195 93 47MB
Portuguese Pages [198]
| 64,
Mary Louise Pratt (5
Os olhos do império
EDÚSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
relatos de viagem e transculturaçao
Coordenação Editorial Irmã Jacinta Turolo Garcia Assessoria Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiatti Assessoria Comercial
Irmã Aurea de Almeida Nascimento
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Coordenação da Coleção Ciências Sociais
Luiz Eugênio Véscio
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Tradução E
Jézio Hernani Bonfim Gutierre Revisão técnica Maria Helena liachado Carlos Valero
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U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA
OA 726807
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NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
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EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
P9160
Pratt, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação / Mary Louise Pratt; tradução Jézio Hernani Bonfim Gutierre; revisão técnica Maria Helena Machado, Carlos Valero.— Bauru, SP: EDUSC, 1999. 394 p. ; 22 cm. — (Coleção Ciências Sociais) ISBN 85-86259-64-0 1. Imperialismo. I Título. II. Série. CDD 325.32
ISBN 0-415-06095-8 (original) Copyright1992, Routledge CopyrightO de tradução 1999 EDUSC Tradução realizada a partir da 1º edição (1992) Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO Rua Irmã Arminda, 10-50
Às minhas irmãs Sheila, Nora e Kathy
CEP 17044-160 - Bauru - SP
Fone (014) 235-7111 - Fax 235-7219 e-mail: eduscôusc.br
Às minhastias-avós Agnes, Mary, Lorna, Winifred,
BIBLIQECA UNIVEBSITARI A TO DOF 126807-06
Mary, Norma, Maude e Pearl E
sumário
Ilustrações
11
Apresentação
15
Prefácio à edição brasileira
19
Prefácio
23
Capítulo 1. Introdução: crítica na zona de contato =x
41 71 127 155 195
249
Parte 1. Ciência e sentimento, 1750-1800 Capítulo 2. Ciência, consciência planetária, interiores Capítulo 3. Narrando a anticonquista Capítulo 4, Anticonquista II: a mística da reciprocidade Capítulo 5. Eros e abolição Parte 2. A Reinvenção da América, 1800-50 Capítulo 6. Alexander von Humboldt e a reinvenção da América Capítulo 7. Reinventando a América II: a vanguarda capitalista e as exploratrices sociales Capítulo 8. Reinventando a América/Reinventando a Europa: a automodelação crioula
Apenas olhando você pode ver muito. logue Berra
SA 379
Parte 3. Estilística imperial, 1860-1980 Capítulo 9. Do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador Indice remissivo
ilustrações
26
1. Desenho da criação bíblica, por Felipe Guaman Poma
34
2 Representação auto-etnográfica da Nueva coronica
36 48
3. 4.
de Ayala
y buen gobierno de Guaman Poma de Ayala
53.5. 60 6.
Semeando, pelos artistas de Sarhua
A expedição de La Condamine fazendo mensurações (1751) Fenômenos naturais das Américas (Ulloa e Juan, 1748) O sistema lineano para a identificação das plantas por seus componentes sexuais (1736)
Z0 Antropomorfia lineana (1760) 85
8.
Frontispício da edição francesa de A Situação atual do Cabo da Boa Esperança (1741), de Kolb
90
9.
Costumes dos hotentotes (Kolb, 1741)
91
10. Povoamentos e cabanas dos hotentotes (Kolb, 1741)
104 1. Frontispício da edição inglesa de Viagem ao Cabo da Boa Esperança (1785), de Sparrman
134 12 -
143 13 -
Frontispício da edição de 1860 de Travels in the Interior ofAfrica (Viagens no interior da África), de Mungo Park Página-título da edição de 1860 de Travels in the
Interior ofAfrica
166 14 - Rebelde de Suriname (Stedman, 1796)
170 15 -
Tropas européias (Stedman, 1796)
176 16 -
“Joanna” (Stedman, 1796)
177 17 . Suplício de escravos (Stedman, 1796) 210 18 - Humboldt e Bonpland no Orinoco
215 22ia
- Pontes naturais de Icononzo (Humboldt, 1814)
apresentação
- Perfil botânico do Monte Chimborazo, por Humboldt (1805)
223 2a 229 240 245 251
263
266
273 283 290 302 306 314 342
- Esboço andino do Monte de Potosi (1588) - Estátua de sacerdotisa azteca (Humboldt, 1814) - Manuscrito azteca (Humboldt, 1814)
-« Arpillera, autor desconhecido, Peru, década de 1980
- Dinastias inca e espanhola (Ulloa e Juan, 1748) - Tabela de categorias raciais (Stevenson, 1825) - Silletero andino. - Vista de Valparaíso (Graham, 1824) - Mulher-soldado no Brasil (Graham, 1824) - O saya y manto (Stevenson, 1825)
Ao tentar mostrar que os olhos do império, ou seja,
o olhar do branco vindo dos países civilizados, estavam
- Frontispício, de Repertorio Americano (1826)
representados no olhar dos viajantes que ajudaram a con-
- À sangria da seringueira, extraído de Travels in South
34. Pirâmide de Cholula (Humboldt, 1814)
struir uma nova consciência planetária ao desbravar o interior da América e da África desde a metade do século XVII e durante todo o século XIX, a obra incursiona no mundo
35. Frontispício, de Narrative of an Expedition to the
agradável e com umtexto consubstanciado em farta docu-
America (1875), de Paul Marcoy
do imaginário e das representações do real. Com estilo
Zambesi (1865), de David Livingstone
348
36. Quedas de Ripon, extraído de Journal ofthe Discovery
352
57. quando um pântano, extraído de Explorations and
354
A obra que Mary Louise Pratt nos apresenta, como resultado de uma longa e profunda investigação, reveste-se de grande importância para várias áreas do conhecimento, emespecial para a literatura, a história e a antropologia. Ao eleger um gênero literário como objeto de análise -os relatos dos viajantes- e realizar uma crítica da ideologia relacionada à produção, circulação e consumo dos mesmos, a Autora realiza uma abordagem renovada sobre o imperialismo, tema que tem suscitado grande interesse em intelectuais, políticos, bem como na sociedade em geral do mundo inteiro, especialmente no Brasil.
- Frontispício do Atlas da América, de Humboldt
mentação, a Autora nos leva a perceber o imperialismo,
antes considerado e analisado primordialmente na forma de
of the Source of the Nile (1863), de John Speke
Adveniures in Equatorial Africa (1861), de Du Chaillu 38. Gorila com arma (Du Chaillu, 1861)
um fenômeno político e/ou econômico, como produto e
como agente responsável pela construção de visões de mundo, auto-imagens, estereótipos étnicos, sociais, geográ-
i
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a
4) =
ficos entre outros, e que se legitima não apenas pela dominação externa, visível através de relações econômicas e =
é
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políticas, mas pela interferência direta nas mentes das pessoas com ele envolvidas.
Nos primeiros capítulos, assistimos à construção do novo sentido imperial que os relatos de viagem introduziram. Uma relação estabelecida com o naturalismo e com o
apresentação
romantismo serve para explicar como e o que o europeu
viu e descreveu sobre a América e a África, quais os con-
' Ceitos, preconceitos e noções que orientaram a observação,
a informação e, por que não, a deformação presentes nos
mesmos. Justifica, também, porque o europeu, consideran-
do-se superior aos povos nativos e, inclusive, aos brancos
destes continentes, teve necessidade de conhecer o outro e de organizar um mundo tão diferente do seu, urbano e
industrial. Perseguindo, ainda, o objetivo de realizar uma crítica da ideologia subjacente aos relatos de viagem, a obra apresenta, como base de atuação deste novo imperialismo que colonializa as mentes, a anticonquista, expressada na hospitalidade existente entre colonos é viajantes, na estetização e na valorização da natureza, na narrativa produzida pela observação e não pela História. É através do destaque às zonas de contato -termo que a autora diz gostar muito e que utiliza para falar das inte| rações propiciadas pelos encontros entre os viajantes e os povos visitados- , que o conceito de transculturação é explorado e desenvolvido. Indo além da constatação de que a literatura de viagens reinventou o imaginário popular
europeu sobre os outros mundos, vários capítulos da obra
destinam-se a demonstrar a dinâmica do processo de interação social e ideológica que constitui o encontro de sociedades. Após mostrar os relatos de viagem como produto de um contexto histórico, a autora destaca O papel que eles tiveram na identidade que o outro relatado passa a ter sobre si mesmo. Assim, por exemplo, merece destaque a relação estabelecida entre a reinvenção da América que as descrições de Humboldt propiciaram ao europeu e a formulação da auto-imagem que a intelectualidade crioula, como Andrés Bello, Estebán Echeverria e Domingo Faustino Sarmiento, passou a ter sobre si, influindo, dessa maneira,
nos projetos de nação que eles elaboraram para a América.
Por fim, a obra apresenta-se como um importante e
bem sucedido exercício de interdisciplinaridade. Fundamentando-se primordialmente em seu campo de atuação privilegiado e utilizando-se com muita propriedade
apresentação
e competência da teoria do discurso, a autora soube recorrer a outros espaços de investigação, cada qual supondo o
manejo de tradições e de instrumentos disciplinares dife-
rentes. Sendo assim, ao realizar a crítica textual dos relatos dos viajantes, ela preocupou-se, também, em identificar as iris a SD condições de produção dos mesmos, o contexto histórico=/
os contratos assumidos pelos autores, e a repercussão, uso
e apropriações que eles tiveram junto ao público leitor. Ao definir um objeto de estudo e ao buscar uma melhor compreensão do mesmo, fez-se necessário que amplíasse seu terreno de ação e integrasse técnicas, instrumentos e categorias de outras disciplinas, realizando, dessa forma, o encontro de disciplinas como a literatura, a história, a
antropologia, a etnografia, a geografia, a sociologia entre outras.
Heloisa Reichel inverno de 1999
“|prefácio à edição brasileira
66 €;
ostei da sua pele branca”, disse a jovem guerrilheira colombiana, explicando (abril de 1999) por que
havia fugido com um dos soldados presos que ela estava encarregada de vigiar. Sua traição tinha uma causa: ela não
havia se juntado à luta por solidariedade, e sim porque aos dez anos havia sido vendida por sua mãe a um comandante guerrilheiro. “Nova Romeu e Julieta”, anunciou O jornal mexicano. Que estupidez! O verdadeiro modelo era patrimônio dos próprios mexicanos: a história de Ia Malinche.
Emnossa época chamada de pós-colonial, na qual o
imperialismo é visto como substituído pela globalização, a pele branca continua agradando, as filhas continuam sendo vendidas, e os mitos imperiais continuam gerando significados, desejos e ações. Falta muito para que nos descolonizemos.
