecer o crime nessa transgressão da regra. Lacan chama a atenção para que quando Édipo, ao reconhecer, arranca os broches que seguram sua roupa e fura os dois olhos, não há nenhuma punição nisso. É uma espécie de referência a uma tentativa de desmanchar o imaginário no qual ele teria caído
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sem se dar conta. Não é, pois, nenhuma punição. A punição foi do povo, pois a regra era daquela instituição. Há uma espécie de participação divina no rei, de tal maneira que não cai sobre ele. Pois se ele é representante da lei, ainda que a transgrida, não poderá ser punido... É paradoxal. O texto é cada vez mais claro, e, pela fala de Édipo, verifica-se que o de que ele se dá conta, o que realmente o assusta, vem da boca do Tirésias, e vem numa equiparação com Tirésias. Ele se assusta com o quanto ele é tolo, com quanto passou a vida inteira querendo se desfazer de um certo destino, e desenhando um ego cada vez mais forte, a ponto de não poder reconhecer a evidência do que Tirésias estava jogando na cara dele com toda força. E ele faz uma identificação com Tirésias: para que servem os olhos, se a gente não consegue ver? As prisões imaginárias são de tal nível, que não me deixam ver o essencial. É preciso não investir o olhar nessas miragens, para que se possa sacar o que realmente é verdadeiro. Édipo é um babaca no sentido mais pleno que a psicanálise pode apontar, enquanto analisando. Ele se supõe constituído no mesmo nível das suas pregnâncias imaginárias. Ele pensa que é rei mesmo, que faz aquilo com seu talento adivinhatório, decifratório, com seus braços derrubando Laio, matando soldados, derrubando a Esfinge, numa interpretação puramente hermenêutica. Ele está pensando que é um vitorioso. Mas o texto insiste em que o que é preciso é perceber que a má hora vem sempre na vida mesmo daqueles que pensam que têm a boa hora. Não quero falar de felicidade e infelicidade, porque acho muito mais preciso bonheur e malheur, no sentido de Fernando Pessoa: a hora, o que vem. Ele saca que não pode viver daquela felicidade, até então primariamente edipiana, em que vivia desse ego maravilhoso. É como se Édipo, com o ego desse tamanho, fosse mais um Éguipo. Depois que ele se defronta com Tirésias – numa espécie de equivalência e de identificação –, consegue agora ser Céguipo. Édipo é um ego que quando fura os olhos, fica S/ ’ego. É um momento de assunção subjetiva. É preciso entender que não há a mágica da assunção subjetiva, não existe isso em lugar algum da prática ou da teoria analítica. A assunção subjetiva, se, por momentos
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sucessivos, não fosse isso, o passe seria uma coisa teoricamente resolvida. É onde vamos chegar. Que diabo de passe é esse? Que Édipo faz o passe, quer me parecer que sim. Édipo se cega e fica postado no mesmo nível de Tirésias. Aí é que ele passa a ser um que anda com três pernas, usando a sua bengalinha, isto é, apoiando-se em Antígona. É interessante notar que no final de Édipo Rei, para corroborar essa visão egóica que estou tentando mostrar, Creonte diz uma frase decisiva para Édipo: “Não pretenda, então, triunfar sempre. Teus triunfos não acompanharam tua vida”. É uma declaração de castração. O que Édipo saca? Qual é o acontecimento? É o acontecimento de poder se dar conta de que a totalidade, a totalização é impossível: você não será sempre um vencedor. E o corifeu vai terminar a peça: “Aí está este Édipo, esse perito em enigmas famosos, que se tornou o primeiro dos humanos. Ninguém na sua cidade podia contemplar o seu destino sem inveja. Hoje, em que fluxo de terrível miséria ele foi precipitado! É preciso, portanto, esse último dia para o mortal sempre considerar. Guardemo-nos de chamar jamais um homem de feliz, antes que ele tenha alcançado o último termo da sua vida, sem ter sofrido uma pena”. Sófocles é menos estúpido do que muitos analistas e doutores da psicanálise. Mostra como o acontecimento aí é um reconhecimento da impossibilidade de completação. *
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Passamos a Édipo em Colona. Encontramos Édipo nos arredores da cidade, justamente porque seus próprios filhos, Etéocles e Polinices, o baniram da cidade, por causa de ele ter, afinal de contas, transgredido uma lei da cidade. A função daqueles elementos infernais, que comparecem nos textos gregos, não é outra senão de punir por falta de cumprimento de uma regra desse tipo. Regra esta que em toda e qualquer instituição do tipo é o banimento de quem não está dentro da regra. Saiu da regra, estragou a brincadeira, é expulso. Se não se expulsa, se não se faz funcionar a regra, vem a punição por parte
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desses dois seres infernais que associei com o superego. Se o superego é essa fundação egóica, imaginária, e que é, como fica claro nos textos freudianos, uma introjeção, não da Lei, mas de uma lei, de uma regra de comportamento, temos aí que o superego é este ser infernizante, que vem perseguir aqueles que deveriam ser banidos, por não se conformarem a uma regra instituída. Estamos falando de instituições, não da Lei. Qualquer regra de funcionamento desse tipo, de enunciado legal, não é senão regra de limitação desse logro. Ela só pode ser produzida porque há Lei, mas ela não é a Lei. Tanto é que podemos ver que há seres chamados marginais como Tirésias, por exemplo, que vivem fora da lei, fora da regra, e que, no entanto, têm uma certa acomodação com as pessoas que acreditam na regra. Por isso ele não queria dizer a Édipo, pois ele só é permitido na margem, na medida em que ele diga sempre a verdade, não-toda, é claro, mas tenha um regime de transação que não venha a ser ativo dentro do próprio social. Toleram-se os poetas, desde que eles não sejam bandeiras de dissolução social. Por isso mesmo é que se promovem freqüentemente os poetas ditos marginais. Hoje li no Jornal do Brasil, ou sei lá onde: “O poeta marginal, fulano de tal...”. Não tem marginal nenhum, nada de marginal, os marginais não lêem... Os filhos, então, o expulsam e Édipo lhes roga uma praga. Ele prediz o que vai acontecer. Uma previsão que é óbvia, está na cara: “Vocês vão se matar um ao outro”. É claro, para dividir o reino, eles vão sair no tapa. Édipo se afasta e, realmente, os dois começam a brigar. Um dentro de Tebas e o outro fora, atacando Tebas. Nessa hora, Creonte corre para Édipo para pedir ajuda. Quer dizer, reconhece a paternidade de Édipo como possível de estancar a luta entre os filhos. Reconhece que se Édipo interviesse, acabava com aquilo. Diz Édipo: “De modo algum, não faço nada, agora sou marginal mesmo, sou o poeta, não tenho nada com isso. Digo, mas não vou me meter”. Queriam utilizar agora a paternidade que ele conseguiu atingir a duras penas, isto é, demolindo o seu ego, como demoliu a Esfinge, para luta de prestígio, em nível egóico. Ele disse que não, do mesmo modo que Tirésias se recusou, e
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começa a dizer a verdade. A equivalência poética, a partir daí, é entre Tirésias e Édipo. Estamos no terceiro tempo do Édipo, que é sua transformação em poeta, capaz agora de interpretar e não de resolver enigmas. Um Édipo cambeta, com três pernas. Os irmãos, realmente, acabam se destruindo. Creonte, o tio, é quem vai herdar o trono. Encontramos, agora, Antígona no seu problema diante da briga entre seus irmãos, Etéocles e Polinices. Édipo fica nas periferias, com Ismênia e Antígona, e auxiliado apenas por Teseu, que é uma figura mítica. As pessoas vão lá falar com ele, e pedir. Ele não é expulso, nem pode mais ficar. Ele fica na periferia, no corte. A morte de Édipo, mesmo no texto de Sófocles, como no mito, não comparece como morte. Ele foi tragado pela terra, ou subiu aos céus. Ninguém sabe mesmo o que aconteceu. Só Teseu sabe, pois estava junto com ele, mas não diz para ninguém. Ele sabe que as Erínias, aqueles seres infernais, persecutórios, o levaram para a morte, para debaixo da terra, para o Inferno, para junto da deusa. É o momento de a gente perguntar: são as Erínias que o levam, ou é ele que leva as Erínias? Sartre passou perto em sua peça As Moscas, em torno das mesmas Erínias. Certamente Édipo conseguiu carregar as Erínias para os Infernos. Elas não têm mais que perseguir ninguém, pelo menos ninguém em torno da postura de Édipo, não iam mais perseguir o acontecimento Édipo na história de Tebas. Édipo leva as Erínias de volta para o Inferno, junto com ele. Antes de falarmos de Antígona, há uma outra coisa que é muito difícil de abordar: aquele reconhecimento, quando Jocasta se enforca, é uma punição, é um remorso, é uma pressão superegóica? Duvido muito que com sua perspicácia, Sófocles fosse colocar, numa mulher, uma posição desse tipo. Nesse momento pergunto a Marcel Duchamp, que fez um quadro de que já falei bastante em anos anteriores, La Mariée mise à nu par ses Célibataires, même, A noiva desnudada por seus celibatários, mesma. Sua construção é extremamente complicada. Ele pendura a noiva lá em cima e o apelido que lhe dá é le pendu femelle. Ele não diz “a enforcada”, e, sim, “o enforcado fêmea”.
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É uma espécie de resto pendurado lá em cima. A máquina celibatária com toda aquela engenharia simbólica que ele monta, e emitindo tesões para cima, justamente em função daquela maçã pendurada no galho, aquele pendu femelle, que é uma espécie de objeto a, de resto, sobrando. É interessante que Pisanello, em São Jorge e a Princesa, faz algo muito parecido. Duchamp nunca disse isso, mas a temática sendo mais ou menos a mesma, me parece que o afresco de Pisanello tem estrutura de encadeamento do mesmo tipo do Grand Verre. No canto esquerdo, justamente na parte em que Duchamp coloca le pendu femelle, estão os enforcados de Pisanello. Há toda uma mitologia, e toda uma bruxaria em torno dos enforcados. Eles, ao morrerem, ejaculam, e as mulheres mais velhas, que sabem das coisas, vêm colher o esperma no chão, porque aquilo vai ter utilidades mágicas, para fazer uma série de defesas. O enforcado fêmea, não deve ejacular, certamente... o que temos, então, é a manipulação, a transação com esse resto, tipo maçã pendurada no galho, que vai determinar todo o processo. Estou aventando uma abertura. Acho que há que retomar Duchamp por aí, pois ele está tratando justamente da diferença sexual em seu quadro. Os teóricos desejantes – desejantes são a patota anti-edipiana – têm escrito trabalhos sobre Duchamp, mas ficam na parte de baixo, nas máquinas celibatárias, evitando a barra. Aliás, nas fórmulas quânticas, se virarmos – não sei até que ponto Lacan transou isto tudo com Duchamp, porque era amigo dele –, botando o masculino embaixo, é muito parecido com a estruturação que Duchamp dá ao quadro. Há como que uma barra de separação entre o masculino e o feminino, que é o problema que o Duchamp está abordando. Ele está tentando esta equação na Mariée. Em seu último trabalho – que ele escondeu durante anos e hoje está em exposição nos Estados Unidos –, Étant donnés 1º la chute d’eau 2º le gaz d’éclairage..., Sendo dados 1º a queda dágua 2º o gás de iluminação..., ele vai fazer aquela abstração de engenharia simbólica em nível pop. É sua última obra, com mesma questão, a castração e a diferença sexual, que o aborreceu a vida inteira, que foi seu problema.
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Antígona tem um problema sério com Creonte. Como Édipo dissera, os dois se matam, Etéocles e Polinices, nessa luta de prestígio para agarrar o poder. Creonte assume e resolve que Etéocles pode ser sepultado em local sagrado porque estava dentro da pátria, estava a favor, defendendo do lado de dentro. E o outro – atacando, até com ajuda de estrangeiros, do lado de fora, cometendo, de certo modo, atos tipo Laio, tipo Édipo, rompendo o cerco familiar de Tebas – é considerado espúrio. Creonte proíbe seu enterro. Antígona resolve criar um caso. Ela não aceita, de modo algum, que seus dois irmãos não sejam enterrados do mesmo modo, já que estão mortos. Todo o drama de Antígona é em torno desta questão. Um comentarista, que introduz esse texto em francês, chama a atenção para que o drama se torna um conflito entre a consciência humana, o humanismo, etc., e a razão de Estado. Diz ele ainda que o autor toma nitidamente partido pela consciência humana. Vamos ver se é bem isto o que acontece. Pode ser isto, mas talvez não o seja muito bem. Há, também, uma diferença entre Ismênia e Antígona. O tempo todo, Ismênia é uma figura muito engraçada porque aparece assim como uma bobalhona, que vai sempre carregada. Quando Antígona lhe diz que, como irmã e filha de Édipo, ela não pode fazer outra coisa senão exigir o mesmo que
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ela está exigindo, Ismênia tira o corpo fora e, entre outras coisa, diz: “Pretendo obedecer os poderes estabelecidos, os gestos vãos são tolices”. Ela toma o partido do tio por uma questão muito simples: regra é regra, não vou embaralhar as coisas. Ismênia funciona, no texto, como uma espécie de menininha mimada o tempo todo. Hoje seria madame pequeno-burguesa. Antígona insiste. Cria todo aquele caso, mesmo com a ameaça de punição por parte de Creonte. A coisa chega a um ponto tal que ela, no peito, enterra o irmão que estava proibido de ser enterrado. Creonte, então, tranca Antígona numa caverna completamente fechada, uma espécie de sepultura, fecha-a com uma pedra pesada e ela é condenada a perecer lá dentro, sozinha. Lacan, quando mostra – no Seminário da Ética – a diferença entre a primeira e a segunda morte, dá como exemplo, justamente, Antígona. A morte que nos habita, a mais importante, que é a indicação da pulsão de morte em Freud, é a segunda morte. Não é essa morte, perecimento, que supomos que vamos encontrar. Essa condenação toda, que os homens são mortais, que vão perecer, não é disso que Freud está falando. Essa que nos habita nas angústias, etc., que é o cerne da pulsão de morte, é a segunda morte, ou seja, a morte de Antígona. A de Ismênia deve ser a primeira. Qual é a morte de que Antígona está sofrendo, quando presa dentro da caverna? É a morte em vida, o morto-vivo. Ela fica condenada a viver como morto, pelo menos por um tempo, até sucumbir. Essa morte que portamos como vivos, que é a morte que interessa na pulsão de morte. Porque há um gozo fundamental para Antígona, ela está gozando a cara do povo tebano e de Creonte, sobretudo. É esse gozo aí que nos mostra a relação que tem a morte com o gozo, a morte com a diferença sexual. É nesse nível de morte. Se não a estivesse gozando, o que ela estaria fazendo lá dentro? Bastava cumprir a ordem, como Ismênia. Ismênia era bem-comportada, não abria mão do prazer de estar bem-instalada, no social, de cumprir as leis para não se ferrar. O autor do prefácio mostrou uma luta entre uma consciência humana e uma razão de Estado. Antígona diz que a lei de Creonte, a lei do Estado, não pode ser superior à Lei dos Deuses, à Lei do coração, à Lei do Amor. É dessa
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Lei que Lacan está falando. Seja o que for, ele, Polinices, é um sujeito falante. Exijo respeito a essa diferença e morro por ela porque vou gozar nessa diferença, custe o que custar. Não se trata aí, de modo algum, de respeito à lei de Tebas, a regulamentação que foi posta num momento estratégico, particular. Por que, então, Antígona faz tudo isso, toda essa luta que não é de prestígio, como aquela entre Etéocles e Polinices, como aquela entre Creonte e Édipo, antes de ter furado os olhos? Porque ela está herdeira do Nome do Pai, herdeira de Édipo. Não o Édipo tolo de antes do trágico, mas o Édipo poeta que ela conheceu no seu passe, aquele que assumiu o Nome do Pai, que não é ele, é o abstrato a que ele também está referido, à terceira instância. Édipo descobriu a Lei e percebeu que, tolamente, estava defendendo as leis de Estado sem querer se dar conta da diferença que Tirésias lhe mostrava como Lei fundamental. Ele recupera a posição nessa Lei. É essa Lei de que fala a psicanálise. Que Lacan diz que não é a lei do mundo, mas a lei do coração: a versão paterna. Ela faz das tripas, coração. Fez do corpo, o coração. Tudo que pintou, ela colocou como respeito à diferença. Por quê? Porque o outro é meu irmão, não há mais o que discutir. Ele é filho da mesma coisa, do mesmo pai. Posso respeitar as razões de Estado até o limite do respeito a essa diferença. Eu não diria, também, de jeito nenhum, que o gozo fálico é o da Ismênia, porque o gozo-fálico é gozo. Quer dizer, então, ela goza contra a corrente. E se o gozo do Outro não existe, porque não existe, ele é indicado de qualquer modo aí. Antígona indica a sua relação com o divino, esse divino que venho insistindo. É nesse divino que ela insiste. As leis de Creonte não podem ser superiores às Leis dos Deuses e eu, como herdeira de Édipo, não vou permitir isto, custe quanto custar. Creonte, também, vai ser atingido, não punido. Creonte não vai ser punido, porque está dentro das regrinhas, ele funciona... Ele será atingido pela mesma desgraça, ou seja, pela mesma graça que atingiu Édipo e Antígona: a morte do seu filho em função de seus atos, em função da punição que ele deu a Antígona. Isto é mais um reforço do poeta Sófocles mostrando que o que ele
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quer indicar, nesse ciclo, é toda essa passagem desse animal de quatro patas a duas e a três patas, deixando, portanto, de ser animal, nesse processo. Processo este que Freud concebe como sendo a castração, e que Lacan esmiuça e acrescenta as suas intervenções. Este ciclo Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona é o que fecha o processo edipiano. Não se pode ficar em Édipo Rei, sobretudo na sua primeira metade, como se fica nas críticas às construções edipianas de Freud na psicanálise. *
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O que é o Édipo, ou melhor, qual é o tempo do Édipo em Freud? As primeiras abordagens de Freud deixam o Édipo completamente sem tempo. Tempo na vida particular, individual, de cada um. Ele mostra que a coisa vem, só se organiza mesmo na puberdade, etc., e ele fica meio perdido... Depois, como ele consegue montar aquele quadro em torno dos três aos cinco anos de idade, vai acabar dizendo que é por ali. Acontece que esse “por ali” fica desmentido tanto pelo próprio texto freudiano quanto pelos atos de Freud, como a descoberta, por exemplo, da pulsão de morte. Freud, aos sessenta e quatro anos de idade, em 1920, faz certos acrescentamentos. Qual é, então, o tempo do Édipo? Quando é que se resolve o Édipo? O tempo integral, digamos assim, não tem integração nenhuma. Qual o tempo linear, longitudinal, do Édipo? No caso do propriamente dito, é extremamente longo. Termina no passe, no passe de Édipo, de garoto babaca a poeta. Não será a dissolução mesma do complexo de Édipo, que passe por todas essas fases, que traz o chamado passe? O interesse desta abordagem foi para reduzir, em última instância, o percurso chamado edipiano, na psicanálise, a isso que Lacan reduziu, que é a insistência na Lei, enquanto suporte de pura diferença. A redução de toda essa estrutura à diferença sexual. Por que estou dizendo diferença sexual? Porque Sófocles, com muita sensibilidade, com cuca lacaniana avant la lettre, vem mostrar que o masculino na sua forma específica de castração se contenta
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muito facilmente com a lei dos homens, a lei d’osome, esse personagem criado pela mitologia contemporânea. Não é que ele seja necessariamente osome, mas ele se contenta muito mais facilmente com essa lei. Ele mostra que, numa postura feminina, numa partição entre a pressão d’osome e a Lei divina, encontra-se essa requisição da diferença que comparece em Tirésias, em Édipo depois do passe, e, mais regionalmente, sem aparecimento de nenhum passe, como herança do Nome do Pai, em Antígona, que exige, numa postura feminina, o reconhecimento da supremacia da Lei e do Pai, e não da regra social, da regra cultural. Estaria eu aí dizendo que só existe analista no feminino? Que Deus é feminino, já se sabe, que o pai usa a máscara da mulher, ou é uma mulher mascarada, já se sabe. A mais importante, para retornarmos às questões que vínhamos colocando, é a possibilidade de utilizarmos essa tentativa de visão de hoje como um aparelho de distinção daqueles dois momentos que tentei situar da vez anterior: o momento de instalação da Lei não sendo do mesmo nível lógico, da mesma instância, que o movimento de instalação da cultura. O movimento de instalação da Lei como reconhecimento de uma diferença não é o momento de instalação da lei como regra, como modo de operação do social. Melhor dizendo, se pudermos fazer a distinção entre o social e o cultural, a Lei de Antígona instala o social, a possibilidade de convivência entre falantes, seja em que tipo de enunciado for, e criticando esses enunciados em todos os momentos da sua aparição, porque qualquer enunciado será careta em função dessa Lei. Ao passo que o enunciado que precede aquele momento na tragédia não é senão esse outro nível de instalação da lei como razão de Estado, como regra de comportamento desses falantes. Isto é que estou chamando de cultura naquela fundação. A interdição do incesto, da qual o Édipo não se pune, e que vem fundar a cultura, é sintoma de instalação, herdeira da Lei, é claro, mas como enunciado específico, seja qual for a dimensão da sua estabilidade democrática no mundo contemporâneo. É uma diferença, digamos, entre o poder e a Lei. Não se instala nenhum enunciado a não ser com base no poder. O que está dito no segundo momento é que o poder garante o funcionamento da regra. Mas é a
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ordem divina, a ordem paterna que Lacan tentou estabelecer com mais clareza, que funda a Lei. Osome, esse personagem, ele nos faz acreditar – posso dizer “ele”, porque está no masculino – que está nos destruindo em função da Lei, mas ele só está fazendo isto porque tem o poder de manter um certo enunciado que pode ser o que podemos chamar uma lei celerada, uma lei facínora, esta é a palavra que eu gostaria de substituir naquela distinção que tentei entre perversão e perversidade. Existe o perverso, aquele que está na versão paterna, e existe o facínora, para o qual a diferença é anulada. Osome é facínora... todo mundo sabe. É preciso perguntar sobre o nível de perversidade, de facinoriedade, que se encontra na pressão sem limite de um enunciado legal. Foi contra isso que Antígona se rebelou. Há um limite para a pressão do enunciado legal que defende o status quo social, limite este que é a Lei, aquela que instaura a diferença e exige a sustentação da diferença, embora com controles. É possível, pois para alguma sobrevivência é preciso certa pressão de controle, mas não se pode ultrapassar certo limite. Cada vez mais, estamos vivendo dentro de um círculo e de um cerco, em que osome quer nos fazer crer que são representantes da Lei enquanto tal, quando são imposições de poder que estão devastando a face da Terra. É o terrorismo fundamental... Este é o fundamento do terrorismo – ainda que oficial.
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ANTI GONA Anti, como vocês sabem, é prefixo que vem da preposição anti, que significa contra, em contrário. Não é o mesmo prefixo que, em português, deu ante, que significa antes. Gonos, do grego, é o que, em brasileiro, deu gônada, no sentido fisiológico, como diz o dicionário, de semente genital. Semente genital quer dizer sêmen, esperma, como, por exemplo, está na palavra brasileira gonorréia, que vem do grego, só que não significava isso que significa hoje. Corretamente, é corrimento seminal. Certamente, eles confundiam pus com sêmen. Anti-gona quer dizer contra-sêmen. Raymond Roussell tem um conto interessantíssimo, se não me engano em Impressions d’Afrique, onde existe uma estatueta, na África, que ele chamava de sêmen-contra. Talvez isso tenha alguma relação. Trata-se de um caso de impossibilidade de fecundação de certa princesa. Então, anti-gona, anti-sêmen. Forcei essa escansão, essa interpretação, na verdade, para mostrar como Antígona propõe uma Lei que não é seminal, ou seja, não é genital, não é genitiva no sentido da lei do Estado que Creonte, por exemplo, representava. A proposição de Lei que ela faz é proposição de Lei Divina. Divina aí significando o que Lacan chama a Lei do coração, quando diz que não são essas leis do mundo real. É simplesmente a Lei do amor, quer dizer, a pèreversion. Neste sentido é que estou colocando Lei divina, contra-sêmen. Exatamente aquela que já tive oportunidade de mostrar num pequeno verbete
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de Émile Benveniste, no Vocabulário das Instituições Ocidentais, que produz a diferença entre frater e adelphos, a diferença entre fraterno, que é por lei, por ordem simbólica, e o irmão, supostamente carnal, que chamamos de adelphos. São duas posturas para o irmão. Assim como há, também no mesmo Vocabulário, duas posturas da paternidade, a filiação recebe o título de nepos, genérico, de onde vem a palavra brasileira “nepotismo”, que é a influência do sobrinho, no sentido do favoritismo por via dos parentes, e filius, que é aquele que era sustentado pelo pai. Tanto aí no Vocabulário quanto nestes textos de Sófocles encontramos essa diferença entre duas posturas da Lei, que tentei escandir numa dupla articulação: enquanto castração, proveniente do Nome do Pai, e aquela que instaura a cultura e funda, portanto, a ordem do parentesco e o regulamento de Estado, do grupo social. Uma fundando sociedade, possibilidade de associação dos seres falantes, e outra, noutro momento, fundando cultura, um certo modo de associação, uma certa postura sintomática. É nesse sentido que coloco Anti Gona, pois a postura de Antígona, no texto de Sófocles, é defender a Outra Lei quando se insurge contra a lei de Creonte. Creonte é o tirano. *
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Há um outro sentido que quero dar à Antígona. Como se diz vulgarmente “antigona”, antiga, muito antiga. Antigona é a mais antiga, no sentido mesmo da postura legal. Quero supor que essa posição de Antígona é surgimento do feminino, o qual vem em sustentação da Lei. É através do feminino que se evidencia, se mostra, pelo menos, a diferença. Se não, não se teria a diferença: se os homens fazem um todo, a diferença não aparece lá, a não ser nessa confrontação com o diferente. O feminino é o lugar de exibição, de mostração, da diferença. Assentado, portanto, nessa diferença, o feminino nos mostra que a Lei se sustenta em sua suposta universalidade de que tudo é particular, tudo é diferente. Seu surgimento é, retrogressivamente, o mais antigo, isto é, estruturalmente, tem que ser considerado como primeiro. A dedução que a
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psicanálise faz é de que a diferença pinta indefectivelmente e a estrutura se apresenta no regime da diferença. Estruturalmente, essa postura, essa emergência de sustentação da Lei com o feminino, com a diferença, é, então, primeira, mais antiga. É a postura antigona da Lei. Entretanto, Freud descobriu que se começa – nos logros imaginários e nas incertezas lógicas – pela renegação da diferença. Ou seja, começa-se aparentemente, entra-se na jogada, pela lei do homem, que não é a mais antiga. Todos sabem que a lei do homem é: “Primeiro você dá, depois você come”. Daí é que vem essa imposição. Do ponto de vista dessa lei do homem, todos são iguais perante a Lei. Se houvesse essa possibilidade de indicar uma lei de mulher, diríamos que a Lei instaura a diferença, entre cada um e todos. Melhor dizendo, entre cada um e cada um. Mas, alguma coisa se passa na medida em que esses dois momentos não são distinguíveis, discerníveis: a instauração do social e a instauração da cultura. Um momento da possível fundação de um universal suposto, puramente suposto, que se dê logicamente, e a instauração dessa diferença, entre cada um e cada um. Esses dois momentos estão engrazados, entrelaçados na própria emergência da Lei. Um depende do outro e o outro depende do um. Se não há suposição de que “existe pelo menos um que faça suspensão da função fálica”, nada se organiza, nada se articula como universal. “Para todo homem há função fálica”, porque houve uma suspensão lógica dessa função. Isto não se diz sozinho, mas, só, na contrapartida da possibilidade de não se fazer essa suspensão e, portanto, de não haver uma paratodização do processo. Quer dizer, o que sustenta como emergência a Lei é justamente a particularidade do feminino que pinta diante da suposição de um universal que só se dá do lado do homem. Fazendo um parêntese, aconselho a leitura de um texto que acho importantíssimo: L’Amour de la Langue, de Jean-Claude Milner. Lá encontramos um grande esclarecimento das questões que estamos tratando aqui. Não se pode, como já vimos, situar nenhuma função de totalização se não se supuser, por exclusão, por princípio lógico, existir pelo menos um que seja limite dessa função. Só assim se pode chamar essa função de uma função
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para todo. Toda vez que se pensa numa totalidade, a borda, o limite dessa totalidade supõe a suspensão dessa função situada em algum elemento da mesma ordem. É o velho problema de ser necessário, para que haja o suposto todo, haver a não inclusão desse todo em si mesmo. É uma espécie de solução daquele famoso paradoxo de Russell, que já comentamos: o catálogo de todos os catálogos não se inclui a si mesmo, pois o catálogo de todos os catálogos, incluindo a si mesmo, produziria uma série infinita de catálogos. Então, não se pode jamais dizer “para todo catálogo, a função catalogal...” se não se suspender essa função como borda do catálogo que contém os catálogos. Tenho que considerar, do ponto de vista externo, uma função catálogo que se suspende: “existe pelo menos um, que não é função aqui”, se não haveria este catálogo contendo todos... e mais ele próprio... e não tenho como fechar o parêntese. É uma questão de série. Então, só posso dizer “para todo falante há função fálica” justamente porque posso supor que “existe pelo menos um onde essa função é suspensa”. xx xx. Se isso não se colocar, terei a outra fórmula: “Se não existe
nenhum que faz suspensão à função fálica, a função fálica permanece, mas não se totaliza”. Não posso fechar o cinturão desse conjunto porque não tenho o limite do conjunto. Se não houver suspensão para a totalização mediante um elemento que sustente a existência de pelo menos um que não é função fálica, onde essa função é negada, não posso dizer que para todo há função. Não existe nenhum limite determinado. Logo a função fálica está aí, mas tem que aparecer essa coisa estranhíssima para a matemática que Lacan foi o primeiro a acentuar, a negação sobre o todo: x x x x. Quando Lacan escreve “para não-todo – ou não para todo, que dá na mesma – existe função fálica”, não significa que existe pelo menos um que não seja. De modo algum! Não é que haja exclusão de algum que faça com que o total não se realize. Não é por somatório ou por justaposição. Significa, sim, que, se para não-todo há função fálica, ela há a cada momento, mas não se totaliza. É da ordem do infinitivo. É o jogo de Aquiles e a tartaruga, de Zenão. Não se trata de um momento de exclusão que viria, outra vez, fundar um universal. Esse momento, que pinta
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como diferença, vai me dar justamente a suposição do acontecimento com a suspensão do que aconteceu com a suspensão. A função paterna tem a ver com isso na medida em que a referência desse externo é paternidade caída no real, que é só existir pai simbolicamente. O outro que está do lado de fora, que permite essa todização, cai certamente na máscara do feminino como excluído, como suspensão. Esse momento de suspensão cria uma ambigüidade entre a função que funda a totalização e a função não fundando a totalização. Ele fica no limiar. A lógica até Lacan – porque isto também é lógica –, essas estruturas matemáticas, têm recaído na função para-todo. Por isso, a negação do para-todo se abole na exclusão. Em Lacan, ao contrário, é preciso manter o para-todo e escrevê-lo. Ele é escritível e mantenível na medida em que aponta para a infinitização na função: é função fálica, mas não-toda. A partir daí, não há Outro do Outro. Não há nem mesmo o Outro, pois ele só pode existir como suposição. A referência limiar do psicótico é de um Outro concreto. Se essa função suspensiva da castração se situa do lado de fora para garantir que os homens façam um todo, é porque esta função participa da não existência do Outro. O pai do psicótico, por exemplo, não suspende, ele nega a função fálica. Não é negar no sentido lógico, é como se abolisse a função fálica. É como se fosse um pai onipotente. Se esse Outro, o Outro de todos, que garante seu limite, vive nesse mito de infinito, nessa ambigüidade, ele tem que, necessariamente, participar do feminino. A função paterna não é masculina. Ela não se diz no masculino, não pode se situar aí, pois, justamente, profere a suspensão. A função é esse proferimento. É preciso fabricar um Pai Ideal – até mesmo congelado – para ele vir se figurar como capaz disso. É o Pai Ideal, e extremamente esse pai do psicótico, que vai tentar congelar essa figuração masculina do pai. Trata-se, então, de pura suspensão lógica de uma função, pois não há nada no corpo que obrigue a isso. Existe apenas diante da diferença que se impõe porque surge como particularidade. É essa emergência que se supõe no campo do feminino e, diante dela, diante do processo de renegação, nessa
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oscilação de há-diferença/não-há-diferença, só se tem duas saídas: suspender ou incluir. Ou se suspende a função fálica e, então, parece que a função fálica ordena um todo; ou se inclui a diferença e não se consegue ordenar nenhum todo. Por exemplo – apenas para situar momentaneamente –, quando se dá atenção às lutas feministas, verifica-se que elas se apresentam como lutas de machos. Isto na medida em que não lutam pela inclusão da função e, portanto, lutam pela não suspensão. Elas lutam – como se fosse um outro partido de homens – por um processo de totalização. Denuncio as funções chamadas feministas de homossexualidade masculina. Está lá no filme de Fellini. Logicamente, não é possível, dentro desse rigor, estabelecer-se nenhum universal enquanto tal. É possível, apenas, fazer-se a suposição do contraste dessas duas possibilidades lógicas. Se a diferença é irredutível, pode ser renegada, denegada, etc., mas cola-se necessariamente sobre todo e qualquer falante. E, no que ela se cola como pura diferença, podemos fazer a suposição desse universal. É mera suposição, assim como o é o sujeito, pois ninguém segura um sujeito. A psicanálise colocou a diferença como uma dedução da sua prática. Digamos que, indutivamente, o processo se apresenta constantemente em toda e qualquer fala. Deduz-se daí a diferença como indefectível. Posso, portanto, fazer a suposição de que há um universal que não é o universal do homem, o para-todo, a totalização. É, sim, a repetição da diferença, fundando incessantemente – não deixando de se escrever – isso que colocamos como a Lei, ou seja, a diferença. Sempre há diferença. Não é possível, senão por denegação, fingir que não há. A renegação supõe reconhecimento, parcial que seja, da diferença. Podemos dizer, então, que o reconhecimento da diferença vem em suplência a um universal – que seria dado se pudesse. É a coisa necessariamente mais antiga, e historicamente mais nova. Ou seja, o reconhecimento da diferença é aquilo que é recusado, renegado, denegado, recalcado, em função de um aprisionamento nessa totalização de um momento outro da Lei. Quer dizer, essa machificação, senão massificação da Lei. Isso aparece na língua, quando ela deixa de ser suposta como alíngua que é. Ou seja, quando da alíngua se
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quer fazer uma língua, no sentido linguístico do termo. Quando se quer fazer da alíngua, que só se diz no feminino, a linguagem suposta como sendo universal da língua. Momento que, em última instância, vem a ser de codificação. Estou querendo dizer, entre outras coisas, que existe na fundação da cultura esse processo de machificação, de massificação, essa tentativa de equacionamento definitivo de um sistema que possa totalizar os falantes. Retornarei a isso. *
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Poderíamos procurar uma metáfora de aproximação dessa tal Lei, que se instala como de ordem divina, nisso que se chamou lei natural. É claro que não existe isso, lei natural. Mas pudemos supor, como mera construção imagética, uma lei natural que funcionasse... Supor, por exemplo, que as leis da física não fossem leis da física e fossem mesmo leis da natureza. Então, posso supor que há suplência à falta de universal nisso que estou colocando como Lei, ou seja, a diferença indefectível, a repetição incessante da diferença, situando, sobretudo, a impossibilidade de relação sexual. É impossível porque a diferença indefectivelmente aparece. Aí estou fazendo a metáfora de um conto de fadas, de uma lei natural. Aí é que se enrascou a Antropologia, por exemplo, para a qual há natureza, deve ter a coisa natural... Não há nada de natural, só pura metáfora. Outro dia me perguntaram se era possível a existência dessa Lei fundamental, essa que garante qualquer processo do falante, na medida em que ela é a estrutura, dizendo que toda lei é função de um poder. É preciso fazer uma distinção, pois o poder faz cumprir uma lei sob ameaça de punição. É a gramática normativa de qualquer língua codificada. O poder entra por aí. A lei de que Lacan está falando, tirada de Freud, tirada dessa estrutura, não depende de nenhum poder para ser exercida. Ou seja, o descumprimento da Lei não incorrerá em nenhuma punição. Não há transgressor da Lei. É impossível transgredir a Lei, já que a Lei coloca como impossível qualquer plena identificação. Por isso faço a metáfora da lei natural: jogo a pedra para
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cima, ela cai, posso proibi-la de cair, mas ela cai. Ela não cai transgredindo nada. Mas é pura metáfora, porque isto é uma lei da física... Ou pode ser uma lei da minha experiência: se jogo uma pedra para cima, ela pode cair na minha cabeça, realmente. É o real sustentando a Lei, o fundamento ético da psicanálise. Essa Lei, essa ética, se sustenta num real como impossível de ser escrito. Portanto, impossível de ser transgredido. A diferença, como universal suposto na psicanálise, pintará em qualquer condição. Este é um dos motivos de a psicanálise não acreditar em revolução enquanto tal: um giratório das formas produzindo a forma esférica perfeita... Mas pinta a diferença... graças a Deus! Se a psicanálise é a peste, e se tem contra ela certas ordens instituídas, essas ordens todas não conseguem cobri-la, porque ela é não-toda. Ela vem colocar essa Lei do não-todo e, portanto, o vírus a que a psicanálise se refere é indestrutível. Pode-se acanalhar a massa ao máximo porque, eis senão quando, o vírus pinta. Pelo menos, a suposição que podemos fazer é de que, talvez, este seja o único otimismo da psicanálise, pois tudo nela é pessimista. Talvez ela tenha um único otimismo: a diferença não deixa de comparecer – para o melhor, ou para o pior. Não há transgressor possível no regime dessa Lei que não depende de nenhum poder. A Lei que só se instala e se instaura porque há um precedente na Lei enquanto tal, ou seja, o impossível não podendo ser dito, só se diz como interdito porque há esse precedente. A lei se instala com base em algum discurso, em algum poder, certamente, e a sua referência é pura codificação. Por exemplo, as leis da língua brasileira que a Academia se esforça por estabelecer e que os falantes, sem esforço algum, subvertem... porque a Lei se reporta à estrutura e não a nenhum código. Em qualquer proposição de história, salvo erro, quero supor que exista um encadeamento de causas e efeitos. Se penso em história é porque estou supondo que determinado acontecimento, determinada série, tem a ver com outra determinada série, que foi por ela determinada. Não preciso da determinação nessa produção de sentido de cadeia para cadeia, cadeia de
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eventos, para pensar o contingente. Aí é que Lacan deu um grande golpe na lingüística, quando inventou o que chamou de alíngua, numa palavra só. O emaranhado em que vivemos, observando a língua através de uma pressão paradigmática, de ordem instituída, de nível de poder masculinizante, totalizante, etc., se esconde – e, sobretudo, de modo pedagógico. A lingüística não tem nenhuma função a não ser universitária. Podemos até recolher achados da lingüística para pensar, mas, sem a função pedagógica, ela não existe, ela é função do discurso universitário. Na medida em que é meio de transmissão desse processo de totalização de uma cultura, a lingüística estuda aquilo que chama a língua, na suposição de que ela existe como um todo. É melhor se dizer: o língua, ou seja, uma “unilíngua”. Lacan mostra que a lingüística só consegue fazer isto abolindo o que é possível de se escrever na alíngua. Só consegue o contrário se houver suspensão da proibição. Caso, por exemplo, dos anagramas, como Saussure estudou, caso do ato-poético, temos toda uma estética da transgressão na poesia... O poeta transgride o quê? Nada, do ponto de vista da psicanálise. Do ponto de vista da lingüística, ele faz uma transgressão, seja sintática, semântica, etc., em relação à codificação. O estudo da língua evita pensar justamente o que a sustenta. Por isso Lacan usa o termo alíngua para significar que não existe possibilidade de se construir um “para todo” da linguagem. Onde se desemboca de mais antigo, na lingüística, é, supostamente, no indo-europeu, que aliás é fabricado. Existe o ser falante falando alíngua. Por pressões paradigmáticas, se pergunta: “Que língua você fala?” Responde-se: “Falo francês, inglês, etc.” porque se está estatística e pedagogicamente situado numa certa referência. Entretanto, no dizer a verdade segundo o modo de operação do inconsciente, cada sujeito situa a língua – não é nem como língua materna, que é mera aparência, mera emergência da sua colocação particular no seu caminhar como sujeito – de um modo estritamente particular. Em última instância, o sujeito falante não tem outra ética, senão o estilo. O estilo não está aí definido do ponto de vista da teoria, dos teóricos da literatura, da linguagem, como modo de operação de figuras de retórica, de gramática, de escrita, etc. Cada falante
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tem seu estilo. É nesse momento que Lacan situa o Wo es war de Freud, que muitas pessoas ficam pensando que é um comando superegóico, obrigação moral de ir à verdade. De modo algum! É o retorno ético do sujeito à sua própria fundação. Se ela vai pintar indefectivelmente, mesmo que seja por via gravemente sintomática, é porque é irredutível, indestrutível. Freud está dizendo: “Por que vou fugir da minha alíngua, da minha particularidade falante? Defrontome com ela e deixo que ela fale”. Isto é função de uma ética da repetição, que tem fundamento no real, e não função de um superego que tem fundamento numa obrigatoriedade figurada. É a suposição de que esse real pinta, e que o sujeito – emergindo, quer dizer, ex-sistindo, existindo fora desse real, com assento no simbólico – é estritamente particular. Em última instância, outra vez, vem o antigamente da Antigona. Por essa particularidade é que o sujeito existe. Aí que DeleuzeGuattari aproveitaram para inventar o tornar-se mulher, devenir femme. Saiu daí... por outras vias evidentemente. Ninguém começa mulher. Isto é descoberta freudiana, e é difícil demonstrar o contrário. O mais antigo é essa fundação, mas ninguém começa, nas suas transações em torno do subjetivo, por esse lado. Talvez seja a coisa mais difícil de se atingir. Por isso Lacan diz que as mulheres são muito mais homens do que os homens. Não existe estilo no masculino. Não é possível não renegar, porque a diferença pinta sem esteio originário do sujeito. Não há nenhuma marca, e não é possível não produzir recalque originário. Do contrário, é a folia. O que vai entrar aí, é outra história. A estrutura quando funciona não pode não produzir renegação. Não pode não produzir recalque originário. O que não significa, como querem alguns teóricos de vocação fascistóide, que entre nesse lugar a lei codificada. Não se encontra isso em Freud. Não se trata de nenhuma codificação privilegiada. Trata-se de que funciona assim. A renegação tem que pintar. É preciso uma polarização. Funda-se um recalque originário a partir desse momento que é o de entrada de uma particularidade chamada alíngua. Seja qual for a língua que caia sobre o sujeito, a língua do lingüista, ele jamais vai falar... nem a língua da própria mãe,
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porque senão seria a transmissão da língua. Não há transmissão da língua, justamente porque o significante não tem significado. Bastava que um significante, uma vez só tivesse um significado para transmitir a língua. Este é o ideal dos lingüistas. Mas a língua se deposita sobre o sujeito de modo particular. Assim como a escansão sexual se deposita do mesmo modo. Jamais se pode dizer que, entre dois sujeitos, encontra-se o mesmo sexo. Não porque haja muitos, mas, justamente, porque só há dois. Um diante do outro, pinta como o outro diante do um. A diferença se instala. O que não é, de modo algum, desculpa para a homossexualidade institucional. *
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Cada vez mais me dou conta de que Sófocles é poeta. Isto porque quando leio um texto assim, minha intenção malévola é de derribá-lo para ver se ele resiste. Deve-se ler um poeta sempre suspeitando que ele não o seja, poeta. Se ele resiste, é você que cai. Em Antígona fica evidenciado o que se passa naquela trilogia. A insistência de uma Lei fundamental contra a lei do tirano, vigendo, apesar e contra a lei do tirano. O próprio Édipo, com tudo o que tenha feito, ainda que numa inocência forjada, não mereceu nenhuma punição que viesse dos Céus, ou coisa desta ordem. Foi expulso por Creonte, etc... Nenhuma punição de destino veio sobre ele, a não ser, o que não é uma punição, ter que tornar-se algo como Tirésias. Ele matou o pai simbolicamente. O pai tornou-se um morto. Engraçado que o ciclo começa com o assassínio do pai e termina com o assassínio do filho, de que Creonte é acusado pela mulher e por todos. Não foi ele quem matou diretamente o filho, mas seu ato resultou na morte do filho. Aí, sim, há punição, pois não vemos Creonte virar Tirésias. Ele virou um rei troncho, fraquejante. É interessante notar como é a questão da diferença sexual que está em jogo: a questão da diferença entre a Lei maior e a lei menor é apontada freqüentemente no regime da diferença sexual. Antígona discute com Creonte sobre a questão da Lei: “Tenho que
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defender a Lei dos Deuses. Você está defendendo a sua tirania, o seu interesse...”, etc. Creonte, imediatamente depois de condenar Antígona, diz: “Ela está agindo como homem. Ela está sendo mais homem do que eu”. Ele não suporta a diferença e pensa que ela está em luta de prestígio de homem para homem. Quando o noivo dela, Hemon, que é filho de Creonte, também vai discutir com o pai, aí, ele diz o contrário: “Você está agindo como as mulheres, você é o herói das fêmeas”. A confusão que fica para Creonte é a distinção da sexualidade. Antígona defende o tempo todo a postura da Lei maior, que não suporta não se aceitar a diferença do frater, do irmão, que aqui, por acaso, é filho do mesmo pai. Ela exige que ele seja respeitado com igualdade, porque é diferente, mas é irmão. Ao passo que Creonte representa até o fim, até que seu filho morra, e morre justamente por isso. O filho se mata quando vê Antígona trancafiada. E sua mãe, que já tinha perdido o outro filho na guerra contra Polinices, se mata quando vê o filho se matar. É uma punição total para ele, em termos de perda de objetos. Mas, até esse momento, Creonte representa a tirania. E essa tirania representa a absoluta caturrice em relação ao código, pois a lei menor não diz apenas “é proibido isto”, ela diz: “Quem fizer isto, vai ter aquilo como paga”. A caturrice de Creonte é o verdadeiro crime que acontece nessa estória toda. No fim, Antígona acaba por vencer. Ela se ferra, se enforca dentro da caverna... Vemos Ismênia, junto com o chamado povo, se pendurando de um lado e do outro. Quando pinta, de novo, Tirésias para avisar a Creonte que ele está fazendo besteira e que vai pintar coisa ruim, não é o mesmo caso de Édipo, que é contra o povo. Ocorre, outra vez, briga com Tirésias, parecida com a briga de Édipo. Mas Creonte admite tudo, menos que se toque no seu poder. Quando acontece – até do ponto de vista da opinião do povo, quando começa a pintar a palavra de Tirésias e a possibilidade de vir a punição por via de destino – de ele perceber que estava fazendo asneira, e ele sai correndo para consertar, não dava mais tempo, o filho já tinha se matado. Ele vai lá pegar o cadáver de Polinices para fazer o enterro, as libações, etc., mas aí já havia tudo acontecido. Pela caturrice – o texto deixa isso claro – de ele se
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reportar duramente à função do código. Era o machão. Não teve como aprender a postura de um Nome do Pai, que é a função Lei/Desejo. Por outro lado, acho que, talvez, encontremos outras posturas simétricas à de Creonte: a de uma têmpera histérica de Jocasta, a de Eurídice, mulher de Creonte que se mata, a do próprio Hemon, filho dele, noivo de Antígona. Antigona fica um pouco afastada disso, mais na referência ao Nome do Pai o tempo todo. Creonte quer fabricar um Pai Ideal que faça a abolição do Pai Simbólico. Quer produzir-se e produzir um Pai Ideal que diz a Lei contra o Desejo, não a Lei como Desejo. E, imediatamente, vira obsessivo – naquilo que Daniel Sibony chama la haine du désir, o ódio do desejo – caindo numa postura absolutamente homossexual de que não há diferença: “Não admito diferença no meu reino. A lei é igual para todos e vai ser cumprida assim, porque quero!” Jocasta estaria do lado não da haine du désir, mas do désir de l’amour, o desejo do amor, que não é o amor, é a postura histérica. É o desejo de ser amada. Nesse momento aí é que dizem que há diferença. Não a diferença pura e simples, como artigo “a” diferença. É a postura justamente das feministas, mães, etc., quer dizer, “eu sou o objeto amado”. A histérica não é bem uma mulher, ela se faz de homem. O que Antígona quer relembrar, custe o que custar, sem nenhum medo da morte, é o que ela insiste em dizer: “A morte não vai me libertar”. É a diferença pura e simplesmente, a Lei do Pai. É isso que Lacan chama a função paterna, o Nome do Pai. Lei e Desejo são a mesma face da mesma uniface. Se a Lei não supõe Desejo, se Desejo não supõe a Lei, estamos no arbítrio de algum senhor, de algum dono. Há, a meu ver, clivagem entre uma postura supostamente de emergência do feminino e outra que não é que se masculinize pura e simplesmente, é que se homossexualiza, o que é muito diferente. Ou seja, abole a diferença. Não existe outra homossexualidade pensável pela psicanálise, senão a tentativa de abolir a diferença. Trata-se daquilo que eu disse no final do ano passado, quando falava de Se é que Só é Isso, que era um grande complô homossexual das instituições contra a diferença. Não se trata de nenhuma indicação necessária de corpos, de relações homo corporais. É indicação dessa abolição
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homossexual, estritamente masculina, da diferença. Toda vez que historicizo e que tento particularizar pelo anedótico, caio numa imposição discursiva, numa figuração imaginária que, se pintar como verdade vencedora, ou coisa desta ordem, é uma imposição imaginária como outra qualquer. O que é a história? É a anedota que alguém resolveu contar. Acho engraçado supor-se a essencialidade da história juntamente com a invocação do desejo. Isto me parece absurdo. Certos grupos de pensamento que assim fazem se contradizem necessariamente. O historiador aqui é Creonte que olha para aquele discurso chamado Tebas e diz: “Este discurso, esta anedota aqui, é a verdade. E tudo vai funcionar segundo essa anedota, a história de Tebas”. Sem história, sem aquela função discursiva, não há Creonte, não há trono, não há nada disso. A verdade aí vem do simbólico instalado discursivamente. O que a psicanálise vem denunciar é que o discurso não é o ser falante. O discurso é modo de produção, é equacionável. Não existe história sem mestre, sem senhor, sem significante-mestre de referência. A história só me é referência se eu entrar na patota do historiador, se não, não é referência de espécie alguma para mim. Ela vai determinar o meu desejo? É o logro em que cai freqüentemente o analisando. O analisando é historiador. Ele deita lá e fica naquela bobice de produzir a sua história. Ele produz a história dele, escreve as memórias, tudo o que aconteceu com ele, procurando a determinação nos fatos. Não há determinação nos fatos. Quando ele supõe ter a determinação, ele esbarra, leva uma rasteira, quebra alguma coisa... Não há determinação nesse mito individual que ele está trazendo como se fosse a transparência imediata e evidente da sua verdade. *
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PERGUNTAS
•P – Na base dessa inauguração de um estilo que seria o lugar mesmo da particularidade, da singularidade, do homem, já haveria marcas
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significantes, quer dizer, um esteio significante. Isso é o que Lacan chama a metáfora paterna.
•P – E a questão é que, na psicanálise, é dito que esses significantes se ordenam numa relação de cadeia a partir de um momento preciso da história desse falante. É da ordem de um evento, de um trauma, de alguma coisa que, praticamente, se pensou ser do complexo de Édipo, da lógica edípica, que se instaurava essa cadeia de signilicante. Se estamos pensando nessa grande Lei como anterior à cultura, anterior às relações de parentesco, anterior mesmo ao complexo de Édipo, como podemos pensar num significado que não seja a relação dessa cadeia já formada? Dessa cadeia que já pressupõe o tal traumatismo, o tal evento cultural, a tal relação triádica: pai, mãe e filho? Você quer entender tudo antes disso acontecer, não é? Existe um entrelaço, no qual suponho a existência de duas meadas nesse mesmo momento. Uma de um lado, outra do outro. Não há anterioridade. Uma coisa se funda no momento da outra. Você tem toda razão, não é possível. Isso é o que se tem pensado até hoje, e aí é que está a nossa brecha. Não seria possível, sem esta instalação sintomática, fundar-se essa Lei. •P – Mas aí depende desse traumatismo, desse... ...desse não-saber. Não há possibilidade de emergência da Lei sem entrelaço com esse sintoma, digamos, fundamental.
•P – A Lei grande é sempre um efeito. Só posso apreendê-la a partir de seu efeito... ...nos falantes. Eu a deduzo a longo prazo. A partir dos efeitos que os falantes me apresentam, vejo que a repetição da diferença é irredutível e incessante. Daí é que a psicanálise deduz a existência da Lei, com a impossibilidade da relação, como diferença não deixando de se escrever, não deixando de surgir. Esse momento de emergência da diferença é o momento mesmo em que há decantação sintomática. Ou seja, é o momento de alíngua, que está lá. Minha pergunta é: por que tenho que supor isso que chamei de cultura como sendo um universal?
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•P – Porque é necessário para essa Lei. Devo supor que alguma coisa é necessária. Mas será que é a cultura? Esta é a distinção que quero fazer. Até hoje, excluindo o que tento entender de Lacan – me parece que ele deixa isso mais ou menos indicado –, se pensou que a cultura é isso que é regido pela interdição do incesto como fundadora da ordem de parentesco. Isto não tem sido um sintoma que, posteriormente, por pressão de poder, por facilitações técnicas, digamos, no sentido tecnológico do termo, tem aumentado esse poder de tal maneira que isso pinta por inclinação, como via mais fácil? Não estou livre de um evento qualquer – até por efeito dessa tecnologia mesma que outrora tivera produzido isso – se produzir numa inserção social que não seja cultural. O temor que temos de pensar a possibilidade de entrar na relação inter-subjetiva, mediante alíngua, é que nos tem, até hoje, transmitido isto. Então, o que vem transmitido junto com a nossa operação de língua é essa função edípica aí, no sentido de interdição do incesto. •P – Essa Lei só pode aparecer em função dos seus efeitos, segundo o aparecimento de algum sintoma, logo, segundo a organização de algum evento que é da ordem da cultura, da ordem da história. De modo algum. Temos que supor que o sintoma é dado como tal, pronto? •P – Estou querendo entender essa relação, que até então me pareceu necessária, entre o sintoma e, pelo menos, a determinação dessa Lei. Se não a formação dessa Lei, pelo menos, o impedimento dela como tal. A Lei não aparece senão como um efeito, como uma configuração em cima de uma organização sintomática. E nós sabemos que o sintoma é da ordem do cultural... Aí é que está o erro. O sintoma não é da ordem do cultural, o sintoma é da ordem do real. Isso é o que querem nos fazer acreditar. Você está parecendo supor que está aqui a chamada cultura e ali a emergência de um outro ser falante, que vai pegar elementos que, por acaso, estão na cultura, pegar elementos do Outro. O Outro não é a cultura. Que a cultura tenha deglutido, nessa fundação de história em que vivemos, o Outro como se fosse
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ela, é paranóia da cultura. Ali está o Outro e aqui elementos do Outro, eventualmente pertencentes à cultura. A cultura pertence, está no lugar do Outro, ela não o é. Há uma fundação, digamos, uma sintomática de base, que vai dar alíngua. Isto veio como sintoma pronto? De modo algum! Aqui, nas pegadas de Freud, Lacan vai falar do Nome do Pai, da metáfora paterna. Quer dizer, a partir de um assentamento sintomático, significante, o sujeito vai produzir a sua ordem sintomática, que não é, de modo algum, copiada daqui. É por identificação de traços. Freud jamais falou em identificação imaginária na fundação do sujeito. Alguns traços que vêm dali, certamente depois que entram, vão aparecer, estar presentes aí. Ele vai mexer ali dentro com aqueles traços e eles vão se decantar aqui numa metáfora. Metáfora paterna quer dizer que o pai é pura metáfora. Qual é a metáfora? É mero faz-de-conta. Essa metáfora não é senão decantação significante para, mediante essa decantação, começar a relação de significante para significante. Como não temos acesso, vivemos sem saber esse saber, e como esse saber pintou como cultura, pensamos que, se o sujeito nasce dentro da cultura, ele tem que ser cultural. Não! Ele está sendo, mas não tem que ser. É no movimento significante que ele vai se inserir nessa cultura que está aí. Estou chamando de cultura o que se estratifica como ordem de parentesco sobre a fundação que se chama interdição do incesto, estritamente do ponto de vista antropológico. Não estará o sujeito aí entrando por vias de pressão cultural? Ou é porque, necessariamente, ele tem que entrar nessa? A interdição do incesto é uma interdição como outra qualquer. É a interdição que existe na língua, de se dizer tudo – porque é impossível dizer tudo. Quando me coloco do lado do fechamento da língua e digo “isto não se pode dizer, é proibido”, só faço isto porque sou professor de português. No entanto, e é aí que a lingüística quebra a cara, isso pode ser dizível na alíngua. Esta proibição não vem em lugar de um impossível – o real, como diz Lacan, é o impossível... à espera de ser escrito. É o que se verifica no caso do ato-poético, como alíngua. Quando o poeta consegue dar estilo, diz-se, por exemplo, “a língua de Guimarães Rosa”, ele consegue mostrar a sua língua, como faz o Einstein do poster: bota
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a língua para fora, e faz a sua própria careta. Todo mundo fica apavorado porque pensa que ele é um transgressor. Rosa não transgrediu nada porque não disse o impossível de dizer, disse o que era possível, senão não dizia. É claro que ele disse coisas proibidas pela idiotia dos normativistas, mas não transgrediu coisa alguma. Existe estética da transgressão? Não. Existe est’ética do corte. Quer dizer, na medida em que penso que a cultura decanta o sujeito, estou tratando de Pedagogia. •P – Mas a questão é que, em função desse corte, parece que não há outra maneira de realização da Lei, que não seja a partir dos seus efeitos. À Lei mesma, nunca se chega. Que lugar é esse aonde ela pode exercer a sua função, portanto, aonde se possa depreender os seus efeitos, que não seja da ordem disso que até agora entendemos por cultural? Ou seja, as normas, as regras, as repetições, as decisões? Não há onde. Você está definindo isto como cultural, eu não. Estou diferenciando cultura de artifício. O artefato, o artifício, não é cultura. O que estou chamando de cultura, não é tudo isso que o homem faz e, megalomaniacamente, chama de cultura. Quando se observa os textos desses culturalistas, sejam eles antropológicos, o que for, vemos que eles assentam sempre o fenômeno da cultura na ordem do parentesco e, portanto, na interdição do incesto. É a isto que estou chamando de cultura, e não o artificio. Que outros artifícios podem fazer os homens para viver em sociedade? Que outros artifícios os homens podem inventar, que não essa facilidade (que me parece de imaginário animal) da cultura? Quer dizer, vê-se até Freud, e mesmo Lacan, com cuidado, mantendo a interdição do incesto como fundamental, embora me pareça que eles no fundo subvertem isso. Digo que é possível pensar a produção do artifício com outros meios. Saber é aquilo que ocupa o lugar do Outro, S2. Pintou S1, pintou S2. Só pintou S1 porque há S2, que vai dar passagem. S2 não é senão o apelido sensível do A. É isto que é S2 para Lacan. Em vez de falar o Outro, é o Saber que transa por aí. Minha crítica à cultura não é, de modo algum, supor que as ordenações, as invenções de regras, etc., sejam a cultura. O que chamo de
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cultura é o modo de aparelhamento do social por uma, talvez, inclinação imaginária, mais imediata. Há a inclinação de denegar a diferença sobre a ordem de parentesco e a interdição do incesto. Não há falante sem artifício. Não há falante sem proibição, mas há proibições e proibições. Por que tenho que viver no Neolítico, quando a zorra já se tornou a face da terra? Minha denúncia é: a grande zorra que está surgindo no mundo é por permanência de um artifício que não mais nos serve. Estou denunciando que a grande zorra é falta de imaginação. Tudo se transforma, os processos de produção são completamente outros – e temos que viver, ainda, no Neolítico?
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LE MIROIR DANS LA REINE OU LE MI-ROI DANS L’ARÈNE Ainda é o tema da Lei que estávamos tentando abordar e que, parece, exige repetição. Vamos pedir o testemunho de um poeta, melhor que isto, de um poema, de uma obra de arte, considerada uma das obras primas da produção ocidental da pintura e que tem inspirado, a pessoas as mais sutis, lúcidos e poéticos pensamentos. Pretendo com-siderar essa obra, partindo da suposição de que se trata de uma obra de arte. Com-siderar, siderar com ela, ou siderar em torno dela. O que tentei conceituar como com-sideração, falando da obra de arte, em dois trabalhos. Primeiramente, no texto chamado Senso Contra Censo: Da Obrade-Arte, onde fiz um esboço inicial do que penso poder ser, do ponto de vista da teoria psicanalítica, o lugar da obra de arte. Não se trata de nenhuma crítica, de nenhuma avaliação da obra, mas de achar o seu lugar. E continuei num outro texto, Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. Agora, gostaria de conseguir que este trabalho, em torno dessa obra suposta, fosse do mesmo estofo, do mesmo padrão desses dois, ou seja, mais um trabalho em continuação. O que chamei com-siderar vem em substituição a qualquer possibilidade de crítica da arte, e mesmo de estética, na medida em que, mesmo do ponto de vista da teoria psicanalítica, temos que repudiar, como sem assentamento em qualquer base freudiana, o que tem aparecido no campo da psicanálise como abordagem da obra de arte. Há uma verdadeira interdição, em Freud, de se psicanalisar a obra de
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arte. Isto é impossível, pretensioso, se não delirante, na medida em que estou certo nos desenvolvimentos que fiz, a obra de arte, quando realizada, ocupa o mesmo lugar do analista. Diante da obra, os trabalhos sobre ela produzidos não são, ainda que ditos psicanalíticos, psicanálise da obra – qualquer que tenha sido a teoria, tipo Charles Mauron, Princesa Bonaparte, e outros mais recentes – justamente porque a obra de arte produz esse lugar, que é o lugar do analista. E o que dizemos diante dela, ainda que com aparência de discurso psicanalítico, não é senão fala de analisando. É, no máximo, aproximação do passe. Se me encontro com esse lugar da obra, estou fazendo alguma coisa da ordem de conceber o passe. É o que tentei teorizar nesses dois livros. *
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O trabalho do qual vamos tratar aqui é o famoso quadro apelidado As Meninas, de Velázquez. Apelidado porque este não é um nome que o pintor tenha dado. Anos depois da sua morte, o quadro foi achado e arrolado num conjunto de obras que pertenciam ao palácio e ficou com esse nome justamente porque se chamava, em português, na Corte espanhola, Meninas às damas de honra da princesa, da Infanta, da herdeira do trono. Velázquez foi um pintor do século XVII. O quadro foi pintado em 1656, quando ele tinha 57 anos. Ele era espanhol, mas sua família era de origem portuguesa. Houve mesmo um momento, se não me engano sob o reinado de Felipe II, em que a idéia era constituir um reino espanhol-português. Aí nesse quadro é mais o momento de Felipe II, já é um momento de decadência dos Habsburgos. É o reinado de Felipe IV, um rei do qual se poderia dizer aquela frase de Lacan, no Seminário 2, para demonstrar a questão da censura, diz a respeito do rei da Inglaterra: “Le roi d`Anglaterre est un con”. O rei da Espanha é um babaca, na medida em que Felipe IV era uma coisa meio frouxa. Velázquez vai pintar, a partir dos 23 anos de idade, para Felipe IV, como pintor da Corte. Ele pintava desde cedo, desde os 16 anos, sob a orientação de um mestre, com cuja filha veio a se casar.
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Velázquez: As Meninas, 1656.
Com uma obra bastante vasta como pintor, Velázquez certamente produziu, nesse quadro, a sua obra. Todo poeta, quero supor, passa a vida fazendo esboços da sua obra. Se ele tem tempo e ocasião de conseguir fazer a obra, acaba juntando aquilo tudo e fazendo a obra definitiva. Às vezes não consegue fazer e ficam uns fragmentos. Quanto mais se estuda Velázquez, mais se percebe que As Meninas é a obra da sua vida. Que interesse essa obra teria para nós? Diversos. Por exemplo, o de eu, mais uma vez, poder mostrar o que mostrei naqueles dois livros: a produção
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da obra de arte como a do analista, topologicamente. A construção de um espelho, da topologia do espelho como lugar da obra de arte e como lugar do analista. Também o estádio do espelho, de Lacan, funcionando no quadro com sua estrutura inteiramente desvelada. A questão do objeto a encontrando um certo lugar como uma demonstração. E, sobretudo, o que mais nos interessa no presente seminário, A Lei, funcionando como lei da diferença, no interstício dos diferentes, na diferença sexual, onde vai reaparecer a dicotomia que tenho apontado entre a lei do homem e a lei do coração. A Lei sendo o interstício desses dois lugares. Como indicações, poderia sugerir, como textos básicos, além desses dois livros meus, o Seminário 11, de Lacan, sobretudo onde ele fala do objeto a e do quadro; o Seminário 20, onde ele trata do feminino; o texto de Michel Foucault, já bastante conhecido, que é uma tentativa de análise desse quadro, chamado Les Suivantes, que vem como introdução de seu livro Les Mots et les Choses; o texto de J. A. Miller, Teoria da Alíngua; e o texto de Jean-Claude Milner, L‘Amour de la Langue. Para uma bibliografia mais abrangente, há o Tratado da Pintura de Leonardo da Vinci e as seleções ou a integridade dos seus Cahiers, cadernos ou notas; há um livrinho de Paul Valéry, Introduction à la Méthode de Leonardo da Vinci, que é muito interessante; Pierre Francastel, em La Figure et le Lieu, que tem como subtítulo L‘Ordre Visuel du Quatrocento, que é o momento em que se funda o Renascimento, a idéia de quadro e a perspectiva linear ou exata; há também um autor, chamado Blunt, que escreveu um livro, em inglês, que li em tradução francesa, La Théorie des Arts em Italie, de 1450 a 1600, onde ele fez um resumo desse período; o famoso livro de Bukhardt, historiador da arte, A Civilização da Renascença na Itália; assim como o livro de Heinrich Wölfflin, que também é um célebre historiador da arte, Renascença e Barroco. Como iconografia, além do quadro As Meninas, temos Picasso, que, numa certa época, pintou, em tempo relativamente curto, 44 vezes sobre o quadro de Velázquez. Cito isto para vermos como esse quadro tem criado
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problemas para artistas e para teóricos. Não se trata de cópia. Ele reinventou o quadro 44 vezes. Numa dessas reinvenções é que vou buscar a dica de certa impostação do quadro. O quadro de Goya chamado A Família Real. Já no século XIX, Goya pinta a família real de então baseando-se em Velázquez, mas, a meu ver, sem entender o que estava no quadro. Goya é um grande poeta, mas foi em outro lugar e de outro modo que ele foi dizer suas coisas. Há mais dois quadros de Velázquez que gostaria que vissem: Jesus em Casa de Maria e Marta e Vênus no Espelho. Há ainda um terceiro que vou mostrar, Retrato do Infante Balthazar Carlos, e, mais para o final, ainda iremos ver um outro, As Fiandeiras. Já mais atual, há Escher, que fez uma pintura toda lógica, e do qual vou me referir a O Espelho Mágico. E Marcel Duchamp, em quase tudo, especialmente as perspectivas pintadas sobre vidro, a Mariée, por exemplo, onde ele estudou coisa semelhante ao que vou mostrar em Velázquez. Se uma obra é obra de arte, se ela porta o que quero chamar de atopoético, ela chega a uma perda de sentido, a um puro corte, um absoluto corte enquanto borda do significante, simples momento e lugar de instalação do significante. Diante da obra, o analisando acaba perdendo o sentido, de tanto falar. De tanto com-siderar, ele acaba perdendo os sentidos que possa arrumar na obra. Surge então, puramente, a Lei de instalação do simbólico, o puro corte do significante, a diferença pura, e seu lugar. Por isso chamei esse conjunto de quatro sessões do nosso Seminário, de Côrte Real ou Córte Real. Trata-se da Côrte Real, onde está inscrito um Córte Real. Peço desculpas pelo título da sessão de hoje ser em francês. Só funciona em francês, não é por esnobismo. Mesmo porque o primeiro esboço que fiz deste trabalho era para Jacques-Alain Miller, que me encomendara alguma coisa para sair em Ornicar?. Entretanto, eu não havia chegado aonde cheguei agora. Então resolvi não mandar. O trabalho tinha esse título, que posso ler de duas maneiras: Le Mi-Roi dans l'Arène ou Le Miroir dans ia Reine, ou seja, O Semi-Rei ou O Meio-Rei dentro da Arena, ou então, O Espelho dentro da Rainha. Veremos porquê.
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Trata-se de ver o que é um espelho. Se o lugar do analista coincide topologicamente com o lugar do espelho, assim como com o da obra de arte, deveríamos considerar o que seja um espelho. Vocês poderão ver o desenvolvimento da questão do espelho nas Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, sobretudo a partir da página 88, onde há uma tentativa de explicar o que acontece topologicamente diante de um espelho. Aliás, já tratei disso aqui neste Seminário mais de uma vez, mostrando que o espelho, como superfície, como lógica de superfície, não é o vidro que o constitui. O espelho é a lógica da reflexão. No conto, Guimarães Rosa mostra a diferença entre a relação especular, imaginária, e a concepção, a visão, como ele diz, do espelho enquanto tal, que o nada reflete. É tornar-se próximo do lugar do espelho. Considero que a topologia do espelho é a topologia da banda de Moebius. O espelho é uma superfície uniface. Ele não é senão a borda de um furo, isto é, tem o mesmo estatuto topológico do significante. Tudo isto está mais longamente desenvolvido naqueles dois livros meus. Em torno da questão do espelho, carregando as questões da castração, da diferença sexual, da Lei, do objeto a, do sujeito, é que suponho estar Guimarães Rosa. Ele aponta para as primeiras estórias de qualquer sujeito, sua instalação na ordem significante, na ordem simbólica. E quero supor que aqui neste trabalho de Velázquez encontramos a mesma coisa. Só que não são estórias. É uma pintura que mostra a estrutura. Nada impede que, sem conhecimento da psicanálise e muito antes de Freud, Velázquez, como qualquer poeta que o seja, consiga me entregar isso. O que é o espelho? O espelho é essa superfície uniface que vira pelo avesso o que está diante dela. Não vira ao contrário, vira pelo avesso, e, nessa operação de reviramento, se eu trouxer para o lado de cá, o único lado para onde posso trazer, o que está no aparente lado de lá, tudo vai coincidir. Vai coincidir, mas sobra a operação de reviramento, que é a operação sujeito.
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Acabo de ler a conclusão do livro de Rosine e Robert Lefort, Naissance de l’Autre, e fico satisfeito em saber que, através de uma prática longa com duas crianças, eles chegam a constituir o movimento topológico do acontecimento de emergência do sujeito, do mesmo modo, com articulações e metáforas, que pude encontrar em Guimarães Rosa, e como encontro agora aqui em Velázquez. Tudo isso tem a ver com o surgimento do sujeito, com a entrada na ordem significante, na ordem simbólica. Se o espelho é, como borda de furo, o lugar de um corte real, é a partir do espelho, na possibilidade de conjugar os significantes com o real, depois de considerar as imagens – como Lacan mostra no Estádio do Espelho, o movimento da constituição da posição subjetiva –, é nessa conjugação de simbólico com o real mediante articulação imaginária, que emerge qualquer possibilidade de se estar como sujeito na fala. E, também, qualquer possibilidade de se considerar essa borda real do espelho como lugar de surgimento daquilo que, digamos assim, emana do real, passa do real ao simbólico, que é o ato de instauração do significante.
Escher: O Espelho Mágico.
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Ninguém mostrou isto melhor, para mim, num verdadeiro chiste, do que Escher. Está também no quadro de Velázquez, mas Escher, nesse trabalho intitulado O Espelho Mágico, mostra o espelho funcionando. Ele nos apresenta um espelho atravessado por sobre uma folha de papel e inventa um bichinho, mistura talvez de cachorro com águia, que está circulando em torno do espelho. E o lugar de emergência desse bicho é justamente a superfície do espelho. Há um espelho como corte real de onde emerge o bicho aos pedacinhos, e quando emerge, já emerge refletido, como uma duplicação. Primeiro um pedacinho da asa que vai crescendo em fatias, se duplicando, e o bicho sai para um lado e para outro do espelho, para o espaço real com espaço virtual, nos confundindo, porque somos terceiros. Não estamos diante do espelho, de maneira que ficamos sem saber qual o lado virtual e qual o lado real, diante desse quadro. Ele projeta, ele reflete uma esfera sobre o espelho, desde o ponto de vista do observador, para nos dar uma pequena noção de qual seja o espaço real. E apresenta, do outro lado do espelho, uma outra esfera, como se fosse real, quer dizer, o ponto de onde esta esfera se veria. O interessante é que o real do bicho nasce do real do espelho, portanto, ele já nasce trazido para o simbólico. Não posso conceber mais esse bicho como puro real, como coisa deslocada da função significante. Ele já nasce, já comparece afetado do simbólico no jogo imaginário com a sua forma. É mais um testemunho a respeito do que coloquei como lugar do espelho. *
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Voltemos às Meninas de Velázquez e vejamos por que esse rei é meio e por que há um espelho dentro da rainha. Tenho como referência um livro da editora Skira sobre o Século XVII, com textos de Jacques Dupont e Francois Mathey, num capítulo que fala de Velázquez e de Le Nain. Velázquez foi considerado como vivendo num momento barroco. Foi considerado um realista, daquele realismo que só vai acontecer muito mais tarde com Courbert. Ele próprio se considerava um realista, se dizia
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“meio rústico”, querendo com isto dizer que pretendia uma ligação mais direta com os objetos, sem as regrinhas renascentistas, ou mesmo sem as regrinhas barrocas de representação. Ele foi considerado, também, o inventor do impressionismo, que só vem aparecer muito mais tarde e porque, afinal de contas, os artistas impressionistas declararam que foi na tessitura luminosa e no colorismo de Velázquez que eles teriam buscado inspiração para isolar o que chamariam de impressionismo na pintura. Renoir chegou a dizer que “toda arte da pintura está na fitinha cor de rosa da Infanta Margarida”, falando d’As Meninas. Mas será que Velázquez é isto, embora tenha inventado tudo isto? Ele dizia mesmo que preferia ser o primeiro entre os rústicos do que o segundo entre os delicados. Uma certa rudeza, uma certa crueldade no tratamento da pintura. Velázquez pintava desde os 23 anos para Felipe IV, por influência de seu mestre e sogro Pacheco, no palácio de Alcazar. Para demonstrar certa coisa que vou mostrar a vocês depois, era preciso que o palácio de Alcazar estivesse de pé, ou que, pelo menos, eu tivesse uma planta desse palácio; mas, infelizmente, esse palácio pegou fogo num certo Natal de mil setecentos e não sei quanto, não sobrou nada dele. Coisa interessante na vida de Velázquez é que ele era pintor da Corte, mas exerceu cargos importantes, cargos oficiais, como Rubens, por exemplo, que foi embaixador. Rubens, aliás, também esteve durante algum tempo pintando na Corte de Felipe IV, ensinou muita coisa a Velázquez e se tornou seu amigo. Mas Velázquez teve cargos interessantes como, por exemplo, o de Chefe de Câmara Real, o de Oficial do Guarda-Roupa Real, que são cargos oficiais muito metidos dentro da fofoca da alcova do rei. Quer dizer, ele tinha, assim, uma grande transação íntima com aquele pessoal da Corte. Foi Auxiliar da Câmara com uma chave, que era coisa importante naquele tempo, foi Valet de Chambre, Assistente das Construções Reais, Inspetor das Construções e, no final de todos esses cargos, ainda pintando, chegou a ser o Grande Marechal do Palácio, em 1652, um pouco antes de morrer. Morreu em 1660. As Meninas foi pintado em 1656, quando tinha 57 anos, momento em que consegue achar a grande dica. Grande Marechal do Palácio é justamente o responsável pela ordem da casa, quer dizer, é o pai da casa. O pai da Casa Real não é bem o rei. O rei
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toma conta do reino, o Marechal do Palácio toma conta da casa do rei. N’As Meninas está representado o Grande Marechal da época em que o quadro foi pintado, que era do tio de Velázquez. Interessante essa relação de Velázquez com o poema, e com a ordem instituída. Ele está no lugar adequado, talvez, para pensar A Lei. Vários autores insistem em que não lhe interessava quando pintava, nem um pouco, a pessoa, a psicologia do personagem. Ele botava o sujeito lá, como se fosse uma pedra, uma cadeira, como Cézanne, aliás. Mas notam que ele se utilizava do lugar social do personagem para estabelecer associações muito interessantes, muito importantes. Os dois grandes quadros, as duas grandes obras da vida de Velázquez, são As Meninas e, posteriormente, As Fiandeiras. Veremos a relação especial que existe entre eles. No livro da Skira, tentando refletir sobre o que pensa Velázquez, o autor diz que “o quadro possui uma realidade que lhe é própria. Não lhe cabe figurar o mundo pela pintura, mas transformar o mundo em pintura. Já o artista não toma mais o mundo por uma realidade, a qual a tela deva subordinar-se em expressão, nem mesmo por aparência de realidade, não tendo mais que dar conta das formas ordinárias do real” – no sentido da realidade –, “mas devendo, ela própria, a pintura, criar sua ordem interior, no interior da tela. A pintura metamorfoseia os dados fundamentais da sensação”. Então, onde podemos inserir o ato de pintura de Velázquez? Justamente em algo que é uma longa tradição, em certa franja do pensamento ocidental que poderíamos situar em dois momentos que não são iniciais nem terminais: o obstinado rigor, o “hostinato rigore” de Leonardo da Vinci, quando dizia que a pintura é “cosa mentale”, que a pintura não era feita para os olhos nem o refresco do olhar, mas era coisa mental. A única regra fundamental na pintura, dizia Leonardo, era o obstinado rigor, ou seja, aquilo que Lacan diz que ele próprio faz como o psicótico. Encontraremos depois, recentemente, a grande revolução de Marcel Duchamp, que diz isto de outro modo. Mas em ambos trata-se da produção de uma obra plástica, visual, não-retiniana, quer dizer, feita para se pastar com a mente. Insisto em que independentemente de qualquer consciência, porque o poeta não é obrigado a ter consciência do que faz, algum rigor obstinado e
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alguma produção estritamente da ordem da coisa puramente mental, acaba produzindo a obra. E o ato-poético se põe no nível lógico dessa produção. Não é enfeite, coisa bonita. Não é do agradável que trata a obra de arte, não é o belo, a não ser que o belo seja o que Lacan chamou, aquilo que colocamos à nossa frente como anteparo à segunda morte, aquela de Antígona, de que falei anteriormente. O belo como mostra dessa inserção do Corte Real na Corte Real vem como anteparo à segunda morte. Velázquez, como todo grande poeta, ou, tirando o grande, como qualquer poeta – ou se é poeta ou não se é, ninguém é poeta, a obra é que é poeta, o que seja o Sr. Velázquez não nos interessa –, põe-se diante dos entendidos com esse problema de não se conseguir inseri-lo numa escola. Os autores dizem que ele é “o pintor dos pintores”, quer dizer, aquele no qual os próprios pintores reconhecem para si uma simetria. Não se sabe dizer, todos ficam perplexos, não só ao que pertence Velázquez – como pintor da época do barroco, dentro da estrutura renascentista, inventando o que está no impressionismo, pré-criando o realismo de Courbet –, como o que esse cara está fazendo? Qual é a dele? Não é nenhuma? Ou é qualquer uma? Assim como também ninguém sabe onde inserir esse quadro d’As Meninas. É um quadro de gênero? É um autoretrato? É um quadro da Corte? Não interessa, não é esta a questão. Então, o que há nesse quadro? Do ponto de vista da construção, estamos diante de um modelo aparentemente renascentista, que não escapa à ordem visual do Quatrocentos, àquele momento em que a pintura, em rivalidade com a teologia e com a ciência, pretende cientifizar-se e inventa a perspectiva linear ou exata para configurar e conceituar o que fosse o quadro. Mas os artistas do renascimento, mesmo aqueles de maior importância, como Paolo Uccello, Piero Della Francesca, Leonardo, Dürer, esses que inventaram a perspectiva exata, por mais fechados que estivessem na ordem euclidiana, na exatidão dessa perspectiva, como poetas que eram, e, portanto, não medíocres, lidando com este ato instaurador, usavam dessa cientificidade mais para convencer os olhos de certas mentes, sobretudo da Igreja, no caso da teologia. Entretanto, desobedeciam freqüentemente essa
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ordem, para poder dizer o poema. É o caso, por exemplo, de Leonardo, que é um dos fundadores dessa ordem visual, mas em cuja pintura encontramos deformações da perspectiva, se não mudanças bruscas de pontos de vista, como o que ocorre na Mona Lisa. Ele construiu aí uma perspectiva de cima, de um lado, e outra de baixo, do outro lado da mesma paisagem, e como a cabeça da Mona Lisa está junto ao céu, e o céu é um ponto neutro em perspectiva, ele faz, pelo céu, a passagem de um lado para outro, criando com isto uma estranheza muito maior do que a do “sorriso” da Mona Lisa, que não é tão estranho assim. No Tratado da Pintura mesmo, Leonardo mostra as regras da composição, da anatomia, de que ele era pesquisador – é claro que cheio de erros –, e, no caso da perspectiva exata, ele aponta todos os elementos, mas, quando chega ao final – e não havendo naquela época uma ótica desenvolvida como temos hoje na base eletrônica, etc. – , vemos a graça de Leonardo, se aproveitando da grande ignorância sobre o assunto naquele momento, para dizer que existe “a perspectiva aérea, que trata das cores, das densidades”... Ali ele faz o seu bordel e acaba conseguindo fazer obra de arte, apesar da caretice, da idiotice da perspectiva do renascimento. Não há dúvida de que a perspectiva é uma grande invenção. É a descoberta do geometral do olho. Mas um quadro que só se prende a idiotia da perspectiva não consegue dizer nada. Nem mesmo uma fotografia, que é da mesma ordem geometral, é tratada desse modo pelo poeta. *
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Como vimos, então, do ponto de vista da estrutura, o quadro de Velázquez é de construção renascentista. Entretanto, ele vai se aproveitar de certa dubiedade dos espaços, de certas distâncias como grandes, no teto por exemplo, para deformar violentamente a perspectiva, a ponto de nos confundir a respeito da questão do centro geométrico do quadro e dos seus pontos dominantes. O que Velázquez está representando? Apontarei as questões no quadro, para não haver maior dúvida.
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Vejamos o Esquema 1 abaixo, onde as duas linhas cheias, AB e CD, são perpendiculares e se cruzam no meio geométrico, linear do quadro (ponto O). Aí, sobre a reta CD, está esta menina, que não é uma das Meninas. É a Infanta Dona Margarida, a filha do rei, que será a herdeira do trono. Seu irmão mais velho, que Velázquez já havia pintado montado a cavalo, o Infante Baltazar Carlos, havia morrido criança.
