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Portuguese Pages [279] Year 2020
Rafael de Bivar Marquese
Os sete ensaios reunidos neste livro lidam com o problema da pluralidade temporal da escravidão no Brasil em suas relações com o capitalismo histórico e os sistemas atlânticos mais amplos nos quais ela se inscreveu. A redução de seres humanos à condição de escravos se iniciou no próprio curso da domesticação do mundo natural ocorrida durante a Revolução Neolítica, fazendo-se prática presente em todos os quadrantes do globo. Nessa escala milenar, a escravidão mediterrânica lançou as bases para o aparecimento, a partir do século XVI, de um conjunto de novidades em relação às práticas pretéritas da exploração de escravos, ao mesmo tempo em que seu desenho institucional manteve uma série de continuidades. Na escravidão brasileira, um dos maiores e mais longevos sistemas escravistas do mundo moderno, podemos observar uma combinação particular desses tempos históricos plurais.
Os TEMPOS PLURAIS DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL Ensaios de História e Historiografia
OS TEMPOS PLURAIS DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Rafael de Bivar Marquese (1972) é Professor Titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo, onde trabalha desde 2003. Coordenador do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi/USP), bolsista de produtividade do CNPq, é autor, dentre outros, de Administração & Escravidão. Ideias sobre a administração da agricultura escravista brasileira (Hucitec, 1999); Feitores do Corpo, Missionários da Mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860 (Companhia das Letras, 2004) e Escravidão e Política. Brasil e Cuba, 1790-1850 (Hucitec, 2010, em parceria com Márcia Berbel e Tâmis Parron, com tradução para o inglês pela University of New Mexico Press, 2016). Também organizou, com Ricardo Henrique Salles, o volume Escravidão e Capitalismo Histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos (Civilização Brasileira, 2016). Trabalha atualmente em um projeto de livro sobre a história da escravidão e da economia global do café entre os séculos XVI e XIX.
Rafael de Bivar Marquese
O Programa de Pós-graduação em História Social da USP apresenta ao leitor a coleção Entr(H)istória. Trata-se da publicação de trabalhos de professores e alunos de um Programa que, sendo um dos mais antigos do país, criado em 1971, formou gerações de quadros e, assim, contribuiu para a consolidação de um pujante sistema nacional de Programas de Pós-graduação em História. Esta tradição mantém-se e renova-se com a produção de excelência nos mais diversos campos da historiografia e nas suas mais diferentes temporalidades. A riqueza e heterogeneidade de sua produção e de suas linhas de pesquisa ficarão claras nesta coleção que saúda a diversidade e o pluralismo fundamentais à convivência acadêmica. Ademais, ao lado da História, estamos certos de nossa capacidade de diálogo interdisciplinar com outros campos de conhecimento, sobretudo das Humanidades. A todos, uma boa leitura!
OS TEMPOS plurais DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Ensaios de História e Historiografia
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 – PPG em História Social
Rafael de Bivar Marquese
OS TEMPOS PLURAIS DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Ensaios de História e Historiografia
São Paulo 2020
Editora Intermeios Rua Cunha Gago, 420 / casa 1 – Pinheiros CEP 05421-001 – São Paulo – SP – Brasil Fones: [11] 2365-0744 – 94898-0000 (Tim) – 99337-6186 (Claro) www.intermeioscultural.com.br • OS TEMPOS PLURAIS DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: ENSAIOS DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA © Rafael de Bivar Marquese
1ª edição: setembro de 2020 • Editoração eletrônica, produção Intermeios – Casa de Artes e Livros Revisão Luis Gonzaga Fragoso Capa Lívia Consentino Lopes Pereira Imagem da capa Bruno Dunley, 2011, óleo sobre cartão. • CONSELHO EDITORIAL Vincent M. Colapietro (Penn State University) Daniel Ferrer (ITEM/CNRS) Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP) Jerusa Pires Ferreira (PUCSP) Amálio Pinheiro (PUCSP) Josette Monzani (UFSCar) Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar) Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB) Izabel Ramos de Abreu Kisil Jacqueline Ramos (UFS) Celso Cruz (UFS) Alessandra Paola Caramori (UFBA) Claudia Dornbusch (USP) José Carlos Vilardaga (Unifesp) Barbara Arisi (Unila) Nikita Paula (Ancine)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP M857 Marquese, Rafael de Bivar Os tempos plurais da escravidão no Brasil: ensaios de história e Historiografia / Rafael de Bivar Marquese. – São Paulo: Intermeios; USP – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2020. (Coleção Entr(H)istória). 278 p. ; 16 x 23 cm. ISBN 978-65-86255-11-9 1. História. 2. História Social. 3. História Econômica. 4. História do Brasil. 5. História da Escravidão. 6. Historiografia. 7. Tráfico Negreiro. 8. Escravidão. 9. Alforria. 10. Resistência Escrava. 10. Escravidão Atlântica. 11. Viotti, Emíllia da Costa (1928-2017). I. Título. II. Ensaios de história e historiografia. III. Série. IV. A história global da escravidão atlântica: balanço e perspectivas. V. Braudel, Koselleck e o problema da escravidão moderna. VI. Estrutura e agência na obra de Emília Viotti da Costa: uma história em três tempos. VII. Ouro, café e escravos: o Brasil e “a assim chamada acumulação primitiva”. VIII. A cartografia do poder senhorial: cafeicultura, escravidão e a formação do Estado nacional brasileiro, 1822-1848. IX. Os legados da Segunda Escravidão: as economias algodoeira e cafeeira dos Estados Unidos e do Brasil durante a reconstrução norte-americana, 18671903. X. A dinâmica da escravidão no Brasil: um diálogo com as críticas. XI. Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da. XII. Marques, Leonardo. XIII. Salles, Ricardo. XIV. USP-Programa de Pós-Graduação em História Social. XV. Intermeios – Casa de Artes e Livros. CDU 930 CDD 981 Catalogação elaborada por Regina Simão Paulino – CRB-6/1154
Para Mina, que me trouxe cabelos brancos e alegria Para a avó dela, Helô, filha de outra Mina
Sumário
Apresentação........................................................................................................ 9 1. A história global da escravidão atlântica: balanço e perspectivas.15 2. Braudel, Koselleck e o problema da escravidão moderna.............. 43 Com Waldomiro Lourenço da Silva Jr 3. A escravidão na obra de Emília Viotti da Costa: uma história em três tempos.................................................................... 71 4. Ouro, café e escravos: o Brasil e “a assim chamada acumulação primitiva”.............................................................................105 Com Leonardo Marques 5. A cartografia do poder senhorial: cafeicultura, escravidão e a formação do Estado nacional brasileiro, 1822-1848........................133 Com Ricardo Salles 6. Os legados da Segunda Escravidão: as economias algodoeira e cafeeira dos Estados Unidos e do Brasil durante a Reconstrução norte-americana, 1867-1903.....................165 7. A dinâmica da escravidão no Brasil: um diálogo com as críticas......................................................................................................209 Bibliografia citada...........................................................................................243
Apresentação
Os sete ensaios reunidos neste livro procuram enfrentar o problema que Reinhart Koselleck denominou como a “indigência teórica da ciência da história”, isto é, o fato desse saber só poder “persistir como ciência se desenvolver uma teoria dos tempos históricos”. A escravidão no espaço atlântico, dentro do qual se formou a escravidão no Brasil, fornece para tanto um terreno desafiador. A redução de seres humanos à condição de escravos se iniciou no próprio curso da domesticação do mundo natural ocorrida durante a Revolução Neolítica, fazendo-se prática presente em todos os quadrantes do globo. Nessa escala milenar, a escravidão mediterrânica lançou as bases para o aparecimento, a partir do século XVI, de um conjunto de novidades em relação às práticas pretéritas da exploração de escravos (como a articulação estreita de complexos sistemas escravistas coloniais, fundados na escravização de africanos e de seus descendentes, às forças do capital financeiro), ao mesmo tempo em que seu desenho institucional manteve uma série de continuidades (como a escravização em decorrência de guerra ou do ventre materno). Na escravidão brasileira, um dos maiores e mais longevos sistemas escravistas do mundo moderno, podemos observar uma combinação particular desses tempos históricos plurais. Os capítulos deste livro, ainda que compostos em circunstâncias diversas e com propósitos específicos, convergem na preocupação em lidar com a pluralidade temporal da escravidão no Brasil em suas relações com o capitalismo histórico e os sistemas atlânticos mais amplos nos quais ela se inscreveu. Por certo, esses capítulos não pretendem e nem teriam como
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explorar as distintas dimensões de um objeto tão vasto. Ao trazer balanços historiográficos críticos e ensaios interpretativos de longa duração, creio adotar a melhor estratégia possível, neste momento, para uma primeira aproximação dessa problemática geral. Começo com a historiografia sobre a escravidão atlântica em suas interfaces com a chamada História Global. As últimas duas décadas vêm sendo marcadas por esforços diversos no sentido de conferir densidade teórica e metodológica ao campo da História Global: o capítulo 1 parte das perspectivas pioneiras de Fernand Braudel e Henri Lefebvre – em particular da noção de totalidade aberta com a qual operam – como um caminho para fazê-lo. Desde cedo, a escrita da história da escravidão moderna obedeceu a uma mirada abrangente que permitiria classificá-la como global, porém nem sempre obedecendo aos mesmos procedimentos. É possível identificar múltiplas tradições historiográficas nesse terreno, dentre as quais algumas que contaram com o aporte decisivo de historiadores e cientistas sociais brasileiros. O capítulo segue com o levantamento crítico dessas tradições para, ao seu final, explorar em que medida elas podem ou não contribuir para a renovação de uma agenda que tenha no cerne de suas preocupações o problema das relações entre a escravidão atlântica e o capitalismo global. Ao invés de tomar essas relações sob o prisma da linearidade temporal, o capítulo conclui argumentando a respeito dos ganhos em se adotar uma abordagem voltada à compreensão de seus tempos plurais. Tal perspectiva constitui o tema do capítulo seguinte, escrito em coautoria com Waldomiro Lourenço da Silva Júnior. Operamos em dois planos distintos, porém estreitamente articulados. Na primeira parte do capítulo 2, procedemos a uma releitura do canônico ensaio sobre a longa duração de Fernand Braudel, com o objetivo de mapear os diálogos presentes em sua elaboração teórica original e de indicar a continuação direta que ela encontrou no trabalho de Reinhart Koselleck. Com efeito, o argumento que desenvolvemos nessa parte é o de que a teorização do tempo histórico proposta por Koselleck trouxe, simultaneamente, uma condensação e uma amplificação da teorização pioneira de Braudel, renovando-a e radicalizando-a. Com base nela, passamos a um exame panorâmico da historiografia sobre a escravidão atlântica, observando o tratamento que suas distintas tradições deram ao problema dos tempos históricos plurais. Nosso ponto de chegada está em apontar como a proposta analítica contida na perspectiva da chamada Segunda Escravidão veicula uma conceituação
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que traz uma compreensão aberta e abrangente do problema dos tempos históricos plurais e, portanto, a promessa de uma agenda renovada de pesquisa para além da história da escravidão no século XIX. O capítulo 3 também é de balanço historiográfico e teórico, porém agora centrado na análise de uma única autora. Essa verticalização permite explorar de forma mais delimitada vários dos temas e problemas tratados de forma panorâmica nos dois primeiros capítulos. A produção historiográfica de Emília Viotti da Costa sobre a escravidão foi vasta e longeva, e nela se destacam dois livros clássicos, obrigatórios para o estudo dos processos de abolição da escravidão no Império do Brasil e no Império inglês. Afora as três décadas que separam a publicação de cada qual, os contextos historiográficos e políticos de suas elaborações foram profundamente distintos. O capítulo segue cronologicamente a trajetória da carreira acadêmica de Emília e suas publicações sobre o tema da escravidão, salientando suas linhas de continuidade e de ruptura, e, em especial, como ela lidou com o problema do tempo histórico da escravidão negra em suas relações com o capitalismo industrial. Os três capítulos seguintes abandonam o terreno da historiografia e examinam a história da escravidão brasileira na longa duração, centrandose na análise da cafeicultura escravista. O capítulo 4, escrito em coautoria com Leonardo Marques, volta-se a um tema caro à historiografia marxista brasileira, que rendeu muita discussão no passado, foi abandonada na década de 1980 e merece ser reaberta: as relações entre a escravidão brasileira e a chamada acumulação primitiva de capitais. Fundados em uma releitura que se concentra na conceituação do tempo histórico no conhecido capítulo do volume I d’O Capital, examinamos, em primeiro lugar, o lugar do ouro brasileiro no capitalismo global do século XVIII para, na sequência, tratarmos do lugar de sua economia cafeeira no século seguinte. O capítulo procura articular duas problemáticas em geral estudadas separadamente e que até o momento pouco ou nada foram relacionadas à escravidão brasileira: a chamada Grande Divergência e o regime global do trabalho assalariado do século XIX. Pretendemos, com isso, fornecer uma teorização alternativa para o problema das relações entre a escravidão brasileira e a acumulação capitalista na longa duração. O capítulo 5, preparado em coautoria com Ricardo Salles, opera em uma escala distinta. Esse texto se concentra na análise cerrada de uma peça documental ímpar: o mapa da Imperial Fazenda de Santa Cruz, composto
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por Conrado Jacob de Niemeyer e impresso no Rio de Janeiro em 1848. Em comparação com a região açucareira de Cuba e o sul algodoeiro dos Estados Unidos, os dois outros espaços escravistas dos tempos da Segunda Escravidão, o Vale do Paraíba cafeeiro se destacou pela prática de não cartografar sua estrutura fundiária. Uma das poucas exceções – senão a única – foi esse mapa de 1848. A análise da formação da estrutura fundiária nele representada, cujas origens datam da década de 1760, bem como das razões da impressão do mapa em 1848, ajuda a desvelar todo o processo de formação da classe senhorial escravista do Vale do Paraíba e suas relações com a construção do Estado imperial brasileiro na primeira metade do século XIX. Em seguida, miro um processo espacialmente mais abrangente, movendo-me do Vale do Paraíba para o Oeste de São Paulo e para os tempos da crise sistêmica da Segunda Escravidão. O capítulo 6 procede a uma comparação substantiva entre os Estados Unidos e o Brasil da década de 1830 ao começo do século XX, buscando articular os processos de recuperação e expansão da economia algodoeira do Sul dos Estados Unidos durante a era da Reconstrução pós-Guerra Civil (aqui, entendida em um sentido temporalmente mais lato, como vem fazendo a historiografia norteamericana mais recente) à crise da escravidão brasileira e às transformações verificadas em sua cafeicultura, com a passagem, no Oeste paulista, da escravidão para o colonato. Ao argumentar que houve uma relação estreita entre esses dois processos aparentemente apartados, o capítulo tem por propósito explorar a potencialidade analítica do conceito da Segunda Escravidão para a compreensão da ordem pós-escravista nas Américas. A peça que encerra o livro destoa em sua forma dos demais, mas permanece afinada aos seus objetivos gerais. O capítulo 7 retoma um artigo que publiquei em 2006 sobre as relações entre tráfico negreiro transatlântico, padrões de alforria e a criação de oportunidades para a resistência escrava coletiva no Brasil, do final do século XVII à primeira metade do século XIX. Valendo-se das proposições teóricas de Orlando Patterson e Igor Kopytoff, aquele artigo sugeria uma interpretação para o sentido sistêmico do escravismo brasileiro na longa duração sem dissociar a condição escrava da condição liberta, nem o tráfico das manumissões. Ele foi duramente criticado, dois anos depois, em um artigo de Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira. Não tive oportunidade, desde então, de responder a esta e também a outras críticas. É o que faço no capítulo final, que contém uma carga talvez
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excessiva de ego-história (para a qual peço a indulgência do leitor), mas que é necessária para esclarecer os motivos que me levaram a escrever o artigo que originou o debate e, igualmente, para relacionar o projeto mais amplo que então me movia à problemática geral dos tempos históricos plurais que exponho nos seis capítulos anteriores deste livro. Quatro dos sete capítulos do livro já foram publicados anteriormente, dois em periódicos científicos brasileiros (capítulos 1 e 2), o terceiro (capítulo 5) em uma obra coletiva sobre o Vale do Paraíba, porém de difícil acesso; o capítulo 6 foi publicado apenas em inglês, sendo portanto inédito em português. As referências originais de cada qual são fornecidas nas notas de rodapé que os abrem. Os três capítulos restantes (3, 4 e 7) vêm a lume pela primeira vez neste livro. O que motiva a reunião deles em um único volume é a articulação próxima de suas preocupações: repetindo, o problema da pluralidade dos tempos da escravidão brasileira em suas relações com o capitalismo histórico. Trata-se de uma inquietação que tenho partilhado de forma aguda com alguns colegas há quase duas décadas. Não por acaso, três dos sete capítulos do livro foram compostos em coautoria com Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, Leonardo Marques e Ricardo Salles, aos quais cabe um agradecimento especialíssimo por terem concordado com a veiculação de nossos trabalhos conjuntos neste volume autoral. A lista de parcerias que já rendeu outros resultados semelhantes não para por aí, envolvendo João Paulo Garrido Pimenta, Dale Tomich, Tâmis Parron, Márcia Berbel e Fábio Duarte Joly. A todos esses amigos próximos, agradeço imensamente por todo aprendizado que me proporcionaram nesses anos de convivência, camaradagem e trabalho em conjunto, assim como aos outros amigos que, se não ainda não escrevi algo em parceria, é porque não houve a oportunidade, mas ela logo chegará: Alain El Youssef, Marcelo Ferraro, Rodrigo Goyena Soares e Breno Servidone Moreno. Nossa interlocução tem se dado em grande medida em dois espaços privilegiados, a rede brasileira e internacional de pesquisadores da Segunda Escravidão, que não tem sede própria pois seu lugar é o mundo, e um laboratório que, se leva o mundo no título, é antes de tudo da terceira margem do rio: o Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (LabMundi/USP). Na temática das relações entre capitalismo e escravidão, devo muito à rede da Segunda Escravidão; na temática do tempo, a dívida é com o Lab-Mundi. Seria impossível nomear, aqui, cada um dos vários amigos e
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colegas desses dois espaços de trabalho e de interlocução que me ajudaram com comentários, sugestões e críticas de toda ordem. Cabe, no entanto, um agradecimento especial àqueles com os quais trabalhei e tenho trabalhado de forma mais próxima e cujas pesquisas foram importantes para a composição desses capítulos: Ynaê Lopes dos Santos, Renata Romualdo Diório, Priscila de Lima Souza, Gabriel Aladrén, Marco Aurélio dos Santos, Bruno Fonseca Miranda, Luis Carlos Laurindo Jr., Felipe Alfonso, Felipe Landim, Fernanda Bretones Lane, Rogério Santana Barreto, Nicole Damasceno, Marjorie Cohn, Alberto Portella, Isabela Rodrigues de Souza, Nicole Bianchini, Gabriel Sterman, Roberta Quirino Pinto, Juliana Zanezi, Maria Clara Laet e César Bonamico. Para a escrita desses capítulos, as bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq que tenho usufruído de forma contínua desde 2007 foram cruciais. Sem esses recursos, a interlocução internacional em que se deu sua elaboração teria sido inviável. Neste momento, o CNPq sofre – como de resto todo o sistema científico brasileiro – o mais sério ataque de sua história. As forças que o promovem são as herdeiras diretas das que levaram o Brasil a ser o último país das Américas a abolir a escravidão. Joaquim Nabuco, em 1883, antecipou que a luta contra a herança da escravidão seria secular; a luta pela promoção do conhecimento científico no Brasil também o é. Nos tempos difíceis em que o livro foi finalizado, Rodrigo trouxe, com Marina, Pedro para a família, na qual Émerson já estava. Miguel acompanhou, pela primeira vez de perto, a cozinha de um livro, ele que em breve terá os seus. Ana, meu esteio de vida, de corpo e de alma, cá está nesse nosso quarto livro em três décadas. Meu ideal de felicidade é ter a chance de fazer com ela sei lá quantos em muitas décadas futuras. Mas, desta vez, o livro vai para as outras duas moças de minha vida: Mina, às vezes mais eu do que eu, e Helô, que se aguenta firme e que nos mantém todos firmes, filha que é da Guilhermina. São Paulo, 22 de junho de 2020.
Capítulo 1 A história global da escravidão atlântica: balanço e perspectivas
O problema da História Global A discussão atual sobre a História Global procura responder, em grande parte, ao distanciamento entre as demandas do tempo presente e a maneira como as experiências humanas vêm sendo narradas, descritas e interpretadas pelas correntes historiográficas dominantes.1 A reordenação geopolítica e econômica que se seguiu ao término da Guerra Fria, as lutas emancipatórias de diferentes grupos ao redor do planeta, a revolução nas formas de comunicação trazida pela disseminação da internet, a magnitude das crises recentes do capitalismo e da ecologia mundiais, os fluxos internacionais de trabalho e de capital e a correspondente tensão entre a abertura e o fechamento de fronteiras são fatores que pressionam para a construção de uma abordagem historiográfica mais abrangente. Mas essa abrangência não pode ser apenas geográfica ou mascarar conflitos e contradições, comprando-se a já puída ideologia da globalização. Faz-se necessário construir uma perspectiva que seja capaz de contemplar diferentes dimensões temporais e espaciais, variando escalas de observação, articulando estruturas e eventos, e evitando, ao mesmo tempo, o 1. Este capítulo foi originalmente composto como Prova de Erudição para o concurso de Professor Titular em História e Historiografia, no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, realizada em 12 de março de 2018. Ele foi publicado, antes, na revista Esboços. Histórias em Contextos Globais, 26 (41): 14-41, jan./abr. 2019. Agradeço aos editores a permissão para republicá-lo neste livro.
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etnocentrismo e determinismos de ordens variadas. A questão é como fazer isso sem recair no problema de outras “viradas historiográficas”, que surgiram como grandes novidades e acabaram reafirmando sem maiores acréscimos pressupostos, narrativas e conclusões já bem conhecidos. Em resumo, precisamos de mais do que uma bela carta de intenções.2 Há duas dificuldades básicas a serem superadas. A primeira é o fracasso reputado a empreendimentos anteriores de ímpeto semelhante (como a história universal ou a World History) em dar conta da multiplicidade de perspectivas, fenômenos e arranjos históricos. A demanda pelo rompimento com o nacionalismo metodológico é antiga. Os trabalhos realizados com este fim no passado, porém, não foram em seu conjunto plenamente satisfatórios quanto ao seu real alcance.3 Por isso, parte da desconfiança em torno da História Global provém do fato de ela parecer, aos olhos de muitos observadores, um rótulo novo para um perfume velho. A segunda dificuldade se reporta à existência de definições divergentes a respeito do que é, efetivamente, a História Global. A historiadora mexicana Sandra Kuntz fez um extenso levantamento de obras historiográficas e de ciências sociais publicadas entre a década de 1960 e o começo do século XXI contendo a palavra global no título,4 e encontrou seis acepções: História Global como uma história mundial omnicompreensiva (história do mundo todo em um determinado período); perspectiva mundial (compilações de 2. Para uma avaliação crítica da lógica reiterativa das chamadas viradas historiográficas, centrada na virada linguística e cultural, mas também pertinente para a História Global, ver Gary Wilder, “From optic to topic: the foreclosure effect of historiographic turns”, The American Historical Review, 117 (3): 723-745, 2012. 3. Como ressaltam James Blaut (The Colonizer’s Model of the World: geographical diffusionism and Eurocentric history. London: The Guilford Press, 1993), e Alexander Anievas & Kerem Nisancioglu (How the west came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015), dentre outros, isto se deveu sobretudo em razão das raízes eurocêntricas e teleológicas desses trabalhos. 4. Para uma pesquisa semelhante à de Sandra Kuntz (Mundial, trasnacional, global: un ejercicio de clarificación conceptual de los estudios globales. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 27 mars 2014. Disponível em: http://journals.openedition.org/ nuevomundo/66524. Acesso em: 07 fev. 2018), que chega a resultados muito próximos no que se refere ao mapeamento do campo – porém, distinta em sua prescrição sobre como fazer história global –, ver Diego Olstein (Thinking history globally. New York: Palgrave MacMillan, 2015). As obras coletivas de balanço historiográfico estão se multiplicando na mesma velocidade em que a prática da História Global se dissemina. Ver, em especial, James Belich, John Darwin, Margret Frenz & Chris Wickham (The prospect of global history. Oxford: Oxford University Press, 2016), e Sven Beckert & Dominic Sachsenmaier (Global history, globally: research and practice around the World. London: Bloomsbury, 2018).
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dados e informações diversas em escala mundial); estudos sobre o fenômeno da globalização propriamente dita; temas transnacionais (redes, processos, crenças e instituições que transcendem os estados nacionais); contexto global (dimensão global como pano de fundo, não como foco central); História Global como análise de um “mundo” analiticamente construído. O historiador alemão Sebastian Conrad, por seu turno, e no que pode ser considerado como a melhor síntese disponível sobre as práticas correntes da História Global, destaca três variantes ou paradigmas: a mesma história do mundo todo em um determinado período; história das conexões; e uma história baseada em um conceito de integração.5 Um caminho possível para evitar o problema que afetou outros historiographic turns, superar as dificuldades específicas da história global e, efetivamente, sustentá-la como uma resposta possível à crise de representação mencionada é conferir coesão teórica e metodológica ao campo. Nesses termos, ganham força as últimas acepções identificadas e abraçadas por Kuntz e Conrad, que dizem respeito a um determinado nexo histórico de escala abrangente. Kuntz localiza a raiz epistemológica dessa formulação na diferenciação braudeliana entre economia mundial (a soma de todas as práticas econômicas do mundo) e economia-mundo (“um fragmento do universo, um pedaço do planeta economicamente autônomo, capaz, no essencial, de bastar-se a si próprio e ao qual suas ligações e trocas internas conferem certa unidade orgânica”).6 Mais do que assinalar o elemento econômico da equação braudeliana, o importante a se ressaltar aqui é o enfoque que pressupõe uma articulação entre diferentes regiões do planeta que não corresponde à totalidade do globo, nem à totalidade das práticas, nem à totalidade dos tempos, mas que encerra em si uma totalidade no sentido de um todo integrado. Muita confusão advém deste tipo de concepção quanto a uma possível inflexibilidade analítica com a presunção da determinação das partes pelo todo. Conferir um caráter aberto à noção de totalidade permite escapar desse risco. Henri Lefebvre forneceu há bastante tempo um caminho possível, ao contrastar as chamadas totalidades fechadas (conceituadas como acabadas, absolutas, imutáveis) às totalidades abertas (que pressupõem contradições 5. Sebastian Conrad, What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016. 6. Fernand Braudel, Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIII. Volume 3. O tempo do mundo (trad. port.). São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 12.
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e movimentos, podendo ganhar contínuos acréscimos analíticos e envolver outras totalidades igualmente abertas).7 A promessa da História Global, eis meu argumento, reside no estudo de totalidades abertas, isto é, de fragmentos do globo integrados por meio de laços diversos (econômicos, sociais, políticos, culturais) que assumem uma dada configuração dinâmica e sistêmica. Neste capítulo, a História Global será tratada a partir do campo de possibilidades em torno de uma dessas totalidades abertas: a escravidão atlântica, isto é, os sistemas de exploração do trabalho escravo africano que foram implantados pelos europeus no Novo Mundo. Em primeiro lugar, realizarei um balanço historiográfico rastreando abordagens passadas e presentes que, por suas contribuições, fornecem subsídios importantes para o campo, ou seja, trabalhos produzidos nos ramos da história comparada e, mais recente e explicitamente, da História Global, que lidaram com a escravidão atlântica. Em seguida, apresentarei algumas considerações para fundamentar a construção de uma agenda de pesquisa para a História Global que tenha como o cerne de suas preocupações a multiplicidade temporal da escravidão atlântica em suas relações com a dinâmica do capitalismo histórico. Escravidão e História Atlântica: tradições historiográficas Como filha do movimento abolicionista anglo-saxão e francês da virada do século XVIII para o XIX, a historiografia sobre a escravidão moderna foi marcada desde seu nascimento por uma perspectiva claramente internacionalista. Na medida em que a reprodução da instituição que combatiam operava na escala transnacional dos fluxos negreiros africanos e deitava raízes no mundo clássico, os abolicionistas cedo aprenderam que sua luta demandaria um mergulho na história e um combate para além das fronteiras imperiais que lhes eram contemporâneas. Daí a importância de comparar as particularidades históricas da escravidão em unidades políticas distintas ao longo do tempo. Em 1785, por exemplo, Thomas Clarkson ganhou um prêmio na Universidade de Cambridge ao escrever um tratado no qual, em sua primeira parte, historiava as transformações na instituição 7. Henri Lefebvre, “La notion de totalité dans les Sciences Sociales”, Cahiers Internationaux de Sociologie, 18: 55-77, Jan./Juin 1955.
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do mundo antigo ao mundo moderno e, na segunda, comparava a escravidão africana em várias colônias europeias do Novo Mundo, procurando demonstrar, em ambos os casos, como a marcha do progresso humano exigia sua abolição.8 A tal modelo pertenceram as duas primeiras histórias da escravidão no Brasil. Publicado no contexto dos debates que dariam origem à Lei do Ventre Livre, o livro de Perdigão Malheiro procedeu a comparações sistemáticas da escravidão brasileira no tempo e no espaço, com o objetivo de depreender das experiências passadas e coevas os meios pelos quais seria possível encaminhar politicamente o fim da escravidão no Império do Brasil. Do mesmo modo, a obra máxima do movimento abolicionista brasileiro, a de Joaquim Nabuco, foi travejada a cada passo por uma mirada histórica transnacional como método para identificar a especificidade do problema da escravidão no Brasil.9 Contudo, ao se profissionalizarem no século XX, as historiografias nacionais tenderam a abandonar a perspectiva comparativa que inspirara os militantes políticos antiescravistas na centúria anterior. O caso mais significativo dessa inflexão talvez resida nos Estados Unidos. A comparação histórica – notadamente com o Império do Brasil e com o Caribe britânico – fora um aspecto central da produção intelectual do abolicionismo nos estados do Norte.10 A derrota da Reconstrução Radical, em 1877, e a consolidação 8. O tratado de Thomas Clarkson (An essay on the slavery and commerce of the human species, particularly the African. Philadelphia: Nathaniel Wiley, 1804), originalmente escrito em latim, foi publicado em inglês no contexto da retomada da campanha contra o tráfico transatlântico nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Para a gênese da obra, ver Adam Hochschild Enterrem as correntes: profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos (trad. port.), Rio de Janeiro: Record, 2007, pp. 116-117, e Christopher L. Brown, Moral Capital: foundations of British abolitionism. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2005, p. 377. 9. Agostinho Rodrigues Perdigão Malheiro. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis: Vozes, 1976 [1866-1867]. 2 v.; Joaquim Nabuco, O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 [1883]. Sobre o comparativismo de Malheiro, ver Rogério Barreto Santana, Perdigão Malheiro e a comparação histórica na crise da escravidão no Brasil, 1863-1871. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014; sobre o internacionalismo de Nabuco, ver Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho (orgs.). Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos (Correspondência 1880-1905). Rio de Janeiro: Topbooks, 2008, Antonio Penalves Rocha, Abolicionistas brasileiros e ingleses: a coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). São Paulo: Ed. Unesp: Brazilian Business School, 2009, e Angela Alonso, “O abolicionista cosmopolita: Joaquim Nabuco e a rede abolicionista transnacional”, Novos Estudos Cebrap, 88: 55-70, 2010. 10. Sobre a comparação histórica praticada pelo abolicionismo norte-americano, ver Edward Rugemer, The problem of emancipation: the Caribbean roots of the American Civil War. Baton Rouge: Loui-
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da segregação institucionalizada nos estados do Sul no final do século XIX impulsionaram não somente a reversão da mirada internacionalista anterior, como também deram ensejo ao aparecimento de uma interpretação profundamente racista do passado escravista norte-americano. A escravidão negra passou a ser conceituada como uma “instituição peculiar” ao Sul, afastada das linhas mestras da formação da nacionalidade norte-americana.11 A despeito de a conjuntura pós-Segunda Guerra Mundial e de o nascimento em escala nacional do movimento pelos direitos civis terem levado à erosão da escola de interpretação criada pelo historiador Ulrich Bonnell Phillips, os pressupostos do nacionalismo metodológico persistiram bem entrada a segunda metade do século XX. Basta lembrarmos do próprio título do principal responsável pela demolição definitiva da historiografia racista que predominara na primeira metade do século XX, o livro-chave de Kenneth Stampp12. Enquanto, nos Estados Unidos, a historiografia da escravidão permanecia presa a uma visão paroquial e nacionalista do fenômeno – e, até meados da década de 1950, abertamente racista –, nas periferias do Novo Mundo produziam-se inovações de peso. Como ressaltaram em diferentes ocasiões Reinhart Koselleck e Emília Viotti da Costa, com frequência a posição de derrotado ou a situação periférica levam o historiador a mirar de forma inovadora o passado.13 C.L.R. James, ao estudar a revolução escrava de Saint-Domingue em suas múltiplas e contraditórias interfaces com siana State University Press, 2009; Célia Maria Marinho Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, e William Skidmore II, “A milder type of bondage: Brazilian slavery and race relations in the eyes of American abolitionists, 1812-1888”. Slavery & Abolition, 39: 147-168, 2018. 11. O trabalho referencial desta interpretação é o de Ulrich B. Phillips, American Negro slavery: a survey of the supply, employment and control of Negro labor as determined by the plantation regime. New York: D. Appleton and Company, 1918. Para um balanço pioneiro que demonstrou a aliança Norte & Sul na sedimentação dela, ver Staughton Lynd, Class conflict, slavery, and the United State Constitution. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, pp. 135-152. 12. K. Stampp, The peculiar institution: slavery in the Antebellum South. New York: Knopf, 1956. Há vários balanços gerais sobre a historiografia da escravidão norte-americana. Para uma avaliação recente e bastante completa, ver Edward E. Baptist, “Seres humanos escravizados como sinédoque histórica: imaginando o futuro dos Estados Unidos a partir de seu passado”. In: Rafael Marquese e Ricardo Salles (orgs.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 261- 319. 13. Reinhart Koselleck, Estratos do tempo: estudos sobre a história (trad. port.). Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014, pp. 63-72; Emília Viotti da Costa, “A invenção do iluminismo”. In: O. Coggiola (org.). A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella: Edusp, 1990, pp. 31-45.
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a Revolução Francesa, e Eric Williams, ao investigar as relações também contraditórias entre o complexo escravista atlântico e a ascensão do capital industrial na Inglaterra, jogaram luz de forma pioneira sobre o papel decisivo que a escravidão negra nas Américas desempenhou na gênese do mundo moderno.14 Assim procedendo, esses dois historiadores negros de Trinidad & Tobago, bebendo no materialismo histórico, abriram caminho não apenas para entender o problema do desenvolvimento desigual na esfera do capitalismo global, mas igualmente para compreender como processos históricos desenrolados em diferentes partes do espaço atlântico constituíram uma unidade orgânica, com eventos do Velho Mundo (Europa e Ásia) e do Novo Mundo (Américas) condicionando-se em um jogo de determinações recíprocas. Paralelamente, sem que soubessem das obras caribenhas de James e Williams, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. lançavam as bases para uma interpretação nova, cosmopolita e comparada, do passado escravista brasileiro.15 Freyre o fez retomando o padrão de cotejamento elaborado no século XIX pelos abolicionistas norte-americanos e pelos defensores da escravidão no Brasil, que contrastaram o caráter aberto da escravidão brasileira ao caráter fechado da escravidão anglo-saxã. Caio Prado Jr., por seu turno, chamou atenção para o padrão econômico comum de todas as zonas tropicais escravistas do Novo Mundo, apreendidas a partir da categoria das colônias de exploração, em um esquema analítico bastante próximo ao que James e Williams estavam propondo, e que encontraria desdobramentos de fundo nas formulações posteriores do pensamento econômico cepalino e da teoria da dependência. Williams e Freyre foram centrais para o que é tomado por muitos especialistas como a primeira obra acadêmica explicitamente comparada no campo da escravidão negra nas Américas: o pequeno, porém inovador livro de Frank Tannenbaum. De Eric Williams, Tannenbaum retirou o argumento relativo ao caráter capitalista da escravidão anglo-saxã; de Gilberto Freyre, a percepção de que a escravidão ibérica teria um caráter aberto no que se refere às maiores possibilidades de os escravos obterem a alforria e se inscreverem positivamente nas hierarquias sociais do mundo dos livres. Para além dessas 14. C.L.R. James, Os jacobinos negros: Touissant L’Ouverture e a revolução de São Domingos (1a ed.: 1938; trad. port.) São Paulo: Boitempo, 2000; Eric Williams, Capitalismo e Escravidão (1a ed 1944, trad. port.). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 15. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala (1933). Brasília: Ed. UnB, 1963; Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo (1942). São Paulo: Brasiliense, 1978.
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duas apropriações, destacava-se em Tannenbaum o esforço de apreensão conjunta dos sistemas escravistas do Novo Mundo, assim estabelecendo o terreno em que doravante se daria a discussão em perspectiva comparada sobre a escravidão atlântica e, de certo modo, mesmo a escravidão antiga.16 A contraposição entre o sistema escravista ibérico e o anglo-saxão proposta por Tannenbaum foi importante para Stanley Elkins questionar, ao lado de Kenneth Stampp, os fundamentos da interpretação racista de Ulrich Phillips sobre o caráter pré-capitalista da escravidão norte-americana.17 Elkins, no entanto, continuou preso ao nacionalismo metodológico que informara a historiografia norte-americana desde o final do século XIX. No campo da história comparada, a reação ao modelo de Tannenbaum tomou de empréstimo, uma vez mais, a contribuição da periferia. David Brion Davis, em seu livro sobre o problema da escravidão na cultura ocidental, afirmou que as distinções entre os sistemas escravistas americanos foram mais de grau do que qualidade; houve, segundo ele, um denominador básico a todas as experiências de escravização dos africanos promovidas pelos poderes coloniais europeus nas Américas, fundadas na violência, no racismo e nas restrições de acesso à liberdade. Já Sidney Mintz argumentou que, para além desse chão comum, as variações entre os sistemas escravistas se deveram às relações distintas, no tempo, que cada espaço escravista americano manteve com a economia mundial e seus respectivos poderes metropolitanos; o que, em um momento, fora um sistema elástico poderia se tornar, em outro, inelástico.18 Tanto Davis como Mintz se valeram, para reavaliar a
16. F. Tannenbaum, El negro en las Américas: esclavo y ciudadano (1ª ed.: 1946; trad. esp.), Buenos Aires: Paidós, 1968. William L. Westermann, colega de Tannenbaum na Universidade de Columbia, participou dos seminários que deram origem a Slave and Citizen. Moses Finley – então ainda empregando seu nome de batismo, Finklestein, que abandonaria após ser perseguido pelo macartismo e exilar-se na Inglaterra – acompanhou, como orientando de Westermann, essas discussões. Possivelmente, a distinção canônica que Finley (“Slavery” In: David L. Sills; Robert K. Merton (eds.). International encyclopedia of the social sciences. New York: Macmillan, 1968, v. 13, pp. 307-313) apresentaria duas décadas depois, diferenciando as sociedades com escravos das sociedades genuinamente escravistas, originou-se nos seminários que estiveram na gênese de Slave and Citizen. Esta, contudo, é uma hipótese a ser investigada. 17. S. Elkins, Slavery: a problem in American institutional and intellectual life. Chicago: The University of Chicago Press, 1959. 18. David Brion Davis, The problem of slavery in Western culture (1966). New York: Oxford University Press, 1988, pp. 223-261; Sidney Mintz, “Slavery and emergent capitalisms”. In: Laura Foner; Eugene Genovese (orgs.) Slavery in the New World: a reader in comparative perspective. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1969, pp. 27-37.
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contraposição de Tannenbaum, de uma poderosa historiografia brasileira de inspiração marxista e sociológica que criticara duramente Gilberto Freyre – ela própria, por sua vez, inspirada na obra anterior de Eric Williams.19 Na passagem da década de 1960 para a de 1970, houve um salto qualitativo no debate dentro do campo do marxismo. Eugene Genovese apresentou um ambicioso programa de história comparada da escravidão nas Américas que abarcou da formação das classes senhoriais à resistência dos trabalhadores escravizados. No caso específico do primeiro tema, o modelo proposto por Genovese ressaltou, por um lado, o peso do passado nacional de cada um dos poderes coloniais europeus na determinação do caráter burguês ou senhorial das classes proprietárias de escravos de regiões específicas do Novo Mundo e, por outro, os contextos sociais e econômicos imediatos em que esses senhores operaram (taxas de absenteísmo, formação da população escrava, gêneros produzidos, articulações comerciais). Submetidas aos ditames do capital mercantil, porém explorando uma mão de obra que constituía a antítese do modo de produção capitalista – necessariamente fundado no trabalho assalariado –, as classes senhoriais americanas teriam, segundo Genovese, vivido sob um regime de dualidade integrada, na qual a face interior e arcaica da escravidão negra se integrou, via mercado mundial, à face exterior e moderna do capitalismo global.20 Tal elaboração teórica encontraria um desdobramento mais completo na obra dos historiadores brasileiros Ciro Flamarion Santana Cardoso e Jacob Gorender, que, a partir de uma vasta mirada comparada, elaboraram o conceito de modo de produção escravista colonial. No ambiente historiográfico brasileiro, o contraponto a tal modelo esteve em um seguidor próximo de Eric Williams, Fernando Novais, que combinou a perspectiva
19. As referências que serviram diretamente a Davis e Mintz são Octávio Ianni (As metamorfoses do escravo. São Paulo: DIfel, 1962), Fernando Henrique Cardoso (Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Difel, 1962), Emília Viotti da Costa (Da Senzala à Colônia. [1966] São Paulo: Brasiliense, 1989), além da monografia clássica de Stanley Stein (Vassouras: um município brasileiro de Grande Lavoura, 1850-1900 [1957; trad. port.] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990) sobre Vassouras, inspirada diretamente em Caio Prado Jr. Para os vínculos dos três primeiros com a obra de Eric Williams, ver Rafael de Bivar Marquese, “Capitalismo e escravidão e a historiografia sobre a escravidão negra nas Américas”. Prefácio a Eric Williams, Capitalismo & escravidão. (trad. port.) São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 9-23. 20. Cf. Eugene Genovese, O mundo dos senhores de escravos (1969) Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1979; Eugene Genovese, Da rebelião à revolução. (1979) São Paulo: Global, 1983; Eugene Genovese & Elizabeth Fox-Genovese, Fruits of merchant capital. New York: Oxford University Press, 1983.
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analítica do historiador caribenho sobre as relações contraditórias entre capitalismo e escravidão às formulações dependentistas sobre as relações entre centro e periferia do sistema mundial.21 No final da década de 1970, as antinomias desses dois modelos – o do modo de produção escravista colonial e o do Antigo Sistema Colonial – foram criticadas por cientistas sociais brasileiros que apontaram a ausência de sentido em contrapor abstratamente as categorias da produção e da circulação. Ao invés de conceituar as relações entre escravidão (colonial) e capitalismo (metropolitano) como uma dualidade integrada via mercado mundial, essa alternativa crítica propunha analisar substantivamente os momentos distintos, porém necessariamente articulados da produção e da circulação como uma “unidade contraditória”, na qual colônia e metrópole obedeciam a uma mesma lógica de acumulação do capital.22 Essa historiografia de inspiração marxista das décadas de 1960 e 1970 que, malgrado suas divergências, teve no exame do problema das relações entre capitalismo e escravidão o cerne de suas preocupações, compartilhou alguns pontos em comum, notadamente a visão abrangente e hemisférica da instituição escravista. Em razão mesmo do objeto que investigaram – a escravidão africana nas colônias europeias do Novo Mundo –, muitos desses trabalhos romperam com o nacionalismo metodológico e enfatizaram a comparação e a integração de espaços apartados, dois dos aspectos que estão reconhecidamente no coração da proposta atual da História Global.
21. Ciro Flamarion Santana Cardoso, “O Modo de Produção Escravista Colonial Na América”. In: Théo Santiago (org.). América Colonial. Rio de Janeiro: Pallas, 1975; Ciro Flamarion Santana Cardoso, “As concepções acerca do ‘Sistema Econômico Mundial’ e do ‘Antigo Sistema Colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘Extração do Excedente’”, in: José Roberto do Amaral Lapa (org.), Modos de Produção e Realidade Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, pp. 109-132; Jacob Gorender, O Escravismo Colonial (1978). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010; Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. 22. Ver Maria Sylvia de Carvalho Franco, “Organização social do trabalho no período colonial”. In: Paulo Sérgio Pinheiro (org.). Trabalho escravo, economia e sociedade. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1984, p. 145-193, e Antonio Barros de Castro, “A economia política, o capitalismo e a escravidão”. In: José Roberto do Amaral Lapa (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, pp. 67-107; para todo debate, ver Rafael Marquese & Ricardo Salles (org.), Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
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Depois da década de 1970, contudo, houve um certo refluxo na prática da história comparada da escravidão negra nas Américas, em que pesem trabalhos pontuais que continuaram a ser publicados nos anos seguintes.23 Da mesma forma, o cosmopolitismo que marcara a obra de C.R.L. James e Eric Williams, capazes de examinar em um quadro integrado todos os poderes coloniais europeus que operaram no espaço caribenho,24 não foi seguido pela historiografia que tratou do problema da escravidão na Era das Revoluções. Com efeito, o amplo debate gerado pela segunda tese de Williams – a consolidação do capitalismo industrial como força impulsionadora crucial para o movimento antiescravista – passou a ser travado com as lentes voltadas exclusivamente ao universo anglo-saxão25. No livro em que Seymour Drescher se esforçou para analisar o abolicionismo britânico em um contexto mais amplo, a mirada comparada foi muito pontual, empregada apenas para reforçar o caráter singular e normativo da trajetória da Grã-Bretanha. Ao examinar o crescimento econômico de Brasil e Cuba na primeira metade do século XIX, fundado no tráfico negreiro da era industrial e a contrapelo da pressão britânica, David Eltis acabou por tratar aqueles dois espaços como o papel em branco sobre o qual, no fim das contas, a Grã-Bretanha escreveu sua história.26 Teríamos que esperar o primeiro volume de Robin Blackburn, de 1988, para vermos reatada a abordagem integrada das relações contraditórias entre escravidão e capitalismo nos universos francês e britânico, a marca de nascença do trabalho conjunto de Williams e James.27 Uma observação semelhante vale
23. Dentre os mais importantes, ressaltam-se Herbert Klein, A escravidão africana na América Latina e no Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1988, e Peter Kolchin Unfree labor: American Slavery and Russian Serfdom. Cambridge, Ma: Belknap Press, 1987. 24. Veja-se, por exemplo, a obra tardia de Eric Williams, From Colombus to Castro: the history of Caribbean. New York: Vintage Books, 1984. 25. As obras que marcaram os termos do debate são as de Roger Anstey, The Atlantic slave trade and British abolition, 1760-1810. New Jersey: Humanities Press, 1975, David Brion Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, 1770-1823 (1975) Oxford: Oxford University Press, 1999, Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1977, e o volume editado por Thomas Bender, The antislavery debate: capitalism and abolitionism as a problem in historical interpretation. Berkeley: University of California Press, 1992. 26. Seymour Drescher, Capitalism and antislavery: British Mobilization in comparative perspective. New York: Oxford University Press, 1987; David Eltis, Economic growth and the ending of the transatlantic slave trade. New York: Oxford University Press, 1987. 27. Robin Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery. London: Verso, 1988. Veja-se, a propósito, a tese de doutorado que Eric Williams defendeu em 1938 na Universidade de Oxford, e que apenas mui-
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para a primeira tese de Williams, a de que foram os capitais gerados pelo sistema escravista atlântico que financiaram a Revolução Industrial: até o aparecimento do livro do economista nigeriano Joseph Inikori, publicado já no século XXI, todo o debate girou em torno das relações entre as colônias britânicas e sua economia metropolitana.28 O relativo abandono das perspectivas comparadas, entretanto, não significou estagnação para a historiografia sobre a escravidão negra. Na década de 1970, ao mesmo tempo em que reforçava o nacionalismo metodológico, a historiografia norte-americana verificou uma transformação quantitativa e qualitativa que a converteu no principal polo mundial de inovação teórica e metodológica nos estudos sobre a matéria. Primeiro, no campo da história econômica: o locus por excelência da revolução cliométrica, que estabeleceu os parâmetros básicos para a abordagem neoclássica do passado econômico das sociedades humanas e que ainda hoje é hegemônica na academia anglo-saxã (tendo lhe rendido inclusive um Prêmio Nobel de Economia, em 1993), foi exatamente o estudo da escravidão oitocentista. Segundo, no campo da história social: a escrita da história vista da perspectiva escrava e praticada por meio de uma aliança estreita com a antropologia se enraizou primeiramente nos Estados Unidos, e de lá se espalhou para os outros quadrantes das Américas. Esse duplo movimento de renovação, no entanto, acabou por estimular – muito em razão de seu próprio sucesso – uma cisão crescente entre a história social e a história econômica nos estudos sobre a escravidão norte-americana, resguardadas por suas respectivas comunidades de praticantes como dois campos que caminhariam em linhas estritamente paralelas, jamais convergentes 29. to recentemente foi publicada pela primeira vez: The economic aspect of the abolition of the West Indian slave trade and slavery. Albany: SUNY Press, 2015. Para um esclarecedor ensaio sobre as distinções entre tese de doutorado e livro, ver Pepijn Brandon, “From Williams’s thesis to Williams thesis: an anti-Colonial trajectory”. International Review of Social History, 62 (2): 305-327, August 2017. 28. J. Inikori, Africans and the Industrial Revolution in England: a study in international trade and economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Para uma boa síntese da discussão, Barbara Solow & Stanley Engerman (org) British Capitalism and Caribbean slavery: the legacy of Eric Williams. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. Para manifestações mais atuais do debate, que tem rendido enorme fortuna crítica, ver em especial Kenneth Pomeranz, The great divergence: China, Europe, and the making of the Modern World economy. Princeton: Princeton University Press, 2000, e Ronald Findlay & Kevin O’Rourke, Power and Plenty: trade, war and the world economy in the Second Millennium. Princeton: Princeton University Press, 2007. 29. A principal referência da cliometria, evidentemente, é Robert Fogel & Stanley Engerman, Time on the cross: the economics of American negro slavery. Boston: Little, Brown and Co., 1974. As principais
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O que se passou na academia estadunidense na década de 1970 teve, nas duas décadas seguintes, impacto direto sobre a academia brasileira, que então dava início ao arranque que a levaria a atingir sua pujança atual. Para além do mesmo hiato entre história social e econômica que acabo de assinalar, a aproximação crescente entre as agendas teóricas e metodológicas prevalecentes no meio norte-americano e no meio brasileiro produziu um segundo efeito sobre nossa historiografia, cujas origens evidentemente não se encontram apenas nesse movimento de convergência. Trata-se do abandono das perspectivas de análise abrangentes, vistas por aqui como demasiado “estruturalistas”, que olvidariam a capacidade volitiva do sujeito histórico subalterno, isto é, sua capacidade de moldar por conta própria seu destino. A cliometria poucos frutos rendeu no Brasil. A resposta prioritária da historiografia brasileira consistiu em mergulhar no exame denso dos sujeitos escravizados, de sua visão de mundo, construções culturais, estratégias familiares e padrões de resistência, em estudos bastante circunscritos no tempo e no espaço. Neste sentido, ao aporte da história social anglo-saxã somou-se a contribuição da micro-história italiana. No meio desse caminho, a compreensão da escravidão como uma relação social total, como um sistema histórico, acabou por ser abandonada, bem como o nacionalismo metodológico voltou a reinar.30 obras que marcaram o campo da história social foram as de John Blassingame, Slave community: plantation life in the Antebellum South. New York: Oxford University Press, 1972, Eugene Genovese, Roll, Jordan, roll: the world the slaves made. New York: Vintage, 1974, Herbert Gutman, The black family in slavery and freedom, 1750-1925. New York: Pantheon Books, 1976, e Sidney Mintz & Richard Price, O nascimento da cultura Afro-Americana: uma perspectiva antropológica. (trad. port.) Rio de Janeiro: Pallas-Universidade Cândido Mendes, 2003. Para uma recente avaliação crítica desta cisão, ver Dale Tomich, “A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica”. In: Rafael Marquese & Ricardo Salles (orgs.), Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 55-97. 30. Para avaliações críticas que embasam essas observações, ver Diana Berman, A produção do novo e do velho na historiografia brasileira: debates sobre a escravidão. Dissertação de Mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003; Rafael Marquese, “As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira”. Revista de História, 169: 223-253, jul./dez. 2013; Rafael Marquese & Ricardo Salles (org.), Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Para uma visão divergente, ver Ângela de Castro Gomes, “Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate”. Estudos Históricos, 34: 157186, julho-dezembro 2004. Sobre os poucos trabalhos inspirados pela cliometria, ver a síntese de Pedro Carvalho de Mello e Robert Slenes, “Análise econômica da escravidão no Brasil”. In: Paulo Neuhaus (org.), Economia brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p.
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Em uma nova cisão, exatamente na década de 1970 algumas vozes na academia norte-americana estavam se levantando contra o paroquialismo embebido no nacionalismo metodológico prevalecente. Foi nesse terreno que ganhou força a proposta original da chamada “História Atlântica”, com dois grandes polos irradiadores. O primeiro foi o programa de História da África montado na Universidade do Wisconsin por Philip Curtin e Jan Vansina. Mirando o espaço atlântico a partir da África, essa foi a origem de obras referenciais – como a do próprio Curtin, ou as de Joseph Miller e Paul Lovejoy – sobre a escravidão africana em suas interfaces com as demandas do Novo Mundo.31 O segundo foi o programa em História e Cultura Atlântica que Jack Greene construiu e dirigiu na Universidade de Johns Hopkins, com o propósito explícito de inscrever a história norte-americana em quadros de análise mais amplos, não nacionais. Neste programa, foram elaborados trabalhos que marcaram fortemente o campo, como os dos antropólogos Richard Price e Sidney Mintz, e os dos historiadores Franklin Knight, John Russell-Wood e Philip Morgan.32 Tanto o programa de Wisconsin como o de Johns Hopkins foram impulsionados, em sua implantação institucional ao longo da década de 1970, pelo radicalismo das obras pretéritas de C.L.R. James e Eric Williams, ainda que depois isso tenha sido escamoteado. Quando, na primeira década do século XXI, alguns programas de pós-graduação no Brasil voltaram 89-122; sobre o aporte da micro-história italiana combinado à história social anglo-saxã, Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, e Hebe Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. 31. Philip Curtin, The Atlantic slave trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969; Paul E. Lovejoy, A escravidão na África: uma história de suas transformações. (1a ed. 1982; trad. port.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; Joseph C. Miller, Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison: Wisconsin University Press, 1988. 32. Jack Greene & Philip Morgan (org.), Atlantic history: a critical appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 3; Richard Price, First Time: the historical vision of an African-American people. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1983; Richard Price, Alabi’s World. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990; Sidney Mintz, Caribbean transformations. Chicago: Aldine, 1974; Sidney Mintz, Sweetness and power: the place of sugar in Modern History. New York: Penguin, 1986; Mintz & Price, O nascimento; Franklin Knight, The Caribbean: the genesis of a fragmented nationalism. New York: Oxford University Press, 1978; John Russell-Wood, Escravos e libertos no Brasil Colonial (1a ed. 1982; trad. port.), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; John RussellWood, Histórias do Atlântico português (trad. port.), São Paulo: Ed. Unesp, 2014; Philip Morgan, Slave counterpoint: black culture in the Eighteenth-Century Chesapeake and Lowcountry. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1998.
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seus olhares à História Atlântica norte-americana como uma saída para o nacionalismo metodológico em que a historiografia da escravidão local havia se colocado, as afinidades eletivas pretéritas existentes entre os historiadores marxistas caribenhos e o pensamento social brasileiro de vezo estrutural e cosmopolita passaram relativamente despercebidas.33 É nesta disjunção que se encontra a força do trabalho de Luiz Felipe de Alencastro, de seu poder explicativo, que trouxe ao encontro da virada africanista e atlantista norteamericana as tradições anteriores da historiografia brasileira, fundadas em uma combinação particular de marxismo e Escola dos Annales.34 Voltamos ao problema crucial das viradas nas ciências humanas, com o qual abri o capítulo. Não foi apenas no Brasil que se romperam os fios de poderosas tradições intelectuais pregressas. Veja-se a chamada “nova história do capitalismo e da escravidão” nos Estados Unidos, que tem adquirido notável ressonância nos últimos anos. Os livros que vêm sendo publicados sob essa ótica se destacam justamente pelo esforço de reatar a história social à história econômica, ao mesmo tempo em que levam a sério os problemas colocados pela virada linguística e pela perspectiva pós-colonial.35 Com isso, os historiadores associados a esta vertente se inscrevem explicitamente nas trilhas abertas por James e Williams, reconhecendo-os como os “pais 33. Para trabalhos de fôlego produzidos no Brasil no campo da história atlântica da escravidão negra no contexto aqui tratado, ver, dentre muitos outros, Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; Flávio dos Santos Gomes, Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, Roquinaldo Ferreira, “Brasil e Angola no tráfico ilegal de escravos, 1830-1860”, In: Selma Pantoja & José Flávio Sombra Saraiva (orgs.). Angola e Brasil: nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999; Robert W. Slenes (1999), Luiz Geraldo Silva, “Esperança de liberdade. Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774)”, Revista de História, 144: 107-49, 1º semestre de 2001, João José Reis, escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, Jaime Rodrigues, De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, Beatriz Mamigonian, Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 34. Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 35. Dentre os mais representativos estão Walter Johnson, River of dark dreams: Slavery and Empire in the Cotton Kingdom. Cambridge, MA: Belknap Press, 2013; Edward E. Baptist, The half has never been told: Slavery and the making of American capitalism. New York: Basic Books, 2014; Seth Rockman, Scraping by: wage labor, slavery, and survival in early Baltimore. Baltimore: The University of Johns Hopkins Press, 2009; Sven Beckert & Seth Rockman (org.), Slavery’s capitalism: a new history of American economic development. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016.
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fundadores” da matéria. Todavia, salvo uma ou outra exceção, como os livros de Sven Beckert sobre a história global do algodão ou o de Daniel B. Rood sobre tecnologia e escravidão em Cuba e na Virgínia,36 os trabalhos até agora publicados se ressentem do mesmo procedimento que marcou as discussões sobre a primeira tese de Williams, a saber, o olhar voltado exclusivamente ao universo anglo-saxão – no caso, a trajetória nacional dos Estados Unidos. Observação semelhante vale para os trabalhos altamente meritórios que, ainda dentro dessa perspectiva, têm procurado inscrever a política escravista norte-americana nos quadros da geopolítica global do século XIX. Até agora o exame tem sido feito por meio da análise da projeção do poder norte-americano sobre as demais unidades políticas atlânticas com as quais lidou, sem levar em consideração a natureza das respostas locais e em que medida elas modificaram as diretrizes que emanavam dos Estados Unidos.37 Para escapar dos riscos da reiteração do nacionalismo metodológico embutidos em abordagens como a que acabei de expor, a historiografia sobre a escravidão atlântica tem abraçado com força crescente as promessas da História Global. Dentro de uma pluralidade de esforços relativamente desconexos entre si, é possível identificar três eixos gerais em torno dos quais as ações têm se concentrado. O primeiro incide na revisão dos modelos de tratamento da escravidão global construídos a partir do trabalho pioneiro de Moses I. Finley, dentre os quais o mais relevante sem dúvida é o de Orlando Patterson. A partir de um importante livro sobre a sociologia da escravidão na Jamaica, ele se
36. Sven Beckert, Empire of Cotton: a Global History. New York: Knopf, 2014; Daniel B. Rood, The reinvention of Atlantic slavery: technology, labor, race, and capitalism in the Greater Caribbean. Oxford: Oxford University Press, 2017. 37. Sobre a produção norte-americana acerca da geopolítica do século XIX, ver Gregory P. Downs & Kate Mansur (org.), The World the Civil War made. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015; Matthew Karp, This vast Southern Empire: slaveholders and the helm of American foreign policy. Cambridge, Ma.: Harvard University Press, 2016; Steve Hahn, A nation without borders: the United States and its World in an Age of Civil Wars, 1830-1910. New York: Penguin, 2016. Para um contraponto brasileiro a esta historiografia, ver Rafael Marquese e Tâmis Parron, “Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão”, Topoi. 12 (23): 97-117, 2011; Tâmis Parron, A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, e Leonardo Marques, The United States and the transatlantic slave trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016. Para outro exemplo, de um historiador italiano radicado na Irlanda, ver Enrico Dal Lago, William Lloyd Garrison and Giuseppe Mazzini: abolition, democracy, and radical reform. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2013.
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lançou a um vasto estudo comparado da escravidão ao longo da história humana, propondo um modelo geral para compreender a instituição independentemente do tempo e do espaço. De fato, seu objetivo foi identificar, descrever e explicar os componentes invariantes da relação escravista. Trata-se de uma obra matricial, obrigatória a todos os que lhes pesquisam o objeto, seja no mundo antigo ou no mundo moderno, por explorar as várias dimensões da escravidão como uma instituição social total.38 Slavery and Social Death, contudo, costuma causar arrepios em muitos historiadores pelo emprego sem rodeios de uma sociologia funcionalista anistórica. Um exemplo paradigmático de tal recepção negativa pode ser lido no ensaio crítico de Vincent Brown.39 Outro exemplo: o artigo que serviu de abertura para o mais novo periódico especializado em escravidão, intitulado The Journal of Global Slavery. Para seu autor, o classicista Kostas Vlassopoulos, a saída para enfrentar a tarefa de se escrever a História Global da escravidão evitando os problemas contidos no modelo sociológico de Patterson consiste em abraçar uma perspectiva radicalmente histórica de tratamento do fenômeno, isto é, enfatizar suas múltiplas variações no tempo e no espaço. O que Vlassopoulos nos oferece como programa de investigação, todavia, é simplesmente uma classificação tipológica da multiplicidade de emprego de escravos. Sua História Global da escravidão equivale tão somente ao estudo da instituição ao longo de toda a história humana.40 Não é por acaso que Vlassopoulos toma como paradigma positivo o último livro de Joseph Miller, que propõe a análise não da escravidão como uma instituição social (algo que Miller entende ser uma abstração), mas da escravização como estratégia histórica. O problema é que essa perspectiva acaba caindo no próprio desvio que anuncia corrigir, isto é, a perda da historicidade, já que a escravização aparece como algo quase que imanente à humanidade, que 38. Orlando Patterson, The sociology of slavery: an analysis of the origins, development and structure of Negro slave society in Jamaica. London: Associated University Presses, 1969; Orlando Patterson. Slavery and Social Death. A comparative study. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1982. 39. Vincent Brown, “Social Death and Political Life in the Study of Slavery”, American Historical Review, 114 (5): 1231-1249, Dec. 2009. Ver, também, uma coletânea recente que explora, a partir de múltiplos estudos de caso, os limites e as eventuais potencialidades do modelo de Patterson: John Bodel & Walter Scheidel (orgs.), On human bondage: after Slavery and Social Death. Chichester: Wiley Blackwell, 2017. 40. Kostas Vlassopoulos, “Does Slavery have a History? The Consequences of a Global Approach”. Journal of Global Slavery, 1: 5-27, 2016.
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ganha forma por meio de competições variadas em torno da distribuição de recursos. Além disso, ao tomar a visão que os contemporâneos tinham do que estavam fazendo como a única porta de entrada legítima ao estudo do passado, Miller descarta por completo a possibilidade da identificação analítica de coerências e dinâmicas parcial ou inteiramente imperceptíveis aos olhos dos sujeitos históricos. Ao fim e ao cabo, as propostas de análise global da escravidão contidas na sociologia funcionalista de Patterson e no historicismo radical de Miller convergem em um aspecto crucial, qual seja, a anulação do tempo histórico na análise concreta do passado escravista.41 O segundo eixo de análise da História Global da escravidão que tem adquirido força nos últimos anos faz parte do que vem sendo chamado de “História Global do Trabalho”. Tal proposta se destaca por descentrar as histórias canônicas das classes trabalhadoras, voltadas exclusivamente ao estudo do operariado branco, assalariado e industrial dos países centrais, e sempre escritas a partir de bases nacionais. Essa produção revisionista tem demonstrando grande dinamismo. Um de seus pontos de partida foi o provocativo livro de Peter Linebaugh e Marcus Rediker sobre o proletariado atlântico na era moderna e, seu manifesto programático mais acabado, a coletânea de ensaios de Marcel van der Linden. Tanto em um caso como em outro, um dos propósitos centrais apresentados pelos historiadores em tela foi o de examinar as modalidades compulsórias de trabalho mobilizadas globalmente pelo capital – dentre as quais, a escravidão negra nas Américas – ao lado de outras formas de trabalho livre, autônomo ou assalariado, rural ou urbano. Após inventariar as múltiplas formas de trabalho à disposição do capital, Van Der Linden salienta que seu ponto de
41. Joseph C. Miller, The Problem of Slavery as History: a Global Approach. New Haven: Yale University Press, 2012. Paul Lovejoy, “Review – The Problem of Slavery as History: a Global Approach”. The American Historical Review, 118 (1): 148-149, February 2013, formula crítica semelhante a Miller. Para críticas aos fundamentos do historicismo anistórico radical que embasa a visão de história de Miller, ver Esteve Morera, Gramsci’s historicism: a realist interpretation. London: Routledge, 1990. , e José Antonio Piqueras, “The return to the Casa de Vivienda and the Barracón: the terms of social action in slave plantations”, In: D. Tomich (org.). The politics of the second slavery. Albany: State University of New York Press, 2016, p. 83-111. Para outro livro recente de história global da escravidão que se coloca dentro dos marcos assinalados neste parágrafo, ver Olivier Grenouilleau Qu’est-ce que l’esclavage? Une histoire globale. Paris: Gallimard, 2014. O volume editado por Enrico Dal Lago & Constantina Katsari, Slave systems: Ancient and Modern. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, reúne contribuições de Patterson, Miller, Grenouilleau e outros historiadores que compararam a escravidão antiga e moderna a partir de recortes pontuais.
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convergência consiste justamente na constante produção e reiteração de uma “heteronomia institucionalizada dos trabalhadores subalternos”. No que se refere à investigação concreta dessa heteronomia, e malgrado a advertência de que “não deveríamos estudar separadamente os diferentes tipos de trabalhadores subalternos, levando em conta, o tanto quanto possível, as ligações existentes entre eles”, o que se oferece ao leitor, novamente, é uma classificação tipológica, em escala global, das formas de trabalho exploradas pelas distintas classes capitalistas nacionais e imperiais.42 No caso específico da abordagem da escravidão, não será sem surpresa que um leitor brasileiro associará a exposição tipológica e atemporal das variáveis que conformavam tal relação de trabalho às formulações mais duras do conceito de modo de produção escravista colonial. Nas discussões sobre as propostas de Patterson e Miller, o conceito de capitalismo não é levado em conta como um constructo heurístico capaz de iluminar as variações históricas da escravidão negra das Américas. Para a História Global do Trabalho, o conceito é crucial, porém a historicidade das relações entre as forças capitalistas e as diversas formas de trabalho compulsório e livre que elas empregaram ao longo do tempo tampouco é tratada de forma detida. O terceiro e último eixo a ser nomeado neste balanço tem por alvo central justamente o exame das múltiplas temporalidades da escravidão atlântica em suas relações com o capitalismo histórico. Esta é uma das características distintivas da obra de Robin Blackburn, que, por meio das categorias “escravidão barroca” (séculos XVI ao XVIII), “escravidão moderna” (século XVIII) e a “nova escravidão” do século XIX, tem chamado atenção para as descontinuidades estruturais das várias idades do trabalho compulsório dos africanos e de seus descendentes no Novo Mundo. Blackburn escora seu argumento dentro da tradição crítica da historiografia de fundo marxista que lidou com as articulações entre capitalismo e escravidão, renovando-a ao historicizar a instituição do cativeiro, isto é, ao salientar que, sob o manto de uma aparente continuidade temporal, é possível identificar constelações de relações históricas substantivas e globais transformando e sendo
42. Marcel van der Linden, Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho (1a ed: 2008; trad. port.). Campinas: Ed. Unicamp, 2013, pp. 42-43; Peter Linebaugh & Marcus Rediker, The many-headed hydra: sailors, slaves, commoners, and the hidden history of the Revolutionary Atlantic. Boston: Beacon Press, 2000.
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transformadas pelo capitalismo mercantil e, posteriormente, pelo capitalismo industrial. Para conceituar a novidade da escravidão oitocentista, Blackburn se vale do modelo de Dale Tomich acerca da “Segunda Escravidão”, que aponta como os arranques escravistas de Brasil, Cuba e Estados Unidos no século XIX romperam com as estruturas históricas da escravidão colonial que lhes precederam, inaugurando assim uma nova temporalidade, estritamente ajustada às forças globais da economia de livre mercado construída sob as bases do capitalismo industrial. Ao mesmo tempo em que Tomich recorreu às mesmas tradições historiográficas que serviram de base para Blackburn, a elas acrescentou a contribuição decisiva da perspectiva analítica do sistema-mundo. No Brasil, os trabalhos de Blackburn e Tomich inspiraram a formulação que desenvolvi com dois colegas meus sobre as estruturas históricas do escravismo do Sistema Atlântico Ibérico e do Sistema Atlântico do Noroeste Europeu como dois estratos de tempo distintos, porém inter-relacionados do longo século XVIII, cuja respectivas construções se articularam aos ciclos sistêmicos de acumulação do capital identificados originalmente por Giovanni Arrighi.43 Será em torno do programa deste terceiro eixo que, enfim, introduzirei uma proposta para a escrita da história global da escravidão atlântica. Escravidão atlântica, capitalismo histórico e a História Global O arranjo assumido pela economia global na virada do século XX para o século XXI desmontou a projeção de que o capitalismo evoluiria rumo à plena proletarização e a uma consequente oposição absoluta entre detentores dos meios de produção e trabalhadores livres assalariados. Afora a crescente flexibilização nos arranjos clássicos do trabalho industrial – no que economistas e sociólogos têm chamado de “crise global do trabalho assalariado”44 –, são incontáveis as mercadorias em circulação na economia global que, em um momento ou em outro de seu circuito mercantil, recorrem 43. Robin Blackburn, The making of New World slavery: from the Baroque to the Modern, 1492-1800. London: Verso, 1997; Robin Blackburn, The American crucible: Slavery, Emancipation and Human rights. London: Verso, 2011; Dale Tomich, Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e a Economia Mundial. (1ª ed.: 2004; trad. port.). São Paulo: Edusp, 2011; Márcia Berbel, Rafael Marquese & Tâmis Parron, Escravidão e Política. Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010. 44. Philip McMichael, “The global crisis of wage-labor”, Studies in Political Economy, 58: 11-40, Spring 1999.