Os olhos do império foi concebido dentro de um amplo desafio intelectual que se poderia chamar de descolonização do conhecimento, iniciado nos anos 60 pela desintegração da última onda de impérios coloniais
europeus. Iniciado também por uma geração notável de intelectuais, formada por esses impérios mas resistindo a
eles — Fanon, Camus, Cesaire, Achebe, CLR. James e
muitos outros, inclusive Mahatma Ghandi que, perguntado
sobre sua opinião sobre a civilização ocidental, respondeu: “Acho que seria uma boa idéia.” A descolonização do conhecimento inclui a tarefa de chegar a compreender os caminhos pelos quais o Ocidente (a) constrói seu conhecimento do mundo, alinhado às suas ambições econômicas e políticas, e (b) subjuga e absorve os conhecimentos e as capacidades de produção de conhecimento de outros. Estes
prefácio à edição brasileira
dois mecanismos eram centrais para produ zir os temas do imperialismo e do colonialismo, e sua desc onstrução é essencial, se eles forem substituídos porforma s de comunicação transcultural que sejam eticamente justa s e epistemologicamente válidas. A experiência nos ensinou que por si mesm as as mudanças políticas não transformam a consciênci a humana, Os sistemas de significação e hierarquias de valor . Elas criam condições nas quais novas formas de subje tividade e consciência poderão ser procuradas. As revoluções não re-
volucionam automaticamente a subjetividade (incl usive a
dos próprios revolucionários). A descolonizaç ão política não produz automaticamente o que Ngugi wa Thiong'o nomeia como “a descolonização da mente”. Long e disto. As mais antigas ex-colônias européias nas Américas lutam até hoje com seus legados coloniais. Os Estados Unidos, um poder imperial, continuam infectados por uma imaginação colonizada. Em várias disciplinas acadêmicas, o eurocentrismo ainda persiste como um reflexo intelectua l tanto natural quanto inconsciente, e a autoridade intelectua l e recursos
educacionais continuam sendo distribuídos porlinhas colo-
niais. Rupturas científicas em genética revivem hoje doutrinas raciais do século XIX, enquanto economia s neoliberais reativama ficção do século XVIII do “mercado livre” como um instrumento para a futura distribuição de rique za e o fim da miséria das massas. A descolonização do conhecimento e da mente é uma
tarefa incrível na qual intelectuais e artistas deve m per-
manecer como colaboradores vitais durante vária s gerações. Frente a este desafio, a pessoa é surpreen dida pela facilidade com que nosso mundo contemporâneo tem sido rotu-
lado como “pós-colonial”. O termo é útil se se refer e ao fato de que as manobras do colonialismo estão atua lmente
disponíveis para uma reflexão crítica em cami nhos que não estavam até agora. Masele é utilizado para signi ficar o oposto: que as manobras do euroimperialismo fora m deixadas
prefácio à edição brasileira
os outros “pós” (pós-nacional, pós-moderno, np
fria, pós-Estado, pós-marxismo, pós-feminismo)
pica o-
nial” autoriza um certo desengajamento numa parte
de inte-
lectuais metropolitanos e cosmopolitas, renovando sua O licença para funcionar inconsequentemente como E cen- (« tro que define o resto do mundo como periferia. : termo “globalização” é geralmente usado como significan o uma nova ordem mundial na qual as dinâmicas imperiais de cen-
tro/periferia deixaram de ser relevantes.
l
Os olhos do império deveria ser lido como uma aa tribuição à história de representações, especialienho = representações européias do mundo não europeu, aa iteratura de viagem. Favorecida pelas rupturas existentes em análises de discurso e de estudo da ideologia, a história das representações emergiu nas últimas três dsmanas como e terreno fértil de pesquisa, ao lado da história de idéias e de necessidades. Nenhum processo de explicação poderia ser mais excitante (e desconcertante) do que nossa crescente constatação de que a história é direcionada tanto pela maneira como as pessoas imaginam que as coisas so,
quanto pela maneira como as coisas realmente podem ser.
Assim, este é um livro sobre imaginação, anseio, ru
beleza, desejo, coragem,arrogância, fuga, curiosidade, matldade, medo, solidão, ambição, ódio, assombro, viotênci
vislumbre, ignorância, cobiça. É um livro sobre combates da mente, do coração, e da pena. Seu lançamento em português, sob os notáveis auspícios da EDUSC (Editora da
Universidade do Sagrado Coração), é uma grande honra para mim. Possam seus leitores vislumbrar nele um reflexo de seus corações e algo fiel a seus anseios.
Guadalajara, México abril de 1999
para trás e que nemde longe são rele-vantes para produzir
o mundo. (Que o digam os habitantes da Iugos lávia). Como 16
17
Es livro teve sua origem num curso sobre relatos de viagem e expansão européia que minha colega Rina
Benmayor e eu ministramos conjuntamente na Universidade
stanford nos anos 1978-81. Ela partiu para outras questões, e eu permaneci no tema.
O trabalho neste projeto recebeu apoio de muitas fontes. O curso original beneficiou-se de uma bolsa do National
Endowment for the Humanities curriculum development
(Fundo Nacional para o desenvolvimento do currículo de Ciências Humanas), através do Programa de Relações Inter-
nacionais na Universidade de Stanford. Umano de investiga-
ção básica tornou-se possível por uma bolsa do NEH para pesquisa independente em 1982-3. A fase de redação, entre 1987-8, foi-me propiciada pela Fundação Pew, por uma bolsa Guggenheim e pelo Centro de Humanidades de Stanford. Sou grata a todas estas fontes por seu apoio ao meu trabalho. Este é um livro marcado pelos realinhamentos globais e turbulências ideológicas que se iniciaram nos anos 80 e se estendematé hoje. Iniciou-se na angústia dos anos ReaganThatcher, quando a desmistificação do imperialismo parecia mais urgente e também mais impossível do que nunca. Foi
interrompido pela eclosão das intensas lutas institucionais,
ora em curso na maioria das universidades americanas, em
torno dos currículos de graduação para as ciências humanas
— lutas envolvendo justamente o legado do euroimperialis-
mo, androcentrismo e supremacia branca na educação e na cultura oficial. A elaboração deste livro, portanto, foi acompanhada por um contínuo confronto com as próprias ideologias cujos resultados são aqui estudados. Sua publicação coincide, quer se queira, quer não, com os quinhentosanos
das descobertas de Colombo, momento, na Europa e nas
AB
prefácio
prefácio
a grata por ques ajudas. i tinha direito de esperar. Sinto-me
morativo, uma oportunid ade para afirmar uma con tra-história, resgatar seus costum es e consolidar as lutas atu ais por território e autonomia. Int electuais são convocados para definir, ou redefinir, sua rel ação com as estruturas de conhecimento e poder que prod uzem e que os produzem. Em meio
européias relacionadas à Posse territorial e global, as quais são o centro crítico deste livro. Este é também um livro de uma expatriada anglocanadense para quem as opo rtunidades dos anos 60 e 70 mesclaram-se
Embora nada do que se segue tenha sido p i des anteriores de algumas = Sra reERnoCollage Literature, 8, 1981; erica,7, 1979; Georgetown University Roundtable in anao pes Lingusisiãos, 1982; Critical Hg ta,UE ps Texto Crítico, 1, 1987; Inscriptions, 1, di H] Fi letâneas Writing Culture (James Clifford e : i deMarous, Oras. Berkeley, California U. P., DS
Nina and Difference (Henry Louis Gem, ce C ei Chicago U. P., 1986); e Literature and Anthropo ee a than Hall e Ackbar Abbas, eds., Hong Kong, Hong P., 1986).
gU.
com a tentativa de dar conta
da docência, maternidade, elaboração de tex tos, educação dos filhos , estruturação institucional e parcer ia doméstica nos Estado s Unidos. Muitos daqueles a quem devo minha sanidade, bem -estar e qualquer sabedoria que, porventura tenha adquir ido ao longo destes anos, são pessoa s sem as quais este livro teria sido concluído (com pouca van tagem) muito antes: pós-gr aduandos dos Departamentos de Espanhol e Português e do Programa de Pensamento e Literatura Moderna de Sta nford; colegas do Seminário sobre Mulheres e Cultura na Amé rica Latina e do Grupo de Pesqui sa de Estudos Culturais; meus filhos queridos e não sintetizá veis Sam, Manuel e Olívia; meu companheiro e mais val ioso interlocutor, Renato Ros ald o. Sou grata a Jean Franco , Kathleen Newman, Ed Coh en, Rita Benmayor, Nancy Donh am e Jim Clifford pelas discussões e comentários sobre partes des te trabalho, mas antes de tudo Por sua permanente ami zade. Agradeço a Harrie t Ritvo e
20
sm
capítulo 1
introdução: crítica
na zona de contato
canaEa Listowel, Ontário, pequena cidade rural
mento princidense onde fui criada, uma esquina do cruza administrada e, pal era ocupada pela Farmácia Livingston havia pelo Dr. Livingstone. Ele era um médico formado que estabese tornado farmacêutico, mas, para as crianças, seu compodia se onde lugar o lecimento era, antes de tudo,
prar o material necessário para se pregarem peças, Ou tê-las aplicadas sobre si pelo Dr. Livingstone, especialmente se
e esvocê fosse visitá-lo numa tarde em que a Sra. Livingston
fui apretivesse ausente. Foi através do Dr. Livingstone que
sentada, por exemplo, aos milagres do vidro líquido, ao
anel esguichante, às algemas chinesas, ao falso maço de chicletes de fruta que estouravam em seus dedos e, por volta de 1955, a um horripilante item novo que o Dr. Livingstone secretamente vendeu a meu irmão mais velho e ao seu ami-
go: vômito de plástico. Eu não estava certa, por isso, se ele
falava sério no dia em que apareceu com umpapel desbotado, com escrita esmaecida, numa moldura, dizendo que era uma carta escrita por um tio-avô que havia sido famoso missionário na África. Só depois de consultar, na escola do-
minical, a Srta. Roxie Ellis, ela própria, uma antiga missioná-
ria, foi que acreditei naquela informação. O “nosso” Dr. Li-
e vingstone era sobrinho-neto do “verdadeiro” Dr. Livingston
da África. O Canadá inglês era ainda colonial nos anos 50:
realidade e história estavam em algum outro lugar, corporificados por homens britânicos.
O nome na carta desbotada me perseguiu, trilhando
seu legado colonial. Quando foram instalados esgotos em
introdução:crítica em zona de contato
introdução: crítica na zona de contato
Listowel, decidiu-se trocar todos os nome s das ruas, e a nos-
dança, paródia, filosofia, contraconhecimento e Ee
chefe dos correios, no melhor estilo colon ial, em homena-
mente encobertos pela repetição e irrealidade. Vale mencio nar neste contexto a história de uma outra carta. Em 1908, um especialista em estudos peruanos, chama:
sa foi promovida de Rua Raglan para Aven ida Livingstone. A própria cidade havia sido batizada um sécul o antes por um
gem ao lugar de nascimento de sua mulher: Listo wel, Irlanda. Minha irmã soube deste detalhe histórico por acaso, em meados dos anos 70, na África Oriental. No saguão da YNWCA de Nairóbi, ela se encontrou com Dame Judith Listo-
wel, uma rija, paupérrima e excêntrica avent ureira de mais
de setenta anos, escandalizada pelo preço dos hotéi s e medianamente interessada em ouvir algo sobre a cida de canadense que levava o seu nome. Poucos anos depoi s, quando
estava desenvolvendo minhas pesquisas para este livro na
Califórnia, encontrei um texto de Dame Judit h que deve ter
sido concluído pouco antes de minha irmã têla enco ntrado — era uma biografia de David Livingstone. Não sei onde DameJudith está agora, mas minha mãe, que ainda vive em Listowell, recentemente se mudou para a antiga mans ão Li-
vingstone, agora transformada num asilo para velhos. “Pov os
de língua inglesa do mundo, uni-vos!” Durante toda a sua vida meu pai manteve apaixonadamente este nostálgico lema neo-imperial. Mesmo depois de ter o nome de sua rua mudado e de minha irmã retornar de Nairóbi com seu rela-
to, ele nunca admitiu que eles já estivessem unidos, ou ao
menos ligados, em todo o globo, por palavras.