Esquema 1
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Temos ainda esta outra linha, a horizontal AB, que mostra o meio do quadro no sentido da altura, e estes dois triângulos, indicados pelas letras RST e XYZ, que são apenas dois momentos que pude distinguir como de deformação. Deformação como aquela que os renascentistas já faziam e que encontramos, com grande quantidade de exemplos, no livro chamado Anamorphoses, de Baltrusaïtis. Neste livro, que é citado no Seminário 11 de Lacan, podemos ver brinquedos e distorções das quais muitos artistas se utilizaram, no sentido poético, para quebrar a idiotice da estrutura renascentista, como é o caso do quadro Os Embaixadores, de Holbein, que está na capa do Seminário 11, onde aparece aquele crânio deformado. Em seu livro, Baltrusaïtis vai colher, a partir do renascimento e mesmo até o barroco, essas deformações mais ou menos violentas na ordem renascentista, para que o poeta possa dizer, inserir ali a violência significante. Do mesmo modo que Leonardo na Mona Lisa, no Retrato do Infante Balthazar Carlos, Velázquez também constrói duas perspectivas completamente diversas. É um jogo de deformação no sentido que os críticos dizem “expressivo” – e veremos que muitas vezes, é significativo, se não produção de significante. O infante, no quadro, está sendo visto de baixo para cima e, no mesmo horizonte, Velázquez faz, ao fundo, uma perspectiva vista de cima para baixo. Está tudo certo geometricamente, porque o horizonte é o mesmo. Entretanto, esse efeito de-baixo-para-cima e de-cima-para-baixo cria uma distorção significante. É importante notar isto porque veremos a repetição desses momentos em Velázquez, e como ele vai juntar tudo isso numa só obra, nesse quadro d’As Meninas, sua s’obra. Ele nos tapeia aí dando a impressão de um certo ponto de vista, declarando formalmente o seu ponto de vista. Em perspectiva, o ponto de vista, como sabemos, é o ponto que denota o olho do observador, o olho de quem vê o quadro, e a projeção desse ponto sobre o quadro se chama ponto principal. Neste quadro, há erros propositais. Assim, essas duas retas do teto, RT e ST, do triângulo RST, têm seu ponto de fuga sobre o braço desse personagem, no fundo do quadro, no ponto T, que não é absolutamente o ponto de vista do
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quadro. E isto é notável porque essas duas retas são perpendiculares ao plano do quadro, portanto, deveriam ter, como ponto de fuga, o ponto principal, que é a projeção do ponto de vista. Velázquez aproveitou-se da grande distância em que se encontram essas retas e foi deformando suas posições, para nos embaralhar a posição do ponto de vista. Da mesma forma, as duas luminárias do teto, as quais também pertencem a uma perpendicular ao plano do quadro, ou melhor, ao plano do fundo, também estão deslocadas, pois se observarmos com cuidado – somente no quadro original seria possível uma determinação mais precisa – veremos que seu ponto de fuga – elas estão indicadas pelas retas XZ e YZ –, aparentemente, ou está na cabeça do cachorro, ponto Z, ou está na borda inferior do quadro, quase fora dele. Contudo, prefiro supor que a localização correta dessa fuga é no ponto Z, vértice do triângulo XYZ. Veremos porquê. Velázquez deforma a perspectiva do quadro para nos deixar em complicações a respeito do ponto de vista. Foucault, em seu texto, que citamos no início, pretende dar conta deste quadro como sendo um momento em que Velázquez representa – o sentido aí é de Vorstellung, representação, representação imaginária, e não de Repräsentanz – a imagética da ordem do século XVII. Foucault diz isto porque, para produzir aquele livro, precisava de um testemunho. Foi buscá-lo em Velázquez e o encontrou, de certo modo, embora eu tenha que discordar radicalmente de certas observações que ele faz sobre o quadro. Todos os autores ficam perplexos diante desse quadro. Ele cria uma trama tal de linhas dentro da perspectiva, de luzes dentro da perspectiva aérea, de cores dentro da pincelada, de olhares dentro da representação imagética dos personagens... É uma tal tapeçaria, que deixa todo mundo perplexo, sem saber como se situar diante dele. Pretendo mostrar o que acho que seja o modo de construção deste quadro de Velázquez. Vamos nomear os personagens que estão representados no quadro. Da esquerda para a direita temos: no canto esquerdo, uma tela virada ao contrário, presa no cavalete, um pedacinho da tela; um pouco mais atrás, uma das Meninas, que se chama Dona Maria Augustina Sarmiento, uma das Damas
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de Honra da Infanta, ajoelhada e servindo um copo de vinho, ou coisa parecida, à Infanta. Atrás dessa Menina, um pouco mais para o fundo, talvez bem mais afastado, esse Pintor, com a paleta numa das mãos e o pincel na outra, que é o próprio Velázquez – é talvez o único auto-retrato que ele pintou, e isto é importante: o momento em que ele se colocou dentro do quadro – olhando para nós. Os olhares representados imageticamente são do tipo produzido na perspectiva renascentista, que se conduz para quem observa o quadro – tanto que, para onde quer que se ande, tem-se a impressão de que se está sendo olhado. Então, Velázquez está olhando para nós; aquela Menina de que já falei, não está olhando para nós, ela olha para a Infanta. Em seguida temos a Infanta, que está no meio do quadro, e aonde se adensa – digamos que existe uma perspectiva luminosa a partir dela – a luz, em camadas. É o ponto mais luminoso, o centro do quadro, no sentido da largura – a Infanta também olha para nós. Logo depois temos a outra Menina, outra Dama de Honra, Dona Isabel de Velasco, que está um pouco mais atrás da Infanta, também olhando para nós. Ao lado, e um pouco mais à frente, uma anã – era moda, naquela época, a rainha comprar anões para o ambiente ficar engraçadinho na sua alcova – que se chama Maria Barbolo. Cá na frente, essa coisinha que parece uma criança mas não é, nem é um anão no sentido deformado da Barbolo, é um liliputiano – são adultos inteiramente proporcionais, mas que não crescem e não têm deformações – que se chama Nicolasito Pertusato, e ele está fustigando com o pé esquerdo o grande cão, deitado à sua frente. Mais atrás está aquele casal que são a Aia do aposento real, uma espécie de governanta, e o outro é o Guarda-Damas dos Aposentos Reais – os guarda-damas são aqueles cavalheiros que acompanham as mulheres quando vão aos lugares, andar na rua, etc. Lá no fundo, de pé, quase na soleira da porta, como uma espécie de personagem limite do quadro, está justamente o tio de Velázquez que é Don José Nieto Velázquez, que era, nesse tempo, o Grande Marechal do Palácio, também chamado O Aposentador, ou seja, o pai da casa, o dono da casa, porque o rei tomava conta do reino, e esse aí tomava conta da casa do rei. Existem vários quadros pendurados nas paredes, os quais vemos muito mal nesta reprodução, mas no quadro original consegue-se distinguir quais são os dois quadros que estão
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na parede do fundo. Falarei deles depois. Finalmente, temos, ao lado da porta em que se encontra o Aposentador, também na parede do fundo, aquela representação que poderia parecer um quadro, mas que, dado o tratamento de pintura que ele nos apresenta, está indicado que se trata de um espelho. Espelho no qual estão refletidos o Rei Felipe IV e a Rainha Dona Mariana. Michel Foucault faz um texto muito bonito e aponta para coisas extremamente importantes, mas vem nos dizer que o quadro é representação da ordem epistêmica do século XVII. Para que isto seja demonstrado, ele diz que todos os personagens, inclusive os reflexos do rei e da rainha, olham para mim, para o espectador. Velázquez então teria construído esse lugar vazio, de alguém que vai se colocar como sujeito diante do quadro, no mesmo lugar do rei e da rainha que, estando fora do quadro, se refletem no espelho do fundo. Esse lugar vazio ordenaria toda a estrutura do quadro, como ordenaria toda a estrutura do reino, toda a episteme mesmo do século XVII, como lugar de poder, lugar a ser ocupado por alguém, e de onde se regra toda a estrutura do poder de então. Ele também nos mostra que o quadro instala uma relação especular porque há uma reciprocidade: eu olho para os olhares, os olhares olham para mim, enquanto olhar. Tudo bem, no nível imaginário, concordo. E também coloca que há uma relação de incompatibilidade entre a linguagem e o visível, como a dizer que a pintura é coisa da ordem extra-verbal, do extra-linguagem, do pré-verbal, como querem agora alguns pedagogos da arte... Isto não cabe na nossa referência, não existe nenhum pré-verbal. Ninguém constrói um quadro a não ser por via significante, passando pela língua, que vai ordenar o quadro. Então, o que Foucault vai nos dizer é que o rei e a rainha, neste lugar extremo, lugar do vazio, apenas representados como reflexos no quadro, ordenam, ao seu redor, toda a representação. Aí começo a achar que está ficando perigoso, e mostrarei porquê. Ele diz que o verdadeiro centro da composição é esse lugar do rei e da rainha, o qual posso conceber como reflexo ou como lugar, falando desde o lado de fora. Ele coloca a Infanta como centro da organização do espaço, mas o centro ordenador do quadro é esse lugar vazio do rei, como o seria na episteme do século XVII. Tudo isto pode ser interessante, mas não é por onde temos que
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ir. O que ele mostra é que quando ocupo esse lugar do rei e da rainha, esse lugar elidido, passo a ser, enquanto sujeito, o centro mesmo dessa composição, uma vez que o lugar é o mesmo. Ele termina o texto dizendo: “E livre, enfim, dessa relação de encadeamento, a representação pode se dar como pura representação”. No texto de Lacan sobre “o quadro”, no Seminário 11, temos, como vou desenvolver aqui, que uma pintura, um quadro, nada tem a ver com nenhuma representação. Não é enquanto representação que um quadro interessa, mas sim enquanto ordenador de um olhar. Tentarei ir a um ponto dessa mesma postura colocada por Lacan, mostrando que é enquanto demonstrador do corte, demonstrador do significante – portanto, no momento em que aparece o sujeito, a Lei, a castração –, que um quadro interessa enquanto obra de arte. Não posso aceitar a postura de Michel Foucault porque me parece que há nele um erro grave de perspectiva e de análise formal do quadro. Se eu quiser o rei e a rainha do lado de cá, fora do quadro, preciso necessariamente, apesar da deformações que Velázquez introduz, considerar o lugar do rei e da rainha como ponto de vista do quadro, se não os olhares não convergem para mim. Isto está na perspectiva do renascimento que, aliás, é a que informa o quadro. É preciso, portanto, conceber o lugar do rei e da rainha como ponto principal, ou seja, ponto de fuga de todas as perpendiculares ao quadro. Fiz há algum tempo um pequeno artigo, meio embaralhado, apenas como comentário a algumas colocações de McLuhan – que está como etc. no Senso Contra Censo –, chamado Alffabetto e Esquizousia, onde tentei mostrar que não posso conceber essa ordem visual, que Foucault coloca no século XVII, como sendo a invenção e a construção daquele século. Posso dizer, sim, que o século XVII primou pelo reconhecimento dessa ordem, mas ela é invenção do Quatrocentos. Até à possibilidade de ruptura disso, que não foi certamente com o impressionismo, estamos sob a ordem visual do renascimento, sob o reino da perspectiva linear. E se o século XVII faz coincidir Descartes com o quadro renascentista, ou até, digamos, com o sistema tonal bachiano – o sistema, não o sintoma de Bach enquanto poeta –, por outro lado, a invenção disso se deu muito antes.
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Trata-se agora de ver se a posição do observador coincide com a posição do rei e da rainha, e se o ponto principal do quadro estaria realmente lá. EF não está passando Vejamos o Esquema 2, abaixo. A linha horizontal EF no meio do quadro, no meio no sentido vertical. Ela é a linha do horizonte, é a linha que passa pelo olho do pintor, e que está bastante reforçada pelas linhas de força do quadro. A outra horizontal, AB, AB do Esquema 1, é a que passa pela borda da moldura do espelho e se completa com a moldura da porta em que se encontra o Aposentador, e com a da outra porta que fica atrás de Velázquez. Mas a horizontal que está mais reforçada é essa de baixo, EF EF, pelo contraste com o grande brilho atrás do Aposentador, da luz que por ali penetra, e com o brilho do espelho. Esta horizontal mais reforçada vai dar bem no olho de Velázquez ali representado. Vou considerá-la, pois, como a linha do horizonte, ou seja, a reta que fica na altura do olho do observador. Temos ainda as duas diagonais do quadro, GH e IJ IJ, que são importantíssimas. Primeiro, porque Velázquez, de certo modo, ajusta a composição do lado direito em função da diagonal que se forma com a inclinação do corpo da Menina da direita, e faz um certo peso no quadro sobre essa diagonal. Se observarmos bem, percebemos que essa diagonal GH conduz um pouco o nosso olho pelo quadro. Assim como também a outra diagonal IJ – o que só se pode ver na obra original, pois na reprodução aparece muito mal – indica a direção da única luz que Velázquez colocou como entrando no quadro, através da grande janela aberta, que está do lado direito. Essa luz varre o quadro como num corte sagital, iluminando os personagens. É claro que Velázquez não se utilizou apenas dessa luz para a construção do quadro, se não, o rosto da Infanta estaria sombreado, mas a luz que ele indica como a luz do quadro é essa lâmina que o atravessa, da janela, mais ou menos no sentido diagonal. As duas diagonais GH e IJ também estão ali para determinar os pontos dinâmicos do quadro. Esse pontos eram extremamente importantes na pintura renascentista e Velázquez se utiliza demais deles, em vários de seus trabalhos.
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Esquema 2
Assim, o retângulo GJHI é um retângulo áureo, ou seja, está dividido em média e extrema razão – que é justamente o elemento que tomei para demonstrar certas relações nas fórmulas dos discursos em Lacan –, e temos que a soma dos dois lados, GJ + JH, JH está para o lado maior, GJ, GJ assim como o lado maior, GJ + JH =JH . O uso desta Relação era um GJ, está para o lado menor, JH JH: GJ GJ JH
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conselho formal renascentista, e que a Gestalt depois resolveu tomar como sendo alguma coisa que satisfaz melhor o olho. Chamavam-se pontos dinâmicos, sobretudo quando o quadro era um retângulo em média e extrema razão, aureamente dividido, os pontos de encontro de cada uma das diagonais com a perpendicular traçada do vértice oposto. Temos, então, JN perpendicular IJ M e N são os pontos dinâmicos à diagonal GH GH, e HM perpendicular à diagonal IJ; do quadro. São esses pontos dinâmicos que são considerados pelos renascentistas, e também pela Gestalt, como sendo os pontos pregnantes no retângulo áureo, ou num retângulo qualquer. E justamente Velázquez vai colocar nesses dois pontos dinâmicos o Aposentador, ponto N, e o espelho, ponto M. Esses dois elementos, o espelho e a porta, constituem os dois elementos de força dinâmica do quadro. Velázquez utiliza isto propositalmente. Do ponto de vista da dinâmica do retângulo do quadro, ele está utilizando essas forças em dois lugares especiais: o lugar do Aposentador e o lugar do Casal Real refletido. Justamente os dois lugares que, ao tomar o centro do quadro, podemos ver – e isso não só por causa dos pontos dinâmicos – que eles são simétricos em relação ao eixo central, reta CD CD, no Esquema 1. Então, em relação ao meio do quadro, há uma simetria dinâmica lá no fundo que conduz nosso olhar. Isto cria muita confusão. Alguns autores dizem que o centro visual é o espelho, outros apontam que é o Aposentador, e outros consideram, ainda, que é a Infanta. Isto não interessa. Velázquez está jogando com pesos e superfícies, pesos e profundidades, deformações perspécticas, angulações deformadas, etc., para nos deixar justamente numa dança dentro da dinâmica do quadro. Essa dança só vai se resolver, talvez, no final. Do ponto de vista da perspectiva, se não pelas linhas que se possam traçar sobre o quadro, mesmo sabendo que Velázquez introduz deformações, podemos garantir que, como matemático que ele também era, e seguidor das normas renascentistas de montagem de um quadro, logicamente, a linha do horizonte está no olho de Velázquez, do pintor ali representado. Além disso,
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o ponto principal, como projeção do ponto de vista, não está, de modo algum, na posição do rei e da rainha, como querem Foucault e outros. Os olhares todos convergem, sim, para o ponto de vista, se não eles não nos acompanhavam. Se Velázquez fez questão de que os olhares convergissem para o observador, é que ele os fez convergir para o ponto de vista que, ali na sua perspectiva, iriam para o ponto principal. O ponto principal é que tem que ser achado. Por que ele, Velázquez, está dentro do quadro? Estar dentro do quadro e, ao mesmo tempo, representar o quadro é uma questão que os pintores freqüentemente se colocaram. Mas ninguém, talvez, tenha se colocado com tanto brilho, com tanto rigor, como fez Velázquez. Ele está dentro do quadro. Como é que, como pintor, observando aquela cena, pode Velázquez pintar esse quadro? Diversos autores opinam e sugerem várias coisas, mas nenhum, que eu saiba, enfrentou este problema até destrinchá-lo. Apenas um autor faz uma leve alusão ao que interessa, se perguntando: “O que Velázquez está pintando no quadro que está dentro daquele quadro?”. Ele está pintando um quadro e, naquele momento, tomou distância, saiu de junto do quadro e olhou para o modelo. Ficam todos perplexos. Um deles, Orian Gallego, autor espanhol, na sua Grande História da Pintura, sugere que esse quadro que Velázquez está pintando dentro do quadro, mas do qual só se vê o avesso, nada nos impede de imaginar que seja justamente este mesmo quadro, As Meninas. É o único, que eu saiba, que sugere isto. Sugere mas não demonstra que Velázquez pintou um quadro no qual ele se representa pintando o próprio quadro que nós estamos vendo. Este é o retorno do quadro. Estou com este autor e não abro... mas preciso demonstrar. Todos ou quase todos os outros autores falam nessa relação recíproca de que fala Foucault, mas não se perguntam: e o espelho? Não o do fundo, mas aquele que é preciso pensar, porque nenhum pintor, pelo menos de modelo renascentista, poderia pintar um quadro – renascentista na estrutura, embora barroco – em que ele se represente no ato de pintar, sem olhar para um espelho, sem pelo menos considerar um espelho. Todo mundo que estudou um
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pouco de pintura sabe que, hoje, ou você copia de uma fotografia, ou você se surpreende num espelho. Entretanto, tenho dois testemunhos que me ajudam a pensar que Velázquez pintou mesmo o quadro olhando para um espelho. Primeiro a intuição de um museólogo que lá no Museu do Prado, onde eu nunca estive, aonde moram As Meninas de Velázquez, botou uma sala só para este quadro e, diante do quadro, um espelho, no qual se vê o quadro refletido por inteiro. Ele não demonstrou nada, que eu saiba, mas estou cada vez mais convencido de que Velázquez pintou este quadro vendo tudo isto que ele está representando num espelho. Por isso ele pôde se representar, dentro do quadro, pintando o quadro. Mas tenho um testemunho mais grave, dois, aliás. Primeiro, o testemunho posterior de Goya que, ao tentar seguir a idéia deste quadro, soubesse ele ou não do fato, pintou a Família Real de seu tempo diante de um espelho, e se retratou ele mesmo, lá no canto, por trás dos personagens, pintando o quadro. Pintou diante de um espelho e disse que era uma reflexão no espelho, mas não conseguiu as coisas que, a meu ver, Velázquez conseguiu. Ele apenas aproveitou a idéia da especularidade. Segundo, o testemunho, bem mais grave, de Picasso que ficou encucado com este quadro de Velázquez, como se fosse o centro de algum pensamento fundamental, e fez 44 telas baseadas nele. Ninguém faz isso sem estar de certo modo possuído pelo quadro. Numa dessas quarenta e quatro telas, a que talvez seja o ápice dessa série, seja ela ou não a final, ele incluiu tudo que está no quadro de Velázquez. Ele repensa o quadro de cima abaixo. Encontramos todos os personagens representados: a tela, o pintor, as duas Meninas, a Infanta, o cachorro, a anã, o liliputiano, a aia, o Guarda-Damas, o Aposentador, a janela por onde a luz entra... Mas onde estão o rei e a rainha? Ele não botou. No lugar do rei e da rainha, Picasso colocou apenas o espelho. Ele o representou – e certamente foi aí que ele sacou a estrutura do quadro – justamente do modo como acontece com um espelho diante de outro espelho, que dá aquela reprodução infinita dos espelhos. Ele infinitizou o espelho.
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Psicanálise & Polética
Picasso: As Meninas
Assim, ao ver que Picasso representou um espelho diante de outro espelho, tomo dele o testemunho de que, aquele espelho, onde se refletem o rei e a rainha, estava diante de outro espelho. É claro que, perspectivamente, o quadro de Picasso está errado. Mas ele não tem nada a ver com a perspectiva do renascimento. Ele só mostrou, simbolicamente, que aquele espelho está diante de outro espelho. Com estes dois testemunhos, então, digo que Velázquez pintou este quadro, As Meninas, olhando-o num espelho. Portanto, o lugar do rei e da rainha não é no ponto principal, nem é o ponto de vista, como querem Foucault e outros. *
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Onde estão o rei e a rainha para que possam aparecer no espelho que Velázquez está olhando? Na frente? Se estiverem na frente, tapam o espelho e
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Velázquez não vê o resto. Esta, agora, é a grande questão. Velázquez está ali, o espelho está lá, na sua frente, ele está ali pintando tudo o que está vendo lá no espelho e, nesse espelho, ele vê refletido o espelho lá de trás, onde estão refletidos o rei e a rainha. Isto deixa todos perplexos, pois nenhum autor, que eu saiba, descobriu onde estão o rei e a rainha. Acho que descobri. Velázquez tem que ter o rei e a rainha lá, se não ele não pinta. Ele não pintava um copo sem botar um copo à frente. Isto é declarado por ele. Ele pode não ter feito aquela cena toda ao mesmo tempo – ele pode ter chamado um para posar, depois outro, pode ter levado trinta anos pensando, para montar esse quadro, mas ele teve os modelos. Tem que ser um espelho, onde estão o rei e a rainha, pois ninguém representa aquilo, daquele modo, na pintura barroca, sem ser um espelho. O espelho é uma tradição na pintura, desde Van Eyck, com o Retrato do casal Arnolfini, que é, talvez, um dos primeiros quadros em que aparece um espelho, ali convexo. Este quadro de Velázquez, de certo modo, nada tem a ver com aquele do casal Arnolfini, mas ficou a tradição do uso do espelho na pintura, desde os Van Eyck, o que faz, freqüentemente, os artistas colocarem um espelho na tela, e criarem relações perspécticas muito interessantes. E o espelho é, também, uma tradição na pintura de Velázquez, ele sempre esteve encucado com espelhos. Já se disse que, depois de sua morte, encontraram, entre suas coisas, uma coleção de espelhos. Ele era, realmente, um cara lacaniano, só que não sabia disso. Passou a vida invocando os espelhos. Era o estádio do espelho dele. Mostrarei rapidamente – porque é simples lógica geométrica – este esquema de incidência dos raios visuais num espelho. Este Esquema 3, abaixo, não está geométrica e graficamente perfeito como desenho, mas sua lógica está correta. Podemos considerar a superfície do quadro de Velázquez como sendo a de um espelho. Estou considerando assim porque posso pôr o ponto de vista na figura de Velázquez: se quase todos os personagens olham para o ponto de vista, se Velázquez está diante do espelho, tem que ser o dele. Então, quando estou diante de um espelho, desde um ponto de vista que é
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Psicanálise & Polética
necessariamente lateral – no quadro só aparece uma parede, e bem inclinada, e para esta parede estar assim inclinada, o ponto de vista tem que ser bem lateral, no olho de Velázquez –, o que vejo? Diz a ótica geométrica, a qual Velázquez obedecia: “ângulo de incidência igual a ângulo de reflexão”. No Esquema 3, então, quando olho, incido uma luz ou uma visual sobre o espelho. Enxergarei aquilo que faz complemento, isto é, a outra parte igual ao que divide a bissetriz, a perpendicular ao plano do espelho. Se estou no ponto V e olho para o espelho E / , no ponto 12, verei o que está lá no ponto 24, e aquela reta perpendicular ao espelho, que sai do ponto 12, é a bissetriz do ângulo V 12 24. Na perpendicular não há reflexão, ou seja, do ponto de vista V, a projeção no espelho é V’, que vai ser o ponto principal, sendo VV’ perpendicular ao espelho E / . Quanto mais para longe o olhar se dirige, maior é o ângulo de reflexão. Ele vai se abrindo de tal maneira que, num espelho pequeno, se me coloco de lado, posso ver muito mais coisas quanto mais longe de mim elas estejam.
Esquema 3
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No quadro de Velázquez, é o que acontece. Ele está num canto e, em frente a ele, há um espelho grande, deve ser bem grande, deve ter mesmo o tamanho aproximado do quadro real, ou talvez um pouco menos, onde ele está se vendo, vendo também a tela no cavalete – a angulação permite pensar o que mostrei no esquema dos raios visuais em relação ao espelho – e vendo cada um dos personagens segundo o seu ângulo de reflexão. Os personagens não estão amontoados, é o ângulo de reflexão que os amontoa. Eles estão espalhados mais ou menos em semi-círculo. Velázquez é que os está vendo todos ali, dali daquele ponto onde ele está. E, onde estão o rei e a rainha? Tentei fazer, no Esquema 4 abaixo, aproximadamente, no olho, a planta baixa aproximada deste quadro de Velázquez: na parede do fundo temos uma porta que fica atrás da figura de Velázquez; o espelho (E / 2) e, em seguida, a porta onde está o Aposentador (Ap). À frente de Velázquez há um espelho (E / 1), indicado com linha cheia e tracejada, e a letra V indicando o lugar de Velázquez. Olhando para o espelho do lugar onde ele se encontra, o pintor se vê em v (minúsculo), na perpendicular Vv Vv, e vê um pedaço do quadro Q em q (minúsculo). Ele vê cada personagem nessa angulação, que está indicada na planta baixa do quadro, segundo as leis da ótica. Pelo reflexo simétrico de v vV’ logo v é o ponto principal. Velázquez (minúsculo) determino V’, isto é, Vv = vV’, está no ponto de vista V, e v é o ponto principal, não é lugar do rei e da rainha. Ele está vendo todos os personagens: a Menina (M1); a Infanta (I); o cão (C); o liliputiano (An); a anã (Añ); a outra menina (M2); a Aia (Ai); o GuardaDamas (G); o Aposentador (Ap) e a imagem do rei e da rainha (R’r’). A imagem dos personagens no espelho E / 1, em que Velázquez está olhando, são as letras minúsculas correspondentes.
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Esquema 4
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Se a imagem do rei e da rainha está naquele espelho E/ 2, Velázquez
vê esta imagem refletida no espelho E / 1 , ali no ponto R”r”. Então, basta encontrar o ângulo de incidência igual ao ângulo de reflexão para ver que Velázquez, deste ponto V, vê no espelho E/ 1, o reflexo do rei e da rainha neste ponto R”r”, porque o verdadeiro reflexo, que está atrás, no espelho E / 2, está refletindo a imagem Real (R,r) do
rei e da rainha que se encontram lá na frente, do lado do espelho E/ 1, no
mesmo nível deste espelho. Eles estão numa porta que é simétrica à porta em que se encontra o Aposentador (Ap), perto do cão e do liliputiano. Eles estão entrando, tanto é que há uma cortina sobre a cabeça do rei, como a de lá do outro lado, sobre a cabeça do Aposentador. Eles estão entrando por uma porta, no mesmo plano do espelho /E1. Por isso, Velázquez, de lá do ponto V, vê o reflexo deles no ponto R”r”, lugar que certamente ele arrumou, porque queria assim. Repetindo: tenho um grande espelho (E/ 1), Velázquez, sua patota toda que é vista neste espelho. E justo do lado do espelho, uma porta por onde entram o rei e a rainha, e que se refletem lá no fundo, no espelho /E2. Isto vai criar uma série de argumentos. O artista, que está presente aqui, Luiz Carlos Miranda teve a paciência de desenhar para nós tudo que Velázquez via. Na parede, em frente ao pintor, Velázquez via o que está no desenho abaixo, o tamanho do rei e da rainha é grande porque é real, o que está no espelho é menor. Ele via uma parede com um espelho grande. Ao lado desse grande espelho, a porta com a cortina, e o rei e a rainha entrando justo naquela posição, para que o seu reflexo do fundo dê aquele que está no quadro. Velázquez podia ter pintado a cena por inteiro, como está neste desenho. Ele podia ter pintado este quadro, mas ele pintou apenas o que estava no espelho. Isto é que é interessante para refletirmos junto com ele, e junto com outros quadros dele. Há três anos que eu brinco com este quadro – não é de repente que a gente acha essas coisas, é um de repente meio forçado. Entretanto, observemos uma coisa que está indicada neste desenho.
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Psicanálise & Polética
Se Velázquez está vendo esta cena diante de um espelho, ele tem que ver o que vemos aí no desenho, e não o que está no quadro, que é o avesso daquilo. Para ele pintar este quadro, ele está vendo o seu avesso. Por que ele não pintou igual? Penso que tudo isto tem alguma razão. Para se dizer que há um espelho em frente, há que se dizer que ele não está vendo assim como no quadro, ele está vendo pelo avesso como no desenho. O que está no quadro é o avesso do que está no espelho. O que ele vê no espelho é tudo isso, inclusive o reflexo do Casal Real. Basta ele ficar no ponto de vista dele, que ele vê tudo. O rei e a rainha não estão ausentes, só que só aparecem, no quadro, refletidamente. É preciso que Velázquez veja ao contrário. Isto é fundamental no raciocínio. Deixemos em suspenso, por enquanto. *
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O rei e a rainha estão ali, no mesmo plano do espelho E / 1, conforme a planta baixa e o desenho, talvez em simetria ao Aposentador que está na porta
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em frente, e aparecendo necessariamente naquele espelho do fundo, E / 2, que
Velázquez vê do outro espelho, E / 1. Tratam-se, então, de dois espelhos. A questão
que Velázquez está estudando aí é O Espelho. Posso dizer isto baseado em, pelo menos, mais dois de seus quadros.
Velázquez: Jesus em casa de Maria e Marta
Velázquez pintou um quadro chamado Jesus em casa de Maria e Marta. É só abrir o Novo Testamento, Lucas, X, 38, para saber do que se trata. Nesse quadro relativamente grande Velázquez mostra duas mulheres em afazeres de cozinha, com um bodegón na frente, uma natureza-morta e, no canto, à direita, lá no cantinho do quadro, há um espelho, no qual vemos Jesus sentado, dizendo a prédica que ele fez para Marta e Maria. Duas mulheres que estão à frente dele, e um espelho, ali adiante, onde está se vendo Jesus falando com Marta e Maria. Para Velázquez pintar este quadro, ele tinha que estar em frente às duas mulheres, que estão junto à mesa com o bodegón. Portanto, aquele espelho está à sua direita. De onde ele está vendo, do seu ponto de vista, temos que considerar que os três personagens que aparecem no espelho, Jesus, Marta e Maria, encontram-se dentro do atelier em que ele está pintando lá à sua direita, no canto do atelier, para que ele possa vê-los refletidos, daquela
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forma, no espelho, conforme está o Esquema 5, com a planta baixa. A composição deste quadro é, pois, idêntica à d’As Meninas, que mostrei há pouco. Mudou apenas o tamanho do espelho. É uma composição que ele repetiu, só que, da primeira vez, ele se colocou ali, pintou as duas mulheres e mais o que estava vendo no espelho. Depois, da segunda vez, ele se colocou lá, diante do espelho, pintou o que nele via e retirou o resto que, para ele, não interessava.
Esquema 5
Era um hábito de Velázquez fazer esse tipo de jogo com o espelho. É o caso de outro quadro, Vênus no Espelho, que considerarei com mais detalhes depois, e que também é tido como um trabalho importante em sua obra. Em suma, é a mesma coisa. Ele pinta Vênus e Cupido, e um espelho que Cupido segura, no qual vemos refletido o rosto de Vênus. Isto é, então, uma constante. Ele repete a composição, só que, da última vez, com As Meninas, ele tirou o resto e ficou só com o que aparece no espelho.
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Mas, voltando, o que está em Lucas, X, 38? Jesus entrou numa cidade e uma mulher chamada Marta o recebeu em sua casa. Ela tinha uma irmã chamada Maria que, assentando-se aos pés do Senhor, escutava sua fala. Marta estava atarefada num serviço complicado, veio a Jesus e disse: “O Senhor não acha nada de minha irmã me deixar sozinha fazendo o serviço? Diga-lhe que venha me ajudar”. E Jesus lhe respondeu: “Marta, Marta, você se inquieta com um bocado de coisas, mas só uma coisa é necessária, e foi Maria quem escolheu a melhor parte. Essa parte não lhe será tomada”. É interessante Velázquez se incomodar com essa passagem da Bíblia. Marta por um lado, a favor de certa lei, da regra, do trabalho, do comportamento em casa. Maria, por outro, preocupada com outro tipo de Lei, com alguma coisa Outra. É isto que Velázquez vai representar aí n’As Meninas. Retomaremos isto. *
*
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No livro de Rosine e Robert Lefort, Naissance de l’Autre, encontramos coisas muito interessantes. Estão tratando de duas meninas psicóticas, de um ano e pouco. Uma, Rosine diz que não é psicótica, mas eu digo que é. Ela não conseguiria encontrar aquele momento no trajeto da criança, sem encontrar uma estrutura psicótica antes. Não posso garantir que se tratasse de uma psicose porque a menina entrou no processo. Mas entrou no processo mediante o trabalho de Rosine e, não, sozinha, por obra e graça de sua vida quotidiana. Depois que aparece, digamos, o deslizamento da psicose, não se pode mais garantir que fosse uma psicose. Mas, para mim, trata-se de uma psicótica que “entrou na linha”, e de outra que não entrou. É claro que fica ambíguo porque posso dizer que se tratava de uma criança que não tinha entrado no simbólico ainda e, através do trabalho de Rosine, entrou. Mas duvido muito que, sem esse trabalho, a criança entrasse, dado o que Rosine nos apresentou dela. Prefiro ficar com a idéia de que o “acabou-se o psicótico” tem que ser pensado.
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Mas o que importa, o que é extremamente interessante no percurso de hoje, é que Rosine e Robert Lefort conseguem mostrar duas posições de sujeito, na sua emergência, diante do real: - A primeira, é uma posição em que a criança se depara com o real numa espécie de “linha direta”. A criança não consegue situar, por exemplo, a ela, Rosine, que está com a criança no colo, etc. Embora a criança perceba o real do seu corpo, não consegue situar o lugar do Outro e estabelecer alguma relação significante com esse Outro que Rosine seria para a criança. Ao invés de situar o significante por aí, essa criança olha através de uma janela envidraçada, esbarra na vidraça, não pode passar, mas se interessa pelo real, que está lá fora, sem fazer ligação desse real com o Outro, uma postura simbólica. - A segunda posição é a que foi tomada pela outra criança, que diferentemente da primeira, conseguiu defrontar-se, não com uma janela envidraçada, mas com o espelho. Mediante esse espelho, nesse estádio, esta criança consegue situar o corpo da analista como Outro, localizar o significante e, daí, poder trazer, situar o furo que há no corpo do Outro – coisa que a primeira criança não conseguiu – e, mediante essa relação especular, trazer o furo para o seu corpo. Nesse momento, por ligação do real com o significante, consegue estabelecer-se como sujeito, o que a primeira não conseguiu. Esta, apenas olhava para a janela, para reais, ou, mesmo, para significantes que ela pudesse proferir, mas que não estavam relacionados, através da borda do espelho, com esse lugar do Outro. E assim, não situou um furo, no seu corpo, como o furo que o Outro porta no seu próprio corpo. Estou fazendo apenas um resumo. É preciso ler o livro para entender melhor. Mas o que interessa, neste caso, é que Rosine e Robert fazem a dialética da janela com a sua vidraça e do espelho com o seu vidro. Nessa topologia, o importante é que o espelho, como uniface, como quero situar, me promete um lado outro que é puramente virtual. Nessa promessa, sendo ele uniface, acaba, mediante minha relação com o Outro, revirando o que está lá para cá, me entregando o real do lado de cá, e me situando em relação com o Outro do lado de cá, me permitindo ser introduzido ao significante por esta relação. É aquilo
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de que já tratamos na consideração do estádio do espelho. Ao passo que olhar através de uma porta, de um furo, é perder-se no real, sem situar-se como sujeito. O importante é a dialética que existe no espelho enquanto tal, a dialética que existe quanto a essas estruturas na banda de Moebius, que é a dialética de um furo com sua borda, entre o furo e a borda. Se tenho uma superfície plana, ou uma superfície qualquer, e tenho nela um furo, esse furo liga imediatamente os dois semi-espaços, o que me permite atravessar de um para outro lado. Mas posso pôr uma vidraça naquele furo, onde vou quebrar a cara, ou a vidraça. Posso também pensar o espelho sem o vidro, pura superfície refletora. Mas, se o considero é a borda e não o furo, vou poder percorrer a superfície, borromeanamente, segundo nosso amigo Pierre Soury, através dessa borda, suas duas faces e considerar a possibilidade de reviramento de uma face para um lado, e outra para o outro. O que importa é que a borda do furo é um lugar de reviramento de um espaço no outro, de uma face na outra. Considerar essa borda, esse “liame”, como corte, é poder me situar diante do real, diante do imaginário dessa passagem, de avesso para avesso, que é uma relação biunívoca aparente, e me situar, também, como percorrendo essa borda no lugar da marcação, de repetição, onde entra o significante para articular o simbólico. É o que tratei um pouco num texto sobre Guimarães Rosa. O que me interessa é que Rosine e Robert saíram de uma prática com duas crianças, como eu saí de uma prática com um texto. É, também, essa dialética do espelho com o furo, do espelho com a janela, do espelho com a porta, que vamos encontrar aqui n’As Meninas, de Velázquez: o espelho e a porta, a borda e o furo. 10/JUN
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V.v.V.
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V.v.V. Deixei com vocês uma batata fria. Não foi uma batata quente porque, me parece, consegui explicar alguma coisa. Batata fria porque esperei que vocês cozinhassem a batata que Velázquez nos entregou. O interessante, como veremos, é a função da alíngua, nas possibilidades de articulação que o sujeito acontece produzir. A língua de Velázquez, no sentido mais geral, era o espanhol e era, certamente, o português, na sua origem familiar. Assim como a nossa língua é o português, ou seja, o brasileiro. Assim como a língua de Picasso, por mais francês que ele se fingisse, era o espanhol. Acredito que é por esta razão que Picasso nos dá o testemunho mais importante a respeito daquela reflexão especular dupla, que tentei apontar na construção d’As Meninas: há um espelho diante de um espelho. Isto porque em espanhol assim como em português, diferentemente do francês, do inglês e de outras línguas, há na palavra REAL a feliz equivocidade de realeza e realidade. Real, de rei, rex/regis em latim, vai dar royal em francês e royal em inglês, por exemplo. Real, de coisa, res/rei em latim, dá réel em francês e real em inglês... sendo tudo real em espanhol. É mediante essa equivocidade que Velázquez – certamente no que ele freqüenta essa língua – situa o lugar do espelho por outra equivocidade que funciona também em espanhol como em português: a de côrte e córte. É pela realeza e/ou realidade de Corte Real, aonde a diferença se instala entre Rei/Rainha, como indicação de Nome do
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Pai e de castração, em suas duas vertentes, masculina e feminina. Não podemos desprezar a presença da alíngua aí, talvez, estruturando não só o anedótico do quadro mas indicando o significante que importa. *
*
*
Vamos deixar um pouco de lado este quadro d’As Meninas – mantendo-o, contudo, no horizonte – para questionar sobre outras coisas, tanto na obra de Velázquez quanto na teoria psicanalítica. Por isso o título da sessão de hoje me ocorreu dever ser aquele V.v.V., para abreviar uma ida e um retorno. Quero com isso dizer que o que está, antes mesmo da construção d’As Meninas – ou Corte Real, como quero que seja o quadro intitulado –, nesse outro quadro, Vênus no Espelho, V.v.V., vem simplesmente indicar o que me parece ser sua construção. O que me importa aí é a posição do espelho que reflete o rosto de Vênus.
Velázquez: Vênus no Espelho, 1648/51
Velázquez pinta este quadro de algum ponto de vista situado mais ou
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V.v.V.
menos na margem esquerda do quadro – ponto V, no Esquema 6, abaixo. O quadro representa Vênus e Cupido: Cupido segura o espelho onde se vê o rosto de Vênus, que está deitada de costas para nós.
Esquema 6
Vários autores suspeitam, e até querem garantir, que Velázquez teria se inspirado, para a postura corporal de Vênus, num famoso e conhecidíssimo trabalho que está numa das galerias do Louvre. Uma escultura antiga, talvez de Roma, que se chama O Andrógino. Trata-se de uma bela mulher, deitada, mais ou menos, nessa mesma posição de Vênus de Velázquez, com suas tetas, etc. Só que, quando damos a volta, vemos um pênis repousando no chão. É claro que Velázquez, como bem-pensante, não acreditava em andrógino, mas devia estar interessado na diferença sexual, que veremos situada n’As Meninas, na função de Lei da Diferença, ou Lei simplesmente, bem como nesse quadro da Vênus.
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Psicanálise & Polética
É preciso lembrar, em cada caso, que Velázquez era, às vezes, apelidado “realista” – coisa que ele não me parece ser –, precursor de Courbet, etc., justamente porque queria o modelo lá na sua frente, funcionando com as regras do geometral, para depois dar sua deformadinha... Ele exigia a frequência do geometral, do ótico, do retiniano. Então, podemos supor que respeitando a ótica geométrica, talqualmente n’As Meninas, ou conforme nosso Esquema 4 anterior com a planta baixa deste quadro, para ele pintar o rosto da Vênus, era preciso que ele visse esse rosto espelhado no espelho. Portanto, ela, Vênus, não se vê nesse espelho. Qualquer pessoa que lida com câmera de televisão ou de cinema sabe que, para filmar uma pessoa diante de um espelho, é preciso que esta pessoa não esteja se vendo nesse espelho. É um trabalho difícil o ator representar que está se vendo quando não se vê, pois, do contrário, apareceria a câmera lá no espelho. Logo, por esta simples lei da ótica geométrica, ou seja, ângulo de incidência igual a ângulo de reflexão, concluímos que Vênus não está se vendo no espelho. Cupido, no caso, apresenta um espelho que nos engana ao pensarmos que é para a Vênus se ver. O espelho é para Velázquez ver Vênus. Velázquez vê a Vênus, como “vovô viu a uva”– é uma cartilha fundamental. Para que Velázquez veja Vênus – como ele de fato vê para poder construir este quadro – é preciso que, na mesma composição ótica, Vênus veja Velázquez. Por isto que só coloquei as iniciais V.v.V.: uma ida e um retorno. Neste quadro, Velázquez nos propõe um enigma em que, para cada um que venha a se colocar como observador – e o observador está sempre no lugar de Velázquez, no seu ponto de vista, ocupando, portanto, o lugar de Velázquez –, é preciso que esse observador veja Vênus e, supostamente, esteja sendo visto por ela. Velázquez não está brincando em serviço, ele está trabalhando com a cabeça: cosa mentale. É, supostamente, de uma posição masculina – uma vez que todo quadro, segundo Lacan, enquanto objeto, enquanto quadro, é situado no lugar do objeto a, ou tentaria ocupar esse lugar, na medida em que compõe um olhar – que eu
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V.v.V.
sapremo o quadro como objeto a. Velázquez nos obriga a ver o rosto do outro, que, no caso de ser Vênus, Afrodite, é Outro mesmo, o lugar do feminino. Só fui até aí neste quadro, mas esta questão é importante porque, como veremos, vai se repetir n’As Meninas. Há, ainda, uma coisa para observarmos nesse quadro, uma questão que deixo em suspenso: para quem, para onde olha o Cupido? Não é para o espelho. Para Velázquez também não é, pois o olho do Cupido não acompanha o olhar do observador. Tentei, no Esquema 6, traçar a direção do olhar de Cupido e penso que ele olha exatamente para o lugar onde há falta. Ele olha para a chamada “xota”, para o púbis, mas não o vê, porque há um pano na frente. Pela reprodução, fica difícil resolver estas questões. Seria preciso medir o quadro real, pois ainda podemos supor que há um ângulo de incidência, da direção do olhar de Cupido, sobre o olhar da Vênus espelhada. Isto, de tal modo que, se houvesse um espelho no púbis de Vênus, Cupido veria o quê? Não sei. Aí é que teríamos que pensar. A questão está em suspenso, pois, do ponto de vista da pintura, podemos dizer que Cupido veria o rosto de Vênus, mas, do ponto de vista do espelho, não seria isto. Há uma reflexão especular desse Cupido com dois espelhos: um é o que ele segura, o outro é o que estaria no lugar da falta, só que ele não a vê porque há um pano na frente.
Esquema 7
Para caminharmos mais um pouco, ainda que por mera indicação, é preciso pensar este V.v.V. como interseção: Velázquez vê a Vênus e Vênus vê Velázquez. Este olhar (v) é uma espécie de interseção desses dois lugares (V, V), um objeto a, talvez, como suspensão. Está sendo equacionada aí, no quadro, lentamente, por Velázquez, até chegar às Meninas e até as Fiandeiras, que
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veremos adiante, a questão da Lei, sobre o lugar onde ela realmente opera, que é o lugar da diferença – em última instância, diferença sexual. Trata-se, portanto, para Velázquez, de tentar inscrever, em termos pictóricos, aquilo que, suponho eu, Lacan escreveu formularmente como as “fórmulas quânticas da sexuação”, com seus dois lados. *
*
*
Neste momento, vou ter que perguntar à teoria psicanalítica, naquilo que ela nos ofereceu até agora, para tentar endereçar isto. Do ponto de vista da diferença sexual, uma vez que o homem nada tem a ver – não há relação de espécie alguma – com uma mulher, são completamente diferentes, é preciso reconsiderar isto, para que, outra vez, se pergunte a respeito dessa relação e de como Velázquez trataria a questão. Num esquema que tentei produzir n’O Pato Lógico, a respeito da sexualidade humana comparada com a do animal, indiquei que, no caso do ser falante, ao invés de ele encontrar uma figuração pronta que lhe servisse de imaginário, correspondente a uma inscrição real da sexualidade, ele encontra algo da ordem do espelho, um puro corte, uma pura superfície refletora do que ali pintar. Entretanto, ali vai se instalar, como um filme postiço, artificial, um artifício, uma letra qualquer que situa o sujeito numa postura quanto a seu sexo. Agora, eu diria que, se refletíssemos em torno das fórmulas quânticas, talvez pudéssemos pensar na existência, para o homem e para a mulher, desse furo, dessa falta de marca da sexualidade, como espelho, do mesmo modo para os dois, metaforizando, no caso do homem, como alguma coisa que segurasse a barra desse furo mais cerradamente, digamos, do que no caso da mulher. Fazendo metáfora de que o furo seja um espelho, o que me interessa é a borda. No lugar daquele furo, então, uma vez que considero a borda como a mesma topologia do espelho, estou imaginando ali um espelho, nos dois lados.
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V.v.V.
Mas, naquilo que Freud diz a respeito da castração, no tipo de construção da castração, há uma figuração muito mais cerrada em H do que em H’. Na medida em que se substitui aquele espelho, ele continua espelhado por uma espécie de filme, ou coisa assim meio transparente, que viesse como embasamento sintomático – pura metáfora, para situar a coisa. Mas é como se o espelho do homem fosse da ordem do opaco, ele se tornaria opaco, enquanto que o da mulher, por mais que fosse marcado continuaria sendo reflexivo, polido... nisso pelo menos as mulheres são mais polidas, ou costumam ser...
Esquema 8
É algo mais ou menos, também fazendo uma figuração, da ordem da construção do Esquema 9 abaixo, onde temos um espelho, E / , para o caso do masculino, e é como se tivéssemos, diante desse espelho, uma espécie de esfera, e – a esfera aqui simbolizando alguma coisa de opaco –, que se espelharia no espelho E / . No caso do feminino teríamos, diante do espelho E/ , uma esfera polida, espelhada, ou uma esfera furada, espelhada por dentro, contendo um espelho E / ’. Assim, estou fazendo a metáfora do masculino como algo opaco, que pode se espelhar, e do feminino como algo que se espelha, mas que espelha um espelho. Quer dizer, o feminino é algo que contém o espelho, como furo.
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Psicanálise & Polética
Esquema 9
Isto na medida em que, na castração, do lado do homem temos que “todo x é função fálica, porque existe pelo menos um que não é função fálica”, e, em função desse embargo da castração, o S1 espessa, ou torna opaco aquele espelho. Por isso o homem é tão arrogante na sua função superegóica, como na sua obediência ao superego. Ao passo que, no caso da mulher, há manutenção parcial pelo menos da sua referência ao furo, portanto, ao campo do Outro, S(A / ). Estou representando isto como se fosse um polimento tal que, por mais que se faça uma gravura, por exemplo, ali no espelho, opacizando-o um pouco, ele vai continuar espelhando. Não é à toa que as mulheres de Velázquez procuram freqüentemente situar-se diante de um espelho... Os tolos dizem que isso é vaidade feminina... Todo espelho é uma borda. Se minha tese de que o espelho tem a topologia da banda de Moebius, o que indiquei no texto sobre Guimarães Rosa, for verdadeira, o espelho é uma borda. A banda de Moebius enquanto superfície é a construção de uma borda, de um corte. Ela é a topologia do corte. E o espelho, enquanto superfície, tem a estrutura topológica de uma banda de Moebius e, portanto, a estrutura do corte. Por isso que, diante do espelho, sou
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bi-partido em duas aparências de realidade simétricas. Assim como um espelho diante do outro infinitiza, parte infinitamente. É por esta razão que estou fazendo a metáfora de que o feminino é mal opaco, é mais polido – digamos que o feminino é “mal castrado”. Veremos isso melhor depois. Não há um desvelamento do objeto no feminino. O que há é uma infinitização da possibilidade de desvelamento do objeto, ao passo que, no caso do masculino, há uma espécie de empolgação, de conceituação. O homem se empolga, se pega, aparentemente, ao objeto – fica espelhado. Estou interessado na partição do espelho por causa da questão que já apareceu quando tratamos da lei da infinitização ou não, na relação especular – que é o caso de que Velázquez está tratando nesses quadros. Eu disse que se um pintor, ao contrário do que fez Velázquez, representasse o quadro onde Vênus, ao invés de estar de costas, estivesse de frente para nós, teríamos um quadro onde se vê representado o quadro que se olha. Mas se nesse Quadro ele estivesse pintando, por acaso, um quadro em que ele se representa, que é o caso de Velázquez n’As Meninas, ele estaria pintando o que ele está vendo no espelho, isto é, ele estaria pintando o quadro onde está representado esse quadro. Então, se aquele quadro dentro do quadro, que n’As Meninas vemos de costas, estivesse de frente para nós, de algum modo teríamos que ver ali um quadro onde se vê o pintor que está pintando um quadro que é o mesmo que o de fora. E, se é o mesmo quadro de fora, teríamos que ver, naquele quadro de dentro, um outro quadro onde o pintor está representando o mesmo quadro. Mas se o quadro de dentro é o mesmo de fora, estaríamos vendo, no quadro, um quadro que é aquele onde o pintor está representando um quadro, etc... e assim até o infinito. Alguns artistas americanos fizeram isto: viraram a tela para o lado do espectador e pintaram aquela infinitização perspéctica para mostrar um quadro pintado dentro do quadro onde ele se pinta. Velázquez fez isto, só que, invés de apresentar a infinitização, ele resolve a questão da Lei e a diferenciação do masculino e do feminino com muito mais sutileza e precisão lógica. Estou colocando que ver um quadro onde é representada alguma coisa é simplesmente produzir essa situação do objeto a, o que eu citaria como uma
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produção da ordem do envolvimento masculino – está lá, vejo o quadro. Mas, quando o quadro se inclui, aparentemente, a si mesmo, sem nenhuma metalinguagem, no caso, temos apenas a infinitização do quadro. Isso é que estou querendo dizer quando faço metáfora do espelhamento do lado do feminino: uma mulher inclui o espelho, ela se infinitiza. Lacan diz que “A Mulher, ela não existe” porque nenhuma delas é A Mulher. Cada posição do significante é Outra. Cada significante é Outro, mesmo quando se repete. Quer dizer, não existe tautologia nem metalinguagem. Ainda, para situar este tipo de questão, eu diria que há infinitização, ou não, diante de um quadro como diante de um espelho. Suponho que uma mulher que esteja diante de um espelho, esteja sempre se infinitizando. Por isso que os tolos, geralmente homens, dizem que as mulheres se olham muito no espelho porque são vaidosas. Elas se olham porque nunca se encontram: têm que conferir a toda hora, e nunca se encontram. O imbecil, ou seja, o homem, ele olha no espelho e pensa que está se vendo, que se encontrou e acabou-se. As mulheres não são vaidosas: elas são a prova da vanidade do Homem. Estou situando este problema, que Velázquez tenta resolver num estádio seguinte ao estádio do espelho, que, estando resolvido, trata-se, então, de reconhecer o Outro. A castração uma vez complementada, digamos assim, terminada, acabada, me apresenta sempre a seguinte estrutura: sempre verei na superfície do espelho, aonde olho tudo, ou seja, no lugar do sujeito, sempre verei o Outro. É claro que o imbecil vai ver a si mesmo, porque ele é Narciso. Então, como veremos no final, no quadro d’As Meninas, assim como já o vinha preparando desde esse quadro da Vênus, Velázquez consegue construir o lugar do espelho, duplicando a função, que me parece ser a de uma obra de arte, que é a de construir um espelho. Além da construção do próprio quadro, que já se tornou anedotário, ele também constrói para si o lugar do espelho. O que vale dizer que o ato de inscrição da pintura – não o Sr. Velázquez, não é isto que interessa –, o ato-poético, seria o mesmo que um ato de análise. Portanto, é lugar do espelho. Chegaremos a isto com calma. *
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Continuaremos pensando a questão da diferença sexual para ver como ela vai funcionar na obra de Velázquez. Referi-me, sessão passada, à dialética entre a porta e o espelho, aproveitando-me do trabalho dos Lefort, Naissance de l’Autre, onde está sendo tratada a dialética da janela e da vidraça. Como disse, fiquei bastante impressionado na medida em que, por outra via, este trabalho me dá esteio para o que tentei demonstrar no texto sobre Guimarães Rosa. Parece que, tanto eu como eles, achamos a mesma coisa. Há, nesse texto, uma coisa muito bem sacada nas suas conclusões, que é a reflexão sobre o momento de instalação do significante sobre o real. Eles chegam a dizer que a psicose viria não de uma falta, de um não surgimento de significante, mas de uma falta de articulação, de sobreposição de uma falta de significante ao real. Eles dizem, p. 390, algo que me pareceu absolutamente verdadeiro, que o corpo do sujeitinho, petit sujet, é, primeiro, arrolhado não por um objeto-alimentoreal, mas por um objeto tomado do Outro, do campo do Outro, quer dizer, um objeto significante, pois o Outro só se postura enquanto significante. Essa estrutura do corpo de que eles falam é uma estrutura significante, e só pode existir enquanto tal. Um pouco mais adiante dizem que logo que há Outro com seu estatuto significante de Outro, há uma perda real, que o sujeitinho inscreveu por conta desse Outro, na conta desse Outro, mediante o quê, ele mesmo, o sujeitinho, escapa dessa perda. Então, num primeiro tempo, o sujeitinho não é furado no seu próprio corpo. Em suma, os Lefort nos apontam um primeiro tempo, na inscrição significante, em que o corpo do Outro é dado como significante, de saída. O significante está lá e o sujeitinho reconhece esse campo, como campo significante. Ele pode morder aquele campo, tascar um pedaço para ele. Um objeto que ele constitui significantemente não é um alimento real, é um significante tomado do corpo do Outro, desse campo do Outro, que vem arrolhar o furo do corpo do sujeitinho, do sujeito. Esse furo, que eles chamam de “boca-ânus” – constituído como buraco do toro, que é a forma que estão considerando –, é um furo do corpo do sujeito, tomado como significante. De saída, então, nesse primeiro tempo, o corpo do Outro é furado. E, certamente, o corpo do sujeito que considera esse
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Outro, também é furado. Mas, o sujeito, para não sofrer desse furo, tasca um pedaço, tipo Adão e Eva na maçã, e se arrolha com essa importação significante do campo do Outro. Eles mostram como, por exemplo, essa importação se dá no caso da menininha que mete o dedo na boca da analista. Rosine, saca a borda do furo e depois traz esse dedo, para arrolhar sua boca. Quer dizer, com esse significante do furo do corpo do Outro, a criancinha arranca aquela borda de lá, fatura uma zona erógena do Outro, e arrolha a sua a constituir-se, também, como zona erógena. Mas, se o corpo do Outro não é, para o sujeito, furado de modo significante – o corpo do Outro, como o corpo do sujeito, como o mundo, são realmente furados, ou seja, há muitos furos reais tanto no corpo como no mundo –, de modo que o significante furo venha distanciar esses furos, ausentificá-los significantemente, ou melhor, faltando o significante que situe o furo, o sujeito cai no caso da psicose. Isto quer dizer que se o sujeito não pode considerar o corpo do Outro como furado significantemente, esse furo se apresenta no corpo dele, e no corpo do Outro, como no mundo em geral, como um furo real, do qual ele não pode dar conta, por não ter articulado esse real dos furos como significante que ele capturou do campo do Outro, e com o qual ele se arrolhou para poder, inclusive, sacar esse furo. É aí que Rosine e Robert Lefort situam a psicose, e eu estou plenamente de acordo. Vamos, agora, pensar o segundo tempo, o advento da fase seguinte, como os Lefort dizem: a estrutura especular. O estádio do espelho, aquele que Lacan articulou, vem aí nesse momento, com uma duplicação e um distanciamento. Eles chamam a atenção para este fenômeno – a duplicação e o distanciamento – com toda correção. Nesse regime, o do estádio do espelho, o sujeito se depara com a duplicação do seu furo, seja onde for esse furo – boca, por exemplo, fundamentalmente boca-ânus –, assim como com a duplicação do furo do Outro. Com o que o furo do sujeito pode ser considerado por ele, que agora está em emergência, pela intervenção do Outro, a indicar, a nomear mesmo o seu furo – por exemplo, o seu nome. Isto é, em suma, aquilo que Lacan articula no estádio do espelho. Não tem nada de novo. Tentarei representar, com uma figuração, estas fases: Na primeira fase, ou primeiro tempo, temos um furo no corpo do Outro
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(A / ) que é reconhecido pelo sujeito (S/ ). E o furo que o sujeito (S/ ) teria é suturado,
arrolhado, por aquilo que o sujeito tira do corpo do Outro (A / ) de modo significante. Então, a referência da sutura para o sujeito é o furo do Outro. Ele, o sujeito (S/ ), joga para lá o furo, para não ter o furo do seu lado. O sujeito (S/ ) só pode fazer isto tomando do Outro (A / ) um objeto constituído significantemente.
Esquema 10
Vejamos agora a segunda fase, fazendo outra figuração:
Esquema 11
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Temos aqui o estádio do espelho de Lacan e, neste caso, podemos dizer que está tudo furado. Considerando o lado (a) como real e o lado (b) como virtual do espelho E / , teremos, então, tanto o sujeito (S/ ) como o Outro (A / ) do lado (a), e o que se vê em (b) é a reflexão especular. Logo, do lado (a) o sujeito não tem como reconhecer nenhum furo, assim como não tem como reconhecer nem a sua imagem. O sujeito vai reconhecer a sua imagem porque ele (S/ ) vai poder ver o Outro (A / ) espelhado (em A/ ’), assim como ele vê ele mesmo em S/ ’. Ou seja, ele vai poder ver o Outro não espelhado e duplicado
(A / /A/ ’) e, por uma palavra do Outro, vai construir aquele Z que interessa – em
linha tracejada – como o esquema de Lacan. Assim, o sujeito vai poder constituir um lugar para si a partir dessa reflexão especular, onde, então, ele pode se reconhecer, porque o que está do lado (b) é como o que está do lado (a). A reflexão A / /A/ ’ é a reflexão S// S/ ’. Há um momento, nesse como, de aparente proporcionalidade, que vem por via significante, que é o momento de instalação da imagem própria, portanto, de emergência do EU. Em suma, é aquilo que está no estádio do espelho. É preciso reconhecer aí uma complexidade muito grande, inclusive a estrutura da castração, pois, do contrário não haveria fundação do EU. Terminada esta segunda fase de que falam os Lefort, ocorre, imediatamente após, uma terceira fase, onde vamos poder encontrar o acabamento, a completação disso que produziu o estádio do espelho. Aquele tal objeto que o sujeito tirara do corpo do Outro de modo significante, na primeira fase, aquele objeto tomado como significante, Corte Real do corpo do Outro, como significante que é, acaba por vir a situar como significante – zona erógena ou borda pulsional – o furo no corpo do próprio sujeito. Por causa dessa operação que se produziu na segunda fase, no estádio do espelho, segue-se, então, a possibilidade de situar o furo significante no corpo do sujeito, talqualmente aquele furo no corpo do Outro. Certamente que este reconhecimento, pelo sujeito, do seu furo, se dá mediante aquela relação especular e pela intervenção do Outro, o qual, agora, o sujeito pode nomear. É isto que os Lefort apontam quando a criança diz: “mamã”. Isto ocorre nesse
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momento de acoplamento do significante com o real – do lado (a) no Esquema 11. E o término disso não é senão a instalação do furo significante no corpo próprio do sujeito. Agora não é mais o real que o assusta, pois, manejando o significante do furo que o sujeito tirou do corpo do Outro, ele pode inseri-lo no seu corpo – no lado (a) – o que é a mesma coisa que instalar esse furo no campo do grande Outro, ou seja, instalar-se na ordem significante. E não se trata mais de corpo de um outro, mas, sim, do campo do Outro. Quando esse furo se instala no campo do Outro, como significante que o sujeito possa verificar lá nesse campo do Outro assim como no seu corpo, é o mesmo furo. Completando-se, então, aquela terceira fase – indicada no Esquema 11 em linha cheia – como vimos, há um significante que remete ao Outro, que está inscrito no campo do Outro. O sujeito inscreve seu próprio furo na estrutura, ou seja, no campo do Outro. E esse sujeito agora pode dizer uma frase como a seguinte: “Meu corpo é furado como o do Outro”. Esta frase me parece poder resumir o que aconteceu até a terceira fase, como que, articulando da forma que os Lefort vão articular no texto: momento de metáfora paterna, ou, simplesmente, momento de metáfora. Paternidade é esta metáfora e nada mais do que isto: “Meu corpo é furado como o do Outro”. Está inscrito o significante e a metáfora. É advento, como metafórico, do Nome do Pai. *
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Para começar a abrir questões, pergunto: não é esta a via do feminino, para qualquer sujeito? Interessante que os Lefort falam de duas meninas, o que, nem que seja como metáfora, serve. Não é esse o advento do feminino poder dizer: meu corpo é furado como o do Outro? Se eu estiver certo em dizer isto, eu estava certo quando disse numa sessão deste Seminário que “Antígona é a mais antiga”, na medida em que se entraria nessa via simbólica por função feminina. Estou dizendo tudo isto justamente porque, quando Lacan formula a diferença sexual, ele nos diz que o tal ser falante se biparte nessas duas espécies: uma espécie que é a espécie humana, a espécie Homem; e a Outra espécie.
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Vejamos, então, as fórmulas quânticas para que se possa seguir o desenvolvimento que pretendo fazer:
Esquema 12
Nessa formulação, Lacan nos coloca que, do lado H, do Homem, existe pelo menos um que diz não à função fálica (x x). Uma coisa que cria problema na cabeça de muita gente é entender se, em Algumas conseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica, Freud coloca a diferença sexual como simples diferença anatômica, e saber, então, como o tal do menino vai lidar com aquele narcisismo da castração, em torno do pênis. Mas, por algum motivo, medo da castração ou coisa parecida, o que Lacan aponta na formulação é que esse sujeito, Homem, se instala falicamente com referência ao seu S1. Ele se coloca como sujeito na medida em que pode dizer que todo x é função fálica (x x). É a partir de uma referência, de uma exceção (x x), da foraclusão do pai real (P), que o sujeito se instala como todo (x x), do lado H, como metáfora. Fecha-se o círculo. Mas as mulheres mantêm uma abertura no campo do Outro, S(A / ). É
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aí que Lacan vai inventar a bi-partição, a duplicação da mulher, dizendo: “A Mulher não existe”. Justamente porque ela tem a referência fálica – quer dizer, ela participa de ser Homem como espécie – mas, por outro lado, não deixa de manter referência ao furo, no campo do Outro. Se voltarmos a pensar naquela terceira fase, que desenvolvemos com base do texto dos Lefort, e se nos referenciarmos ao que está expresso aqui na formulação de Lacan, poderemos, então, dizer que o término daquela fase é da ordem do feminino, se é que, agora, o sujeito pode dizer: “Meu corpo é furado como o do Outro”. É preciso, ao sujeito, manter o furo no corpo do Outro como lembrança da produção da metáfora que instalou o furo no seu próprio corpo. Isto é não esquecer o furo do corpo do Outro, e não é senão a referência a S(A / ), do feminino. Se a cada momento que o sujeito reconhece o furo instalado significantemente no seu próprio corpo, ou do lado da sua posição subjetiva, ele recorda que, metaforicamente, esse furo se instalou por referência ao furo do corpo do Outro, ao furo no campo do Outro, ele se encontra na posição feminina – ele não esquece o furo no corpo do Outro. Ou seja, essa metáfora, por mais metafórica que seja, não consegue esquecer, definitivamente, o furo do corpo do Outro, que foi de onde o sujeito tirou o significante do furo do seu próprio corpo. Penso que esta é uma metáfora mal pregnante, que é, justamente, o que Lacan está dizendo nessa formulação, e que Freud sempre disse: o homem produz um recalcamento de tal ordem que ele esquece de alguma coisa. Já as mulheres, por não poderem dizer que existe pelo menos um que não é função fálica, na medida em que dizem que não existe nenhum que não seja (x x), estão suspendendo um certo recalcamento. As mulheres são mal recalcadas em algum lugar, embora não em tudo. Nas mulheres o recalcamento é meio faz-deconta porque há lembrança constante do furo de onde veio a metáfora, mal pregnante. Isto faz sentido, tanto no texto de Freud, como no texto de Lacan. Cria-se um impasse, pois o que estou dizendo é que o sujeito entra na ordem significante por uma posição feminina. E, com isto, também estou dizendo
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que a metáfora está em se reconhecer o furo como do Outro. Ou seja, por um instante, por um átimo que seja, o reconhecimento desse furo, mantendo a referência do furo do corpo do Outro, é posição feminina: é reconhecer furado o corpo do Outro, é não esquecer disto. Será que Freud disse o contrário do que estou dizendo? Ele disse que qualquer sujeito começa por uma posição masculina – de começo, todo mundo é menino. No processo de castração, o menino vai continuar menino – no masculino – porque o seu objeto continua o mesmo. Naquele “teatrinho”, Freud nos deu a figuração de que, para o menino, seu objeto continua o mesmo, ele só vai ter que abrir mão do portador, digamos assim, desse objeto, que é a mãe, e continuar com esse objeto em alguém outro, cedendo à pressão do pai, isto é, cedendo ao medo de uma castração real, castração do seu pênis. Nesse momento é que Freud faz uma articulação com a suposta anatomia. Mas Freud também diz, nesse texto sobre a diferença sexual, que as meninas vão fazer o contrário. Elas têm uma posição avessa à dos meninos, de tal maneira que vão começar pelo complexo de castração para, depois, entrar no Édipo. Pelo que fica meio flou, é um processo que nunca termina... Por isso Freud diz que os homens são muito mais propensos a se submeter à ordem moral do que as mulheres. Alguém me disse que a polícia, nessas blitzen que vem dando nos ônibus, aqui no Rio, só pede a carteira de identidade aos homens. Mulher não tem identidade. Se mulher tivesse identidade seria uma coisa horrorosa. Vocês acham que Velázquez tem identidade? Vocês acham que este quadro, As Meninas, tem identidade? Ele tem é estilo. Freud parte do masculino quando situa a castração para o menino e para a menina, de modos diferentes. Ele diz que o masculino vem antes da função de um movimento libidinal, e mais nada. A libido para Freud é, essencialmente, masculina, ou seja, é essa “vontade de morder”, tascar de lá para arrolhar para cá. Todo movimento libidinal é o que ele chama de masculino. Com essa via ele pode, me parece, situar tudo no masculino, de começo. Tendo, então, a menina que passar uma fase pela qual não passa o menino, isto é, uma
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fase de deslocar-se do objeto e arranjar um outro, ao passo que o menino mantém o mesmo. E, assim, o menino vai identificar-se com o seu rival (o pai) e a menina identificar-se com o primeiro objeto (a mãe). Isto é o que diz Freud naquele texto. Do ponto de vista da libido, do ponto de vista das articulações, das identificações, das figurações, tudo bem! Mas, eu, estou dizendo o contrário. Supondo que os Lefort e Lacan estão certos, o que estou dizendo é que, se o movimento daquelas três fases, que foram descritas aqui, é correto, o sujeito começa pelo feminino: “Meu corpo é furado como o do Outro”... Não se esquecendo deste como. Mas será que Freud estava errado? De modo algum. Simplesmente, ele estava em outro registro. Do ponto de vista da via libidinal, todo sujeito começa pelo masculino, Freud estava certo. Ele diz isto no sentido daquele movimento libidinal em que o sujeito tem colagem sobre o outro. Entretanto, do ponto de vista da inserção na ordem significante, só se pode começar pelo feminino. Vejam se conseguem juntar as duas coisas. Em termos dessa formulação que Lacan nos apresenta e desse percurso proposto pelos Lefort, aquela identificação que Freud coloca é posterior. E se, como estou dizendo, há uma via que começa pelo masculino e outra pelo feminino, isto não é senão a razão daquela embananação em que Freud cai naquele texto, a tal da bissexualidade a que ele se refere, porque são dois registros diferentes. Um é o que, a longo prazo, numa análise, você pode encontrar: a sua identificação, de um lado ou de outro, homem ou mulher. Outro, é o movimento lógico de inserção na ordem significante. Se este percurso, como colocamos, está certo, o sujeito começa referindo-se a um furo no próprio corpo, sem esquecimento do furo que é mantido no corpo do Outro. A partir daqui segue-se um processo de infinitização. Estou mostrando esse momento lógico, o furo, que pode ser tipo bocaânus. É o simples fato desse reconhecimento, do furo, que salva o sujeito de ficar na psicose. Seguindo o processo dos Lefort, é esta a lógica. Não é preciso ainda, neste momento, nenhum reconhecimento anatômico, genial, deste tipo, para que o Outro se funde em diferença para com o sujeito, marcando a posição de significante, fundando a estrutura. Quer dizer, qualquer sujeito começa sua
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inserção significante de maneira feminina, e sua inserção libidinal de maneira masculina. E isto é bissexual – porém, cada um está num registro. Em suma, Freud está certo e Lacan também – são dois registros. Lacan não disse isto, eu é que estou dizendo em cima do que, suponho, Lacan mostrou. Como eu disse, então, esse terceiro momento é quando o sujeito resolve a relação especular: funda o furo do Outro, funda o seu furo e emerge como sujeito que pode dizer Eu em função do reconhecimento desse furo como significante. Isto é suficiente para marcar a diferença significante, o significante com a diferença funcionando. *
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Vou, agora, dar mais um passo, para ver se acham outro furo. Como o sujeito vai passar, eventualmente, dessa postura que seria feminina, para qualquer sujeito, no começo, para uma postura masculina? Como é que ele vai passar? Não na via libidinal, a de Freud, mas nesta via da inserção significante, a de Lacan. O que será preciso para um sujeito, ao contrário do que acontece, segundo Freud, com a menina – para Freud é a menina, o feminino, que tem um segundo tempo, mas agora é o menino, o masculino –, encontrar um segundo tempo para se tornar masculino? A construção é cruzada, é reversa. Do ponto de vista libidinal, tudo é menino e um deles vai passar para o outro lado, feminino, numa segunda instância, num segundo momento. Mas, do ponto de vista da inserção significante – Lacan e os Lefort –, tudo é feminino, e um deles, o masculino, vai ter que passar para o outro lado. Como isto pode acontecer? Em vista disso que foi proposto, ofereço à discussão um quarto tempo, ou quarta fase. A via masculina só pode vir depois, mediante alguma coisa que vou tentar chamar de “encarnação” do falo. O falo não é senão aquele significante que se instala mediante a metáfora paterna propiciada no estádio do espelho. É o falo como significante de haver significante, aquilo que Lacan veio ressaltar: o falo é puro significante da diferença. Então, findo o terceiro
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tempo, ele já está inscrito de algum modo, operando como diferença, de furo para furo.
Esquema 13
Mas há a possibilidade da encarnação deste falo, pela presença – agora é que vem a questão do anatômico – real ou imaginária, do pênis. Seja a presença real no corpo próprio, do pênis, ou seja esse real suposto e imaginarizado, ele dá garantias para a encarnação desse falo no corpo próprio – não esse corpo tornar-se o falo, mas alguma região desse corpo tornar-se fálica –, o que vai, talvez, até possibilitar a instalação de um feitiço. É a referência imbecil. O falo agora é referido a S1. Referido é instalado, isto é, encarnado no corpo. Isso que Salvador Dali chamou O Grande Masturbador se escora, ainda por cima, na encarnação do falo que é produzido, e acaba por tornar-se propriedade do sujeito, no sentido do verbo ter. Encarnado no seu corpo um falo, o sujeito diz: “Eu tenho o falo”. Certamente que não é o falo enquanto significante, mas enquanto significante agora ancorado, sintomaticamente ali no corpo do sujeito. Isto, ou porque o real assim se oferece, ou porque o sujeito construiu esse falo sobre seu corpo. Estou, como já disse, considerando agora uma quarta fase, mas o momento inaugural é aquele, na terceira fase, de um lugar subjetivo. É a partir daí, a partir de um S1, que o sujeito vai encarnar ou não. A função mulher estaria num limite dessa inauguração de um certo
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sujeito. Por isso é que eu disse que as mulheres não têm identidade. Isto não é uma ofensa, é um elogio. As feministas acham isto uma ofensa porque não querem ser mulheres, querem ser homens. O que irrita na sapatice feminista é que elas não querem arcar com a diferença. Elas querem ser homens, querem ser iguais aos homens, o que é uma merda absoluta. A referência idiota, então, ainda por cima, se escora nesta encarnação do falo, que é uma espécie de feiticização sobre o corpo ou, pelo menos, uma instalação sintomática enxertada ali no corpo. Vem, então, o verbo ter como garantia para a sua relação com o significante fálico. Com esse “pau na mão” – a expressão tem que ser assim –, o sujeito pode agora arrolhar, ainda que como promessa, o Outro. Aí ele vira homem. É o inverso daquela posição original, da primeira fase. A posição masculina invoca esse falo encarnado para, como promessa, pelo menos, arrolhar o Outro, suturar o Outro, produzir uma sutura no campo do Outro. É isto que Lacan vem nos dizer naquelas formulações. Cria-se aí um problema sério porque, ao mesmo tempo que a castração é condição sine qua non para se suspender o narcisismo, há uma função narcísica posterior, e isto deixa muita gente embananada. Há uma função narcísica de invocação de um falo tido, mediante o qual o sujeito vai poder fechar o círculo e dizer: todo homem é função fálica. O corpo do Outro é suturado pela empolgação do falo. Empolgação no sentido de conceito, que toma o falo enquanto significante encarnado e capaz de suturar, arrolhar o corpo do Outro. Ainda que não esteja arrolhando o tempo todo, a qualquer susto, o que faz um bom macho? Oferece o falo, arrolha o campo do Outro, e está encerrado. Ele segura o tal do pau, o tal do cetro ou coisa que o valha, e o oferece como uma espécie de ato apotropéico. O Outro se cala. Afinal, não é esta a postura que a mãe do psicótico exige do seu filho, quando tenta arrolhar, suturar, seu próprio corpo? Ela, que está na posição de ser Outro furado, para com o filho? Essa postura que ela exige, não é com o falo que o filho tem, mas com um falo que o filho é chamado a representar, a ser. Ela se masculiniza porque pega o filho como se fosse o falo e tapa o buraco. Ele tem que ficar psicótico, pois não encontra o furo no corpo do Outro.
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O que diz o homem se a mulher pode dizer: “Meu corpo é furado como o do Outro”? Basta acrescentar uma pontuação e é o que ele diz: “Meu corpo é furado: como o do Outro”. Agora o verbo é comer. Por isso os homens pensam que comem as mulheres, quando, na verdade, é o contrário: elas é que andam comendo os homens por aí – elas é que são furadas. Então, com essa pontuação – “Meu corpo é furado: como o do Outro” –, o imbecil passa a vida pensando que tem o falo e que arrolha, com a oferta desse falo, o corpo do Outro. O corpo do Outro sendo inteiro, não tem mais problema: quando o furo dele coça, ele come o do Outro. Com isso ele fica espedaçando em pedacinhos, momento em que a posição masculina vai poder considerar o Outro, não como tal, mas como objeto. Neste momento é que aquele a que fica na meia divisão entre as duas posições das fórmulas quânticas – naquela reta que chamei de bussetriz, a bissetriz do ângulo formado pelas duas posturas femininas –, quando o Outro é tomado como objeto, vai pintar para o homem como esse outro que ele “come”. Maternidade é produção de psicose. Felizmente, há intervenções outras que não permitem que ela sempre se dê assim. Lacan já disse que “mãe é jacaré”. A maternidade é em si essa maternidade que se produziu simbolicamente nesse percurso que fizemos com base nos Lefort e Lacan, ou se não, é a produção da psicose. “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração...”. O filho é o falo da mãe. Ela tem aquele falo. Quer dizer, ela não tem o direito nem de ser mulher. A mulher tem o direito – porque funciona assim – de dizer: “Não tenho falo, sou falo enquanto significante, enquanto furo”. Mas o homem, encarnando o falo sintomaticamente, diz assim: “Tenho o falo”. Então, cadê a anatomia? Num outro texto, Freud repete Bonaparte: “A anatomia é o destino”. Ele não está errado dizendo isto porque a anatomia é o destino, sim. Resta saber o que ele está querendo dizer com isto. Temos que ler Freud com o que ele produziu e não com o anedotário da leitura pedestre, se não pederasta. A anatomia é o destino – resta saber qual. Pois, na verdade, a anatomia é o des-tino. O verbo ter é o que rege o processo masculino, é ele que paratodiza. Sem o verbo ter não se pode paratodizar. Só posso dizer “todo homem é istoassim-assim”, porque tem isto. Sem esse ter não há paratodização. Já o verbo
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ser não pode paratodizar, porque não passa por captura de objeto, ele só passa pela palavra. A palavra é infinitizante: ninguém é. Mas acontece que quando alguém diz que “é isto-assim-assim”, no regime da sua boçalidade, está dizendo que tem tal configuração imaginária. É como dizer: “Eu sou um objeto”. Qualquer um pode ter, basta pagar o preço. Se uma pessoa pode dizer: “Sou professor”, é porque a universidade pode cobrar isso dela, e ela pagou para ter. Ou, se não, aluga-se um pouquinho... a prostituição é universal. Entretanto, o verbo ser designa o que passa pela fala, ou seja, pelo que Lacan chama de “obscurantismo do mal-entendido”, e não encontra esteio sobre o corpo. Mesmo assim, é claro que a anatomia é o destino, como Freud inventou. Só que, ao invés disso, digamos que “o a, na tomia, é o destino”. Agora fica certo. Tomia é partição, logo, na partição há um lugar para o objeto a que, na tomia, é o destino. Se a leitura que Lacan fez de Freud está certa, e é da suposição dessa correção que partimos, o que Freud tentou pensar como anatômico – porque é anatômico onde a diferença, digamos, evidentemente, ou pelo menos, geometralmente, visualmente, pinta – vai dar para ele, em última instância, a distinção de masculino e feminino, a qual recai, ulteriormente, nessa postura formulada por Lacan: as fórmulas quânticas da sexuação. Não se trata de pênis, trata-se de Falo. Em se tratando de falo, quando a referência do sujeito é o gozo fálico, quando este sujeito é o masturbador que empolga alguma coisa como sendo encarnação do falo, ele constrói essa anatomia das fórmulas de Lacan que é da ordem da estrutura do inconsciente. O sujeito constrói, por cima de qualquer aparelho da anatomia que rege esse discurso científico, um órgão real, porque é sintomático, sobre o qual ele esteia o gozo fálico, que passa a ser a sua referência. Se no lugar daquilo que Freud chama de anatomia, menino/menina, instalarmos, não um pênis mas, uma referência fálica, de gozo fálico estrito, veremos o que ele disse ficar perfeitamente correto: essa anatomização que dali se destaca, é o destino. Isto que dizer que, ou o sujeito se escora no gozo fálico e fica imbecil, ou ele não se escora só no gozo fálico, e portanto nem no gozo fálico, pois se escora também no furo do Outro, o que acaba embaraçando
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completamente, desfigurando completamente o gozo fálico, e ele dá a louca. Não tem saída: ou se é imbecil, ou se dá a louca. Isto é que são homens e mulheres, o que nada tem a ver com macho e fêmea, muito menos ainda com ter pênis ou não ter pênis. Quero, com isto, frisar o que é de interesse para essa quarta fase que propus. É preciso conseguir coalescer em cima de um sintoma, que é referência ao gozo fálico, sutura do corpo do Outro, ainda que seja oferta desse falo, como para tapar o buraco do Outro. É preciso conseguir, repito, articular essa ordem sintomática, para se tornar homem. Digo “para se tornar”, pois mulher é o mais antigo para o sujeito. É nesse interstício, no que se faz a diferença, que vai ter que vigorar a Lei. A lei do homem é que “primeiro você dá, depois você come”. E há o artifício lévi-straussiano que diz que “primeiro você recebe uma mulher, para depois dar uma filha”. Mas o certo é que, primeiro você cedeu a mãe, primeiro você-deu a Outra, para conseguir uma outrinha, isto é, uma-zinha, ou um-a-zinho. A lei do homem se configura nesse fechamento que, suturando o furo do Outro, legifera a partir de uma ordem instaurada por cima da Lei. Essa ordem não é a Lei – é aqui que vai ser a nossa briga. Vai-se instaurar uma ordem do lado do pensamento, digamos assim, masculino, do lado H, por cima do vigor da Lei, suturando o Outro. E a Lei não é isto. A Lei vige na diferença que faz Velázquez ver a Vênus e Vênus ver Velázquez. Não estou pedindo que se exterminem os homens. Seria um absurdo, acabava a diferença. Querer que todo mundo seja mulher é o mesmo que querer que todo mundo seja homem... são as feminista de um lado e Deleuze do outro. Afinal de contas, se entramos direto na maluquice do feminino, fica muito difícil de se instalar qualquer coisa. As mulheres, por falta de identidade, vão fazer uma zorra, e não sei se a zorra sustenta o corpo... É meio perigoso. Viver da zorra pode acabar com a existência física. É preciso zelar pela diferença. É preciso lembrar ao homenzinho que o Outro existe, e furado, graças a Deus! Assim como, com referência ao Homem, as mulheres podem encontrar, ainda que momentaneamente, alguma identidade
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para se situarem no campo de arrumação de algum sistema, sempre provisório, de sobrevivência. Mas acontece que os que optam pelo lado feminino pensam que podem fundar uma esquizofrenia generalizada... Quero ver o que sobra disso. Enquanto isso, os que optam pelo lado masculino ficam querendo fazer – como muitos estão fazendo – a ditadura, se me permitem dizer, do caralho. “Essa ditadura é do caralho!”, é o que pensam. A questão do masculino e/ou feminino é uma opção na medida em que existe pelo menos um discurso que pode nos lembrar disso, e que não custa nada tomar um certo contato com ele – chama-se: discurso psicanalítico. Pois se a diferença está aí, se ela está na cara, se ela funciona, depende da intencionalidade do sujeito considerá-la ou não. Isto, eu digo, em nível político. Não é não-recalcamento o que se dá nas mulheres, é uma duplicação. Se Freud coloca que, nas mulheres, há um recalcamento falho, não realizado, uma instalação falha do superego, isto é excelente porque, se não, seria a animalização total do falante. Esse bicho, o Homem, se deixar, se o Outro não estiver lá para encher o saco dele, ou, pelo menos, proporcionar-lhe lesões que ele não consegue resolver, a não ser se masturbando, que é o que ele faz o tempo todo, ele fica numa ótima. Por isso Freud situou a estrutura do social – certamente foi o que ele pôde pensar – como estatuto homossexual masculino. É o que Lacan também diz, fazendo um jogo com os dois m de homme, em francês: o estatuto do homem é o estatuto do homossexual, hommosexuel. Nada propicia melhor melhor uma homossexualização generalizada do que o apagamento da diferença que, de certo modo, já vige na tentativa de suturação do Outro. O fato de estar do lado masculino já é um vigor pederástico: os homens são homossexuais por construção. Mas, eis senão quando, mesmo sendo homem, e isso é uma coisa espantosa, eles amam. Quer dizer, ficam afeminados, ou feminilizados. Aí comparece o furo do Outro. Por mais que ele ofereça o falo, o outro não fala que está satisfeito. É nessa questão que temos que ver o vigor de uma obra como a de Velázquez. No regime do desejo, o homem está sempre oferecendo o falo, e
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supondo que o Outro vá satisfazer-se, suturando-o com esse falo encarnado que ele oferece. Mas, se o homem passa da sua essencialidade (x x) para um outro movimento que não existe necessariamente e, muito menos, o tempo todo (x x), ele passa a vigorar no regime do amor. Esse regime, simplesmente, lhe mostra o furo do Outro: S(A / ). O amor do homem seria uma espécie de barateação do falo. É quando o falo pode ser um barato. Com o amor o falo “brocha”. Por mais que o sujeito o ofereça, ele poderá até satisfazer, na ordem fálica, um outro, mas não tapa o buraco da infinitização. Amar é reconhecer a diferença. Não se pode, absolutamente, confundir este amor de que se fala na psicanálise, com um outro, de que também se fala, que se chama amorpaixão. Esta questão está muito bem situada no Seminário 1, de Lacan, p. 314 s., (ed. bras.), onde se lê que “o amor distingue-se do desejo, considerado como relação-limite que se estabelece de todo organismo ao objeto que o satisfaz”. Lacan está mostrando a distinção exata entre o amor e desejo. Desejo, nessa organização-limite entre organismo e esse objeto satisfatório. Isto “porque seu ponto de mira não é a satisfação, mas o ser”, que jamais se completa. “É por isso que não se pode falar de amor senão onde a relação simbólica existe como tal”. “Meu corpo é furado como o do Outro”. O homem se essencializa no desejo, fazendo aquela pontuação: “Meu corpo é furado: como o do Outro”. “Aprendam a distinguir agora o amor, como paixão imaginária, do dom ativo que constitui no plano simbólico. O amor, o amor daquele que deseja ser amado, é essencialmente uma tentativa de capturar o outro em si mesmo, em si mesmo como objeto”. Essa coisa que a gente chama de amor é muito ambígua, porque é o amor-paixão que é mais cantado por aí – é essa captura. “A primeira vez que falei longamente do amor narcísico, era, lembrem-se disto, no prolongamento mesmo da dialética da perversão”. Então, esse amor-paixão é estritamente perverso, captura o outro como objeto amado. O sujeito se objetifica, se egoiciza, é a perversão propriamente dita. Não é a perversão polimorfa do macho, porque ele não sabe fazer outra coisa. Ele só sabe comer e não é por amor, é por
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tesão, é desejo. A perversão polimorfa do macho é aquele desejo que Lacan falou primeiro. A perversão propriamente dita objetifica, anula o sujeito, e é esse amor passional que pinta como exigência de objeto-feitiço. “O desejo de ser amado é o desejo de que o objeto amante seja tomado como tal, enviscado, submetido na particularidade absoluta de si mesmo como objeto. Aquele que aspira a ser amado se satisfaz muito pouco, isto é bem sabido, com ser amado pelo seu bem. Sua exigência é ser amado tão longe quanto possa ir a completa subversão do sujeito numa particularidade, e no que essa particularidade possa ter de mais opaco, de mais impensável. Queremos ser amados por tudo – não somente pelo nosso eu, como diz Descartes, mas pela cor dos nossos cabelos, pelas nossas mãos, pelas nossas fraquezas, por tudo”. É o cúmulo da babaquice. “Mas inversamente, direi correlativamente, por causa disso mesmo, amar” – agora é o amor de que eu estava falando – “é amar um ser para além do que ele parece ser”. Para além do semblnate, para além da sua objetivação no objeto a, para além do imaginário. “O dom ativo do amor visa o outro” – agora ele faz uma distinção de palavras –, “não na sua especificidade, mas no seu ser”. O importante é que aqui ele distingue especificidade de particularidade. “O amor, não mais como paixão, mas como dom ativo, visa sempre, para além da cativação imaginária, o ser do sujeito amado, a sua particularidade”. Não é especificidade do objeto, mas a particularidade simbólica, significante do sujeito, ou seja, os movimentos que o sujeito tem a partir de sua letra de instalação. Esse movimento se infinitiza, uma vez que a letra se reduz, em última instância, à ordem significante, e significante não tem sentido de espécie alguma. “É por isso que pode aceitar dele até muito longe as fraquezas e os rodeios, pode mesmo admitir os erros, mas há um ponto em que pára”– aí vem a sabedoria de Freud: amor tem limite –, “um ponto que só se situa a partir do ser – quando o ser amado vai muito longe na traição de si mesmo e persevera na tapeação de si, o amor não segue mais”. Não se pode amar um babaca, aquele que trai. Esse tal de amor só vigora no feminino, porque é a rememoração do furo do Outro. É o que está nessa instalação significante de que falamos.
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Se do lado de H, na formulação de Lacan, há desejo e satisfação, do lado de H’, é possível o amor como dom ativo. A lei do homem se escora no desejo, mas existe lei de mulher que se escora no amor. E, qual é a Lei? Seria uma, ou outra? A Lei é, simplesmente, aquela que vige apontando a diferença entre essas duas leis. O amor-paixão se situa no nível da homossexualidade, da absorção narcísica, que o homem faz do outro como objeto. É também do lado do homem que, talvez, possamos instalar o poder, o que talvez seja a lei do homem, a lei do homossexual. Mas o homem quando ama, mesmo no regime do desejo, quando ele pode, até no regime do desejo, da captura, referenciar o Outro como existente, ele passa a heterossexual. Não existe outra heterossexualidade possível senão esta. Há, como já disse, um verdadeiro complô homossexual, que é essa tentativa de masculinizar tudo. Tudo, inclusive da parte das ditas mulheres do movimento feminista. A suposição de que é possível a relação sexual é uma suposição estritamente homossexual: somos todos iguais, estamos na mesma relação de igual para igual. Porém, qualquer que seja o outro, se ele se postura como Outro, estamos no regime heterossexual – e retirem disto a anatomia. Podemos até supor - e esta é uma questão que Lacan deixa em suspenso – que a presença ou não do tal do pênis contribua para que haja uma divisão aproximada de cinqüenta por cento para cada lado, de homens e mulheres, mas nada pode garantir isso. Talvez a presença do real de um tal de pênis empolgável, segurável concretamente, possa facilitar as coisas para essa encarnação. Não estou teorizando sobre isto porque não tenho a menor garantia... Por que não pode ser um clitóris, um dedo, etc? Isto é feiticista. É possível que o discurso do Outro, enquanto como do chamado social, da cultura, indicando mais para determinado objeto, talvez ajude a marcar, significantemente, um lugar de real. É bem provável que pela via cultural se reforce a colagem do significante no pênis, a encarnação do falo no pênis. Tanto é que a imagem popular do falo é um “caralho voador”. Está lá na arte grega, aquele pênis com asinhas, sozinho, voando no espaço.