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à exploração de indivíduos que não dispõem livremente de sua força de trabalho. Múltiplos arranjos laborais com diferentes graus de liberdade e compulsoriedade se integram ao redor do planeta, e ninguém contesta a sua ligação com o sistema capitalista. A consequência lógica é a relativização de que a generalização da forma do trabalho assalariado seria o componente definidor por excelência do modo de produção capitalista e a, Revolução Industrial britânica, seu marco inicial.45 Tal constatação ofereceu, há mais de quarenta anos, o ponto de partida da perspectiva analítica do sistema-mundo, que, como se sabe, foi tributária da conceituação braudeliana sobre a economia-mundo capitalista e sobre a pluralidade dos tempos históricos.46 Immanuel Wallerstein oferece uma definição que, se parte de Braudel, traz uma novidade importante ao equivaler a gênese de uma economia-mundo (a capitalista), em uma região específica do globo (a Europa Ocidental), à gênese do moderno sistema mundial.47 No cerne da definição do capitalismo histórico de Wallerstein – a orientação racional à maximização do lucro por meio da mercantilização generalizada de processos (de troca, de produção, de distribuição e de investimento), ou, noutras palavras, a busca incessante da acumulação pela acumulação – estão contidos dois argumentos espaciais. Primeiro argumento: o capitalismo não se formou primeiro na Europa e depois se expandiu pelo mundo; antes, ele se formou em seu próprio processo de expansão espacial, isto é, na constituição de uma economia-mundo. Segundo argumento: o trabalho livre sempre foi um elemento crucial do capitalismo, mas seu emprego tendeu a ser dominante apenas nas regiões centrais, que contavam com maior estoque 45. As formulações pioneiras de Giovanni Arrighi (O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo [trad. port.], Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996; Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do Século XXI (trad. port.), São Paulo: Boitempo, 2008) no sentido sumariado neste parágrafo receberam largo desenvolvimento nos trabalhos mais recentes de Geoffrey Ingham (Capitalim. London: Polity Press, 2008), Wolfgang Streeck (How will capitalism end? Essays on a failing system. London: Verso, 2016) e Jürgen Kocka (Capitalism: a short history. Princeton: Princeton University Press, 2016). 46. Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. (trad. port.) São Paulo: Martins Fontes, 1983. 2 v.; Braudel, Civilização Material. 47. Immanuel Wallerstein, The Modern World-System I. Capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1974; The Modern World-System II: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. New York: Academic Press, 1980; The Modern World-System III: the second era of Great Expansion of the capitalist worldeconomy, 1730-1840s. New York: Academic Press, 1989; Capitalismo histórico & civilização capitalista. São Paulo: Contraponto, 2001.
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de recursos e menor interferência externa, e onde os trabalhadores tinham maiores condições de organização. Nas regiões periféricas, por seu turno, normalmente dedicadas à produção de matérias-primas e de itens agrícolas que demandavam baixa especialização, houve maiores oportunidades para a utilização do trabalho semiproletário ou compulsório, como foi o caso da escravidão, que compensavam uma eventual baixa produtividade individual pela quantidade da produção ao longo do tempo e pela facilidade de alocação em regiões de difícil acesso ou pouco atrativas. O capitalismo histórico não tenderia à generalização absoluta da forma do trabalho assalariado, produzindo, em seu movimento global de expansão espacial, uma complementaridade entre diferentes modos de controle do trabalho. A perspectiva de Wallerstein é bastante sugestiva para a escrita da História Global do trabalho escravo, na medida em que nos permite pensar mais diretamente a combinação variável de formas de exploração da mão de obra (assalariamento, servidão por contrato, meação, colonato, escravidão e assim por diante) como um traço essencial do capitalismo.48 Seu modelo, no entanto, peca por um esquematismo algo rígido na conceituação da divisão internacional do trabalho, e por um padrão explicativo no qual o todo (o sistema-mundo) sobredetermina as partes (centros, semiperiferias, periferias). Além do mais, sua análise do capitalismo histórico pouco histórica é, haja vista que o capitalismo – para além da mutação geográfica dos espaços dominantes e dominados – pouco ou nada teria mudado do século XVI aos dias atuais. O modelo é notavelmente falho em incorporar uma explicação adequada para a profunda ruptura trazida pela Revolução Industrial.49 Giovanni Arrighi, ao se reaproximar de Braudel casando-o com uma leitura inspirada de Marx, imprimiu forte dinâmica à perspectiva analítica do sistema-mundo. Sua análise do capitalismo histórico se volta para sua flexibilidade e alternância inerentes, nas quais o capital financeiro ocupa papel central na busca incessante do lucro. Seu modelo chama atenção para os múltiplos estratos de tempo do capital (ver, a respeito, o capítulo 48. É o que aponta com bastante pertinência Marcel Van Der Linden, Trabalhadores, pp. 313-352. 49. Ver as críticas de Dale Tomich, Pelo Prisma da Escravidão, pp. 32-36, 64-69, Steve Stern, “Feudalismo, capitalismo y el sistema mundial en la perspectiva de América Latina y el Caribe”, Revista Mexicana de Sociología, 49 (3): 3-58, e Sidney Mintz, “Era o escravo um proletário?” (1977). In: O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados. Recife: Ed. UFPE, 2003.
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4 deste livro). Houve, na história do capitalismo, diferentes estruturas de longa duração, articuladas porém à longuíssima duração ditada pela lógica unitária da acumulação pela acumulação. Tais estruturas de longa duração são apreendidas por meio do conceito dos ciclos sistêmicos de acumulação, cada qual envolvendo padrões específicos de organização da empresa capitalista (o que permite a Arrighi analisar, por exemplo, as especificidades da era de monopólios estatais do mercantilismo, da Revolução Industrial ou da flexibilização produtiva pós-fordista), distintas áreas geográficas de produção e circulação de mercadorias e capitais (“espaços-de-fluxo não territoriais”) e diferentes poderes políticos em confronto (“espaços-delugares nacionais”). As estruturas de longa duração dos ciclos sistêmicos de acumulação são conceituadas, em resumo, como totalidades abertas. E, se Arrighi pouco espaço deu em suas investigações para as demais totalidades abertas dos mundos do trabalho nos espaços ultramarinos americanos, seu modelo nos fornece uma entrada poderosa para tanto.50 Todas essas observações incidem diretamente sobre a historiografia da escravidão atlântica. Como vimos há pouco, os trabalhos de Eric Williams têm verificado uma boa fortuna crítica nas pesquisas da chamada “nova história do capitalismo e da escravidão”. Ainda assim, alguns problemas persistem no campo. Seus autores raramente definem o que entendem por capitalismo. E, ainda que sejam analisadas suas conexões pontuais, via de regra capitalismo e escravidão são tomados como fenômenos exteriores entre si, apreendidos fundamentalmente em bases nacionais. Falta a incorporação do ponto de fuga da perspectiva analítica do sistemamundo, sob cujas lentes o capitalismo, apesar de assumir contornos nacionais ou regionais, só pode ser plenamente entendido em termos de sua globalidade. Trata-se de um fenômeno internacionalmente integrado; de uma economia-mundo. O seu nexo é a criação de mecanismos geradores de formas permanentes e ilimitadas de geração de lucro e acumulação. Trata-se igualmente de um sistema maleável, historicamente mutável, que compreende amplos movimentos de deslocamentos espaciais, de expansões e de reordenamentos materiais e financeiros. Nesta chave, não há sentido em diferenciar como polos analíticos privilegiados e excludentes as esferas da produção e da circulação. O capitalismo histórico se desenrola em ambas, com taxas variadas de intensidade e de retorno conforme o tempo e o espaço. 50. Cf. Arrighi, O longo século XX.
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Sua viabilidade é garantida pela mobilização de aparatos institucionais e coercitivos (sistemas políticos, regras jurídicas, normas de conduta etc.) e pelo recurso a modalidades variadas de exploração do trabalho, que por sua vez são reconfiguradas permanentemente pela dinâmica da correlação social de forças. Por essa razão, tais formas não se apresentam como simples relações mecânicas entre exploradores e explorados, mas antes configuram formações sociais específicas, complexas e não menos dinâmicas.51 Assim como a economia de mercado e o próprio capital, a escravidão preexistiu e pôde se constituir alheia ao desenvolvimento do capitalismo histórico, o que lança luz ao fato de ela também ser uma instituição atravessada por múltiplos estratos de tempo e, portanto, prenhe de história. Afirmá-lo não significa repisar os estudos globais da escravidão citados anteriormente, que no mais das vezes se resumem a demonstrar que ela se manifestou de modo diverso no tempo e no espaço. Significa, pelo contrário, investigar sistematicamente os diferentes ritmos temporais presentes em cada configuração histórica da escravidão, ou seja, o permanente jogo das estruturas e dos eventos que as reiteraram e as transformaram. Ao fazê-lo, os diversos sistemas escravistas identificáveis ao longo da história poderão ser efetivamente conceituados como totalidades abertas, contraditórias e em permanente movimento. Para a escrita da História Global da escravidão atlântica, entendê-la como tal, em permanente relação com a totalidade aberta do capitalismo histórico, parece ser um caminho promissor. A construção da economia-mundo capitalista a partir do longo século XVI teve como um de seus elementos basilares a escravização dos africanos. Desse momento em diante, a escravidão atlântica assumiu arranjos específicos em tempos plurais, mantendo-se até o final do século XIX como força indissociável do capitalismo histórico. Em duas palavras: ao investigador interessado na História Global deste objeto, cabe observar, descrever e explicar como os múltiplos estratos de tempo da escravidão atlântica se relacionaram aos múltiplos estratos de tempo do capitalismo histórico.52 Para encerrar, cabem algumas observações sobre o método comparativo. Sebastian Conrad chamou atenção para o fato de que a história global demanda algo mais do que comparar e conectar, na medida em que tais procedimentos 51. Cf. Tomich, Pelo Prisma, pp. 53-79. 52. O conceito de estrato de tempo com o qual se opera aqui está fundado em Reinhart Koselleck. Ver o próximo capítulo deste livro.
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pouco inovam em relação ao que já se fazia antes. Vimos como a perspectiva comparada é bastante antiga no campo de estudos da escravidão. Após um refluxo decorrente da crítica ao paradigma de Tannenbaum, observa-se atualmente uma retomada de estudos comparados. Em sua maior parte, os trabalhos pretendem observar o campo de possibilidades para a atuação dos sujeitos escravizados ou libertos em diferentes jurisdições, combinando história social e micro-história.53 As áreas comparadas, contudo, são tomadas como unidades estanques, faltando uma perspectiva teórica que abarque a escala estrutural e a pluralidade dos tempos históricos. As conclusões ficam limitadas à demarcação de estratégias adotadas e à narração das proezas das vítimas do cativeiro em vencerem as dificuldades para a sua mobilidade. Dificilmente se supera a escala dos indivíduos e se analisa a relação dialética entre trajetórias e conquistas individuais e a dinâmica que envolve a reprodução do sistema de escravidão, muito menos suas relações com o capitalismo histórico. A proposta das histórias conectadas surgiu como uma alternativa à comparação histórica, vista pelos proponentes da nova abordagem como demasiado rígida e mais atenta à contraposição do que aos fluxos, às ligações, aos movimentos, às aproximações, quando não representaram – os termos são de Sanjay Subrahmanyam – “uma ressurgência insidiosa do etnocentrismo”.54 Recentemente, Serge Gruzinski, um dos grandes promotores das histórias conectadas, manifestou-se favoravelmente ao desenvolvimento da História Global, o que em sua letra aparece como um possível prolongamento das histórias conectadas.55 Novamente, creio que devemos ir mais além, por duas razões. Primeiro: as histórias conectadas produzem com frequência narrativas que menoscabam a assimetria entre indivíduos, grupos e países.
53. Ver, nesta perspectiva, os trabalhos colaborativos de Ariela Gross & Alejandro De la Fuente, “Slaves, free blacks, and race in the legal regimes of Cuba, Louisiana and Virginia: a comparison”, North Carolina Law Review, 91 (5): 1699-1756, 2013; João José Reis, Flávio Gomes & Marcus Carvalho, O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, e Rebecca Scott & Jéan Hébrard, Freedom Papers: an Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation. Cambridge: Harvard University Press, 2014. 54. Sanjay Subrahmanyam “Connected histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia”. Modern Asian Studies, 31 (3): 735-762, 1997. Ver, também, Serge Gruzinski, “O historiador, o macaco e a centaura: a ‘história cultural’ no novo milênio”, Estudos Avançados, 17 (49): 321-342, dez. 2003. 55. Serge Gruzinski, “How to be a global historian”, Public Books, May 15, 2016. Disponível em: http://www.publicbooks.org/how-to-be-a-global-historian/. Acesso em: 01 set. 2018.
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A despeito de certo empenho em contrário dos adeptos das histórias conectadas, especialmente no campo da história cultural, salta aos olhos mais um panorama de equivalências e reciprocidades do que processos de dominação e exploração. Segundo: uma conexão pode deixar transparecer influências, pressões e reações, sem esclarecer propriamente a integração. É possível, por exemplo, conectar a política antiescravista da Grã-Bretanha à abolição do tráfico no Brasil, expondo-se as motivações britânicas, as ações voltadas à consumação daquele fim e a forma como o governo imperial brasileiro acabou com o infame comércio, sem necessariamente examinar a unidade do processo para além da interação direta entre aqueles países, isto é, a transformação estrutural em escala global que ele estava envolvendo. Uma alternativa advém da proposta sistematizada há quase três décadas por Philip McMichael. Em um inspirador artigo, esse sociólogo mostrou como as concepções globais de mudança social vão de encontro aos métodos comparativos usuais (formais), que simplesmente identificam semelhanças e diferenças entre fenômenos que apresentam certa analogia essencial entre si. Necessita-se, segundo McMichael, de uma comparação incorporada que leve em consideração em escala global multiplicidades e singularidades, diacronias e sincronias. Nessa abordagem, o todo é antes de mais nada uma construção metódica obtida pela análise integrada das partes. Ao invés de uma premissa teórica ou empírica, a totalidade é resultado de um procedimento analítico (tal é o mundo analiticamente construído de que nos fala Sandra Kuntz, citada na abertura deste capítulo). Philip McMichael contrasta sua proposta de comparação incorporada tanto com a comparação abrangente de Charles Tilly quanto com a perspectiva de sistema-mundo de Immanuel Wallerstein: as duas últimas consideram a interconexão sistêmica entre experiências, mas explicam similitudes e divergências entre elas como consequências de suas relações com o todo. O resultado, no fim das contas, acaba sendo a criação de um campo mecânico de determinações, que projeta um modelo pré-concebido sobre a história, deixando escapar boa parte de sua dinâmica e de suas particularidades. Em vez de presumir o governo das partes pelo todo, busca-se, na comparação incorporada, capturar as interconexões sistêmicas globais em sua fluidez, tendo em vista o mútuo condicionamento entre partes e todo.56 56. Philip McMichael, “Incorporating comparison within a World-Historical perspective: an alternative comparative method”, American Sociological Review, 55 (3): 385- 397, jun. 1990.
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Mais recentemente, a geógrafa Gillian Hart buscou avançar em relação ao método descrito por McMichael com uma modalidade que denomina de comparação relacional.57 Dos acréscimos trazidos por esta autora, é possível referendar dois: a recusa da separação convencional entre tempo e espaço (tomando-se explicitamente tempo e espaço como uma unidade histórica plural, tal como o Atlântico, por exemplo), e a inclusão da dimensão da vida cotidiana como um aspecto essencial da análise (ponto importante para a articulação entre evento e estrutura, entre micro e macroanálise). Mas também é possível efetuar aqui uma certa inversão do terceiro acréscimo de Hart. Ela incluiu em sua proposta o método regressivo-progressivo de Henri Lefebvre,58 que é bastante sugestivo e operacional, sendo, no entanto, mais afeito ao campo da geografia do que ao da história. Por abarcar diretamente a questão da totalização histórica, creio haver, para a história global, maior pertinência heurística no método progressivo-regressivo de Jean-Paul Sartre, que, partindo da proposição de Lefebvre, supõe um permanente “vaivém” entre o geral e o particular, entre o concreto e o abstrato, entre a estrutura e o evento, entre os fluxos gerais da história e a esfera da biografia, tomada como produtora e produto de seu tempo.59 Em vez de substituir o método de McMichael por uma nova denominação, talvez a comparação incorporada deva ser considerada tal como o enfoque que ela enseja, isto é, um repertório aberto, passível de adequações e sofisticações para a consecução de seu escopo. Ela é pertinente para a História Global da escravidão atlântica pois faculta o estudo dos múltiplos tempos da escravidão, do desenvolvimento sincrônico de arranjos distintos, de sua combinação local e transnacional com outras modalidades de exploração do trabalho e de sua integração com os múltiplos estratos de tempo do capitalismo. Ao invés de serem tratadas como externas e independentes umas das outras, as regiões escravistas submetidas à observação devem ser compreendidas como momentos particulares de um mesmo processo histórico de longa duração, ou seja, de uma mesma 57. Gillian Hart, “Relational comparison revisited: marxist postcolonial geographies in practice”. Progress in Human Geography, 1: 1-24, 2016. 58. Passo 1, observação participante no local de pesquisa; passo 2, análise da realidade descrita com um esforço de datação; passo 3, estudos das modificações da estrutura datada ao longo do tempo. 59. Jean-Paul Sartre, “Questão de Método”. In: O existencialismo é um humanismo / A imaginação / Questão de Método (trad. port.). São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 171-175.
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estrutura histórica que as forma e é por elas formado. Prestando-se atenção às múltiplas mediações entre a economia e a política mundial e as condições locais (nas quais sobressalta a agência dos sujeitos históricos), tornar-se-á viável examinar como regiões apartadas espacialmente se condicionaram mutuamente ao longo do tempo, em um processo simultaneamente desigual e combinado, e que, ao se desenrolar, alterou em ritmos distintos as condições da reprodução do todo (a economia mundial e o sistema de estados) e das partes (as regiões produtoras e as unidades políticas que os compunham).
Capítulo 2 Braudel, Koselleck e o problema da escravidão moderna Com Waldomiro Lourenço da Silva Júnior
A experiência da guerra Além de ameaçar o mundo com as trevas da barbárie nazista, a Segunda Guerra Mundial poderia ter liquidado precocemente duas das mais poderosas mentes teóricas da historiografia do século XX.1 O lado francês dessa história é relativamente bem conhecido entre nós brasileiros. Pouco menos de dois anos após regressar de sua experiência docente na Universidade de São Paulo, Fernand Braudel viu eclodir o novo conflito internacional. Imediatamente reconvocado pelo exército francês para o posto de tenente de artilharia, foi alocado no sistema defensivo da Linha Maginot. Em 29 de junho de 1940, uma semana após a assinatura do armistício, caiu prisioneiro das forças alemãs junto a centenas de outros oficiais franceses. O ofício de historiador seria a válvula de escape para que suportasse a ruína de seu país e os cinco anos de cativeiro nas cidades alemãs de Mogúncia (1940-42) e Lübeck (1942-45). O cárcere do oficialato era menos rigoroso que outros campos de concentração. Por isso, Braudel pôde proferir palestras para os outros prisioneiros, corresponder-se periodicamente com Lucien Febvre e trabalhar na escritura de sua tese sobre o Mediterrâneo. Para tanto, além de sua prodigiosa memória e de algumas fichas de pesquisa que conseguiu obter por correio, foi importante a consulta de livros e periódicos disponíveis 1. Este capítulo foi publicado originalmente em História da Historiografia, 11 (28): 44-81, 2018. Agradeço aos editores a permissão para republicá-lo neste livro.
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em bibliotecas locais, vindo a incorporar um considerável repertório historiográfico de procedência germânica.2 No final de 1941, Braudel concluiu uma primeira versão da tese, redesenhado o esboço preliminar feito em 1939. Em Lübeck, em meio às reviravoltas da guerra, escreveria outras três versões do trabalho, refinando gradualmente o seu modelo de análise e a formulação teórica que viria a lume mais tarde. No entanto, a reação de Hitler aos bombardeios de Dresden entre 13 e 15 de fevereiro de 1945 quase pôs tudo a perder. Como vingança pelo incêndio dantesco da “Florença do Elba”, o líder nazista pensou seriamente em dar prosseguimento à proposta de Goebbels para que os SS preparassem o assassinato com lança-chamas de todos os oficiais estrangeiros sob sua guarda. A ação foi abortada, em abril, com as tratativas secretas de Himmler para assinar um armistício com os Aliados. Somente quinze anos depois Braudel viria saber, horrorizado, dos riscos que sua vida correra ao final da guerra. Seu campo de concentração em Lübeck foi libertado pelas tropas britânicas em 2 de maio de 1945.3 Exatamente um dia antes, em Bohumin (na fronteira da atual República Checa com a Polônia), Reinhart Koselleck caiu prisioneiro do Exército Vermelho. Vinte e um anos mais novo que Braudel, o futuro historiador alemão viveu a Segunda Guerra Mundial em liberdade, mas ao cabo dela o horror também o tocou. Sua adolescência e juventude foram moldadas pelo regime nazista. Em 1934, aos onze anos de idade, entrou para a Juventude Hitlerista. Em 1941, no final do Gymnasium, Koselleck se voluntariou, com todos seus colegas de classe, ao serviço militar, partindo já no final daquele ano para o front russo. No verão de 1942, estava alocado como soldado das divisões de artilharia do 6o Exército alemão. Em marcha para Stalingrado, o acaso veio salvá-lo: logo no início da campanha que mudaria a trajetória da guerra, um caminhão atropelou o pé de Koselleck, e ele acabou sendo deslocado para funções bem mais leves nas divisões de radares antiaéreos estacionadas na França. A rápida dilapidação da Wehrmacht no ano final da guerra o trouxe de volta aos campos de batalha no Front Leste, agora como soldado de infantaria. Em primeiro de maio de 1945, na véspera da libertação de Braudel em Lübeck, a divisão de Koselleck se rendeu aos soviéticos, que imediatamente a obrigaram a marchar até Auschwitz. Nas semanas seguintes, 2. Pierre Daix, Fernand Braudel. Uma biografia (trad. port.). Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 199-206. 3. Daix, Fernand Braudel, p. 236.
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sob regime de trabalho forçado, Koselleck tomou ciência do que lá ocorrera. À experiência direta no mais infame campo de extermínio da história, onde quase teve a cabeça esmagada por um antigo prisioneiro polonês, Koselleck seguiu para um campo de trabalho compulsório no Cazaquistão soviético, de onde foi liberado, um ano e meio depois, por invalidez – novamente, seu pé estropiado o salvando.4 Vemos, nesses episódios que acabamos de narrar, o peso de forças históricas de natureza estrutural na delimitação das opções dadas às trajetórias individuais de dois historiadores que se destacariam, nas décadas seguintes, justamente por teorizar de forma bastante original a natureza daquelas forças. Mas vemos também o peso do acaso nelas, isto é, de ocorrências circunstanciais (Braudel estacionado na Linha Maginot, e não nos Alpes; o atropelamento de Koselleck) que, em certo grau, determinaram o que efetivamente ocorreu com cada um deles. A experiência de ambos com as atrocidades da Segunda Guerra Mundial foi decisiva para o que viriam a fazer depois dela. Ainda que o projeto de enfrentar a problemática da duração histórica já estivesse no horizonte de Braudel antes de 1939, o tempo do cativeiro sob os nazistas teve papel de relevo para a formulação definitiva do modelo tripartite dos tempos históricos que tanto o notabilizaria. Por outro lado, toda a produção historiográfica de Koselleck – da crítica à potência autoritária e desestabilizadora do iluminismo à conceituação dos estratos do tempo – constituiu um constante esforço para dar conta do que foi a “experiência primária”, corporal, da guerra. Eis como iremos organizar o capítulo, que irá operar em dois planos distintos, porém articulados. Na primeira parte, apresentaremos o arco de diálogos historiográficos sobre o problema da teorização do tempo histórico que vai de Braudel a Koselleck, centrando-nos em especial na natureza da apropriação que o segundo historiador fez do trabalho do primeiro. Sem negar outras influências importantes para as formulações de Koselleck sobre o tempo histórico, o objetivo, aqui, é entender como historiador alemão contribuiu para solucionar o problema da “indigência teórica da ciência da história”, por meio do duplo procedimento de condensação e complexificação da proposta braudeliana sobre a pluralidade dos tempos históricos. Na segunda parte do artigo, efetuaremos um breve exame 4. Niklas Olsen, History in the Plural. An Introduction to the Work of Reinhart Koselleck. New York: Berghahn Books, 2012, pp. 11-13.
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historiográfico e teórico da escravidão negra nas Américas, procurando discutir as implicações e as potencialidades da teorização braudelkoselleckiana para o campo específico de investigação no qual atuamos. A escravidão é um fenômeno que, tanto pela sua amplidão milenar na história humana quanto por suas muitas peculiaridades verificadas nos diferentes locais onde existiu, oferece possibilidades privilegiadas para a exploração do quadro teórico que será apresentado com maior vagar na primeira parte do artigo. Mesmo que os historiadores de diferentes tendências e gerações tenham concebido e estudado a ocorrência de variações e transformações significativas, a forma como experiências e movimentos históricos de múltiplas durações se combinaram no tempo e no espaço dando origem a fases sincrônicas e diacrônicas do sistema de escravidão ainda está em grande medida por ser explorada. A consideração dos estratos de tempo que compuseram o cativeiro das populações de origem africana no Novo Mundo pode nos conduzir a uma agenda de pesquisa renovada. De Braudel a Koselleck. Em maio de 1946, Braudel deu por finalizado seu Doctorat d’État, escrito em sua maior parte nas condições que acabamos de sumariar. A teorização que então apresentou para apreender os distintos tempos históricos do Mediterrâneo na segunda metade do século XVI se fundava nos diálogos interdisciplinares anteriores dos historiadores associados à revista dos Annales. Com efeito, para dar conta de “uma história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca”, Braudel apresentava o conceito de um “tempo geográfico”; “acima dessa história imóvel”, prosseguia ele, haveria “uma história lentamente ritmada, dir-se-ia de bom grado, não fosse a expressão desviada de seu sentido pleno, uma história social, a dos grupos e dos agrupamentos”, que compreendia o “tempo social”; por fim, a história dos acontecimentos contra a qual se voltara o sociólogo François Simiand no começo do século XX, apreendida a partir da chave do “tempo individual”.5 Três planos temporais – geográfico, social e individual – distintos e sobrepostos, que significavam, em termos de elaboração teórica, um avanço ainda relativamente modesto em relação às 5. Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II. (Ed. 1966; trad. port). São Paulo: Martins Fontes, 1983, 2 v., v. I, p. 26.
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grandes obras redigidas antes da guerra por Lucien Febvre e Marc Bloch. O salto teórico definitivo de Braudel demandou o aparecimento de um novo e poderosíssimo adversário no campo francês das ciências humanas, a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, outro exprofessor da Universidade de São Paulo, que igualmente passou por uma experiência crucial de deslocamento durante a Segunda Guerra Mundial – no caso, o exílio em Nova York, quando se tornou professor da New School e estabeleceu estreito contato com o linguista russo Roman Jakobson. Às Estruturas Elementares do Parentesco, tese de doutorado escrita durante a guerra e editada ainda nos Estados Unidos, em 1947, seguiu-se, dois anos depois, a composição do artigo-manifesto “História e Etnologia” – posteriormente transformado no ensaio de abertura do volume Antropologia Estrutural, publicado no início de 1958.6 A história e a etnologia, argumentava Lévi-Strauss, partilhavam um chão comum ao estudarem a vida social humana, diferenciando-se, no entanto, pelo fato de a segunda tratar fundamentalmente do que escapava à consciência imediata dos seres humanos, isto é, as “condições inconscientes da vida social”. A antropologia, assim, tinha por meta descortinar os elementos invariantes capazes de explicar as forças universais presentes em todas as práticas sociais. Na avaliação de Lévi-Strauss, o saber histórico, embora necessário, mostrara-se insuficiente para dar conta de tal desafio em razão de seu caráter eminentemente ideográfico. Ao atribuir a Marx o aforismo de que “os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”, fincando a etnologia no segundo termo, Lévi-Strauss acreditava ter lançado as bases da cientificidade de um saber eminentemente nomotético.7 As reações à posição anti-História de Lévi-Strauss vieram, de início, do campo da filosofia. Claude Lefort, ainda aliado politicamente a JeanPaul Sartre, salientou em artigo de 1952 como a perspectiva etnológica de Lévi-Strauss anulava o tempo histórico. A saída que Lefort ofereceu, recorrendo à categoria heideggeriana da historicidade, consistiu em apontar 6. Claude Lévi-Strauss, Antropología estructural (1a ed. 1958; trad. esp.). Buenos Aires: Ed. Paidos, 1995, pp. 49-72; François Dosse, História do Estruturalismo (trad. port.). São Paulo: Ensaio-Ed. Unicamp, 1993, 2 v., v. I, pp. 31-52. 7. Lévi-Strauss, Antropología estructural, p. 70; José Carlos Reis, Tempo & História. Tempo Histórico, História do Pensamento Ocidental e Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, pp. 177178; François Dosse, A História em Migalhas. Dos Annales à Nova História. (trad. port.) São Paulo: Ensaio-Ed. Unicamp, 1992, pp. 109-110.
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como as chamadas “sociedades frias” organizavam seu tempo de forma distinta das sociedades ditas “históricas”.8 Sartre, por sua vez, enfrentou o problema da possibilidade de constituir uma antropologia simultaneamente “estrutural e histórica” cinco anos depois, nas páginas de Les Temps Modernes, em “Questão de Método”, posteriormente convertida em abertura à Crítica da Razão Dialética.9 Foi somente neste momento, em 1958, que se deu a entrada de Braudel no debate. O historiador respondeu ao desafio da antropologia com a categoria da duração, ausente tanto na resposta de Lefort como na de Sartre. Ao fazê-lo, apresentou o que pode ser tomado como a principal formulação teórica de todo o movimento dos Annales: a decomposição do tempo histórico entre longa duração, conjuntura e evento. Na medida que “História e Ciências Sociais: A Longa Duração” é um texto matricial para nossa profissão, sobejamente conhecido, queremos destacar tão somente três pontos de seu argumento. O primeiro diz respeito à crítica algo frequente de que o artigo programático de 1958 pouca teorização teria trazido, para além de uma defesa difusa do primado da longa duração como uma ferramenta analítica capaz de unificar os esforços de investigação da história aos da sociologia, da antropologia e da economia. É de uma assertiva como esta que deriva, por exemplo, a avaliação de François Dosse sobre o “efeito Braudel” para as gerações posteriores dos Annales, vale dizer, uma suposta ausência de um eixo teórico mínimo impactando negativamente os historiadores que vieram depois dele. A carência de teorização se expressaria notadamente no tratamento do conceito de estrutura, tomado de empréstimo de LéviStrauss para descrever o que antes Braudel denominara como o “tempo geográfico”. A concepção braudeliana de estrutura, afirma Dosse, seria “fundamentalmente descritiva”, ou seja, não teórica.10 Tal crítica, contudo, 8. Claude Lefort, “Sociedade ‘sem história’ e historicidade” (1a ed.: 1952). In: As Formas da História. Ensaios de antropologia política (trad. port.) São Paulo: Brasiliense, 1979, pp. 37-56. A crítica de Lefort foi incorporada por Lévi-Strauss em artigo posterior, publicado nos Annales (1971). Para um trabalho recente que procura demonstrar como Lévi-Strauss se reaproximou da história, ver Francine Iegelski, A astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre o pensamento de Claude LéviStrauss e a história. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2012, pp. 248-280. 9. Jean-Paul Sartre, “Questão de Método”. In: O existencialismo é um humanismo / A imaginação / Questão de Método (trad. port.). São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 111-191. 10. Dosse, A História em Migalhas, pp. 115-116.
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pode ser questionada. A ênfase do manifesto de 1958 recai a todo momento na “dialética da duração”, na “pluralidade” dos tempos históricos,11 e não apenas na longa duração. Estrutura é tomada como um conceito analítico, não como um termo descritivo, e como tal, como constructo analítico, contrapõe-se e se articula dialeticamente ao conceito de evento. Daqui derivam o segundo e o terceiro pontos que gostaríamos de ressaltar: como, por um lado, Braudel conceitua a estrutura e, por outro, como apreende suas relações dialéticas com o evento. Estrutura é “articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade” de natureza temporal, isto é, com duração própria. Estruturas surgem e desaparecem conforme seus ritmos descontínuos. Inexistem, assim, estruturas anistóricas, para sempre imutáveis, como propusera a antropologia estrutural de LéviStrauss. As estruturas – sempre históricas, afirma o historiador – são “sustentáculos e obstáculos”.12 Nesta formulação rapidamente tornada canônica, Braudel dialogou explicitamente com toda a tradição crítica, vinda do pensamento oitocentista, que tratou da dialética liberdade/ necessidade. Como “sustentáculos e obstáculos”, as estruturas temporais de longa duração estabeleceriam a cada circunstância historicamente dada o horizonte do possível, isto é, a partir do que foi legado do passado, o que se poderia fazer em um determinado espaço de atuação humana. Quando algo se passou no plano de eventos que se adensaram cumulativamente ultrapassando esse horizonte do possível, já se tratava de uma estrutura em processo de transformação. Ao partir para a exemplificação do que seriam essas estruturas, Braudel fugiu deliberadamente do campo que lhe era mais confortável (a geohistória do Mediterrâneo ou a economia-mundo capitalista europeia), justamente para fundamentar a validade geral de seu argumento. Não será sem surpresa que um leitor atual, desavisado por décadas de difusão do que seria a longa duração em Braudel, o encontrará citando a análise de Pierre Francastel sobre o espaço pictórico geométrico criado pelo Renascimento florentino como um exemplo de estrutura de longa duração.13 Trata-se de uma teorização de estrutura aberta tanto às forças econômicas e sociais como às forças simbólicas, bastante próxima
11. Fernand Braudel, “História e Ciências Sociais: a Longa Duração” (1a ed.: 1958; trad. port.). Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 43. 12. Braudel, “História e Ciências Sociais”, pp. 49-50. 13. Pierre Francastel, A realidade figurativa (trad. port.). São Paulo: Perspectiva, 1993.
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ao trabalho que seria posteriormente realizado pelo antropólogo Maurice Godelier sobre as determinações recíprocas do mental e do material.14 Outro diálogo surpreendente – o terceiro e último ponto a ressaltar – se encontra no tratamento das relações entre estrutura e evento. O evento pertence à escala da curta duração, é certo, mas Braudel reconhece o peso do argumento dos “filósofos” de que “um evento, a rigor, pode carregar-se de uma série de significações ou familiaridades. Dá testemunho por vezes de movimentos muito profundos e, pelo jogo factício ou não das ‘causas’ e dos ‘efeitos’ caros aos historiadores de ontem, anexa um tempo muito superior à sua própria duração”. Tal conceituação faz parte, nas palavras de Braudel, desse “jogo inteligente e perigoso que as reflexões recentes de Jean-Paul Sartre propõem”.15 Abria-se, assim, um diálogo direto com o outro grande crítico contemporâneo da antropologia estrutural anistórica de Lévi-Strauss. A referência a que se remete Braudel é justamente a “Questão de Método”, publicada em 1958. O que haveria de “perigoso” no jogo proposto por Sartre? Ver, na singularidade universal do indivíduo, na trama dos eventos particulares passados e presentes que marcam a vida de cada um nós, as múltiplas articulações de escalas espaço-temporais bem mais vastas, ou seja, estruturais. Mas não somente isso: para apreender a totalidade no acontecimento, valer-se do método progressivo-regressivo, isto é, do permanente jogo de “vaivém” (a expressão é de Sartre) que percorre o circuito hermenêutico completo do todo à parte / da parte ao todo, do abstrato ao concreto / do concreto ao abstrato, do presente ao passado / do passado ao presente, da biografia à época / da época à biografia.16 Exercício perigoso, porém inteligente e, para Braudel, inegavelmente sedutor: “a cada vez, o estudo do caso concreto – Flaubert, Valéry, ou a política exterior da Gironda – reconduz, finalmente, Jean-Paul Sartre ao contexto estrutural e profundo. Essa pesquisa vai da superfície às profundezas da história e atinge minhas próprias preocupações. Alcançá-las-ia ainda melhor se a ampulheta fosse inclinada nos dois sentidos – do evento para a estrutura, depois das estruturas e dos modelos para o evento”.17
14. Maurice Godelier, The Mental and the Material. Thought, Economy and Society (trad. ingl.) Londres: Verso, 1986. 15. Braudel, “História e Ciências Sociais”, p. 45. 16. Sartre, “Questão de Método”, p. 170. 17. Braudel, “História e Ciências Sociais”, p. 75.
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Aberturas ao campo do biográfico, do político, da história cultural, do marxismo, do existencialismo, tudo em nome da melhor captura da dialética da duração e da pluralidade dos tempos históricos: o antidogmatismo de Braudel, lido por seus críticos como um ecletismo teoricamente pouco sólido18, permitiu-lhe igualmente estender a mão aos que haviam dado suporte intelectual ao seus algozes de 1940 a 1945. No rodapé seguinte à citação de Francastel, lemos o nome do historiador Otto Brunner como um exemplo de história social, fora da França, atento à escala da longa duração.19 Em 1959, Braudel se deteve mais longamente sobre o trabalho dele, ao veicular nos Annales um ensaio sobre o livro Novas formas de história social, que Brunner havia publicado na Alemanha em 1956. Ele nascera em Viena, em 1889, onde fez toda sua formação de historiador e se tornou professor. Após a Segunda Guerra Mundial, foi afastado da direção do Instituto Austríaco de Pesquisa Histórica por suas filiações institucionais e afinidades ideológicas ao nazismo. Em 1954, foi contratado como catedrático pela Universidade de Hamburgo, onde veio desempenhar papel crucial na renovação historiográfica alemã, até aposentar-se em 1968.20 Braudel procurou dar conta, em sua resenha, da especificidade do programa de história social proposto por Brunner, que, em associação com Werner Conze, da Universidade de Heidelberg, estava então formalizando as bases de uma nova Strukturgeschichte – ou seja, de uma História Estrutural.21 Braudel não escondeu seu incômodo em relação ao livro, que nada devia em sua gênese aos Annales. No entanto, era exatamente isto o que o atraía no volume, pois, vindo de uma outra tradição intelectual e historiográfica, ele oferecia, “nas águas da longa duração, um certo modelo particular da história social europeia, do século XI ao XVIII”. Um dos aspectos mais criticados por Braudel foi exatamente o tratamento imóvel desse longo arco de tempo, sem atentar para as múltiplas modulações do tempo histórico. Ele também expressou um claro desconforto com o elogio de Brunner à estabilidade social do mundo do Antigo Regime; confessou não ter entendido a proposta de se analisar a história social do passado nos termos 18. Josep Fontana, História: análise do passado e projeto social. (trad. port.) Bauru: Edusc, 1998, pp. 208211. 19. Braudel, “História e Ciências Sociais”, p. 51, n. 13. 20. Olsen, History in the Plural, pp. 138-139. 21. Georg G. Iggers, The German Conception of History. The National Tradition of Historical Thought from Herder to the Present. (Rev. Ed.) Middletown, CN: Wesleyan University Press, 1983, pp. 262-264.
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dos horizontes conceituais coevos; criticou a ausência de distinção entre história social e história política. Braudel, contudo, “dividido entre uma certa simpatia e algumas reticências bastante vivas”, finalizou com um aceno para o diálogo entre duas tradições historiográficas distintas que buscavam atingir o mesmo alvo de compreender a história estrutural na longa duração e de forma interdisciplinar.22 O chamado à conversa foi atendido. Em 1961, Conze, que já havia resenhado elogiosamente O Mediterrâneo quando de sua primeira edição, convidou Braudel para um ciclo de conferências em Heidelberg, no que pode ser tomado como um momento de inflexão na trajetória de Reinhart Koselleck. Deixamos o personagem ao ser libertado do campo soviético no Cazaquistão, em 1946. Ao regressar à Alemanha, Koselleck retomou o quanto antes seus estudos, ingressando na Universidade de Heidelberg, onde, em 1954, sob a orientação do historiador Johannes Kühn e a inspiração teórica de Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e, sobretudo, Carl Schmitt, ele defendeu sua primeira tese de doutorado, Crítica e Crise, um sofisticado estudo sobre as relações contraditórias entre o absolutismo e o iluminismo e a gênese da permanente situação de crise da modernidade burguesa pósRevolução Francesa.23 A avaliação crítica do legado do Iluminismo, que em razão de suas filosofias da história de fundo utópico se converteu em um elemento de permanente desestabilização política, fez parte da tentativa de Koselleck dar conta de suas experiências pessoais traumáticas entre 1934 e 1945. De fato, como ele próprio reconheceu em diversas ocasiões, toda sua produção intelectual seria movida por esse impulso básico. Braudel, contudo, só entrou no radar de Koselleck na segunda tese de doutorado dele (sua Habilitationsschrift), agora sob a supervisão de Werner Conze. Entre um trabalho e outro, mudou não somente o orientador (Kühn se aposentou em 1957) como também o recorte cronológico (dos séculos XVII e XVIII para o século XIX), o recorte espacial (de Inglaterra e França para a Prússia) e o subcampo disciplinar (da história intelectual para a história social). Ao ser contratado como catedrático em Heidelberg em 1957, Conze, outro antigo simpatizante nazista às voltas com um permanente acerto de
22. Fernand Braudel, “Sobre uma Concepção de História Social”. (1a. ed.: 1959; trad. port.) Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 161-176. 23. Reinhart Koselleck, Crítica e Crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. (1a. ed.: 1957; trad. port.) Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. UERJ, 1999.
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contas com o passado, imediatamente lançou, em associação com Otto Brunner, as bases do programa da História Estrutural. Seu fundamento consistia em romper com as tradições historicistas alemãs por meio de um mergulho nas abordagens de larga escala e na aliança com as ciências sociais adjacentes (notadamente com a sociologia). Eram justamente essas afinidades eletivas que atraíam Braudel – conforme deixou claro na resenha de 1959 –, e que o levaram a ser convidado por Conze para visitar Heidelberg, no exato momento em que Koselleck elaborava sua tese de Habilitation. Prússia entre a Reforma e a Revolução (1791-1848), defendida em 1965 e publicada dois anos depois, representou uma primeira aproximação analítica de Koselleck em relação à pluralidade dos tempos históricos, explorada para lidar com a especificidade social e política prussiana no século XIX, travejada, por um lado, pela aceleração das transformações sociais e econômicas advindas do engate industrial e, por outro, pelas assimetrias temporais contidas no dilema reforma versus revolução. Em seus termos, “teoricamente, a investigação trata de diferentes estratos de tempos. As distintas durações, velocidades e modos de aceleração desses estratos produziram as tensões da época e, assim, caracterizaram sua unidade”.24 Essa abordagem, combinada a uma reavaliação dos legados intelectuais de Schmitt, Heidegger e Gadamer, propiciou as bases intelectuais para as contribuições de Koselleck sobre a história conceitual do universo de fala germânica entre 1750 e 1850. O projeto coordenado de forma conjunta com Brunner e Conze, com desdobramentos em várias historiografias nacionais, resultou em nove volumes publicados entre 1972 e 1997. Foi no âmbito desse empreendimento coletivo que se deu a construção teórica de Koselleck sobre a dialética dos tempos históricos. A partir de 1973, quando passou a trabalhar na recém-criada Universidade de Bielefeld, Koselleck abriu outro diálogo crítico, agora com a história social de matriz weberiana proposta por Hans-Ulrich Wehler e Jürgen Kocka, seus colegas de instituição. Todos os trabalhos de Koselleck sobre o problema dos tempos históricos publicados nas décadas de 1970 e 1980, grande parte dos quais reunidos nos volumes Futuro Passado (2006) e Estratos do Tempo (2014), podem ser igualmente lidos
24. Reinhart Koselleck, La Prussia tra riforma e rivoluzione (1791-1848). (trad. italiano). Bologna: Il Mulino, 1988, p. 14.
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como uma crítica direta às teorias da modernização que embasaram o programa de História Social de Wehler e Kocka.25 Diferentemente de Braudel, cuja reflexão teórica mais detida sobre a problemática dos tempos históricos se resume basicamente ao artigo de 1958, a elaboração de Koselleck encontra-se dispersa em vários dos capítulos que compõem os livros Futuro Passado e Estratos de Tempo. Assim como fizemos para o historiador francês, cabe aqui apenas uma apresentação sumária dos principais eixos da teoria koselleckiana sobre a pluralidade dos tempos históricos, ressaltando em que medida ela deu continuidade às formulações braudelianas e em que medida inovou. O ponto fundamental repousa sobre o que Koselleck denominou como a “indigência teórica da ciência da história”, título de um artigo publicado originalmente em 1972. Ao retomar o argumento popperiano sobre a perda de sentido da oposição entre ciências nomotéticas e idiográficas, Koselleck ressaltou a necessidade de a prática de pesquisa dos historiadores se fundar em teorias explícitas, “aceitando o desafio de uma exigência de teoria se quisermos que a ciência da história continue a se definir como ciência”. Os “teoremas das ciências vizinhas” – isto é, a aposta na interdisciplinaridade feita, dentre outros, pelos Annales e pela história social alemã – não poderiam vir em socorro. Para Koselleck, “a ciência da história, disposta ubiquitariamente, só poderá persistir como ciência se desenvolver uma teoria dos tempos históricos, sem a qual a ciência da história, como investigadora de tudo, se perderia na infinidade”.26 A saída para suplantar a situação de “indigência teórica”, portanto, seria renovar e radicalizar a perspectiva braudeliana. A primeira inovação em relação a Braudel consistiu em fundamentar a elaboração teórica em torno das categorias meta-históricas da experiência e da expectativa. Segundo Koselleck, elas permitem dar conta, de forma integrada e substantiva, de como em um determinado presente se articulam as dimensões temporais do passado e do futuro. No que se refere à categoria da experiência, 25. Sobre a História Social de Bielefeld, ver Georg G. Iggers, Historiography in the Twentieth Century. From Scientific Objectivity to the Postmodern Challenge. Middletown, CN: Wesleyan University Press, 1997, pp. 65-77, e Geoff Eley, A Crooked Line. From Cultural History to the History of Society. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2005, pp. 65-81; sobre a crítica de Koselleck, ver Olsen, History in the Plural, pp. 203-267. 26. Reinhart Koselleck, Estratos do Tempo. Estudos sobre a História (1a. ed.: 2000; trad. port.). Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-RJ, 2014, p. 280.
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a definição koselleckiana aponta tanto para a “elaboração racional” como para as “formas inconscientes de comportamento” presentes nas múltiplas experiências dos atores históricos. A experiência que guia o horizonte das expectativas para o futuro, conformando a atuação planejada – ou não – em um dado presente, “é espacial, porque ela se aglomera para formar um todo em que muitos estratos de tempos anteriores estão simultaneamente presentes, sem que haja referência a um antes e um depois”. Se, no desenrolar dos acontecimentos, as expectativas confirmam as experiências prévias, esses “eventos estruturados” não rompem o legado dos estratos de tempo anteriores. Apenas aquilo que não é esperado, mas que está necessariamente contido no campo de possibilidades construído pelo passado, é que cria uma experiência nova, alargando assim o horizonte de expectativas.27 As relações entre espaços de experiências e horizontes de expectativas, ressalta, não são estáticas. A tese central de Koselleck sobre a temporalidade específica da modernidade consiste justamente em assinalar o hiato crescente entre o achatamento dos espaços de experiências e o alargamento dos horizontes de expectativas, algo que se relaciona à própria transformação do conceito de história na virada do século XVIII para o XIX. A percepção de que o tempo sempre marcha para frente, em um sentido unívoco de progresso contínuo, forneceu, daquele momento em diante, um dos mais sólidos fundamentos para a construção dos saberes históricos. No entanto, o descompasso crescente entre experiência e expectativa produzido pela aceleração progressiva do tempo histórico também possibilitou a tomada de consciência de que o tempo presente é sempre atravessado por múltiplos e diferentes tempos passados. A constatação empírica da “contemporaneidade do não contemporâneo”, em realidade, antecedeu em pelo menos um século e meio a obra dos historiadores pós-Segunda Guerra Mundial.28 A partir dessas duas categorias meta-históricas básicas, experiência e expectativa, Koselleck fundamentou o tratamento teórico e empírico dos estratos do tempo.
27. Reinhart Koselleck, Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. (1ª ed.: 1979; trad. port.) Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.PUC-RJ, 2006, pp. 311-313. 28. Koselleck, Futuro Passado, p. 14.
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Braudel foi frequentemente criticado por supostamente ter sido incapaz de articular, na sua prática historiográfica, as inter-relações entre os três tempos – estrutura, conjuntura, acontecimento – que descreveu e teorizou.29 Koselleck foi um dos que assinalou esse problema: o modelo de Braudel, malgrado sua notável inovação ao teorizar a existência de temporalidades múltiplas, com frequência induziu – e não raro os esforços e ressalvas de seu próprio autor – ao equívoco de se compreender a longue durée como um ente estático, e as diferentes durações como “circuitos paralelos”, estanques entre si.30 Para resolver o impasse, o historiador alemão concentrou-se no par interligado estrutura/evento e, ao incorporar integralmente a crítica de Braudel ao tratamento estático que Otto Brunner dera ao tempo estrutural, conferiu-lhe uma plasticidade temporal mais acentuada, enxergando um campo de integração entre a repetibilidade e a singularidade, cuja trama caberia ao historiador decifrar em sua prática de pesquisa. Dessa maneira, Koselleck simultaneamente condensou e complexificou a abordagem braudeliana: condensou, pois propiciou as bases para se pensar as formas objetivas como aspectos remissíveis a durações variadas de um tempo estrutural que se combinam nas experiências humanas; complexificou, pois forneceu mais elementos para se pensar estruturas, processos e sincronismos. A característica essencial das estruturas, para o historiador alemão, seria a reiteração temporal, “o retorno do mesmo, ainda que o mesmo se altere a médio ou longo prazo”.31 Em Koselleck, e a exemplo de Braudel, as estruturas têm real historicidade e envolvem de forma mais explícita os diversos domínios do mental e do material, o que abre espaço para um diálogo construtivo entre a história dos conceitos e a história social de vezo marxista. Dentre os exemplos de estrutura que fornece, incluem-se os “modelos constitucionais, [...] as forças produtivas e as relações de produção, [...] as circunstâncias geográficas e espaciais, [...] formas de comportamento inconscientes, [...] sucessão natural de gerações, [...] os costumes o os sistemas
29. J. Hexter, “F. Braudel and the ‘monde braudelien...’”. The Journal of Modern History, 44 (4): 480539, Dec. 1972; José Carlos Reis, “A temporalidade e seus críticos”. In: M. A. Lopes (org.), Fernand Braudel. Tempo e História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, pp. 119; Fontana, História, p. 208. 30. Carsten Dutt, “História(s) e Teoria da história: entrevista com Reinhart Koselleck”, História da Historiografia, 18: 311-324, 2015; Koselleck, Estratos do Tempo, p. 13. 31. Koselleck, Estratos do Tempo, p. 305.
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jurídicos”, dentre outros.32 O autor discerne as estruturas diacrônicas de eventos (feixe de acontecimentos que constituem uma trama processual envolvendo amplos movimentos e transformações de ordem econômica e política) das estruturas de prazo mais longo (ideias, costumes, normas de conduta, práticas econômicas e sociais que transcendem em muito as experiências individuais). O passo adiante em relação às concepções braudelianas de conjuntura e longa duração está na elucidação de sua relação complexa, dialógica e movediça com as experiências individuais, que são ao mesmo tempo únicas e remissíveis a uma certa ancestralidade e repetibilidade. É nesse sentido que as experiências do tempo podem ser percebidas em estratos, sendo que “eventos e estruturas estão entrelaçados, mas um nunca pode ser reduzido ao outro”.33 Dessa forma, o tratamento da dimensão temporal do evento é igualmente mais complexo do que em Braudel, mas as linhas de continuidade são evidentes. A começar pelo pressuposto geral: “estruturas mais ou menos duradouras, mas de todo modo de longo prazo, são condições de possibilidade para os eventos[;] [...] “ambos os níveis [...] remetem um ao outro, sem que um se dissolva no outro”. De fato, e aqui vemos o giro da ampulheta braudeliana, “certas estruturas só podem ser apreendidas nos eventos nos quais se articulam e por meio dos quais se deixam transparecer”. “A forma mais adequada para se apreender o caráter processual da história moderna”, conclui Koselleck, “é o esclarecimento recíproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa.”34 Certos eventos, ao trazerem ruptura na ordem de repetição do tempo, adquirem claro significado estrutural; reversivamente, determinadas durações não imediatas podem se tornar eventos. Ademais, a temporalização da história ocorrida na virada do século XVIII-XIX com a chamada “dupla revolução” (Koselleck esposa, sem citá-lo, o conceito cunhado por Eric Hobsbawm35) modificou a natureza das inter-relações entre estruturas e eventos. Com a aceleração do tempo histórico que se deu
32. Koselleck, Futuro Passado, p. 136. 33. Koselleck, Estratos do Tempo, p. 307. 34. Koselleck, Futuro Passado, pp. 137-140. 35. Eric Hobsbawm, A Era das Revoluções, 1789-1848. (1a ed.: 1962; trad. port.) Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977. Hobsbawm, aliás, foi professor de Koselleck em 1947-1948, portanto logo após a Segunda Guerra, em um campo criado pelos ingleses em sua zona de ocupação na Alemanha para a desnazificação de jovens professores alemães. Ver Richard J. Evans, Eric Hobsbawm. A life in History. Oxford: Oxford University Press, 2018, pp. 259-260.
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em seu esteio, “a própria mudança estrutural passou a ser um evento: esta é a característica da nossa modernidade”.36 Para dizer de outra forma: uma das principais manifestações da aceleração do tempo histórico da modernidade reside justamente no fato de as estruturas históricas serem de duração cada vez mais curta. O olhar cuidadoso para as profundas rupturas históricas trazidas pela permanente revolução capitalista das forças produtivas, das relações de produção, dos meios de transporte e de comunicação também levou Koselleck a rediscutir a natureza do tempo geográfico. Braudel foi fundamentalmente um historiador do mundo pré-industrial, sentindo-se desconfortável com a análise do mundo produzido pela Revolução Industrial.37 Koselleck navegou bem pelos dois, o que facilmente se nota pela conceituação que deu aos estratos do tempo. Para além das estruturas e dos eventos, reconheceu a existência de “precondições que podem ser delimitadas geográfica ou biologicamente e cuja duração escapa à intervenção humana”. Braudel conceituaria essa dimensão como parte da “longuíssima duração”. Koselleck nos fornece outra solução teórica, ao chamar atenção para a distinção temporal de fundo entre as “condições espaciais meta-históricas”, isto é, aquelas condições que escapam integralmente ao domínio humano e, portanto, estabelecemse como determinação geográfica, e os “espaços históricos da organização humana”, isto é, os espaços físico-naturais historicamente transformados pela ação humana e, portanto, submetidos às mesmas variações temporais de outras estruturas históricas. Se a Revolução Neolítica permitiu o início da apropriação em larga escala dos recursos físico-naturais, os espaços históricos da organização humana continuaram a enfrentar um obstáculo intransponível, ditado pelos limites que as forças animal e eólica imprimiam à velocidade. No mundo reconfigurado pela ciência e pela técnica industriais, a aceleração adquiriu a capacidade de modificar radicalmente as relações espaço-temporais, desnaturalizando o espaço geográfico e, por consequência, as condições espaciais meta-históricas.38 Para resumir em uma frase o argumento que procuramos expor até aqui: o maior e melhor continuador da teorização braudeliana dos tempos históricos, que dele partiu e que foi mais além, não se encontra na França, 36. Koselleck. Estratos do Tempo, p. 307. 37. Dutt, “História(s) e Teoria da história”, p. 321. 38. Koselleck, Estratos do Tempo, pp. 73-89.
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mas sim na Alemanha. É notável, contudo, o silêncio dos especialistas sobre essas relações de fundo entre Braudel e Koselleck, o que talvez traduza sua recepção predominante como o historiador dos conceitos, que deixa de lado o historiador atento à vida social e material. As ótimas introduções que Elias Palti, Marcelo Jasmin, Arthur Alfaix Assis e Sérgio da Mata prepararam para edições em espanhol e português das obras do historiador alemão reforçam o que estamos afirmando: nenhuma palavra sobre Braudel e os tempos históricos, todas as atenções para as tradições da história intelectual alemã com as quais dialogou Koselleck.39 Observação parecida vale para a historiografia anglo-saxã, que ainda teve que lidar por certo tempo com uma barreira no campo da recepção teórico-conceitual: a primeira edição em inglês de Estratos do Tempo, feita sob a coordenação de Hayden White, traduziu “teoria dos tempos históricos” como “teoria de periodização”!40 No entanto, mesmo o autor que identificou esse problema, o historiador norueguês Helge Jordheim, oferece-nos apenas uma menção a Braudel em um artigo que lida exatamente com a teoria das múltiplas temporalidades de Koselleck.41 Não é difícil enxergar, por fim, uma série de aproximações entre 39. Elias José Palti, “Introducción”. In: Reinhart Koselleck. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia (trad. esp.). Barcelona: Paidós, 2001, pp. 9-33; Marcelo Jasmin, “Apresentação”. In: Reinhart Koselleck. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. (1ª ed.: 1979; trad. port.) Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.PUC-RJ, 2006, pp. 9-12; Assis, Arthur Alfaix; Mata, Sérgio da. “Prefácio: O conceito de história e o lugar dos Geschichtliche Grundbegriffe na história da história dos conceitos”. In: Reinhart Koselleck, Christian Meier, Horst Günther e Odilo Engels. O conceito de história. (trad. port). Belo Horizonte: Autêntica, 2013, pp. 9-34. 40. Reinhart Koselleck, The Practice of Conceptual History. Timing History, Spacing Concepts. (trad. ingl.) Stanford: Stanford University Press, 2002. Há uma nova tradução para o inglês que corrigiu esses problemas: R. Koselleck, Sediments of Time. On Possible Histories. Translated and edited by Sean Franzel & Stefan-Ludwig Hoffman. Stanford: Stanford University Press, 2018. Tomamos ciência deste trabalho após a publicação de nosso artigo na História da Historiografia. A introdução que os dois autores/editores prepararam para o novo volume guarda alguns pontos de contato importantes com nosso argumento sobre as relações entre a teorização de Braudel e Koselleck. 41. Helge Jordheim, “Against Periodization: Koselleck’s Theory of Multiple Temporalities”, History and Theory, 51: 151-171, May 2012. Cabe reconhecer que, em outra peça publicada dois anos depois, Jordheim comparou as concepções de Braudel e Koselleck em seus trabalhos sobre tempo histórico, mas, ao fazê-lo, simplificou demasiadamente as concepções do primeiro. Passando ao largo das obras de fôlego do autor, Jordheim dá a entender que Braudel nada mais fez senão conferir alguma ordem aos ritmos temporais destacados pela sociologia e lamenta que o estudioso francês tenha deixado de reconectar a história com a natureza, “com os ritmos e durações naturais”. Ora, basta ler com alguma atenção a primeira parte de O Mediterrâneo para constatar que tal impressão é equivocada. As assertivas sobre Koselleck são mais acuradas, inegavelmente.
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a obra de Koselleck e o historicismo realista de Antonio Gramsci: Esteve Morera explicitou essas relações para Braudel; o mesmo pode ser feito com o corpus koselleckiano.42 A teorização sobre os tempos históricos que até aqui examinamos foi concebida por seus autores como sendo de caráter eminentemente prático, voltada para as demandas concretas da investigação histórica. Dado esse caráter, quais são suas implicações e potencialidades para o estudo da escravidão moderna? Como nos valer dessas perspectivas para a compreensão deste objeto específico? No espaço que nos resta neste capítulo, pretendemos apontar os ganhos a serem obtidos caso a historiografia da escravidão moderna abrace a proposta braudeliana/ kosellekiana de tratamento da dialética dos tempos históricos. Para tanto, efetuaremos um breve balanço historiográfico de algumas das principais tendências do campo da escravidão para, em seguida, apresentarmos nossa acepção da dialética dos tempos da escravidão moderna sob um olhar teórico inspirado em Braudel e Koselleck. Nossa intenção não é cobrar dos estudiosos do passado formulações, definições e conclusões que são caros ao nosso enfoque e não aos deles, mas antes mapear o terreno para um campo de possibilidades analíticas ainda em aberto. Os múltiplos tempos da escravidão negra nas Américas Sem negar as contribuições das diferentes gerações de historiadores nem projetar sobre o trabalho deles um leque alheio de preocupações, efetuaremos, agora, uma avaliação panorâmica – e, portanto, necessariamente sintética – Mas, ao realçar a indissociabilidade das concepções do historiador com os usos da linguagem, deixa de lado a maneira como ele trabalha ou incorpora dimensões extralinguísticas ou materiais, que, como vimos, também são abarcadas nas reflexões de Koselleck. Ver Helge Jordheim, “Introduction: Multiple Times and the Work of Synchronization”, History and Theory. Forum Multiple Temporalities, 53: 498-518, 2014. 42. Esteve Morera, Gramsci’s Historicism. A realist interpretation. London: Routledge, 1990. Explorar as articulações teóricas entre Braudel, Koselleck e o historicismo realista de fundo marxista constitui objeto para outra ocasião. Neste sentido, o trabalho que vem sendo desenvolvido por Falko Schmieder sobre a figura de pensamento da simultaneidade do não simultâneo tem grande relevância, Como ele demonstra em artigo recente, essa figura foi crucial para todo o pensamento crítico do século XIX, em especial para o marxismo. Koselleck, aqui, apresenta-se como um devedor direto de Ernst Bloch. Ver Falko Schmieder, “Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen. Zur Kritik und Aktualität einer Denkfigur”, Zeitschrift für kritische Sozialtheorie und Philosophie, 4 (1-2): 325-363, 2017.
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sobre a forma como cinco das principais correntes da historiografia sobre a escravidão negra das Américas lidaram com o tempo histórico. Essa historiografia é herdeira direta do movimento abolicionista anglosaxão e francês da virada do século XVIII para o XIX. As primeiras histórias da escravidão antiga e moderna foram compostas por letrados e ativistas políticos antiescravistas que, para melhor combater a instituição, viram-se obrigados a historiá-la.43 Os abolicionistas o fizeram dentro a partir do que Koselleck denominou a “temporalização da utopia”, a saber, a projeção para o futuro de um mundo ideal vislumbrado no presente (o mundo da liberdade) – somente o aperfeiçoamento moral e institucional vindouro romperia com as misérias daquele presente.44 Desde seu nascimento, portanto, a escrita da história da escravidão negra fundou-se nas premissas temporais do conceito de progresso: o avanço econômico, moral e humano a ser obtido com a abolição é o que justificaria o combate sem quartel à instituição.45 Não obstante todas suas revisões e renovações, em grande parte a historiografia no século XX manteve, ao examinar este objeto específico, as linhas gerais da concepção de tempo linear e progressiva adotada pelos seus primeiros estudiosos, os abolicionistas do século XIX. Vejamos, primeiramente, historiadores de inspiração marxista. Dois de seus pioneiros, Eric Williams e C.R.L. James, tiveram como eixo central de crítica a perspectiva veiculada por Reginald Coupland, que reforçou, no centenário da abolição britânica, a autoimagem congratulatória que os abolicionistas haviam criado de sua façanha, uma empresa moral apartada de quaisquer interesses materiais, compromissada apenas com o aperfeiçoamento humano. Coupland era, então, um dos principais ideólogos do império britânico: atacar sua explicação da abolição, fundada na premissa de que a Grã-Bretanha era uma agente primordial do progresso civilizacional, significava atacar os fundamentos ideológicos do império que Williams e James estavam a combater. Ambos desenvolveram a tese, já presente em Marx, de que a escravidão colonial nas Américas foi crucial para a emergência do capitalismo industrial no espaço metropolitano, mas as forças econômicas, sociais e políticas que emergiram com a consolidação da 43. Ver, sobre o assunto, a discussão de Moses I. Finley, Escravidão antiga e ideologia moderna (trad. port.) Rio de Janeiro: Graal, 1991, pp. 13-68. 44. Koselleck, Estratos do Tempo, pp. 121-138. 45. Cf. David Brion Davis, Slavery and Human Progress. Oxford: Oxford University Press, 1984, pp. 107-116.
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industrialização acabaram por solapar as bases da escravidão nas colônias. A constelação histórica das forças capitalistas se modificara na passagem da era mercantilista para a era do livre comércio, mas a escravidão negra permanecera igual.46 Williams e James, assim, operaram com a mesma conceituação do tempo histórico da escravidão negra que fora adotada por Coupland, ou seja, um tempo uniforme do século XVI ao século XIX. Como sabemos, a análise do historiador brasileiro Fernando Novais sobre o papel da escravidão negra na estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial fundou-se, em larga escala, no esquema explicativo de Eric Williams. Ainda que seja possível identificar a dialética braudeliana dos tempos históricos nos escritos de Novais, em função das especificidades de seu objeto e de sua filiação em relação ao trabalho de Williams, ele não se debruçou sobre a pluralidade temporal da escravidão colonial. Para autores como Emília Viotti da Costa, Eugene Genovese, Moreno Fraginals e João Manuel Cardoso de Mello, que lidaram com o século XIX com lentes teóricas semelhantes às de Novais, o prolongamento da escravidão negra seria uma manifestação “tardia”, porém contínua, de seu caráter colonial e periférico, destinada a entrar em crise definitiva em lugares como Estados Unidos, Cuba e Brasil na medida em que as forças produtivas do arranque industrial a colocavam localmente em xeque.47 Tal foi, também, o tempo da escravidão na elaboração teórica do conceito do “modo-de-produção escravista colonial”; tal é o tempo da escravidão nos trabalhos dos autores brasileiros atuais que operam conforme o modelo do que chamam de “Antigo Regime nos Trópicos”.48 46. Reginald Coupland, The British Anti-Slavery Movement. (1ª ed.: 1933). London: Frank Cass, 1964. C.L.R. James, Os jacobinos negros: Touissant L’Ouverture e a revolução de São Domingos (1ª ed.: 1938; trad. port.) São Paulo: Boitempo, 2000; Eric Williams, Capitalismo e Escravidão (1ª ed. 1944, trad. port.). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 47. Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979; Emília Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia (1966). São Paulo: Brasiliense, 1989; Eugene Genovese, A economia política da escravidão (1ª ed.: 1965; trad. port.) Rio de Janeiro: Pallas, 1976; Manuel Moreno Fraginals, O Engenho: complexo sócio-econômico açucareiro cubano. (1ª ed: 1976; trad. port.) São Paulo: Hucitec-Unesp, 1987, 2 v.; João Manoel Cardoso de Mello, O capitalismo tardio. (1ª ed.: 1978) Campinas: Edições Facamp, 2009. 48. Sobre o modo de produção, ver Ciro Flamarion Santana Cardoso, “O Modo de Produção Escravista Colonial Na América”. In: Théo Santiago (org.) América Colonial. Rio de Janeiro: Pallas, 1975; Jacob Gorender, O Escravismo Colonial (1978). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010. Sobre o Antigo Regime, Roberto Guedes, Egressos do Cativeiro. Trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-1850). Rio de Janeiro: Mauad X-Faperj, 2008; João
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Em uma chave analítica divergente desta que acabamos de ver, a New Economic History se encarregou de questionar empiricamente os argumentos que postularam a irracionalidade econômica da escravidão negra e sua suposta incompatibilidade com o mundo criado pela Revolução Industrial. Voltados sobretudo à análise da escravidão no século XIX, Robert Fogel e Stanley Engerman procuraram demonstrar a eficiência superior do trabalho escravo em relação ao trabalho livre na agricultura norte-americana; Seymour Drescher reviu os números de Eric Williams sobre a crise econômica do Caribe britânico na virada do século XVIII para o XIX; David Eltis ampliou as conclusões desses historiadores ao examinar o crescimento econômico de Brasil e Cuba na primeira metade do século XIX, fundado no tráfico negreiro da era industrial.49 Essa agenda guiou igualmente as investigações de Pedro Carvalho de Mello e Robert Slenes sobre os anos finais da cafeicultura escravista do centro-sul do Império do Brasil. Se a escravidão caminhava bem na esfera econômica, por que ela desapareceu? A resposta deveria ser buscada na esfera política, isto é, na novidade da mobilização antiescravista.50 O interessante a se registrar, no entanto, é o tratamento do tempo histórico: para os historiadores que esposaram o quadro analítico da New Economic History, a escravidão, como um sistema racional de alocação de recursos (no caso, a propriedade em seres humanos), obedeceria a uma lógica econômica atemporal.51 O que tem uma temporalidade específica é o abolicionismo, mas ela é guiada pelas transformações nas noções de progresso moral, apartadas de interesses econômicos imediatos. A cisão entre o econômico e o político nos traz de volta, assim, a uma conceituação do tempo histórico da escravidão negra nas Américas bastante próxima à adotada pelas duas primeiras vertentes citadas acima.
Fragoso, Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul/Rio de Janeiro (1830- 1888). Rio de Janeiro: Faperj: 7Letras, 2013. 49. Robert Fogel & Stanley Engerman, Time on the Cross: The Economics of American Negro Slavery. Boston: Little, Brown and Co., 1974; Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1977; David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. New York/Oxford: Oxford University Press, 1987. 50. Pedro Carvalho de Mello e Robert Slenes, “Análise econômica da escravidão no Brasil”. In: Paulo Neuhaus (org.), Economia brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 89-122 51. Dale Tomich, “A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica”. In: Rafael Marquese & Ricardo Salles (org.), Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 55-97.
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Cabe um espaço adicional aos estudos correntes sobre o abolicionismo, que constituem uma quarta vertente e que têm nas obras de David Brion Davis e Seymour Drescher suas referências matriciais.52 O próprio título da obra clássica de Brion Davis, O problema da escravidão na cultura ocidental, de 1966, traduz a acepção de tempo que a embasa. Haveria uma linha de continuidade secular na escravidão moderna, dada pelas formas de justificativa ideológica e exploração econômica do trabalho escravo, independentemente dos poderes coloniais que o mobilizaram. O que mudou foi a cultura ocidental, e o locus dessa transformação se encontrava no universo anglo-saxão. No livro seguinte, sobre o problema da escravidão na Era das Revoluções, David Brion Davis relacionou a transformação ideológica que gerou a força política abolicionista britânica às tensões sociais e culturais produzidas pela Revolução Industrial. Drescher, ainda que crítico de Brion Davis, esposou seu enquadramento temporal a respeito da escravidão e do abolicionismo ao afirmar que o aspecto central para a compreensão da gênese e do sucesso do antiescravismo reside na novidade da sólida esfera pública britânica, fundada no ideário de uma liberdade tipicamente britânica. Capaz de mobilizar e influenciar as políticas governamentais domésticas e, por conseguinte, as diretrizes de sua política externa, o movimento abolicionista espalhou-se da Grã-Bretanha pelo mundo, como em um efeito dominó. A persuasão historiográfica desse argumento pode ser aquilatada pelo livro mais recente de Angela Alonso, que, ao tratar da história do movimento abolicionista brasileiro, emprega diretamente a metáfora do “dominó” como nexo explicativo.53 O complemento aos historiadores que explicam a abolição pela capacidade de mobilização política do movimento antiescravista se encontra nos trabalhos que tomam os escravos como os agentes de sua própria liberdade. Há algumas variantes nessa vertente, como impressa no trabalho mais maduro de Emília Viotti da Costa, que buscou combinar no movimento de análise as contradições entre metrópole e colônia, a agenda abolicionista
52. David Brion Davis, The Problem of Slavery in Western Culture (1a ed.: 1966). New York: Oxford University Press, 1988; David Brion Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823 (1ª ed.: 1975). Oxford: Oxford University Press, 1999. 53. Angela Alonso, Flores, Votos e Balas. O movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 27.