Redundância, descontinuidade e irrealidade. Estas são
algumas das principais coordenadas do texto do euroi mperialismo, o estofo de seu poder para constituir o dia-a -dia com neutralidade, espontaneidade e cega repetição (Livi ngstone,
Livingstone...). Em anos recentes, esse poder tornou-se aber-
ria, em textos descurados, suprimidos, perdidos, ou simp pá
do Richard Pietschmann, estava pesquisando nos Arquivos
Reais Dinamarqueses, quando se deparou com um manuscrito que ele jamais havia visto antes. Fora datado em Cuzco,
em 1613, umas quatro décadas depois da derrota final do Im-
pério Inca frente aos espanhóis, e assinado por um nome ine-
gavelmente ameríndio, andino: Felipe ardal Poma de Ayala (guaman, em quíchua, quer dizer “falcão”, e poma Er ca “leopardo”). Escrito numa mistura de quíchua e espanho rude, não gramatical, o manuscrito era uma carta endereçada
por este andino desconhecido ao rei Felipe HI da Espanha. O
que espantou Pietschmann foi ter a carta mil e duzentas pá-
ginas, das quais cerca de oitocentas eram de textos escritos e quatrocentas de elaborados desenhos à pena com chamadas explicativas. Intitulado A Nova Crônica e Bom Governo eJustiça jomanuscrito propunha nada menos do que uma nova
visãode mundo./Ele começava pela reescrita da história da
cristandade, para incluir os povos indígenas da América, passando, então, a descrever com grande detalhe a história eos
modos de vida dos povos andinos e de seus líderes. A isto se seguia uma abordagem revisionista da conquista espanhola e
centenas de páginas documentando e denunciando a explo-
ração e os desmandos espanhóis. As quatrocentas ilustrações
seguiam o estilo europeu de desenhos de bico de pena legendados; contudo, como demonstrado por pesquisa poste-
to a críticas e inquirições da academia, como parte de um es-
rior, elas empregavam estruturas especificamente andinas do simbolismo espacial (conferir ilustrações 1 e 3)! A carta de
Este livro faz parte deste esforço. Tal esforço deve ser, entre
qual ele alerta o rei quanto a suas responsabilidades e pro-
forço em grande escala para descolonizar o conhecim ento.
outras coisas, um exercício de humildade. Pois uma das coi-
sas que ele traz obrigatoriamente à cena, são expre ssões contestatórias oriundas das áreas onde ocorreram as inter venções
imperiais, há muito ignoradas na metrópole; a crítica ao im-
pério tal como codificada em ação e in loco, em cerimônia,
Ja
Guaman Poma termina com uma entrevista imaginária na
põe uma nova forma de governo por meio da colaboração das elites andina e espanhola.
1. Guaman Poma de Ayala, Nueva Coronica y buen gobierno, John Murra e Rolena Adorno, México, Siglo XXI, 1980, manuscrito p.372.
25
introdução: crítica em zona de contato
BLDRIM ERMVZIDO nu
introdução: crítica na zona de contato
Ninguém sabia (ou sabe) como este trabalho extraordinário chegou à biblioteca de Copenhague, nem há quanto tempo estava lá. Ninguém, parecia, havia jamais se preocupado emlê-lo ou, sequer, descobrir como fazê-lo. Em 1908, o quíchua não era conhecido comolíngua escrita, e a cultura andina não era tida como letrada. Pietschmann elaborou umartigo sobre sua descoberta, apresentado em Londres em 1912. A acolhida dada a este ensaio, por um congresso internacional de americanistas, foi, aparentemente,
de perplexidade. Foram necessários mais vinte e cinco anos para que uma edição em fac-símile do trabalho de Guaman
Poma aparecesse emParis; os poucos estudiosos que se debruçaram sobre ele o fizeram isoladamente. Não foi senão
no final dos anos 70, quando os hábitos positivistas de leitura cediam lugar aos estudos interpretativos e os elitismos eurocêntricos perdiam força em favor dos pluralismos pós-
coloniais, que o texto de Guaman Poma começou a ser lido
como o extraordinário tour de force intercultural que efetivamente era.”
Ser lido e ser legível. A legibilidade da carta de Gua-
man Poma, hoje em dia, é outro signo da mudança da dinâmica intelectual, através da qual a construção colonial do
significado se tornou tema da investigação crítica. Seu ela-
borado texto intercultural e sua história trágica exemplifi-
cam as possibilidades e, os perigos de seescrever naquilo
que gosto de chamar de “zonas de contacto”, espaços so-
ciais onde culturas dísparesseencontram, sechocam, se en-
trelaçamuma com a outra, frequentemente em relações ex-
tremamente assimétricas de dominação e subordinação —
Fig.1. Representação da criação bíblica de Guaman Poma de Ayala.
“El primer mundo/Adan, Eva”, “O primeiro mundo/Adão, Eva”. O desenho está organizado de acordo como espaço simbólico andino
com Adão e o galo no lado “masculino” da ilustração, sob o símbolo masculino do sol; e Eva, as galinhas e crianças no lado “femini-
no”, marcado pela lua. As duas esferas estão divididas por uma diagonal, aqui constituída pelo bastão de cavar de Adão, instrumento
básico da agricultura andina. O império inca era, de modosimilar, disposto em quatro reinos divididos por duas diagonais que se cru-
zavam na cidade de Cuzco.
26.
como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo. Talvez estas duas cartas — a página aparentemente trivial, escrita numa única língua, por um inglês na África para seu sobrinho, amarelecendo numa parede de farmácia no
2. A melhor fonte introdutória ao trabalho de Guaman Poma em inglês é Guaman Poma de Ayala: Writing and Resistance in Colonial Peru, de Rolena Adorno, Austin, Texas U. P., 1986.
at
introdução: crítica em zona de contato
introdução: crítica na zona de contato
Canadá rural, e aquelas, à primeira vista, inacreditáveis mil
momentos particulares da trajetória expansionista da Europa? De que forma esta produziu concepções européias de si
e duzentas páginas bilíngues, de um andino desconhecido para o rei de Espanha, perdidas num arquivo em Copenhague — sejam capazes de sugerir a vastidão, descontinuidade e multiplicidade de variáveis determinantes da história da construção do sentido imperial, que forma o contexto para
mesma, diferenciadas em relação aquilo que passou a ser
possível denominar “o resto do mundo”? Comotais práticas de estabelecimento de significado codificam e legitimam as aspirações de expansão econômica do império? Como elas as evidenciam? Este livro também procura sugerir conexões entre O
este livro. Seu principal, embora não único, objeto é a via-
gem de europeuse os escritos de expedições analisados em conexão com a expansão política e econômica européia a partir de 1750. Este livro visa a ser tanto um estudo de gênero quanto uma crítica de ideologia. Seu tema predominante é o de comooslivros de viagem de europeus sobre regiões do mundo não europeu chegaram (e chegam) a criar a “temática doméstica”? do euroimperialismo; como eles engajaram o público leitor metropolitano nos (ou para Os) empreendimentos expansionistas cujos benefícios materiais se destinavam, basicamente, a muito poucos. Vários capítulos do livro lidam com estas questões através da leitura de conjuntos de relatos de viagem relacionados a transições históricas específicas. Um capítulo, por exemplo, examina os escritos europeus setecentistas sobre a África Meridional no contexto da expansão continental e do advento da história natural. Outros discutem a emergência do relato sentimental de viagematravés de material do Caribe e do início
relato de viagem e formas de conhecimento e expressão que comela interagem ou se coadunam, fora e dentro da
Europa. O capítulo 2, por exemplo, avalia como o relato de viagem e a história natural iluminista se aliaram para criar uma forma eurocêntrica de consciência global ou, como a
chamo, “planetária”. Os esquemas classificatórios da história natural são vistos em relação aos conhecimentos vernáculos dos camponeses, que tais esquemas buscavam substituir. Os relatos de viagem científica e sentimental (capítulos 3 a 5) são discutidos subsidiariamente, como formas burguesas de autoridade que desalojam as tradições mais antigas da literatura de sobrevivência. No estilo sentimena autobiografia de escravos, que surgem aproximadamente ao mesmo tempo e agem uma sobre a outra. O capítulo 7 salienta as determinações de gênero emalguns relatos de
da exploração britânica da África Ocidental (1780-1840),
viagem do início do século XIX, enfocando uma impre-
Outros ainda examinam as reelaborações de discurso na América do Sul ao longo do processo de independência da
visível divisão de trabalho entre escritores do sexo masculino e feminino. No capítulo 9, os textos daqueles que
América espanhola (1800-1840). Um outro identifica as con-
d
investigados em termos dos desafios que colocavam para a tradição da exploração britânica; o relato de viagem pós-
Estes estudos de caso são balizados por um número de questões comuns. Comoo relato de viagem e exploração produziu “o resto do mundo” para leitores europeus em
lação à propaganda de turismo e, por outro, em relação a gêneros contestatórios como o testimonio e a história oral. Aqui também a manisfestação de relações de raça e de gênero está em questão. Algumas vezes, o livro deixa para trás tanto a Europa,
loniais dos anos 60 e 80 de nosso século.
E
3. Ouvi este termo pela primeira vez numcomentário de Gayatri Spivak, a quem agradeço por este e outros insights. Consulte-se sua coleção de ensaios In Other Worlds, London, Methuen, 1989.
colonial dos anos 1960 é examinado, por um lado, em re-
UEC
RS
sevelt chamou de “americanos hifenizados” são
tinuidades e mutações do imaginário imperial desde os vitorianos na África Central (1860-1900) aos viajantes pós-co-
|
nd
tal, são traçados os paralelos entre a narrativa de viagem e
como os relatos de viagem para analisar exemplos de ex-
pressão não européia desenvolvidos em interação com re-
2
introdução: crítica em zona de contato
introdução: crítica na zona de contato
pertórios europeus. Neste contexto, o material de estudo provém da América do Sul. O capítulo 8 se concentra sobre a maneira como os autores da América espanhola do começo do século XIX selecionaram e adaptaramos discursos sobre a América à sua própria necessidade de criar culturas autônomas descolonizadas, ao mesmo tempo em que man-
sorvem em sua própria cultura e no que o utilizam. Transculturação éum fenômenodazona de contato. No contextodeste livro, o conceito serve para levantar diversos conjuntos de questões. Como modos metropolitanos de repre-/ sentação são recebidos e apropriados pela periferia? Essa,
do sobre a dinâmica da automodelagem crioula. De outra parte, instâncias da história da expressão indígena andina (como a carta de Guaman Poma) são introduzidas com o fito de se esboçar a dinâmica da auto-representação no contexto da subordinação e resistência coloniais. Ainda que as práticas de representação dos europeus permaneçam sendo
colônias para a metrópole? Os frutos do império, sabemos,
tinham valores europeus e a supremacia branca. É um estu-
a temática principal deste livro, procurei formas de mitigar
uma perspectiva reducionista e difusionista.
Também procurei formas de limitar o padrão totalizante tanto do estudo de gênero, quanto da crítica da ideologia.
Estes dois projetos estão ancorados, como eu mesma, na metrópole; conceder-lhes autonomia ou integridade reafirmaria a autoridade metropolitana em seus próprios termos — exatamente aquilo que os autores de relatos de viagem são fre-
quentemente acusados de fazer. Ao escrever-este livro, pro-
curei evitar a simples reprodução da dinâmica de posse e inocência cujos efeitos analiso nos textos. O termo “transcul-
turação” no título condensa meus esforços nesta direção. Et-
nógrafos têm usado este termo para descrever como grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir de materiais a eles transmitidos por uma cultura dominante ou metropolitana.“ Se os povos subjugados não podem con-
trolar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, . eles efetivamente determinam, em graus variáveis, o que ab-
á. O termo “transculturação” foi cunhado nos anos 40 pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz numa descrição pioneira da cultura afro-cubana (Contraponto Cubano (1947, 1963), Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1978). O crítico uruguaio Angel Rama incorporou o termo aos estudos literários nos anos 70. Ortiz propôs que esta noção substituísse os batidos conceitos de aculturação e desculturação que descreviam a transferência de cultura de modo reducionista, imaginada a partir dos interesses da metrópole.