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Desconfio seriamente que cinqüenta por cento de mulheres é, até, muito, principalmente no mundo contemporâneo, onde quase todo mundo é homem. Por incrível que pareça, são, às vezes, os portadores de pênis que mais afirmam o feminino: Jacques Lacan, Velázquez, Guimarães Rosa, Marcel Duchamp e alguns outros. São estes caras que nos dão de presente um feminino. As mulheres estão cada vez mais pirocudas e achando que estão fazendo um grande negócio. Quer dizer, a homossexualidade tomou conta do planeta. Por isso, por causa dessa homossexualização generalizada, é que é tão reprimido o que os homens pensam que seja a homossexualidade. É uma espécie de denegação. Há que denegar a suposta homossexualidade, porque só se tem isto, então, tem-se que fingir que não se tem. Se vamos ao seio da chamada família, é aquele bando homossexual: mulher e marido são o mesmo – homem com homem – não há alteridade. É o que, aliás, Lacan diz do casamento, que “o homem inventa o casamento para dizer que tem uma mulher”. Ele sutura o corpo do outro, e agora tem um objeto redondinho. O casamento é a instituição que visa suturar o corpo da mulher. Como todo bom babaca, depois de casado, o marido apresenta: “minha mulher”. É o chamado corno manso. Uma “renegação mantida” é como Freud situa esse fator homossexualizante, essa pregnância masculina, que é a renegação da diferença. Quer dizer, é perversidade, e se o olho do Outro se abre, ele cai de pau, mostra o cetro. É a ditadura, como já disse, a dita, dura. Parece que estamos sendo muito maldosos com a posição masculina. O que há de errado com ela não é ser posição masculina, é supor poder homossexualizar tudo. É o reforço da “masculinidade” contra a existência do feminino. É o que encontramos, freqüentemente, nas “Senhoras”, digamos, ditas “mineiras”. A “Senhora” é a tal, mulher do cara. Ela é redondinha, não tem furo. Ela endossa a obturação do furo que o outro lhe prometeu, para não ter o corpo furado. Ou seja, é um produtor de psicose. Nada é mais produtor de psicose do que uma “Senhora”, que, aliás, os portugueses dizem muito melhor do que nós: uma “Senhôra”. É muito preciso: “Um Senhor e sua Senhôra”.
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Retornaremos, na próxima sessão, às Meninas para verificar, segundo minhas observações, que Velázquez equacionou todas essas questões nessa obra. Para mim, a formulação de Lacan, a marcação significante do sujeito, o vigor da Lei, e tudo que abordamos aqui, está dito com todas as letras nesse quadro. Com isso, reforço a idéia de que a pintura é “cosa mentale”, ainda que seja inconsciente. Por isso pedi o testemunho do poeta. 17/JUN
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E-SEXÃO Há, repetindo, n’As Meninas, de Velázquez, uma ordenação típicamente renascentista do quadro que, entretanto, está deformada nos seus aspectos perspéticos através da mudança da posição de alguns elementos, de alguns pontos de fuga. Os pontos fundamentais, tanto no que toca à composição da superfície, como do ponto de vista da dinâmica e da construção da perspectiva, estão respeitados e reiterados pelo pintor. Questionando, então, aquela trama de olhares e de linhas de construções que estão no quadro, fizemos uma objeção ao texto de Michel Foucault que trata desta obra de Velázquez, na medida em que, segundo o que o autor ali coloca, teríamos que supor que o ponto de vista, o qual se projeta no ponto principal sobre o quadro, estaria situado naquele espelho onde estão refletidos o rei e a rainha – o espelho que está no plano de fundo do quadro, e que denominamos E/ 2 ou R’r’. Assim sendo, todos os olhares convergiriam para aquele ponto, R’r’, e o observador estaria, neste caso, situado no mesmo lugar do rei e da rainha, olhando o quadro. Segundo nossa postura, tanto o ponto de vista como a linha do horizonte estão no olho do próprio artista, Velázquez, ali representado no quadro. Não há, portanto, lugar coincidente do observador com o do rei e da rainha. Foi mediante um estudo ótico das possibilidades do quadro que construímos uma planta baixa aproximada, situando, assim, o ponto principal no olho do artista. Com isto viemos a mostrar que o quadro é perfeitamente plausível se entendido
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como sendo aquilo que se reflete num espelho. O rei e a rainha estão numa porta ao lado do grande espelho no qual o quadro se reflete e, portanto, em frente à cena que se representa neste quadro, conforme foi desenhado. Pudemos ver que em alguns quadros da sua produção mais antiga, Velázquez já vinha situando a questão do espelho. O espelho foi um objeto de interesse constante na sua vida e na sua obra, assim como também foi muito comparecente e repetitivo por toda a fatura da teoria da pintura no Renascimento e no Barroco. Fizemos algumas considerações a respeito de dois quadros seus, Jesus em casa de Marta e Maria e A Vênus ao Espelho. Verificamos que, no primeiro quadro, Velázquez apresenta a mesma composição que As Meninas, sendo que representou a cena toda, inclusive os elementos que não estão no espelho – n’As Meninas representou apenas o que via no espelho. Com o quadro da Vênus, chegamos a concluir que o que Velázquez está colocando em relação à problemática dos espelhos não é senão a questão do ponto de vista do quadro e, portanto, a questão da situação do sujeito no quadro. Tomamos, também, a referência da leitura do Seminário 11, onde Lacan pensa o que seja o olhar e o que seja um quadro, e nos diz que um quadro é, em última instância, a construção de um certo olhar. Uma vez que ele afirmara antes que o olhar é objeto a, vai ter que dizer, em seguida, que o quadro, afinal de contas, é alguma que se dá por objeto a. Não que um quadro seja um objeto a, mas é aquilo que se oferece como um objeto a. Lacan também situa a questão do sujeito no quadro, retomando certos estudos de Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible e num outro livro mais antigo, Phénoménologie de la Perception, onde este autor pensa a questão da experiência de Gelb e Goldstein quanto à questão do anteparo no processo da visão, numa idéia de quiasmo existente entre o sujeito e o quadro, onde o sujeito se coloca sobre o quadro e o quadro se coloca no olho, numa mesma reversão. Lacan acaba demonstrando que há um quiasmo entre o observador e o quadro e que, portanto, o sujeito enquanto tal, S/ , está situado no quadro. Se tomarmos o modelo de construção de Velázquez n’As Meninas, veremos que, realmente – e este será o tema da próxima sessão –, há aí uma
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espécie de indicação do objeto a. Não só o quadro como objeto a, mas uma indicação de lugar de objeto a dentro do quadro. Veremos, também, que Velázquez não só situa o sujeito no quadro – ele está em qualquer quadro – como reforça esta inclusão do sujeito, fazendo com que o ponto de vista coincida com o lugar do observador. Houve ainda outras considerações sobre pequenas questões como, por exemplo, os personagens representados no quadro. É importante lembrar que Velázquez está nomeando e indicando certas posições que esses personagens ocupam, o Aposentador, o Guarda-Damas, as Meninas, a Infanta, etc., e tais considerações vêm, também, corroborar nossa idéia sobre o quadro. Fiz, ainda, uma colocação sobre o local onde o quadro foi pintado, o palácio de Alcazar. Este palácio foi queimado e não existe mais, mas tenho para mim que esta região do palácio que serviu de cenário para o quadro de Velázquez deve ser referente a algum local vizinho aos aposentos reais. Provavelmente trata-se de uma extensa galeria, coisa bem característica desse tipo de construção, ainda com certos traços do período medieval. Pela quantidade de quadros que há nas paredes, pelo tipo da construção de perspectiva, etc., Velázquez teria pintado o quadro numa galeria do palácio, e não numa sala, ou atelier, como ordinariamente se tem admitido. Quando tentei fazer a planta baixa do quadro, percebi tratar-se de uma sala extensa, como um grande e largo corredor no qual desembocam várias outras salas. Aliás, as gravuras existentes sobre este palácio, que o retratam parcialmente, dão a entender que ele é permeado de galerias compridas e com aquele tipo de janela na sua fachada. Até que se prove o contrário, então, ou talvez uma pesquisa possa vir a confirmar, este quadro de Velázquez foi realizado numa das galerias do palácio de Alcazar, contígua aos aposentos reais, local este que Velázquez devia freqüentar, pois como sabemos ele chegou a ser o Grande Marechal do Palácio, o que prova a sua intimidade com o Rei Felipe IV. *
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Comecemos, hoje, nossa com-sideração pelos dois quadros que se encontram na parede dessa galeria e que servem de plano de fundo no quadro d’As Meninas. Nesse local do palácio onde o quadro foi pintado vemos vários quadros dispostos pelas paredes que, até, contrastam, tanto na fatura como no tratamento da luz, com aquele retângulo onde aparecem, lá no fundo, o rei e a rainha. Esta é uma das razões porque afirmamos que não é um quadro e sim um espelho. Sabe-se que, no quadro original do museu do Prado, esses dois quadros, que se encontram de frente para nós, são perfeitamente visíveis e identificáveis. Certamente que pertenciam à pinacoteca privada do rei, a qual foi constituída em grande parte por Velázquez, pois ele era, também, uma espécie de comprador de obras de arte para a Corte. Velázquez, em certa época, manteve amizade com Rubens, que esteve na Corte a convite de Felipe IV, e que muito o influenciou na sua pintura como também na escolha da compra desses quadros. Um dos quadros representados n’As Meninas é de Jordaens, pintor flamengo contemporâneo de Velázquez e que foi discípulo de Rubens. O quadro intitula-se Apolo e Mársias. Segundo o mito grego, Mársias era um sileno que foi o inventor da harmonia frígia. A harmonia musical grega funcionava com quatro modos fundamentais, um dos quais é o modo frígio. Cada modo tinha certa estrutura particular e os gregos adequavam cada um desses modos a certos tipos de representação afetiva, etc. Este modo frígio muito especial, diz o mito, teria sido inventado por Mársias, o qual aparece, segundo o anedotário, quando a deusa Atena – a deusa do mental, ao mesmo tempo que funciona como deusa da guerra, às vezes – jogou fora sua flauta porque estava muito preocupada com sua beleza, e a flauta poderia deformar as suas bochechas, se ela a continuasse soprando. Mársias pega essa flauta e passa a tocar tão bem que, um dia, desafia Apolo, que era o Deus das artes, cercado das suas Musas, etc. Ele era o maior aulete do Olimpo e aceitou o desafio de Mársias. Só que com a condição de o vencido ficar à disposição do vencedor – criar-se-ia, entre eles, uma relação senhor/escravo. Foram escolhidos como árbitros desse torneio as Musas e o Rei Midas. Após uma competição renhida, as Musas,
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naturalmente, foram a favor da vitória de Apolo, mas o Rei Midas foi a favor de Mársias. Houve empate e não se conseguiu desempatar. Apolo ficou tão enraivecido que castigou Midas e infligiu a Mársias o terrível suplício de ser escorchado vivo e pendurado num pinheiro. Entretanto, Apolo, depois, fica arrependido dessa vingança tão violenta e transforma Mársias num rio. É uma belíssima figura: Mársias é transformado num rio e sua flauta, que ele pegara do lixo de Atena, é consagrada a Dionísio – este é uma espécie de outro-Apolo; assim como Apolo é seguido das Musas, Dionísio é seguido das bacantes; essa dialética Apolo/Dionísio é uma velha dialética em nossas cabeças. Esse pequeno falo, então, esse menos-um que sobrou de Atena, vai parar na mão do poeta Mársias e, na vingança com os deuses, porque Mársias consegue dominar o mundo de Apolo, ela, a flauta, vai parar em Dionísio. A flauta atravessa todo o panorama da “cosa mentale”, a produção poética, o panorama grego, e sobra como um resto maravilhoso, representando a possibilidade de ato-poético. Apolo é aquele mesmo que inspira as profecias, aquele que dissera a Édipo o que iria acontecer, através de sua pitonisa – a pítia, de onde vem a palavra pitiatismo, ou seja, ataque histérico. Ele é, também, o inspirador dos músicos e dos poetas. Atena, a tal que jogou a flauta fora, é a Minerva dos romanos. Atena era filha de Júpiter – Deus-pater – e de Metis, que era a Prudência. Um dia Metis foi devorada por Júpiter, que a engoliu porque estava grávida dele. Ele assim o fez para que o filho não viesse a destroná-lo – filho da Prudência com Deus-Pai... destrona qualquer um... Imediatamente depois de engoli-la, ele sente uma terrível dor de cabeça e vem a parir Atena, pela cabeça. Ele teve que pedir a Hefaistos, que não é outro senão Vulcano, aquele da forja, para que abrisse a sua cabeça. Assim, se fizermos o percurso de Atena, com sua flauta, que vai cair na mão de Mársias, Apolo, Dionísio, etc., mais uma vez se reitera que a Arte, e sobretudo o ato poético, é “cosa mentale”, representada nessa gravidez encefálica de Júpiter. Atena, que é a deusa da sabedoria e da Lei, às vezes é representada com armas de guerra, porque ela vai à luta. É interessante que no escudo que ela
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usa como guerreira está figurada a cabeça de Medusa, que, esta, é aquela que representa o ato apotropeico por excelência: paralisa as pessoas. Como sabemos, Freud tem um texto sobre ela, onde tenta explicar o que é essa aparição do falo enquanto significante, que paralisa a todos. Se Atena é a deusa da sabedoria, da Lei, e portador da cabeça de Medusa no seu escudo, há uma relação, digamos, por tabela, entre ela e Édipo. Na história do Édipo, podemos tomar como centro de aparecimento da Lei, isto é, da palavra da Lei, do ato-poético, a presença de Tirésias, o qual ficou cego porque foi surpreender Atena tomando banho. Ele quis ver a nudez da sabedoria e da Lei e, por isso, ficou cego, não foi nenhuma punição. Tirésias foi enceguecido pela presença nua e crua da sabedoria e da Lei. A Lei da diferença, aliás que se indica numa outra versão do mito, quando Tirésias separa a copulação de duas cobras. Há, também, o que já contei aqui, que Tirésias é o único na história mítica da Grécia que foi testemunha dos dois sexos. Não que fosse bissexual, porque isto simplesmente não existe, mas pelo fato de que passou de homem a mulher, levou sete anos mulher, e depois pôde retornar. Certa vez, numa discussão no Olimpo, Tirésias foi chamado a dar o seu testemunho para os deuses. Eles estavam discutindo sobre quem gozava mais, se os homens ou as mulheres. Embora os deuses gregos sejam bastante situáveis, eles não são o Outro, quer dizer, eles não são representantes ou a representação do Outro. Eles são pedacinhos desse Outro, eles caem no real como frações, por isso não sabiam chegar a uma conclusão sobre a contenda. Tirésias, então, respondeu: “É muito fácil. Se fizermos uma partilha de dez, os homens gozam um, enquanto que as mulheres gozam nove. As mulheres gozam muito mais que os homens”. É absolutamente verdadeiro. É o gozo do Outro, o de que Tirésias estava falando. Interessante Velázquez colocar escolhidamente esse quadro de Apolo e Mársias naquela parede do fundo d’As Meninas. Talvez com isto, trazendo o testemunho de que, na sua obra, quis falar do ato-poético enquanto tal. Ou, talvez, estivesse na tentativa de expor a questão em torno da Lei, da sabedoria, da recuperação daquela flauta, menos-fi (- ), cadente. Com o que poderemos, também, dizer que ele estaria situando a questão em torno da diferença sexual
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por tabela, entre Apolo e Atena pelo menos. Talvez a presença da representação do quadro de Jordaens estivesse como que a glosar o próprio quadro d’As Meninas. Esta seria a necessidade do tema de Apolo e Mársias aí. Certamente, é na mão do Mársias-Velázquez que está aquela flauta – a sua batuta. Passemos ao outro quadro representado ao lado daquele de Jordaens, e que vem glosar tanto este de Jordaens quanto o do próprio Velázquez. Trata-se de um quadro de Rubens, o amigo de Velázquez e mestre de Jordaens, chamado Atena e Aracne. Aracne era uma jovem mortal da Lídia, cidade que era extremamente importante naquele momento grego por suas tinturas de púrpura e excelência na arte da tecelagem. Por esta razão, muita coisa da mitologia se passa em torno dessa cidade, das suas representações pragmáticas. Um dia, porém, Aracne, que era extremamente perita na arte da tecelagem e da tapeçaria, gabou-se de ser melhor fiandeira do que Atena, desafiando-a. Atena, que, no Olimpo, era reconhecida como a deusa mais excelente na arte da fiação, aceitou o desafio de Aracne. É outro desafio. Antes era o desafio de Mársias a Apolo, e Atena entrava por tabela, aqui ela entra direto. Aracne, então, teceu uma peça onde figurou os amores dos deuses do Olimpo, ou seja, contou a fofoca toda... E o fez com tanta perícia, que Atena não pode encontrar, naquela peça, nada a retomar, nada a melhorar. Quer dizer, Aracne, além de fazer uma peça extremamente bem-feita, também fofocou – tipo de coisa de mulher: O Outro fala pelos cotovelos e acaba contando quase tudo. Atena ficou extremamente encolerizada com Aracne tanto pela fofoca como pela perfeição do trabalho. Rasgou a obra da rival e a atacou tanto, perseguiu-a tanto que Aracne acabou se enforcando. Façamos aqui uma longínqua referência ao le pendu femelle, o enforcado fêmea, no Grand Verre de Duchamp. Aracne se enforcou e Atena, então, transformou-a numa aranha, penduradinha no seu fio. Será que é do beijo dessa mulher que Puig está tratando no seu livro? É uma mulher-aranha, de qualquer forma. Temos, portanto, nos dois quadros que aparecem n’As Meninas, de um lado, a tessitura que Freud chamou de apanágio das mulheres nas culturas.
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Por que, pergunta Freud, em todas as culturas, as fiandeiras são mulheres? Por que a tecelagem está mais nas mãos das mulheres? Com aqueles dois quadros, o que temos é a grande textura, a produção do texto enquanto tal, que se faz representar em dois desafios aos deuses, na excelência da prática artesanal e artística, ao mesmo tempo que na vigência da Lei, do ato-poético, em suma. Foram estas duas coisas que Velázquez resolveu representar lá no fundo, glosando certamente o que se apresenta com muita evidência a vários observadores e críticos, que é o aspecto textual, em todos os sentidos, do quadro As Meninas – a grande trama de olhares, de linhas, de luzes. Digamos, então, que Velázquez, ao produzir este quadro, poderia estar desafiando Apolo, como o fez Mársias. Ou poderia estar desafiando Atena, como tecelão, como o fez Aracne. É de se notar um detalhe interessante: Velázquez era encarregado do atelier de tecelagem do rei. Ele não fazia tecelagem, mas ele governava as fiandeiras do rei. O grande desafio da vida de Velázquez, exposto em sua obra fundamental, é desafio a muita coisa, inclusive a Apolo e Atena. É certamente a procura do lugar desses que desafiam, no intervalo entre eles talvez, que se situa o lugar de vigência da Lei, que comparece, praticamente, em modo duplo. Dissemos isto tudo para situar um pouco essa ambivalência lógica do quadro de Velázquez. *
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Voltemos a situar os elementos d’As Meninas, sobretudo a relação de espelho a espelho. Isto me interessa, principalmente, por dois motivos. O primeiro, que tenho desenvolvido em trabalhos anteriores é que a obra de arte é a construção de um espelho. Aonde vige o ato poético, o poeta conseguiu ou terá conseguido produzir um espelho. Não se trata da superfície material, mas de repetir a lógica do espelho, a lógica do furo e de sua borda. Por isso que a obra de arte ocupa o mesmo lugar que tenta ocupar
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o analista, razão pela qual não se pode fazer psicanálise de uma obra e sim ser analisando diante dela. Mas, como diz o Zen que “quando se aponta para a lua, o imbecil olha para o dedo”, é preciso não confundir porque quando a obra aponta para o espelho, o imbecil olha para a imagem. Guimarães Rosa, justamente, mostra no seu conto central das Primeiras Estórias que, diante do espelho, na nossa debilidade, nos deparamos com a imagem e esquecemos o espelho. O poeta constrói esse espelho. É para ele que temos que olhar, e tentar desfazer as imagens. Não no que ele reflete o imaginário, que aliás é extremamente útil na formação do eu, no estádio do espelho, mas enquanto espelho vazio. Em algum lugar do Seminário 2, Lacan declara numa frase o que é o lugar do analista: “... que o analista não seja um espelho vivo, mas um espelho vazio”. Em páginas tantas de meu trabalho sobre Rosa, tento mostrar esta metáfora, muito antiga em Lacan, apontando também o que acontece na análise e situando naquele esquema da espiral elíptica o lugar do analista no lugar do espelho plano, central na dialética dos espelhos côncavos. O segundo motivo que está me interessando é que temos no quadro, além da construção da obra, a explicitação dessa construção. Vez por outra encontramos uma obra em que o artista, ou melhor, o poeta, além de construir, explicita, dá os dados da construção, da estruturação que utilizou para nos entregar seu espelho. Foi o que encontrei, por exemplo, em Guimarães Rosa e encontro agora nesta obra de Velázquez. Não é só que o espelho esteja lá, construído logicamente como obra, mas também lá está explicitado aquilo do que está tratando. Ele poderia não explicitar. Todas essas referências que estou buscando no quadro são no sentido de mostrar que lá está a construção do espelho e sua explicitação, como se Velázquez legasse esse achado, essa “reflexão”, à nossa com-sideração, enquanto analisandos que somos. Tentemos, agora, descobrir essas duas coisas: a construção do espelho enquanto tal e a questão que importa quanto ao real do espelho. Isto, uma vez que o espelho é aquela partição: esbarra-se num real diante dele, e ele devolve tudo para o mesmo lado. A questão é a de que nesse espelho vai a marca da
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Lei, ou seja, a instalação da diferença enquanto tal, da diferença sexual. A meu ver, assim como Velázquez está explicitando a construção do espelho, explicita também a questão da Lei enquanto função do real da diferença sexual, ou, pura e simplesmente, a simbolização do real da diferença. Repetindo, então, os dois pontos que vamos levantar aqui são: no que é que Velázquez constrói um espelho, não uma representação do espelho – não é isto que está interessando –, mas no que é que ele nos dá o quadro como construção de espelho; e no que é que, a partir mesmo dessa construção do espelho, ele nos dá a referência da diferença sexual e da instalação da Lei nessa diferença. Consideremos Velázquez, no quadro, enquanto pintor representado, ao mesmo tempo que Velázquez enquanto pintor real, pintando este quadro d’As Meninas. São dois problemas diferentes. E vejamos os testemunhos que ele invocou e utilizou para nos dar o quadro como espelho. Um espelho é algo que vira pelo avesso porque sua topologia é a da banda de Moebius, a qual não é senão a topologia da borda única, absolutamente unária, de um furo. Isto é facilmente representável: suponhamos uma superfície qualquer, considerada infinita ().
Esquema 14
Se tivermos um furo nessa superfície, através da borda desse furo, podemos virar (2) pelo avesso (3) essa mesma superfície. A charneira de viragem é o
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E-Sexão
fato de a borda do furo ser única e unária. É a charneira de rebatimento. Geometricamente temos que, para fazer o rebatimento de uma linha, precisamos de uma charneira que é uma linha: para fazer o rebatimento de um sólido em três dimensões, precisamos de uma charneira que é uma superfície, um plano:
Esquema 15
Duchamp dizia, então, que, para fazer o rebatimento de uma quarta dimensão, precisamos de uma terceira dimensão como charneira. Ele disse isto e isto não nos foi dado, simplesmente porque não precisamos pensar em nenhuma quarta dimensão para pensar que a charneira de reviramento de uma superfície é ela própria. É o próprio furo que ela porta, através do qual, como se faz com uma luva ou uma meia, nós a viramos pelo avesso. Esta é a estrutura do espelho. O espelho é aquele furo que é charneira de rebatimento, virando pelo avesso. É a operação que chamei de “viravesso”, operação que sobra. Quando, diante de um espelho, podemos reconhecer a imagem que ele nos apresenta é porque podemos trazê-la para o outro lado – viramos pelo avesso –, e o que sobra é a operação do “viravesso” que é o espelho enquanto borda única, enquanto banda de Moebius – superfície unilátera. Portanto, para que se possa dizer que Velázquez está construindo um espelho – segundo a tese que estamos defendendo, uma obra teria que comportar isto –, teríamos que dizer que, em algum ponto, pelo menos, do quadro, ele não só teria feito esse reviramento, como, ainda por cima, teria explicitado isto. É como se Velázquez nos dissesse: “Deixem de ser tolos, olhem
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Psicanálise & Polética
como eu reviro o quadro”. Quero dizer que temos ali inscrita uma banda de Moebius aparentemente invisível. Mas, se estudarmos o quadro, vamos retirála de lá e apresentá-la limpinha. Ou seja, Velázquez construiu uma banda de Moebius neste quadro d’As Meninas. É só procurá-la que a acharemos. Vamos recompor tudo outra vez. Velázquez está pintando Velázquez enquanto representado no quadro. Ele está pintando um quadro que, se minha operação lógica está certa, ele está vendo, no real, como reflexo no espelho. Portanto, temos que dizer que Velázquez está pintando naquele quadro em que ele aparece pintando – o quadro que está de costas para nós – o próprio quadro em que ele está se representando: As Meninas. O quadro que está lá dentro é o mesmo quadro que nós vemos. Então, ele está diante do espelho pintando As Meninas. Por esta razão, o rei e a rainha lá estão representados do modo que mostrei: há uma dupla reflexão para que eles possam aparecer. Neste ponto, temos que ter certo cuidado. Se Velázquez está vendo aquela cena do modo como está representada no desenho de Luiz Carlos Miranda que mostrei, ou seja, se da sua posição real Velázquez vê aquilo como está no desenho, temos que pensar que eventualmente – e talvez o mais correto seja isto –, ele está vendo o avesso do que está representando: lá no espelho, conforme mostra o desenho, e se foi isso que ele viu, o quadro está pelo avesso. Temos aí neste fato uma grande ambigüidade. Há uma tradição desde o Renascimento, desde a invenção da perspectiva exata, por conselho de Leonardo, Dürer, Piero Della Francesca, Paolo Uccello, etc. – sobretudo Leonardo e Dürer, que são os mestres da construção da perspectiva, da construção renascentista –, da farta utilização do espelho para um artista. Leonardo chegou a dizer que todo quadro, ao ser considerado terminado, ou quase, deve ser posto pelo artista diante de um espelho para ver se ele é tão bom de forma especular quanto da forma normal. Ou seja, que a composição tenha uma estruturação de equilibração tão bem-feita que o quadro possa ser visto diante do espelho sem incomodar. Mas, pode-se dizer que Leonardo tinha um cacoete, pois ele era absolutamente ambidestro, escrevia, pintava, fazia de
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tudo, do mesmo modo, com as duas mãos. Este “cacoete” passou a ser uma espécie de “recomendação didática” para os artistas que vieram em seguida. Não podemos saber se Velázquez entrou nessa de usar as duas mãos e, também, não se sabe se era canhoto ou destro. O fato é que se ele pintasse com a mão direita, poderíamos afirmar que este quadro d’As Meninas está pelo direito, ou melhor, é o avesso do que mostra o espelho. Isto porque, no quadro, Velázquez segura o pincel com a mão direita. Mas, quanto a isto, nada se pode afirmar. Somente uma pesquisa mais apurada poderia nos esclarecer. Talvez Velázquez fosse ambidestro como Leonardo. Leonardo até escrevia ao contrário, quer dizer, escrevia cadernos inteiros da direita para a esquerda, ao contrário da esquerda para a direita que é a nossa maneira. Assim, para lermos os manuscritos de Leonardo, temos que olhar por um espelho. Seria, mais ou menos, como o exemplo que se segue:
Se Velázquez está vendo pelo avesso o que está pintando, teríamos que supor que existe uma certa incongruência entre o quadro enquanto tal e o quadro que ele está pintando (aquele quadro que está dentro do quadro). Quer dizer, o quadro que estamos vendo, que é a arte final de Velázquez, o quadro acabado, ele está supostamente pelo direito ou pelo avesso, pouco importa. Vamos tomar o direito como sendo verdadeiro. Logo, se o quadro que estamos vendo, o quadro real d’As Meninas, está pelo direito, podemos supor que aquele quadro que ele está pintando lá dentro, está pelo avesso. Pois se Velázquez se representa pintando o que ele está vendo no espelho, logicamente ele está pintando o avesso daquilo que vemos. Nada impede que ele fizesse realmente isto, que ele pintasse o que via no espelho e, depois, passasse a limpo o quadro, pelo avesso, avesso do espelho. Então Velázquez está pintando o quadro que estamos vendo, mas não o mesmo. Ele está pintando o seu avesso. O que é um quadro pelo avesso? Nada mais nada menos que o avesso do quadro. É o que podemos ver numa tapeçaria bem-feita, pois as boas
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tapeçarias são aquelas que não têm avesso nem direito. Se nelas há alguma indicação geométrica ou figurativa, isto será visto tão bem pelo direito como pelo avesso. É a mesmíssima coisa que ocorre com o espelho, ou que ocorre, por exemplo, com uma transparência, com um slide. Assim, poderíamos dizer que este quadro d’As Meninas que estamos vendo é o quadro que veríamos se aquela tela está lá dentro, de costas para nós, fosse um vidro. Se aquela tela, a que está lá no quadro representada, fosse, então, de vidro, Velázquez pintaria normalmente pelo avesso, e veria o quadro como nós o vemos, na mesma superfície.1 O mais importante é que Velázquez, nessa mesma superfície, constitui de tal modo as coisas que temos que pensar o tempo todo nesse “viravesso”, e já vai aí algo da natureza do espelho e da banda de Moebius na nossa reflexão, na nossa consideração sobre o quadro. No que começamos a considerar o quadro, não há como não pensar esse pelo-direito-pelo-avesso, se é que nosso caminho é válido. Poderíamos, também, dizer que Velázquez teria uma perícia tão grande, tipo Leonardo, que seria capaz de pintar o quadro pelo direito, mesmo quando vendo o seu avesso. Se o sujeito tem uma perícia lógica e uma perícia perspéctica bem grande, pode perfeitamente representar, de imediato, o avesso daquilo que está vendo. Entretanto, onde está o viravesso? Tem que estar em algum lugar para que o quadro As Meninas seja pensado. Este lugar é a cabeça dele, a cosa mentale de Velázquez. Poderiam dizer que estou forçando a barra. E fica difícil demonstrar o contrário, pois Velázquez, realmente, se pintou representando o quadro. Com isso poderíamos dizer que ele só poderia estar vendo aquilo como está no espelho. Porém, o próprio Velázquez nos dá uma segunda dica desse reviramento. Se Velázquez acaso estiver pintando o quadro pelo avesso, seja qual for o direito ou o avesso, ele representou o rei e a rainha naquele espelho que está lá no fundo. Eles só puderam aparecer segundo a planta baixa que fiz do quadro – Esquema 4, acima – porque estavam, digamos, num plano do real 1
Cf. Anexo, nota 1, p. 296 adiante
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que é o mesmo do grande espelho, E / 1, em que Velázquez olha a cena. Logo, para o Casal Real aparecer representado no quadro, eles tiveram que sofrer duas reflexões: uma no espelho do fundo e outra no grande espelho. Então, Rr para serem representados no quadro sofreram duas reflexões, ao passo que todos os outros elementos, representados no mesmo quadro, sofreram uma só reflexão. Por isso, se Velázquez está representando o que vê no espelho, está representando pelo avesso, pois o que está no espelho é avesso, ao passo que, nesse mesmo espelho em que tudo está pelo avesso, ao passo que, nesse mesmo espelho em que tudo está pelo avesso e para o qual ele está olhando, ele está vendo o rei e a rainha pelo direito, por caus da dupla reflexão que eles sofrem. Ou seja, lá naquele espelho para o qual Velázquez está olhando, o rei e a rainha apresentam-se, devido à dupla reflexão, na mesma posição que teriam no real, ao contrário do resto da cena que se apresenta na posição avessa àquela que teria no real. Mais uma vez, então, Velázquez nos dá a dica da torção: nesta superfície do quadro, sem que se tenha que repetir o que lá está pintado, vemos representados todos os elementos menos um segundo uma estrutura de reflexão, e um elemento, que é aquele espelho ao fundo (R’r’), representado segundo a avessa estrutura dessa reflexão. Isto quer dizer, novamente, que temos aqui uma banda de Moebius. Para que uma superfície seja unilátera, basta que se tenha nela um reviramento, mas aqui no quadro, Velázquez nos apresenta o reviramento duas vezes. Ele, certamente, repetiu este reviramento para ele ficar evidenciado. São duas bandas representadas numa mesma superfície, não um duplo reviramento de uma superfície. Uma superfície virada uma vez é unilátera e virada duas vezes é bilátera. Mas, se temos uma ampla superfície e estabelecemos uma torção numa região dela, ela fica unilátera. E podemos estabelecer nessa superfície uma outra torção, ou quantas torções quisermos, em regiões diferentes, que ela irá continuar unilátera. No caso de Velázquez, bastaria uma torção, mas ele repetiu o reviramento para explicitá-lo. Ou seja, ele constrói o espelho e explicita essa construção. A posição do rei e da rainha foi deduzida, e suponho que, até agora, tenho conseguido demonstrar. O desenho do Luiz Carlos, acima, representa o
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que Velázquez está vendo daquela posição em que se encontra, como está indicado no seu quadro. À frente dele há um grande espelho onde ele está vendo toda a cena. O que está no espelho, então, é o avesso do que está no quadro. Em seguida, ao lado do espelho, há uma porta onde estão o rei e a rainha: é a posição em que eles se encontram no real. Pela planta baixa que fiz do quadro, Esquema 4 acima, fica bem claro que, para que Velázquez possa ver o rei e a rainha refletidos no espelho grande que está à sua frente, é preciso que haja aquela angulação, com relação ao espelho do fundo, que reflete a imagem dos dois. Nessa angulação, Velázquez vê o rei e a rainha segundo uma dupla reflexão – de espelho para espelho –, o que faz com que, naquele espelho grande, E/ 1, a imagem deles se apresente, justamente, como eles estão no real. Ou seja, lá no espelho grande, o rei e a rainha aparecem sem torção. Então, o rei e a rainha são representados como reais, e o resto é representado pelo avesso. É isto que cria, na superfície mesma do quadro, logicamente, como construto, uma uniface, uma contrabanda, de Moebius. Podemos, então, concluir que, com o quadro As Meninas, é como se Velázquez nos dissesse que tanto faz pensar nisto como avesso ou como direito, pois só há uma face – e o quadro tem a mesma topologia de um espelho. Para terminar o raciocínio, ainda diria que, se o quadro é uma superfície unilátera, se ele tem a estrutura da banda de Moebius, é porque ele porta o furo que é o Corte Real, representado segundo a Corte Real, reiterando o meu título. *
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São o rei e a rainha que vêem a cena como ela está representada no quadro: eles estão em cena real. É como se fizéssemos a seguinte torção: o rei e rainha são a posição Real; seguramos o resto e torcemos, apareceu uma contrabanda. Quer dizer, aquilo tudo que está ali representado está, ao mesmo tempo, pelo direito e pelo avesso.
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Velázquez construiu o quadro talqualmente uma banda de Moebius, talqualmente a lógica da superfície de um espelho vazio, no que ele nos apresenta o quadro como puro significante, vazio, puro corte. Podemos, a partir daí, jogar fora todas as representações, pois elas não interessam mais. Somos dejetados para o real. Por isso, temos que começar a reconsiderar. Por isso é que somos analisandos diante da obra, quando atingidos pelo ato-poético tranchant com que ela nos corta. Para entendermos melhor, temos que colocar o quadro d’As Meninas em frente ao desenho do Luiz Carlos. Considerando a posição em que Velázquez se encontra no quadro – ou como indica a planta baixa –, ele está vendo o rei e a rainha à sua esquerda, naquela porta. Logo, no espelho que está à sua frente, ele vê todos os outros personagens em cena junto com ele pelo avesso, enquanto que o rei e a rainha ficam refletidos na mesma posição devido à dupla torção dos espelhos. De fato, Velázquez não poderia ver nada daquilo se não estivesse diante de um espelho. Isto porque ele está lá, dentro do quadro. Em qualquer quadro em que o pintor se coloca presente, por exemplo, um auto-retrato, ele representa o avesso da posição real, porque há apenas uma reflexão no espelho em que ele se vê. Mas se nesse mesmo quadro algum elemento é representado segundo uma dupla reflexão de espelho, esse elemento aparece na sua posição real, pois um espelho anula a torção do outro. É o que temos neste quadro, onde Velázquez está representando o direito e o avesso ao mesmo tempo. Se supomos, então, que o quadro real d’As Meninas nos apresenta uma cena Real, no espelho do quadro, o Casal Real está pelo avesso. Ou vice-versa: se é a cena que é o avesso, então é o Casal Real que está em cena Real.2 Numa banda de Moebius, perde-se o sentido, um ponto não pode ser orientado, é impossível orientar porque ela remete ao real do não orientável, do puro corte. Portanto, quando nos defrontamos com este quadro de Velázquez, temos que ter um cuidado extremo porque a todo momento nós nos perdemos. 2
Cf. Anexo, nota 2, p. 297 adiante
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Suponhamos que temos, na mesma superfície pintada de um quadro, uma representação correspondente à posição tautológica da imagem real, na mesma superfície que uma representação avessa – o que é a mesma coisa, como demonstrei. Então, o que temos é uma superfície onde há um ponto de torção. É como se tomássemos uma folha de papel, ou de borracha, e fizéssemos num ponto qualquer um pequeno corte onde revirássemos essa superfície e a colássemos de novo. Com isto estaríamos fazendo algo da ordem deste quadro de Velázquez, pois há um lugarzinho onde há uma torção. Uma única torção é suficiente para instalar uma superfície unária. Essa torção é estritamente lógica, é inscrita pela pintura sobre uma superfície plana. A torção não está aqui na superfície material do tecido da tela, ela está na pintura de Velázquez. Está nesse olhar que Velázquez constituiu. Materialmente, concretamente, a torção está, pois, na pintura de Velázquez, no seu ato de inscrição, como o poeta a põe no seu texto. Só que, além de Velázquez escrever essa torção, como todo poeta o faz, ele ainda a exibe. É como se Velázquez nos dissesse: “Descobri o ato-poético e o revelo, e além de pôr o ato, vou dizer, vou contar como ele é segundo a minha lógica, a minha postura diante do espelho: reviro tudo para o mesmo lado, pois é desse mesmo lado que a obra se constitui, desde um puro Corte Real, que s’obra”. Isto se reduz, em última instância, àquilo que suponho ser uma obra de arte: a absoluta perda dos sentidos. Em suma, é o que Rimbaud dizia do poema, e que as pessoas pensavam que se tratava de ficar bundeando pela vida, como ele, aliás, o fez, porque era meio doidinho: “O desregramento absoluto de todos os sentidos”. É o que ele trazia como ato-poético. Há mais, uma coisa extremamente importante neste quadro, mas que não aparece muito bem nas reproduções: a luz. A única iluminação que aparece é a de uma luz lateral que é representada penetrando pela janela que está à nossa direita no quadro. É uma iluminação real que ele aplicou ao seu modelo. Sendo aquela janela, de onde parte a luz, a única que se encontra aberta, o quadro é cruzado por uma laminosa: lâmina luminosa. No quadro original, ou numa boa reprodução, podemos perceber que essa lâmina como que descreve
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uma diagonal do quadro, _ que vai do canto direito superior ao canto esquerdo inferior – a diagonal IJ no Esquema 2.
A luz, pelo menos na física e em outros discuros, é aquilo que – embora Einstein tenha nos propiciado uma outra concepção dessa relatividade – se supõe de absoluto em relação ao que é relativo. A luz era um problema central na obra de Velázquez. Tanto que, segundo os impressionistas, ele foi o proto-criador do chamado Impressionismo na pintura, a pintura da luz. Nesse quadro d’As Meninas, Velázquez nos apresenta uma luz, que em última instância, logicamente, ilumina a torção enquanto tal. Podemos retirar isso do fato de que esta tela d’As Meninas que nós vemos está sendo iluminada, digamos assim, diferentemente daquela outra que é a mesma, e que nós vemos lá dentro do quadro. Trata-se de uma luz que atravessa o quadro iluminando direitos e avessos, mas, também, iluminando direitos e avessos na relação do quadro com o real, entre a postura real do Casal Real e a postura pintada dessa imagem real. A luz ali é tudo: é a lâmina que atravessa o quadro, iluminando, num só jato, direitos e avessos. 3 A luz aí é contrabanda. Ela é a banda de Moebius atravessando as Meninas, iluminando, sobretudo, aquela menina, a Infanta, e iluminando tudo – certamente para que Velázquez possa pintar aquela tela que ele lá está pintando. Essa luz é o único jato que ilumina a tela, para ele, e que ilumina o quadro, para nós. Logo, ela, a luz, é uma superfície uniface: puro espelho. É a terceira vez que apontamos a repetição da construção do espelho. As Meninas, de Velázquez, é, portanto, uma superfície unilátera, uma banda de Moebius, a construção de um espelho mental, ou seja, de um corte. Nesta sala em que estamos, supondo-se que aqui não exista nenhuma superfície unilátera, a luz está orientada. Por isto há sombras que nos permitem distingüir, nos objetos, uma face da outra. Mas, se introduzirmos aqui, nesta sala, uma única torção, ainda que seja uma banda de Moebius, qual será, 3
Cf. Anexo, nota 3, p. 297 adiante
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então, a orientação da luz? Foi isto que Velázquez fez no quadro: ele desorientou a luz. É o cúmulo! E ainda não havia um Einstein para pensar isto, só foi pensado muito depois. Velázquez chegou e disse: “A luz não tem orientação possível se ela é considerada enquanto tal”. Pura maluquice da cabeça do artista? É como isto, como pura maluquice que, no Impressionismo e um pouco mais tarde, os artistas, aos gritos, urrando como feras, fauves, vão conseguir a pura luz, não orientada. Quanto a isto ainda não tenho nada para dizer. O que me interessou até aqui foi a luz enquanto tal, a pura superfície do espelho. *
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*
Há uma partição muito nítida neste quadro de Velázquez, mas é preciso considerá-la, às vezes, do ponto de vista das linhas de força que estão na superfície do quadro. Linhas de força que nos dão os pontos dominantes do quadro. Conforme o Esquema 2 acima, temos os seguintes pontos dominantes: M, no espelho R’r’, e N, no Aposentador Ap. Ou então, podemos, às vezes, considerar a partição do ponto de vista da perspectiva, conforme o Esquema 1: a perspectiva da parede lateral direita e a perspectiva das luminárias no teto. O tema que parece central no quadro é a Infanta que ocupa exatamente o seu centro, dividindo-o em duas metades: tanto do ponto de vista da construção dinâmica, quanto do ponto de vista perspético. A Infanta encontra-se no meio, dividindo tudo, rasgando o quadro em duas metades. E também, do ponto de vista dos volumes, da composição das massas, existe, de alguma forma, uma divisão simétrica com relação ao eixo central do quadro, onde se encontra a Infanta: de um lado, o artista, Velázquez, e, do outro, o par formado pela Aia e o Guarda-Damas, ou a mesma divisão com relação às duas meninas. Os autores chamam geralmente atenção para a oposição dinâmica entre as duas diagonais do quadro. Podemos notar que, enquanto os volumes
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__ acentuam a diagonal GH GH, do Esquema 2, na disposição dos_dois anões e na
inclinação do corpo da menina da direita, a outra diagonal, IJ IJ, acompanha o movimento da luz juntamente com a inclinação do corpo da outra menina, a que está à nossa esquerda. É pura questão de composição dinâmica. Mas, do ponto de vista da estruturação perspética dos volumes, Velázquez modificou, ali no teto, o lugar de, pelo menos, uma daquelas
luminárias. Como já dissemos, se aquelas luminárias estão numa perpendicular ao plano do quadro, elas, obrigatoriamente, teriam o ponto de fuga no ponto principal, que, no caso, seria no olho de Velázquez, ali representado no quadro. Então, podemos dizer que, do ponto de vista de Velázquez, aquela primeira luminária, a que está em primeiro plano, estaria na sua posição correta, ao passo que a outra, a luminária que se encontra mais ao fundo, estaria deslocada da sua posição correta. Velázquez fez uma torção na perspectiva para nos enganar, para construir aquele tal olhar de que falamos. Para determinar o ponto de fuga dessas luminárias, uma vez que isto só seria possível corretamente no quadro original, fiz uma forçagem perspética, o que me deu aquele ponto Z, na cabeça do cachorro – Esquema 1, triângulo XYZ. Mas desconfio que esse ponto de fuga, se determinado sobre o original, estaria localizado ali no canto inferior do quadro: ponto H, no Esquema 2. Este seria o ponto em que se encontra o Casal Real, em sua posição real. Este ponto H estaria justamente entre o rei e a rainha, aos pés do rei e da rainha. Há, portanto, um ponto de massa naquele cachorro, que força o nosso olhar para aquele canto do quadro. Além do que, podemos dizer que o cão é o objeto mais próximo do espelho e, também, o mais próximo do rei e da rainha no real. agora, as linhas de força do quadro – Esquema _Se ______considerarmos, ___ 2, retas HM e JN –, no que elas determinam os pontos dominantes do quadro, M e N, poderemos estabelecer uma cruz em perspectiva, conforme o Esquema 16, abaixo.
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Esquema 16
Existe uma cruz em perspectiva, cortando o quadro, a qual é determinada em seu eixo central pela dinâmica que liga o ponto H ao ponto M, sendo H um ponto situado entre o rei e a rainha, na posição real, e M, um ponto que também se situa entre o rei e a rainha, lá no espelho R’r’. O eixo transverso dessa cruz estaria determinado pela reta que liga Velázquez, V, ao Aposentador, Ap, sobre o qual incide o ponto dominante N. Ou seja, é como se houvesse uma perspectiva de uma cruz ligando Rei/Rainha a R’/r’, no espelho, e Velázquez, V, ao Aposentador, Ap.
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Tirando-se a cruz da perspectiva e reduzindo-a ao plano, temos a seguinte representação:
Esquema 17
Quero supor que existe um espaço dividido pela cruz, no que ela separa, pelo seu eixo maior, dois campos: o campo do rei e o campo da rainha. Apenas como lembrete, naquele momento vige o Barroco, e Lacan diz no Seminário 20 que o Barroco é “a história de Cristo, são corpos em gozo”. A cruz estava lá como símbolo de gozo, de morte, o corte de tudo. É como essa cruz, no quadro de Velázquez, onde temos a separação masculino/feminino. Nessa divisão promovida pela cruz, temos, então, um jogo de imaginário e simbólico muito intrincado. Eu diria que neste momento, na dinâmica desta partição, Velázquez re-instituiu a diferença sexual e mostrou dois campos, com a Lei vigendo no meio. O Aposentador é o tal, o pai da família. Não é o pai simbólico, é o representante da paternidade na casa real – lugar que Velázquez um dia veio a ocupar. Pela cruz que traçamos, Rei e Aposentador estão do mesmo lado, e duplamente, porque, lá no espelho para o qual Velázquez está olhando, eles também comparecem do mesmo lado. Quer dizer, é uma repetição entre imagem real e imagem virtual, que no caso do Rei é a mesma, e no caso do Aposentador é cruzada.
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Do outro lado da cruz, comparecem Velázquez e a Rainha. É como se Velázquez tivesse exigido, para a indicação da alteridade, uma postura feminina para si mesmo. Ele, enquanto artista, não enquanto obra, podia tratar da diferença, na medida em que se colocasse do lado do Outro. Comecem a juntar os cacos e vão ver a trama que Velázquez faz para nos mostrar o que é a Obra, e o que é Isso, o que é o Inconsciente. Assim, nessa partitura e nessa partição, está mostrado, com todas as letras, que o que se corta no quadro, o que o quadro corta enquanto o Corte que é dentro daquela Corte, não é senão a partição sexual, enquanto representante lídimo e, talvez, único e unário da diferença – a diferença sexual enquanto representação, enquanto representante da diferença. Velázquez pensa o que é a diferença através da diferença sexual. É claro que ele vai se utilizar do imaginário dos corpos machos e fêmeas, tanto faz. Entretanto, segundo nossa perspectiva, ele se colocou do lado da Rainha, do lado onde há espelho, dentro da Rainha, e nos mostrou que o Rei é pelo meio, ele reina mas não governa. Governar é impossível... Ele é Semi-Rei, ele semi-governa. Por isto, le mi-roi dans l’arène ou le miroir dans la reine. Existe o Rei, existe o masculino, mas existe o Outro. É como se, fazendo a partição entre Rei e Rainha, Velázquez fizesse a partição entre o Artista e o Marechal (o Aposentador). Se o Marechal da Corte Real pode tentar governar isso, quem pode dizer o simbólico disso não é o Marechal da Corte Real, mas o Artista do Corte Real. Está aí no quadro a dicotomia, a dialética entre a Corte Real e o Corte Real, entre Velázquez e o Aposentador, que Velázquez, não esqueçamos, também foi numa certa época. Quer dizer, Velázquez deu uma de Tirésias: situou-se de um lado, e de Outro, reconhecendo o que se passa entre os dois, que é o Corte que aqui se chama a Obra. Então, enquanto situado na Corte para poder secar o Corte, Velázquez teve que se supor no lugar do Outro. Outro é outro-sexo, o representante lídimo do Outro, sexo, que se chama A / Mulher, que não existe, aliás. Não estou dizendo que a obra tenha que recair, em seu ato poético, no lugar do Outro. E, vai aí uma questão que não sei se deixei clara no texto sobre
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Guimarães Rosa. Se o quadro – o quadro, não a obra –, segundo Lacan, se dá como objeto a, se põe no lugar do objeto a, é na medida em que ele se imaginariza como tal, pois o objeto a é aí do campo do imaginário, mais do que qualquer outro campo. Mas, por outro lado – e já não estou dizendo, agora, o que Lacan disse, naquele momento, sobre o quadro, mas estou dizendo o que ele disse sobre o sujeito, em suas formulações, me referindo à obra –, a obra se apresenta como puro corte, lugar de sujeito, portanto, lugar de puro significante, lugar de espelho, lugar de pura Lei. A Lei é isto, é essa superfície do espelho que instaura a diferença, corta e instaura a castração, diferença, isso que está inscrito no quadro de Velázquez. É o que podemos ver, como já tratei aqui, situado no Estádio do Espelho de Lacan: a castração, a emergência do sujeito, o espelho enquanto tal. Tudo isto está instalado naquele construto que Lacan faz para nos expor uma estrutura. E Velázquez está nos dando este testemunho. Mas, a Obra, se ela é da Lei, ela é esse homem ou mulher? Ela não é nenhum dos dois. Qual é o lugar da obra na diferença sexual? É puro corte, ou melhor, barra pura – ela é escansão. A Lei aí é Obra, é o ato-poético, pura escansão. A Lei é aquilo que emerge como diferença, como borda de furo, puro corte, puro interstício, inter-dito. É essa inter-dicção. É posto debaixo da Lei que o poeta pode chegar a nos mostrar a Lei – sob o império da Lei, referindo-se não às leis, não aos códigos, mas sujeito à Lei. Por isso, como dissemos, Velázquez foi ter que se colocar no lugar do Outro, para poder sacar o que há no meio. Isto é que é belo na figura de Tirésias, que é um poeta-representante-da-Lei porque ele foi, metaforicamente, para o lugar do Outro, ou seja, sacou que há Outro e, portanto, que não há Outro do Outro. Lacan disse da assunção do sexo para cada sujeito: “Para os homens, reconhecer que há mulheres; para as mulheres, reconhecer que há homens”. Só isto. Não se trata de assumir este ou aquele sexo, nada a ver com anatomia. Trata-se de reconhecimento do Outro. O que não deixa de ser conseguir posturar-se de algum modo, discursivamente, no lugar do Outro. Com isso,
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estou dizendo que a obra enquanto tal é a instauração, a instalação, a inscrição do ato-poético, essa torção: puro significante, puro corte. *
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O quadro, o trabalho de arte, o produto, cai no lugar do objeto. Mas, o sexo da obra, o sexo do ato-poético, qual é? Se dissemos que o ato-poético está no mesmo lugar do analista, certamente que a obra tem o mesmo sexo do analista, ou, do lugar do analista. Mas repetindo, qual é o sexo da obra? Recomendo que leiam Ornicar?, 22/23, que, por uma boa coincidência, me chegou às mãos às vésperas deste Seminário. Lá temos uma série de artigos que tratam do transexualismo. É um tema muito interessante de ser estudado, pois embanana muita gente. Os médicos têm uma saída, os psicólogos outra, etc... enfim, um monte de patacoadas. Não se pode confundir transexualismo com outras transações sexuais. Nada tem a ver com a homossexualidade, por exemplo. É cabeça de médico ou de psicólogo que pensa que transexual é homossexual que quer mudar de sexo. Isto não existe. Um homossexual sob análise faz questão de manter sua corporeidade e sua inscrição oficial, digamos assim, de identidade, no sexo em que está. Se não, ele deixa de ser homossexual, ela passa para o outro lado. A homossexualidade exige esta impregnância de um lado. Travesti não é transexual. O barato do travesti é o feiticismo da roupa e o feiticismo de um “baratinho” corporal. O que é um barato na cabeça de um travesti macho é que ele parece uma mulher, mas se a gente passar a mão, tem um troço. Na fêmea é a mesma coisa. Tanto é que, freqüentemente, ela não usa nenhum postiço para imitar o pênis. O travesti só quer o barato da fantasia indumentária e o barato da diferença que está lá. Nisto é que está aquela perversãozinha do travesti. Os transexuais são outra coisa. Não são, também, anfissexuais, e essa coisa que os jornais chamam de bissexual, coisa que não existe. Existem anfissexuais, ou seja, caras que passam para lá e para cá, dão uma voltinha,
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tudo bem. Tampouco são o dissexual, aquele que é isto ou aquilo. E nem unissex, nem do ponto de vista da indumentária. O transexual é um problema particular, que espanta as pessoas e mesmo os analistas. O transexual é alguém que “nasceu com o corpo errado”. Está absolutamente convencido de que, no caso, por exemplo, de ter um corpo macho, sofreu uma injustiça ao nascer, pois ele pertence a outro sexo. Ele não tem a menor vontade de ser homossexual. A maioria deles, ou quase todos, por exemplo, um macho transexual que quer ser mulher, se recusa a transar com homens, ou mesmo com mulheres, porque, se não, vai haver homossexualidade. Ou, então, aceitam transar com alguém da mesma corporeidade, mas não aceitam tirar a roupa; o outro tipo tira a roupa, mas ele não. Do contrário tudo fica falso. Eles declaram isto. O transexual está absolutamente convencido da sua identidade num determinado sexo, que é, supostamente, o outro daquele que o seu corpo lhe deu. Por isso, ele vai querer uma mudança na sua identidade. Ele quer mudar de sexo em juízo, através de novo registro, e no corpo, através de uma cirurgia. Isto cria um problema terrível porque, até o momento, ainda não se conseguiu uma cirurgia adequada. Os ditos especialistas em transexualidade, endocrinologistas, cirurgiões, etc., fora da psicanálise, dizem até que, freqüentemente, o transexual já fica satisfeito com apenas mudar de identidade – livra-se metaforicamente da anatomia –, desde que seja reconhecido por outrem como o que ele supõe ser. Um autor diz ser isto uma diferença de sexo-gênero. É meio difícil aceitar, mas isto vem figurar, pelo menos, essa necessidade de mudar, simbolicamente, de sexo, não exigindo necessariamente uma mudança anatômica. Mas, em última instância, o que os transexuais querem mesmo é que haja um tratamento adequado para mudá-los, radicalmente, inclusive anatomicamente, de sexo. A sexão, que é a diferença sexual – a sexão que está entre os dois sexos, o espelho que é a sexão –, é o próprio núcleo da estrutura psíquica. Por isso Freud coloca a psicanálise girando em torno do sexo. Em qualquer lugar desses que citei, seja no sexo do dissexual, anfissexual, transexual, travesti, homossexuais machos ou fêmeas, sejam masculinos ou femininos, eles são
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completamente diferentes uns dos outros, não têm a mesma estrutura, não há simetria de espécie alguma entre eles. Qualquer deles está em mal-estar diante da sexão, porque não existe nenhuma posição que seja a verdadeira. Só existe a verdadeira naquilo que a análise supõe que é reconhecer o Outro, não fugir, não achar rolhas para tapar buraco do Outro, ao contrário da homossexualidade masculina que impera na face desta Terra. Neste número de Ornicar? Há um pequeno artigo de Cathérine Millot que me pareceu feliz. Ela é quem procurou o transexual para tentar fazer um estudo sobre o assunto. A demanda parte dela, portanto, não se trata de um analisando seu. Ela mostra um caso – não um caso analítico – de transexualismo a partir de ter conversado muito com um transexual que é um rapaz, que ela tem o respeito de chamar de Sr. Fulano (o nome é Gabriel), só, que ele era uma moça. Gabriel está absolutamente enquadrado no clube masculino: é homem que nasceu “xotal”, digamos. Esse transexual se submeteu a todos os tratamentos, fez cirurgias, tirou os seios, etc., tudo direitinho. Na França, a legislação já está avançada neste sentido, e estão trabalhando uma última legislação para tentar a passagem radical para o outro lado. Eles fazem uma cirurgia toda especial, e, quando a moça já é bemdotada, com um clitóris grande, a coisa fica mais fácil, digamos: puxam os lábios, colocam umas bolinhas de isopor... Vocês estão rindo? Mas é isto sim, por que não? É uma tecnologia como outra qualquer. Há cirurgiões especializados que dão declarações sobre o assunto. Eles fazem uma “prótese peniana”, como chamam, e conseguem um pênis relativamente satisfatório, funcionando com orgasmo e tudo. Embora o negócio seja um pouco precário, os caras se sentem muito bem. É bom lembrar que existem homens com clitóris que funcionam muito bem. O caso desse transexual – que já tem papéis com nome masculino e, portanto, é um rapaz – é considerado por Cathérine Millot como um caso bem particular: l’étrange, como diz ela. Aquilo que Lacan, no Seminário 20, mostra que é o significante mesmo: “besta”. L’étrange, o estranho, ou seja, l’êtreange, o ser anjo. É uma espécie de go-between, como também diz Cathérine
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Millot. O que ela mostra muito bem é que, depois da operação, esse sujeito passa para um estado aonde ele se sente muitíssimo bem, mas que não é uma passagem para o masculino. Depois da operação, não se tratava mais do falo imaginário de que ele suportava a função, mas do falo simbólico, como significante da diferença. Cathérine Millot vai, pois, surpreender esse sujeito, Gabriel, num grande bem-estar, tentando ser transexual, mais caindo num lugar intermediário, o que me parece bastante plausível. A cuca do cara deu uma volta terrível e foi se situar, depois da cirurgia, como numa espécie de anjo, num lugar intermediário. Ele não faz questão nem de transar sexualmente. Ele só fazia questão daquele lugar simbólico que funciona na sua fala, na sua postura, como uma espécie de anjo, de coisa intermediária. A autora se pergunta: será que ele é psicótico? O encaminhamento de certa psicanálise quer situar os transexuais no lugar da psicose. Eu não acredito nisto. Ela mesma diz que nada permite afirmar tal coisa. E se situarmos o transexualismo no caso da perversão propriamente dita, diríamos que se trata de uma defesa contra a psicose, que para Gabriel funcionou com sucesso. É um espanto! Quer dizer, se seguirmos a via da perversão, uma perversão bem-sucedida não cria nenhum perverso: ela defende contra a psicose e cria um anjo. Qual é o sexo dos anjos? Sejamos dignamente medievais. Um certo racionalismo clarividente quis acabar com esta questão, como se a Idade Média fosse completamente imbecil. Lacan disse que o analista é “a-sexuado”, o que tem conotações as mais diversas: poderíamos dizer que ele não tem sexo, é assexuado, ou, que este lugar do analista é lugar de sexo, objeto a. Ora, qual é o sexo do objeto a? Ele cai do lado feminino, mas é bem difícil dizer que o sexo a é feminino. O a é uma espécie de objetinho, de diamante, que corta, que percorre essa borda. Ele se imaginariza para o sujeito, porque não pode se dar como tal. É como imaginário que o sujeito o surpreende, mas a topologia e a lógica do objeto a é intersticial. O lugar do analista, se é lugar de espelho, de obra, de ato-poético, se é lugar, não de Tirésias, mas, dos passos de Tirésias, não será senão essa espécie
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de lugar neutro, angelical, como esse que está apontado no relato de Cathérine Millot. Eu diria que o sexo dessa “pessoa”, Gabriel, como o sexo da obra, como o sexo do analista, são todos o mesmo lugar. Por isso é que o analisando pode jogar imaginariamente, botar o analista de qualquer lado, na transferência. Ou seja, é o sexo da Lei, que é o Sexão, puro corte, aquilo que escande os dois campos, como mostramos com aquela cruz no quadro de Velázquez. *
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Partindo de nossas considerações, aonde pretendo chegar, se puder, não é em nenhum devenir femme, que salvaria o mundo – o que não descarta o fato de que, talvez, se os caras pusessem um pezinho lá fora para saber que existe um Outro, fosse importante – mas, simplesmente, a esse vigor da Lei que instala e aponta a diferença como tal. Não se vai salvar o mundo com todo mundo devenindo femme. Vai-se, simplesmente, reconhecer a alteridade, a alteração que a Lei causa na face da Terra. Se todo mundo devenir femme, acho que isto vai virar uma zorra, assim como na que se está, em que todo mundo deveniu homem, que é este pardieiro pederástico em que vivemos. O depoimento do poeta vem para nos dizer que o sexo enquanto sexão é instalação dessa Lei. Ambas as coisas, devenir femme como devenir homme, estão completamente errôneas. Do lado do machismo, essa tentativa de tornar tudo homossexual. Do lado do feminismo, uma tentativa que é idêntica à dos homens: tornar tudo macho. Por mais que venham falar dos direitos da mulher, estão é repetindo os homens. E, por outro lado, existe uma certa tendência feminizante que gostaria de transformar tudo em feminino – o que é, talvez, uma denegação da diferença, por outro modo. Posso acreditar, por exemplo, que Deleuze não esteja errado quando fala nesse devenir femme, pelo lado de que a mulher não existe, e de que existem as mulheres, mulheres diferentes, e de que essa diferença se exacerba diante do sujeito quanto mais ela é praticada. Mas o simples fato de querer um devenir femme integral, me parece recair, em última
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instância, no devenir homme. É extirpar a diferença: falicizar as mulheres é eliminar a diferença. Em última instância é isto, enquanto não se inventar um terceiro sexo. Lacan se pergunta por que Freud pensou o ça, mas nunca falou no lui, a terceira pessoa do singular. Eu, tu, ele, é pura indicação? Ou esse lui é o lugar de produção dessa outragem? Não estou chamando isto de terceiro sexo e talvez não seja preciso. Quero apontar para a sexão, para esse espelho que está no meio de tudo, este corte, puro significante, que, por não ser pensado, deixa tantos nessa confusão de ou todo mundo passa para o lado do masculino, ou para o lado feminino. Por que não manter a diferença, lembrando dela? O imaginário é muito cômodo e muito pregnante. Então, ao refletir sobre estas coisas, as pessoas, facilmente, ao invés de conseguirem conviver com essa barra, essa que o artista lhe mostra, que o poeta erige, querem, sair correndo, para um certo comportamento. Em termos de comportamento, certamente que as pessoas têm, por enquanto, que se transexualizar, no sentido de passar para o outro lado, mesmo. Quer dizer, não agüentam a barra intersticial da diferença e viram homens. É o processo, por exemplo, de Luce Irigaray. Mesmo sendo discípula de Lacan, seu trabalho quer nos mostrar a diferença num projeto que me pareceu imaginarizado demais. O que lá é ressaltado não é a Lei, a diferença, o corte. É “esse outro mundo e outras imagens...” que podem ser simplesmente imagens masculinas e respeito da suposta mulher. Das feministas não vale nem a pena falar, porque elas são evidentemente homens, para não dizer machistas. Quando o nosso caro Fellini faz um filme como A Cidade das Mulheres, elas trepam nos seus sapatões, sobem nas tamancas, porque ele deixa claro o de que estou falando. Será tão difícil tentar manter a diferença, ou seja, reconhecer que há Outro? Estou sempre buscando o testemunho dos poetas, porque eles sempre reconhecem isto, e insistiram em nos apontar. Mas as pessoas ficam olhando para as imagens, pois, afinal, precisamos de imagens. As pessoas pensam em metáfora produzida, não na metáfora enquanto produção. Ficam com a
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sintomática opaca, porque o quadro é um sintoma que está constituído ali. Ficam todos olhando para essa opacidade, essa realidade do sintoma, essa produção metafórica, sem pensar que a metáfora foi produzida nesse golpe do interstício. O efeito da produção não é o que aí interessa. O que interessa n’As Meninas de Velázquez é o Corte Real que ele expõe. A estrutura da neurose precisa justamente dessas imagens para uma ancoragem, por isso vemos a histérica sempre querendo trocar de lado e o obsessivo sempre indeciso. Mas não estou falando desta ou daquela estrutura diante disso, estou falando dessa reflexão que até leva a saídas políticas, recaindo nesse imaginário, quando teríamos uma política histérica, uma política obsessiva. Temos que pensar a partir da estrutura e fazer viger a diferença, que é a Lei. Quando um poeta consegue um ato-poético, ainda que o homem seja neurótico, alguma coisa ali se desfaz para ele. Alguma coisa da ordem da análise se passou para que ele possa deixar sair uma coisa assim. Ou, então, não é da ordem da análise na vida dele, é simplesmente que o inconsciente se diz como é em sua estrutura mínima, quer dizer, fala através dele. Aí está o grande erro, por exemplo, de uma Princesa Bonaparte, de um Charles Mauron, e de todos esses que tentaram fazer uma estética ou uma crítica de arte estudando a personalidade, a sintomática, analisando, por exemplo, o Sr. Allan Poe. O que nos interessa a vida de Allan Poe? Ou a neurose que ele tivesse, ou o pau-d’água que ele fosse? O que importa é que ele nos deu uma obra... Como, eu não sei. Dele é que não é... Certamente é do Outro. É claro que a mais-valia fica para ele... E como nós acreditamos mais na mais-valia do que na Lei, ele assinou o nome embaixo, ele pode ganhar os direitos autorais. Mas os jogos que o dito proprietário da obra faz com ela no mundo, isto depende do discurso do Senhor. A produção, a existência, a emergência do ato-poético, não estão nessa mais-valia. Nada impede que um neurótico seja acometido de alteridade e produza uma obra. Ele fala, ele faz, às vezes, poemas deitado no divã. É ato, é ato-poético. O que se pode dizer dele não cabe em nenhum genitivo, e muito menos em nenhum genital.
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Costuma-se dizer: a obra do Sr. Velázquez. Isto é coisa de historiador de arte. Velázquez é o apelido desse conjunto de obras, ou será que esse conjunto é que é Velázquez? Acho que Velázquez é o que é constituído por esses quadros em si. 24/JUN
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APARECEU A MARGARIDA O Seminário começa com a audição da abertura da cantata Carmina Burana, de Carl Orff, enquanto são distribuídas margaridas a todos os presentes. Vimos que na construção do quadro As Meninas, Velázquez teria nos dado como que a formulação mesma do ato-poético na perda dos sentidos a que chega o significante, mediante uma torção que unilateraliza a superfície e, portanto, proíbe qualquer orientação. Mediante a introdução das figuras Reais – o rei e a rainha –, Velázquez inventa uma dupla projeção, dupla reflexão especular e, com isso, a relação da imagem do Casal Real para com o resto das imagens é uma torção, produzindo na superfície do quadro uma banda de Moebius. Situamos aí a topologia do espelho enquanto superfície unilátera, correspondente topologicamente à borda de um furo e lugar do ato-poético, e, com isso, a reinscrição do chiste, que é repetição dessa borda. Reiteramos, também, o que já dissemos em outras ocasiões sobre o lugar da obra de arte enquanto portadora do ato-poético: lugar do espelho, dessa superfície unilátera, desse corte. Situamos aí o lugar mesmo do analista, no ato analítico, homotópico do ato-poético, ou seja, lugar onde o sentido, por se fazer, se perde na interpretação que é sua denúncia: apontar para o significante enquanto tal, instalando o sentido ao mesmo tempo que o perdendo.
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Para terminar, mostramos, em perspectiva, aquela cruz que separaria, mediante o eixo maior, vertical, dois campos de vigência da Lei. De um lado, o Aposentador e o Rei com garantias da lei do homem, da referência à castração enquanto tal e, portanto, ao Nome do Pai e à possibilidade de limitação e de paratodização. Do outro lado, Velázquez e a Rainha, isto é, a representação do artista, o poeta, e da Rainha, aquilo que poderíamos chamar a Outra Lei, não necessariamente em contraposição, mas em diferença para com a primeira, introduzindo a referência ao furo, à falta, o que torna o Rei apenas um semi-Rei – a comparação, na verdade, é da mesma ordem da que fizemos entre a lei de Creonte e a lei de Antígona. E falamos na vigência da LEI no interstício dessas duas posturas possíveis para o ser falante. A referência que pedimos, no percurso até aqui, à Lei, é a referência fundamental a essa diferença que o campo psicanalítico, freudiano, equacionou como diferença sexual: a única referência possibilitadora de uma heterologia, disso que podemos chamar de heterossexualidade. *
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Para encerrar, hoje, sem muita delonga, vamos ao Seminário 11, onde Lacan apresenta sua concepção do que seja a pintura e do que seja um quadro, relembrando um texto que aparecia naquele momento, póstumo, Le Visible et L’Invisible, de Merleau-Ponty. Lacan mostra como o filósofo, na medida em que pode se afastar de certas obrigações para com a filosofia, vai encontrar o seu autêntico percurso, chegando, com considerações cada vez mais apuradas, a conceber coisa da mesma ordem que Lacan atinge por seu percurso na psicanálise. Nesse livro, cuja maior parte é de anotações para uma futura redação, Merleau-Ponty apresenta sua idéia de quiasmo entre o sujeito e o mundo, a reversão entre o sujeito e o mundo, que numa nova instauração vai diferir em muito daquilo que ele propôs na sua Fenomenologia da Percepção de
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anos anteriores. Lacan vem demonstrar como esse quiasmo é rigorosamente verificável. Mesmo do ponto de vista da pura apreensão geometral, é o que se pode equacionar a partir de uma ótica, do estudo da reflexão e da projeção no fundo do olho. Se considerarmos a imagem de um objeto que está situado diante de um sujeito, a percepção desta imagem por este sujeito se dá segundo uma projeção desse objeto num plano que se interpõe entre o sujeito e o objeto. Isto nada mais é do que o esquema da construção perspéctica do Renascimento, cujo melhor exemplo é o da famosa “portinhola” de Dürer, que ilustra a sua Teoria da Perspectiva.
Dürer coloca uma tela, ou vidro, entre o observador e o objeto, para traçar os raios visuais do olho ao objeto, constituindo sobre a tela, anteparo intermediário, esse objeto observado geometralmente. Podemos dizer que o sujeito que observa o objeto emite um jato de luz sobre esse objeto e, na medida em que o objeto, ou melhor, o quadro se faz supostamente presente
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à frente do sujeito, ele se rebate sobre o fundo do seu olho, no que, reversamente, é o sujeito que vai se situar lá no quadro. Este revertimento proposto por Merleau-Ponty é o mesmo que faz Lacan quando situa o sujeito enquanto tal, representado de significante para significante. O quiasmo é essa reversão. Quiasmo é uma figura de retórica; é uma inversão de ordem de segmentos fraseológicos que são tomados simetricamente. Os dicionários e as gramáticas costumam, mesmo em português, citar um quiasmo muito exemplar de Victor Hugo: un roi chantait en bas, en haut mourait un dieu, um rei cantava embaixo, em cima morria um deus. O quiasmo é essa relação estilístico-retórica de reversão das posições imagéticas. No exemplo citado, estão em quiasmo tanto o sujeito criticado como o predicado e o adjunto circunstancial nas duas frases, na ordem sintática em que o quiasmo se compõe. Essa questão do quiasmo, essa reversão, é aquilo que se repete na aparente simetria de defrontação do sujeito com sua imagem diante do espelho, como tentei anotar no texto sobre Guimarães Rosa. Diante do espelho, o olhar, na verdade, se separa como um objeto que transita, que transa, pelo menos aparentemente, de lado para lado, já que é ele que percorre a superfície mesma do espelho, lugar de onde ele teria caído, exatamente como de uma banda de Moebius, de um corte. Esse objeto que teria caído daquela borda é o objeto perdido, que ali se qualifica como olhar. O sujeito olha para o espelho, projeta um olhar sobre o espelho, numa espécie de tentativa de amarração, de reconstrução desse olhar sobre as imagens, e se depara com o rebatimento em pingue-pongue desse olhar, a partir da imagem que surpreende olhando para ele próprio, a sua própria imagem – aí que é impegável o olhar. Na medida em que o sujeito é olhado pelo espelho, o olhar se transmite como objeto, quica de lado para lado, ou melhor, o sujeito é olhado pela imagem que reflete seu olhar. Mas, na verdade, esse olhar sendo objeto, pode cair dessa relação especular, rolar e roçar pela superfície do espelho. Agora é o espelho que olha tudo, é sobre ele que
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o olhar se constitui. Ou seja, é o espelho que constitui o olhar. Lacan diz mesmo que o quadro é algo constituído como uma armadilha de olhar, capaz de prender repentinamente o olhar do sujeito, mas que, no entanto, se apresenta destacado quando, por exemplo, o sujeito se movimenta e as peças do quadro não se movimentam na visão geometral. Isto faz com que o sujeito tenha que ler o que se coloca no quadro como faz o sujeito no texto, de significante para significante. Ao mesmo tempo, o quadro, por ser portador desse olhar que resvala sobre ele, se constitui, se dá como sendo, se apresenta no lugar do objeto a. Aí é que Lacan nos mostra que o olhar é um objeto a, coisa que havia escapado a Freud. O quadro se dá, portanto, como objeto para um sujeito que, eventualmente, na medida em que parou, estacionou diante dele, poderia colocá-lo no lugar do objeto por ele procurado. Lacan diz que um quadro, em última instância, é como se o pintor nos dissesse: “Queres olhar? Pois bem, então veja isto!”. E ele brande, diante de um sujeito, um objeto a. Se os quadros são amados é certamente porque acabam apresentando, para um ou para outro sujeito, certa localização do objeto. Vamos fazer, neste ponto, algumas considerações no nível da alíngua, do atingimento estilístico de um artista, de um poeta: o momento em que o poeta chega a desejar, a evacuar – o termo seria este – a sua obra, aonde podemos reconhecer a sua alíngua, que não é senão o seu estilo. Alíngua é o lugar do chiste, do reviramento. Ela é borda unária, é superfície unilátera, por isso a lingüística não consegue dar conta dela. Ela revira sobre si mesma e é capaz de fazer com isso qualquer coisa. Havendo tempo, talvez tempo para compreender, ela é capaz de transformar-se em qualquer coisa, pois um significante sempre pode ser dado por outro, ou passar para outro: metáfora e metonímia. Alíngua é o lugar onde se executa o processo primário. Seguindo as pegadas de Saussure, não do Curso de Lingüística Geral, mas nos largados da sua loucura, nas gavetas do impublicável, encontramos a grande questão do anagrama e sua relação com o ato-poético.
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O anagrama não é estritamente da mesma ordem do quiasmo, mas é, talvez, da mesma topologia: os reviramentos do significante no corpo da língua, produzindo, a partir dos mesmos elementos fônicos, significantemente situáveis, reviramentos de significantes e reviramentos de sentidos. Um anagrama que além de ser anagramático é quiásmico, é o famoso anagrama muito caro à Igreja: ROMA/AMOR. Nós outros temos um anagrama extremamente interessante, que não cabe em francês, entre LETRA e ALTER, o Outro. O anagrama é da ordem desse reviramento que alíngua instala: a letra de cada um é outra, letra. Aqui estamos de retorno a duas inserções do que é essencial na estrutura do falante em relação à Obra: o valor quiásmico do quadro enquanto reviramento, e o valor quiásmico e anagramático da alíngua, tal como se inscreve no quadro. Foi o que nos possibilitou todo este passeio como analisandos, repito, na com-sideração dessa obra de Velázquez, sem dizê-la toda. Pode-se falar dela, mas não toda, ficando ela, então, à disposição de outras com-siderações, se não delírios. Retomemos, pois, a questão, por enquanto situada referentemente ao quadro, da Lei – para que Lei aponta Velázquez nesse testemunho? Assim como a questão da alíngua que no quadro se inscreve, uma vez que alíngua é, pura e simplesmente, a vigência dessa Lei, dessa diferença, na medida em que não existe a linguagem e nem existe a língua no sentido do lingüista. Existe apenas esse a minúsculo língua, que não deixa de se dar como se fosse da ordem da causa do desejo, produção de sintoma, como uma mulher. *
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Tentaremos a possibilidade de separar tanto Lei quanto Língua em quatro níveis de seus surgimentos, de suas emergências entre nós: dois níveis, eventualmente, efetivamente verídicos, digamos assim, e dois outros que se fundamentam na aparência.
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Temos, no primeiro nível, a LEI escrita com três letras maiúsculas. Trata-se de uma conjetura, ou seja, simplesmente aquilo que “se diria”, como real impossível. Ou melhor, trata-se de nossa necessidade de supor esse real, na medida em que algo de impossível de se inscrever pinta diante de nós, na dureza do real. Na verdade, só temos relação com a LEI nesse nível mais alto, na medida em que o real da diferença se impõe. Temos, então, que conjeturar esse real de que Lacan diz ser impossível inscrever-se e que se consubstancia e se reduz, em última instância, ao real da diferença sexual, da relação sexual impossível. Esse real é referente ao registro de ser impossível inscrever-se a diferença. Nada tem a ver com a realidade. Por isso estou dizendo que conjeturamos, falamos a respeito de alguma coisa que chamamos real, porque se pudéssemos nomeá-lo, ele se nomearia. É impossível até chamá-lo de real,
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pois já é apelido, é metafórico daquilo que é impossível inscrever-se e que só se nos aponta pela LEI. Num segundo registro, ou segundo nível, em seqüência ao nosso esquema, temos a Lei com L maiúsculo. É a Lei que já situei como aquela que nos daria a referência para a função social, pura e simplesmente, sem necessidade de referenciação à cultura no nível em que, partindo de Benveniste, situei como frater em contraposição ao adelphós que se situa na ordem da consangüinidade. Ou seja, o frater diante da Lei, diante do reconhecimento de sermos falantes, uns reconhecidos pelos outros. Foi o que, naquele momento chamei de Lei Divina, quer dizer, a Lei que nos vem do Outro e que é aquela a que se refere Antígona quando se defronta com Creonte. Nessa Lei foi que tentei situar a possibilidade de, ainda que pseudo, digamos assim, um universal. É a diferença funcionando em qualquer situação: se não paratodiza, pelo menos funciona sempre, a cada caso. É a Lei da diferença de sujeito para sujeito. É puramente o reconhecimento da diferença, a qual, em última instância, vai ser localizada pela alíngua, de que falaremos adiante. É desse vigor da Lei, instalando esse corte, instalando a diferença pura e simples, entre cada um e qualquer outro, que vai se retirar um valor sintomático para se tentar dizê-la. Isto porque, nesse segundo nível, essa Lei não se saberia dizer, pois ela mora ainda no regime da enunciação, da pura diferença pintando a cada movimento pulsional. O terceiro nível é a lei com todas as letras minúsculas, a qual vai instalar-se sintomaticamente. Isto porque, se não pinta um sintoma, a Lei não encontra palavras para se dizer, e, no regime do sintoma, ela encontra palavras, mas não todas, por não poder dizer-se inteiramente. É esse sintoma que estou chamando de lei minúscula, porque é nessa tentativa de dizer a Lei que ela vai coagular-se em sintoma. Ainda não estou falando das leis que vigem nesta ou naquela sociedade, nesta ou naquela cultura. Estou falando, e por isso fiz uma escansão, da lei tal como ela se apresenta no que chamei de cultura, no fundamento de toda cultura, como sendo a proibição do incesto. Situei a proibição do incesto como fundadora da cultura, enquanto
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enunciado a partir da Lei que proíbe. Não proíbe necessariamente isso ou aquilo, mas é enunciado de um certo regime de lei, é um certo enunciado legal, portanto. Com isso estou querendo dizer que estamos longamente situados na ordem do incesto, na ordem neolítica, nesse sintoma que aí está repetido longamente, talvez, por uma inclinação qualquer, que veremos melhor quando tratarmos de Lévi-Strauss, no próximo semestre. Essa lei, no terceiro nível, é a fundadora do adelphós, do irmão consangüíneo da ordem de parentesco. É a regra enquanto lei humana que, em última instância, só mantém configuração pelo poder instalado por certo sintoma. É aquilo que chamei de Nat/Cult, a cultura como transformada da natureza, quando a diferença começa a indicar o comportamento na ordem do parentesco. Aqui já existe o comportamento porque “é proibido casar com a mãe”, pelo menos, além de outras proibições rebarbativas. O quarto nível da Lei, chamei a l-e-i, com letras minúsculas separadas para significar sua fragmentação pelos códigos parciais que aparecem no seio da cultura. São as diferenças culturais, as regras de cada cultura, a regulamentação parciária dos comportamentos. Estou querendo dizer com esta divisão da Lei em níveis que, a partir daquela linha tracejada – conforme indicado no esquema com a letra – para baixo, ou a partir do terceiro nível, o que vamos encontrar é a massificação, se não a “machificação” da Lei. É a lei do homem, que vigora a partir de um sintoma. Embora herdeira da possibilidade sintomática de se instalar – herdeira da única saída que existe que é a fundação de uma alíngua por via sintomática – aprisionando-se nesse sintoma e querendo dar conta dele, não como puro sintoma que recai no real, não como alíngua enquanto tal que se revolve sobre si mesma, mas procurando, para esse sintoma, uma regragem universal: aquela que nos é conferida pela possibilidade masculina, a partir do temor da castração, a partir da obssessiva referência ao Nome do Pai, não da simples referência, mas da obssessiva, ou seja, da idealização desse nome. Vejamos, agora, os quatro níveis da Língua, que pensei em paralelo aos da Lei. É o lado B do Esquema 18.
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No primeiro nível – paralelamente ao que chamei a LEI como conjetura sobre aquele real que pinta e do qual não se pode dar conta, não se pode escrever –, temos o simples aparecimento dos falantes: o surgimento, em cada sujeito, disso que chamamos o falesser, traduzindo o parlêtre de Lacan. Aqui direi que há-língua, com verbo haver, há falesseres. Neste nível, deparamonos com o real e ele nos garante até a conjetura de pensar a LEI, com três letras maiúsculas, que é simplesmente o real pintando, e, no que ele pinta, a gente fala, pois que pinta o simbólico. No segundo nível, o que fala, no que fala e como fala, se instala esse falesser, sintomaticamente, numa alíngua absolutamente incomensurável, de cada alíngua para cada sujeito. É só nos remetermos ao texto de Milner, L’Amour de la Langue, onde esta questão está posta com muita clareza. Este segundo nível é o mesmo da Lei, com L maiúsculo, que vem como sintoma. Esse sintoma que aí se coloca, essa alíngua, não se pode regrála nem universalizá-la, nem mesmo completar sua gramática. Esta é a tentativa que encontramos, sobretudo no discurso universitário, de estabelecer, a partir da alíngua, alguma coisa que resulta sempre num mal-entendido, mas conseguindo, afinal de contas, comunicar com um troço que não foi feito para tal. Alíngua não foi feita para comunicar, pois se assim o fosse, comunicavase. Mas alguma residual comunicação consegue emergir e, com isto, os semiólogos, os lingüistas e outros, na vigência do discurso universitário, querem por força nos entregar – haja Chomsky como exemplo atual – A Linguagem. Com essa tal linguagem, já estamos no terceiro nível, quando tento fazer pequena ou grande denúncia. Trata-se de que essa idéia de linguagem, como penso e como tento demonstrar, é a mesma idéia que vem na fundação da cultura como ordem de parentesco, a partir da interdição do incesto – aquela lei no terceiro nível, ou seja: a universalização do sujeito mediante uma regragem universal. A antropologia nos deu uma lingüística onde se procura mostrar qual seja a linguagem do homem: são as Estruturas Elementares do Parentesco, segundo Lévi-Strauss. Não estou querendo dizer que por trás do que ele coloca não esteja vigendo a estrutura, mas certamente que não se trata daquilo.
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Em conclusão, temos o quarto nível, onde coloquei a língua, separado. Este é o nível que a lingüística pode abordar – já que a linguagem ela não pode – porque, neste campo menor, ela é mera conjetura de quem reduz o somatório de alguns falantes a uma certa regragem. É a língua enquanto essa coisa que está nos livros dos lingüistas, cujo Outro é alíngua. Milner coloca muito claramente em seu texto: a língua é a tentativa de supor o real da alíngua. Se a língua, então, tem como seu Outro alíngua, levando-se esta questão para as fórmulas quânticas da sexuação de Lacan, a língua dos lingüistas seria uma tentativa de fazer olíngua, ou seja, de constituir olíngua universitário, olíngua dos gramáticos, já que Lacan nos trouxe alíngua – prefiro chamar olíngua ao que Lacan chama La Langue, separado. Olíngua é da mesma ordem da l-e-i, ou do l-e-i, se quiserem. Voltando a invocar o testemunho que Velázquez nos dá n’As Meninas, vemos que ele está nos mostrando exatamente a vigência dessa diferença, masculino/feminino, na partição que mostrei com aquela cruz – Esquema 16 e 17 –, que no quadro está posta com muita clareza na semi-postura de poder do rei. Isto é, a mesma partição que Lacan nos mostra nas fórmulas quânticas da sexuação. Colocamos, na vez anterior, o vigor da Lei justamente no interstício entre um lado e outro, masculino/feminino, no reconhecimento de um pelo outro como diferença, mas é importante notar que há uma coisa extremamente forte na formulação de Lacan: do lado H’, do lado de A / Mulher, que não existe, vigendo em cada postura radicalmente feminina, já há diferença. Mulher não é um anjo. Mulheres não são anjos, são seres partidos, divididos entre a referência ao furo e a referência ao falo, referência ao gozo-do-Outro e ao gozo fálico. Quer dizer: ali, na postura feminina, já vige a Lei nas suas duas vertentes. A diferença entre os dois lados estando mais ou menos situável e evidente do lado feminino, é o que permite Lacan dizer que “as mulheres são muito mais homens do que os homens”, no sentido da espécie. É, também, o que me permite dizer que, do ponto de vista da inserção significante – contrariamente à colocação de Freud do ponto de vista libidinal –, o sujeito primeiro se postura como mulher para, depois, eventualmente, posturar-se como
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homem. Ou seja, a mulher é mais antiga. Mesmo segundo os biólogos, do ponto de vista hormonal, todo sujeito, ao nascer, hormonalmente é mulher. É preciso que haja uma impregnação de hormônio masculino para que, depois, o sujeito venha a se tornar homem. A Lei mais antiga é a de Antígona, a “antigona”, a que reconhece a diferença de saída. A tal da cultura, como a coloquei, aquilo que é designado pela ordem de parentesco com assentamento na interdição do incesto, é apenas um sintoma... poderia ter sido outro... poderá ser outro... pode ser outro. A homossexualização generalizada dessa cultura é que vem nos impor essa obrigatoriedade de sermos cultos: “o homem é um ser cultural”. Mas o homem não é um ser cultural, é preciso que se entenda isto. Aqui está o retrato da cultura. Ela é esse elozinho em branco: Real, Simbólico, Imaginário e Sintoma (). Esse elo poderia ser outro. A cultura é o sintoma que está no nó borromeano a quatro. É esse elo que nos deixa de quatro.
