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Portuguese Pages [148] Year 2007
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".*---_Direitos reservados a reprodução
€qettght o 2007 Boris e protegidos pela
Kossoy
Lei 9.6j.0 de 19.2.1,99g. É proibida
total ou parcial sem autonzação, por escrito, da editora. 1Â
edição, 2007
24 edição,2007
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIp) (Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil) Kossoy, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo / Boris Kossoy. - Cotia, Sp: Ateliê Editorial, 2007.
Bìbliografia. ISBN 978-85-7480-33
6_4
1. Comunicação de massa 2. FotograÍia História 3. Fotografia - Metodologia 4. História cultural 5. Imprensa - História I. Título. 07-1 1 8B
cDD-770.9 Índices para catálogo sistemático:
1. Fotografia:
História
770.9
Direitos reservados
à
ATELIÊ EDÌTORIAL Estrada da Aldeia de Carapicuíba, B97 06709-300 - Granja Mana * Cotia - Sp Telefax: (11) 4612-9666 www.atelie.com. br [email protected] Printed in Brazil 2007 Foi feito o depósito legal
Sumário
Da Poética à Transcendência do Tempo
Medìna lntrodução
-
Cremilda
1,3
1,7
1. Tsorue. n MEtooolocrA: CoNCErros, Pnolosrçors,
AeoRlecpNs
23
Construção e Desmontagem da Imagem Fotográfica: Relembrando Influências,
RevisitandoConceitos Por uma História Fotográfica
2.
InpnpNse
E
..25 dos Anônimos . . . 63
Hrsronre
A Fotorreportagem no Brasil: O Pioneirismo deHildegardRosenthal .... Mídia: Imagens, Ideologia e Memória
... daFotografia....
3. IuacrNÁnrosMEvonrA OsTempos
79
81
103 1,29 1.31.
BORIS KOSSOY O Relógio de Hiroshima: Reflexões sobre os Diálogos e Silêncios das Imagens . . . . . . . . . Castelos de Cartas, Castelos de
Bibliografia Sobre o Autor
Areia
1,45
159 165 173
12
Da Poética à tanscendência do Tempo
Nos anos 1970, Boris I(ossoy se revela um poeta da iotografia. As metáforas que cria nas imagens espalhadas em ensaios fotográficos e cartões postais expressam o que se passa nas mentes aprisionadas pelo autoritarismo da iitadura. Pouco depois, sai da subjetividade poética e nergulha na pesquisa da história coletiva, vai ao encon:ro dos pioneiros. Como historiador, moveu céus e terra :ãra mostrar ao mundo que, sim, o processo fotográfico -':,i ìnr,entado em terras de Santa Cruz. Hércules Florence,
. ,iJ3: A Descoberta Isolada da Fotografìa no Brasìl,li;:,:) que naffa a saga de Florence, é também um marco de ::Eor científico do autor que se entrega a uma longa e :';rsistente viagem na fotografia latino-americana. O gesto solidário do poeta e pesquisador resulta em lnúmeros artigos em revistas especializadas, livros e conferências em congressos nacionais e internacionais. Dessa opção se destaca um presente especial paÍa a historio-
grafia brasileira * o mapeamento dos fotógrafos anônimos do século XIX ao início do século XX. Mais uma obra 13
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA basilar: Dicionário de Fotógrafos e do Ofício Fotográfico no Brasil (1840-1910l. Mas, inquieto nos limites disciplinares, transita da história coletiva para a interpreta-
ção sociológica. Doutor pela Escola de Sociologia e Política em 1979, Kossoy acresce à oficina acadêmica a metodologia de leitura sócio-cultural da fotografia. Neste campo de conhecimento, passa a dar uma contribuição única que vem desaguar na atividade de ensino na Universidade de São Paulo. Professor titular, pesquisador e orientador de mestres e doutores, pârtilhâ concepções consistentes com seus alunos na teoria das "realidades e ficções na trama fotogrâfíca". A noção de que a cãmara recupera fielmente a primeira realidade se desconstrói e a
paftft daí a fotografia constrói uma
segunda realidade
ou a realidade da produção simbólica. Ao navegar pelas águas turvâs da política brasileira (Era Vargas e ditadura militar de 1964), muito úteis lhe foram as ferramentas da historiografia e da sociologia para decifrar as imagens sob censura, dos autores sob repressão. Dos inúmeros trabalhos publicados no País e no Exterior, vêm a público as reflexões que compõem uma trilogia agora completada: Fotografia dy História; Realidades e Fìcções na Trama Fotográfica; Os Tempos da Fotografia, o Efêmero e o Perpétuo. Boris Kossoy registra, neste ciclo, suas digitais. À metodologia científica, à inovação teórica e à ampliação pedagógica dos dois primeiros livros da trilogia se soma a transcendência poética do efêmero e do perpétuo. O livro mais recente de Kossov reconstitui a camiL4
DA PoÉTICA
À TRANSCENDÊNCIA
Do TEMPo
nhada do cientista e vem desembocar na liberdade subjetiva que o acompanha desde os primeiros momentos de
criador de imagens poéticas. Ao escolher a história e a sociologia parâ compreender as tramâs da fotografia, deixando em plano secundário, a evolução técnica ou o esteticismo, procurou se deter na acontecência sócio-cultural do signo. E na sutileza da leitura, não escap aúa à especulação dos tempos. A experiência humana provoca no pensador interrogâções transcendentais e a principal delas - como se dá a apropriação cotidi ana da fotografia. Daí o acento do terceiro livro da trilogia. O efêmero e o perpétuo não são meras categorias filosóficas. "Não fosse o advento da fotografia, o século XIX certamente não seria o mesmo; o mundo não seria o mesmo. O que seriam dos cenários, personagens e fatos sem um espelho com memória para registrá-los?" A essa pergunta do pesquisador, vem à tona o artistâ que, indisciplinado, se permite a metáfor a dos castelos de areias. A frase final convida à viagem âyenturosa: A imagem da foto, promessa
de perenidade,
é
agora a imagem do espelho, que se dissipa. Espelhos que guardam memórias.
Cremilda Medìna
15
Introdução
Este
livro dá seqüência
às nossas indagações e refle-
rões acerca da expressão fotográfica; expande proposições teóricas e abordagens metodológicas sobre o tema, tratadas em dois livros anteriores, Fotografia e História e Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Além disso, inclui textos sobre história, imprensa e memória, a partir da fotografia como fonte de pesquisas e /ou objeto de estudos. À exceção do último texto, "Castelos de Cartas' Castelos de Areias", os ârtigos que o compõem, revistos e ampliados, foram apresentados originalmente em congressos, simpósios e outras reuniões acadêmicas. O texto que abre a primeira parte, "Construção e Desmontagem da Imagem Fotográfica: Relembrando Int1uências, Revisitando Conceitos", constitui o plano de clivagem de minhas reflexões acerca da expressão fotográfica, um contínuo exercício de pensar a imagem cenrrado nos componentes culturais, estéticos e ideológicos constituintes de sua elaboração e recepção e, também, motivado pela própria experiência autoral e profissional t7
BORIS KOSSOY enquanto produtor de imagens. Disso resultaram idéias e formulações que temos compartilhado ao longo da nossa
trajetória intelectual. Julguei interessante relembrar, nes_ sa oportunidade, os primeiros momentos dessa trajetó_ ria, meus anos formativos, os autores, as correntes teóri_ cas, as influências decisivas, porque, penso, devemos isso aos nossos leitores e alunos. Nesse texto retomo questões abordadas principalmente nos livros antes mencionados, mas também em outÍos trabalhos, buscando reafirmar a abrangência e as múltiplas interconexões teóricas neste câmpo do conhecimen-
to. Uma tentativa, enfim, de melhor ressaltar, sob diferentes ângulos, os detalhes de uma proposição articulada,
que pretende indicar os instrumentos para a decifração dos processos de construção de realidades que dão corpo e emanam da imagem fotogrâfica. Essa é a contribuição deste texto.