30
questão engendra outra, talvez mais herética: no que se re-
fere à representação, como se falar de transculturação das foram constantes na elaboração da cultura, história e sociedade doméstica européias. Em que medida as construções
européias sobre outros subordinados teriam sido moldadas
por estes ultimos, através da construção de si próprios e de seu ambiente, tal como eles os apresentaram aos europeus? Poderia o mesmo ser dito de seus modos de representação?
Se a metrópole imperial tende a ver a si mesma como deter-
minando a periferia (seja, por exemplo, no brilho luminoso
da missão-civilizatória ou na fonte de recursos para o desen-
volvimento econômico), ela é habitualmente cega para as formas como a periferia determina a metrópole — começando, talvez, por sua obsessiva necessidade de continuada-
mente apresentar e re-apresentar para si mesma suas perife-
rias e os “outros”. O relato de viagem, entre outras inslituições, está fundamentalmente elaborado a serviço daquele
imperativo; da mesma forma, poder-se-ia dizer, que grande
parte da história literária européia. Na tentativa de apresentar uma abordagem dialética e
historicizada do relato de viagem, elaborei alguns termos e
conceitos ao longo do caminho. Um destes casos, recorrente ao longo de todo o livro, é o da expressão “zona de contac-
to”, que uso para mereferir ao espaçode encontros coloniais,
no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contacto umas com as outras e estabelecemrelações | contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção,
desigualdade radical e obstinada. Aqui, tomo emprestado o termo “contato” de seu uso em lingiística, onde a expressão
“linguagem de contato” se refere a linguagens improvisadas que se desenvolvementre locutores de diferentes línguas na-
tivas que precisam se comunicar entre si de modo consisten-
te, um com o outro, usualmente no âmbito comercial. Tais
linguagens surgem comojargões, e são consideradas crioulas
quando chegam ter falantes nativos de seu próprio lugar,
Como as sociedades das zonas de contacto, tais linguagens são normalmente consideradas caóticas, bárbaras e amorfas. (Ron Carter sugeriu o termo “literaturas de contato” para aquelas literaturas escritas fora da Europa em línguas euro-
péias.) O conceito “zona de contato” é utilizado frequente-
mente em minha discusão como sinônimo de “fronteira colo| nial”. Mas enquanto este último termo está baseado numa | perspectiva expansionista européia (a fronteira é uma frontei| ra apenas no quediz respeito à Europa), “zona de contato” é uma tentativa de se invocar a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos anteriormente separados por descontinuidades históricas e geográficas cujas trajetórias agora se cruzam. Ao utilizar o termo “contato”, procuro enfatizar as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, tão facilmente ignoradas ou suprimidas pelos relatos difundidos de conquista e dominação. Uma “perspectiva de conta” põe em relevo a questão de como os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros. Trata as
relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e “vi-
sitados”, não em termos da separação ou segregação, mas em termos da presença comum, interação, entendimentos e prá-
ticas interligadas, frequentemente dentro de relações radicalmente assimétricas de poder.
Um segundo termo que usarei bastante é “anticon-
quista”, com o qual me refiro às estratégias de representação por meio das quais os agentes burgueses europeus procuram assegurar sua inocência ao mesmo tempo em que asseguram a hegemonia européia. O termo “anticonquista”
foi escolhido porque, como procuro justificar, nos relatos de
introdução: crítica na zona de contato
viagem e exploração, estas estratégias de afirmação de ino-
cência são constituídas tendo por base a velha retórica im-
perial de conquista associada à era absolutista. O principal
protagonista da anticonquista é uma figura que, por vezes,
chamo de “observador” (seeing-man), um rótulo conscientemente hostil para O “súdito masculino europeu com um horizonte europeu de discurso — aquele cujos olhosimpe- riais passivamente vêem e possuem.
— Umterceiro e último termo idiossincrático que nERasce nas páginas que se seguem é fauto-etnografia” ou “ex-, 1
|
pressão auto-etnográfica”. Emprego tais expressões para me | referir a instâncias nas quais os indivíduos das colônias empreendem a representação de si mesmosde forma compro-
metida comos termos do colonizador. Se os textos etnográ-|
ficos são o meio pelo qual os europeus representam para si os (usualmente subjugados) outros, textos auto-etnográficos são aqueles que os demais constroem emresposta àquelas, ou no diálogo com as representações metropolitanas. A resenha de Guaman Poma, em sua Nova Crônica, da história
e costumes incas, e, nesta empreitada, sua apropriação for-
mal da crônica espanhola constitui instância canônica de re-
presentação auto-etnográfica (cf. figuras 2 e 3). Assim sendo, textos auto-etnográficos não são o que usualmente se
denomina como formas “autênticas” ou autóctones de autorepresentação (tais como o quipus andino, que continha muito da informação coligida por Guaman Poma). Na ver-
dade, a auto-etnografia envolve colaboração parcial coma
apropriação doléxico do conquistador. Muitas vezes, como | no caso de Guaman Poma, o léxico apropriado e transformado é aquele dos relatos de exploração e viagem, que, em
graus variáveis, estão amalgamados ou infiltrados pelos esti-
los indígenas. Frequentemente, como na carta de Guaman Poma, eles são bilíngúes e dialógicos. Textos auto-etnográ-
5. Ron Carter, “A Question of Interpretation: An Overview of Some Recent Developments in Stylistics” in Linguistics and the Studyof Literature, de Theo D"haen (ed.), Amsterdam, 1986, pp.7-26. 6. Desenvolvi este argumento mais extensivamente em “Linguistic Uto-
ficos são tipicamente heterogêneos também no âmbito da recepção, são normalmente endereçados tanto aos leitores metropolitanos, como aos setores letrados do grupo social a que pertence o narrador; e estão fadados a ser recebidos de
— The Linguistics of Writing, Manchester, Manchester U. P,, 1987, pp.49-66.
maneira muito diferente por eles. Não raro, tais textos cons-
pias”, in Nigel Fabb, Derek Attridge, Alan Durant e Colin McCabe (eds.)
32
gm—
introdução: crítica em zona de contato
introdução: crítica em zona de contato
1 103é
introdução: crítica na zona de contato
tituem o ponto de entrada de um grupo na cultura letrada ' metropolitana. Embora eu não tenha podido desenvolver este tema aqui, acredito que a expressão auto-etnográfica
seja um fenômeno extensivo da zona de contato e tornar-
se-á um elemento importante para o esclarecimento das histórias de subjugação imperial e resistência tais como vistas
desde o local dos eventos.”
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O âmbito deste estudo é intencionalmente amplo, mas ele tem origem num ponto de partida bastante especí-
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fico. Está centrado nos meados do século XVIII, sobre dois
processos simultâneos e, assim sustento, interagentes na Europa Setentrional: E emergência da história natural como
uma estrutura de conhecimento e oimpulso à exploração continental, por oposição à marítima., Estas circunstâncias, como sugiro no capítulo a seguir, registram uma mudança naquilo que pode ser “consciênciaplanetária”
européia, mudança esta que coincide com várias outras, in-
clusive com a consolidação de formas burguesas de subjetividade e poder, a inauguração de uma nova etapaterritorial do capitalismo, marcada pela busca de matérias primas, a
tentativa de se expandir o comércio costeiro para o interior, os imperativos nacionais de se apoderar de territórios ultramarinos, assim evitando que outras potências européias os
ocupem. Neste sentido, o livro progride, de modo geral,
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Fig. 2. Representação auto-etnográfica, extraída de Nueva coronica y buen gobierno, de Guaman Poma, de uma série de representações
da cultura andina. No cabeçalho, lê-se “Trabaxa/Zara, papa hallmai mita” significando “Trabalho (em espanhol]/milho, tempo de chuva
e estocagem (em quíchua].” Na escrita em letras pequenas sob o cabeçalho lê-se “enero/Capac Raymi Quilla” significando “janeiro (em
espanhol]/ mês de grandes festividades (em quíchua]” O homem à
esquerda é identificado como um“labrador, chacarq camahoc,” “tra-
balhador (em espanhol), encarregado da semeadura (em quíchua].”
numa ordemcronológica. Os parâmetros geográficos que escolhi são também historicamente determinados. No final do século XVIH, a América do Sul e a África, há muito ligadas tanto entre si como à Europa pelo comércio, tornaram-se cenários paralelos das novas iniciativas expansionistas européias, originadas precisamente do novo impulso para a exploração do interior. A “abertura” da África começou umtanto claudicante na década de 1780 coma fundação da Associação Africana
(African Association) (consulte-se o capítulo 4). Simultanea7. Em sua dissertação sobre antigas escritoras chicanas, Gloria Trevino discute os escritos folclóricos de Josefina Niggli, Jovita Gonzalez e Maria
Cristina Mena (Stanford University, 1981).
35 |.
introdução:crítica em zona de contato
introdução: crítica na zona de contato
de se o capítulo 6). Nos anos 1960 e 1970, os movimentos Aménas al nacion ção liberta de e África descolonização na
No ricas partilhavam ideais, práticas e liderança intelectual. torentes contin os ambos mesmo período, não por acaso, que disnaram-se objeto do irritado discurso metropolitano ”. cuto no capítulo 9 como“blues do terceiro mundo
Leitores de livros europeus de viagens sobre a própria
e estraEuropa têm observado que muitas das convenções l imperia o ionism expans ao o tégias narrativas que associ susComo . Europa a também caracterizam os escritos sobre tento em vários pontos de minha argumentação, quando isto ocorre, é provável que dinâmicas semelhantes de poder
e apropriação estejam tambémpresentes. Os discursos que ( legitimama autoridade burguesa e desautorizam O modo de | vida camponês e de subsistência, por exemplo, podem desempenhar a mesma tarefa ideológica na Europa como no
Fig.3. Representação auto-etnográfica contemporânea, por pintores da cidade andina de Sarhua, estado de Ayacucho, Peru. A legenda “Tarpuy” significa “semeadura”, em quíchua. Estas pinturas, uma
criação única dos artistas de Sarhua, frequentemente incluem legendas muito maiores explicando em espanhol o costume nomeado em quíchua.
mente, na América espanhola, os movimentos de indepen-
dência que iriam abrir o continente sul-americano para as mesmas forças expansionistas estavam, de maneira também
titubeante, começando a se consolidar. (Francisco Miranda pediu pela primeira vez suporte revolucionário para a Inglaterra na década de 1780). Muito do ímpeto explorador em
ambos os continentes teve origem britânica, como boa par-
te dos autores que discuto aqui. Em 1806, os ingleses invadiram tanto o Rio da Prata como o Cabo da Boa Esperança — usando alguns dos mesmosoficiais nos dois locais. Porém, os protagonistas não foram de modo algum exclusivamente ingleses. Em 1799, o alemão Alexander von Humboldt e o
francês Aimé Bonpland estavam se preparando para uma Viagem pelo Nilo, quando a invasão napoleônica do Norte da África frustrou seus planos. Eles transpuseram seu itinerário para a América do Sul e subiram o Orinoco (consulte-
Es |
sul da África ou Argentina. As formas de crítica social por meio das quais as mulheres européias reivindicam participa-
ção política em seus países evocam demandas semelhantes,
ainda que não idênticas, no exterior. O século XVII tem
sido visto como um período no qual a Europa do Norte se
firmou como o centro da civilização, reclamando o legado
do Mediterrâneo para si.” Não surpreende, portanto, que sejam encontradas narrativas alemãs e britânicas sobre a Itália que soam como relatos alemães e britânicos sobre o Brasil. Descrevi este livro anteriormente como um estudo de
gênero, bem como umacrítica de ideologia. O trabalho aca-
dêmico existente sobre a literatura de viagem e exploração não tem se inclinado por nenhuma dessastrilhas. Ele é frequentemente laudatório, recapitulando as explorações de intrépidos excêntricos ou cientistas dedicados. Em outras
instâncias, é um documentário, debruçando-se sobre os re-
8. NT. O termo “blues” tem sua origem no nome do estilo musical nor-
te-americano, caracterizado pela lentidão é melancolia. Por extensão, no contexto acima, “blues” denota o discurso lamuriento e enfadado emreE lação ao terceiro mundo. 9. Consulte-se o controvertido estudo de Martin Bernal Black Athena,
New Brunswick, N. ]., Rutgers U. P., 1987.