A Lei encontra referência suficiente no nó borromeano a três, com seu entrelaço borromeano da estrutura, RSI, onde vige o impossível e onde se engasta o objeto a. Poderíamos dizer, talvez, que o nó borromeano a três, como estrutura da Lei, garante a enunciação, isto é, o movimento do desejo. Só que não encontra palavras para enunciar isto, porque sem uma alíngua, sem um sintoma, o enunciado não se concretiza. Quando o nó borromeano a três, segundo Lacan, sofre o golpe que o desfaz ao mesmo tempo que o
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recupera, com um quarto elo que é o Sintoma, é que se constitui o nó borromeano a quatro. Se alíngua, qualquer alíngua, é sintoma, por outro lado, não é forçoso que alíngua inclua a cultura, isto é, a ordem de parentesco. Quando Lévi-Strauss diz que “a proibição do incesto é universal como a linguagem”, podemos levantar que, na cultura, a inclinação imaginária, tomada da reprodução regrada, instalouse nas alínguas como enxerto parasitário, sintomático. A via de facilitação desse enxerto é certamente a inter-dição que vige em cada alíngua, ou seja, não se pode dizer tudo, alguma locução é proibida, é impossível. Entretanto, nenhuma alíngua, aprofundada cada uma em sua estrutura, não nos apresenta nada que seja da mesma estrutura de uma ordem de parentesco. Fala-se em famílias de línguas, famílias de palavras, etc., mas é mera analogia, para dentro da língua, a dos lingüistas, do que se lê na ordem de parentesco. Se cada alíngua é estritamente da ordem particular, semelhanças entre elas não as arrolam em nenhum grupo, e menos ainda em nenhum universal, em nenhuma linguagem. Não há nenhum universal para alínguas. Há um universal para a cultura, isto é, para a ordem do parentesco: é a proibição do incesto que embarga que se suba na escala das filiações – apenas descendentes –, com o que se embrulharia ou se destruiria essa ordem. A interdição do incesto, universal cultural, é da ordem do para-todo – x, para todo homem na cultura há interdição do incesto – e, com isso, vai-se produzir a sutura do para-não-todo, x. É uma sutura produzida pela lei dos homens, é algo que se poderia chamar de castração velada: a castração lá está e, em seguida, é velada pela própria produção do para-todo. Castração velada é aquela que se monta, primeiro, reconhecendo o furo do Outro e com isto arrolhando o furo do próprio corpo; segundo, espelhando-se no Outro que é furado para, em seguida, terceiro, reconhecer o furo no próprio corpo; e quarto, que é o momento de velamento, suturando o corpo do Outro – as quatro fases da inserção significante do sujeito, desenvolvidas com base no texto dos Lefort. O masculino precisa instalar o furo e, depois, suturar o furo do Outro, S (A / ), para poder paratodizar. Se essa
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referência ao para-todo se torna obssessiva, esquece-se definitivamente o furo do Outro, tapa-se-lhe o furo. Não existiria o masculino sem o para-todo, mas dá-se que o paratodo é uma promessa de sutura, como Jacques-Alain Miller nos mostra num texto bem antigo, A Sutura, que publicamos na revista Lugar, nº 4. Ele trata da produção do zero como um número suturante, não como referência ao furo, na insistência dessa aritmética falsa que Frege denuncia num trabalho que escreveu sobre o zero lá nos Princípios da Aritmética. A insistência nessa suturação do zero vai criar isso que Freud teve que reconhecer que é o estatuto homossexual do homem: para ser homem é preciso, antes de mais nada, estatuir-se homossexualmente, velar, de algum modo, aquele Outro. Com isso, digo e repito que a tal da cultura é concebida como sintoma. Podemos
embutir no meio da palavra cultura o sigma do seu sintoma : Cultura. A CULSTURA é apenas uma costura, uma das costuras possíveis, nada mais. Neste ponto tento fazer uma diferença entre artifício e cultura, pois, do jeito como a cultura nos impões que ela é universal, constantemente confundimos estes dois níveis. A origem etimológica da palavra artifício, segundo a maioria dos especialistas, vem do indo-europeu are, que vai dar arti, que em latim significa: ajustar, encaixar. Em última instância, em todas as palavras que este radical are vem produzir efeitos significantes, teremos sempre presente a idéia de articulação. Assim é que, por exemplo, na forma ar do latim, vai dar artus que quer dizer membro, isto é, um membro que se articula, de onde vem articulus, articulação. Ars, artis, que hoje chamamos de arte, em latim tinha o sentido de maneira, ou maneiro, ou seja, maneira de bem articular, de bem encaixar. Donde o iners, inertis, sem arte, inábil. Também temos em latim arma, que vem do grego arthron, articulação, que com um acrescentamento da letra i vai dar arithmós, número. Ou ainda com o acrescentamento de s e m, também no grego, originou arsmo, harmonia: a arte da justa proporção. Na forma re, com um acrescentamento da letra i, temos em latim ritus que quer dizer o processo de repetição de uma articulação feita.
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No latim popular a palavra arti tem o sentido de mister, que em francês é métier, técnica; e artesão, que vem do italiano artiggiani. Artesanato, artesanal, artelho (que se articula), são palavras que se originam do latim articulus. O latim erudito deu-nos artista artístico, artigo, articulado, desarticulado e, sobretudo, o artifício de que falei, de onde saiu arte, que nasceu no século XIII, tirado do artificium que significava o métier, a produção, o mister do sujeito, ou a sua arte, a sua habilidade, a sua astúcia. Isto é o que quer dizer o artificium, os chamados fogos de artifício – fogos feitos com habilidade de articulação –, ou o artificial, o ritual, o ritualismo. Em grego, o radical are, suposto indo-europeu, vai dar artrite, artritismo, que são doenças das articulações. Ou, ainda, podemos ter as palavras artrose, artrópode, aritmética, logaritmo e harmonia, conforme disse, divisão harmônica. Tudo isto que acabo de articular é que contraponho à cultura. Os estudiosos da pré-história ficam com a cuca fundida, pois querem reduzir de qualquer modo a pintura rupestre à cultura, sem ter o menor registro para tanto. Mas aquilo é Arte! Não precisamos de cultura para fazer arte, para fazer artifício. O artifício é da ordem do processo primário: a possibilidade de, com astúcia, articular os significantes – sem ser preciso estar submetido ao sintoma da cultura. Mediante arte é que inventamos sintomas, ou que os cristalizamos de algum modo. A arte vem primeiro... A cultura vem depois – e nem precisava ter vindo. Por terem na cabeça como indiscutível a oposição natureza/cultura, muitas pessoas, não suportando a pressão da cultura, dessa imposição da ordem do parentesco, para escapar dela tentam refugiar-se no que supõem ser a natureza. É a moda. A pressão da cultura é terrível, insuportável, porque é um sintoma imperialista, e as pessoas pensam que vão conseguir fugir dele “indo para a natureza”. Por que não fogem para a arte, que é o único lugar para onde o homem pode fugir? Ou seja: para a invenção. Para a natureza não há como fugir, porque, a natureza, não há. Não há para o falesser, nenhuma natureza, senão como real impossível de se inscrever na estrutura. A oposição de que essas pessoas não se dão conta, a que verdadeiramente existe, é a do artifício: arte/cultura.
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A cultura pode – e deve – ser retomada e, talvez, dissolvida, pelo artifício, o qual emprestará outros modos de articulação que não os exarados na cultura (= estrutura de parentesco). Neste ponto é que o artista poeta vem nos dar seu testemunho. *
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Voltemos ao quadro onde, com arte, só aparentemente no imaginário, Velázquez nos apresenta a Corte Real, mas insiste em nos dar o Corte Real na referência daquilo de que não abre mão: A Lei. Aliás, a Lei que Velázquez nos aponta é o lugar onde deve chegar uma análise no seu fim, que é o atingimento do que indica a ética que fundamenta a psicanálise: “ir até no rabo da palavra”, como diz Guimarães Rosa, ou seja, Wo Es war, Soll Ich werden. O fim da análise é poder referenciar-se à Lei, é assumir o sexo. Quer dizer, segundo Lacan, para o homem, reconhecer que há mulheres; para a mulher, reconhecer que há homens. Não se trata de ser isto ou aquilo, porque não é o verbo ser que está em jogo mas, radicalmente, simplesmente, saber da heterologia que rege a ordem significante e que, diante de qualquer outro falante, estamos sempre no impossível da relação. Portanto, se o fundamento do homem é a homossexualidade, ele, por outro lado, está condenado a heterossexualidade... Condenado pelo Outro. O fim de uma análise é, segundo a formulação lacaniana do discurso psicanalítico, atingir o significante de fundação do sujeito, o significante sê-lo como puro significante. Mas é, radicalmente, nessa perspectiva e segundo um artigo muito bem construído de Jacques-Alain Miller, publicado em Delenda, o atingimento, o destacamento do objeto do sujeito: o sujeito verificarse causado, em seu desejo, por um objeto igual a x que é particular a cada um, no que A Coisa é absolutamente impegável para qualquer um de nós. A ética da psicanálise se fundamenta no real, no impossível, e, no entanto, não esquece a possibilidade de um certo cruzamento extremamente difícil de pensar. Voltaremos a isto.
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Retornando àquela cruz no quadro d’As Meninas, que separa os dois campos de referência de Lei, é interessante notar que alguma coisa se destaca por vias de construção dinâmica do quadro, por vias, sobretudo, de construção da iluminação. Alguma coisa de destaca, justo, talvez, debaixo do centro daquela cruz, do centro em perspectiva daquela cruz e no centro de todos os olhares daqueles protagonistas, quando eles se olham reciprocamente: o rei e a rainha olhando Velázquez, Velázquez olhando o rei e a rainha. Nesses cruzamentos de linhas, tudo gira à sua volta, em volta do centro da cruz que Velázquez quis botar lá. Quem está nesse centro? A Infanta, que Velázquez pintou um semnúmero de vezes, sempre encucado com essa menina desde que ela nasceu (cheguei mesmo a fazer uma fofoca de que, talvez, essa menina fosse filha de Velázquez, mas é pura fofoca, pois nunca me dei com a família real espanhola, sobretudo naquele século). No centro está a Infanta. A Infanta Margarida que aparece ali como desvelada, afinal, por Velázquez, depois que ele a pintou em tantos retratos e outras construções, tantos quadros de que já falamos. Ela aparece ali como sendo o objeto que ele destaca. Assim como o quadro é um objeto a, talvez do rei e da rainha, ou talvez dele mesmo, porque, afinal de contas, ela é a herdeira dessa Corte e, portanto, desse Corte. Ela está ali, no meio da cruz, como uma espécie de ponto morto, algo impegável, indefinível, em torno do qual gira todo o processo... Seja como for, Velázquez vem a destacar a Infanta como objeto, se não dele, objeto dessa obra, objeto destacável nessa obra, como num término de análise. Ela, a Infanta, é o objeto que sobra, no que o quadro se obra. O que é margarida? Este nome é interessante... Ela está em seu castelo Olê, olê, olá... ...vem do grego, margárites, margaron, que significa simplesmente essa cor com que Velázquez destaca a Infanta Margarida: o cabelo louro meio desbotado, assim como a roupa, meio bege. Em latim, deu a palavra margarita, que quer
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dizer pérola – cor de pérola. Engraçado que é o nome de uma flor que na verdade, é flor do campo. Em francês, a palavra margarita deu muitas outras, inclusive uma muito usada no jargão menor, digamos assim, que é margot, que já deu nome a muita gente. Margot em francês significa boneca, ou putinha. Uma putinha, o objeto a do que sobra da família, aliás Real no caso. Putinha no sentido diminutivo, uma garota que anda dando por aí para as pessoas. Margaridinhas do amor. O que é uma pérola? Uma vez que Velázquez situa esse objetinho, é para que se pense sobre ele. A pérola é uma concreção dura e brilhante que é considerada preciosa, quer dizer, vem no lugar de uma pedra preciosa. Freqüentemente ela é esférica, mas pode, às vezes, ser irregular. Ela é formada por camadas sobrepostas – aquela sua rotundidade – de um material chamado nácar que é secretado pelo epitélio da capa de certos moluscos. A ostra, por exemplo, é um deles. Entre a capa interna do molusco e a concha, o epitélio produz essa dureza de nácar para separar e isolar um corpo estranho. Daí que certas pessoas, folcloricamente, dizem que a pérola é uma doença da ostra. Ela é uma formação, digamos, reativa, não com o sentido que se pode dar em psicanálise propriamente, mas uma formação reativa a um corpo estranho. Isto que acontece na formação da pérola, não é exatamente o mesmo que se dá com cada um de nós? Para se instalar na ordem simbólica, o sujeito tem que receber o corpo estranho de um significante do Outro, o chamado S1: do campo do Outro se retira um significante para que se possa ter entrada na ordem simbólica com a senha desse corpo estranho, o significante sê-lo. Isto porque não havia nada lá naquele instante, de antes da passagem. É justamente em torno desse corpo estranho, ou a partir dele, de sua presença, desse exame de significantes que o sujeito vai tomar do Outro, que ele vai ter que fundar a sua pérola: o objeto a que o sujeito acaba produzindo para se separar e poder isolar sua diferença. Por isso Lacan insiste que o final da análise exige que o sujeito se aproxime desse objeto, da sua pérola, da sua mais preciosa formação, absolutamente, radicalmente diferente de qualquer outra, na maior irregularidade.
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Como se chama uma pérola irregular na linguagem que se criou com o tempo? Chama-se barroca. Daí a palavra barroco, que vem da língua portuguesa. Era, pois, o nome que se dava a uma pérola que não fosse esférica, ou seja, que fosse excêntrica, descentrada. E Velázquez põe no quadro a sua pérola barroca: não há nenhuma simetria entre as duas posições cuja escansão é a Lei. Por extensão, barroco, que em português designava essa tal pérola irregular, tornou-se sinônimo daquilo que é de uma irregularidade bizarra, e daí veio a significar bizarro, chocante, estranho, excêntrico, irregular, enfim, unheimlich, o mais familiar porque é o mais estranho. Esta é a razão da estranheza fundamental em que este quadro de Velázquez nos coloca, como acontece com toda obra de arte: sua unheimlichkeit. São pérolas que foram feitas para serem lançadas aos porcos, é claro – como já falei aqui, num Seminário intitulado Aos Cães e aos Porcos –, pois nunca se sabe com quem se está falando. Então, não se tem outra saída senão lançar pérolas aos porcos que, aliás, em francês, se diz semer de marguerites devant les porcs, plantar margaridas diante dos porcos. Temos um ditado que percorre muitas línguas, muitos países, “desfolhar a margarida”, que é uma espécie de tirar a sorte: bem-me-quer, mal-mequer... Lembro-me de que, quando criança, fazíamos uma espécie de teatrinho, talvez copiando de uma brincadeira francesa, em que havia uma garotinha, a Margarida, que ficava cercada por outras meninas – era uma mistura de brincadeira de roda e teatro. As meninas escondiam a Margarida e aí vinha um cavaleiro cantando “Où est la marguerite, etc.”, e ia tirando uma pedra, tirando duas pedras, tirando três pedras, até que aparecia a Margarida. Poderia ser bem-me-quer, mal-me-quer, mas o que importa é que aparecia a Margarida. Tirar a sorte... procurar o encontro com o quê? Com o Real, que não se dá. Velázquez nos mostra isto no quadro. Lacan já disse que a civilização é o esgoto. Ele chamava os livros que publicava de poubellication - poubelle, em francês, é a lata de lixo. Tentei traduzir com o verbo publixar: eu publixo, tu publixas, ele publixa... Quer dizer,
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na verdade, o poeta é o gari. E se a gente fica girando em torno dele, é mais lixo que se faz: um Seminário como este, por exemplo... A Margarida dá nisso... amor-gari-dá nisso de publicar mais lixo. Não é à toa que Ortega y Gasset, depois secundado por outros críticos que escreveram a respeito dessa obra de Velázquez, declarou que ele foi um artista que “brandiu a vassoura”, querendo com isto dizer que Velázquez limpou a cultura, limpou as culturas locais e jogou para a frente, para o novo. Acho correta a indicação, pois Velázquez, como qualquer poeta, acaba limpando a barra. Eles deixam a barra aparecer: o corte. E aí tem futuro. Limpando a barra, tem futuro. Está tirada a sorte, alea jacta est... E diante disto, nesse momento em que a obra se perfaz, em que a análise termina, não há outra coisa a fazer senão saltar para o lugar do analista, pois o que vem a acontecer diante desse objeto destacado é o assujeitamento do sujeito. Assujeitamento à causa do seu desejo que é esse objeto, portanto, assujeitamento à Lei, à ordem do Outro, à alteridade, ao campo do Outro. Esse assujeitamento é o que se encontra quando se tira a sorte: tiquê, chamou Lacan. Tiquê é a deusa grega que simbolizava o acaso, a chance. Ela estava, digamos, como lugar do destino, por cima de todos os deuses e por cima de todos os homens. Em latim se chamava Fortuna. Sobre essa deusa, Fortuna, é que falam os versos cantados – versos medievais descobertos tardiamente, a sacanagem medieval, o carnaval medieval – nessa espécie de cantata composta por Carl Orff, Carmina Burana, que ouvimos no início da sessão de hoje: “O Fortuna, velut luna...”, Ó Fortuna, lua volúvel. Ela, Tiquê, preside a todos os eventos da vida e tem todos os poderes sobre os homens. Ela leva, como seus símbolos, nas mãos, uma cornucópia e um leme – o leme da deriva, do Trieb –, pois ela detém a direção, com o rosto velado, sobre os negócios do mundo. Retomo o Seminário 11, de Lacan, no capítulo sobre a famosa repetição, a qual não é o automatismo puro e simples da ordem do princípio do prazer, algo tipo digestão, coisas que se repetem. Ilustrando com aquele sonho da criança morta, “pai não vês que estou queimando?”, tirado de
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um texto de Freud, Lacan nos diz que “nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real”. E nos aponta que o visado na repetição é um encontro, aliás sempre faltoso, com o real: “É, com efeito, de um encontro, de um encontro essencial que se trata no que a psicanálise descobriu - de um encontro marcado ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole”. A tiquê, “nós a traduzimos por encontro do real. O real está para além do autômaton... O real é o que vige sempre por trás do autômaton... O que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz... como por acaso”. O “por acaso” aí é essa Tiquê. O que se reproduz nessa repetição é o traumatismo inassimilável, ou seja, o mal-entendido, o não ter-se podido saber: não se ter podido dar conta da cena, seja ela qual for. “...É por isso que não se poderia conceber o princípio da realidade como tendo, por sua ascendência, a última palavra”, como querem tantos analistas: fazer do analisando um princípio da realidade. Não se trata disso, ele tem que chegar ao que está por trás do princípio de realidade, por trás da fantasia: à repetição do trauma que exige um encontro marcado com o sujeito. Encontro que se ilustra no texto do sonho: “pai, não vês que estou queimando?”, com o surgimento do real do inconsciente, da estrutura – a reinvocação da estrutura. A estrutura nos reinvoca na deriva da pulsão, a qual não é absolutamente uma compulsão de repetição no sentido obssessivo do termo, pois é a exigência de repetição do trauma que nos remete ao nível da pulsão. É, portanto, a partir de um encontro marcado com a pulsão que o sujeito tem futuro. Não há futuro fora da pulsão. Pulsão que seja destilada, digamos assim, e que reconheça o seu objeto: para a devida sublimação. *
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As Meninas é, praticamente, o penúltimo grande quadro de Velázquez, pois, depois de ter feito tudo isto, ele ainda pinta As Fiandeiras, sua última grande obra.
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As Fiandeiras, 1657/60
O que Velázquez representa nesse quadro - cuja composição se estabelece sobre um grande V – cheio de mulheres fiando, fiando...? Um quadro que tem um vazio central imenso, assim como aquele d’As Meninas? O que mais tem impressionado os artistas n’As Meninas é que, do ponto de vista da superfície pintada, em quase dois terços de sua área, ele é quase totalmente vazio, o que cria essa idéia de amplidão. N’As Fiandeiras, Velázquez repete essa mesma idéia de amplidão, de vazio: há como que um buraco no meio, tudo se espalha e se cria um vácuo central. Lugar real da sua pérola.
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Mas, insisto, o que Velázquez está pintando n’As Fiandeiras? Ele “encheu” o quadro de mulheres. São cinco no primeiro plano, e há mais quatro lá no fundo. Em última instância, ele está pintando as herdeiras da Fortuna, que no pensamento greco-romano se chamavam Parcas ou Moiras. As Parcas eram três fiandeiras que moravam ao lado do Olimpo. Na antiga religião romana, elas se revestiam do aspecto de fiandeiras e presidiam, a primeira, ao nascimento, a segunda, ao casamento e, a terceira, à morte. Três momentos que os romanos escolheram como marcantes na vida de um sujeito – claro que os romanos eram culturais. Elas eram, também, cognominadas pelos romanos tria fata, trio fatal, ou as três destinadas. O trio fatal é uma espécie de visão da Fortuna, Tiquê. São imagens refletidas do destino, factum, ao qual está ligada a vida de qualquer um. Elas foram assimiladas pelos romanos às servas Moiras dos gregos, e, em latim, tomaram o nome de Nona, Décima e Morta (será que a terceira tem alguma coisa a ver com a Menina Morta do nosso Cornélio Penna?). As Moiras gregas, de onde saíram as Parcas dos romanos, eram três irmãs: Cloto, Láquesis e Átropos, filhas de Zeus e Têmis, que é a deusa da Lei. As Moiras constituíam primitivamente uma só divindade que podemos, eventualmente, assimilar à Tiquê. Sua aparição no culto grego é tão antiga, dizem os especialistas, quanto o começo da religião e dos mitos gregos. Elas viviam num palácio vizinho ao Olimpo e velavam pelo desenvolvimento da vida de cada humano. Cloto fiava, e o giro de sua roca simbolizava o curso da existência, Láquesis dispensava a sorte reservada a cada um e Átropos cortava o fio – é a tal Morta – sem jamais deixar desviar o golpe que termina o curso de uma vida. No interior do Brasil, quando criança, contavam-me dessas mulheres – não estou certo se as chamavam de Parcas ou de outro nome – como sendo três velhas que determinavam o fio de uma vida. Diziam que a primeira tece, a segunda mede e a terceira corta. Em suma, é isso aí que talvez haja como assujeitamento ao Outro. Aquilo que Lacan disse ser a verdade da psicanálise: “Seja feita a vossa vontade”. Não a de um Senhor qualquer que discurse por cima de nossas
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cabeças, mas a vontade Tua, do Outro: no nosso encontro, que é reconciliação, afinal, com a ordem do significante... e com o Senhor Absoluto, que se chama A Morte e que reclama o Morto.
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As três demontrações do viravesso
ANEXO AS TRES DEMONTRAÇÕES DO VIRAVESSO no quadro As Meninas de Velázquez Luiz Carlos Miranda
1 - Velázquez está pintando diante de um espelho Assim sendo, aquele quadro que aparece dentro do quadro, e de costas para nós, representa o que ele vê no espelho. Como o espelho mostra o avesso do que nele se reflete, aquele quadro lá dentro seria o avesso daquela cena que vemos no quadro, ou vice-versa. Quer dizer, se aquela cena do quadro que nós vemos (As Meninas) for o avesso, naquele outro quadro – o que está lá dentro – a mesma cena está pelo direito.
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2 - O rei e a rainha aparecem no espelho para o qual Velázquez está olhando, segundo uma dupla reflexão. Assim sendo, nesse espelho, o Casal Real está na posição real, ao passo que o resto da cena está pelo avesso. Quer dizer, a estrutura de reflexão do Casal Real é sempre inversa à do resto da cena. Logo: se o quadro As Meninas mostra o direito da cena, o Casal Real está pelo avesso; mas se o quadro é que é o avesso, o Casal Real está pelo direito – no mesmo quadro.
3 - A Luz. Se o quadro está mostrando ao mesmo tempo direito e avesso, a luz ali perde a orientação. Quer dizer, a luz que penetra no quadro (na cena real), pela esquerda de Velázquez, naquele quadro que ele pinta lá dentro do quadro, esta mesma luz penetra pela direita, sendo esta direita a mesma que a esquerda. O mesmo pode se ter em relação ao Casal Real lá no espelho de fundo: a luz que vem do lado esquerdo, digamos, lá no fundo, este mesmo lado é o lado direito.
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HETEROFAGIA
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Introdução à Heterofagia
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INTRODUÇÃO À HETEROFAGIA O que coloquei até agora sobre esse tema que nomeei Psicanálise e Polética é, em suma, a insistência da psicanálise sobre seu fundamento ético, que tem como decorrência ações centradas no real. Daí, dessa referência indefectível ao real, é que tiramos o vigor de uma Lei que, na sua essencialidade – segundo não nenhuma evidência mas um percurso da teoria analítica –, aponta para esse real impossível de se inscrever na estrutura e que, também, no seu aspecto de impossibilidade da relação sexual, nos exibe, incessantemente, o ôntico da falta. Fizemos uma breve crítica – que talvez devesse ser melhor trabalhada – da perspectiva antropológica, sobretudo, da antropologia estrutural do tipo Lévi-Strauss. Crítica da “universalidade” da interdição do incesto procurando distinguir a cultura – definida como o que decorre da interdição do incesto como princípio e, portanto, fundando-se na ordem de parentesco – da função eminentemente e essencialmente simbólica do falante. A dependência, a determinação simbólica do falante, como puro artifício e não como cultura, segundo nossa definição. Fizemos várias passagens, relativamente breves, por alguns textos onde fomos apontar a situação de algum Pai Real, digamos assim, no nível do animal, de sua morte, situando-se simbolicamente quando fizemos, por exemplo, uma troca de fonemas e traduzimos o Totem und Tabu de Freud pelo nosso Botem um Tatu. Tomamos o mito de Tarzan, inventado por Burroughs, para tentar
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situar, na estorinha, a existência desse pai ancestralmente morto, diferenciável da morte de um pai que se apresentasse familiarmente como tal. Passamos pelo Velho Testamento com o mito de Adão e Eva para falarmos do Paraíso, enquanto perdido, e da distinção de masculino e feminino por uma visada pouco comum. Fomos ao Édipo e, mais uma vez, questionamos essa distinção da Lei em dois tempos, o que também chegamos a ilustrar com momentos do Velho Testamento, como, por exemplo, o momento Abel e Caim, o momento Noé. Chamamos o mito que a antropologia nos passa de mito do Nat/Cult, quer dizer, da tentativa de demonstrar alguma passagem de natureza a cultura que pretendi não reconhecer em qualquer hipótese. Não há nenhuma passagem de natureza a cultura, mas uma ruptura radical com qualquer situação natural para o ser falante. Daí passamos ao genital e ao genitivo como vigorando também nessa tal fundação da cultura. Insistimos na função superegóica falando de um Édipo e Osome quando temes essa função trabalhando no sentido da aglutinação dos falantes, esquecendo o vigor fundamental da morte e, portanto, da pulsão, isto é, da rememoração da falta sem acobertá-la com essa tentativa de bemestar que a cultura pretende ser, e de certeza comportamental. A cultura no sentido geral, e não uma cultura em particular. Em termos de abstração, tentamos mostrar que é um equívoco, na leitura de Sófocles, a distinção entre a lei divina e a lei do homem. O que há é a necessidade do reconhecimento constante da diferença esteada na Lei, que aí comparece como a determinação do heteros da diferença que não pode deixar de vigorar em todo e qualquer confronto entre falantes. Por último, tentamos uma abordagem um pouco mais longa do quadro As Meninas, de Velázquez, que apelidei de Côrte ou Córte Real, aonde tentei mostrar, também com o depoimento de um poeta, que é muito clara a distinção que ali se faz da Lei vigorando entre duas posturas possíveis: a lei do homem, numa tentativa de universalização de determinações comportamentais, e a lei enquanto confrontada com o heteros, digamos com o feminino, quando o universal se decompõe, apresentando-se como impossível. Em última instância, e repetindo o que dissemos na última sessão do Seminário do ano passado, trata-
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se de um confronto entre homossexualidade e heterossexualidade. Falamos de um verdadeiro complô homossexual que é a base, o fundamento do sistema em que vivemos. E do apagamento, da sutura, como tentei mostrar, utilizando naquele momento certos achados da prática e da teoria do casal Lefort. Essa tentativa de o homem – da postura dita masculina na sua manifestação, no seu desempenho – tentar obturar o furo do Outro. *
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Se, portanto, existe alguma decorrência ética, compatível com a teoria e a prática do discurso psicanalítico, seria a de propor a heterossexualidade. Como sabem, estes termos estão aqui definidos de modo completamente diferente da banalidade imaginária do cotidiano. Por isso cheguei a situar outros termos como homocorporal e heterocorporal para distinguir disso que estou chamando de homossexualidade. A homossexuação produzida pela prática discursiva do sistema é mais do que uma tentativa, é um atentado cultural contra a possibilidade, talvez única, não de nenhum paraíso, mas de uma abertura constante, de uma hominização do homem. Não sei se hominização é um termo propício, mas estou pensando aí no que Lacan coloca quando diz que “as mulheres são muito mais homens do que os homens”. Não se trata absolutamente do mesmo que me parece estar sendo produzido por pessoas de vários campos da produção contemporânea, inclusive dentro da psicanálise, talvez mesmo nos arredores lacanianos: uma afeminação do mundo. De princípio, já não é nenhum feminismo, que é a caretice machista em todos os detalhes, e não é, também, nenhuma afeminação do mundo no sentido de sonhar-se com o discurso de A Mulher – não estamos de volta ao medievalismo da novela de cavalaria. Trata-se de pensarmos aquilo que é onde está o que há de maior importância no trabalho psicanalítico: o reconhecimento da diferença enquanto tal. Digamos que da diferença sexual em particular, na medida em que esta diferença se apresenta para cada um nesses termos. O reconhecimento da
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diferença enquanto tal é o mais difícil, ou seja, a possibilidade da criação da heterossexualidade. Não há outra heterossexualidade senão a tentativa de vigorar no regime da alteridade, no reconhecimento da diferença Na experiência que tenho, na teorização que posso fazer, a alteridade comparece em todo e qualquer confronto, em toda e qualquer manifestação entre falantes. Ou se é heterossexual ou não se é heterossexual. Essa insistência tem a ver com o que é de se supor como atingível, como aquilo que é de se conseguir no final de uma análise: o indivíduo se encaminharia para o destacamento de seu significante unário, seu S1, assim como para o destacamento do seu objeto – já que Lacan defende que a análise não é infinita, que ela pode encontrar seu termo, seu fim – e se destacaria a diferença enquanto tal, e talvez mesmo exacerbada no diferente, senão no diferencial específico de cada sujeito, na sua fundação simbólica, significante, na sua invenção de objeto. A psicanálise realizada – se é que isto há, se é que é o postulado – é produtora de heterossexuais. Isto quer dizer que uma psicanálise destacaria de tal modo a diferença específica que não haveria mais possibilidade de o sujeito acreditar, ou pelo menos de lograr-se com facilidade, nos seus encontros com outrem, ou seja, com o Outro nas suas manifestações, na suposição de qualquer relação, seja de que tipo for, já que, em última instância, qualquer uma se reduziria à estrutura que sustenta a “relação” sexual propriamente dita. A psicanálise seria, portanto, produtora dessa diferença como evidenciada, desvelada. É claro que não vai se desvelar aí a causa dessa diferença, ou seja, o significante Falo, , porque este é para ser “velado” eternamente. Vai se desvelar o surgimento, a cada encontro, de uma pequeníssima, mas importantíssima diferença, ao mesmo tempo que a possibilidade do reconhecimento de uma particularidade. Em última instância, somando essa base significante e esse objeto destacado, teríamos o reconhecimento de um desejo indestrutível para cada sujeito, como diria Freud. Claro que o desejo, aí, é ancorado, o que não significa desejo significado, mas desejo significável, que pode ganhar sentido, muito sentido, pode transar no
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campo da alíngua bem à vontade. Lacan chega a dizer que depois desse encontro do sujeito com o seu desejo, trata-se – e isto é problema desse sujeito e não da análise, muito menos do analista – de ele saber se ainda quer o seu desejo. Uma coisa é reconhecer um desejo, outra, é decidir o que se quer fazer dele. Esta afirmação de Lacan é muito rica, cheia de sentido, ao mesmo tempo que equivocada, no sentido pleno do termo, pois que é equivoca. O que pode fazer um sujeito com o seu querer a respeito de um desejo que se qualifica, se situa, se desvela? No máximo, pode querer de outro modo, querer variar de sentido. Se uma análise progredir e atingir aquilo, vai ficar evidenciado para o sujeito que ele pode ser outro, o que não impede que ele assim mesmo também o queira, sem tornar-se menos Outro por isso. Continuando nessa via da Polética – que não deixa de ser uma postura política, mas cujo fundamento é ético – é justamente a partir daí, de que o sujeito vai encontrar, em última instância, não outra coisa senão as raízes do seu sintoma, sintoma que o produz como tal falante e não como tal outro. A psicanálise não destrói um sintoma, ela simplesmente leva o sujeito a se deparar com ele, e talvez assumi-lo, em plena palavra, a partir desse sintoma. Um sintoma que não se dissolve no imaginário, nem se dissolve no simbólico – a não ser produzindo psicose, é possível que isto exista – mas eu diria que ele se dissolve no real. Isto não significa desaparecer: ele se realiza, se mistura com o que há de real, em emergência diante dos outros sintomas. A partir, então, dos pontos a que chegamos semestre passado – o vigor da diferença, a Lei como referência radical, a diferença irredutível, aquilo que Lacan chama a “Lei do coração”, ou seja, a Père-version – eu não veria outra postura política para o sujeito em travessia no campo psicanalítico, senão a afirmação da diferença. Para cada sujeito, em particular, a afirmação da diferença, da sua diferença. O que simplesmente anula qualquer possibilidade de grupo. Seria uma política não-partidária – se é que isto pode ser pensado já por nós – porque não seriam possíveis os grupetos que se ordenassem em torno de uma sintomática comum, mas apenas sujeitos que se organizariam em função de um intocável respeito pela diferença que, aliás, é sua como é
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dos outros. Essa polética seria a administração da diferença, aquilo que eu já disse que gostaria de poder pensar no nível da ficção política com o nome de Diferocracia, o governo da diferença. Parece que isto jamais existiu na face da Terra, embora se fale disso quando se tenta definir democracia. Seria uma novidade o discurso psicanalítico trazer como conseqüência a ficção de uma possível Diferocracia: os homens governados pelo respeito estrito à Lei da Diferença. Não deixa de existir algo disto no texto Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é um papel muito bonito, mas que no máximo tem servido para se pendurar no banheiro, pois não constituiu lei de espécie alguma até hoje. Talvez consigamos farejar, no coração desse texto, a vocação para a Diferocracia de que estou falando. *
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Como se trata de afirmação de diferenças e, portanto, de cada diferença em particular, minha proposta para o núcleo deste Seminário, em seu segundo semestre, é tratar de algo que já foi abordado aqui diversas vezes nos semestres anteriores – mais veementemente, aliás, por Betty Milan, do que por mim. Em termos de mundo contemporâneo – se é que isto existe –, do cenário em que vivemos, afinal de contas, nos dizemos brasileiros e não se sabe bem o que é isto, mas, por inserções simbólicas as mais diversas nos discursos contemporâneos e, também, com várias pregnâncias imaginárias muito fortes, às vezes violentas, somos brasileiros. Havia uma preocupação bem grande, e ainda há, retomada com certo vigor no começo da chamada Abertura – a Fechadura não pensa nem a sua própria diferença, acho que essa diferença é, enfim, um tema de organização –, com a tal cultura brasileira. O que temos nós a ver e a dizer com e sobre isso? Desde aquela época – se não me engano, isto foi mesmo dito a um jornalista que não sei se botou lá nessas entrevistas que publicaram de Betty Milan e eu algum tempo atrás – que, nesse campo aí, a perspectiva que poderíamos visualizar de imediato era a de que, se existe essa coisa chamada Brasil, cultura brasileira, nosso campo de existência, de língua,
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etc., não se tratava, para nós, de acompanhar essas vias sociológicas, filosóficas, antropológicas, etc., que ficam coletando as produções e os dados para tentar uma espécie de, digamos, estatística ou somatório de emergências intelectuais, etc. Mas, sim, que, do nosso ponto de vista, da nossa perspectiva, o que poderíamos talvez pensar seria uma espécie de escuta, de auscultação que nos permitisse, eventualmente, sacar, destacar, o sintoma do que pinta por aqui. É uma via completamente diferente da de se atuar sociológica ou antropologicamente. Será que nós outros teríamos algo a colocar no sentido da distinção de alguma sintomática, de um sintoma básico, nisso que chamamos de cultura brasileira? Uma vez que fiz a distinção entre cultura e artificio, tenho que ver que, é claro, estamos todos aprisionados na cultura, pois não houve nenhuma transformação, nenhuma mutação pós-neolítica, na face do planeta, que nos mostrasse em qualquer lugar, alguma mudança de tipo. Por isso estamos mergulhados na cultura, mesmo sem pensarmos em aspectos culturais no sentido antropológico, em termos de ordem de parentesco, de família, da produção discursiva, da agitação simbólica neste país, ou algo que se chama “este país”. No campo do artifício, há algum sintoma ou sintomas que pudéssemos destacar como base, a ponto de nos dar um pouco do endereçamento sobre nós mesmos? Claro que são muitos sintomas. Penso que não é só por uma convivência com tal cultura, no cotidiano, mas, sobretudo, por uma pergunta que possamos fazer àqueles que, supostamente, por terem ocupado um lugar, digamos, de poeta, um lugar de onde brotou a invenção poética, que talvez devêssemos tentar sacar o que eles farejam no ambiente, de modo a nos dizer, como Tirésias lá do lugarzinho dele. Aí é que trago, como abertura da continuação do Seminário, o título Introdução à Heterofagia. Heterofagia é devorar o Outro. Trata-se de comer o Outro, uma coisa muito cara aos brasileiros. Acho que o verbo mais importante do Brasil é o verbo comer, sobretudo quando se trata de comer um outro. Brasileiro é vidrado em comer, em vários sentidos. Há uns passando fome, outros gulosos, afora esse tesão nacional que se oraliza a cada momento, sempre dito, sempre explicitado, da musiquinha de carnaval à piadinha de rua, do grande
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texto teatral à paquera comezinha. Há uma oralidade muito importante, muito vigorosa, no meio da nossa cultura. Ainda outro dia, alguém me dizia que não era analista, mas "oralista", aliás com muita propriedade. Esse nome analista é meio chato porque sempre dá a impressão de um processo de acumulação que é muito diferente dessa oralidade que é mais nossa. Eu diria mesmo que o analista é, antes de mais nada, um oralista. Digo isto porque o analista escuta com a boca. Quando McLuhan publicou seu livro chamado The Media is the Massage, alguém fez para ele uma capa em que um sujeito tinha no lugar do olho uma orelha. Ele estava falando da nova cultura auditiva, eletrônica, etc. Para figurar numa capa de livro, eu poria, para analista, a orelha no lugar da boca, pois pode-se dizer que o analista escuta com a boca. É claro que mais de boca fechada, porém só aparentemente fechada. Não é à toa, aliás, que existe, anatomicamente, uma ligação entre o ouvido e a boca, a Trompa de Eustáquio... O analista é uma espécie ruminante: ele escuta e, em vez de logo falar, rumina, fica com o chiclete, do dito do analisando dentro da boca. É, aliás, como ele consegue traduzir. Lacan deu um testemunho brilhante, que não é diferente do que pode acontecer na prática analítica, quando fala da tradução. Ele inventou a tradução via inconsciente, quer dizer, inventou o esclarecimento disso, pois o que todo bom tradutor faz é isso mesmo. O que é uma tradução via Isso, que passa por Isso? Quando explicou a tradução do inconsciente de Freud, Umbewusst em alemão, Lacan disse que basta repetir 66 vezes – 66 é por conta dele – a palavra Umbewusst. Nessa mastigação de chiclete aquilo vira a sua língua, porque é com a sua língua que você rumina, e não com a dos outros. Nessa ruminação é que ele, que vivia subdito à língua francesa, transformou, traduziu Umbewusst por l’Une-Bévue. O termo tem um sentido todo particular francês, mas é perfeitamente cabível, e melhormente do que inconscient. Foi pela mesma via, repetindo o ensino do mestre, que eu mesmo mastiguei certa vez a mesma palavra – não sei se foram 66 ou 132 vezes, porque havia a língua do mestre no meio, para atrapalhar. De tanto repetir, disse, então, que o inconsciente é UM-BIVISTO. Fiz até um textinho a respeito que certamente
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sairá na revista L’ Âne que o encomendou. Isto é o que estou chamando de escutar com a boca... dessa mastigação dos significantes ditos, acaba pintando uma interpretação. Igual a isto é o oralismo do analista. Quem sabe se um dia nós analistas não nos nomearemos de oralistas? Podemos mudar o termo e, aí, analistas ficarem sendo aqueles outros. *
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Assim como certo dia, aqui no Seminário, pintou o objeto privilegiado do brasileiro como sendo a bunda, eu diria que a sintomática nacional se aloja na boca. Vou propor para nosso caminho deste semestre um certo retorno, não a Freud, mas a alguém que, infelizmente, jamais tive oportunidade de conhecer pessoalmente, que nos deixou uma produção realmente rica que já tem sido tomada de modos os mais diversos e que me parece um bom indicador para sacação da nossa posição numa polética. Posição que me parece ser tanto a posição a se dizer nacional quanto nossa situação no campo dessa zorra que é o movimento psicanalítico mundial. Esse autor, essa autoridade, se chama Oswald de Andrade. Não é nenhuma volta tipo Rei-da-Vela-68, ou algum tropicalismo, que mais não é hora. Entretanto, talvez tornássemos a percorrer, a partir da sacação de Oswald, quando tirou o pau-brasil e instaurou a antropofagia. Para mim, Oswald era um homem de gênio, ou seja, aquele que dá a dica certa, mesmo desenhando o mapa errado. O caminho sempre está indicado certo, mesmo que haja erro grande no mapa desse tipo de sujeito, pois acaba sempre indicando o sítio do tesouro. Afinal de contas, trata-se de um tesouro: um certo capitão, ora morto, um dia escondeu muito bem de nós um tesouro. É importante ter escondido, pois, em vez de vivermos da renda desse tesouro, que tenhamos também o vigor de achá-lo, e não de só ir buscá-lo. Oswald, a meu ver, é um sujeito desse tipo. Ele vai rememorar muitas coisas na chamada História do Brasil. O termo história, aqui, não está me interessando como historiografia, mas sim como estorinha, como a que o analisando conta, aonde desponta o que
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restou como mito individual desse analisando. Lá estão os signíficantes determinantes da sua história. É com tal escuta que temos que enfrentar o que se diz desse lugar, não sei se geométrico, geográfico, mas certamente um lugar topológico, aonde estamos enquanto supostamente brasileiros. Coisas velhas que vivemos e repetimos a nosso respeito, contadas pelos avós e escritas em textos os mais diversos, por exemplo: o fato de que o Brasil é uma ilha. Está lá no nome: Ilha de Vera Cruz. Chegaram aqui e perceberam logo que era uma ilha. Os geógrafos não perceberam isto porque ficam medindo terreno. Tratase de uma ilha. A verdade histórica, no nosso sentido, é aquela do significante que acabou nos determinando, e aí está o significante na textualidade, na fala, desde nossa infância. Desde minhas investidas na chamada América Ladina, tenho dito que o Brasil é separado. Há outras coisas, como, por exemplo, quando Oswald cria o seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, pensando no tempo em que a Europa vinha explorar o nosso pau, brasil naturalmente, será que a Europa ainda quer o nosso pau-brasil? Às vezes, parece que sim. E as Américas também. Das Obras Completas de Oswald de Andrade, publicadas pela Civilização Brasileira, destaco especialmente o volume 6: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Este é que é o importante do ponto de vista da sua teorização, o resto é solução literária que ele deu à coisa. É preciso, também, ler o livro de Sérgio Buarque de Holanda – mais conhecido como pai do Chico Buarque – chamado Visão do Paraíso, e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Não podemos esquecer a obra de Mário de Andrade, especialmente o grande mito que ele inventou, Macunaíma. Por essas coisas assim de destino, Mário de Andrade é mais conhecido do que Oswald. Tem-se mesmo a impressão de que Mário teria fundado o movimento em que Oswald entrou, quando é o contrário. Os irmãos Campos já se deram ao trabalho de demonstrar que o grande movimentador, o grande inventor da coisa toda é Oswald. Macunaíma seria, assim, do ponto de vista de produção literária, uma espécie de aboletar-se um pouco nos romances de Oswald, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Mário foi talvez mais compacto na produção de Macunaíma, de tal maneira que ele passou, mas é Oswald o motor dessa movimentação.
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Além desse tal Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado no Correio da Manhã. em março de 1924, um pouco depois, em 1928, numa chamada Revista de Antropofagia, que era dos modernistas, Oswald publicou o Manifesto Antropófago, criando o Movimento Antropofágico e a idéia do Brasil tendo como sintomática fundamental essa antropofagia. Eu não falei em antropofagia, mas em heterofagia, pois, como já disse, um sujeito de gênio me dá a dica certa, mesmo com o mapa errado. É preciso produzir uma leitura para poder abordar um sujeito desses, um texto dessa ordem, porque se formos ingênuos de acompanhar o texto na aparência de um significado que ele tenha tido num certo momento, ou que a ele se tenha dado quando surgido, perdemos a essencialidade do texto. Quanto mais releio Oswald, mais tenho a impressão de que ele sacou certíssimo, deu a indicação do lugar do tesouro. Mas, assim como aconteceu com Freud, que Lacan teve que destrinchar para desvelar sua essencialidade, em meio a uma série de hesitações em função da disponibilidade da produção científica de seu tempo, das produções discursivas em geral, também há em Oswald muita coisa aparentemente ingênua, muita demonstração tola, muita nomeação que saca mas não distingue, talvez mesmo por falta de material. Oswald é contemporâneo da produção das Estruturas Elementares do Parentesco, de Lévi-Strauss. Certamente ele leu algumas páginas – como bom brasileiro, não teria tido o saco de ler aquilo tudo, que é muito chato, um livro muito grosso... Não interessa o que ele leu, e com alguma razão em certos pontos, mas vemos que ele vai buscar em autores mais ou menos disponíveis no ápice da cultura daquele momento, uma justificativa para sua sacação. Se considerarmos a justificativa, ela é decepcionante, mas, com a ferramenta que temos, nós outros, essa que veio, de presente, da herança de Freud e Lacan, podemos olhar isso de modo completamente diferente e perceber que o homenzinho sacava muito bem. Digamos que ele era um analista nada ruim quando apresenta, por exemplo, o Manifesto Antropófago. Antropofagia é um termo que ele vai buscar a partir de uma observação dos acontecimentos típicos, segundo ele, da culturalidade brasileira: o modo do brasileiro, essa zorra étnica, cultural, etc., que é, supostamente, o que se encontra
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na cabeça de um sujeito que nasce por aqui. Ele não está tipificando um determinado sujeito. É de se pensar, não que cada brasileiro seja assim, mas que há uma subjetividade solta, a de um sujeito Brasil aí representado de significante para significante. Uma certa posição de sujeito que não é de se esperar que cada um seja esse sujeito, mas é o que há como efeito da passagem de significante a significante nesta nossa zona – em todos os sentidos – nacional. Acho que Oswald sacou certo, quando tira daí essa antropofagia, como ele a chama: o brasileiro é esse oralista comedor do Outro. O que, às vezes, abordado com ingenuidade – o que se faz freqüentemente –, parece uma coisa completamente diferente, mas que, acompanhado no processo, é de se ver que não se trata bem do que estávamos pensando. Quando, por exemplo, se pensa que brasileiro é puxa-saco de estrangeiro. Não é bem assim... Num outro momento, depois de situar essa antropofagia como marca da cultura brasileira, ele faz um estudo sobre o Messianismo, com veleidade a tomar cátedra na Universidade de São Paulo. É uma tese espantosamente louca, muito mais interessante, aliás, do que as que a Universidade costuma produzir, embora uma balbúrdia. Em outro momento, ainda, aborda a questão das Utopias. Faz uma oposição, para pensar o fenômeno brasileiro, entre messianismo e antropofagia. Messianismo seria, segundo ele, uma idéia completamente fora da nossa perspectiva cultural, já que é a de sempre procurar por um Messias com idéia redentora que venha resolver os problemas dos homens, que venha a ordenar, organizar o mundo. Oswald nos mostra que isto não é deste país: o Brasil não é dado a acreditar em redentoras, nem na recente, generalizada, nem na parcial. de uma outra princesa de antanho. A antropofagia, para ele, é que seria a tipicidade da nossa cultura. Aqui não se procura nenhum messianismo, nenhuma idéia salvadora: come-se de tudo e, certamente, que se digere um bocado e não se deixa de cagar um pouquinho, é claro, senão se fica entupido. Quando ele situa essa oposição messianismo/antropofagia, põe, conjuminadamente, outra oposição, que chama de patriarcado e matriarcado. Para ele, o messianismo é patriarcal e a antropofagia, matriarcal. Ele quer
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fazer o brasileiro se dar conta de sua vocação matriarcal e fazer uma grande revolução contra os messianismos e os patriarcalismos. Aí vai uma grande ingenuidade. Com o termo messianismo, ele foi preciso, a meu ver. Com o termo antropofagia, ele foi metaforicamente preciso. Mas quando tenta distinguir esses dois momentos colocando-os como patriarcado e matriarcado, aí lhe falta a ferramenta com a qual eu poderia – e é o que tentarei fazer – abordar a questão pelos termos – poderiam ser outros, mas escolhi estes – de homologia e heterologia, ou melhor, homofagia e heterofagia. Calcado nesse percurso que vim fazendo desde o semestre passado, posso dizer que é o imperativo da Lei, da diferença, que Oswald, no fundo, está pensando em todo esse processo. Eu gostaria de chegar ao ponto de mostrar que Oswald nos dá, de presente, a visão – muito satisfatória, gratificante, a meu ver, do ponto de vista narcísico, e por isso é que temos tão pouco cuidado – de que é possível que a sintomática básica deste pais seja uma vocação heterológica, heterofágica, em alteração, em altericidade, em suma: heterossexual. Oswald foi buscar o termo antropofagia numa velha raposa francesa, tão antiga e tão disseminada que, hoje, é propriedade de qualquer um, bem deglutida e digerida, que é Michel de Montaigne. Nos famosos Ensaios, livro 1º, cap. 31, Montaigne fala dos canibais, que ele comenta a partir da narrativa de um viajante que lhe teria contado sua experiência no Brasil, onde existia um povo que tinha um costume inteiramente interessante que era, ao invés de simplesmente matar ou ainda espedaçar o adversário, o de comê-lo – o que é bem mais interessante, pois não é completamente um desperdício. Essas tribos tratavam muito bem, com todo respeito – e Montaigne chama atenção para isto – o adversário que caísse em suas mãos como prisioneiro. Com tanto respeito que ficavam instigando, enchendo o saco do cara, o dia inteiro, que era para ele não se dobrar. Esperavam que o adversário não se dobrasse: o sujeito tinha que xingá-los, tinha que fazer aparecer a diferença, até o fim. Depois de tê-lo durante longo tempo tratado com todo conforto, mas com exigência de não acomodação, o dono do prisioneiro amarrava uma corda a um dos seus braços, cuja outra
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extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço cuja corda dava a um amigo para segurar do outro lado. Os dois, então, em presença de toda a assembléia, o assomavam de “golpes de espada” – claro que não é espada, Montaigne não sabe que índio não tem espada – despedaçavam o inimigo vivo. Feito isto, o assavam e o comiam. E mandavam pedaços muito delicados para amigos ausentes – feito festa de aniversário de brasileiro, em que se manda um bolinho para lá, um docinho para acolá. Montaigne chama atenção que não é para se alimentar que faziam isto, mas, sim, para representar uma extrema vingança. Justamente aquela que, baseado no Totem e Tabu de Freud, e o citando, Oswald vai dizer que é a vingança de transformar o tabu em totem, como se fez com o pai ancestral. Pega-se, mata-se e come-se. Ou seja, ao invés de ter que viver o resto da vida exorcizando o outro, eles simplesmente entravam simbolicamente de algum modo na do outro, ou o outro entrava de algum modo na deles, o que é a mesma coisa. Daí que Oswald tira a idéia da antropofagia que ele diz reconhecer sempre nas atitudes do brasileiro. O brasileiro sempre tenta retirar o Tabu do que é externo e o deglutir em forma de Totem. *
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Será que podemos falar em “cultura brasileira”? Quem sabe não temos o privilégio de não precisar ter uma cultura? Temos é o sintoma de comer as culturas. No entanto, há a chamada de atenção, muito sóbria, muito sábia, de Montaigne, dizendo que ele não está para não ver o horror bárbaro que há numa ação dessas. É sutil o pensamento dele a esse respeito. Comentando, ele vai desculpar a barbárie dos índios: “Penso que há muito mais barbárie em se comer um homem vivo do que o comer depois de morto. Em despedaçar com tormentos e aflições um corpo ainda cheio de sentimentos, fazê-lo assar para o menu, fazê-lo morder e ferir por cães e pulgas, como temos, não somente lido, mas visto, de memória recente, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e concidadãos. E, o que é pior,
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com pretexto de piedade e de religião, se não de moral e patriotismo”. E continua: “Penso que isto é muito mais bárbaro do que assá-lo e comê-lo depois que ele foi morto”. É este, então, o caminho que proponho: a retomada, com Oswald, da significância dessa devoração.
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Por que me afano com meu país?
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POR QUE ME AFANO COM MEU PAÍS? O verbo afanar, segundo Aurélio, tem dois sentidos, digamos, principais. Por um lado, é uma das possibilidades do termo faina: o verbo pode ser afainar, ou afanar. Por outro, existe, não sei de onde tirado isto, afanar no sentido de surrupiar, de furtar. Estou me perguntando por que me afano, nos dois sentidos, com meu pais: por que me dou ao trabalho para com ele e por que me deixo roubar junto com ele? Quando começamos a interrogar Oswald, nossa questão era saber se ele nos daria alguma coisa, alguma dica, a respeito do possível destacamento de uma sintomática nossa, um encaminhamento, o levantamento de alguns pontos ou algum ponto mais importante, quem sabe, da nossa sintomática “cultural”, como se costuma dizer, não no sentido que dou ao termo. Eu dizia que Oswald era o que considero um homem de gênio. Não se está romanticamente acreditando em “genialidade”. Eu disse que homem de gênio era aquele que dava a dica certa, do tesouro, mesmo com o mapa errado. O gênio, o homem de gênio, genial, é a mesma coisa que o que se chama de um homem “genioso”. Não vejo a menor diferença. Não é o sujeito que tem um saber especial, um modo especial de operação, mas, simplesmente, um sujeito que faz afirmação pública, veemente e séria – quer dizer, em série – da sua diferença. Afirmar a diferença é vigorar no desejo. Assim, um gênio, trata-se de um sujeito chato, genioso, que insiste na diferença. E como insiste seriamente, ela acaba produzindo uma série
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de efeitos. O significante produz os efeitos que produz. É o caso do santo, do artista, do poeta, do grande filósofo, etc. Não é de modo algum, aqui, a noção de prodígio que está em jogo, de rapidez, de velocidade, de maior inteligência. As crianças-prodígio, por exemplo, são algum outro tipo de emergência, escutadas, talvez, por via da psicologia da inteligência e outras banalidades. São uma espécie de computadores sofisticados. Isto acontece até entre computadores. Então por que não entre falantes? As pessoas ficam muito encantadas com as crianças-prodígio quando aparecem num campo desses da matemática, da tecnologia, um músico tipo Mozart... Mas se, por exemplo, uma criança fosse prodígio em sexo, as pessoas ficariam muito assustadas. Mas existem computadores sexuais sofisticados, mesmo desde a infância. Há pouco tempo, não sei se nalgum Fantástico da vida, apareceu uma menininha da Inglaterra que, com uns nove ou onze anos de idade, acabara de ser aprovada na Universidade, em matemática. Os pais declararam uma coisa que achei interessantíssima: que ela nunca foi para a escola. Sorte dela, de ter a felicidade de não ser mandada para escola. A escola é um lugar onde existe uma plêiade, uma seleção de moçoilas, as educadoras, que acabam cretinizando até o mais sofisticado computador. Muito a propósito, aliás, são chamadas de professoras... primárias. Não há inteligência que agüente esse tipo de discurso pedagógico. *
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Quero falar daquela coisa em que Lacan insistiu, dessa dialética, dessa talvez dicotomia entre os seres falantes, os quais não têm escapatória: ou a estupidez ou a loucura. Talvez essa opção se faça em função da pressão significante: ou se trancam na estupidez, para sobreviver, ou partem para a loucura. Há, também, aquele bando maior que fica assim-assim pelo meio, fingindo um pouquinho de cada lado, o que é um depoimento velho de quem quer que alguma vez já tenha pensado. Fernando Pessoa, por exemplo, tem um poema, em seu Cancioneiro, que começa dizendo:
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Só quem puder obter a estupidez Ou a loucura pode ser feIiz. Não sei o que ele quer dizer com “ser feliz”. Talvez, permanecer na situação de ser falante. Buscar, querer, amar... tudo isto diz Perder, chorar, sofrer, vez após vez. A estupidez achou sempre o que quis Do círculo banal da sua avidez; Isto é brilhante, pois a estupidez não costuma ser modesta, ela é de uma avidez incrível. Nunca aos loucos o engano se desfez Com quem um falso mundo seu condiz. O de todo saber-se enganado e enfrentar a si. Há dois males: verdade e aspiração, E há uma forma só de os saber males: É conhecê-los bem, saber que são Um horror real, o outro vazio – Horror não menos – dou como que vales Duma montanha que ninguém subiu. É impressionante como ele situa bem que não há outra opção: estupidez ou loucura. Ou se namora com uma, pelo menos, ou com outra. Já na Mensagem, falando a respeito de D. Sebastião, ele dizia: Minha loucura, Outros que me a tomem
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Com o que nella ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver addiado que procria? O dilema é este: Ou se opta pela estupidez e se procria, e se procria como cadáver adiado, ou se tenta dizer alguma coisa e isto tem a ver com a loucura, que não é necessariamente aquilo que chamamos um caso psiquiátrico. É essa loucura de vigorar na sujeição à linguagem, à ordem significante, como dizemos. Aí está a dialética da burrice e da loucura, apresentadas tanto por Lacan quanto pelo poeta, como o foi por tantos outros que se tenham debruçado sobre a mesma coisa. Estamos falando de homens de gênio e da dicotomia estupidez/loucura. Como não poderia deixar de acontecer, o significante é forte e acaba nos aprisionando, e assim não se pode deixar de dizer alguma coisa, entre as tolices que se disseram sobre o desaparecimento recente de Glauber Rocha... Este significante está aí no meio da nossa cultura, e o próprio Glauber invadiu com força esse campo. Era um tipo que eu diria ser um sujeito de gênio, no sentido em que coloquei o termo. O significante, sobretudo quando é nome próprio, faz muita pressão. É importante considerarmos o nome de um sujeito. Glauber Rocha... Não é um nome fácil de dissolver. Em alemão, esse radical, glaube, glauben, quer dizer crença, fé. Crer, acreditar, donde suponho que Glauber deve ser um crente, um crente que não é mole, que é Rocha, um crente muito duro de roer. E tal significante pode dar força, embora o corpo não agüente, com muita freqüência, suportar tanta carga. No velório do rapaz, me lembrei de um outro velório, ao qual fui há muitos anos, o de Villa-Lobos. Mais ou menos 20 anos. Era outro homem de gênio, brasileiro. São poucos assim, os que a gente pode dizer que invadiram o espaço significante até transbordar, fronteiras, tipo Villa-Lobos na música, Guimarães Rosa, na literatura, Glauber Rocha, no cinema. Invadem o espaço simbólico na afirmação de uma diferença, sem abrir mão dela.
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Mas as histórias são diferentes. Villa-Lobos – a cuja festa de comemoração dos seus 70 anos eu fui – devia ter 70 e muitos anos quando morreu. Havia todo um aparelho de estado suportando Villa-Lobos, mesmo porque ele tinha certas mazelas compatíveis com o sistema, como, por exemplo, um ufanismo tipo grande nação, estado forte. Isso facilitou as coisas para ele, de certa forma – mesmo que houvesse muito rato em volta – na medida em que ele contava com um Ministério forte, tipo Capanema, disposto a exaltar artistas brasileiros – como ele próprio e Portinari – naquele momento. Ele escrevia musiquinhas para as crianças cantarem nos estádios, tipo Viva o Brasil. Mas não deixava de ser um homem de gênio. Fez coisas importantíssimas, respeitáveis em qualquer lugar deste vale de símbolos em que vivemos. Já, quanto ao outro, não era bem ufanismo, talvez, mais, porém, um ufanismo quanto ao país. E, ademais, de lá para cá as coisas mudaram muito. De tal maneira que a pressão mudou de aspecto. A pressão, digamos política, a política cultural, mudou muito de aspecto. Eu via esse moço se debatendo, sobretudo na sua última fase. Ele foi paquerado pela esquerda, foi cortejado na sua juventude dita brilhante, de certa forma a do tipo menino-prodígio. Mas, depois, ao insistir na diferença, o pessoal já não gostou. Não gostou da insistência naquela diferença. De tal maneira que ele ficou numa posição difícil e quase insustentável que é a de tomar porrada de dois lados. Justamente por não estar inserido no discurso de um partido. O que é impressionante é a pujança, a insistência geniosa na diferença. A preços altíssimos, certamente. Não precisamos repetir aqui tudo que já se leu nos jornais, as opiniões, a festa fúnebre que se fez, a intensa participação nesse esforço de deglutição de Glauber. Todo mundo teve que faturar um pouco – mesmo eu estou faturando um pouco neste momento. Interessante que alguns notaram e tiveram a decência de confessar chamando o acontecimento de assassinato cultural – se não me engano, um termo do morto. Assassinato cultural que, aliás, existe mesmo. Um jornalista chamado Oliveira Bastos, cujo artigo está aqui na minha mão, diz que Glauber Rocha foi assassinado pela – atenção, o termo é exato – indiferença. Inconsciente ou não, o termo foi exato. Não se suportando a diferença, tenta-se eliminar pela indiferença. A indiferença
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não é só o desprezo, é o não reconhecimento da diferença. E ele diz: “Glauber não morreu. Ele foi assassinado pela intolerância da direita e pela burrice das esquerdas”. Já o outro moçoilo lá, que é membro da Arena, acadêmico José Sarney, eu o surpreendi na televisão como que também endossando esta tese. Notem que o rapaz do jornal disse “intolerância” da direita e burrice das esquerdas, não se trata a direita com maus modos porque não fica bem, pode dar galho. Sarney falou e disse que é intolerância da esquerda e da direita. Quer dizer, foi gentil para os dois lados. Prefiro o último termo: a burrice de ambos, a estupidez de que estávamos falando. É importante, acho, do ponto de vista do discurso que habitamos, pensar nessa tese do Glauber. Existe um assassinato cultural? E isso se dá somente no nível do simbólico, ou atinge o real do corpo? Não me consta que ninguém tenha ido lá e inoculado o rapaz com algum vírus. Existe a guerra biológica, mas não sei se a coisa está sofisticada a esse ponto. Contudo, não deixa de haver certa inoculação, por via de enfraquecimento dos vigores do sujeito que tenta dizer certas coisas. Lévi-Strauss, na Antropologia Estrutural, vol. 1, chamou isto de Eficácia Simbólica. Ele mostra, fazendo oposição entre psicanálise e magia xamânica, que a magia funciona no nível de impregnação verbal do sujeito, quando o paciente recebe uma carga significante que é mesmo capaz de atuar no seu corpo. O exemplo que dá, no caso, é de um parto difícil, e o xamã dizendo coisas, poetando, nos ouvidos da parturiente para que ela possa fazer, sintomaticamente, o corpo funcionar. E funciona mesmo, por vias de uma, digamos, histerização do corpo por inseminância verbal. Ele mostra que a psicanálise é o inverso: o paciente entrega uma massa significante, onde seriam deslocadas – pontuadas, segundo Lacan – certas formações significantes. Pontuações capazes de desenlaçar as cadeias, justamente por achado de sentido. É importante pensar nisto, pois a magia existe, concretamente: Yo no lo creo, pero las hay. É denegação dizer que é coisa de ignorante, que esse negócio não funciona, que não existe. Não se trata de produção de religiosidade, ou coisa desta ordem, em torno desses aspectos mágicos, nem de reforço da
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superstição, mas de não denegar o fato de que há essa eficácia simbólica. Tanto que o sujeito comum, na sua história, ficou amarrado foi por cadeias significantes, que a psicanálise pretende desenlaçar, desnodular: é o que estou chamando de magia – e magia capaz de matar. Há o exemplo que Lévi-Strauss nos dá de que, num grupo social, um sujeito pode, por algum motivo, ser escolhido para ser foracluído, e ser levado assim à morte física, concreta, só por essa eficácia simbólica. Se a intenção da psicanálise foi, ao contrário dessa impregnação sobre o sujeito, a de escutá-lo de modo a desenlaçá-lo dessas amarrações, ela está procurando o contrário dessa eficácia mágica justamente, como põe Lévi-Strauss, e, mais do que isto, aceitando e promovendo a diferença. Na medida em que o chamado paciente é escutado para fazer saltar a diferença, ele está no movimento da intenção de sobreviver. Há duas eficácias mágicas que considero igualmente destrutivas: a que pretende matar concretamente o sujeito e aquela que promove o enrijecimento do seu Ego a tal ponto que, ele, sujeito não será. São coisas opostas. O reforço do Ego é tão assassino quanto a tentativa de arrasamento do sujeito. Acontece não se crer em bruxarias, mas que elas existem, existem. Não é o caso de bancarmos os céticos ainda que científicos. Para nós, é preciso saber disso, saber porque, em nossa experiência, funciona. Está aí a histérica com seu sintoma de conversão, produzido nessas cadeias, incorporado, trazido ao corpo, com efeitos destrutivos. Está aí o obsessivo, a prática obsessiva – para não falarmos de um sujeito obsessivo, mas de uma prática – que localiza o sintoma no corpo de um outro. A meu ver, a prática obsessiva tem para com a histeria esta diferença: a histérica o localiza no seu corpo, o obsessivo se vira para localizar no corpo de um outro. Existe, por exemplo, um sistema burocrático, de constituição nitidamente obsessiva que, enquanto sistema, funcionando, não se corporifica senão nos enunciados e que, no entanto, histericiza um outro. Se desloco o discurso, e não apenas o de um sujeito que estou escutando, mas o discurso enquanto tal, da maneira como ele funciona, ele pode acabar numa aplicação obsessiva de si mesmo, acabar histericizando o corpo de alguns. Quantos sujeitos que talvez não tivessem necessariamente, por sua configuração
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peculiar, que portar determinada conversão, por via dessa magia de que estou falando, não acabam tendo que incorporar uma conversão? Não se pode dizer que a tese de um assassinato cultural seja coisa ingênua. Poderíamos dizer que há assassinato cultural em simplesmente se apagar o nome, por exemplo, de um sujeito; esconder, obnubilar sua obra. Quando se vê exalçado um determinado poeta num momento histórico, no Brasil, por exemplo, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, com uma mediocridade visível e, contemporâneo a ele, poetas completamente obscurantizados pela estupidez ambiente... Então, há assassinato cultural, em termos, para uma parte das pessoas. Para mim, por exemplo, que não estou sabendo da existência daquele, e que estou lendo bobagens de um outro, de algum Jornal do Brasil, de algum Droumedário de Andrade... Não se pode negar que uma pressão dessa ordem – certamente em função da situação, quer dizer, da topologia, da tópica desse sujeito nesse campo simbólico que é chamado campo social –, eventualmente, chegará ao corpo, numa luta tão incessantemente ingente com essa derrubada constante, que pelo menos não deixa de esperdiçar quanta energia do sujeito. Mesmo que seja só por essa simples via de dispêndio, quando o sujeito insiste na diferença de tal maneira, paga-se um preço dez vezes maior por uma produção. Então, sucumbese fisicamente, por falta de recursos mesmo fisiológicos. Estou dizendo que acredito nas bruxas: é que elas são tão sobrenaturais quanto os significantes. A oposição que Lévi-Strauss faz entre psicanálise e xamanismo é uma oposição radical, em que uma é o avesso do outro. Não estou fazendo nenhuma analogia. Estou dizendo que o discurso psicanalítico tenta justamente destacar a diferença a partir da fala do sujeito, no que algo da ordem do que pudéssemos, talvez, chamar de libertação do sujeito, iria aparecer, se é que o termo serve. De um lado, encontramos uma impregnação de fora para dentro. O sujeito é impregnado das frases que, histericizadas, acabarão por influir mesmo no seu corpo. Há uma coisa – que Lacan coloca no nível do real – que se chama sintoma. Trata-se até de sintomatização de nível histérico, produzida de fora para dentro. Isso existe, existe porque há vias de histerização no discurso.
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Pode-se girar pelos discursos e cair na posição da histérica. Isto depende, certamente, das posturas, disso que chamei de situs, a tópica do sujeito. Mantenho a distinção. Mas não é suficiente dizer que, de um lado, é via imaginária estrita e, do outro, estrita via simbólica. Não garanto que Lévi-Strauss diga assim. De qualquer modo, trata-se de um processo de impregnação imaginária por via simbólica, uma coagulação imaginária por via simbólica, por repetição, como, por exemplo, o cacoete obsessivo da televisão com sua propaganda nos intervalos. Acaba impregnando sim. Lacan tem quase 81 anos – não morreu aos 42, apesar das pressões. Mas ele é outro caso. Ele disse claramente: “Graças a Deus que tenho a voz fraca, que não me entendem, que as pessoas não me levam a sério”. Se não a gente vira Glauber Rocha. Entendem como funciona? Não é sem esteio prático e teórico a existência desse tipo de coisa. *
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Isto vem a calhar na continuação do que eu tentava dizer da vez anterior que é, justamente, o que poderíamos sacar de específico, de particular, na eventual existência de uma sintomática brasileira, ainda que esteja sufocado, acobertado por farta impregnação de vários discursos não deixando a coisa aflorar. São dois momentos. Minha tentativa de reflexão, a partir da experiência e da teoria analíticas, sobre essa postura sintomática do nosso caso. Nós que estamos mergulhados, cada um com seu sintoma particular, dentro desse sintoma grande que está aí à nossa volta, não seria mal se pudéssemos destacar alguma coisa muito nossa que pudesse se dizer de algum modo, que viesse a tomar palavra. E a recorrência a Oswald, como disse, é no sentido de supor que, como homem de gênio, ele parece que nos dá certa dica, mesmo se o mapa acaso estiver errado. Ou seja: como é que fica a nossa diferença, enquanto participantes desse sintoma geral no qual habitamos? Como seria essa diferença, é a primeira questão. A segunda questão: como se comporta a diferença, enquanto tal, no seio dessa sintomática particular que seria o Brasil, e, certamente, cada
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sujeito com a sua sintomática específica diante dessa questão geral? No momento em que Oswald está criando isso – nos arredores e dentro do próprio movimento que ele está promovendo – verificamos que há certa vocação nacionalista. Esta palavra tem vários sentidos: nacionalismo verde-eamarelo de um grupo de tendência direitista, se não fascista, e essa outra via de Oswald com o Pau-Brasil, com a Antropofagia, na tentativa de sacar uma particularidade nossa que não fosse aquele verde-amarelismo fanático. Ele vai colocando assim, no rompante das inspirações, as coisas que ele acha, os projetos de operação que propõe. No tal Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, aponta algumas coisinhas, elementos isolados do que supõe ser a sintomática nacional. Por exemplo, que “o Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça”. O carnaval sempre foi uma festa religiosa, pertencente ao calendário da Igreja, foi assimilado. “O lado doutor” do brasileiro. É interessantíssimo esse falar difícil, coisa muito nossa. Certos textos meus, por exemplo, as pessoas pensam que são influência da fala ou da escrita de Lacan. É não conhecer Brasil, é não saber que existe o Padre Vieira, Guimarães Rosa e essa cabotinice brasileira de falar complicado porque, se não, não se está sabendo. É preciso optar por isso. O bacharelismo brasileiro de “não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de... doutores anônimos”. Exato! “Eruditamos tudo.” O brasileiro, qualquer coisa que ele pega, dá uma “eruditada”. Não é um erudito, ele é eruditante, quer dizer, dá um ar assim de sofisticação, um barato: tipo fantasia de carnaval. tem que botar uns enfeites... Por que não? “A poesia Paul-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.”. Ele está procurando me parece, pela originalidade do nosso sintoma: o que há não de infantilismo, mas de infância, de fundação sintomática nessa cultura. Ele pede “a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros”. É uma grande pedida. “Como falamos, como somos.” Já encontramos aí nessa “contribuição milionária de todos os erros” esse germezinho do que ele vai futuramente colocar como antropofagia. É a possibilidade de ele estar nos apontando, na sintomática brasileira, essa devoração das alteridades: tudo que pinta interessa. Não é este ou aquele tipo de
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comportamento cultural que ele está qualificando como brasileiro – comportamento, digamos, em cima de enunciados típicos como se pode encontrar na cultura francesa ou inglesa, digamos aquela modalidade de enunciar - mas essa deglutição das alteridades, o que ele vai desenvolver com muito mais precisão e mais radicalmente no manifesto antropófago. Então, ele pede uma “Poesia Pau-Brasil, de exportação”, ou seja, que possa ser vendida para fora porque é diferente, se não, não interessaria. “Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.” Não faço a menor idéia do que ele próprio quer dizer com isto, mas é muito preciso. Ao sentido puro: ao sentido enquanto sentido, quer dizer, a operação de produzir sentido enquanto tal. Essa volta ao sentido puro, como já tentei colocar em trabalhos sobre arte, pode ser a intuição de Oswaíd em confrontar-se com o chiste, a volta ao chiste puro, à produção do não-senso. Tanto é que no outro manifesto, ele propõe a prova dos nove, que chama de alegria: “a alegria é a prova dos nove”. Ele vai pedir, então, uma atividade “sem pesquisa etimológica. Sem ontologia”. Não se trata de saber qual é o ser do brasileiro, porque simplesmente isto não existe, mas de saber qual é a dica do seu sintoma. Já na Revista de Antropofagia, de 1928, lança o Manifesto Antropófago, partindo de uma idéia tirada do texto de Montaigne. “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.”. Aí ele lança a famosa frase “Tupi, or not Tupi, that is the question”. Se quisermos botar em inglês poderíamos dizer: to peer or not to peer, parelha ou não parelha, esta é a questão. É a diferença que está em jogo. “Contra todas as catequeses e contra a mãe dos Gracos”, que, com sua dureza, sua honra, etc., é aquela que, como diz Lacan, acaba produzindo apenas filhos loroteiros, que só contam vantagem... “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”. Interessa o que é Outro, o que é do Outro, quer dizer, o desejo está em vigor
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atrás do objeto, está em outra parte. Claro que ele leu Freud, mas nada impedia de ele ter sacado isto. Em 1928. Lacan não sabia disso. Ele não leu Lacan. Lacan ainda não existia enquanto Lacan. “Freud acabou com o enigma da mulher e com outros sustos da psicologia impressa.”. Leu a obra de Freud e vai se apoiar nela para fundar o que pretendia fazer com o nome de Revolução Caraíba. “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo.”. Isto é da maior importância. Faria parte dessa antropofagia não a aceitação de uma catequese... Não é uma conversão – que o grego chama terapia - que tem, segundo a visão de Oswald, sido a tônica do Brasil: come-se o Bispo Sardinha, mas não se fica catequizado por isso. É extremamente importante retomar esse tipo de coisa neste momento em que a catequese cresce e se avoluma de todos os lados, do lado econômico, filosófico, psicanalítico... Há uma tentativa de catequizar esse sujeito que é meio tupi sempre, se queira ou não. Oswald está nos dizendo que a gente pega e come, mas comer não significa transubstancializar-se na comida. Pode-se incorporar um pouco dela, pois há sempre uma sobra fecálica, e, talvez, esse exame de fezes é que seja importante, o que sobra dessa operação, o que resta. Afinal de contas é um dos objetos a definidos o que sobra dessa deglutição. Trata-se da “transformação permanente do Tabu em totem”. Aí que ele entra na do Freud de Totem e Tabu. Ele supõe poder encontrar, por essa não suscetibilidade à catequese, uma sintomática brasileira de, ao invés de viver no subjugamento a um tabu, retornar, reverter o tabu em totem, devorálo, ficar com algumas das suas matérias e não se transformar em obediente cego ao tabu. Mais adiante, dá um berro e pede “o instinto Caraíba”. A palavra não serve, “instinto”. Melhor, talvez, o tesão caraíba, Trieb. “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.”. Daí é que certo grupo sociológico de escritores, no presente movimento cultural brasileiro, entrou nessa de carnavalização. Processo de carnavalização que seria a definição do Brasil. Mas interessaria, a nós, saber como é, o que há por trás, que matemas, se os pudéssemos pensar, estão em jogo nesse processo que acaba carnavalizando. A tal carnavalização, para mim, é um
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efeito de algo sintomático que está na base do processo. Oswald lembra que, na nossa fundação, não se tratou de movimento romanesco de convicção, de tentativa de convencer, pois “não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”. Não colou, talvez, na nossa história, nenhum movimento de impregnação de determinada idéia, mas as coisas vieram de um modo tangencial, foram sendo comidas, deglutidas e viraram esse grande carnaval barroco. Ele diz mesmo em algum lugar, não sei se nesse texto, que o Brasil é barroco, com o que estou plenamente de acordo. Vimos o que é o núcleo do barroco semestre passado quando falamos de Velázquez: essa construção que sempre tem um remetimento ao furo. Como diz Lacan, o barroco é esse estertoramento corporal, são corpos em estertores. Por fim, Oswald define a antropofagia: “Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico”. É o verbo comer de que já falamos. “De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativa, a ciência.”. São delírios de Oswald, mas pode ser que haja alguma coisa aí. “Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos (...) A nossa independência ainda não foi proclamada (...) Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.” Ele chega, então, à questão que colocávamos da vez anterior: a oposição – de que ele se aproveita numa certa antropologia um tanto ingênua – entre matriarcado e patriarcado. Se quisermos, podemos, sem maior rigor, apenas no nível de exposição de signifícantes, colocar duas colunas:
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Em suma, uma dialética que vem sendo retomada nos pensadores contemporâneos que mais influem aqui no nosso mandiocal, que é a oposição monoteísmo/politeísmo, de que eu falava semestre passado, e acho que não fui muito preciso. Teríamos, de um lado, uma postura que acaba desembocando em monoteísmo e, do outro, uma postura que acaba desembocando em politeísmo, onde situei, por exemplo, as investidas de Deleuze e Guattari. Eles diriam que, na via psicanalítica, estaríamos do lado monoteísta, em oposição ao lado politeísta. Mas quer me parecer, agora, que a questão não é bem assim porque, afinal de contas, a vocação monoteísta, enquanto discurso religioso, portanto aprisionado na postura obsessiva, é de índole de idealização, de imaginarização. Estamos aí no seio da neurose. A postura monoteísta, não enquanto artigo filosófico, vamos dizer assim, mas enquanto artigo de religião, pelo menos, é uma postura de idealização do Nome do Pai. O que está em jogo aí é o Pai Ideal, ainda que esculhambado, conforme o que chamei de Pai Herói em oposição a Pai Bedel. Não deixa de ser idealização do Nome do Pai. É uma postura que instala necessariamente um maniqueísmo radical: tem o bem/tem o mal, tem isso/tem aquilo, está certo/está errado... Deus é o bem e tem o Diabo do outro lado, que não transa com ele. No lado politeísta a imaginarização seria, como diz Lacan falando de religião, do politeísmo grego, “os deuses são reais”, quer dizer, reais que comparecem certamente como frações de imaginário, aparências que acabam
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participando da postura de objeto: o politeísmo se suporia idealizando e concretizando frações do feminino. Não seria uma transa com o feminino, mas a idealização desses objetos reinantes dentro do real. Os deuses são, talvez, desejos, concretizados em objetos, desejantes infernais, ou, pelo menos, objetos desejados. Quem não quer transar com um Deus? O que fica nessa linha de partição? Nas fórmulas quânticas da sexuação é preciso compreender a postura fálica de um lado e, do outro, a relação com o gozo-do-Outro. É preciso, também, procurar a vigência da Lei – embora ela se institua por função do Nome do Pai, mesmo quando ele está em suspensão do lado feminino – no interstício entre esses dois lados. Só se pode reconhecer a diferença nessa barra, situada no lugar do corte. Aí que o alterismo, digamos assim, o legalismo da lei teria lugar para vigorar naquele faz-de-conta. A curtição do faz-de-conta, que se refere ao simbólico, tem que estar aí nesse reconhecimento de diferença. É nesse lugar que, talvez, vigore o que Oswald chama de transformação do tabu em totem: a possibilidade de se tentar a devoração do outro, a devoração da diferença. “Só me interessa o que não é meu”, o que tem alguma coisa a ver com o esquecimento. Como tratar, por exemplo, essa questão do esquecimento na história do Brasil? Que posição tomar? Alguns acham que se trata de um sintoma produtor de aspectos negativos na cultura brasileira, mas, por outro lado, é preciso pensar também que, esquecendo, se altera. Não é o mesmo esquecimento que funciona no caso do recalque. Talvez existam dois tipos de esquecimento no que interessa ao campo psicanalítico. Há aquilo que não se consegue rememorar porque houve um recalque e é preciso rememorar para se conseguir acertar com o sintoma, em todos os sentidos. E posso pensar, também, no esquecimento pós-luto: uma vez feito o luto, após a rememoração, lembrar para quê? Vamos comer o outro, que é muito mais interessante do que ficar comendo o mesmo! Se houve luto é porque aquilo deixou de ser mesmo e passou a ser outro, ou chegou-se a abrir uma via para o Outro. É preciso dialetizar um pouco esse esquecimento na nossa história. Não interessa lembrar. É aquele esquecimento, por exemplo, do sujeito
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que um dia diz uma coisa e quando o lembram disso fica perplexo: “Eu disse isso? Não sabia. Lá eu disse, não sei quem foi que disse. Se você está me contando uma estória que aconteceu comigo ou com qualquer outro, dava na mesma, eu entendo a estória”. Não deixa de ser enfraquecimento do ego. Será que por essa coisa intrincadíssima, essa porção de sintominhas que estão dispostos aí por Oswald, encontraríamos o caminho de recuperar - o verbo é este, mesmo no caso de uma psicanálise – a sintomática desse suposto sujeito chamado Brasil? Oswald teria sacado – como se poderá ver também no Macunaíma de Mário de Andrade –, por uma estória pelo corpo deste Brasil, a sintomática de que encontramos sempre tentativas vigorosas de fazer de conta que nosso sintoma não existe: tentativas de catequese. Por exemplo, há um momento que acho espantoso – e que as pessoas interessadas na História da Arte, se é que isto existe, poderiam pesquisar – que é a Missão Artística de l8l6. É um sufoco. Pode ter dado coisas interessantes que estão nos álbuns de turismo do Brasil, Grandjean de Montigny e outros, Teatro Municipal, Operinha de Paris, etc., tudo plantado aí. Não custa também a gente comer francês – “como era gostoso o meu francês”, já dizia um outro... Nessa tal missão artística”, não há como não ver uma tentativa de catequese, pois não se estava precisando tomar arte emprestada de ninguém. O barroco brasileiro é anterior a isso. Aleijadinho foi possível aqui dentro, e vem sobre ele uma forte catequese. Era D. João VI pensando que era francês quando era um galegão comedor de frangos. Ele dá uma de obediência à catequese da cultura francesa e faz aquele escândalo que é tentar perverter – é o nome – a nossa possibilidade de fala com uma imposição cultural. A falecida Escola Nacional de Belas-Artes, grudada no Museu Nacional de Belas-Artes, foi uma dessas casas francesas aonde reinou o academicismo francês que era, naquela época, o rebotalho da Europa, pois a missão trouxe aqueles artistas que não tinham mais emprego. Lá, até que se faziam coisas interessantes naquele momento. Lembrar que aquela titica é contemporânea do Impressionismo... Não é grande coisa o impressionismo, mas, pelo menos, impressiona. Pegou-se
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o rebotalho lá da Academia Francesa e se o trouxe para cá, para academizar. Não foi fácil. Foi preciso chegar, do ponto de vista institucional, um Portinari, que até aprendeu a pintar direitinho, quer dizer, acadêmico, para depois conseguir tentar outra coisa, num esforço ingente de insistir numa diferença qualquer. E quantos aspectos desses não sofremos? *
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A psicanálise, por exemplo, invadiu o Brasil – o verbo é este – pela Argentina. E que psicanálise?! Aquela! Invasão de “cucaracha” não há inseticida que dê jeito. Ou há? De tal forma que, como disse Oswald, o Brasil não se deixando catequizar, e o resto aí em volta da nossa ilha sendo talvez mais propício a essa catequese, eles se tornaram um veículo adequado de tentativas de catequese e de colonização cultural. Quando o gringo, muito distante, não consegue fundar o seu imperiozinho dentro do nosso terreno, ele se alia a algum veículo cucaracha que lhe parece mais fácil de transar, e tenta invadir por outra fronteira. Estou chamando atenção para isto porque, na medida em que estamos tratando de psicanálise e polética, interessa saber também – e não com nenhum sociologismo de algibeira, mas com o tratamento da diferença que a psicanálise reclama ser reconhecida – como é a postura da psicanálise entre nós. Diriam alguns, como muitos já disseram, certas esquerdas pouco reflexivas, que nós próprios, aqui, estaríamos subditos a uma ordem francesa. Isto porque se trata de um rapaz chamado Jacques Lacan, que escreveu em francês e é um francês. Mas nós estamos colonizando ou sendo colonizados? Aliás, retornando á palavra do Glauber, ele reclamou, e veementemente, em suas últimas investidas, quanto a essa vocação de certos grupos no Brasil de serem colonizados. Porém, é muito diferente comer francês e se subjugar a francês. É claro... Não interessa muito se não o que não é nosso... Mesmo porque os marxistas não vão dizer que Marx é paraíba. Podia, ele trabalhou numa obra a vida inteira... Mas acontece que, nem tão pouco seria nada mais do que carneirismo, e pior do que carneirismo, tolice da nossa parte, se
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simplesmente estivéssemos aqui repetindo e mastigando o discurso do senhor fulano. Bem que se pode tomar a palavra a partir de certas coisas que a gente comeu de um prato que estava disponível. Por que não comer? Ainda hoje eu estava lendo as atas do Encontro de Paris, esse último encontro que houve lá na Escola, esse tal Fórum, e alguém, não me lembro quem, dizia que essa colocação sintomática da diferença, da diferença sexual, certamente, era o que Lacan teria – se não me engano foi o próprio JacquesAlain Miller – resumido como o pensamento de Freud. Ou seja, o resumo que Lacan fez do pensamento de Freud foi dizer que “a relação sexual é impossível”. E essa pessoa se perguntava: “Qual será o resumo que se conseguirá fazer do pensamento de Lacan?”. Este enunciado, “a relação sexual é impossível”, não tem outro campo de inserção, outro aparelho, senão aquele que Lacan escreveu como fórmulas quânticas da sexuação, a dissimetria radical entre homem e mulher. É espantoso me parecer – com a ferramenta que utilizo – que Oswald já nos dizia isto. Não que a relação sexual é impossível, porque isto não está explicitado, mas que – na distribuição quântica do para-todo e do para-não-todo que Lacan escreve – existe, nisso que chamam de cultura brasileira, uma peculiaridade espantosa: a heterossexualidade. É o que leio do discurso dele. Ele convoca o brasileiro a assumir a radical heterossexualidade de seu sintoma: só nos interessa o que não é nosso, o que é Outro. O que é essa tentativa de comer o outro senão o regime da LEI, o regime da heterossexualidade? Seria interessante que estivesse certo o Oswald, que fosse isto que ele estivesse dizendo sem saber o que estava proclamando através de antropologias simplórias, tipo matriarcado e patriarcado. O que, aliás, se presta a movimentos feministas e coisas que tais. Não é disto que se trata, pois quando ele tenta definir o que é esse matriarcado, esse Pindorama de que fala, está apontando para essa aspiração de invadir o campo do Outro. O verbo “comer” tem vários sentidos: sou furado tal qual o outro; sou furado, então devoro o outro. Existem duas possibilidades de o homem situarse nesse comer. Uma é homossexualizante, ou seja, tenta simplesmente tapar o
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furo do Outro: o Outro fica igual e, então, só como os iguais. Isto é que chamo de homossexualidade. Comer os iguais é praticamente não comer nada, é simplesmente manter o corpo vivo. Mas existe uma vertente heterossexual, que vai por vias do reconhecimento do Outro: comer o outro enquanto diferença, incorporar a diferença. O que poderia ser, no que vou deglutir o outro, conseguir incorporar a diferença, senão o que o Lacan diz que “é quando um homem ama que ele é mulher; é quando ele deseja que ele é homem, ou seja, tem tesão”? Estou me perguntando se a vocação heterossexual, por excelência, não é aquela na qual vigora o desejo, ao mesmo tempo em que ele se periclita por esse reconhecimento do Outro enquanto tal, ou seja, na medida em que esse desejo não deixa de se acompanhar disso que está definido em Lacan como amor. Aí, de certo modo, o homem se feminiza. Brasil seria um lugar onde o machismo não daria certo. “Seria”, disse eu. Se há isto na sintomática de base, quando esta sintomática é trazida à luz, explicitase o afastamento dessas catequeses que, no fundo, são homossexualizantes. A obsessão religiosa é homossexualizante, não há menor dúvida. Já disse que o Brasil é uma ilha. De um lado, temos o Oceano Atlântico e, de outro, temos o Oceano Cucaracha. Não acredito nesse negócio de América Latina. Não entra na minha cabeça. América Latina é um troço, Brasil é outro. E quero supor que essa tal de América Latina, que são eles, é muito mais catequizável. É muito mais fácil, por exemplo, ser francês na Argentina do que no Brasil, Brasil é muito grande, muito complicado. Mas, de qualquer forma, deve estar na língua essa espécie de rejeição, ao mesmo tempo que um certo tesão. Por exemplo, tem-se a impressão de que o brasileiro é um típico puxasaco de estrangeiro. Pintou um estrangeiro todo o mundo puxa o saco. Basta o sujeito falar enrolado... Se ele quer ganhar dinheiro, ou alguma outra coisa, basta falar enrolado e dizer que é da estranja, que fala javanês, por exemplo, como diz o conto... Todo mundo puxa o saco. Eu pergunto: é uma entrega, é uma vontade de ser colonizado? Isto não é de certos grupos, é um negócio de rua. Não acredito que seja vontade de ser colonizado. Acredito que seja vontade de comer o outro, só porque é diferente. É só um tesão novo. Mas se o outro
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começa a botar banca, leva cacete. E o pior é que está certo. Ser colonizado é deixar-se devorar. Temos a famosa esculhambação nacional, onde aparece sempre o nego que quer comer, mas se faz com ele uma molecagem. Repetindo o que já disse, falando na Améfrica Ladina: tem sempre um troço de crioulo, quando não se caga na entrada, se caga na saída, de algum modo... Será que posso sacar da leitura dessas propostas de Oswald, essa visão que ele teria de que uma coisa fundamental em nossa sintomática seria a de não ser catequizado apesar de só se interessar pelo que é do outro? E essa deglutição vingativa, totêmica? O Brasil é um país que faz tudo para não entrar em guerra. Se eu recalco e fico ruminando, aquilo vai, vai, e chega um dia em que tenho que declarar guerra, não tem saída... Aqui, vai uma molecagem, ali, se dá um jeitinho e não se faz a guerra... Não sei se foi Millôr Fernandes, ou alguém de semelhante porte, que uma vez disse que militar brasileiro só perde sangue quando faz a barba. Não é um defeito, é uma virtude... Ou quando fica menstruado... porque agora tem mulher militar... Parece-me que essa revolta, como por exemplo a de um Glauber Rocha, é no sentido de que, com a pressão mundial – pressão econômica, comunicacional, etc. – estamos vivendo um outro período de forte catequese sobre o país, a qual não deixa de se colar em certos núcleos, em certos lugares. Oswald era um sujeito que passou pelo marxismo, passou por quase tudo e disse que não se tratava de nada disso, que aqui tem que ser um negócio diferente, outro, particular. E nós outros que ficamos nesta mesma posição, tomamos, como já disse, porrada de um lado e de outro. Podem argumentar que como na heterossexualidade só interessa o que não é nosso, tudo que aparecer interessará, então é uma confusão desgraçada... Mas não custa, através de um trabalho, ainda que longo, destacar a diferença enquanto sintoma. Aí não vai aparecer uma confusão e, sim, uma maquininha simples de comer, de deglutir, de devorar. Cultura brasileira, isto existe? A América do Norte levou longo tempo
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para conseguir produzir uma explicitação, digamos, sua, de sintomática sua. Isto só aconteceu com a Pop Art, que veio da Inglaterra, mas só encontrou solo verdadeiro na América e foi o primeiro momento em que ela conseguiu dizer alguma coisa. O que se diz é que o Brasil não pintou com a sua. Não será justamente porque o Brasil não tem a sua, em termos de postura discursiva, de aparência discursiva? Não será que a do Brasil é justamente essa de deglutir o que pinta? Por que não? A missão francesa foi uma imposição catequética, se não caquética, e que não dura. Por maior duração que tenha, a coisa acaba se dissolvendo. No campo das artes plásticas no Brasil, por exemplo, se faz de tudo, mas você vai ver e não é nada daquilo, é uma lambança... *
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Na literatura, um Guimarães Rosa é muito mais importante do que se pensa. Crítico, digamos, formado via Universidade, só vê que tem Joyce, mas não vê que aquilo tudo do Rosa foi montado de outro modo. Não é a mesma coisa. Ninguém pode tascar Guimarães Rosa. Não é tradução nenhuma. Rosa foi traduzido para o francês. Eles contam a história em francês e sabe-se que francês não consegue contar a história tal como acontece na língua de Guimarães Rosa. Nesse ponto aí é que posso dizer que Lacan é francês, sim, não tem nada mais francesão. Entretanto, ele é bem mais primo do tupi do que se pensa. Não sei por que vias. Talvez pela via das suas velhas relações surrealistas. Oswald diz que o Brasil já era surrealista muito antes de tentarem isso. Acontece que não é fácil, para um francês, deglutir essa coisa estrangeira que é Lacan mesmo lá dentro da França...