No texto que se segue, "Por uma História Fotográfica dos Anônimos", abordamos a necessidade de promover-se um amplo râstreâmento regional e nacional dos fotógrafos anônimos do passado, enquanto tarefa inadiável para se estabelecer marcos referenciais, tendo em vista a compreensão dos processos históricos específicos às origens e desenvolvimento da fotografia em suas diferentes manifestações. PerseguiÍ os rastros dos fotógrafos pioneiros - que tão raros vestígios deixaram de suas passâ-
gens e cuja obra é, também, praticamente desconhecida,
ainda ausente da história
- parece-nos ser compromisso básico, por propiciar um real conhecimento da expansão 18
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA da fotografia pelo interior do Brasil (tarefa que nos pâre-
importante a ser encetada nos demais países latino-americanos). Reafirmamos a proposição dessa abordagem, que promete frutos, seja pelo ângulo de uma história cultural da fotografia, seja como contribuição à iconografia, através da identificação de inúmeros documentos fotográficos que aguardam por informações consistentes, decisivas para o preenchimento de lacunas antigas, tão freqüentes nas seções de iconografia dos museus e arquivos esparsos nas diferentes regiões do país. Os textos da segunda parte tratam de aspectos específicos à fotografia no contexto da imprensa) censura e política durante o governo Vargas, mais exatamente sob o Estado Novo. No primeiro deles, "A Fotorreportâgem no Brasil: O Pioneirismo de Hildegard Rosenthal", desracamos o papel da fotógtafa Hildegard Rosenthal, que' como outros estrangeiros refugiados da ameaça nazista, buscou no Brasil uma oportunidade de recomeçar sua rida; o âÍtigo ressalta a importância da obra de Hildegard enquânto uma das profissionais pioneiras do fotojorna[smo entre nós. No segundo ãttigo, "Mídia: Imagens, Ideologia e Memória", analisamos a postura da grande imprensa desde anos anteriores à instalação da ditadura \ arguista; o conflito entre uma política editorial anticomunista e o reflexo dessa linha que se atrela à ideologia da direita, às ações fascistas durante a Guerra Civil Espanhola, à omissão em relação à política ânti-semita na Alemanha; de outra pãrte, abordamos o papel exercido pelos mecanismos da censura, fortalecida com a instauração
ce igualmente
L9
BORÌS KOSSOY do Estado Novo. Também são tratados no texto, ainda que brevemente, a ação da censura e as técnicas de resis_ tência que marcâm o jornalismo impresso nos anos pós_ 1964. Neste momento chamamos a atenção parâ a men_ talidade dos censores, seus métodos de decifração das informações e, em especial, às possibilidades da expressão fotográfica enquanto instrumento metafórico de denúncia política. Imaginário e memória permeiam as idéias da terceira parte deste livro. Não obstante se fundamenrem em nossas proposições teóricas e metodológicas, esses textos se desenrolam num espaço mais livre em termos de narrativa e linguagem. São três textos que se fundem em reflexões acerca de temas como: os tempos da fotografia (e seus outÍos tem-
pos), o fato e a representação, o mundo do aparente e os
silêncios das imagens. Imagens técnicas interagem com nossas imagens mentais, num fascinante processo de criação / construção de realidades * e de ficções. Através da fotografía dialogamos com o passado, somos os interlocutores das memórias silenciosas que elas mantêm em suspensão. O fato se dilui. Sobre o que se passou, têm-se apenas recordações embaçadas, fatos efêmeros de uma
realidade em marcha, que se desvanecem, diluem-se nas suas próprias ocorrências. Em relação à fotografia é o instante da gênese: tempo da criação, primeira realìdade.
O registro fixa o fato, atravessa os tempos, perpetua
a
lembrança, preserva a memória, transportâ ilusoriamente o passado, ou uma idéia dele: tempo da representação, )n
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA segund(l realìdade. O efêmero e o perpétuo. Todavia, o documento fotográfico também tem seu tempo de vida' sua duração, não importando a tecnologia de registro que
o cafacteríza. Nesse ritmo
se desenvolve este
livro. A imagem
en-
quanto representação do mundo, e enquanto objeto do mundo da representação, constitui um amplo campo de pesquisas teóricas que procuramos explorar, desde as incursões embrionárias que levaram à primeira edição de Fotografia 6 Histórìa, em 1'989 (e, em suas demais edições), e que tiveram seqüência em Realidades e Ficções na Trama Fotográfìca, através de suas várias edições. Este livro, que ora se edita, complementa, de certa forma, a iriiogia iniciada com âs obras mencionadas. Não se pretendeu, nesse conjunto, esgotar qualquer questão; ao contrário, buscou-se propoÍ e estabelecer fundamentos teóricos assim como metodologias de análise e interpretação das imagens, visando a estimular o debate acerca deste fascinante campo de estudos que se articula com diferen-
tes áreas do conhecimento, na esperançâ de contribuir para o pensamento fotográfico. Agradeço à Editora Perspectiva e ao Instituto Moreira Salles pela cessão das fotos utilizadas neste livro. Sou grato a Maria Luiza, minha companheira, por suas atentas e sensíveis observações nos momentos em que pensava na estrutura deste livro.
21
Tsonre n MEroDoLocIA: CoxcsrTos, PnopostçÕEs, AsonoecENS
Construção e Desmontagem da Imagem Fotográfica: Relembrando Influências, Revisitando Conceitosl
Pretendo, neste texto, revisitar conceitos e abordaqens metodológicas que nortearam minha produção teó-
:ica e histórica em torno da imagem fotográfica, bem como situar reflexões mais recentes, aqui agregadas a esses estudos, uma experiência inter e multidisciplinar que
:oi ganhando forma e substância ao longo do tempo. Destaco algumas das questões centrais que pautâram essa :rajetória, com o objetivo de contribuir para um aprofun-
j.amento do debate nessa área de investigações, princi:almente por constatar o interesse cada vez maíor que os :esquisadores de diferentes áreas das ciências humanas ;èm manifestando em reÌação às possibilidades da foto-
-.
Texto expandido da conferência apresentada pelo Autor por ocasião do ciclo "La Imagen como Fuenre de Investigación", promovido pelo Instituto Mora, Cidade do Mérico, ourubro de 2002. Foi publicado originalmente sob o título "Construção e Desmontagem da Informaçào Fotográfica: Teoria e História", Reuista USP (62):224-232, jun.ago. 2004 (São Paulo, Universidade de São Paulo); e houve, ainda, uma revisão posterior que deu origem ao presente texto.
25
BORIS KOSSOY gfafia enquânto instrumento de conhecimento, análise e reflexão. Julguei ser uma boa ocasião para relembrar autores e destacar as influências que recebi em meus anos formativos, assim como os caminhos descobertos posteriormente, quando jâ me achava definitivamente envolvido na pesquisa sobre a fotografia.
ANOS FORMATIVOS
Uma palavra é necessáÀa para situar o estágio em que se achavam os estudos sobre a fotografía nos primeiros anos da década de 1970, momento em que iniciei minhas pesquisas. Desde logo, duas questões me intrigavam. A primeira dizia respeito à quase total inexistência de textos históricos acerce- da fotografia no Brasil, exceto alguns artigos esparsos de autoria de Sylvio da Cunha (Á Manhã) e de um ensaio pioneiro de Gilberto Ferrez, escrito ainda nos ânos 1940 e publicado no princípio da dêcada seguinte2; a segunda questão era ampla e envolvia aspectos de ordem teórica acerca da natureza da fotografia, seu papel enquanto documento histórico e, também, como forma de expressão artísticâ. Quanto mais me esforçava em compreender a natureza da imagem fotogrâfíca, suas características próprias, seu estatuto, maior necessidade sentia de buscar conheci2.
Gilberto Ferrez, "A Fotografia no Brasil e um de Seus Mais Dedicados Servidores: Marc Ferrez (1843-1,923)", Separata da Reuista do Patrimônio Histórìco e ArtísticoNacional, (10), 1953 (Rio deJaneiro).
26
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA mentos em diferentes disciplinas. Percebi que, se não fosse objeto de abordagens multidisciplinares, a fotografia
iamais poderia ser compreendida em suas múltiplas facetas. As proposições teóricas sobre a imagem, subme:idas aos conceitos pensados em torno - e em função lo tradicional signo escrito, não me convenciam e, ainda roje, penso que muitos navegam por um mar sem norte. O caráter episódico dos modelos clássicos das históiias da fotografia chamava a atenção: histórias marcadas :ela tradição positivista e desprovidas de qualquer preo;upação conceitual. Se hoje podemos questionar a sua . ahdade no tocante à métodos e abordagens, essas obras .ram, no entanto, as referências de que dispunham os -:reressados na área. Os primeiros ensaios historiográficos -:rernacionais ainda punham o acento na história da té.c-t.a; ou tentavam uma abordagem estética, porém :-svinculada da trama sociocultural, o que resultava em :-lacões de autores e imagens desconectados do processo
:-srórico3. Nos anos de 1970 ainda eram raros) na átea,
: irìstem,
obviamente, exceções à essa tradição. Nesse sentido lembra-
:ros os conhecidos textos de \íalter Benjamin, que
se
constituiriam
.::r reÍerência ao longo do tempo: "Pequena História da Fotografia" e --{ Obra de Arte na Época de sua Reproclutibilidade Técnica,'; e, por :remplo, a abordagen-r de Gisèle Freund, desde seu pioneiro ensaio de ,936. "La photographie em France au dix-neuvième siècle", que vai :lma linha completamente contrária à de Beaumont Newhall e Helmut Gernsheim, que estão entre os autores mais divulgados. Sobre esse :.sunto, ver, do autor, "Reflexiones sobre la Historia de la Fotografía,', =::: Joan Fontcuberra (ed.), Fotografía. Crisis de Historia, Barcelona, --::Í. 1003, pp. 95-'l05.