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e as ações transformadoras promovidas pelos próprios escravos.54 Todavia, o mais frequente é a ênfase unidimensional no protagonismo escravo. A Nova História Social da escravidão, que deitou raízes nos Estados Unidos no contexto de luta pelos direitos civis, e no Brasil, no período da redemocratização e de efervescência do movimento negro, teve o mérito incontestável de olhar além do jugo senhorial e enquadrar os escravos como sujeitos históricos plenos.55 O problema é que noções caras a esta vertente historiográfica, como agência e protagonismo escravo, embebidas que estão no pensamento liberal, podem exagerar a potência transformadora dos indivíduos, obscurecendo outros aspectos fundamentais da realidade escravista, como condicionantes de ordem econômica e política.56 Mais do que isso, tais noções tendem a construir a imagem de uma história na qual os escravizados agem sempre conforme uma lógica única, universal e atemporal, da busca incessante pela liberdade, não importando o contexto em que atue, e que ao fim e ao cabo destruirá a escravidão. É certo que essas cinco vertentes que muito brevemente descrevemos registram inflexões, mudanças e rupturas, mas elas variam basicamente entre o episódio e a conjuntura. O que prevalece é a impressão de uma unidade temporal do início do século XVI ao final do século XIX. Nesses termos, inflexões, mudanças e rupturas estão fora do que constitui a essência da relação escravista, que por sua vez é sempre a reiteração de um mesmo. Em todos esses casos, no século XIX a escravidão seria uma instituição fadada à destruição, seja em razão do avanço das forças produtivas, da mobilização abolicionista ou da ação dos escravos. Há, ainda, outro ponto 54. Emília Viotti da Costa, Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823 (trad. port.) São Paulo: Companhia das Letras, 1998. As distinções entre o começo e o fim da trajetória intelectual de Emília são cuidadosamente tratadas no próximo capítulo. 55. Dentre essa vasta historiografia, ver em especial Eugene Genovese, Roll, Jordan, Roll. The World the Slaves Made. New York: Vintage, 1974; Herbert G. Gutman, The black family in slavery and freedom, 1750-1925. New York: Pantheon Books, 1976; Silvia Hunold Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1988; Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; Maria Helena P.T. Machado, O Plano e o Pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. São Paulo: Edusp-Ed. UFRJ, 1994; Flávio Gomes, Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. 56. Ver os comentários críticos de Walter Johnson, “On Agency” Journal of Social History, v. 37 (1): 113-124, 2003, e osé Antonio Piqueras, “The return to the Casa de Vivienda and the Barracón: the terms of social action in slave plantations”, In: D. Tomich (org.). The politics of the second slavery. Albany: State University of New York Press, 2016, pp. 83-111.
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de convergência em parte da produção historiográfica que sumariamos. Parcela considerável da historiografia da escravidão posterior à 2a Guerra foi modulada, de um modo ou de outro, pelas formas de conceituação do tempo histórico empregadas em distintas manifestações das teorias da modernização, dentre as quais a mais forte sem dúvida consiste em tomar a trajetória ocidental na direção de uma sociedade racionalista, democrática, individualista e industrial como o caminho inevitável do desenvolvimento histórico, e a Grã-Bretanha como a manifestação pioneira e acabada desta senda. A teoria da pluralidade dos tempos históricos apresentada na primeira parte deste artigo fornece uma resposta possível para resolver tais problemas. Foi ela, por exemplo, que inspirou Dale Tomich na proposição da categoria da Segunda Escravidão como uma ferramenta para reenquadrar o problema da escravidão negra no século XIX. A partir de um engajamento crítico com a perspectiva analítica do sistema-mundo – que, como se sabe, tem na teoria braudeliana dos tempos históricos um de seus principais lastros –, Tomich interveio no debate entre o marxismo e a New Economic History apontando para a transformação que a escravidão do Novo Mundo sofreu na passagem do século XVIII para o XIX. Nota-se, em especial, o uso bastante imaginativo da teoria dos tempos históricos de Koselleck para tentar solucionar o impasse a que levou o debate de Seymour Drescher com a tese de Eric Williams.57 O foco de Tomich consiste em assinalar as profundas descontinuidades espaço-temporais da escravidão oitocentista: sob o manto de uma aparente continuidade, o que se observa no arranque escravista de Brasil, Cuba e Estados Unidos é uma profunda reconfiguração sistêmica da instituição. Tratar-se-ia de uma nova escravidão, de uma Segunda Escravidão, ou seja, de uma nova temporalidade. O elemento mais sedutor dessa proposta reside, no nosso ponto de vista, não necessariamente na descrição que Tomich nos oferece das fronteiras mercantis açucareiras de Cuba em comparação com as antigas zonas produtoras de colônias como Jamaica, Martinica e a Guiana inglesa (tal é a área de concentração de suas pesquisas empíricas), mas no olhar teórico que propõe para reconceituar a escravidão a partir de seus múltiplos estratos de tempo. A partir desse olhar, integralmente atinado à exposição 57. Dale Tomich, Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e a Economia Mundial. (1ª ed.: 2004; trad. port.). São Paulo: Edusp, 2011, pp. 122-150.
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da primeira parte deste texto, podem-se descortinar outros aspectos importantes da pluralidade dos tempos históricos da escravidão, como aliás vários historiadores vêm fazendo, no exterior e aqui no Brasil.58 Tal mirada permitiu dar conta do jogo de estruturas e eventos presentes na produção, na reprodução e na crise das múltiplas eras da escravidão negra nas Américas;59 da articulação contraditória entre a novidade do antiescravismo britânico e o avanço das fronteiras mercantis da escravidão atlântica no século XIX;60 dos tempos distintos das normas e práticas jurídicas que travejaram a escravidão ibérica, cubana e brasileira;61 das trajetórias globais de commodities específicas;62 da diversidade regional de zonas escravistas particulares.63
58. Para um balanço abrangente, ver Rafael Marquese & Ricardo Salles, Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 59. Márcia Berbel, Rafael Marquese & Tâmis Parron, Escravidão e Política. Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010; Christopher Schmidt-Nowara, Slavery, Freedom, and Abolition in Latin America and the Atlantic World. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2011; Robin Blackburn, The American Crucible. Slavery, Emancipation and Human Rights London: Verso, 2011; Enrico Dal Lago, American Slavery, Atlantic Slavery, and Beyond. The U.S. “Peculiar Institution” in International Perspective. Boulder: Paradigm Publishers, 2012. 60. Josep Fradera & Christopher Schmidt-Nowara (org.), Slavery and Antislavery in Spain’s Atlantic Empire.New York: Bergham Books, 2013; Ada Ferrer, Freedom’s Mirror. Cuba and Haiti in the Age of Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2014; Tâmis Peixoto Parron, A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2015; Leonardo Marques, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016; Alain El Youssef, Imprensa e Escravidão. Política e Tráfico Negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeios, 2016. 61. Waldomiro Lourenço da Silva Jr., História, Direito e Escravidão. A Legislação Escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013; Waldomiro Lourenço da Silva Jr., Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no Brasil e em Cuba, c.1760-1871. São Paulo: Tese de Doutorado em História Social, FFLCH/USP, 2015; Priscila Lima de Souza, Sem que lhes obste a diferença de cor. A habilitação dos pardos livres no Brasil e no Caribe espanhol (1750-1808). Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2017. 62. Sven Beckert, Empire of Cotton. A Global History. New York: Knopf, 2014; Rafael de Bivar Marquese, “As origens de Brasil e Java: trabalho compulsório e a reconfiguração da economia mundial do café na Era das Revoluções, c.1760-1840”, História (Franca/São Paulo), v. 34, n. 2, pp. 108-127, jul./dez 2015. 63. Ricardo Salles, E o Vale era o escravo - Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no Coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; José Antonio Piqueras. La Esclavitud en las Españas. Un Lazo Transatlántico. Madrid: Catarata, 2011; Sidney Chalhoub, A Força da Escravidão. Ilegalidade e Costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; Ynaê Lopes dos Santos, Irmãs do Atlântico. Escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2012; Breno A. S. Moreno, Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. São Paulo: Dissertação de Mestrado
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É necessário, contudo, ir adiante. A estrutura histórica da escravidão oitocentista – a Segunda Escravidão, na conceituação original de Tomich – foi de mais curta duração. Esse “encurtamento” de uma estrutura histórica vinculada ao mundo industrial poderá vir a ser conceituado de modo inovador a partir das observações de Koselleck sobre a natureza da aceleração do tempo histórico oitocentista. Há boas pesquisas sobre o impacto da adoção do tempo do relógio sobre a vida escrava no regime de plantation;64 poderemos avançar nesse caminho com investigações que articulem o emprego em larga escala dos modernos instrumentos técnicos de aceleração criados pelo capitalismo industrial ao aumento da exploração do trabalho escravo e à crise global da Segunda Escravidão. A aceleração do tempo histórico produziu uma convergência crescente entre a política doméstica e a política externa na arena mundial: os trabalhos recentes de Tâmis Parron, Matthew Karp, Keila Grinberg, Gabriel Aladrén e Beatriz Mamigonian indicam o quão promissor é o tema da geopolítica da escravidão, sobretudo quando casado à análise dos eventos produzidos pelos conflitos entre senhores, escravos e sujeitos livres subalternos.65 A geohistória da escravidão do Novo Mundo – o que inclui as chamadas trocas colombianas – é outro campo que merece ser reaberto a partir do exame detalhado das transformações ocorridas na em História Social/FFLCH-USP, 2013; Edward E. Baptist, The Half Has Never Been Told. Slavery and the Making of American Capitalism. New York: Basic Books, 2014; Mariana Muaze & Ricardo Salles (org.), O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras-Faperj, 2015; Marco Aurélio dos Santos, Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro. Bananal, 1850-1888. São Paulo: Alameda, 2016; Daniel B. Rood, The Reinvention of Atlantic Slavery: Technology, Labor, Race, and Capitalism in the Greater Caribbean. Oxford: Oxford University Press, 2017; Marcelo R. Ferraro, A arquitetura da escravidão nas cidades do café. Vassouras, século XIX. São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, 2017; Daniel Souza Barroso & Luis Carlos Laurindo Jr., “À margem da Segunda Escravidão? A dinâmica da escravidão no Vale Amazônico nos quadros da economia-mundo capitalista”. Tempo, v. 23, n. 3, pp. 568-588, set./dez. 2017. 64. Mark M. Smith, Mastered by the Clock. Time, Slavery, and Freedom in the American South. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1997; Justin Roberts, Slavery and the Enlightenment in the British Atlantic, 1750-1807. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, pp. 29-73. 65. Parron, A política da escravidão na era da liberdade; Matthew Karp, This Vast Southern Empire. Slaveholders and the Helm of American Foreign Policy. Cambridge, Ma.: Harvard University Press, 2016; Keila Grinberg, “The Two Enslavements of Rufina: Slavery and International Relations on the Southern Border of Nineteenth-Century Brazil”. The Hispanic American Historical Review, 96 (3): 259-290, 2016; Gabriel Aladrén, “Bajo mi real protección y amparo: os decretos espanhóis de liberdade a escravos fugitivos e os conflitos imperiais no Atlântico, 1680-1791”. Topoi, v. 18, n. 36, pp. 514-536, set./dez.2017; Beatriz G. Mamigonian, Africanos Livres. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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passagem das condições espaciais meta-históricas para os espaços históricos da organização humana. Pensamos, em particular, no debate corrente sobre os legados botânicos africanos para a conformação da paisagem americana e na conceituação do capitalismo como uma ecologia-mundo, proposta por Jason Moore.66 Pode-se dar mais consistência aos esforços inaugurados por Laurent Dubois, que propôs realizar uma “história intelectual” dos sujeitos escravizados, por meio de um exame dos critérios de apreensão escrava do tempo, e em que medida eles se antagonizaram à apreensão senhorial.67 Não se trata, aqui, de retomar a contraposição entre “tempo camponês” dos escravos e “tempo industrial” dos senhores, já bastante explorada pela historiografia, mas, antes, de analisar o peso das articulações temporais das dimensões do passado e do futuro na dinâmica do conflito social escravista, bem como suas variações no tempo e no espaço. A agenda de pesquisa ainda aberta diz respeito não apenas ao aprofundamento das reflexões sobre a complexidade renovada da escravidão do século XIX, mas ao lançamento de novas luzes para os diferentes períodos do escravismo atlântico, desde sua estruturação no século XVI, passando pelas suas subsequentes remodelações. É preciso esclarecer as variadas formas pelas quais a escravidão negra nas Américas integrou diferentes espaços e ritmos temporais, alinhavou repetibilidades e singularidades, articulou estruturas e eventos, ajustou experiências e expectativas. Cumpre identificar analiticamente os múltiplos planos temporais em convívio, diálogo e contradição, examinando mais a fundo de que modo, em suas diferentes fases, estruturas diacrônicas de eventos e estruturas mais longevas se combinavam, permeando as múltiplas experiências dos atores históricos. Sem a pretensão de propiciar um panorama fechado, é possível dizer que os estratos do tempo da escravidão americana foram compostos, em um plano preliminar, no âmbito metafórico de suas formações geológicas, por preceitos normativos oriundos da Antiguidade clássica, pela recorrência de um conjunto de práticas sedimentado ainda no medievo e pelo 66. Judith Carney & Richard Nicholas Rosomoff, In the Shadow of Slavery. Africa’s Botanical Legacy in the Atlantic World. Berkeley, University of California Press, 2009; AHR Exchange, “The Question of ‘Black Rice’”. The American Historical Review, 115 (1): 123-171, February 2010; Jason W. Moore, “Ecology, Capital, and the Nature of Our Times: Accumulation and Crisis in the Capitalist World-Ecology”. Journal of World-Systems Research, 17 (1): 108-147, 2011. 67. Dubois, Laurent. “Luzes escravizadas: repensando a história intelectual do Atlântico francês”. Estudos Afro-Asiáticos, 26 (2), pp. 331-354, 2004.
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reconhecimento institucional mútuo do cativeiro que permitiria o trato dos viventes entre europeus e africanos. Essas camadas mais profundas não foram soterradas na noite dos tempos com o desenvolvimento dos sistemas atlânticos. Antes, permaneceram vivas, influindo, de maneira ressignificada a cada época, no devir da escravidão até os seus estertores. Tocar adiante esta agenda de investigação, no entanto, é tarefa para muitos historiadores e para um bom tempo de trabalho.
Capítulo 3 A escravidão na obra de Emília Viotti da Costa: uma história em três tempos
Emília Viotti da Costa (1928-2017) foi, sem sombra de dúvidas, uma das maiores historiadoras brasileiras do século XX, senão a maior. Uma das pioneiras no campo da historiografia marxista produzida dentro dos quadros universitários no Brasil, professora da Universidade de São Paulo (USP) de 1956 a 1969 e, posteriormente, da Universidade de Yale (19731999), já na primeira fase de sua carreira suas publicações se destacaram como referências obrigatórias para temas canônicos da História do Brasil como a independência ou a passagem do Império para a República. Na segunda metade da década de 1960, quando a ditadura iniciava sua escalada de endurecimento, Emília se destacou igualmente como uma importante intelectual pública atuante no campo da educação superior, o que levou à sua aposentadoria compulsória pelo regime militar por ocasião do AI-5. Na década de 1970, se a dolorosa experiência do exílio nos Estados Unidos a afastou do debate público brasileiro, o escopo de seus interesses de investigação se alargou, passando a englobar a história política e do trabalho no século XX.1 O tema central de sua vasta obra, contudo, sempre foi a
1. Sobre a trajetória da autora, veja-se o depoimento coletado por Sylvia Bassetto por ocasião da concessão do título de Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, “Devemos rever a imagem que temos de nós mesmos: Emília Viotti da Costa”, Revista Adusp, Junho 1999, pp. 15-29; uma longa entrevista realizada em abril do ano seguinte por José Geraldo Vinci de Moraes e José Márcio Rego, “Emília Viotti da Costa”, in: Conversas com Historiadores Brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, pp. 65-93; o obituário escrito por Maria Alice Rosa Ribeiro, “Uma homenagem a Emília Viotti da Costa”, História Econômica &
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escravidão negra. Nela, destacam-se seus dois principais livros: Da Senzala à Colônia, publicado pela primeira vez em 1966 como resultado de uma tese de livre-docência defendida na USP dois anos antes, e Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue, publicado originalmente em inglês em 1994, com tradução para o português quatro anos depois.2 O objetivo deste capítulo é revisitar os trabalhos de Emília Viotti da Costa sobre a história da escravidão. Trata-se de um tema que já enfrentei por ocasião das comemorações dos quarenta anos de publicação do primeiro livro, realizado no entanto de forma breve.3 Volto a fazê-lo agora com mais vagar e com as lentes centradas no que estou explorando neste livro, isto é, o problema dos tempos históricos plurais e das relações entre capitalismo e escravidão na longa duração. Houve uma clara linha de continuidade teórica e metodológica em toda a trajetória de Emília Viotti da Costa, como aliás ela sempre fez questão de ressaltar, em diversas ocasiões. Mas houve, História de Empresas, 20 (2): 511-522, 2017. Todas as informações biográficas deste capítulo foram retiradas dessas três referências. Alguns dos trabalhos mais importantes publicados na forma de artigos foram reunidos em três coletâneas de Emília Viotti da Costa: Da Monarquia à República. Momentos Decisivos (1ª ed.: 1987). São Paulo: Brasiliense, 1994; A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo: Ed. Unesp, 2014; Brasil. História, textos e contextos. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. 2. Emília Viotti da Costa, Escravidão nas áreas cafeeiras. Aspectos econômicos, sociais e ideológicos da desagregação do sistema escravista. Tese de Livre-Docência apresentada à Cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1964, 3v.; Emília Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966 (livro publicado dentro da coleção Corpo e Alma do Brasil, dirigida por Fernando Henrique Cardoso); Emília Viotti da Costa, Crowns of Glory, Tears of Blood. The Demerara Slave Rebellion of 1823. Oxford: Oxford University Press, 1994 (tradução para o português por Anna Olga de Barros Barreto: Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998). Neste capítulo, a edição que utilizo de Da Senzala à Colônia é a que a Editora Brasiliense lançou em 1989. 3. Rafael de Bivar Marquese, “Estrutura e agência na historiografia da escravidão: a obra de Emília Viotti da Costa”. In: O historiador e seu tempo. Ed. A. C. Ferreira, H. G. Bezerra, T. R. de Luca. São Paulo: Ed. Unesp, 2008, pp. 67-81. Esse texto foi apresentado no XVIII Encontro Regional de História da ANPUH, realizado de 24 a 28 de julho de 2006, em uma mesa coordenada por Sylvia Bassetto e que também contou com Maria Cristina Cortez Wissenbach (ambas colegas de meu Departamento), e, em especial, com a presença da própria Emília. A intervenção dela (“Da Senzala à Colônia: quarenta anos depois”) foi publicada no livro que traz meu artigo e de Wissenbach, tendo sido posteriormente re-publicada na coletânea Brasil, pp. 141-154. A análise do livro sobre Demerara, que apresentarei ao final deste capítulo, está largamente baseada nesse texto meu de 2006. Sobre o tema da escravidão na trajetória acadêmica de Emília, ver igualmente o trabalho mais recente de Pedro Conterno Rodrigues. Emília Viotti da Costa: contribuições metodológicas para a historiografia da escravidão. Campinas: Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, Unicamp, 2018.
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também, inflexões importantes, como não poderia deixar de ser em uma produção longínqua e profícua como a dela, que cobre mais de meio século e dezenas de publicações. Essas modificações guardam relações diretas com os rumos da historiografia brasileira e internacional na segunda metade do século XX e com a própria trajetória pessoal, política e acadêmica da autora. Este capítulo irá examinar essas transformações em três tempos: primeiro, o contexto de elaboração e de publicação de Da Senzala à Colônia, que corre de meados da década de 1950 a meados da década seguinte; segundo, o momento dos impasses da experiência de exílio e de seu trabalho acadêmico na década de 1970, que culminaram no longo prefácio à segunda edição de Da Senzala à Colônia, lançada em 1982; terceiro, a preparação e publicação do livro sobre revolta escrava em Demerara, que compreende de 1984 a 1994. A verticalização na obra dessa notável historiadora permitirá observar em uma escala mais circunscrita, a partir de uma trajetória individual, muitas das questões que tratei nos dois primeiros capítulos deste livro. Primeiro tempo: 1954-1966. Em vista do que logo seria uma de suas contribuições para a renovação dos estudos sobre a escravidão negra no Brasil, ironicamente o primeiro trabalho acadêmico de fôlego de Emília Viotti da Costa a vir a lume foi diretamente inspirado por Gilberto Freyre. Em 1953, assinando ainda com o sobrenome (Nogueira) de seu primeiro casamento, Emília publicou na Revista de História da USP um alentado artigo sobre a influência cultural francesa na Província de São Paulo na segunda metade do século XIX, procurando replicar a problemática e os métodos do livro que Freyre havia lançado, cinco anos antes, sobre a influência cultural inglesa.4 Com base na imprensa e nos relatos de viajantes, Emília buscou mapear os aportes culturais trazidos não só pelas letras e ciências francesas mas também por diversos imigrantes daquele país que, ao atuarem em distintos ramos profissionais, “contribuíram poderosamente para a evolução do pensamento e dos modos de vida em São Paulo”.5 Um certo francesismo a marcou nesses anos, como aliás ocorreu
4. Gilberto Freyre. Ingleses no Brasil. Aspecto da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. 5. Emília Viotti da Costa, “Alguns aspectos da influência francesa em São Paulo na segunda metade do século XIX”, A dialética invertida, p. 192.
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com muitos outros historiadores da USP nas primeiras décadas da instituição; logo após nela se formar como Licenciada em História e Geografia (1951) e fazer uma especialização em História Medieval, Moderna e Contemporânea (1952/1953), Emília ganhou do governo francês uma importante bolsa de estudos que lhe permitiu, no ano acadêmico de 1953/1954, frequentar a VI Seção da École Pratique de Hautes Études de Paris. Supervisionada por Charles Morazé, teve cursos com Georges Gurvitch e Ernest Labrousse. E, na França, pensou em realizar uma pesquisa de doutorado sobre a nobreza francesa após a Restauração de 1815. No retorno ao Brasil, essa possibilidade foi logo abandonada, em razão de problemas pessoais com o catedrático de História Moderna e Contemporânea e da impraticabilidade de realizar uma pesquisa robusta sobre o tema estando longe dos arquivos franceses. Em 1954, Emília começou a trabalhar como professora secundarista no ensino público de São Paulo. Ainda nesse ano, e novamente na Revista de História da USP, publicou o que denominou como “Notas Prévias” de um estudo sobre a Convenção Republicana de Itu. Contrapondo-se à explicação proposta por Nelson Werneck Sodré, na qual esse pioneiro do marxismo no Brasil procurou entender o avanço do republicanismo liberal na crise do Império a partir do contraponto entre a decadência da aristocracia de base rural, monarquista e escravista, e a ascensão da nova burguesia comercial e industrial de base urbana, republicana e abolicionista,6 Emília demonstrou que os republicanos reunidos em Itu em 1873 eram em sua ampla maioria fazendeiros proprietários de escravos. Tal constatação empírica exigia uma nova conceituação para dar conta da gênese do republicanismo em São Paulo e suas relações com as forças econômicas e sociais locais. A chave do problema, segundo ela, estaria na distinção entre a lavoura cafeeira do Vale do Paraíba e a do Oeste de São Paulo: “uma diferença profunda no conteúdo social, econômico e psicológico separa as duas regiões”. Como zona pioneira, o Oeste demonstrava um pujante e crescente poder econômico; o poder político, contudo, escapava-lhe por estar nas mãos das antigas elites escravistas do Vale do Paraíba e do Nordeste açucareiro. No começo da década de 1870, a economia do Oeste de São Paulo ainda dependia da escravidão negra, mas “o fazendeiro dessa área já se destacava por seu espírito progressista”, mostrando-se abertamente favorável às 6. Nelson Werneck Sodré, Formação da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
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inovações tecnológicas (como ferrovias ou maquinário de beneficiamento) e, sobretudo, à imigração estrangeira como soluções para a crise do escravismo. A adoção da plataforma republicana por esses senhores de escravos, que em pouco tempo aceitariam de bom grado a abolição, representava assim o caminho natural para equalizar seus projetos de poder político à posição econômica que estavam ocupando.7 A contraposição Vale do Paraíba versus Oeste de São Paulo não foi originalmente formulada por Emília, tendo sido tomada de empréstimo de Raízes do Brasil. De fato, no capítulo que encerra o clássico livro de 1936, Sérgio Buarque de Holanda havia proposto esse contraste para compreender alguns dos contornos de “Nossa Revolução”, isto é, o fim da ordem escravista no Brasil e suas heranças para a ordem republicana, dando-lhe, quatro anos depois, um desenvolvimento mais detido na longa introdução que escreveu para a tradução do relato de Thomas Davatz sobre a Revolta de Ibicaba.8 Uma aproximação mais intensa não demorou a acontecer entre Emília Viotti e Sérgio Buarque. Em 1956, ano em que, após curto período como assistente na cadeira de História Moderna e Contemporânea, Emília foi transferida para Introdução aos Estudos Históricos, Sérgio Buarque foi contratado pela USP para assumir a cadeira de História da Civilização Brasileira. Ele imediatamente a convidou para fazer parte de seu grupo de professores assistentes, mas Emília preferiu manter-se sob o guarda-chuva da cadeira recém-criada. Não obstante, Sérgio Buarque assumiu nesses anos a orientação da pesquisa de doutorado de Emília, convertida no começo da década de 1960 em um projeto de tese de livre-docência. O objeto era um claro desdobramento do artigo de 1954, porém com escopo bem maior: a abolição da escravidão no Brasil examinada a partir das transformações da cafeicultura escravista do Centro-Sul ao longo do século XIX. Ao encontrar seu tema, explicitamente impulsionada pelas tensões políticas, sociais e econômicas que marcavam o Brasil de então (notadamente o dilema reforma versus revolução, que tocava diretamente a esquerda brasileira na discussão de problemas como a estrutura fundiária e de classes, as desigualdades regionais e o racismo), Emília encontrou também 7. Emília Viotti da Costa, “O movimento republicano em Itu. Os fazendeiros do Oeste Paulista e os pródromos do movimento republicano (notas prévias)”, Brasil, pp. 174, 176. 8. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (21ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, pp. 128-131; Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio do tradutor”, Thomas Davatz, Memórias de um colono no Brasil (1850) (trad. port.). São Paulo-Edusp; Belo Horizonte-Itatiaia, 1980, pp. 15-45.
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a referência teórica de toda sua trajetória posterior. Houve, aqui, uma convergência de fundo com duas iniciativas contemporâneas que marcaram profundamente a História e as Ciências Sociais uspianas. No começo da década de 1950, Roger Bastide e Florestan Fernandes, professores de Sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP (o primeiro, ex-orientador do segundo), foram contatados pela Unesco – que também mobilizou acadêmicos na Bahia e no Rio de Janeiro – para um vasto estudo sobre as relações raciais no Brasil. Modulado, dentre outras referências, pelas proposições de Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum, o projeto pretendia investigar os segredos da incorporação positiva dos negros em uma sociedade não racista como a brasileira, em contraste com o que se passava nos Estados Unidos. Todavia, o que emergiu desse vasto esforço coletivo de investigação histórica e sociológica, e que se desdobrou em vários trabalhos acadêmicos (artigos, livros, dissertações e teses), foi algo muito distinto do sistema de hipóteses iniciais. O mito da democracia racial fora demolido com a demonstração cabal do papel estrutural que o racismo desempenhava no Brasil, resultado direto da natureza brutal do passado de suas relações escravistas. A segunda iniciativa foi tocada adiante, nesses mesmos anos, por jovens professores uspianos em começo de carreira (alguns dos quais, ainda estudantes), de diversas áreas (Filosofia, Sociologia, História, Economia), que embarcaram em um esforço coletivo de leitura crítica de Marx tendo por fundo o problema histórico da formação do capitalismo no Brasil. Muitos deles se voltaram ao exame da escravidão negra, tendo inclusive participado do Projeto Unesco: afinal, fora a instituição do cativeiro que dera a nota específica da inscrição do Brasil na ordem capitalista mundial. Marx, capitalismo e escravidão: em fins da década de 1950, as pesquisas históricas sobre o passado brasileiro demonstravam suas afinidades eletivas com a perspectiva radical desenvolvida pelos intelectuais negros caribenhos duas décadas antes, e, não por acaso, a obra de Eric Williams passou a encontrar grande receptividade no Brasil.9 9. A bibliografia produzida nesses dois âmbitos é considerável. Para visões de conjunto, veja-se, respectivamente, Marcos Chor Maio, A história do Projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, Iuperj, 1997, e Lidiane Soares Rodrigues, A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese de Doutorado em História Social, São Paulo, FFLCH/USP, 2011. Sobre a recepção de Williams no Brasil, veja-se meu prefácio à edição brasileira: Eric Williams, Capitalismo e escravidão (trad. port.). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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Emília não participou das investigações sociológicas conduzidas por Bastide e Fernandes e tampouco fez parte do primeiro grupo de estudos d’O Capital a se constituir na USP em 1958, mas o ambiente intelectual, profissional e político no qual ela se inscrevia permite-nos classificá-la como uma importante companheira de armas dessas duas iniciativas. Acima de tudo, ambas marcaram profundamente o trabalho de pesquisa que Emília realizou a partir de 1954, e que resultaria em sua tese de livre-docência defendida dez anos depois, quando a autora tinha 36 anos. A tese, intitulada Escravidão nas áreas cafeeiras. Aspectos econômicos, sociais e ideológicos da desagregação do sistema escravista, é massiva, contando com 1001 páginas que trazem uma vastíssima pesquisa em fontes primárias. Emília lidou com praticamente toda a documentação oitocentista impressa pertinente ao seu objeto (relatórios ministeriais e provinciais; atas parlamentares provinciais e imperiais; imprensa periódica; publicistas; publicações técnicas; literatura de viagem), afora um amplo repertório de documentação manuscrita depositada em arquivos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Malgrado suas dimensões, a arquitetura da tese é relativamente simples, o que se desdobra em sua impressão em três volumes separados. A Parte I (primeiro volume), a maior de todas, tratou dos “aspectos econômicos da desagregação do sistema escravista”. Nela, Emília examinou o movimento no tempo e no espaço da cafeicultura no centrosul do Império do Brasil, com a expansão da atividade do Vale do Paraíba para o Oeste de São Paulo. O tema central são as formas de trabalho. Em linha de continuidade com os padrões coloniais, o trabalho escravo africano generalizou-se na primeira metade do século XIX, quando a cafeicultura ainda se concentrava no Vale do Paraíba. Ao expandirem os cafezais para o Oeste de São Paulo na conjuntura do fim do tráfico transatlântico, seus fazendeiros promoveram uma experiência pioneira com o trabalho livre (o sistema de parceria), cujo malogro se deveu ao fato de os sistemas de produção e de transporte, ainda muito rudimentares, serem pouco compatíveis com a racionalização exigida pelo trabalho livre. Houve assim, nas décadas de 1850 e 1860, um reforço da escravidão na cafeicultura, com o ativamento do tráfico interno de escravos. A partir de 1870, com a tecnificação dos processos de beneficiamento e, em especial, com a construção da malha ferroviária, “o problema da mão de obra se colocará sob novas bases. Essas mudanças do nível das forças produtoras modificaram as condições de
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trabalho, as relações de produção”.10 A tecnificação encontrou respostas distintas entre os fazendeiros: os do Oeste de São Paulo, abertos à inovação e com terras mais produtivas, promoveram ampla revisão das bases técnicas de suas fazendas (ainda com o emprego em larga escala de trabalho escravo, porém mantendo e modificando suas experiências prévias com trabalho livre imigrante em pequena escala); os fazendeiros do Vale do Paraíba, pelo contrário, com rendimentos decrescentes do solo, ficaram presos à rotina e à tradição que os marcava, abandonando quaisquer perspectivas de substituição do trabalho escravo. Tais posições distintas se expressaram na política imigratória: enquanto os do Oeste a promoveram agressivamente, os do Vale apegaram-se mais e mais à propriedade escrava. Emília encerra a Parte I deixando claro que o fazendeiro do Oeste não foi o agente da abolição; ele ganhou com ela, pôde até favorecê-la no momento crítico de 1887/1888, mas não a produziu. Quem o fez foram os abolicionistas e os escravos, dentro porém das condições gerais gestadas pelas transformações econômicas e sociais verificadas ao longo do século XIX. Na Parte II, a menor da tese, há um corte na exposição: passa-se, agora, para as “condições de vida do escravo nas zonas cafeeiras”. Temos aqui um acerto de contas de Emília com uma das principais referências de sua primeira formação. Seu alvo foi a visão patriarcal da escravidão. Ao explorar as várias dimensões da vida material e cultural escrava (alimentação, vestimentas, moradia, habitação, saúde, religiosidade, relações familiares, nascimentos, mortes), bem como os brutais sistemas disciplinares aos quais eles eram submetidos nas regiões cafeeiras, Emília, tal como outros colegas de geração e de universidade, ajudou a demolir a representação edulcorada da escravidão contida nas letras dos defensores da instituição no século XIX e daqueles que, como Gilberto Freyre, a reiteraram no século XX. Esses padrões pouco se alteraram ao longo do século XIX: mesmo que a autora afirme que, em razão do encarecimento dos preços dos escravos após 1850, tenha ocorrido uma mudança nas atitudes senhoriais em relação às formas de tratamento deles, o impacto concreto sobre as condições de vida material 10. Costa, Escravidão nas áreas cafeeiras, v. 1, p. 154. No livro, “forças produtoras” foram corrigidas para “forças produtivas” (Costa, Da Senzala à Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 131). Talvez este seja um dos erros de datilografia a que Emília se referiu na arguição da tese. Ver Raul de Andrada e Silva e Luis Antonio de Moura Castro, “Noticiário – Livre-Docência na Cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo”, Revista de História, 33 (67): 263-284, p. 267.
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escrava foi de pequena monta. O que mudou foi o sentido do “protesto do escravizado”, título do último capítulo dessa parte. Os escravos não foram apenas sujeitos passivos das ações senhoriais, procurando, pelo contrário, agir conforme sua lógica própria, fosse por meio de articulações culturais autônomas (vinculadas ou não ao passado africano), fosse por manifestações como fugas, formação de quilombos, assassinatos de feitores e senhores e, acima de tudo, revoltas. A resistência escrava foi constante durante todo o século XIX, mas, com a pregação abolicionista, ela mudou de sentido e intensidade. Fugas, assassinatos e levantes em massa nos anos finais da escravidão desorganizaram por completo o trabalho feitorizado em São Paulo, dando um impulso decisivo para a aprovação da abolição por ato legislativo. Na Parte III, um novo corte expositivo, com o tratamento da ideologia e da prática política antiescravistas. Ao realizar um amplo e pioneiro levantamento das ideias antiescravistas da fundação do Império à abolição da escravidão, Emília argumentou como o repertório aí contido pouco se alterou ao longo do tempo, contudo se apresentando de forma mais explícita em momentos críticos como 1850, 1871 e 1884/1885. As primeiras vozes contrárias à escravidão propunham medidas graduais de enfrentamento da questão, e por isso seus agentes poderiam ser classificados como “emancipadores”, mas não “abolicionistas”. Na segunda metade do século XIX – notadamente a partir de 1868 – , houve uma clivagem: o alvo, agora, passou a ser o fim da escravidão, com ou sem indenização. A evolução dessa “consciência emancipadora” dependeu de uma sensível transformação na estrutura de classes do Império, o que por sua vez só se tornou possível graças ao crescimento demográfico da população livre, à crescente urbanização e à diversificação da base econômica correspondente (comércio, finanças, indústria). Esses vetores, expressões de um incipiente porém contínuo processo de modernização, “favoreceram a formação de uma categoria social nova”,11 não mais vinculada à propriedade de escravos. Os quadros dessa “nova categoria social” – profissionais liberais, técnicos, artesãos, trabalhadores qualificados urbanos – forneceriam a base da militância abolicionista e de sua linha dirigente. O legado de crítica letrada da escravidão assumia, de agora em diante, um sentido político prático de combate à instituição, de caráter abertamente revolucionário. No capítulo 11. Costa, Escravidão nas áreas cafeeiras, v. 3, p. 867.
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final do livro, Emília tratou do processo político da década de 1880, demonstrando como o conjunto das forças abolicionistas logrou colocar em xeque a escravidão e, em seus momentos finais, atrair para a causa os fazendeiros do Oeste de São Paulo já envolvidos no processo de imigração subsidiada em massa. Mas, para tanto, era preciso que os escravos finalmente construíssem “a consciência de interesses comuns [...]; só com o progresso do movimento, com a mobilização da opinião pública em torno das leis emancipadoras e o avanço da campanha abolicionista é que a senzala agiu em defesa própria”.12 Acuados pela ação revolucionária de abolicionistas e escravos, os grupos dirigentes imperiais finalmente deram cabo à escravidão. Diante do panorama historiográfico em 1964, a tese de Emília Viotti da Costa trouxe um enorme bafejo de novidade teórica e metodológica aos estudos da escravidão no Brasil ao propor uma abordagem totalizadora para a compreensão de sua crise (abrangendo das forças econômicas e sociais ao repertório ideológico e eventos políticos), e que encarava, de forma pioneira, os escravos como protagonistas de sua própria história, ainda que sob condições que não haviam sido por eles criadas. Emília tocou em praticamente todos os temas relativos à escravidão brasileira do século XIX que seriam verticalizados nas décadas seguintes, indicando igualmente alguns dos repertórios documentais com os quais seria possível analisá-los. E tudo isso temperado por um profundo engajamento com o tempo presente.13 Como o leitor já familiarizado com ele facilmente reconhecerá, o livro Da Senzala à Colônia, publicado dois anos depois da defesa da tese, manteve irretocada a estrutura do trabalho acadêmico. De fato, há muito poucas modificações entre um e outro. No campo dos decréscimos: infelizmente, autora e/ou editores optaram por reduzir em cerca de dois terços as notas
12. Idem, ibidem, v. 3, p. 883. No livro, há um acréscimo importante na última frase: “que a senzala agiu organizadamente em defesa própria” (Da Senzala, p. 449). 13. Veja-se o caso de uma representação antiabolição da Zona da Mata mineira, encaminhada à Câmara dos Deputados em 1884, que Emília (Escravidão nas áreas cafeeiras, v. 3, p. 832) fez questão de citar: “estes grupos de demolidores que ora se congregam no país promovendo propaganda com o fim de abolir os escravos são os mesmos que, na Rússia, foram o partido niilista, na Alemanha, o socialista, assim como na França, o comunista. Estejamos, pois, precavidos contra estes desordeiros que preferem a luta renhida e o sangue a correr em rios, a ver a questão regularmente marchando e pacificamente terminada”. Os antiabolicionistas – portanto, escravistas – de 1884 se transmutam, em 1964, nos que se colocam contra as reformas de base.
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que acompanhavam a tese.14 No campo dos acréscimos: eles se deram fundamentalmente na introdução e na conclusão do livro, muito em razão das arguições que Emília ouviu em 25 de novembro de 1964. Fizeram parte da banca os professores Wanderley Pinho, Francisco Iglésias, Brasil Pinheiro Machado, Sérgio Buarque de Holanda e Eurípides Simões de Paula. Todos reconheceram os méritos assinalados no parágrafo acima, com exceção de Pinho, que se ressentiu da crítica a Freyre, sendo porém contrabalançado, na arguição imediatamente seguinte, por um elogio aberto de Iglésias ao trabalho coletivo do grupo de Florestan Fernandes, ao qual Emília aceitava de muito bom grado ser associada. Iglésias, contudo, tocou em um ponto sensível da tese: o caráter algo disperso e excessivamente descritivo da Parte II. Foi na resposta oral a essa crítica de Iglésias que Emília apresentou a importância de uma referência teórica e metodológica crucial, não citada na tese (como ela se justificaria dezoito anos depois, “por inexperiência, senso estético ou timidez, não explicitei em nenhum momento minha proposta metodológica”15): ao realizar o trabalho procurou equacioná-lo igualmente em termos descritivos e explicativos. Ele é num certo sentido uma experiência metodológica de quem está procurando um método, um sistema, tentando ao mesmo tempo que realiza o trabalho, aprender qual a melhor maneira de se escrever História. Lembra a classificação de Fernand Braudel — História de tempo curto e História de tempo longo — uma se referindo à estrutura e a outra à conjuntura. Existe uma História que se atém ao episódio — aquela que se preocupa com o tempo curto e que os franceses chamam de evenémentiel, a História do acontecimento. Por outro lado, há uma história que é mais socializante, que cai num tipo weberiano, que se preocupa com os grandes mecanismos tipos da evolução e do processo de mudança. A título exemplificativo cita o livro de Carlo Antoni Do historicismo à sociologia, onde se analisa a evolução da historiografia de Troelcht a Weber. A candidata diz ter procurado fazer uma História que não se enquadrasse rigidamente em nenhuma das duas correntes, mas que combinando os dois aspectos, resultasse numa tentativa de conciliação. Na feitura de seu trabalho não se preocupou apenas com os aspectos objetivos, isto é, os aspectos objetivos que se inferem das coisas concretas, mas também com aquilo que pensam os personagens envolvidos nos acontecimentos, embora muitas vezes 14. Uma pergunta frequente que se ouve de alunos e pesquisadores: de onde a autora tirou todas essas informações e citações soltas contidas no livro? Na tese, tudo está devidamente referenciado. 15. Costa, “Prefácio à segunda edição”, Da Senzala, p. 28.
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o que estes digam ou pensem não seja o que realmente acontece. Reconhece ter sofrido uma certa influência do livro de Stanley Stein sobre Vassouras, Grandeza e Decadência do Café, pois o mesmo combina de um lado a análise do processo de mudança e de outro o quotidiano.16
Eis uma belíssima súmula do programa teórico e metodológico que informou a redação de Da Senzala à Colônia. Vemos explicitada, na transcrição da resposta de Emília anotada pelos relatores, a importância crucial da teoria dos tempos históricos plurais de Braudel; como ela foi conjugada com um historicismo realista que procurava fugir do beco sem saída da contraposição estanque entre as perspectivas nomotéticas e ideográficas; como Emília estava tentando fazê-lo por meio do marxismo (possivelmente não nomeado por se tratar de um evento público ocorrido em fins de 1964, diante de alguns examinadores hostis); como o trabalho de Stanley Stein fornecia um bom exemplo de como realizá-lo no estudo de uma zona cafeeira escravista; finalmente, de como tudo isso representava um exercício metodológico difícil, que só poderia ser resolvido na concretude da prática da escrita da História. Este talvez tenha um dos maiores desafios enfrentados pela obra de Emília, presente do primeiro ao último livro que escreveu: como articular, em uma redação unificada, as dimensões temporais distintas da longa e da curta duração, ou seja, dos processos históricos estruturais e dos múltiplos eventos do dia a dia que simultaneamente reiteram e transformam aquelas estruturas? Sem nomear dessa forma a questão, Brasil Pinheiro Machado questionou o plano expositivo adotado, pelo qual não ficava de todo claro o argumento central da tese, aspecto que foi retomado por Sérgio Buarque ao ressalvar que “nem sempre os esquemas abstratos [ele se refere aqui à ‘História de tempo curto’ e à ‘História de tempo longo’] podem ser utilizados”. Emília reconheceu o problema: “as deficiências apontadas quanto à articulação geral do trabalho são reconhecidas pela candidata, que atribui as mesmas a ter havido de sua parte uma certa timidez na conclusão”.17 O livro procurou responder ao problema com um acréscimo importante na introdução e com uma conclusão inteiramente nova. Na Introdução, salta aos olhos a explicitação – mesmo que não citada – da dívida com o 16. Andrada e Silva & Moura Castro, “Noticiário”, p. 271. 17. Andrada e Silva & Moura Castro, “Noticiário”, p. 276 (Sérgio Buarque), p. 278 (Emília).
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trabalho de Eric Williams, referência crucial para todos os cientistas sociais e historiadores uspianos que estavam escrevendo, naquele período, sobre a escravidão no Brasil. Emília encampou integralmente a tese de Williams sobre as relações entre o arranque do capitalismo industrial e o fim da escravidão negra das Américas. A crise, contudo, não se deu da mesma forma em todos os lugares. Em cada espaço, “o processo emancipador assumiu [...] seu ritmo próprio em função das condições econômicas, sociais, políticas e ideológicas locais. São essas condições internas as mais significativas para a compreensão da desagregação do sistema escravista em cada área”.18 Justificava-se, por conseguinte, o fato de o estudo de Emília voltar-se ao exame cerrado da trajetória específica do Brasil, porém dentro da moldura global das contradições entre capitalismo industrial e escravidão negra vinda do período colonial. A conclusão do livro retomou essa perspectiva de forma mais extensa e explícita: as ideias antiescravistas nascidas na Inglaterra, decorrentes das transformações econômicas e sociais ocasionadas pela Revolução Industrial, repercutiram no Brasil, dando origem ao repertório inicial de nosso antiescravismo; a pressão diplomática britânica levou o Brasil a encerrar o tráfico transatlântico em 1850; o tráfico interno que se seguiu agudizou as contradições do sistema escravista, contribuindo, por um lado, para a ampliação da receptividade do ideário antiescravista na opinião pública brasileira e, por outro, para que se adotassem nas fazendas algumas das conquistas tecnológicas da Revolução Industrial (permitindo que o país entrasse “numa fase de modernização de sua economia”)19. Foi dentro dessa nova moldura econômica e social que a ação de abolicionistas e escravos contra a escravidão pôde se tornar efetiva. Não obstante as revisões efetuadas na introdução e na conclusão, os problemas da estrutura da tese permaneceram no livro. Diferentemente da tríade temporal braudeliana, suas três partes tratam de uma mesma dimensão temporal, isto é, de processos de transformação histórica que se dão em uma duração mais longa. O que diferencia as partes do livro são os “planos da realidade” de que tratam (o econômico, o social, o político / ideológico). Essas partes, contudo, correm como histórias paralelas, que só se entrecruzam explicitamente nos parágrafos finais de cada uma delas. É como se tivéssemos em mãos três livros distintos, sem que sejam 18. Costa, Da Senzala, p. 18. 19. Idem, ibidem, p. 472.
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esclarecidos os nexos, as mediações entre esses “planos da realidade”. Veja-se, por exemplo, a Parte II (sobre as condições de vida dos escravos): a crítica de Francisco Iglésias na banca examinadora assinalou que ela é “eminentemente descritiva”; o problema, a meu ver, não está nisso, mas sim no fato de nela lermos uma sobreposição de episódios que não se articulam com o que foi apresentado na Parte I (que tratou do processo de trabalho e de produção nas fazendas de café). O mesmo vale para as relações entre Parte II e Parte III: o capítulo sobre o protesto do escravizado poderia, em realidade, ser o último do livro, vindo portanto depois da apresentação da trajetória do abolicionismo, pois será a ação escrava em 1888 que encerrará a história contada por Emília. Duas dessas histórias paralelas (Partes I e III) veiculam, ainda, uma concepção linear do tempo histórico, muito informada pela teoria da modernização embutida na leitura do marxismo presente em vários dos trabalhos compostos nessa época. Trata-se da questão crucial das relações entre capitalismo e escravidão: o capitalismo, com a passagem do domínio do capital comercial para o capital industrial, modifica-se; a escravidão permanece a mesma. Desse descompasso nasce a crise do sistema escravista, apreendida como a passagem do tradicional para o moderno: a transformação do capitalismo anuncia o futuro; a escravidão, ao não mudar, significa o atraso. É em razão dessa conceituação do tempo histórico que Emília contrapõe o Vale, tradicional, ao Oeste, moderno. É também por meio dela que Emília lê as discussões sobre a escravidão: as ideias contra a escravidão estão sempre avançando; sua defesa está sempre em retirada. Qualquer pesquisa acadêmica em História deve ser sempre avaliada dentro das condições historiográficas e institucionais em que é produzida. Seria possível, na primeira metade da década de 1960, conceber de forma alternativa as relações temporais entre capitalismo e escravidão? Uma rápida mirada no que estava se passando na instituição em que Emília trabalhava indica que sim. Os pressupostos por ela adotados para conceituar as relações entre capitalismo e escravidão foram rigorosamente iguais ao esquema empregado, antes, por Fernando Henrique Cardoso e, depois, por Fernando Novais.20 É simplesmente errada, portanto, a observação retrospectiva de 20. Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962 (tese de doutorado em Sociologia defendida na USP em 1961); Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo
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Roberto Schwarz de que os livros de Cardoso e Novais quebraram com uma “concepção linear do progresso” ao escreverem sobre o passado colonial escravista brasileiro.21 Emília, que mais uma vez se vê excluída do impulso coletivo do grupo d’O Capital, encampou, tal como os dois Fernandos, as ilusões do progresso contidas nas promessas supostamente libertadoras do capital industrial e do trabalho assalariado. Quem estava fora da curva era Maria Sylvia de Carvalho Franco que, tal como Fernando Henrique Cardoso, foi orientada por Florestan Fernandes. No mesmo ano em que Emília defendeu sua tese de livre-docência, Maria Sylvia defendeu a sua, de doutorado, publicada cinco anos depois como livro. Tendo por objeto o universo material e cultural dos fazendeiros de café do Vale do Paraíba escravista, o último capítulo da tese de Maria Sylvia trouxe uma conceituação profundamente original para o mesmo material empírico com o qual Emília estava trabalhando. Examinada a partir de suas relações com o mercado mundial capitalista, a fazenda supostamente tradicional do Vale assumira, desde a década de 1830, um caráter moderno, ao ser capaz de fornecer quantidades crescentes de café a baixo custo para o consumo de massa nos países industriais. Os métodos extensivos de cultivo, profundamente danosos para natureza e seres humanos escravizados, decorreram de uma escolha econômica racional dos fazendeiros do Vale. Se no longo prazo esse cálculo foi catastrófico para eles (e, claro, também para seus escravos e o meio ambiente em que ambos viviam), no curto e no médio prazos atendeu plenamente aos ditames da busca incessante do lucro que os motivava, como não raro aconteceu com outras classes capitalistas da economia mundial. Os fazendeiros do Vale nunca tiveram descaso com o incremento técnico de suas fazendas. Pelo contrário: quando um novo maquinário se mostrava capaz de produzir mais por menos, era imediatamente adotado. Nos termos de um documento de 1854 citado por Maria Sylvia, “foi com o preço baixo de seu café que o Brasil venceu a concorrência de todos os países para
Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979 (tese de doutorado em História defendida na USP em 1973). A bem da verdade, deve-se salientar que a explicação histórica contida em Da Senzala à Colônia é muito mais aberta do que o rígido modelo explicativo empregado por nosso ex-presidente, sobretudo no que se refere ao exame histórico do mundo escravo e suas relações com a dinâmica política. Emília seria incapaz de subscrever uma passagem como a da “‘coisificação’ subjetiva do escravo” (Cardoso, Capitalismo e Escravidão, p. 155). 21. Roberto Schwarz, “Um seminário de Marx”, Novos Estudos Cebrap, 50: 99-114, março de 1998, p. 105.
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atingir o consumo das classes inferiores”.22 Em resumo: lida a partir de uma conceituação que complexificava as relações históricas entre o capitalismo industrial e a escravidão negra oitocentista, sem tomar o segundo polo necessariamente sob o signo do atraso (ou seja, aqui sim quebrando com uma “concepção linear do progresso”), a mesma documentação que Emília Viotti da Costa empregou em sua tese de livre-docência permitiu a Maria Sylvia de Carvalho Franco apresentar, em tese de doutorado do mesmo ano, um poderoso argumento a respeito da modernidade dos fazendeiros – e, portanto, da escravidão – do Vale do Paraíba. Que essa conceituação da escravidão decorreu de mirada teórica e não de trabalho empírico fica igualmente claro no tratamento que Emília deu ao campo escravista na primeira metade do século XIX. O levantamento que ela efetuou sobre o ideário antiescravista foi pioneiro e bastante diversificado, englobando panfletos, imprensa periódica e falas registradas nos Anais parlamentares. A ideologia escravista não recebeu o mesmo espaço em sua análise, a despeito do fato de seus porta-vozes terem articulado a defesa da instituição nesses mesmos lugares, notadamente no Parlamento e na imprensa. A respeito, há um episódio bem significativo – ainda que de rodapé – na passagem da tese para o livro. Na tese, Emília afirmou que “poucos ousavam fazer de maneira declarada e confessa a defesa doutrinária da escravidão, como Bernardo Pereira de Vasconcelos”; a referência de rodapé são os Anais da Câmara dos Deputados relativos a 24 de julho de 1835.23 Na arguição, Wanderley Pinho afirmou que “a assertiva não encontra amparo na documentação citada”.24 No livro, a frase original foi mantida, mas o nome de Vasconcelos foi cortado.25 O erro, no entanto, foi de Wanderley Pinho. A fala de Vasconcelos defendendo a reabertura do tráfico negreiro transatlântico, proibida nas letras da lei desde 1831, de fato não ganhou as páginas dos Anais da Câmara, mas foi amplamente veiculada na imprensa.26 Esse discurso inaugurou a fortíssima ofensiva pró-escravista
22. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata (primeira edição: 1969). São Paulo: Kairós, 1983, p. 173. 23. Costa, Escravidão nas áreas cafeeiras, v. 3, p. 707, nota 61. 24. Andrada e Silva & Moura Castro, “Noticiário”, p. 266. 25. Costa, Da Senzala, p. 374. 26. Ver, a respeito, Tâmis Parron, A Política da Escravidão no Império do Brasil, 1826-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 137; Alain El Youssef, Imprensa e escravidão. Política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1820-1850). São Paulo: Intermeios, 2016, p. 183.
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do campo conservador que moldaria decisivamente a tessitura institucional do Império do Brasil até, pelo menos, a aprovação da Lei do Ventre Livre. É possível rastrear um conjunto orgânico de enunciados escravistas na documentação consultada por Emília. Por que ela não o fez? Ora, jogar luz sobre o campo escravista na primeira metade do século XIX quebraria com o pressuposto da oposição tradicional (escravistas) x moderno (abolicionistas), haja vista que uma das linhas de força da ideologia da escravidão veiculada por Vasconcelos e seus asseclas consistiu exatamente em dizer que era esta instituição que estava garantindo a inscrição positiva, portanto moderna, do Império do Brasil no concerto das nações civilizadas, todas reguladas por ordens constitucionais estáveis e por avanço econômico constante. Emília, tal como muitos de seus colegas de geração e de universidade, inadvertidamente deixou-se levar pelas ilusões supostamente emancipatórias do liberalismo, sem prestar a devida atenção à sua contra-história, ou, noutros termos, à sua “potência autoritária”.27 Segundo tempo: 1966-1984 O choque viria rapidamente. O golpe militar de 1964 pôs a nu a ausência histórica de compromisso democrático dos liberais brasileiros. Não por acaso, em textos de 1967 e 1968, Emília Viotti da Costa, tratando da Independência do Brasil e mantendo intacto o esquema explicativo anterior sobre as contradições entre capitalismo e escravidão, centrou a artilharia nos limites do liberalismo no Brasil, explicitando a dissociação “na prática” de liberalismo e democracia no momento da fundação do Império, ou então seu caráter eminentemente ideológico, “que mascarava as contradições” de um sistema social fundado na escravidão.28 O trauma maior ainda estava por vir. Tal como muitos outros colegas de Universidade – dentre os quais Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso – Emília foi aposentada compulsoriamente pelo regime militar em abril de 1969. Com 41 anos, portanto ainda jovem, porém sem perspectivas de reinserção 27. Sobre a “potência autoritária” do liberalismo, ver Maria Sylvia de Carvalho Franco, “All the World was America. John Locke, liberalismo e propriedade como conceito antropológico”, Revista USP. Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo, 17: 30-53, 1993. 28. Emília Viotti da Costa, “A consciência liberal nos primórdios do Império” (1967), Da Monarquia à República, p. 120; “Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil” (1968), Da Monarquia à República, p. 54.
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profissional imediata no Brasil, Emília mudou-se para os Estados Unidos, onde trabalhou em diferentes universidades com contratos temporários até se estabelecer em Yale, em 1973. Os depoimentos de Emília são tocantes quanto às enormes dificuldades de ordem pessoal que ela teve que enfrentar nesse duro processo de ajuste a uma nova realidade acadêmica e política, retirada que fora, à força, do mundo que a formara. Não é por acaso que a intensidade da pesquisa tenha diminuído na década de 1970. Veja-se o volume com dez ensaios e artigos que Emília reuniu, para publicação em inglês, em 1985, com publicação no Brasil dois anos depois.29 As datas de composição ou publicação desses textos cobrem quinze anos, de 1962 a 1977. Seis foram escritos e publicados entre 1962 e 1968, lidando com os temas da Independência e da Proclamação da República. Quatro foram escritos entre 1970 e 1977, mas, desses, só um chegou a ser publicado antes de sua reunião nos volumes de 1985/1987. Há um certo desnível entre o primeiro e o segundo momento. Antes de prosseguir com o exame de dois dos textos dos anos 1970, cabe uma nota rápida sobre o outro lado do início da carreira de Emília em Yale: lecionando em uma universidade de elite, seu impacto como orientadora de teses de doutorado foi imediato, ao supervisionar já na década de 1970 um bom número de trabalhos que lidaram não somente com o Brasil, mas também com a América Latina, e que marcaram profundamente seus respectivos campos.30 Esses dois textos, em realidade, constituem quase que uma única peça, dada a quantidade de passagens iguais em um e noutro. O primeiro a aparecer foi publicado nos anais de um portentoso evento promovido pela Academia de Ciências de Nova York, sobre a escravidão negra nas Américas em perspectiva comparada. O impulso, segundo seus organizadores, fora dado pelo gigantesco impacto que a publicação, em 1974, do livro de Robert Fogel e Stanley Engerman, Time on the Cross, gerara na academia e opinião pública norte-americanas.31 Para avaliar o desenho da escravidão no Sul 29. A versão em português é Da Monarquia à República; em inglês, ela foi publicada como The Brazilian Empire: Myths and Histories. Chicago: Chicago University Press, 1985. 30. Sobre a dimensão do trabalho de Emília como orientadora acadêmica em Yale, com a lista dos trabalhos que supervisionou, ver James N. Green, “Emília Viotti da Costa: construindo a história na contracorrente”, Anais Brasileiros e Brasilianistas. Novas gerações, novos olhares: uma homenagem a Emília Viotti da Costa. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2014, pp. 19-20. 31. O leitor brasileiro tem à disposição uma excelente apreciação do debate que o livro gerou: ver Heitor P. de Moura Filho, “Uma parábola acadêmica: a jangada de Robert W. Fogel”, História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, 7 (14): 62-79, Setembro 2013.
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dos Estados Unidos por eles proposto, colocando-o criticamente em uma mirada comparada com todas as demais sociedades escravistas das Américas e com uma discussão mais ampla sobre temas, métodos e fontes, reuniu-se o que era, naquela altura, o principal time de estudiosos sobre a escravidão negra nas Américas.32 Dentre os brasileiros, estiveram presentes Emília, Jaime Reis e Florestan Fernandes, que apresentou um ensaio hoje clássico, publicado em português naquele mesmo ano.33 No caso de Emília, tratavase do primeiro texto voltado exclusivamente ao tema da escravidão desde a publicação de seu livro dez anos antes. A encomenda dos organizadores foi para que ela tratasse das imagens e representações sobre os escravos e os negros livres no Brasil colonial e imperial. A estratégia adotada, afinada ao tema geral do evento, consistiu em enfrentar o problema por meio de uma mirada comparada com os Estados Unidos. Emília estruturou o texto com um grande comentário à interpretação de Stanley Elkins a respeito do impacto que a brutalidade da escravidão norte-americana havia produzido sobre a personalidade dos escravos naquele país, introjetando-lhes padrões de comportamento ditados pela anomia e infantilização. Seguindo as pegadas de Tannenbaum e Freyre, Elkins afirmava que o Brasil oferecia um contraste perfeito a tal quadro, haja vista o fato de seu sistema escravista ter sido mais humano, permitindo aos escravizados e seus descendentes manterem suas personalidades intactas. Para Emília, essas imagens nada mais eram, lá e aqui, do que projeções dos proprietários sobre seus escravos, refletindo antes a composição das camadas senhoriais em cada um dos dois países do que as realidades concretas dos comportamentos e valores de seus cativos, ou da violência e benignidade relativa de seus sistemas escravistas. O que precisava ser comparado, assim, era a estrutura das classes senhoriais e a natureza dos sistemas econômicos, sociais e políticos em que elas se inscreviam. Os senhores de escravos do 32. Vera Rubin & Arthur Tuden (ed.), “Comparative Perspectives on Slavery in New World Plantation Societies”, Annals of the New York Academy of Sciences, 292 (1): 1-618, June 1977. Participaram do evento e do volume, dentre outros, Engerman, Philip Curtin, Orlando Patterson, Winthrop Jordan, Edward K. Brathwaite, Ira Berlin, Roger Anstey, Seymour Drescher, B.W.Higman, Manuel Moreno Fraginals, E.van den Boogaart, P.C. Emmer, Herbert Gutman, Franklin Knight, Enriqueta Vila, Gwendolyn Midlo Hall, Arnold Sio, George Fredrickson, Monica Schuler, Leslie Manigat, Silvia de Groot, Herbert Aptheker, Richard Price, Francisco Scarano, Johannes Postma e Warren Dean. 33. Florestan Fernandes, “A sociedade escravista no Brasil”, In: Circuito fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional”. São Paulo: Hucitec, 1977.
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Sul dos Estados Unidos viveram em um país modulado por uma cultura democrática, fundada na autodisciplina e na liberdade pessoal, e no qual o avanço das forças capitalistas e abolicionistas do Norte os colocaram desde o início na defensiva. Nada disso se fez presente no Brasil, onde as transformações econômicas e sociais se processaram lentamente, sempre mediadas por práticas de clientelismo e patronagem que permitiam a construção de uma imagem dos negros como participantes dessas redes. “Em suma”, escreve Emília, “a modernização da sociedade brasileira não criou as tensões que nos Estados Unidos se converteram em conflitos políticos e ideológicos”.34 Esse parece ser o argumento central do ensaio. Para além de reiterar uma certa perspectiva das teorias da modernização que a informara em seu livro de 1966, o que verdadeiramente incomoda na leitura do ensaio de 1977 é a desorganização do arranjo formal do texto, com diferentes ideias e assertivas alinhavadas sem uma clara progressão lógica ou cronológica na exposição. A assimetria com a peça que Florestan Fernandes levou para a mesma conferência é flagrante. Seja como for, Emília continuou a investir nesse caminho, ao se valer de parte do material que apresentou na conferência de 1977 para um projeto de livro preparado mais ou menos nessa época. Intitulado Violence and Guilt. Slavery in Brazil from the Sixteenth to the Nineteenth Century, ele foi submetido à Oxford University Press. Como o volume jamais foi publicado, o que se pode depreender é que a editora acabou por rejeitar a proposta.35 Se foi esse o caso, só podemos especular sobre os motivos. Para justificar a proposta, Emília procedeu a um voo panorâmico da tradição de estudos comparativos da escravidão norte-americana e brasileira inaugurada por Tannenbaum e Elkins, até chegar aos livros de Eugene Genovese e Fogel e Engerman, ambos publicados em 1974. Segundo Emília, os autores mais recentes estavam procedendo a uma inversão de fundo nos modelos interpretativos prévios: o que até então fora tomado como um sistema violento e desumanizador (o do Sul dos Estados Unidos) passava a ser explicado agora pelas lentes do paternalismo. Nas décadas de 1950 e 1960, contudo, os historiadores e os cientistas sociais brasileiros (dentre os quais, ela própria) já haviam questionado o modelo paternalista da escravidão 34. Costa, “Escravos: imagens e realidade”, A dialética invertida, p. 88. 35. As informações de que se tratou de um projeto de livro apresentado à Oxford constam do primeiro rodapé do ensaio “Da escravidão ao trabalho livre”, Da Monarquia à República, p. 221.
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propagado por Freyre e encampado por Tannenbaum e Elkins. Era o elenco de questões gerado por esses debates recentes nos Estados Unidos que fundamentaria a relevância de um novo livro em inglês sobre a escravidão brasileira na longa duração: um estudo da escravidão brasileira do século XVI até o século XIX tornará possível a análise, primeiro, de como funcionou o sistema numa tradicional sociedade “aristocrática” e mais tarde num moderno “burguês”; segundo, de como tal sistema foi justificado num mundo religioso governado pela Providência e mais tarde num mundo secular governado pelos homens; terceiro, de como a escravidão se tornou uma parte vital do sistema colonial num mundo mercantil, pré-capitalista, pré-tecnológico, e como ela foi destruída num mundo em que o capitalismo industrial e a revolução tecnológica gradualmente solaparam as relações tradicionais. Em suma, um estudo da escravidão do período colonial até o período moderno permitir-nos-á perceber as conexões essenciais entre capitalismo e escravidão.36
Em fins da década de 1970, essa proposta parecia não mais estar antenada ao espírito do tempo no universo acadêmico anglo-saxão. As teses de Eric Williams (a escravidão dando origem à Revolução Industrial, o mundo industrial destruindo a escravidão) vinham sendo submetidas a duríssimas críticas.37 O caminho de renovação apontado pela historiografia sobre a escravidão produzida nos Estados Unidos ia na direção da história social e cultural dos subalternos ou da nova história econômica (a chamada cliometria), a segunda muito mais distante da bagagem que Emília carregava de sua formação original no Brasil, isto é, uma história estrutural que combinava a tradição dos Annales com o marxismo, e que não deixava de observar, nesses quadros de referência, a ação dos subalternos. O livro que ela propôs, e que aparentemente não foi aceito pela Oxford University Press, representava uma ampliação espacial (para todo o Brasil) e temporal (do século XVI ao XIX) do argumento linear das relações entre capitalismo e escravidão anteriormente adotado em Da Senzala à Colônia. Que, aliás, recebeu uma série de ressalvas ao longo da década de 1970. Não 36. Costa, “Da escravidão ao trabalho livre”, Da Monarquia à República, p. 236. 37. Para um resumo dos debates na década de 1970, ver Marquese, “Capitalismo & escravidão e a historiografia sobre a escravidão negra nas Américas”, Prefácio a Williams, Capitalismo & Escravidão, pp. 9-23.
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obstante o impacto altamente positivo que o livro teve na historiografia da escravidão brasileira e internacional logo após sua publicação em 1966, trabalhos inovadores no campo da história demográfica e da nova história econômica vinham questionando com bastante consistência muitos de seus dados e argumentos. Esses estudos estavam demonstrando que investir em escravos fora economicamente racional na cafeicultura até bem entrada a década de 1880; que não teria havido uma diferença de fundo entre a mentalidade empresarial dos senhores de escravos do Vale do Paraíba e a dos fazendeiros do Oeste de São Paulo; que os fundamentos da crise da escravidão brasileira não decorreram do avanço das forças produtivas do capitalismo, mas da perda de legitimidade política da instituição diante do movimento abolicionista.38 Em outra roupagem metodológica e teórica, os novos historiadores econômicos estavam repisando parte do caminho alternativo que Maria Sylvia de Carvalho Franco havia sugerido em 1964. A novidade que traziam decorria do peso da quantificação no argumento deles. Quando o barco parecia estar adernando, Emília voltou a assumir o comando. Na primeira metade da década de 1980, ela não só preparou um magistral ensaio sobre a crise do Império para o volume V da Cambridge History of Latin America,39 como encarou o desafio de voltar ao livro de 1966, reeditando-o pela primeira vez. O texto base, com introdução e conclusão originais, permaneceu intacto (sequer os erros pontuais de cunho editorial foram corrigidos). A novidade esteve em um longo “Prefácio à Segunda
38. Para os trabalhos que se apropriaram positivamente do livro de Emília, ver Eugene Genovese, O mundo dos senhores de escravos: dois ensaios de interpretação. (1ª ed.: 1969; trad. port) Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1979; Robert Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil. New York: Atheneum, 1975; Warren Dean, Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. (1ª ed.: 1976; trad. port) Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977; João Manoel Cardoso de Mello, O capitalismo tardio. (1ª ed.: 1978) Campinas: Edições Facamp, 2009; Ciro Flamarion Santana Cardoso, “O modo de produção escravista colonial na América”. In: Théo Santiago (org.). América colonial. Rio de Janeiro: Pallas, 1975. Jacob Gorender, O Escravismo Colonial (1978). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010. Para as críticas, ver sobretudo Robert W. Slenes, The demography and economics of Brazilian slavery. Tese Doutorado em História. Stanford University. Stanford, 1976; Pedro Carvalho de Mello, The economics of labor in Brazilian coffee plantations, 1850-1888. Tese de Doutorado em Economia. University of Chicago. Chicago, 1977; Pedro Carvalho de Mello & Robert W. Slenes, “Análise econômica da escravidão no Brasil”. In: Paulo Neuhaus (org.). Economia brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Campus, 1980, pp. 89-122. 39. Emília Viotti da Costa, “Brasil: A Era da Reforma, 1870-1889”, In: Leslie Bethell (org.), História da América Latina. Volume V (1a. ed: 1984; trad. port.). São Paulo: Edusp, 2002, pp. 705-760.