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PAPO DE TUCANO O VIRAVESSO DA UTOPIA Dois dias atrás, foi a Festa da Independência. Isto é importante. Festa da Independência também na televisão. Tinha o Projeto Aquarius, muito bonito. O repertório estava ruim, mas estava bonito. Pelo menos tinha mais gente do que a Festa de João Paulo. Isto é importante. Não é de não se levar em conta. Independência. Fica-se discutindo no nível político, econômico, etc., sobre a tal Independência do Brasil. Há aqueles que dizem que o Brasil ainda não fez sua independência. Talvez foi por causa disso que o Maltrapilho foi expulso do pais, o tal Padre. Porque dissera que o Brasil não é independente. Mas a Independência, a Festa da Independência é que interessa, no nosso caso, mais de perto, a festa que possibilita a Independência... Independência mesmo não existe. Nem país rico é independente. Depende dos outros para explorar, senão ele ia viver do quê? O Senhor depende do Escravo. De qualquer forma, interessa essa Festa da Independência, na medida em que, a independência que nos interessa, aonde poderíamos sacar algo de sintomático, é exatamente aquela da nossa infância, da bandeirinha que a gente desenhava no colégio, do Pedro I, do verde e amarelo, dessas coisas que podem situar significantes que estejam em jogo nessa constituição de algum sintoma de base que nos daria a marca distintiva que é marca da independência: não existe outra. Não existe outra marca de independência para um sujeito – e sujeito não é pessoa – senão o apoio siguinificante que ele tenha como fundamental.
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Certa vez insistiram, perguntando a Lacan sobre a questão do coletivo: onde fica o coletivo, o social, na psicanálise? Ele respondeu o que era de responder: que coletivo é o Sujeito no Discurso. Toda vez que se fala em Sujeito, mesmo no campo psicanalítico, as pessoas tendem a pensar que são elas próprias, que são pessoas, que o sujeito é uma pessoa, ou um indivíduo Não existe outra coleção que forme coletivo do falante senão a posição Sujeito, coletora dos significantes. As invectivas que se fazem à psicanálise, no sentido de que ela estaria desprezando o social, são simplesmente de não se entender o que acontece no discurso psicanalítico, que é justamente aquele que trata do que se assenta em algum lugar discursivo que tem a ver com o Outro, indefectivelmente. Por isso é que dou importância ao sete de setembro. Afinal de contas há uma grande massa humana interessada, de uma maneira ou de outra, ainda que seja pela sintomática nacional da festa – pintou festa, a gente vai –, mas em torno de alguns significantes que não deixam de ser rememoração de marcas infantis. A questão da festa para o brasileiro me parece de importância. Se não for festa, não interessa. Daí que não gosto muito do nome que se dá a este negócio que faço aqui uma vez por semana, o Seminário. Chamo de Sarau, em particular, que é muito mais adequado. Sarau é uma festa onde se vai fazer uma transação literária, musical, etc. Desta vez, tinha até encenação do Pedro I montado no cavalo, apontando a espada e gritando aquelas coisas que são afirmação do Discurso do Senhor – Independência ou Morte! Interessante esse rapaz, é muito inteligente. Não sei se vocês acham, mas esse Pedro I, eu o acho uma figura maravilhosa, um grande cara. Morreu com 35 anos numa pior. Mas parece que ele já porta – embora sendo, na verdade, português com um faro incrível para as mulatas – essa jogada: sacou muito bem o que seria tornar-se brasileiro, do ponto de vista sintomático. Há várias tiradas dele que valem a pena ler. Leiam os depoimentos dos contemporâneos. Uma coisa me chamou atenção quando ele foi relembrado no momento da tal festa. Como sabemos, os reis, no mundo ocidental – o
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chamado mundo civilizado – têm uma marca bem característica na sua roupa: para situar que ali é o lugar do rei, eles usam um manto onde há uma gola feita de pele de arminho. O arminho, que parece ter recebido o signo da pureza, vai ali com o sentido de realeza, realeza que teria que ser pura, em todos os sentidos, para ousar ocupar aquele lugar, de Real. Pois o tal Pedro I, no que proclama a Independência, além de jogar os laços fora e mudar suas cores – naturalmente, pois dizia Lacan num Seminário que “nada é mais distintivo do que as cores” –, ele manda que se jogue fora a pele de arminho do seu manto real e que se faça uma gola de penas de papo de tucano. O que é uma interpretação absolutamente correta. Fez um corte, e remanejou tudo. Passou a usar um belíssimo manto, puxado para o verde e amarelo, com gola de penas de papo de tucano. Daí para frente, com essa interpretação, com esse significante destacado em brasileiro, se identificou de certo modo com o tucano, tornou-se um bicão. O tucano é de uma família complicadíssima daquelas lá da zoologia. É aquele bicho que tem um bico enorme e cores maravilhosas. É o bicão por excelência, na paisagem brasileira. E dentre as características que os dicionaristas arrolam, ele é justamente um pássaro que vive de comer pequenos frutos transando pelas árvores, e, de sobejo, pilha o ninho das outras aves. É uma acumulação significante interessantíssima: pintou ninho de outra ave, ele vai lá e dá uma bicada. É isto que se chama heterofagia. Come tudo que pinta das outras aves. Nem por isso ele deixa de ser tucano. Aliás, a característica dele é esta, a de ser bicão. *
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“Tucano” pra frente a nossa correlação, essa Heterofagia que tentei colocar, em cima de Oswald com a sua Antropofagia, seria um sintoma destacado de há muito nisso que se quer chamar de cultura brasileira. Essa tentativa heterofágica, que na verdade é uma espécie de alterofilismo (sem h), de alter-filia, pelo outro, aquilo que Oswald dizia: “só me interessa o que não é meu”. Há aí uma série de coisas a serem consideradas.
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Vários desses textos de Oswald são mais ou menos contemporâneos dos primeiros Seminários de Lacan. O primeiro Seminário é de 1953. É espantoso que, quanto mais os relemos, mais descobrimos como, a golpes de faro, Oswald vai articulando coisas importantes para a nossa visada. É claro que ele leu Freud, ele era mesmo apaixonado por Freud. Mas não leu Lacan. Acontece que Lacan também leu Freud. É interessante que – na p. 140 desse volume VI das Obras Completas de Oswald –, justamente falando de Um Aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira: O Homem Cordial, texto de 1950, ele coloca essa questão da alteridade, isso que estou chamando de alterofilismo do brasileiro. Sabemos que halterofilismo é aquele de levantar os pesos. Tirando-se o h, é uma figura do Outro que não deixa de levantar o peso massacrante das culturas, onde se almoça e janta, e tornar um pouco leve a digestão. Gostaria de refletir um pouco sobre esse conceito de alteridade que Oswald coloca nesse pequeno comentário sobre o homem cordial. Começa assim: “Pode-se chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si” – isto é importante: ver-se o outro em si –, de “constatar-se em si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro” – aí ele mostrou por vias de sentimentos. “Passa a ser assim esse termo o oposto do que significa no vocabulário existencial de Charles Baudelaire – isto é, o sentimento de ser outro, diferente, isolado e contrário.” Ele critica esse que é o sentimento de marginalidade, de estar fora, dejetado, foracluído em relação ao outro, quer dizer, esse sentimento dúbio e existencial do sujeito que, sendo diferente, não é no sentido da diferença, que não encontra lugar, mas, sobretudo, é um sujeito jogado fora, isolado, contrário às convicções, etc. Pode ser até que esse sentimento de alteridade exija a participação desses objetivos que Baudelaire situa... Mas, por outro lado, Oswald fazia esforço para destacar uma outra concepção, um outro conceito de alteridade, e não consegue, a meu ver, senão dar as dicas sem explicitar muito bem. Ele está querendo dizer – e insiste nisso pelo texto todo, de várias maneiras – que a alteridade de que ele está falando não é um sentimento de
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marginalidade, de ser jogado fora, mas, justamente, o sentimento de estar com o nariz metido na vida do outro. É o sentimento do bicão por excelência, ou seja, de conseguir estar, para com o outro, numa certa transação deste gênero. Ele faz – nesse e em outros textos – comparações com outras culturas, outros lugares, que acusa, por exemplo, de – por influência protestante – um bitolamento, um toma-lá-dá-cá, uma secura nas relações. Ele está tentando comentar alguma coisa produzida por Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo V do texto clássico Raízes do Brasil, intitulado “O Homem Cordial”. Ele cita: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro (...) Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Segue-se uma crítica interessantíssima, ainda do Sérgio: “Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças”. Ou seja, ser civilizado é alguma coisa da ordem do superego, quando se está sob o mandamento superegóico do bom comportamento. “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.”. O brasileiro não é polido, ele pode ser macio... Antes, sempre, faz uma grossura. “No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é”, ainda citando Sérgio, “de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros” (grifos de Oswald). Oswald destaca essa questão toda para mostrar que o homem cordial do brasileiro não é, de modo algum, uma civilidade, tem alguma coisa de quente, que tanto aceita como rejeita na mesma hora. É essa devoração constante. Ou seja, não se espere da tipologia brasileira uma cordialidade civilizada. Esperese um calor humano – como dizem que o brasileiro tem –, que é quente para
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qualquer lado, e que, na verdade, não se importa muito com instâncias superegóicas no momento em que resolve botar pra quebrar. Aí Oswald retorna àquela dicotomia entre matriarcado e messianismo, que já tivera colocado. “A devoração traz em si a imanência do perigo. E produz a solidariedade social que se define em alteridade. Ao contrário, as civilizações que admitem uma concepção messiânica da vida, fazendo o indivíduo o objeto de graça, de eleição, de imortalidade e de sobrevivência, se dessolidarizam, produzindo o egotismo do mundo contemporâneo. Para elas, há transcendência do perigo e a sua possível dirimição em Deus. A periculosidade do mundo, a convicção da ausência de qualquer socorro supra-terreno, produz o ‘Homem Cordial’, que é o primitivo, bem como suas derivações no Brasil.”. São, como vemos, tentativas de definição com a mercadoria que ele tinha no momento e se perdendo com muita facilidade. Por outro lado, é de se perguntar, dado o tipo de sacação – freqüentemente brilhante que sujeitos como Oswald têm se não há uma grande verdade no fundo de tudo isso. Se não é muito mais possíveis um processo de transação entre sujeitos não civilizados – como o brasileiro –, mas cordiais no sentido desse calor da transação, do que nessa disciplina que parece ser uma reverência legal, mas que, no fundo, é imposição superegóica. Se nessa transação, nessa possibilidade de transação, que existe certamente em nossa sintomática, não se possa estar muito mais aproximado de uma emergência de cordialidade verdadeira, quer dizer, que saiu do sintoma e não da regra de funcionamento. *
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Há a vocação colonialista, do ponto de vista cultural. Uma coisa que me parece extremamente grotesca é a invasão colonialista, por meios culturais, tentando calar o sintoma fundamental desse sujeito que se chama Brasil. Hoje em dia estamos mergulhados numa estrutura muito complicada, onde vemos repetidas tentativas e esforços de se calar uma sintomática nacional através do investimento sobre aparelhos de comportamento importados
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prontinhos, tipo sistema funcional, bancário, etc., da ordem instituída inteira que, no Brasil, graças a Deus, não funciona... Existe o jeitinho, e é uma esculhambação. No entanto, a repetição dessa força colonialista desfigura o sintoma fundamental de certo modo. O que me interessa, nessas questões, é saber se podemos fazer algum tipo de trabalho que venha destacar e tornar eminente o que é da nossa fundação. Por que deveríamos ser outros? Que a gente vai bicar o do outro, é ótimo! Tem que bicar porque a nossa sintomática faz bicar o ninho de todo o mundo, tucanamente. Devoração não é, absolutamente, aceitação de colonialismo. Haja exemplo na história da psicanálise no Brasil. Felizmente não deu certo como ela vem entrando por aí... Porque a gente se dana ao se perguntar como funciona essa tal cordialidade de aparência tão simplória, babaca – este é o termo. Todo gringo que pisa no Brasil poderia pensar que o brasileiro é antes de tudo um babaca... Nessa “cordialidade” parece que aceita umas entradas, etc., mas sempre há o momento de se dizer: “Chega!”. Isso não é um golpe, um desejo, isso está aí nas nossas relações através dos tempos. Não vamos pensar que a cordialidade do brasileiro seja algum motivo de puxassaquismo. Em algum lugar, que não me lembro agora, Glauber diz que a população cucaracha tem muito mais tendência a essa aceitação do colonialismo, e às vezes servem de módulo de passagem. Mas à heterofagia ou alterofagia – que, talvez, nos qualifique – não interessa o mesmo e nem mesmo o outro que tenha entrado com papeleta de alfândega. O que interessa é o que de fora se possa comer de contrabando. É isso que Oswald situa em seus textos. O brasileiro é contrabandista, no sentido da contrabanda. Contrabanda é a banda de Moebius. Tem algo da ordem do inconsciente. Num texto brilhante, Jacques-Alain Miller diz que o ICS pode perfeitamente ser chamado o inconsistente na medida em que é um-dois e revira sobre si mesmo... Na medida em que é contrabandista. É o “contrabanjo”, como diria um Guimarães Rosa... Existem brasilianistas nos Estados Unidos que ficam inventando uma teoria sobre a existência do brasileiro... Mas o Brasil causa
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perplexidade nas pessoas, inclusive nos brasileiros, como se fosse algo incompreensível, muito estranho, unheimlich... Fico me perguntando se, de certo modo, o Brasil não é a pátria da psicanálise. Oswald sugere em diversos momentos que o Brasil é o único lugar onde a psicanálise consegue vencer... Há uma paixão pela psicanálise nesses visionários tipo Oswald, Glauber... Não querem nada com a psicanálise como teoria, às vezes até falam mal, mas há uma paixão pela existência da psicanálise. Glauber e Oswald repetem isso várias vezes. Quem sabe se Freud era brasileiro e não sabia? Não foi talvez a esse ponto na análise dele... Na medida em que a paixão da psicanálise é um inconsistente e essa inconsistência nossa parece que se revela ser aquilo que é a nossa paixão, esse transacionismo. Aliás, dizem que brasileiro só pensa em sacanagem, embora seja o português que inventou o termo. Há até uma piada que diz que com brasileiro a gente fala: “Vamos tomar um café na esquina?” E o cara responde: “Não, estou cansado”. Daí a gente retruca: “Então vamos só de sacanagem”. Aí ele vai. O que é fazer as coisas só de sacanagem? Oswald não usa este termo, mas, talvez, fosse preciso introduzi-lo. Em vez de dizer que o brasileiro vive só de sacanagem, ele diz que o Brasil seria o único lugar onde poderia vencer o ócio. Ele faz a oposição ócio/negócio. O ócio não é ficar em dolce far niente, isso é coisa de italiano, mas é fazer só porque é de sacanagem, se não for, se for por obrigação, não interessa. Por isso não gosto de usar, para mim, o termo Seminário... Como é que um sujeito desses, com as ferramentas que tinha, começa a sacar esse tipo de coisas, apontando – com a sintomática que se deve distinguir com clareza, justamente, para ela poder se afirmar, não inconscientemente, mas com uma verdade da sua inconsistência – o que estou agora falando com essa contrabanda, caracterizando tudo isso? Oswald faz essas oposições, ócio/negócio, patriarcado/matriarcado, porque não tem ferramentas para distinguir masculino/feminino. O que interessa é que Oswald diz que o Brasil teria a sintomática de sua fundação na reminiscência do mais antigo, que para ele é o matriarcado. É o mito que ele inventou – tirou lá desse pessoal, talvez de Marx – para dizer
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que há essa rememoração do mais antigo que é o feminino. Eu já tentei demonstrar aqui que, realmente, o feminino é mais antigo que o masculino. E engraçado isso num país chamado O Brasil, quando me parece que a maioria dos outros países tem nome feminino. Num país de gosto extremamente fálico, com vocação assim para adoração do priápico – o pau-brasil é importantíssimo... Mas aí começa uma grande ambigüidade: esse masculino do Brasil é apresentado na transação do seu povo com essa folia, essa loucura carnaval que é o que ele mostra nesse sentimento matriarcal. Estamos aí, outra vez, na oposição masculino/feminino. Afinal de contas, é o masculino ou é o feminino, o que se destacaria no campo desse sujeito chamado Brasil? Se seguirmos a via dicotomizada que Oswald nos sugere, teríamos que dizer que o Brasil é um país do feminino enquanto tal: pintou assim o feminino, acabou-se. Mas há essa contradição, inclusive no nome. E agora? *
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Oswald não fala em estádio do espelho, mas fala em estado de um espelho, frase completamente clara: “Começou-se enfim a compreender”, diz ele na sua tese A Crise da Filosofia Messiânica, p. 124, “que o Superego também podia estar errado. Do mau acolhimento dado ao direito do instinto submetidos que estavam às disposições disciplinares da Moral de Escravos, passou-se a uma fase psicanalítica em que se procurou legalizar o homem natural que resistia, por meio de neurose e estados de ficção, às injunções seculares do socratismo ocidental. Chamamos estados de ficção aos distúrbios e alienações em que se enforca e se envolve o Eu agredido pelo ambiente. Histeria, paranóia, delírios de ciúmes e religião, ausências, tudo passa a ser nas mãos do Eu poeta, do Eu romancista, do Eu moralista, desenvolvidos no trauma, temas da derivação da doença. Se recorrermos à História, veremos como esses estados príncepes, produzidos em geral nas personalidades fortes, promovem outros que chamaremos estados de espelho e daí a extensão de grupos contagiados e multidões passivas”. Ele destacou o especular daqui.
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Ele não conhecia Lacan: o Estádio do Espelho é de Lacan, não está em Freud. Ele faz a acusação desses homens de negócio, desses estados que ele chama de patriarcais – ao invés de chamar de homossexuais, que é o termo –, e mostra que é especular: são estados que vivem do imaginário violento. Anteriormente, ele havia dito, p. 123, que a psicanálise só se tornou alguma coisa quando Freud percebeu que era preciso brigar contra o superego. Ele está dizendo que o Brasil não é homossexual – no que o brasileiro tem a vocação do ócio, não do negócio, do matriarcado e não do patriarcado –, na medida em que o interesse é sempre pelo outro. Pergunto, então, uma coisa que é de limiar extremamente difícil – porque Oswald se perde, não dá para ver o corte, salta de repente – trata-se de emergência pura e simples do feminino, ou de uma vocação heterossexual? Seria um espanto, pois os estados têm uma vocação homossexual incrível, esse narcisismo especular de manter o mesmo a qualquer preço. Oswald critica até a revolução francesa dizendo que aconteceu neste país alguma coisa que é uma revolução bem mais importante, que ele chama de Revolução Caraíba. Como já vimos, é em função estrita do desejo, no sentido do gozo fálico, que Lacan define o masculino do homem, que é quando o homem ama que ele é mulher. Nessa vocação alterossexual, não haveria, então, no estilo desse sujeito, essa virulência do amor, que é alterossexualizante? E qual é o limiar que posso distinguir, numa vocação alterossexual, entre uma vocação heterossexual e uma posição feminina? Deve haver a distinção, mas a queda é fácil na perspectiva do feminino. Não é a loucurinha das mulheres, pura e simplesmente brotando na sua espontaneidade... Na medida em que o desejo é pressionado pelo objeto a do outro lado – seja qual for – o desejo mesmo acossado pela presença do Outro em questão, quer dizer, quando o desejo se desvaira ou se desbunda no sentido de começar a dissolver-se, a tornar-se meio dissoluto, ele faz uma travessia, digamos, para uma “relação” heterossexual. É um esforço de passar para o outro lado: acaba com isso lá e isso acaba virando amor, impossível como todo amor, uma transação
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com a loucura, por vias, digamos, de movimento desejante que varia para o lado da loucura. Eu pergunto: isso não é mais ou menos ter uma certa paixão ou sofrer uma certa pressão da borda, do corte, em suma, a pressão do ócio, do gozo? Não esquecer que o gozo-fálico situa alguma borda, mas no que ele a situa, ele a reflete, contorna. Todo gozo é causado, afinal de contas, por um objeto que é a causa do desejo, e acaba se dando numa espécie de imantação de uma borda, de um limite, de uma ruptura de limite. Estou chamando gozo-fálico a ruptura e o retorno. E aí que Lacan coloca o gozo-do-Outro, que não há: não há A mulher, logo não há o gozo-doOutro. Mas existe alguma coisa que extrapola o gozo, e no que extrapola, nessa vocação heterossexual, quer tanto atingir o Outro que goza e se perde. Parece que não gozou e, então, quer mais, outra coisa a mais, como as mulheres pedem... Isso é que chamo de uma espécie de imantação da borda, de paixão pela ruptura, pelo limite. A coisa é muito crua – não dá para segurar o corte quando ele corta... Mais adiante, p. 167, falando de Erasmo e seu Elogio da Loucura, Oswald cita alguma coisa que parece texto de Lacan: “Quando os gregos hesitavam em classificar a mulher entre animais irracionais, queriam apenas exprimir a imensa dose de loucura que caracteriza o referido animal”. Lacan está careca de dizer que as mulheres são loucas: loucas no sentido de que o mesmo não se repete nelas: “Como o macaco é sempre macaco vestido de púrpura”, continua ele, “a mulher é sempre mulher, isto é, sempre louca...” Um alterossexualismo, uma coisa que vai por esta via que chamei de sacanagem não é uma coisa da ordem do gozo-fálico, puro e simples. Não é só isso que é pedido. A gente usa o termo sacanagem para tudo, até para produzir o chiste: quando você faz um chiste em que o outro tropeça, fez-se a maior sacanagem. Tem vários sentidos: alguma coisa que extrapola, que rompe não no sentido de retornar, mas no de cair, de entrar noutra. Isso é que estou chamando de alterofilismo, que acaba caindo nisso que Oswald quer chamar de matriarcado e que não é senão uma espécie de chamamento ao feminino, pelo feminino. Uma espécie de vocação para a folia que seria o que os
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sociólogos dizem que é o processo de carnavalização, que seria a estrutura do brasileiro. Não é o carnaval puro e simples, da sua aparência festiva – é sociologismo cair nessa, levantar essa aparência festiva para ver ali as injunções denunciadas –, mas, sim, esta sintomática de ter ficado nesse significante de passar para o outro lado, o qual não é existir na postura feminina pura e simplesmente, mas querer amulherar-se, o que é diferente de afeminar-se. Isso é que estou dizendo que é viver de contrabanda, e que existem muitos discursos que querem sufocar nossa contrabandice ou contrabanditismo. Justamente é a única postura viável em contraposição aos estados de espelho, de que fala Oswald, que não são senão a tentativa de mesmar-se, de viver numa reflexão especular constante. Ao passo que essa contrabandice é um chamamento a habitar o lugar do espelho. *
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Vou ao ponto que mais importa: o viravesso da utopia. Talvez a dicotomia mais forte que Oswald faz nesses textos seja justamente entre messianismo e utopia. No texto que estamos citando – que pretendeu ser uma tese para concurso da cadeira de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1950 –, ele faz essa tese tratando d’A Crise da Filosofia Messiânica. Mas Utopia vem do grego oú, que quer dizer “não”, e tópos, “lugar”. Portanto, “não-lugar”, lugar que não existe em parte alguma. É título a uma das obras de Thomas More, A Utopia, 1516. O termo se encontra, às vezes, no séc. XVI, como nome desse país que não há, mas não é mais atestado no séc. XVII. Em inglês, se torna substantivo desde 1613, “uma utopia”, para designar a concepção imaginária de um governo ideal, de uma quimera, momento em que a utopia se traveste justamente de messianismo, de resultante de messianismo. O francês toma emprestado o termo ainda no século XVI... Uma coisa que se diz a respeito do Brasil – e que se diz aqui a respeito de muita coisa - é que “o Brasil não existe”. É inconcebível, não há lugar para
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se situar isso. Stefan Zweig chamou o Brasil de “país do futuro” e os messiânicos ficam pensando que vai ter um certo momento e lugar no futuro em que o Brasil será a grande potência, etc... Mas ele disse com muita precisão que o Brasil é o país do futuro. Ele não disse que vai ser... Oswald, sem nenhuma correlação com Zweig, vai dizer justamente o que é a essência da utopia. É, justamente, virar a mesa: haver chance de marcha social. Não é que vai se chegar a lugar nenhum, o que importa é romper... Existe utopia? Claro que existe! Chama-se inconsciente. É o lugar. O que é o sentimento utópico senão essa transa mais aproximada com o inconsciente que, afinal de contas, é aquilo que podemos chamar de feminino? O feminino é essa transa mais fácil com o inconsciente. Lacan sempre achou que as mulheres são melhores analistas, quando não são estúpidas, na medida em que há uma transa em aberto na referência ao significante faltoso que define o inconsciente como tal, e que mantém essa inconsistência visível. Oswald acentua, justamente, essa vocação utópica do Brasil. Ele diz n’A Marcha das Utopias, p. 157, que a ilha da utopia é o Brasil. Diz, também, p. 153, que, no Brasil, “somos a Utopia realizada”. Ele está defendendo que uma das coisas importantes na postura brasileira foi a Contra-Reforma, pois os países que foram mais tocados diretamente pela Reforma ficaram caretas. Ele faz a ressalva de que não está defendendo a Igreja, nem lambendo sotaina de jesuíta, mas mostrando que a Contra-Reforma – o movimento de abertura na Igreja para poder debelar o processo da Reforma protestante –, essa elasticidade dos jesuítas, talvez, tenha ajudado na promoção desse sintoma: “Nós brasileiros, campeões da miscigenação, tanto da raça quanto da cultura, somos a Contra-Reforma mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte”. É uma maneira expressiva e sintomática de se dizer isto, de chamar atenção para que, talvez, a sintomática de base do país seja exigir a utopia, que não é senão a festa, o carnaval dos sentidos. Oswald não está sendo beato nem apaixonado pela Igreja. Está mostrando que a Contra-Reforma, contudo, é o momento em que a Igreja tem
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que fazer, até, concessões de assimilar a Reforma – engolir, assimilar e transar com outras. O jesuíta tem, por exemplo, que se virar com o índio no Brasil: é claro que tentando catequizar. Poderia ter sido, no entanto, uma coisa pura e simples de massacre... Quando diz que o Brasil é utopia, Oswald quer mostrar que é utopia sim, mas pelo avesso. “Há o que se poderia chamar o avesso da Utopia”, diz ele, p. 166, “e que justamente no século XVI, nos é dado por três mestres da Europa culta. São eles: Rabelais, Cervantes e Erasmo”. Mais adiante, p. 169, ele tenta explicar isto: “É a Utopia negativa, é o avesso da Utopia. Ou melhor, a Utopia que o homem encontra em si mesmo, na saúde e no vinho”. Ele está meio perdido, mas, seguindo, ele diz com uma clareza, que talvez para ele não fosse grande clareza no momento: “No padre Rabelais há menos pensamento que em Erasmo e mais literatura. As molas do riso, tanto em Gargântua como em Pantagruel, brotam às vezes duma colocação de frase, dum trocadilho, duma invenção vocabular”. Ele reclama o chiste para explicar o que é o avesso da utopia situando o sujeito na posição do reclamo do corte, do reclamo da perda da língua – o próprio estofo da sátira. É esse namoro, essa transação com a outra por excelência, que é a língua, na produção do chiste pedindo essa utopia, pedindo conseguir viver no lugar do chiste – pura sacanagem... O desejo, a vocação de perder os sentidos. *
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Brasileiro fica de saco cheio de teoria. É interessante, etc., mas enche o saco... Pode ser ruim num certo sentido, se é puro boçalismo, mas se é a nossa bossalidade brasileira, é ótimo! É preciso conseguir distinguir quando é boçalidade com ç: não querer saber, a grossura pura e simples desse machismo ignorantista militante, feito o do coronel de Sucupira. A bossalidade é por vias de bossa, não se submete por muito tempo, e sem muito saco para imposições catequéticas, que, no fundo, as teorias tentam. É uma coisa que vigora no campo freudiano, na medida em que não se sabe o que é a psicanálise, pois
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psicanálise não é essa teoria que se fez. Quando Lacan afirma que ninguém sabe o que é a psicanálise, é dessa bossalidade que se trata: uma convivência com a bossa, suportando o não saber e denunciando que esse saber construído não é saber de quase nada. Por isso, insisti que, talvez, pudesse dizer – não como acontecimento, porque os colonialismos estão aí com todo vigor, mas que é verdade como sintomática de fundo – que o Brasil é a pátria da psicanálise. Quando digo que essa sintomática requer o lugar do espelho, estou dizendo uma coisa grave: que todo brasileiro quer ser psicanalista. Todo brasileiro quer o passe, requer o passe, nessa espécie de, como chama Oswald, p. 172, “ateísmo com Deus”, que, afinal de contas, é a definição que Lacan dá da psicanálise: Deus existe, esse é o ateísmo verdadeiro. Oswald chama atenção para que “hoje vivemos a cultura de um século que admite o ateísmo com Deus”, e vai reclamar isso da nossa posição. Vai chamar o Dom Quixote, de Cervantes, que colocou como criador dessa utopia possível, de “a epopéia do equívoco”. A psicanálise, a prática psicanalítica, é a epopéia do equívoco. Cada análise é uma epopéia do equívoco... Digo isto para chamar atenção para que não nos venham ofender com essas “psicanálises” homossexuais e institucionalizadas como práticas corretas, dominadas, sapientes, competentes, suficientes...
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A REVOLIÇÃO CARAÍBA No Manifesto Antropófago, Oswald dizia: “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A Idade de Ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls”. Ele supunha a possibilidade disso que chamou a Revolução Caraíba. A palavra “caraíba”, segundo Aurélio, é um termo que vem do tupi kara’ib, que significa astuto, inteligente, sábio. É substantivo masculino que tem, primeiro, o sentido de designação que os índios davam ao homem branco, ao europeu – certamente porque achavam que os europeus eram muito vivos a ponto de tomarem as terras deles. Segundo, o sentido de coisa sobrenatural. Uma outra acepção, ainda de Aurélio, diz que significa bento, sagrado – e é, também, o nome de uma árvore típica do cerrado, da família das bignoniáceas, de casca suberosa e grossa. Por um lado o caraíba é astuto, inteligente, sobrenatural, sagrado e, por outro, casca grossa... Já, do nosso ponto de vista, o que interessaria seria não nenhuma revolução que não tem, necessariamente, ou talvez de modo algum, nada a ver com a postura psicanalítica. Mas é possível que possamos surpreender nessa vocação utópica – na existência mesmo dessa ilha da Utopia, de que fala Oswald, desse prazer como utopia realizada, no sentido de utopia como sendo o campo do Outro – não nenhuma revolução feita, nem a fazer, mas, sim, a repetição
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pura e simples, no regime do discurso com que trabalhamos, desse desejo fundamental atribuível a esse sujeito chamado Brasil como isso que articulei com o nome de uma Revolição Caraíba: uma revolição constante, uma repetição desejante a partir disso que seria a nossa sintomática fundamental. A suposição dessa sintomática seria aquela que promoveria, segundo o dizer ainda de Oswald no mesmo Manifesto, a prova dos nove configurada. “A alegria é a prova dos nove.”. Não sei se alguém tomou conhecimento de que, num texto em que comentava Guimarães Rosa, tentei mostrar que o lugar da obra de arte, talvez isotópica ao lugar do analista, era o lugar da alegria. Alegria no sentido desse movimento que fica entre o gozo possível e o gozo-doOutro, impossível, já que o Outro não existe, muito menos seu gozo. A movimentação no sentido desta realização seria o movimento utópico da alegria. O que eu gostaria de fazer hoje era falar muito pouco e tentar suscitar mais a participação em cima das temáticas que estou trazendo. Não podemos ficar apenas nessa conjetura, nessa suposição de sintoma. É preciso que o depoimento de outros, acossados pela mesma sintomática que pretendo chamar de Brasil, do brasileiro, pudesse participar na constituição de alguma coisa sobre isso... *
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Essa Revolição Caraíba é uma espécie de fundação do que eu chamaria de uma Alterarquia. Oswald fala em Pindorama, na Utopia de Pindorama e coisa dessa ordem... Seria a alterarquia de Pindorama isso que coincidiria com o conceito que tentei colocar de Heterofagia no encaminhamento geral do Seminário deste ano, no sentido do que chamo uma Diferocracia. Uma alterarquia não é absolutamente uma anarquia. É justamente alguma coisa que tem um regime de arqué centrado na alterabilidade constante em função da referência ao Outro em sua falta. Seria fazer, ao contrário da hierarquia do ócio, ou talvez dentro da hierarquia do ócio de Oswald, a República do Ócio: a República desse movimento da alegria que está sempre em postura heterossexual.
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Algumas pequenas coisas qualificam este país, que Oswald repetindo a postura de outros escritores a respeito – chama de país do futuro: o lugar onde vigoraria esse ateísmo com Deus, que é exatamente a própria postura da psicanálise. Oswald coloca no sentido do “avesso da Utopia”, falando dessa utopia negativa que seria o Brasil: a utopia em que o homem encontra em si mesmo alguma coisa que “já começa a fazer da língua o próprio estofo da sátira e da fantasia”, como vimos na vez anterior. É importante como o brasileiro reinventa a sua língua. No caso de comparar-se, por exemplo, a forçagem gramatical que tiramos da língua portuguesa – que em Portugal parece que ainda hoje se mantém no mesmo nível – e como as coisas aqui se organizam linguisticamente de modo completamente outro. É o caso, por exemplo, da miscelânea dos pronomes pessoais na língua brasileira... A canção popular, quando observamos as letras daqueles autores mais espontâneos, em que o “tu’ e o “você” participam da mesma frase. Em função de uma prosódia específica da melodia que pinta, passa-se de uma pessoa para outra. Ou seja, como se diria em bom português, “se você não cabe vai tu mesmo”. Isso é uma das pequenas coisinhas, dos pequenos sintomas que vemos no uso, no cotidiano... Tenho uma analisanda que é mestra nesta questão. Como ela pintou de um ambiente completamente fora das minhas cercanias, há uma estranheza maior no começo da relação. Acho espantoso como ela me trata. Chegou me chamando de Doutor, falando “o Senhor”, aí, ela passa imediatamente para “você” e, depois, passa para “como eu te disse, sabe Doutor...”. Ela pula de uma coisa para outra. No começo, pensei que isso pudesse ter até implicação com a sua análise, mas depois percebi que é uma espécie de repetição farta na fala, uma sintomática muito nossa, na nossa pontuação com a língua. O que significa misturar esses pronomes e esses apelativos em períodos tão curtos no movimento da língua? É preciso ter uma forte vocação de gramático, em muitos desses casos, para se manter em períodos mais ou menos longos com uma concordância pronominal. É preciso estar com a cabeça no código – na língua enquanto codificada escolarmente, academicamente segundo uma
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gramaticalidade – para que se ponha um sujeito de frase na terceira pessoa por exemplo, ou na segunda, e se lembre o tempo todo que as concordâncias devem ser feitas como manda a Academia Brasileira de Letras. Quando o sujeito usa e abusa das colocações gramaticais durante a sua fala, qual será a norma, ou melhor, a regra de funcionamento – em contraposição ao normativismo da gramática – que estará em exercício nessa troca de pessoas gramaticais? Quer me parecer que a troca constante, na mesma frase, das pessoas gramaticais se refere a uma regra que, ao invés de apontar para uma concordância constante e gramaticalmente coerente com uma pessoa marcada no começo da frase, está fazendo a concordância com o movimento inconsciente, com a relação com os efeitos inconscientes que cada frase apresenta no momento de sua instalação. Quer dizer, no caso dessa analisanda, por exemplo, na relação transferencial, em função dos efeitos de sentido promovidos pelo que ela diz, pelo nível de afastamento e aproximação, etc., ela usa os pronomes e os apelativos à vontade. Uma regra absolutamente correta. À medida que vou escutando, percebo que há o momento certo de chamar “sabe, doutor?”. Aí sei que vai ser dito algo que é do nível de uma suspensão dentro da transferência. E, de repente, “ah! como eu te disse”, aí o negócio é por cima... Alguém que olhasse isso de um modo estritamente gramatical veria erro de concordância e suporia não existir nenhuma regra de funcionamento, quando há uma regra de funcionamento em função de efeitos inconscientes da relação transferencial. Nas conversas cotidianas talvez possamos surpreender esse mesmo tipo de coisa. O sujeito passa de um pronome pessoal para outro, em relação ao outro, num sentido de aproximação e distanciamento. É uma espécie de jogo de cintura, drible, está mais preocupado com a dança entre os sujeitos, do que com as regras que conseguiriam de modo codificado as relações. Isto não significa que não se esteja fazendo a referência intermediária, necessária, indefectível, ao Outro A mediação do Outro está presente, porque na língua estão as duas posturas. Quero destacar aí exatamente esse jogo de cintura que vai na
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musicalidade da frase e na relação intersubjetiva. O saboroso é justamente esse deslizamento constante que o brasileiro faz na sua fala cotidiana. A presença do “tu”, por exemplo, no carioca, é alguma coisa, talvez, da ordem do expressivo, do imperativo... O que importa é essa maleabilidade com a língua. A língua brasileira não é de modo algum a língua portuguesa. Quero valorizar essa recusa – pelo menos nos níveis onde a possibilidade existe – ao imperialismo de determinados significantes que se querem fechar em significados. Em suma, eu surpreenderia aí de saboroso, de valorizável na sintomática brasileira, justamente uma recusa constante nos lugares mais macios, quer dizer, onde imperativo é menos rigoroso, uma recusa de manutenção de um código vigente... É preciso dançar a língua. Encontramos mesmo nas pessoas um verdadeiro mal-estar em ter que sustentar a concordância, até no nível do número, não só no nível da pessoa. A insistência do homem do interior, em várias regiões do Brasil, em eliminar as redundâncias: “As casas são brancas”, por exemplo, é absolutamente redundante. Basta dizer que “as casa é branca”, que todo mundo entende que são várias. Eles, então, eliminam a redundância e entram num contato mais, eu diria, erótico com a língua. Mais erótico, na medida em que a língua não fica feito uma deusa intocável. Ela fica como uma mulher assim, que você pode passar a mão... Existem várias maneiras de fazer isto, como, por exemplo, o contrário, como faz o Rosa, que vai buscar essas coisas no interior, e que sofistica e brinca. Ele curte, é uma curtição de língua, e não um respeito a uma língua fundada, demarcada acadêmica e sistematicamente por alguma agência instituidora da correção linguística. Esse “tu” e esse “você” se misturam de tal maneira em certas regiões, que são simplesmente uma troca prosódica: é como a frase fica mais macia, mais fácil. De tal maneira que o homem do interior, ao falar com uma pessoa que ele acha extremamente graduada – e encontramos isto num personagem de Sucupira, chamado Zeca Diabo –, faz uma série de prolegômenos ao apelativo, ele bota uma série de títulos para essa pessoa, etc., para destacar a diferença, porque o tratamento pela pessoa gramatical não faz diferença. Essa possibilidade de transação que parece demarcar essa face da
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sintomática brasileira de apagar freqüentemente os distanciamentos, em função daquela tese do “homem cordial” que Oswald cita, poderíamos dizer que não é por nenhuma cordialidade piegas, mas, simplesmente, por uma coisa que, sem demarcações legais, a gente encontra aqui. Nos Estados Unidos, por exemplo, a “democração” americana, todos são iguais perante a lei, etc., no Brasil isso é uma espécie, também, de ato, de afirmação. Junto com essa quentura de tratamento, existe uma afirmação de que nós somos diferentes do ponto de vista das instituições: temos posições hierárquicas diferentes. Nós estamos sujeitos. Não é de tanta separação assim. “Não vem porque tem”, como diz Betty Milan. “Tudo bem, você é uma ‘otoridade’, mas eu sou um sujeito” – eu posso enfiar um pouco de quebra nas demarcações hierárquicas, na medida em que me esqueço e te chamo de você no meio dessa estória... *
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É preciso chamar atenção para uma coisa extremamente interessante, nessa revolição caraíba. Vários escritores e a fala de rua chamam atenção para uma característica suposta do brasileiro, exarada num termo delicioso, que é ao mesmo tempo às vezes considerado pesado: a chamada esculhambação brasileira. Não sei se vocês se lembram de uma piada que correu a rua depois de 1 de abril de 1964. Alguém contava para um tipo mineirão comum que osome fizeram a revolução e que iam botar ordem nessa bagunça, etc. E o tal mineirão respondia: “Deixa eles fazê o que êlis quizé, depois, devagarzinho, º
nóis escuiamba tudo...” Freud tem um pequeno texto, que é citado muito freqüentemente, chamado A Cabeça da Medusa, no qual ele trabalha o que nomeia, sobre um termo grego, de ato apotropéico, uma apótrope. Ele tenta, nesse trechinho, pensar o que significa esse horror, essa paralisação que produz a exposição da cabeça de Medusa. Perseu é quem consegue vencer a Medusa com o artifício de levantar o escudo espelhado frente a seu rosto. Ela ao se ver, fica paralisada,
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e ele pode escapulir. Ele devolve o brilho e aproveita a jogada para cortar-lhe a cabeça. Entretanto, ele não olha para essa cabeça porque, mesmo morta, bastava que ele a apresentasse sem olhar para que os outros ficassem paralisados. Freud chama atenção para que a cabeça de Medusa é a exposição da castração que paralisa, terrifica as pessoas: é deparar-se com a configuração da castração, em termos de vulva, de órgão sexual fêmeo. Ele diz que aquela proliferação de cabelos como serpentes, não só lembra a vulva com seus pêlos, etc., como abranda também, de certo modo, a castração, na medida em que repete o pênis, por outro lado. O excesso de personificação de pênis é a falta de pênis, quer dizer, estar cercado de pênis por todos os lados é estar se deparando com a castração. É essa exposição da Medusa como pura e simplesmente referência à castração. Freud chama atenção, também, para o fato de a cabeça da Medusa, como símbolo do horror, ser usada sobre o escudo da deusa Atena, repelindo os desejos sexuais. Quer dizer, a exposição veemente da falta é, como se diz à brasileira, “brochante”. É ela, justamente, que acirra o desejo, mas sua violenta exposição decepa, de certo modo, o desejo, ou o congela. Freud também cita Rabelais, que dizia que um demônio podia ser espantado pelas mulheres de uma maneira muito interessante: bastava levantarem a saia e mostrar a xota que o demônio fugia... Lacan já disse que o inferno não são os outros, como disse Sartre, o inferno é o desejo... Vocês devem se lembrar de que as menininhas, quando éramos crianças, de repente, nos agrediam, talvez pela nossa exibição do pênis, levantando a saia e nos dando aquele susto: vem que tem, vem porque tem... Os menininhos ficam se exibindo, fazendo pipi de pé, essas coisas... Há uma cena muito especial no filme Viridiana, de Buñuel, em que a máquina fotográfica é substituída por aquela paralisação conseguida por uma exibição vulvar. A fotografia é o congelamento. Ela congela aquele momento sem tirar nenhuma fotografia. Uma das mendigas, de costas para a câmera, simplesmente levanta a saia. Freud, revertendo a posição, diz, também, que o membro, o órgão do macho, também tem o efeito de um ato apotropéico. Aí já não talvez pelo
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mesmo mecanismo. É como se o mito estivesse dizendo: “Eu não tenho medo de você, eu desafio você, eu tenho um pênis”. Aí, então, está outro modo de intimidar o espírito do mal, o diabo. A coisa é ambígua, pois na medida em que ele mostra um outro mecanismo no modo de operação, por outro lado, estruturalmente, é a mesma coisa. Ele chama atenção para que um pênis ereto não é senão sintoma de falta. Nada mais nitidamente sintomático do que um pênis ereto. É um sintoma histérico na carne, exibidor do Falo. É o caso, por exemplo, daquele texto de Moustapha Safouan sobre o Édipo em que analisa a pederastia grega. Ele mostra que, exatamente porque está lá o pênis em falta, é que é interessante. A coisa se reverte sobre si mesma na medida em que a exibição do sintoma do desejo é tão faltosa quanto a exibição da falta configurada, por exemplo, na falta do pênis. A coisa se reverte e o efeito é o mesmo. Em ambos os efeitos podemos encontrar uma oscilação. Oscilação na medida em que a cabeça de Medusa é repleta de pênis, como diz Freud, repetindo a falta, mas, por outro lado, substituindo um pouco por alguma presença essa falta, quer dizer, abrandando a falta. Assim na exibição do pênis ereto ao mesmo tempo que há esse terror, o surgimento fálico é um abrandamento. Abrandamento na medida em que é terror, mas é fascinação em ambos os casos. Em suma, é a famosa banana brasileira, que tem uma certa graça e é ato apotropéico por excelência: dá-se uma banana e vai-se em frente. Mas, essencialmente, o que vigora no cotidiano da nossa fala, mais do que a banana, seria justamente a esculhambação, que tem muitos sentidos. Posso dar uma esculhambação no sujeito, mas também o sujeito pode montar um esquema todo bonitinho, todo gramatical, e ser esculhambado por cima... O mesmo gesto que pode brandir fascinatoriamente o tesão do Falo é denunciador da castração para um outro sujeito. O que é dar essa banana ou fazer vigorar essa esculhambação? O verbo esculhambar significa tirar os culhões: ex-culhonar. O que faz a esculhambação como sintomática é a mesma coisa que o “tu” e o “você”: recusar a imposição superegóica constante de
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determinado código, de determinado império, simplesmente exibindo para o Outro a falta – a falta que há nele, Outro. Dizer “não vem que tem” significa: “Olhaí, tu é muito macho, mas pras tuas negas...”. Tipo da frase de brasileiro. E a tal da cordialidade que observava Oswald. A miséria que se fala do brasileiro não é uma miséria puramente financeira. Esse sentimento de miserabilidade, que talvez seja muito nosso, é extremamente importante, pois é saber transar com a falta. A língua ajuda nesses termos e esses hábitos, essa esculhambação, seriam uma tentativa de deixar claro que, embora tendo suas autoridades, seus signos maiores, é tudo muito importante, mas, “não vem porque tem”. Minha questão é perguntar se nessa “brincanagem” típica do brasileiro não existia uma denúncia constante do pudor. Na cabeça de cada brasileiro, quer me parecer, há o pensamento: “Estou aturando tudo isso porque estou por baixo, mas quando tiver meu dinheiro, ganhar na loteria, dou uma banana...”. Está-se sabendo o tempo todo que é um jogo de poder e não aquela respeitabilidade do submisso ao superego. Ou seja, existe esse sintomazinho a ser acirrado, destacado, que pode ser extremamente importante do ponto de vista de uma ética de comportamento nacional. No que, então, dá-se uma banana, esculhamba-se com alguma coisa, ao mesmo tempo se fascina pela exibição do falo, expõe-se a falta que se supõe no Outro, que se mostra tão arrogante: é brandir no nariz do Outro a sua falta, quando ele está se supondo completo e cheio de poderes... ao mesmo tempo que abrandando isto com certa fascinação. A respeitabilidade, por exemplo, que a língua francesa instituída merece do francês é uma respeitabilidade de código, de respeito a uma ordem universitária. Podemos ver isso com clareza no texto de Jean-Claude Milner, O Amor da Lingua: ou bem se transa com alíngua e ela desliza, ou bem se transa com a língua, que é a suposição do lingüista e do gramático, de estabelecerem um código. É nessa distinção que é preciso se colocar. Hoje em dia, pegamos muitos trabalhos universitários, e a concordância está toda errada. Certa vez, tive uma briga com um membro da banca de
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vestibular, porque dei 10 numa prova brilhante, de redação, cujas concordâncias estavam erradas... Está no código lá do vestibular que não pode haver erro de concordância. Mas ele está concordando com o quê? Está concordando com a gramática, ou está concordando com o movimento do texto? Quero chamar atenção para que a esculhambação pode não ser absolutamente de araque, embora a suposição que se faz seja esta de que é uma falta de responsabilidade, de caráter, etc. Mário de Andrade talvez tenha se enganado no subtítulo que deu de Macunaíma – o herói sem nenhum caráter –, a não ser que ele quisesse instituir esse caráter pela falta de caracteres costumeiros... Na verdade, não há nenhum araque na verdadeira esculhambação. Ser de araque era ser sem nenhuma marca, sem nenhuma referência, mas essa esculhambação não é atividade de um desossado, uma coisa mole, sem núcleo. É, sim, justamente, o vigor de um sintoma particular, duro como osso, como se fosse uma espécie de S1 do Macunaíma, já que supostamente seria o brasileiro. Só que o S1 dá a impressão de uma falta absoluta de caráter quando o seu caráter não é senão o que qualifica nós outros, ou seja, a prática dessa esculhambação para demonstrar o desvigor dos códigos, dos sistemas. Esse jogo de cintura de Macunaíma – que é índio, preto, louro, nortista, paulista, pula por este país inteiro – é, afinal de contas, alguma coisa que vive numa heterofagia conseqüente. No fim se decepa no confronto com a castração enquanto tal, no caso, que é a Uiara, se espatifa e se projeta no céu, como uma constelação, a Ursa Maior. Mário de Andrade, com o Macunaíma, quer me parecer, destacou que essa aparência de falta de marca é simplesmente não se ver a marca que lá está, só porque ela é diferente: esse gosto alterofílico, heterofágico, heterossexual, do brasileiro, de estar sempre partindo para outra, e poder estar exibindo, a cada momento, a sua castração. *
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Oswald de Andrade, n’A Marcha das Utopias, p. 182, chama a nossa atenção para a Guerra Holandesa, que ele chama de guerra Utópica do Brasil. Vieram os holandeses, que são de uma estrutura tipo Reforma – e ele fala da contraposição do brasileiro contra-reformista, abarrocado, pois o barroco era o lugar dessa transação corporal e aberta –, que eram extremamente fortes e organizados e... ficou no Brasil a idéia de que eles eram uns bundões... “Os holandeses”, diz ele, p. 189, “eram chamados ‘homens de manteiga’ pela sátira, pela tortura católica do duque D’Alba. Pois esses ‘homens de manteiga’, estruturados na Eleição e na Graça da religião reformada, opuseram o próprio peito ao mar. Venceram Felipe II, legando à história das lutas pela liberdade a estampa homérica de Halckmar. Forçaram os horizontes marinhos da Utopia humanista. Varreram do oceano as esquadras mais aguerridas e fortes, ingleses, espanhóis e lusos. E vieram, no Brasil, tomar uma tunda tremenda de negros, mulatos, cafuzos e degregados. Não se tratava somente duma guerra tipo marxista entre o monopólio e o livre comércio. Não se tratava de interesses dinásticos ou políticos. Tratava-se apenas da primeira luta titânica, no mundo moderno, entre o ócio e o negócio. E o ócio venceu”. Vejam a virada que Oswald dá na suposição de que brasileiro não agüenta o rojão. Na medida, então, em que se possa ressaltar, a partir da sacação de um poeta desses, essa sintomática específica nossa, mais vigorosamente do que qualquer sociologia – ou coisa desse tipo, que se faz aí no jornalês contemporâneo, graças a Deus, até, senão era todo mundo a falar francês – pode-se pensar na possibilidade de uma tremenda tunda cultural. Não que se tenha saído dando tunda nas pessoas, mas, simplesmente, porque é o caso de tunda toda vez que aparece um colonialismo forte por aqui. É preciso simplesmente sair do marasmo dessa falta de marca e ressaltar, na sintomática desse sujeito, essa possibilidade do desregramento. Oswald recai naquela questão do Brasil, país do futuro, como era colocada nesse momento e, para dizer dessa possibilidade, desse futurível para o Brasil, vai falar de Osvaldo Aranha, p. 151: “O que me interessa no Sr. Osvaldo Aranha, mais do que sua carreira, são certas afirmativas suas que
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julgo de primeira ordem. Disse ele agora a um jornal: ‘O Brasil será um dos grandes líderes do fim do nosso século e dará à nova ordem humana contribuições materiais e espirituais que não serão excedidas por outros povos, mesmo os que hoje se mostram mais avançados’. É exatamente o que penso. E minha fé no Brasil vem da configuração social que ele tomou, modelado pela civilização jesuítica em face do calvinismo áspero e mecânico que produziu o capitalismo na América do Norte”. Há certo ufanismo, certo ingenuísmo, nesta postura de Oswald, mas prefiro, ao invés de criticar, sacar no contexto dessa situação, dessa textualidade que ele nos apresenta, não um messianismo, mas a possibilidade de se reconhecer, na prática sintomática desse sujeito, não liderança futura mas exibição franca, diante do mundo, dessa sintomática, de modo a exercer alguma influência – a meu ver, bastante benéfica. É preciso não confundir – e talvez seja isto que Oswald confunde nesse momento, talvez por falta de ferramental teórico, embora sua sacação poética seja generosa por si – essas duas aparências que podemos colocar sob o título de liderança. O carisma é algo da ordem do fascínio. Falamos em líderes carismáticos, etc. O querigma, a declaração futurível, por exemplo, é da mesma ordem. Mas essas duas coisas, carisma e querigma, funcionam em campos diversos, talvez mesmo opostos, que nem sempre sabemos distinguir com clareza. Embora Oswald, para ficarmos na dicotomia que ele criou, esteja fazendo a crítica do messianismo com esse ufanismo, cai numa espécie de messianismo brasileiro, tipo o Brasil virá e salvará a situação, a liderança messiânica do Brasil... Não é por aí. Isto não é compatível com a sintomática da nossa esculhambação que, se esculhamba geral, esculhamba também a si mesmo. Existe um outro lado que comporta, também, um certo carisma e um querigma, que é justamente o lado da denúncia, no sentido em que chamo atenção para a sua existência no ato-poético. Tentei, antigamente, num texto, distinguir o que chamei de dichter, o vigor do poético como denúncia. E que não é produção de um líder messiânico, mas de um indicador de utopia, no sentido de vigência do Outro, de alteridade inconsciente, de Deus nesse ateísmo nosso.
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Em nosso campo, por exemplo, em proximidade, percebo freqüentemente essa confusão em torno do nome se não da pessoa de Jacques Lacan. Vemos nos jornais mesmo discípulos de Lacan, recaindo no malentendido que a língua permite, que o discurso permite, confundindo esses dois lados. Jamais consegui situar no nome, na pessoa, de Lacan, nenhum carisma de líder. Ele não me pareceu aderir a esse tipo de sintoma. Seria mais para indicador utópico. O que faz oposição ao líder messiânico – que vem como salvação, com discurso pronto, e dizendo qual é a verdade a ser instalada – é o indicador utópico, o qual tem postura poética. O carisma pode se dar com aparência semelhante, as massas podem se aproximar do indicador utópico com o mesmo tipo de comportamento, mas se pudermos destacar o que é colocado aí, veremos que se trata da possibilidade da utopia, da alteridade. Não estamos livres de ver as pessoas se agruparem, se melarem, se colarem, imaginando-se em torno de uma liderança messiânica. Digo isto, por exemplo, a respeito de uma conclusão que teria sido feita no momento em que tantos se acharam chocados por um ato aparentemente desvairado quando Lacan dissolveu a Escola Freudiana de Paris. Houve quem teve por bem achar que se tratava de um ditador messiânico. Jacques Lacan, para quem o conheceu um pouco de perto, era na verdade uma figura grotesca. Era como uma escultura do Aleijadinho. Nunca vi uma pessoa se parecer tanto com uma estátua do Aleijadinho, barrocamente brasileira. É um engano pensar, quando se lê Lacan, que haja ali algum purismo como o de Mallarmé, por exemplo. Lacan é, para mim, da ordem do grotesco. É espantoso o dito barroquismo, fraturado, quebradiço, estranho, que pinta no seu texto. Nenhum messianismo, nenhum carisma de líder na figura de Lacan. É o oposto justamente de uma liderança carismática. Pode ser um indicador utópico. É de fazer furo, de topar com a alteridade, de não resistir, que a coisa se movimenta. E isto acabou forjando um nome para ele. Lacan insistiu em que a resistência está do lado do analista. Foi um escudo maravilhoso o que os analistas inventaram, a partir de um dito de Freud, que a resistência é só do
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analisando. A resistência é do analista que tem o ouvido tapado. Se ele escuta, deixa falar, e se ele deixa falar, isso fala. *
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Para entendermos a nossa dita esculhambação, é preciso não resistir, é preciso deixar que ela fale. Vai aí a diferença que é preciso reiterar entre um indicador desse tipo e qualquer pretensão de virar a situação e fazer-se um líder messiânico do espólio de Lacan para multinacionais psicanalíticas lacanianas. Menos ainda, coisa a que me recusei desde o início do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro – e isso está publicado em algum papel por aí sobre encontros em Recife e São Paulo –, que algumas pessoas entusiasmadas com a existência da Escola Freudiana de Paris, queriam me agarrar para fundar um Movimento Lacaniano Brasileiro, como Escola única. Não. Eu moro no Rio de Janeiro, ou melhor, no Leblon. Não vou tomar o País, não vou fundar a Inter Estadual de Psicanálise. Estamos trabalhando, fazendo o que podemos. Se isto tem efeito, tem efeito, se não tem, não tem. Não é agora que vou me submeter a qualquer imperialismo ou colonialismo ávido por implantar uma Multinacional. Por causa dessa recusa, que Betty Milan e eu temos feito há anos, passamos, de repente, para alguns, de amigos interessantes a pessoas não gratas. Isto tem a ver com nossa recusa a ir ao Congresso de Caracas. Não temos a menor necessidade – está aí o dito de Lacan, está aí a experiência que se teve perto ou longe dele –, desaparecido o mestre, de nenhum bedel para tomar conta de nosso estudo e da nossa prática. Mas não estamos livres de nos defrontarmos com esta questão por vias transversas, pelo caminho normal das tentativas de assalto do litoral brasileiro (que geralmente são por vias do Oceano Cucaracha – pelo lado do mar, já se veio e já se ferrou, então, dá-se a volta por terra). Temos que começar a dizer publicamente não a esse tipo de catequese.
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Não temo contaminações, pois existem anticorpos – e as alterações são possíveis. Mas há esse tipo de intermediário que, por uma prática ou outra, se apodera dos efeitos... Há exemplos de alguns que tiveram a audácia de entrar aqui. Foram chamados à palavra e, aí, só disseram “No, porque no conozco bien Lacan”. Agora me dizem que eles estão dando cursos... Fazem muito bem. Cada um dá o que tem. É direito de todo mundo, abrir a boca. Pois falem. Nada tenho a dizer contra isto. Simplesmente, não pretendo ceder a configurações multinacionais, lacanianas ou não, e sair desse percurso que fazemos há tempo, lentamente, como se pode, como se deve... Já repeti aqui que não sou nenhum representante ou embaixador. Tenho minha experiência, que é a minha, para o gasto do meu discurso. Só isto. *
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Na verdade, não há o que temer. Quem está empenhado no que está fazendo, está fazendo. Quem é que sabe onde vai dar nosso trabalho a partir de Lacan? Não faço a menor idéia. Seria liderança messiânica, justamente, saber-se que o que está sendo feito é para dar nisso ou naquilo.
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A POLÉTICA DO DLESEIJO A palavra dleseijo é tentativa minha de escrever o que me parece ter sido uma grande contribuição de Lacan: um certo atravessamento mediante o qual ele conseguiu produzir o que interessa na questão da oposição Lei/Desejo. Estes dois termos, por carência de leitura, antes de Freud e mesmo depois – quer dizer, sem a leitura de Lacan –, pareciam ainda existir em antagonismo: Lei X Desejo. O Desejo seria algo parecido com aquilo que ainda se fala por aí a respeito de uma pretensa afetividade, embora não se diga ao certo o que isto seja. E a Lei seria um enunciado proibidor. Lacan atravessa por aí e põe que Lei e Desejo estão do mesmo lado, ainda que um seja a contraface do outro, no sentido topológico de um reviramento, em contrabanda de Moebius. Lei e Desejo exigiam, portanto, alguma reconsideração da sua oposição. E mediante esse processo que, abrasileirando, eu chamaria de movalização (de mot-valise), Lacan teria revirado certas oposições, imbricando um termo no outro, mostrando a uniface de tais oposições. É nesse jogo de palavras, de movalização que venho com o termo dleseijo. Há Desejo e Lei nesse dleseijo. Posso destacar fonologicamcnte aí os dois termos. Um é garantia do outro, e o outro garantia do um. O que me parece que Lacan conseguiu, nessa travessia, foi posturar uma política do sujeito, uma política dessa escansão, que tem como uma de suas estratégias essa movalização. Outra estratégia é a interpretação, a qual opera em equivocação sobre a exposição significante pronunciada pelo analisando. E isto nos dá, em função
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de Lei e Desejo, uma ética do real e uma política do sujeito que se instala numa prática da diferença. A palavra polética inclui esses termos todos. Lacan disse que o desejo é o que essencializa o sujeito, o falante. A essência do homem é o desejo. E o é na medida em que, se o sujeito se assujeita, é ao campo do Outro, enquanto lugar onde vigora a Lei, a Lei da diferença. Esta é a Lei possível, em substituição do impossível Real (ela vem em suplência ao Real impossível). A Lei da diferença, ou a Lei simplesmente, não é senão a Lei do Amor (do Outro Amor): aquela que sustenta a possibilidade de uma prática analítica, isso que se chama de clínica. Lacan definiu a clínica como o real enquanto impossível de suportar. A Lei da diferença é a Lei do amor, isto é, do Outro Amor, na medida em que este amor propicia a possibilidade de suportar. Essa Lei rege o campo do Outro enquanto Nome do Pai. A vigência dessa Lei no campo do Outro é haver significante que faz a referência à Lei da diferença, à qual Lei cada sujeito só tem acesso pelo que Lacan chamou Lei do Coração, la Père- Version, que só consigo traduzir por P-versão, P maiúsculo do Nome do Pai. Ou seja, a versão paterna da instalação do sujeito, por via metafórica de fundação, por via sintomática. A Lei do Coração é fundamental, na medida em que dá acesso à Lei da diferença, enquanto Lei do Amor. E o desejo essencializa o homem justamente na medida em que a sujeição desse falante é ao campo do Outro, onde impera essa Lei. Nesse momento Lacan faz contrabanda com essa oposição Lei/ Desejo. O que é oposto ao Desejo não é a Lei, pois ela está do mesmo lado do desejo, e, sim, justamente, a não assunção da subjetividade, isto é, o aprisionamento dos enunciados – e isto não é legal, em todos os sentidos. Essa revirada que Lacan faz amainando essa oposição é o que o garante – o que é claro nos últimos textos em que ele reafirmava sua exigência de dissolução da Escola Freudiana de Paris – de se manter caturramente no seu desejo. Ele sempre disse que o importante, como resultado de uma análise, é que o sujeito não venha mais a abrir mão do seu desejo, uma vez reencontrado.
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Je père-sévère. Que ele tenha escrito assim nos permite reescrever de vários modos, pois isso se lê e isso tem efeitos de leitura. Portanto, podemos escrever: je persévère, do verbo perseverar; j’ai père sévère, que Lacan tem pai severo. A severidade do pai não é absolutamente a de afirmação de um enunciado, mas justamente a da afirmação do Desejo enquanto referente à Lei do coração: a perversão que funda o sujeito na sua sintomática particular. Quando ele diz je père-sévère, significa que o exemplo do mestre dado nesta carta – porque esta afirmação faz parte de uma carta – é justamente não abrir mão do seu desejo. E isto é o que venho ensinando o tempo todo. Não é não abrir mão de um capricho: não confundir de modo algum desejo com capricho... Nessa severa P-versão, Lacan afirma a postura do desejo, reproduzindo esse atravessamento, essa travessia, sua travessura. *
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Nosso encaminhamento tem sido, desde o semestre passado, o de mostrar o vigor da Lei da diferença, o vigor da Lei, no sentido de afirmação de uma fundação do social estritamente sobre a Lei, e não necessariamente sobre determinado tipo de interdição. Neste semestre, é nossa intenção destacar, se possível – e para isto é que tomamos Oswald de Andrade –, o que seria de se supor como alguma possibilidade de topologização, de situação do sujeito Brasil enquanto sintoma particular. Retorno pois ao lugar de onde isto foi tirado, de onde começamos – que foi trabalhado em cima d’As Meninas, de Velázquez –, ou seja: a questão da Lei do amor e da lei do Homem, a questão da diferença sexual, e a formulação quântica da sexuação produzida por Lacan. Já dissemos muita coisa sobre as fórmulas quânticas mas, do ponto de vista desse atravessamento produzido, um fenômeno ficava extremamente confuso nos discursos proferidos até antes de Lacan, embora possamos dizer que ele pôde tirar isso de Freud – está lá para quem sabe ler –, pôde destacar a lógica de formação daquele discurso. É que a nomeação da diferença sexual,
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do mesmo modo que determinados outros conceitos, outras categorias, em outros campos – por exemplo, da Física, das Ciências Naturais e das chamadas Ciências Humanas –, esteve absolutamente encoberta pela pressão (imaginária) das aparências. Na história da Astronomia, da Física, tivemos um processo de abordagem do suposto objeto dessas supostas ciências, que descreve o comportamento aparente dos astros, dos fenômenos físicos. E mais tarde também, na tentativa de abordagem da chamada natureza, no sentido de tal Botânica, Zoologia, etc., os processos iniciais são de descrição dos apareceres, que se regulam por um discurso que está interessado nas grandes formas, digamos, mais evidentes do imaginário comparecente. Antes de se pensar na regulação sistêmica dos aparelhos que estão envolvidos no espaço físico, na Astrologia se fazia uma relação entre os mitos que regulavam o social e o aparecimento dos astros. O comportamento destes parecia estar de acordo com funções às vezes completamente externas a seus movimentos. A coisa se descrevia mais ou menos deste modo. No caso, por exemplo, da Zoologia e da Botânica, os objetos eram descritos pelas partes geometricamente discerníveis na sua aparência externa: o corpo humano é um troço tipo cabeça, tronco e membros. Então se pensava o que estava na cabeça, no tronco e nos membros... Era difícil aparecer um sistema que dissesse, por exemplo, que o sistema circulatório passa pelo corpo todo, mas que é sistêmico enquanto conjunto discernível... Vai se percebendo, então, que há uma textura sistêmica dos sistemas e que se pode destacar esses sistemas independentemente da aparência externa. É claro que muita coisa ainda resta definida segundo uma aparência figural, porque ainda aí se isolam esses sistemas por uma via de dissecação e de separação de grandes formas. Quanto mais o discurso científico vai se desenvolvendo nas suas abordagens de aparência, melhormente vai conseguindo perceber sub-sistemas e grandes interferências entre sistemas, criando sistemas e ecossistemas, isto é, sistemas relacionais entre sistemas referentes, e assim por diante. Vai se
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tornando abstrata essa configuração, se não mesmo matêmica, como acontece no caso da Física, em que as grandes inscrições são transformadas em fórmulas que regulam movimentos de articulações gravitacionais. O que é um pouco assustador para o leigo, para o absolutamente desinformado, quando Lacan escreve uma formulação como esta, é que é algo muito recente e, embora esteja em Freud, foi preciso que Lacan fizesse essa dissecação que é da ordem do infinitamente pequeno, do atômico. Do ponto de vista da nossa estada, da nossa existência de falantes, em função dos significantes que pintam na nossa história, mantêm-se ainda na mente das pessoas, por absoluta falta de divulgação, se não por absoluta falta de equacionamento, que a diferença sexual se dá em termos de configuração anatômica, das aparências –, e, no fundo, continuamos a transar desse modo. Apenas como lembrete, porque não há nenhuma novidade, é preciso dizer que essa formulação lacaniana é ter-se conseguido no nível da referência ao sujeito falante, especificamente no campo psicanalítico, destacar o que é do sexual, que o sexual não existe sem a palavra. Ele pode estar no reino animal, mas apenas como bi-polaridade de fecundação, ou de efeitos secundários no corpo dos animais. No caso do falante é de conseqüência estritamente da fala, do significante. Destacar isto das aparências macro-formais, anatômicas e outras, distingue-se de certas tentativas do tipo das operadas no seio das Ciências Naturais e Humanas, que certamente deixaram de lado o sexo. Lacan teria tentado – e isto é uma tentativa que ele sempre declarou ter feito – uma cientificidade de escrição matêmica: uma ciência do sujeito, se podemos dizer assim, que vem substituir a descrição baseada na aparência anatômica por uma escrição por via simbólico-estrutural, uma matemização desse objeto destacado. É como se deu no passado, no séc. XVIII, por aí. Um certo acontecimento nas Ciências Naturais promoveu a substituição de uma História Natural descritiva por uma História Natural sistêmica. É o caso, por exemplo, de Lineu, com a estrutura das plantas... Mas não é do mesmo modo que estamos trabalhando hoje, pois a estruturação do discurso da Fitologia é, digamos, da
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ordem do classicismo – gênero, espécie, etc. Esse destacamento da diferença, enquanto diferença sexual, primordialmente para o falante, é a única produção neguentrópica no campo do sujeito. Neguentropia sendo, como se sabe, o contrário da entropia, a qual é um conceito físico que se prende, se não me engano, no campo da Cibernética, à segunda lei da Termodinâmica, que faz a suposição de uma equalização radical do universo em termos calóricos. Existe um trabalho físico, na Termodinâmica, que vem a supor que o universo faria uma troca de calor, ou seja, eliminaria a diferença no calor. Eliminar a diferença calórica é, num processo extremamente longo, se fazerem transposições calóricas de tal tipo que, no final, o nosso suposto universo, isolado de fora, não sei pelo quê, estaria todo ele com a mesma quantificação calórica, o que eliminaria toda possibilidade de diferença. Seria, então, a parada absoluta, a morte. No conceito da Física, da Termodinâmica, e, depois, da Cibernética, a morte do universo seria por entropia. Entropia não é uma perda. É uma equalização. Não é que o universo perca calor, simplesmente as diferenças desaparecem, fica tudo empastado, do ponto de vista de temperatura. Posso pensar a entropia para dois lados. Para um, ela seria esse processo de equalização. Mas do ponto de vista comunicacional, por exemplo, posso pensar a entropia em função daquilo que a comunicação supõe como sendo seu modo de relanceamento dos processos, que é o chamado ruído. Ou seja, quanto mais ruído maior possibilidade de comunicação: maior possibilidade de informação no sentido do novo. O processo de comunicação ficaria numa média estatística entre uma quantidade de redundância, de repetição de coisas sabidas, e uma entrada de algum elemento novo. Esse elemento novo que entra é chamado de informação. É aquilo que não está no meu sistema, por exemplo. Para me comunicar com outro, se me comunico de um modo extremamente redundante, não estou tendo nenhuma informação, nem mesmo posso dizer que há alguma comunicação. Existe, sim, um empastamento. Seria a relação especular pura. Se existe ruído, há possibilidade de movimentação, no sentido de captação, assimilação,
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fagocitose do ruído, ou coisa dessa ordem, de modo a produzir informação. Portanto, a comunicação estaria em movimento. A entropia acabaria com todo processo de informação. Se produzisse comunicação, produziria uma comunicação narcísica absoluta, isto é, de imagem para imagem, um se vendo na cara do outro. A suposição do Narciso no mito da sua morte, diante do espelho, é a entropia absoluta. Mas posso distinguir, talvez, na entropia, dois momentos: um momento de empastamento geral do Outro, que seria a morte do universo, e um momento de fechamento radical ao ruído, no caso de um determinado sistema. Quer dizer, se um sistema conseguisse fechar-se absolutamente ao ruído, se ensurdecesse – como acontece que um sujeito fique –, estaria se fechando a toda possibilidade de informação e, portanto, estaria entrando em entropia privada, digamos assim. Os físicos, tanto quanto os cibernéticos, tentam situar – e Norbert Wiener faz um esforço muito grande para isso no ser, digamos, afetivo – alguma neguentropia que se movimentasse em contrário à dinâmica universal da perda de calor, que movimentasse o universo outra vez. Nessa abordagem que chamei de afetiva, de Wiener, ele diz que o neguentrópico é o Homem. Quer dizer, o homem, na maneira como ele intervém nos processos naturais, em certas explosões atômicas, de alguma maneira a fazer um movimento, etc. Mas eu diria que quem estabeleceu, destacou, a lei da neguentropia foram Freud e Lacan, justamente no momento em que mostram que o sujeito falante é essencializado pelo desejo, que se esteia como funcionamento da Lei da diferença. Esta é a única neguentropia destacada no universo daquela Física: o falante pode ser neguentrópico, quer dizer, subversivo. Se pinta o desejo, o marasmo é deslocado, se mexe. Isto porque a Lei da diferença é a manutenção do mesmo enquanto sintoma demarcado para cada sujeito que afirma o seu desejo enquanto mesmidade sintomática, ao mesmo tempo que é, também, a afirmação do Outro, na medida em que a mesmidade do Outro é outra mesmidade. Então, não é mesmidade, é Outro, sem congelamento nem para um lado, nem para outro, como acontece nessa suposição de entropia.