27
BORIS KOSSOY os trabalhos elaborados dentro de uma perspectiva cien-
tífica. O fenômeno brasileiro é semelhante ao que ocorreu na América Latinaa. Tal era, muito brevemente, o quadro acercâ dos estudos da fotografia naquele momento, que se manteria até. pelo menos os meados dos anos de 1980. Era necessário buscar outras inspirações
e
reflexões para uma compreen-
são aprofundada do papel da imagem fotográfica seja em
relação ao seu objeto, seja como meio de conhecimento. E, nesse sentido) avaliar seu alcance e potencialidades enquanto instrumento de pesquisa, análise e interpretação da vida histórica, sua importância enquanto documento histórico e social, e elemento de fixação da memó-
ria, como objeto de arte, enfim, entre outros de
seus
múltiplos usos e aplicações. Faço, aqui, uma digressão em relação aos autores que, através de suas abordagens, sinalizavam caminhos promissores de investigação; autores que influenciaram decisivamente as formulações que desenvolvi ao longo de meu percurso. Foram fundamentais as leituras dos textos de Francastel, assim como os estudos sobre a crítica de fontes, tal como foi discutida pelas diferentes correntes da teoria da história, porém definitivamenre embasada na
4.
Tratamos deste tema em "Contribución a los Estudios Históricos de la Fotografía en América Latina: Referencias Históricas, Teóricas y Metodológicas", V Coloquio Latìnoamericano de Fotografía 179961, México, D.F. Consejo Nacional para la Cultura y las Artes/Centro de la Imagen, 2000, pp.77-81,.
28
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA ,rnha da escola dos Annales, nos ensinamentos de Marc
Bioch, Lucien Febvre, entÍe outros mestres da nouuelle ì:istoire. As abordagens da história nova em relação à rercepção do fato e à extensão do conceito de documento
:mpiiaram o horizonte para a nossa proposição de uma ;rítica que se mostrasse eficaz para sua aplicação às fon:es fotográficas. Encontrei inspirações seminais na linha ;a história das mentalidades, através de Jacques Le Goff, \hchel Vovelle, entre outrosl e, posteriormente, nos estu;os do imaginário, com vistas a um maior aprofundamento :a problemática da representação, nas questões da mani:ulação dos fatos históricos, tema estudado por Marc I:rro, que encontra plena aplicabilidade no uso dirigido ;ue se tem feito das imagens ao longo da história. À semiótica de Pierce foi provocadora. Contudo, des:rbri na fenomenologia de Edmund Husserl e na icono,,,eia de Erwin Panofsky sólidos alicerces para as minhas :,,rmulações teóricas. É claro que seguimos aprenden-
:.ndo e nos deparamos, neste percurso, com Roger Char:;r. Carlo Ginzburg, entre outros, a iluminarem cami:ros. A essas descobertas, devo ainda acrescentaÍ as ::otícuas discussões que mantive com a socióloga Gisèle ::eund (com quem tive o privilégio de estabelecer cordiais ,:cos de amizade e, com ela, participar de colóquios de :--,tografia no México e na Europa). Suas abordagens trour-râm contribuição definitiva aos esrudos históricos da : :'rografia, marcados pela tradição positivista. Se, enquanto historiador e estudioso das imagens re-;bi desses âutores influências teóricas que foram decisi29
BORTS KOSSOY vas, não poderia deixar de mencionar inspirações anteriores e posteriores advindâs de outÍas formas de expressão
que também permearam meu repertório: a arquitetura, certamente, minha formação primeira, a literatura, as artes plásticas e, naturalmente, o cinema. Magritte, Dali, De Chirico, Escher, Poe, Dostoievsky, Doyle, Huxley, Borges, Calvino, Antonioni, Bergmann, Bufruel, Kubrik, entre tantos outros mestres, despertaram-me para as ficções da realidade. Foram influências importantes que recebi. A1i-
mentavam meu espírito enquanto fotógrafo profissional, atuando em diferentes áreas, mas que buscava também, um lugar ao sol, numâ tentâtiva de carreira autoral e, também, como pesquisador ao longo de todo o meu percurso. Minha aproximação ao estudo das imagens se fez
por
essas vias. Assim
foi no início, assim tem sido sempre.
FOTOGRAFIA E CULIURA
Hâ cerca de sessenta anos, Pierre Francastel chamava a atenção para a importância das imagens enquanto meio
de conhecimento; observava, também, que as
"[...] Artes
servem, pelo menos tânto quanto as Literaturas, como
instrumento aos senhores das sociedades para divulgar e impor crençâs"5. Sua obra, que procurava estabelecer as bases de uma sociologia da arte, continua sendo referên-
cia, e o sentido que ele propunha para essa disciplina
5.
se
Pierre Francastel, A Realidade Figuratìua: Elementos Esnuturais de Sociologia da Arte, São Paulo, Perspectiva, 1,982, p. 3.
30
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA iundamentava na afirmação da existência de um pensanento estético, plástico. Esclarecia que "[...] existe um _:ensamento plástico como existe um pensamento mate-
rático ou um pensamento político; e é essa forma de penlamento que até hoje foi mal estudadã"u.8, após Fran;astel, não parece ter havido significativas mudanças nesse
;uadro. A imagem, em especial a fotográfica, sempre se viu ::adicionalmente relegada à condição de 'ilusrração' dos :;\tos e 'apêndice' da história. No entanto, a documen::ção iconogrâfica é uma das fontes mais preciosas para ,' conhecimento do passado; trâta-se, porém, de um co:recimento de aparência: as imagens guardam em si ape-as indícios, a face externa de histórias que nào se mos-
:am,
e que pretendemos desvendar.
É necessário que se compreenda o papel cultural da :rrografia: o seu poderio de informação e desinformação, ';a capacidade de emocionar e transformar, de denunciar manipular. Instrumento ambíguo de conhecimento, ela = :rerce contínuo fascínio sobre os homens. Ao mesmo tem:.,1
em que tem preservado as referências e lembranças do
-:drvíduo, documentado os feitos cotidianos do homem . das sociedades em suas múltiplas ações, fixando, enfim, : nemória histórica, ela também se prestou - e se presta - aos mais interesseiros e dirigidos usos ideológicos. O :ape1 cultural das imagens é decisivo, assim como decisi;.s são as palavras. As imagens estão diretamente relacio:.
Idem, ibidem.
31
BORIS KOSSOY nadas ao universo das mentalidades e sua importância
cultural e histórica reside nas intenções, usos e finalidades que permeiam sua produção e trajetória. Toda fotografia resulta de um processo de criação; ao longo desse processo, a imagem é elaborada, consffuída técnica, cultural, estética e ideologicamente. Trata-se de um sistema que deve ser desmontado para compreendermos como se dá essa elaboração, como, enfim, seus elementos constituintes se ârticulam. Para tal proposta, devemos perceber a complexidade epistemológica da imagem
fotogrâÍìca enquanto representação e documento visual. Antes, porém, de avançarmos nessâ trilha, devemos nos
referir à abrangência da expressão fotográfica e às amplas possibilidades de investigação que, acerca- desse meio, podem ser encetadas, a partir do estudo de suas aplicações como registro das inumeráveis atividades humanas. VERTENTES INTERDISCPLINARES DE INVESTIGAÇÃO
Pretendemos, a seguir, referir-nos às linhas de pesquisa que temos desenvolvido. Nosso enfoque torna-se menos
abstrato seguindo o diagrama A Expressão Fotográfica, onde buscamos explicitar a abrangência de investigações
que podem ser abordadas pelos esrudos da fotografia, assim como as interconexões que decorrem deste mode-
lo. Situamos aqui a fotografia enquanto: 1. orlrro de estudos históricos e teóricos específicos; 2. poNrr de informações referentes às mais diferentes áreas do conhecimento.