introdução: crítica em zona de contato
latos de viagem como fontes de informação a respeito dos
lugares, povos e épocas que discute. Mais recentemente, surgiu umveio estético ouliterário de estudo acadêmico, no
qual os relatos de viagens, usualmente elaborados por fa-
mosas personalidades da literatura, são estudados em suas dimensõesartísticas e intelectuais e em relação aos dilemas existenciais europeus. Não estou seguindo nenhuma dessas alternativas. No que se refere ao gênero, tentei dar uma efetiva atenção às convenções de representação que constituem o relato de viagem europeu, identificando vertentes distintas, sugerindo formas de leitura e enfoques para a análise retórica. O livro inclui varias interpretações de passagens citadas. Espero que algumas das interpretações e modos de leitura que proponho sejam sugestivos para pessoas que investigam materiais similares de outros tempose luga-
res. O estudo dos tropos serve comumente para unificar
corpos de conhecimento e definir gêneros em termos, por exemplo, de repertórios partilhados de instrumentos e convenções (embora, obviamente, sejam os corpos de conheci-
mentos que criamtais repertórios). Meu objetivo aqui, con-
tudo, não é o de definir ou codificar. Tentei usar o estudo dos tropostanto para desagregar quanto para unificar o que se poderia nomear como uma retórica do relato de viagem. Procurei não circunscrever o relato de viagem a um gênero, mas evidenciar sua heterogeneidade e suas interações com outras formas de expressão.
parte 1. ciência e sentimento, 1750-1800
capítulo 2
ciência,
consciência
planetária, interiores
(Ele pode) empreender uma viagem pelo mundo emlivros, pode se fazer mestre da geografia do universo pelos mapas, atlas e mensurações de nossos matemáticos. Pode viajar por terra com
nossos historiadores, pelo mar com os navegadores. Pode circu-
navegar o globo com Dampier e Rogers, e, ao fazer isso, saber mil vezes mais do que todos os marinheiros iletrados.
(Daniel Defoe, The Compleat English Gentleman (1730))
A poesia não está mais em moda. Todos passaram a brincar de ser geômetra ou físico. Sentimento, imaginação e as graças foram
banidos... A literatura está perecendo ante nossos próprios olhos. (Voltaire, Carta a Cideville, 16 de abril de 1735)
A parte européia desta história começa no ano eu-
ropeu de 1735. Ao menos este é o ponto em que a narrativa começará — a história leva outros vinte ou trinta anos para realmente deslanchar. No ano de 1735, ocorrem dois
eventos de certa forma inéditos e profundamente europeus
Umfoi a publicação do Systema Naturae (O Sistema da Na1, Citado em Peter Gay — The Enlightenment: An Interpretation, vol. II, “The Science of Freedom”, New York, W. W. Norton, 1969, p.126: A referência é à Correspondence de Voltaire, vol. IV, pp.48-9.
ciência e sentimento, 1750-1800
tureza), de Carl Linné, no qual o naturalista francês estabelece um sistema classificatório que visa categorizar todas as formas vegetais do planeta, fossem elas conhecidas ou desconhecidas dos europeus/ O outro foi a inauguração da primeira expedição científica internacional da Europa, um es-
forço conjunto visando determinar de uma vez por todas a forma exata da Terra. Como pretendo argumentar, estes dois eventos, e sua coincidência, sugerem a importante magnitude das mudanças no entendimento que as elites européias tinham de si mesmas e de suas relações com o resto do mundo Este capítulo se volta para a emergência de uma
nova versão do que gosto de chamar “consciência planetá-
ria” da Europa, uma versão marcadapela tendência à explo-
ração do interior e pela construção do significado em nível
global por meio dos aparatos descritivos da história natural.
Esta nova consciência planetária, como sugiro, é elemento básico na construção do moderno eurocentrismo, o reflexo hegemônico que incomoda os ocidentais, continuando
mesmo a ser uma segunda natureza para eles.
Sob a liderança francesa, a expedição científica internacional de 1735 foi montada com o fito de responder a uma candente questão empírica: seria a Terra uma esfera, como afirmava a geografia (francesa) cartesiana, ou seria
ela, como (o inglês) Newton havia conjecturado um esferóide achatado nos pólos? Esta era uma questão altamente car-
regada pela rivalidade política entre França e Inglaterra. Um grupo decientistas e geógrafos, liderados pelo físico francês Maupertuis, foi enviado para o norte, para a Lapônia a fim de mensurar umgrau longitudinal no meridiano. Outro, rumou para a América do Sul para proceder à mesma mensuração no Equador, próximo a Quito. Nominalmente encabeçada pelo matemático Louis Godin, esta expedição entrou
para a história com o nome de um de seus poucos sobreviventes, ogeógrafo Charles de la Condamine. A expedição La Condamine foi um triunfo diplomático marcante para a comunidade científica européia. Os territórios americanos da Espanha estavam estritamente fechados para viagens oficiais de estrangeiros de qualquer tipo e
[42
pa
ciência, consciência planetária, interiores
haviam permanecido assim por mais de dois séculos. A obsessão da corte espanhola de proteger suas colônias de toda influência e espionagem estrangeiras era legendária. Após erder o controle do tráfico de escravos para a Grá-Bretanha em 1713, a Espanha havia se tornado mais temerosa
que nunca em relação às incursões em seus monopólios
econômicos e culturais. Quanto mais frequentes se torna-
vam os contatos internacionais das elites crioulas em suas
colônias, mais receosos ficavam os espanhóis. “A política
dos espanhóis”, escreveu o corsário britânico Betagh, na segunda década do século XVII, “consiste principalmente em
procurar, por todos os meios e formas possíveis, evitar que as vastas riquezas daqueles extensos domínios passem para outras mãos.” O conhecimento dessas riquezas, afirmou Betagh, e “da grande demanda, entre americanos, por produtos europeus tem excitado praticamente todas as nações da Europa.” As instalações militares nos portos da América espanhola e a mineração no interior eram as duas construções coloniais mais cuidadosamente protegidas do olhar externo, ao mesmo tempo em que eram as mais assiduamente investigadas pelos rivais de Espanha. Em 1712, por exemplo, o rei da França contratou um jovem engenheiro chamado Frézier para viajar ao longo da costa do Chile e do Peru, fingindo-se de comerciante, “para melhor imiscuir-se entre os governadores espanhóis e ter todas as oportunidades de avaliar sua força.” Obcecado pelas minas, Frézier jamais logrou ver uma. No entanto, mesmo os relatos de segundamão que ele reproduziu, foram avidamente devorados pelos leitores na França e na Inglaterra. Na ausência de novos
escritos sobre a América do Sul, o compilador da coleção de
viagens de Churchill, em 1745, traduziu notas sobre o Chile, escritas um século antes pelo jesuíta espanhol Alonso de 2. Capitão Betagh — Observations on the Country ofPeru and its Inhabitants During bis Captivity in John Pinkerton (ed.) — Voyages and Travels in all Parts of the World, London, Longman et alii, vol. 14, 1815, p.1. 3. M. Frézier — A Voyage to the Souib Sea and along the Coasts of Chile andPeru in the Years 1712, 1713 e 1714, traduzido do francês parao inglês e editado por London, Lonah Bowyer, 1717, Prefácio.
43
ciência e sentimento, 1750-1800
ciência, consciência planetária, interiores
Ovalle.* No que se refere ao interior da América hispânica, mesmorelatos antigos eram mais confiáveis que conjecturas contemporâneas, como a descrição que faz Betagh de um
nado após ter se envolvido numa disputa entre duas pode-
tou para milhas dali,” No caso da expedição La Condamine, a coroa espa-
oderia serafixada sobre as pirâmides triangulares da expe-
terremoto no interior que “levantou áreas inteiras e as arras-
nhola pôs de lado o seu famoso protecionismo. Ávido por
alicerçar o seu prestígio e mitigar a “lenda negra” a respeito da crueldade espanhola, Felipe V aproveitou a oportunidade para agir como um ilustrado monarca continental. Condições estabelecendo os limites da expedição foram acordadas e dois capitães espanhóis, Antonio de Ulloa e Jorge Juan, agregados para assegurar que a pesquisa científica não desse lugar à espionagem — o que prontamente aconteceu. Da mesma forma, praticamente tudo o mais deu errado. A expedição La Condamine foi um empreendimento tão árduo que mais de sessenta anos se passariam antes que
qualquer coisa semelhante fosse outra vez tentada. Rivali-
dades dentro do contingente francês rapidamente cindiram os vínculos de colaboração. A cooperação internacional deu lugar a interminável disputa com as autoridades coloniais
sobre o que poderia ou não ser visto, medido, desenhado ou quais amostras poderiam ser recolhidas. A certa altura,
toda a expedição foi mantida em Quito por oito meses, acusada de planejar o saque dos tesouros incas. Os estrangei-
rosas famílias em Cuenca, no Equador; La Condamine por pouco escapou do mesmo destino. Uma batalha judicial foi travada por mais de um ano sobre se a leur de lys francesa dição (a fleur de lys perdeu). A exploração do interior esta-
va provando ser um pesadelo político ainda maior do que
a sua precedente marítima.
o
Os pesadelos logísticos da exploração do interior
eram também novos, e a expedição La Condamine não foi
poupada de nenhum deles. Os rigores do clima andino ea
viagem por terra provocaram enfermidades continuadas,
instrumentos danificados, perda de espécimes, cadernos de
anotações molhados, frustração angustiante e atrasos. Nofinal, o grupo francês se desintegrou totalmente, cabendo a cada um encontrar sua própria maneira de voltar para casa ou, então, permanecer abandonado na América do Sul. Ain-
da que a expedição sul-americana tivesse tido início um ano antes de sua contrapartida enviada para o Ártico, aproximadamente uma década transcorreu antes que os primeiros sobreviventes começassem sua tortuosa volta para a Europa.
Há muito, a questão do formato da Terra havia sido decidi- |
da (Newton ganhou). Além de informação sobre outros assuntos, o grupo
distâncias, cursos de rios, altitudes, pressões barométricas, eclipses, refrações, trajetórias das estrelas — eram objeto de contínua suspeita. Em 1739, o médico do grupo foi assassi-
sul-americano trouxe para casa desconfortáveis lições sobre a política e o (anti-) heroísmo da ciência. O matemático Pierre Bouguer retornou primeiro e ficou coma glória de relatar o ocorrido à Academia Francesa de Ciências. La Condamine chegou em 1744, via Amazonas, e foi aclamado por sua inédita jornada amazônica. Por meio de uma agressiva campa-
4. Alonso de Ovalle — An Historical Relation of the Kingdom of Chile
toda a Europa comoo principal porta-voz da expedição. Enquanto isso, Louis Godin, o líder nominal da expedição, es-
TOs, com seus estranhos instrumentos, suas obsessivas mensurações — da gravidade, da velocidade do som, alturas e
(1649), emPinkerton, op. cit. vol. 14, pp. 30-210.