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Por isso mesmo o núcleo da teoria psicanalítica é a questão da diferença sexual. Isto porque ninguém faz sexo com o corpo, mas, sim, com as palavras. Corpo não faz sexo. Sem as palavras ninguém vem a transar coisa alguma, não saberia o que fazer. É justamente o caso do romance, tantas vezes indicado por Lacan, Daphnis et Chloé, de Longus. Somos aquela suposta espécie que não sabe absolutamente o que fazer com o corpo, a não ser que o corpo se incorpore em palavras. A sexualidade está no corpo, como inscrição significante, mas não é o corpo como constituição anatômica. Retorno agora a um tema de que já tratei com o título de FM-Histérico. Só que agora vou falar do FM-Histórico. A questão que está no começo da reflexão psicanalítica, ser ou não ser, por um lado, e ser homem ou mulher, por outro, é a frase que se coloca diante de cada um para uma “escolha”. Peço licença, aqui, para minha tradução de Nachtraglich, não só por “só-depois” mas também por “aodepois”, que se diz muito no interior, só que lá eles dizem “ao-dispois”. Nachtraglich, o après-coup, não é senão ao-dispois. Ao-dispois a coisa fica necessária... Há uma “escolha” sexual porque, em função da sobredeterminação, o sujeito acaba não só empurrado, mas caindo em cima de determinada posição. A “escolha” é entre aspas porque, ao-dispois, fica escolhido, e então pratrásmente como diz Odorico Paraguassu. Essa “escolha” diante desta frase, ser homem ou ser mulher, que é posta diante de cada sujeito – e aí esbarramos no mesmo ou que Lacan trata no Seminário 11 –, significa pelo menos três coisas: ou bem homem ou bem mulher, por exclusão; homem ou (também) mulher; nem homem nem mulher, que é o caso do processo de alienação, onde se escolhermos um perdemos o outro, e se escolhermos o outro perdemos o um. A “escolha”, apesar do vel, ou melhor, por isso mesmo que é o vel, é inarredável. Na medida em que essa formulação se estabelece, apesar do vel da escolha, dessa indecisão, desse buraco que resta no processo da escolha, Lacan insiste em que o sujeito acaba por determinar-se
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enquanto homem ou mulher. E ele insiste mesmo que o processo da análise deve propiciar ao sujeito – não é o analista que vai propiciar e, sim, o processo – uma definição a respeito da sua sexualidade, homem ou mulher. É preciso haver “escolha” porque não se pode (e o verbo poder aí está como impossibilidade e como proibição, pois no regime do discurso psicanalítico o impossível se diz como proibido) ser Outro senão a partir do mesmo. É a questão, por exemplo, de Rosine Lefort com a criança: tem que ser furada como o Outro, mesmar do lado de cá, para o Outro poder pintar, ou, pelo menos, se manter como Outro, em suspensão de mim. Alguma mesmidade é preciso se colocar para se poder sacar o Outro como alteridade. Logo, alguma escolha tem que ser feita, ainda que seja para tentar atravessar-se para o outro lado. Ninguém atravessa para outro lado a não ser que esteja de algum lado – o andrógino não há. Escolher ser mulher é aspirar por um homem que a situe como desejo. Uma mulher não se qualifica pelo desejo. Quem se qualifica diretamente pelo desejo é o homem. Então, a mulher aspira a um significante (o homem é um significante, e nada mais) situável do lado masculino, que lhe permita tentar o desejo. Escolher ser homem é desejar uma mulher, que também é significante, que o desvaire no amor, se não ele fica imbecil. O regime do desejo é o regime do homem. O regime do amor é o regime da mulher. Então, o que quer uma mulher? Ela quer aquela marca, aquela posição – que, no caso, só posso situar do lado do masculino – que permita a ela também desejar, embora ela seja sugada, aspirada, pelo lado do amor. E o homem tem como única saída o amor, quer dizer, tentar furar para o outro lado, justamente porque aí ele perde sua postura imbecil e rompe para o outro lado, no que se feminiza. Quer dizer, ele pode transar na do Outro; pode transar com o Outro por essas vias. Não há de ser nenhuma cópula. Cópula não produz nenhuma relação. Como se pode entrar na do Outro? O homem entra no amor pela porta do desejo. Ele corre atrás do objeto e quebra a cara, porque, de repente, pinta o amor, e ele chega feminizado – que é diferente de afeminado. Uma mulher
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entra no desejo pela porta do amor. No que ela aspira, de repente gama no desejo. É uma chance. Não há nenhuma coincidência prévia, embora pudéssemos pensar numa necessidade ao-dispois – necessidade, podemos dizer, corporal, com inscrições. Não há, pois, nenhuma coincidência prévia entre anatomia e sexuação. Na medida então em que a “escolha” se instala discursivamente, o corpo vira esse tipo de inscrição e, ao-dispois, necessariamente o sujeito é homem ou mulher. Mas é preciso alguma mesmação para poder haver uma outra ação. Uma mesmice para haver uma outragem, ou ultraje. A tentativa, pelo menos, de transar o Outro. Naquela distinção entre H e H’, como costumo chamar Homem e Mulher, temos que fazer uma interpolação que é meramente folclórica, mas ajuda a desmoronar o imaginário. Vou usar um jargão bem vulgar, pois me parece bem mais preciso. Do lado de H existem dois tipos de homem: o pirocudo e o despirocado. O homem pirocudo é aquele que tem pênis, e o despirocado é o homem que não tem pênis. Isto para acabarmos logo com essa confusão das anatomias. Do lado de H’, da mulher, existe a mulher pirocuda, que tem pênis, mas, também, a mulher que prefiro chamar de bucética, porque é cética, tem um ceticismo quanto a estes comandos masculinos. A mulher bucética é aquela que tem uma coincidência incrível de falta. É quase Ur-cética, um ceticismo primordial diante, pelo menos, dos comandos masculinos. Não vamos confundir isso com ser ou não ser fálico. Usei três termos do baixo calão, pirocudo, despirocado e bucética, para distinguir disto. Falo é significante, não anatomia. Uma mulher fálica é um sujeito que se “escolheu” a identificação simbólica por via significante, mulher, mas – e daí é que Freud deve ter tirado a famosa inveja do pênis – ela pode denegar isto. Não denega por ser pirocuda, despirocada, ou bucética, e sim denega a “escolha” feminina que fez. Denega isto querendo, como homem, acesso ao amor. Em vez de partir daquilo que é seu próprio efeito, quer acesso ao amor por via do desejo, porque denega sua “escolha”. A histérica, por exemplo, é o tipo da mulher fálica. Ao invés de partir do seu princípio de “escolha” que fora feminino,
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denega o feminino e copia, imita o homem. Quer ter acesso ao amor, que é o seu próprio princípio, através do desejo, em vez de fazer seu próprio percurso, que é de ter acesso ao desejo através do amor. Isto é que é o fálico. Nada tem a ver com anatomia. Uma mulher fálica, mulher de “escolha” fálica, não é o mesmo que uma mulher pirocuda, ou seja, uma mulher que tem pênis – está atrapalhando, mas tem; como diz Lacan, são aquelas que são mulheres apesar daquele troço atrapalhando no meio das pernas. Mulher pirocuda é anatomia macha com “escolha” feminina. No caso da histérica, vimos a “inveja do pênis”, para o que, talvez, tivéssemos que sugerir outro nome, porque na verdade é inveja do desejo. A histérica inveja o homem porque ele parte do desejo e ela também queria partir do desejo, denegando, pois não foi por lá que ela entrou. Não é o pênis que se inveja, embora, por interferências imaginárias, possa se invejar o pênis como signo – enquanto aquilo que significa alguma coisa para alguém, dentro de uma cultura –, não como significante, desse desejo. Nisso até os homens invejam os homens que têm maior. O homem afeminado é um sujeito que se “escolheu” homem por identificação na sexuação e, nesse momento afeminado, o tal protesto macho é luta de imposição de desejo. Não é de luta de prestígio que fala Freud quanto ao protesto macho, pois a referência é a uma convergência desejante para o mesmo objeto. Pode resultar imaginariamente em luta de prestígio, porque é o mesmo objeto. Aí vem o conhecimento paranóico, como Lacan o colocou... “Eu também desejo.” Este é o protesto. A falta de protesto macho no homem afeminado é justamente porque ele se “escolheu” homem, mas denega isto e quer, como a mulher, acesso ao desejo – que, aliás, é o seu princípio – por via do amor. Há denegação de sua própria instalação, tanto para a mulher fálica quanto para o homem afeminado. Ele não quer ter acesso direto ao desejo, ele quer fazer o percurso do feminino, não porque esteja na posição feminina, mas porque denega sua posição masculina. Daí que o homem afeminado não é o mesmo que o homem
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despirocado, o qual é anatomia fêmea com “escolha” de homem – é homem sem pênis. Engraçado que Lacan chama isto de mulheres fálicas. Isto está meio indistinto, mas está no pensamento de Lacan a possibilidade dessa distinção segundo as fórmulas quânticas. Considero as lutas feministas, na sua maioria – não todas porque seria abuso –, lutas de falicismo. São freqüentemente mulheres fálicas. Elas têm a faca e o queijo na mão, porque sempre possuíram os homens – ao contrário do que dizem os homens –, querem denegar sua posição e tomar a posição do Outro. Ou senão, são homens despirocados que não entendem sua situação e, em vez de brigar do lado do homem, ficam criando um outro partido de homens de saia. É muito mal compreendido isto. As lutas feministas em geral não me parecem reivindicações femininas. Quando percebemos pelo que estão lutando, é simplesmente por serem tratadas em função de um desejo, com igualdade para com os desejantes homens. As mulheres enquanto tais poderiam simplesmente reivindicar a sua diferença, ou seja, não tolerar o fechamento homossexual dos homens. As lutas feministas são também freqüentemente uma luta homossexual. E isto não sei se não é ficar pior do que se estava, se não é aumentar ainda mais o poder homossexualizante do sistema. Na verdade, essa luta feminista parece querer fazer entropia para acabar com a diferença – todo mundo agora é macho. Por isso é que chamo de homossexualizante, pois se apaga o Outro. O amor foi para o beleléu. Amor no sentido em que Lacan o chama de dom ativo, que é conseguir suportar o Outro, que é insuportável. As mulheres são insuportáveis! É uma coisa horrorosa! Mas há que suportá-las: “É preciso”, Lacan disse claramente, “tudo suportar”. E aí ele não disse não-tudo. O psicanalista, por exemplo, seria aquele que é suposto saber suportar tudo. Mas isto é impossível. Ao fazer distinção entre H e H’ nas fórmulas quânticas Lacan pergunta: “Por que será que há mais mulheres...?”. Agora continuo eu, “...bucéticas do que pirocudas?”. Ele faz a suposição – porque isto nunca foi contado, é claro – de que há mais mulheres sem pênis. Talvez por via sintomática, na medida em que a transmissão do sintoma é por via simbólica, metafórica, mas com
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impregnação imaginária. Isto que estou dizendo é um risco, porque não tenho a menor segurança teórica para dizê-lo. É apenas abertura, uma tentativa. A transmissão do sintoma enquanto imaginário do corpo, tomado como metáfora de presença e ausência de falicidade. Não tenho garantia de presença ou ausência de falicidade por pressão do imaginário do corpo entrando por via simbólica. Mas explicar isto é outra questão... A maioria dos não possuidores de pênis, por via simbólica, aí entraria por pressão do imaginário do corpo, o qual daria, no momento do equacionamento da diferença (que Freud coloca diante do ter-pênis/não-terpênis, etc., pela não presença do pênis, sobretudo talvez por causa da sua ereção, sei lá), daria a possibilidade de ancoramento num significante de nãofalicidade. Seria o significante pintando diante dos olhos, digamos assim, por pressão imaginária. Mas é difícil dizer que é só por pressão imaginária, porque há o real, o real da falta de carne. Aí então ponho minha questão, de que não é referência só ao imaginário, pois existe o real de uma falta, a qual, por outro lado, no que diz respeito a um pênis, aparece sobretudo diante de um pênis em ereção. A multipresença do pênis não foi justamente destacada por Freud como referência à sua falta? Pode-se falar de homossexualidade masculina, mas a feminina não existe. Se uma mulher, situada como tal, for capaz de tomar a outra como Outra, é o cúmulo da heterossexualidade. Não estou falando aí de posições neuróticas. Mulheres fálicas podem querer tomar Outra no sentido falicizante. Mas a transação de duas mulheres seria o cúmulo da heterossexualidade. Já os homens são homossexuais espontaneamente, tanto é que se pode dizer O homem, titulo que serve para qualquer homem. Mas as mulheres são heterogêneas, portanto é a alteridade enquanto tal. Elas são outras diante dos homens... e de mulheres. Se não posso dizer A mulher, é porque só existem mulheres no plural, elas são heterogêneas diante de mulher, como diante do homem. Os homens são homossexuais de saída... Eles que se virem para conseguir não sê-lo. Tudo isto interessa fundamente no caso das leituras das produções
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sintomáticas que pintam no seio da chamada cultura (que prefiro chamar de artifício), no seio da arte como estilo. “O estilo é a suprema moralidade do espírito”, como dizia Whitehead. Lacan não repete essa bobagem porque moralidade não interessa para ele, é coisa de sádico. “A moralidade é Sade”, diz Lacan. Mas fazendo paráfrase de Whitehead talvez pudéssemos dizer que “o estilo é a eminência do falante”. Produzir, inscrever um estilo é o ponto mais alto a que pode chegar um falante. E os estilos estão aí. Quando, por exemplo, trato de abordar o que é o sujeito Brasil, a cultura, etc., preciso sacar qual é o estilo, isto é, qual é a letra, a qual é efeito de discurso, portanto é instalação sintomática de S1 que tem a ver com toda essa ética, em todo esse processo. *
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Peço licença agora para tratar de algo que ainda é provisório no meu estudo. Num documentário que passou na televisão, Picasso disse que não tinha estilo. Ele supunha que não tinha estilo porque estava lutando contra uma certa crítica que queria que ele fosse radicalmente idiota, que fosse Picasso o tempo todo. Nesse momento aí, vou tentar um começo de operação a respeito dos estilos, digamos, os mais fundamentais do falante. Eu não diria só do ocidental, mas do falante mesmo. Há uma grande e velha discussão a respeito da oposição Clássico/ Barroco. Isto me interessa na medida em que é preciso fazer algumas correções ao que venho trabalhando sobre Oswald, pois uma das afirmações dele é o barroquismo do brasileiro. É esteado num barroco, que ele supõe de instalação jesuítica (as ferramentas que ele tinha de crítica, de história da arte, de estilística, eram estas), que ele nos vem com o argumento do barroquismo brasileiro como garantia da sua antropofagia (que quero chamar de heterofagia). A suposta oposição, no campo da estilística, entre clássico e barroco é mais uma tentativa de travessia que Lacan faz, e muito bem, no Seminário Encore – que traduzi por Mais, ainda –, onde ele trata do feminino. Um dos
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capítulos do Seminário é sobre o barroco, pois era preciso, para Lacan, situar as relações do inconsciente com o estilo. As relações, digamos, dentro do estilo de Lacan, pois ele dizia que era acoimado de barroco com certo desdém. Sabemos que o francês tem um certo desdém pelo barroco desde que nasceu Descartes lá dentro. Em alguma parte desse Seminário, citando os escritos místicos e os situando no campo do feminino (como o caso de São João da Cruz, Santa Tereza), Lacan nota que é preciso também acrescentar ali os Escritos de Jacques Lacan, porque se trata da mesma coisa. Nos seus Escritos Lacan se situou do lado feminino, místico, ou ele se supõe assim naquele momento. No campo do estilo ele aceita e veste a camisa do barroco: “Como alguém percebeu recentemente”, diz ele, “eu me situo – quem me situa? Será que é ele ou será que sou eu? Finura da alíngua – eu me situo mais do lado do barroco”. Ele é prudente. Não diz “eu sou barroco” e, sim, “eu me situo mais, plutôt, du côté du barroque”. Esse plutôt é que é preciso destacar. Em contraposição ao barroco, ele diz o que é, para ele, o clássico: “O que é o mais certo do modo de pensar da ciência tradicional é o que se chama seu classicismo – ou seja, o reino aristotélico da classe, quer dizer, do gênero e da espécie, dito de outro modo, do indivíduo considerado como especificado”. O que é o indivíduo considerado como especificado senão a referência do sujeito à sua postura sintomática, S1? Isto é justamente o que não acontece do lado do feminino pois, se por um lado uma mulher tem alguma chance de se referenciar a S1, também essa referência fica prejudicada por sua outra postura, já que sua referência essencializante é o furo, a falta de referência, por suspensão do Nome do Pai. Assim, eu diria que Lacan, de certa forma, situou o classicismo na posição masculina, mas não necessariamente homossexual. Não estou querendo desdoirar o classicismo, pois ele produz coisas importantes. Mas não existe arte que consiga ser rigorosamente clássica. A obra está ali, no classicismo, mas se é poesia, acaba se furando de algum modo – e, no entanto, ela se produz canonicamente. O típico de qualquer arte clássica é sua canonicidade. Há cânones estabelecidos, embora furados. É o caso do
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renascimento italiano que inventa “cientificamente”, classificatoriamente, um processo de representação sobre uma superfície, a chamada perspectiva linear. É o caso da Grécia Clássica, que vai construir seus modos arquitetônicos, que têm efeitos musicais, dórico, jônico, etc., como canônica, medida regrada, classificada, de auto-referência mesmo masturbatória: canônica. Fora do cânone não há salvação. Não preciso desdoirar isso porque o homem é necessário, senão as mulheres não tinham como se situar. Aliás, é preciso lembrar que a arte grega não é toda clássica, temos um barroco alexandrino, por exemplo. Fazendo um pequeno esboço, podemos dizer que o classicismo se classifica por auto-referência de estabilização, do ponto de vista da arquitetura por exemplo. A arquitetura é algo de estável, de preferência simétrico, autoreferente ao seu centro gravitacional, tectônico, que está incluído em cada movimento do gráfico da sua aparência, tem uma canônica regulando e medindo um módulo único (o dórico, por exemplo). Um templo dórico, é construído, por inteiro, em todas as suas medidas, a partir do diâmetro maior da coluna. É sua regra canônica para construir templos de qualquer sorte de colunata. O românico, por outro lado, já é um desbunde. É anterior ao classicismo. O romano enquanto tal é clássico, canônico. Não é à toa que foi inventado o Direito Romano em cima de uma canônica rigorosa. Mas o românico é uma espécie de desbunde que talvez se aproxime justamente do barroco franciscano, na medida em que feminiza o processo pela via do movimento franciscano. A distinção que os historiadores de arte fizeram durante um longo período de tempo é justamente através de uma cronologia que absolutamente não significa nada. Há uma tentativa frustrada por parte desses historiadores de situar o barroco, as emergências barrocas, nos sécs. XVII e XVIII. Mas esta via de situação, para nós, interessa menos. Estamos aqui no campo da letra. E também podemos encontrar, por vezes, isto mesmo dentro do campo da crítica de arte, ou seja, a situação mesma do barroco enquanto letra, enquanto movimento específico. Onde vai se situar o barroco? Na arte rupestre, na arte gótica, há barroco, etc. Para essa crítica o barroco não é tratado como uma invenção de um determinado momento da história, mas como determinado estilo,
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determinada forma de tratamento, de uma forma que é radicalmente diversa do tratamento dito clássico. O barroco não é classificatório, ele é volutivo, circunvolutório, expansivo, furado. Ele tem seu centro fora, fora da sua simetria e fora do seu corpo. Quer dizer, ele tem referência ao furo, campo do Outro – o centro está lá fora. O barroco seria, e Lacan deixa isto bastante claro, da ordem do feminino. Do ponto de vista da história do barroco enquanto surgimento cronológico, Lacan diz que ele é a historinha do Cristo, pois o centro do Cristo dessa historinha está fora, no Pai do Céu. O barroco é obsceno, é nu. Quanto mais vestido, mais pelado ele fica. É a exposição do corpo em movimento, porque se o corpo não for regrado, do ponto de vista da arte egípcia, da canônica grega, se ele fizer o menor movimento, abarrocou-se. O corpo é barroco – o corpo é feminino. A arte egípcia é masturbatória ao extremo, auto-referência constante. Coisa que não encontramos, por exemplo, na Pré-História, que é mais – plutôt – barroca. *
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O que me interessa situar, como já disse, é esse barroquismo que Oswald está procurando. Do lado do clássico, então, talvez possamos situar essa vocação masculina do desejo, mas referente ao mesmo, na escrita sintomática daquilo que Lacan apontou como o lugar do tesão. É o lugar da língua dos lingüistas, da classificação da língua. É um lugar de onde o sujeito não quer atingir o Outro, mas sim exibir-se na sua glória sistêmica, mediante a afirmação purista de um cânone que regula a obra, e que é comensurável com ela. É o narcisismo da canônica. É o gozo idiota. O clássico pensa que goza falicamente. Naquela distinção – que sempre me pareceu careta – entre apolíneo e dionisíaco, é preciso apreender Apolo, porque Apolo não é assim tão careta. Mas já fizeram essa distinção, quer dizer, o apolíneo feito o clássico, regrado, regroso, centrado, com sua canônica, etc., é o dionisíaco como barroco. Essa dicotomia é o que tentam alguns historiadores da arte.
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Mas o que seria o espírito do barroco na medida em que ele pudesse ser situado como feminino? Ele é ex-cêntrico, descentrado, querendo ser Outro. É algo como “sartar” fora, até das leis inarredáveis da ereção tectônica. Os arquitetos levantam o prédio, o prédio fica de pé, e aí eles começam a desregrar, a movimentar o edifício – como fez um Gaudí. O centro de gravidade parece estar fora. O barroco, não diria nem mesmo que ele quer atingir o Outro, ele quer ser Outro. Como ninguém consegue ser Outro, o que acontece nessa tentativa é que se pode fazer algum desregramento, uma referência insistente ao furo, a essa ausência de centralismo dentro do próprio corpo: o processo é dispersivo, as formas se jogam para fora, quando não produzem, no sujeito mesmo, na tentativa de ser Outro, um fracionamento em ser outros. Aí encontro o que nenhum crítico (por falta de Lacan – não tiveram bom padrinho) conseguiu abordar na chamada heteronomia de Fernando Pessoa, nos seus heterônimos, na sua heteronominação. A dispersão de Pessoa pelos heterônimos é aquilo que ele confessa em tantos poemas, em várias declarações em prosa: Eu queria ser outro para não ser eu mesmo... E ele nunca sacou bem o que fosse isto, pensava que tinha algum problema psiquiátrico... É aí que se situa Picasso quando diz que não tem estilo. O que não é verdadeiro. Na medida em que tenta ser Outro, ele encontra Picassos. Ele só não se deu ao trabalho, como Fernando Pessoa, de partir-se em vários nomes. Na medida em que se esbarra com o furo do Outro, espedaça-se. Fernando Pessoa se espedaçou ao mesmo tempo, por isso precisava de um nome para cada um, senão se perdia. Picasso foi uma espécie de Don Juan da pintura: uma depois de outra e, assim, não precisava inventar vários nomes. Ele fez isso na sua própria vida, como lembrou o fazedor do tape sobre ele, que passou na TV. Picasso mudava de Picasso a cada mulher. E “cada mulher” não é um Picasso. A cada mulher Picasso virava Outro, a cada picada espicaçava Picasso. Eu não poria Picasso e Pessoa no mesmo lugar. Diria que Picasso participa desse barroquismo no esfacelar-se. Foi depois que Picasso inventou a “fase” que os artistas que o seguiram se acharam na obrigação de ter fases...
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Picasso mudava de idéia e dizia que era uma fase – azul, rosa, cubista, etc. –, quando, na verdade, ele ia era se partindo. Outros fazem isso por imitação. Não têm coragem de pintar a vida toda a mesma coisa, tem alguma vergonha depois que Picasso fez isso. Ficou então essa dicotomia clássico/barroco, masculino/feminino. Eu me pergunto se não faltou uma certa inscrição nessa história, pois nem tudo é clássico ou barroco. Os críticos ficam perplexos, na medida em que tentam amarrar as estruturas. Eles oscilam. No campo da abordagem dos estilos, da estilística – não no campo da história da arte, pois esta porcaria não existe, é sonho de historiador –, não ficou, então, faltando um termo? Não é precisamente só um lugar, mas um modo de operação, pois afinal de contas o estilo, além de ser um lugar, é um modo de operação. Não faltou isso que Lacan veio nos mostrar, esse argumento que é a travessia, a transação? Estou insistindo na heterofagia, em substituição ao termo antropofagia de Oswald. Gostaria de situar melhor o que é essa heterofagia, que ponho como principio de heterossexualidade. O que é isto, a rigor? Onde foi que os falantes acaso escreveram isso por aí estilisticamente? Há pouco eu disse que a língua, do ponto de vista do lingüista, é macha, clássica. E o desvario, o palavrório feminino, é barroco. A alíngua, onde é que ela fica? Ela não é barroca. Ela não tem centro fora, porque não se trata de centro. Lacan disse que ela é feminina, mas, por outro lado, ela se regra a si mesma, esteada em alguma coisa, por exemplo, no Nome do Pai, embora o sustente provisoriamente. Ela participa, ao mesmo tempo, como Milner situa, do ponto de vista da língua, da gramática, e, como Outro, do feminino. Entretanto, Milner também diz que alíngua tem a estrutura da banda de Moebius, e a estrutura da banda de Moebius não é o feminino. É o entre, a travessura: a estrutura da travessia. Só se atravessa, só se faz passe, pela alíngua. Então, proponho, como estudo, pensar: o Clássico, o Barroco e o Heterófago, uma outra categoria. O heterófago não é um caso do clássico, que não quer atingir o Outro. Também não é um caso do barroco, que quer ser Outro. Ele é o que quer
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atingir o Outro. Temos então duas vertentes do heterófago: a masculina, de atingir o Outro pelo desejo, chegando ao amor pelo desejo, e a feminina, de chegar ao desejo pelo amor. A heterofagia tenta estas duas vias querendo atingir o Outro. Reconhece entretanto não poder passar para o Outro lado, nem ser de Outra espécie (que, infelizmente, não há). Neste caso, o sujeito aplica a um sistema rigorosamente clássico, regulável, matematizável, um estilo barroco, e aí ele fura, mas por dentro. Quem fez isso, que nós conheçamos? Jacques Lacan, Marcel Duchamp, Pablo Picasso (este inventou rigorosamente o cubismo, e o abarrocou), Cézanne, Guimarães Rosa... Estou farejando, não estou demonstrando: Beethoven, que pensam que é um romântico – o romantismo é um certo desvio do barroco –, mas é aquele sujeito que abarroca tudo, e quando se analisa sua partitura, ela é rigorosamente computável, canônica... Ele fura por inscrição. É na escrita que ele fura... Bach, outro exemplo, do ponto de vista da história da música, é considerado clássico, quando ele se situa num momento barroco e abarroca sua música. Há, como se sabe, uma sistêmica rigorosa em Bach, e um reviramento estilístico barroco. O regime do inconsciente, por sua vez, também, ou melhor, sobretudo, fica no entre, na medida em que vai do amor ao desejo e do desejo ao amor. É radicalmente heterófago. Por isso você às vezes se surpreende femininamente e às vezes masculinamente. Atenção: o inconsciente não é um sujeito, ele não tem que escolher se é masculino ou feminino... Freud disse que ele não tem sexo. Ele há. Heterófagos são Mársias e Aracne, de que tratei quando falei de Velázquez. Não o são nem Apolo nem Dionísio. Aracne, que vem, de uma via de amor, fazer as suas tessituras em busca do desejo, e Mársias que, através do desejo, faz pintar o amor. O heterófago parece mais barroco do que clássico porque, na sua emergência, inscreve barrocamente. Por isso Lacan se tornou uma figura inassimilável para o francês, difícil de engolir. Se tomamos sua via barroca, ele sai para o centramento e diz: “Je père-sévêre”. Aí começam a dizer que ele é autoritário.
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Encontramos masturbações masculinas, homossexuais, tentando se meter dentro do campo da psicanálise. Encontramos também desbundes femininos ou feminizantes que não suportam coexistir com o discurso psicanalítico enquanto tal, nem com nenhum rigor. E o que Lacan vem nos mostrar é que justamente uma heterofagia é possível. A transação é possível, embora a relação sexual seja impossível, embora o próprio amor seja impossível. Lacan vem inaugurar um terceiro lugar. Há historiadores da arte, críticos, estilísticos, que situam uma coisa importante que interessa no caso do sujeito Brasil. Na tentativa de abordar esses barrocos e situar o barroco enquanto descentramento que se pode reencontrar da Pré-História aos nossos dias em diversas aparições, eles não colocam uma terceira posição, eles abarrocam ou classicizam, mas chamam atenção para o fato de que o barroco é uma invenção de Portugal. Críticos e historiadores deixam isto claro, mas isto tem sido denegado. O barroco foi recusado em vários lugares, e foi assimilado fingindo-se de filho legítimo em outros. O barroco é português. É o império da vontade portuguesa de ir ao mar dos seus descobrimentos, de querer atingir o Outro. Mesmo a Espanha, segundo historiadores espanhóis, tem o seu barroco tirado de Portugal. Camões é clássico para a História? Tornou-se um clássico, mas clássico não é. Vejamos, por exemplo, um autor espanhol, Eugenio Dors, do livro Le Baroque, edição francesa, no qual previu e visualizou coisas importantes. Embora espanhol, ele defende a origem portuguesa do barroco. Ele diz mesmo que “aquele que deseja possuir uma das chaves-mestras que permitem explicar a arte espanhola e definir o caráter que ela tem, que a procure em Portugal. De Portugal, com efeito, provém a metade do sentido secreto da nossa história espiritual. Que digo eu, da nossa? De toda a história européia, provavelmente”. E ele vai fundo: “Certa vez arrisquei que, no composto designado com o nome de cultura, a Europa não apresentava à análise rigorosa senão dois corpos: a Grécia e Portugal. O resto é talvez uma questão de dosagem”. Era preciso retomar esta via. Não devemos esquecer – Oswald me lembrou isto –, por exemplo, que a Demanda do Santo Graal é um texto português.
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Se foi na Grécia que se procurou a essência mesma do classicismo, Portugal nos ofereceu a estrutura do barroco. Esse autor tenta demonstrar isto e nos diz que aquilo que chamamos de estilo jesuítico, que ele situa como certa emergência do barroco, não são senão os estilos mesmos da civilização. E, mais adiante, pega o exemplo do pintor Nuno Gonçalves para demonstrar que é este o precursor da pintura barroca. Esse autor diz que Portugal inventou o barroco. Inventou significa que aquilo que se chama barroco de época, emergiu lá. Ao mesmo tempo, ele também diz que a Pré-História é barroca, o gótico é barroco, etc., enquanto letra fundamental. O que Portugal inventou? Inventou foi o Brasil, o heterófago. Portugal inventou a heterofagia na medida em que lá há rigor, e também na medida em que a arquitetura portuguesa ficou deslocada. O estilo manuelino, por exemplo, ninguém soube entendê-lo porque dava aparência de rigor arquitetônico e, de repente, pintava aquela floração numa janela, uma coisa que é do barroquismo mais exacerbado. As pessoas diziam que era uma emergência local, um negócio sem pé nem cabeça, etc. A meu ver, é simplesmente a heterofagia. É a via de atravessamento, de manter o rigor e furar esse rigor. Estive falando aqui de Velázquez, e eis que topo, no texto desse livro que estou citando, e que recebi esta semana, não o havia lido antes, com o autor dizendo que Velázquez é a fina flor da pintura portuguesa, desse “barroquismo” português. O que eu estava mostrando em Velázquez é que ele justamente põe esse rigor, fura esse rigor, e lhe contrapõe a Lei do Amor. Minha tese de anos atrás é a de que no ato-poético ou se vai de H para H’, ou de lá para cá. Mesmo o clássico, por mais rigoroso que seja – clássico não é o acadêmico –, com todo o seu rigor, em sendo poeta, faz a travessia. O que tentei demonstrar com Guimarães Rosa é justamente que o ato-poético faz perder os sentidos. Naquele tempo eu dizia assim. Hoje diria que o ato-poético faz a travessia. Isto na medida em que ele pode partir do clássico e furar, abarrocar-se, ou na medida em que ele pode partir do barroco e organizar-se, canonizar-se.
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O fato, por exemplo, de introduzir algo que dantes não estava em moda, pode ser tomado como um furo nos costumes. Há tendência, da crítica musical, de tomar os acontecimentos musicais através da audácia do artista de romper com uma forma habitual. Não é aí que está a questão. A questão é que justamente se fura uma estrutura rigorosa mesmo dentro de uma aparente mesmice dos hábitos. Foi para isto que chamei atenção em Velázquez. Ele finge muito bem que é careta a ponto de poder ser nomeado Aposentador Real, no entanto ele é poeta, fura, e instala a diferença. Não se pode fazer a crítica dos estilos pelas audácias particulares, porque isso fica frouxo. Peguemse, por exemplo, as produções certinhas de Beethoven. Gosto de citar a Sonata ao Luar: é aquele negócio aparentemente quadradinho, mas com um só acordezinho que ele pega, faz aquela loucura. Outro exemplo, a 5ª Sinfonia, a caretona, aquela que dizem que é coisa de povão: “Tcham-tcham-tchamtchaaam!”. No entanto, com isto quebrado, alternado, repetido, ele faz aquela loucura, ele fura. O tal “tcham-tcham-tcham-tchaaam” é um suspense... do furo. Beethoven não é romântico, nem clássico. Beethoven é heterófago. Faço distinção entre o romântico e o romantismo enquanto tal. Segundo esse historiador espanhol e outros, não é romantismo, é barroco. Certa vez escrevi, há tempo, um artigo que não publico porque é péssimo, mas que talvez seja um primeiro farejamento meu a respeito desse assunto, que se intitulava Romantismo e Neurose. O romântico não é senão o discurso da – histérica – insisto nisto que escrevi lá. A histeria é justamente a denegação do feminino, querendo ser homem: a histérica, como disse, quer chegar ao amor pela via do desejo, quando a sua própria via é a do amor. Fico tentado a fazer uma coisa perigosa, que é assimilar os quatro lugares de que falei aos quatro discursos de Lacan. Poderíamos dizer que o clássico é o discurso do Senhor... a sua impostação de dominação através de S1 de auto-referência, etc., e a tentativa impossível de se apoderar do objeto. Impossível no discurso do Senhor, significa que há lugar para o poeta, dada a impossibilidade de fechar. Mas nem toda impossibilidade é da mesma natureza, por isso Lacan faz diferenças na instalação dos discursos. No discurso da
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Histérica, na disjunção entre o primeiro e o último termos, Lacan não fala de impossibilidade e, sim, de impotência. O impossível não pinta para a Histérica, assim como também não pinta para o Universitário. Ele pinta para o Senhor, e por isso é possível ser poeta clássico. Também pinta para o analista, por isso é possível ser poeta heterófago. Mas isto não cola bem. Eu não diria, portanto, que o barroco é um desses discursos, o barroco é a referência ao furo – o barroco é feminino. O barroco vai abarrocar para algum lado. Não vou dizer que ele seja situável num discurso, como é o Clássico, por exemplo. Os clássicos são determinados e canonizados, são discurso de mestre. Com o barroco, tem-se a sensação de poder situá-lo, mas os críticos ficam perdidos, pois há barroco em toda parte. Eles não o situam porque o barroco não é um discurso, ele é a referência feminina, referência ao furo. Onde ele pinta, abarroca tudo. Então, ele pode abarrocar o discurso do Senhor... e o discurso do Analista, na medida em que o discurso do Analista é heterossexual, é de transação. Mas ele não consegue abarrocar o discurso da Histérica, ele o desmunheca, ele o romantiza. Isto não significa que, lá no período romântico, usando os estilemas do romantismo, não tenham existido poetas, porque eles não são românticos, eles são barrocos e lançaram mão dos estilemas. Mas encontramos aqueles que são absolutamente românticos, quer dizer, histéricas que vivem da tentação de fechar o processo, esteados numa estrutura neurótica, e que não conseguem fazer um poema e, sim, uma desmunhecação: eles dão um ataque histérico. A vocação do show-man romântico, a vocação que existe por aí em certas músicas populares, etc., é a vocação histérica. Quem é o Universitário? Pode ser o chamado acadêmico, que pega a receita, põe no sovaco, leva para o ateliê e pensa que vai produzir uma obra de arte. Portugal inventou a heterofagia, inventou o Brasil, como já disse, e nós precisamos sacar, na nossa via, essa vocação heterossexual do brasileiro. Por isso o brasileiro dá sempre um jeitinho. O que é o jeitinho? É a possibilidade de transar com Outro, lado, com a maneira de atuar do Outro, de inventar um
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modo de aturar o Outro. Quando digo que Freud inventou a psicanálise, que já existia, quero dizer que ele destacou o seu discurso. A psicanálise não foi criada por Freud, ela foi inventada por Freud. Ela foi criada pelo inconsciente, já estava aí. Freud criou a invenção chamada psicanálise. O que estou dizendo, comparativamente, é que o português criou a invenção chamada heterofagia. Há uma congruência, destacada por esse mesmo autor que venho citando, entre Portugal, os Países Baixos e os países nórdicos, em termos de filosofia. Consta que houve emigrações em conseqüência de algumas guerras, e muita gente foi para a Bélgica, para a Holanda. É o caso, por exemplo, de Espinosa, com o seu barroquismo holandês. Espinosa é galego, português. A família dele era portuguesa, e não adianta escrever em holandês porque está na cara que ele é português. *
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Quero ir por essa tentativa de distinguir uma terceira via, que nos foi aberta por Lacan, nesse campo de abordagem estilística, e ver a nossa história heterofágica pela via de Oswald. Felizmente, na minha infância, os livros que eu lia escondido eram livros dos chamados “clássicos portugueses”, onde podemos situar Camões, por exemplo. Então isso me passa bem na cabeça... O Oriente, também, é demais importante, na medida em que o português é tão heterossexual que vivia paquerando as Índias, em todos os sentidos... O português vivia procurando o caminho para chegar às Índias. E chegou mais às índias diversas... O barroco brasileiro é uma coisa estranha. Esse autor espanhol quer destacar algo que me deixa impressionado, e que merece estudo, quando fala justamente sobre isso que chamamos de estilo colonial, que suponho inventado por Portugal. Mas ele vem dizer justamente da dificuldade de situar esse estilo, na medida em que é de impostação da estilística barroca e tem aparência de construto clássico. Aí me pergunto se esse estilo, colonial, não é lugar propício à proliferação da heterofagia, já que há nele certa relação entre mestre e
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escravo. Se o escravo é o Outro, há relação entre a referência ao furo e a dominação do significante, na impostação do processo de colonização. É o que foi destacado por Gilberto Freyre como a grande maleabilidade portuguesa: a possibilidade de transar, a possibilitação de esses dois lugares se sustentarem em transação. O português não foi aquele colonizador que dizia “o mestre sou eu, e ponto”, como fizeram o espanhol, o inglês, o francês. O português dizia “o mestre sou eu, logo, me desbundo com as investidas do escravo”. É a política do dleseijo. Assim como ele fez com o Oriente, o fez aqui. Quando Portugal sai procurando o caminho das Índias, começa a ficar reorientado, orientalizado. É essa transa, essa textura, a questão principal do que eu pretendia colocar aqui: o lugar do terceiro.
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O ORA QUE EMPROGRESSE Antes de retornar propriamente ao nosso tema, quero apresentar, à guisa de ante-fala, como quem diz ante-sala, duas pequenas coisas: Em primeiro lugar, a carta que enviei à École de la Cause Freudienne de Paris, com data de 9 de outubro passado, um mês após o falecimento de Lacan: M. Le Directeur de l’École de la Cause Freudienne Cher Monsieur Après la disparition de la Cause Freudienne, où j’ai été reçu comme membre par M. Le Docteur Jacques Lacan, je me suis inscrit comme membre dc l’École de la Cause Freudienne – c’est que c’était là qui enseignait mon maître –, et j’avais l’intention d’y rester pour les temps de sa presence personnelle. C’est donc ma démission que je vous présente. Ça va sans dire que ladite démission ne porte pas sur le respect, l’amitié même que je puisse attribuer à tant de ses membres. Avec mes sentiments les meilleurs, Votre, mdmagno
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Ou seja, traduzindo: “Caro Senhor” – não sei quem é o Senhor, porque não sei quem está na direção da École. “Após o desaparecimento da Causa Freudiana,” – ela não foi dissolvida, ela sumiu –, “onde fui recebido como membro pelo Sr. Doutor Jacques Lacan, eu me inscrevi como membro da Escola da Causa Freudiana – é que era lá que ensinava meu mestre –, e tinha a intenção de lá restar pelo tempo de sua presença pessoal. É, portanto, minha demissão que lhe apresento. É evidente que tal demissão nada tem a ver quanto ao respeito, à amizade mesma que eu possa atribuir a muitos dos seus membros. Com meus melhores sentimentos...”. A segunda coisa é que ontem, embora fosse terça-feira, Clare Isabella Paine e eu, junto com mais algumas pessoas, também ditas psicanalistas, participamos de um Sábado forte, que é o nome de um programa que a TVE faz, e que seria levado ao vídeo no sábado. Dessa oportunidade cheguei a fazer mesmo questão, pois é um tipo de experiência que gostaria de mensurar. Não a experiência de sentar lá diante das câmeras com as pessoas, porque isso a gente já conhece, mas de sentir, após a manipulação que certamente esses acontecimentos sofrem por parte da direção do meio, a televisão, que eventualidades podem se dar mais ou menos eficazes no destacamento de alguma diferença. Gostaria de ver isso funcionando. Não é, na verdade, um lugar onde se vá. Não pensem que é o tipo de ato, de ação, que interessa, pois não interessa muito para nós. Não se deve fazer isso. Minha intenção era justamente tentar medir certos efeitos. Quero ver como funciona... Curiosidade. Minhas relações com a imprensa sempre são meio ruins. Embora imprimir livros também seja imprensa, chamam mais de imprensa essa coisa que é da ordem do jornalístico... Para mim, “imprensa marrom” é pleonasmo, pois não existe imprensa de outra cor. Até acho que os jornais deviam ser impressos em sépia, para isso ficar evidente. Marrom, castanho, em suma, as cores da merda, como diz Lacan, que são as que nós temos. A televisão cobre, tenta se aproximar da pintura, tenta soltar cores do nosso corpo, que não sejam as únicas que a gente costuma soltar... Não sei como se poderia reduzir isto, mas me parece constante na chamada imprensa, essa atividade anal.
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Já dissemos aqui que nós queremos ser oral-listas, e não anal-listas. Anal-lítica, essa escrita de pedra, é da ordem da prisão de ventre. Se aproximarmos isto da mentalidade medieval, ficamos no mesmo escopo de proporcionalidade que se poderia encontrar entre o discurso psicanalítico e a alquimia. Se observarmos bem, a psicanálise transa com o mesmo objeto da alquimia, mas não é o discurso da alquimia, pois este trata a pedra filosofal dentro de um escopo anal, merdoso, de laboratório, de manipular massas tipicamente fecálicas, para ver se o acha... Não pode achar mais do que um fecaloma. A gente não faz só o que deve, faz também um monte de besteiras. E isso participa da ordem do escrito em geral. Lembro-me que num texto meu, bastante velho, publicado em 74, que é supostamente literário, em algum lugar escrevi que “todo papel tem vocação para higiênico”. Anos depois, num dos Seminários que assisti, de 1978, Lacan dizia, mais ou menos, pois não tenho de memória, que “l’écrit participe du papier avec lequel on en torche le cul”, que o escrito participa do papel com o qual a gente limpa a bunda. É esse tipo de gretamento da superfície limpa, pelo nosso dejeto. Agora, o modo de operação, na medida em que a gente limpa mesmo o rabo e deixa aparecer a dejeção, é lidar com o modo de surgimento de risco que o objeto a traça por aí. Quando digo que toda imprensa para mim é marrom – o “marronzismo”, como diz o coronel de Sucupira –, é na medida em que quero supor que é da ordem do impraticável – não sei se é bem impossível –, dadas as conjunturas, que houvesse uma imprensa limpa. Ou seja, que pudesse expor toda dejeção do discurso. Tem a pressão de custos, de público, de interesses, etc., e, sobretudo, no momento em que vivemos... Não é brasileiro, é mundial, momento no sentido de inserção cultural, da intencionalidade da imprensa. No fundo, o melhor dos jornalismos é um O Dia sofisticado. A intenção é o chocante. Acontece com o discurso do jornalismo a mesma coisa que acontece com o discurso da pedagogia, que diz que está lá para “desenvolver plenamente as potencialidades do educando”. É mentira. Está lá para entupir o cara, e demarcar um lugar para ele. O jornalismo diz que está lá para informar o público. É mentira. Está lá para destacar essas coisas chocantes e faturar em
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cima da besteira. Então, não se pense que não se sabe desse risco... Estou apenas alertando que não se deve fazer isso que a gente fez, mas insisti em fazê-lo porque é um certo tipo de experiência, de risco que quis correr. Por exemplo, o próprio Lacan, depois de certa insistência da televisão francesa em entrevistá-lo, só aceitou na medida em que se pusesse tudo o que ele disse, sem interferência, e que o entrevistador fosse fulano de tal. Isto é possível, de vez em quando, num certo lugarzinho, de certa cultura... Mas a televisão francesa não é assim. Ela é igualzinha à nossa, só que com menos refinamento. Meu interesse, portanto, ao ir lá na televisão, é somente saber se pinta, apesar de tudo, alguma diferença. Quero saber se o fato de estarmos falando de outra postura, mesmo com os estilhaços, recortes, etc., consegue fazer pintar alguma diferença. Vou medir isso por alguns efeitos de público, que eu possa pegar de orelha, mas, sobretudo, quero ver a minha própria visão. Se acaso sinto que está diferente. Não tenho certeza, preciso ver... *
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Nosso título de hoje está escrito na intencionalidade de um voto: o ora que emprogresse. Ora, sem h, pode ser uma conjunção adversativa, significando: mas, note-se que; pode ser um advérbio, significando agora, atualmente, presentemente – o que ora digo; pode ser uma interjeição, significando impaciência, zombaria, menosprezo – ora! Tudo isso segundo o Aurélio. Pode significar também dúvida: ora isso, ora aquilo, umas vezes isso, outras aquilo; ora pois, outra expressão que significa: assim sendo, ou, à vista disto; por ora, por enquanto, sobretudo. Em todos esses momentos, sobretudo no que o Aurélio destaca como dúvida, o ora é equívoco ou leva mesmo a certa perplexidade. É importante destacar o sentido equívoco desta palavra. E também não esquecer que pode ser tempo e modo de pessoa do verbo orar, aquele com que o psicanalista tem a ver. O verbo orar, em torno da pulsão, que organiza os movimentos na psicanálise, a oralidade e a fala.
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Adiante, boto o termo “que emprogresse”. Não está dicionarizado. Aurélio não botou, mas é português, é brasileiro. Ele diz o progressivo, o progresso, o improgressivo, o contrário de progressivo, etc., mas o emprogresso, o emprogressar, não está no dicionário. Mas é válido na medida em que esse “em” tem, na língua brasileira, duas origens, uma latina e outra grega. Na latina vem de um certo in, prefixo, que significa movimento para dentro, como aparece na palavra embarcar, engarrafar, ingerir, irromper, emprenhar, encher, etc. Tem também o sentido prefixativo de transformar, guarnecer, prover, como no caso de encher, embelezar, enrodilhar, enriquecer. Pode ser um prefixo expletivo – aquele que tem a função do ne francês, que é de grande equivocidade –, enfitar, embonecar, enfincar. Pode vir, também, do en grego, como prefixo. Significa posição interior, dentro, elíptico, embrião, assim como pode vir do latim ex, significando movimento para fora, separação, transformação, intensidade, como emigrar, espernear... É uma grande equivocidade, por isso que falo: o ora que emprogresse. Lacan veio mostrar justamente que a própria psicanálise é um ora que emprogressa, em todos os sentidos dessas fixações... É um ora equivocativo, que emprogressa no seu movimento. No sentido em que Lacan diz que ninguém sabe o que é a psicanálise, pois ela é a pergunta “o que é a psicanálise?”. A via da psicanálise é esse ora, sobretudo, enquanto oração. O oralismo da psicanálise, que diz, ora... Estou me referindo ao movimento mesmo do nosso trabalho aqui. Se prestarem atenção no que venho dizendo durante este segundo trimestre, verão que estou tentando, cada vez mais, aproximar o objeto, fazendo correções, modificações... E hoje vão pintar modificações. Isto é que faz diferença entre Seminário e curso, aqui na nossa terminologia. Curso é quando se estudou determinado assunto e se vai explicar para alguém. Seminário é lugar onde estou pensando, tentando pensar, enquanto vai-se produzindo o Seminário. O ora que emprogresse é aquilo que Joyce demonstrou ser esse tipo de atividade: work in progress – foi a maneira como consegui traduzir. Lacan se referiu algumas vezes a isto. É um trabalho que está se fazendo,
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inclusive com respostas às perguntas, etc. É da mesma estrutura do jazz, e do pensamento de Joyce... Vai surgindo do relance do próprio despejo significante, no relanceamento do desejo, no público... Foi o que Lacan fez, work in progress, o tempo todo, o ora que emprogresse. Donde esta tentativa minha de tradução... Não é o mesmo dístico que lemos na sagrada bandeira brasileira, Ordem e Progresso. Mas deveria ser o ora que emprogresse... Pois, aonde vamos chegar, também, é que o Brasil talvez apresente como uma característica dos elementos significantes da sua sintomática ser um país em obras. Um país em obra, melhor dizendo, um work in progress, um ora-queemprogresse. O lema, então, é esse, mas eles pegaram, naquele momento da República, o lema comtiano. Erraram a coisa, não tem nada a ver. Escutaram o Augusto, não conheciam o Lacan, o Joyce... Foi o que tinham disponível no momento. Só que fizeram uma leitura pior, porque mesmo em Augusto Comte... Vocês sabem que ele foi o primeiro maluco que se chamou de Napoleão. Quando pirou, ele botou a mão no peito e disse: “Eu sou Napoleão”. E esse negócio pegou... Esse positivismo desvairado luta nos jornais brasileiros, hoje, pela via de determinado civismo escritor, para se reinstalar desesperadamente no Brasil, porque é muito aproximado das potencialidades da tomada do poder. A idéia de positivismo é a idéia de açambarcar e de agarrar, como se o conceito fosse no sentido do Zenão: a apreensão mesma da coisa, agarrar o objeto, o saber, e conhecer definitivamente. O positivismo está aí brigando pelo retorno àquele lema do Augusto... Só que acho que o Augusto era até mais inteligente. Quando o lemos um pouco verificamos que está falando justamente daquilo que ele não sabia nomear no momento: metáfora e metonímia. Não era bem um estúpido. Podia ser maluco, mas estúpido não era. Isto na medida em que consigo entender que ordem e progresso é justamente a postura de mostrar que o movimento das estruturas sociais – ele foi o homem que fundou a tal da sociologia –, a estrutra dos movimentos sociais, dos movimentos sociológicos, é um processo de ordem, quer dizer,
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de coagulação de uma ordem e, depois, de um progresso: desmembramento de uma ordem e a constituição de outra. Mas os positivistas ficaram só com o lema e esqueceram de ler o próprio Augusto. E pensam que é progresso em cima da ordem antiga – ele não disse bem essa bobagem... Ontem, aliás, na tal entrevista da televisão, tive, de repente, que ficar meio bravo porque um rapaz, se dizendo psicanalista, só falava sociologia pura. Tive que dizer que se a psicanálise é isso, não serve para nada, acho bom os psicanalistas abandonarem o campo. Se já há sociologia, precisa-se de psicanálise para quê? Não há motivo para ninguém ser analista. Se é isso a psicanálise, então, acabemos com isso, pois é um absurdo – e sejamos sociólogos. Ou ela tem uma diferença, ou ela não tem. Nesse sentido do ora-que-emprogresse, não é bem nem a ordem e progresso do Augusto, nem a leitura, pior ainda, que se fez. É essa sintomática que Oswald, em contraposição ao movimento dos positivistas, vem mostrar como furo no discurso. Isso vai ser importante para nós, exatamente porque talvez possamos fazer uma diferença entre ordem e progresso aí, e entre o ora-que-emprogresse naquelas duas posturas. Essa postura positivista promete posições, cargos, dominações, do nível do poder instituído. Aliás, os renovadores dessa postura estão buscando desesperadamente discurso tipo Popper, etc., para garantir uma lógica coerente, fechada, que considero da ordem da burrice mesmo... Mas o pobre do burro não tem nada com isso. O burro é um animal muito interessante... Simboliza, até, para Lacan, o analista. Ele diz que o analista é um burro, isto é, enquanto, totemicamente, o pai do analista fosse um burro, aquele ser que é simplório, carrega as cargas, etc. Tem outra conotação, diz ele, l’âne-àliste: o burro listado, alistado, que está dentro da lista – a lista dos significantes, dos nomes. O burro está lá na capa da última revista que tem a ver com Lacan, L’Âne. No Brasil, chama-se jegue. Em brasileiro, o analista é um jegue. Agora, é um jegue que está armado de um discurso virulento, percuciente, tem ferramentas, armas para não ser simplesmente a metáfora do estúpido. Não é
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igual a outra via, aonde vamos encontrar, por exemplo, um jegue inerme, que pode, por essa via do discurso positivista, tomar o poder, daqui a pouco tem um jegue inerme no mercado e ó... O jegue inerme quer pior... *
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Bom, então, estabelecidas essas diferenças, vamos à nossa política e ao ora-que-emprogresse, se conseguirmos. Dia 12 passado, acumulando cargos com o dia da criança, o calendário fundou um novo feriado depois que Sua Santidade esteve entre nós. O dia foi santificado como o dia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Como coincide com o dia da criança, restaura a força da reprodutividade do sexo, então a Conceição entra aí com muita precisão – isto no nível do espraiamento do sintoma. Aparecida, que coisa estranha, esquisita, apareceu... Porque as coisas aparecem, são fantasmáticas... Aparecida ainda por cima, se não A Parida – é muito pregnante. Mas é interessante porque é uma espécie de peixe insolúvel – ao contrário de Breton, que, de repente, é pego numa lenda –, pois parece que uns barqueiros pescadores, no que puxaram a rede com os peixes, veio aquela estatuazinha no meio: ela apareceu, aparição escurinha. De repente, então, numa pesca, o objeto a se configurou, se localizou ali para eles como essa padroeira, este é o nome. Não é madroeira. Quer dizer, seria justamente o objeto da perversão, da père-version, brasileira. Em brasileiro, o Nome do Pai é a Padroeira do Brasil: Maria Aparecida, parecida com o objeto a, a escurinha aparecida, tipo mulata... Gosto muito dessa figurinha, porque coincide com a sintomática nossa. Quando a gente tem uma mulata, não se sabe bem qual foi a transa. Não sabe, por exemplo, se o pai é preto ou branco, se a mãe é preta ou branca, se tem alguma gota de índio... Estou querendo destacar como se coalesce, até na distinção de um objeto que vai significar a paternalidade, o objeto de père-version, que se configurou nessa Senhora a-parecida. Ou a parricida... É a questão do Nosso Pai, entre o preto e o branco: ora um, ora outro, talvez, ora, ora. E a equivocidade mesmo do pai brasileiro – ora pois.
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O Nome do Pai é sempre equívoco, como é essa equivocidade do preto e do branco no nosso caso. Equívoco sobretudo no que o Nome do Pai indica o feminino, como já vimos. Por exemplo, na minha fala sobre a tal Améfrica Ladina, eu me perguntava a respeito da relação do português com o negro, do surgimento desse Pai Preto, Macunaíma, etc. Hoje gostaria de acrescentar alguma coisa, talvez equivocar um pouco mais. Naquele momento eu dizia que talvez a sintomática cultural brasileira fosse a do amefricano. Será que é vergonha? E se o pai é crioulo? Mas, na verdade, é equívoco esse pai. É equivoco na medida em que o português – lembrando, por exemplo, do testemunho de Gilberto Freyre – talvez seja, na nossa perspectiva, o inventor da Heterofagia. A Antropofagia de Oswald vem também do português. Oswald situou a antropofagia no índio, citado por Montaigne nos processos rituais, canibalísticos, de comer a carne do outro, na suposição de introjetar os elementos sígnicos, simbólicos desse outro. Isso aí funciona como mito da antropofagia: comer o totem, na transformação de tabu em totem, na prática índia. Entretanto, nessa antropofagia mítica, ritual, sexual inclusive, Gilberto Freyre chama atenção para o fato de que as índias aceitavam muito bem os portugueses... porque eles tinham pau grande. Quando elas viram aqueles homens com aqueles perus enormes, ficaram desbundadas, porque os índios eram mal dotados. Elas receberam um presente... carnal. Por outro lado, é o português que pratica, há muito, na Europa mesmo, antes até da descoberta do Brasil, a heterofagia de que estou falando. Fernando Pessoa nos mostrou com clareza que o português tem a nostalgia do longe, que poderia se chamar a nostalgia do Outro, assim como tem, também, uma situação limiar tanto do ponto de vista geográfico quanto cultural, aquela coisa de ficar assim nas brebas da Europa, na vizinhança da África, de olho grande na Ásia, paquerando as índias, olhando para o outro lado do oceano, fingindo que não estava vendo, que foi por acaso... Tem essa nostalgia do Outro e a tentativa de integrá-lo não só como mero objeto fagocitado ou devorado totemicamente.
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Gilberto Freyre reclama isto para o português, mostrando que ele talvez tenha sido o melhor colonizador que existiu. Tenho a impressão de que ele tem razão, na medida em que o princípio que geria a colonização portuguesa diferia do princípio de outras colonizações como a espanhola, a inglesa, a francesa. Na medida em que, em termos meus, o português era heterófago: ele paquerava o longe, mas se abria para que essa lateralidade pudesse entrar na dele, e ele entrar na dela. Ou seja, havia a transação do português. Gilberto Freyre nos demonstra que o português é um povo dividido entre Europa e África, nem intransigente de uma, nem intransigente de outra, mas nas duas. Ele fala da indecisão étnica do português, uma espécie de bicontinentalidade – note-se o paradigma que ele traz – que corresponde, em população assim vaga e incerta, à bissexualidade do indivíduo. Ele está falando de Freud. Embora pouco entendendo o que fosse a sexualidade em Freud, ele nos mostra essa equivocidade do português: geográfica, cultural, etc. “Místicos e poéticos” são os portugueses, segundo Aubrey Bell, certo inglês citado no Casa Grande & Senzala, onde Gilberto Freyre mostra, p. 17, a diferença para com outros colonizadores. O português, “por todas aquelas felizes predisposições de raça, de mesologia e de cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor. Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro, ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação – contra o que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos –, foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos. Vantagem para a sua melhor adaptação, senão biológica, social”. Os portugueses, diz ele mais adiante, p. 18, que “pela hibridização, realizariam no Brasil obra verdadeira de colonização, vencendo a adversidade do clima”.
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Isto parece com a diferença que Oswald faz entre a postura norteamericana de civilização de status messiânico, e a postura brasileira, de status utópico. “O colonizador português do Brasil foi o primeiro, dentre os colonizadores modernos, a deslocar a base da civilização tropical da pura extração da riqueza mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar e o marfim – para a de criação local de riqueza. Ainda que riqueza – a criada por eles sob a pressão de circunstâncias americanas – à custa do trabalho escravo: tocada, portanto, daquela perversão de instinto econômico que cedo desviou o português da atividade de produzir valores para a de explorá-los, transportá-los ou adquirilos”, p. 23. Ele está mostrando como se foi pervertido pela ideologia, mas que a tendência sintomática era a de entrar no barato, e não a de se ficar apenas assentado na situação. Talvez tenha sido esta a grande condição de invenção da sintomática brasileira, via sintomática portuguesa. Por outro lado, se o índio apresenta, ou apresentava essa antropofagia ritual, canibalística, do ponto de vista da heterofagia – de comer da ordem simbólica do Outro diretamente, e não por essa via pseudo-deglutiva que fica apenas como metáfora, como metáfora dolorosa, mastigada, carne –, o índio foi difícil de comer simbolicamente. O português comeu do índio – taí na nossa comida, na nossa língua –, mas o índio não quis comer. Isto é interessante, porque há, hoje em dia, essa coisa de ficar admirando índio quando, na verdade, ele é bastante caturra do ponto de vista simbólico. É pouco heterofágico na medida em que se prende na dele e diz: “Daqui não saio!”. Tanto é que Gilberto Freyre chama atenção para que o português não conseguiu transar com índio não porque não quisesse, mas porque o índio se recusava. O português inventou – querendo ou não, isto pouco importa – um mediador: o negro. A intervenção do negro conseguiu mediar a relação do português com o índio, porque o negro é, mesmo nas relações com o Senhor imposto, mais transador. Ele era mais aproximado daquela transação do português. O índio parece que não, ele vem de estruturas muito fechadas. E aqui chamo atenção para o que venho colocando desde o primeiro semestre, essa vocação cultural, essa manutenção do status quo da ordem de parentesco
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que o português não manteve: ele tinha a ordem do parentesco aqui, etc., mas não a ordem das reproduções... foi se esculhambando, mesmo. O princípio básico de toda heteronomia é primum vivere, princípio que, como sabemos, Lacan recoloca em toda “relação” analítica. Mas o índio, não. Ele é aquele que quebra, mas não curva – o que é a estrutura mesma da estupidez. O português é mais maleável, o negro também... De qualquer modo, pela maleabilidade dos outros e pela referência antropofágica, mítica e canibalesca, eles acabaram entrando na nossa. Ou seja, não se precisa mais fazer reserva negra no Brasil, mas, reserva de índio, ainda se precisa. Nossas estupidezes culturais estão bem representadas nesses pequenos aglomerados fechados, na suposição de que tudo parte da interdição do incesto como estruturação da ordem de parentesco e fundação do homem. O índio está muito nessa: “Primum vivere, não! Morro mas não dou!”. Na verdade, há que relaxar e aproveitar. Transar o simbólico é isso, que é o que faz correntemente o brasileiro... O tal do jeitinho, da esculhambação... Parece pusilanimidade, mas não é, porque, com certo prazo, mais ou menos longo, vemos que a infiltração se dá pelo outro lado, e tudo se desfaz. A morfologia perde a característica... E se a gente não contar com essa sintomática do brasileiro, a gente se desespera. Com os índios a coisa se dá de maneira rígida. Aliás, uma pesquisa que eu gostaria de pedir para o pessoal que faz antropologia, história, sociologia, essas coisas, que por acaso queira abordar isso, é verificar algo de que suspeito: quanto mais forte e mais careta foi a tribo de índio que tomava conta de uma certa região do Brasil, mais o local se transformou numa pregnância de estupidez, mesmo com a presença do português e do negro. Vejo isto pelos índios Goitacazes que dominavam toda a bacia do Paraíba e, sobretudo, o norte do Estado do Rio, e que eram chamados de terríveis, ferozes, que não se dobravam nunca... Eles foram dizimados, foi o único jeito de lidar com eles – eles não transavam. É a Baixada Fluminense, lá para cima, sobretudo, onde dá petróleo, etc., é um antro de estupidez, mesmo no sentido econômico, do ponto de vista de falta de condições de transar. Eu
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me pergunto, também, sobre a mineiridade, e deixo para os mineiros me explicarem se isso acontece por lá. Não será um sintoma da mesma ordem de não arcar com o primum vivere, dos Goitacazes, que conheço bem, que aparece lá nas Minas Gerais? O português fundador de São Paulo, do Rio de Janeiro, era o mesmo, mas o que aconteceu ali? O negro deu um jeito. Mesmo como escravo ele se apoderou do significante, deu uma transada e acabou intervindo e rearranjando posições. *
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Nessa relação do português e do negro, talvez pudéssemos ver a essencialidade dessa Heterofagia, isto é, o símbolo, a possibilidade da transa. Isso tudo interessa na distinção desses sintomas na medida em que o português tem muito a ver com o destacamento dessa formulação que é o barroco, enquanto situado na história da arte com determinado tipo de composição estilística. Como disse da vez anterior, isso é português. Chamei até o testemunho de pelo menos um historiador e crítico, Eugenio Dors, para mostrar isto. Retomando, então a “oposição” clássico/barroco, lembro o que estávamos tentando pensar em função das fórmulas quânticas da sexuação. Isto porque certos historiadores e críticos, mesmo sem essa definição freudiana e lacaniana, é pela via do masculino e feminino que ressaltam a questão. Ponho, então, de novo, as fórmulas quânticas, acrescentando o princípio do prazer, PP, o princípio de realidade, PR, fazendo as equiparações que já fiz anteriormente em outros trabalhos, sobretudo no que diz respeito à obra de arte. Coloco no lugar do racha, da brecha, da diferença, o espelho como topologia, relação especular. Vou tentar juntar isso numa formulação mais ou menos compacta. Do lado do homem (H) o desejo, o gozo-fálico. Do lado da mulher (H’) o amor, o gozo-do-Outro. Não que seja proibido à mulher transar com o desejo, e vice-versa. Travessias são possíveis.
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Heinrich Wölfflin, historiador da arte dos mais destacados, é autor de um tratado bem conhecido a respeito da distinção entre renascimento e barroco, Renaissance und Barock, onde ele tenta destacar a noção de barroco pela idéia de pitoresco. Ele diz que a arquitetura clássica – e mesmo a pintura, etc. – se situa no sentido arquitetônico propriamente dito. Isto significa que a coisa é canônica, se destaca como objeto isolado, com centro em si mesmo. As linhas de demarcação, de peso, de equilíbrio, etc., estão assentadas sobre a própria estrutura da arquitetura, da pintura, da escultura, etc., e que esse objeto é olhado enquanto tal. Ao passo que o objeto barroco teria seu centro fora de si mesmo. A tensionalidade dos movimentos e dos pesos de suas conformações, levaria à idéia de uma movimentação incontida, de uma tendência a saltar fora, a subir para o céu, a movimento nesse sentido. E isso é pitoresco. Ele não consegue um conceito melhor, e diz que é pitoresco. O que é pitoresco? É como, por exemplo, Ouro Preto: quando se olha para suas construções, ao invés de se ficar na arquitetura, tem-se vontade de
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pintar um quadro com a igrejinha dentro. Aquela arquitetura, ao invés de acabar em si mesma, projeta outro movimento. É como se ela assumisse corpo humano, ou animal, um troço movimentado, de tal maneira que se insere na paisagem e vamos ver tudo junto. Vamos querer ver o quadro daquilo e não a arquitetura. Isto é o que Wölfflin traz como um dos conceitos de diferenciação de barroco. “O Renascimento é a arte da beleza pacífica” – diz ele, p. 81, em edição francesa –, “ele nos oferece essa beleza libertadora que sentimos como um bem-estar geral e um crescimento regular da nossa força vital”. É o tal negócio assentado, equilibrado, centrado em si mesmo. “Em suas criações perfeitas não se encontra nenhum peso, nenhum mal-estar, nenhuma inquietude, nenhuma agitação. O barroco se propõe a operar de outro modo. Ele apela à potência da emoção para empolgar e subjugar diretamente. Ele não traz a animação regular, mas a comoção, o êxtase, o embriagamento.”. Ele está tentando distinguir justamente duas posições: masculino/feminino. A postura de movimento, de aceleração, de direcionamento para algum lugar que o barroco tem, e que o clássico não teria, se houvesse essa estabilização sobre si mesmo, sobre o seu centro. Podemos perguntar, por exemplo: na história do renascimento, quando abordamos o barroco por via italiana, não se esquecendo do português – isso que a história da arte conta como historinha caseira –, onde todos situam o nascimento do barroco? Na mão de um renascentista chamado Michelangelo. Renascentista, ele, quando, onde, como? Ninguém definiu melhor o barroco do que Michelangelo nessa emergência do barroquismo que fez. Botticelli, outro que não era estúpido – era poeta –, a história da arte diz que é renascentista. Engulo se eu quiser, se puder... O Nascimento de Vênus é um quadro esquisito, sobretudo pela figura central. Ela é abarrocada. O quadro não causou espanto na época. Foi absolutamente aceito – o rapaz tapeava direitinho. O quadro, aliás, foi feito por encomenda. Michelangelo também fez sob encomenda, e os cardeais queriam sua cabeça. Não fosse ele “sobrinhozinho” de Júlio II, estava frito. Insisto em que Lacan promoveu uma leitura precisa de Freud bastante ajudado por sua convivência com a obra de arte, as articulações do poeta e,
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mesmo, com a observação curiosa que tinha do movimento da história da arte. Não esquecer de seu convívio com o grupo surrealista. Não que ele fosse um, no sentido do termo, mas procurava o significante no lugar onde ele emergia como Outro – Vers un Signifíant Nouveau, título de um dos seus últimos Seminários. Retornando a Wölfflin, vejamos como ele define com clareza o imaginário. “Supomos por toda parte uma existência corporal, conforme a nossa” – diz ele, p. 170. “Damos um sentido ao conjunto todo do mundo exterior a partir de esquemas expressivos que aprendemos em nosso corpo. Reportamos sobre qualquer outro corpo a experiência que fizemos com nosso próprio corpo, quando ele exprime uma vigorosa gravidade, um rigoroso controle de si, ou, ao contrário, um apoio, uma atonia de peso” – deve ser pressão do imaginário. “É que a arquitetura não teria nada a ver com essa animação inconsciente da matéria.” Engraçadíssimo, pois não é que o cara por alguma via saca – via sacra – a posturação da ordem imaginária na configuração da subjetivação! É claro que ela não pode, enquanto arte das massas corporais, ter relações com o homem senão como ser corporal. Ele está configurando o imaginário da arquitetura. Adiante, ele fala do ideal-de-eu, mas, enquanto arte, a arquitetura elevará e idealizará esse sentimento vital e procurará propor o que o homem quereria ser. É preciso percorrer esses casos, pois há coisas claríssimas por aí. “O barroco tenta representar o não-representável, o abismo, o infinito.”. Ele insiste nessa infinitude e na particularidade de cada edifício barroco – ou seja, naquilo que Lacan define como o feminino –, que não tem a universalidade da canônica, clássica. Tudo encaixa perfeitamente na formulação, mas é quando observamos o classicismo do ponto de vista formal, sobretudo no que diz respeito às artes visuais, que isso fica muito mais evidente e dito. Os tratadistas da arquitetura clássica, por exemplo, Vignola, Brunelleschi, além de apresentarem a canônica, naturalmente por retorno – pois é isso que se faz no renascimento: o retorno à canônica grega –, apresentam, também, embora isso tivesse nascimento com Pitágoras, uma postura que se aproxima muito da postura psicanalítica, talvez, enquanto estrutura matemática: a referência constante a um numero de ouro, de que já falamos, sobretudo em
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meu Seminário Ad Sorores Quatuor, nos velhos tempos do Colégio. A proporcionalidade é uma razão do classicismo. O barroco é desproporcional, excêntrico, torcido, movimentado. O classicismo vive da sua proporcionalidade por falta de regência divina. Perguntaram a Deus qual era o número certo e Ele não disse. Mas foi revelado aos matemáticos que um certo número mantinha uma lei de proporcionalidade que se chamava lei áurea, e que seria encontrada na beleza absoluta, dentro do corpo humano, das construções do homem, etc., que teria sido revelada pela visão pitagórica. Onde se coloca o número de ouro? Na caretice da auto-referência, na idiotice, na masturbação macha, ou na loucura do desregramento do feminino? Lacan, para tentar a matemização da psicanálise, retorna a Pitágoras, pega o número de ouro e nos entrega como paradigma da possibilidade de escrita. O número de ouro é extremamente regrado. É pensável matematicamente como inscrição formular, ao mesmo tempo que nos indica a impossibilidade do fechamento no que infinitiza qualquer relação. Ou seja, Aquiles e a tartaruga só podem progredir numa relação áurea: o áureo desencontro. Terminei mais ou menos o Seminário da vez anterior perguntando – quando tentei falar, entre clássico e barroco, de um heterófago estilístico – quem era assim. Lacan, Picasso, disse eu, e fomos vendo aqueles que num rigor clássico apresentavam o furo ou, na visão do furo, rigorizavam os matemas. E também a psicanálise é esse objeto estranho porque participa desses dois campos. Custou muito para os historiadores e críticos da arte se darem conta de que estava faltando alguma coisa na distinção barroco/clássico, Wölfflin, Luckács e muitos outros, antigos e mais atuais, ficam perplexos de encontrar obras classificadas no classicismo que, no entanto, se movimentam no sentido de infinitude. Ou, então, obras classificadas nitidamente no barroco e, no entanto, regradas matemicamente. Havia um preconceito de historiador no meio da jogada, pois ou bem se é clássico, ou bem se é barroco. E aquilo que ficava parecendo que era no meio, eles diziam que é maneiroso, amaneirado... E pintou na história da arte um negócio chamado MANElRISMO: El Greco, Michelangelo, etc., segundo o livro que Arnold Hauser escreveu e que se tornou um clássico sobre o assunto.
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O que Hauser nos apresenta como sendo o maneirismo, que ele quer retirar do esgoto, do dejeto cultural, por parte dos historiadores, e trazer como coisa importante, na história da arte? A visão dele é por via marxista, sociológica, etc., mas, de qualquer modo, tenta destacar o que seja o maneirismo dando, mesmo, uma definição logo de entrada, p. 40: “É um menoscaso e até uma falsificação da verdade dizer simplesmente que o maneirismo é anti-clássico, omitindo acrescentar-se que é também classicista. De igual maneira, é uma meia-verdade descrevê-lo meramente como naturalista e formalista, ou irracional e extravagante. O maneirismo não contém menos traços racionalistas do que irracionalistas, nem menos naturalistas do que não-naturalistas. Um conceito utilizável de maneirismo só pode sair da tensão entre classicismo e anti-classicismo; naturalismo e formalismo; racionalismo e irracionalismo; sensualismo e espiritualismo; tradicionalismo e afã de novidade, convencionalismo e protesto contra todo conformismo. A essência do maneirismo consiste nesta tensão, nesta união de oposições aparentemente inconciliáveis”. Ele arranjou um lugar na história da arte onde vai meter uma quantidade imensa de autores que eram situados de modo mais ou menos estranho: Montaigne, Kierkegaard, Kafka, Shakespeare, Goethe, Beethoven, sem falar na grande quantidade de artistas plásticos que já citamos. Quando chega aos modernos, vai dizer exemplos típicos como o Picasso do cubismo e do surrealismo, o próprio surrealismo... É de se notar a patronagem do próprio Lacan aí, pois aqueles que poderíamos dizer que foram seus mestres são Espinosa, Kierkegaard... Ele coloca, também, por exemplo, Mallarmé, o rigor e aquela loucura mallarmaica, Calderón de La Barca, Baudelaire, Proust... Vamos ficando com a impressão de que, daqui a pouco, ele mete todo mundo aí dentro, com raras exceções... Michelangelo, todo o surrealismo – com o que não posso concordar, mas existe um afã de rigor nos surrealistas, sobretudo quando vão perguntar a Freud qual é –, Rilke, Gide, Joyce, Eliot... Ele vai falar, também, dos conceitos de alienação, de narcisismo...
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Gostaria de ficar, por hoje, nessa questão interessante de ter aparecido um sujeito que, com as ferramentas e materiais da história da arte e da crítica, vem dizer que há um tensionamento no seio do chamado maneirismo. Não vou querer concordar com isto, pura e simplesmente. Há o maneirismo, sim – a via que ele coloca é de observação formal e histórica: a questão da emergência do capitalismo moderno, etc., essas coisas da abordagem marxista –, mas, no que nos interessa, quero me perguntar sobre esse heterófago que está aí nesse meio. Como é que se transa de H para H’, do clássico para o barroco e vice-versa? Por que essa pletora de nomes? Preciso distinguir a postura clássica enquanto ordenação pura e simples da forma, enquanto enformação, aprisionamento numa fôrma; e uma postura dita barroca, também de enformação formal, de molde numa fôrma supostamente destacável por estilos e maneiras de composição. Então, em nosso gráfico, do lado H, numa espécie de fanatismo da postura, encontramos um formalismo clássico. E do lado H’, um formalismo barroco. Mas pergunto, podemos encontrar essas distinções de forma em alguma coisa que possa merecer o nome de obra de arte? Nosso amigo, como historiador, precisa defender uma posição central, mediana, que é uma necessidade sua para existir como historiador da arte. Em nosso caso, trata-se simplesmente de que, no lugar onde vigora a obra, onde surge o ato-poético, está-se necessariamente em algum discurso. Lacan veio mostrar isso como discurso psicanalítico. A obra de arte vigora na heterossexualidade, na heterofagia, no princípio heterofágico, ainda que por vias de H para H’, ou vice-versa, como já tentei mostrar em dois trabalhos, Senso Contra Censo e Rosa Rosae. O que é obra de arte? Suponho, pela minha experiência, que não é senão a inclusão topológica no seu corpo do ato-poético, ou seja, de um reviramento de sentido, que faz perder os sentidos. Como ela faz isso? Ou melhor, que vias ela tem para fazer isso?
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Duas vias, que são as que temos da diferença sexual. Ou ela vai pela via masculina de partir do rigor canônico, digamos, da auto-referência fálica, para encontrar o furo e ansiar amoriscar-se. Ou ela parte do perdido, da perdição, do feminino, da zona amorosa, para encontrar uma postura desejante. Ou seja, ou parte do desejo e se perde no amor, ou, perdida no amor, se encontra no desejo. Por isso é que cabe todo mundo, desde que seja uma obra de arte, mas não se poderia jamais pôr um acadêmico aí dentro, embora a Academia inclua barrocos, ou ditos barrocos, talvez por essa via. O acadêmico propriamente dito só tem fôrma, não consegue produzir o ato-poético enquanto tal, pois se limita ao receituário. O ato-poético, que só vigora na transação com a topologia do espelho, esbarra na diferença, na impossibilidade de estabelecer a relação. No entanto, consegue transar no cometimento, a partir do desejo de dissolver-se no amor, de deparar-se com o furo, quer dizer, limitação ao princípio do prazer. É preciso lembrar que se o inconsciente, como dizia Freud, é regido pelo princípio do prazer, não tem nada de errado nisso. Se o princípio do prazer o faz movimentarse, tudo bem! Acontece que o próprio furo do significante – que postura a própria posição do inconsciente – re-exige o princípio de realidade, ou seja, repõe a fantasia. O princípio do prazer não tem a ver com a fantasia e, sim, com o fantasma. Faço questão de diferençar fantasia de fantasma. O princípio do prazer vive do fantasma, no sentido de: aparece fantasma, pinta fantasma para ele. Lacan não escreveu nenhuma fórmula do princípio do prazer. Ele escreveu o princípio de realidade na fórmula da fantasia, S/ a – sujeito barrado punção de a minúsculo. Ou seja: o sujeito enquanto tentando abordar o real na sua relação de fantasia que se qualifica por essa punção. Está aí o impossível da alienação, o impossível de coalescer. O princípio do prazer não é esse, ele é a tentativa de arrolhar o buraco do Outro (S(A / )) com o objeto a localizado, fazer uma bola. Exatamente o que é o princípio da ciência renascentista, o universo como camadas, como esferas concêntricas, tudo arrumadinho, etc., que Kepler
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vem feminizar. Ele puxa e faz uma elipse – o troço desbunda, os planetas são meio desbundáveis, há uma diferença de oito minutos que ninguém explica. O real do planeta começa, então, a pintar. A forma da Terra é terróide, é o máximo de explicação que se pode dar – é a própria função do significante. A Terra se parece mesmo é com a Terra. E a Terra do segundo significante não consegue ser a mesma do primeiro. Está aí o campo da psicanálise. Como estava dizendo, Lacan não escreveu nenhuma fórmula do principio do prazer. Vou, então, abusar da paternidade, e tentar escrever assim: a S(A / ), a sutura de S de A barrado. É como uso. Se vocês também quiserem usar, está à disposição. A fórmula do fantasma é então: a sutura do furo. A construção da realidade significa, como diz Lacan, que a fantasia protege o real na medida em que – no que ela destaca a punção entre o sujeito e o objeto, no que ela porta esse impossível de locupletação – ela nos dá o real nesse impossível. O objeto a está no campo do objeto desejado, ou seja, está causando o movimento do sujeito. A causa do desejo é o objeto. E no que o sujeito é causado pela falta desse objeto, tudo se punciona, quer dizer, é o buraco que pinta no meio. Então, a própria construção da fantasia inconsciente é princípio de realidade e salva o real, protege-o, digamos assim. Isso é o que Freud chama de princípio de realidade. O princípio do prazer é tentar não viver da fantasia, mas dos fantasmas, quer dizer, chega ao limite da crença, na prática. Sua postura global, digamos assim, se isto é possível, no inconsciente – isso não existe, é metáfora –, seria a de tentar arrolhar. Mas o princípio do prazer não vive sozinho, ele se depara no regime da fantasia com a falta por causa do próprio objeto – tudo isso são princípios lógicos. Enquanto princípio do prazer, eu sou um sujeito que se nega, enquanto sujeito, tentando suturar o furo do Outro com um objeto fantasmatizado. No entanto, no momento mesmo em que consigo me deparar com esse objeto, pinta o principio de realidade me situando a falta. É aí que tenho que buscar no inconsciente a fantasia que me dá um pouco do real, de impossibilidade.
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Essas construções puramente formalistas, aonde não entra o atopoético, são, pois, construções que estão na suposição de poderem viver estritamente do princípio do prazer. Isto porque o princípio de realidade me promete gozo e, às vezes, me dá. Isso é fálico. O homem é estúpido, mas não tanto quanto essa machificação aí – que é bem diferente de ser homem. A machificação é um sintoma em que o homem enquanto tal não quer apenas se referenciar pela função fálica, pelo gozo-fálico, mas vem a supor que existe um falo auto-masturbatório que vive no prazer de bolinar-se a si mesmo. A fantasia se confronta com o objeto enquanto faltoso e causante do seu desejo. Não só é causa, como é tampão no fantasma, no princípio do prazer. Mas ele não é os dois, de modo algum. O objeto a enquanto tal é aquilo que esburacou o imaginário do sujeito, e só lhe dá a falta. Acontece que o sujeito re-imaginariza o objeto a sobre um objeto dado. Por exemplo, se o sujeito pega seio, configura seio anatomicamente, figuracionalmente, etc., e fica em cima desse objeto como tampão, podemos dizer que esse objeto é, na sua fundação, uma metonímia de objeto a, mas, agora, ele é um fantasma. Nada impede que na elaboração que o sujeito faz da fantasia inconsciente, se veja a fantasia virando devaneio em torno de um fantasma. Mas é preciso saber distinguir os dois. Se não, por que interessa que o analisando chegue a destacar a fantasia? Justamente porque o objeto vai deixar de ser fantasma, e ser causa de desejo. Antes de ser atravessada, a fantasia não é tocada nem como fantasia, é a chamada fantasia impossível. Quando ela pinta, se sustenta como fantasia que sustenta o real através da causa do desejo, produzindo o momento do sujeito – e é fantasia. Ninguém vai ter o objeto a enquanto furo absoluto, é a morte. Ninguém atravessa isso. O objeto está lá, posso até configurá-lo como certa fantasmagoria, mas ele se depara para mim como construção causadora de movimento desejante, em função mesmo de eu estar demarcado por um S1 que me inaugura. Eu não sou neutro, não sou uma fórmula matemática, apenas. Trata-se do a como objeto de desejo e produtor da fantasia no inconsciente. Se tenho o princípio do prazer para falar disso,
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por que vou meter o nariz para falar do princípio de realidade, e fingir que ele é do prazer? Se não puder abordar a sua fantasia, o sujeito está na análise para quê? Ele está lá, sim, para sacar que a fantasia o é: “Façamos de conta. Não vou perder o meu barato, porque é um barato, mas agora estou sabendo que não é!”. O material que está compondo a configuração de objeto a na fantasia pode ser o mesmíssimo que está compondo no fantasma, mas o modo de produção do fantasma não é o da fantasia. Pode ser o mesmo material, mas ou eu a trato como fantasia, e para isso serviria a análise, ou eu a trato como fantasma. A distinção, então, entre fantasia e fantasma está simplesmente no modo de operação. Não está na substância da coisa. Uma fantasia inconsciente está determinando fundações fantasmáticas. E na medida em que se possa chegar a aproximar essa fantasia inconsciente, saca-se o quê? Que ela estrutura o próprio real do sujeito, ela lhe empresta real, na medida em que ela falta, porque é impossível. A punção na fórmula de Lacan é para dizer que ali, na própria fantasia, justamente porque o sujeito está em exercício, o impossível comparece no interstício. *
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Isto é para mostrar que, no regime do que estou chamando heterófago, tenho as posturas de clássico e barroco, mas enquanto obra, enquanto inclusão no ato-poético, indo de H para H’ e vice-versa, quer dizer, na travessia do espelho que é na verdade inatravessável. Só se atravessa o espelho em dois deslizamentos. O sentido é de me perguntar por nossa sintomática para destacar, em suma, a fantasia do brasileiro, que suporta esse real de brasilidade.
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EN L’ENDROIT OÙ VILLEGAIGNON PRINT TERRE Francês arcaico, escrito por Montaigne no Ensaio 31, livro 1º, onde ele fala justamente dos canibais, e onde, no Manifesto Antropofágico, Oswald vai buscar a noção de antropofagia, citando mesmo esta frasezinha de Montaigne: “Durante muito tempo tive a meu lado um homem que havia morado 10 ou 12 anos nessa parte do Novo Mundo descoberto em nosso século no lugar onde Villegaignon tomou terra e a que deu o nome de França Antártica”... E escreve Oswald: “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau...”. Situando, pois, o lugar, geograficamente, topologicamente, da tal antropofagia... Print Terre, tomou, perdeu. Tomou terra e perdeu terra. Todos se recordam da história de Villegaignon. Ele tentou fundar uma França Antártica – que talvez só dê certo ao sul do Rio Grande do Sul... Por isso é que os maiores poetas uruguaios, por exemplo, são de língua francesa e não são uruguaios, ou são os únicos habitantes do Uruguai, como diz o nosso Murilo Mendes... Justamente porque aconteceu um barato qualquer por aqui, essa falta de transação autoritarista da cultura francesa obriga ao canibalismo ou à expulsão. O chamado Villegaignon era assim o protótipo do paranóico bem instalado, mas que topou com a malandragem – é o termo –, que não é nenhuma sabedoria específica mas uma capacidade de escorregar, que naquela época já estava fundada por aqui... E toda vez que Monsieur de Villegaignon rides again, a gente tem história, ainda que seja na cuca, para não aceitar tal tipo de invasão.
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Os franceses no Rio de Janeiro, é uma história velha. Depois, em 1816, veio a chamada Missão francesa – estragou um bocado mas não conseguiu fazer um Rio de Janeiro acadêmico, com o apelido de neo-clássico, é claro... Mas há um embasamento de história nossa, no sentido de acontecimento, que serve como certa garantia de funcionamento significante antecessor para não cairmos em certas algumas. *
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Como estamos falando em Polética, gostaria hoje de fazer um parêntese – sem deixar de tratar do que estamos tratando, porque se conjuga facilmente e continua mesmo a questão do barroco, do clássico, do maneirismo, a postura de Hauser – e falar mais explicitamente de certos comportamentos ditos políticos. De saída, peço desculpas a alguns dos presentes se tiver que indicar com certa dureza coisas que me parecem pedir uma abordagem, a mais clara possível, neste momento em que se tenta distinguir o Ético, que fundamenta o discurso psicanalítico, do político, enquanto essa forma moderna – no sentido de invenção de certo momento, que é exarada no discurso de Maquiavel, dessa autonomia do político – que, freqüentemente, com ares de grande transtorno dos processos, com ares de subversão de alguma ordem autoritária, sempre acaba servindo a essa ordem. Vejamos então se por acontecimentos aproximados conseguimos estabelecer algum confronto entre essa Ética e a política no sentido da tal Polética. Não estou aqui para criticar a escolha de ninguém. Longe de mim a boa intenção de aconselhar qualquer um a respeito de comportamentos – “de boas intenções o inferno está cheio”, já disse Outro. Tendo aprendido com Lacan, não vivo cheio de boas intenções. Trata-se no entanto de questionar a justificativa que alguns sujeitos encontram para sua participação política. A de que a participação política se apresenta mais urgente, senão mais importante, do que a participação nesse esforço de distinção de uma estrutura fundamentalmente ética em relação a certos temas, com a psicanálise, no caso.
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Se não se tem nada a ver com as escolhas que as pessoas façam, no entanto não se deve deixar de pensar e refletir um pouco sobre elas. Como, por exemplo, a justificativa desta tal participação – coisa que me deixa um pouco perplexo – achar-se que é mais importante, mais urgente, porque o acontecimento brota, participar dos debates políticos a respeito dos acontecimentos na IPA, ou das falações de indivíduos supostamente psicanalistas que estão metidos nesses embates, em contraposição à participação, por exemplo, no meu sarau, na minha festa que tem o péssimo nome de Seminário, da quarta-feira. Nada tenho com isso, é uma escolha, mas dá no que pensar. Por que será que esse engodo cola? O discurso psicanalítico não recusa pôr a mão na coisa nem a coisa na mão. Toca a coisa, por isso tenho que pensar em falar aqui. Não estou me referindo tanto às pessoas que estão metidas lá dentro, porque é natural – já que lá estavam, então isto tem efeitos. Mas pessoas que nada têm a ver com o peixe estavam tão afeitas a uma participação dita política em torno de fatos ocorridos numa região da IPA, chamada Sociedade do Rio de Janeiro, um tal de Fórum que decide ou não a respeito de coisas, etc., como, também, debates a respeito disso, que ocorrem na Sagrada PUC, em torno das figuras de pessoas que estavam como foco das atenções nesse movimento... A PIPA está no ar, parafraseando uma musiquinha do Dicró. Agora está mesmo. A PIPA é a IPA com um P que coloco à frente para imitar uma criança, parente de alguém daqui do Colégio, que tem mãe psicóloga, e que um dia em que a mãe se meteu muito a besta com ela, lhe disse: “Não adianta você pensar que só porque é pepsicóloga que...”. A palavra exata. O inconsciente não perdoa. Pepsicólogos são os digestivos do inconsciente, dão sempre um jeito para o indigesto não incomodar – a diluição do que possa acontecer nesse inferno chamado Desejo. A beatificação do diabo é trabalho dos pepsicólogos. Mas existe também a Pepsicanálise, a P-Psicanálise, da PIPA – é o mesmo P que está na frente –, e os efeitos de fagocitose desse tipo de instituição amante da institucionalidade e que por ser assim, recebe o amor dos institucionalizados, que declaram isso: “Eu faço tudo por amor à instituição” –
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a televisão e o jornal registraram. Por “amor à instituição” é justamente aquilo que, num texto brilhantíssimo e muito bem fundamentado, erudito mesmo, Pierre Legendre – psicanalista da falecida Escola Freudiana de Paris – demonstrou no livro O Amor do Censor, cuja leitura já recomendei tantas vezes. A tese fundamental é que, justamente, a censura, o autoritarismo, o fascismo nuclear dessas instituições vive de conseguir o amor dos que a ela estão ligados. Ama-se a institucionalidade desses órgãos e por isso não se pode deixá-los, tipo love me or leave me. O argumento daqueles cavalheiros foi preciso: Faço tudo isso, insisto em brigar pelo meu lugar na PIPA, para manter e defender o meu amor pela instituição. Aí que muitas pessoas fazem tremendas confusões com o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, por exemplo, que tem certa aparência de desordem interna, porque evita se fazer amar. A tolice – que nunca deixa de dizer alguma coisa – fica pensando que basta o sujeito ter um estatuto, ter institucionalizado o Colégio, para ele virar uma instituição talqual, etc. ... E começam a dizer asneiras. Não é pelo fato de haver uma instituição escrita e inscrita que há que bem funcionar o amor da instituição. A própria Maud Mannoni, por exemplo, inventou um termo muito interessante a respeito da sua escola de Bonneuil: institution éclatée. Não gosto muito porque não é “explodida”, é uma instituição cambeta, coxa, manca. Desde a fundação da Escola Freudiana de Paris por Lacan, onde ele tentava fazer essa instituição manca. Ele a fundou para ser um lugar onde os analistas tivessem algum esteio diante do social – lugar de encontro dos seus desencontros, onde os desencontros pudessem ocorrer. Não confundir esse lugar que sustenta uma possibilidade de agrupamento, de ajuntamento, melhor dizendo, dos desencontros, com aquilo que ele chamou (a PIPA) de outro modo: a SAMCDA, Sociedade de Auxílio Mútuo Contra o Discurso Analítico – está lá em Télévision. Uma sociedade de auxílio mútuo fazendo grupo para não vigorar o discurso analítico. Naquela jogada que tentei mostrar de juntar o clássico com o barroco, de fazer o discurso heterófago, é que Lacan nos dá essa inspiração de poder, sim, institucionalizar alguma coisa. Duvido da possibilidade de algum
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ajuntamento social em termos de Estado, por exemplo, em torno do anarquismo de se acabar com o Estado. Suponho sim a postura de exigir a melhor das constituições, a melhor das instituições, que seria aquela que pudesse dar um pouco de forma, com elasticidade topológica suficiente para que a diferença conviva, e não essa porcaria que pensam que é a democracia, o governo da maioria. É um fascismo como outro qualquer, Nem o avesso, o anarquismo puro e simples, porque é impossível para seres sintomáticos como somos viver numa falta de arqué. E se essa arqué não é euclidiana, se é elástica, nada impede que se pense – nesse maneirismo, nessa heterofagia – uma instituição que não está lá para ser amada e, sim, como ferramenta de uso. Tanto é que, no mundo político brasileiro, o de que mais se tem medo é de uma assembléia constituinte, de um lugar onde se possa discutir os fundamentos mesmos da instituição, o estatuto do Brasil. De um lado, então, as PIPAS do mundo, que sobem ao ar com a sua forma euclidiana, se erigem euclidianamente com estatutos, com institucionalidades rígidas, mas que não deixam de fazer as suas barganhas quando o poder fica ameaçado. Isso não é bem elasticidade. De outro, as alternativas de caos que propiciam, também, uma retomada dos movimentos autoritários, fascistas. Não se quer pensar a possibilidade da referência a um texto, da constante reflexão e possível remanejamento desse texto institucional, e poder conviver com uma instituição mal-amada, que é o que deve ser uma instituição. Por que toda vez que se pensa institucionalmente, se tem que trazer um amor, mais que um zelo por essa instituição? Pode-se zelar, sim, pela eficácia da ferramenta. Eu, por exemplo, não amo o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, quero que ele se dane. Mas é uma ferramenta que nos serve, e é só neste regime que ele é importante. Ele funda um lugar dentro do qual as coisas podem ser questionadas em vez de serem puramente fofocadas ou transadas em regime de poder. Se não é isto, não me interessa. Zelar pelos trabalhos da instituição não é zelar por nenhum amor. Zelo é uma palavra que tem o mesmo radical de ciúme. O termo é ambíguo. Trata-se do zelo pela ferramenta como faz um
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artesão, que não é estúpido, que não tenta entalhar a madeira com um formão estrumbicado. É simplesmente querer exprimir-se bem, expressar-se bem, falar bem, dizer bem. Outra coisa é botar as ferramentas enferrujadas na gaveta e zelar, ciumentamente, por essa fechadura. A acusação que Lacan faz à PIPA é justamente a de se ter fundado sobre determinado desejo do Pai – portanto uma perversão de Freud – e depois ter-se trancado na gaveta dos guardiães das relíquias do defunto. A exigência de rigor que Lacan sempre fez, não fez com que ele se tornasse autoritário a ponto de consolidar a Escola com um regulamento fechado, tanto é que ele mesmo a dissolveu. Certas pessoas acham que isto é autoritarismo, quando é um ato de esculhambação – no sentido que já trouxe aqui –, de castração. Isto é importante quando vemos as celeumas instauradas no campo das PIPAS do mundo e, depois, as barganhas e acomodações em função da perda de poder e de prestígio que a instituição vem sofrendo – porque há pessoas que pensam, do lado de fora, não é só lá dentro que moram eventuais leitores de Freud –, e aquelas pessoas que supostamente estavam incomodando e deveriam ser expulsas, são acolhidas e diplomadas – até saiu no Zózimo. Ora, pergunto eu, essa atitude de lutar pela permanência na instituição, por amor a ela, aceitando a traficância, e que toma foros de rebeldia e de subversão, de renovação política, não é na verdade um reforço da moral da instituição? Sempre fiquei perplexo diante da pergunta: que autoridade extrapipal têm as PIPAS do mundo para alguém ter que viver se curvando a elas? Não é discursiva. Discursivamente não se precisa trabalhar isto porque Lacan já liquidou o assunto, e outros também. Não é nem policial – nem mesmo isto eles têm – com certa instalação de poder, por exemplo dentro do nosso país, que possa obrigar ninguém a nada, nem talvez mesmo em outras partes do mundo. Que poder tem uma instituição assim para conseguir o que tem conseguido, senão esse amor zeloso, ciumento, de alienação tipo marxista (na definição marxista da alienação, não hegeliana ou lacaniana) a recolher maisvalia e faturar em cima dela, nesses acordos, quando certos sujeitos ao invés de lhe darem as costas, peidarem-lhe na venta, como faz o inconsciente (Lacan
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diz que o inconsciente peida na cara da gente) e tratarem das coisas sérias, isto é, que têm seriedade, conseqüência, até às últimas, restam nesse jogo de zelo por um amor do qual não podem abrir mão? É válido pensarmos que, em anos idos, Lacan tenha brigado com a PIPA, tenha tentado ficar, etc., e acabando por ser expulso. É válido porque é uma experiência primeira. Mas depois de tudo que aconteceu – as pessoas não devem estar desinformadas disso –, repetir o mesmíssimo sintoma? E sem a mesma glória? É espantoso. São essas pessoas com essas atitudes que estão reforçando o poder pipal – aí já sendo pipa de madeira, onde o sujeito se tranca. E isso é puro incesto. O incesto de que fala Freud – não o da antropologia que viria fundar o social, etc. – é a repetição da vontade de sutura, por não se querer aceitar a castração. Estou dizendo que isso é incesto pura e simplesmente porque se essa mãe, dona PIPA, é sustentada no seu poder exclusivamente pelo amor dos seus filhotes que não conseguem lhe dar as costas e tratar da vida com outras mulheres, estamos aí no caso do “Não posso abrir mão do amor de mamãe. Amo tanto mamãe que não vou deixá-la. Ela tem que me aceitar assim mesmo”. É a falta radical de limites. O grande pecado de Caim, no Velho Testamento, é justamente não poder aceitar, na sua estupidez, que o pai tem suas preferências – gosta mais de animais do que de frutas. Ele não consegue aceitar que o pai preferiu Abel porque ele transava carneiro. O pai não gosta de frutas, não é frugívoro, e pronto! É um limite. Não é que ele tenha escolhido Abel, ele escolheu foi carneiro. O tesão dele, quer dizer, a perversão que nos transmitiu foi esta. E aí estamos no mesmo regime. A Santa Madre se reforça com o amor ciumento dos seus filhotes que não querem abandoná-la de modo algum, para não serem castrados, para não se defrontarem com a castração. O amor de que fala Pierre Legendre no Amor do Censor é essa paixão narcísica e incestuosa, aquilo que Serge Leclaire, numa palestra aqui no Rio, chamou de Social-Incestocracia: essa paixão pela instituição. É o amor dessa língua, o amor institucional universitário que é a paixão pela língua. Esse amor
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que estou criticando é o amor-paixão, essa função narcísica de o sujeito não poder ficar sozinho, por um instante que seja. Ele não pode deixar a sua sagrada família. Isto se reflete no que eu estive criticando em nossas transações aqui. Vejo, boquiaberto, algo que já aconteceu milhares de vezes na chamada história, quando um Reich, por exemplo, se pergunta por que, de repente, um sujeito deseja a opressão de amar o Estado fascista. Não estará aí o germe da coisa? É como se, por estar abordando esses momentos lógicos, esses momentos de possível intervenção, que podem ocorrer ou não, aqui no nosso trabalho, não estivéssemos agindo no vigor do discurso psicanalítico. E, portanto, com mais virulência política do que a participação nessas tragicomédias da mãe redentora e que, no final, acolhe as crianças de sua filiação debaixo das asinhas. Isto me deixa perplexo. A falta de seriedade, no sentido lacaniano do termo: está-se desenvolvendo um pensamento e as pessoas parecem que não podem seguir de começo a fim a coisa porque um acontecimento lá parece mais político, mais urgente, mais necessário – porque é uma questão prática e isso aqui não é uma prática... Fico perplexo e temo que as pessoas estejam disponíveis a tal tipo de cantada, mesmo lidando com o discurso psicanalítico, podendo cair nessa cantada da comunicação de massa. *
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Não preciso sair do caminho que vinha trilhando para continuar a refletir sobre isto. A tendência – que, um dia, pretendo apresentar com o nome de fagocitose do imaginário – dessa vocação de açambarcamento que o imaginário tem, de impregnação, é e tem sido, através dos tempos, ou seja, através dos discursos, a de tapar o sol do significante novo com a peneira da acomodação formal. Vemos isto claramente depois da presença de Freud e de outros. No nosso campo, Freud traz a virulência do seu discurso, e aquilo é acobertado num psicologismo do ego. A PIPA se reforça, acontece tudo isso, as coisas se acomodam, e portanto podem ser espelhadas no imaginário dos sistemas.