32
OS TEN,IPOS DA FOTOGRAFIA
A Exprcssão Fotográfica: Vertentes Interdisciplinares dc Investigação
-
r fotografía corno OBJL,TO
a fotografia como FONTE
Je investigações específicas históricas e teóricas
dr inlormrçòe. reÍ!rcilte\;\ mJi\ d
i
feren res
a
re11lo
:1\\;nro
-- .Ìoria da ForograÍir evoÌução da
fotografia
meio de ionh.. irnerrro e eìemento dc firrçio dr m.rnória
]
.:.rrrro meio dc comuniclçro
:rrma de expressão ao longo
hisrorieo-irrltural
de sua história
dâ TF.cNoLocrA fotográfica desde o advento do meio até os dias atuais
:ória das origens e da expansão do ofício e da atividade dos rorricnr.los
'
diferentes espâços e pcríodos
' .:ória do retrato fotográfico, da documentação social e dos incontávcis usos - :rlicações da imagem nas: ciências cxatas, biológicas e humanas; artes, r::uitetura e demais áreas do conhecimento; comércio, indústria, turismo
:: -:
e
olltras atividades econômìcasl publicidade, propaganda e na imprensa, :special no fotolornalisrno;da fotografia como forma de expressão artística, e ideológica; e da cresccnte difusão mundial da imagern através clos eletrônicos; trâtâ-se dos -cssuNros fotográfìcos: amplo espectro temático
:-:ural -.:os
:
:umental e criativo, de múltiplas naturezas, registrado nos últimos 160
r1 ls
Ér*da
@rt6
*l
33
BORIS KOSSOY
Na realidade, uma fotografia não deixa de ser, ao mesmo tempo, oBJETo e FONTE, posto que se refere sempre
a um mesmo início, â uma gênese única: sua criação e mateúalização se deram em determinado local e num preciso momento. Trata-se de um documento que propicia estudos segundo diferentes abordagens e distintas verrentes de investigação. No entanto, essas investigações não podem se dissociar, na medida em que têm como núcleo central os próprios documentos fotográficos7. A história da fotografia é centrada no esrudo sisremático da fotografiâ em seu passado histórico: às causas que levaram ao seu advento em diferentes espaços numa mesma época, seu aperfeiçoamento técnico, sua adoção enquanto meio de informação e expressão, sua popularização e penetração nos diferentes setores da sociedade, sua expansão comercial e industrial, seu consumo e prática pelas diferentes classes sociais, sua evolução estética, tecnológica, sua abrangência temática, seus autores consagrados e anônimos. Além destes e outros temas, é de decisiva importância a reflexão acerca dos usos e aplicações das imagens ao longo de sua história. Este é o objeto da história da fotografia. A iconografia fotogrâfica diz respeito a paÍtes ou ao conjunto da documentação pública ou privada que abrange um largo espectro temático, produzida em lugares e períodos determinados. As fontes que as compõem são 7.
Boris Kossoy, Fotografia dr História,2. ed. rev., São Paulo, Ateliê, 2001, pp. 53-54.
34
OS
TEÀ,1
POS DA FOTOGRAI-'IA
reios
cle conhecimento: registros visuais que gravam :ricroaspectos dos cenários, personagens e fatos; daí sua -:,rça documental e expressiva, elementos de firação da
:,;mória histórica individual e coletiva. Em função de ::rj características, constituem documentos decisivos para
.
:ronstituiçào hrstórica. Cs documentos fotográficos constituem, enfim, as : rie s primordiais para as diferentes veÍtentes de investi:.:ão. disso resultando uma retroalimentação contínua -. liormações, na medida em que consideramos a inter: ..;,:Ìinaridade das abordagens. ,--r ,lbservarmos o diagrama, há, arnda, outÍa natll-:-j l; investigações que poderia enquadrar-se na primei-, -::-nte assinalada (a fotografia como objeto de estu-
: ì: -:ata-se da proposição de um coïpus conceitual para ::.:io das imagens, sobre o qual se assenta também ---- ::odelo metodológico de análise e interpretação. Um .::,:ouço teórico, enfim, que visa à desmontagem (deci-
-:.::,r técnica, cultural, estéticâ e ideológica das rma:: . :oiogÍáficas, sejam elas do passado, sejam contem- - ::a -as.
-.:es fundamentos ::
',
e a metodologia se constituem no :r,nceitual para o desenvolvimento das linhas de in,
:r--::.Òes históricas assinaladas antes, sua espinha - -.:,, Tal eixo conceitual seria, praticamente, uma ter-; -: -;iteflte, um campo de estudos em si mesmo isto
-
:: --: :rsciplina autônoma do conhecimento -, que pos: ". .mpla articulação com outras áreas das ciências r - : :!. De forma esquemática, podemos dizer que es35
BORÌS KOSSOY sâs três vertentes de investigações, articuladas entre si,
englobam nossos estudos sobre a imagem fotogrâfica.
A NATUREZA INDICIÁRIA DA FOTOGRAFIA
Giovanni Morelli, Conan Doyle (através de seu ilustre personâgem Sherlock Holmes) e Sigmund Freud foram mestres no emprego de métodos de investigação a partir de indícios, sintomas e sinais, um "paradigma indiciário", como definiu Ginzburgs. A partir do exame de detalhes aparentemente sem importância de um retrato, como, por exemplo, os lóbulos das orelhas ou o formato das unhas, Morelli notabilizou-se pela descoberta de exemplares não autênticos de obras de arte pictóricas. Ginzburg retoma Castelnuovo, autoÍ que estabeleceu a comparação entre o método indiciário de Morelli e o que era empregado, na mesmâ época, pelo fabuloso Sherlock Holmes, como podemos ler nos contos policiais de Conan Doyle, seu criador: "O conhecedor de arte ê comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria"e.
8.
Carlo Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais,São Paulo, Companhia das
Letras,2001. Ver, em especial, o capítulo "Sinais, Raízes de um Paradigma Indiciário", p. 145. 9. Apud Carlo Ginzburg, op. cit., p. 145.
OS TËMPOS DA FOTOGRAFÌA Em sua obra, Ginzburg também destaca o mérito do
:i::dioso de arte E.'tWind10 no tocante à reavaliação que ..:= último faz acerca da importância do método de l"I:lel1i - num dado momento muito criticado e, mais -.:de. julgado mecânico, positivista etc. I7ind demonstra : j-. ao contrário, a atitude de Morelli em relação à obra -: ìne era avançada e que a "psicologia moderna" esta:-: ;ertamente ao seu lado: "[...] os nossos pequenos ges: -. inconscientes revelam o nosso carâter mais do que -::-quer atitude formal, cuidadosamente preparada por
:,!-::. Sob este âspecto, é de se sublinhar que Freud ad:-:.r ser o método de Morelli "estreitamente aparentado ; :.;nica
da psicanálise médica", na medida em que esta .,nente penetrava "em coisas concretas e ocultas atraÇ' .. ie elementos pouco notados ou despercebidos"l2. O autor estabelece a analogia existente entre os méto:, i .ie Morelli, Doyle e Freud (todos os três, curiosamen:r". Jtm a mesma formação em medicina), esclarecendo ;:: -ilos três casos, pistas talvez infinitesimais permitem :-i::ar uma realidade mais profunda, de outra forma ina--;rel. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de ::-;dl, rndícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pic::::;os (no caso de MorelÌi)". Nos três casos, prossegue o -r::,,1. "entÍevê-se o modelo da semiótica médica [...] ";
ìbìdem. O autor se refere, em particular, à obra de -Wrnd, Arte :,,:srchìa, Milão, [s.e.l, 1972.
.::qt,
: . .-,::tJ C. Ginzburg, ' :.-,t. p. 147.
op. cit., pp. 145-146.
.1
/
BOR]S KOSSOY em relação às ciências humanas, estas também começarão a se afirmar segundo "um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica", completa Ginzburgl3. Este paradigma indiciário, na realidade, derivaria de
um antigo saber caracterízado pela "capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamen-
te"t4. E o grande exemplo dessa capacidade remonta aos primitivos caçadores, que durante milênios aprenderam a farcjar, rastrear, decifrar enfim, pistas deixadas pela presa, pistas que permitiam reconstituir "uma série coerente de eventos"ls.