5. Betagh, op. cit., p.8. 6. Minha análise nesse ponto faz uso dostrabalhos de Victor Von Hagen
— South America Called Them, New York, Knopf, 1945; Hélêne Minguet
— Introdução a Voyage sur L'Amazone de La Condamine, Paris, Maspero, 1981, pp.5-27; Edward J. Goodman — The Explorers of South America, New York, Macmillan, 1972.
nha contra Bouguer, La Condamine conseguiu se firmar por tava lentamente percorrendo o caminho de volta. Ao chegar
a Espanha, em 1751, foi-lhe negado um passaporte para a França, devido a maquinações de Bouguer e La Condamine. O naturalista Joseph de Jussieu continuou com suas pesqui-
sas na Nova Espanha até 1771, quando foi mandado embo-
45
ciência e sentimento, 1750-1800
ra de Quito, completamente louco. O jovem técnico Godin
des Odonnais alcançou Caiena, onde esperou dezoito anos por sua esposa peruana (voltaremosà trajetória desta mulher mais adiante), retornando finalmente para a França em 1773.
Dos outros, nada mais se ouviu. A cooperação da Espanha com a expedição La Condamine constitui evidência flagrante do poder da ciência para elevar os europeus acima de suas mais intensas rivalidades nacionais. O próprio La Condamine celebrou este impulso continental no prefácio a seu relato da viagem, no qual congratulou Luís XV por apoiar a cooperação científica entre as nações consorciadas, mesmo quando, simultaneamente, em guerra contra elas: “Enquanto os exércitos de Sua Majestade moviam-se de um confim a outro da Europa,” afirmou La Condamine, “seus matemáticos, dispersos por toda a Terra, trabalhavam em Zonas Tórridas e Frígidas, para o avanço das ciências e o benefício comum de todas as nações.” Todavia, não se pode deixar de notar aqui o conspícuo tom nacionalista de La Condamine: o cientista francês orgulhosamente
ciência, consciência planetária, interiores
ser o motor da exa competição entre as nações continuou a
pansão européia no exterior. :
Num aspecto a expedição La Condamine foi um sue textos que cesso verdadeiro: enquanto relato. As histórias
as, ela provocou, circularam por toda'a Europa por décad em circuitos escritos e orais. De fato, o corpo de textos re-
sultante da expedição La Condamine sugere bem o alcance
e a variedade dos relatos de viagem produzidos em meados
do século XVIII, relatos que, por sua vez, trouxeram outras
partes do mundo para as imaginações dos europeus. Um breve inventário dos relatos da expedição La Condamine pode ajudar a sugerir o que significa falar sobre viagens, relatos e zonas de contato neste momento da história.
congratula seu próprio rei por seu cosmopolitismo esclarecido. Num espírito igualmente dúbio, tanto a Real Sociedade
O matemático Bouguer, o primeiro a retornar, escreveu seu relatório para a Academia Francesa de Ciências em 1744, numa Narrativa Abreviada de uma Viagem ao Peru. De início, a voz do cientista predomina neste relato, estruturandose o discurso em torno das mensurações, fenômenos meteorológicos etc. Entretanto, quando sua viagem se volta para O interior, a narrativa científica de Bouguer se entrelaça com uma história de sofrimentos e privações que mesmo hoje sua
ram os espanhóis Juan e Ulloa com o título de membros ho-
acampa no topo da gelada cordilheira dos Andes, passagens
Britânica quanto a Academia Francesa de Ciências galardoa-
norários — gestos transnacionais indissociáveis da intensa rivalidade nacional entre a Grã-Bretanha e a França e seus interesses conflitantes na América espanhola. Tais gestos resumem o jogo ambíguo de aspirações nacionais e continentais que havia sido uma constante ao longo da expansão européia e-que haveria de permanecer assim durante a era da a um lado, as ideologias dominantes traçavam uma clara distinção entre a (interessada) busca de riqueza e a (desinteressada) procura de conhecimento; por outro lado, 7. Charles-Marie de la Condamine — A Succint Abridgement ofa Voyage made within the Inland Parts of South-America, London, E. Withers,
1748, p.iv. Esta é a primeira tradução eminglês de seu Relation abrégié d'un voyage fait dans Vintérieur de "Amérique meridionale (1745) (ed. bras.: Relato abreviado de uma viagempelo interior da América meridional, São Paulo, Cultura, 1944].
leitura se torna comovente. No ponto em que a expedição
sobre frieiras hemorrágicas e escravos ameríndios morrendo
pela ação do frio se confundem com especulações fisiológi-
cas sobre a retenção do calor do corpo. Sobre as minas, Bouguer relata apenas boatos, observando que “a impenetrável
natureza do país” torna difícil que outras delas sejam encontradas, e também que “os índios são sábios o bastante para
não serem muito prestativos neste tipo de pesquisa”, pois
“caso fossem bem-sucedidos, estariam abrindo caminho para
a quase insuportável exploração de seu trabalho, arrecadando porção ínfima dos rendimentos.” Bouguer também pro-
duziu um livro técnico sobre a expedição chamado La Figure de la terre. 8. Pierre Bouguer — An Abridged Relation ofa Voyage to Peru (1744), em Pinkerton, op. cit.. vol.14, pp.270-312.
ciência e sentimento, 1750-1800
ciência, consciência planetária, interiores
plantas, novos animais e novos homens.” Ele especula, como já haviam feito todos os seus precursores, sobre a localização do El Dorado e a existência das amazonas, as
quais, ainda que bem possam ter existido, muito provavelmente “tenham hoje em dia abandonado seus costumes pri-
mevos.”” A selva permanece sendo um mundo de fascinação e perigo.”
Ainda que a Breve Narrativa de 1745 seja certamente a
mais conhecida das obras de La Condamine, ele também pu-
blicou copiosamente em outros gêneros, todos eles baseados em suas viagens americanas. Sua “Carta sobre a insurreição
popular em Cuenca” surgiu em 1746, seguida por uma História das Pirâmides de Quito (1751) e por um relatório a respeito da Mensuração dos Primeiros Três Graus do Meridiano
Fig.4. A expedição La Condamine fazendo mensurações. Extraído de Mesure des trois premiers degrês du Meridien dans FHémisphêre Austral (Mensuração dos Primeiros Três Graus do Meridiano no Hemisfério Austral), de Charles de la Condamine, Paris, Imprimerie Royal, 1751.
La Condamine também publicou seu relatório para a
Academia Francesa, sob título Breve Narrativa das Viagens
através do Interior na América do Sul (1745), o qual foi mui-
to lido e amplamente traduzido. Talvez porque Bourguer já tivesse falado da parte andina da missão, o relato de La Condamine se volta principalmente para sua extraordinária via-
gem de volta, descendo o Amazonas e suas tentativas de re-
gistrar seu curso e afluentes. O texto é escrito essencialmente não como um relatório científico, mas no gênero popular da literatura de sobrevivência. Ao lado das navegações, os dois grandes temas da literatura da sobrevivência são os sofrimentos e perigos, de umlado, e as maravilhas exóticas e as curiosidades, de outro. Na narrativa de La Condamine, o
drama das expedições do século XVI na região — Orellana, Raleigh, Aguirre — é recapitulado com todas as suas associações míticas. Ao adentrar na selva, La Condamine se encon-
tra “num novo mundo, longe de todo comércio humano, sobre um mar de água fresca ... Lá me encontrei com novas
(1751). Pelo resto de sua vida, ele se empenhou na pesquisa e em polêmicas sobre um leque de temas científicos relacio-
nados à América, incluindo os efeitos do quinino, vacinação antivariólica (amplamente utilizada por missionários espa-
nhóis), a existência das Amazonas, a geografia do Orenoco e do Rio Negro. Ele escreveu sobre a borracha, que apresentou
aos cientistas europeus, o curare e seus antídotos e a neces-
sidade de padrões europeus comuns de mensuração. Os escritos científicos especializados de La Condamine dão a medida de quanto a ciência veioarticular os contatos europeus
coma fronteira imperiale do quantofoiarticulada por eles. Foram os dois capitães espanhóis Juan e Ulloa que elaboraram o único relato extensivo da expedição. Redigido por Ulloa, a pedido do rei de Espanha, sua Viagem à América do Sul veio a público na Espanha em 1747, e sua tra-
dução inglesa, feita por John Adams, mereceu cinco edições. O texto de Juan e Ulloa — nemciência, nemliteratura de sobrevivência — está escrito num estilo que gosto de
chamar de “descrição cívica”. Virtualmente isento de qual9. La Condamine, op. cit., p.24. 10. Ibid., p.51. 11. Evidentemente, ainda é. A mais recente re-encenação da procura das amazonas é Running the Amazon, de Joe Kane, New York, Random
House, 1989.
48 49]
ciência e sentimento, 1750-1800
quer rodeio de entretenimento, o livro é um enorme compêndio de informações acerca de muitos aspectos da geografia colonial espanhola e da vida nas colônias espanholas — exceto, é claro, minas, instalações militares e outras infor-
mações estratégicas. É um trabalho “estatístico”, no sentido original do termo,isto é, “uma investigação sobre o estado
de um país” (Oxford English Dictionary). Adams louvou o tratado por sua confiabilidade em contraste com os “pomposos narradores de curiosidades maravilhosas,"? uma alusão à literatura de sobrevivência em geral, e provavelmente a La Condamine, em particular. Juan e Ulloa também endereçaram a seu rei um se-
apenas parcialmente. É uma história de sobrevivência cujo
herói não é um homem de ciência europeu, mas uma mulher euro-americana, Isabela Godin des Odonais, da aristo-
cracia peruana, que se casou com um membro da expedição, com quem teve quatro filhos. Após o esfacelamento
do grupo científico, seu marido rumou para Caiena, onde
passou dezoito anos tentando obter passaportes e passagem para a França para si mesmo e sua família. Após a trá-
gica morte de seu quarto e último filho, Mme. Godin, agora já com mais de quarenta anos, tomou uma ousada deci-
são. Acompanhada por um grupo que incluía seus irmãos, sobrinho e numerosos criados, partiu para se juntar a seu
América (Notícias secretas da América), que dissertava criti-
esposo atravessando os Andes e descendo o Amazonas pela mesmarota que fez de La Condamine um herói. O de-
la e, como um comentarista observou, explicou "muito do
seus guias indígenas desertaram, e todos, incluindo seus ir-
gundo volume, clandestino, intitulado Noticias secretas de
camente sobre vários aspectos da direção colonial espanho-
sastre se seguiu. Consta que, amedrontados pela varíola,
que não foi dito nos trabalhos dos acadêmicos franceses.“
mãos, sobrinho e criados, morreram após definharem por
Junto ao catálogo de textos da expedição La Conda-
nário espanhol. Com aspecto selvagem, seus cabelos embranquecidos, assim prossegue o relato, ela chega à costa
Não foi senão nos primeiros anos do século XIX, quando o Império Espanhol entrou em seu colapso final, que esta obra caiu nas mãos dos ingleses e se tornou pública. mine que foram publicados, existe um rol de escritos que
não o foram. Este inclui, por exemplo, o trabalho de Joseph de Jussieu, o naturalista que permaneceu na América do Sul e continuou a exercer sua profissão por outros vinte anos.