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Não pensem que isso não está vigorando para a palavra de Lacan, porque está. Quando vemos certas vozes de força – não é porque discordo delas que vou dizer que não sejam fortes, veementes e até honestas, no sentido da honestas latina (sua relação limpa com o objeto do seu trabalho) – combatendo a psicanálise e até descendências de Lacan, elas não deixam de ter alguma razão. Isto no sentido de que o rigor que um sujeito como Lacan, no seu discurso, é capaz de impostar pode ser facilmente transcrito de discurso para discurso, saltado do discurso psicanalítico ou mesmo do discurso do mestre (do ensino de Lacan) para discursos menos interessantes, para aqueles que padecem do seu comando. A vontade de pipação do campo lacaniano existe, e tenho brigado com ela desde 1975. Todo tipo de efeitos neste pais já se fez, de Nordeste a Sul, tentativas de organização do lacanismo brasileiro e luta pela chefia, esse tipo de bobagem, no sentido, certamente, de alguém assumir a herança, ainda com o homem vivo, de ser o representante de Lacan. Já insisti certas vezes aqui que não me chamo Jacques Lacan e que não sou representante de ninguém com esse nome. Meu encontro com esse sujeito, ou seja, primeiro com seu escrito, segundo com seu divã, terceiro com seu ensino, não me põe, de modo algum, nenhum diploma de embaixador debaixo do braço. Não posso falar senão por mim – e ouve quem quer! Tais coisas existem nas rebarbas do nome de Lacan – nas franjas e dentro mesmo do lacanismo. Esforços de aglutinação e de comando são feitos, os quais não têm surtido grande efeito nem mesmo lá do outro lado do Atlântico, e resultaram necessariamente em explosões (não são cisões, cisão é coisa muito precisa entre tal e tal na discussão, são explosões dentro do mesmo discurso talvez) que mesclam de tal modo as coisas, que as compreendemos muito mal. A explosão é tanto no nível da má leitura de Lacan quanto no nível simplesmente da rejeição de tal sujeito dentro do campo. Isso fica embaralhado, e é preciso analisar para discernir. Nós outros que iniciamos essa operação que acabou resultando em Colégio Freudiano (inicialmente eu e Betty Milan) não deixamos de sofrer
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tentativas de aprisionamento. Pelas vias mesmo das relações pessoais que tenhamos tido com determinado sujeito daquele campo. E freqüentemente somos maltratados porque desobedientes. Não se trata de birra. É uma desobediência que vem de termos aprendido, com o próprio Lacan, a sustentar certa vigência do discurso psicanalítico, de não subtrocarmos nossa intenção de fazer vigorar o mais possível esse discurso contra o açambarcamento, a dominação, a imposição, mesmo a regulação de comportamentos supostamente “lacanianos”. O sucesso de Lacan não me parece da ordem da picaretagem. Pode até haver picaretagem de outrem, mas não me parece que Lacan tenha feito esforços para manter estruturas institucionais e posturas de alienação institucional que lhe garantissem comando. Havia era transferência ao seu redor, e reconhecimento, como há ainda hoje. O que não impede que algumas pessoas se confundam e forcem transmutações discursivas. Daí que a gente pode tomar algumas cacetadas quando denuncia que determinado sujeito veste as roupas que herdou, do espólio do falecido, esquecendose de que se pode ver, com evidência, que o defunto era maior: engole ele, paletó! Certa vez, referindo-se à senhorita Anna Freud, Lacan disse que não basta portar as relíquias do gênio... É o que se pode repetir hoje para quem, herdando por direito comum as relíquias de Lacan, queira impor hegemonia antes ainda de receber as devidas transferências, os devidos reconhecimentos. Cada Lacan tem a Anna Freud que merece. É assim que nossa desobediência, dada a falta de respeito para com nossa posição enquanto sujeitos habitantes de determinado lugar sintomatizado por determinada língua, e que sofreram as marcas de alteração do mestre, nos fez recusar a participação no Congresso de Caracas, com todo o respeito que tenhamos pela inteligência e valor do organizador – nada a ver uma coisa com outra. Mas não autorizo ninguém a me comandar sem que eu lhe tenha tido: “Tu és meu mestre”. De lá para cá, somos alvo de algumas investidas, de implicâncias, porque não estamos dispostos a dizer amém ao que nos parece, pela veemência de institucionalização e de comando, a fundação da PIPA Lacaniana.
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Por essas e outras é que Betty Milan se recusou a inscrever-se, mesmo com Lacan ainda vivo – não se sabe como, vivo como, não se sabe em que condições –, na dita Escola da Causa Freudiana. Eu me inscrevi sim porque Lacan lá estava, foi este o meu argumento. E me demiti, como li para vocês, quando ele, bem ou mal, já lá não estava. Depois de todo um longo trabalho de demonstração de estarmos, pelo menos com seriedade, se bem que eventualmente com erros, dentro do nosso percurso, vemos certa linha, mediante nomeadamente o referido herdeiro, se encostar em cucarachas de oportunidade, em paulistas e mesmo cariocas de acomodação. Já que a carniça pintou, sem nenhum percurso, sem nenhum antecedente, correm a nos fazer frente os urubus da boa ocasião. Só que, como brasileiro, eu digo, curta e grossamente, que estou cagando para isso. Escreva-se e grave-se. Ninguém é proprietário do discurso de Lacan. A experiência que passamos com a indicação dele não é substituível pela experiência de outrem, e muito menos sob o comando de ninguém. Somos sérios, ainda que eventualmente lucrativamente burros. Não vamos refazer a brincadeira que acabamos de criticar na PIPA, de pedir pelo amor de Deus não nos mandem embora, e lutar por isto numa instituição que não fede nem cheira. Além do mais, não estou me sentindo pior acompanhado aonde estou. E com o trabalho que tenho a fazer... veremos no que isso resulta. Como disse Lacan, “minha vantagem é saber o que esperar significa”. Esperemos então. É o risco do meu petisco. Antropofagia sim – pode ser bom comer francês – mas não dominação. Aliás, é antropofagia contra dominação. Não estou interessado em nenhum Movimento Analítico Lacaniano Universal, MALU, MALU MILHER, que me parece vir contra o que ensinou Lacan. Não estou interessado em entronizar ninguém, ainda que fosse eu, no trono de um império lacaniano. O que interessa é que efeitos se possam tirar e fazer vigorar, sim ou não. Haja o discurso psicanalítico enquanto tal, aquele que ele afinal conseguiu nos mostrar. E a postura ética de não abrir mão do seu vigor. MALU Ml-LHER tem aliás um sabor de feminismo universal, no sentido machista do termo: já calando Lacan, tão cedo.
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Por isso é que me lembrei de Monsieur de Villegaignon que vem nos relembrar que podemos – e porque podemos, devemos – enfrentar essa grossura. *
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Aí vou reencontrar minha fala da vez anterior quando coloquei a questão do antropófago, do heterófago, em lugar do maneirismo de Hauser. Hauser coloca, justamente, que o cerne do maneirismo é a alienação. É bem colocado, de certo modo, na medida em que ele apresenta o que é a alienação em Hegel e em Marx – e certamente que ele opta pela alienação em Marx – para mostrar a passagem do classicismo para um reboliço social que acontece por fundação do Estado moderno, de capitalismo moderno, da burocratização de tudo e de todos, como está explicitado no Rei Lear, de Shakespeare, do sistema capitalista organizado segundo os princípios dessa ordem monetária, a visão maquiavélica (de referência a Maquiavel) da autonomia da política racionalista ao mesmo tempo que realista. Esse reboliço causa, segundo ele, um certo mal-estar, e propicia um movimento contrário de luta por parte de quem, de dentro da institucionalização e da cadeia de aço desse arcabouço, tentava escapar. Aí há o aparecimento desse maneirismo que, ainda segundo ele, é essa coisa formalmente aferrada a uma aparência canônica ao mesmo tempo que lutando contra isto na tentativa de fazer emergir o particular. Quer dizer, o sujeito começa – levando em conta o conceito marxista de alienação – a perder sua particularidade, a se ver alienado ao sistema – uma ordem canônica tentando se impor como ordem capitalista, política, etc., e, na tentativa de escapar disso, de afirmar alguma individualidade, apareceria o tal maneirismo. A alienação definida por Hegel é aquela de que o sujeito não poderia escapar – e é daí que Lacan parte, segundo o curso de Kojève que seguiu – uma vez que o sujeito não consegue se fundar a não ser a partir do Outro e teria que destacar daí, segundo um movimento dentro da história, como Hegel
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coloca, a sua individualidade. Partindo, pois, da alienação para o destacamento da sua individualidade. Marx mostra isto como mais-alienação. A cisão do trabalhador, a subdivisão, a eliminação do trabalho especializado através das máquinas, a referência do trabalhador ao pagamento das suas horas de trabalho como neutralização produzida pelo capital, etc., seriam o fundamento dessa mais-alienação. Hauser tenta explicar por aí, simplesmente porque a ferramenta que ele tem é essa. Não é a descoberta de Marx do movimento da alienação na sua historicidade, de pintar a alienação a partir daquele momento como maisalienação do trabalhador diante da definição nova do seu trabalho, mas sim a alienação que Lacan coloca no Seminário 11 que é o fundamento mesmo do sujeito, com aparência de ele estar retornando a Hegel, mas sem nenhuma possibilidade de síntese na história. Trata-se da alienação como fratura entre a bolsa e a vida que o sujeito vai carregar como princípio da castração por toda a sua existência no jogo desse processo com o Outro, sem que por isso deixe de ter o discurso psicanalítico à sua disposição para defrontar-se com a base, não da sua individualidade – pois não interessa a individualidade –, mas a base da sua particularidade sintomática e a sua aceitação da sua posição de sujeito, sujeito ao significante, ao desejo do Outro. Estas ferramentas nos possibilitam pensar, talvez, com mais clareza a questão da alienação. Diferentemente do que pensa Hauser a respeito da arte daquele momento, podemos ver durante o período chamado renascentista, com as ferramentas do renascimento, as brincadeiras, as deformações que os artistas, por serem poetas e tentarem produzir uma obra, produzem na própria sistêmica do renascimento: anamorfose, como o caso de Holbein; outras deformações, como o caso de Velázquez, que mostrei aqui; uma contorção específica daquele que talvez foi o primeiro que apareceu, no campo onde o renascimento italiano reinava, fazendo certa arruaça na via renascentista, que se chama Michelangelo Buonarroti, tanto na arquitetura, quanto na escultura, na pintura. Trata-se aí do que tentei mostrar como o núcleo heterófago do processo. Não se trata de ter que viver, como mostra Hauser, o processo de neurotização
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por que passaram os artistas, poetas, teóricos, pensadores, porque ficavam perdidos. Quando o renascimento caiu, eles se viram sem cânones e tornaramse sujeitos suicidas, sofridos, etc., com aparência do romantismo, que vem depois e tem uma certa tônica desse lado. É possível até que eles tenham sofrido isso que Hauser pensa que é por uma descompensação, por falta de referência porque o classicismo faliu, quando, na verdade, era uma falta radical de poder situar a diferença que estamos tomando a partir de Lacan. Quer dizer, tendo perdido sua postura de impostação masculina do discurso do classicismo e caído nesse resvalo do feminino, não tiveram condições de ordenar, se não na obra pelo menos nas suas vidas, a transação entre esses dois campos de um modo a heterofagar, a produzir uma heterofagia que viesse a fazer a transação de um e de outro. Esta é a precisão que nos empresta o pensamento lacaniano. Ela não é bem maneirista nesse sentido que Hauser coloca, mas produz essa heterofagia e vem mostrar que é preciso, sim, o rigor do matema, aonde o sentido não está, mas a articulação e a sintaxe estão presentes para que se possa transar a abertura do Outro. É preciso rigor para que se possa transar essa loucura. É preciso fazer o cruzamento desses dois lados, e com discurso inteiramente novo. É o que Freud entregou como reconhecimento do Outro, ou seja, saber-se que se está na referência de uma sintomática de base, sim, que o masculino existe sim, mas que há Outro e que não é preciso nem dissolver para um lado nem coagular para o outro... Que as mulheres não existem sem o homem, pois que elas se perdem, e o homem não existe sem mulheres, pois que vira um animal. Fazendo um parêntese, quero lembrar que o maneirismo não é Kitsch. Meu conceito de Kitsch é de que ele é o jogo, o princípio, da tradução. Lembrome que quando nomeei o meu Seminário do ano passado de Acesso à Lida de Fi-menina, imediatamente alguém disse que era um Kitsch. A tradução que lida com o Outro tem essa aparência, mas não utilizo as definições que dão Abraham Moles, Gillo Dorffles, etc. Já tentei mostrar que o Kitsch é uma tradução ruim, falta de talento na tradução. O espírito do Kitsch é o espirito da tentativa de traduzir – toda tradução é de certo modo Kitsch.
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Aliás, lembro também que é necessária uma nova leitura do romantismo. Isto porque ele é um retorno disso que lemos, por exemplo, no chamado maneirismo, mas com alguns cacoetes. É preciso retomar isto, sobretudo porque os poetas românticos brasileiros – que é o que mais nos interessa de perto – têm um espantoso vigor na relação com o Outro. Não vamos de modo algum menosprezar os Navios Negreiros desta vida, pois são extremamente importantes. O romantismo brasileiro tem coisas muito sérias... *
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Lacan é um mestre. E mestre não morre. Mestre que é mestre não morre. Tem um poeta engraçadíssimo neste pais, que descobri hoje. Ele faz a seguinte gozação com o sistema: “Todo homem é mortal. Sócrates era homossexual, logo ele é imortal”. Só que homossexual que ele quis dizer é o hetero que eu aponto. Eu diria que “todo homem é mortal, Sócrates é heterossexual, logo não é mortal”. Mortais são os homossexuais. Mas Lacan é um mestre, quer dizer, fazia vigorar o discurso do mestre. A partir da sua postura sintomática fazia trabalhar o saber, o campo do Outro, na tentativa de tomar dali uma mais-valia – no sentido marxista –, que chamamos de mais-gozar. Para fazer isso, para ser o mestre que ele foi, teve que ocultar um pouco a sua cisão – por isso mesmo que ele disse que todo conhecimento é paranóico. Na medida em que fico ocultando minha cisão para tentar produzir um discurso de mestre, não deixo de estar na tangente da paranóia. Lacan, certamente, foi um analista. E digo no passado porque analista ocupa o lugar do morto, mas, uma vez morto, não pode mais ocupar esse lugar. O morto permanece como ancestral e a parceria dele é com o Outro. O morto não pinta se não há um sujeito-suposto-saber que, eventualmente, consiga fazer pintar esse lugar. Se não, a presença do analista seria absolutamente desnecessária. Há um savoir-faire qualquer, muito mal definido, que faz com que um sujeito cheio de vida – e não cheio da vida, se não não vai para lá, pois há um desejo que situa isso – faça pintar o lugar do
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morto, ou seja, possa até, eventualmente, ocupá-lo, justamente porque é sujeitosuposto-saber para um outro. Mas se esse sujeito, como presença, desaparece, não dá mais para ocupar esse lugar. Não adianta tentar fazer desaparecer o fato da morte, vai-se ficar é na saudade... Lacan foi analista. Posso garantir isto porque ele o foi para mim. O discurso do mestre nada tem a ver com o discurso do analista. Não se trata de, a partir de uma posição fundamental que lhe é particular, fazer trabalhar o outro para a produção de um mais-gozar que possa ser faturado por esse fundamental num certo ocultamento da partição da sua posição subjetiva, que é o que Marx mostrou com clareza quando pensou estar declarando que fosse o discurso do capitalista. Lacan, quando escreve o discurso do mestre, diz que isso é o que Marx chamava de mais-valia, ou seja: a partir de uma posição fundamental – no caso a propriedade dos meios de produção, etc. –, fazer trabalhar outrem como escravo para produzir uma mais-valia capitalizável pelo proprietário, escondendo aquilo que o faz, por ser partido, igualar-se ao escravo: sua partição subjetiva. Isso já é, no discurso de Marx, um congelamento da dialética do senhor e do escravo em Hegel. O que Lacan mostrou com clareza foi a impossibilidade vigendo aí. Há uma disjunção e o discurso não se fecha: o objeto a como mais-valia ou como mais-gozar, por ser impegável, não é capaz de suturar o sujeito. Então, o escravo tem por onde dialetizar o processo com o senhor. Agora, a dominação capitalista, segundo Marx, ocultaria mesmo essa fratura. A impossibilidade não está aí, ela está no discurso inteiro, que ocultaria na medida em que se apodera mesmo, realmente, dos meios, e recupera como lucro, como acrescentamento do capital – tudo traduzido em forma de verba. Há discurso do psicanalista quando alguém se coloca (porque outro o nomeia) como objeto a. Como algo irrecuperável, impegável. Ou seja, ele tem um savoir-faire para além da designação que o outro lhe faça de ocupar o lugar do suposto saber. É um savoir-faire estilístico de fazer-se impegável (o que chamei a “forma psicanalítica”) de maneira que possa fazer funcionar a fratura do sujeito, para que seja ejetada a particularidade desse sujeito. Isto é
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que é a escuta: conseguir aproximar a neutralidade absoluta do objeto a, causa do desejo, mediante um savoir-faire que finge bem isto... Como o poeta, que é um fingidor – nesse sentido rigoroso de ser um bom falante, não no de ser um canastrão –, de maneira que a cisão do sujeito seja destacada. Não há interpretação a não ser por aí. Já começa a aparecer um folclore lacaniano, deplorável, de simplesmente se ficar de brincadeira com as palavras. Pode ser interessante no nível do artístico, mas é mais freqüentemente como folclore que isso está começando a aparecer: intervenção da bobagem do analista. O que importa é, por qualquer meio, fazer-se a indicação da ruptura, da brecha do sujeito, para que ele, fracionado assim, venha a nos pintar em sua particularidade. Para isto o analista coloca o saber no lugar da verdade, o saber que o inconsciente lhe traz na fala desse Outro que é o seu analisando. Analisando não mente, ele só diz a verdade, não toda, mas a diz o tempo todo. Esta é a escuta que Freud inventou quando conseguiu destacar o discurso psicanalítico. Não que este discurso não houvesse antes, era capaz de vigorar por aí à revelia dos outros discursos. Freud o destacou, descobriu que a transferência lhe dava este poder. O meio que colou a seu tempo foi o de ficar contando aquelas anedotas para as pessoas. Mas isto não cola mais. Todo mundo já aprendeu. Aí é que há que ser poeta. É porque já se aprenderam as anedotas freudianas que elas não colam mais. Assim como já se começam a aprender os jogos de palavra de Lacan e, daqui a pouco, isso não cola mais. Quero ver quem tem talento para inventar outra. A anedota edipiana todo mundo já conhece. Virou resistência, a qual está do lado do analista, como notou Lacan. Se o analista está por um lado contando com transmitir essa anedota e curar o outro, o outro já está careca de ter deglutido essa anedota do outro lado... Este é o drama e o interesse da psicanálise. Daqui a pouco todo mundo aprende lacanês. O sujeito diz tênis e o analista diz pênis... E ficam nessa brincanagem. De vez em quando pode até funcionar... Por isso Lacan diz que se tem que reinventar a psicanálise a cada passo. O que importa é o que vai fazer trabalhar a cisão do sujeito a partir da sua fala que se põe no lugar da verdade. O resto é folclore.
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Se Lacan não estivesse na freqüentação do discurso analítico não poderia escrever as fórmulas que escreveu. Ficaria eternamente pensando na possibilidade de síntese (de Hegel), a possibilidade de um dia a história se tornar universal, pegar o objeto a e pôr no seu bolso, ou ficaria trabalhando a disjunção apenas no processo da luta de classes, que é a masturbaçãozinha marxista – briga para lá e para cá, de se tomar o poder. Só que o poder... não era bem isso que se queria. Pode ter eficácia, não digo que não tenha, mas é parciária, localizada. A luta de classe é classicista, é clássica, é classista. O barroquismo de Lacan não o permite acreditar nesse tipo de coisa. Os “jovens” da PIPA que eu comentava há pouco, estavam em processo de luta de classes. Para quê? Para acrescentar o poder da PIPA. Há diferença, nas disjunções, entre impossibilidade e impotência. No discurso da histérica, a disjunção funciona, por causa da localização das letras nos lugares, como mera impotência de seu processo discursivo. Nada há na sua formação discursiva que lhe facilite supor o impossível. Já o mestre, este, o supõe. O mestre tem esta dignidade. Sabe que está lidando com o impossível, mas não quer deixar de gozar por isso: enquanto pinta o possível, ele se vira e agarra um mais-gozarzinho. A histérica, não. Para ela, trata-se de impotência: “Com mais um jeitinho, mais uma cantada, eu consigo”. Se ela soubesse do impossível, deixaria de ser histérica, virava senhor. O que ela não suporta... é o feminino. Fica fingindo que é homem, ou seja, quer aplicar modelos de desejo a partir do seu próprio discurso porque não consegue passar para o lado do mestre. Ela quer reinar sobre o mestre. E quando não consegue, pensa que ela não fez algo direito, não arrumou direito, algum troço ela fez em impotência. Ela insiste na cantada. O analista, mais do que ninguém, está no regime do impossível. Ele sabe que é impossível analisar. O mestre até sabe que é impossível governar, mas governa assim mesmo. O analista bem sabe que é impossível analisar... *
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Lacan, como sabemos, se referiu a outros discursos que ele não teria escrito: o discurso da ciência, o discurso do capitalista... Já falei sobre isto e já fiz algumas enrascadas na tentativa de abordá-los. Hoje vou ousar escrever um discurso que Lacan não nos escreveu – em outra oportunidade escrevo outros como pude estudar... Com a mesma disjunção que, neste caso, posso traduzir não por impotência, mas por incompetência. Aliás me pergunto se, em sua origem histórica, a incompetência, seu surgimento no tráfego e no tráfico cotidianos das operações e dos trabalhos, não é um conceito advindo com o capitalismo. Antes da posição capitalista, tínhamos os mestres, e a relação de respeito recíproco entre mestre e discípulo, as corporações, etc... Não era o conceito de incompetência, o qual é psicologizável e transformável num regulamento que se aplica ao operário da fábrica quando ele vai lá se inscrever. O que se está medindo? Sua competência para servir como peça de máquina. Suponho, então, que posso escrever assim o Discurso do Capitalista:
É o discurso do mestre com rotação só de S/ e S2. Lacan escreveu quatro discursos e falou da existência de, pelo menos, mais dois. Quanto mais tento procurar de onde ele tirou a montagem inicial nessa possibilidade de produzir os matemas dos discursos, mais tenho a impressão de que são oito de base. E entre esses oito discursos, por seguir a rota que Lacan parece que seguiu para escrever os quatro – mostrarei isto
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mais tarde –, parece que encontro assim o discurso do capitalista. Ele participa, por algumas posições, do discurso do senhor – no lugar do agente e no lugar da produção. Há reversão quanto ao lugar da produção e do saber e, nessa reversão, justamente esses dois lugares são o inverso do analista. É o inverso segundo um eixo. Totalmente não é, porque o eixo permanece. Há uma reversão topológica e, depois, tudo gira do mesmo jeito. Mostrarei isto com um tetraedro numa outra ocasião. O discurso do capitalista coloca como agente o mesmo que o mestre coloca: uma posição particular, fundamental. No caso, aquilo que Marx trouxe, a posição fundamental de apropriação dos bens, dos meios de produção, etc. Esta é a minha partida. Mas não é o discurso do senhor justamente porque não faz trabalhar o outro – ele evita uma relação com o Outro enquanto tal. Ele faz trabalhar é a cisão, como o psicanalista faz, mas não com a mesma produção discursiva. A cisão que ele faz trabalhar é a partição do sujeito mediante alienação por fragmentação. É a divisão do trabalho, para Marx. O fracionamento do sujeito a ponto de ele poder ser mera peça do sistema, em não especialização. A especialização de que falava antes era a possibilidade de se encomendar o trabalho de um escravo que, por seu lado, ali era mestre. Ele partia da sua particularidade criativa. Aqui, não. O próprio sujeito é fragmentado. Fragmenta-se um outro, faz-se operar nele, depressivamente, a cisão do sujeito – “você e um mero sujeito a um, não ao Outro” – sem deixar de colocar no lugar da verdade o saber. Mas não é o saber do outro como na análise se faz, aquele que o outro apresenta como verdade. É um certo saber que é produzido como sistema e como verdadeiro. Um certo saber que, certamente, lhe é oferecido pelo universitário, que é o empregadinho do capitalista. Vem então a produção de um objeto como pura mais-valia, que é o lucro que se pode recuperar, na posição do capitalista, pelo uso dessa fórmula discursiva. Aí está a mais-valia, puramente. No discurso do mestre, Lacan chamou a isto de mais-gozar. Trata-se aqui do lucro financeiro, esse de que se fala no banco e que vem neutralizado como moeda. Está tudo lá, no Marx... Venho a transar com a moeda e com um falso lucro porque deprimo o outro,
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pela sua partição, e não o deixo ser alguém – ou seja, um sujeito, mas vigorando a partir da sua particularidade – porque lhe digo que, no lugar da verdade, tenho um saber dado, certamente pelo discurso universitário. A diferença, então, é que, no discurso analítico, o saber que está no lugar da verdade, é o saber do outro na medida em que o analista está fazendo funcionar, como objeto, a cisão do sujeito no lugar de um outro. E se está como objeto a, o saber do outro vai saltar, porque o a causa o desejo dele. A postura do analista é de causa do desejo, e assim o Outro vai colocar-se verdadeiramente com o seu saber, que é saber do Outro e não do analista. No discurso do capitalista, não se coloca no lugar do agente a causa do desejo, e sim o imperativo superegóico de uma posição de comando, como faz o mestre. Só que o comando, no caso do mestre, é dialetizável, pois quando faz funcionar o saber, este está cindido pelo sujeito. O capitalista faz funcionar depressivamente a cisão do sujeito garantindo-se, como verdade, num saber dado, o savoir-faire do lucro. É depressivamente, então, que o Outro é abordado. É claro que o discurso do capitalista, como qualquer outro, tem sua disjunção, é impossível. Se fosse possível, já haveria dominado tudo. Ele também não pode operar, como a histérica, essa impossibilidade, pois, para ele, só há defeito nesse saber, uma impotência, na verdade uma incompetência... dos senhores professores que não fizeram uma tese decente para se obter todo o lucro possível. Por isso é que há tantos professores como Ministros. Espera-se que eles tragam um saber, que a universidade lhes deu, para que esse saber funcione no lugar da verdade, oferecendo todo o lucro. O saber universitário não é o saber científico. O discurso da ciência é outro... A histérica fica produzindo saber o tempo todo, ela não faz outra coisa. O discurso científico faz a mesma coisa, mas por outra via. O discurso do capitalismo não consegue lidar diretamente com o discurso da ciência. Ele dá prêmio Nobel porque tem dinheiro para isto. Ele só pode lidar com isto através do discurso universitário, que lhe dá, como produção, um sujeito prontinho, botando o saber como sua causa. Ele captura sujeitos “preparados” para lhe garantir que esse saber é verdadeiro. Ele não lida diretamente com a ciência, porque
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não é besta. A ciência é doidivana, ela produz saberes e quer garantias, mas não é pedagógica. Basta lermos os cientistas... Como eu vejo o mundo, obra de Einstein... É a produção de um saber que se entrega, e não o convencimento de um sujeito para acreditar nesse saber dado. A pedagogia é que garante que vocês todos sejam bem treinados, para que eu, como capitalizador, tenha o público certo: aquele que vai poder aceitar eu propor esse saber dado sem maiores contestações. Se pintar um poetinha, um doidinho, vão dizer que não é nada disso, que ele só está fazendo arruaça. *
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Estou, hoje, nesse papo porque, a partir das coisas que disse desde o começo – tanto sobre a PIPA quanto sobre a MALU –, me pergunto se não há agora uma lacanagem sem Lacan. Com Lacan era interessante; o nome é dele, ele pode fazer com seu nome o que quiser. Agora há outro sentido da lacanagem, que é a de quem tente fazer de forma com que Lacan habite, ou que tenha habitado, o discurso do capitalismo... A PIPA não me interessa nem um pouco, mas a MALU ainda me incomoda, pois o que vejo nesse tipo de atitude me parece tentativa de capitalização do projeto lacaniano. Não é um mero faturamento, pois todos nós faturamos em cima dele. Estou chamando de capitalização do projeto lacaniano o fato de se arvorar algum suposto herdeiro – ainda que a roupa do defunto seja evidentemente maior, como disse – o qual, ao invés de continuar o ensino do mestre, na tentativa de, pelo menos, recompor esse lugar, e ao invés de fazer vigorar o discurso analítico, queira transformar sua suposta herança dos meios de produção – e que é uma farsa ruim porque não há essa herança – em mera capitalização desse projeto. Aí é que venho denunciar tais atos que não esperam por transferências, nem por reconhecimentos, e só querem negociar. O papo tem sido neste nível. O que preocupa é essa transa de se pegar o que se produz, se efetiva (ou se efetivou porque não se efetiva mais já que Lacan está morto), pegar os dejetos
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desse discurso e situar-se como seu herdeiro. E fracionar os outros – regra antiga de dividir para reinar – de maneira a capitalizar, fazendo-se, de contas que se está do nosso lado. RESPOSTAS (...) Dizer que o saber não aparece manifestamente é dizer que ele não aparece como saber puro e simples que é. Mas aparecer, ele aparece. O capitalista, quando fala, diz que tal coisa está cientificamente correta, olha para o lado e se garante: “Não é, professor?”. Ele não vai perguntar ao cientista... E há professor para isto, sempre há. O professor é aquele que transformou o discurso científico em discurso pedagógico. O cientista, o capitalista o premeia – e é só. Todo o sistema se remete à Universidade, que foi fundada não para ensinar a ninguém, e sim para garantir que as criancinhas digam amém, para que se formem sujeitos adaptados ao saber instituído. (...) Há tentativa de sufocação do discurso científico por parte do capitalismo. Se o cientista não se comporta universitariamente, fica mal visto: “Quer descobrir saberes para quê, esse cara?” – pergunta o capitalista – “Qual o lucro que vou ter com isso?”. (...) Tanto é que se você tentar uma bolsa de estudo ou de pesquisa sobre algo de sério – ou seja, cuja tese vai ficar certamente inacabada, porque toda coisa séria é assim –, você não vai conseguir. A não ser por descuido. Para se redigir um bom processo para ganhar bolsa, há que se mostrar que se vai chegar a tal termo e que isso serve a um lucro tal. Capitalista não é besta de financiar o que não lhe vai render lucro. Até o discurso científico – que não é lá essas coisas –, que bem ou mal na sua histerização de base acaba produzindo saberes. que por acidentes do Outro podem até subverter as crenças, anda
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meio desmoralizado. Por que e a quem se dá Prêmio Nobel? Àqueles que fizeram um saber imediatamente rentável... “Prêmio Nobel da Paz”, àquele que foi ali e pacificou uma fofoca. Ninguém se lembrou de dar um Prêmio Nobel a Lacan. Neste ponto, com toda a caretice do seu papo, o velho Marx está com a razão, pois o discurso dominante é este... O sujeito, que não só está cindido como está fodido, está de vez cedido, e acaba investido e se fraciona outra vez. É o que acontece com a luta feminista. Vai produzir mais homens, de saia. Aliás, de calça comprida mesmo, igualzinho. Já se confunde quase tudo. Antes, e pelo menos, a única coisa que ainda dava para diferençar era certa postura. O unissex é isto: é que tudo se masculinizou e, até, para não parecer muito diferente, o machão desmunheca um pouquinho.
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NÃO É NÃO Três palavras: Não, é, não. De acordo com as pontuações possíveis, há uma série de leituras que, na língua brasileira, cria um equívoco extremamente produtivo: Não é não. Não é não? Não! é não - e por aí vai... Talvez, então, possamos dizer de modo bem masculino que: Não é não – está encerrado! Mas as mulheres dizem: Nãããão, não é não... E, no ápice da dúvida, a gente fala muito: Né não? – que é tipo expletivo. O título de hoje justamente aí está para essa equivocação, quando possamos repensar um pouco, se possível, a nossa questão de Psicanálise & Polética. Ou seja, o que a política tem a ver com a psicanálise. Gostaria de retomar o que vem sendo dito desde o começo deste Seminário, que é nossa posição crítica em relação a uma série de posturas discursivas que estão aí. Por exemplo, o chamado feminismo, que acusei de machismo – um positivismo renascente, que quer dizer que não é não, sempre. E isto por vocação de um certo existencialismo que, por vias de retorno a Sartre, pretende, talvez, negar as contribuições da psicanálise. Outro dia mesmo alguém me dizia que há muita semelhança entre Lacan e Sartre, porque “o inferno são os outros”. Jamais se teve na psicanálise a idéia de que o inferno seja o Outro. O
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Outro é Deus. O inferno, o infernal, é o desejo. Lacan já teve oportunidade de criticar Sartre justamente aí. A crítica da sussexologia, e, também, do romantismo psiquiátrico, onde se inclui a anti-psiquiatria, o Guattari-Deleuzismo... É por essa via que vou retomar, principalmente na relação ao feminino, essa equivocação do homem. Do ponto de vista do feminino propriamente dito, as mulheres já conseguiram lavrar algum tento. Tenho nas mãos esta maravilha aqui, cujo texto da embalagem é: “As mulheres vão conseguir igualdade de condições com os homens no lugar onde eles menos esperam – no mictório”. Está à venda nos supermercados... As mulheres já podem fazer pipi de pé. Isto é propaganda deste piruzinho de papel que inventaram com a desculpa de que as mulheres não precisam mais sentar nos vasos sanitários sujos. Elas agora podem ir ao mictório e fazer como todo homem faz. E, isso, sem inveja do pênis... Elas tiram esse pênis do bolso e fazem o seu pipi. Chama-se Discret – o charme discreto da piroquinha... *
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O tema em que pretendo ficar por hoje é justamente o da relação da Psicose com o Feminino, se é que há alguma. Quero falar um pouco sobre a psicose retomando o que havia tratado n’O Pato Lógico, em 1979, quando pensava a possibilidade de articular alguma coisa da neurose e da perversão sobre os níveis de renegação. Tentava dizer algo sobre essa distinção e frisei que era preciso considerar o que chamei de pseudo-psicose. Tratava-se de distinguir o que é da ordem da psicose daquilo que muitos teóricos, inclusive analistas, colocaram no campo da psicose e que não consigo aceitar, que é o caso de certos poetas, certos místicos. Citei Artaud, Van Gogh, Hölderlin e outros, os quais é preciso abordar de modo mais particular. Eu dizia que essa pseudo-psicose apresentava eventualmente relações com a loucura, certas características aproximadas da psicose. Mas ali não havia possibilidade, dado o tipo de produção desses sujeitos, que podíamos abordar, de reconhecermos a foraclusão do Nome do Pai que caracterizaria o psicótico.
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Naquele momento eu dizia, então – pelo menos é o que está aqui na minha ficha –, que dizer não ao Nome do Pai não é o mesmo que não escrevê-lo, ou seja, foracluí-lo, e, com isso, fazia comparação com a postura feminina, a qual, de certa forma, suspende a função paterna. Donde, não só Lacan, como a maioria dos observadores, apontam uma certa loucura no feminino. Tentava inserir na via do feminino, por um certo risco de entrada em relação com o furo, essa aparência de psicose que encontraríamos eventualmente nesses poetas e místicos. Hoje vou fazer um pouco de consideração disso e relembrar que essa loucura é fundamental do falante e deve ser carinhosamente tratada. Como diz Fernando Pessoa no poema que já citei: “Minha loucura, outros que a tomem, com o que nela ia. Sem a loucura, que é o homem mais que a besta sadia? Cadáver adiado que procria?”. Ele está reclamando essa essencialidade de rédea-frouxa que é do falante. Não podemos esquecer, também, de um trecho de Lacan freqüentemente citado, Écrits, p. 176: “Pois o risco da loucura se mede pelo atrativo mesmo das identificações em que o homem engaja ao mesmo tempo sua verdade e seu ser. Longe de a loucura ser o fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade de uma falha aberta na sua essência. Longe de ser para a liberdade ‘um insulto’, ela é sua mais fiel companheira, ela segue seu movimento como uma sombra. E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, mas não seria o ser do homem se não portasse em si a loucura como o limite da sua liberdade”. E depois de dizer que não se torna louco quem quer, continua: “Mas é também que não atinge quem quer os riscos que envolvem a loucura. Um organismo débil, uma imaginação desregrada, conflitos que ultrapassam as forças não bastam para isso. Pode-se dar que um corpo de ferro, identificações poderosas, as complacências do destino, inscritas nos astros, levem mais seguramente a essa sedução do ser”. Aí ele faz a grande ressalva: “Pelo menos essa concepção terá imediatamente o beneficio de fazer apagar-se a ênfase problemática que o século XIX colocou sobre a loucura das individualidades superiores – e de acabar com o arsenal de golpes baixos que trocam Homais e Bournisien sobre a loucura dos santos ou dos heróis da liberdade”.
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Ele diz isto no seu texto Proposições sobre a Causalidade Psíquica, de 1948. E, no texto De uma Questão Preliminar a todo Tratamento Possível da Psicose, de 1958, cita a frase acima: “E o ser homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura...” Os termos da língua: loucura, louco, maluco, maluquice, doido, doidice, tantã, pancada, biruta, pinel, o sujeito tem uma telha a menos, macacos no sótão, parafuso faltando, etc., tudo isso é uma ambigüidade muito grande e não faz a distinção entre a loucura da essencialidade do falante e a inscrição psiquiátrica, digamos assim, do psicótico. A loucura do homem não é necessariamente a psicose. É preciso fazer esta distinção. Temos aí a crítica da anti-psiquiatria, de posições como a de Deleuze, que supõe poder reduzir a uma psicose esquizofrênica o processamento de libertação do sujeito. Temos, também, que cobrar da anti-psiquiatria certo romantismo que faz do psicótico a salvação do mundo. O respeito à diferença que um psicótico apresenta é uma coisa, mas supor que a normalidade deva ser psicótica é um pouco forte. Vamos, então, tentar um pouco de discernimento. Prestem atenção, no esquema seguinte, primeiro, na coluna da esquerda onde estão as Fórmulas Quânticas da Sexuação, que já conhecemos. Na parte de cima, é aquele esqueminha que tentei mostrar aqui de uma possibilidade de leitura dessas fórmulas, por via das interseções, apontando que há um quadro mais ou menos compacto dependente da instauração do sujeito, no momento do Fort-da, em relação à presença e ausência do objeto. Isto, situando o Falo, que está representado no meio dos quadradinhos, como significante entre presença e ausência, e as duas posturas que Lacan nos dá como sendo as que fundamentariam as posições dos sujeitos, enquanto homem e mulher, que teriam uma fundação bastante antiga e radicalmente instalada. O sujeito terá que redescobrir sua instalação, ou seja, um certo momento lógico de emergência do sujeito. Portanto, isso deve ter a ver só com o momento do Fort-da, mas com a estrutura geral que está no estádio do espelho, quando o sujeito vai cair numa dessas posições. É claro que, depois, ele vai deixar de saber
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que caiu lá e vai ter de redescobrir. Mas, certamente, por aí só existem dois sexos: o sujeito ou cai num, ou cai noutro. E sexo nada tem a ver com a anatomia, a não ser por extrema coincidência. Masculino e feminino, homem e mulher, não são necessariamente macho e fêmea, são as posturas significantes que vão determinar a posição do sujeito.
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Abaixo, na mesma coluna, temos as fórmulas de Lacan para a garantia de ser homem e para não conseguir ser homem, ou seja, de ser “apenas uma mulher”, como diz a música. O universal ser homem – x x – só se constitui na medida em que existe “pelo menos uma” exceção - que contradiz e funda, portanto, a regra. Tentarei uma distinção, talvez um pouco forçada, para ver se fica um pouco mais claro. Tomemos a cor, por exemplo – nada mais distintivo do que a cor –, vamos escolher a cor verde. Se chamarmos y = cor e x = verde, poderíamos dizer que: x y: toda cor é cor. Para se poder tratar com as coisas, já se parte de um universal colorístico. x y: todo verde é cor. Se disser que existe pelo menos uma cor que não é verde, ou seja, que existe pelo menos uma possibilidade de dizer não ao verde, de limitar o verde, poderei concluir daí que todo verde é verde, pois todo verde é função de verde: y x: existe pelo menos uma cor que não é verde. x x: todo verde é verde. Ou seja, para se poder fechar o universal, colocar um todo, é preciso ter pelo menos um que negue isso. Negar isso é o que garante o universal. Todo verde é verde, na medida em que pelo menos uma cor é diferente de verde, diferente de verde negado enquanto verde, que é não-verde, a negação do verde.
No fundo deste processo existe, então, a remissão constante a uma Alteridade que nega a Metalinguagem. Isto porque para se dizer que todo verde é verde, é preciso dizer que pelo menos um não o é. Mas, à medida que estou
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falando de verde, estou situando um universal cor que está por fora disso tudo. Há sempre referência a outra coisa no regime das oposições, como no caso da linguística. É preciso colocar um espaço maior como englobando tudo para estabelecer a distinção por dentro. Toda cor é cor, e isto é o universal da cor – y y. E a cor verde precisa, para ser cor – x y –, de outra referência que não seja cor. Existe pelo menos uma cor que nega o verde – yx –, logo todo verde é verde: x x. Aqui posso fazer a eliminação dos y e acabar com o y x, pois Lacan disse que existe pelo menos um que não é função fálica: x x. Dentro desta estruturação, basta se ter a exceção para se ter a regra, pois,por fora da exceção, há outro universal que a está segurando. Daí a inexistência da metalinguagem, pois trata-se de outra postura de universal, segurando uma particularidade como diferente e fundadora desse universal. Temos aí a fórmula do distintivo, a fórmula das oposições. Não se consegue estabelecer oposições escansivas sem esta formação. Com isto, Lacan está garantindo que não há possibilidade de se negar que a exceção funda a regra, que só se pode dizer o universal pela diferença em relação ao que está por dentro. Só posso dizer que todo verde é verde na medida em que há uma cor que não é verde – o que está escondido aí é a referência à cor. Posso até dizer o “absurdo” de que existe pelo menos um verde – algo que participa das condições do verde – que não é verde, que é o seu limite. E como há um limite, a oposição pode ser escrita. Ora, quando Lacan escreve as fórmulas do feminino, posso dizer que ele parte das mesmas premissas, ou seja: toda cor é cor; e todo verde é cor. Até aí nada mudou, pois tenho que ter uma referência qualquer de escansão. Mas, ele continua e diz que não existe nenhuma cor que não seja verde – y x –, que é contraponto dessa outra afirmação de que existe pelo menos uma cor que nega o verde – yx. Então, se disser que não posso reconhecer que existe uma cor que negue o verde, é a mesma coisa que dizer que há uma certa gradação, que as coisas não são assim tão nítidas e que, se for procurar a distinção entre um verde e um não-verde por gradações sucessivas e sutis,
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vou perder o momento onde o verde deixa de ser verde. Então, posso dizer que qualquer cor participa de uma certa “verdidade”. Uma coisa é estabelecer as oposições entre x e x’. Outra, é dizer que não se pode estabelecer nitidamente essa oposição, que a gradação é tão sutil e tão infinita, que não se sabe onde está a oposição. Isto logo se espraia pelas cores em geral e elas ganham certa verdidade. E os artistas garantem isso. Basta estudarmos pintura para saber que um professor pode pedir que se prepare um trabalho pictórico aonde o vermelho “funcione” como verde... Em função das jogadas pictóricas, vou verdalizar o vermelho e o que vai acontecer é que se disser que não existe nenhuma cor que diga não definitivo ao verde, terei essa negação no universal que Lacan colocou. Poderei dizer que não-toda cor é verde y x –, ou seja, é verde, mas não-toda. Tem uma verdalidade, uma certa verdice, aquilo que posso atribuir gradativamente às cores, reduzindo essas expressões... E reduzindo vai acabar... Não existe nenhum que não seja fálico e diga não em definitivo sem gradações. Portanto, as mulheres estão garantidas na sua posição feminina por dizerem que nãotoda é função fálica. O negócio escorrega, logo, a própria função fálica fica prejudicada. A função fálica da mulher é algo precária, não é aquela coisa batatal dos homens. Posso, mesmo, trocar a palavra verde e a verdidade do verde pela verdade. A verdade do verde está na dependência de alguma coisa externa. Toda verdade é verdade. Todo verdadeiro é verdadeiro. Toda verdade é verdadeira. Existe pelo menos uma verdade que não é verdadeira, então, toda verdade é verdadeira. São os limites da verdade. E se não existe nenhum verdadeiro que não seja verdade, não-toda verdade é verdade. Aí Lacan diz: “Eu digo a verdade sempre, mas não-toda” – porque a língua não consegue ser macha, nem que os gramáticos insistam nisto. Como só posso falar alíngua, só posso dizer a verdade, mas não-toda. Lembrando dos esqueminhas do “existe pelo menos um”, não posso dizer que existe um horizonte distante – ao qual não preciso me referir, ao qual Lacan não se referiu quando falou nisto –, mas existe um horizonte quando digo que
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toda cor é cor, que verde é cor, porque existe pelo menos um que não é verde e, dentro do colorismo, o verde se destaca. Posso sempre pensar nesse horizonte. É muito distante, mas posso pensá-lo. Já no caso da mulher, esse horizonte pode estar lá, mas a falta de existência daquele que diz não, abre o contorno do universo. Fica, então, uma certa indistinção entre verde e cor. A distinção masculina diz que cor é cor, que entre as cores há verde e não-verde. Já as mulheres podem até dizer que faz de conta que cor é cor, mas que há verde em qualquer lugar. Ficando, assim, indistinto do ponto de vista das oposições, mas extremamente distinguido do ponto de vista da infinidade sensível de sutilezas colorísticas... Basta pegar um bom pintor para se verificar isto. Cheguei mesmo a pensar em dois termos para distinguir isto: o digital e o analógico. A mente digital seria o masculino e a analógica o feminino. Mas não vou pôr no esquema porque o digital me parece muito mais para o obsessivo e o analógico para o histérico. Diria melhor: há concepção e aceitação da oposição em H, e concepção e aceitação da infinitização contra a oposição em H’. As mulheres não se opõem a nada – muito pelo contrário, não há oposição definitiva, elas deslizam, dão um jeito, escorregam... É o caso do artista em relação à cor. Ele distingue o seu estilo, mas sua transação com as cores não é de eliminação. Mesmo que ele prepare sua paleta, ele faz a maior zona dentro dela. Tem a paleta do artista, um certo conjunto de cores que ele usa, mas justamente para fazê-la funcionar de outro modo, para tornar sutil a relação entre as cores. Lacan diz que sempre disse a verdade, mas não-toda. É a garantia de que ele fazia um mi-dire. Tenho a desconfiança de que esse seu mi-dire é mesmo estratégico. Não só porque ele está garantindo que não pode dizer toda a verdade – porque lhe é impossível –, mas estava também usando isto como estratégia nos seus ditos. Sempre tenho a impressão de que Lacan pensa uma coisa mais ampla e só mostra metade. Tenho essa desconfiança com ele, que não sei se é mítica. Cada vez que ele diz alguma coisa, pergunto pelo outro lado... Vai ver que ele escondeu um lado aí, para não ser totalitário... Ele talvez
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tinha esse cuidado de pensar grande e dizer a metade. Como não sou obrigado a ser Lacan, porque não o sou, fico só implicando com suas fórmulas. *
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Consideremos agora, um pouco, a coluna da direita, onde tento fazer uma reversão, onde me pergunto se essas fórmulas têm um avesso. Quer me parecer que poderia escrever o avesso da coluna da esquerda na da direita. Avesso não significa o oposto e, sim, uma reversão. Na parte de cima, escrevi a mesma coisa, mas, em vez de botar a negação da função fálica, inverti a coluna vertical e botei a afirmação da função fálica. Na de baixo, continuo dizendo, só que está trocado e o que está como interseção não é a função fálica e, sim, sua negação. Na verdade, bastou virar a coluna vertical para aparecerem essas fórmulas aí. Será que isto tem leitura possível? Quem me pressionou a fazer isto foi um psicótico. Ele me dizia umas coisas que eu não conseguia atinar. Tratava-se de que ele tinha que atravessar uma porta e ele se negava a atravessá-la. Não adianta chamá-lo à realidade, porque não pinta essa realidade para ele atravessar a porta. E eu me perguntava por que ele não queria atravessar a porta. O desgraçado ficava me enchendo o saco, como todo psicótico. Fazia uma série de frases. Eu não tentava convencê-lo a atravessar a porta, eu tentava ver qual era a frase que pudesse fazer, na cabeça dele, com que ele a atravessasse. E descubro que eu não tinha frase capaz de fazê-lo atravessar. Ele não conseguia sair de dentro do meu parlatório – como convém chamá-lo –, se recusava a isto, mesmo que soubesse que deveria sair. Ele estava convicto de que tinha que sair para poder voltar várias vezes, ele concordava com isto. Aí eu dizia: “Está bom, então saia.” Ele perguntava: “Por onde?” Eu dizia: “Por aquela porta.”. E ele fazia uma cara de quem entendeu – o pior era isso. E eu dizia: “Então, vamos sair.”. Ele se retinha, chegou até a me agredir físicamente. Eu perguntava: “Por que não? Por que você não pode sair por aquela porta?”. Ele retrucava: “Porque eu
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tenho que sair por aquela porta”. E eu pensava que ele estava com alguma questão contra “aquela porta”. Até que, de tanto insistir, ele deixou claro para mim o que era o aquela da porta que era absolutamente indecidível. Ele tinha que sair por “aquela” porta. Eu dizia: “Então sai”. Aí ele dizia: “Não, mas eu tenho que sair por aquela porta, não por aquela”. Quando ele disse esta última frase, só então eu saquei: não havia jeito de fazê-lo atravessar o aquela da porta. Eu o botei para fora no tapa, na porrada como se diz. Ele tinha que atravessar a porta para fazer a experiência em outro nível. Agarrei-o à força e o botei para fora. Suspendi o aquela e o fiz atravessar a porta “naquele” tapa. Ele não podia situar na medida em que o “aquela” tem algo de shifter. Podemos observar no texto sobre o Tratamento Possível da Psicose, como Lacan situa as suspensões do psicótico no momento do shifter. São estes termos da língua que, ao mesmo tempo que fazem a passagem, criam uma certa indistinção entre enunciação e enunciado, como é o caso do pronome pessoal eu. Eu é quem? O psicótico não pode bem dizer eu porque há uma indecisão radical entre enunciação e enunciado. O eu fica sem a função shifter que tem na frase, a função de referência do sujeito. Lacan acredita em Jakobson, mostrando que é justamente naquela equivocação como está em não é não que pinta o expletivo, a função de sujeito fundamental. Todos os shifters acabam carregando um pouco dessa indecisão. Para se tomar alguma decisão é preciso escolher uma via da instância do equívoco para fazer a oposição, ou que, pelo menos, se faça uma gradação que dance. Mas o psicótico fica inteiramente sem referência para fazer distinção aí. Ele não podia atravessar o aquela, o aquela era um abismo. Ele só podia sair carregado por outro que se suportasse como sujeito – foi o que fiz, contra os medos dele, tomando porrada. Até que funcionou porque ele, pelo menos, se hebefrenizou um pouco. Talvez, nessa hebefrenia, consiga vir a instalar-se na função paterna. Engraçado é que, a partir desse momento de expulsão, ele começou – sem nenhuma transferência, claro – a dizer que eu era o seu pai. Isto é talvez uma tentativa de salvação; antes ele não dizia isto. Porque fui responsável pela
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decisão do aquela. Ele continua na sua hebefrenia muito simpática. Assume uma posição de criança que está aprendendo, parece um escolar. Veremos no que dá. Não conheço o milagre. De qualquer forma, a tentativa de entender essa indecidibilidade me ajudou a pensar essas fórmulas. Na coluna da direita, onde fiz a reversão da coluna vertical, temos a seguinte leitura. Na primeira coluna horizontal: Existe pelo menos um que é função fálica – x x. Em oposição: Não existe nenhum que seja – x x. Na trave de baixo: não-todo não é função fálica – x x; e todos são não função fálica – x x. Poderíamos ler de outro modo? Observem que botei o existe pelo menos um dentro de um quadradinho. Isto porque se disser assim a coisa fica frouxa. Para fazer a oposição, a interseção, de que não existe nenhum, só existe uma maneira de pensar isso, que é dizer que existe apenas um. Botei o quadradinho, pois foi a maneira que achei de escrever isto. Pegando, então, pelas metades, como Lacan escreveu, as garantias que existem são de que existe pelo menos um que não é, logo todo é; e não existe nenhum que negue, logo não-todo é. Se puser cor, terei as mesmas premissas. Direi que toda cor é cor, que todo verde é cor, entretanto existe apenas uma cor que é verde – x x. O que eu poderia dizer? Não todo verde é não-verde – x x?
Como chegaria aí? Para se poder dizer que todo verde é verde, é que há muitos verdes que se distinguem de um não-verde. Então, para se dizer que não-todo verde é verde, é preciso suspender a existência de pelo menos um. Aqui, a coisa é muito mais radical. Se se cai neste acidente lógico de que existe no meio de todas as possibilidades uma única verdadeira, só o que ele vai conseguir pensar a respeito de todo é que não-todo verde é não-verde – x x. Ele pode até se deparar com os verdes, mas só existe um, e ele nem sabe qual é. É uma loucura! Ele sonha com um único verde em que não tem como distinguir, porque não tem nem uma coisa nem outra... Estou tentando escrever as fórmulas da psicose.
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Este outro cai em outra loucura, porque diz que não existe nenhuma cor que seja verde – x x –, que não há nenhuma cor que seja distinguível como verde. A mulher não diz isso e, sim, que não há nenhum que não seja – x x. De um lado, então, um diz que não existe verde – x x. O outro, por
sua vez, tem certeza de que há um só – x x –, que não consegue encontrar. Então, se um diz que não existe nenhuma cor verde, portanto, toda cor é nãoverde. Qualquer cor que pintar é tudo menos verde. Se substituirmos por verdade, fica uma loucura porque todo verdadeiro é verdade. Existe apenas um verdadeiro que é verdade. E esse verdadeiro não é encontrável, até segunda ordem. Ele vai ter que explicá-lo, logo, não-toda verdade é não-verdadeira. Já imaginaram o abismo? Não é apenas uma infinitização gradual, macia. É o abismo repentino. O outro vai dizer que não existe nenhum que seja verdade, logo toda verdade não é verdade. Com a cor, teremos que todo verde é não-verde – x x –, porque o verde não existe, toda verdade é não-verdade. Nos dois casos, temos uma impossibilidade de estabelecer a distinção – é indecidível. Mas podemos acompanhar certas formações na tentativa da decisão. Adianto que estou chamando o lado esquerdo de paranóia (PN), e o direito de esquizofrenia (SF). Todo verde é não-verde, SF, o que é muito diferente de dizer que é verde, mas não-todo, PN. Há um reconhecimento deslizante, um buraco, não se acha o desgraçado do verde, porque ele não existe. Remetendo, aqui, a Rosine Lefort, onde, então, está o furo do Outro nesses dois casos? É preciso reconhecer o furo do Outro para poder incluir o furo. Um é furado e não pode reconhecer porque o furo do Outro não pinta; o outro esbarra no furo do Outro e não pode incluir – são completamente diferentes. Existe uma afirmação primeira, uma Bejahung, para poder fundar-se a negação, mas em SF só existe foraclusão, porque a afirmação se funda sobre coisa alguma. Isto é conseqüência de uma não-instalação da Bejahung. As coisas se depositam, ficam assim acidentalmente, mas não têm fundamento afirmativo, por isso só afirmam.
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Dir-se-ia que o psicótico não pode negar. É uma espécie de fantasma de negação que pinta por falta de afirmação. Nos dois casos existe um abismo. Não existe uma referência distintiva ou a possibilidade de deslizar pelas encostas. Ou tem um abismo lá, ou tem cá, portanto o não não se diz como não. O não, não é não. Não é sim nem não, muito pelo contrário. Ele entra em cadeias eventuais e, no momento em que o indecidível fica terrível, não se pode passar por aquela, em função das cadeias – não há nodulação. Poderíamos, então, dizer que, em PN, a afirmação de que existe apenas um vai – porque este apenas um não é encontrável, se o fosse, nós seríamos animais, teríamos a nossa distinção de saída – se transformar numa criação delirante, terá um núcleo de delírio que será a referência da existência. Por isso o paranóico só faz referência ao núcleo do seu delírio, embora o delírio varie. Isto porque, para ele, existe apenas uma metade que é a sua verdade nuclear. Isso pode significar que ele como que se fecha não por referência a uma negação exterior, mas como uma espécie de cristalização – fecha-se o circuito – onde pode dizer que não-todo x é não-verdadeiro em função de existir apenas este. Mas este não é encontrável. Isto vai se criar como núcleo de função verdade, delirante, e há um outro que fica furado, sem reconhecimento. Ou seja, aquele horizonte é que é estilhaçado. Qualquer horizonte possível, com referência a outrem, ou a Outro, é estilhaçado, porque o que vai se fundar em PN é força centrípeta. O Outro é estilhaçado, só existe este ponto que é verdadeiro, sem nenhuma função externa que garanta o seu para-todo. Fica, então, essa existência única confrontada com o não-todo nãoverdadeiro, com a abertura para o lado de fora que o paranóico tem que centrípetar para transformar o Outro em si. Um ego de aço. Ou seja, tudo que pinta no campo do Outro só encontra como referência não o faz-de-conta da função paterna, não o desejo, não o amor, mas uma espécie de imantação que é preciso resolver, empacotar tudo com o delírio para que as coisas tenham existência. Suga-se tudo para dentro. O que decide é o núcleo de verdade, aquilo que bateu e encalhou lá, que não é concebível como sendo o núcleo. É uma espécie de, digamos, falso
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S1. Não posso chamá-lo de S1 porque a função sujeito não entrou, mas entrou um significante que se comportou como significado. Aquele chumbo faz, então, o lastro, e a imantação suga tudo que pinta no Outro. Por isso o delírio não é constante como dizem certos tolos da psiquiatria. Lacan diz que o delírio muda de vez em quando. E tem que mudar porque é a maneira de reduzir de novo a esse núcleo. Tudo que pinta no campo do Outro é uma tentativa que nem podemos dizer que seja de suturar o Outro, porque o Outro não é concebido. O Outro é furado porque é, e ele não consegue conceber o furo do Outro. Se conseguisse, entrava no faz-de-conta. Mas o que ocorre é que, imediatamente, tudo se recolhe ao núcleo. É como se fosse uma espécie de falso S1 radiante, maravilhoso, significado. É o S1 propriamente dito, coisa, significado, não há nenhuma função subjetiva em jogo. É o uso próprio, perfeito, do S1... Lingüista devia saber disto já que ele procura o uso próprio da palavra na língua – só pode ser paranóide... O esquizofrênico fica numa ruim como essa, mas de características completamente diferentes. O Outro não se apresenta furado. No seu acidente lógico não há reconhecimento. O paranóico também não reconhece o furo do Outro, mas é atacado, porque o Outro é furado mesmo e esse furo é que o incomoda. O esquizofrênico não reconhece o furo, mas tem que trabalhar o tempo todo para não reconhecê-lo. SF, então, no seu acidente lógico, cai numa espécie de Outro sem furo, como se tivesse dois e fosse compacto. O saber é saber significado, mas não pode ter relações com esse saber significado porque sua posição aí dentro é que é aberta, furada. Não é como aquela abertura de PN, é simplesmente um buraco. É uma espécie de S1 falso e rasurado. PN inventa em cima de um significado um núcleo, SF não tem nem significante nem significado, não tem um núcleo. No lugar do núcleo tem um buraco. Isto na medida em que, para ele, não existe nenhum que seja função fálica. Os homens dizem que todos são função fálica, pois existe pelo menos um. As mulheres dizem que a função fálica não é todo, porque não existe nenhum que não diga não. O que SF vai dizer é que não existe nenhum que
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seja função fálica, ela não funciona nunca. Não há gozo-fálico por mais que se masturbe o dia inteiro, talvez por isso mesmo, porque não encontra a função fálica. PN tem um buraco e, toda vez que procura alguma referência do lado de H, é um abismo. Por isso ele é um andarilho. Sai desvairado pelo campo do Outro. A única maneira de ele subsistir um pouco é estar procurando um lado onde tudo parece compacto para ele entender. O paranóico diz: “Sou Napoleão. Só existo eu. O resto que se submeta a meu núcleo”. O esquizofrênico diz: “Só existe o que está aí, porque aqui não há nada”. Terrível! *
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Estou fazendo a suposição de que, no momento de instalação do sujeito, existem apenas quatro possibilidades – excluindo-se naturalmente a suspensão, que é a perversão propriamente dita. Aliás, quero supor que se pode apontar mesmo no perverso propriamente dito uma possibilidade de instalação subjetiva, suspensa pela referência a um certo objeto. Aí é que certas pessoas não conseguem distinguir a psicose da perversão, e talvez possamos fazê-lo, mas fica para outra vez... Na instalação do sujeito, então, no acidente lógico em que cai na posição de falante, só há quatro saídas: ou ele é homem, ou mulher, ou paranóico, ou esquizofrênico. Porque: ou bem houve instalação do Nome do Pai e, dentro dessa instalação, ele se instalou necessariamente de lado de H ou de H’; ou bem não houve, e houve foraclusão, e ele caiu dentro de PN ou de SF. Esta é a proposta que aqui está em jogo. A se pensar. De lambuja, há o perverso, o qual ainda suponho que seja homem ou mulher. É outra formação. Isto me parece importante porque situa as coisas lá no começo da instalação do falante, ao mesmo tempo que permite, através de matemas, repensar a nosografia. As neuroses estão certamente no esquema da esquerda. Elas estão nos equívocos e nas arrumações dos equívocos entre ser homem ou mulher: a histérica,
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o obsessivo, a fobia, etc. Os lugares que o sujeito tem para se instalar de começo são esses. Falou, ou é homem ou é mulher. Ou nada tem a ver com o ser homem ou mulher – é paranóico ou esquizofrênico. Será isto? O anjo, por exemplo, tinha-se alguma certeza de que era mulher de Deus. Esta certeza não é da ordem da certeza mística, que é um voto. É alguma coisa que se instalava corporalmente nele, direto. Diante de Deus, ninguém é macho, todo mundo é feminino... Não encontramos em toda literatura um Deus que seja feminino para quem o aborde. Pode ser no feminino puro, sempre, mas quando faço a referência divina, vou de certo modo instalar uma função paterna ali dentro e me feminizar diante desse Deus. Ele feminiza tudo o que toca, homens e mulheres. Até na mitologia grega é assim: Zeus transava com todo mundo... como homem. O paranóico é aquele que não pode hesitar, porque o indecidível o joga imediatamente naquele núcleo que é compacto – bateu, valeu! A série não se equivoca, ela segue concretamente seu curso. Quanto ao esquizofrênico, é: bateu, não valeu! É o abismo, um embate do lado de fora. Bateu, é isso. concretamente! É como se realizasse tudo. Daí a questão da alucinação, etc. Não é simbolizável, tudo se realiza. A psicose não hesita – aliás, nas suas articulações, também, o neurótico não hesita, ele sintomatiza logo. Eu não diria que seja uma certeza. É uma compulsão. Esbarrou na cadeia, ele segue – segue a cadeia. Ou, senão, inclui a cadeia sintomaticamente... Quer me parecer que, como avesso das fórmulas quânticas, Lacan deixou em suspensão uma formulação possível da psicose. Quanto mais leio o texto Do Tratamento da Psicose, encontro coisas que podem garantir isto. Mas veremos. Tudo isso é para fazer a distinção entre a loucura do ser falante e a psicose – para acabar com esse romantismo besta que quer colocar o psicótico como a grande verdade. Tenho mesmo que conceber que, se o esquema da esquizofrenia é este que apresentei, poderia dizer que onticamente somos esquizofrênicos. Começa-se, pois, por esse buraco que lá coloquei, mas ali vai se instalar alguma coisa para poder dar conta. Ficar nesse buraco, é sem saída. Mesmo
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reconhecendo que onticamente a esquizofrenia nos determina, nos embasa, ficar nela não é nada que interesse ao falante. É preciso ficar claro, então, que a função paterna é que vem entrar para mitigar o caso. Mitigar significando apenas jogar o sujeito numa posição dentro da qual ele poderá transar como sujeito falante. A psicose vai destransar tudo... E não criar nenhum paraíso psicótico. Reconhecer que, “acidentalmente”, alguns caem na psicose é diferente de lançar mão disso e fazer um projeto de psicotização do mundo. A meu ver, o sujeito não passa de neurótico a psicótico. Pode ficar parecido, mas não cai lá. Agora, nosso caminho de neuróticos “terapêuticos” é tentar tirar o que se passa no esquema da direita para o da esquerda. Talvez porque eles incomodem... Quando se fala em cura de psicótico, seria essa nossa ocupação mental de tentar trazer de lá para cá. Talvez seja possível, não sei. Não podemos confundir a aparência antes do surto do psicótico com ele estar ali. Pessoas que parecem estar no campo do subjetivo, de repente entram em surto, se tornam psicóticos. Não acredito muito que ninguém se torne, o sujeito é psicótico. De repente, pinta com todas as letras a psicose. Até então, ele estava esteado numa formação delirante ou esquizofrênica, que era garantida pelo discurso ao redor. Falhou, caiu no surto. O que falhou? A aparência mesmo Esse psicótico de quem eu estava falando, certamente sempre foi psicótico... Só que, um dia, ele se depara com a função paterna – que, no caso, lhe tinha sido adscrita – de uma maneira inconcebível: ele teria sido pai de uma criança jogada no lixo quando nasceu. Ele entra em surto. Vem à tona ali o núcleo e vai progredindo. Ao deparar-se – como Lacan diz das pessoas quando entram na cadeia psicótica –, ao topar-se com um pai, não tem onde se inscrever. As aparências vão segurando, principalmente porque os outros insistem em que ele não é psicótico e vão levando como se não fosse. Mas, de repente, ele tropeça na falta mesmo, precisa dela, não encontra nenhuma referência, cai no abismo... Ele pode nunca tropeçar e ficar sempre parecendo isso. O
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caso de um Hitler, por exemplo. Tudo garantia a manutenção de sua glória porque tudo se paralisava para ele não cair em surto. O surto estava lá fora... A função paterna, segundo Lacan, é simplesmente a Lei, a Lei de haver significante. Ausência da função paterna dá no esquema da direita. Ao deparar-se, então, com presença e ausência, uma coisa se erige como presença não tendo sido inscrita como simbolizável. Pinta uma espécie de Bejahung que não tem onde se estear porque não foi simbolizável e desvaria. Se não marcou a função paterna aquilo se erige e come o cara, ou faz um buraco nele. A função paterna aponta para um horizonte de não-saber, de angústia do falante, de derrelição. É um engano pensar que o psicótico está em derrelição. A situação angustiante não pinta para ele. Talvez pinte no momento de entrada no surto... É como se fosse uma angústia que não tem horizonte, então, ele desaba e cai no abismo. A gente fica angustiado, dá uma volta, faz de conta, se vira... Toda angústia é de castração: é o que lá não está funcionando. O psicótico até diz que está angustiado, mas não está. Ele não está conseguindo chupar o que está do lado de fora, ou não está conseguindo percorrer o concreto que está lá fora. Não é uma angústia, é uma falta de pé, é uma coisa bem mais estranha... *
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A distinção que me interessa é a que diz respeito ao respeito ou desrespeito que se tem para com essa loucura dos seres superiores, como diz Lacan. É preciso pegar esses sujeitos e reestudar o que ali acontece. Acho abuso chamar Nietzsche, Artaud, Van Gogh de psicóticos. Psicótico não faz aquilo. Pode fazer museu da Dra. Nise mas, aquilo, não faz, pois é função paterna em exercício, e rigorosíssimo. Não é nenhum araque. A obra de arte nada tem a ver com a psicose e, sim, com o espelho, corte, função paterna, posição subjetiva de cada um. Agora, lambuzar os delírios, os sonhos, etc., tem a ver com qualquer um, até com psicóticos...
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O que acontece, o que faz com que esses sujeitos nos dêem a impressão de psicóticos? Certamente a nossa burrice... Mas algo tem lá que nos dá essa aparência. Estudem os poetas, os artistas e os místicos. Façam isto e verão que há diferença... Tenho aqui comigo o livro Extases Féminines de Jean-Noël Vuarnet. Não tem nada de novo, mas é interessante porque faz uma espécie de compilação. Vê-se que o autor estudou Lacan, um pouco pelo menos. Ele pega os místicos mais importantes, sobretudo, do fim da Idade Média até o Racionalismo do séc. XVII, quando a Igreja permitia que existissem místicos de verdade... Ele cita literalmente o Seminário 20, Encore, de Lacan. Como sabemos, na capa está a Santa Tereza, de Bernini. Lacan diz aí como a função feminina ou, pelo menos, a heterossexualidade de o homem avançar para o feminino, se levada muito longe, pode parecer do nível da psicose. “Levada muito longe” porque tem gente que vai lá perto... Lacan disse, também, que uma psicanálise levada muito longe acabaria na psicose. Como ele não nos apresentou essa distinção com toda nitidez, eu diria, agora, que não acaba em psicose nenhuma e, sim, numa coisa parecida com a psicose que é uma certa exacerbação da relação ao furo, uma exacerbação do discurso feminino. Toda vez que se é mulher extremamente, fica muito parecido com o louco. Por isso as mulheres são mulheres, mas não-todas. Jacques-Alain Miller escreveu um texto falando de Lacan, o mestre; de Lacan, a histérica; de Lacan, o analista; e de Lacan, o educador – fazendo o elogio desses Lacans. Quero colocar algo que é evidente em Lacan, que não está nesses quatro discursos. Lacan, o Secretário. Lacan foi secretário, por isso ele trabalhava, produzia tanto. Secretário é um trabalho muito pesado. Lacan era secretário de quem? Da Outra. A palavra secretário tem algo de secreto, privado. Então na sua privação com a Outra, encarregado, porque caiu nessa de ser secretário Dela, ele ficava testemunhando. Ou seja, ele é um mártir. Ele ficava lá, testemunhando a Outra gozar, redigindo e secretariando esse gozo. Passou
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a vida secretariando a Outra e sendo testemunho do seu gozo. Daí essa produção, esse lixo, esse arquivo imenso, essa excreção, essa secreção que produziu como secretário. O secretário goza enquanto mártir, enquanto testemunho do gozo-doOutro. É exatamente o nome que se dava àqueles que eram os secretários das místicas. Não são todas as místicas que exaravam diretamente os seus depoimentos. A maioria, se não todas, embora exarassem de próprio punho, tinham a referência masculina – o que já é uma prova de que não eram psicóticas. Elas punham um homem ali – x x – para poderem ficar maluquinhas aqui – x x. As mulheres são assim. Elas podem fazer o diabo, mas têm que ter um homem ali marcando, com certa elasticidade, uma cordinha para saberem que não vão se afogar. Essas místicas tinham um secretário. Elas tinham suas visões e seus gozos místicos, e o secretário estava lá. A maioria das obras escritas dessas mulheres é escrita pela testemunha do seu gozo. Elas entravam no êxtase e transmitiam o que estavam passando durante o êxtase ou, preferencialmente, depois. A maioria delas diz que o êxtase corta a palavra. Raramente algumas se extasiaram falando. Na verdade, devíamos falar a Outra e não o Outro, pois que é o feminino por excelência. Podemos dizer, por exemplo, as frases, os ditos de Lacan, de outro modo: “o inconsciente é o discurso da Outra”, ou então, “o inconsciente é estruturado como uma alíngua” ... O fundamento da psicanálise é ético, mas o fundamento dessa ética, como dizia Guimarães Rosa, está no “rabo da palavra”. O que é esse êxtase feminino, esse êxtase místico? O século XVII se apoderou do Falo racionalista e, mesmo dentro da Igreja, se virou para calar os gozos místicos, regrando o que poderia ser ou não religioso. Mas essas mulheres, mesmo quando às vezes têm pênis, como São João da Cruz por exemplo... Aliás, o autor de que estamos falando comete certos erros graves. Ele coloca Angelus Silesius e Mestre Eckhart nesse caso, mas trata-se aí de um discurso de mestria sobre o êxtase e, não, de um êxtase.
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Há também aquela coisa espantosa de esse êxtase levar a um embalsamamento espontâneo do corpo. Pelo menos é o que dizem. Quando abriram o caixão de Santa Tereza, o corpo estava lá inteirinho, e exalava perfume... de rosas. Não deixo de acreditar nisso porque já vi sintoma histérico que exala podre... E o sabor necrófilo das pessoas que vieram em torno dela, arrancando um dedinho, um tirou o coração, outro a mão, levou pra casa – e aquela coisa não apodrece... Essas santas que se espalharam de tal modo pelo Outro, que ficaram com todas as doenças, apodreceram em tudo que é lugar, exalavam podre a quilômetros e, depois, aquele podre foi virando cheiro de perfume... É preciso acompanhar esses casos de artistas, poetas e místicos para verificar como, mesmo sob a instância paterna, sob a referência de algum modo ao Falo, esses sujeitos se encaminham por veredas tão parecidas com a psicose, os delírios, etc. A tese feminista, por exemplo, acaba com o reconhecimento das mulheres: elas têm que ter igualdade com os homens, ou seja, serem homens reconhecidos. A diferença, o reconhecimento da via mística, da via poética, etc., não é o fundamento dessa tese. Teríamos, por outro lado, que fazer uma série de distinções para conseguir diferençar o êxtase, o extático, do que é uma possessão, que era também muito comum na Idade Média e hoje ainda o é entre nós: as possessões do Candomblé, etc. Na Idade Média, através de exorcismos, etc., essa distinção era feita e se reconhecia que a possessão era da ordem do diabólico, e o êxtase da ordem do divino. Estou de acordo. A possessão é da ordem do diabólico, ou seja, da ordem do desejo. O inferno é o desejo, o diabo é o desejo, um desejo coalescido com determinado tipo de demanda, de pedido. O declínio do êxtase começa com o século XVII e, hoje, está completamente desmoralizado. Psiquiatrizou-se o êxtase: deve ser histérico, psicótico, etc. As mulheres não existem mais. O feminino está calado. No máximo – está aí o João Paulo que não me deixa mentir –, a Igreja reconhece o Outro numa espécie de transação social: o irmão, a caridade, etc. O êxtase
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particular, numa relação direta com a divindade, com a Alteridade, não interessa. Por isso Lacan disse que o marxismo só vence se se tornar cristão. O êxtase e a possessão não são, também, da mesma ordem do culto da Virgem Maria, que foi uma troca muito marota que a Igreja fez e que a prática instalou definitivamente desde o século XVII. A Virgem Maria é filha do racionalismo, embora tenha nascido na metade do século XIII, depois do amor cortês. É uma transação anti-movimento inconsciente. Afinal de contas, é uma boneca. No Brasil foi tipicamente objeto a, achado, uma boneca mesmo. Quanto às resultantes mais atuais, mais próximas do que seria a vocação extática, encontramos os aparecimentos da Virgem – de Salete, de Lourdes, etc. – para crianças tolas. Há beocidade diante da aparição de um objeto que fica como que sublimado, e não um confronto virulento, violento mesmo, com o dizer do Outro. A Virgem Maria nunca disse nada. A única coisa que ela disse foi: “Magnificat, etc.,” que está no começo da estorinha. *
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Tentarei abordar um pouco essa questão mulheral, que está colocada no quadrinho de Lacan, na parte de baixo da coluna da esquerda de nosso esquema. O sujeito em função fantasística do Outro, como não havendo A Mulher, não existindo como universal na sua relação com o Falo, na sua relação ao furo, dividido entre essas duas referências: ao Falo e ao furo, as duas referências ficando meio prejudicadas. Quando falo em levar muito longe sua relação com o furo é, justamente, impregnar-se tanto na sua relação ao furo que se deixa a relação ao Falo meio de lado. Isto é que parece loucura. É uma espécie de abandono, desinteresse pelo lado fálico e um grande incentivo ao lado furo. Isto parece psicose, pois o furo é um abismo. Mas elas têm a referência ao Senhor e o seu amor por Ele demarcando uma certa limitação e, portanto, não as deixando cair em tentação, inclusive do lado fálico, abolindo de certo modo o desejo. Isto é que é a santidade.
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Lacan já disse que o único remédio contra o capitalismo é a santidade, mas a gente não tem culhão feminino para ir lá. Gostaria de ressaltar as correspondências com o quadro da direita. Temos a paranóia e a esquizofrenia. Não há relação entre as duas, mas é como se o paranóico quisesse açambarcar o Outro, ao passo que o esquizofrênico dá a volta e, a partir de um Outro, que para ele não existe mas é compacto, quisesse situar-se um si. Voltando, então, ao quadro de Lacan, o da esquerda, estou interessado na relação ao Outro. Estamos aqui, dando uma cortada polética no romantismo psiquiátrico e na porralouquice feminista. As mulheres, segundo esse esqueminha de Lacan, estão partidas na sua referência ao Falo e ao furo. Naturalmente, o Falo tem um índice S1 qualquer, nem que seja o secretário... E é aí nessa participação entre o Falo e furo que as mulheres – embora não sejam homens, os quais se qualificam por sua função desejo estrita – caem, também, ainda que de modo precário, na função desejo. Eu diria mesmo que o estritamente masculino difere do estritamente feminino porque as mulheres vivem no regime dos contos de fadas e os homens vivem no regime dos contos de fodas. A tal competição masculina, da homossexualidade, está o tempo todo em torno de quantas vezes se gozou, de quantas se conseguiu dar na vida. As mulheres fazem contos de fadas, mas mesmo os contos de fadas das mulheres têm certa nuance.
A possessão que os teólogos queriam exorcizar, eles tinham razão em querer fazê-lo, porque reconheciam como sendo uma intenção diabólica. Ou seja, tem a ver com a mulher mesmo transando por via do Outro. Ela incorpora o Outro, ela está transando no nível do desejo. É uma espécie de incorporação
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de outra alma, digamos assim. Quer dizer, ser cavalo de ApoIo, ou ser cavalo de Oxumaré dá na mesma. A possuída tenta realizar o desejo, porque do lado de H é onde está o desejo, a referência. Está me ocorrendo aqui, quanto à possessão, que a invocação do espírito da Umbanda é por via de mestria, uma mestria que regula e normativiza as relações com o Outro. Podemos dizer que a Umbanda está para o Candomblé, assim como a Universidade está para o poeta, em níveis diferentes. Do outro lado – H’ – está o amor, no sentido de amor divino, distinto do amor-paixão, que é uma espécie de confusão entre a relação ao Outro e a relação ao Falo. Amor divino é aquele que Lacan diz que é dom ativo. Gosto de chamá-lo de HP, ágape. Aquelas mulheres são possuídas pelo demônio, daimon, uma espécie de alma, é um tipo de êxtase inverso. Digo isto porque os homens nunca são possuídos. Não acredito em possessão masculina. É preciso uma certa queda para o lado feminino para haver possessão. Isto porque ela se dá pela tentativa de realizar o desejo por via de furo. Em vez de a postura ser diretamente masculina, de colocar o desejo e provocar o seu conto de fodas, ela coloca o desejo e dribla pelos encaminhamentos do Outro. Ela põe o desejo diretamente como o desejo do Outro, incorpora uma alma externa e fica possuída. A possessão, por mais feminina que seja, é a vertente fálica, embora precária, do lado feminino. Já na extática, que é a mística, sempre há uma referência masculina, um secretário. No misticismo cristão se fala de tornar-se a esposa mística de Cristo. Trata-se de uma postura em que há necessidade de tornar-se marcada por algum significante masculino, o qual é, em última instância, o Nome do Pai. É a referência que está lá. Ela suspende a função paterna quando diz não ao não da castração, mas não a abole. Sem essa referência, ela se perde. Ela vai, então, produzir os esponsórios místicos com o Pai. Quer dizer, é a produção do incesto com o Pai, suspendendo a castração, mas não a abolindo. É transgressão radical. O modo como a possuída lida com a participação é de estar furada por um lado, mas insistir, por via de captação do que vem do Outro, no gozo-fálico. Ela vai dizer coisas que dizem respeito diretamente aos desejos que pintam
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diante dela. Ela trabalha com os desejos. Ninguém vai a um pai-de-santo para se tornar um sujeito. Vai-se lá para demandar respostas aos seus “desejos”. A possessão não deixa de ser um modo de produção histérica – que não é o modo da extática, a qual não é histérica nem psicótica. Claro que encontramos momentos histéricos aí, mas a essencialização não é histérica. A extática não é possuída pelo desejo, ela fala na sua relação com o Outro. Nem o desejo a interessa. Nos textos de Santa Tereza, e de todos os outros, encontramos patente a desconfiança para com o desejo. Ela fica até se perguntando se isso não é coisa do demônio. Encontramos mesmo vários que partiram de uma posição praticamente histérica e vão fazendo a subida, a ascese. Não é aquela coisa boba, repentina. É um trabalho de elaboração que vai dissolvendo e deixando só o furo à mostra. Santa Tereza é muito especial. Acho que Lacan tem certa queda por ela, justamente porque tem muito a ver com o processo analítico. É um negócio lento, desmanchando devagar e procurando uma ascese. A meu ver, a psicanálise também é uma ascese. A extática tenta a realização do amor divino por via do furo, da alteração – isso é ascese. Vocês, talvez, tenham achado espantoso eu ter colocado a ninfômana do lado direito. Sempre pensamos que a ninfomaníaca quer comer todos os homens, quando ela só quer comer um... Só que ela não agüenta. No seu Satiricon, Fellini mostra uma ninfomaníaca amarrada, e o marido chamando as pessoas – porque ele não pode dar conta. Ele chama os que passam... para sempre serem o mesmo homem. Não há outro. A ninfomaníaca simplesmente tem que estar constantemente naquela referência fálica, mesmo que não goze, para subsistir. Por que a coloco do lado direito? Não estou dizendo que ela tenha a ver com o êxtase e, sim, que do mesmo modo como a possuída é uma espécie de esposa de pacto com o demônio, a mística não faz pacto. Ela faz contrato com Deus. É o termo que elas usam – um contrato. Temos, então, todo um conjunto de leis funcionando aí. A possuída faz um pacto: “Você garante o meu desejo e eu te dou isto”. A mística faz um contrato que tem algo a ver com a via de ascensão. A ninfômana não é esposa mística, nem esposa do diabo, ela
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é a esposa em geral, porque, se me permitem o português claro, é a esposa do caralho. Tendo a rolha, tudo bem, é sempre a mesma! Ela faz a tentativa – e a coloco deste lado por isto – cruzada de realizar o amor divino, de que ela suspeita, por via fálica. Aí é que está seu engano. É o contrário da possuída que tenta realizar o amor fálico por via do desejo, do desejo do Outro. A ninfômana tenta realizar o amor divino, mas não entendeu nada, e pensa que esse amor divino é por via fálica... Coloquei do lado esquerdo aquela que chamo a princesa. É a do conto de fadas, a esposa fiel o tempo todo, mesmo que corneie o marido. Seu regime de referência é o prometido. É o “casaram-se e foram felizes para sempre”, o encontro de alguém que suporta a posição fálica. É a referência masculina para ela e ponto! Não precisa pensar mais, mesmo que o sujeito acabe, morra, que ela transe com outro, ou que nunca chegue a casar com ele. Não tem importância, aquela é a referência fidelíssima na sua cabeça. Uma espécie de monomania, onde existe um príncipe encantado que lhe dá a sua marca. É quando ela consegue realizar o desejo por via fálica. Quer dizer, ela se masculiniza muito. A princesa, Fernando Pessoa o disse com todas as letras, é o cara botar a mão na cabeça e era a própria princesa – referência fálica: a bela adormecida. É uma espécie de não querer saber do furo: encontro o príncipe encantado, me homossexualizo ali, não vou deslizar, aquela referência me segura, e ponto! É o ideal da burguesia. *
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O que é espantoso, ao nível polético, que é o que interessa aqui, é que, do século XVII para cá, o mundo foi sendo tomado por um discurso reducionista à função masculina, se não – porque há masculino e masculino heterossexual – à homossexualidade radical que, no fundo, é um sistema obsessivo ou paranóico, onde se cala definitivamente a diferença, até nas frases, nas falas das ditas mulheres.