Ginzburg reconhece a diferença fundamental entre analisar os vestígios (pegadas na areia, fezes, cinzas de cigarros) e as escritas, pinturas ou discursos. Morelli ousou detectar nos quadros (portanto no "interior de um sistema de signos culturalmente condicionados',) aqueles que ele acreditava serem invoÌuntários, isto é da ordem dos "sintomas (e da maioria dos indícios)". Era justamente nesses signos traçados aparentemente sem intenção, isto é, "sem se aperceber", gue Morelli intuía os aspectos mais reveladores da individualidade do arrista, ral como certas palavras e frases que os homens incorporam, sem se darem conta, em suas falas e escritosl6.
13. 11. L5. 16.
Idem, pp. 150-151. Idem, p. 1.52.
Idem, ìbìdem. Idem, p. 177.
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA Os documentos escritos e iconográficos, assim como
,; restos mâteriais que nos vieram do passado (os monu-:iltos arquitetônicos da Antigüidade, os sarcófagos do - ::ente, os utensílios de povos pré-coÌombianos etc.) nos ::zem vestígios, indícios para estudos especializados vi-
',;::Jo
à determinação de datas, técnicas e materiais
utili-
-.jos em sua produção, assim como para tomarmos co-;;imento de determinados fatos e situações que teriam ,"-'rrido em épocas precisas. Também na imagem foto=::ica encontÍamos indícios, sejam eles voluntários ou :-. rÌuntários, materializados mediante um sistema de :::resentação visual que se tornou factível nas primeiras *-;adas do século xx. A partir da abordagem de Ginzburg :, jemos traçar um paralelo com a nossa proposição, pois ::.,f,nstituir o processo que determinou o documento fo: - ::áfico foi a meta que estabelecemos desde o início, : - r o fito de compreender a cena registrada, instante da .,:-,rrência do fato e da gênese do próprio documento; .,:-, significa realizar a operação inversa, buscando de::-Ìar os elementos estruturais do documento - o objeto-lqem, enquanto um resíduo que nos veio do passado, ::r fragmento visual da realidade tomado em determina:- iugareépoca]7. \a fotografia, os indícios são constituintes formais :, Jocumento quando este se tratar de um artefato foto-
Boris Kossoy, A Fotografia como Fonte Histórica; lntrodução à Pes.;:isa e Interpretação das Imagens do Passado, São Paulo, Muser.r da Ìrdústria, Cornércio e Tecnologia de São Paulo, 1980, p.31 (Museu s Técnicas,4).
i9
BORIS I(OSSOY grâÍico (suportes, técnicas e materiais empregados para a sua confecção); eles estão presentes também, obviamen-
te, nos conteúdos das imagens, enquanto reproduções icônicas do objeto registrado. Uma dupla arqueologia, como já colocamos em outros trabalhos, faz,se necessária para determinarmos precisamente a gênese e história do documento em si (reconstituição do processo que gerou o artefato), e o conteúdo da representação (recuperação em detalhe dos elementos icônicos que compõem o registro visual, de forma a situarmos precisamente a cena gravada no espaço e no tempo)r8. As representações fotográficas contêm em si informações iconográficas sobre o dado real e, em função disso,
são de grande valor para a pesquisa e interpretação nas
ciências humanas, exatas e biológicas. As análises que técnicos da Nase vêm fazendo, através das fotografias de rochas e do solo enviadas pelo jipe-robõ Opportwnity relativas à possibilidade da existência de oceanos
e
mesmo
de formas de vida em épocas remotas no planeta Marte
-,
constituem contribuição única para o progÍesso da ciência. Da mesma forma, as fotografias que registram os anéis de Saturno, a erosão das rochas, a forma das montanhas e da paisagem em geral, as ossadas pré-históricas, as espécies animais e a vegetação do planeta, os Íesros arqueo-
lógicos, os resíduos orgânicos e mârcas do passado, o
1
8.
Em
F oto gr af ìa ú' H is tória, op. cìt., explicitamos em detalhe a metodo, logia de investigação iconográfica proposta para o estudo das fontes
fotográficas. Ver especialmente cap. 4.
OS TEMPOS DA FOTOGRAFÌA :i:Ì\'imento de uma rua na segunda década do sécuÌo xx: . :rquitetura dos edifícios, as fachadas de estabelecimen, r comerciais e de serviços, o vestuário dos transeuntes, , :.lplantação de postes para a instalação elétrica ou te.:,ìnica, entre inúmeros outros temas e cenários, consti:--l vaÌiosa contribuição para a Íecuperação das infor-;ões, pela sua força documental. -\ imagem fotográfica é, portanto, indiciária, na me- :: em que propicia a descoberta de "pistas de eventos -- , diretamente experimentáveis pelo observador". Tra:--e dos indícios existentes na imagem (iconográficos), e -
acrescidos de informações de natuÍeza histórica, geo-
-..
:::lca,
geológica, antropológica, técnica, a carregam de ".-::do. Um conjunto de informações escritas e visuais ::.. associadas umas às outras, nos permitem datar, lo-
-: :rar geograficamente, identificar, recuperar enfim, ::'r-histórias de diferentes narurezas implícitas no do-111().
::-
)etalhes aparentemente insignificantes não podem ser -,nsiderados. No caso de uma cena de rua, aÌgum ele-
ï::_:,r fora da ârea de interesse, à primeira vista sem im: .:::ncia, pode ser decisivo para a datação da fotogra-
::
iramos apenas dois exemplos: os edifícios registrados -r-*--::rre â sua construção permitem uma datação relati;.
"L--:lre simples pelo estágio em que se encontrava a res:r,::-" a obra em dado momento. O registro de cartazes r
rr-r-: jos nos muros e paredes ao fundo da foto (elemen-
-.., :rrtanto, periféricos
ao tema principal), referentes a :'r:-'iìts que tiveram lugar à época como shows, apresen-
n"
41
BORIS KOSSOY tações teatrais, inaugurações etc., possibilitam a recuperação das datas mediante a pesquisa de periódicos. Indi cios inuoluntários não são raros numa fotografia.
No caso de um retrato, por exemplo, os mencionados indícios são fundamentais para a interpretação na medida em que podem ser reveladores do caráter do retratado, particularmente quando este é fotografado sem que o saiba. No entanto, os retratos são ambíguos, pois o retratado pode representar determinado papel diante da cãmara.Isto se apresenta ao intérprete como evidência definitiva ou indício de uma âtitude a ser investi gada?
APARÊNCIA E EVIDÊNCIA
O vínculo com o real sustenta o stcttus indicial da fotografia. No entanto, a imagem fotográfica resulta do pÍocesso de criação do fotógrafo: é sempre construída; e também plena de códigos. Não podemos perder de vista que os indícios que a imagem fotográfica apresenta reÌativamente ao tema, foram gravados por um sistema de representação visual. Se, por um instante, durante a gravação da imagem, houve uma conexão com o fato real, no instante seguinte, e para sempre, o que se tem é o assunto representado; o fato se dilui no instante em que é registrado: o fato é efêmero, sua memória, contudo, permanece - pela fotografia. São os documentos fotográficos que agora preyalecem; neles vemos algo que fisicamente não
é
tangível; é a dimensão da representação: uma 42
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA ambígua que envolve os receptores, pois, dedo obleto retratado, desliza entre a informaIìIocso âcesso ao dado real, quando através da imafuogrâfica, será sempre um acesso à segunda realiaquela do documento, a da repÍesentação elaboraT-rata-se do acesso ao mundo da aparência, um mundo
lrÍEserva as formas de um objeto ou cenário ou as ffies de um indivíduo recortadas no espaço, paralisatro tempo, um mundo imaterial, logo intangível, não
do se a imagem é analógica ou digital. A, apaia é a base da chamada evidência fotogrâfica. O obpode achar-se registrado tal como se apresentava em mncretude; personagens podem apaÍecer sorriden-
ir
introspectivos, cenários podem ser distorcidos, detaomitidos, tratârem-se de pura encenação. A evidênnao pode deixar de ser questionada.