Quando ele afinal enlouqueceu e teve de ser reembarcado
dias na selva. Mme. Godin, vagando em delírio, gradualmente voltou sozinha até o rio, onde foi resgatada por indígenas em canoas que a levaramaté o entreposto missio-
da Guiana para ser levada para a Europa por seu sempre devotado marido. A romântica e arrepiante narrativa de Mme. Godin foi publicada em 1773 — não por ela, mas por seu esposo, a pe-
de volta, de Quito para a França, os amigos que o enviaram,
dido de La Condamine, que a anexou às edições de sua pró-
balho de toda a sua vida de pesquisa. Apenas um estudo, sobre os efeitos do quinino, veio a ser publicado — sob o nome de La Condamine! O restante pode ainda surgir algum dia em Quito.
emocionante, suas complexidades irresistíveis, como parecem fregientemente ser sempre que protagonistas femininas aparecem na prosa sobre a fronteira colonial. A história
ao que parece, perderam de vista o baú que continha o tra-
A mais apaixonante e duradoura história que adveio da expedição La Condamine foi umrelato oral publicado |
ciência, consciência planetária, interiores
12. John Adams — Prefácio a Voyage to South America (1747), em Pinker-
ton, op. cit., vol. 14, p.313.
13. Von Hagen — op. cit., p.300.
pria narrativa.” Mesmo hoje, o ocorrido é profundamente
de Mme. Godin é uma reapresentação da grande procura
pelas Amazonas, levada a efeito pela própria amazona — ou algo próximoa isto. O amor, a perda e a selva transformam a mulher crioula, de uma aristocrata branca, na combativa 14. Luis Godin des Odonais — Carta a M. de la Condamine, Julho de 1773, anexada a Abridged Narrative em Pinkerton, op. cit. vol. 14, pp-259-69.
ciência e sentimento, 1750-1800
ciência, consciência planetária, interiores
mulher guerreira que os europeus haviam criado para sim-
bolizar para si mesmos a América. Ao mesmo tempo, sua saga a destrói enquanto objeto sexual: Mme. Godin emerge como uma versão real da arruinada princesa Cunégonde, do Cândido. Inversões simbólicas abundam na história. O co-
mércio de ouro, por exemplo, tem sua direção revertida. A certa altura, Mme. Godin oferece duas de suas correntes de
ouro para os índios que salvaram a sua vida na selva, invertendo o paradigma da conquista. Para sua fúria, os presen-
tes foram imediatamente tomados pelo padre residente e
substituídos pela quintessência da mercadoria colonial: tecidos. Por tais deliciosas ironias, não admira que a amazona de Mme. Godin tenha feito carreira e circulado por toda a Europa por mais de cinquenta anos. A carta de vinte páginas de seu marido representa um traço modesto de uma existência vital dentro da cultura oral.
“otapete além da orla Textos orais, textos escritos, textos perdidos, textos se-
cretos, apropriados, abreviados, traduzidos, coligidos e plagiados; cartas, relatórios, histórias de sobrevivência, descrição cívica, narrativa de navegação, monstros e maravilhas,
tratados medicinais, polêmicas acadêmicas, velhos mitos reencenados e invertidos — o “corpus” La Condamine ilustra
o múltiplo perfil dos relatos de viagem nas fronteiras de ex-
pansão da Europa em meados do século XVIII. A expedição
mesma é de interesse neste contexto como uma instância
precursora e notoriamente malsucedida daquilo que logo se
tornaria um dos mais ostentados e conspícuos instrumentos europeus de expansão, a expedição científica internacional. Na segunda metade do século XVIII, a expedição científica tornar-se-ia umcatalisador das energias e recursos de intrincadas alianças das elites comerciais e intelectuais por toda a Europa. Igualmente relevante é que a exploração científica haveria de se tornar um foco de intenso interesse público, e
52
Fig.5. Fenômenos naturais da América do Sul, tais como vistos pela ex-
pedição La Condamine. Embaixo, à esquerda, vê-se o vulcão Cotopaxi, coberto de neve e em erupção; o canto baixo, à direita, representa o “fenômeno do arco da lua” projetado sobre as encostas das monta-
nhas; acima, à direita, ilustra-se o “fenômeno do arco-íris triplo, visto
pela primeira vez em Pambamarca e posteriormente em várias outras
montanhas.” Extraído de Relación histórica del viaje a la América meridional, deJorge Juan e Antonio de Ulloa, Madri, Antonio Marín, 1748.
fonte de alguns dos mais poderosos aparatos ideológicos e de idealização, por meio dos quais os cidadãos europeus se relacionaram com outras partes do mundo. Estes aparatos, e particularmente os relatos de viagem, são o temaa ser traba-
lhado em seguida.
Para os propósitos deste estudo, a expedição La Condamine também possui um significado específico, pois foi um dos primeiros exemplos de uma nova tendência no que se refere à exploração e à documentação dos interiores conti- | nentais, em contraste com o paradigma marítimo que havia ocupado o centro do palco por trezentos anos. Nos últimos
so.
ciência e sentimento, 1750-1800 anos do século XVII, a exploração do interior havia se trans-
“ formado no objeto principal das energias e imaginação ex-
pansionistas. Esta mudança teve consequências significativas para os relatos de viagem, exigindo e dando vazão a novas
: formas de conhecimento e autoconhecimento europeus, novos modelos para os contatos europeus além-fronteiras e no-
vas formas de codificação das ambições imperiais européias.
“Em 1715, o espião francês Frézier considerava impossível a exploração interior do Peru dado que “os viajantes devem
carregar até mesmo suas próprias camas, a menos que acei-
tem deitar-se no chão, como os nativos, sobre peles de ovelha, tendo o céu por teto.”* Para o prefaciador inglês do relato de Ulloa, trinta anos mais tarde, a exploração do interior
é umpasso a ser forçosamente dado: “Que idéia poderíamos
ter de um tapete turco”, pergunta, “se observarmos apenas as | beiras ou sua orla?””* Ao redor de 1792, o viajante francês
Saugnier viu isto como uma questão de justiça global: o inte-
rior, tanto quanto a costa da África, “merece a honra” da visi-
tação européia.” Em 1822, Alexander Humboldt afirmou: “não haverá de ser pela navegação costeira que poderemos descobrir a direção das cordilheiras e sua constituição geológica, o clima de cada região e sua influência sobre as formas e hábitos dos seres organizados.” Para seu tradutor inglês, a
questão era de ordem estética: “Em geral, as expedições marítimas têm uma certa monotonia que vem da necessidade de se falar continuamente da navegação numa linguagem técni-
ca ... À história das jornadas por terra em regiões distantes é
muito mais apropriada para incitar o interesse geral." Como viagem, portanto, a expedição La Condamine
marca a inauguração de uma era de viagens científicas e
|
exploração do interior que, por seu turno, sugere mudan-
ciência, consciência planetária, interiores
ças na concepção que tem a Europa de si mesma e de suas relações globais. Não obstante seus calamitosos fracassos, a expedição aparece como precursora. Enquanto relato, exemplifica configurações de relatos de viagem que, na medida em que formas burguesas de autoridade ganhavam impulso, seriam radicalmente reorganizados. (O capítulo
seguinte examinará estas transformações nos relatos de via-
gem na África Meridional.) Na segunda metade do século | XVIII, muitos viajantes-escritores vão se dissociar de tradi-
ções tais como a da literatura de sobrevivência, descrição cívica ou narrativa de navegação, pois se engajariam no
novo projeto de construção de conhecimento da história natural. A emergência deste projeto é marcada pelo segun-
do evento de 1735 que prometi discutir: a publicação de O Sistema da Natureza, de Lineu.
osistema da natureza Enquanto a expedição La Condamine estava cruzando o Atlântico em nome da ciência, um naturalista sueco de vinte e oito anos levava ao prelo a sua primeira grande contribuição ao saber. O naturalista se chamava Carl Linné ou, em latim, Linnaeus, e o livro tinha portítulo Systema Naturae (O
Sistema da Natureza).Encontrava-se aí uma criação extraordinária que teria profundo e duradouro impacto não apenas sobre as viagens e os relatos de viagem, mas na maneira mais geral dos cidadãos europeus construírem e compreen-| derem seu lugar no planeta! Para um leitor contemporâneo, | O Sistema da Natureza parece um feito modesto e, na ver-|
dade, um tanto quanto estranho. Era umsistema descritivo |, designado para classificar todas as plantas da Terra, conhe- Ày f
15. Frézier, op. cit., p.10. 16. Adams, op. cit., p.314. 17. Messrs. Saugnier e Brisson — Voyages to the Coast ofAfrica (1792), Negro U. P., 1969. Esta é tradução em inglês do original francês de 1792 Relation de plusiers voyages à la côte d'Afrique. 18. Alexander von Humboldt — Personal Narrative of a Voyage to the Equinoctial Regions, tradução para o inglês de Helen Maria Williams, London, Longman et alii, 1822, vol. I, p.vii.
“
“.
A
cidas e desconhecidas, de acordo comas características de suas partes reprodutivas.” Vinte e quatro (e, mais tarde, vin-
19, A discussão de Lineu e da história natural foi desenvolvida a partir das seguintes fontes: Heins Goerke (ed.) — Linnaeits, tradução para O in-
Ei
ciência e sentimento, 1750-1800
te e seis) configurações básicas de estames, pistilos etc. fo-
ciência, consciência planetária, interiores
essencial que as distinga de tipos adjacentes. Sistemas paralelos foram também propostos para animais eminerais.
ram identificadas e distribuídas de acordo com as letras do alfabeto (veja-se ilustração 6). Quatro parâmetrosvisuais adicionais completavam a taxonomia: número, forma, posição e tamanho relativo. Todas as plantas da Terra, argumentava Lineu, poderiam ser inseridas neste simples sistema de dis-
O sistema lineano sintetizou as aspirações continentais e transnacionais da ciência européia discutidas anterior-
res de Roy, Tournefort e outros, a abordagem de Lineu tinha uma simplicidade e elegância ausente em seus antecessores. Combinar o ideal de um sistema classificatório de todas as plantas com uma sugestão concreta e prática, de como cons-
imperial global, indubitavelmente aumentou a receptivida-
tinções, incluindo aquelas ainda desconhecidas pelos europeus. Tendo sua origem nos esforços classificatórios anterio-
truí-lo, constituía um tremendo avanço. Seu esquema foi
considerado, mesmo por seuscríticos, como algo que impunha ordem ao caos — tanto ao caos da natureza como ao da
botânica anterior. “O fio de Ariadne em botânica”, afirmou
Lineu, “é a classificação, sem a qual só existe o caos.”
Como veio a se verificar, o Sistema de 1735 foi ape-
nas um primeiro passo. Enquanto La Condamine abria seu caminho pela América do Sul, Lineu aperfeiçoava seu sistema, dando-lhe forma final em suas duas obras capitais, Phi-
losophia Botanica (1751) e Species Plantarum (1753). É a
| estes trabalhos quea ciência européia deve a nomenclatura | botânica padrão que atribui às plantas o nome de seu gêneTo, seguido por sua espécie e por qualquer outra diferença glês de Denver Lindley, New York, Scribner's, 1973; Tore Frangsmyr (ed.)