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Nosso campo de trabalho é ingrato porque os outros discursos estão contra nós. Ao tentar fazer pintar essa diferença, quando falamos veementemente, se diz logo: “é um fascista”, porque se falou veementemente. Fazer pintar essa diferença é o de que se trata no campo psicanalítico. A intervenção que podemos fazer no campo do chamado social é esta. Isto é árduo e frustrante porque não se está a fim de ouvir isto. Além do mais, os outros discursos gratificam muito bem. Mas pagam bem para o sujeito desistir, não para insistir. A pressão vem de todos os lados, inclusive de pessoas que se dizem do campo psicanalítico. Há um ferrenho massacre da diferença, como, por exemplo, é o caso da sussexologia que já tomou a televisão como papo “psicanalítico”. É o caso também de certa postura dita psicanalítica adotada por alguns na entrevista que tivemos na TVE, a que já me referi aqui. Trata-se pura e simplesmente de uma redução da psicanálise ao sociologismo. E as pessoas querem acreditar, porque está na moda um certo sociologismo de esquerda, que aquilo que é psicanálise... Essa redução é tentativa de regulação do campo do Outro por vias de mestria, ou do discurso do universitário, ou do discurso científico. Por outro lado, vemos outro tipo de ataque “sexológico” onde os falantes são todos iguais. Uma nova espécie de determinação da normalidade do comportamento sexual.
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VAE VICTS Retomaremos aquelas fórmulas que foram mais ou menos abordadas na sessão passada para fazermos novas implicações, para situarmos pontualmente algumas pequenas correlações desses lugares nessa topologia. Se nosso percurso for válido, teremos, então, fundamentalmente, quatro matrizes básicas: masculino, feminino, paranóia e esquizofrenia. Do ponto de vista do que pensou a psicanálise, especialmente com Lacan, a estrutura é uma só e se chama: Real, Simbólico e Imaginário – com o surgimento do Sintoma situando estes três registros para atacar cada sujeito. Momento em que, como quero supor, sobre essa estrutura – a qual, em última instância, emerge da pura e simples existência do furo – se fundam as matrizes primeiras, fundamentais, que incluem, já, uma certa conformidade sintomática. São instalações eventuais do sujeito em quatro posições fundamentais. Eu diria mesmo, já que estamos falando de Psicanálise & Polética, que são quatro partidos. O mundo contemporâneo está perdido em dezenas, senão centenas, de psicoterapias e coisas parecidas, que vão da religião à prática sexual de grupo, espalhadas por aí. Isto significa que há uma demanda crescente e esfarinhada de uma re-situação de sujeitos quanto a sua posição de falante e as tentativas de segurar isto. Há todo tipo de charlatanismo, de embuste, até dentro do campo dito psicanalítico – há psicanálise para cachorros nos Estados Unidos –, assim como também todo tipo de iniciação: macumba, candomblé – um leque imenso.
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Há, por exemplo, uma coisa que considero muito perigosa: o romantismo psiquiátrico, que pegou até nos Estados Unidos, depois da anti-psiquiatria, de Michel Foucault, etc. – talvez lendo mal esses autores –, que é a colocação do psicótico no pedestal. Acho, pois, e isto politicamente, importante tentar rigorosamente uma distinção de tudo isso para com o que falei da vez anterior quanto àquelas matrizes. *
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Terminei, então, na questão que chamei de pseudo-psicose: essa aparência de psicose em sujeitos que simplesmente não estão, do ponto de vista de uma matriz básica, instalados em nenhuma psicose, mas sim que tenham avançado muito longe – e talvez muito sozinhos – num processo de deslocamento da posição estritamente masculina e que, depois, talvez, de uma posição heterossexual a um avanço dentro da suspensão do Nome do Pai no feminino, eles possam ter caído numa deriva parecida com a psicose. Isto pode até ter efeitos, digamos, maléficos para esses sujeitos, mesmo não sendo uma psicose fundamentada numa matriz competente. É uma deriva levada muito longe. Isto é possível de ser pensado, pois essa pseudo-psicose costuma estancar quando existe uma intervenção limitadora, por exemplo, do que alguns historiadores apontam como sendo um apagamento, uma inibição, um declínio do extatismo, do feminino, depois de o racionalismo ter tomado conta da Europa e da Igreja, em particular. Por que houve esse declínio? Será que as mulheres ficaram menos capacitadas ao extatismo ou, simplesmente, algum cinturão as limitou de fora? Ou seja, uma referência masculina, se não uma imposição de imitação de discurso tipicamente masculino, limitou essa deriva, e pôde limitar a ponto de fazer regredir a foraclusão. Se este raciocínio é verdadeiro, é de se supor que quando a deriva vai muito longe, quando perde referenciais do discurso masculino, entra num desligamento de aparência psicótica. Quando o pseudo-psicótico se encontra sozinho e começa a perder os referenciais, é o gozo solitário por excelência.
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Costuma-se chamar de prazer solitário à masturbação do macho, mas o gozo solitário por excelência é esse gozo em relação ao Outro. Há o caso do secretário, de que falava da vez anterior. Sem pelo menos essa referência ao secretário, o pseudo-psicótico vai deslanchando, deslizando e se perdendo dos referenciais de limite, da referência a uma qualquer repetição, a qualquer insistência do Nome do Pai, nem que seja lateral. Ele suspende de tal modo o Nome do Pai que pode parecer uma foraclusão. Quando se encontra sozinho demais – como Nietzsche, Van Gogh, etc. – nada parece limitar essa deriva, e daí ele desembocar numa loucura... não-psicótica. Não foi à toa que Lacan fundou uma Escola. Ele não estava a fim de brincar de psicótico. Manteve nesse cinturão – mesmo com processos de dissolução, etc. – a certeza de que se pode passear numa loucura não-psicótica sem fazer a experiência de um Artaud – o que ele, aliás, num Seminário, desaconselha a todos – de isolar-se de tal modo na sua tentativa de relação com o Outro, de referenciar-se ao gozo-do-Outro, que desemboca numa coisa de aparência de sofrimento semelhante ao da psicose. O que é, de certo modo, estabelecer uma distinção entre a foraclusão prévia a qualquer manejo do simbólico e um deslizamento com extrema suspensão do Nome do Pai – donde é possível algum tipo de retorno, certamente. É claro que aqueles sujeitos foram abordados como psicóticos comuns pelas entidades psiquiátricas de sua época – o caso de Van Gogh, por exemplo –, e não por um esteio qualquer na região do Outro, enquanto instalada no social, digamos assim, a qual, com um mínimo de reconhecimento, suspenderia o exacerbamento de suas loucuras não-psicóticas. Não podemos esquecer – se há algum social válido nesse assunto – a recusa peremptória por estupidez específica do grupo social em aceitar pura e simplesmente, ainda que com estranheza, os manejos daqueles sujeitos. É uma recusa tão grande a reconhecer o deslizamento pelo campo do Outro naqueles sujeitos que eles se sentem isolados, tão sem referências externas, e avançam intrepidamente por esses deslizamentos. Isso foi comum em certas épocas e talvez o seja menos hoje. Temos talvez menos casos de artistas – não estou me referindo a psicóticos que são
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tratados como artistas – que tenham ido tão longe... Isto porque, depois do impacto de certos grandes artistas do passado, houve uma espécie de – “tudo bem, é um direito do artista, ele pode fazer isso” – certo “reconhecimento” que o situa de algum modo em relação a um Outro social e, portanto, demarcado masculinamente. A biografia de Van Gogh, por exemplo, diz que, nos hospitais, ele tinha períodos de “norma1idade” em que voltava a produzir. Temos que admitir que ele ia tão longe que, por assim dizer, saia do quadro. Aliás, as mulheres extáticas, a que já me referi, dão depoimento de que, no ápice do êxtase, não podem nem falar. Freqüentemente o depoimento é dado depois de um êxtase. Então, no seu ápice, um Van Gogh, por exemplo, não pode pintar, a suspensão foi longe demais. Não pude acompanhar o cara, pois não estava presente para saber que entradas e saídas significantes lhe davam certo retorno, mas quero dizer que não posso conceber psicose num sujeito desses. Não é um mero psicótico borrador de telas para algum Museu do Inconsciente. Ele tem todo um percurso e com solidez. Teríamos aí então o partido das psicoses e, se esse pseudo-psicótico não consegue ter poder aí nesse partido, ele é envolvido diretamente com o psicótico. No entanto existem sujeitos não-psicóticos que tomam esse partido, e se estabelecem no seio da sociedade... Seguindo aquela via, apenas passando de raspão hoje, o que seria então uma neurose? Eu disse que só há quatro partidos, e se não aparece aí nenhum partido de neurótico é porque, certamente, a neurose é uma sublegenda, com todos os casuísmos. Posso supor, juntamente com vários autores, que toda neurose é essencialmente fóbica, que seu estofo é a fobia. E a partir do núcleo fóbico que existe em toda neurose, poderíamos distinguir estas duas matrizes fundamentais: histeria e obsessiva. Já a perversão é uma outra sublegenda de alguma coisa. O que poderíamos considerar como sendo a neurose, se supusermos que seu estofo é a fobia? Isto é a mesma coisa que dizer que toda neura é, antes de mais nada, uma fobose. Não estou fazendo um Seminário sobre a
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fobia, estou abrindo questões... O que estou chamando de núcleo fóbico de qualquer neurose é o recalque, que traduzo agora pelo termo repelão. Não gosto da palavra recalque porque dá a impressão de que há uma coisa para dentro ou para baixo que você empurra. Em francês, por exemplo, refoulement, é um chega pra lá, uma repelência, um repelimento qualquer. O núcleo da fobia, certamente, é que se repele uma certa matriz. Talvez achem isto estranho se considerarem o Seminário de Lacan sobre a Relação de Objeto, onde todo o caso Hans, do furo, da castração, está representado de certo modo em relação com o objeto, etc. Essa matriz a que estou me referindo é um desses quatro: masculino, feminino, paranóia e esquizofrenia. Em não se tratando de psicose, só posso pensá-la do lado da matriz masculina ou feminina; e uma dessas matrizes é repelida nuclearmente. Como estamos cansados de saber, o que está em jogo numa neurose é o deparar-se com a castração, que é denegada. Se, por um lado, no discurso, o homem é situado enquanto castração, é na medida em que existe pelo menos um que garante o seu para-todo. Esta é a estrutura do masculino. Por isso Lacan diz que um homem é posturado quoad castratione, enquanto castração. Isto, entretanto, na medida em que a castração vige para ele no horizonte como pura ameaça diante da qual ele está o tempo todo controlando o seu universal – o que não significa que ele tenha assumido a castração. Diferentemente, no discurso feminino, não é a castração que está como definidora da matriz e, sim, a suspensão possível do Nome do Pai – suspensão, não é foraclusão. Na medida em que a castração não é considerada, ela não é algo que esteja morando no horizonte como ameaça, mas, sim, algo como que acontecido. É como se, no fundo, o feminino pudesse, pelo menos, dizer não à instância paterna, na medida em que pode dizer: “Não tenho nada a perder”. Tenho então que situar uma castração autenticada para o sujeito, se não na postura feminina, pelo menos no reconhecimento do feminino. Lacan diz que, se é a castração que está em jogo numa análise, é do reconhecimento da diferença e, portanto e sobretudo, da referência do Outro, do feminino enquanto Outro radical, que depende a assunção da castração. Embora a castração
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defina o homem, é a sua heterossexualidade, no sentido que coloco, que define a sua assunção da castração. Não se pode ser o Outro. Pode-se fazer uma metáfora qualquer de reconhecimento do Outro. No caso que fundamenta a neurose, se estou certo em dizer que a fobia é seu núcleo, a fobia é fobia do quê? De uma certa matriz que exibe a castração. Portanto, é a fobia do feminino. Toda neurose é fobia do feminino. Quer dizer, repelão numa certa matriz, porque ela incomoda por expor a castração. Posso facilmente, mediante esse percurso, deslocar, por exemplo, a homossexualidade, essa de que falam por aí, a suposta homossexualidade masculina, como exclusiva de qualquer outra postura sexual, para o lado da fobia, e não da perversão. Isto me parece muito nítido. O tal homossexual exclusivo masculino, no jargão comum, não é senão fóbico, assim como o macho não deixa de ser fóbico também. Eles se merecem reciprocamente, têm medo de buceta, é este o nome... Existe muita diferença entre a fobia e o terror constante. Essa matriz que é repelida, recalcada, eventualmente se objetifica mediante uma imaginarização na forma de um objeto, de uma situação. Não vejo por que a genitália feminina não possa se objetificar como esse objeto fóbico. É uma situação que podemos dizer de agorafobia, claustrofobia, etc., de constituição imaginária de um objeto fóbico... O fóbico tem medo, pânico, efeitos sintomáticos graves, etc., mas não é a vivência do terror do psicótico. Estou tentando distinguir estas coisas, e mesmo usando essas palavras que poderiam ser outras. Terror é essa queda: lá na objetificação do Outro só há um buraco. Terrorismo é esse do furo do lado de lá, como no esquizofrênico, ou é o terror de sentir qualquer abertura do lado de fora e ter que se resumir na sua pregnância, como no paranóico. É esse o terrorismo do psicótico, para com ele mesmo e para com tudo. O fóbico não é isso. Ele entra em crise e tem que ter um ataque – ele sintomatiza o medo. Encontramos, então, fóbicos típicos: sujeitos que organizam a sua fobia em torno da eventual objetificação dessa matriz repelida. Pode ser a transformação numa histeria, numa neurose obsessiva, mas pode simplesmente
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objetivar essa matriz recalcada. Isto nada tem a ver com fetichismo. Todos os autores, aliás, estão de acordo que o fetichismo não é o avesso da fobia, pois não pertence ao mesmo registro. É uma objetificação de uma matriz repelida, eventual em certos casos. É o que se diz do fóbico propriamente dito. Mas a histérica é fóbica, o obsessivo é fóbico, só que em vez de objetificar, temos aí toda uma trama segurando contra a matriz repelida, a qual ressurge. Como, aliás, também a fobia. No fim é a mesma coisa. É uma questão de composição de objeto – e por que não dizer que a histérica compõe um objeto complexo? –, mas é um objeto. É uma situação, uma configuração. Estou, então, propondo a fobia como sendo a essencialidade da neurose. Neurose e fobia seriam a mesma coisa, neste caso. Mesmo no caso da eventual objetificação na fobia propriamente dita, o ressurgimento dessa matriz que foi repelida funciona como retorno do repelido: o retorno do recalcado, com a ameaça de fazer comparecer e funcionar a matriz que está recalcada. Está lá no Joãozinho, no Seminário de Lacan sobre ele. A conseqüência sine qua non da fobia, e da neurose em geral, é viver-se em denegação e erigir-se a denegação em principio de relação. O relacionamento com o repelido é sempre de denegação. É preciso pintar uma situação em que o objeto ameace, pois quando não está me ameaçando, não sou fóbico, só o sou sob ameaça. A matriz fóbica está nesta ameaça. Eu diria que não se encontra uma fobia pura e, sim, obsessiva e histérica que possam ter como recalcamento certa fobia que pinta. Na verdade, as sublegendas são: histérica e obsessiva, porque são fobias... E, de vez em quando, pinta uma fobia para valer. Se, então, como já disse, no horizonte do masculino está a castração – mas como horizonte, como promessa ou ameaça de castração, o que situa o universal do masculino –, é no campo do feminino que essa castração pode ser suspensa, não como alguma coisa que não irá acontecer, mas como alguma coisa que teria acontecido. Pelo menos parcialmente, as mulheres não têm nada a perder porque, no seu acidente, já perderam. Então, “não vem, porque tem”, é a frase de Betty Milan, que é um lídimo representante desse troço. Ou
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seja: “Não vou perder nada, não vou ser castrada. Você é que tem medo de minha existência” – diz a mulher. É aquela história que falei sobre Viridiana: “Se me encher o saco, levanto a saia e mostro... E você vai tomar um susto”. Quer dizer: há furo. *
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A articulação que consigo fazer sobre a histeria, segundo estas matrizes, é a de que ela só se diz com base no feminino. Por isso digo a histérica, pois ela, seja fêmea ou macha, é acossada sintomaticamente pela matriz feminina que, aliás, ela denega. A histérica, então, se incluiria diretamente ou, pelo menos, facilmente, nessa matriz feminina, a qual ela repele, pois não a quer aceitar. Ela não deixa de ter S1 por isso, e um S1 exacerbado, porque pretende se ancorar nele para fingir que não é mulher, para fingir que é homem. Lacan diz que “elle fait l’homme”. O que ela recalca é sua matriz feminina. Eu não diria que o que ela recalca seja o a, porque o a pode comparecer no nível do S1 para ela. Ela recalca o S(A / ), ela quer fingir uma matriz masculina por via da denegação da sua matriz feminina, que é seu objeto fóbico. A histérica é uma mulher que insiste em se inscrever no partido do homem, como, por exemplo, o movimento feminista. Quando disse que existem partidos psicóticos e não psicóticos, é porque a histeria, no fundo, imita os artifícios da esquizofrenia tentando – observem o esquema – fugir para o Outro, como a esquizofrenia faz. Ela está fugindo do furo, que não é um furo por foraclusão: é o S(A / ), que ela não quer aceitar. Ela tem que fugir desse furo para as instâncias do Outro, através de uma fuga para outrem. Vem daí essa pegajosidade da histérica com as pessoas, ou em caçar um senhor para ela... Ela imita, então, os modelos da esquizofrenia, mas não é esquizofrênica. Ela só imita esse modelo que é de cair, de estear-se no Outro, porque, do lado de cá do feminino, há lembrança, por retorno do recalcado, que é esse S(A / ), e, toda vez que há esse retorno, ela foge para lá simulando esquizofrenia.
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Existem umas histéricas tão óbvias que sabemos com quem elas estão andando cada vez que as encontramos. Quando elas falam ficamos sabendo imediatamente, porque já caíram na de outrem. É essa espécie de descentramento da histérica que parece, às vezes, esquizofrenia. Chamo atenção para este fato porque, com essa nosografia fóbica de nós outros (quando temos as nossas fobias, começamos a fazer nosografias), aplicamos diretamente sobre as pessoas por meros comportamentos acidentais ou temporários: “Fulana está psicótica, sicrana está psicótica...”. É preciso ter cuidado porque existem histerias com aparências de psicose. Elas vão muito longe e, por causa dessa imitação, se tornam cronologicamente próximas para serem confundidas com psicose... E as pessoas acabam levando o outro a se instalar numa aparência definitiva ou longa de psicose, de tanto convencê-las de psicose – isso é canalharia. *
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O obsessivo é outro caso. Ele só se diz com base no masculino. Seja macho ou fêmea, ele é acossado sintomaticamente pela matriz masculina e a reafirma. Ele não denega o feminino como a histérica. A denegação é uma conseqüência do recalque, pois não há denegação sem recalque. O obsessivo não pode senão obedecer à sua posição masculina. Assim ele não se ocupa senão da oposição das oposições, aliás, oposição que o préocupa, que o ocupa mesmo antes de ele ocupar-se dela. Trata-se sempre, e insistentemente, de estabelecer oposições. É a velha história do obsessivo: entre H e H’, perdido num emaranhado de oposições. Toda oposição, como já disse, só se garante pela imposição de um terceiro excluído: para que se possa fazer a oposição de x e não-x, é preciso que se coloque um y. Para que se tenha verde e não-verde, referente à cor, há uma cor verde que é excluída dali de dentro para poder garantir a oposição... Torna-se, então, impossível para o obsessivo estancar o processo porque, no que ele faz a oposição, vem um terceiro, sempre... É a sua dívida eterna. É
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disso que ele sofre. Para serenar-se, precisava estancar um pouco o processo, o que só se daria por totalização, se ele encontrasse Metalinguagem. Mas ele não pode estancar o processo, pois sofre incessantemente o empuxo do terceiro em exclusão. O obsessivo vai, então, empanando o sujeito e coagulando o Nome do Pai, ou seja, não vai conseguindo reter-se por referência ao faz-de-conta paterno, o que faz com que, na verdade, não consiga nem ser homem. Ele podia, de repente, dizer, “faz de conta”, e cortar o terceiro excluído, mas não consegue. Vive em dívida, em dúvida eterna entre duas oposições. Ou, podese dizer, em dúvida interna promovida pela dívida externa. É o caso dos nossos economistas no poder... Qual é a base fóbica do obsessivo? É a ameaça de castração que está no horizonte. Em vez de garantir-se na referência ao Nome do Pai, fundador do seu para-todo, há uma espécie de coagulação, pura e simplesmente. Ele reafirma a matriz masculina, que, aliás, lhe é própria, por ter reconhecido e renegado a diferença sexual. Lembrem-se de que botei a renegação na base de tudo, lá no seminário O Pato Lógico. Portanto, o obsessivo não poderia denegar tudo isso se não tivesse de algum modo reconhecido por processo de renegação. Ele teme a castração, teme ser castrado como o Outro, o que não é o caso da histérica. Ela quer tapar o furo, que nele indica a castração, imitando o Outro, que é macho, o homem. O obsessivo tenta não ver, não reconhecer a diferença sexual, porque ele ficaria com medo de ser castrado, como o Outro que ele supõe castrado. Esse reconhecimento é que o faz ser obrigado, pelo Outro, a ceder em sua masculinidade. É disso que ele tem medo. Assim como a histérica imita o esquizofrênico, o obsessivo imita o paranóico. Daí que esse estado obsessivo em que vivemos nos dá a impressão de um estado paranóico. O obsessivo imita o paranóico tentando centrar-se na sua matriz e reduzir o Outro também a ele, que é o que o paranóico faz, segundo aquele esquema da sessão anterior. O paranóico se centra na sua base S1 – postiço, com foraclusão – e tenta fechar o Outro. O obsessivo, não tendo foraclusão, tenta se centrar na
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sua matriz masculina, por medo de castração, e tenta reduzir o Outro, em sua diferença, a uma pura e simples masculinidade. O obsessivo é a homossexualidade por excelência. A homossexualidade é obsessiva. Não é a prática homossexual como chamam por aí, é essa homossexualidade que sempre cito, a homossexualidade do sistema: o não reconhecimento da diferença. Quero ainda supor que essas matrizes têm outras sublegendas. Estou tentando pincelar através dessas matrizes quais seriam as dominantes, enquanto matriciais. Essas ortografias complicadas que existem aí nos livros são simplesmente confusões conteudísticas por falta de conceber qual é a matriz que está em jogo nas nosografias e nas políticas, nas diferenças anedóticas dos casos... Cada caso é um caso, justamente por isso. O modo de entrar, o anedótico em que o sujeito entra nessas matrizes, difere de sujeito para sujeito, mas existe lá por baixo uma matriz que é constante. Então, quando tomamos os tratados de psiquiatria, de nosografia, que têm aqueles números todos, vemos que eles fazem quadros de semelhanças comportamentais dentro das matrizes. Todo ano eles têm que fazer uma reunião, porque o número aumenta. Vai chegar um dia em que vai ter um computador para estabelecer quinhentas mil matrizes, a ponto de que aí poderíamos até botar a minha, quer dizer, é mais uma. Eles estão é falando de comportamento a partir das matrizes e, não, contemplando as matrizes, por isso há essa zorra dentro da nosologia. O obsessivo faz uma promessa de pagamento de dívida, para não ser castrado -– de dívida e de dúvida, eternamente pagando. A histérica porta o furo na sua matriz e tenta tapá-lo o tempo todo, fingindo que ela é do outro lado. O obsessivo não porta o furo na sua matriz. Sabemos que todo falante é furado, daquele furo de S(A / ), como constituinte de uma matriz primeira, mas o obsessivo não está nessa e, toda vez que vê o Outro, tem medo de ficar igual. Então, ele constrói um sistema financeiro de pagamento de dívida, para manter o Outro numa satisfação que não o castre... *
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A perversão – não vou desenvolvê-la muito hoje – é um caso todo especial. Com base na renegação, trata-se de um objeto que garante a função fálica para o perverso, pois este objeto suspende tudo. Não se trata daquele objeto da fobia que veio concretizar o que foi repelido. É um desvio de olhar direto, um objeto mesmo, uma espécie de cristalização que é o feitiço por excelência. Cristalização de um objeto, uma espécie de pedra filosofal da alquimia, que constitui o lastro, uma espécie de âncora capaz de estancar e estacar a deriva do sujeito. O perverso – aquele que chamo de “propriamente dito” ou “facínora” – é, na verdade, o tal do P.P. da psiquiatria. Os psiquiatras não sabem disso e inventaram a “Personalidade Psicopática”. Eles não sabem distinguir a perversão propriamente dita da perversão sadia, legal, que é a de nós todos. Diferentemente do psicótico, tanto esquizofrênico quanto paranóico, o perverso propriamente dito pode reconhecer o Outro, a diferença, o tempo todo, mas de modo renegador, porque renegação é apenas um reconhecimento: ele suspende imediatamente a diferença logo que a reconhece, por meio, ou com o apoio, de um ponto fixo que é o seu objeto perverso. Ele ancora imediatamente e, portanto, faz a suspensão da diferença, do sujeito, inclusive a dele. Há um reconhecimento claro e uma suspensão disso em cima de um objeto (fóbico) perverso. Seria aquele ponto fixo do Universo, que Arquimedes exigia para mover todas as estrelas. O perverso propriamente dito é muito menos comum, muito mais raro do que se supõe, porque se entende mal a relação com a perversão. Há um caso na Scilicet – que estou apontando aqui pela segunda vez –, não sei qual número, que traz o fenômeno interessante de um sujeito fóbico diante de um objeto isolado, um botão, e perverso diante do mesmo objeto em série, uma série de botões. Se visse um botão sozinho, entrava em ataque fóbico, mas se visse uma pessoa qualquer com uma série de botões, como, por exemplo, uma batinha de padre, etc., ficava doidão, irresistivelmente fascinado. Acho este caso mal estudado. Ele narrava freqüentemente, com relação à série de botões, um fato sobre sua mãe, que era atriz ou coisa assim, a qual lhe pedia
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para que desabotoasse um vestido seu cheio de botõezinhos nas costas. Ele ia desabotoando e, quando chegava no final, tinha um orgasmo, gozava. Mas se visse um botão isolado, ficava fóbico. Sobretudo, se não me engano, se esse botão caia da série. Quando caia um botão da roupa, era a fobia total. Acho este caso mal situado porque a coisa tem característica de perversão comum, de fazer gozar – e aí situou-se o cara como perverso: trata-se de gozo perverso –, mas se trata de um perverso? Posso aventar, por exemplo, a hipótese de, por um lado, uma estrutura fóbica assentada na falta, na queda, no isolamento de um botão como iminência de castração. Por outro, uma transação perversa comum com a série de botões que justamente exorciza a queda do botão. Quando está em série, ela aponta para a falta na medida em que é sempre possível mais um. Na contagem dos mais um, o sujeito goza em algum ponto. É o caso do Don Juan, por exemplo, que mantém a falta em suspenso. Agora, caindo um botão ou vendo um botão isolado, isso significa que ele pode ter caído de uma série que exorciza o botão. A castração, aí, é tomada como motivação, não podemos esquecer disto. Se aquele sujeito tivesse reconhecimento da castração, não seria fóbico. A fobia do fóbico, num caso como este, é simplesmente de não entender a castração: para ele é motivação. E já que a série não apresenta motivação, ele pode simplesmente suspender a castração na série, porque ela não é mutiladora. *
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Vae Victis é uma frase dita pelo general Bruno aos romanos seus compatriotas, enquanto arrancava ouro dos gauleses que estavam pagando por sua liberdade. Ele meteu a espada em cima da balança – quer dizer, roubou no quilo, como se faz na feira –, a balança pesou para um lado e os vencidos comentaram: “Puxa, mas assim?”. No que ele disse: “Ai dos vencidos”. É preciso refletir um pouco sobre essa questão dos vencidos, sobretudo no que diz respeito ao que trouxe a psicanálise, para que se possa, eventualmente, situar-se em relação a qualquer política.
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Lacan, por exemplo, não disse vae victis e, sim, primum vivere, que é a base da prudência que leva em consideração a existência do Outro. Sabemos que ele passou a vida fazendo uma série de coisas estranhas que as pessoas, parece, não chegaram a entender, ou entenderam mal – o mal-entendido estava sempre ao seu redor, naturalmente. No nosso caso específico, talvez seja preciso que tenhamos bastante cautela, calma... Há, por exemplo, o cartel como idéia fundamental do que Lacan chamou de sua escola, e aquilo parece que nunca funcionou direito. Há, também, os chamados Analistas da Escola – em dois sentidos: analistas que pertencem à Escola enquanto analistas e analistas que são analistas da Escola, enquanto analisanda. E nós outros, aqui, temos que manter um certo esforço de sustentação dessa prática: tentar botar a Escola no divã, tanto quanto este Colégio. Veremos no resto do Seminário de hoje, e em outros que virão, como está intricado o chamado político e o chamado social – e não pelas vias que estão sendo trabalhadas por aí. É preciso tomar certas posturas com base no assentamento do discurso psicanalítico e, também, com base na prática desse discurso entre nós, aqui dentro. De vez em quando, levo um pito de alguém do Colégio... Aliás, muito freqüentemente – levo pito à beça. O que chamo pito é diferente de uma interpretação, que seria manter um rigor de discurso psicanalítico. Se estou falando num Seminário é porque pretendo me situar na histeria e, portanto, manter-me numa análise em outro nível, o que é viável, já que Lacan fez isto. Então, nada tenho contra, muito pelo contrário, a todo e qualquer tipo de interpretação que possa, eventualmente, me dar um chute para frente. Mas, às vezes, ouço pitos... E como é preciso tentar analisar um pouco a Escola, não eu no caso, vou contar apenas o sonho da Escola – vocês têm que analisar. Hoje estou chamando o Colégio de Escola – é coisa muito estranha que está acontecendo na minha cabeça. Um pito, por exemplo – um específico que já veio de várias fontes –, é o de que tenho um sintoma muito engraçado, e que não é legal. Este sintoma que é meu, como dizem, é que fico falando dos outros, seja em Seminário ou em outro lugar: dou uma porradinha aqui na Internacional, outra ali em outro
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grupo, e por aí vai. Neste último pito que ouvi a este respeito me disseram: “O que você devia fazer era ficar, como Lacan, na sua produção científica, etc., e deixar para lá esses caras, isso é um sintoma chato”. Mas não pude tomar isso como interpretação e, sim, como pito... O sintoma que está em jogo e que precisa ser interpretado não é o sintoma de, eventualmente, querer saber do que se passa com os outros, coisa que, ao contrário do que esses pitos supõem, Lacan fez o tempo todo. Se acompanharmos seus Seminários, veremos que ele estava sempre escandindo, dentro do discurso teórico de outros, certos comportamentos – na Internacional, aqui e ali – para estabelecer casuísticamente o máximo de diferença. Isto pode e deve ser feito. As pessoas, então, estão dando pito sobre coisas erradas. O sintoma verdadeiro não é este e, sim, que falo pelos cotovelos, aqui, para tentar manter uma análise do meu não querer saber de nada disso. É o contrário do que dizem. Na medida em que você lida, o mais longamente e constantemente possível, com o discurso psicanalítico, digo a vocês que a tendência é o contrário. É de não querer saber de nada disso – não me encham o saco! O sintoma que me aborrece não é de tratar dessa ou daquela conjuntura, aqui e ali. É justamente de mandar tudo às favas... Aquilo que Lacan disse: “Fini, c’est fini”, acabou a porcaria do Seminário, não falo mais. Este é que é o sintoma. O que, sintomaticamente, me dá vontade de fazer é isto. Por isso, tenho que sair sacalmente do meu sintoma e falar essas bobagens, porque é preciso ficar um pouco atento. É preciso, já que estamos estabelecendo diferenças, falar dessas diferenças e do processo de denúncia, que não é a mesma coisa que deduragem. A denúncia é da ordem do poético e de manter uma enunciação viva, criticando os enunciados que se vê ao redor, seja fora, seja dentro, seja em si mesmo. Denúncia é aquilo que vigora entre enunciado e enunciação. É uma tarefa nossa e foi tarefa de Lacan, denunciar o que não é psicanalítico. É denunciar, no campo das teorias como no campo das práticas em geral, não para se ficar xingando o próximo, mas para distinguir, para tentar a vigência do discurso psicanalítico. Por que, então, vem esse pito? É uma questão, aí, de análise do Colégio.
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Digo que – e isto é apenas uma suposição, não estou analisando, estou contando sonhos –, então sonho que esse pito pode ser o de o sujeito querer estar metido na nossa, tentando aproximar-se do rigor que tomamos emprestado do Mestre, mas não querer perder um pé lá do outro lado porque, eventualmente, ele sarta. É uma coisa rigorosa você estabelecer a diferença e poder dizer: “É diferente mesmo, e lá eu não caio”. Evitar-se o apontamento dessas diferenças é, pura e simplesmente, dizer: “Tudo bem, mas não fica falando do outro, etc., porque, afinal de contas, tenho amigos lá, posso ter um interesse qualquer lá...”. Não parece assim para vocês? Ou será que o raciocínio está errado? Lacan não teve papas na língua. Pegava e dizia as coisas com risco absoluto, porque sem retorno. Dizer é dizer a tal ponto que não há retorno possível. E ele fez isto. Quando conseguia dizer, estava dito, lembro-me desta frase de Kafka, em Fragmentos: “De um certo ponto em diante, não há retorno possível, urgente é chegar lá”. Isto é que é escansão. Insisto nisto porque sei que há o jeitinho do nosso meio cultural que é como se diz por aí: “Tudo bem, o tempo lógico é tão interessante, mas já que é tempo lógico, por que não posso marcar o horário como anteriormente?”. Não pode porque não há retorno. Depois que se instalou esta diferença, não há retorno possível. Do contrário, é manter as coisas em aberto, porque não se quer correr o risco do dizer... Quando um sujeito recrimina, por exemplo, tipo pito, que eu aponte a diferença a respeito de uma ocorrência possível com alguém numa Sociedade qualquer, um determinado caso do qual tenho alguma notícia, por qualquer via, ele diz: “Você não pode dizer uma coisa dessas”. Por que não? Estou trabalhando no simbólico quando falo. E se não citei entidades nem nomes, qualquer deduragem fica por conta de quem quer nomes, e não por minha conta. Existe hoje confusão a respeito do que possa ser um governo. O mundo está conturbado. Não estou falando de simples mal-estar e sim de zorra, a estrutura social na qual vivemos. Tivemos séculos de cada coisa no seu lugar, com malestar lá dentro, mas com uma espécie de saber dominando a situação. Isto não está havendo mais. Um dos efeitos disto tem sido a “democracia” que chamo de sovaco.
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Por que se fala com veemência e se estabelece diferenças com veemência? Porque, obsessivamente, mantendo o ritmo da dominância que está em vias de explodir, as oposições são estabelecidas em nível puramente lingüístico. Basta estabelecer as diferenças? Não se tem que valorizar isto ou aquilo? Seria farisaico, senão fascista, dizer que tais pensamentos estão errados, que é preciso pensar de determinada forma, que é a certa. Temos que pensar isto com calma. Esta é uma maneira de se restar numa infinitização tipo obsessiva, sem assumir nenhum dizer dentro das diferenças. Não se trata de um aspecto religioso, que seria o farísaico, de se dizer que a verdade está originariamente em tal lugar, por revelação, e que portanto o resto está errado. Podemos entender – e Lacan já disse que a psicanálise não é panacéia – que, eventualmente, um pensamento pode chegar à mesma conclusão que outro, ou a coisa melhor. O que não significa que, dentro de um escopo de reflexão, de teorização, não se tenha que marcar diferença só por mera oposição, de que isto é diferente daquilo, porque não é só diferente. Temos que considerar a diferença para dizer o quê, a partir de um rigor originário, consideramos errado. Se não, não podemos nem ver o erro para abandoná-lo. Aceitar a diferença não é simplesmente ser “boa gente”, liberal, simpático. É, sim, ser rigoroso com a diferença de tal maneira que se possa respeitar o Outro na medida em que ele esteja sustentando sua diferença, até mesmo contra a nossa, mas continuando fiel à nossa diferença e denunciando, para nós e para outrem, do ponto de vista do simbólico, o que é dejetável no processo das diferenciações. Isto não constitui partido de espécie alguma. Só se constitui partido no regime em que a diferença é nomeada a priori. Quando se está no rigor de um processo, por trabalhar esse processo vai-se encontrando, no regime da diferença, o que tem que ser abolido em outro campo. Mesmo o discurso científico opera assim. Se não, se poderia dizer que certa teoria a respeito do átomo é válida, só que apenas diferente... Mas é preciso dizer não, que isso não funciona. E quando se trata de relações subjetivas, mais ainda. Se não, diria que o fascista é muito simpático, que ele só pensa diferente de mim...
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Estabelecer o governo (o regime) da diferença, só podemos fazê-lo na medida em que as diferenças se denunciem, que a diferença enquanto tal isole os aparelhos de deterioração da diferença, se não, é o caos. Não há democracia do vale-tudo. Democracia é um negócio completamente gagá. É o governo da maioria, ou seja, ditadura da maior quantidade. Já é momento de se pensar outra coisa, de inventar de novo. O diferente – e comecei por aí o Seminário deste ano – é primar pelo estabelecimento da diferença e, não, dizer que vale tudo. É sustentar que mantém a diferença. Não posso deixar de apontar, a partir do dizer-se habitar-se o mesmo discurso, a canalharia que destrua o processo da diferença. Ainda que, eventualmente, eu esteja errado, o meu rigor me dá licença de continuar tentando distinguir o assassino da diferença aonde me possa parecer que ele esteja pintando. Não por mera fantasia, mas por tentativa de rigor. Não é o regime gramatical do que está certo e do que está errado na língua. Depois que se fez a crítica disto, as pessoas pensaram: “Então vale tudo”. É como a imbecilidade do pai Karamazov: “Se Deus não existe, então vale tudo”. Mas é preciso existir Deus para valer tudo, ou para tudo ter chance de se dizer, porque não vai ser dito, apenas há chance. Quer dizer, produz-se o assassínio do Outro e pensa-se que, aí, valeria tudo... Aí é que não vale mais nada. Uma oposição anula outra e está-se na suposição de que são meras diferenças, que tudo está valendo. Exatamente porque a diferença rege o processo é que é preciso ser rigoroso com ela, de modo a que ela se sustente. Parece paradoxal, mas não há paradoxo aí. No regime do tudo é igual, do vale-tudo, ninguém é insubstituível. Mas justamente ninguém é substituível – na medida em que se fala como sujeito, se estabelece diferença. E se a subjetividade está em jogo, essa diferença produz não meras oposições, mas pode produzir tentativas de anular aquilo que anularia a possibilidade de oposição. Estamos nesta moda e considero isto o terrorismo da nossa época. Há essa coisa como, por exemplo, psicoterapia: “pode ser assim, pode ser assado”. Não é assim não! Isto se chama picaretagem. Quer-se apagar a idéia de picaretagem porque, simplesmente, tudo vale. E já que vale tudo, então
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se pode até fazer a psicoterapia nazista. A tal psicoterapia analítica, por exemplo, é o cúmulo da canalhice. A psicoterapia nada tem a ver com a psicanálise. A psicanálise nega a psicoterapia. Inventaram até tempo lógico de 20 minutos – isto é canalhice. Se entendo o que é o tempo lógico, não posso mais fazê-lo cronológico. Não posso porque é um erro, se não for um embuste. Coisa séria para quem entra no barco lacaniano, para as pessoas ligadas ao discurso psicanalítico, é o que Lacan freqüentemente reclamou: “Tentem não ser iletrados”. Faz parte de um letrado procurar um mínimo de informação sobre o Outro, informar-se um pouco sobre o que acontece no chamado mundo – se é que isto existe – para não ficar numa bobeira, que é não só ficar aquém das descobertas e invenções da psicanálise, mas aquém até mesmo do mundo quotidiano, o que é tão freqüente. Se observarmos o que Lacan fez através da sua vida e de sua reflexão e tomarmos contato um pouco maior com os acontecimentos do chamado mundo, veremos como não só ele deu passos incríveis do ponto de vista de pensar o que seja o falante, a psicanálise, etc., mas conseguiu interpretar, a tempo e a hora, no tempo lógico do acontecimento, o fenômeno mundial. Se prestarmos atenção veremos que suas invenções como a estrutura da Escola, do cartel, do tempo lógico etc., não são senão rigor na teoria psicanalítica, ao mesmo tempo que nos oferecendo, de antemão, ferramentas para serem aplicadas no mundo ora emergente e que ninguém quer ver. *
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Psicanálise & Polética não é pensar essas tolices de partidarismos ou de situações grupeiras. Seria pensar um pouco mais fundo e no reconhecimento dessa virada sobre a qual, quero deixar isto claro, apenas o discurso psicanalítico tem condições de vir a ser a ferramenta para a zorra que vem. Não estou querendo bancar o profeta, porque não é preciso, isto está na cara. Um profeta disse: “A 1000 chegarás, de 2000 não passarás”. É
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verdadeiro hoje em dia. Não é nenhum Juízo Final, como extermínio – é tomar juízo, afinal. A experiência de Lacan, é uma experiência também. Não estou dizendo que ele estava lá para fazer isso, pois não era sociólogo nem futurólogo. Mas um dos efeitos, entre suas intenções de manejo dentro da psicanálise, é uma experiência prévia diante da mudança – e estou falando de mudança concreta – na sintomática mundial. Ele disse: “Não serei eu que vencerei, mas o discurso a que sirvo”. Em outra ocasião, já havia dito: “Le propre de la psychanalyse n’est pas de vaincre, con ou pas”, o próprio da psicanálise não é de vencer, babaca ou não. Não se trata de vencer no sentido competitivo, de ganhar a partida, por convencer o outro de uma verdade que estaria previamente dada. Portanto, não se trata, para a psicanálise, de tentar convencer ninguém, nem de ganhar a partida, no sentido de apoderar-se do poder enquanto discursivo, coisa aliás que a psicanálise enquanto tal jamais conseguiria. Quando ele diz: “Não serei eu quem vencerei, mas o discurso a que sirvo”, o verbo vencer tem aí o sentido de romper, irromper. Ou seja, o discurso psicanalítico vencerá, junto com o processo. Aliás, é o único que tem condições para isto.
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NOLI ME TANGERE Dia 8 de abril de 1975, Lacan fazia um Seminário intitulado R.S.I., onde dizia: “É verdade que minha voz é fraca para sustentar o discurso psicanalítico, mas é melhor assim, porque se ela fosse forte, eu teria, talvez, menos chance de subsistir. Quero dizer que me parece difícil que, por toda a história, os laços sociais até então prevalecentes não façam calar qualquer voz que sustente um outro discurso emergente. É o que sempre vimos até agora, e não é porque não há mais Inquisição que é preciso crer que os laços que defini, o discurso do senhor, o discurso universitário, mesmo o discurso histéricodiabólico, não sufocariam o que eu pudesse ter de voz. Dito isto, eu aí dentro sou sujeito, estou preso neste troço, porque me pus a ex-sistir como analista. Isto não quer, de modo algum, dizer que eu creia ter uma missão de verdade – houve gente assim no passado, eles viraram de ponta-cabeça. Não tenho nenhuma missão de verdade, pois a verdade só pode ser semi-dita. Então, regozigemo-nos de que minha voz seja fraca”. “Em qualquer filosofia até o presente, houve a boa filosofia, a filosofia corrente e, depois, de tempos em tempos, há uns birutas que acreditam ter uma missão de verdade. O conjunto é simplesmente palhaçada. Mas eu dizer isto, não tem nenhuma importância – felizmente para mim, as pessoas não acreditam em mim. Afinal de contas, por enquanto, a boa domina.”. É por isso que nossa voz, aí no caso a voz que tenta portar alguma coisa do discurso psicanalítico, é fraca. Ela não tem senão ínfima chance de
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ser ouvida no meio desse burburinho da boa filosofia. Repetindo Lacan, é bem melhor que ela seja pouco ouvida, senão a boa filosofia, de tão boa que é, de tão bem intencionada, vai se esforçar ainda por cima para calar essa voz fraca. A psicanálise não é bem intencionada justamente por saber que as boas intenções levam direto, para o inferno, para o inferno da filosofia, naturalmente. Venho falando da Zorra que estaria se instalando no seio disso que chamamos de social, dessa zorra que nossa época oferece como o chamado fenômeno histórico. A única arma adequada, aí – do radical inglês arm, como um braço, talvez, ou ferramenta adequada –, é o discurso psicanalítico. De outra vez eu dissera mesmo que não adianta ser um jegue-inerme, ainda que cheio de engenhocas positivas que, se levam depressa a algum poder de circunstância, não ajudam a cruzar a Zorra. O jegue-inerme é, portanto, desarmado, ainda que abarrotado de armas eruditas: suas armas não são as que interessam. São tempos de burro analítico, embora mal armado, até como um Mallarmé, mas armado assim mesmo, de qualquer modo. Dizer que o discurso psicanalítico é a chave certa para atravessar a Zorra não significa que fora da psicanálise não há salvação. Não é de salvação que trata a psicanálise e, sim, de transação. No século da Zorra – supostamente é o século em que estamos entrando –, fora da psicanálise, não há transação... que se agüente. Mas, em suma, o que permanece é a boa filosofia que, como toda filosofia, é discurso do senhor, e, como sempre, oferecendo salvação. Oferta que ela faz girando em círculos, que é o que ela pode fazer. Girar em círculos é o que define a revolução: toda revolução acaba em devolução. Entre nós, a Revolução de 64 está passando à Devolução de 82. Em breve, teremos completado a devolução: 18 anos, isto é normal, é tempo de maioridade no sistema. Tanto numa quanto noutra, não é a voz fraca do novo discurso – novo que eu digo é o nosso – que será chamada para se ouvir. Quem vai chamar por nossa voz não é a boa, filosofia. Por que haveria de reclamar a presença do discurso psicanalítico quem está numa boa? Não há o menor motivo. Quem vai, talvez, chamar, senão reclamar por outra voz, são os filhotes da Zorra.
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A Zorra, todos sabemos, é a mulher do Zorro. O Zorro é aquele herói bem intencionado, que tem uma boa filosofia e que é especialista em manter a lei e a ordem, dos “homens” é claro. A Zorra é aquela que só se interessa pela LEI, enquanto lei da diferença. A Zorra é zarolha: tem um olho num mundo dos homens e outro no furo – no imundo, no real impossível. E a Zorra está chegando porque o discurso do senhor está começando a puir, mostrando seu tecido esgarçado e, nesse puído, seu avesso. O avesso do discurso psicanalítico não é o discurso do senhor. Quando Lacan disse l’envers de la psychanalyse, muitos pensaram que era o discurso do senhor. Não é. O discurso psicanalítico é aquele que pode emprestar alguma luz para se andar no meio dos outros. Aliás, o avesso do discurso do senhor não é tampouco o escravo, pois escravo e senhor são o mesmo: um sintoma do retorno da boa, retorno circular da revolução à devolução. *
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Pode-se ver a olhos vistos, ou melhor, a olhos televistos, por exemplo, num exemplar do programa de TV, que tem a ironia de se chamar Canal Livre... Se fosse Canal Preso, seria redundância... Domingo passado – aliás, domingo é dia do Senhor –, uma entrevista canal-livresca com Darcy Ribeiro que, tirante os bagrinhos, tinha como entrevistadores pessoas como Oscar Niemeyer e Paulo Alberto Monteiro de Barros, dito às vezes Artur da Távola. Foi muito interessante a entrevista, para sacarmos certos sintomas... Poderíamos, por exemplo, perguntar quem são esses cavalheiros, Darcy, Oscar, Paulo Alberto e outros da mesma fala. Darcy Ribeiro foi quem sofreu um bocado. Ele chegou a confessar no programa que, praticamente, derrubou João Goulart porque não soube transar como devia, e ficou numa pior. Para as pessoas mais jovens, isto não vai fazer sentido, mas o pessoal da minha geração – que estava nos inícios da profissionalização, ainda com o pé na Universidade, naquela época – deve se lembrar de como era importante naquele movimento e que figurão era o Sr.
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Darcy Ribeiro, o homem da Universidade de Brasília, o chefe da Casa Civil. E ele ficou numa ruim de certo modo, teve que se mandar e voltou, disse ele, graças ao prestígio do câncer. O câncer tem muito prestígio, como ele disse – e é absolutamente verdadeiro –, e os homens o deixaram entrar, pensando que ele fosse morrer de câncer. Ele declarou que, na sua luta contra o câncer, aproveitou-se disto para se reintegrar ao país. Aquele momento de confrontação com a Morte que o câncer lhe trouxe fez com que ele tivesse um investimento ainda maior na vida, entrasse cada vez mais na ação. Achei muito interessante esse depoimento porque, se a psicanálise presta para alguma coisa, é que ela consegue fazer isso sem o câncer. Na medida em que a psicanálise é, segundo Lacan, o discurso da ação, ao contrário do que dizem alguns idiotas de certa esquerda que acham que ela é contra o ato, uma falação contra o agir... A psicanálise transada deveria pôr o sujeito nessa situação. Não por nenhuma defrontação com a Morte... Ninguém se defronta com Ela, mas faz alguma travessia que a introduz na fala e, portanto, topa a ação. E lá estava o nosso caro Darcy Ribeiro metido de novo na sua antropologia romântica, de paixão pelos índios, exaltação da cultura, com aquele mesmo papo, tingido de atualidade que faz com que tudo se devolva a um status quo ante, que é, na verdade, uma reintronização de certo discurso do senhor com outra postura. O Sr. Oscar Niemeyer, por exemplo, com todo talento que tem, que é indubitavelmente visível, insiste em nos fazer crer que Brasília é uma cidade do futuro – é uma cidade barroca, até. É um arquiteto de governo forte, de um classicismo pseudo-barroco, que desbunda nas curvas. Mas a engenharia, a engenharia extremamente precisa é de um poeta chamado Joaquim Cardoso, que conseguiu botar a bola de pé sobre a tenda de índio. Não sei se vocês sabem que a responsabilidade de Brasília ficar de pé é de Joaquim Cardoso, um dos maiores poetas deste país. Brasília é uma cidade nitidamente de governo forte. Apesar de construída muito antes, ela ficou muito bem como roupa adequada para Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel. E estes sub-trocam, confundem a cabeça da gente... Quer dizer, é uma guerra entre senhores, querendo
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nos fazer acreditar que está se passando para uma outra. Não vou dizer que não haja senhores mais ou menos elásticos, depende para quem... Darcy e Paulo Alberto, embora não tenham declarado formalmente os fatos que digo, declararam ter tido forte influência de um sujeito que é um dos poucos que aponto como meu Mestre: Anísio Teixeira. Darcy repetiu várias vezes a influência que Anísio teve sobre ele. Afinal de contas, a Universidade de Brasília saiu da cabeça de Anísio e não da de Darcy. Anísio era professor, e foi uma figura extremamente importante no meio educacional e cultural brasileiro, inclusive com muito poder em certos momentos. Mas ele conseguiu manter uma relação meio distanciada com o Poder, a ponto de conseguir continuar digno. Nunca foi ministro, por exemplo, porque não aceitava certas barganhas, nem certos cargos. Ele era uma pessoa extremamente cautelosa, extremamente brilhante, extremamente culta, extremamente inteligente, extremamente ativa... e tinha algo de desbundante. Quando conheci Anísio, ele já era velho. Tive o privilégio de ter trabalhado com ele no Centro de Pesquisas do falecido INEP, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, de ter sido seu aluno na Universidade e, depois da Revolução, com aquelas pressões, etc., ele se afastou e tive o privilégio de conviver com ele em seus sete últimos anos de vida. Todas as quartas-feiras, eu passava três, quatro, cinco horas conversando com ele, numa sala de editora onde ele trabalhava. Eu era uma espécie de discípulo e, digo mais, havia ali algo de análise. Ele me deixava falar horas e horas e me dava umas cortadas de vez em quando: a chamada porradinha que botava as coisas no lugar. Anísio era um sujeito que era amigo de Oswald. Foi a pessoa, não sei se vocês psicólogos sabem, que trouxe a Gestalt para o Brasil. Foi o primeiro a introduzir os autores da Gestalt aqui. Ficava todo mundo deslumbrado em São Paulo, contava ele... Até Oswald ficava babando na gravata, achando que dali podia tirar alguma coisa. Ele convivia com os artistas, os poetas da época, vivia metido com jovens de 20, 30 anos, ao mesmo tempo que era Secretário de Educação da Bahia, fazendo a Escola Parque, querendo virar a Nação de cabeça para baixo. Ele tinha sido discípulo de John Dewey e tentava implantar a tal democracia
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americana nova, porque da democracia americana ele não gostava. E ele tinha alguma coisa diferente aí pelo meio que, para mim pelo menos, hoje, passado muito tempo, dá a impressão de uma espécie assim de destino lacaniano. Vocês devem se lembrar que, na televisão, Darcy Ribeiro disse que era muito difícil trabalhar com ele. Ele estava repetindo a críitica que sempre escutei fazerem a Anísio, de que ele era um sujeito que tinha milhares de pessoas ao redor, ele era extremamente lógico, seu projeto de trabalho era extremamente bem traçado, mas ele degringolava as coisas ao mesmo tempo que as fazia. Essa crítica me pareceu, desde aquela época, ser uma incapacidade de as pessoas lidarem ao mesmo tempo com o sistema e com um discurso que o desbundava de certo modo. Quer dizer, havia alguma coisa de presença do discurso psicanalítico na fala de Anísio. O que era uma coisa estranhíssima porque muitas vezes ele estava falando comigo e eu lhe dizia: “Isso é Freud, isso parece Freud”. E ele arrasava com Freud, mas o Freud que ele citava era aquele parecido com o da PIPA, o qual justamente ele criticava. Nesse tempo eu não tinha Lacan para apontar para ele. Ao mesmo tempo, então, que exercia os cargos, metido na educação, etc., ele não aceitava os anqüilosamentos. Uma frase sua que foi citada por Darcy: “Não tenho comunismo como idéia”, isso era uma coisa que ele sempre dizia. Quer dizer, ele não tinha o comunismo como enunciado, para ele, era preciso remanejar, o tempo todo. No meio daquele pessoal, aquele velhinho pequenininho, que parecia um mosquitinho, era o mais jovem da patota. Uma vez lhe perguntei – e só vou contar isto porque, como vocês vão ver, é muito ambíguo – por que, naquelas alturas em que vivia, com aquele saber todo, etc., dava atenção a um caipira feito eu, jovem, que não estava sabendo das coisas, por que perdia tanto tempo comigo. E ele me disse uma coisa que, das duas uma, ou é elogio ou é gozação: “Conheço muitas pessoas inteligentes, há pessoas extremamente inteligentes na minha vida, mas você é uma pessoa que, além de ser inteligente, tem espírito”. Isto não quer dizer nada, fiquei com a minha cabeça rodando, mas aí vem a segunda parte, o
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equívoco: “Só conheço duas pessoas que, além de inteligentes, têm espírito” – não sei se ele estava se referindo apenas a uma faixa etária –, “você e o Paulo Alberto”. Já disse que não conheço o Paulo Alberto, talvez o Artur da Távola seja outra pessoa... O que está me interessando aí, é justamente que ele faz distinção entre inteligência e espírito. Eu não sabia o que era isso, não fazia a menor idéia. Hoje, faço. Talvez ele quisesse se referir a essa dicotomia que encontramos no percurso deste semestre. Afinal de contas, os homens podem ser inteligentes, mas só o feminino tem espírito. Quer dizer, transar o discurso para além da inteligência, talvez seja um pouco de espírito, talvez seja isto que ele quis dizer. Dei esse exemplozinho apenas para indicar isso, porque, na televisão, pareceu que é uma boa entrar naquele partido... Só estou chamando atenção para o fato de que se deve escutar cautelosamente porque não há ali chance para o discurso que estamos colocando. Na verdade, aquilo é um exemplo vivo do retorno da boa, da boa filosofia, em termos de revolução e devolução. *
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Jacques-Alain Millier escreveu, na Teoria da Alíngua, que de certo modo o discurso do senhor pode ser considerado como o matema da Linguagem na medida em que esta não existe e na medida em que sua vocação de Bejahung seja algo que possa se adscrever ao discurso do senhor. Quanto a mim, quero dizer que o discurso do senhor é o matema da cultura, no sentido em que venho colocando aqui todo este ano. O que interessa não é, de modo algum, nenhuma Revolução Cultural, coisa que toquei da vez anterior. Quando Lacan diz que a única saída é a Revolução Cultural, as pessoas o confundiram com Mao Tsé Tung. Não se trata disso, pois ainda é cultural essa revolução. A revolução do Mao não é menos do mundo que a revolução do Bem, seja ela de Platão, Aristóteles, ou João Paulo. O que vai interessar no reinado
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da Zorra é a dissolução da cultura, e não nenhuma revolução na cultura. Aí que a intuição de Oswald é um guia para nós, pois ela suspeita na sintomática brasileira a vigência da Zorra e o talento de transar com ela. Não há nenhum nacionalismo no que coloquei durante todo este período, nenhum salvadorismo. O que há é a sacação da Utopia, não no sentido magistral em que ela foi tratada por tantos autores, mas quando ela toma o nome de Zorra. Zorra facilitada por esse sintoma nosso. Não é de nenhum nacionalismo que estou tratando, mas da suposição de que essa Zorra pinta no horizonte, já nos foi indicada como sintoma no discurso de um poeta chamado Oswald e que, talvez, estejamos bem armados – se não quisermos, mais uma vez, mediante um discurso magistral outro, acobertar essa sintomática brasileira – para dar um salto de vôo de século. Isto não é o mesmo que ser nacionalista. Comecei dizendo Não me sonhem nem me outrem, com Fernando Pessoa, para a distinção entre polética e política, botando nessa diferença fonêmica a indicação do fundamento ético da psicanálise, ou seja, seu centramento no real, no impossível e indicando a Lei como Lei da diferença – que porta, portanto o desejo – como universal do falante. Tentei, pelo menos, forjar esse universal, longamente. Depois, falei do Botem um Tatu, para traduzir Totem und Tatu, dizendo que o simbólico, esse que depende da Lei estrita da diferença, não é de modo algum o cultural. Falei no mito do macaco maluco e na possibilidade de algo como um creodo – que pudesse sair desse macaco maluco – inicialmente na cultura. Tentei um pouco de crítica aos pressupostos de Lévi-Strauss, para ressaltar o totemismo como um darwinismo do primitivo e insistindo na distinção entre o simbólico e o cultural. Isto porque o simbólico estaria assentado no assassínio do pai, de Freud, ou melhor dito, num pai prévia e definitivamente morto, e o cultural inserido na proibição do incesto enquanto fator de propriedade, de apropriação, e fundador da cultura na medida em que funda a ordem de parentesco como computador da cultura. Em seguida, falei em Tarzan da Silva e tomei o mito de Tarzan como uma espécie de intuição daquele macaco maluco de que havia falado.
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Depois, com o título de Desde o Para Isso: de Adão a Édipo, fui ao Velho Testamento sacar o assentamento da Lei no não-matar que estaria no episódio de Caim e Abel. Mostrei que não se pode misturar a fundação do homem enquanto diferente da mulher e a fundação da Lei com a aparência do que é o Antigo Testamento. Depois, fui a Édipo em Calúnia, falando do percurso de Édipo a Tirésias e mostrando que, afinal, Édipo teria que ser condenado, pois ele foi ao lugar do poeta. Outra vez retomei o Nat/Cult do sistema cultural, baseado na ordem do parentesco, por sua vez baseada na proibição do incesto figurativo, e situei como puro Neolítico. Estaríamos vivendo ainda o Neolítico que se configuraria por essa ordem de parentesco, pela proibição do incesto e, portanto, pela ordenação dos homens pela cultura. Mostrei, então, que não era senão um modo de pura e simples semiotização da estrutura. Semiotização no campo do simbólico, e não algo necessariamente assim, ou seja, não algo fundado em nenhum universal. Depois, falei do Gene e Tal, onde situei o genitivo e mostrei como Lacan pôde reduzir o complexo de Édipo, no final do seu pensamento, às fórmulas quânticas da sexuação, onde veremos claramente que o princípio de nomeação é distinto do princípio de propriedade, distinto do genitivo, da interdição do incesto, que insisto em chamar de figurativo. A consangüinidade e o parentesco se engalfinhando dentro da cultura e reimaginarizando o que seria estrutural como pura diferença. Continuei Ainda o Gene e Tal e mostrei que poderia distinguir três níveis dentro da castração. A castração simbólica que é a fundadora como proibição de totalização, como surgimento de Babel. Outra vez fui ao Velho Testamento aonde se diz que há diferença e lá situei o momento da castração sintomática, senão semiótica, senão idiótica, no que chamei de primeiro complexo de Édipo na relação Caim/Abel, fundando um enunciado legal: “É proibido matar”. Depois, um terceiro nível de complexo de Édipo, em segunda instância, que é a proibição do incesto figurativamente dito e que situei em Noé e sua arca. É a proibição do incesto figurada numa interdição que vai fundar a ordem do parentesco, garantindo a cultura.
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Depois, falei de Édipo e Osome, onde ensaiei pensar de outro modo a esfinge e as eríneas, mostrando a dupla articulação da cultura. A primeira estando na Lei como metáfora paterna, pura e simplesmente, e a fundação da subjetivação. A segunda configurando-se como Vorstellung, como proibição de incesto, mediante o genitivo e o genital pela ordem de parentesco. Fui a Antígona e à Lei divina. Falei, então, de Anti-Gona, a mais antiga. Consegui fazer um pequeno percurso de Édipo Rei e Édipo em Colona e, finalmente, a própria Antígona, onde teríamos o enunciado legal do homem, “todos são iguais perante a lei”, a lei enunciada no sistema, e o enunciado feminino que diz que “a Lei instaura a diferença entre cada um e todos”, uma Lei divina. Depois, caí naquele longo período de análise d’As Meninas, de Velázquez, que chamei Córte Real ou Côrte Real, na com-sideração desse quadro, tentando mostrar aí a inscrição da Lei na sua dicotomização masculino/feminino, o atopoético em congruência com o ato analítico, a psicose como diferente do feminino, a lei dos homens como diversa da lei de Deus. E aí terminou o primeiro semestre. Recomecei, então, falando da nossa Introdução à Heterofagia. Foi o momento em que pedi o testemunho de Oswald de Andrade. Depois, me perguntei: Por que me afano com meu país? Fui buscar mais elementos para essa nova sintomática apontada por Oswald na dicotomia entre patriarcado/matriarcado, que poderíamos traduzir por masculino/ feminino; e a fundação do princípio heterofágico sobre aquilo que ele tentou chamar de Antropofagia. Em Papo de Tucano, falei d’O Viravesso da Utopia, que também foi indicado por Oswald. Tentamos colocar a Utopia com o sentido de Heterofagia, ou seja, aquilo que seria a única possibilidade de se resolver, res-solver a Zorra. Ou seja, o que, depois, tratei como sendo a possibilidade de uma Revolição Caraíba, a partir da Utopia considerada como o lugar certo, chamado Inconsciente, e não como nenhuma forma definitiva de governo. A utopia é uma espécie de desgoverno, bem organizado, bem dito. Não é nenhuma anarquia, é uma Alterarquia, a “república do ócio”, como diria Oswald. Aí fiz a distinção entre líder messiânico e indicador utópico, que não é uma questão de liderança.
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Entrei n’A Polética do Dleseijo, pegando a Heterofagia e a relação com o barroco, e retornei às fórmulas quânticas da sexuação, para distinguir decisivamente da diferença anatômica. Na produção de um Ora que Emprogresse, continuei retomando esse barroco, para reestudar a distinção clássico/barroco. Peguei alguns historiadores da arte importantes: Hauser, Wölfflin, Burckhardt, Eugenio Dors, etc., para tentar essa distinção de que a psicanálise nos dá conta com muito mais clareza. Chegou o momento, então, que já vinha sendo preparado há algum tempo, de relembrar aquilo que se passa En l’Endroit où Villegaignon print Terre, de mostrar que temos as armas contra todo tipo de colonialismo, seja o da PIPA, seja o da MALU. Não é não – chegamos lá no momento adequado, com a retomada das fórmulas quânticas para tentar distinguir o feminino da psicose. Ensaiei, depois, escrever quatro posições, em Vae Victis, onde situei quatro partidos. Deu talvez a impressão de que eu estava falando de psicanálise e futuro – é e não é. Afinal de contas, nada me garante sobre governos. Não estou dizendo em termos de Brasil, pois nada impede que se tenha uma recaída. Não se vai jurar quanto ao progresso de uma análise. Nosso percurso foi, em suma, para destacar a Lei da diferença, a diferença entre o simbólico e o cultural, a diferença entre o estritamente artificial e o cultural, que é em suma a ordem de parentesco, a Lei de instalação do falante como simbólico e não como cultural, para situar a heterossexualidade e a heterofagia em contraposição ao reino da homossexualidade vigente. Tudo isso de retorno e na insistência da ética da psicanálise, que é o fundamento da psicanálise para Lacan e que diz: Não abre mão do teu desejo. *
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Pontilhei esse percurso com uma palavra que nunca expliquei – e nem sei se posso fazê-lo –, que é DIFEROCRACIA.
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Tudo isso, então, para desembocar nessa suposição de que, a partir do discurso psicanalítico, e diante do estado geral da discursividade, só há, talvez, se é que pinta a Zorra, a saída de se tentar a invenção de uma Diferocracia. Nossa tarefa é continuar no discurso psicanalítico, entretanto, ele pode – e, portanto, deve – contribuir com seus achados para a eventual invenção de uma diferocracia. Considero, como já disse, democracia um negócio gagá, faz parte do Neolítico. Enquanto for Neolítico não se tem saída. Essa invenção, pelo discurso psicanalítico, de uma diferocracia, teria que dar não o governo da maioria (e ninguém apareceu até hoje com uma democracia que não seja isto), mas um governo que trouxesse alguma Diferonomia. Já insisti em que o governo da maioria não é senão a ditadura da maioria. E qualquer ditadura, ainda que do proletariado, que na verdade não existe mais, não levaria em conta a diferença. Na cabeça de Marx talvez levasse porque o seu proletariado era uma maneira de ele nomear o poeta. Leiam bem Marx e vejam o que ele chama de proletariado, é o poeta, um sujeito por fora – isto não há mais como massa. Temos pequenos burgueses miseráveis, passando fome na favela... Proletário não conheço, a não ser alguns que, na verdade, hoje, temos que chamar de poetas, ou coisa desta ordem. O que poderia ser, então, uma diferocracia? Não estou respondendo e sim perguntando. Ou seja, um governo mal-chamado de governo, porque o discurso do governo é o discurso do senhor. Seria outro discurso que estaria na tentativa de manejar esse troço, um governo que pintasse uma diferonomia onde houvesse lugar para qualquer diferença, fora uma, é claro, senão não se poderia dizer: “para todo, pelo menos um”. Para continuar com o meu universal, tenho que ter no horizonte pelo menos um na garantia da função paterna. Por isso todas as diferenças são viáveis, menos uma: justamente aquela que diz que as diferenças não são viáveis, se não é suicídio, no mínimo burrice... Burrice é coisa muito séria... A psicanálise não cura imbecilidade. Ela pode curar ignorância. A imbecilidade não é a debilidade mental, a qual é de todos nós, ela é a absoluta crença num sentido. Por isso Lacan diz que católico não é analisável.
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O que seria – estou perguntando a vocês, inventem por favor – um governo da diferença? Esta é a pergunta que a psicanálise pode fazer em termos de política. Ou seja, onde todas as diferenças, menos uma, têm vez, voz, participação, direito. Todas as diferenças, ou seja, cada um dos sintomas procura ser bem dito porque tem a sua referência respeitada. Isto seria alguma coisa propiciada por esses ledores dos acontecimentos como um Alvin Tofler, com sua Terceira Onda, isso seria uma espécie de plebiscito perene, mas o nome está errado porque plebiscito levaria à idéia de povo, e povo leva à idéia de maioria. Não sei o que é isso. Sociólogo logo entra com IBOPE, ou coisa parecida, mas talvez pudesse traduzir plebiscito perene por minoriscito contínuo, quer dizer, a citação contínua que cada minoria faria diante de cada problema. Estamos longe desses raciocínios porque há certas pessoas que dominam os satélites, as ferramentas que estão aí. Por exemplo, porque não posso ver a TV francesa, italiana, a americana no meu televisor? Porque está proibido pelos donos do satélite. Só por isso. É uma questão de divisão do bolo. Se de repente se põe no ar um programa em russo, pode-se começar a subverter a ordem dos camaradas... Talvez, então, fosse possível inventar uma espécie de articulação social com base no que é a base do social, que é o Simbólico, e não, com base nesse genitivo fundado pela ordem do parentesco. E talvez se pudesse manter isto articulado de alguma maneira por uma constante consulta às minorias... Para operacionalizar isto é muito fácil. Computador é coisa extremamente importante, ninguém deve ter medo dele. É uma das ferramentas mais deliciosas da nossa época, usemo-la. Não sei por que as pessoas têm medo de tecnologia. Aliás, computador não erra. Na verdade, ele talvez esteja mais atual que seus operadores, mais aberto. Mas fica a pergunta: é possível essa diferocracia? Não acredito em maiorias, pois elas se estabelecem sempre sobre demagogia. O termo minoria, por sua vez, não é muito preciso, mas temos o exemplo das minorias em confronto com as maiorias. Quer dizer, diante da existência, aliás falsa, das maiorias, a minoria aparece como esse isolamento que se dá, mesmo em certas monarquias, digamos assim, tentativas de
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apoderação do poder pelas minorias. Quando estou na maioria, restam essas particularidades que se ajuntam em novas minorias, não existe mais maioria. No sentido em que estou colocando o particularismo da minoria só há coalisão em função da Lei: “Me respeite, que eu te respeito”. Quanto ao resto, não há coalisão possível. Isto seria justamente permitir que a verdade fosse de algum modo tocada, pelo menos semi-dita. O que acontece nas tais maiorias, na tal democracia, é que, em última instância, ou vira imposição de um pequeno grupo que não é uma minoria, é um pequeno grupo que impõe a vontade da maioria, ou é demagogia. Ou isso vai por imposição, ou isso vai por cantada... É aquele negócio do amor – como está no Amor do Censor, de Pierre Legendre –, ou vai por via do amor ou vai por via do ódio. É a hainamoration, como diz Lacan. Ou seja, esse interesse pelo amor, em querer fundar as coisas no amor, no sentido apaixonado em que se usa dele, ou em mera cantada: “ama-me e eu te darei o que você quiser”, ou em posição odienta: “faça como eu digo, ou te destruo”. Trata-se, sim, da dissolução disso – que não aconteceria sem dissolução da cultura, segundo São Oswald –, que produziria esse espraiamento de minorias que podem bem transar perfeitamente sem amor. Uso o termo minoria no sentido em que os cartéis se agrupam em torno de manter a ética, em torno de não se abrir mão do seu desejo. E isto não significa não abrir mão da demanda. Trata-se de usar o termo lembrando constantemente do que existe no confronto com a pressão da chamada maioria. Na verdade, não se trata de minorias, mas de particularidades. Não são também, de modo algum, as singularidades de Deleuze, pois estas são meras compulsões sintomáticas. Ficamos também pensando que em algum lugar deva haver um centro, mas por que isso não pode ser ex-cêntrico? Por que a invenção do átomo – ele não existia, foi inventado – tem que ser o modelo de tudo? A física é outro problema. Qual é o núcleo de Real, Simbólico e Imaginário, senão esse objeto que não há? É um centro vazio, mera sideração, mera com-sideração. Não preciso de nenhum modelo estabelecido da física, mesmo porque, Lacan insiste, o nó borromeano não é um modelo.
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Não me consta que Jesus Cristo falasse latim, mas quando ele levanta da tumba, na chamada Ressurreição, encontra Madalena – logo quem! – que corre em sua direção e ele lhe diz: “Noli me tangere”, não me toques. Isto é uma proibição? Por que “não me toques”? Para não se sujar? Por mais santa que ela se houvesse tornado, havia sido puta. Alguns disseram que foi por isso. De modo algum, embora isso possa sujar, não é de impossível que se trata. Quando se diz “é proibido tocar”, é porque é impossível tocar. Se não o fosse, não precisava proibir. É impossível tocar o quê? Tocar o Outro enquanto tal, ou melhor, tocar o furo do Outro. Como é impossível tocar o recalque originário. É impossível tocar a fundação de real, simbólico e imaginário, que não são senão os Nomes do Pai. O Pai Simbólico é o furo – ele é prévia e definitivamente morto. Ele só retorna, e simbolicamente, para dizer: “Não me toques”. Tanto é que, no mito de Jesus Cristo, ele leva tempo para se reimaginarizar o suficiente, virar fantasma, entrar no meio dos homens e aí deixar tocar as chagas. Há aquele Santo duas vezes imbecil, uma vez porque não acreditou, outra porque tocou o imaginário e achou que estava tocando o simbólico. O que é proibido tocar não é bem a mãe. E agora é hora de falar baixo, pois a mãe, justamente por ser a mãe, já foi tocada. Maior que a intimidade entre um homem e uma mulher, nomeadamente entre um pai e uma mãe – se existe o tal pai, se é localizável – é a intimidade entre a mãe e o filho. Portanto, impossível não tocar a mãe. O que é proibido tocar, porque é impossível, é o pai. O pai, como fundação do simbólico, não o senhor dito pai de fulano ou de sicrano. Cultura é metáfora, uma das metáforas possíveis da função paterna, a qual é que, ela sim, é metáfora fundadora. A base dessa metáfora da cultura é o genitivo: “É proibido tocar o que é do pai”. Mas o que é do pai não é fundamentalmente proibido, pois não é do impossível. O que é proibido é tocar o pai simbólico, pois que ele é impossível de ser tocado. A proibição do incesto é estrutural sim, Lacan insiste. Mas por tudo o que ele próprio articulou em seu pensamento, posso dizer que o que ela designa,
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e que está metido lá no miolo, é o impossível, o furo, e a conseqüente metáfora paterna. Nomear a mãe para esse lugar é histórico e vem determinar a ordem do parentesco, ou seja, a cultura. A proibição do incesto não é senão enunciado que tenta dizer, sem conseguir, o impossível, porque não se pode dizer A verdade. Ela é a barreira contra a loucura e só pode ser transgredida no assassínio e na psicose. O êxtase, por exemplo, não é incestuoso. Como vêem, estou tentando virar alguma coisa. Tentei tocar um pouco o que seria o êxtase quando falei das místicas, mostrando que há uma distinção a ser trabalhada entre esse percurso do feminino, quando ele se interessa, investe no lado da referência do S(A / ), e a psicose enquanto tal. Entre essa espécie de deslizamento no campo do Outro, mantendo porém no horizonte a função paterna, e a falta radical dessa referência. Precisamos saber que discurso estamos habitando. Uma minoria, no discurso do senhor, é resto na sua operação discursiva, já que tal operação pretende englobar tudo, monta o seu sistema e, no que precisa capturar um mais-gozar para isto, tem que esconder esse resto que sobra. Funda-se assim a minoria que, em jogo entre senhor e senhor, dependendo das transações, se torna facilmente maioria. Quer dizer, toma o poder outra vez. Fica-se então em eterna disputa, rivalidade entre senhores. Parece absurda a Utopia de Oswald, bem como a simples existência do discurso psicanalítico dentro do chamado mundo, justamente porque não se tem a experiência disso no campo social instituído. Não estou aqui fazendo nenhuma pregação de que se deve fazer isto ou aquilo, pois seria tolice. O discurso psicanalítico não pode e não tem como fazer a apologia de nenhum tipo de revolução, pois seria cair na mesma. Está-se apenas mostrando que, por efervescência do próprio discurso, de tanto aquecer-se o Outro ele começa a se dilatar e a se vaporizar. Ou seja, começa a funcionar como Outro que é, começa a não mais se deixar prender por tal discurso dominante. E, diante de tais fenômenos, não vamos pensar em fazer o “partido da diferença”. O que se pode fazer é a experiência da diferença. Fundar no mundo um partido psicanalítico, isto já foi feito. Está aí a
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PIPA que não me deixa mentir. No máximo virou empresa, não conseguiu nem ser bom partido. A psicanálise já elegeu alguém? A Umbanda elege. Não temos essa experiência senão, digamos por exemplo, na tentativa, de Lacan, de fundar uma instituição que nem por isso tivesse que ser careta, meramente magistral. Ele fracassou, mas deixou sua experiência por aí para ser considerada. Afinal de contas, quando se funda uma Escola tal como ele fundou, é na tentativa de, mesmo do ponto de vista institucional, fazer vigorar o discurso psicanalítico. O que faria, segundo o próprio Lacan, que aquilo fosse uma anomalia, um anomos. Isto é, uma heteronomia, uma heterofagia, uma heterossexualidade em vigor. Mas a barra é muito pesada, pois ao redor está todo mundo cercando, e as prebendas dos de fora são muito boas. Não há nenhum messianismo nessa tentativa. Lacan não estava cumprindo nenhuma missão. Trata-se simplesmente da experiência de lidar com essa coisa que parece estar emergindo espontaneamente no campo do Outro. Se o ser falante é dependente do simbólico, é de se esperar que, as fechaduras não sendo assim tão bem trancadas, de algum modo a coisa venha a sofrer um crescendo, mesmo uma explosão. Maud Mannoni, por exemplo, falava de institution eclatée... Se o cartel, outra invenção de Lacan, for trabalhado tal como pensado, não tem condições de se estratificar. Mas é muito difícil, reconheço, as pessoas abandonarem a idéia de que o cartel tem que fazer grupo. Esta idéia está tão ferrenha nas cabeças, que há grupos que dizem coisas como: “Não é possível trabalhar tal assunto no cartel porque há dois que pensam uma coisa, três que pensam outra, e não se aceitam”. “Não se aceitam”, aí, indica algo que não está sendo dito. “A gente marca reunião e as pessoas não vão.”. Está todo mundo imbuído da idéia bem empresarial de que o cartel é uma espécie de operação de lucro ou salvamento. Não é não. Não tem a menor importância um sujeito não ir. O cartel existe assim mesmo. Basta a possibilidade de enunciação, inclusive essa de apontar que o cartel não dá certo, de que o sintoma está lá, e o sintoma que está lá é o do grupo.
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A Diferocracia seria, como alguém me disse, vocação de amálgama social. Seria o social enquanto tal, pura e simplesmente. Esse papo de social, que ouvimos no discurso dos políticos, inclusive de analistas que pensam estar pensando política, é o político no pior dos sentidos, é o que tem a ver com o policial, pois se trata de discutir qual partido vai vencer. Cada um com suas fantasias e com seus jogos imaginários, sem levar em consideração que é necessário permitir o vigor da diferença, de todas as minorias, de todas as particularidades... e sem consenso. Nada mais desmoralizado do que consenso. Era preciso um discurso de dominação, de mestre forte, e arrebanhando um grupo grande sob ameaça de castração, para que muitos rezassem por aquele credo. A diversificação discursiva, hoje, é tão grande que só alguma ameaça no horizonte, ameaça de castração, mantém essa aparência de consenso, que aliás absolutamente não há. Não há consenso no mundo de hoje. Não se trata de ameaça de guerra. Esta é do tipo da imagem encobridora. Está todo mundo sofrendo desse medo de guerra total. Enquanto se tem medo dessa palhaçada, desse fantoche, desse espantalho, está-se encobrindo com isto justamente a possibilidade de disseminação. Não se está fazendo aqui nenhum messianismo lacaniano. O pior é que vamos entrar, talvez, no mais exacerbado de todos os períodos desde o Neolítico, que é o de laceração. Mas inventaram esse espantalho pregado no meio da plantação: “Não mexe porque isso pode dar em guerra!”. Não se trata disto. Nenhum estado é doido a tal ponto. E isso não está na mão de um só – é coisa muito complexa. O sistema, que não é senão o arrebanhamento das maiorias, na tentativa de dominação de certo discurso, levanta este último espantalho: “Comportemse senão sobrevirá a catástrofe!”. Mas a catástrofe já está aí, não precisa ninguém se comportar melhor nem pior. É bem por dentro desse tal consenso que a coisa já está explodindo. O que está explodindo? Um avesso. É a cultura que está explodindo, por avesso ao discurso da dominação. A sintomática particular não está encontrando mais barreiras suficientes no discurso dominante para se comportar segundo suas negras. Ele não convence mais, simplesmente porque produziu tanta ferramenta, tanto
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aquecimento, que se torna incoerente o tempo todo consigo mesmo... Ele se torna furado. O discurso do senhor tentou tapar o furo de todas as maneiras, até pedindo emprestado à histérica, à ciência, ao obsessivo, à universidade, a qualquer discurso, mas de tanto se esquentar, de tanto se movimentar, seu furo foi se tornando evidente. E com furo evidente, imediatamente se particulariza, se feminiza o sistema. *
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O incesto, o verdadeiro, seria tocar o Nome do Pai. Isto é impossível, então é proibido, e isto se diz como: “´É proibido matar”. Esta é a proibição de incesto verdadeira. Só se comete incesto no assassínio. E “se comete”, à revelia da psicose, porque nem se sabe que se o está cometendo. Coloco entre aspas porque ali é como se o indivíduo caísse no Outro, de vez, entre aspas. Cometese sem nenhuma demarcação para isto. Não o estou mostrando do ponto de vista do psicótico, e sim de quem não está na psicose e considera o incesto absoluto que é a psicose. E se não há inscrição do Nome do Pai – a coisa é paradoxal – se poderia dizer, por outro lado, que só há Pai. Há sempre uma borda qualquer, que é dessa ordem. O assassínio, aliás, foi para calar o desejo do Pai que se figurava ali. Afinal de contas, por que Jeová não podia preferir carneiros? Ora, Ele não gostava de frutas. Aliás, a Igreja tentou fazer a inversão, situar o Filho no lugar do Pai. O assassínio, ao invés de ser do Pai, fica sendo do Filho. A Igreja, o Cristianismo, armou esta inversão. Mas aí é outra questão... Está então fundada a cultura quando se metaforiza a proibição, situando aquele objeto, que pertencia ao Pai no regime da distribuição, como sendo o objeto da proibição. Neste nível da cultura, seria como se a totalização fosse possível – é o que venho dizendo há anos, em alguns pequenos escritos. Existe, na verdade, uma metaforização que apontei como sendo da ordem de uma imaginarização baseada numa prática que é a do Neolítico. Quem sabe até se dependente da observação pura e simples do processo reprodutivo. O sexo
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mistura os dois níveis: a relação é impossível no sexo, separa tudo porque é impossível, mas a transação produzindo, reproduzindo corpos, reimaginariza sobre o corpo aquilo que é não-relação no nível da relação sexual. Minha insistência é em que, para cada sujeito, a aparência de totalização vai se situar na conjugação com a mãe, de onde Freud teve que inventar o tal complexo de Édipo, do qual Lacan diz que “não é tão complexo assim”... O que nos vem garantir, então, que vai ser sempre assim? Situou-se a ordem do parentesco, a ordem cultural de interdição do incesto, etc., como uma espécie de garantia do não-enlouquecimento do social, mas simplesmente esse traço não está funcionando mais a todo vapor, não está mesmo, embora recompareça sempre no divã. É preciso fazer distinção para se ver com mais clareza o que é realmente proibição pura e simples, no simbólico, como fundação. Não se está aqui fazendo a apologia de transação com a mãe e nem dizendo que isto é uma boa estratégia. Pode ser até que alguma daquelas minorias, ou muitas, continue achando que a coisa é assim. Pois que achem! Mas o que estou dizendo é que não se pode mais teoricamente situar a fundação do social, do falante enquanto tal, sobre esse nível do genitivo que é a interdição do incesto, enquanto “é proibido casar com a mãe”. O Pai Simbólico não comparece a não ser na fala da mãe (e dos irmãos). O Pai Real é impossível de ser tocado, por isso é proibido. É impossível, mesmo, de ser dito, pois seria dizer toda a verdade. Ele comparece, então, como Pai Simbólico, ou seja, como proibição dita no lugar do impossível de se tocar o Pai Real. Qualquer proibição é vigência metaforizada e metonimizada desse Pai simbólico, mas a proibição fundadora é aquela que vem no lugar da impossibilidade. E nisto que insisto. O que quer que esteja situado no lugar do materno vem proferir interdições; mostrar que há desejo no Outro; portanto, que há falta no Outro. O que é apontar para o Pai simbólico? É mostrar que há furo no Outro. É o que Rosine Lefort estava tratando: há que se reconhecer que o Outro é furado, que eu sou furado e que há uma correlação entre significante e real do furo – isto
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é que é dizer a interdição. Isto não me obriga a pensar em nenhuma universalidade e perenidade de um certo modo de dizer a proibição, fundando tal arcabouço que se chama cultura. *
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Corregio, Duccio e vários autores que pintaram a cena do Noli me Tangere apresentam Jesus com dois gestos: uma mão que afasta; outra mão apontando para cima. É bem ambíguo, pois há, ao mesmo tempo, um convite. Se não houvesse um convite, ia-se proibir para quê? Ele está apontando para o lugar onde não se pode tocar, por impossível. O “não me toques” significa: “Estou aqui como representante do Impossível. Sou a proibição, porque lá é impossível”. Eis a essência da função paterna. Só nos resta transar com e como o filho. Já o êxtase é, ao invés de se ficar olhando, de se ficar deslumbrado com a figura de Jesus Cristo, considerar o que ele está apontando. O êxtase é olhar para lá, é tentativa de encarar o furo. Muito bem, até o próximo.
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SOBRE O AUTOR
MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. PSICANALISTA. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.
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ENSINO DE MD MAGNO
MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa 3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.
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7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p. 10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.
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16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p. 21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.
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26. 2000: “Arte da Fuga” Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair]. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p. 32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [a sair] 35. 2009: Clownagens [a sair]
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Formato 16 x 23 cm Mancha 12 x 19 cm Tipologia Times New Roman e Amerigo BT Corpo 11,0 | 16,5 Número de Páginas 562
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