A CARACTERÍSTTCE INDICIAL E SEUS LIMITES
Achamada característica indicial vem, em geral, acomde outro conceito: o de "fotografia documen-
mhada
rrü"- Dificilmente
se discute o
fim
conceito de índice fotográ-
em relação às imagens "não documentais", por remplo, aos fatos que nunca existiram, isto é, às realidades inventadas, ficcionais, enfim, aos trabalhos de expessão pessoal que podem, também, ser obtidos fotograficamente. Já no que se refere às realidades ditas frcnrais - cujos respectivos registros nos fornecem ima43
BORÌS KOSSOY gens "documentais"
-,
buscou-se sempre associar valo-
res morais como a uerdade, por exemplo. Essa pretensa ceïteza ganhou força por conta de ser a
fotografia considerada, desde seu advento, como um registro "objetivo", "neutro", produto de um mecanismo óptico-químico "que não pode mentir", um duplo da realidade, uma reprodução mimética do objeto que se achava frente à objetìva. Nada mais adequado que essa "objetividade" fotogrâfica para a comprovação dos preceitos do positivismo. Além disso, deve observar-se que o indício se refere sempre ao fragmento registrado, contudo, é um recurso comum tomar-se o fragmento pelo todo, com o objetivo de generalizar-se toda uma realidade, todo um contexto. A ideologia influencia no enquadramento da foto e nos cortes posteriores do editor de imagens. Esse recurso alimenta uma das práticas recorrentes da imprensa
visando à manipulação das informações. A fotografia aplicada à atividade científica, policial, jornalística, entre outras, teve - e têm - a finalidade de comprovar, testemunhar; certamente o índice fotográfico indício, pista, porém não pode ser tomado dogmaticamente como uma uerdade histórica. Poucos questionaram que a característica indicial na fotografia - que estâé um
belece a evidência e, por extensão, a "verdade"
-é produto
de uma elaboração técnica, cultural e estética (portanto ideológica) por parte do auror da representação, e de outros co-autores que, de alguma forma, interferiram na imagem. Tem-se, assim, um documento especular da apa-
rência, produto de um processo de criação/construção, 44
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA
--:iguo por excelência.
Presta-se como evidência docu-
:-::al de algo que ocorreu na realidade concreta; tal, :,.:.ÍÌ. não significa tratar-se de um registro fidedigno -,: :;ahdade ou uma verdade absoluta. Trata-se apenas :: iÌrÌa uerdade iconográfica, aspecto fundamental que ::- - llaremos adiante. CONSTRUÇÃO E DESMONTAGEM DA IMAGEM FOTOGRÁFICA : ^..':.i ttt -i e
nto s Teóricct s
Fm linhas gerais, buscamos estabeÌecer um conjunto :rincípios que pudessem contribuir para um melhor
:. , :ecimento sobre a rratLrïeza da fotografia. Investiga: :. e reflexões nesse sentido foram sendo desenvolvidas : ::1re um largo período: era necessário compreender -.-ior sua gênese e trajetória, sua condição de objeto e -:::-m, sua natureza fragmentária, suas características :"::;íiicas, sua autonomia e realidade própria, sua esté: :,. enfim. Esse conjunto de princípios se articula em ,,
:::l dos seguintes eixos teóricos: ,,1
'
sistema de representação visual e o fenômeno foto-
.ráfrco -r. erperiência fotográfica a produção e a recepção :as imagens -i, trama fotográfica: realidades e ficções
. |
,\ partir -
.
de tais eixos
foi proposto um modelo meto-
-'gico de análise (nível técnico e iconográfico) e inter45
BORIS KOSSOY pretâção (dimensão cultural e ideológica) das fontes fotográficas.
A DESMONTAGEM DAS IMAGENS
Análise e Interpretação das Fontes Fotográficas
A fotografia não pode ser pensada como um documento que vale por si próprio, neutro, isento de manipu, lação. Não existe documento inocente. A fotografia, assim como as demais fontes deve ser submetida ao devido exame crítìco que a metodologia da história impõe aos
documentos. A desmontagem implica na idéia de decifração: o nosso estudo está centrado num contínuo exercício de decifração. A decifração da imagem fotográfica, de suas realidades e, portanto, de seus códigos,
se
desenvolve através
da análise iconográfica e da interpretação iconológica, estágios esses da investigação aos quais dedicamos espe-
cial atenção1e. Através da análise iconográfica buscamos detectar seus ELEMENTos coNsrrrurrvos (fotógrafo, assunto, tecnologia) e suas cooRDENADAS DE srruAÇÀo (espaço, tempo). Tentávamos, assim, estabelecer um paradigma visando a reconstituiÇão do processo que originou a repÍesen-
19. Ver
especialmente as obras, já referidas, Fotografìa e História e Realìdades e Ficções na Trama Fotográfica.
46
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA partiÍ de indicadores constantes nas imagens fotoa pesquisa extensiva aceïca de qwem, que, como, =álicas: ,:trndo e onde,de forma a individualizar cada documento : - iográfico, estabelecer sua identidade e unicidade. Com:,-nenta a análise o inventário analítico e a determina::r precisa dos elementos icônicos que compõem o con:=:,io da imagem: o assunto registrado. De outra parte, discutimos questões acerca de uma -:;-nenêutica particular que as imagens demandam para :- compreensão interior. Nessa linha, foi proposta uma -:-rpretação iconológica - empregando a denominação := Fanofsky - pa,ra a decifração daquilo que o fragmento --.uaÌ não tem de explícito em seu conteúdo2O. :.:;ão,
â
CODIGOS DA IMAGEM FOTOGRÁFICA
Em seu conteúdo, uma única imagem reúne uma sér= ie eiementos icônicos que fornecem informações para
-
l:r.r ::.
a análise e interpretação das fotografias nos apoiamos, em pirr-
- apesar de o autor ter proposto :=* método para a representação pictórica -, especialmente no que se :ros conceitos de Erwin PanoÍsky
:: .le à interpretação iconológica que corresponde ao nível interpre::::r'o mais profundo, o "significado intrínseco". Na realidade, Pa-
: ,.ki propôs três etapas de interpretação: a descrição pré-iconográfica ' .';l prìmário ou natural), a análise iconográfica propriamente dita ..-.indário ou convencional) e o terceiro nível, mais profundo, que
-':;:ìa
dos anteriores, centrado na busca do significado intrínseco (ou
: ::ieúdo), que comportâ valores simbólicos, no sentido em que o ::::o é empregado pelo neokantiano Ernst Cassirer (1874-7945).Yer =-.
rn Panofsky, Estudios sobre lconología, Madrid, Alianza Univerl gR) nn )4-) S
- -:.i
47
BORIS KOSSOY diferentes áreas do conhecimento. Esses elementos achamse formal e cuburalmente codificados na imagem, sendo tais codificações inerentes à representação fotogrâfíca, à sua estética particular. Tal codificação diz respeito, pois, a
fatores que corporificam o documento, materializam a representação, e aos elementos icônicos propriamente ditos, que conformam a imagem. Essa imagem, por sua vez, ligase
pelos laços da história ao fato que representa; laços que,
umavez desvendados, caÍregam de sentido o iconográfico. Na prática,
codificações se vêem individualizadas pela mediação (técnica, culmral, estética) do fotógrafo ao lonessas
go do processo de criação da representação. 1. A codificação formal diz respeito: 1.1 à captação da imagem no interior da câmara, por
meio de um sistema de representação visual assentado:
. '
em princípios ópticos observados na Antigüidade21;
na perspectivâ 1ínear22;
27. Como o observado pelo filósofo chinês Mo Ti (durante o século V a.C.), quanto à formação da imagem de um objeto no interior de uma área escura, através da passagem, por um furo de minúsculo diâmetro, da luz refletida desse objeto. Aristóteles (ca. 330 a.C.) observou o eclipse do sol projetado sobre o solo através de pequenos orifícios nas folhas de uma árvore.
22. Construção geométrica cujo objetivo é representar o objeto (tridimensional) ilusoriamente sobre uma superfície plana (em duas dimensões): o plano da imagem. Trata-se de descoberta devida a Brunelleschi (ca. 1413). Alguns anos depois, Leon Battista Alberti demonstrou as aplicações da perspectiva à pintura. Na perspectiva, o olho do observa-
48
OS TEÀ{POS DA FOTOGRAFIA
.
:-a camerct obscura) instrumento óptico embrião da
;imara fotográÍtca23;
-\ imagem fotográfica obtida a partir desse sisrema :::.supõe um inevitável recorte espacial e uma interrup-. remporal em relação ao objeto do registro (o fato, : :tro. tema) em seu contìnuum no real, característica ::.: que considero fundante da fotografia e represento-a : =-= relação: fragmentação/congelamento.
1.1 aos recursos técnicos, que são os equipamenros, -.:-riais e processos específicos - ópticos, químicos, ele:. -:;os - utilizados, visando à materialização da ima.--: :otográfica.