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Edição” que, a rigor, contém dois textos em um. Há 29 longuíssimas notas, que equivalem em suas dimensões totais ao tamanho do corpo principal, nas quais Emília passou em revista toda a bibliografia pertinente aos temas de Da Senzala à Colônia produzida após o lançamento do livro. Nessas notas, ela discutiu criticamente questões como demografia escrava (população, familia, taxas de natalidade e mortalidade), preços dos escravos, tráfico interno, custos comparativos do trabalho escravo e do trabalho livre, rentabilidade do investimento em escravos, relações entre imigrantismo e abolicionismo, mentalidade dos fazendeiros do Vale e do Oeste, explicações sociais e políticas para a abolição, cultura e resistência escravas. O que impressiona é a abertura da autora, engajando-se com cada texto, argumento e evidência, ressaltando o que julgava estar correto, retrucando do que discordava e, em especial, salientando o que mereceria mais estudos. A última nota é realmente notável: nela, Emília propôs uma agenda que, malgrado autores posteriores que raramente o reconheceram, ao fim e ao cabo forneceu algumas das principais linhas de inovação que a historiografia sobre a escravidão brasileira seguiria nas duas décadas seguintes.40 E o que está no corpo do prefácio de 1982? Como se leu páginas atrás, um dos principais problemas da tese/livro de 1964/1966, senão o maior, esteve na ausência de relações apropriadas entre suas partes, ou, para empregar os termos de sua principal referência teórica, na questão das mediações entre os diversos planos da realidade. Emília reconheceu o problema no momento da arguição. Este era um desafio que só poderia ser equacionado na escrita; seu trabalho era, “num certo sentido, uma experiência metodológica de quem está procurando um método, um sistema, tentando ao mesmo tempo que realiza o trabalho, aprender qual a melhor maneira de se escrever História”. O que não se resolveu em 1966 foi resolvido em 1982. Em vinte páginas, Emília deu conta brilhantemente do desafio de expor de forma clara, sintética e objetiva como os abolicionistas e os escravos fizeram a abolição, porém não em condições por eles criadas, e sim pelas alterações ocorridas na estrutura econômica e social do Império do Brasil ao longo do século XIX. A distinção entre Vale e Oeste foi mantida, mas com uma formulação não mais escorada no binômio tradicional versus moderno; a diferença, agora, se explicava pelos distintos momentos da formação de cada zona, em um esquema próximo à proposta de Antonio Barros de Castro para a 40. Costa, “Prefácio à Segunda Edição”, Da Senzala, p. 54, n. 29.
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compreensão da dinâmica espacial da cafeicultura brasileira (ver capítulo 6). E já se podia ler, também, o que seria um dos argumentos de seu próximo livro sobre escravidão: “a agitação abolicionista criava [...] condições para que os escravos se manifestassem e fossem ouvidos. A insurreição dos escravos, por sua vez, dava novo alento à agitação abolicionista, acelerando o processo de desintegração do sistema escravista”.41 Terceiro tempo: 1984-1994 Os historiadores brasileiros puderam ter ciência desse novo projeto nas celebrações acadêmicas sobre o centenário da Abolição que aconteceram em 1988. Emília o apresentou em maio e junho daquele ano, em congressos realizados na Unicamp e na USP. Nessas duas ocasiões, ela leu o texto de uma palestra enxuta e didática, logo publicada sem retoques (e sem rodapés) no boletim do Arquivo Público do Estado de São Paulo.42 Emília partia de um contraponto relativamente simples. Desde a década de 1970, em oposição à tendência anterior na qual prevalecera a ênfase na análise de “forças históricas impessoais” das estruturas econômicas, sociais e políticas, vinha ganhando cada vez mais espaço entre os historiadores o programa de se “recuperar a subjetividade dos personagens históricos” subalternos. Ainda que necessário, a perspectiva que se apresentava como inovadora embutia um perigo: “o de transformar tudo em mera subjetividade”, a História dando passagem à Memória e, com isso, negar-se “a ideia de que existe um processo histórico que ao mesmo tempo constitui os indivíduos e é constituído por estes”. Com base na análise de um evento histórico particular, a palestra pretendia demonstrar que “na vida de cada um dos personagens envolvidos pulsam os ritmos da História, que as suas múltiplas subjetividades são tanto constituídas pela História quanto constitutivas da História. O meu objetivo é mostrar que as abordagens que se apresentam hoje como alternativas são muito mais eficazes quando se fundem num enfoque dialético mais amplo que permite ver no episódio o ponto de encontro de várias determinações conjunturais e estruturais”.43 41. Idem, ibidem, pp. 41-42. 42. Emília Viotti da Costa, “História, memória e metáfora: a revolta de escravos de 1823 em Demerara”, Arquivo, 9 (1): 7-20, 1988. O texto foi republicado em A dialética invertida, pp. 113-133, a edição que uso aqui. 43. Costa, “História, memória e metáfora”, A dialética invertida, p. 117.
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O evento em tela foi a grande rebelião de Demerara, que explodiu em 18 de agosto de 1823, durou poucos dias e envolveu a participação de 10 mil dos 74 mil escravos daquela colônia inglesa. Depois da breve abertura historiográfica e teórica, Emília situava o cenário do episódio e seus dados básicos para o ouvinte, ao descrever as condições econômicas, sociais e políticas de Demerara nos quadros da conjuntura econômica mundial do início do século XIX; as estruturas locais de poder escravista, com altas taxas de absenteísmo e um enorme desbalanço demográfico entre senhores e escravos; o avanço do abolicionismo na metrópole; a chegada, na colônia, dos evangélicos da London Missionary Society; os motivos imediatos para a ignição do levante em 1823. Desde o momento em que a revolta foi contida e reprimida, os contemporâneos que residiam em Demerara (missionários, autoridades locais, senhores, escravos) divergiram sobre o que a havia causado, divergências essas que logo foram replicadas, na Inglaterra, pelos abolicionistas, pela London Missionary Society, pelos proprietários de escravos absenteístas e o lobby das Índias Ocidentais. No século XX, a trajetória trágica de John Smith (missionário que esteve no centro do evento) foi transformada em metáfora de martírio cristão ou de ameaça revolucionária; os historiadores mais recentes (Eugene Genovese e Michael Craton), escrevendo entre 1979 e 1982, viram no levante ou a manifestação de uma revolta escrava “burguesa” ou um resultado dos processos de crioulização da população escrava em um contexto de sobre-exploração do trabalho. “Diante dessas falas contraditórias”, perguntava-se Emília, “deve o historiador dar voz aos escravos? Aos senhores? A todos eles? Tirar uma média das várias versões? Ou deve o historiador identificar as estruturas significativas que informam essas falas?” Para Emília, seria possível, sim, atingir “uma visão mais totalizadora do acontecimento”, incorporando “os vários discursos que frequentemente se apresentam como incompatíveis”, mas, para tanto, fazia-se necessário “ir além da subjetividade do escravo, pois esta é constituída a partir de condições objetivas”. No terço final de sua fala, Emília apresentou um verdadeiro tour de force, articulando de forma magistral, em relativamente poucas palavras e por meio de um sofisticado método de mediação, o conjunto das forças materiais e mentais, globais e locais, que haviam levado os escravos a optarem pelo levante em 1823. “Para escrever a história da revolta”, concluiu,
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como aliás qualquer outra história, é preciso ir além da visão dos testemunhos, para apreender as determinações históricas que informam essas visões e esses discursos. Em outras palavras, é preciso lembrar que o oprimido não existe independentemente de seu opressor, e vice-versa. Ambos são moldados pela história ao mesmo tempo que a constroem. É preciso lembrar também que se bem que a história seja necessariamente vivida de forma subjetiva, essa subjetividade é ela mesma constituída a partir de condições sobre as quais os indivíduos não têm controle. Em suma, é preciso restabelecer a dialética entre liberdade e necessidade.44
Ao figurar como conferencista de abertura, Emília teve inegavelmente uma posição de honra nos eventos de 1988. As palavras finais de sua exposição, contudo, estavam na contracorrente do que seria a voz dominante nas pesquisas sobre escravidão brasileira na década de 1990. O congresso na Unicamp chamou-se Visões da Liberdade, mesmo título do que muito em breve se tornaria um dos mais influentes trabalhos da nova historiografia da escravidão brasileira. O livro de Sidney Chalhoub foi marcado exatamente por tomar as subjetividades dos sujeitos escravizados como a chave privilegiada – e, pode-se dizer, quase que exclusiva – para interpretar o mundo da escravidão e de sua crise.45 No outro lado da moeda, Jacob Gorender, em uma polêmica peça de combate publicada no mesmo ano, citou longamente essas palavras de Emília para criticar justamente os caminhos da renovação historiográfica proposta, dentre outros, por Chalhoub.46 A discussão Chalhoub x Gorender escorreu para a grande imprensa em uma virulenta troca de resenhas.47 A posição assumida por Gorender, no entanto, já estava em franca retração no meio historiográfico brasileiro. Até onde consigo lembrar, a única citação positiva que a conferência de 1988 recebeu nos trabalhos sobre a historiografia da escravidão brasileira da década de 1990 foi essa, de Gorender.
44. Idem, ibidem, p. 133. 45. Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 46. Jacob Gorender, A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990, pp. 110-111. 47. Sidney Chalhoub, “Jacob Gorender põe etiquetas nos historiadores”, Folha de S.Paulo, Caderno Letras, 24 de novembro de 1990, p. 7; Jacob Gorender, “Como era bom ser escravo no Brasil”, Folha de S.Paulo, Caderno Letras, 15 de dezembro de 1990, p. 2.
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O livro de Chalhoub fundava-se em duas grandes referências teóricas e metodológicas: por um lado, em uma leitura de E.P. Thompson que enfatizava a centralidade do conceito de experiência, compreendida como a constelação das vivências imediatas, pessoais e de grupo, dos sujeitos sociais; por outro, em uma apropriação combinada dos métodos da microhistória italiana (tal como expressa em Carlo Ginzburg) e da antropologia cultural de Clifford Geertz, adotando-se a estratégia de se partir de situações particulares, circunscritas, vividas por um indivíduo ou pequenos grupos para, a partir disso e por meio de “descrições densas”, decodificar os significados mais amplos das interações desses indivíduos / grupos com o mundo em que se inscreviam. Chalhoub não esteve sozinho nessas escolhas. Essas referências estavam sendo partilhadas por um número crescente de historiadores da história social e da história da cultura (também tomadas como história social da cultura ou história cultural do social), no Brasil e no estrangeiro.48 Ora, a ênfase unidimensional na categoria experiência, a virada culturalista e o avanço das perspectivas microanalíticas foram o objeto, nessa época, de dois artigos historiográficos e teóricos de Emília. No primeiro, que saiu em inglês em 1989, ela discutiu a historiografia sobre o movimento operário e a formação das classes trabalhadoras na América Latina no século XX produzida nos Estados Unidos e na Inglaterra, procurando indicar a ausência de sentido em contrapor as “abordagens de tipo estrutural” às que buscavam “reconstituir a ‘experiência’ operária”: o que o objeto em si demandava, pelo contrário, era a integração das duas perspectivas.49 O segundo artigo, publicado pioneiramente em português em 1994, foi no mesmo sentido. A historiografia sobre os mundos do trabalho verificara um movimento pendular. De um duro, mecânico e reducionista economicismo nas décadas de 1950 e 1960 passara-se, nas duas décadas seguintes, para variantes de um culturalismo igualmente redutor. Da preocupação exclusiva com a macrofísica do poder saltara-se para a preocupação exclusiva com a microfísica do poder; da macrohistória, para a microhistória. Nesse giro, a noção de processo histórico, os esforços de totalização e a produção 48. Cf. Diana Berman, A produção do novo e do velho na historiografia brasileira: debates sobre a escravidão. Dissertação de Mestrado em História, PUC-Rio, 2003. 49. Emília Viotti da Costa, “Estruturas versus experiência – Novas tendências na História do movimento operário e das classes trabalhadoras na América Latina: o que se perde e o que se ganha”, A dialética invertida, pp. 157-176.
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de conhecimento histórico teoricamente informado caíram como vítimas colaterais. O que propunha Emília: voltar ao ponto onde se estava antes da virada? Não: recuperando uma referência teórica que havia sido crucial para sua formação ainda em sua época de professora auxiliar na USP, Emília mostrava a esterilidade dessas contraposições ao relembrar a crítica pioneira de Jean-Paul Sartre ao marxismo stalinista, que, relida, serviria igualmente como uma poderosa crítica ao culturalismo e subjetivismo redutores da década de 1980. Afinal, “a historiografia dos nossos dias ergueu-se contra os defeitos assinalados por Sartre, se bem que ao tentar evitá-los não seguiu os caminhos por ele indicados [...]. É preciso que se reconheça a necessidade de trabalharmos na direção de uma nova síntese”.50 Foi o que fez Emília Viotti da Costa em seu livro seguinte, aquele sobre o qual ela havia dado, em 1988, um pequeno vislumbre. Em 16 de março de 2005, em um seminário interno memorável da Linha de Pesquisa em Escravidão e História Atlântica do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ficamos sabendo um pouco mais sobre a cozinha do trabalho. Emília esclareceu, para nós, algo que não ficara de todo claro nas entrevistas que já dera, ou seja, quais motivos imediatos levaram uma especialista em História do Brasil e, após a mudança para os Estados Unidos, também professora e orientadora de teses sobre a América Latina, a escrever um livro sobre o Império britânico. Em 1982, ano do prefácio à segunda edição de Da Senzala à Colônia, um estudante trouxera para um seminário de pós-graduação um documento sobre a revolta de Demerara. Ele o encontrara nos microfilmes dos arquivos da London Missionary Society, em posse da Divinity School Library de Yale. Emília ficou fascinada com a discussão em torno da história, recomendando fortemente ao estudante que tomasse o tema para sua tese de doutorado. Depois de um tempo, o aluno a procurou, desistindo da ideia. Se não é você, sou eu mesma: Emília mergulhou quase que imediatamente no projeto, explorando de saída a riquíssima documentação à mão em Yale, já disponível em microfilmes. Depois, complementou a pesquisa documental nos fundos do Colonial Office depositados nos arquivos nacionais britânicos, em Kew. Mas por que um livro sobre a Guiana inglesa, logo ela, uma historiadora profundamente engajada com seu país, mesmo nos duros anos 1970 ou na década da Abertura, e cujas escolhas de temas (Abolição, Independência, República) sempre haviam 50. Emília Viotti da Costa, “A dialética invertida: 1960-1990”, A dialética invertida, pp. 21, 25.
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sido informadas pela premência política da articulação passado / presente? Justamente por isso, respondeu: a ausência de vínculos políticos ou afetivos com a Guiana lhe permitiria escrever o livro como um grande exercício teórico e metodológico de história total a partir da análise de um evento. Ela já dissera algo parecido em entrevista de 2000: o projeto sobre a revolta escrava de Demerara lhe permitiu “lidar com questões sempre presentes na obra do historiador: o papel dos indivíduos e das classes, a construção e função das ideologias, a importância do acaso e da determinação, as relações entre ‘infra e superestrutura’, tradição e inovação no transplante de culturas ‘africanas’ para a América e a formação de uma nova cultura”51. Acrescentese a essa lista a virada linguística e o pós-modernismo nas ciências humanas, a cisão entre macro e microhistória, o empirismo raso e o abandono da noção de totalidade. A afinidade temática com o livro de 1966 também era clara, e foi assim que terminou a conversa conosco: ela voltava a examinar, agora na história do Império britânico, as relações entre abolicionismo e revolta escrava em um contexto de profundas transformações econômicas, sociais, políticas e ideológicas promovidas pelo avanço das forças do capital. Da incrível riqueza do livro, destacarei apenas dois pontos. O primeiro é a articulação entre estrutura e ação humana. No livro, a categoria estrutura funciona como uma chave para se apreender a ideia de totalidade e a dialética liberdade-necessidade. Emília já não fora, em Da Senzala à Colônia, uma adepta fiel do modelo estanque de muitos dos trabalhos da segunda geração dos Annales (estrutura compreendida como a somatória dos elementos geográficos, da produção material e dos padrões demográficos), ou do modelo tradicional marxista da “estrutura econômica da sociedade” (forças produtivas + relações de produção). Porém, ao operar com a noção de “planos da realidade”, ela acabou recaindo em alguns dos inevitáveis esquematismos daqueles dois modelos, o que fica evidente nos três planos paralelos em que organizou o livro. Estrutura, em Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue, não é apenas uma metáfora heurística empregada para apreender os ritmos específicos de cada “plano da realidade”, mas a própria dimensão dos tempos assimétricos de longa duração em que se inscrevem os sujeitos sociais em suas atividades cotidianas. O livro, assim, serve como uma excelente exemplificação da conceituação da pluralidade dos tempos históricos discutida no capítulo anterior. 51. José Geraldo Vinci de Moraes e José Márcio Rego, “Emília Viotti da Costa”, Conversas, p. 82.
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Para compreender adequadamente as relações entre essas estruturas plurais e os eventos produzidos pela ação – ou, nos termos correntes, pela “agência” – humana, vale recorrer ainda ao historiador William Sewell Jr. Segundo ele, o uso corrente do conceito de estrutura nas ciências humanas conduz com frequência a três problemas. O primeiro é o fato de os argumentos estruturais assumirem um determinismo causal muito rígido na vida social; a ação humana tende a ser subsumida na estrutura, e os atores sociais são reduzidos a meros autômatos dela. A expressão, por outro lado (segundo problema), implica a ideia de estabilidade, sem conseguir dar conta de transformações no tempo; no discurso estrutural, a mudança é usualmente localizada fora da estrutura, seja num telos da história, seja em influências exógenas ao sistema em questão. Por fim, há a dicotomia mental/ material que rege a maior parte dos trabalhos que operam com a categoria; os sociólogos se inclinam a localizar a estrutura determinante nas forças materiais, enquanto os antropólogos o fazem na esfera da cultura.52 Em Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue, Emília consegue evitar magistralmente esses três problemas, adotando uma acepção de estrutura que integra de modo substantivo a “agência” dos sujeitos sociais, não secciona o mental do material e dá conta do processo de mudança por meio da análise da dinâmica própria do sistema social em observação (no caso, o escravismo no mundo atlântico, em geral, e no Império inglês, em particular). Estrutura é a base produtiva de Demerara, mas também o conjunto dos valores ideológicos e culturais que os africanos trouxeram consigo e redesenharam conforme as condições locais; é o capitalismo industrial em formação na metrópole, mas também as noções de direito, justiça e liberdade que impulsionavam o movimento antiescravista, e que foram lidas de modo particular pelos cativos; é, enfim, o quadro mais amplo das forças econômicas, sociais, políticas e ideológicas que criavam o campo de possibilidades e estabeleciam os limites para as ações dos sujeitos sociais, mas que estava ele mesmo em processo de rápida alteração nessa época por conta da própria “agência” dos atores em questão. Essa acepção se traduz de forma igualmente magistral na organização do livro. Se os dois primeiros capítulos apresentam o cenário mais amplo das contradições que polarizavam, no contexto atlântico e imperial inglês da virada do século 52. William H. Sewell Jr., Logics of History. Social theory and social transformation. Chicago: The University of Chicago Press, 2005, pp. 124-126.
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XVIII para o XIX, senhores contra missionários e senhores contra escravos, os cinco capítulos seguintes partem para a observação dessas contradições nas ações dos atores diretamente envolvidos na rebelião. Uma leitura rápida poderia dar a entender que a estrutura estaria presente apenas nos primeiros capítulos, ficando reservado à agência os outros cinco. Entretanto, a todo momento Emília indica como a estrutura está na ação, no evento, e, inversamente, como a ação social, ou o evento, molda a estrutura. A rigidez de Da Senzala à Colônia foi substituída por uma arquitetura flexível, capaz de enfrentar nas dimensões de um livro – e não somente nas de um prefácio como o de 1982 – o problema que Emília explicitara na arguição de 1964. Isso se deu a partir da incorporação plena do método do “vaivém” sartreano, a chave para dar conta do problema das mediações e da construção de uma perspectiva totalizadora não mecânica. Com efeito, foi o método progressivo-regressivo, o “jogo inteligente e perigoso” a que se referia Fernand Braudel (ver o capítulo anterior), que deu umas das bases mais importantes para o projeto que resultou em Coroas de Glória. No processo de investigação que inscreveu o episódio de 18 de agosto de 1823 nos quadros do mundo mais amplo que o produziu, mas que também foi por ele produzido, Emília seguiu o movimento do abstrato ao concreto, do concreto ao abstrato, das estruturas aos eventos, dos eventos às estruturas, da época às biografias, das biografias à época, do macro ao micro, do micro ao macro, enfim, das relações dialéticas entre todo e parte, com o cuidado de, “longe de procurar integrar logo” um ao outro, mantê-los separados “até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e ponha um termo provisório na pesquisa”. Aí esteve o segredo de sua capacidade de captar, nas páginas memoráveis dos capítulos 3 a 7 – ou seja, em dois terços do livro – , a “profundidade do vivido” por missionários e escravos de Demerara.53 O segundo ponto que quero destacar é o papel que a narrativa ocupa na obra. Em realidade, Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue serve como um excelente exemplo para demonstrar como parte substantiva do debate sobre a “volta da narrativa” carece de sentido, como aliás salientou Eric
53. As citações são de Jean-Paul Sartre, “Questão de Método”, in: O existencialismo é um humanismo / A imaginação / Questão de Método (trad. port.). São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 171, 175; Emília Viotti da Costa, Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue, pp. 114-337.
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Hobsbawm logo após a publicação do ensaio que dera origem à discussão.54 Cabe aqui lembrar outro historiador central para os demais capítulos deste livro. Como ressalta Reinhart Koselleck, a forma da narração (isto é, o encadeamento de eventos em uma progressão discursiva linear) prendese à dimensão temporal tratada pelo historiador, e não ao repertório dos recursos estilísticos que mobiliza. Assim, lembra Koselleck, é impossível alguém narrar um tempo longo, ao passo que o tempo curto exige a forma narrativa. Estruturas são sempre descritas; eventos são sempre narrados.55 O livro é um magnífico exercício neste sentido. A adoção da técnica do romance polifônico – cujas vozes são compostas pelos missionários, senhores, autoridades coloniais e, acima de tudo, pelos escravos – é uma das estratégias que ela emprega para dar conta, na escrita, da pluralidade dos tempos históricos. A outra, estritamente atrelada ao fato de a autora – contra a maré pós-moderna – não “abrir mão dos privilégios e responsabilidades do narrador”56, reside na própria divisão dos capítulos. Enquanto os dois primeiros (que tratam basicamente das grandes mudanças ocorridas nas estruturas no mundo atlântico, na passagem do século XVIII para o XIX, e sua dinâmica local em Demerara) são descritivos, os cinco últimos capítulos (que tratam da sequência de eventos iniciada em 1808, com a chegada à colônia dos primeiros pastores da London Missionary Society, e que culminaria na revolta de 1823, na repressão subsequente e em suas repercussões atlânticas mais amplas) oferecem uma narrativa envolvente. De acordo com a lição de Koselleck, seguida à risca em toda a trajetória de Emília “estruturas mais ou menos duradouras, mas de todo modo de longo prazo, são condições de possibilidade para os eventos. [...] Inversamente, certas estruturas só podem ser apreendidas nos eventos nos quais se articulam e por meio dos quais se deixam transparecer. [...] A forma mais adequada para se apreender o caráter processual da história moderna é o esclarecimento recíproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa”.57
54. Cf. Lawrence Stone, “The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History”. Past & Present, 85: 3-24, November 1979; Eric Hobsbawm, “A volta da narrativa”, In: Sobre História (trad. port.). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 201-206. 55. Cf. Reinhart Koselleck, “Representação, evento e estrutura”, In: Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. (1ª ed.: 1979; trad. port.) Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.PUC-RJ, 2006, pp. 133-145. 56. Costa, Coroas de Glória, p. 19. 57. Koselleck, “Representação”, p. 139.
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Um problema crucial da obra anterior de Emília desapareceu de Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue. Refiro-me à conceituação linear de tempo histórico contida na contraposição estanque entre capitalismo e escravidão. Isso não quer dizer que ela não tenha considerado o arranque do capitalismo industrial na metrópole como uma força crucial no estabelecimento das condições gerais em que se deu o evento de 1823, mas sim que ela não mais o equacionou a partir da fórmula tradicional versus moderno. Nesse sentido, uma nota no início do capítulo 2 guarda particular interesse. Após argumentar como “a integração de Demerara a um mundo capitalista em expansão deu aos escravos novos motivos de protesto, mas também novas noções de direitos e novas oportunidades de resistência”, ela advertiu que “o impacto dessas mudanças econômicas e ideológicas internacionais nas vidas de colonos e escravos só pode ser avaliado no contexto das condições particulares que predominavam em Demerara”. A nota nos remete a um dos problemas frequentemente apontados nas abordagens do “sistema mundial”, qual seja, “negligenciar o fato de que o impacto que o centro tem na periferia depende das estruturas políticas, econômicas e sociais assim como da intensidade da luta de classes que tem lugar tanto na periferia quanto no centro”. No entanto, seria possível compatibilizar essas duas miradas aparentemente antagônicas, como aliás Emília estava afirmando em seus artigos historiográficos e teóricos dessa época: um “exemplo de síntese bem-sucedida que consegue conciliar a tendência local e mundial, assim como a instância humana, no estudo de uma sociedade escravista”, segundo ela, era o trabalho de Dale Tomich sobre a Martinica na primeira metade do século XIX.58 Qual a relevância de salientar essa nota de rodapé ao encerrar este capítulo? Ela chama a atenção sobre como as descontinuidades espaçotemporais da escravidão atlântica nos quadros da economia-mundo capitalista foram incorporadas ao argumento de Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue. De fato, Emília salientou em diversas passagens dos dois primeiros capítulos de seu livro que o arranque da escravidão brasileira e cubana após 1815 – diretamente ligado à nova ordem econômica mundial que estava sendo erigida pelo livre comércio e pelo capital industrial britânico – foi 58. Costa, Coroas de Glória, p. 66, p. 357 (nota 15). O livro de Dale Tomich citado por Emília é Slavery in the Circuit of Sugar: Martinique and the World Economy, 1830-1848. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990.
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um fator determinante para o aprofundamento da crise econômica em Demerara e, consequentemente, para a resposta senhorial de se especializar no açúcar, sobre-explorando seus escravos. O que se passava no Brasil e em Cuba reforçava o que se passava em Demerara, e vice-versa. A ação dos escravos em 1823 foi derrotada no plano imediato, mas se revelou crucial para em breve abolir a escravidão no Império britânico, o evento alterando assim a estrutura. A escravidão no Brasil, ao entrar em um novo tempo produzido pelo tempo do capital industrial (o mesmo que fizera parte da crise da escravidão em Demerara), demoraria mais seis décadas para ser abolida – e, novamente, com base em uma aliança entre abolicionistas e escravizados, como Emília demonstrara pioneiramente em Da Senzala à Colônia.
Capítulo 4 Ouro, café e escravos: o Brasil e “a assim chamada acumulação primitiva” Com Leonardo Marques
No famoso capítulo que dá o subtítulo para este capítulo, Karl Marx ofereceu ferramentas inestimáveis para compreender, como forças interrelacionadas do capitalismo histórico, os processos de separação entre os trabalhadores e os meios de produção, de montagem da economia mundial e da revolução financeira.1 Ainda que o cerne de “A assim chamada acumulação primitiva” tenha sido dado pela análise dos diferentes mecanismos de despossessão dos produtores rurais, Marx não lhes concedeu prioridade histórica. A criação da força de trabalho assalariada foi parte indissociável da criação do capitalista industrial, que, por sua vez, fundou-se nas construções correlatas do mercado mundial e do colonialismo moderno. E, ao tomar a Inglaterra como a unidade de observação do movimento da acumulação primitiva, “cuja história assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas”, Marx pôde igualmente lançar luz sobre o lado financeiro dessa história, isto é, como a construção da dívida pública inglesa acabou sendo um dos esteios da ordem capitalista nascente.2
1. Este capítulo foi escrito para a Conferência Towards a Global History of Primitive Accumulation, realizada entre 9 e 11 de maio de 2019 no Instituto Internacional de História Social de Amsterdã, Holanda. 2. “Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. [...] O sistema de crédito público, isto é, das dívidas públicas, cujas origens encontramos em Gênova e Veneza já na Idade Média, tomou conta de toda a Europa
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Nas tradições marxistas do século XX que lidaram com a história do capitalismo, esses processos distintos, porém estreitamente articulados de expropriação dos produtores diretos, de formação do mercado mundial, da construção do sistema colonial e da transformação financeira foram, no mais das vezes, cindidos, com cada vertente teórica e interpretativa elegendo um deles como o elemento definidor de sua análise.3 A tal problema devemos adicionar o do tratamento do tempo histórico. Marx não ofereceu, neste que é o mais histórico dos capítulos d’O Capital, uma história canônica.4 Os processos que descreve se sobrepõem temporalmente, sem que haja, nos vários assuntos que examina, uma progressão linear do mais antigo ao mais recente. O tempo da expropriação dos produtores rurais se encavala nos tempos da formação do mercado mundial e da revolução financeira: todos os três pertencem ao tempo unificado da acumulação primitiva, e a exposição não os sequencia em uma cadeia linear de eventos. Ademais, ao examinar, em várias passagens do capítulo, eventos que estavam ocorrendo em meados do século XIX, Marx trata do momento imediato de sua praxis. A violência que pariu o capitalismo é, desse modo, permanentemente reposta no movimento do capital: como ele deixa claro na breve e conhecida menção à escravidão norte-americana, durante o período manufatureiro. O sistema colonial, com seu comércio marítimo e suas guerras comerciais, serviu-lhe de incubadora. [...] A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva [:] [...] impulsionou as sociedades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia. [...] Por isso, a acumulação da dívida pública não tem indicador mais infalível do que a alta sucessiva das ações desses bancos, cujo desenvolvimento pleno data da fundação do Banco da Inglaterra (1694). Esse banco começou emprestando seu dinheiro ao governo a um juro de 8%, ao mesmo tempo que o Parlamento o autorizava a cunhar dinheiro com o mesmo capital, voltando a emprestá-lo ao público sob a forma de notas bancárias. Com essas notas, ele podia descontar letras, conceder empréstimos sobre mercadorias e adquirir metais preciosos. Não demorou muito para que esse dinheiro de crédito, fabricado pelo próprio banco, se convertesse na moeda com a qual o Banco da Inglaterra tomava empréstimos ao Estado e, por conta deste último, pagava os juros da dívida pública. Não lhe bastava dar com uma mão para receber mais com a outra: o banco, enquanto recebia, continuava como credor perpétuo da nação até o último tostão adiantado. E assim ele se tornou, pouco a pouco, o receptáculo imprescindível dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial.” Karl Marx, O Capital. Crítica da Economia Política. Livro 1. O processo de produção do capital (trad. port. de Rubens Enderle). São Paulo: Boitempo, 2013, cap. 24. 3. Cf. Dale W. Tomich, Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial (trad. port.). São Paulo: Edusp, 2011, pp. 53-79. 4. Ver, a respeito, as observações de Dale Tomich, “The Limits of Theory: Capital, Temporality, and History”. Review (Fernand Braudel Center), 38, no. 4 (2015): 329-68, e de Jairus Banaji, Theory as History: Essays on Modes of Production and Exploitation. Leiden: Brill, 2010, p. 43.
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a experiência dos processos históricos brutais da acumulação primitiva se prolonga no tempo presente da produção propriamente capitalista, do trabalho assalariado na grande indústria mecanizada. Essa conceituação plural da duração do tempo histórico chamou a atenção de Fernand Braudel em seu ensaio matricial de 1959: “o gênio de Marx, o segredo de seu poder prolongado, deve-se ao fato de que foi o primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais, e a partir da longa duração histórica”. A ressalva de Braudel vai para as tradições marxistas posteriores, uma vez que “esses modelos foram congelados na sua simplicidade ao lhes ser dado valor de lei, de explicação prévia, automática, aplicável em todos os lugares, a todas as sociedades”.5 A observação mais recente de Massimiliano Tomba caminha no mesmo sentido: “grande parte do marxismo do século XX permaneceu aprisionada em uma concepção unilinear de tempo histórico, fazendo com que diferentes formas sociais fossem classificadas como avançadas ou atrasadas”.6 Esses problemas contaminaram todo o debate que se travou sobre o lugar do Brasil na acumulação primitiva. Tal como em muitos outros países, o assunto foi intensamente discutido pelos marxistas brasileiros entre as décadas de 1950 e 1970. As posições tenderam a se antagonizar em dois polos. Por um lado, em uma leitura próxima da que Eric Williams efetuara sobre o papel do colonialismo e da escravidão para a decolagem industrial inglesa, houve aqueles que enfatizaram as vinculações dos diferentes setores exportadores escravistas com o mercado mundial como o nexo explicativo fundamental para a compreensão da formação histórica do Brasil. O colonialismo português na América teria sido assim uma peça crucial no processo de acumulação primitiva de capitais; no momento em que houve o arranque da Revolução Industrial e o modo de produção de capitalista finalmente vingou, todo o edifício anterior (exclusivo comercial, comércio triangular, escravismo de plantation) entrou em uma crise sistêmica, que se resolveu, no caso brasileiro, com a independência, em 1822, e a abolição da escravidão, em 1888.7 Por outro lado, a partir de uma crítica ao que 5. Fernand Braudel, “História e Ciências Sociais: a Longa Duração”. In: Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 75-76. 6. Massimiliano Tomba, Marx’s Temporalities. Leiden: Brill, 2013, p. xiii. 7. Tal é o caso, dentre outras, das obras de Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979, Emília Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia (1966). São Paulo: Brasiliense, 1989, e João Manuel Cardoso de Mello, O capitalismo tardio. (1a ed: 1978) Campinas: Edições Facamp, 2009.
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denominaram de “circulacionismo” da primeira perspectiva, houve aqueles que procuraram investigar a dinâmica própria e interna, não redutível à lógica do mercado mundial, das estruturas econômicas e sociais que se formaram no espaço colonial. A aposta, aqui, se deu em torno da elaboração teórica do conceito de modo de produção escravista colonial, historicamente distinto dos modos de produção vigentes no Velho Mundo (feudal ou capitalista), ainda que a eles articulados pelas vinculações externas dadas pelo mercado mundial.8 Não obstante tais vínculos, a acumulação primitiva de capitais (concebida de forma quase exclusiva como a formação e a generalização da relação de trabalho assalariada na Inglaterra) e sua decorrência imediata (a Revolução Industrial) foram processos que pouco ou nada deveram à exploração do mundo colonial.9 Em que pesem suas antinomias (produção versus circulação, trabalho versus mercado), as duas perspectivas convergiram em dois pontos. Primeiro: o entendimento de que a acumulação primitiva de capitais constituiu uma “fase” específica da história do capitalismo, explicável pela formação do mercado mundial ou pelas transformações nas relações sociais de produção ocorridas em países específicos da Europa. Segundo: a equivalência do modo de produção capitalista ao trabalho assalariado e a conceituação da escravidão como uma relação de trabalho fundamentalmente atrasada ou arcaica, portanto antagônica à modernidade do verdadeiro capitalismo. Como não raro acontece em (não) debates dessa natureza, em fins da década de 1980 a discussão parecia ter chegado a um beco sem saída. Logo, no entanto, as modificações no panorama historiográfico mundial acabaram por vir em socorro da segunda perspectiva, destituída a partir de então de seu fundo marxista original. Como resultado da maré vazante dos argumentos sobre o peso do comércio externo e do colonialismo para a decolagem industrial britânica, das revisões historiográficas em Portugal e no Brasil sobre os legados coloniais lusitanos e da própria dinâmica da investigação impulsionada pelo modelo do modo de produção escravista 8. Ver, em especial, Ciro Flamarion Santana Cardoso, “O Modo de Produção Escravista Colonial Na América”. In: Théo Santiago (org.). América Colonial. Rio de Janeiro: Pallas, 1975; Jacob Gorender, O Escravismo Colonial (1978). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010. 9. É o que sugere Ciro Flamarion Santana Cardoso no ensaio “As concepções acerca do ‘Sistema Econômico Mundial’ e do ‘Antigo Sistema Colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘Extração do Excedente’”, in: José Roberto do Amaral Lapa (org.), Modos de Produção e Realidade Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, pp. 109-132.
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colonial, algumas das correntes dominantes na historiografia brasileira nas décadas de 1990 e 2000 abandonaram as pretensões de se examinarem as conexões globais da escravidão brasileira com o mercado mundial.10 10. O melhor exemplo disso talvez esteja nos trabalhos de João Fragoso. Vale, aqui, uma nota mais alongada em vista das desleituras por ele apresentadas. Acuado por críticas que recorrem à teorização do capitalismo contida nas perspectivas do sistema-mundo, mas não só nelas (cf. Rafael de Bivar Marquese, “As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira”, Revista de História, 169 (2): 223-253), Fragoso tem buscado socorro em Robert Brenner (ver, por exemplo, João Fragoso, “La guerre est finie: notas para investigação em História Social na América lusa entre os séculos XVI e XVIII”, In: João Fragoso & Maria de Fátima Gouvêa (org.), O Brasil Colonial, 1443-1580. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, pp. 16-17). Os limites dessa estratégia são claros: repisar os termos do debate Wallerstein x Brenner, como Fragoso o faz, apenas recoloca, em termos novos, o velho problema das abstrações violentas e redutoras produzidas pela cisão economia mundial x economia colonial. Além da rigidez conceitual herdada de Brenner (“Com certeza, nos séculos XVI e XVII, o tráfico de escravos e o comércio de têxteis vindo do Oriente, por exemplo, criaram novas bases na vida econômica, porém qualificar tais transformações como capitalistas parece-me temeroso”), Fragoso também recoloca a discussão de Patrick O’Brien sobre uma contribuição “periférica da periferia” basicamente nos mesmos termos do famoso artigo de 1982. Apesar de reconhecer que o autor dera maior atenção aos mercados coloniais em um trabalho de princípios dos anos 1990, Fragoso mantém que “sua tese principal [i.é, de O’Brien] [...] que a proeminência do mercado doméstico nos primeiros tempos da industrialização inglesa permaneceria” válida, estratégia que já havia usado em texto de 2002 (ver João Fragoso. “Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do império português (séculos XVIII e XIX)”. História: Questões & Debates, v. 36, n. 1, 2002). Na nova referência, de 2015, Fragoso inclui o capítulo de O’Brien no Cambridge Economic History of Latin America, com a observação de que ali ele voltara ao tema, mas sem explicitar o seu conteúdo. Uma rápida olhada no texto, contudo, mostra que O’Brien se distanciou significativamente de suas antigas perspectivas, deixando claro que uma história puramente internalista – o que ele chama de um weberianismo vulgar – do desenvolvimento europeu não pode mais ser sustentada diante dos desenvolvimentos historiográficos das últimas décadas. Em sua discussão mais recente, O’Brien reconhece que mesmo o argumento de Pierre Vilar em torno da importância dos metais preciosos do Novo Mundo para o desenvolvimento financeiro da Europa vinha recebendo alguma confirmação estatística, perspectiva que também inspira o presente capítulo. Em suma, a discussão teórica e as pesquisas empíricas em torno da história do capitalismo na era moderna avançaram significativamente nas últimas quatro décadas, tornando impossível qualquer tentativa de dar esse debate como encerrado com base nas antigas perspectivas de Brenner e O’Brien. Patrick K. O’Brien. “The Global Economic History of European Expansion Overseas”. In: The Cambridge Economic History of Latin America: Volume 1, The Colonial Era and the Short Nineteenth Century, edited by Victor Bulmer-Thomas, John Coatsworth, and Roberto Cortés-Conde. Cambridge University Press, 2005. Em tempo, o próprio Brenner ofereceu, posteriormente, alguns caminhos para conectar a história dos mercados coloniais aos desenvolvimentos europeus em Merchants and Revolution, como bem observou Perry Anderson à época do lançamento do livro e demonstrou, na prática, Robin Blackburn. Ver Robert Brenner. Merchants and revolution: commercial change, political conflict, and London’s overseas traders, 1550-1653. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1993; Perry Anderson. “Maurice Thomson’s War”. London Review of Books, v. 15, n. 21, 4 nov. 1993; Robin Blackburn, The Making of New World Slav-
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Desde o início deste século, vários esforços historiográficos consistentes para reatar perspectivas estruturais que buscam articular um fenômeno ao outro vêm sendo elaborados.11 Dentro dessa ordem de preocupações, buscaremos, neste capítulo, examinar as relações entre a economia escravista da América portuguesa e do Império do Brasil e os vários processos analisados por Marx. Procuraremos evitar uma conceituação linear do tempo histórico e as oposições binárias que tanto marcaram a leitura do capítulo 24 do volume I d’O Capital, e que assim simplificaram a complexidade do capitalismo histórico. Como quase sempre costuma ser o caso, Marx nos oferece as ferramentas para resolver os problemas contidos em certas leituras de seu corpus. Inspirados nas obras de Giovanni Arrighi e Reinhart Koselleck, que, como Marx, ofereceram abordagens plurais ao tempo histórico, sugerimos que a “primeira escravidão”, ou seja, a escravidão dos tempos coloniais, pode ser melhor entendida como parte de duas estruturas históricas distintas (o sistema atlântico ibérico e o sistema atlântico do noroeste europeu) que se formaram e se condicionaram mutuamente dentro da temporalidade mais ampla, unificada porém desigual, da economia-mundo capitalista. No século XIX, aquelas duas estruturas foram substituídas por uma nova, a da “Segunda Escravidão”, que ligava o Império do Brasil, a colônia espanhola de Cuba e o Sul dos Estados Unidos como um subsistema da economiamundo capitalista. Em suma, os processos globais de acumulação de capital foram marcados por vários estratos de tempo, o que incluiu os tempos desiguais da maior sociedade escravista da era moderna, o Brasil. Ouro O argumento de que o enorme afluxo do ouro brasileiro foi decisivo para o crescimento econômico inglês no século XVIII é antigo, tendo sido inicialmente apresentado pelos próprios coevos. Em 1766, por exemplo, o Conde de Oeiras, em breve Marquês de Pombal, escreveu ao enviado britânico em Lisboa que a Grã-Bretanha precisava proteger o império português ery: From the Baroque to the Modern, 1482-1800. London: Verso, 1997, capítulo 6. Perry Anderson retoma a discussão brilhantemente em sua análise da obra de Brenner como um todo em Perry Anderson. Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. 11. Ver o balanço de Leonardo Marques, “New World Slavery in the Capitalist World Economy”. In: Kaveh Yazdani & Dilip Menon (org.), Capitalisms: Towards a Global History. Oxford: Oxford University Press, 2020, pp. 71-94.
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de seus inimigos pois, caso contrário, o crédito público na Grã-Bretanha seria severamente afetado pela provável diminuição da oferta de dinheiro do Brasil (uma ameaça que foi replicada na correspondência enviada a Londres).12 No século XX, vários historiadores exploraram essa conexão, de Werner Sombart a Vitorino Magalhães Godinho, Pierre Vilar, Sandro Sideri e Virgílio Noya Pinto.13 Porém, a análise mais detalhada dessa relação está na monografia de H. E. S. Fischer sobre o comércio anglo-português entre 1700 e 1770, fruto de uma tese de doutorado defendida na Universidade de Londres e publicada originalmente em livro em 1971. Em seu capítulo final, Fischer sumariou as implicações do ouro brasileiro para a economia inglesa, dentre elas o lançamento das bases para o estabelecimento do padrão-ouro e o fortalecimento do Banco da Inglaterra e da rede bancária privada, ou, em resumo, a criação de um ambiente monetário e financeiro amplamente favorável aos investimentos privados em novos empreendimentos comerciais e industriais (o que inclui as plantations britânicas do outro lado do oceano).14 Surpreendentemente, contudo, a historiografia posterior sobre a revolução financeira inglesa, o Estado militar-fiscal e a aliança entre a aristocracia e a City pouca ou nenhuma atenção prestou à face colonial não britânica desses processos – o que também vale para os debates que essa historiografia gerou.15 O quadro institucional criado pela Revolução Gloriosa de 1688, no qual se assoma o arranjo financeiro que propiciou a emergência de um sólido mercado de capitais na Inglaterra, está no centro das teorias do crescimento econômico oferecidas por Douglass North, Daron Acemoglu
12. L.M.E. Shaw, The Anglo-Portuguese Alliance and the English Merchants in Portugal, 1654-1810. Aldershot: Ashgate, 1998, Conclusão. 13. Vitorino de Magalhães Godinho, “Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770)”. Revista de História 7 (15): 69-88, 1953; Pierre Vilar, Ouro e moeda na história 1450-1920 (trad. port.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; Sandro Sideri, Comércio e poder: colonialismo informal nas relações anglo- portuguesas. Lisboa: Cosmos, 1978; Virgílio Noya Pinto, O ouro brasileiro e o comércio angloportuguês: uma contribuição dos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. 14. Cf. H.E.S. Fisher, The Portugal Trade: A Study of Anglo-Portuguese Commerce, 1700-1770. London: Methuen, 1971. 15. Vejam-se, por exemplo, os trabalhos já clássicos de P.G.M. Dickson, The Financial Revolution in England: A Study in the Development of Public Credit, 1688-1756. London: Macmillan, 1967; John Brewer, The Sinews of Power: War, Money, and the English State, 1688-1783. New York: Knopf, 1988; P. J. Cain & A. G. Hopkins. British Imperialism: Innovation and Expansion, 1688-1914. London: Longman, 1993.
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e James Robinson, dentre outros.16 O ouro brasileiro, contudo, tampouco dá as caras aqui. O assunto foi recentemente reaberto por Nuno Palma, que investigou em diversos trabalhos os impactos mais amplos da oferta de metais preciosos do Novo Mundo sobre a economia europeia na primeira modernidade. No caso específico do ouro setecentista, Palma considera que dois terços da produção brasileira – que, segundo TePaske, chegou a 70% da produção mundial total na década de 1730 – foi importada pela Inglaterra.17 Antes do século XVIII, o dreno constante da prata americana pelo Oriente dificultara a monetarização plena das economias nacionais europeias. Palma calcula que a injeção de ouro na Inglaterra entre 1700 e 1790 representou cerca de 45 milhões de libras esterlinas. Indo mais longe e comparando estimativas diferentes, David Richardson e E.W. Evans chegam a sugerir que um total de 50 milhões de libras apenas para a primeira metade do século XVIII pode não ser exagerado.18 Seja como for, o que é claro é o fato de a produção local de moedas de ouro ter aumentado notavelmente na Inglaterra, e de as moedas cunhadas em Portugal terem passado a circular livremente na economia inglesa. O afluxo do ouro português foi um vetor decisivo para a completa monetarização da Inglaterra, permitindo que todos os atores econômicos ampliassem sua participação no mercado (no processo que Jan de Vries chamou de “revolução industriosa”19), sem que houvesse pressão sobre os preços (inflação ou deflação) ou incremento no custo do dinheiro (aumento na taxas de juros). Tais impactos estimularam de forma direta a industrialização, fosse pelas exportações de tecidos a Portugal e suas colônias, fosse pelo aumento da demanda por artigos manufaturados na própria Inglaterra.
16. Douglass C. North, Instituições, mudança institucional e desempenho econômico (trad. port.) São Paulo: Três Estrelas, 2018, pp. 189-196; Douglass C. North & Barry R. Weingast. “Constitutions and Commitment: The Evolution of Institutions Governing Public Choice in Seventeenth-Century England”. The Journal of Economic History, 49 (4): 803-32, 1989; Daron Acemoglu & James A. Robinson. Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity and Poverty. London: Profile, 2012. 17. Nuno Palma, “Anglo-Portuguese Trade and Monetary Transmission During the Eighteenth Century”, Nova School of Business and Economics. Draft: October 21, 2012; John J. TePaske, A New World of Gold and Silver. Leiden: Brill, 2010, p. 49. 18. David Richardson & E.W. Evans. “Empire and Accumulation in Eighteenth-Century Britain”. In: History, Economic History and the Future of Marxism: Essays in Memory of Tom Kemp (1921-1993), edited by Terry Brotherstone and Geoffrey Pilling. London: Porcupine, 1996. 19. Jan de Vries, The Industrious Revolution: Consumer Behavior and the Household Economy, 1650 to the Present. 1st ed. Cambridge University Press, 2008.
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Ainda que inconcluso, o trabalho de Nuno Palma trouxe frescor empírico e teórico a um antigo argumento. Não é despropositado, contudo, assinalar que falta em sua análise a incorporação das relações escravistas americanas e suas conexões com a economia-mundo capitalista. Essa outra história também faz parte de outro velho argumento. É para ele que nos voltamos agora. A segunda metade do século XVII foi marcada pela crise das exportações americanas de prata, resultado do esgotamento das condições humanas e ambientais de exploração dos veios no Alto Peru e, em menor escala, da queda dos volumes prévios da Nova Espanha.20 Crise das exportações de prata não significou necessariamente crise da economia colonial da América espanhola. As conjunturas metropolitanas e coloniais foram “opostas”, conforme ressalta o estudo de Ruggiero Romano, e a famosa rota Acapulco-Manilla pouca oscilação teve nos volumes de prata que até então envolvera.21 De todo modo, para os circuitos globais mais amplos em que operavam os agentes econômicos europeus, a retração das exportações da prata colonial espanhola teve implicações de relevo. No exato momento em que diminuíam os fluxos de prata que cruzavam o Atlântico, as grandes companhias exclusivas do noroeste europeu – a V.O.C. holandesa e a E.I.C. inglesa – estavam entrando com força no trato asiático. Segundo os cálculos prudentes de Jan de Vries, na primeira metade do século XVII a Europa ocidental reteve 43% da produção total de prata produzida pela América espanhola, ao passo que o sul e o leste da Ásia retiveram 34%.22 A diminuição das exportações americanas significava, para aquelas companhias, dificuldades crescentes para suas operações na Ásia. O ouro até então disponível nos circuitos europeus não poderia vir em
20. Jason W. Moore, “‘Amsterdam Is Standing on Norway’ Part I: The Alchemy of Capital, Empire and Nature in the Diaspora of Silver, 1545-1648”. Journal of Agrarian Change, 10 (1): 33-68, 2010; Jason W. Moore, “‘Amsterdam Is Standing on Norway’ Part II: The Global North Atlantic in the Ecological Revolution of the Long Seventeenth Century”. Journal of Agrarian Change, 10 (2): 188-227, 2010. 21. Ruggiero Romano, Conjonctures opposées: la “crise” du XVIIe siècle en Europe et en Amérique ibérique. Genève: Librairie Droz, 1992; Dennis O. Flynn & Arturo Giraldez. “Arbitrage, China, and World Trade in the Early Modern Period”. Journal of the Economic and Social History of the Orient 38 (4): 429-48, 1995. 22. Jan de Vries, “Connecting Europe and Asia: A Quantitative Analysis of the Cape- Route Trade, 1497-1795”. In: Dennis O. Flynn, Arturo Giraldez, and Richard Von Glahn (org.). Global Connections and Monetary History, 1470-1800. Aldershot: Ashgate, 2003, p. 82.
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socorro: além do volume de sua produção ser muito inferior ao da prata, sem que seu valor superior compensasse a diferença, os mercados asiáticos giravam principalmente em torno do metal branco, não do metal dourado (a despeito da existência de algum lugar para o ouro na fragmentada economia do subcontinente indiano).23 Tanto um como outro estavam em crônica falta no espaço atlântico durante a segunda metade do século XVII, carência que se tornou ainda mais aguda pelas rivalidades militares crescentes dos poderes do noroeste europeu, em disputa acirrada pelo controle da economiamundo capitalista. Nos termos de Immanuel Wallerstein, “a escassez de metais preciosos cresceu ao longo do século. A falta começava a ser sentida, o que levou a uma busca renovada por ouro e prata”.24 A crise se manifestou de modo igualmente agudo em Portugal, adquirindo contornos específicos em razão da história particular da inscrição do país no sistema europeu. As décadas de meados do século XVII marcaram uma espécie de “meridiano imperial” no sistema atlântico ibérico, com a passagem de seu longo século XVI (c.1450-c.1640), no qual Portugal e Espanha foram a ponta de lança da construção da economiamundo europeia, para o longo século XVIII (c.1640-1808), quando os dois países se viram em uma posição crescentemente subordinada às potências do noroeste europeu.25 A cisão entre um momento e outro foi configurada pela montagem do sistema atlântico do noroeste europeu. Se a construção do sistema atlântico ibérico no longo século XVI (cujas bases residiam no trato português com a África e a Ásia, na exploração da prata espanhola com o concurso de trabalho forçado indígena e na produção açucareira atlântica portuguesa com o trabalho escravo africano) fez parte do que Giovanni Arrighi conceituou como o ciclo genovês de acumulação, a construção do sistema atlântico do noroeste europeu pertenceu ao tempo do ciclo holandês de acumulação.26
23. Prasannan Parthasarathi. Why Europe Grew Rich and Asia Did Not: Global Economic Divergence, 16001850. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2011, p. 47. 24. Immanuel Wallerstein, The Modern World-System II: Mercantilism and the Consolidation of the European World-Economy, 1600-1750. New York: Academic Press, 1980, p. 111. 25. Kenneth Maxwell, “Hegemonias antigas e novas: o Atlântico ibérico ao longo do século XVIII”. In: Chocolate, piratas e outros malandros: ensaios tropicais (trad. port.). São Paulo: Paz e Terra, 1999. 26. Giovanni Arrighi, O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo (trad. port.). Rio de Janeiro: Contraponto / São Paulo: Ed. Unesp, 1996; Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron, Escravidão e Política. Brasil e Cuba, 17901-1850. São Paulo: Hucitec, 2010, cap. 1.
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Interessa-nos localizar nesses movimentos de largo prazo as bases da aliança diplomática e militar entre Portugal e Inglaterra. Um dos elementos de fundo que nos permite conceituar o sistema atlântico ibérico como uma unidade histórica reside no fato de que seus países se formaram de modo unificado, em um jogo de determinações recíprocas, dentro do próprio processo de expansão ultramarina no longo século XVI. O tempo da formação atlântica do noroeste europeu, novamente em um jogo unificado de determinações recíprocas ocorrido em um forte processo de expansão material e espacial, foi outro, o da virada para o século XVII, quando a Holanda – então em aliança com a Inglaterra – se firmou como o novo centro da economia-mundo europeia ao derrotar as pretensões imperiais da Espanha. A saída de Portugal da União Ibérica (1640-1668), para se viabilizar, dependia de alianças com os rivais da Espanha. O caminho holandês foi bloqueado pelos ataques sistemáticos da W.I.C. e da V.O.C. às possessões portuguesas na América, na África e na Ásia, iniciadas ainda durante o período da União Ibérica como parte da estratégia de guerra global contra o Império Espanhol. Ao romper com a Espanha, restava a Portugal o caminho da aliança inglesa, que pelos tratados de 1642, 1654 e 1661 garantiu sua viabilidade como um país independente.27 A guerra de independência contra a Espanha e as guerras coloniais contra a Holanda solaparam os fundamentos do Império Português. Sem base econômica sólida no espaço metropolitano, verificando brutal redução nos rendimentos do comércio com a Ásia e gastos crescentes na luta militar contra a Espanha, Portugal passou a depender cada vez mais dos recursos gerados no Atlântico Sul, mas mesmo aí os problemas se avolumaram na segunda metade do século XVII. Afora a quebra do virtual monopólio que até então exercera sobre o tráfico transatlântico de escravos e a perda do acesso preferencial aos mercados compradores da América espanhola, Portugal viu nascer a competição açucareira das Antilhas inglesas e francesas. O complexo açucareiro-escravista do Atlântico Sul português, no entanto, passara por uma mutação de fundo. No curso das guerras contra a W.I.C., Angola fora convertida em uma espécie de subcolônia das possessões portuguesas da América, com o estabelecimento de um eixo bilateral de tráfico negreiro que, não obstante o papel nele desempenhado pelos capitais metropolitanos, permitiu que os preços dos africanos vendidos como 27. Cf. Berbel, Marquese e Parron, op.cit.
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escravos aos produtores açucareiros do Brasil fossem daí em diante sempre mais baixos do que os preços praticados nas zonas açucareiras rivais do Caribe inglês e francês.28 A despeito da eficiência de seu sistema de tráfico negreiro no Atlântico Sul, no momento mais agudo da crise, nas décadas de 1670 e 1680, ampliaram-se os estímulos oficiais portugueses para a busca de metais preciosos – sobretudo a prata – nas possessões portuguesas na América e na África.29 A solução veio do Brasil, com o ouro e não com a prata. Nas fabulosas descobertas auríferas de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso entre as décadas de 1690 e 1720,30 vemos um conjunto de determinações globais, imperiais e locais de uma economia-mundo capitalista em processo de mutação nos seus padrões de acumulação. O lado europeu dessa história acaba de ser apresentado: conexões comerciais e diplomáticas entre Portugal e Inglaterra gestadas no processo de transformação das hierarquias geopolíticas do sistema europeu, fluxo do ouro em direção à Inglaterra pelas trocas econômicas desiguais entre os dois países, fundação do Banco da Inglaterra, criação da dívida pública, adoção de um padrão-ouro, ampliação do crédito para os capitalistas industriais. Nesses últimos eventos, lê-se quase que uma repetição da sequência descrita por Marx, que pode ser relida na nota 1 deste capítulo. A face atlântica foi mais sombria. As descobertas de ouro levaram a importantes transformações na África. Além de um eficiente sistema de tráfico de escravos estabelecido em Angola, os portugueses conseguiram recriar suas relações comerciais na África Ocidental, de onde haviam sido expulsos pelos holandeses em meados do século XVII. No início do século XVIII, os traficantes holandeses e britânicos deram boas-vindas aos
28. Joseph C. Miller, The Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Wisconsin: Madison University Press, 1988; David Eltis, “Iberian Dominance and the Intrusion of the Northern Europeans into the Atlantic World: Slave Trade as a Result of Economic Growth?”, Almanack, 22: 495-549, Agosto 2019; Luiz Felipe de Alencastro, O Trato Dos Viventes: Formação Do Brasil No Atlântico Sul, Séculos XVI e XVII. São Paulo, Brazil: Companhia das Letras, 2000; Gustavo Acioli & Maximiliano M. Menz. “Resgate e Mercadorias: Uma Análise Comparada Do Tráfico Luso-Brasileiro De Escravos Em Angola E Na Costa Da Mina (século XVIII)”. Afro-Ásia, 37: 43-73, 2008. 29. Stuart B. Schwartz, “Introdução”. In: As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676), org. João Lopes Serra, Stuart B. Schwartz e Alcir Pécora. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 30. A descrição historiográfica mais viva ainda é a de Charles R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695-1750: Growing Pains of a Colonial Society. Berkeley: The University of California Press, 1962.
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traficantes portugueses na expectativa de que eles pudessem trocar africanos escravizados por ouro brasileiro. Humphry Morice (membro do Parlamento Britânico, dirigente do Banco da Inglaterra e um dos maiores traficantes de escravos de sua época), por exemplo, tentou criar um comércio bilateral entre Londres e a África Ocidental com base nos fluxos do ouro brasileiro na região.31 Em estimativas recentes de um dos autores deste capítulo, cerca de 47 toneladas de ouro podem ter sido exportadas para a África Ocidental na primeira metade do XVIII. A crescente força da presença portuguesa na Costa da Mina se refletia em termos como Portuguese slaves e gold slaves, recorrentes nas fontes em inglês para se referir a escravos destinados aos traficantes que chegavam com o ouro do Brasil.32 Não por acaso, o número de revoltas a bordo de navios negreiros portugueses foi substancialmente menor do que no de todos os outros concorrentes europeus, principalmente porque o tempo necessário para completar os carregamentos de escravos na África foi significativamente reduzido pelo poder do ouro. Entre 1700 e 1750, navios portugueses levaram em média 73 dias entre o início e o fim das aquisições na Costa da Mina enquanto as compras de britânicos, franceses e holandeses geralmente duraram entre 112 e 132 dias.33 O metal dourado, combinado com o tabaco nordestino, dava acesso aos escravos mais procurados (jovens, do sexo masculino, em boas condições físicas) e em intervalos de tempo relativamente curtos. Parte do ouro que permitiu essa consolidação da atuação portuguesa na Costa da Mina permaneceu na própria África, onde contribuiu para a expansão do reino de Daomé e sua subsequente conquista de Ouidah (a principal fonte de cativos da região). Mas a maior parte dele foi para o noroeste da Europa, por meio de comerciantes britânicos e holandeses.34
31. Leonardo Marques, “Um Banqueiro-Traficante Inglês e o Comércio Interimperial de Escravos No Atlântico Setecentista (1688-1732)”. In: C. L. Kelmer Mathias, A. V. Ribeiro, A. C. J. Sampaio, e C. G. Guimarães (org.). Ramificações Ultramarinas: Sociedades Comerciais no Âmbito Do Atlântico Luso - Século XVIII. Rio de Janeiro: Mauad, 2017, pp. 73-92. 32. Finn Fuglestad. Slave traders by invitation: West Africa’s slave coast in the precolonial era. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 191. 33. Estimativas calculadas com base nos 586 casos existentes na Slave Voyages (www.slavevoyages. org) em que estão registradas as datas de início e fim das transações na Costa da Mina entre 1700 e 1750. 34. Leonardo Marques e Gustavo Acioli Lopes, “O outro lado da moeda: estimativas e impactos do ouro do Brasil no tráfico transatlântico de escravos (Costa da Mina, c. 1700-1750)”. CLIO (Recife. Online), 37 (2): 5-38, 2019.
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Do outro lado do Atlântico, a demanda gerada pela nova economia do ouro levou ao desembarque de aproximadamente 660 mil escravos africanos nos portos brasileiros entre 1691 e 1730, mais do que no Caribe inglês e francês somados (570 mil desembarques naquele período). Esse enorme afluxo de escravos africanos em resposta às demandas do ouro modificou por completo a paisagem econômica e social da América portuguesa. Os veios auríferos eram bastante dispersos pelo território, mas o altíssimo valor agregado da mercadoria obtida justificava economicamente sua extração em lugares muito afastados do litoral e completamente despovoados (ou ocupados por indígenas hostis), rompendo assim com a geografia de enclave da economia açucareira. As técnicas mineratórias empregadas em Minas Gerais, mesmo que não fossem tão sofisticadas como as da mineração da prata na América espanhola, implicavam consideráveis inversões de capitais e uma dada sedimentação espacial. Por isso elas estimularam o surgimento de vários núcleos populacionais. Em pouco tempo, as demandas de consumo básico e de luxo provocadas pelo adensamento dos centros urbanos dispersos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso ativaram a economia interna em lugares até então completamente apartados. Do Rio Grande do Sul ao Piauí, com mulas para o transporte interno e charque para o consumo humano, a pecuária articulou-se à extração de ouro. Rotas de escoamento atrelaram o Mato Grosso a Belém do Grão-Pará, cruzando os rios do Vale Amazônico. São Paulo e o sul de Minas Gerais tornaram-se os celeiros das cidades e vilas do ouro, e os portos do Rio de Janeiro e da Bahia converteram-se em portas de entrada atlântica de mercadorias importadas para o ouro – a principal das quais, evidentemente, eram os africanos escravizados.35 Ao longo do século XVIII, o Brasil importou cerca de 2 milhões de escravos pelo tráfico negreiro transatlântico. A despeito das reclamações dos senhores de engenho e dos lavradores de cana da costa nordeste, de que estavam perdendo seus escravos para os mineradores do interior do
35. Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2009; Sérgio Buarque de Holanda, “Metais e pedras preciosas” (1960). In: S. B. de Holanda (org.). História geral da civilização brasileira. A época colonial, Administração, economia, sociedade, tomo 1, v. 2. São Paulo: Bertrand, 2001; Cláudia Damasceno Fonseca, Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas (trad. port.) Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011; Flavia Maria da Mata Reis, Das faisqueiras às galerias: explorações do ouro, leis e cotidiano nas Minas do século dezoito (1702-1763). Dissertação de Mestrado, UFMG, 2007; Francisco Vidal Luna & Herbert S. Klein, Escravismo no Brasil (trad. port.) São Paulo: Edusp – Imprensa Oficial, 2011.
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território, a ampliação do escopo bilateral do tráfico negreiro e de seu incremento para servir às minas de ouro deu aos investidores açucareiros acesso constante – e a baixo custo – à mão de obra escravizada. Os efeitos de encadeamento da economia do ouro conferiram à escravidão brasileira sua plasticidade específica. No final daquele século, a América portuguesa manifestava em um espaço continental relativamente contínuo todo o conjunto de atividades econômicas observáveis no restante das colônias escravistas do Novo Mundo: a agricultura de plantation do Caribe inglês e francês e das colônias meridionais atlânticas da América do Norte; a mineração, a pecuária e produção de mantimentos da América espanhola; os serviços urbanos das maiores cidades costeiras atlânticas.36 Baseado no livro de H.E.S. Fischer, Robin Blackburn anota que o influxo do ouro produzido com o braço escravo na América portuguesa “deu uma contribuição crucial para a estabilidade do Banco da Inglaterra e a City de Londres. Ele permitiu à Grã-Bretanha financiar um comércio deficitário com o Oriente; as operações lucrativas da Companhia das Índias Orientais exigiam essas infusões, pois ainda havia pouca demanda pelas manufaturas europeias na Índia ou no Extremo Oriente”.37 Mas, ao passar logo em seguida para um longo capítulo – o último de seu livro – no qual analisa as relações da escravidão do Novo Mundo com a acumulação primitiva e a industrialização britânica, a escravidão brasileira some do mapa. A explicação se encontra na leitura que Blackburn efetua de Marx, uma leitura que cinde o processo da expropriação dos produtores diretos no campo inglês (o que, para o historiador inglês, constitui o segredo último do surgimento das relações sociais capitalistas) dos processos de formação do mercado mundial e transformação financeira inglesa. Esses dois últimos processos não fariam parte da verdadeira acumulação primitiva, sendo antes uma decorrência dela, parte em realidade de uma “acumulação primitiva estendida”. Sistema colonial, moderno sistema financeiro, Banco da Inglaterra, dívida pública: esses processos “não inventaram o capitalismo, mas garantiram o desenvolvimento adicional de um complexo de capitalismo agrário e industrial já existente, por meio das trocas com a zona
36. Cf. Rafael de Bivar Marquese, “A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX”, Novos Estudos Cebrap, 74: 107-123, março 2006. 37. Robin Blackburn, The Making of New World Slavery, p. 484.
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de plantation”.38 No fim das contas, para Blackburn o complexo açucareiro do Caribe britânico acabou tendo mais peso do que o complexo aurífero do Brasil para o deslanche industrial britânico, pelo simples fato de o primeiro espaço estar formalmente atado ao Império britânico. Trata-se de um recorte que toma o Estado nacional como a unidade de análise privilegiada e que concebe a economia mundial como uma simples instância que ata espaços governados por regimes distintos de produção, ou seja, como uma dualidade integrada. No capítulo 24 do volume I d’O Capital, contudo, Marx tratou a Inglaterra como uma unidade de observação, não como a unidade de análise da “assim chamada acumulação primitiva”; a gênese do capitalista industrial na Inglaterra se deu por meio de sua relação com a formação do mercado mundial. A classe dos capitalistas industriais ingleses e o mercado mundial constituíam, para Marx, uma unidade contraditória, mutuamente formativa por meio de suas determinações recíprocas. Sob lentes teóricas distintas, a eleição da Inglaterra como a unidade de análise e não como uma unidade de observação foi o que também induziu Kenneth Pomeranz e Joseph Inikori a ignorarem a importância do sistema escravista brasileiro setecentista para as transformações ocorridas no berço da Revolução Industrial.39 Um problema semelhante pode ser encontrado mesmo entre estudiosos que utilizam conceitos mais amplos, como os dois sistemas atlânticos descritos por Pieter Emmer. Segundo ele, um “primeiro sistema atlântico” foi criado pelos ibéricos no longo século XVI e substituído por um “segundo sistema atlântico” sob o controle das potências europeias do noroeste no longo século XVIII.40 Um dos principais problemas aqui é que o primeiro sistema atlântico desaparece completamente da análise quando Emmer passa para o segundo. O peso do sistema atlântico ibérico para a história global do longo século XVIII, entretanto, não tem como ser minorado ou esquecido, já que a maior parte do ouro e da prata que entrava nos circuitos mundiais naquele período vinha das Américas
38. Idem, Ibidem, pp. 514-515. 39. Joseph E. Inikori, Africans and the Industrial Revolution in England: A Study in International Trade and Economic Development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002; Kenneth Pomeranz, The Great Divergence: Europe, China, and the Making of the Modern World Economy. Princeton: Princeton University Press, 2000. 40. Pieter C. Emmer, “The Dutch and the Making of the Second Atlantic System”. In: Barbara L. Solow (org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
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portuguesa e espanhola. Pomeranz reconhece isso, porém simplesmente não vê a importância do ouro do Novo Mundo para o desenvolvimento europeu, centrando a sua análise no desbalanço das trocas de prata com o Oriente. Nosso ponto é que foi o enorme afluxo de ouro brasileiro na Europa que permitiu a continuidade do fluxo da prata americana para o Oriente. Grande parte dessa prata era comercializada por produtos asiáticos, que por sua vez eram parcialmente trocados por escravos na costa africana. Como os africanos escravizados eram um componente crucial de todas as plantations do Novo Mundo, a prata da América espanhola continuava sendo fundamental para o segundo sistema atlântico. Mas esses circuitos asiáticos nos quais os comerciantes europeus se envolveram tiveram grande sucesso pois a entrada do ouro brasileiro na Europa levou a uma monetarização mais completa da economia inglesa (tornando-a menos dependente da prata do Novo Mundo).41 Essa combinação entre prata e ouro no século XVIII também está ausente na maioria dos relatos das conexões entre prata, produtos asiáticos e o comércio transatlântico de escravos.42 A exceção é Joseph Miller, que, na conclusão de seu magistral estudo sobre “os caminhos da morte” entre Angola e Brasil no século XVIII, mostrou como o crédito dos grupos mercantis lusitanos (financiados, na partida, pelas casas inglesas que operavam em Portugal), ao dispensar o emprego de moeda sonante (crucial para as operações mercantis dentro da Europa e da Europa com a Ásia) na perna inicial dos circuitos negreiros (Europa-África), permitiu o engate de todo o complexo escravista português do Atlântico Sul, ao mesmo tempo em que garantia, pela escravidão africana nas Américas, o fluxo de metais preciosos para a Europa – e, assim, para a comercialização das relações sociais e para o arranque industrial inglês.43 O ouro brasileiro não apenas deu à Grã-Bretanha a estabilidade econômica necessária para que deixasse grande parte de sua prata fluir sem 41. Fernand Braudel, Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIII. Volume 3. O tempo do mundo (trad. port.) São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 333. 42. Giraldez, Arturo Giraldez & Dennis O. Flynn, “Cycles of Silver: Global Economic Unity through the Mid-Eighteenth Century”. Journal of World History, 13 (2): 391-427, 2002; Sven Beckert, Empire of Cotton: A Global History. New York: Knopf, 2014; Giorgio Riello, Cotton: The Fabric That Made the Modern World. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; Eltis, David, Alex Borucki and David Wheat. “Atlantic History and the Slave Trade to Spanish America”. The American Historical Review, 120 (2): 433-461, 2015. 43. Ver Miller, Way of Death, pp. 682-685.
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maiores problemas para o Oriente, como igualmente forneceu uma das bases para revolução financeira que estimularia os investimentos britânicos em todo o Atlântico. A consolidação do Banco Nacional da Inglaterra e de uma rede de bancos privados permitiu a criação de uma série de inovações financeiras, incluindo o amplo uso de letras de câmbio, que se tornou um componente crucial do sistema de plantation e do tráfico transatlântico de escravos que o abastecia.44 Ironicamente, o sucesso inicial desse crescente fluxo de papéis e de notas no Atlântico norte dependia da disponibilidade imediata de crédito no ponto de partida dessas trocas, ou seja, no que estava sendo produzido pelo sistema atlântico ibérico, lubrificando assim a circulação de mercadorias e capitais em sua contraparte no noroeste da Europa. O primeiro e o segundo Atlânticos influenciaram-se mutuamente de maneira cambiante ao longo do longo século XVIII. Os escravos africanos passaram a maior parte de suas vidas nas águas frias dos rios brasileiros, explorando ouro para que Londres pudesse substituir Amsterdã como o maior centro financeiro do século XVIII. Café A crise da produção de ouro na América portuguesa verificada a partir da década de 1760 trouxe modificações de fundo no quadro que vigorara desde a virada do século XVII para o século XVIII. É certo que, no plano global, os resultados do reformismo bourbônico espanhol pós-1770 aumentaram não somente a produção de prata, mas também a de ouro da América espanhola, ajudando a manter os níveis elevados da produção mundial de ambos metais até o final do século45. O escopo do comércio anglo-português, entretanto, foi definitivamente alterado: em razão da diminuição das remessas do ouro colonial português, pela primeira vez no século XVIII a balança comercial tornou-se desfavorável à Inglaterra. Os efeitos foram distintos para os dois países. No caso do Império português, a crise do ouro foi decisiva para o deslanche da política pombalina de diversificação da base produtiva colonial, com o estímulo à exploração de capitanias até então periféricas (como Grã44. Jacob M. Price, “Credit in the Slave Trade and Plantation Economies”. In: Barbara L. Solow (org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System. Cambridge: Cambridge University Press, 1991; Kenneth Morgan, “Remittance Procedures in the Eighteenth-Century British Slave Trade”. The Business History Review, 79 (4): 715-749, 2005. 45. Cf. TePaske, A New World, p. 29, 76.
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Pará, Maranhão e São Paulo) ou em crise (como Pernambuco) por meio da recuperação dos antigos setores produtivos (açúcar, tabaco, couros) e, em especial, do fomento a novos artigos agrícolas de exportação (algodão, arroz, anil, café).46 No caso da Inglaterra, a vitória esmagadora sobre a França e a Espanha na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) marcou, naqueles anos, a consolidação de sua hegemonia sobre a economia-mundo capitalista e o início do arranque para sua dominação global – ou, na conceituação de Giovanni Arrighi, o início da fase de expansão material do ciclo britânico de acumulação. Os efeitos da queda do fluxo do ouro brasileiro podiam agora ser facilmente minorados pela Inglaterra. Braudel anotou a relação direta entre essa queda e a rápida transição para o papel moeda: a libra esterlina, lastreada em um padrão-ouro, estava em marcha acelerada para se tornar a moeda do mundo.47 O reformismo ilustrado da governação do marquês de Pombal (17501777) mostrou seus resultados mais duradouros somente após sua queda. De fato, aproveitando-se da conjuntura favorável da economia-mundo capitalista, na década de 1780 as exportações brasileiras de açúcar, tabaco e couros recuperaram o ímpeto, fazendo-se acompanhar dali em diante por novos artigos como o arroz e, em especial, o algodão. Durante cerca de três decênios, a matéria-prima ofertada pelas capitanias do Maranhão e Pernambuco figurou dentre as mais valorizadas pelos industrialistas britânicos, e somente depois de 1810 foram sobrepujadas nessa avaliação pelo produto do Sul dos Estados Unidos. Os efeitos de tal engate foram particularmente sensíveis no Maranhão, que passou por uma profunda reconfiguração em sua demografia na virada do século XVIII para o XIX:
46. Ver as visões de conjunto de Francisco José Calazans Falcon, A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Editora Ática, 1982; Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo (trad. port.), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 47. “Com efeito, à medida que pouco a pouco ela [a Inglaterra] vai chegando ao centro do mundo, passa a ter, como a Holanda da grande época, menos necessidade dos metais preciosos; um crédito fácil, quase automático, multiplica seus meios de pagamento. Assim, em 1774, nas vésperas da guerra ‘americana’, a Inglaterra vê fugir e deixa fugir para o estrangeiro tanto as suas moedas de ouro como as de prata. Essa situação, à primeira vista anormal, não a perturba: as notas do Banco da Inglaterra e dos bancos privados ocupam já no país o topo da circulação monetária; exagerando um pouco, podemos dizer que o ouro e a prata tornaram-se circulações secundárias. E, se o ‘papel’ [...] ocupou esse lugar decisivo, foi porque a Inglaterra, ao destronar Amsterdam, tornou-se ponto de confluência das trocas do universo e o universo, por assim dizer, compatibiliza-se na Inglaterra”. Braudel, Civilização Material, v. 3, 336.
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na década de 1810, essa capitania apresentava a maior proporção de escravos para homens livres de todo o Brasil.48 Quando vieram os impactos globais da revolução escrava de SaintDomingue (1791-1798) e da guerra de independência do Haiti (1802-1803), os produtores escravistas da América portuguesa estavam bem equipados para aproveitar os novos ventos econômicos. Um indicativo disso está nas chegadas de escravos africanos aos portos do extremo norte (Pará e Maranhão), do norte (Pernambuco e Bahia) e do centro-sul (Rio de Janeiro e São Paulo) do Brasil. Entre 1761-1780, foram cerca de 385 mil indivíduos desembarcados. Nos dois decênios revolucionários (1791-1810), cerca de 623 mil escravos africanos atravessaram o Atlântico em direção ao Brasil. Mas, como parte desses mesmos impactos das ações escravas no Caribe francês e de suas interfaces com a política revolucionária francesa e a era napoleônica, a família real portuguesa se viu obrigada a fugir para o Brasil quando Napoleão Bonaparte invadiu Portugal para impor o Bloqueio Continental. 1808 representou o ponto de inflexão na formação da cafeicultura brasileira.49 O reordenamento econômico e político em torno da praça do Rio de Janeiro, nova sede do Império luso, ativou notavelmente o fluxo das atividades mercantis em toda a região centro-sul, a mais dinâmica da América portuguesa desde meados do século XVIII em razão dos efeitos de encadeamento da economia do ouro. No contexto do fechamento dos mercados continentais europeus pela política napoleônica, a abertura dos portos às “nações amigas” – o que vale dizer a Grã-Bretanha – deu saída ao produto colonial português e, mais importante, estabeleceu de uma vez por todas o livre intercâmbio do Brasil com o mercado mundial. Se a medida, antes de 1815, poucos resultados trouxe em termos de incremento das exportações brasileiras, com a volta à paz na Europa ela demonstrou ser crucial para estimular os produtores locais. O tráfico transatlântico negreiro, em curva ascendente desde 1790, recebeu impulso adicional. Na década anterior à chegada da família real ao Rio de Janeiro, somente em porto foram desembarcados cerca de 117 mil africanos; na década de 1810, esse número saltou para 225 mil. 48. Thales Augusto Zamberlan Pereira, The Cotton Trade and Brazilian Foreign Commerce during the Industrial Revolution. Tese de Doutorado em Economia, Universidade de São Paulo, 2017. 49. Rafael de Bivar Marquese, “As origens de Brasil e Java: trabalho compulsório e a reconfiguração da economia mundial do café na Era das Revoluções, c.1760-1840”, História (Unesp). 34 (2): 108127, 2015, pp. 116-117. Este e os próximos dois parágrafos reproduzem esta referência.
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Essa oferta crescente de trabalho foi canalizada em grande parte para a expansão da fronteira cafeeira. A região onde isso se deu era até então relativamente desocupada, em razão da política de terras proibidas imposta por Portugal durante o auge da mineração, parte dos esforços para coibir o contrabando de ouro fora dos caminhos controlados por registros. Com efeito, os fundos territoriais do Vale do rio Paraíba do Sul (capitanias de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), relativamente próximos ao porto do Rio de Janeiro, permaneceram por muito tempo travados à conversão para a agricultura mercantil. Sua paisagem era marcada pela típica topografia de mar de morros, com uma contínua e vastíssima cobertura de Mata Atlântica. A virada em sua história agrária veio justamente nas duas primeiras décadas do século XIX, quando a coroa bragantina promoveu uma agressiva política de ocupação dessa zona por meio da concessão de amplas sesmarias e da redução dos grupos indígenas que lá viviam. Dadas as condições geoecológicas da região do Vale do Paraíba, o café logo mostrou ser o produto ideal a ser explorado pelos senhores de escravos que lá investiram. As transformações políticas pelas quais o Brasil passou após a volta da paz à Europa sedimentaram as condições institucionais para o arranque definitivo da cafeicultura. Contrariando as expectativas dos plenipotenciários europeus reunidos em Viena desde 1814, no ano seguinte a corte de D. João optou por permanecer no Brasil, elevando-o a Reino Unido a Portugal e Algarves, o que traduzia sem meios tons o compromisso da coroa com o projeto escravista do senhoriato local. Como se poderá ler no próximo capítulo, no momento da crise imperial de 1820-1822, esse pacto entre os Bragança e a nascente classe dos fazendeiros de café foi mais uma vez reafirmado, agora sob a moldura de um novo império independente, regido por um regime constitucional. Em que pesem os percalços da década de 1820, que em pouco tempo levariam à renúncia de D. Pedro I ao trono brasileiro, pode-se afirmar que o Império do Brasil nasceu sob o signo de uma aliança estreita entre o novo Vale do Paraíba cafeeiro e a nova monarquia constitucional. Nas quatro décadas seguintes, o desempenho dessa nova fronteira mercantil da economia-mundo capitalista foi notável. As exportações brasileiras de café saltaram de um patamar de 14 mil toneladas/ano, no quinquênio de 1821-1825, para 170 mil toneladas/ano entre 1856 e 1860.50 50. Mario Samper & Radin Fernando, “Appendix: Historical Statistics of Coffee Production and Trade from 1700 to 1960”, In: William Gervase Clarence-Smith & Steven Topik (org.) The Global
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Na última data, as fazendas do Vale do Paraíba eram responsáveis por cerca de 50% da oferta mundial de café, tomando a posição que, em 1789, fora da colônia francesa de Saint-Domingue. Para que se tenha uma ordem de grandeza da transformação ocorrida, o pico da produção da antiga “Pérola das Antilhas”, ocorrida exatamente no momento da eclosão da revolução escrava, fora de 32 mil toneladas.51 Portanto, entre 1790 e 1860 o Vale do Paraíba mais do que quintuplicara as exportações cafeeiras de SaintDomingue, movido por um assombroso tráfico transatlântico de escravos. Somente nos dois decênios em que operou na ilegalidade (1831-1850), o tráfico voltado especificamente ao abastecimento do centro-sul cafeeiro (Rio de Janeiro e São Paulo), contando com o aporte decisivo de capitais, barcos e bandeira norte-americanos, carreou pelo Atlântico mais de 570 mil africanos escravizados.52 Os norte-americanos não foram importantes para a economia cafeeira do Brasil apenas pela participação no tráfico ilegal de escravos, mas sobretudo por terem se constituído nos maiores consumidores mundiais de café do século XIX. Os fundamentos dessa relação eram relativamente recentes. O envolvimento histórico das colônias ao norte de Chesapeake com o comércio caribenho deu origem, logo após a independência dos Estados Unidos, a um ativo engajamento com a economia do café. Inicialmente, isso ocorreu por meio do comércio de reexportação. Durante a década de 1790, os mercadores norte-americanos, neutros nos conflitos imperiais europeus, carrearam o produto de Saint-Domingue revolucionário para os centros consumidores europeus.53 Ao mesmo tempo, a bebida começou a ganhar crescente aceitação nos centros portuários e urbanos da costa leste, tanto por sua associação ao novo ethos nacional como pela oferta marginal do comércio de reexportação.54 Com a volta à paz em 1815, as potencialidades de Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 428-433. 51. Michel-Rolph Trouillot, “Motion in the System: Coffee, Color, and Slavery in Eighteenth-Century Saint Domingue”. Review (A Journal of the Fernand Braudel Center), 5: 331-388 (1982). 52. Leonardo Marques, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016. 53. Manuel Covo, Commerce, Empire et Révolutions Dans Le Monde Atlantique: La Colonie de SaintDomingue, Entre Métropole et Etats-Unis (ca. 1778-ca. 1804). Tese de Doutorado em História, Paris, EHESS, 2013. 54. Steven Topik and Michelle Craig McDonald, “Why Americans Drink Coffee: The Boston Tea Party or Brazilian Slavery?”, In: Robert W. Thurston, Jonathan Morris, Shawn Steinman (org.),
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crescimento do consumo doméstico norte-americano se viram travadas pelas sobretaxas de importação, parte da plataforma protecionista do chamado “sistema americano”. A questão tarifária logo se tornou matéria seccional, antagonizando os produtores manufatureiros e cerealíferos do Norte aos exportadores algodoeiros escravistas do Sul. A solução de compromisso adotada no começo da década de 1830 finalmente trouxe a bonança cafeeira: dentre os produtos isentos de tarifas de importação, encontrava-se o café. A medida tax free de 1833 representou uma redução imediata de 50% no preço final do café pago pelo consumidor norte-americano.55 Com exceção do curto período de 1861 a 1872, a ausência de tarifas de importação acabou perdurando por todo o século XIX. Estavam dadas, do lado do consumo, as condições para o deslanche do mercado norte-americano de café, muito pouco exigente em termos de qualidade. O que interessava aos seus consumidores era o preço final. O padrão produtivo que estava sendo criado naquele exato momento no Vale do Paraíba, com importantes inovações na gestão da paisagem, do trabalho e do processamento dos grãos, casou-se à perfeição com a natureza dessa nova demanda. Em realidade, a queda contínua dos preços do café no mercado mundial entre 1823 e 1848 mostra que os fazendeiros do Vale do Paraíba estavam induzindo o consumo por meio da sobreoferta, escorada em uma nova escala de produção. A inovação da cafeicultura do Vale do Paraíba em relação à cafeicultura do Caribe residiu na simplificação e otimização dos processos de beneficiamento e na intensificação da exploração do trabalho escravo e dos recursos naturais da região (mantidos intactos até o começo do século XIX, lembremos uma vez mais, pelos legados da economia colonial do ouro para o Império do Brasil). O produto final que resultava de tudo isso era bem ruim, mas muito barato – e portanto aceitável para os consumidores norte-americanos.56 Coffee. A Comprehensive Guide to the Bean, the Beverage, and the Industry. Boulder, CO: Rowman & Littlefield, 2013, pp. 234-247. 55. Tâmis Peixoto Parron, A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 17871846. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2015, cap. 5. 56. Cf. Rafael de Bivar Marquese, “Diáspora africana, escravidão e a paisagem da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba oitocentista”, Almanack Braziliense. 7: 138-152, maio de 2008; Rafael de Bivar Marquese, “Laborie en traducción. La construcción de la caficultura cubana y brasileña desde una perspectiva comparada, 1790-1840”. In: José Antonio Piqueras (org.). Plantación, espacios agrarios y esclavitud en la Cuba colonial. Castelló de la Plana: Publicaciones de la Universitat Jaume I, 2017; Rafael Marquese & Dale Tomich, “O Vale Do Paraíba Escravista e a Formação Do
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Em meados do século XIX, a participação dos Estados Unidos nas importações mundiais de café já era de cerca de 25% do montante global, ultrapassando mercados consumidores históricos do Velho Mundo como a Holanda, a França, o norte da Península Itálica, os países escandinavos, o Zollverein alemão e o Império Austríaco.57 Quanto à Grã-Bretanha, parte considerável dos fluxos da economia mundial do café passavam por ela, não pela escala de seu consumo (pois se tratava de um mercado restrito em razão do domínio do chá), mas pelo seu papel como centro redistribuidor do artigo nos mercados continentais e, em especial, como centro financeiro global – o que trouxe implicações diretas para o momento em que os cafeicultores escravistas brasileiros necessitaram de financiamento externo com vistas à montagem da malha ferroviária do centro-sul. Na era da produção industrial em massa, houve outro encadeamento relevante aqui: como exportadores de algodão cru, os Estados Unidos tinham saldos positivos na balança com a Grã-Bretanha, que por sua vez eram importantes para dar conta de saldos negativos com outros países – dentre os quais, com seu maior fornecedor de café, o Império do Brasil, que pouco importava dos Estados Unidos. Se nos mercados continentais da Europa os fazendeiros escravistas do Vale do Paraíba tinham que fazer frente às exportações do Caribe (Haiti, Cuba, Jamaica, Venezuela, Porto Rico) e do Oceano Índico (Ceilão e Java), no mercado norte-americano a posição deles se tornou a de um virtual monopólio. Em meados do século XIX, 90% do café importado pelos Estados Unidos estava sendo embarcado no Rio de Janeiro (ver capítulo 6 deste livro). Nesses novos engates da escravidão brasileira com a economiamundo capitalista, vemos claramente o fundamento de suas articulações com o ciclo britânico de acumulação. Mesmo que o café não entrasse em grandes quantidades nas xícaras inglesas, a popularização do seu consumo entre os trabalhadores urbanos e rurais dos Estados Unidos e o crescente proletariado urbano da Europa continental replicou um padrão mais amplo. A domesticação do café contida na “invenção do café-da-manhã”, processo pelo qual a luxúria do pobre no século XVIII foi transmutada
Mercado Mundial Do Café No Século XIX”. In: K. Grinberg & R. Salles (org.), O Brasil Imperial, v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 57. Cf. Mauro Rodrigues da Cunha, “Apêndice estatístico”. In: 150 anos de café, ed. Edmar Bacha e Robert Greenhill. Rio de Janeiro: Marcellino Martins and E. Johnston, 1992, p. 330.
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em necessidade básica do proletário no século XIX, acabou por convertêlo em “wage-food”, isto é, um bem agrícola que, pelo seu processo de barateamento em razão da produção em escala industrial, passa a fazer parte da reprodução da força de trabalho assalariada. Como bem assinala Dale Tomich, nesse novo tempo – o tempo da segunda escravidão – as relações de produção escravistas das economias do algodão nos Estados Unidos, do açúcar em Cuba e do café no Brasil se converteram em peças importantes para a reiteração das relações de trabalho assalariado nos centros industriais da economia-mundo capitalista e, portanto, dos processos globais da acumulação do capital. No mundo criado pela Revolução Industrial, a lei do valor (a universalização definitiva do capitalismo fundada na extração de mais-valia do trabalho assalariado) unificou, como seu determinante comum, as formas sociais fenomenologicamente distintas da escravidão e do trabalho livre, o que justifica o entendimento da cafeicultura escravista brasileira como sendo cada vez mais sujeita “às forças de um regime de trabalho assalariado com dimensões globais”.58 Na segunda metade do século XIX, as relações entre a escravidão brasileira e os processos de acumulação do capital sob esse regime global do trabalho assalariado verificaram modificações de relevo. Desde 1815, o controle de espaços-de-fluxos, mais do que o de espaços-de-lugares, vinha assumindo uma importância crescente para o novo poder hegemônico global da Grã-Bretanha. Ao constituir uma zona não regulada de fluxos mercantis e financeiros que escapavam à égide do poder de Londres, e que ademais contrariava a autoimagem de superioridade moral que o abolicionismo britânico – como movimento político de expressão nacional – construíra para si durante a Era das Revoluções, o tráfico transatlântico de escravos tornou-se um dos maiores alvos da política externa britânica na ordem mundial pós-Napoleônica. Ao agirem assim, os dirigentes políticos da Grã-Bretanha respondiam não apenas ao novo papel que seu país passara a ocupar no sistema interestatal, mas também às tensões políticas e sociais internas ao seu espaço imperial (metropolitano e colonial).59 Combate ao 58. Harriet Friedmann e Philip McMichael, “Agriculture and the State System: The Rise and Decline of National Agricultures, 1870 to the Present”. Sociologia Ruralis 29 (2): 93-117, 1989, p. 101; Tomich, Pelo Prisma da Escravidão, pp. 81-97; Philip McMichael, “Slavery in Capitalism: The Rise and Demise of the U. S. AnteBellum Cotton Culture,” Theory and Society, 20 (3): 321-349, 1991, p. 322. 59. Ver, dentre outros, Howard Temperley, “Anti-Slavery as a Form of Cultural Imperialism”. In: C. Bolt & S. Drescher (org.). Anti-Slavery, Religion and Reform. Hamden, Conn.: Archon Books, 1980,
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tráfico, no entanto, não significava necessariamente combate à escravidão: é isso o que explica, em grande parte, o fato de a pressão diplomática e naval da Grã-Bretanha ter sido a força decisiva para a abolição do tráfico transatlântico para o Brasil em 1850, ao mesmo tempo em que sua posição como centro financeiro e industrial da economia-mundo capitalista dava impulso redobrado à expansão da cafeicultura escravista brasileira. Foram as exportações de capitais e as técnicas britânicas que, afinal, permitiram a construção da malha ferroviária do Centro-Sul do Império do Brasil a partir de 1855, quando a cafeicultura brasileira se encontrava em uma situação de impasse. Em razão de seu caráter extensivo, era possível produzir muitos grãos de baixa qualidade a um custo igualmente muito baixo, mas em contrapartida o preço ambiental era elevado, exigindo o deslocamento constante da atividade em direção a terras virgens para que se pudesse ampliar o volume obtido. Esse sistema rodou bem durante toda a primeira metade do século XIX com base no transporte de mulas, mas na década de 1850 ele travou, pois a interiorização da produção cafeeira ficou inviável em razão do custo crescente do frete. Não por acaso, o crescimento das exportações brasileiras de café estacionou entre 1856 e 1865, para somente a partir de então voltar a subir, exatamente quando os trilhos das companhias de ferro que partiam do Rio de Janeiro e de Santos atingiram as fronteiras cafeeiras.60 No entanto, as ferrovias, ao expandirem as fronteiras de mercadoria do café no Brasil, ao mesmo tempo em que reforçaram economicamente a escravidão no curto prazo, acabaram por aprofundar, no médio prazo, seu quadro de crise geral. A chegada das ferrovias no Vale do Paraíba (no início do processo de acentuada queda de sua fertilidade original) e na zona pioneira da cafeicultura brasileira – o Oeste de São Paulo – se deu no momento em que começava a se discutir, nas altas esferas políticas imperiais, a libertação do ventre das escravas. O assunto entrara em pauta como uma resposta direta e imediata aos resultados da Guerra Civil norte-americana, pp. 335-50; David Eltis, Economic growth and the ending of the transatlantic slave trade. New York: Oxford University Press, 1987; Richard Huzzey, Freedom Burning. Anti-Slavery and Empire in Victorian Britain. Ithaca: Cornell University Press, 2012; Dale Tomich, “Civilizing America’s Shore: British World-Economic Hegemony and the Abolition of the International Slave Trade (1814-1867)”. In: D. Tomich (org.), The Politics of the Second Slavery. Albany: Suny Press, 2016, pp. 1-24. 60. Rafael de Bivar Marquese, “Coffee and the Formation of Modern Brazil, 1860-1914”, In: Oxford Research Encyclopedia of Latin American History. Oxford: Oxford University Press, 2020 (DOI: 10.1093/acrefore/9780199366439.013.818). Os três próximos parágrafos se baseiam nesta referência, além das que estão contidas no capítulo 6 deste livro.
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ele próprio um conflito em grande parte resultante das transformações aceleradas que vinham se dando na economia norte-americana em suas relações com a economia-mundo industrial. Sem poder contar com tráfico negreiro transatlântico e tendo que enfrentar as consequências da aprovação da Lei do Ventre Livre, as perspectivas de manutenção indeterminada da escravidão no longo prazo haviam acabado; o restava aos senhores era explorar ao máximo o estoque existente de trabalhadores escravizados no Brasil. Contando, na década de 1870, com um novo sistema de transportes que não só rebaixou notavelmente o custo do frete como ampliou as possibilidades de abertura de novas fazendas em regiões de fronteira, altamente produtivas, os fazendeiros de café aceleraram as compras de escravos no mercado interno brasileiro, o que acabou por erodir, ao fim e ao cabo, o compromisso nacional com a instituição. Na década de 1880, com o movimento abolicionista brasileiro ganhando força e os preços internacionais do café verificando uma forte alta intercíclica dentro da contínua conversão do produto em um item de necessidade básica para todas as camadas urbanas dos países industrializados ou em processo de industrialização, a linha de ponta da cafeicultura brasileira – o chamado Novo Oeste de São Paulo – se viu em uma nova encruzilhada. Em razão dos primeiros sucessos do movimento abolicionista, o tráfico interprovincial de escravos fora interrompido em 1881. As fazendas que estavam sendo montadas nas zonas de fronteira em resposta à chegada dos trilhos ferroviários se viram então forçadas a encontrar uma nova fonte de trabalhadores despossuídos, sob o risco de entrarem em colapso com a abolição próxima da escravidão. A solução foi encontrada no mercado internacional de trabalhadores. Na segunda metade do século XIX – sobretudo a partir da década de 1870 –, os processos globais de expansão capitalista associados à chamada Segunda Revolução Industrial ampliaram notavelmente as fronteiras agrícolas produtoras dos artigos primários que compunham a cesta do “wage-food”, mas, ao fazê-lo, desorganizaram por completo comunidades camponesas em antigas zonas produtoras. Foi o que aconteceu com o norte da Itália. Com a oferta crescente de trigo das pradarias norte-americanas e estepes ucranianas em meio ao processo de reorganização da economia nacional decorrente da Unificação Italiana, os camponeses do Vêneto passaram por um rapidíssimo processo de separação dos meios de produção – ou seja, da terra – que os empurrou para o mercado internacional de trabalhadores despossuídos.
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Operando em uma zona pioneira, com as terras que se revelariam as mais férteis da cafeicultura mundial, tendo acesso às exportações de capital da fase de expansão financeira do ciclo britânico de acumulação, os cafeicultores de São Paulo puderam criar um ambicioso programa de imigração integralmente subsidiada capaz de capturar com sucesso, para suas fazendas, esse fluxo dos italianos despossuídos. A produção capitalista de relações não capitalistas de produção entrava, agora, em um novo tempo, que no entanto mantinha muitas das linhas de força do tempo anterior, escravista. Em uma passagem do capítulo 24 do volume I d’O Capital que, como muitas outras, tornou-se merecidamente famosa, Marx escreveu que “enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo”. Essas palavras não somente põem a nu o caráter historicamente compulsório – portanto, autoritário e violento – do trabalho assalariado, como expressam, outra vez, a percepção plural do tempo histórico que informou Marx. Se a escravidão do século do ouro pertencia ao passado, ela não obstante lançara as bases para a construção da Segunda Escravidão no Vale do Paraíba. A ubiquidade espacial e social da escravidão brasileira setecentista avançou no século XIX, convertendose em elemento de estabilidade das relações escravistas em um sistema interestatal crescentemente antiescravista. Os tempos anteriores dos processos de acumulação primitiva se viam repostos no tempo do regime do trabalho assalariado global, reatualizando no presente o conteúdo da violência pretérita que lhe dera origem e assim conferindo um sentido próprio a um novo ciclo sistêmico de acumulação. Enfim, para dar conta dos papéis historicamente cambiantes que a escravidão brasileira desempenhou nos processos globais de acumulação do capital, só nos resta levar adiante a conceituação original de Marx sobre o tempo histórico do capital. Como nos lembra Massimiliano Tomba, “a sociedade global, cujo nome próprio é o mercado mundial, requer um paradigma historiográfico que dê conta da combinação de uma pluralidade de estratos temporais na dimensão histórica violentamente unificadora da modernidade”.61 61. Tomba, Marx’s Temporalities, p. xiv.
Capítulo 5 A cartografia do poder senhorial: cafeicultura, escravidão e formação do Estado nacional brasileiro, 1822-1848 Com Ricardo Salles
O mapa de 1848 e a cartografia das fazendas de café Em 1848, o engenheiro militar e coronel Conrado Jacob de Niemeyer, então Superintendente da Fazenda Imperial de Santa Cruz, localizada na província do Rio de Janeiro, coordenou a composição e impressão de um ambicioso mapa da propriedade e de seu entorno. Dentre suas peculiaridades, encontra-se a combinação simétrica de representações planimétricas e vistas frontais dos edifícios que compunham o complexo do palácio imperial de Santa Cruz (parte direita do mapa) com uma representação cartográfica dos imensos fundos territoriais dos antigos domínios jesuíticos, da baía de Mangaratiba ao rio Paraíba do Sul (parte esquerda). Nesta segunda seção, destaca-se a anotação, muito rara no Brasil, das fronteiras de diversas propriedades rurais, nas quais foram anotados os nomes de seus respectivos donos (imagem 1). Essa última característica torna o mapa da fazenda de Santa Cruz uma peça ímpar para a análise da história do Império do Brasil, onde pouco – ou mesmo nada – se mapeou a estrutura fundiária. O contraste entre esse documento único e as práticas cartográficas vigentes em outros espaços de fato chama a atenção. Em projeto comparativo sobre as zonas de ponta da chamada “segunda escravidão” (baixo vale do Rio Mississippi, zona algodoeira; ocidente de Cuba, zona açucareira; Vale do Paraíba, zona cafeeira), foi possível constatar essa especificidade do Brasil.1 1. O projeto, financiado pela Getty Foundation e desenvolvido entre 2005 e 2009, foi desenvolvido
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Imagem 1. Planta corographica de huma parte da provincia do Rio de Janeiro na qual se inclue a Imperial Fazenda de Santa Cruz. Cel. Conrado Jacob de Niemeyer (del); Tene. Gama Lobo (dez.); Cel. Belegarde e seus discipulos (fez). Rio de Janeiro: Lith. de Heaton e Rensburg, 1848. 1 planta; 41 x 22cm em folha 50 x 56cm. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
O presente capítulo parte da seguinte pergunta: por que o mapa de Niemeyer constitui peça única no Brasil imperial, quando, na quadra histórica oitocentista, os Estados nacionais americanos e os poderes coloniais europeus
pela equipe composta por Reinaldo Funes, Rafael Marquese, Dale Tomich e Carlos Venegas. Seus resultados finais serão publicados em breve em livro editado pela The University of North Carolina Press. Para o conceito de “Segunda Escravidão”, ver Dale W. Tomich, Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial (trad. port.). São Paulo: Edusp, 2011, pp. 81-97. Versão anterior deste capítulo foi publicada em Mariana Muaze & Ricardo Salles (org.), O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras-Faperj, 2015, pp. 100-129.
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demonstravam intensa preocupação com o mapeamento de territórios e de recursos naturais? Por meio do exame do mapa de 1848, iremos explorar em que medida os processos de construção dos Estados nacionais da Segunda Escravidão envolveram graus distintos de esquadrinhamento de territórios e de relações entre as estruturas do poder político e suas bases sociais de sustentação, notadamente junto às classes de proprietários de terras e escravos. Em outras palavras, ao procurarmos uma resposta para a pergunta concernente ao caráter singular do mapa de 1848, poderemos iluminar o processo mais amplo de formação da classe senhorial escravista no Vale do Paraíba e suas relações com a construção do Estado nacional brasileiro. A composição do mapa de Niemeyer, em fins da década de 1840, remonta aos anos imediatamente posteriores à independência do Brasil, quando uma disputa por terras opôs, de um lado, a primeira geração de cafeicultores escravistas do Vale do Paraíba ocidental, e, de outro, D. Pedro I. Acompanhar essa disputa nos permitirá compreender o papel do processo de penetração do café na região, especialmente em uma área-chave, o Médio Vale do Paraíba, para a configuração do poder senhorial. Examinaremos a formação de suas primeiras fazendas; o suporte que seus donos de terras e escravos deram ao projeto de rompimento das relações com a metrópole, capitaneado pelo próprio príncipe português; o progressivo divórcio posterior entre D. Pedro I e os grupos escravistas em ascensão, que culminou com sua abdicação em 1831; a articulação do Regresso Conservador como parte do processo de formação da classe senhorial radicada no Vale e consolidação do Estado imperial; a coroação do novo imperador em 1840 e o arranjo político então construído. Nesse percurso, poderemos, enfim, entender o que Niemeyer pretendia em 1848. A fazenda de Santa Cruz, a montagem da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba ocidental e a independência do Brasil. O rio Paraíba do Sul nasce em terras paulistas, na confluência dos rios Paraitinga e Paraibuna, na Serra do Mar. Ele corre, inicialmente, em direção Oeste, até a altura de Jacareí, quando faz uma inflexão para o norte e em direção a leste, adentrando terras fluminenses, até dobrar ao sul e desembocar no Oceano Atlântico em São João da Barra. Seu percurso é paralelo ao Oceano Atlântico, formando e ocupando uma grande calha que se situa entre a Serra do Mar, que se alastra paralela e próxima ao litoral, e Serra da
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Mantiqueira, que divide o Vale do Paraíba do altiplano mineiro. O Vale do Paraíba, por suas características geoecológicas, pode ser dividido em Alto Vale, compreendendo a região mais elevada, incrustada na Serra do Mar, onde nasce o rio, em São Paulo; o Médio Vale, que nos interessa mais de perto, compreendendo as terras que vão de Cachoeira Paulista até Itaocara, no Rio de Janeiro; o Baixo Vale, quando o rio Paraíba vai se nivelando, aos poucos, até a foz na Baixada Campista. No século XIX, a expansão do café, que chegou à região por diferentes vias, converteu o vale geográfico em uma unidade socioeconômica e ambiental, com ligações diretas com a Zona da Mata mineira, o norte da província de São Paulo, a baía de Ilha Grande, o nordeste da província do Rio de Janeiro, a zona canavieira de Campos, a Baixada e o Recôncavo em torno da Baía de Guanabara e, finalmente, com a praça mercantil do Rio de Janeiro e a corte imperial. É essa região que, seguindo o geógrafo Orlando Valverde, denominamos de Bacia do Paraíba.2 Num segundo círculo de desdobramento, essa região escravista, organizada em torno do café e, em menor dimensão, em torno da cana-deaçúcar, conectava-se com o restante das províncias de Minas Gerais e São Paulo, com ramificações para o extremo meridional da América portuguesa, constituindo a região Centro-Sul. As terras compreendidas pelo Médio Vale do Paraíba no século XVIII, e, particularmente, a porção ocidental do Médio Vale, foram regidas no período colonial pela política de terras proibidas, que visava interditar o contrabando de ouro e diamantes, o que por sua vez permitiu que populações indígenas continuassem a habitar a região até o início do século XIX.3 Não obstante, durante os setecentos a coroa portuguesa promoveu a ocupação de faixas dessa região por meio da concessão de sesmarias em dois grandes eixos. O primeiro corria grosso modo de sul a norte, ao longo do chamado Caminho Novo de Paes Leme, que ligava o porto do Rio de Janeiro às Minas Gerais.4 2. Orlando Valverde, “A fazenda de café escravocrata no Brasil” (1ª ed. 1965), In: Estudos de Geografia Agrária Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985. 3. Sobre a política de zonas proibidas, ver, dentre outros, Carla Maria Junho Anastasia, A geografia do crime. Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. Como ressalta Marina Monteiro Machado, Entre fronteiras: terras indígenas nos sertões fluminenses (1790-1824), Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 35, as populações indígenas que habitavam o Vale foram importantes para a eficácia relativa do bloqueio à colonização na região durante o século XVIII. 4. Sobre as sesmarias concedidas nesse eixo, ver Marcelo Sant’Anna Lemos, O índio virou pó de café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba (1788-1836),
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O segundo eixo dispunha-se em uma faixa de leste a oeste, em torno da Estrada Geral para São Paulo. É ele que nos interessa mais de perto. O chamado “Caminho Novo da Piedade”, ligando o que hoje é o município de Lorena à fazenda Santa Cruz, começou a ser aberto na década de 1720 com o objetivo de garantir um acesso terrestre entre a cidade do Rio de Janeiro e a capitania de São Paulo, de modo a evitar os ataques às partidas de ouro descidas de Minas Gerais e até então embarcadas em Parati.5 A abertura da via deu ensejo às primeiras concessões de sesmarias na zona ocidental do Médio Vale do Paraíba, algumas das quais localizadas em terras da fazenda de Santa Cruz. A propriedade fora constituída por concessões de sesmarias à Companhia de Jesus e da agregação de terras doadas por particulares à mesma ordem, formando, entre as décadas de 1590 e 1650, seus imensos fundos territoriais, que iam da baía da Restinga da Marambaia até a margem esquerda do rio Paraíba do Sul. Uma estimativa recente afirma que, “em quilômetros quadrados, a propriedade dos jesuítas equivaleria a 10% do atual território do estado do Rio de Janeiro”.6 A notícia da abertura do Caminho Novo em 1725, que cruzaria as terras da fazenda, encontrou viva oposição dos padres. A concessão de sesmarias como a de Francisco Cordovil de Siqueira, em 1729 (imagem 2), na subida da Serra do Mar, porém em área do domínio jesuítico, levou os inacianos à primeira medição sistemática de seus fundos territoriais, finalizada em maio de 1731.7 Dissertação de Mestrado em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004, p. 39. Para o processo mais amplo, Márcia Maria Menendes Motta, Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX (2ª ed.) Niterói: Ed. UFF, 2008. 5. Píndaro de Carvalho Rodrigues, O Caminho Novo: Povoadores de Bananal. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1980, pp. 23-27. 6. A avaliação é de José Newton Coelho Meneses, “Se perpetue a Companhia nessas partes: materialidade da Fazenda de Santa Cruz no tempo da expulsão dos jesuítas”. In: Carlos Engemann & Marcia Amantino (org.), Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2013, p. 80. Para a história da formação da fazenda, ver, além deste livro coletivo, o trabalho exaustivo de Benedito Freitas, Santa Cruz. Fazenda Jesuítica, Real, Imperial. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1985-1987, 3 v, Volume 1 – Era Jesuítica, 1567-1759, o artigo esclarecedor de Fania Fridman, “De chão religioso a terra privada: o caso da Fazenda de Santa Cruz”, Cadernos IPPUR – Planejamento e Território. Ensaios sobre a desigualdade. v. XV, n. 2, ago-dez. 2001/v. XVI, n. 1, jan.-jul. 2002, pp. 311-343, e o trabalho mais recente de Manoela da Silva Pedroza, Capítulos para uma história social da propriedade da terra na América portuguesa. O caso dos aforamentos na Fazenda de Santa Cruz (Capitania do Rio de Janeiro, 1600-1870). Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2018. 7. Sobre a sesmaria concedida em 1729, representada no mapa de Niemeyer no canto inferior esquerdo como “antiga sesmaria do Cordovil”, ver Fridman, “Do chão religioso à terra privada”,
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Imagem 2: detalhe da imagem 1
Como o processo de medição de 1729-1731 deixava claro, todo o foco da exploração econômica da fazenda estava na baixada, com uma combinação de pecuária semi-intensiva e produção de mantimentos (sobretudo o arroz), ambas dependentes das obras bastante sofisticadas de drenagem de pântanos e construção de canais que tanto notabilizariam a fazenda de Santa Cruz. Suas terras na região de serra acima, contudo, permaneceram inexploradas ou, quando muito, utilizadas apenas para a retirada de madeira de lei.8 Eram os indígenas não reduzidos que exerciam o domínio efetivo sobre as terras da fazenda no Vale do Paraíba, algo que derivou tanto da opção jesuítica pela exploração exclusiva de escravos negros na Baixada, como da própria política metropolitana de interdição fundiária das zonas proibidas.
p. 315; sobre a medição de 1729-1731, ver O Tombo ou cópia fiel da medição, e demarcação da Fazenda Nacional de Santa Cruz, e possuída pelos padres da Companhia de Jesus, por cuja extinção passou à Nação. Rio de Janeiro: Tipografia de Lessa & Pereira, 1829, pp. 62-112. 8. Freitas, Santa Cruz, v. I, pp. 92-226.
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O início das obras de construção do Caminho Novo da Piedade trouxe para a fazenda de Santa Cruz as tensões que já vinham polarizando jesuítas e autoridades régias em outros quadrantes do império português. A resistência jesuítica à nova via foi demovida por ordem de 1732, que os obrigou a permitir a abertura do caminho na propriedade. Até 1758, outras sesmarias seriam concedidas ao longo da Estrada Geral para São Paulo. De todo modo, as décadas de 1730 a 1750 representaram o apogeu da fazenda sob o domínio inaciano, encerrado com a expulsão e o confisco dos bens da Companhia em 1759. A política de ampla reordenação do Império português promovida pelo futuro marquês de Pombal – na qual se assomam a mudança da sede do vice-reinado para o Rio de Janeiro e os esforços para dinamizar a agricultura escravista da América portuguesa por meio do estímulo a novos produtos e à ocupação de áreas despovoadas – trouxe grandes implicações para a história de Santa Cruz, transformada em patrimônio da coroa de Portugal. No período pombalino, verificou-se uma concessão mais sistemática de sesmarias em terras de serra acima da fazenda, iniciando-se para todos os efeitos o processo de privatização do antigo domínio inaciano. Afora o entorno do Caminho Novo da Piedade, foram concedidas, a partir de 1764, várias sesmarias na calha do rio Piraí, um afluente da margem direita do Paraíba, logo transformada em zona de fricção com os índios, que, contudo, não demorariam a ficar confinados à margem esquerda.9 Nesse meio tempo, a área da baixada entrava em um período de regressão econômica aguda, em decorrência da dilapidação do patrimônio pecuário por particulares, da ausência de manutenção do sistema de canais, dos problemas com a escravaria. Na década de 1790, sucedem-se planos de recuperação econômica da Fazenda Real, que procuraram retomar a antiga opulência pela aplicação de estratégias de gestão, muitas das quais se inspiravam nas práticas jesuíticas. Na documentação produzida nessa ocasião, lemos os primeiros registros de cultivo de café nas terras da fazenda real, mas, em uma data tardia como 1804, o terreno de serra acima formalmente pertencente à coroa (mesmo que com a presença de sesmeiros 9. Para o impacto geral da política de fomento ilustrada pós-1763 sobre a zona da fazenda de Santa Cruz, ver Marcos Guimarães Sanches, “Sertão e Fazenda. Ocupação e Transformação da Serra Fluminense entre 1750 e 1820”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 151, n. 366, jan./mar. 1990, pp. 16-41; sobre as sesmarias, Fridman, “Do chão religioso à terra privada”, p. 316; sobre os índios, Lemos, O índio virou pó, pp. 37-43.
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e posseiros) ainda era descrito como “mais inculto, e em parte mais fragoso, [...], dilatando-se ao ocidente para o sertão da Paraíba do Sul, onde confina com seis léguas ainda não reconhecidas completamente, e nem tão pouco demarcadas”. Essas terras, no entanto, muito prometiam caso fossem solucionados os problemas relativos ao acesso: “sendo também esta segunda parte de admirável qualidade, fertilíssima, e especial: porque oferece nos seus produtos ao agricultor cento por um: tem contudo o defeito de serem mais demorados os transportes, ainda que poderão melhorar à medida do tempo da indústria da crescida população, dos interesses, e comércio”.10 No início do século XIX, o café começou a se firmar ao longo do Caminho Novo da Piedade, sempre combinado com outras atividades como a produção de açúcar, de aguardente e de mantimentos, ou a criação de animais.11 O estabelecimento da família real portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, trouxe um renovado impulso para a cafeicultura e demais atividades econômicas, seja pelo simples aumento da demanda urbana, seja pelo incremento do fluxo de capitais, abertura de novas vias e intensificação do tráfico negreiro transatlântico.12 Todas essas transformações se articularam diretamente à organização espacial da fazenda de Santa Cruz, tanto na 10. Manoel Martins do Couto Reys, “Memórias de Santa Cruz. Seu estabelecimento e economia primitiva: seus sucessos mais notáveis, continuados do tempo da extinção dos denominados Jesuítas, seus fundadores, até o ano de 1804”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 17, 143-186, abril de 1843, pp. 143-144. Para uma análise desses planos de recuperação da fazenda em fins do século XVIII, ver Carlos Engemann, Cláudia Rodrigues e Márcia Amantino, “Os jesuítas e a Ilustração na administração de Manoel Martins do Couto Reis da Real Fazenda de Santa Cruz (Rio de Janeiro, 1793-1804)”. In: Carlos Engemann & Marcia Amantino (orgs.), Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2013, pp. 291-314. 11. Esse processo é bem documentado pelas listas nominativas de habitantes compostas para a capitania de São Paulo. Ver, dentre outros, José Flávio Motta, Corpos escravos, vontades livres. Posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume-Fapesp, 1999, pp. 109-126, e Francisco Vidal Luna & Herbert S. Klein, Evolução da Sociedade e Economia Escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. (trad. port.) São Paulo: Edusp, 2005, pp. 81-106. 12. Acerca do impacto de 1808 para a formação da cafeicultura no Vale do Paraíba, ver Rafael Marquese & Dale Tomich, “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX”. In: Keila Grinberg & Ricardo Salles (org.), O Brasil Imperial. Volume II – 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 354-359. Sobre a diversificação das atividades econômicas em geral na região do Sul de Minas, do entorno da Baía de Guanabara e do próprio Médio Vale do Paraíba, a partir de fins do século XVIII, ver ainda Alcir Lenharo, As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842 (1ª ed.: 1979). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro (SMCTE), 1992, e João Luís Fragoso, Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
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baixada quanto na serra. Se modificações importantes, como a montagem e o posterior leilão dos engenhos de Itaguaí e Piaí (adquiridos, em 1806, pelo grande traficante de escravos Antônio Gomes Barroso), antecederam a chegada da comitiva de D. João ao Rio de Janeiro, foi com sua corte que os usos da fazenda de Santa Cruz adquiriram novo sentido.13 Já em 1808, o príncipe regente converteu a antiga sede jesuítica em palácio real, com amplas reformas no risco arquitetônico para adequá-la à nova função. Ao mesmo tempo em que transformava a antiga morada jesuítica em palácio, na zona de serra acima o príncipe regente concedia amplas sesmarias na fronteira norte da fazenda, isto é, na margem esquerda do rio Paraíba, território indígena que estava sendo “clareado” com o estabelecimento de aldeamentos em futuras terras da vila de Valença e com o fim definitivo da política de “zonas proibidas”.14 Adotou-se, com essas concessões, um novo padrão: seguindo as normativas do alvará de 5 de outubro de 1795, que estipulava a obrigatoriedade de demarcação e medição prévia das terras a serem dadas em sesmarias, confirmadas por alvará firmado já no Rio de Janeiro, em 25 de janeiro de 1809, o terreno além-Paraíba foi mapeado antes de ser distribuído (imagem 3). Poderosos traficantes de escravos com amplo trânsito na burocracia joanina, capazes de arrematar os lucrativos contratos da Coroa, como os Faro, e gente pioneira na ocupação da região de Piraí, como os Gonçalves Moraes, foram agraciados com mais de uma sesmaria nessa zona quadriculada.15
13. Freitas, Santa Cruz, v. II – Vice-Reis e Reinado, 1760-1821, pp. 31-35. 14. Sobre a política de aldeamentos dos Coroados, ver Lemos, O índio virou pó, e Machado, Entre fronteiras. 15. Sobre os alvarás de 1795 e 1809, ver Márcia Motta, Nas fronteiras do poder, pp. 133-134, e Lígia Osório Silva, Terras Devolutas e Latifúndio. Efeitos da Lei de 1850. Campinas: Ed. Unicamp, 1996, p. 70; sobre as sesmarias concedidas além-Paraíba, Fridman, “Do chão religioso à terra privada”, p. 316; sobre os Faro, ver Riva Gorenstein, “Comércio e política: o enraizamento de interesses mercantis portugueses no Rio de Janeiro (1808-1830)”, in: Lenira Menezes Martinho & Riva Gorenstein, Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do RJ, 1992, pp. 150-186.
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Imagem 3 - detalhe da imagem 1.
Esse duplo processo de transformação, da fazenda de Santa Cruz e de seu entorno de serra acima, pode ser acompanhado pela chamada “missão austríaca” de 1817. Amplas reformas no palácio foram concebidas para o casamento do príncipe D. Pedro com a princesa Leopoldina. A chegada dessa última foi precedida pela missão científica da qual fez parte o artista Thomas Ender, que percorreu a Estrada Geral de São Paulo em toda sua extensão. No fantástico conjunto de desenhos a lápis que Ender produziu, temos o que talvez seja o primeiro documento visual a respeito da introdução da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba, a imagem intitulada Plantação de açúcar e de café do Hilário [Gomes Nogueira], a meia milha de São João Marcos e a 22 milhas do Rio de Janeiro. Na futura província do Rio de Janeiro, a primeira zona de produção cafeeira em larga escala foi exatamente a que se estruturou em torno da Estrada Geral de São Paulo, em São João Marcos e Piraí, na década de 1810. Somente nas décadas de 1820 e 1830 é que o café se firmaria em Vassouras e Valença.16 É o que estava ocorrendo na propriedade em tela, a fazenda 16. Sanches, “Sertão e Fazenda”, p. 44, 56.
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Olaria, situada no Caminho Novo da Piedade, fomentada por Hilário Gomes Nogueira em sesmaria comprada em 1801. Hilário era natural de Baependi, Minas Gerais; produtor de mantimentos para o mercado interno e envolvido no comando de tropas de mulas, deslocou-se para a fronteira das capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro na virada do século XVIII para o XIX. Em 1807, foi um dos signatários da petição demandando a fundação da vila de São João do Príncipe, atendida por D. João em 1813, período em que obteve mais sesmarias na região. Entre essa data e seu falecimento, em 1824, foi um dos grandes traficantes de escravos locais, com constantes compras de africanos na praça do Rio de Janeiro para vendê-los serra acima. Hilário era primo de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, futuro visconde e marquês de Baependi (títulos recebidos em 1824 e 1826), igualmente proprietário de terras e escravos no Médio Vale do Paraíba, na região de Valença, e, assim como o parente, figura proeminente no Primeiro Reinado.17 As trajetórias dos Gomes Nogueira, dos Pereira Faro, dos Gonçalves de Moraes e de outros núcleos familiares envolvidos com negócios cafeeiros demonstram a dimensão molecular do complexo processo de formação da nova classe senhorial brasileira e de suas relações com a independência do país. A montagem da cafeicultura no Vale do Paraíba envolveu tanto um movimento “serra acima”, isto é, de grandes negociantes (traficantes transatlânticos de escravos, em especial) e de burocratas da praça do Rio de Janeiro que aplicaram seus vultosos capitais na nova atividade econômica, como um movimento “serra abaixo”, isto é, de produtores de mantimentos e tropeiros do Sul de Minas Gerais que desceram a Serra da Mantiqueira para investir em uma atividade muito mais rentável, voltada ao mercado mundial, do que suas operações no mercado interno.18 Se o movimento “serra acima” foi, em larga medida, mas não exclusivamente, decorrente da vinda da Corte 17. A respeito de Hilário Gomes Nogueira e seus negócios, ver Eduardo Schnoor, Na Penumbra: o entrelace de negócios e famílias (Vale do Paraíba, 1770-1840). São Paulo: FFLCH/USP – Tese de Doutorado em História, 2005, p. 19 passim. 18. Para o movimento serra acima, ver João Luís Ribeiro Fragoso, op. cit.; para o movimento serra abaixo, ver Alcir Lenharo, op. cit. É importante registrar que rejeitamos avaliação de Fragoso sobre o sentido “arcaico” do investimento de capital mercantil em atividades cafeeiras no Vale do Paraíba. Ver, dentre nossas publicações sobre o assunto, Marquese & Tomich, “O Vale do Paraíba escravista”; Ricardo Salles & Magno Borges, “A morte do Barão de Guaribu. Ou o fio da meada”. Heera. Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada, Vol. 7, n. 13, 2012, pp. 57-94; Rafael Marquese, “As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira”. Revista de História, 169, 2º semestre de 2013, pp. 223-254.
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para o Brasil, o movimento de “serra abaixo” obedecia a influxos mais antigos de expansão e povoamento, originários da ampliação e diversificação da economia mineradora, principalmente em sua fase de declínio a partir da segunda metade do século XVIII.19 Quando da necessidade de costurar uma ampla base de apoio para seu projeto político contra as determinações das Cortes de Lisboa, o príncipe regente D. Pedro se fiou nessas amplas redes de negócio e de família que articulavam as províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e que tinham na zona ocidental do Vale do Paraíba um de seus principais loci. Em abril de 1821, no episódio crucial da Assembleia na Praça do Comércio, Joaquim José Pereira do Faro, sesmeiro e cafeicultor em Piraí e Valença, fora eleito para a Junta Provisional que auxiliaria o regente na inspeção dos atos dos Ministros de Estado indicados por Lisboa. Algo semelhante pode ser observado na viagem realizada em março/abril de 1822 para Minas Gerais e, em especial, na viagem de agosto/ setembro para São Paulo. A passagem de D. Pedro pelo Vale do Paraíba foi calculada com o objetivo de obter o suporte de todos os potentados em ascensão, que, com seus filhos, formaram a Guarda de Honra do príncipe regente – o que incluía os irmãos Breves.20 19. Esses dois movimentos se retroalimentaram e antecederam a vinda da Corte para o Rio de Janeiro. Toda a região do Sul de Minas, principalmente a Comarca do Rio das Mortes, em torno de São João del Rei, com irradiações pela Zona da Mata e pelo Vale do Paraíba, foi irrigada pela produção de gêneros de abastecimento (grãos, carnes, queijos, aguardente, entre outros), através de caminhos e estradas locais, percorridos por tropas de muares, que visavam tanto a própria zona de mineração quanto a cidade do Rio de Janeiro. Esta, por sua vez, era o grande centro fornecedor de cativos para o interior, tanto para as minas quanto para a zona de abastecimento. Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo. (1ª ed: 1942) São Paulo: Brasiliense, 1969, já havia chamado a atenção para a formação e a força dessa economia mercantil de abastecimento. Cf. Alcir Lenharo, op. cit., pp. 60-61, que salienta a contribuição pioneira do historiador paulista. Além da região mineradora, em torno do eixo Rio de Janeiro/São João del Rei gravitavam o Sul da colônia portuguesa, o interior paulista, toda a zona da Baixada Campista no Rio de Janeiro, indiretamente, Bahia e Pernambuco, e todo o comércio de escravos com a costa ocidental da África, principalmente em sua zona central (cf. João Luís Fragoso, op. cit.). Na verdade, foram essas condições socioeconômicas mais amplas que, em parte, propiciaram a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, que, por sua vez, fortaleceu, expandiu e consolidou o papel do Rio de Janeiro e do Centro-Sul no império português. 20. Sobre a Assembleia da Praça do Comércio, ver Octávio Tarquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil. Volume II – A vida de D. Pedro I (3 tomos). Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, tomo I, pp. 237-238, 285-6, e Cecília Helena de Salles Oliveira, “Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, em 1821”. In: Izabel Marson & Cecília H. L. de S. Oliveira (org.), Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013, pp. 69-107. Sobre as viagens de D. Pedro, ver Eduardo Canabrava Barreiros,
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O projeto de independência capitaneado por D. Pedro, enfim, contou com o suporte decisivo de uma série de agentes econômicos que operavam na zona compreendida pela antiga fazenda de Santa Cruz, tanto na Baixada como na Serra: grandes traficantes e negociantes, como Antônio Gomes Barroso e Joaquim José Pereira de Faro, bem como o crescente de proprietários escravistas que estavam abrindo fazendas ao longo do Caminho Novo da Piedade e nas terras serra acima que haviam pertencido a Santa Cruz – os irmãos Breves, José Gonçalves de Moraes, Hilário Gomes Nogueira, Brás de Oliveira Arruda, dentre outros. O Escudo de Armas do Brasil, estabelecido em 18 de setembro de 1822 logo após a viagem de D. Pedro pelo Caminho Novo da Piedade, pode ser tomado como um reconhecimento do peso crescente do café para a economia do império recém-fundado. O ramo de tabaco, um dos principais produtos da área de Baependi, no Sul de Minas, por sua vez, expressava a via especificamente interiorana na formação desse complexo socioeconômico que estava na base do novo império. O Tombo de 1827 e a reação dos fazendeiros O palácio da Fazenda de Santa Cruz era o preferido do primeiro imperador do Brasil. Desde sua adolescência, quando seu pai havia modificado os usos dados àquele espaço pelos jesuítas e pelos administradores coloniais que se seguiram à expulsão da ordem, D. Pedro tinha por costume realizar longas estadias na fazenda. Entre 1826 e 1828, procedeu a uma ampla reforma da fachada e da arquitetura interna do palácio, sob o encargo do engenheiro militar francês José Pezerat, que lhe conferiu as feições neoclássicas observáveis na parte direita do mapa de Niemeyer (Imagem 1). Naquela altura, o Superintendente da Fazenda Imperial de Santa Cruz era Boaventura Delfim Pereira, barão de Sorocaba, título recebido em 12 de dezembro de 1826. Delfim Pereira fora nomeado para administrar a propriedade nacional em 21 de abril de 1824, pouco após D. Pedro I ter um caso com sua esposa, Maria Benedita de Castro Canto e Melo, irmã de Domitila de Castro Canto e Melo, a futura marquesa de Santos (também Itinerário da Independência, Rio de Janeiro, José Olympio, 1972, e D. Pedro – Jornada a Minas Gerais em 1822, Rio de Janeiro, José Olympio, 1973; Eduardo Schnoor, Na Penumbra, op. cit.; Vera Lúcia Nagib Bittencourt, “Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico-constitucional”. In: Izabel Marson & Cecília H.L. de S. Oliveira (org.), Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013, pp. 139-166.
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em 12 de dezembro de 1826).21 Durante a administração de Delfim Pereira, a lua de mel entre D. Pedro I e os fazendeiros de serra acima azedou. A questão fundiária na fazenda de Santa Cruz esteve no centro dessa virada. A conjuntura era amplamente favorável ao crescimento da atividade cafeeira, e esses fazendeiros vinham promovendo uma forte expansão de seus investimentos em terras e escravos na área. A delimitação das propriedades, nestas circunstâncias, ganhou, então, uma relevância que não tinha tido até aquele momento. Desde a expulsão dos jesuítas, havia uma imprecisão quanto aos fundos territoriais da fazenda. Uma medição iniciada em 1783 fora suspensa em 1784, retomada em 1787, e considerada inválida em 1814. Por Decreto de 10 de outubro de 1820, D. João VI mandou que se fizesse nova medição e demarcação do Tombo da propriedade, aviventando os marcos da medição jesuítica de 1731. A necessidade de corrigir ou sanar as imprecisões, atualizando o conhecimento exato do que realmente pertencia à Coroa, era evidente. Desde 1808, houvera um processo de amplas concessões de sesmarias serra acima, precedidas pelas sesmarias concedidas, após 1763, ao longo do Caminho Novo da Piedade e na calha do rio Piraí. Como vimos, essa onda de concessão de sesmarias e de ocupação territorial expressava o aquecimento da economia colonial na hinterlândia carioca que vinha ocorrendo desde fins do século XVIII. Foi essa aceleração e seu correspondente adensamento social, com a formação de uma camada social superior de grandes comerciantes, traficantes e proprietários escravistas, que deu sustentação ao estabelecimento da corte portuguesa no Rio de Janeiro, e não na Bahia. No reverso da medalha, o evento de 1808 aprofundou o processo de fortalecimento desse novo grupo social dominante. A Independência do Brasil, em 1822, capitaneada pelo príncipe português e sustentada, material e socialmente, pelos grandes proprietários, comerciantes e traficantes fluminenses, mineiros e paulistas, aparentemente representou o ponto de chegada de todo esse processo. No entanto, mais correto seria considerá-la como o ponto de partida da consolidação de uma nova classe senhorial.
21. As relações entre o affair de D. Pedro com Maria Benedita, cuja filha com o imperador nasceu em novembro de 1824, e a nomeação de Delfim Pereira para Santa Cruz, em abril daquele ano, foram estabelecidas por Tarquínio de Sousa, A vida de D. Pedro I, t. II, pp. 612-613. Sobre Delfim Pereira à frente de Santa Cruz, ver Freitas, Santa Cruz, vol. III – Império, 1822-1889, pp. 125-129.
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Em 19 de dezembro de 1823, D. Pedro I suspendeu a medição das sesmarias concedidas em anos anteriores que se acreditava estarem dentro da Fazenda de Santa Cruz, até a feitura do novo Tombo determinado pelo decreto de outubro de 1820. O Conselho de Fazenda do Império, em consulta de 5 de julho de 1824, afirmou que a medição de 1731 ainda era válida, sendo desnecessário portanto a confecção de um novo mapa da propriedade, como advogava o desembargador procurador da Fazenda Nacional, José Joaquim Nabuco de Araújo. Em 2 de setembro de 1824, o imperador demonstrou aparente concordância com o parecer do Conselho. Poucos meses depois, no entanto, ocorreu uma grande reviravolta: noticiouse, em 28 de fevereiro de 1825, que os originais do Tombo de 1731, ao serem transportados do Palácio de Santa Cruz para o Palácio de São Cristóvão, haviam sido roubados em Campo Grande, por marginais de beira de estrada. Instaurado o inquérito, nada se apurou. Diante do sumiço dos originais, o que restava fazer senão proceder a uma nova medição? Era o que Delfim Pereira vinha advogando desde que se tornara superintendente de Santa Cruz em 1824, e que a bandidagem miúda tornara necessidade com o assalto de fevereiro de 1825. Mas havia bandidagem graúda nessa história: um mês após o 7 de abril de 1831, quando D. Pedro I foi forçado a renunciar ao Império do Brasil em nome de seu filho, foram encontrados em seu gabinete os originais do Tombo de 1731, os mesmos que teriam sido furtados seis anos antes.22 Imperador envolvido em adultérios, filhos fora do casamento, assaltos fajutos: dias animados, esses do Primeiro Reinado. A despeito de, desde 1822, haver cópia do Tombo original feita pelo tabelião Caetano de Oliveira Gusmão, Delfim Pereira – sempre com a anuência, ainda que não explícita, de D. Pedro I – tocou adiante o novo processo de medição, que tampouco foi tranquilo. No meio da tarefa, quando os pilotos se preparavam para iniciar a medição serra acima, o engenheiro militar César Cadolino recusou-se a incluir nos fundos da fazenda imperial as terras do antigo sesmeiro Manoel Pereira Ramos, confinante dos jesuítas em 1731. Consequência: foi demitido pelo novo Barão de Sorocaba. Em 24 de julho de 1827, o superintendente,
22. Para todo o episódio da confecção do Tombo de 1827, ver os ótimos esclarecimentos de Antonio Keating inseridos em Freitas, Santa Cruz, v. III, pp. 213-217. A notícia sobre os originais do Tombo de 1731 encontrados no gabinete de D. Pedro I, em maio de 1831, pode ser lida em A Verdade, 19 de outubro de 1833, pp. 1-2.
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não obstante pequenos percalços como esse, deu a medição por concluída. O importante a registrar é que, com este novo mapeamento, a Fazenda Imperial de Santa Cruz avançara bastante para a margem esquerda do rio Paraíba, passando a englobar praticamente toda a calha do rio Piraí (imagem 4).
Imagem 4: Mapa da medição de 1827, in: O Tombo ou cópia fiel da medição, e demarcação da Fazenda Nacional de Santa Cruz, e possuída pelos padres da Companhia de Jesus, por cuja extinção passou à Nação. Rio de Janeiro: Tipografia de Lessa & Pereira, 1829. No destaque, terras na calha do Piraí e na margem esquerda do Paraíba (assinaladas em círculos).
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Vejamos, com uma notação nossa feita no mapa de Niemeyer (imagem 5), quais eram as implicações desta nova medição para a configuração fundiária do Vale do Paraíba: em azul, vemos o que eram os fundos da fazenda quando Niemeyer foi seu superintendente, em 1848; em vermelho, a área do mapeamento jesuítico de 1731; em amarelo, o que resultou da medição promovida por Delfim Pereira em 1827. De um momento para outro, muitas das sesmarias concedidas entre 1763 e 1822 passariam a fazer parte da fazenda de Santa Cruz e, portanto, estariam compelidas a pagar foros, ou, no limite, a serem restituídas, haja vista a suspensão do estatuto das sesmarias em 1822.
Imagem 5 - detalhe da imagem 1.
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Para chegar ao que Niemeyer cartografou em 1848, os fazendeiros do Vale do Paraíba tiveram que agir politicamente, o que fizeram assim que se tornou público o resultado da medição de 1827. A dianteira foi tomada pela imprensa liberal, já em franca campanha de oposição a D. Pedro I. Em 11 de agosto de 1828, o jornal Astréa afirmava que “uma questão de grande importância, e em que se acha comprometida a propriedade de muitos cidadãos, qual tem sido a da nova medição da nacional Fazenda de Santa Cruz, merece que dela se dê informação ao público, para que consultando o que aqui se refere, e os Documentos que irão aparecendo pelos tipos, façam juízo de uma atroz injustiça, em que parecem calcar-se a equidade a Constituição, e as Leis com escândalo, e prepotência”. Com essas palavras, anunciava-se que o combate se daria em torno dos limites da ordem constitucional da novíssima monarquia brasileira. Toda a sequência de publicações nos meses seguintes repisou esse ponto, salientando as irregularidades da medição de 1827, sua ausência de amparo legal ao negar validade aos títulos de sesmaria há muito sancionados pelos reis de Portugal e regularmente exploradas, com atividades agrícolas, pelos seus donos, e o quanto ela afrontava a carta outorgada em 1824 ao atacar os direitos de propriedade dos fazendeiros.23 É importante lembrar que a erosão do capital político de D. Pedro I com os fazendeiros do Vale do Paraíba vinha, pelo menos, desde junho de 1827, quando a convenção antitráfico assinada com a Grã-Bretanha em novembro de 1826 chegara à Câmara dos Deputados. Para além das substantivas defesas do tráfico negreiro e da escravidão como forma de inscrição positiva do Brasil no concerto das nações modernas, a linha de frente pró-escravista da Câmara valeu-se da discussão sobre a natureza do regime constitucional em construção para questionar o acordo que D. Pedro I firmara com os britânicos. Em pauta, o equilíbrio dos poderes e a natureza da responsabilidade ministerial sobre assuntos que feriam a independência nacional, tendo em vista que a pessoa do Imperador, conforme a carta que ele próprio outorgara em 1824, era inviolável. Abdicar da soberania brasileira em matéria tão sensível para a viabilidade econômica do Império, como era
23. Dentre a pesada campanha da imprensa liberal em torno da querela da fazenda Santa Cruz, ver os artigos em Aurora Fluminense, 13 e 27 de agosto, 1 e 29 de setembro, e 3 de outubro de 1828; Astréa, 27 de setembro de 1828; Astro de Minas, 18 de setembro de 1828; A Malagueta, 13 de janeiro, 6 de fevereiro e 28 de abril de 1829.
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o tráfico transatlântico de escravos, por uma medida exclusiva do executivo, sem que ela passasse pelo crivo do poder legislativo, representava, para os deputados pró-escravistas, a corrupção do princípio constitucional elementar de equilíbrio de poderes.24 Tal como nas vindicativas da imprensa liberal em torno da medição da fazenda de Santa Cruz, o que estava em debate, portanto, era o caráter da prática do exercício do poder por D. Pedro I, ou seja, se ela era efetivamente constitucional ou se, ao contrário, expressava um conteúdo marcadamente absolutista. Para o conjunto dos fazendeiros de Piraí o tratado ratificado em 1827 com a Grã-Bretanha era uma calamidade, tendo-se em conta a necessidade incessante de mais escravos para responder à bonança cafeeira. Para alguns deles a matéria do tráfico era ainda mais sensível. Naqueles anos, por exemplo, os irmãos Breves já se destacavam por seus negócios negreiros transatlânticos25. Diante das negativas dos porta-vozes da Coroa de que nada havia sido feito de ilegal em vista do roubo da documentação de 1731, o que impusera a necessidade de uma nova medição, os fazendeiros – com o auxílio da pena do “Zelador do Direito de Propriedade”, autor anônimo responsável por grande parte dos textos que apareceram na imprensa em 1828 e 1829 – deram um passo ousado em dezembro de 1829, mandando imprimir um grosso volume com a transcrição completa do levantamento jesuítico do século XVIII, com os mapas demonstrativos daquela medição, contrastados com o mapa da medição de 1827 (imagem 4) promovida por Delfim Pereira – que, aliás, falecera há pouco, em março daquele ano. Ou seja, o documento dos inacianos existia, estava disponível em cópia nos cartórios do Rio de Janeiro, e vinha à luz para esclarecer a chamada “opinião pública”. O mais importante, no entanto, não era tanto o Tombo de 1731, e sim as representações “à Nação” que lhe foram acrescentadas.26
24. Tâmis Parron, A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp. 64-80. 25. Thiago C.P. Lourenço, “Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense”. In: Hebe Mattos (org.), Diáspora Negra e Lugares de Memória. A história oculta das propriedades voltadas para o tráfico clandestino de escravos no Brasil Imperial. Niterói: Ed. UFF, 2013, p. 11. 26. Salvo engano nosso, Affonso Taunay, História do Café no Brasil. 15 v. Rio de Janeiro: DNC, 1939, v. 5, pp. 257-259, foi o primeiro a chamar a atenção para esse documento importantíssimo para a história do café no Primeiro Reinado. Sanches, “Sertão e Fazenda”, e Fridman, “Do chão religioso à terra privada”, também dele se utilizaram, mas em uma chave de leitura distinta da que apresentamos aqui.