- : sÌtuã-se no vértice da pirâmide visual para onde convergem os :-:::s tÌinhas) que parrem do objeto. Desse ponto privilegiado, obser:-se o mundo visível, um mundo, segundo Berger ,,[...] ordenado em --:-;ão do espectador, do mesmo modo que em outros tempos se pen: j que o universo estar.a ordenado em função de Deus',. Esse alÌtor
:.:-i.enta ainda: "a contradição inerente à perspectiva era qlre estru,:-:ii'a todas
as ìmagens da realidade para
dirigi-las a um só especta,
: : que, ao contrário de Deus, unicamente podra estar em um lugar . : ;ada instante". Sobre o tema) ver John Berger, Modos de Ver, ::-;eÌona, Gustavo Gili, 1980, p. 23. -:.ssório mencionado por l-eonardo da Vìnci ainda no final do
\\',
sécu-
Deve-se, no entanto, a Giovanni Battista della porta uma per-
:.::-: descrição da camera obscura (como dispositivo auxiliar para a .:'-;ução de desenhos clos objetos e da natureza, cr-rja imagem se forr:.a no interior do aparelho e era delineada sobre um suporte de :::-i pelo usuário). No entanto, até que ocorressem as primciras cx:::r.rÌcias que levariam à descoberta dos elos químicos necessários
-::: r captlrra definitiva das imagens exrernas dos objetos : ::ra\'âm ainda se passariam vários séculos. 49
que aí
se
BORIS KOSSOY 1.3 aos recursos plásticos, que são os eÌementos de expressão empregados, objetivando introduzir os mais diferentes efeitos estéticos. camente
-
A imagem enfatizada plasti-
seja no seu todo, seja em algumas de suas par-
tes: a) no momento do registro, isto é, através da cãmara;
b) durante o processamento em laboratório (hoje praticamente abandonado em função da fotografia digital) ou, em sessões de pós-produção mediante programâs de "tratamento" de imagens pelo computador - provoca nos receptores um determinado impacto ou impressão que ultrapassa o conteúdo, dtamatiza a mensagem, cria uma atmosfera, serena ou tensa (conforme a intenção do operador), reforçando ou criando estereótipos, alimentando mitos no imaginário coletivo, contribuindo, assim, para a construção de uma outra realidade.
2. A codificação cultural se refere direta e indiretamente ao tema representado. Seus elementos icônicos acham-se registrados segundo coordenadas de sitwação precisas, isto é, espaço e tempo no interior de um dado momento histórico (em seus desdobramentos econômicos, políticos, sociais, culturais). Qualquer que seja a imagem, nela existe um inventário de informações acerca do tema principal (que é o motivo da foto) e do seu entorno; trata-se de informações explícitas e implícitas, a saber: 2.1 explícitas, específicas ao objeto da representação; registros fotográficos que retratam ou documentam o assunto: o uisíuel, o aparente da representação; Nos conteúdos fotográficos encontram-se muitas ve50
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA
rc
elementos de identificação marcantes que se repetem
alongo
do tempo e acabam constituindo marcos distin-
rino6' simbólicos, posto que relativos à geografia, à ar qliteüÍa, aos monumentos históricos, à cultura de derrminado lugar, região, país. Dependendo de quem os d" esses marcos, âo mesmo tempo em que identificam, trmbém podem ser interpretados ideologicamente, obmrvados segundo filtros preconceituosos e, portanto, sen tomados como estereótipos denatureza êtnicartacíal,
digiosa
etc.
2-2 implícitas, relativas à história e ao contexto que
ruvolvem o tema registrado; são da ordem dos fatos pasndos e das mentalidades, heranças culturais e ideológi.'{, que afetam o indivíduo. Não se fazem ver, são inuisílcis, o oculto da representação; Não importando quais sejam as categorias analisafu de informação, essas só adquirem sentido na medida tm que se tenha um somatório de outras informações de übrentes natrrïezas (orais, escritas, iconográficas ), que lmsibilitem nos acercarmos com a necessária precisão cn relação ao conteúdo do tema representado, assim Gno resgatar seu significado intrínseco. As imagens fotográficas se vêem codificadas desde o
mmento em que passâm a existir,
u
seja de forma avulsa
guardadas em uma gaveta, expostas nas paredes de
- instituição, dispostas
em álbuns, estampadas em alpublicação, disponíveis em determinado site da Gurna
hernet. 51
BORIS KOSSOY Estamos diante de um constante exercício de decifração. Em síntese, os pressupostos metodológicos de análi-
interpretação foram equacionados de forma a situarmos exatamente â representação no espaço e no tempo, se e
determinarmos seus elementos constitutivos e identificarmos seu conteúdo, o aparente da representação, sva realìdade exterior (análise iconográfica). Recuperamos assim informações preciosas para a reconstituição histórica.
Toda fotografiatematrás de si uma história;
é este
o enig-
ma que procuramos desvendar. Necessitamos, entretanto, ir além quando falamos em desmontagem da representação, em busca do circunscrito,
do subcutâneo à face externa da imagem. É desnecessário acrescentar que o significado das imagens reside exatamente nesse seu passado, isto é, em sua
história própria, nas fina-
lidades que motivaram sua existência, em suâs condições de produção, nos fatos que marcâm sua trajetória ao longo do tempo, assim como na história do autor, seja ele um
fotógrafo consagrado ou um anônimo itinerante, suas visões de mundo, suas convicções, suas motivações. O fragmento fotográfico adquire significado quando se percebem as múltiplas teias que o enlaçam âo contexto histórico e à vida social em que se insere e, ao mesmo tempo, documenta. Trata-se de desvendar) seus alicerces mais profundos, sua trama histórica e social, sua dimensão cultural e ideológica, seu signi{icado intrínseco, o oculto da representação, seus muitos porquês sua realidade interior (interpretação iconológica). Veremos) a seguir, os desdobramentos dessa proposição. 52
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA
ri
_
:E55OS DE CRrAÇÃO / CONSTRUÇÃO DE REALTDADES
Fretendia, com Fotografia Ò Hìstória, tÍazer uma :, -::rbruição teórica à Iconografia, entendida como dis:::,r:a autônoma, meio de conhecimento visual e instru-::-ro para o estudo e reflexão acerca dos cenários e fa-: ' ia história. Se naquele e em outros trabalhos anteriores --::.:uávamos mais a idéia da imagem fotogrâfrca enquan: i:,cttmento, em Realidades e Ficções na Trama Foto;-;-l;,r procuramos explicitar melhor o carâter de repre.."::-ição que lhe é inerente. As imagens fotográficas, .*:;ndidas como documento/representação, contêm em ;- :ralidades e ficções. É nessa relação ambígua que se :--.J o cerne de nossa reflexão. -\ criação e a interpretação das imagens (a partir do :=:l ou das fantasias individuais e coletivas que povoam -,sso imaginário) inserem-se em processos de criação de :--ildades. Melhor dizendo, de construção de realidades. -- :otografia resulta sempre desta construção, seja ela rea::da enquanto expressão do autor (sem finalidades uti--::rras), seja como registro fotojornalístico ou meio -- criação publicitária, não importando se obtidas segun: recnologias tradicionais ou digitais. Vemos diariamente - mo a publicidade e a mídia constroem "realidades" e --.'erdades "
.