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A que abria o volume, de 20 de novembro de 1829, era assinada pelo “Zelador”, e sumariava os argumentos esgrimidos em mais de um ano de campanha na imprensa. Na avaliação dos fazendeiros, o impulso imperial para a nova medição resultara diretamente do sucesso econômico da atividade cafeeira: “a nossa indústria, e desvelado trabalho de tantos anos, à custa de imenso dispêndio, e fadigas, fora abençoado pela Providência; mas suscitou a cobiça desses homens, já de longe afeitos a sangrar os Povos, para com seus despojos irem negociar aos pés do Trono, e à face da Nação, iludindo a um, e oprimindo a outra”. Pelo que se pode notar na última oração, a representação modulava com cuidado o ataque a D. Pedro I, manejando o velho topos do desconhecimento do monarca em relação ao que era feito em seu nome. Parece claro que o grupo em nome do qual o “Zelador” falava pretendia deixar uma linha de escape para o imperador, que não era diretamente responsabilizado pelo que ocorria. Nesse contexto, contudo, em que a vida pessoal questionável do imperador era alvo constante da oposição liberal, atacar Delfim Pereira não poderia deixar de ser lido pelos coevos como um ataque – mesmo que indireto – a D. Pedro I. A artilharia por vias tortas contra o imperador também procurou se valer da carta por ele outorgada em 1824. A atuação da oposição apresentava-se como um esforço genuíno, patriótico, de fortalecimento da ordem liberal no Brasil. “Os abusos do Poder Judiciário tem sido o nosso flagelo, e o Poder Executivo até agora surdo aos nossos ais”: o que mais sobrava aos fazendeiros senão recorrer ao Poder Legislativo e à “Opinião Pública, esse Poder sobre-Soberano, que mais tarde ou mais cedo se faz obedecer, aplicando já a censura, já o desprezo, e a infâmia, e afinal as penas legais”?27 A carga mais pesada veio com as representações inseridas ao final do volume. No que se refere à argumentação, nada de novo em relação ao que aparecera na imprensa entre agosto de 1828 e novembro de 1829, e que fora sumariado na abertura do volume. O ponto-chave estava na identificação de quais eram os agentes diretamente interessados na matéria. SENHOR = O Sargento Mor José Luiz Gomes, O Coronel José Gonçalves de Moraes por si, e seus filhos, o Coronel Joaquim José Pereira do Faro por si, e seus filhos, o Capitão Mor José de Souza Breves, O Capitão Antônio Gonçalves de Moraes, o Reverendo Joaquim José Gonçalves de Moraes, o Capitão Manoel
27. O Tombo, pp. i-xiii.
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Thomás da Silva, o Capitão Joaquim Gomes de Souza, o Padre Gonçalves de Moraes, Francisco Luís Gomes, Antônio Esteves de Magalhães Pusso, José Correia Porto, Joaquim Antônio de Oliveira, e outros, fundados no §.30.do art. 179 da Constituição, e bem assim no art. 99, vêm à Presença Augusta de V.M.I., esperando benigno acolhimento à presente súplica, de que não pouco depende o crédito do governo Imperial, pois que a nação inteira espera ansiosa o resultado da luta entre os Suplicantes e alguns Agentes do poder que nela comprometem a glória de Vossa Majestade Imperial, julgando fazer serviços.28
Coronel Joaquim José Pereira do Faro, primeiro Barão do Rio Bonito, que já vimos atuando no processo de independência; José Luiz Gomes, futuro Barão de Mambucaba; José Gonçalves de Moraes, em breve Barão de Piraí; Antonio Gonçalves de Moraes, primogênito do Barão de Piraí, casado com uma das filhas de Mambucaba; padre Joaquim José Gonçalves de Moraes, irmão do Barão de Piraí; Capitão Mor José de Souza Breves, primo de Mambucaba, pai de um filho homônimo e de Joaquim José de Souza Breves, os dois últimos casados com filhas do Barão do Piraí, e donos, na segunda metade do século XIX, de uma das maiores – senão a maior – escravarias do Império do Brasil.29 Como se vê, um grupo coeso, poderoso, que tivera papel importante no momento da costura da independência do Brasil, e que vinha cobrar a fatura de seu apoio anterior a D. Pedro I, “esperando benigno acolhimento à presente súplica, de que não pouco depende o crédito do Governo Imperial”. Essas figuras de proa do senhoriato de Piraí puxaram um abaixo-assinado no qual constavam 168 proprietários, que, em conjunto, possuíam 6.309 escravos e produziam 173.820 arrobas de café. Para não caber dúvidas em nome de que poder efetivo falavam os signatários da Representação, para cada proprietário, identificava-se o número de escravos e as arrobas de café produzidas. Joaquim Pereira de Sousa Faro e seus filhos eram os que possuíam o maior número de escravos, 540, produzindo 10 mil arrobas de café. Eram seguidos por José Gonçalves de Moraes e companhia, com quatrocentos cativos e, igualmente, 10 mil arrobas de café. Ao todo, os quinze proprietários com cem ou mais escravos, isto é, 9% dos assinantes, tinham 2.900, ou 42%, do total de cativos e produziam 74.200 arrobas de 28. O Tombo, p. 129. 29. Sobre os entrelaces familiares e breves informações biográficas desses fazendeiros, ver Leila Vilela Alegrio, O café no Vale do Paraíba fluminense no século XIX. Terras, fazendas, plantações, comércio e famílias. Rio de Janeiro: Centro do Comércio de Café do Rio de Janeiro, 2008, pp. 29-44.
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café, 43% do total. Oitenta e oito signatários, 52% do total, tinham entre um e dezenove escravos. Os 65 fazendeiros restantes, 39%, tinham entre vinte e 99 escravos. Esses dados mostram que a propriedade escravista da cafeicultura nascente já vinha ao mundo concentrada e, ao mesmo tempo, difundida.30 Tal peculiaridade, e sua importância para a conformação da classe senhorial em seu domínio direto sobre terras e homens, mas também em sua relação com o poder central, era evidente na estratégia de quem assinou a representação. Tanto grandes quanto pequenos o fizeram, mas os primeiros encabeçaram a lista e foram salientados com as marcas de asterisco. Esses signatários adotaram uma estratégia de demonstração explícita de riqueza e poder. Dentro do quadro periclitante das finanças do Primeiro Reinado e da quase que exclusiva dependência dos recursos obtidos com as taxas sobre a exportação para mantê-las de pé, os dados relativos ao volume da produção cafeeira eram uma referência direta da importância crescente do Vale do Paraíba para o Império, no exato momento em que seu comandante havia rifado o acesso irrestrito de seus fazendeiros à força de trabalho africana. O artigo 99 da Constituição de 1824, citado no trecho, rezava que “a Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Daí a estratégia de fustigá-lo pelo ataque indireto a seus prepostos, por meio de representações endereçadas à Câmara dos Deputados, conforme rezava o parágrafo 30 do artigo 179, também citado: “todo o Cidadão poderá apresentar por escrito ao Poder Legislativo, e ao Executivo reclamações, queixas, ou petições, e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo perante a competente Autoridade a efetiva responsabilidade dos infratores”.31
30. Veja-se, para efeitos de comparação, as trajetórias convergentes de Vassouras e Bananal, estudadas respectivamente por Ricardo Salles, E o Vale era o Escravos. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; Breno Aparecido Servidone Moreno, Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. Dissertação de Mestrado em História Social, Universidade de São Paulo, 2013. São necessárias pesquisas sobre o assunto, mas pode-se aventar que a propriedade escrava em Piraí nasceu mais concentrada do que em Bananal e Vassouras. 31. Sobre a prática mais ampla das petições ao Parlamento no Primeiro Reinado, ver Vantuil Pereira, Ao Soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do estado imperial (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010.
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Quais foram os desdobramentos parlamentares da ação dos fazendeiros e dos políticos que se valeram do caso para fustigar o primeiro imperador do Brasil? Em 5 de outubro de 1830, Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos expoentes da oposição liberal moderada a D. Pedro I, e que muito em breve se destacaria como o campeão do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil, apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei que atendia por completo à representação dos fazendeiros de dois anos antes, anulando para todos os efeitos a medição promovida por D. Pedro I e Sorocaba entre 1825 e 1827. A classe senhorial do Vale do Paraíba já encontrara seu grande porta-voz e líder no Parlamento brasileiro. Rapidamente discutido em 13 de outubro, o projeto foi aprovado com poucas alterações, sendo finalmente sancionado por um D. Pedro I, então enfraquecido. O decreto de 25 de novembro de 1830, composto por três curtos artigos, estabelecia que a Fazenda Imperial de Santa Cruz compreendia “somente os terrenos em cuja efetiva e legítima posse se achava o Senhor D. Pedro I no dia 25 de março de 1824”, isto é, no dia em que foi outorgada a Constituição brasileira; todos os terrenos anexados pela medição de 1825-1827 ficavam assim em propriedade plena de seus donos anteriores, justamente os que haviam puxado a representação de 1828.32 Aprovado no final do ano legislativo, o decreto de novembro foi expressão cabal da corrosão do poder de D. Pedro I e, portanto, do processo que em poucos meses levaria à sua queda. Ele deve ser lido de modo conjunto com o envolvimento do imperador com a questão dinástica portuguesa, com a derrota na Cisplatina, mas, sobretudo, com seus choques com a Assembleia Geral, nos quais a questão do encerramento do tráfico transatlântico negreiro e a afirmação da soberania nacional brasileira ocuparam papel central. O imbróglio de Santa Cruz, em realidade, representou a outra face da luta dos senhores de escravos contra o imperador que colocara em risco a reprodução de sua força de trabalho. O evento de 25 de novembro de 1830 marcou uma espécie de “desforra” dos fazendeiros, que viam seus interesses diretamente ameaçados pela iminente extinção do tráfico internacional, em relação a D. Pedro. O imperador tentou, com a medida, recuperar terreno, mas já era tarde. Para sintetizar nosso argumento, cremos que a questão da fazenda de Santa Cruz na década de 1820 deve entrar no rol dos vetores que trouxeram 32. Anais da Câmara dos Deputados, 5 de outubro de 1830, p. 591; idem, 13 de outubro de 1830, p. 600; Coleção das Leis do Império do Brasil, 1830. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876, p. 63.
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a queda do primeiro imperador brasileiro. E também, uma década mais tarde, da afirmação e da consolidação no poder do segundo imperador. A afirmação do poder senhorial e o mapa de 1848 Até 1837, a freguesia de Sant’Anna pertenceu ao termo da vila de São João do Príncipe. Em dezembro daquele ano, foi elevada à categoria de vila de Piraí, com instalação definitiva em outubro do ano seguinte. Ao longo das décadas de 1830 e 1840, os potentados que se haviam engajado na luta contra D. Pedro I em torno dos direitos sobre suas terras promoveram vários melhoramentos na região do novo município, como a abertura e conservação de estradas e pontes e a construção da infraestrutura do espaço urbano. O Paço da Câmara Municipal, por exemplo, foi erigido inteiramente a expensas de José Gonçalves de Moraes, José Luis Gomes, Joaquim Gomes de Souza, Raymundo de Souza Breves, Silvino José da Costa, Felisberto Ribeiro Franco, Carlos de Souza Pinto de Magalhães, Manoel Gonçalves Vallim, José da Conceição, António José de Barros Vianna Manoel José de Barros Vianna, Domingo Pereira dos Santos e Manoel Gonçalves Pereira – os quatro primeiros, nomes centrais das representações de 1828 e 1829. A igreja matriz, tendo sido destruída por um incêndio, foi reconstruída entre 1839 e 1841 ao custo total de 48 contos de réis, para o que contou com uma comissão encarregada de levantar os fundos necessários entre os fazendeiros da região, composta por José Gonçalves de Moraes, José Luiz Gomes, Raimundo de Souza Breves, Manoel Gonçalves Vallim, José da Silva Penna e Francisco Marques de Moraes. Os nomes se repetem.33 Notável, também, a expressão social e política obtida pelo grupo após a queda de D. Pedro I. José Gonçalves de Moraes recebeu o título de barão de Piraí em 1841, com grandeza em 1848. Joaquim José Pereira de Faro e filhos, centrais nas representações do final da década de 1820, teriam sua base de atuação política e econômica no município de Valença; Pereira Faro tornou-se o primeiro barão do Rio Bonito no mesmo ano em que José Gonçalves de Moraes recebeu seu título, em 1841. Como se vê, ambos foram agraciados logo nos primeiros anos do Segundo Reinado. José Luiz 33. A informação sobre a construção do Paço Municipal pode ser lida no Almanack Laemmert Provincial do Rio de Janeiro para o ano de 1875, pp. 185-186; sobre a reconstrução da matriz de Piraí, ver o Relatório do Presidente de Província do Rio de Janeiro para os anos de 1840 (pp. 31-32) e 1842 (p. 4).
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Gomes tornou-se barão de Mambucaba em 1854. Afinado politicamente a esses potentados, todos eles quadros importantes do chamado Partido da Ordem, José de Souza Breves filho foi Comandante Superior da Guarda Nacional nos municípios de Piraí e Itaguaí (1844) e deputado na Assembleia provincial do Rio de Janeiro em três legislaturas (1838-1843; 1844-1845; 1848-1849). Seu irmão, Joaquim José de Souza Breves, se do ponto de vista político constituía exceção em vista de sua atuação nas fileiras liberais (com participação importante no levante de 1842), também foi por várias vezes deputado na Assembleia provincial do Rio de Janeiro (1842-1843; 18461847; 1848-1849), e, em 1846, presidente da Câmara Municipal de Piraí.34 Com pares de outros municípios do Vale do Paraíba, esses grandes fazendeiros de café foram os maiores responsáveis pela reabertura do tráfico transatlântico ilegal de escravos para o Brasil na segunda metade da década de 1830. Nesses anos, os irmãos Breves, em associação com o barão de Piraí, tornaram-se eles próprios agentes negreiros, com uma organização empresarial bastante complexa para fazer frente à pressão antitráfico britânica em águas africanas e brasileiras. Afora isso, os potentados de Piraí expressaram sua militância pró-tráfico nas instâncias formais de representação política, apoiando e subscrevendo o conteúdo das várias petições que foram endereçadas à Assembleia provincial do Rio de Janeiro e ao Parlamento imperial demandando a anulação da lei de 7 de novembro de 1831 e a legalização do tráfico transatlântico de escravos, sob o argumento de que ele era imprescindível para a riqueza do Império, escorada na exportação de café. Essa campanha teve desdobramentos práticos: em 1840, três anos após a instituição do município, havia 11.186 escravos em Piraí, equivalendo a 64,91 % do total de habitantes, número que cresceu para 19.090 cativos em 1850, ou quase três quartos do total de habitantes. Em pouquíssimas regiões do Brasil o desequilíbrio demográfico entre senhores e escravos chegou aos patamares verificados em Piraí durante a vigência do tráfico ilegal.35
34. Informações obtidas no Almanack Laemmert do Rio de Janeiro (Corte e Província) para os anos de 1844 a 1848. Sobre a atuação política dos irmãos Breves, ver também Thiago Campos Pessoa Lourenço, O Império dos Souza Breves nos Oitocentos. Política e escravidão nas trajetórias dos Comendadores José e Joaquim de Souza Breves. Niterói: Universidade Federal Fluminense – Dissertação de Mestrado em História, 2010, pp. 78-121. 35. Sobre os Breves como traficantes nos anos 1840, ver Lourenço, “Os Souza Breves e o tráfico ilegal”; sobre a campanha pela reabertura do tráfico, Parron, A política da escravidão, pp. 121-252; sobre a demografia de Piraí, Salles, E o Vale era o escravo, pp. 258-259.
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Em conjunto e do ponto de vista não tão imediato e de maior alcance da conformação das relações sociais e do Estado, a atuação desses fazendeiros na esfera local, provincial e imperial assinala um momento decisivo na formação da classe senhorial, na qual eles fizeram valer sua voz em relação ao Estado nacional por meio de uma articulação política específica, o Regresso conservador. Atores importantes da consolidação da hegemonia saquarema durante a década de 1840, os fazendeiros de Piraí foram, portanto, peçaschave para a construção do desenho institucional do Segundo Reinado. Para escoar o volume cada vez maior de café obtido com uma escravaria em crescimento, o melhoramento das vias que serviam ao sistema de transporte baseado em mulas era imprescindível. Nesse campo, os grandes fazendeiros de Piraí contaram com o suporte técnico do engenheiro militar Conrado Jacob de Niemeyer, responsável, entre 1837 e 1839, pela Primeira Seção da Diretoria de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro, que abrangia todo o litoral sul e a zona ocidental do Vale do Paraíba fluminense. Sua trajetória e algumas de suas realizações como funcionário público graduado, particularmente quando esteve à frente da Fazenda Nacional de Santa Cruz, na década de 1840, expressam a constituição da classe dos fazendeiros escravistas do Centro-Sul, especialmente da região da Bacia do Paraíba e do Médio Vale do Paraíba, em classe senhorial.36 Isto é, em uma classe nacionalmente dominante, de base territorial, assentada sobre determinadas relações de produção, escravistas, e sobre uma economia, produtora de commodities para o mercado mundial capitalista, cuja dominação se reproduzia por sua interseção com o Estado imperial. No verão de 1836-1837, as três pontes da freguesia de Sant’Anna do Piraí haviam sido levadas em uma grande enxurrada. Uma delas, orçada em três contos de réis, teve metade de seus custos de reconstrução bancados por José Gonçalves de Moraes, que puxou uma subscrição local para cobrir o restante dos gastos. Outra, “na porção da Estrada que de Angra conduz a São João do Príncipe”, também foi recomposta à custa de particulares, neste caso com José de Souza Breves à frente. Nas duas pontes, o técnico responsável foi Niemeyer. No ano seguinte, o futuro barão de Piraí solicitou a Niemeyer que preparasse um projeto para a construção de uma ponte “suspensa de ferro” sobre o rio Paraíba, na altura da ponte da Escuma, 36. Para o conceito histórico de classe senhorial, ver Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, São Paulo: Hucitec, 1987, e Ricardo Salles, E o Vale era o escravo, op. cit., primeira parte.
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para ligar a fazenda de Três Saltos à sua unidade satélite do outro lado do rio, além, é claro, se servir aos demais transeuntes. Conforme se lê no relatório provincial de 1839, “essa empresa é sem dúvida importante, atenta a largura do caudaloso Paraíba, e a afluência de tropas e passageiros, que há de trazer o melhoramento dessa estrada, muito principalmente se a levarem até o extremo da Província”. Ao que tudo indica o projeto não chegou a ser realizado, o que não impediu Niemeyer de continuar prestando seus serviços aos grandes fazendeiros de Piraí. Em 1838, ele projetou e construiu uma grande ponte sobre o rio Piraí, bancada por Raymundo de Souza Breves.37 Nesses anos em que ocupou a diretoria da 1ª Seção de Obras Públicas, Niemeyer, além de se responsabilizar pelo estabelecimento dos limites dos municípios de Valença, Piraí, Barra Mansa e Resende, realizou trabalhos cartográficos com vistas à composição de uma carta geral da província do Rio de Janeiro, cujos exemplares foram colocados à venda em 1840.38 Durante a segunda metade da Regência, enquanto Niemeyer trabalhava na 1ª seção, a Fazenda Imperial de Santa Cruz foi gerida pelo coronel Francisco Gonçalves Fernandes Pires, administrador-geral de 1834 a 1840, e, por portaria de 30 de junho do último ano, superintendente. Em seu período à frente da propriedade nacional, a produção de arroz foi finalmente recomposta após décadas de abandono, e concluída a ala direita do Palácio conforme projeto de Pezerat, que também desenhou o novo edifício do Curtume, mais próximo das feições de um grande solar do que de um local de produção. Os conflitos fundiários do Primeiro Reinado haviam se tornado passado após o decreto de 25 de novembro de 1830 e a queda de D. Pedro I: Fernandes Pires manteve boas relações com os foreiros, elevou as rendas da fazenda, e morreu no exercício do cargo em 1º de novembro de 1846. Nessa altura, o Palácio de Santa Cruz era o preferido do jovem imperador D. Pedro II, peça essencial nas engrenagens do complexo de expressão simbólica do poder monárquico. Sua troca por Petrópolis, cuja cidade e palácio começaram a ser construídos após 1844, só se deu após a morte do príncipe varão em Santa Cruz, no verão de 1850.39
Relatório do Presidente de Província do Rio de Janeiro, 1837, pp. 48-49; 1838, p. 61; 1839, p. 52. Mapa disponível no sítio da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (www.bn.br): Conrado Jacob de Niemeyer, Carta da Província do Rio de Janeiro, 1840. Rio de Janeiro: Lit. do Arquivo Militar, 1849, 32 x 46,3 cm. 39. Freitas, Santa Cruz, v. III, pp. 131-134, 294, 400. 37. 38.
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Cinco dias após o falecimento de Fernandes Pires, Conrado Jacob de Niemeyer foi nomeado por D. Pedro II como novo superintendente da Fazenda de Santa Cruz. Nascido em Lisboa, em 1788, pertencente a uma família de engenheiros militares alemães que se deslocara para Portugal no século XVIII, Niemeyer mudou-se para o Brasil em 1809. Fez parte das tropas que combateram as revoluções pernambucanas de 1817 e 1824, e atuou como comandante de armas do Ceará nos anos 1820. Como vimos, entre 1836 e 1839 realizou numerosas obras na zona ocidental do Vale do Paraíba fluminense. Ao deixar o cargo, o conhecimento acumulado na região lhe permitiu contratar, como empreiteiro particular, as obras de reconstrução da Estrada do Comércio. Quando as realizava, participou, como projetista, da construção da Igreja Matriz de Vassouras. Em 1843, Niemeyer também cuidou de obras de reparação no sistema hidrográfico de Santa Cruz.40 O contrato de construção com a Província do Rio de Janeiro foi encerrado em 1844, ano em que Niemeyer publicou, na imprensa do Rio de Janeiro, um mapa da Estrada do Comércio, e em que assinou com o poder provincial um acordo adicional para sua manutenção.41 Em 1846, Niemeyer aceitou o convite do imperador para assumir a superintendência da Fazenda de Santa Cruz. Sua vasta experiência no serviço público o habilitava para a tarefa, mas o que possivelmente motivou a escolha final de D. Pedro II foi a Carta Geral do Império do Brasil, lançada em 1845 e premiada pelo imperador no ano seguinte, além, é claro dos relevantes serviços que já havia prestado aos fazendeiros do Médio Vale do Paraíba e à Província do Rio de Janeiro. Niemeyer exerceu a função em Santa Cruz de novembro de 1846 a março de 1856. Nesse longo período, uma de suas medidas foi justamente a composição do mapa de 1848, objeto deste artigo. Segundo Benedicto Freitas, durante a administração Niemeyer, a sala da superintendência era decorada com uma planta topográfica da fazenda, “em vistosa moldura dourada”. O historiador da propriedade também informa que por cem cópias litográficas do mapa, pagou-se à sociedade Heaton & Rensburg a quantia de 265$000. A firma fora fundada em 1840 pelo inglês Georges Mathias Heaton e pelo holandês Eduard Rensburg. Dentre seus 40. Notícia fornecida em O Brasil, 30 de março de 1843. Sobre a trajetória de Niemeyer, ver também R.A. Peixoto, “A Carta de Niemeyer de 1846 e as condições de leitura de produtos cartográficos”. Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, 299-318, jan./dez. 2004. 41. O mapa pode ser consultado no sítio da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sua referência é a seguinte: Conrado Jacob de Niemeyer, Planta hydro-topographica da Estrada do Commercio entre os rios Iguassu e Parahiba. Rio de Janeiro: Heaton e Rensburg Lith, 1844, 80 x 17 cm.
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múltiplos trabalhos de impressão, que incluiu as ilustrações do Brasil Pitoresco de Victor Frond, a dupla ganhou a reputação de serem os melhores litógrafos de mapas do Império do Brasil, ainda que seu campo mais rentável fosse a impressão de partituras musicais. Anúncios da firma no Diário do Rio de Janeiro e no Correio Mercantil da década de 1840 permitem avaliar o valor relativo que foi cobrado para a composição do mapa de 1848. As partituras impressas pela Heaton & Rensburg eram vendidas a um valor de 500 a 1.000 réis cada, ou seja, a um preço unitário bem maior do que a firma recebera para imprimir os 100 exemplares de Santa Cruz. Ademais, nossa pesquisa não logrou encontrar anúncios de venda do mapa de Santa Cruz na imprensa da Corte, ao passo que vários outros propagandearam a venda, por subscrição, da Carta Geral do Império do Brasil. Por conseguinte, pode-se aventar a hipótese de que Niemeyer encomendou a impressão do mapa de Santa Cruz para ofertá-lo como presente. Para quem, não sabemos com precisão, mas podemos supor pelo exame de seus critérios de organização visual.42 Um rápido cruzamento das informações constantes do Registro Paroquial de Terras para a freguesia de Sant’Anna do Piraí, lavrado entre maio de 1854 e janeiro de 1856, com o que vemos no mapa de 1848, permite perceber que as múltiplas unidades anotadas com nomes próprios (de indivíduos, de núcleos familiares ou de fazendas) não equivaliam ao que os contemporâneos compreendiam exatamente como as fronteiras das propriedades rurais dessa região.43 Niemeyer se valeu da produção cartográfica anterior das sesmarias distribuídas entre 1730 e 1823 para projetálas no mapa da fazenda de Santa Cruz. Sesmarias essas que foram bastante reconfiguradas no processo de montagem das fazendas de café. Como a historiografia vem demonstrando, a cartografia da estrutura fundiária no Brasil encontrou limites intransponíveis para se realizar ao longo do século XIX.44 A própria natureza do primeiro “cadastro nacional” de terras, o Registro Paroquial dos anos 1850, ao envolver apenas declarações verbais 42. Freitas, Santa Cruz, v. III, p. 20. Sobre a Heaton & Rensburg, ver Laurence Hallewell, O Livro No Brasil: Sua História. (trad. port.) São Paulo: Edusp, 2003, p. 148, e Pedro Sánchez Cardoso, A Lithos. Edições de Arte e as Transições de Uso das Técnicas de Reprodução de Imagens. Rio de Janeiro: PUC – Dissertação de Mestrado em História, 2008, pp. 60-62. Os anúncios podem ser lidos em Diário do Rio de Janeiro, 20 de setembro e 12 de dezembro de 1845, 16 de junho, 13 de julho e 21 de dezembro de 1846, 28 de outubro e 4 de novembro de 1847, e no Correio Mercantil de 4 de abril de 1849. 43. O referido registro pode ser consultado no sítio do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (http://www.aperj.rj.gov.br/). 44. Ver, em especial, Motta, Nas Fronteiras do Poder, e Silva, Terras Devolutas e Latifúndio.
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sobre o que eram os limites de cada propriedade, porém sem quaisquer atos de mapeamento, bem o comprova. Houve uma lógica clara na nomeação que Niemeyer adotou para registrar as fazendas de café que faziam fronteira com as terras da Imperial Fazenda de Santa Cruz. Para comprovar isso, basta uma mirada na faixa ao longo do rio Paraíba. Na imagem 6, observa-se como o engenheiro militar fez questão de inscrever no espaço ou o nome dos grandes potentados cafeeiros, envolvidos ou não no abaixo-assinado de 1828 contra D. Pedro I (“Terras dos Breves”, Major José Luiz Gomes, Major José Luiz Gomes e Faro, João Pereira do Faro, Marquês de Baependi etc.), ou das propriedades que os vinham notabilizando (Mangalarga, Três Saltos, o coração das atividades do barão de Piraí, Botafogo, Campo Alegre, propriedades de um de seus genros, o barão de Vargem Alegre, Sant’Anna, o coração das atividades de Pereira Faro etc.). A toponímia empregada pelo mapa marcava claramente o domínio desses homens e de suas fazendas sobre a paisagem da Província do Rio de Janeiro. Além do mais, se voltarmos para a imagem 5, vemos que, em 1848, como resultado da lei de 25 de novembro de 1830, a zona dos grandes cafeicultores se encontrava definitivamente fora da alçada da Imperial Fazenda de Santa Cruz.
Imagem 6 - detalhe da imagem 1
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Há que se ressaltar, por fim, a bissegmentação da litografia e o sentido da inscrição, no seu lado direito, da vista frontal do Palácio Imperial e da planta do complexo de edificações de seu povoado (imagem 7). A mensagem era clara: por meio dessa organização visual, o poder do imperador e o poder dos fazendeiros se tornavam estritamente articulados: enquanto o primeiro reconhecia sem questionamentos o domínio dos segundos sobre serra acima e a importância deles para a economia e a ordem social do Império do Brasil, estes se subordinavam espacial e simbolicamente ao seu monarca. Todos sabiam que o fundamento da riqueza dos fazendeiros residia no domínio de terras e de homens, o que quer dizer sobre uma estrutura fundiária cujo estatuto era relativamente incerto e sobre seres humanos ilegalmente escravizados conforme a legislação do próprio país. Composto antes de 1850, isto é, antes do encerramento definitivo do tráfico negreiro transatlântico e da aprovação da Lei de Terras, o mapa de Niemeyer promovia uma associação visual direta entre os fazendeiros do Vale do Paraíba e D. Pedro II, que, aliás, os visitara em janeiro daquele ano de 1848, prestandolhes as devidas deferências pelo papel central que vinham desempenhando para a construção da ordem institucional do Segundo Reinado.45
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45. Sobre a visita de D. Pedro II ao Vale em 1848, ver Augusto Carlos da Silva Telles, “A Visita de D. Pedro II a Vassouras”, Revista do IHGB nº 290, jan./mar. 1971, e Marcelo Rosanova Ferraro, A arquitetura da escravidão nas cidades do café, Vassouras, século XIX. Dissertação de Mestrado em História Social, Universidade de São Paulo, 2017, pp. 65-73.
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D. Pedro I quisera se impor a esses fazendeiros, que se haviam constituído em uma de suas principais bases de ascensão ao trono do Império do Brasil, e por essa razão foi destronado. Seu filho subiu e manteve-se no poder pelas mãos desses mesmos fazendeiros. Reinou por quase meio século. Quando finalmente foi derrubado, junto com o regime monárquico, por um golpe militar, o mundo da classe senhorial, com a abolição da escravidão, encontrava-se em processo de desagregação. Outros fazendeiros e outro regime estavam no horizonte, o que é assunto para o capítulo a seguir.
Capítulo 6 Os legados da segunda escravidão: as economias algodoeira e cafeeira dos Estados Unidos e do Brasil durante a Reconstrução norte-americana, 1867-1904
I. Em 1904, o governo federal da ainda jovem República do Brasil investiu consideráveis recursos para participar da Louisiana Purchase Exposition, sediada em Saint-Louis, Missouri.1 Visitada por quase 20 milhões de espectadores ao longo de sete meses, essa exposição universal se destacou de suas predecessoras pela escala espacial. Cobrindo uma vasta área com 1270 acres, que inclusive permitiram sediar os primeiros Jogos Olímpicos fora da Europa, a feira recebeu exibições de 63 países. Os gastos norteamericanos giraram, em valores da época, em torno de 15 milhões de dólares. Os recursos despendidos pelo governo brasileiro foram da ordem de 600 mil dólares, dos quais um quarto reservado exclusivamente para a construção do pavilhão do país (Imagem 1). Tal investimento arquitetônico rendeu frutos durante e depois da exposição. Em Saint Louis, a edificação foi premiada com a medalha de ouro de arquitetura. Projetada em estrutura metálica, a construção foi transferida para a capital do Brasil, onde por setenta anos marcaria a paisagem urbana do Rio de Janeiro. Ao sediar a Terceira Conferência Pan-Americana, em 1906, foi rebatizada como Palácio Monroe, posteriormente servindo de sede para o Senado Federal brasileiro.2 1. Este capítulo foi publicado anteriormente em inglês, em uma versão ligeiramente menor, em livro editado por William A. Link: The United States Reconstruction Across the Americas. Gainesville: The University Press of Florida, 2019, pp. 11-46. 2. Sobre a história da participação brasileira em Saint Louis e da construção de seu pavilhão, ver Oirgres Leici Cordeiro de Macedo, Construção Diplomática, Missão Arquitetônica: Os Pavilhões do Bra-
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Imagem 1: Pavilhão do Brasil em Saint Louis, Francisco Marcellino de Souza Aguiar, Brazil at the Louisiana Purchase Exposition, St. Louis, 1904. Saint Louis: Art Dept. Saml. F. Myerson Ptg. Co., 1904.
Afinada aos propósitos gerais desses eventos tipicamente oitocentistas que foram as exposições universais, cujo objetivo-chave era o de dispor ao olhar, por meio de uma documentação enciclopédica, o avanço tecnológico do mundo industrial – daí o acerto de Eric Hobsbawm, que as denominou “gigantescos novos rituais de autocongratulação” do capital –, a feira de Saint Louis deu igualmente prosseguimento ao programa inaugurado com a exposição do Centenário da Independência, realizada na Filadélfia.3 A celebração da nova ordem imperial norte-americana, resultante da aliança
sil nas Feiras Internacionais de Saint Louis (1904) e Nova York (1939). Tese de Doutorado em História da Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2012, 14-54. 3. Eric Hobsbawm, A Era do Capital, 1848-1875 (trad. port.). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2000, p. 58. Ver, também, Jürgen Osterhammel, The Transformation of the World. A Global History of the Nineteenth Century. Princeton: Princeton University Press, 2014, pp. 14-15; Margarida de Souza Neves, As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: PUC, 1986; Sandra J. Pesavento, Exposições universais, espetáculo da modernidade do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
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entre poder federal e capitalismo industrial que nascera da Guerra Civil, foi um dos elementos unificadores de todas as exibições promovidas nos Estados Unidos entre 1876 e 1916. Outro foi o casamento das novas teorias sobre desenvolvimento racial com as projeções sobre o progresso material e nacional americano. Em Saint Louis, por exemplo, a antropologia ocupou papel de primeiro plano, com o maior espaço expositivo reservado às Filipinas, recém-conquistadas na guerra hispano-americana de 1898. Cerca de 200 habitantes nativos do arquipélago asiático foram expostos permanentemente à visitação pública, em um discurso visual que articulava a política imperial ultramarina norte-americana às hierarquias raciais e classistas vigentes no espaço doméstico. Ao fim e ao cabo, a ênfase na supremacia branca que informou todo o programa das exposições universais sediadas em solo norte-americano funcionou como uma poderosa resposta às profundas divisões de classe nos Estados Unidos pós-Guerra Civil.4 A preocupação do relativamente novo governo republicano brasileiro ao se engajar na exposição de Saint Louis foi mais modesta. Nas exposições universais da década de 1880, quando o Império do Brasil abdicara de participar oficialmente desses eventos, a organização das representações brasileiras coube basicamente aos interesses cafeeiros. Foi o que fez o Centro da Lavoura e do Comércio do Rio de Janeiro nas exposições de Buenos Aires (1882), Amsterdã (1883), Antuérpia (1885) e Beauvais (1885), nas quais procurou simultaneamente propagandear a qualidade do café brasileiro nos centros consumidores europeus e defender para o público externo a escravidão imperial, que então passava por sua crise terminal.5 Em Saint Louis, já em uma ordem pós-escravidão e sob o regime republicano, a associação Brasil & Café foi levada a um outro patamar. Com os cafeicultores de São Paulo no comando da presidência da República, a participação nas feiras internacionais voltou à organização do governo federal brasileiro, que converteu em prioridade oficial a propaganda da bebida.6
4. Robert W. Rydell, All the World’s a Fair. Visions of Empire at American International Expositions, 18761916 (Chicago: The University of Chicago Press, 1984), especialmente 256-303. 5. Mariana Muaze, “Violência Apaziguada: escravidão e cultivo do café nas fotografias de Marc Ferrez (1882-1885)”, Revista Brasileira de História, 37 (74): 33-62, 2017. 6. Sobre o lugar dos interesses cafeeiros paulistas na República, ver Joseph L. Love, São Paulo in Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1980. Sobre o contexto mais amplo da defesa do café brasileiro, ver Thomas H. Holloway, Vida e morte do Convênio de Taubaté. A primeira valorização do café (trad. port.). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978.
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No começo do século XX, o Brasil era o maior exportador mundial do artigo, controlando 75% da oferta global. Os Estados Unidos, por sua vez, eram os maiores importadores: com um consumo per capita na ordem de 13 libras/ano, o país absorvia quase metade das compras do artigo no mercado mundial, 90% das quais adquiridas no Brasil. Havia, contudo, um problema de base na composição do comércio cafeeiro entre Brasil e Estados Unidos. Os cafés mais valorizados no mercado norte-americano eram classificados como Moka e Java, detendo 40% da venda a retalho no país. No entanto, o volume de produção dessas duas zonas orientais era claramente incapaz de dar conta de tal demanda. O café superior embarcado em Santos e no Rio de Janeiro, muitas vezes saindo das fazendas já classificados como Moka e Java, entrava no mercado dos Estados Unidos como se fosse de procedência do Oceano Índico. Os consumidores norte-americanos, em resumo, pagavam mais caro por um produto brasileiro que não reconheciam como tal. A diferença entre preço de venda no Brasil / preço final ao consumidor norte-americano era mantida pela política monopolista dos grandes trustes cafeeiros norte-americanos, que praticavam a adulteração das procedências cafeeiras. Para além desses problemas, os produtores cafeeiros do Brasil estavam enfrentando outro bem mais agudo. Em razão da explosão da oferta que se seguira à abolição da escravidão brasileira, os preços médios de importação do artigo haviam despencado na praça de Nova York entre 1895 e 1903, da ordem de 14,65 para apenas 6,80 centavos de dólar / libra.7 Tais eram os desafios a serem enfrentados pela representação brasileira em Saint Louis. A delegação de São Paulo, que tomou a dianteira da propaganda cafeeira, estabeleceu qual seria a estratégia a seguir para ganhar o crescente mercado do Meio Oeste e, ao mesmo tempo, valorizar o produto brasileiro frente ao conjunto dos consumidores norte-americanos. Primeiro, expor o avançado maquinário de beneficiamento empregado no Brasil, responsável pela qualidade final do produto; segundo, preparar in loco a 7. Comissão à Exposição Universal da Compra da Louisiana 1904, Relatório Apresentado ao exmo. Sr. Dr. Lauro Severiano Müller, Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, pelo gal. F.M. de Souza Aguiar, Presidente da Comissão. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, pp. 388-390; Mauro Rodrigues da Cunha, “Apêndice Estatístico”, in 150 anos de café, com textos de Edmar Bacha and Robert Greenhill. Rio de Janeiro: Marcellino Martins and E. Johnston, 1992, pp. 283-391; Steven Topik, “The Integration of the World Coffee Market”, In: William Gervase Clarence-Smith & Steven Topik (org.), The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 21-49; Mark Pendergrast, Uncommon Grounds. The History of Coffee and How it Transformed the World. New York: Basic Books, 2010, pp. 21-72.
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bebida e distribuí-la gratuitamente a todos os visitantes, para que pudessem provar a superioridade do café brasileiro; terceiro, apresentar visualmente o que era uma fazenda de café no Brasil, do cultivo dos pés ao transporte do produto acabado para o mercado.8 Em janeiro de 1904, portanto quatro meses antes da abertura da feira em Saint Louis, a cidade de São Paulo pôde testemunhar uma antecipação dessa estratégia, com uma exposição preparatória. A imagem de que dispomos sobre o que foi planejado (imagem 2), uma fotografia impressa nas páginas do Correio Paulistano há mais de um século não é de boa qualidade, mas ela nos permite apreender a propaganda visual que seria empregada nos Estados Unidos.
Imagem 2: “Exposição Preparatória”, Correio Paulistano, 15 de janeiro de 1904, p. 1.
Chamo atenção para os quadros que se podem observar na parte superior da fotografia, dos quais os mais nítidos são os dois à esquerda. Trata-se de parte de uma série de seis pinturas a óleo, todas com as mesmas dimensões (100 cm x 150 cm), que o artista italiano Antonio Ferrigno (18638. “Exposição de S. Luiz”, Correio Paulistano, 19 de novembro de 1903, p. 3.
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1940) compôs no ano de 1903 sobre a fazenda de Santa Gertrudes, localizada no Oeste de São Paulo. Não era a primeira vez que os serviços de Ferrigno eram mobilizados para fins de propaganda cafeeira do Brasil no exterior. Em 1900, a expensas do Conde de Serra Negra, ele havia preparado uma série menor sobre a fazenda Victoria (também do Oeste de São Paulo) para ser exposta em um salão privado em Paris. Agora, Ferrigno se afastava de uma iniciativa meramente individual para ser incorporado a uma iniciativa oficial. Santa Gertrudes pertencia então ao poderoso fazendeiro e financista Eduardo Prates, figura de proa do grupo político e empresarial paulista que tomara o poder no Brasil nos anos que se seguiram à proclamação da República. Nesse momento, sua fazenda – reputada como uma das mais avançadas unidades cafeeiras do mundo – se consolidara como um local de peregrinação técnica. Fotos de Santa Gertrudes foram expostas no Pavilhão de Agricultura em Saint Louis e, algumas delas, incorporadas ao catálogo oficial do Brasil. O lugar reservado às pinturas de Ferrigno em Saint Louis foi mais nobre: elas ocuparam o primeiro andar do Pavilhão Brasileiro, em uma montagem que potencializava os efeitos visuais previstos pela exposição preparatória em São Paulo. A imprensa local norte-americana não deixou de registrar os impactos que essa disposição, somada à farta distribuição de café de boa qualidade, produziu sobre os visitantes.9 As pinturas de Ferrigno sobre Santa Gertrudes seguiram um padrão uniforme, todas com as mesmas dimensões e composição formal (volumes, jogo de cores, personagens, edificações), anotando passo a passo o fluxo produtivo e o processo de trabalho: (1) a florada anunciando volumosa safra, com a capina das ruas de cafezais pelo trabalho feminino; (2) o trabalho coletivo das famílias de colonos (homens, mulheres e crianças) na colheita
9. Sobre a fazenda Santa Gertrudes, ver Maria Silvia C. Beozzo Bassanezi, Fazenda Santa Gertrudes. Uma abordagem quantitativa das relações de trabalho, em uma propriedade rural paulista, 1895-1930, Tese de Doutorado em História, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Rio Claro, 1973; Alexandre Luiz Rocha, Fazenda Santa Gertrudes: modelo de produção cafeeira no Oeste Paulista, 1885-1930, Tese de Doutorado em Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2008; sobre a trajetória do artista, ver o catálogo Antonio Ferrigno, 100 anos depois. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2005; sobre as fotos da fazenda no Pavilhão de Agricultura, ver Francisco Marcellino de Souza Aguiar, Brazil at the Louisiana Purchase Exposition, St. Louis, 1904. Saint Louis: Art Dept. Saml. F. Myerson Ptg. Co., 1904, p. 32, 119; finalmente, sobre a percepção da imprensa local norte-americana, ver o artigo do Saint Louis Republic, de 9 de outubro de 1904, traduzido e publicado no Relatório da Comissão à Exposição Universal da Compra da Louisiana 1904, pp. 388-390.
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dos grãos; (3) a lavagem e separação dos grãos colhidos assim que chegavam à sede da fazenda; (4) já despolpados, a secagem dos grãos em pergaminho nos imensos terreiros, por turmas de trabalhadores temporários (camaradas), todos homens, supervisionados por um capataz; (5) sob a vista de Eduardo Prates, elegantemente vestido em terno de linho branco, o beneficiamento e ensacamento dos grãos por meio de um processo completamente mecanizado, com o emprego de apenas três trabalhadores; (6) a pitoresca partida das sacas de café em carros de boi, para a estação de trem que distava dois quilômetros da sede da fazenda. A rápida mirada do conjunto pictórico permitiria ao observador identificar os dois pontos centrais dessas pinturas a óleo: por um lado, a tecnificação do processo produtivo, garantia de um produto final de alta qualidade; por outro, o predomínio do trabalho branco, europeu, no cultivo dos imensos cafezais. Usando essas imagens como ponto de partida, mas também como ponto de chegada da análise, este capítulo argumenta que os processos aparentemente desconectados da abolição da escravidão e da Reconstrução nos Estados Unidos, por um lado, e da abolição da escravidão e da crescente expansão das exportações brasileiras de café, por outro, estiveram estruturalmente relacionados, condicionando-se mutuamente por meio das relações assimétricas que cada um desses espaços manteve com a reestruturação da economia-mundo capitalista do final do século XIX. De fato, a série sobre a fazenda Santa Gertrudes disposta no Pavilhão do Brasil na Louisiana Purchase Exposition expressa a convergência de três processos mais amplos: o enorme salto cafeeiro do Brasil na virada do século XIX para o século XX; a profunda alteração no tecido econômico e social dos Estados Unidos pós-Guerra Civil, que encontrou no ciclo de exposições universais inaugurado em 1876 uma de suas mais acabadas projeções ideológicas; a passagem definitiva, no hemisfério americano, de uma ordem agroexportadora escravista para uma ordem do trabalho livre. A presença das telas de Ferrigno em Saint Louis representa o ponto de chegada de um vasto conjunto de transformações históricas que se iniciaram com a Guerra Civil e a Reconstrução norte-americanas, e que aprofundaram a unificação das trajetórias históricas do Brasil e dos Estados Unidos. II. O esforço para internacionalizar a Reconstrução norte-americana não constitui propriamente novidade. A mirada para as implicações mais amplas
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do problema do trabalhador negro nos quadros da ordem capitalista mundial, por exemplo, forneceu o ponto de partida do pioneiro estudo de W. E. B. Du Bois sobre a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos. Em um argumento que antecipou em muitos aspectos o que C. L. R. James e Eric Williams escreveriam para o Caribe, Du Bois apontou como a montagem do capitalismo industrial dependeu em larga escala da exploração, em diferentes espaços, do trabalhador escravizado; o lugar que esse trabalhador ocuparia na ordem industrial já consolidada, por sua vez, foi o que em última instância “trouxe a Guerra Civil para a América”.10 No entanto, ao examinar especificamente a Reconstrução, Du Bois voltou suas lentes exclusivamente para os eventos nacionais, deixando assim de explorar toda a potencialidade transnacional contida em sua sugestão inicial. A insularidade da análise da trajetória pós-emancipação dos Estados Unidos, isolando-a de um contexto de referência mais amplo, foi a regra até a década de 1980. Salvo raras exceções, os historiadores norte-americanos pouco prestaram atenção às dimensões hemisféricas do fenômeno. É neste ponto que reside a importância de um livro escrito por um herdeiro direto da perspectiva proposta por Du Bois. Em um pequeno porém inovador volume de ensaios, Eric Foner demonstrou como a experiência da emancipação no Caribe francês e inglês guiou toda a experiência posterior da emancipação nos Estados Unidos. Particularmente inspiradora é sua análise de como a gênese do sistema de parceria durante a Reconstrução nasceu dos embates entre ex-senhores e ex-escravos, conflitos estes configurados pelas leituras que os atores contemporâneos fizeram da trajetória caribenha pós-abolição. 11 O impacto do livro de Foner, somado ao crescente prestígio da história comparada da escravidão nas Américas, estimulou o avanço da compreensão do Sul dos Estados Unidos em uma moldura histórica mais abrangente. Um bom exemplo disso pode ser observado no volume que Kees Gispen editou 10. W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction in America, 1860-1880 (1935). New York: Atheneum, 1992, p. 15. Bruce E. Baker e Brian Kelly ressaltam bem esse pioneirismo de Du Bois: ver a introdução ao volume por eles editado, After Slavery. Race, Labor, and Citizenship in the Reconstruction South. Gainesville: University Press of Florida, 2013, p. 4. 11. Dentre as exceções, destaca-se C. V. Woodward, “The Price of Freedom”, In: David S. Sansing (org.), What Was Freedom’s Price? Jackson: University of Mississippi Press, 1978, pp. 93-113. O livro de Eric Foner é o Nothing but Freedom. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1983. O enquadramento de Foner encontrou largo desenvolvimento em Edward Bartlett Rugemer, The Problem of Emancipation. The Caribbean Roots of the American Civil War. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2008.
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em 1990. Reunindo o principal time dos historiadores norte-americanos que estudavam o século XIX sendo praticantes da comparação histórica, o livro cobriu um amplo arco de temas com o propósito de responder à pergunta de seu título, isto é, o que teria marcado a particularidade da trajetória do Sul dos Estados Unidos no hemisfério ocidental. De especial interesse é o capítulo redigido por Steven Hahn, que percorreu o mesmo assunto por ele explorado em outro artigo de grande impacto, também publicado em 1990.12 Nessas duas peças, Hahn enquadrou a Reconstrução em uma perspectiva comparada com objetivo de compreender a natureza da reconfiguração do poder político, social e econômico dos senhores sulistas após a Guerra Civil, bem como as relações mais amplas entre emancipação e desenvolvimento da agricultura capitalista no Sul dos Estados Unidos. Ao contrastar a construção do Estado nacional unitário e a consolidação da ordem capitalista nos Estados Unidos e no Brasil, Hahn explorou as distinções de caráter, ritmo e resultado desses processos nos espaços submetidos à análise, identificando o que foi peculiar ao caso norte-americano e ao caso brasileiro. Se a abolição da escravidão foi uma condição necessária para a consolidação da agricultura capitalista, isso não se deu da mesma forma nos dois lugares. A depender dos resultados dos conflitos entre ex-senhores e ex-escravos, por um lado, e a natureza do poder político que emergiu dessas lutas, por outro, as saídas da escravidão apresentaram resultados bastante díspares. O sistema de parceria, no Sul, foi uma expressão da fraqueza relativa dos ex-senhores nas estruturas de poder nacionais surgidas após a Guerra Civil, nas quais eles se viram em uma situação de crescente subordinação política e econômica em relação aos interesses industriais e financeiros do Norte. O oposto disso aconteceu no Brasil. Nas palavras de Hahn, “no curso da emancipação e construção da nação, as classes latifundiárias mantiveram em todo o Brasil suas propriedades, o controle sobre o trabalho e o poder local. Os fazendeiros de café, bem mais distantes na estrada da agricultura capitalista, também conseguiram usar os recursos do Estado para promover seus interesses”. O fracasso das elites fundiárias do Sul dos Estados
12. Steven Hahn, “Emancipation and the Development of Capitalist Agriculture: The South in Comparative Perspective”, In: What Made the South Different? Jackson: University Press of Mississippi, 1990, pp. 71-88; Steven Hahn, “Class and State in Postemancipation Societies: Southern Planters in Comparative Perspective”, The American Historical Review, 95 (1): 75-98, 1990.
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Unidos em manter influência significativa na vida nacional desdobrou-se na crescente subordinação do algodão sulista ao poder econômico dos vencedores da Guerra Civil e, assim, contribuiu para reduzir a região a um status semicolonial em fins do século XIX. “Em perspectiva comparada”, conclui o autor, “o que se destaca no curso da emancipação e unificação é o rápido e dramático declínio nas fortunas da classe senhorial do Sul.”13 Se o contraste que Hahn estabelece entre a perda de poder dos planters no Sul dos EUA e o crescente poder dos fazendeiros no Brasil pós-emancipação é correto e instigante, o procedimento que ele emprega para chegar a tal resultado dificulta a devida percepção da relação entre esses dois resultados. Hahn recorre a uma comparação formal entre os casos submetidos à análise, examinandoos como unidades independentes e externas uma à outra. O que em geral se obtém com tal método comparativo é a reafirmação da singularidade, isto é, o contraste entre as unidades comparadas reforçando o caráter único e particular de cada uma delas. Como bem salientou Jeffrey R. Kerr-Ritchie em artigo recente, o recurso ao método de comparação dentro dos esforços de internacionalização da Reconstrução reiterou, no mais das vezes, a ideia da excepcionalidade da trajetória histórica norte-americana. O lado irônico dessa crítica, no entanto, é que Kerr-Ritchie recorre ao mesmo método de comparação formal para argumentar que o que aconteceu nos Estados Unidos não foi único. Novamente, as relações entre espaços e processos de abolição / pós-abolição ficam, assim, relegadas a um segundo plano.14 A observação relativa aos limites do método comparativo formal é pertinente em vista do notável impulso que as perspectivas transnacionais e globais verificaram. É o que se pode observar em uma nova safra de coletâneas e de livros que tratam da Guerra Civil e de seus resultados em dimensões mais abrangentes, e que reúnem alguns dos melhores historiadores que esposam a agenda de alargamento do escopo espacial de análise da trajetória do Sul dos Estados Unidos na era da Guerra Civil.15 Ampliação espacial, ampliação 13. Hahn, “Class and State”, p. 88, 98. 14. É importante ressaltar que Jeffrey R. Kerr-Ritchie (“Was U.S. Emancipation Exceptional in the Atlantic, or Other Worlds?”, In: Brian Ward, Martyn Bone & William A. Link (org.), The American South and the Atlantic World. Gainesville: University Press of Florida, 2013, pp. 149-169) conclui seu artigo chamando atenção para o fato de que “comparative US emancipation studies ignore connections between the United States and emancipation elsewhere in the Americas” (p. 164). A despeito dessa observação, neste artigo específico o autor pouco material oferece para dar conta de tal demanda. 15. Tal é o caso de David T. Gleeson and Simon Lewis (org.), The Civil War as Global Conflict. Columbia, SC: University of South Carolina Press, 2014, Jörg Nagler, Don H. Doyle & Marcus Gräser
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temporal: a demanda pela compreensão do problema da Reconstrução em uma moldura cronológica que se estenda até as primeiras décadas do século XX, a fim de dar conta da profunda reorganização do Estado nacional e do capitalismo norte-americano ocorrida na chamada Era da Globalização (1870-1914), parece ter se tornado moeda corrente entre os historiadores.16 Na conclusão de uma coletânea de ensaios sobre The World the Civil War Made, Steven Hahn ressalta que, para dar conta dessa ampliação temporal e espacial do problema da emancipação e da Reconstrução, há que se enfrentar “o amplo e desafiador trabalho conceitual e empírico que ainda temos diante de nós”.17 Com efeito, sem um chão teórico sólido, será difícil avançar em direção a uma perspectiva que seja capaz de iluminar de um modo substantivo as inter-relações entre o Sul dos Estados Unidos e as (org.), The Transnational Significance of the American Civil War. London: Palgrave MacMillan, 2016, e Don H. Doyle (org.) American Civil Wars. The United States, Latin America, Europe, and the Crisis of the 1860s. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2017. No campo específico da história global, ver também o estudo modelar de Sven Beckert, Empire of Cotton. A Global History. New York: Alfred Knopf, 2014. No campo da história diplomática e das relações exteriores, ver Don H. Doyle, The Cause of All Nations. An International History of the American Civil War. New York: Basic Books, 2015, e Matthew Karp, This Vast Southern Empire. Slaveholders and the Helm of American Foreign Policy. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2016. Para uma boa síntese desse programa de alargamento espacial da história da escravidão e da pós-escravidão norte-americana no sentido da comparação histórica, ver Enrico Dal Lago, American Slavery, Atlantic Slavery, and Beyond. The U.S. “Peculiar Institution” in International Perspective. Boulder: Paradigm Publishers, 2012. 16. David Blight (Race and Reunion. The Civil War in American Memory, Cambridge, MA: Belknap Press, 2001) e Steven Hahn (A Nation Under Our Feet. Black Political Struggles in the Rural South from Slavery to the Great Migration, Cambridge, MA: Belknap Press, 2003) estiveram entre os primeiros a defender esse alargamento temporal da Reconstrução. A agenda foi logo incorporada pelos textos inscritos no livro editado por Thomas J. Brown, Reconstructions. New Perspectives on the Postbellum United States. New York: Oxford University Press, 2006. Como esclarece Foner, “the implication of this chronological redefinition is significant. Historians now recognize Reconstruction as part of the long trajectory of Southern and national history, not a bizarre aberration unrelated to what came before or after, as the Dunning School saw it. We now have what might be called a Long Reconstruction, like the long civil rights movement (which begins in the 1930s and 1940s) or the long nineteenth century (1789-1914)”. Eric Foner, “Afterword”, In: Bruce E. Baker e Brian Kelly (org.), After Slavery. Race, Labor, and Citizenship in the Reconstruction South/ Gainesville: University Press of Florida, 2013, p. 224. O mesmo ponto é reforçado por William A. Link e James Broomall na introdução de uma recente coletânea por eles editada (Rethinking American Emancipation. Legacies of Slavery and the Quest for Black Freedom, Cambridge: Cambridge University Press, 2016), e pelo igualmente recente livro de síntese de Steven Hahn, A Nation Without Borders. The United States and Its World in an Age of Civil Wars, 1830-1910. New York: Viking, 2016. 17. Steven Hahn, “What Sort of World Did the Civil War Made?”, In: Gregory P. Downs and Kate Masur (org.), The World the Civil War Made. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015, p. 315.
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demais unidades submetidas à comparação. Daí a relevância do conceito de uma “Segunda Escravidão”. Em razão dos fundamentos teóricos e metodológicos que a sustentam, creio que essa proposta seja bastante sugestiva para estudarmos a Reconstrução sob novas lentes. Na formulação pioneira do conceito, o historiador norte-americano Dale Tomich assinalou como um conjunto de acontecimentos e tendências históricos, entre o fim do século XVIII e o início do XIX – notadamente o advento da Revolução Industrial, bem como a consolidação da hegemonia britânica sobre a economia e o sistema interestatal mundiais –, ocasionou reconfigurações profundas no globo. O crescente desequilíbrio nos preços internacionais entre produtos industrializados e agrícolas, o aumento do consumo de commodities tropicais como o café e o açúcar (demandado pelo crescimento da população de trabalhadores e das classes médias nos núcleos urbanos do Atlântico Norte) ou a procura por novas matérias-primas, como o algodão, implicaram o declínio da escravidão em áreas coloniais antes centrais. Essas modificações, por sua vez, adquiriram um sentido bem distinto em outras zonas escravistas, como Cuba, Brasil e o sul dos Estados Unidos. De regiões relativamente marginais ou decadentes da economia atlântica do século XVIII, tais locais se tornaram os polos dinâmicos de uma maciça expansão da escravidão para atender à crescente demanda mundial de algodão, café e açúcar. A escravidão negra americana foi refundida em uma configuração política e econômica inédita, tendo seu caráter e sentido sistêmicos profundamente alterados. Os centros escravistas emergentes viram-se cada vez mais integrados e impelidos pela produção e o mercado industrial.18 Metodologicamente, a perspectiva que embasa a proposta de análise da Segunda Escravidão é a de uma comparação substantiva, e não formal. Ou seja, ao invés de serem tratadas como externas e independentes umas das outras, as regiões escravistas submetidas à observação são compreendidas como momentos particulares de um mesmo processo histórico de longa duração, ou seja, de uma mesma estrutura histórica (a economia mundial e o sistema interestatal do século XIX), que as forma e é por elas formado. Prestando-se atenção às múltiplas mediações entre a economia e a política mundial e as condições locais, torna-se viável examinar como regiões 18. Dale W. Tomich, Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e a Economia Mundial (1988; trad. port.). São Paulo: Edusp, 2011, 61.
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apartadas espacialmente se condicionaram mutuamente ao longo do tempo, em um processo simultaneamente desigual e combinado, e que, ao se desenrolar, alterou em ritmos distintos as condições da reprodução do todo (a economia mundial e o sistema interestatal) e das partes (as regiões produtoras e as unidades políticas que os compunham).19 Tal mirada analítica permite dar conta não apenas da trajetória integrada da escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, mas igualmente dos destinos desses dois países após a abolição. Ao investigar os legados da Segunda Escravidão recorrendo a essa perspectiva metodológica (isto é, por meio do exame das mediações entre a economia-mundo capitalista e as dinâmicas locais), será possível compreender como se deu a reconfiguração das economias algodoeira e cafeeira do Sul dos Estados Unidos e do Brasil nos quadros do capitalismo global sem o concurso do trabalho escravo. Falar em “legado”, contudo, não significa conceber a passagem da escravidão para o mundo pós-escravidão em termos de continuidade. O evento da Guerra Civil representou uma profunda virada na estrutura histórica da escravidão oitocentista. Para entender como isso se deu, e quais foram suas implicações subsequentes para a Reconstrução em suas dimensões internacionais, é necessário descrever com um pouco mais de vagar duas das linhas de força da Segunda Escravidão, isto é, o conjunto das relações políticas e econômicas entre suas unidades constituintes e o caráter da exploração do trabalho escravo em suas plantations. III. A Era das Revoluções trouxe uma profunda disjunção no tempo histórico dos sistemas escravistas do Novo Mundo. A Revolução do Haiti e a abolição da escravidão no Império Britânico cindiram a trajetória dos espaços coloniais em crise no Caribe inglês e francês em relação à trajetória dos países que refundaram institucionalmente a escravidão dentro dos marcos de Estados nacionais independentes, como foram os casos da República dos Estados Unidos da América, em 1787, e do Império do Brasil, em 1824. Do mesmo modo, se os processos revolucionários de independência na América espanhola continental feriram de morte a escravidão negra, 19. Conforme a acepção braudeliana-koselleckiana do tempo histórico que informa a proposta da Segunda Escravidão, estruturas e eventos são concebidos de forma dialética. Ver, a respeito, o segundo capítulo deste livro.
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em Cuba eles estimularam o aprofundamento dos laços entre os grupos empresariais crioulos e as forças políticas metropolitanas, o que permitiu a construção de uma ordem escravista de natureza equivalente à do Brasil e dos Estados Unidos. Ao ser modulado pela questão nacional, o colonialismo espanhol em Cuba e Porto Rico adquiriu uma configuração bastante distinta em relação ao que fora o colonialismo inglês e francês no século XVIII.20 A construção institucional da Segunda Escravidão, portanto, ocorreu no contexto da formação, na Europa e nas Américas, de novos Estados nacionais de cariz liberal. Ela se deu também em uma conjuntura mundial marcada pela força ideológica do antiescravismo. A mudança no caráter sistêmico da resistência escrava pós-Revolução do Haiti, a transformação, pela Grã-Bretanha, do combate ao tráfico transatlântico de escravos em política de estado, e o enraizamento da oposição à escravidão nas unidades federativas do Norte dos Estados Unidos colocaram, desde a segunda metade da década de 1810, os espaços escravistas americanos sob crescente pressão. Até meados da década de 1830, os atores políticos de Espanha/Cuba, do Brasil e do Sul dos Estados Unidos responderam a esses desafios dentro dos marcos de cada uma dessas unidades políticas, procurando solidificar o front interno de defesa da escravidão. Com o aumento da voltagem do caráter internacionalista – para não dizer imperialista – do antiescravismo britânico após a abolição da escravidão em 1838, e com o desenho de uma aliança transnacional entre abolicionistas britânicos e norte-americanos na virada para a década de 1840, os poderes da Segunda Escravidão demonstraram uma crescente convergência no seu enfrentamento contra o campo antiescravista. O ponto-chave da articulação dessa “Internacional Escravista”, que a bem da verdade jamais se constituiu como um Komitern, foi garantir um equilíbrio entre suas partes componentes de tal forma a impedir que o antiescravismo avançasse dentro de suas unidades políticas respectivas. A força que os interesses escravistas sulistas norte-americanos expressaram ao manter o controle do governo federal e da política externa de seu país, somado ao caráter particular de sua ideologia pró-escravista, acabaram por converter 20. Este e o próximo parágrafo se baseiam no artigo que escrevi em parceria com Tâmis Parron, “Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão”, Topoi. 12 (23): 97-117, julho-dezembro 2011. Ver, também, Tâmis Parron, A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2015, e Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron, Escravidão e Política. Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010, cap. 2, 3 e 4.
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os Estados Unidos em referência central para a defesa da escravidão no Império espanhol e no Império do Brasil nas décadas de 1840 e 1850. Ao mesmo tempo em que se dava esse alinhamento geopolítico, aprofundava-se a articulação entre as economias de cada uma dessas três regiões. Vejamos a matéria com base no algodão norte-americano e do café brasileiro. A plataforma livre-cambista defendida pelos exportadores de algodão sulistas, cujo ponto máximo se manifestou na Crise da Nulificação, teve um desdobramento de enormes implicações para os exportadores de café do Brasil. A política tarifária que, em 1833, solucionou a crise seccional nos Estados Unidos, livrou de impostos de importação uma série de artigos, dentre os quais o café. No começo da década de 1830, em razão da queda ocorrida após 1823 (já um resultado direto do aumento da produção brasileira), os preços médios do café na praça de Nova York estavam girando em torno de 10 centavos de dólar / libra; pelas tarifação vigente desde 1814, as taxas de importação montavam a 5 centavos a libra. A política tax free de 1833, portanto, permitiu um rebaixamento automático de 50% no valor final do café a ser adquirido pelo consumidor norte-americano. Com exceção do curto período de 1861 a 1872, a entrada de café nos Estados Unidos livre de tarifação perdurou durante todo o século XIX. Os eventos do começo da década de 1830 marcaram a associação definitiva entre o ethos nacional e a bebida estimulante: em menos de duas décadas, uma em cada quatro sacas de café produzidas no globo teriam por destino os portos norte-americanos.21 O impulso dessa nova política tarifária para o avanço dos cafezais no Brasil foi imediato. Se os norte-americanos não eram os únicos consumidores do café brasileiro, em 1850 eles haviam se tornaram indiscutivelmente seus principais compradores. Na década de 1830, os Estados Unidos importaram em média 28% do café remetido pelo Brasil ao mercado mundial. Em meados do século, quando os cafeicultores brasileiros controlavam cerca de 40% da oferta global do produto, 43% de suas exportações iam para os
21. Sobre a plataforma livre-cambista dos exportadores algodoeiros, ver Brian Schoen, The Fragile Fabric of the Union. Cotton, Federal Politics, and the Global Origins of the Civil War. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009, especialmente cap. 3. Sobre a questão do café, Parron, A política da escravidão na era da liberdade, cap. 5. Sobre o café e ethos nacional norte-americano, ver Steven Topik and Michelle Craig McDonald, “Why Americans Drink Coffee: The Boston Tea Party or Brazilian Slavery?”, In: Robert W. Thurston, Jonathan Morris, and Shawn Steinman (org.), Coffee. A Comprehensive Guide to the Bean, the Beverage, and the Industry. Boulder, CO: Rowman & Littlefield, 2013, pp. 234-247.
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Estados Unidos. A posição brasileira no mercado norte-americano passou a ser de virtual monopólio: 93% do café importado pelos Estados Unidos em 1850 provinha do porto do Rio de Janeiro.22 Em que pese as exportações da farinha de trigo para o Brasil, a balança comercial entre os dois países era claramente deficitária para os Estados Unidos. O comércio deficitário com o Brasil, contudo, era mais do que contrabalançado pelos superávits obtidos com as exportações algodoeiras para a Grã-Bretanha. Nas décadas de 1830 e 1840, o eixo cafeeiro Brasil – Estados Unidos casou-se com outra dimensão da articulação entre as duas economias escravistas. Tal como nos campos de algodão sulistas, a expansão dos cafezais brasileiros dependeu da incorporação constante de novos trabalhadores escravizados. Enquanto, nos Estados Unidos, isso se deu por meio da combinação entre crescimento vegetativo dos escravos no Upper South e o tráfico interno de cativos para o Deep South, no Brasil o crescimento cafeeiro fundou-se no tráfico transatlântico de escravos, ilegal desde 1831. Na década de 1840, capitais, barcos e, em especial, a bandeira norte-americana constituíram um dos esteios do comércio de seres humanos entre Angola/Moçambique e a costa do centro sul do Brasil, a contrapelo das pressões britânicas. Firmas como a Maxwell, Wright & Cia, cuja sede estava em Maryland, especializaram-se em vender farinha de Chesapeake no Rio de Janeiro, embarcar café para Baltimore e, também, em fornecer barcos para as operações negreiras no Atlântico Sul.23 O caráter que a produção escravista de algodão e de café assumiu nos Estados Unidos e no Brasil nos tempos da Segunda Escravidão, solidamente desenhada na década de 1820, manteve-se com pequenas variações
22. Afonso d’Escragnolle Taunay, História do Café no Brasil. Rio de Janeiro: DNC, 1939, vol. 4, pp. 121-122; Cunha, “Apêndice Estatístico”, 330. 23. Parron, A política da escravidão na era da liberdade, 452-461; Leonardo Marques, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016, pp. 139-184; Rafael Marquese, “Estados Unidos, Segunda Escravidão e a Economia Cafeeira do Império do Brasil”, Almanack, 5: 51-60, 2013; Laura Jarnagin, A Confluence of Transatlantic Networks. Elites, Capitalism, and Confederate Migration to Brazil. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 2008, pp. 111-147; Alan dos Santos Ribeiro, The Leading Commission-House of Rio de Janeiro. A firma Maxwell, Wright & Co no comércio do Império do Brasil (c.1827-1850). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, 2014; Daniel B. Rood, “An International Harvest: The Second Slavery, the Virginia-Brazil Connection, and the Development of the McCormick Reaper”, In: Sven Beckert and Seth Rockman (org.), Slavery’s Capitalism. A New History of American Economic Development. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016.
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conjunturais até a eclosão da Guerra Civil. A produção norte-americana saltou de 180 milhões bales de algodão, em 1820, para 1.390 milhões, em 1860, o equivalente a 66 % da oferta mundial; a produção cafeeira do Brasil, por sua vez, saltou no mesmo período de 12 mil para 180 mil toneladas métricas, garantindo-lhe o domínio de metade da oferta mundial. Portanto, trajetórias bem próximas. A massificação da oferta do algodão sulista e do café brasileiro foram resultado da enorme mobilidade espacial da fronteira agrícola em direção ao Baixo Vale do Mississippi, ao Black Belt da Georgia/ Alabama/ Mississippi, ao Vale do Paraíba fluminense e paulista, à Zona da Mata mineira, ao Oeste Velho de São Paulo, da incorporação constante de novos escravos (via tráfico interno e tráfico transatlântico) e, sobretudo, da intensificação da exploração desses trabalhadores.24 É possível observar, neste último aspecto, outra manifestação do chão comum entre as duas economias. Para além das demandas específicas de clima e solo, as agronomias do algodão e a do café tinham várias diferenças: o primeiro, em sua variedade herbácea, era uma planta de ciclo anual completo; o segundo, um arbusto que, ao entrar em plena produção a partir do quinto ano de seu plantio, era capaz de oferecer frutos por duas décadas. No começo do século XIX, a botânica do algodoeiro de fibra curta foi marcada pela invenção de novas variedades; o café arábica não passou por nenhum incremento botânico desde que se iniciou seu cultivo comercial no Iemên, no século XVI. O beneficiamento era igualmente distinto, mais simples no algodão (separação mecânica da fibra/caroço) do que no café (complexo processo de secagem e separação de polpa/pergaminho).25
24. Sobre o volume de produção algodoeira, ver Stuart Bruchey, Cotton and the Growth of the American Economy, 1790-1860: Sources and Readings. New York: Harcourt, Brace & World, 1967; sobre o café, Cunha, “Apêndice Estatístico”. Sobre a mobilidade espacial e humana das economias algodoeira e cafeeira, ver Edward E. Baptist, The Half Has Never Been Told. Slavery and the Making of American Capitalism. New York: Basic Books, 2014, e Rafael Marquese, “Capitalismo, Escravidão e a Economia Cafeeira do Brasil no longo século XIX”, Saeculum (UFPB), 29: 289-321, 2013. 25. Sobre as diferenças botânicas, ver Alan L. Olmstead and Paul W. Rhodes, Creating Abundance. Biological Innovation and American Agricultural Development. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, pp. 98-133; Stuart McCook, “Global rust belt: Hemileia vastatrix and the ecological integration of world coffee production since 1850”, Journal of Global History, 1 (2): 177-195, 2006; sobre as distintas demandas de beneficiamento, ver Jacob Gorender, O Escravismo Colonial (1978). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010, p. 123.
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No que se refere ao processo de trabalho, contudo, as congruências foram notáveis. As operações de capina dos algodoais e cafezais eram organizadas coletivamente, em gangs (ternos, no Brasil) sob comando unificado do feitor. Para responder à pressão crescente por mais produto, a área cultivada aumentou de forma constante entre as décadas de 1830 e 1850. No Sul dos Estados Unidos, a mensuração do ajuste entre a força de trabalho e a área plantada era efetuada pelo cálculo da quantidade de acres em algodão e milho alocados a cada escravo de roça. Nas regiões mais produtivas, como as terras aluviais da Louisiana, essa proporção chegou a inacreditáveis 12 acres de algodão e 8 acres de milho por trabalhador. Na cafeicultura escravista, a mensuração baseava-se na proporção pés de café por escravo de roça. Enquanto, no Caribe do século XVIII e no começo do século XIX, essa proporção girou entre mil e 2 mil pés de café por escravo, em meados da década de 1850 ela havia atingido nas zonas mais produtivas do Brasil a marca de 4 mil a 5 mil pés. O aumento constante da carga de trabalho coletivo no amanho dos campos de algodão e nos cafezais significava que mais produto teria que ser colhido na safra. A estratégia administrativa empregada para dar conta do gargalo da colheita consistiu em individualizar o controle do trabalho escravo. Tratava-se de um sistema de tarefas que combinava o estabelecimento de cotas mínimas quantificadas individualmente ao término de cada jornada, e que eram estabelecidas conforme um cálculo que procurara ajustar o volume total de algodão/café a ser colhido à destreza, à capacidade e ao histórico de colheita cada escravo. A avaliação do cumprimento ou não das cotas mínimas era combinada com um perverso sistema de incentivos negativos (castigos físicos se a cota não fosse atingida) e de incentivos positivos (pequenas recompensas monetárias em caso de colheita extra). No caso do algodão, essa estratégia gerencial, que se casou com a invenção de novas variedades mais fáceis de serem colhidas, permitiu que a capacidade de colheita individual aumentasse por quatro entre 1820 e 1860; no caso do café, a capacidade da colheita no Brasil se tornou, na década de 1850, três vezes superior ao que havia sido no Caribe em 1790.26 26. John Hebron Moore, Agriculture in Antebellum Mississippi (1958). New York: Octagon Books, 1971, p. 112; Reinhold Teuscher, Algumas Observações sobre a Estadistica Sanitária dos Escravos em Fazendas de Café. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const.de J.Villeneuve e Comp., 1853,p. 4; Alan L. Olmstead and Paul W. Rhodes, Creating Abundance: Biological Innovation and American Agricultural Development. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, pp. 98-133; Walter Johnson, River of
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Em meados do século XIX, o Sul dos Estados Unidos demonstrava um grau de desenvolvimento econômico (medido em termos de rede de transporte, de manufaturas, sistema financeiro, urbanização, capacidade produtiva total) bem mais acentuado do que o Império do Brasil. Isso se devia, em grande parte, ao papel estratégico que o algodão ocupava na economia-mundo industrial; o café, não obstante a massificação ocorrida na sua cadeia mercantil, continuava a ser um estimulante a ser consumido de manhã e entre as refeições. A assimetria, no entanto, não impediu que os vínculos entre as duas sociedades escravistas se aprofundassem na década de 1850. Como se leu no capítulo 4, o principal mercado para os cafeicultores brasileiros estava nos Estados Unidos, que pagavam essas importações com os recursos obtidos com as exportações de algodão para a Europa. Após o encerramento do tráfico transatlântico negreiro para o Brasil, em 1850, fruto da escalada da pressão militar-naval britânica, os Estados Unidos forneceram o modelo para a cafeicultura continuar a se expandir (via tráfico interno e reprodução vegetativa dos escravos). Acima de tudo, o poder que os senhores de escravos do Sul exerciam na federação norte-americana significava que os senhores de escravos brasileiros poderiam contar com um forte muro de contenção ideológica para sua instituição no sistema interestatal.27 Dark Dreams. Slavery and Empire in the Cotton Kingdom. Cambridge, MA: Belknap Press, 2013, pp. 151-175; Edward E. Baptist, “Toward a Political Economy of Slave Labor: Whipping-Machines, and Modern Power”, In: Sven Beckert and Seth Rockman (org.), Slavery’s Capitalism. A New History of American Economic Development. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016; Baptist, The Half Has Never Been Told, pp. 111-114; Rafael de Bivar Marquese, “Diáspora africana, escravidão e a paisagem da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba oitocentista”, Almanack Braziliense. 7: 138-152, maio de 2008; Rafael de Bivar Marquese, “O Vale do Paraíba Cafeeiro e o Regime Visual da Segunda Escravidão: caso da Fazenda Resgate”, Anais do Museu Paulista, Vol. 18, n. 1, 2010, pp. 83-128. 27. Para uma esclarecedora comparação do desempenho das duas economias, ver Richard Graham, “Economics or Culture? The Development of US South and Brazil in the Days of Slavery”, In: Kees Gispen (org.), What Made the South Different? Jackson: University Press of Mississippi, 1990, pp. 97-124. Para os demais temas, Robert W. Slenes, “The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888: Regional Economies, Slave Experience, and the Politics of a Peculiar Market”, In: Walter Johnson (org.), The Chattel Principle: Internal Slave Trades in the Americas, New Haven: Yale University Press, 2004, pp. 324-370; Rafael de Bivar Marquese, Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 259-298; Ricardo Salles, E o Vale era o escravo – Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, pp. 237-271; Marquese & Parron, “Internacional escravista”.
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Esse muro, contudo, ruiu em 1861, em grande parte devido a dois limites estruturais da “Internacional Escravista”. Por um lado, o imperialismo escravista do Sul, expresso na anexação do Texas, nos projetos para fazer o mesmo com Cuba ou para abrir o Vale Amazônico despertava profunda resistência nas cortes do Rio de Janeiro e de Madrid; afora isso,os Estados Confederados da América necessitavam, em sua luta contra a União, o suporte diplomático da Grã-Bretanha e da França e não as simpatias escravistas de poderes de segunda ordem como Brasil e Espanha. Por outro lado, o Sul se lançou à guerra contando com a diplomacia do King Cotton. Após os anos críticos do início do conflito, no entanto, os setores industriais do Atlântico Norte conseguiram encontrar outras fontes de matéria-prima algodoeira (dentre as quais, no próprio Brasil escravista), comprometendo assim a posição econômica e diplomática dos CSA. No fim das contas, o que os sulistas tomavam como expressões de sua força – o domínio sobre o mercado mundial de algodão e o expansionismo territorial – eram, em realidade, manifestações de sua fraqueza.28 Com a queda do muro sulista, iniciou-se a cadeia de eventos da crise global da Segunda Escravidão. IV. A composição da classe senhorial no Brasil e suas relações com a política da escravidão no plano imperial eram distintas do arranjo político federal norte-americano e da natureza do poder que os sulistas exerceram durante a República antebellum. Os interesses escravistas articulados em torno do complexo cafeeiro do Centro-Sul haviam sido decisivos para a construção institucional do Segundo Reinado na virada para a década de 1840, mas não se pode afirmar que o imperador e os grupos dirigentes imperiais sempre obedeceram à plataforma política imediata dos senhores de escravos. Em 1850, por exemplo, sob a ameaça de guerra contra a Grã-Bretanha, o Partido da Ordem – o esteio político da Segunda Escravidão no Império do Brasil – não se furtou a encerrar o tráfico transatlântico de escravos.29 28. Marquese & Parron, “Internacional escravista”. 29. Sobre as relações entre estrutura política imperial do Segundo Reinado e a estrutura escravista brasileira, ver Jeffrey Needell, The Party of Order. The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006; Ricardo Salles, “O Império do Brasil no contexto do século XIX. Escravidão nacional, classe senhorial e intelectuais na formação do Estado”, Almanack, 4: 5-45, 2012; Alain El Youssef, Bruno Fabris Stefanes and Tâmis Parron, “Vale Expandido: contrabando negreiro, consenso e regime representativo no Império
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Uma cisão mais profunda entre dirigentes imperiais e senhores de escravos ocorreu no final da década de 1860. Com efeito, a gênese do projeto da Lei do Ventre Livre nasceu da leitura que D. Pedro II e o Conselho de Estado fizeram da nova conjuntura internacional que se seguiu ao fim da Guerra Civil norte-americana, e de suas implicações com a coincidência temporal do início da Guerra do Paraguai. Na correspondência diplomática, nos debates promovidos no Conselho de Estado, na imprensa e no parlamento tornou-se crescente a percepção de um duplo isolamento do Império do Brasil. Primeiro isolamento: após 1865, tratava-se do único país independente do hemisfério ocidental a manter a escravidão negra. Segundo isolamento: no curso da Guerra do Paraguai, as dificuldades para se montar um exército nacional com base nas peculiaridades do edifício escravista brasileiro tornaram-se explícitas, bem como o fato de que, na nova onda de republicanismo que a vitória da União estimulara em todo o hemisfério, cristalizou-se a imagem do Império do Brasil perante seus aliados (Uruguai e Argentina) e seu inimigo (Paraguai) como um completo estranho no ninho americano.30 Evidentemente, dentro do Brasil essa última imagem estava longe de prevalecer entre os agentes políticos, notadamente em vista do grande prestígio de que ainda gozava a fórmula da monarquia constitucional. Não por acaso, a fundação do primeiro partido republicano no Brasil se deu apenas em 1873. Mas, no caso da escravidão, a percepção do isolamento calou fundo, estimulando, além da iniciativa pessoal de D. Pedro II em encaminhar uma solução política para o que então se chamava, eufemisticamente, de “questão servil”, a articulação pioneira de um campo
do Brasil”, In: Mariana Muaze and Ricardo Salles (org.), O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos Quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015, pp. 130-156. Sobre os contrastes entre a política da escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, ver Parron, A política da escravidão na era da liberdade, pp. 349-451. 30. Sobre o primeiro assunto, ver Rafael Marquese, “A Guerra Civil norte-americana e a crise da escravidão no Brasil”, Afro-Ásia (UFBA), 51: 37-71, 2015. Sobre os impactos da Guerra do Paraguai para a escravidão brasileira, ver Ricardo Salles, Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990; Wilma Peres Costa, A espada de Dâmocles. O Exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do Império. São Paulo: Hucitec, 1996. Para um estudo que compara o recrutamento de ex-escravos pelo Exército brasileiro e norte-americano no curso da Guerra do Paraguai e da Guerra Civil, ver Vitor Izecksohn, Slavery and War in the Americas: Race, Citizenship, and State Building in the United States and Brasil, 1861-1870. Charlottesville: University of Virginia Press, 2014.
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abolicionista na política imperial. Pode-se afirmar, aliás, que o projeto de lei que o gabinete do Visconde do Rio Branco apresentou ao Parlamento imperial na abertura dos trabalhos legislativos de 1871 respondia em parte a essa maré ascendente do antiescravismo, ao procurar contê-la por meio de uma medida eminentemente gradualista. A reação dos interesses escravistas foi imediata. Os fazendeiros de café do Centro-Sul do Brasil, que vinham mantendo parcialmente o estoque de trabalhadores escravizados de suas plantations por meio da reprodução vegetativa, viram no projeto de lei que libertava o ventre das escravas uma ameaça direta ao futuro econômico da atividade. Em 1871, por meio de seus representantes parlamentares, foram encaminhadas à Câmara dos Deputados e ao Senado Imperial mais de 30 representações de corporações de classe, cidades e vilas do Centro-Sul cafeeiro contra as disposições do projeto de ventre livre. Na balança imperial, contudo, o lugar político dos cafeicultores estava sendo erodido pela própria força econômica de sua atividade. O tráfico interno nas décadas de 1850 e 1860, que canalizara os escravos para as prósperas regiões cafeeiras do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, diminuíra o comprometimento com a instituição nas províncias vendedoras de cativos. Foi com o voto delas, contra o voto das províncias cafeeiras, que se aprovou a libertação do ventre escravo em setembro de 1871.31 A aprovação da Lei do Ventre Livre na conjuntura específica do mercado global do café que se abriu no começo da década de 1870 teve grandes implicações para a conformação da natureza da crise da escravidão no Brasil. Vejamos a questão primeiramente a partir da esfera do consumo, examinando a posição dos Estados Unidos nas importações de café conforme os dados da tabela abaixo:
31. Marquese, “Guerra Civil”, 40-50; Robert Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888 (1a ed: 1973; trad. port). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976; Needell, The Party of Order, 272-314; Salles, E o Vale era o Escravo, 237-271; Ângela Alonso, Flores, Balas e Votos. O movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015; Bruno da Fonseca Miranda, O Vale do Paraíba Cafeeiro contra a Lei do Ventre Livre, 1865-1871. Dissertação de Mestrado em História Social, Universidade de São Paulo, 2018.
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Os mercados cafeeiros do Brasil e dos EUA, 1871-1905 (média anual por quinquênio) Quinquênio 1871-1875 1876-1880 1881-1885 1886-1890 1891-1895 1896-1900 1901-1905
Brasil nas exportações mundiais (%) 50,13 47,61 51,83 56,80 57,13 62,39 73,84
EUA nas importações mundiais (%) 31,25 34,87 37,71 38,05 40,21 42,10 46,80
Produção do globo (toneladas) 426.000 512.400 600.960 538.320 634.080 888.360 1.032.360
Fontes: Mauro Rodrigues da Cunha, “Apêndice Estatístico”, In: 150 anos de café, E. Bacha and R. Greenhill. Rio de Janeiro: Marcellino Martins and E. Johnston, 1992, tabelas 1.7 e 2.2; Mario Samper and Radin Fernando, “Appendix: Historical Statistics of Coffee Production and Trade from 1700 to 1960”, In: William Gervase Clarence-Smith & Steven Topik (org.), The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 417.
Uma rápida leitura desses números permite notar como o aumento constante da participação dos Estados Unidos nas compras de café no mercado mundial se fez acompanhar pelo aumento igualmente constante da produção global do artigo, salvo uma breve regressão temporária no quinquênio 1886-1890. Entre 1871 e 1905, a ampliação do mercado norteamericano de café ocorreu tanto em termos absolutos como em termos relativos. O volume de importação total mais que triplicou nesse período, enquanto o consumo anual per capita saltou de 6 libras para 13 libras. Três variáveis são importantes para compreender esses movimentos. Em 1872, os Estados Unidos voltaram à sua política histórica de tax free para o artigo (primeira variável), no exato momento em que o crescimento demográfico, a difusão da agricultura comercial ao oeste do Mississippi, no Sul postbellum, na costa Oeste, e a consolidação do cinturão manufatureiro na faixa da Nova Inglaterra ao Meio Oeste ampliavam notavelmente a base dos consumidores do artigo (segunda variável). Mas, para a duplicação do consumo per capita, uma terceira variável foi importante: a transformação de fundo nas estratégias de comercialização e preparação do produto para a venda final. “Nas quatro décadas posteriores à Guerra Civil”, esclarece o historiador Michael F. Jiménez, “o café adquiriu um nicho seguro nos hábitos de consumo de um Estados Unidos em contínuo processo de
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expansão continental e industrial”, valendo-se para tanto de inovações como a introdução de embalagens de papel para a venda, no varejo, de café já torrado e moído, e a criação de marcas registradas, com várias firmas operando na importação e distribuição por atacado em escala nacional. Todas essas transformações no mercado consumidor do café, que a rigor aprofundaram tendências desenhadas desde a década de 1830, foram parte constitutiva importante da profunda reconfiguração do tecido social e econômico norte-americano que se seguiu à Reconstrução, lastreada na generalização das relações de mercado capitalistas e sua imposição indelével na reprodução da vida cotidiana, em todos os estratos sociais.32 A despeito do comportamento cíclico próprio ao mercado cafeeiro e da baixa geral dos preços agrícolas durante a chamada Long Depression, os preços do café mantiveram tendência de alta entre 1873 e 1895. Isso foi resultado, em grande parte, das restrições da oferta. Na década de 1870, a terceira maior produtora mundial, a colônia inglesa do Ceilão, foi forçada a sair do mercado pelo impacto devastador da praga da ferrugem (Hemileia vastatrix), que também atingiu o segundo mais produtor, a colônia holandesa de Java, na década seguinte. As Índias holandesas, nesse momento, enfrentavam igualmente a crise do Cultivation System. O lugar antes ocupado no mercado mundial pelos produtores do Oceano Índico só seria completamente preenchido pelos produtores da América Central e do Sul (Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Honduras, Venezuela, Colômbia) na passagem para o século XX.33 Quanto ao colosso cafeeiro do Atlântico
32. Michael F. Jiménez, “‘From Plantation to Cup’: Coffee and Capitalism in the United States, 18301930”, In: W. Roseberry, L. Gudmundson e M. Samper Kutschbach (org.), Coffee, Society and Power in Latin America. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1995, p. 40. Sobre as transformações econômicas e sociais mais amplas, ver Hahn, A Nation Without Borders, pp. 317-361. 33. Sobre o comportamento cíclico dos preços do café, ver Antônio Delfim Netto, O problema do café no Brasil (1958). São Paulo: Unesp-Facamp, 2009, pp. 20-21, e Edmar Bacha, “Política Brasileira do café: uma avaliação centenária”, In: 150 anos de café, Edmar Bacha and Robert Greenhill. Rio de Janeiro: Marcellino Martins and E. Johnston, 1992, p. 20. Sobre a crise do Ceilão e de Java, ver Roland Wenzlhuemer, From Coffee to Tea Cultivation in Ceylon, 1880-1900. An Economic and Social History. Leiden: Brill, 2008, pp. 53-74; James S. Duncan, In the Shadows of the Tropics. Climate, Race and Biopower in the Nineteenth Century Ceylon. Aldershot: Ashgate, 2007, pp. 169-188; Jan Breman, Mobilizing Labour for the Global Coffee Market. Profits from an Unfree Work Regime in Colonial Java. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2015, pp. 331-335; William Gervase Clarence-Smith, “The Coffee Crisis in Asia, Africa, and the Pacific, 1870-1914”, in The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989, In: William Gervase Clarence-Smith & Steven Topik (org.), The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989. Cambridge: Cam-
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Sul, as taxas assombrosas de crescimento verificadas na primeira metade do século XIX diminuíram de intensidade: se as exportações cafeeiras do Brasil saltaram de um patamar de 174 mil toneladas/ano no quinquênio de 1871 a 1875 para 322 mil toneladas entre 1881 e 1885, no quinquênio 1886-1890 elas estacionaram em 221 mil toneladas. O momento crítico se deu em 1888, quando foram exportadas apenas 206 mil toneladas de café. Não por acaso, o ano em que a escravidão foi abolida.34 Nessa oscilação conjuntural das exportações cafeeiras, observam-se algumas das forças históricas constitutivas da crise da escravidão brasileira. Os padrões de administração do trabalho e da paisagem que haviam garantido o domínio do Brasil sobre o mercado mundial do café tinham por consequência um ritmo assustadoramente veloz de esgotamento dos recursos ambientais. De fato, já em meados do século XIX era possível observar o caráter itinerante da cafeicultura brasileira, isto é, a existência em um dado momento de zonas que poderiam ser classificadas como de fronteira, altamente produtivas e para onde a atividade estava se deslocando, zonas maduras, onde ela se encontrava estabelecida há certo tempo em patamares médios de produtividade, e zonas decadentes, onde era visível a queda de rendimento. Como as zonas decadentes eram as mais próximas dos portos de exportação, elas mantinham certas vantagens comparativas em termos dos custos de transporte. Por outro lado, a fronteira em constante deslocamento, com volumes crescentes de grãos em razão da maior produtividade dos pés, tendia a pressionar o sistema de transporte – até a década de 1860, inteiramente baseado em mulas.35 O problema dos custos do transporte na cafeicultura brasileira tornou-se agudo na década de 1850. A única solução viável estava no desenvolvimento da malha ferroviária. Para além da carência de capitais, o principal obstáculo bridge University Press, 2003, pp. 100-119; McCook, “Global rust belt”. Sobre a ascensão dos produtores da América Latina, ver Robert G. Williams, States and Social Evolution. Coffee and the Rise of National Governments in Central America/ Chapel Hill: the University of North Carolina Press, 1994, pp. 28-40; Marco Palacios, El Café en Colombia, 1850-1870. Una historia económica, social y política. Bogotá: Editorial Planeta, 2002, p. 71; William Roseberry, Coffee and Capitalism in the Venezuelan Andes. Austin: University of Texas Press, 1983, pp. 70-77. 34. Samper and Fernando, “Appendix: Historical Statistics”, p. 433. 35. Sobre o caráter itinerante da cafeicultura brasileira, ver Antônio Barros de Castro, Sete ensaios sobre a economia brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1971, vol. 2, pp. 60-61. Sobre os demais assuntos tratados neste e nos próximos dois parágrafos, ver Marquese, “Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira do Brasil”, pp. 304-312.
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para sua montagem era a dificuldade de subir as abruptas escarpas da Serra do Mar. Superado o desafio com as novas técnicas criadas na Europa e nos Estados Unidos para o enfrentamento de serras e cordilheiras, no início da década de 1870 finalmente os trilhos ferroviários passaram a servir o Vale do Paraíba ocidental, a zona mais antiga de exploração cafeeira no Brasil, com problemas ambientais evidentes, mas bem abastecida com escravos, e, quase ao mesmo tempo, as fronteiras cafeeiras do Oeste de São Paulo, mais produtivas, porém com menor disponibilidade local de escravos. A chegada simultânea das ferrovias a essas regiões gerou efeitos distintos: nas zonas maduras e decadentes, o rebaixamento dos custos de transporte acelerou a exploração dos recursos naturais existentes; nas zonas de fronteira, ele valorizou as terras cafeeiras, acentuando no entanto a demanda por trabalhadores escravizados. Na década de 1870, esse novo problema foi resolvido por meio do tráfico interno. De fato, esse decênio representou o pico da atividade, com quase 100 mil escravos deslocados para as zonas cafeeiras do centro sul do Brasil. Em número insuficiente para responder às demandas do mercado mundial por mais produto, esses cativos foram obrigados por seus senhores a cultivarem mais pés de café, vivenciando assim taxas crescentes de exploração de seu trabalho. O dinamismo econômico da cafeicultura (uma herança das forças históricas da Segunda Escravidão) nessa conjuntura política e social específica (de crise da Segunda Escravidão) acabou por gerar tendências contraditórias que minaram os próprios fundamentos da instituição do cativeiro no Brasil. A primeira delas foi o aumento das manifestações de resistência coletiva dos escravos, diante das duras condições de trabalho nas novas fazendas da fronteira. A segunda, o aparecimento do movimento abolicionista. O campo antiescravista brasileiro havia entrado em hibernação após a aprovação da Lei do Ventre Livre. Tornada peça de resistência senhorial sob o argumento de que a medida de 1871 deveria representar a última palavra do Estado imperial em termos de regulação das relações escravistas, as frustrações com ineficácia da lei para desmontar paulatinamente a escravidão impulsionaram, a partir de 1879, a articulação do abolicionismo em escala nacional. A suspensão do tráfico interprovincial de escravos para o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, em 1881, foi uma medida de ocasião tomada pelos representantes provinciais dos senhores de escravos para solucionar o problema da resistência escrava, silenciar os abolicionistas e, sobretudo, para manter o compromisso nacional com a instituição. A experiência pregressa
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dos Estados Unidos, afinal, demonstrava de forma cabal os riscos em se permitir que a escravidão virasse matéria seccional, e não nacional, em um ambiente político com a presença atuante de um movimento abolicionista. As dificuldades trazidas para a cafeicultura pela proibição do tráfico interprovincial de escravos em 1881 se desdobraram nos resultados das exportações do quinquênio seguinte. Novos pés de café demoram cinco anos para entrar em plena produção. O desempenho ruim das exportações a partir de 1886, por conseguinte, lança luz sobre os problemas que os cafeicultores das fronteiras do Oeste Novo de São Paulo (a zona responsável pela expansão do parque produtivo) enfrentaram entre 1881 e 1885 para mobilizar mais trabalhadores. Para além disso, devemos mirar o momento “bala” do abolicionismo brasileiro. Como resultado de uma nova estratégia de radicalização, após enfrentarem nova frustração diante da política gradualista do campo pró-escravista (Lei Saraiva-Cotegipe, de 1885, que libertava apenas os sexagenários, com perspectiva de indenização aos senhores), os militantes abolicionistas dos meios urbanos conseguiram estabelecer uma aliança bem sucedida com os trabalhadores escravizados das fazendas. Em fins de 1887, a situação nas regiões cafeeiras era claramente revolucionária, com fugas em massa organizadas pelos abolicionistas, motins de escravos, assassinatos de senhores e feitores, linchamentos de cativos e de abolicionistas. Muitos fazendeiros responderam ao colapso próximo da escravidão prometendo a seus trabalhadores liberdade em troca de contratos longos, de modo a garantir os braços necessários para as colheitas vindouras. O 13 de maio de 1888, abolindo a escravidão de imediato e sem indenização, foi decisivo para a quebra da safra cafeeira naquele ano.36 Em resumo, os impasses da cafeicultura escravista brasileira nas décadas de 1870 e 1880 se relacionaram diretamente, em um duplo sentido, às transformações políticas e econômicas da Reconstrução nos Estados Unidos. Primeiro, a ampliação notável do maior mercado consumidor mundial de café, em uma conjuntura na qual os produtores da Ásia estavam saindo do mercado enquanto os produtores da América Latina ainda não haviam ocupado o nicho por eles deixado, manteve os preços do café em alta,
36. A expressão momento “bala” é de Alonso, Flores, Votos e Balas, pp. 304-329. Ver, no capítulo 3 deste livro, o tratamento pioneiro que Emília Viotti da Costa deu à aliança entre abolicionistas e escravos, além do trabalho posterior, mais abrangente, sobre a revolução de 1887-1888, de Robert Brent Toplin, The Abolition of Slavery in Brasil. New York: Atheneum, 1975, pp. 178-246.
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estimulando a expansão da atividade no Brasil, que aliás contava com novos meios de transporte para incorporar novas zonas de fronteira. Segundo, em razão dos resultados da Guerra Civil norte-americana, as condições sociais, políticas e econômicas de reprodução em escala ampliada da escravidão brasileira haviam sido definitivamente alteradas. O que ocorrera nos Estados Unidos entre 1861 e 1865, e o que estava ocorrendo desde então com as dificuldades para a recomposição das relações de trabalho nas plantations algodoeiras ajudaram a formatar a percepção dos fazendeiros brasileiros sobre a crise da escravidão brasileira. É importante lembrar que até, meados da década de 1880, os retornos obtidos com investimentos em escravos para a produção cafeeira mantiveramse relativamente inalterados. Não é na dimensão microeconômica que a crise pode ser identificada, mas sim na tomada de consciência, pelos diversos atores sociais do período (senhores, escravos, libertos e homens livres, intelectuais, políticos etc.), de que o mundo que fora construído na primeira metade do século XIX estava em processo de rápida transformação. Um dos melhores documentos para aferir essa percepção são as atas do Congresso Agrícola que aconteceu no Rio de Janeiro entre 8 e 10 julho de 1878, a partir de uma convocação do ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império do Brasil, visconde de Sinimbu. Com 456 fazendeiros inscritos, dos quais 279 estiveram presentes na capital imperial, o congresso teve o objetivo de identificar, por meio de exaustivos debates com os representantes da classe senhorial, quais seriam as soluções possíveis para o quadro de crise da escravidão brasileira. Todas as alternativas discutidas naqueles três dias (manutenção indefinida da instituição, conforme as diretrizes de sua “morte natural” previstas pela Lei do Ventre Livre; parceria com os ex-escravos, em caso de abolição; emprego em larga escala do trabalhador livre nacional; engajamento de trabalhadores asiáticos sob contrato; imigração europeia) foram condicionadas pela percepção de que ocorrera uma profunda virada no tempo histórico entre 1865 e 1871. O discurso de um fazendeiro do Vale do Paraíba fluminense é bastante significativo quanto a isso: que o país está em uma época de transição criada pela lei de 28 de setembro de 1871, ninguém o negará. A extinção da escravatura entre nós é questão de tempo. Temos necessidade de cuidar dessa passagem para outro estado, no modo de atrair gente moralizada que venha interpor-se entre nós e os indivíduos que hão de deixar o serviço, sequiosos de liberdade, para não termos
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as cenas dos Estados Unidos, para preservar-nos das loucuras e dos insultos que puderem aparecer.37
Foi no sentido identificado por esse fazendeiro – a desordem para as plantations que poderia advir do fim do cativeiro, caso medidas preventivas não fossem tomadas – que a experiência de reconfiguração das relações de trabalho no Sul dos Estados Unidos se tornou parte constitutiva da experiência da crise da escravidão no Brasil. Para os homens, mulheres e crianças que foram libertados em 1865, o regime de trabalho que trouxera o sucesso do Sul dos Estados Unidos no mercado mundial do algodão (fundando em estrito controle espacial, na ausência completa de autonomia para regular a alocação do tempo pessoal e familiar e, acima de tudo, em uma carga assombrosa nos campos de trabalho de algodão, extraída por meio de um sistema brutal de supervisão e coerção física) constituía a antítese mais acabada do que eles e elas entendiam pelo conceito de liberdade. “Sequiosos de liberdade”, os ex-escravos rejeitavam de modo cabal o sistema de gestão do processo de trabalho vigente sob a escravidão. Daí as expectativas negativas de todos os agentes empresariais ligados à cadeia mercantil do algodão quanto às possibilidades de recuperação imediata da economia algodoeira do Sul. A avaliação era que, se os libertos obtivessem acesso à terra, e se não houvesse coerção extraeconômica deles, o Sul seguiria o caminho das West Indies britânicas após 1838.38 Eram exatamente esses dois problemas (manutenção do princípio da “grande lavoura” e garantia de trabalho disciplinado no mundo pós-escravidão) que, na década seguinte, afligiriam o fazendeiro no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro. 37. João Baptista Braziel, “1a Sessão em 8 de julho de 1878”, In: Congresso Agrícola. Edição fac-similar dos anais do Congresso Agrícola, realizado no Rio de Janeiro, em 1878. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 142. Sobre a lucratividade da cafeicultura escravista na década de 1880, ver Pedro Carvalho de Mello & Robert W. Slenes, “Análise econômica da escravidão no Brasil”, In: Paulo Neuhaus (org.), Economia brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Campus, 1980, pp. 89-122. Como lembra o saudoso István Jancsó ao tratar de outra crise, ela “não aparece à consciência dos homens como modelo em vias de esgotamento, mas como percepção da perda de operacionalidade de formas consagradas de reiteração da vida social. Em outras palavras, é na busca de alternativas que a crise se manifesta, é nela que adquire efetiva vigência”. I. Jancsó, Na Bahia, contra o Império. História do Ensaio de Sedição de 1798. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 203. 38. Gerald David Jaynes, Branches Without Roots. Genesis of the Black Working Class in the American South, 1862-1882. Oxford: Oxford University Press, 1986, pp. 9-15; Eric Foner, Reconstruction. America’s Unfinished Revolution, 1863-1877. New York: Harper & Row, 1988, pp. 124-175; Foner, Nothing But Freedom; Beckert, Empire of Cotton, 274-76.
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Poucos atores políticos no campo vitorioso da causa da União e da abolição esposaram a plataforma de uma reforma agrária radical, e infelizmente ela foi logo colocada de lado como uma possibilidade real. Quanto à coerção extraeconômica, o projeto de transformá-la em regra no Sul postbellum foi bastante concreto. A aprovação durante a Reconstrução Presidencial dos Black Codes estaduais, que procuravam manter a espinha vertebral do antigo sistema de gestão escravista para que os ex-escravos se assalariassem compulsoriamente nas plantations algodoeiras, acendeu o sinal de alarme dos radicais republicanos, e encontrou viva resposta dos trabalhadores rurais agora livres. O início da Reconstrução Radical, os anseios dos exescravos por autonomia e o problema estrutural do sistema de crédito no Sul postbellum soterraram o caminho do assalariamento coercitivo. A lógica camponesa de trabalho partilhada pela comunidade escravizada, sobretudo o que ela significava em termos de controle dos tempos de trabalho e de descanso, isto é, de trabalho autônomo, esmagada sob a escravidão, aflorou com força após 1865. Essa lógica esteve no cerne das dificuldades encontradas pelos ex-senhores para recompor os padrões prévios de trabalho da época da escravidão. O caminho alternativo que eles adotaram para manter a autoridade administrativa relativamente centralizada consistiu na divisão da força de trabalho liberta em gangs separadas e independentes umas das outras, os chamados squads, arregimentados por capatazes que agiam como intermediários entre empregador e empregado. O problema gerencial, contudo, continuou. Além de adquirirem autonomia no estabelecimento das normas de trabalho e de disciplina, os squads se destacaram pela redução da oferta de trabalho potencial aos planters com a retirada de mulheres e crianças de sua composição. Sem acesso imediato à propriedade da terra, barrado pela derrota do projeto de reforma agrária, a preferência clara dos ex-escravos na negociação com os planters algodoeiros era pelo sistema de arrendamento sob parceria, no qual as decisões de alocação do tempo e do trabalho familiar caberiam exclusivamente a eles. A passagem definitiva dos squads para o sistema de parceria (sharecropping) organizado em núcleos familiares se completou no começo da década de 1880, e o que emergiu desse processo conflituoso foi a quebra profunda de todo o esquema de administração centralizada do processo de trabalho algodoeiro dos tempos da escravidão.39 39. Jaynes, Branches Without Roots, pp. 93-190; Gavin Wright, Old South, New South. Revolutions in the Southern Economy Since the Civil War. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1986, pp. 84-90.
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O colapso do sistema de crédito antebellum, fundado na securitização das dívidas por meio da hipoteca em seres humanos escravizados, foi, ao lado da ideologia do trabalho familiar que moveu os ex-escravos, a outra variável decisiva para o estabelecimento da parceria. Após 1865, os planters simplesmente não tinham os meios financeiros – o crédito – para estabelecer um sistema de assalariamento sólido, e, assim sendo, só tiveram como alternativa aceitar o sistema de parceria. No entanto, nas condições cambiantes da economia global do algodão e da correlação social de forças locais da segunda metade da década de 1870, o que antes era desvantagem, tornou-se vantagem para o planter. Conforme os termos do arranjo de parceria, nos momentos de retração dos preços do algodão, o parceiro (share tentant) partilharia os prejuízos com o planter. Para os agricultores negros saídos da escravidão, a Depressão de 1873 acabou convertendo a conquista do sharecropping em derrota, uma relação na qual se viram cada vez mais submetidos às relações de endividamento. Em regiões como a fronteira do Delta do Mississippi, o enorme avanço da produção algodoeira na década de 1880 já se deu fundado em um padrão cada vez mais próximo da proletarização assalariada com pagamento em espécie do que da independência camponesa do arrendatário clássico.40 A recomposição do poder político regional dos planters no final da década de 1870, com o colapso do Partido Republicano no Sul e o fim da Reconstrução Radical, facultou-lhes a construção de um quadro legal crescentemente coercitivo para os parceiros negros que recebiam em espécie ou em produto. A incrível recuperação e expansão algodoeira postbellum, contudo, não veio do trabalho dos libertos e seus descendentes. Os níveis de exploração vigentes na época da escravidão, medidos pela área de cultivo alocada a cada trabalhador de roça e pela capacidade de colheita individual de algodão, haviam ficado definitivamente no passado. O crescimento algodoeiro durante a Era da Reconstrução ficou a cargo dos pequenos fazendeiros e arrendatários brancos do Upcountry que, devastados pela Guerra Civil, viram-se compelidos, para obter dinheiro, a abandonar os cultivos de autosubsistência pela produção comercial do algodão, caindo assim nas mesmas redes de endividamento que pressionavam os agricultores negros. Em 1880, 40. Jaynes, Branches Without Roots, 31, 49, 218; Foner, Reconstruction, 409; James C. Cobb, The Most Southern Place on Earth. The Mississippi Delta and the Roots of Regional Identity. Oxford: Oxford University Press, 1992, pp. 82-101.
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os pequenos produtores brancos do Sul já eram responsáveis por 44% da oferta de algodão. O avanço de seus cultivos permitiu que, dez anos depois, a produção total norte-americana fosse o dobro do que havia sido em 1891. Nessa altura, tanto os pequenos agricultores brancos como os grandes proprietários rurais do Sul (landlords) que arrendaram suas terras aos parceiros negros se encontravam subordinados, ainda que de forma assimétrica, às forças econômicas do Norte. O mesmo mercado interno norte-americano que absorvia quantidades crescentes do café brasileiro era, agora, o principal comprador do algodão sulista, bem como sua principal fonte de crédito. Para os landlords reafirmarem seu poder regional após 1877, eles tiveram que se submeter, no plano nacional, ao domínio político e econômico dos interesses industriais e financeiros que haviam vencido a Guerra Civil, em uma completa inversão do que fora a balança Região-União antes de 1861.41 V. Como parte de um processo histórico combinado, porém desigual, a década de 1880 marcou a congruência temporal entre a sedimentação do sharecropping como trabalho proletarizado no Sul dos Estados Unidos (parte constitutiva essencial da reconfiguração da economia nacional norteamericana que emergira da Reconstrução) e a cristalização de uma alternativa para o trabalho livre na fronteira cafeeira escravista do centro-sul do Brasil. Na conjuntura crítica da década de 1870, os fazendeiros do Oeste de São Paulo gestaram, a partir de uma experiência fracassada com um sistema de parceria que precedeu a Reconstrução norte-americana, uma forma completamente nova de organização do trabalho, o colonato. Ainda que bem distinto do sharecropping sulista, ambas as estratégias procuraram saídas para uma mesma questão: como recuperar, na realidade pós-escravidão, os padrões elevados de exploração do trabalho da época da escravidão? O colonato resolveu de forma notável, para o café, todos os problemas que os planters algodoeiros do Sul dos Estados Unidos tiveram que enfrentar após 1865, ao manter, com trabalho livre, algumas das características centrais da organização do processo de trabalho e da administração da paisagem criadas décadas antes para o emprego de trabalho escravo. 41. Beckert, Empire of Cotton, 289-292; Wright, Old South, New South, 34-35, 107; Foner, Reconstruction, 392-409; Harold Woodman, “The Political Economy of the New South: Retrospects and Prospects”, The Journal of Southern History, 67 (4): 789-810, 2001.
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Para descrever a natureza desse novo arranjo, devemos voltar às pinturas que abriram este capítulo. Nas obras sobre a fazenda Santa Gertrudes que foram expostas em Saint Louis em 1904, Antonio Ferrigno ofereceu ao observador algumas indicações sobre como o trabalho passou a ser organizado nas fazendas de café de São Paulo após a abolição da escravidão, representando-o visualmente sob forte roupagem ideológica. O primeiro quadro da série (imagem 3) abordou a capina das ruas de um cafezal em plena florada. Reconhecida pelos observadores da cafeicultura em todos os quadrantes do globo como a época mais bela de uma plantação, a produção mercantil transmutava-se aqui em valor estético: pela intensidade e duração da florada, era possível avaliar o volume de grãos da safra que se aproximava. Separando a sede da fazenda – a mancha branca localizada no fundo do vale, atrás do açude – do mar de cafeeiros plantados nas colinas, havia duas longas fileiras de pequenos casebres brancos alinhados: essas eram as colônias, isto é, as moradias destinadas aos trabalhadores rurais submetidos ao regime do colonato.
Imagem 3: Antonio Ferrigno, Florada, Fazenda Santa Gertrudes – Araras, SP, 1903, óleo sobre tela, 100 x 150 cm, Museu Paulista da USP, São Paulo.
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Apartadas do complexo de edificações articulado em torno do quadrilátero dos terreiros (casa de vivenda, engenhos, tulhas), esse padrão de moradia quebrava com o princípio de organização espacial das senzalas do Brasil cafeeiro, construídas desde a década de 1830 no Vale do Paraíba e no Oeste Velho de São Paulo com base em um rígido confinamento dos escravos dentro daquele quadrilátero. Tal fora o modelo de Santa Gertrudes até a década de 1880, quando viviam em suas senzalas mais de duzentos escravos. Em 1903, todas as 170 famílias de colonos livres da fazenda (perfazendo mais de mil pessoas) moravam fora do quadrilátero. A atividade desempenhada pelas três trabalhadoras representadas na pintura sugere tratar-se de trabalho não coletivizado. De fato, pelo arranjo do colonato, cada família de colonos responsabilizava-se pelos cuidados com um “talhão” com no mínimo 2 mil pés e no máximo 15 mil pés de café, a depender do número de “enxadas” disponíveis na família, isto é, de seus adultos e adolescentes aptos ao trabalho. Um homem equivalia a uma “enxada”, para a qual se calculava a capacidade de amanho de 2 mil pés de café; mulheres e adolescentes de até dezesseis anos eram, em geral, reputados como “meiaenxadas”. A tarefa principal estabelecida em contrato era a capinação das ruas de café, de quatro a seis vezes ao ano. Pelo cultivo do talhão, pagava-se um salário fixo anual (em parcelas quinzenais ou mensais) para o cabeça da família, isto é, o chefe da unidade doméstica, sempre um homem. Ferrigno, contudo, escolheu representar apenas três mulheres capinando, sugerindo tratar-se de um mesmo núcleo familiar – esposa, filhas, irmãs.42 As implicações ideológicas da feminização do trabalho na representação visual de Ferrigno são mais explícitas no segundo quadro (imagem 4).
42. Sobre a reconfiguração da moradia dos trabalhadores, ver Vladimir Benincasa, Fazenda paulista: Arquitetura rural no ciclo cafeeiro. Tese de Doutorado em Arquitetura, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, 2007, pp. 277-312; sobre os demais assuntos, Bassanezi, A Fazenda Santa Gerrudes, p. 182; C.F. Van Delden Laërne, Brazil and Java: Report on Coffee-Culture in America, Asia, and Africa. London: W.H. Allen, 1885, pp. 334-35; Thomas H. Holloway, Imigrantes para o café. Café e sociedade em São Paulo, 1886-1934 (trad. port). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1984, pp. 117-118; Verena Stockle and Michael Hall, “A introdução do trabalho livre nas fazendas de café de São Paulo”, Revista Brasileira de História, 6: 80-120, 1983.
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Imagem 4: Antonio Ferrigno, Colheita, Fazenda Santa Gertrudes - Araras, SP, 1903, óleo sobre tela, 100 x 150 cm, Museu Paulista da USP, São Paulo.
Diferentemente do que acontecia no cuidado dos cafezais, organizado a partir de núcleos familiares que se responsabilizavam por uma quantidade fixa de cafeeiros em troca de um pagamento igualmente fixo, na colheita os membros de todas as famílias de colonos (homens, mulheres, adolescentes, crianças) eram mobilizados pela administração, que determinaria quais seriam os cafezais a serem colhidos a cada dia, conforme o andamento dos trabalhos e o grau de maturidade dos grãos nos pés. Ou seja, os talhões capinados separadamente pelas famílias de colonos seriam colhidos coletivamente pelo conjunto da força de trabalho. O que se buscava com isso era estimular a competição entre as famílias para acelerar o ritmo da colheita nos imensos cafezais a perder de vista (em 1903, Santa Gertrudes continha um milhão de pés). Para tanto, empregava-se o sistema de pagamento por peça, isto é, pela quantidade de café colhido individualmente. Na medida em que as sacas em grão ficavam cheias, elas eram entregues ao carroceiro, que dava ao trabalhador um recibo correspondente. Ao término da safra, para receber o pagamento devido o chefe da unidade doméstica mostrava à gerência os recibos de café colhido por todos os membros de sua família. Ferrigno procurou representar cuidadosamente esses elementos da organização
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do trabalho na colheita (o trabalho coletivizado, as famílias inteiras no campo, as sacas sendo preenchidas, as carroças recolhendo as sacas), mas, novamente, a ênfase recaiu sobre as mulheres. A mensagem a ser dada em Saint Louis não carecia de muitas mediações: eram mulheres, pertencentes a núcleos familiares sólidos, que cultivavam o café brasileiro. Mais importante: mulheres brancas, ou seja, nada que lembrasse o recente passado escravista da cafeicultura brasileira.43 Na esfera do processamento dos grãos, Ferrigno optou pela representação de três cenas: a lavagem prévia dos grãos recém-chegados do campo, transportados em carroças, com quatro trabalhadores cuidando dessas tarefas (imagem 5); a secagem do café nos imensos terreiros da sede (à esquerda, veem-se o engenho e a tulha; ao fundo, a casa de vivenda senhorial), efetuada por trabalhadores homens (é possível contar 36 deles na vista de Ferrigno), supervisionados por um capataz (imagem 6); o beneficiamento final, completamente mecanizado (imagem 7). As relações de trabalho na esfera do beneficiamento fugiam do sistema de colonato: todos esses indivíduos eram trabalhadores sazonais da fazenda, contratados por salários fixos somente para o período da safra. Mulheres e crianças não eram mobilizadas para tais atividades. O foco de Ferrigno recaiu sobre a tecnificação do processo produtivo – o objetivo em Saint Louis, afinal, era propagandear a qualidade do café brasileiro. Para dar conta do enorme volume de grãos recolhidos pelo sistema da derriça (ou seja, com a colheita indiscriminada de grãos verdes e maduros), adotava-se em Santa Gertrudes a conjugação simultânea da via úmida (despolpamento imediato, com secagem no terreiro dos grãos em pergaminho) e da via seca (secagem dos grãos no terreiro com polpa e pergaminho). Tal conjugação foi uma inovação da cafeicultura brasileira ainda nos tempos da escravidão, empregada simultaneamente no Vale do Paraíba e no Oeste de São Paulo: ela permitia às grandes fazendas produzirem café de diferentes qualidades – portanto, de diferentes preços – dentro da mesma unidade, maximizando o rendimento do trabalho no campo por meio da alocação de muitos pés de café por trabalhador de roça, e da aceleração da colheita via incentivo monetário.44 43. Bassanezi, A fazenda Santa Gertrudes; Holloway, Imigrantes para o café, pp. 118-19. 44. Sobre a conjugação via úmida e via seca, ver Renata Cipolli D’Arbo, Desenvolvimento tecnológico na agricultura cafeeira em São Paulo e Ribeirão Preto, 1875-1910. Tese de Doutorado em História Eco-
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Imagem 5: Antonio Ferrigno, Lavadouro, Fazenda Santa Gertrudes - Araras, SP, 1903, óleo sobre tela, 100 x 150 cm, Museu Paulista da USP, São Paulo.
Imagem 6: Antonio Ferrigno, O terreiro, Fazenda Santa Gertrudes – Araras, SP, 1903, óleo sobre tela, 100 x 150 cm, Museu Paulista da USP, São Paulo.
nômica, Universidade de São Paulo, 2014. Sobre sua invenção ainda sob o regime escravista, ver Rafael de Bivar Marquese, “Coffee and the Formation of Modern Brazil, 1860-1914”, In: Oxford Research Encyclopedia of Latin American History. Oxford: Oxford University Press, 2020 (DOI: 10.1093/acrefore/9780199366439.013.818). Sobre o trabalho sazonal, ver Cláudia Alessandra Tessari, Braços para a colheita. Sazonalidade e permanência do trabalho temporário na agricultura paulista (1890-1915). São Paulo: Alameda, 2012, p. 210.
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Imagem 7: Antonio Ferrigno, Ensacamento do café, Fazenda Santa Gertrudes – Araras, SP, 1903, óleo sobre tela, 100 x 150 cm, Museu Paulista da USP, São Paulo.
Portanto, e ao contrário do que ocorreu com a transição para a parceria no Sul dos Estados Unidos, o colonato manteve a essência da organização escravista do processo de trabalho. Centralização gerencial das decisões sobre processo de trabalho e de produção, trabalho coletivo sob comando unificado nos momentos críticos desses processos, extração de uma grande carga de trabalho nas capinas e na colheita, tecnificação do beneficiamento articulado à maximização do tempo de trabalho no campo foram características comuns à fazenda de café brasileira sob a escravidão e sob o colonato. É certo que, sob o colonato, o trabalhador de roça cultivava bem menos pés de café do que um escravo; contudo, se a oferta constante de trabalho livre estivesse garantida, o problema da queda de rendimento individual do trabalhador seria mais do que compensado pelo fim da rigidez do empate de capital que a compra de um escravo sempre envolvia. Ademais, o problema da feitorização do trabalho sob o colonato se resolvia em grande parte com a internalização da supervisão dentro do núcleo familiar: era aos chefes de família que cabia estabelecer o quanto seus familiares seriam capazes de cultivar e de recolher. Devemos somar a tudo isso a prática do pagamento não monetário, isto é, a permissão para que os
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colonos cultivassem mantimentos (milho e feijão, basicamente) nas ruas de cafezais novos, ou em terrenos apartados. O produto dessas roças pertencia integralmente aos colonos, e era daí que eles retiravam sua alimentação básica. Esse mecanismo permitia aos fazendeiros rebaixarem o montante dos salários pagos pelo amanho dos talhões.45 O sistema de trabalho que acabamos de observar valendo-nos das pinturas que Ferrigno compôs em 1903 já estava pronto no começo da década de 1880, ou seja, no ápice da crise da escravidão brasileira, que, é bom lembrar, ocorreu em uma conjuntura favorável ao café, com preços em alta no mercado mundial. O colonato fora criado e vinha sendo empregado em escala reduzida em grandes fazendas do Oeste de São Paulo que ainda tinham nos escravos o grosso da composição de sua força de trabalho. Os fazendeiros das fronteiras cafeeiras paulistas, enfim, já dispunham de um sistema de trabalho alternativo à escravidão, mas não dispunham do trabalhador. Dada a experiência histórica de recusa dos ex-escravos em trabalhar nas mesmas unidades onde haviam sido escravizados, caso houvesse alternativas mínimas de sobrevivência fora das fazendas (São Paulo, como fronteira agrícola no final do século XX, as oferecia em escala considerável) e, em especial, dado o fato de as novas fazendas estarem sendo fundadas em regiões de baixa densidade demográfica, a solução para o problema da oferta de trabalhadores para o colonato só poderia ser encontrada no mercado internacional de trabalho. A experiência após 1888 confirmaria a inelasticidade do engajamento dos trabalhadores negros no colonato. No entanto, como assalariados sazonais, os ex-escravos e seus descendentes foram mobilizados com mais frequência, como Ferrigno registrou em sua pintura sobre a partida de café para a estação de trem (imagem 8).46
45. José de Souza Martins, O Cativeiro da Terra. São Paulo: Contexto, 2010, pp. 73-76. 46. Sobre o emprego de ex-escravos na economia cafeeira da fronteira paulista e suas duras relações raciais com os migrantes italianos, ver Karl Monsma, A reprodução do racismo: Fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista, 1880-1914. São Carlos: EdUFSCar, 2016.
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Imagem 8: Antonio Ferrigno, Café para estação, Fazenda Santa Gertrudes – Araras, SP, 1903, óleo sobre tela, 100 x 150 cm, Museu Paulista da USP, São Paulo.
Os cafeicultores brasileiros tinham clareza de que, sem algum tipo de subvenção pública ou privada, os imigrantes estrangeiros (europeus ou asiáticos) não viriam para o Brasil. A base para tal constatação residia não apenas na experiência brasileira pretérita, mas igualmente na observação da experiência norte-americana: antes da Guerra Civil, os fluxos imigratórios evitaram o Sul justamente pela presença da escravidão, fluindo maciçamente para o Norte. Ou seja, regiões escravistas – como o Brasil nas décadas de 1870 e 1880 – eram rechaçadas pelos fluxos globais de imigração voluntária. Mesmo após o fim da escravidão, o Sul não logrou se conectar ao mercado internacional do trabalho, pelo fato de ter se cristalizado como uma região de salários baixos em um país com altos salários.47 Em resumo, para o colonato funcionar, havia a necessidade de se encontrar no mercado global uma nova fonte de trabalhadores a serem carreados para o Brasil sob alguma forma de subsídio. No momento crucial 47. Sobre a gênese do colonato nas fazendas escravistas do Oeste de São Paulo, ver Stockle & Hall, “A introdução do trabalho livre”, pp. 99-105; sobre o mercado de trabalho no Sul dos Estados Unidos, Wright, Old South, New South, pp. 74-76.
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da revolução abolicionista de 1887-1888, a solução já fora encontrada. Dentre as ausências no Congresso Agrícola de 1878, talvez as mais notáveis tenham sido as dos irmãos Antônio e Martinico Prado, fazendeiros da fronteira cafeeira do Oeste Novo de São Paulo e figuras de proa (ainda que em agremiações partidárias distintas) na política imperial e provincial. O grupo de fazendeiros por eles capitaneado havia enviado, naquele exato ano de 1878, emissários à Europa para investigar quais países poderiam prover a província com emigrantes. O norte da Itália – mais especificamente, a região do Vêneto – foi por eles identificada com a região com o maior potencial para fornecer a força de trabalho necessária ao sistema do colonato.48 Os profundos impactos que a ascensão da agricultura do Meio Oeste norte-americano pós-Reconstrução produziu sobre o mercado mundial de grãos estiveram nas origens das transformações agrárias que geraram na Itália o excedente humano pronto a ser capturado pela sedução da imigração subsidiada oferecida pelos cafeicultores de São Paulo. Os fundamentos do arranque do Meio Oeste na Era da Globalização (1870-1914) datavam de antes da Guerra Civil, e a rigor deram impulso à crescente polarização seccional que conduziu ao conflito nacional. Basta lembrarmos como a montagem do complexo cerealífero estruturado em torno de Chicago forneceu uma das principais bases eleitorais do Partido Republicano e, portanto, da eleição de Abraham Lincoln. A vitória da União acelerou a consolidação do mercado interno norte-americano, e o Homestead Act aprovado em 1862 ofereceu vastas áreas aos agricultores familiares da costa leste e da Europa seduzidos pela promessa de terra livre nas pradarias dos novos estados do Kansas, Nebraska, Minnesota, South Dakota e North Dakota. A prosperidade do capitalismo agrário do Meio Oeste da época da Reconstrução apresentava uma dupla face: por um lado, era lá que se encontrava uma das linhas de frente do substancial avanço do mercado consumidor para o café brasileiro; por outro, a sobreoferta de grãos dessas novas empresas familiares foi uma das forças que levaram os preços mundiais do trigo a despencarem por três entre 1867 e 1894, reordenando por completo o mercado global do artigo. A reorganização da empresa familiar agrícola do Meio Oeste por meio de uma completa mecanização do processo de produção permitiu 48. Darrell Levi, The Prados of São Paulo, Brazil. An Elite Family and Social Change, 1840-1930. Athens, Ga.: University of Georgia Press, 1987; Zuleika M.F. Alvim, Brava Gente! Os italianos em São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 47; Holloway, Imigrantes para o café, pp. 64-116.
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aos produtores norte-americanos enfrentarem com sucesso a depressão nos preços, mas, na Europa, seus efeitos foram devastadores. A invasão de grãos vindos dos Estados Unidos, mas também da Ucrânia, da Austrália e da Argentina colapsaram a agricultura familiar europeia. No caso da Itália, a situação era ainda mais aguda pelas modificações tarifárias introduzidas pela Unificação, quebrando a segurança das famílias camponesas, arrendatárias ou já proletarizadas – na conjuntura de 1870-1880, uma das regiões mais atingidas foi justamente o Vêneto.49 Ou seja, os trabalhadores necessários para o colonato estavam sendo disponibilizados pelos próprios resultados da Guerra Civil e da Reconstrução, os eventos cruciais da crise sistêmica da Segunda Escravidão. Os fazendeiros de café da fronteira de São Paulo se encontravam particularmente bem equipados para enfrentá-la, ao contrário dos fazendeiros das zonas decadentes do Vale do Paraíba. O caráter itinerante da cafeicultura brasileira produzira uma cisão na antiga classe senhorial. Já perceptível no final da década de 1870, na hora da verdade da revolução de 1887-1888 ela se tornou explícita: o esgotamento ambiental e o endividamento crescente com bancos e comissários, sinais evidentes da perda de competitividade das antigas zonas produtoras do Vale do Paraíba, levaram seus fazendeiros a se prenderem à plataforma da indenização pela abolição; os fazendeiros da fronteira de São Paulo, com amplas reservas de terras virgens e com carteira de crédito aberta, rejeitavam a indenização pelo que ela implicaria em termos
49. Para uma exposição mais detalhada desse argumento, ver Marquese, “Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira”, pp. 312-320. Sobre o deslanche do Meio Oeste e a política norte-americana, ver D. W. Meinig, The Shaping of America: A Geographical Perspective on 500 Years of History, vol. 2, Continental America, 1800-1867. New Haven: Yale University Press, 1993, pp. 323-34; William Cronon, Nature’s Metropolis: Chicago and the Great West. New York: Norton, 1991, pp. 65-70; John Ashworth, Slavery, Capitalism and Politics in the Antebellum Republic, vol. 2, The Coming of the Civil War, 1850-1861. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Sobre a reconfiguração do mercado mundial e o mercado interno norte-americano após 1865, ver Giovanni Arrighi, O longo século XX: Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo (trad. port.), Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, pp. 300-320; Harriet Friedmann, “World Market, State, and Family Farm: Social Bases of Household Production in the Era of Wage Labor”, Comparative Studies in Society and History, 20 (4): 545-586, 1978; M. E. Falkus, “Russia and the International Wheat Trade, 1861-1914”, Economica, n.s., 33 (132): 416-429, 1966; Morton Rothstein, “America in the International Rivalry for the British Wheat Market, 1860-1914”, Mississippi Valley Historical Review, 47 (3): 401-418, 1960; Kevin H. O’Rourke, “The European Grain Invasion, 1870-1913”, Journal of Economic History, 57 (4): 775-801, 1997. Sobre a imigração italiana, ver Emilio Franzina, A grande emigração: O êxodo dos italianos do Vêneto para o Brasil (trad. port.), Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
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fiscais. A abolição da escravidão sem indenização erodiu o que restava do capital político da monarquia constitucional com os fazendeiros do Vale do Paraíba (um de seus mais duros bastiões), abrindo mais uma fenda para o golpe militar que, um ano depois, imporia o regime republicano no Brasil. O Partido Republicano Paulista, fundado em 1873 e que tinha na cafeicultura da fronteira uma de suas bases sociais e econômicas, não demorou a tomar as rédeas do poder federal: os três primeiros presidentes civis do Brasil, que governaram de 1894 a 1906, foram todos cafeicultores pertencentes aos quadros do partido.50 O arranjo federalista instituído pela Constituição republicana de 1891 concedeu ampla autonomia aos Estados para regularem matérias fiscais e orçamentárias, uma demanda histórica dos cafeicultores paulistas em vista das necessidades de organização do crédito e, sobretudo, da continuidade da imigração subsidiada inaugurada nos anos finais do Império. Em 1886, eles haviam fundado a Sociedade Promotora da Imigração (SPI), entidade privada de fins não lucrativos contratada pelo então governo provincial para recrutar as famílias destinadas ao regime de colonato no café, oferecendolhes passagens integralmente subvencionadas da cidade de origem na Itália à porta da fazenda em São Paulo. Com a proclamação da República, essa política tornou-se oficial, por meio do estabelecimento de um imposto estadual sobre as exportações de café voltado à constituição de um fundo destinado exclusivamente ao pagamento das viagens transatlânticas às famílias de colonos. Superadas as crises da escravidão e da monarquia, a SPI foi dissolvida, e suas atribuições, integralmente incorporadas pelo Estado de São Paulo.51 O fluxo de italianos que entraram em São Paulo entre 1886 e 1903 por esse sistema de engajamento de trabalho subsidiado é que deu as bases para o assombroso salto das exportações cafeeiras do Brasil, superando assim as travas de crescimento da primeira metade da década de 1880. Entre 1886 e 1896, São Paulo foi o maior receptador de imigrantes italianos nas Américas, ultrapassando Estados Unidos e Argentina. 80% deles chegaram ao porto 50. Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil, pp. 233-252; Joseph Love, “Autonomia e interdependência: São Paulo e a Federação Brasileira, 1889-1937”, In: Boris Fausto (org.), História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, O Brasil Republicano, Volume I, Estrutura de Poder e Economia (18891930). São Paulo: Bertrand Brasil, 1989, pp. 53-76; José E. Casalecchi, Partido Republicano Paulista: política e poder (1889-1926). São Paulo: Brasiliense, 1987. 51. Holloway, Imigrantes para o café, pp. 61-67; Martins, O cativeiro da terra, p. 59.
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de Santos por meio do esquema de subsídio integral à passagem atlântica, voltados à alimentação da máquina do colonato. Eram italianas submetidas com suas famílias a esse novo regime de trabalho que os visitantes do Pavilhão do Brasil na Louisiana Purchase Exposition podiam observar – entre 1895 e 1930, 65% dos colonos da fazenda Santa Gertrudes haviam nascido na Itália, contra 20% de portugueses e 10% de espanhóis. O controle estatal sobre a reprodução da força de trabalho do colonato garantiu que os salários pagos aos trabalhadores do café permanecessem estáveis e comprimidos até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Foi essa oferta de trabalho barato que impulsionou os fazendeiros paulistas a ampliarem constantemente as fronteiras do café, gerando o quadro de superprodução e de queda dos preços que, em 1904, seus representantes estavam tentando contornar por meio da propaganda cafeeira em Saint Louis.52 A intervenção direta do Estado na formação da força de trabalho do colonato adquiriu o claro caráter de subsídio para o capital cafeeiro. O contraste com o Sul dos Estados Unidos, ressaltado de forma pioneira por Steven Hahn em seus artigos de 1990, é realmente notável. O poder que os fazendeiros de São Paulo mantiveram e consolidaram com o fim da escravidão e a construção do regime republicano lhes permitiu recriar a extraterritorialidade do mercado de trabalho para a grande lavoura, em uma clara reconfiguração – sob as novas circunstâncias históricas do capitalismo global – do papel que o tráfico negreiro transatlântico desempenhara até 1850. O que faltou ao argumento original de Hahn, e o que procurei demonstrar neste capítulo, foi como esse resultado foi conformado pelo processo histórico de abolição da escravidão nos Estados Unidos, ou, noutros termos, como a experiência histórica da reconfiguração da ordem capitalista norte-americana na era da Reconstrução foi parte constitutiva essencial da experiência histórica da crise da Segunda Escravidão e da passagem do Império para a República no Brasil.
52. Riccardo Faini and Alessandra Venturini, “Italian Emigration in the Pre-war Period”, In: Jeffrey G. Williamson and Timothy J. Hatton (org.), Migration and the International Labor Market, 18501939. London: Routledge, 1994, 76; Holloway, Imigrantes para o café, pp. 76-77; Martins, O cativeiro da terra, pp. 59-82; Tessari, Braços para a colheita, pp. 214-220; Bassanezi, Fazenda Santa Gertrudes, p. 141.
Capítulo 7 A dinâmica da escravidão no Brasil: um diálogo com as críticas
Este capítulo retoma um ensaio de mesmo título que escrevi em 2005 e que publiquei no ano seguinte.1 O texto logo recebeu duras críticas, expostas em um ensaio de Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira publicado dois anos depois.2 Para encerrar este livro, apresento primeiramente o contexto da redação do ensaio original; na sequência, exponho de forma resumida as principais objeções que ele sofreu; por fim, trago uma resposta às críticas escorada na perspectiva de tratamento do tempo histórico que procurei desenvolver ao longo dos capítulos precedentes. O problema da ideologia escravista no Império do Brasil As origens do texto estão em meu trabalho conjunto com Márcia Berbel e Tâmis Parron, realizado dentro de um Projeto Temático FAPESP sobre a formação do Estado nacional brasileiro (1750-1850).3 Coordenado 1. Rafael de Bivar Marquese, “A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX”, Novos Estudos Cebrap, 74: 107-123, março 2006 (livre acesso em https://doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007) 2. Flávio Gomes & Roquinaldo Ferreira, “A Miragem da Miscigenação”, Novos Estudos Cebrap, 80: 141-160, março 2008 (livre acesso em https://doi.org/10.1590/S0101-33002008000100010). 3. Dentre seus resultados mais importantes, destacam-se três livros coletivos – István Jancsó (org.), Brasil: a formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003; István Jancsó (org.), Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005; Cecília Helena de Salles Oliveira; Vera Lúcia Nagib Bittencourt; Wilma Peres Costa (org.), Soberania e Conflito: configurações do Estado nacional no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec, 2010 –, bem como o volume que escrevi em parceira
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por István Jancsó entre 2002 e 2009 e contando com um notável time de pesquisadores de diversas universidades brasileiras em diferentes posições da carreira acadêmica, esse Projeto Temático tinha dentre seus objetivos gerais o de reabrir a discussão sobre o lugar da escravidão negra na constituição do Estado e da nação no Brasil. A pesquisa que inicialmente propus desenvolver em seus marcos investigaria, por meio do exame de discursos emitidos no parlamento e na imprensa, o arcabouço ideológico que dera sustentação à escravidão negra no Brasil durante a primeira metade do século XIX. O problema que eu pretendia enfrentar se escorava em uma constatação relativamente simples. Fundada na leitura da trajetória do Sul dos Estados Unidos, a historiografia comparativa sobre a escravidão negra nas Américas apontava, de modo quase consensual, que apenas naquela região teria sido construído um arsenal ideológico orgânico para a defesa da instituição. Em países como o Brasil, não teria ocorrido a elaboração de argumentos articulados em bases positivas para defender a escravidão. Tal avaliação recebeu desenvolvimentos variados na historiografia,4 mas é possível afirmar que uma de suas formulações mais acabadas está em um artigo que José Murilo de Carvalho publicou por ocasião do primeiro centenário da abolição no Brasil. Nele, o autor contrapôs o que chamou de “razão colonial” à “razão nacional”: ao passo que a primeira (expressa nas letras jesuíticas ou nos reformistas ilustrados de fins do século XVIII) justificou a escravidão como algo indispensável à obra da colonização portuguesa, a segunda, preocupada com a construção do Estado nacional brasileiro, sempre viu nela um obstáculo a ser ultrapassado pela marcha do progresso. As defesas da escravidão no século XIX apresentadas por estadistas e letrados imperiais teriam sido circunstanciais, esposando o princípio de que a médio e longo
com Márcia Berbel e Tâmis Parron, Escravidão e Política: Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010. 4. Para uma expressão comparativa desse argumento, ver Barbara Weinstein, “Slavery, Citizenship, and National Identity in Brazil and the United States South”, in: Don Doyle & Marco Antonio Pamplona (org.), Nationalism in the New World. Athens: University of Georgia Press, 2006, pp. 248-271. Outro exemplo, mais recente: “Se o escravismo estadunidense fora sistema coeso e desabrido de apelo à desigualdade racial e à retórica religiosa, o nosso foi enrustido. Em vez de escravistas de princípio, com legitimação enfática, tivemos escravistas de circunstância: compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista, sem defender a instituição em si, que reconheciam, civilização e moral condenavam naquela altura do século”. Angela Alonso, Flores, votos e balas. O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 59.
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prazos a consolidação do Brasil como um país civilizado dentro do concerto das nações exigiria o fim da instituição.5 Havia, em minha avaliação, um problema de fundo nesse relativo consenso historiográfico: nenhuma sociedade escravista seria capaz de se reproduzir no tempo sem um conjunto de ideias, sem um arcabouço ideológico que a sustentasse de modo substantivo. Sobretudo em um novo Estado nacional como o Brasil, que teve que enfrentar, em seu processo de formação, a duríssima pressão antiescravista do maior poder global de então, a Grã-Bretanha. Os atores políticos do Império do Brasil não só refundaram institucionalmente a escravidão por meio da Constituição de 1824, como promoveram, nas décadas seguintes, uma notável expansão do tráfico negreiro (desde 1831, sob o signo da ilegalidade), a contrapelo de toda atuação do Império antiescravista britânico. A equação razão colonial escravista x razão nacional antiescravista se mostrava claramente incapaz de explicar o que se passara na formação do Brasil ao longo do século XIX. Fazia-se necessário, assim, reabrir o exame sistemático do conjunto das forças ideológicas que deram sustentação política à escravidão no Brasil no momento decisivo de sua instituição como país soberano. Em meados de 2003, Tâmis Parron começou, ainda como aluno de graduação e com uma bolsa de Iniciação Científica sob minha orientação, a pesquisar os discursos sobre escravidão no Parlamento Imperial (Câmara dos Deputados e Senado). No ano seguinte, ele se fez acompanhar por Alain El Youssef, também aluno de graduação sob minha orientação e bolsista de IC no Departamento de História da USP, que se concentrou na imprensa periódica do Rio de Janeiro durante o Período Regencial.6 No segundo semestre de 2004, dividi com Márcia Berbel, professora de História Ibérica em meu Departamento e parceira de Projeto Temático, um curso no 5. José Murilo de Carvalho, “Escravidão e razão nacional”, Dados – Revista de Ciências Sociais, 31 (3): 287-308, 1988. 6. Essas duas pesquisas de Iniciação Científica financiadas pela FAPESP se desdobraram, alguns anos depois, em duas robustas dissertações de mestrado, ambas publicadas em livro (Tâmis Parron, A Política da Escravidão no Império do Brasil, 1826-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; Alain El Youssef, Imprensa e escravidão. Política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1820-1850). São Paulo: Intermeios, 2016), bem como em duas teses de doutorado, ainda inéditas (Tâmis Parron, A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. São Paulo: Tese de Doutorado em História Social, FFLCH/USP, 2015; Alain El Youssef, O Império do Brasil na Segunda Era da Abolição, 1861-1880, São Paulo: Tese de Doutorado em História Social, FFLCH/USP, 2019).
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Programa de Pós-Graduação em História Social sobre Política e Escravidão Atlânticas na Era das Revoluções (1776-1824). Ao cruzarmos nossas distintas trajetórias (ela, especialista em política parlamentar durante a crise dos impérios ibéricos; eu, em escravidão negra nas Américas), pudemos elaborar uma série de questões sobre a escravidão nos impérios ibéricos para as quais não tínhamos respostas imediatas, apenas um sistema geral de hipóteses. Dentro dessa ordem de preocupações, no início de 2005 preparei, em parceria com Tâmis Parron, uma edição crítica da Memória sobre o Comércio dos Escravos, publicada anonimamente em 1838. A historiografia sobre a escravidão brasileira considerava o bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1724-1821) como o autor do documento. Por meio da crítica interna e externa da fonte, comprovamos que seu autor foi José Carneiro da Silva (1788-1864), primeiro visconde de Araruama. A atribuição correta modificava por completo o entendimento do documento, ajudando a avançar na compreensão da política da escravidão no Império do Brasil. Isso porque Araruama advogou a reabertura do tráfico africano de escravos, proibido nas letras da lei desde 1831. Seu panfleto fez parte de uma política concertada dos conservadores para a expansão do escravismo brasileiro, a contrapelo das pressões inglesas, baseando-se, para tanto, em uma defesa robusta da positividade do tráfico transatlântico e da escravidão negra. Mais surpreendente, no entanto, foi o conteúdo dessa posição, que se valeu explicitamente das práticas correntes de alforria e dos canais abertos à ascensão social e política de ex-escravos e descendentes para afirmar os efeitos benéficos do tráfico e da escravidão para a construção da ordem nacional brasileira. O que Araruama veiculou anonimamente em 1838 foi uma defesa positiva da escravidão. Nada, portanto, de uma razão nacional antiescravista ou de um escravismo de circunstâncias.7 Também em 2005, no mês de setembro, ocorreria o segundo seminário internacional do Projeto Temático FAPESP. Márcia Berbel e eu avaliamos que era o momento de tentarmos responder às perguntas que havíamos formulado em nosso curso de pós-graduação do ano anterior. No trabalho que daí resultou, examinamos os argumentos e as estratégias que sustentaram 7. Cf. Rafael de Bivar Marquese & Tâmis Peixoto Parron, “Azeredo Coutinho, Visconde de Araruama e a Memória sobre o comércio dos escravos de 1838”. Revista de História, 152: 99-126, 1º semestre 2005.