A partir da desmontagem da imagem fotográfica, :,rde-se perceber em que medida ela incorpora - tanto -:l sua produção como em sua recepção -, um complexo riocesso de construção de realidades, e, portanto, de fic53
BORIS KOSSOY ções. É necessário que se reflita sobre certas ambigüidades fundamentais de a fotografia ser um registro (isto é,
um documento), mâterialízado visualmente no estágio final do processo de criação do fotógrafo (que compreende o processo de construção da representação). Esse concei-
to
simplificado pelas relações indissociáveis e permanentes: registro/criação (ou testemunholcriação) e, documento/representação, sempre se referindo a um mesmo objeto fotográfico. De tais relações decorre a possibilidade ficcional da fotografia. Pensamos, aqui, numa natureza ficcional intrínseca à trama fotogrâfica, que constitui o alicerce cultural, estético e ideológico das manipulações que ocorïem dntes (finalidade, intenção, concepção), durante (elaboração técnica e criativa) e após (usos e aplicações) a produção de uma fotografia. Pensamos nas manipulações que desde sempre se fizeram dos fatos, seja nos palcos fotográficos do século XIX, por onde desfilava uma burguesia ansiosa de sua própria representação, seja na página impressa dos periódicos, ao longo do século XX e até o presente. O dado ficcional é, pois, inerente à imagem, na medida em que a fotografia é um testemunho que se materializa a partir de um processo de criação, isto é, construção. Nessa construção reside a estética de representação. O ficcional se nutre sempre da credibilidade que se tem da fotografia enquanto uma pretensa transcrição neutra, isenta, automática, do real, portanto, enquanto uma evidência documental (herança positivista). A idéia que semse vê
54
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA
::. se propâgou da fotografia é a de sua supostâ caÍacte:-::.a de objetividade, do que decorre a certeza de uma "-::nsparência" entre o fato e o registro. A representa:.-, ultrapassa o fato e a evidência é exacerbada nessa :-:sirução; assim se materialíza o índice fotográfico; as: --r se materializa a prova, o testemunho, a partir do pro::;',: de criação. Assim se criam realidades. Da mesma forma, no que se refere à recepção, não ;,-,jcmos perder de vista a "elasticidade" das interpreta- -,r,s que as imagens propiciam ao longo de sua trajetória. l.;emos conviver com esta eterna ambigüidade da fotoum documento etnográfico ou arquitetônico pode =irai r.': compreendido como um meio de conhecimento, uma :,-:; históricâ, mâs também pode, ao mesmo tempo, seÍ ::---:ado como ferramenta de propaganda, geradora ou ; -::rmadora de preconceitos, sempre dependendo dos :: r:ls tlegendas, títulos, contextos) que acompanham tais :igens, de sua diagramação, dos veículos em que são :-=:rdas e dos receptores que as apreciam. -{ medida que buscamos compreender a construçào ;-ç::i dessas representações codificadas, simultaneamen:: ïfrrÌos percebendo os mecanismos para a suâ desmon-l-in. A proposição destes processos de criação/cons:-:;ão de realidades (tanto na produção como na recepção :;: :magens) enquanto projeções do imaginário social tem r *;ntado conceitualmente nossas reflexões centradas ='i'Ierpretação iconológica. -i.- a análise iconográfica situa-se no nível da imagem, i :-:eÍpretação iconológica tem aí seu ponto de partida e .5.t
BORIS KOSSOY estende-se além do documento visível, além da chamada
evidência documental. Trata-se da recuperação de diferentes camadas de significação. A interpretação iconológica
na esfera das idéias, das mentalidades. Foi com tais preocupações que nâsceu Realidades
se desenvolve
e
Ficções na Trama Fotográfica, não apenas para comple-
mentar a incursão teórica desenvolvida em Fotografia (t História como, também, dar um passo além, creio, neste
peÍcurso de compreensão das fontes fotográficas e de decifração dos enigmas e manipulações que se escondem sob suas superfícies iconográficas. Uma vez compreendida a proposição dos processos de criação/construção de realidades, podemos perceber mais claramente os limites do "índice fotográfico". O índice fotográfico ê controlado e certamente não independe do processo de construção da representação: pelo contrário, é produto dele. O traço só existe, pois, em função desse processo. O índice fotográfico confunde-se com a própria materialízação documental ou visual da Íotografía. O que significa ser ele não o princípio, mas sim o ponto final do processo de construção da representação. Penso que agora temos mais elementos para Íetomarmos a questão da verdade documental, ou melhor, da verdade iconográfica.
A VERDADE ICONOGRÁFICA
A verdade iconográfica é fruto de uma construção técnica, estética, cultural
e
ideológica. Basta observarmos 56
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA
-: da imagem fotográfica em temas etnográficos. Em ,:: 's trabalhos procuramos demonstrar em que medi-: : :-presentação fotogrâfrca teria contribuído para re' :::i a postura etnocentrista do homem branco euro:-- quando diante de realidades americanas. Essa -::-::.hdade sobre temas etnográficos segundo o ,.olhar :*r Jfu"ll e as formas como eles foram representados/ - : -lentados reforçaram um certo conceito sobre a -- :rica Latina2't. Essa mesma mentalidade foi transplan': -: lara a história da fotografia tanto nos títulos mais -: -.ì\ eomo nos atuais. - iundamental perceber que, em determinadas ima::,,! etnográficas, trata-se de produtos ideológicos etno,
-: -1Stâs e racistas - tal como foram produzidos e veicu:: i no passado, quando as teorias pseudo-científicas :: .
tt
".ãITÌ
em voga, e tal como foram e seguem sendo re-
: :uzidos nas obras históricas didáticas e como refe-
r:r,---ìS ilustrativas armazenadas em bancos de imagens.
lara a antropologia emergente das últimas décadas .;culo XIX, impregnada pela mentalidade positivista, , , :rrgrafia era um meio de swbstituição literal do fato
i::r;r Luiza Tucci Carneiro e Boris l(ossoy, O Olhar Europeu:
'\.'!io -:t+.
O
tld Iconografìa Brasileira do Sécub X1X, São paulo, Edusp,
: ,:rs. Kossoy, "Photography
ir-r
Latin America: The European
::rperience and The Erotic Experience", em \(/cr.rdy Watriss & Lois p. -:rlrora lorgs"1, Image and Memory, photography from Latin America ,ib6-1991, Housron, University of Têxas press/FotoFest, 199g, pp. . i_ i.+.
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BORIS KOSSOY
antropológico e não umâ simples representação desse mesmo fato. A metodologia de "classificação" das ciências nafurais serve de paradigma para outras ciências. Nesta perspectiva é que se inserem as fotografias dos
"ti-
pos", como as dos negros e dos índios. A antropometria era empregada para comprovar "cientificamente" as características físicas do outro. Essa, porém) eÍa a fachada do projeto antropológico, a suâ face visível; na sua essência, este projeto pseudo-científico era umbilicalmente ligado ao programa colonialista: evidenciar através do chamado "testemunho" fotográfico as diferenças físicas que caracterízavâm uma pretensa "inferioridade" deste oztro petante o homem branco tomado como modelo, como padrão de perfeição física. Em outras palavras, as diferençâs entre negros, índios, mestiços em estado primitivo, selvagens habitantes das terras exóticas, e o branco europeu civilizador. Para isso serviu o registro fotográfico antropológico: como instrumento de afftmação de uma ideologia colonialista de dominação e controle, e de reafirmação da superioridade racial, comprovada a parttr da mais "isenta" metodologia: a da imagem técnica, "neutra" por excelência, posto que obtida "sem a interferência do homem" (interferência essa que poderia ocorrer com a imagem pictórica), apenas pelo mecanismo óptico da càmara. A imagem fotogrâfica se prestou notavelmente para o projeto antropológico, pois comprovava materialmente as imagens mentais de cientistas como Louis Agassiz (1807-1873), que teve como laboratório a Amazônia nos 58
OS TEMPOS DA FOTOGRAFIA
ï::::ts da década -:::,i distantes.
de 186026, entre outros estudiosos das
'l,s fotógrafos proprietários de estabelecimentos co_ ï:r:-i.ls e "artísticos", de sua parte, davam corpo â essa
::.:"::ència popularizando,a, de certa forma, na medida ::_ i.le transportavam negros e índios, pigmeus e outros :i::: rara seus estúdios e os fotografavam diante de ce_ I i
r.:: -,s neutros ou pintados... com paisagens européias. A ' ::-:toridade" era aqui tornada espetáculo para consu_
: ::
:JLìnográfico, segundo o modelo de representação e a -,:qia do exotismo2T.
::. ,-
íotografia
se desenvolveu paralelamenre às
discipli;rentíficas em formação durante o século XIX. Desde
--r
---:assiz ganhou ampla notoriedade internacional pela sua profícua ::r:eira científica e acadêmica. Chefiou uma expedição ao Brasil (a
:rpedrção Thayer), cujo relato se acha na obra Viagem ao Brasil: ,:65-1866. Um dos jovens auxiÌiares do grupo, ìTalter Hunnewell, :::endeu a técnica da fotografia no Rio de Janeiro, quando a comiti_ -.
-a
:::
ainda
se preparava para a expedição; já em Manaus, meses depois, eie o responsável pelas fotos de índios, negros e mestiços registradas
r-sr:ndo o modelo da antropometria. Na obra, Agassiz revela todo o .=u racismo. Manifesta-se totalmente avesso à miscigenação: ,.O re_ .rlrado de ininterruptas alianças entre mestiços é uma cÌasse de pes_ :oàs em que o tipo puro desapareceu, e com ele todas as boas qualida-
jes físicas e morais das raças primitivas, deixando em seu lugar :astardos tão repulsivos quanto os cães amastinados, que câusam :lorror âos animais de sua própria espécre, entre os quais não se des, :obre um único que haja conservado a inteligência, a nobreza, a aietividade naturaÌ que fazem do cão de pura raça o companheiro e o :nimal predileto do homem civilizado,'. Luiz Agassiz e Elizabeth Cary, \-ìagem ao Brasìl: 1865-1866, São paulo/Belo Horizonte, E