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o projeto político escravista dos representantes de Cuba e do Brasil nas Cortes de Cádis (1810-1824), de Madri (1820-1823), de Lisboa (1821-1822) e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1823), inserindo-os no contexto mais amplo das discussões sobre escravidão negra nas Américas durante a Era das Revoluções. Em relação à escravidão, dois temas centrais foram tratados nessas ocasiões: o tráfico negreiro transatlântico e os direitos de cidadania para os libertos e os demais descendentes de africanos. Para o primeiro ponto, a solução encontrada pelos deputados cubanos e brasileiros foi a mesma, qual seja, silenciar o debate no âmbito constitucional e jogálo para o campo diplomático. A respeito do segundo ponto, no entanto, as saídas foram distintas. Enquanto os deputados de Cuba concordaram com a restrição dos direitos políticos de libertos e descendentes de africanos, os deputados do Brasil defenderam em Lisboa e no Rio de Janeiro a concessão desses direitos. Tal atitude dos representantes brasileiros, argumentamos, derivou da percepção histórica da dinâmica da escravidão no Brasil, que permitia a introdução constante de cativos estrangeiros sem ameaçar a segurança interna dessa sociedade. Para os construtores do Estado nacional brasileiro, a possibilidade de algo semelhante à Revolução do Haiti vir a ocorrer no recém-fundado Império do Brasil era, em realidade, inexistente, ao contrário portanto do que se passara na realidade caribenha em que se inscrevia Cuba, onde a experiência haitiana representava uma potencialidade bastante concreta de replicação histórica. O texto gerou grande debate no seminário; alguns de nossos colegas de Projeto Temático discordaram de nosso argumento sobre a solução inclusiva de cidadania para os ex-escravos nascidos no Brasil e da percepção do quadro de estabilidade das relações escravistas que ela traduzia. Berbel teve oportunidade de apresentar esse mesmo texto na Espanha, no final de 2005, para especialistas que trabalhavam com o tema da cidadania na crise do colonialismo ibérico; o argumento os convenceu.8 Todas essas discussões deixavam claro que teríamos que aprofundar a mirada comparativa de longa 8. O artigo foi primeiramente publicado na Espanha: Márcia Regina Berbel & Rafael de Bivar Marquese, “La esclavitud en las experiencias constitucionales ibéricas, 1810-1824”. In: Bastillas, cetros y blasones. La independencia en Iberoamérica. Ed. Ivana Frasquet. Madrid: Fundación Mapfre, 2006, pp. 347-374. Ele veio a ser publicado em português somente quatro anos depois: “A escravidão nas experiências constitucionais ibéricas, 1810-1824”. In: Cecília Helena de Salles Oliveira; Vera Lúcia Nagib Bittencourt; Wilma Peres Costa (org.), Soberania e Conflito: configurações do Estado nacional no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec, 2010, pp. 78-117.
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duração para fundamentar adequadamente o que estávamos afirmando sobre a natureza da construção institucional da ordem escravista brasileira oitocentista. Wilma Peres Costa, aliás, chamara nossa atenção durante o seminário de setembro de 2005: não daria para resolver todas as questões levantadas em apenas um artigo – para tanto, seria necessário escrever um livro.9 Tal foi o contexto de pesquisa em que escrevi A dinâmica da escravidão no Brasil. Seu impulso imediato, no entanto, se deu em razão de minha participação no Encontro de Historiadores Brasileiros e Colombianos, organizado pelo Instituto de Cultura Brasil-Colômbia, fundação adida à Embaixada do Brasil naquele país. A ideia do então diretor do Instituto, Ivan Nicholls, era promover um encontro entre quatro historiadores colombianos (Gonzalo Sanchéz, Margarida Garrido, Catalina Reyes, Oscar Almario) e quatro brasileiros (Maria Helena Capelato, Laura de Mello e Souza, João Paulo Garrido Pimenta e eu) que tratassem de temáticas comuns, em um ciclo de dois dias de conferências sediadas no Museu Nacional da Colômbia, em Bogotá. O convite enfatizara a necessidade de apresentarmos textos de síntese, com o conhecimento mais atualizado possível, voltado tanto ao público acadêmico como a ouvintes não especializados. Ou seja, uma difícil tarefa de extensão universitária internacional, mas que representava boa oportunidade para colocar no papel algumas ideias que eu vinha elaborando a partir das discussões com Berbel, Parron e demais colegas de Temático. Como entender o que os deputados brasileiros falaram em Lisboa e no Rio de Janeiro a respeito da escravidão e do papel dos libertos para sua manutenção? Como compreender a leitura que eles fizeram do protagonismo escravo na Era das Revoluções? Como compreender o fato de o Brasil, maior importador de escravos africanos nas Américas, não ter passado pelas mesmas tensões que galvanizaram Cuba? A dinâmica da escravidão no Brasil foi igualmente informada por outros diálogos, dentre os quais destaco o que eu mantinha com Fábio Duarte Joly. Colega de pós-graduação (eu, cursando o doutorado; ele, o mestrado) com o qual fiz grande amizade em 1997, Joly pesquisava escravidão romana clássica. Em 2003, escrevemos um livro paradidático comparando a escravidão antiga com a moderna. Foi por meio desse trabalho em parceria 9. Foi essa provocação que impulsionou de forma decisiva minha parceria com Berbel e Parron para a redação de Escravidão e Política (ver referência completa na nota 3).
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que tomei ciência do impacto positivo, na historiografia sobre o mundo clássico, da abordagem processual da escravidão proposta por Igor Kopytoff e Orlando Patterson. Em 2005, Joly publicou um pequeno livro de síntese (um desdobramento de sua pesquisa de doutorado então em andamento) sobre a escravidão romana, muito estimulante, no qual empregava de forma bastante imaginativa os modelos de Patterson e Kopytoff. E, calcada em um exame cerrado dos debates políticos coevos, sua tese de doutorado sobre escravidão, manumissão e cidadania no século I d.C. (que viria a ser defendida em 2006) apresentou um argumento poderoso sobre o papel estruturante das alforrias e da concessão da cidadania romana aos ex-escravos na reprodução ampliada das relações escravistas imperiais.10 A perspectiva teórica que Joly vinha mobilizando para o entendimento do mundo romano fazia todo o sentido para a compreensão da história do Brasil, ajudando a explicar muitos dos problemas levantados em meu trabalho conjunto com Márcia Berbel e Tâmis Parron. A dinâmica da escravidão no Brasil, porém, foi concebida sobretudo como uma intervenção direta nas discussões então em andamento sobre o “haitianismo” e os impactos da resistência coletiva dos escravos sobre a dinâmica macropolítica no Brasil. Em artigo de 2002, Flávio Gomes atualizara a discussão inaugurada na década de 1970 pelos trabalhos de Luiz Mott, Maria Odila Leite da Silva Dias, Kenneth Maxwell e Carlos Guilherme Motta a respeito dos temores, na sociedade escravista brasileira, diante do exemplo revolucionário haitiano.11 Em setembro de 2003, apresentei um texto no primeiro seminário internacional do Projeto Temático FAPESP onde apontava, a partir de um exercício comparado, para o caráter de retórica política do topos do Haiti nas discussões públicas no Brasil nas décadas de 1810 e 1820.12 Matthias Röhrig Assunção e Hendrik Kraay, presentes na discussão, foram particularmente críticos em relação a tal argumento. Pouco antes, em agosto de 2003, eu havia participado de um debate público com
10. Fábio Duarte Joly, A escravidão na Roma Antiga. Política, Economia e Cultura. São Paulo: Alameda, 2005; Fábio Duarte Joly, Libertate opus est. Escravidão, manumissão e cidadania à época de Nero (54-68 d.C.). Curitiba: Editora Progressiva, 2010. 11. Flávio Gomes, “Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista”, Tempo, 13: 209-246, 2002. 12. Rafael de Bivar Marquese, “Escravismo e Independência: a ideologia da escravidão no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos nas décadas de 1810 e 1820”, in: I. Jancsó (org), Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, pp. 809-827.
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João José Reis por ocasião do lançamento da segunda edição, revista, de seu clássico Rebelião Escrava no Brasil; em minha intervenção, logo publicada como resenha, expus uma leitura que procurava ressaltar o reforço da ordem escravista imperial trazido no rescaldo da Revolta dos Malês.13 Acima de tudo, o que me motivou a dar a forma e o tom que A dinâmica da escravidão no Brasil acabou assumindo foi o provocativo prefácio que Robert Slenes escreveu para um livro de Flávio Gomes, publicado em 2005. Destacando com inteira justiça o papel crucial que o trabalho de Gomes representava para a renovação dos estudos sobre a resistência escrava no Brasil, para Slenes as evidências por ele trazidas permitiam afirmar que, diante da constatação da amplitude das ações escravas, “era evidente para todos [i.é, fazendeiros, autoridades, escravos] que não apenas a liberdade dos fugitivos corria perigo: o próprio escravismo estava por um ‘fio’”.14 Ao ler isso, anotei em minha marginália: “esse fio está mais para um tirante, capaz de sustentar a maior ponte pênsil existente...”. Senão, como dar conta da constatação básica de o Brasil ter sido o maior, o mais longevo e o mais estável sistema escravista do mundo moderno? Este foi o problema que meu ensaio procurou responder, ou seja, como foi possível ao Brasil, na longa duração, ser o maior importador de africanos escravizados para as Américas e, ao mesmo tempo diante de uma ampla gama de manifestações de resistência escrava (abertas ou não, coletivas ou individuais), manter uma ordem escravista interna relativamente estável, não obstante todas as conturbações políticas e sociais pelas quais o país passou durante o processo de construção de seu Estado nacional? O caráter de voo panorâmico do ensaio, “com alto grau de generalização” como nele esclareci15, decorreu, em primeiro lugar, da audiência original para o qual ele se direcionava, e, em segundo lugar, de seu próprio caráter de síntese interpretativa de longa duração. Mais importante, seu ponto de chegada (a rápida descrição, ao final do ensaio, do movimento simultâneo de tomada de consciência pelos construtores do Estado nacional da natureza da dinâmica institucional da escravidão colonial e de sua transformação, por esses 13. Rafael de Bivar Marquese, “Um levante urbano. Uma grande revolta de africanos na Bahia do século XIX”. Folha de São Paulo. Jornal de Resenhas, São Paulo, 08 de novembro de 2003. 14. Robert W. Slenes, “Apresentação: o escravismo por um fio?”. In: Flávio dos Santos Gomes, A Hidra e os Pântanos. Mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. Unesp-Polis, 2005, p. 15. 15. Marquese, “A dinâmica”, p. 111.
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mesmos atores, em força ideológica para a reprodução de relações escravistas agora nacionais) havia sido, ao mesmo tempo, seu ponto de partida. De fato, com o ensaio, tornava-se perfeitamente cognoscível o que os deputados brasileiros disseram e deliberaram entre 1821 e 1823, e que se cristalizou na definição de cidadania brasileira inscrita na Constituição Imperial de 1824. Era na dinâmica da escravidão como processo de transformação de status e no lugar que os alforriados ocupavam na ordem escravista que seria possível encontrar o cerne da ideologia escravista brasileira, do poder da escravidão no Brasil. Ou, noutras palavras e para inverter a fórmula de José Murilo de Carvalho: a razão nacional brasileira se apresentou, desde seu nascedouro, como profundamente escravista, o que se deu por meio de uma operação de leitura histórica da razão colonial que a projetava – de forma recriada e, portanto, nova – ao futuro. Após apresentar o texto na Colômbia em agosto de 2005, pude discutilo a convite de Luiz Geraldo Silva, parceiro de Temático, na Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Esse seminário se deu em outubro de 2005, e foi bem mais produtivo do que a conferência em Bogotá. As questões que me foram colocadas acabaram sendo muito importantes para o prosseguimento do trabalho conjunto com Berbel e Parron; pelo que se pode ler na produção posterior de Luiz Geraldo Silva, o maior especialista brasileiro no tema das milícias formadas por afrodescendentes livres e libertos da América portuguesa, elas também o foram para ele.16 Em fins de abril de 2006, pouco antes de ser publicado na revista do Cebrap (sugestão de Miriam Dolhnikoff, outra colega de Departamento e parceira de Temático, que, após lê-lo, disse-me que o periódico era particularmente receptivo a ensaios dessa natureza), discuti o texto na Linha de Pesquisa em Escravidão e História Atlântica de meu Programa de Pós-Graduação. O debate foi igualmente animado, antecipando objeções que em breve eu receberia. Algumas das coisas ali ditas foram surpreendentes, como a de que eu estaria recuperando a ideia de ciclos econômicos de Roberto Simonsen, ou a sugestão de que eu deveria desistir da publicação por não ser especialista em tráfico, alforria ou
16. Veja-se, em especial, sua tese para titulatura: Luiz Geraldo Silva, Africanos e afrodescendentes na América portuguesa: entre a escravidão e a liberdade (Pernambuco, séculos XVI ao XIX). Curitiba: Tese Apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal do Paraná como requisito parcial para a obtenção do Título de Professor Titular, 2018.
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resistência. Diante da carreira que o texto fez, ainda bem que não segui esse conselho. E não seria de “neo-Simonseniano” que eu seria acusado, mas sim de “neo-Freyriano”. Que alguma poderia vir daí a partir de leituras apressadas ou desinformadas, eu mesmo suspeitei ao redigir o texto. Tanto é assim que, no último parágrafo, após uma citação da defesa da escravidão esposada pelo visconde de Araruama, escrevi: “no século XX, essa experiência se tornou tema caro à historiografia. Basta lembrar as teses de Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum sobre o caráter supostamente benigno da escravidão brasileira, que logo se converteram em ideologia da democracia racial. Não cabe aqui jogar mais terra sobre esse caixão”.17 A última frase não seria suficiente para me proteger das acusações de ser um recuperador de Freyre e Tannenbaum, quando, em realidade, o que apresentei em todo meu texto foi uma crítica substantiva ao conteúdo escravista da ideologia da democracia racial que informou a mirada deles dois. As críticas Eu mantinha contato ocasional, por correio eletrônico, com Flávio Gomes. Em algum momento do segundo semestre de 2005, enviei-lhe o ensaio ainda inédito. Gomes o compartilhou com Roquinaldo Ferreira, e ambos se sentiram estimulados a escrever uma crítica. Meu texto, que tivera como um de seus impulsos não somente o trabalho de Flávio Gomes sobre o haitianismo no Brasil mas também uma apresentação a um livro dele, atingia assim seu propósito de fomentar debate. A primeira versão do texto deles ficou pronta rapidamente, em tempo de ser submetida junto com o meu texto aos Novos Estudos Cebrap. Contudo, por razões editoriais do periódico, no número 74 (março de 2006) acabou saindo apenas o meu ensaio. Gomes e Ferreira re-trabalharam o texto deles, que acabou sendo publicado exatamente dois anos depois, no número 80, de março de 2008. Procurarei resumir com brevidade, porém com a maior exatidão possível as quatro linhas de força das críticas que Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira me endereçaram. O título do ensaio, A Miragem da Miscigenação, traduz o cerne do comentário. Conforme seus parágrafos iniciais, minha proposta seria, segundo eles, integralmente informada pelos debates comparativos promovidos desde a década de 1940 sobre as relações raciais nas Américas, 17. Marquese, “A dinâmica”, p. 123.
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elas próprias, contudo, marcadas mais por uma “miragem” do que por “dados e mesmo argumentação histórica e sociológica, [...], imagens que provocaram narrativas de viajantes, observadores estrangeiros, literatos e intelectuais desde o final do século XVIII; produziram classificações sociais, passando por ideologias que atravessariam o pós-colonial e inventariam a nação”. Ao escreverem isso já de saída, referindo-se explicitamente ao Projeto Unesco na primeira oração do texto, Gomes e Ferreira colocaram meu ensaio na caixa do modelo Tannenbaum. Para o restante do texto, eles deixam claro que o objetivo não seria o de apresentar um modelo alternativo “para pensar a ‘dinâmica’ da sociedade escravista [...]. Sugerimos apenas contrapontos”.18 Primeiro contraponto: minha leitura da trajetória de Palmares. Segundo os autores, uma “certa memória histórica agigantou Palmares” (grifo deles): as diversas comunidades quilombolas que se formaram entre as capitanias de Pernambuco e Bahia ao longo do século XVII teriam sido mais complexas e menos excepcionais do que as imagens construídas posteriormente pelos historiadores deram a entender. Do mesmo modo, falar em “vitórias e fracassos das lutas quilombolas” seria igualmente equivocado, pois “elas têm explicações mais complexas”.19 Para os autores, “Palmares — como formação de inúmeros quilombos — não é ‘derrotado’ em 1695 com o assassinato de Zumbi e o grande ataque à serra da Barriga. Há evidências de movimentação de quilombolas até 1742 na capitania de Pernambuco, aquartelamento de vilas de índios aldeados na região, lideranças palmaristas de Mouza e Camoanga, e migração dos remanescentes para as capitanias da Paraíba e Bahia, fugindo da repressão e da fronteira indígena das áreas do Rio Grande do Norte”.20 Segundo contraponto: o equívoco em recorrer à teorização de Igor Kopytoff sobre a escravidão como processo de transformação de status, pois “tal argumento se insere numa discussão africanista sobre o caráter da escravidão na África, não no Brasil”.21 Ou seja, por ter sido originalmente proposto para conceituar a natureza da escravidão na África, o modelo de Kopytoff nada teria a dizer sobre a natureza da escravidão no Brasil.
18. 19. 20. 21.
Gomes & Roquinaldo, “A Miragem”, p. 142. Idem, ibidem, p. 145. Idem, ibidem, p. 147. Idem, ibidem, p. 148.
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Terceiro contraponto: a crítica à ideia da “invenção do mulato”, que tomei de empréstimo de Luiz Felipe de Alencastro, isto é, às supostas práticas de favorecimento dos mulatos na América portuguesa que, segundo esse historiador, não teriam sido adotadas em Angola.22 Para Gomes e Ferreira, a demografia de Angola comprovaria que o peso numérico dos mulatos por lá era bastante considerável, o que indicaria, portanto, um erro de Alencastro e, por extensão, meu. No quarto contraponto – intitulado “Daltonismo Social” – há uma série de críticas alinhavadas: a definição de cidadania da Constituição de 1824 não foi inclusiva para os ex-escravos e seus descendentes; o exemplo do Haiti atemorizava os atores políticos e os grupos dirigentes no Brasil por evocar receios de “anarquia, desordem, caos e ruptura da ordem social pós-colonial”; os grupos livres social e racialmente subalternos atuaram politicamente segundo uma lógica própria; as rebeliões regenciais contaram com a participação de escravos; houve múltiplos levantes e planos de rebelião escrava ao longo do século XIX; inexistiu uma “norma básica” na prática da alforria no Brasil (a frase deles é a seguinte: “Até podemos falar de ‘padrões’ [mulheres, crioulos, crianças], mas não de ‘norma básica’”23); a escravidão na cafeicultura do Vale do Paraíba no século XIX estaria fora do que eu tomei como a linha geral da escravidão no Brasil, ao ter assumido o caráter de um “escravismo de plantation”; as revoltas escravas no final do século XIX, no momento do abolicionismo, teriam sido semelhantes às revoltas escravas do Caribe nas décadas de 1810 e 1830. Para além do resumo que acabo de apresentar, o eventual leitor do meu ensaio e do ensaio de crítica de Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira poderá notar que o texto deles elenca uma série de comentários que não seguem uma progressão lógica clara, sendo que muitos desses “contrapontos” guardam pouca ou nenhuma relação com o conteúdo do meu texto. O ponto de fuga deles, contudo, é bastante claro: tornei-me mais uma vítima da ideologia da mestiçagem brasileira e de sua prima-irmã, a ideologia da democracia racial, enganado que fui pela Miragem da Miscigenação.
22. Ver Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 353. 23. Gomes & Roquinaldo, “A Miragem”, p. 157.
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Tal crítica encontrou ressonância. Silvia Hunold Lara, em artigo no qual sintetizou e atualizou um livro anterior sobre a racialização das relações sociais na América portuguesa na segunda metade do século XVIII, afirmou que “ecos da formulação freyriana voltaram a se fazer ouvir em alguns estudos mais recentes, agora para justificar formas de integração social dos ex-escravos: a alforria é considerada ‘válvula de escape’ e o branqueamento algo desejado pelos ex-escravos, para negar o cativeiro”. No rodapé correspondente, meu ensaio aparece ao lado do livro de Márcio de Sousa Soares, que também se valeu de Orlando Patterson para compreender a lógica das alforrias no Brasil Colonial.24 Silvia Lara criticou meu ensaio em outra ocasião, na conclusão de sua tese sobre o tratado de paz firmado entre autoridades coloniais pernambucanas e os palmarinos em 1678. Frente à provocação intelectual contida na pergunta-geradora de meu ensaio – “por que não houve outros Palmares na história do Brasil?” –, a autora afirma que “é na relação conflituosa e tensa entre diferentes perspectivas políticas que podemos encontrar a resposta para a inexistência de mocambos tão longevos e extensos nos dois séculos seguintes – e não em relações sistêmicas que acabam por transformar a história num jogo lógico, em que a ação dos homens cede lugar a forças abstratas e genéricas”.25 A crítica de Marco Antonio Silveira guarda alguma proximidade com essa última passagem de Silvia Lara. Em um artigo sobre a politização do lugar social que negros e mulatos (escravos e livres) ocupavam em Minas Gerais, Silveira examinou as demandas que seus representantes expuseram às autoridades locais e metropolitanas em torno do que viam como direito à alforria e à inscrição positiva nas posições locais de poder. Por meio dessas demandas, prossegue, é possível observar “o desenvolvimento de um discurso identitário crítico em relação às condições políticas da época e da escravidão”. Se, por um lado, esse discurso mobilizou o tema ideológico corrente da alforria como prêmio à fidelidade escrava, por outro ele portou um real 24. Silvia Hunold Lara, “No jogo das cores: liberdade e racialização das relações sociais na América portuguesa setecentista”. In: Regina Célia Lima Xavier (org.), Escravidão e Liberdade. Temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012, p. 71. O livro anterior de Silvia Lara é Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. O livro de Márcio de Sousa Soares, criticado por Lara ao lado de meu artigo, é A remissão do cativeiro. A dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750-1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. 25. Silvia Hunold Lara, Palmares & Cucaú. O aprendizado da dominação. Campinas, Tese apresentada para o concurso de Professor Titular, DH/IFCH/Unicamp, 2008, p. 233.
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potencial contestatório à ordem escravista. A reiteração de determinados argumentos nessas petições expressaria uma “estratégia de acumulação de forças”, diante dos poderes coloniais escravistas, por parte dos setores racialmente subalternos. Segundo Silveira, foi esse caráter contestatório, que operava dentro da ordem escravista para tentar transformá-la de dentro, que escapou à minha proposta de interpretação. Ainda que longa, creio que vale citar a passagem integral em que ele formula a crítica: há que se relativizar o modelo explicativo que, concebendo a alforria não como negação, mas como parte constitutiva do quadro institucional escravista, vincula a continuidade deste no Brasil setecentista ao panorama caracterizado – para além da sistematização da legislação e dos instrumentos repressivos – por um menor desequilíbrio demográfico entre brancos e negros, pela ampliação das oportunidades de conquista da liberdade, pela constituição de importantes camadas de mestiços e libertos, e pelo estabelecimento de clivagens identitárias entre mulatos e crioulos, de um lado, e africanos, de outro. [...] A perspectiva sistêmica e de longa duração adotada por Marquese permite que se perceba como as características citadas articularam-se no Brasil dos séculos XVIII e XIX de modo estrutural, produzindo um “quadro social escravista interno altamente estável”. Contudo, essa aparência de estabilidade é certamente relativizada quando se adota uma perspectiva mais microscópica e apta a captar descontinuidades. O fato de padrões demográficos e aspectos socioeconômicos pulverizarem formas contestatórias mais ou menos radicais, como os quilombos ou o discurso peticionário, apenas nos informa que elas não podiam se organizar mais sistematicamente, e não que essa limitação implicasse necessariamente uma ordem altamente estável. A questão pode ser tratada do ponto de vista da contradição e da ambiguidade. Se houve, por um lado, institucionalização e amortecimento das tensões escravistas, houve também, por outro, um quadro caracterizado pela guerra molecular. Caso contrário, seria difícil compreender o pânico das autoridades da Capitania de Minas Gerais no decorrer dos Setecentos. O olhar da longa duração pode esvaziar o significado da violência cotidiana.26
26. Marco Antonio Silveira, “Acumulando forças: luta pela alforria e demandas políticas na Capitania de Minas Gerais (1750-1808)”, Revista de História, 158: 131-156, 1º semestre de 2008.
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Trata-se de um comentário que se reporta à dimensão temporal, à escala espacial e aos mecanismos de generalização que empreguei para construir meu texto. No que se segue, tentarei responder a esta e às demais críticas examinando como é possível manter o argumento original de meu ensaio de 2006 a partir da teoria dos tempos históricos plurais mobilizada nos demais capítulos deste livro. Uma resposta às críticas Como se leu no primeiro capítulo deste livro, Frank Tannenbaum, escorado em grande parte no trabalho de Gilberto Freyre, foi um dos pioneiros da perspectiva de exame comparado da escravidão e das relações raciais nas Américas. O eixo de sua análise residiu no contraste entre as práticas e o quadro jurídico do universo ibérico, marcadas, segundo ele, por canais abertos à obtenção da alforria e à inscrição positiva dos ex-escravos nas sociedades coloniais, e as práticas e o quadro jurídico do universo anglosaxão, que interditaram as manumissões e estruturaram as relações sociais em uma rígida linha que equivalia a cor da pele à condição escrava. Desse contraste Tannenbaum saltou para a conclusão de que o racismo institucional da sociedade norte-americana no século XX seria uma decorrência direta de seu passado escravista, ao passo que a democracia racial observável na América Latina contemporânea deitava raízes em suas relações escravistas pretéritas. A contraposição seria duramente criticada nas décadas seguintes, em trabalhos comparativos que indicaram tanto o chão comum de várias das práticas da escravidão de africanos e descendentes no Novo Mundo como, sobretudo, o papel decisivo e brutal do racismo nas sociedades pósescravistas da América Latina. Contudo, em que pese todo o acerto dessas revisões, permanece o fato de as alforrias terem sido, de fato, bem mais correntes no universo colonial e pós-colonial ibérico – notadamente na América portuguesa e no Império do Brasil – do que nas colônias inglesas do Caribe e da América do Norte e na República dos Estados Unidos da América, em uma diferença que não foi apenas de grau, mas também de qualidade.27 Reconhecer esse dado empírico das realidades do passado escravista das Américas não significa necessariamente esposar as teses de Freyre e Tannenbaum sobre uma suposta democracia racial que todos 27. Ver Berbel, Marquese & Parron, Escravidão e Política, pp. 24-27.
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sabemos nunca ter passado de um mito. Resta, como necessidade analítica, explicar por que tudo isso ocorreu e quais foram suas implicações mais amplas para as trajetórias históricas das sociedades escravistas em questão. Daí a relevância de se recorrer aos trabalhos do sociológico Orlando Patterson e do antropólogo Igor Kopytoff (este, em parceria também com Suzanne Miers), que, na virada da década de 1970 para a de 1980, trouxeram uma grande renovação teórica para os estudos sobre a escravidão, seja ela africana, americana, europeia ou asiática. Afirmar, como Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira o fazem, que o trabalho de Kopytoff não tem validade para a compreensão da escravidão no Brasil por estar respondendo aos debates sobre o caráter da escravidão na África indica, a meu ver, uma leitura redutora do projeto intelectual dele. O ponto de partida desse projeto esteve na demanda pela revisão dos modelos até então vigentes de análise da escravidão na história e nas demais ciências sociais, condicionados, desde o surgimento do movimento abolicionista anglo-saxão da virada do século XVIII para o XIX, pelo procedimento de se tomar como regra geral o que se podia observar nas sociedades escravistas coevas do Caribe e dos Estados Unidos, que se caracterizaram exatamente pela virtual ausência de alforrias. Como escrevem Kopytoff e Miers, “o tipo de escravidão anglo-americana no Novo Mundo, longe de ser uma norma, foi de fato uma criação histórica bastante incomum”, dentre outras coisas por converter o status do escravo em algo imutável, permanente, para sempre atrelado à sua condição racial. Para compreender as realidades da escravidão na África, mais sentido faria, segundo Kopytoff e Miers, adotar uma abordagem processual capaz de dar conta do movimento intergeracional de transformação de status pelo qual os escravos e seus descendentes passavam. Nesse sentido é simplesmente errada a assertiva de que “a análise de Kopytoff [...] encontra-se mais preocupada com a incorporação de escravos dentro das comunidades africanas do que com o fenômeno da manumissão em si”. Há, sim, uma longa e densa discussão do fenômeno da manumissão em Kopytoff e Miers como processo de mobilidade e de transformação intergeracional de status, que pode se prolongar por décadas e que nada diz sobre as eventuais “benignidade” ou “brutalidade” da sociedade escravista em questão.28 28. A primeira citação, de Kopytoff e Miers, está em “African Slavery as an Institution of Marginality”, In: S. Miers & I. Kopytoff (eds.), Slavery in Africa: Historical and Anthropological perspectives. Madison: University of Wisconsin Press, 1977, p. 59; a segunda citação é de Gomes & Ferreira,
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O ponto do meu ensaio foi o de que essa perspectiva processualrelacional proposta por Kopytoff e Miers, congruente com o modelo de Orlando Patterson, muito ajuda a iluminar o que se passou na sociedade escravista brasileira. Gomes e Ferreira silenciam sobre meu uso de Patterson. Vale citar outro antropólogo africanista – cujo tratamento teórico do tema da escravidão tem conexões importantes com o que propõe Patterson – para justificar, de saída, porque recorro a ele: “no estado atual das pesquisas, parece que a escravidão é vista menos como sistema social do que através da definição de escravo”.29 Tal assertiva está na contracorrente do que parece ser, hoje, uma das principais apostas da historiografia da escravidão brasileira: a multiplicação de biografias de escravos como o melhor caminho para o conhecimento de nosso passado escravista, com a abdicação de quaisquer pretensões de generalização ou de síntese.30 Uma das grandes forças do trabalho do sociólogo jamaicano está justamente em tratar a escravidão como uma relação social estruturada em determinantes privados e determinantes públicos. A submissão do escravo à sua condição, a partir da qual se daria a resistência a ela (afinal, nenhum escravo poder lutar contra sua condição de escravizado antes de ser escravizado), englobou sempre dois eixos: suas relações diretas com seu senhor e suas relações com a comunidade externa aos laços imediatos de subordinação pessoal. Mediando-as, haveria um terceiro eixo de relações, aquelas entre seu senhor e comunidade externa. Os determinantes privados se reportavam ao primeiro eixo, ao passo que os determinantes públicos diziam respeito ao segundo e terceiro eixos. Nos termos de Patterson, “o senhor, não obstante quão independente desejasse ser nas relações com seu escravo, precisava de sua comunidade tanto para confirmar como para sustentar seu poder”. Comunidade, aqui, deve ser entendida em um sentido lato, englobando não apenas o conjunto dos demais senhores de escravos e homens livres como igualmente o poder político. A alforria, como momento constitutivo essencial da dinâmica institucional da
“A Miragem”, p. 149. A discussão sobre manumissão está nas pp. 16-20 do texto de Kopytoff e Miers. 29. Claude Meillassoux, Antropologia da Escravidão. O Ventre de Ferro e Dinheiro (trad. port.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 9. 30. Ver, a respeito, um artigo programático que defende enfaticamente essa perspectiva: Jean Hébrard, “L’esclavage au Brésil: le débat historiographique et ses racines”, In: Jean Hébrard (org.), Brésil: quatre siècles d’esclavage. Nouvelles questions, nouvelles recherches, Paris: Karthala & CIRESC, 2012, pp. 7-61.
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escravidão, jogava um papel decisivo para a reafirmação do poder senhorial perante seus escravos e também dentro da comunidade, ao facultar às suas decisões privadas o ato de libertação individual de cativos que agora ingressariam, como libertos, naquela comunidade. Patterson adverte ainda que essas correlações variaram no tempo e no espaço, conforme as respostas dos escravos à sua condição, a composição das camadas senhoriais e livres e o caráter do poder político em questão – o que significa que também o papel relativo da alforria para a reprodução geral das estruturas de poder em uma dada sociedade escravista variou no tempo e no espaço.31 A despeito desse reconhecimento do peso das variâncias, o livro de Patterson peca por anular o tempo histórico. De fato, o tipo de sociologia funcionalista por ele empregada, centrada no que não varia, acaba por transformar a escravidão em uma instituição sem história. É isso o que explica, em grande parte, as reticências de vários historiadores diante do trabalho de Patterson. Seu modelo, então, não tem validade? Muito pelo contrário: ao historicizá-lo, padrões invariáveis de longuíssima duração, variações de longa e de mais curta duração se tornam mais fáceis de serem observados, descritos e explicados. Neste sentido, a proposta recente de Jeff Fynn-Paul sobre as zonas de escravização / não escravização estruturadas em torno do que ele chama de “o sistema escravista do Grande Mediterrâneo” pode vir em socorro para se examinar as linhas de continuidade e de fratura entre o mundo clássico e o mundo moderno, sem equivalê-los a uma coisa só. Fynn-Paul se concentra na modificação de fundo trazida pelas duas grandes religiões monoteístas do Mediterrâneo (cristianismo e islamismo) para a cristalização da divisão entre as duas zonas, decisiva para converter a África subsaariana na grande zona de escravização do mundo moderno.32 No entanto, ao considerar que todos os sistemas escravistas do Atlântico devem ser vistos como uma extensão do sistema escravista do Grande Mediterrâneo, sugerindo assim a unicidade das experiências escravistas atlânticas, Fynn-Paul acaba deixando de lado três rupturas de duração mais longa: a do nascimento da economia-mundo capitalista no longo século XVI, 31. Orlando Patterson, Slavery and Social Death. A Comparative Study. Cambridge, Ma: Harvard University Press, 1982, pp. 172-296. 32. Jeff Fynn-Paul, “Empire, Monotheism and Slavery in the Greater Mediterranean from Antiquity to the Early Modern Era”, Past and Present, 205: 3-40, Nov. 2009. Ver, também, a volume de Jeff Fynn-Paul & Damian Alan Pargas (org.), Slaving Zones. Cultural Identities, Ideologies, and Institutions in the Evolution of Global Slavery. Leiden: Brill, 2017.
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à qual se articulou a montagem do sistema atlântico ibérico; a da construção do sistema atlântico do noroeste europeu a partir do início do século XVII, que deu origem à escravidão caribenha anglo-saxã e francesa; a ocorrida no curso da Revolução Industrial e da descolonização das Américas, que deu origem à nova escravidão do século XIX. Ora, a segunda ruptura trouxe uma grande quebra em relação a todos os sistemas escravistas do Grande Mediterrâneo, justamente em razão dos limites estruturais que colocou à prática da alforria.33 Conforme se leu no capítulo 2 deste livro, a teoria braudeliana-koselleckiana sobre a pluralidade temporal pode nos dar uma chave para compreender essa sobreposição de diferentes tempos históricos em cada conjuntura específica das realidades escravistas do Novo Mundo. Deixo agora o campo dos modelos de análise da escravidão e passo para as demais críticas, começando por Palmares e a chamada “invenção do mulato”. Se Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira estiverem certos na avaliação de que foi a memória histórica o que converteu Palmares no maior quilombo brasileiro, então meu argumento geral sobre os limites estruturais para o sucesso da resistência escrava coletiva no Brasil ganha ainda mais força. Afinal, será bastante difícil encontrar na documentação, antes do século XIX, uma ameaça sistêmica dos escravizados à ordem escravista mais séria do que o quilombo de Palmares supostamente criado pela memória histórica. Os vários quilombos que pipocaram em Minas Gerais ao longo do século XVIII, mesmo os maiores, não foram candidatos a tanto, como aliás reconhecem Gomes e Ferreira. O ciclo de revoltas africanas na Bahia da primeira metade do século XIX seria o candidato mais próximo; abaixo, respondo à avaliação dos dois autores sobre seu episódio máximo, a Revolta dos Malês em 1835. O verdadeiro problema nos comentários sobre Palmares não está em sua eventual mistificação pela historiografia. Relendo a passagem citada há pouco, na qual os autores questionam a assertiva de que Palmares foi derrotado, observa-se nela uma contradição formal: se os quilombolas que não foram capturados ou mortos em 1695 “fugiram da repressão” que se abateu sobre a região de Palmares, isso significa que eles não estavam mais lá depois dessa data, e que portanto Palmares deixou de existir – e, se deixou de existir, significa que foi derrotado. O quilombola parece se converter em um sujeito histórico eterno e etéreo, que desaparece aqui para ressurgir ali, sempre com a mesma forma e conteúdo. Mantenho, 33. Berbel, Marquese & Parron, Escravidão e Política, cap. 1.
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portanto, minha avaliação de que Palmares foi derrotado em 1695 e que houve uma possibilidade de vitória em 1678, caso o tratado de paz houvesse frutificado.34 Tampouco há muito o que escrever sobre o problema da “invenção dos mulatos”. Os dados demográficos apresentados por Gomes e Ferreira são autoexplicativos: o que as informações que eles trazem nos mostram, à revelia do que creem, é justamente como a categoria sociológica dos mulatos jamais teve, em Angola, o peso que ela teve no Brasil. O argumento de Alencastro, portanto, fica de pé. O aspecto mais importante das críticas, creio eu, diz respeito à dimensão política do lugar ocupado pelos egressos do cativeiro na ordem escravista do final do período colonial e do momento da crise final do colonialismo português na América, ou, em outras palavras, à conflituosidade do mundo social e às escalas espaciais e temporais que empreguei. Para enfrentá-las, faz-se necessário retomar algumas das implicações da mineração para a configuração geral da escravidão no Brasil. Como se pôde ler no capítulo 4 deste livro, até fins do século XVII, em que pese a importância relativa da pecuária nos chamados “sertão de dentro” e “sertão de fora” do vale do rio São Francisco e da economia estruturada em torno da escravidão indígena nas capitanias do Sul, a paisagem escravista da América portuguesa era basicamente composta por um arquipélago de enclaves açucareiros. Dados os custos relativos do frete, a atividade açucareira – o motor da demanda por africanos escravizados – não teve como se interiorizar e, assim, articular as diversas “ilhas” representadas pelas zonas dos engenhos litorâneos. As descobertas auríferas na virada do século XVII para o XVIII quebraram com essa geografia de enclave. Os efeitos de encadeamento que o novo setor produziu (com a crescente procura por bens essenciais e de luxo, fornecidos na própria colônia ou importados, ou a sedimentação populacional em configurações urbanas de dimensões variadas, porém todas afastadas do litoral) acabaram por dar origem a uma nova paisagem econômica e social. Os núcleos agroexportadores relativamente próximos ao litoral e as zonas de criação de gado do norte e do sul se viram articulados, através de vastas ligações 34. Eis uma boa síntese da questão: “a experiência palmarina consolidaria a principal tática contra mocambos empregada pelos portugueses, a saber, destruir, matar ou escravizar seus habitantes, sem acordos. Em verdade, o caso de 1678 é o excepcional e não a regra. Ou melhor, seu resultado reforçou a regra”. Waldomiro Lourenço da Silva Junior, História, Direito e Escravidão. A Legislação Escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 141.
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terrestres, às regiões mineradoras, que lograram igualmente interiorizar a produção de mantimentos em larga escala. A demanda por escravos para atender a esse conjunto de atividades econômicas voltadas à exportação e ao abastecimento interno, desenvolvidas em espaços muito distantes, porém não mais isolados uns dos outros, aumentou notavelmente. Depois de um forte repique em fins do século XVII e nas três primeiras décadas do século XVIII, quando eles praticamente triplicaram, os preços dos escravos na América portuguesa entraram em uma fase de estabilidade secular que duraria até a década de 1820. Tal tendência nos preços dos escravos foi caudatária direta da natureza do tráfico negreiro luso-brasileiro no Atlântico Sul que, em face da organização local das operações do transporte transatlântico e da posição metropolitana em Angola, garantiu aos senhores de escravos do Brasil acesso a uma mão de obra cativa africana relativamente barata. Os africanos escravizados custavam, na América portuguesa, bem menos do que no Caribe inglês e francês.35 Nos termos precisos do estudo de Márcio de Sousa Soares, que também recorreu ao modelo da dinâmica institucional da escravidão empregado por Orlando Patterson, foi essa “porta larga” do tráfico negreiro transatlântico que permitiu manter sempre aberta –sem nunca fechá-la – a “porta estreita” da alforria no Brasil colonial.36 Com efeito, as condições estruturais do funcionamento geral da economia colonial e do tráfico transatlântico de escravos no século do ouro garantiram tanto o espraiamento geográfico como a relativa democratização social da propriedade escrava por toda a América portuguesa. Isto não quer dizer que todos os homens e as mulheres livres fossem senhores de escravos, mas sim que tornar-se proprietário de seres humanos se converteu em algo factível para os diversos estratos sociais do mundo colonial, inclusive para aqueles que há pouco ou há muito 35. A bibliografia sobre as transformações econômicas e sociais produzidas pela mineração é citada no capítulo 4. Sobre os preços de escravos na longa duração, ver Luiz Paulo F. Noguerol, Flávio R. Versiani e José R. O. Vergolino, “Preços de escravos e racionalidade econômica”, In: F.V. Versiani & L. P. F. Noguerol (org.), Muitos escravos, muitos senhores. Escravidão nordestina e gaúcha no século XIX. Brasília: Ed. UnB – São Cristóvão-SE: Ed. UFS, 2016, pp. 256-259; sobre o tráfico no século XVIII e o custo relativo dos escravos, ver Atlântico Sul, ver Joseph C. Miller, The Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Wisconsin: Madison University Press, 1988; David Eltis, “Iberian Dominance and the Intrusion of the Northern Europeans into the Atlantic World: Slave Trade as a Result of Economic Growth?”, Almanack, 22: 495-549, Agosto 2019, p. 257. 36. Soares, A remissão do cativeiro, partes I e II.
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haviam saído da condição do cativeiro. Há um bom tempo isto que acabo de escrever é saber sabido para a historiografia sobre a escravidão no Brasil. Escolha-se a esmo uma região ou atividade econômica qualquer (o que em si é uma expressão da pujança dessa historiografia) e será possível encontrar algum estudo sobre alforrias que documentará a propriedade de escravos entre os forros e as forras pesquisados. O que meu ensaio de 2006 procurou fazer foi apreender de modo abrangente esse movimento para dar conta de seu caráter acentuadamente reiterativo e, em especial, de suas implicações mais amplas. Como esses mesmos estudos documentam à farta, no plano imediato a prática da alforria sempre se deu dentro do âmbito das relações privadas entre senhores e escravos, envolvendo em via de mão dupla tanto a ação senhorial como a ação escrava, mesmo no caso das alforrias incondicionais. Cada alforria era um ato único, configurado por um conjunto de circunstâncias sempre particulares; as variações são inúmeras. Ademais, creio que será difícil – senão impossível – encontrarmos um senhor que tenha alforriado seu escravo pensando que, ao fazê-lo, estaria diminuindo as possibilidades sistêmicas de uma revolta escrava em larga escala vir a ocorrer no Brasil. O que importa, aqui, não é o que um dado senhor ou determinado escravo achou ou deixou de achar sobre o que estava fazendo, mas sim os efeitos cumulativos de práticas sociais reiteradas por múltiplos atores, por muito tempo, para o conjunto das relações sociais do mundo histórico em que se inscreveram. Quando o ato de alforria se dava pela iniciativa senhorial – o que foi mais comum –, o poder senhorial era reforçado tanto no plano dos determinantes privados como no plano dos determinantes públicos. Mas, mesmo quando obtida por meio de uma ação de liberdade que compelia um senhor a libertar seu escravo, o ato da manumissão acabava por reforçar, no plano dos determinantes públicos, o polo do poder senhorial; a exceção esteve nas conjunturas de crise estrutural das relações escravistas, quando já se apontava, por meio de atos normativos estatais, para o fim da escravidão. E o que acontecia com os libertos e seus descendentes depois da alforria? Marco Antonio Silveira, ao criticar meu ensaio, lidou com essa dimensão ao examinar as petições que esses grupos formularam aos poderes coloniais para se inscreverem positivamente nas hierarquias locais de Minas Gerais, questionando as máculas raciais herdadas do cativeiro. Segundo Silveira, ao articularem tais demandas, esses grupos, por meio de seus porta-vozes, promoveram uma progressiva politização de seus lugares sociais, chegando
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mesmo a desenvolver uma potencialidade de crítica da ordem escravista. Ou seja, ao invés de reiterar as estruturas sociais escravistas, a prática da alforria estaria produzindo sujeitos sociais que as questionavam; ao invés de garantirem um “quadro social escravista interno altamente estável” (nas minhas palavras), as alforrias e seus desdobramentos se inscreveram em um quadro generalizado de “guerra molecular” (nas palavras dele). Silveira, aliás, acaba de publicar um livro bem convincente sobre “a colonização como guerra”, no qual a imagem da guerra molecular muito o ajuda a analisar a natureza essencialmente conflitiva da colonização portuguesa na América.37 Mas, no caso específico dessas representações de setores egressos do cativeiro, acredito ser possível manter o fundo de meu argumento sem menoscabar a dimensão conflitiva do mundo social. Marco Antonio Silveira reconhece isso. Ao final de seu artigo, ele examina um episódio de grande relevo para o que estou tratando. Em abril de 1798, ao comentar uma longa representação elaborada dois anos antes por Miguel Ferreira de Sousa, capitão dos terços dos pardos de Mariana que reclamava contra as exclusões enfrentadas por pretos e pardos nascidos nas Minas (sobretudo o fato de não serem estendidos a eles os dispositivos de ventre livre da lei pombalina de 1773 e de os empregos públicos locais serem interditados aos escravos que conseguiam comprar a alforria), o então governador das Minas – Bernardo José de Lorena – escreveu ao Secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho: “atenta, pois, a justa lembrança de Vossa Excelência dos fatos acontecidos nas Antilhas, e atendendo igualmente ao grandíssimo excesso em número que levam pardos e pretos sobre os brancos nesta Capitania, parece-me será muito prejudicial se Sua Majestade favorecer mais em geral aquela casta de gente do que a tem já favorecido pelas suas sábias e justíssimas leis”. Vemos, aqui, as autoridades coloniais lendo as demandas locais dos egressos do cativeiro de Minas Gerais à luz das experiências que, naquele exato momento, estavam revolucionando o Caribe francês. Essas demandas deveriam ser rechaçadas, segundo o governador das Minas Gerais, porém com a reafirmação dos mecanismos de incorporação segregada das populações livres de cor há muito praticados na América portuguesa (ausência de interdição pública para que alforrias fossem concedidas privadamente; 37. Marco Antonio Silveira, A colonização como guerra. Conquista e razão de Estado na América portuguesa (1640-1808). Curitiba: Appris Editora, 2019.
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autorização para a fundação de irmandades exclusivas para pretos e pardos; incorporação deles em terços militares auxiliares; aberturas para seus filhos ingressarem em cargos menores nas Câmaras municipais), impedindo-se, ao mesmo tempo, que essas populações articulassem politicamente esses mecanismos como direitos, e, assim, ampliassem seu escopo. Fundado neste e em outros episódios, a conclusão de Silveira é a seguinte: se os grupos dirigentes formularam, na Constituição de 1824, uma definição de cidadania relativamente inclusiva que abarcava os libertos nascidos no Brasil, isso se devia não apenas à percepção de que as clivagens identitárias entre os africanos e seus descendentes haviam se tornado elemento importante para a manutenção do escravismo, mas também ao fato de que, nas décadas anteriores, crioulos e pardos, especialmente, vinham balizando uma luta política cotidiana definida pela acumulação de forças.38
Esta foi exatamente a linha da conclusão do segundo artigo que escrevi em parceria com Márcia Berbel, imediatamente na sequência da finalização de A dinâmica da escravidão no Brasil. E, muito em razão do diálogo que iniciamos logo na sequência com Marco Antonio Silveira, procuramos deixar isso explícito na conclusão do capítulo 2 do livro que escrevemos com Tâmis Parron. Depois, em 2011, em artigo que preparei com Parron, tivemos por alvo examinar justamente como o protagonismo dos escravos e dos chamados homens livres de cor configurou – pela resposta que encontrou dos grupos dirigentes escravistas – a natureza da definição de cidadania inscrita na Constituição de 1824.39 Não cabe, aqui, retomar tudo 38. Silveira, “Acumulando forças”, p. 154. 39. O segundo artigo com Márcia Berbel foi escrito a convite de Christopher Schmidt-Nowara, que lera, ainda em 2005, a versão inédita de nosso primeiro artigo. Ele foi apresentado pela primeira vez na Conferência Slavery, Enlightenment, and Revolution in Colonial Brazil and Spanish America, realizada na Fordham University, Nova Iorque, em maio de 2006, ou seja, imediatamente após a discussão sobre meu texto na Linha de Pesquisa em Escravidão e História Atlântica na USP. A primeira publicação veio em inglês: Rafael de Bivar Marquese & Márcia Regina Berbel, “The absence of race: slavery, citizenship, and pro- slavery ideology in the Cortes of Lisbon and the Rio de Janeiro Constituent Assembly (1821-1824)”, Social History, v. 32 (4): 415-433, November 2007. Exatamente um ano depois (maio de 2007), voltei a apresentá-lo, agora em Simpósio na UFOP e a convite de Marco Antonio Silveira, que rapidamente o publicou em obra coletiva: “A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembléia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824)”. In: Cláudia Maria das Graças Chaves; Marco Antonio Silveira (orgs.). Território, conflito e identidade. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007,
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que está escrito nesses dois artigos e no livro; importa apenas esclarecer três problemas específicos. Primeiro: a definição de cidadania de 1824 foi ou não inclusiva? Tendose em vista a trajetória da cidadania política a partir do final do século XIX nas chamadas sociedades democráticas ocidentais, ela era excludente, como aliás ocorreu em todos os demais arranjos constitucionais que estabeleceram critérios censitários para o direito ao voto e demais exclusões (das mulheres, em especial). Mas, se a analisarmos – como temos obrigatoriamente que fazê-lo, para não sermos anacrônicos – nas circunstâncias das sociedades escravistas americanas que lhes eram contemporâneas, a Constituição imperial brasileira de 1824 foi de longe a mais inclusiva ao não recorrer a critérios raciais para vetar a concessão de direitos civis e políticos aos ex-escravos nascidos no Brasil e aos seus descendentes. Segundo: por que se adotou essa definição? Os deputados brasileiros efetuaram uma leitura aguda da experiência histórica da escravidão brasileira à luz de todo o ciclo das Revoluções Atlânticas de 1776 a 1824 (independência dos Estados Unidos, Revolução de Saint-Domingue e independência do Haiti, movimento antiescravista britânico, revoluções de independência na América espanhola), mais ou menos como Bernardo José de Lorena fez em 1798, mas dando-lhe uma consistência discursiva política bem maior. Aquela experiência indicava a generalização da prática da alforria no Brasil, com a predominância, nas manumissões, dos escravizados mais afastados da vivência imediata do tráfico transatlântico negreiro (os escravos nascidos no Brasil, as crianças recém-nascidas e, sobretudo, as mulheres); a adoção, pelos homens livres de cor, dos valores estamentais da ordem religiosa colonial via participação em irmandades; a importância de negros e pardos livres para a manutenção os mecanismos de segurança da ordem escravista colonial (ingresso nos terços militares auxiliares, cruciais para a defesa do Império português na América; composição das tropas de combate aos quilombos, às rebeliões escravas, aos indígenas nas fronteiras). Em 1821, essa enorme população afrodescendente liberta ou nascida livre, compondo cerca de um terço da população total do Reino do Brasil (em que pesem as variações de capitania a capitania), portava um duplo histórico: por um lado, ela pp. 63-88. Sobre as outras duas referências, ver Berbel, Marquese & Parron, Escravidão e Política, pp. 178-181; Rafael Marquese & Tâmis Parron, “Revolta escrava e política da escravidão: Brasil e Cuba, 1791-1825”, Revista de Indias. LXXI (251): 19-52, enero-abril 2011.
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representava um dos grandes esteios de segurança da sociedade escravista brasileira; por outro lado, ela demonstrara, em diversas ocasiões, sua potencialidade crítica. Isso acontecera nas disputas por honras e distinções em terços militares; nas demandas gerais por prerrogativas e privilégios, articuladas via linguagem de direitos; em eventos críticos como no plano de sedição na Bahia, em 1798, e, em especial, na Revolução Pernambucana de 1817. A politização dos afrodescendentes livres havia sido decisiva, em 1790, para o início da Revolução de Saint-Domingue; a exclusão com base em critérios raciais de seus direitos de cidadania pela Constituição de Cádiz, em 1812, impulsionou sua participação nas guerras de independência da América espanhola ao lado dos patriotas. Nos debates de Lisboa, em 1822, e do Rio de Janeiro, em 1823, a leitura do que ocorrera nesses outros lugares das Américas e, em especial, do que se passara no Brasil ao longo do século XVIII foi vocalizada por vários deputados. Para se manter a escravidão no Brasil independente e evitar as conturbações que haviam ocorrido em outros lugares, disseram esses deputados, seria imperioso conceder direitos civis aos libertos nascidos no Brasil e também direitos políticos aos seus descendentes. Terceiro: quais foram os efeitos dessa definição? Ela não demorou a se converter em peça decisiva para a defesa positiva da escravidão no Brasil, ou seja, em uma das principais armas ideológicas para inscrever positivamente o Império do Brasil em uma arena internacional crescentemente antiescravista e, ao mesmo tempo, garantir a reprodução da ordem escravista interna contra contestações de vários tipos. A mirada comparada com a Constituição norteamericana de 1787 é esclarecedora: ao passo que esta pôde ser mobilizada na década de 1850 para atacar a escravidão nos estados do Sul, a Constituição de 1824 jamais foi instrumentalizada como arma de luta política pelos abolicionistas brasileiros. Ela somente o foi pelos senhores de escravos e políticos imperiais, para defender o caráter benéfico da escravidão brasileira como mecanismo produtor de liberdade e de incorporação civil e política.40 Na conjuntura de produção do evento da Constituição de 1824, portanto, 40. Ver, a respeito, a conclusão do livro de Tâmis Parron (A política da escravidão no Império do Brasil, pp. 337-347) e outro artigo que escrevemos juntos: Rafael Marquese & Tâmis Parron, “Atlantic Constitutionalism and the Ideology of Slavery: The Cádiz Experience in Comparative Perspective”, In: Scott Eastman; Natalia Sobrevilla Perea (org.), The Rise of Constitutional Government in the Iberian Atlantic World: The Impact of the Cádiz Constitution of 1812. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 2015, pp. 177-193.
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múltiplas dimensões temporais foram rearticuladas e ressignificadas: a longuíssima duração da escravidão do Grande Mediterrâneo; a longa duração do sistema atlântico ibérico no seu segundo longo século (c.16601808); a mais curta duração dos eventos das Revoluções Atlânticas. O evento da Constituição de 1824 foi, ao mesmo tempo, decisivo para a construção de uma nova estrutura histórica, ou seja, de um novo tempo de mais longa duração, a escravidão nacional oitocentista ou, para tomarmos de empréstimo a categoria de Dale Tomich, a Segunda Escravidão no Brasil. As chamadas rebeliões regenciais representam um bom campo de provas para o que estou afirmando. Como se leu, a Constituição de 1824 trouxe uma definição não racializada de cidadania para uma sociedade fundada na escravidão negra, que, por sê-lo, fundava-se na racialização reitarada das relações sociais. É nisto que se encontra o cerne de seu fundo ideológico. Tal definição, contudo, se por um lado foi concebida por seus formuladores como uma peça essencial para a reprodução da escravidão negra, por outro ela abria, ao mesmo tempo, possibilidades de mobilização para os grupos racialmente subalternos, exatamente por estar definida formalmente em bases não raciais. A dinâmica da alforria e suas decorrências intergeracionais expressavam uma lógica clientelar. Toda relação escorada nessas bases funciona em caminho de mão dupla: ela pode ser apropriada e ressignificada pelos clientes quando seus patrões demonstram fraqueza ou hesitações. Como peça ideológica, enfim, a Constituição de 1824 acabou por criar uma vasta arena de lutas em torno de seus significados. Se ela traduzia uma dada leitura de qual havia sido e de qual deveria ser o lugar dos egressos do cativeiro na construção do Brasil, esses mesmos grupos racialmente subalternos poderiam subvertê-la ao tentar ampliar seus limites. Essa é uma grade de leitura possível para os diversos e distintos movimentos políticos que eclodiram na década de 1830, ameaçando a precária unidade do Império do Brasil. Na capital, à esquerda dos liberais que tomariam o poder central com a queda de D. Pedro I, estava Ezequiel Corrêa das Neves, que, por meio das páginas da Nova Luz Brasileira, expunha um programa político radical de cunho federalista, republicano e antiescravista. Flávio Gomes e Roquinaldo Ferreira lembram desse exemplo para criticarem minha interpretação sobre o caráter inclusivo da definição de cidadania de 1824. Leia-se, contudo, o que Corrêa das Neves publicou em dezembro de 1829, em trecho citado pelos dois historiadores: “se trata na Corte, e nas províncias contra a Constituição, e contra pardos e negros,
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aos quais se pretende fazer caso venha o absolutismo o que fizeram a eles em São Domingos, os franceses”.41 Ora, a Constituição, segundo o jornalista e político radical, estava ao lado dos pardos e dos negros, sendo, portanto, inclusiva; o absolutismo de D. Pedro I é que ameaçava a Constituição, os pardos e os negros livres com a volta da escravidão (metafórica e real), tal como ocorrera em São Domingos com a invasão napoleônica de 1802. Nos primeiros anos da Regência, a maré montante do liberalismo radical levou à proibição do tráfico transatlântico de escravos em 1831, acompanhada nos anos seguintes de grande pregação na imprensa do Rio de Janeiro contra a continuidade do tráfico, agora como contrabando residual. Parecia que o antiescravismo estava ganhando força. Exatamente quando essa maré ameaçava virar em 1835, com o contrabando negreiro assumindo volumes próximos ao pré-1831, explodiu a Rebelião dos Malês. Ainda que derrotada pela força das armas, essa revolta escrava africana poderia ter ajudado a estancar a retomada do tráfico ilegal de escravos pelo simples efeito do medo de que algo semelhante voltasse a ocorrer em outros lugares do Império. Não foi isso o que aconteceu. Forças conservadoras abertamente pró-escravistas tomaram o poder imperial em 1837, iniciando uma série de reformas políticas que moldariam decisivamente as feições institucionais nacionais pelas próximas décadas, garantindo para todos os efeitos a reabertura do tráfico transatläntico na ilegalidade.42 Foi em resposta à agora maré montante do Regresso conservador que explodiram rebeliões na Bahia, em novembro de 1837, e no Maranhão, em dezembro do ano seguinte. A Sabinada e a Balaiada foram dois movimentos bem distintos em escopo e abrangência, mas convergentes nos esforços de traduzir em ação política radical, pela força das armas, uma leitura popular da Constituição que buscava reagir ao Regresso e ampliar os espaços de participação política para os egressos do cativeiro. Por que eles foram derrotados? Quais foram seus limites? Ainda que os líderes da revolta em Salvador tenham decretado a liberdade de “todos os escravos brasileiros natos” nas semanas finais do levante, e que alguns grupos quilombolas tenham chegado a combater ao lado dos balaios, em nenhum momento o liberalismo popular radical da Sabinada e da Balaiada foi capaz de articular claramente uma plataforma antiescravista que pudesse lançar as bases para 41. Nova Luz Brazileira, 11/12/1829 apud Gomes & Ferreira, “A Miragem”, p. 155. 42. Youssef, Imprensa e escravidão, pp. 129-177; Parron, A política da escravidão, pp. 171-178.
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uma associação entre suas lideranças mulatas e as massas escravizadas da Bahia e Maranhão.43 Essa aliança fora estabelecida em muitos lugares da América espanhola durante as guerras de independência das décadas de 1810 e 1820. Novamente, não foi isso o que aconteceu no Brasil na década seguinte. As rebeliões regenciais testaram efetivamente a Constituição de 1824 em sua potencialidade de incorporação não segregada, real e não apenas formal, dos afrodescendentes livres à ordem liberal. Ao serem derrotadas por suas próprias cisões sociais e, sobretudo, por não abraçarem o antiescravismo como parte de suas plataformas, essas rebeliões ao fim e ao cabo fortaleceram o caráter ideológico pró-escravista da Carta imperial. A Constituição do Império do Brasil pode ser descrita, em resumo, como uma brutal e infernal obra de engenharia social concebida para a reprodução ampliada e segura das relações escravistas. Nesse período, como parte dos processos globais de construção da Segunda Escravidão (ver capítulos 4, 5 e 6 deste livro), a escravidão brasileira vivenciava o notável arranque da cafeicultura no Vale do Paraíba. Até os anos finais do século XVIII, a região havia sido esparsamente ocupada por índios nômades não submetidos ao domínio branco; na primeira metade do século XIX, fora convertida em uma zona com população escrava majoritariamente africana e numericamente superior aos brancos (em municípios como Piraí essa proporção chegou a três escravos para cada branco), concentrada em propriedades cafeeiras com mais de cinquenta trabalhadores escravizados cada. As críticas levantam um problema relevante: como eram as manumissões nas áreas cafeeiras do Vale do Paraíba (Vassouras, Valença e Paraíba do Sul) no século XIX? Será que não teríamos ali um quadro semelhante de “escravismo de plantation, no qual a produção econômica se concentrava em um único produto e o quadro social era marcado por desbalanço demográfico entre brancos livres e escravos negros, amplo predomínio de
43. Cf. Hendrik Kraay, “‘Tão assustadora quanto inesperada’: a Sabinada baiana, 1837-1838”, In: Mônica Duarte Dantas (org.), Revoltas, Motins, Revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, pp. 263-294; Matthias Röhrig Assunção, “‘Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, Amar a Pátria e o Imperador’. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão”, In: Mônica Duarte Dantas (org.), Revoltas, Motins, Revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, pp. 295-327.
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africanos nas escravarias, poucas oportunidades para a obtenção de alforria e altas taxas de absenteísmo senhorial”, sugerido por Marquese?.44
A economia cafeeira no Vale de fato adquiriu os contornos de uma escravidão de plantation, mas ela se inscreveu em um quadro escravista nacional que não era configurado por tal lógica. É justamente nessa relação entre parte (o Vale do Paraíba) e todo (o Império Brasil) que se pode entender o movimento de expansão e de crise pelo qual a escravidão brasileira passou no século XIX. Vejamos no que a cafeicultura do Vale se afastou da experiência pregressa da economia de plantation caribenha, onde também houve uma vigorosa cafeicultura escravista. No Médio Vale do Paraíba (arco de Guaratinguetá, em São Paulo, a Cantagalo, no Rio de Janeiro, englobando também municípios da Zona da Mata mineira), em que pese a produção local de mantimentos, o grosso da atividade econômica se concentrou no café; os escravos predominaram numericamente sobre os brancos; enquanto o tráfico transatlântico esteve aberto, os africanos constituíram a maioria nas escravarias. Quanto ao absenteísmo senhorial, ele não foi praticado no Vale do Paraíba. Muitos pequenos e médios cafeicultores, é certo, mantinham casas dos núcleos urbanos locais, mas o local de residência principal deles era a fazenda. Mesmo os grandes potentados locais, donos de mais de uma plantation e de centenas de escravos, mantinham a prática de visitar com frequência suas fazendas satélites, articulando-as espacialmente em soluções de continuidade entre várias unidades produtivas estruturadas em torno da fazenda principal. O grande cafeicultor, assim, apresentava-se socialmente à comunidade livre e aos seus escravos como um senhor residente, não absenteísta; suas estadias na capital do Império, em Petrópolis ou nos núcleos urbanos locais (onde mantinham moradias com certo investimento material e simbólico) eram temporárias, não permanentes. Quanto às alforrias, esse é um tema que merece mais estudo, mas com base no que temos à disposição é possível afirmar que, tal como se deu em outros lugares do Brasil, pequenos proprietários alforriaram mais que grandes proprietários no Vale do Paraíba, mas uns e outros sempre mantiveram a “porta estreita” aberta. A própria arquitetura das fazendas de café expressava, em seu ambiente construído, as práticas materiais e simbólicas de uma classe senhorial residente que participava ativamente no jogo político nacional por meio do exercício 44. Gomes & Ferreira, “A Miragem”, p. 157.
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do mando na política local, e que contava com a incorporação segregada dos egressos do cativeiro para a constante afirmação de seu poder nos planos municipal e imperial.45 Em um dos poucos trabalhos que tratam das alforrias no coração do Vale, há uma constatação de grande relevo para o argumento que estou desenvolvendo. Baseado no estudo de uma grande série de inventários post-mortem de fazendeiros de café de Vassouras (RJ) lavrados entre 1839 e 1880, Ricardo Salles observou uma tendência inversa nas alforrias e nas fugas registradas nessa fonte. As alforrias cresceram até meados do século e daí estacionaram em um patamar relativamente elevado, com ligeiro movimento de queda a partir da década 1860; as fugas, pelo contrário, demonstraram uma pequena tendência de queda até meados do século, passando a crescer de forma acentuada a partir de então. Quando a porta da alforria esteve mais aberta, os escravos fugiram menos; quando ela ameaçou fechar, os escravos fugiram mais.46 Essa inflexão que Salles observou nos inventários de Vassouras lança luz sobre as relações entre a escravidão no Vale e a escravidão nacional. Em texto escrito em coautoria com ele, enfrentei diretamente essa questão.47 A demanda insaciável da cafeiculura foi crucial para a reabertura do tráfico transatlântico ilegal na década de 1830 e, portanto, para a manutenção por mais duas décadas dos padrões seculares da dinâmica da escravidão no Brasil. Desde o nascimento do Império houve diversas vozes antiescravistas, que inclusive se colocaram – na imprensa e no Parlamento – abertamente contra o escândalo do contrabando de escravos africanos que estava alimentando as fazendas do Vale do Paraíba, mas elas não lograram se converter em movimento 45. Sobre demografia, ver Ricardo Salles, E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; Breno Moreno, Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, 2013. Sobre alforrias, ver o balanço de Jonis Freire, “Alforrias e tamanho das posses: possibilidades de liberdade em pequenas, médias e grandes propriedades do Sudeste escravista (século XIX)”, Vária História, 27 (45): 211-232, 2011; sobre arquitetura, absenteísmo e política no Vale do Paraíba, ver Rafael de Bivar Marquese, “Revisitando casas grandes e senzalas: a arquitetura das plantations escravistas americanas no século XIX”, Anais do Museu Paulista. História e Cultura Material. USP. Nova Série. 14 (1): 11-57, Jan/Jun 2006, e Marcelo Ferraro, A arquitetura da escravidão das cidades do café, Vassouras, século XIX. São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, 2017. 46. Salles, E o Vale era o escravo, p. 295, gráfico 32. 47. Rafael Marquese & Ricardo Salles, “A escravidão no Brasil oitocentista: história e historiografia”, In: Rafael Marquese & Ricardo Salles (org.), Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 132-162.
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político abolicionista durante a vigência do que Joaquim Nabuco chamou de escravidão elástica. Seria necessário, em primeiro lugar, quebrar com o ponto de partida daquela dinâmica, a “porta larga” do tráfico transatlântico de escravos. Sua abolição em 1850 se mostrou decisiva para tanto, ao colocar em movimento uma série de novas tendências econômicas, sociais e demográficas. Com a explosão nos preços dos escravos, o que antes era um bem socialmente acessível – a propriedade de seres humanos – se tornou cada vez mais inacessível. Pela eficácia da cafeicultura no mercado mundial frente às demais atividades exportadoras brasileiras e àquelas voltadas ao mercado interno, o tráfico interno de escravos produziu uma crescente concentração de cativos no zonas cafeeiras, invertendo a tendência de fortalecimento nacional da escravidão que o Vale desempenhara na primeira metade do século XIX. A redução das possibilidades de obtenção da alforria tendeu a degradar a posição social e política dos afrodescendentes livres. A ideologia da alforria que fora inscrita na Constituição imperial começava a mostrar fraturas mais sérias e profundas do que as do período regencial. Não foi por acaso que a ascensão do movimento abolicionista a partir de 1879 encontrou como resposta dos grupos dirigentes imperiais a aprovação da reforma eleitoral de 1881, que quebrava com o esquema de participação política dos libertos e de seus descendentes estabelecido em 1824. Também não foi acaso que a liderança do movimento abolicionista seria exercida justamente por negros e mulatos livres: foram eles que, em aliança com as ações coletivas de resistência escrava nas fazendas, realizam a Revolução de 1887/1888.48 O fio da solidariedade rompida entre afrodescendentes livres e escravizados finalmente se atara. Termino com uma nota teórica/política. Como se leu páginas atrás, uma das críticas ao meu ensaio advertiu sobre o risco de “transformar a história num jogo lógico, em que a ação dos homens cede lugar a forças abstratas e genéricas”. A exposição lógica é sempre importante na composição de um texto de História que se pretenda metódico e, portanto, científico: não tenho outro autor em quem me respaldar do que Reinhart Koselleck.49 O 48. Talvez a melhor síntese interpretativa da abolição como revolução seja a de Jacob Gorender, A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990, pp. 133-188. Sobre a liderança negra e mulata no movimento abolicionista, ver o livro recém-lançado de Jeffrey D. Needell, The Sacred Cause. The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. Stanford: Stanford University Press, 2020. 49. Reinhart Koselleck, “Sobre a indigência teórica da ciência da história”, Estratos do Tempo. Estudos sobre a História (trad. port.). Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.PUC-RJ, 2014, p. 293.
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leitor julgará se segui ou não essa regra de ouro. O poder dos senhores de escravos, o poder do Estado escravista brasileiro não foram forças abstratas e genéricas; foram forças muito concretas no tempo e no espaço. Se elas foram apresentadas, aqui, a partir de categorias e conceitos que implicam algum grau de generalização, isso decorre do fato de nós, historiadores, sermos obrigados a recorrer à operação mental da abstração para organizar o material empírico com o qual trabalhamos. Caso contrário, nosso ofício consistiria simplesmente em transcrever o que lemos nas fontes; seríamos, então, antiquários ou memorialistas, não historiadores. E aos historiadores comprometidos com o enfrentamento das mazelas do presente cabe, sempre, enfrentarmos a rudeza das mazelas do passado. Em um memorável diálogo com C. L. R. James em novembro de 1981, E. P. Thompson disse o seguinte – e com suas palavras encerro o livro: o que se faz quando se faz História é devolver ao povo a história que historiadores confiscaram deles. Mas ao mesmo tempo, e essa é a parte difícil, o historiador pertence a uma disciplina, e assim não deve deixar que a história seja propaganda porque isso em si pode ser traição, pode dar falsas expectativas. Nós tivemos, apenas neste século, nos últimos 100 anos, manifestações terríveis de consciência popular. Não apenas o nazismo e o fascismo, mas todo o registro de cumplicidade com o imperialismo no interior de movimentos trabalhistas e social-democratas ocidentais. Assim, a História não pode ser só insurrecional. Ela deve ser rigorosa, objetiva e disciplinada. E examinar problemas e questões que podem ofender populistas, que podem ofender a esquerda algumas vezes. A busca pela verdade também é nosso trabalho.50
50. Erik W.B. Borda; Wanderson S. Chaves, “Falando com um historiador: entrevista com C. L. R. James por E. P. Thompson”, Revista Angelus Novus, 15: 167-190, 2019, p. 188.
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