— Linnaeus: The Man and his Work, Berkeley, California U. P,, 1983; Gunnar Broberg (ed.) — Linnaeus: Progress and Prospects in Linnaean Re-
search, Pittsburgh/Stockholm, 1980; Daniel Boorstin — The Discoverers, New York, Random House, 1983 (ed. bras.: Os descobridores, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1989]: Henry Steele Coomager — The Empire
ofReason, NewYork, Doubleday, 1977; p)J. Marshall e Glyndwr Williams — The Great Map of Mankind, Cambridge, Harvard U. P., 1982: Edward Dudley e Maximilian E. Novak (eds.) - The Wild Man Within, Pitisburgh, Pittsburgh U. P., 1972; Michel Foucault — The Order of Things, New York,
Pantheon, 1970 (ed. bras.: As palavras e as coisas, São Paulo, Martins Fontes, 1981]; Gay, op. cit.. Em 1956 o Museu Britânico publicou exem-
plares em fac-símile da edição de 1758 de O Sistema da Natureza sob seu título em latim, Caroli Linnaei Systema Naturae. 20. Foucault, op. cit., p.136.
q
mente no contexto da expedição La Condamine. Lineu, de-
liberadamente, restaurou o latim em sua nomenclatura, pre-
cisamente, porque não era língua nacional de ninguém. O fato de que ele mesmo fosse oriundo da Suécia, um protaonista relativamente menor na competição econômica e
de de seu sistema por todo o continente. Paradigmasrivais, produzidos em particular pelos franceses, foram igualmen-. te continentais em amplitude e intenção. Mas só o sistema de Lineu constituiu um empreendimento europeu de cons-
trução do saber numa escala e atrativo sem precedentes. , Suas páginas de listas em latim podem parecer estáticas e
abstratas, mas o que fizeram e foram concebidas para fazêlo, foi colocar em movimento um projeto a ser realizado no . mundo da forma mais concreta possível. Na medida em
que sua taxonomia se difundia por toda a Europa na segunda metade do século, seus “discípulos” (pois eles próprios assim se denominavam) espalhavam-se às dúzias por todo o globo, por mar e terra, executando aquilo que Daniel
Boorstin chamou de “estratégia messiânica”.? Acordos com as companhias ultramarinas de comércio, especialmente a
Companhia Sueca da Índia Oriental, franqueavam passagens para os estudantes de Lineu, que começaram a se deslocar por toda parte coletando plantas e insetos, medindo, preservando, fazendo desenhos e tentando desesperadamente levar tudo isso intacto de volta para casa. A informação era veiculada em livros; os espécimens, caso mortos,
eram inseridos em coleções de história natural que se tor-
naram passatempos importantes para pessoas de recursos em todo o continente; se vivos, eram plantados em jardins botânicos que também começaram a proliferar em cidades e propriedades particulares, ao longo de toda a Europa. 21. Boorstin, op. cit., p.16.
57
ciência, consciência planetária, interiores
ciência e sentimento, 1750-1800
Kalm, pupilo de Lineu, foi para a América do Norte, em
nero apropriado, fosse tal planta conhecida anteriormente
ca do Sul, em 1761, enquanto Solander juntou-se à primeira viagem de Cook, em 1768, Sparrman à sua segunda, em 1772 (consulte-se capítulo 3 a seguir), e assim sucessivamente. As palavras do próprio Lineu para um colega em 1771 expressam a energia, a excitação e o caráter mundial do empreendimento:
As viagens e os relatos de viagem jamais seriam os
Meu aluno Sparrman acabou de zarpar para o Cabo da Boa Es-
perança, e outro de meus pupilos, Thunberg, deve acompanhar
uma embaixada holandesa para o Japão; ambos são competentes naturalistas. O jovem Gmelin ainda está na Pérsia, e meu amigo Falck se encontra na Tartária. Mutis está fazendo esplêndidas descobertas botânicas no México. Koenig tem encontrado uma série de novidades em Tranquebar. O professor Friis Rottbol, de Copenhague, está publicando o registro das plantas identificadas no Suriname por Rolander. As descobertas de Forsskal na Arábia se-
pela ciência ou não.”3
;
det
mesnros. Na segunda metade do século XVIII, fosse uma dada expedição primariamente científica ou não, fosse o
viajante um cientista ou não, a história natural desempenharia algum papel nelã| A coleta de espécimes, a constru-
ção de coleções, o batismo de novas espécies, a identifica-
ção de outras já conhecidas, tornaram-se temas típicos nas
viagens e nos livros de viagem!Ao lado dos personagens de fronteira, como o homem do mar, o conquistador, o cativo, o diplomata, começava a surgir em toda parte a
imagem benigna e decididamente letrada do “herboriza-
dor”, armado com nada mais do que uma bolsa de cole-
rão logo mandadas para o prelo em Copenhague.”
cionador, um caderno de notas e alguns frascos de espécimes, não desejando nada mais do que umas poucas pacíficas horas com os insetos e as flores. Todos os tipos de
É como se ele estivesse falando de embaixadores e
zer, preenchidas pelo estudo cavalheiresco da natureza/
tava. Assim como a Cristandade havia inaugurado um trabalho global de conversão religiosa que se verificava a cada contato com outras sociedades, assim também a história na-
convencionais dos livros de viagem pelo menos desde o
relatos de viagem começaram a desenvolver pausas de la-
Descrições da flora e fauna não eram em si novas nos relatos de viagem. Ao contrário, haviam sido componentes
de um império. O que pretendo afirmar é, evidentemente, que, de uma forma muito significativa, ele efetivamente es-
século XVI. Todavia, eram, então, tipicamente estruturadas
como apêndices ou digressões formais da narrativa.
Contudo, se firmou o projeto classificatório global, a observação e catalogação da própria natureza se tornaram
tural iniciou um esforço de escala mundial que, entre outras coisas, tornou as zonas de contato um local de traba-
narráveis, podendo constituir uma sequência de eventos
lho tanto intelectual quanto manual, e lá instalou a distin-
ou mesmo estruturar um enredo. Poderiam formar a principal base narrativa de todo um relato. De um ângulo particular, o que se conta é a história dos europeus sob o pro- |
ção entre estes dois. Ao mesmo tempo, o projeto de siste-
dj
matização de Lineu tinha uma dimensão marcadamente democrática, popularizando a pesquisa científica de um modo sem precedentes. “Lineu”, como colocou um comentarista
cesso de urbanização e industrialização, à procura de rela- |
contemporâneo, “foi acima de tudo um homem para o não-
ções não exploradoras com a natureza, mesmo que tais re-
profissional”. Seu sonho era que, “com seu método,se tornasse possível, para qualquer um que houvesse aprendido
lações estivessem sendo destruídas por eles em seus pró-
prios centros de poder. Como procurarei mostrar no pró-
O sistema, dispor qualquer planta de qualquer lugar do
ximo capítulo, o que também está em elaboração é uma
- mundo em sua classe e ordem corretas, se não em seu gê22, Citado em ibid., p.444.
|
23, Sten Lindroth — “Linnaeusin his European Context”, em Broberg, op. cit., p.lá.
59
aa”
1747, Osbeck para a China, em 1750, Lofling para a Améri-
ciência e sentimento, 1750-1800
Glarisie oa AN ONDEM = ss METODOS plantar SS ENALA IES ASAS CASADR NACDURAE
Cederóripa
“ciência, consciência planetária, interiores
E arrativa-de“anticonquista”, edeRes |
za a própria presença mundialautoridade.burguês
eguropeu...Esta narrativa naturalista manteria uma enorme |
força ideológica por todo o século XIX, e permanece mui-* to presente hoje em dia, entre nós. O sistema lineano é apenas uma vertente dos esque- | mas classificatórios totalizadores que se aglutinam em meados do século XVIIna disciplina “história natural”. A versão
definitiva do sistema de Lineu surgiu paralelamente a obras igualmente ambiciosas como a Histoire Naturelle de Buffon, ue começou a ser publicada em 1749, ou Familles des plantes (1763), de Adanson. Mesmo que estes autores tenham proposto sistemas rivais, com diferenças substantivas em relação ao de Lineu, os debates entre eles permane-
geram baseados no projetototalizante eclassificatório que
distingue este período. Tais esquemas constituem, como ob-
serva Gunnar Eriksson, "estratégias alternativas para a reali-
zação de um projeto comum a toda a história natural do século XVIII, a representação fidedigna do plano da própria natureza.” Em sua clássica análise do pensamento do século XVII, The Order of Things (1970), Michel Foucault des-
creve assim tal projeto: “Dada sua estrutura, a grande varie-
dade de seres que ocupam a superfície do globo pode ser distribuída tanto na sequência de uma linguagem descritiva
quanto no campo de uma mathesis que poderia ainda ser uma ciência geral da ordem.” Falando da história natural como algo que processa “uma descrição do visível”, a análise de Foucault salienta o caráter verbal desta empresa, a qual, como afirma,
Lodo bateagao
< Meu argumento é que a sistematização da natureza é um projeto europeu de novo tipo, uma nova forma daquilo
que se poderia chamar de consciência planetária entre europeus. Por três séculos, os suportes europeus de elaboração de conhecimento tinham construído o planeta, acima de tudo, em termos da navegação. Estes termos deram ensejo a dois projetostotalizadoresouplanetários. Um seria a circunavegação, um feito duplo que consiste na navegação ao redor do
mundo seguido do relato escrito deste empreendimento (o termo *“circunavegação” se refere tanto à viagem quanto ao texto). Os europeus tinham repetido este feito duplo quase que continuamente desde que Magalhães o completou pela
Primeira vez na década de 1520. O segundo projeto planetáro, igualmente dependente da tinta e do papel, foi omapeamentodoperfil costeiro do mundo, uma tarefa coletiva que
ainda estava em andamento duranteo século XVII, mas que
r 26. Ibid. pI? 27. Ibid., p.136. 28. Ibid., p.132 62
se sabia ser factível. Em 1704, era possível falar do “Império
da Europa” como, nas palavras de um editor de livros de viasem, algo que se estendia “até os confins da terra, onde vá-
63
ciência e sentimento, 1750-1800
rias de suas nações mantinham possessões e colônias”? A circunavegação e a cartografia, então,já haviam ensejado aquilo / que se poderia chamar de sujeito europeu mundial ou planetário. Seus contornos são esboçados com desenvoltura e fami-
liaridade por Daniel Defoe na passagem constante da primei-
ra epígrafe a este capítulo. Como as palavras de Defoe deixam
“ciência, consciência planetária, interiores
sidade do espírito humano; sua totalidade é tão grande que parece ser, e de fato é, inexaurível em todos os seus detalhes.”
Ao lado deste universo totalizador, quão tímido parece o velho costume ligado à navegação de se preencher os
espaços em branco dos mapas com desenhos icônicos de
patente, este sujeito histórico mundial é europeu, homem,” secular e letrado; sua consciência planetária é produto de seu
curiosidades e perigos regionais — amazonas no Amazonas,
tada” que as experiências vivenciadas por marinheiros. * A sistematização da natureza na segunda metade do século haveria de firmar ainda mais poderosamente a auto-
Da mesma forma que o advento da exploração do in-
contato com a cultura impressa, infinitamente mais “comple-
ridade do prelo e, assim também, da classe que o controla-
va, Ela parece cristalizar imagens do mundo de tipo bastante | diferente daquelas propiciadas pelas imagens anteriores de | anana não a estreita faixa de | umadeterminada rota, não as linhas onde terra e água se en-
contram, mas os “conteúdos” internos daquelas massas“de
terra e água cuja extensão constitui a superfície do planeta.
Estesvastosconteúdosseriamconhecidos não por meiode
linhas finas sobre um papel em branco, mas por representações verbais que por sua vez são condensadas em nomenclaturas ou por meio de grades rotuladas nas quais as entidades são inseridas. A totalidade finita destas representações
canibais no Caribe, camelos no Saara, elefantes na Índia, e
assim por diante.
ciedo mundo sistemático da superfície siste terior, o mapeamento RSne comercialaderecursos e busca está correlacion. ado àcrescente rena
mente exploráveis, “mercados, eterras para colonizar, tanto
quanto O mapeamento marítimo estáligado à procura,dero-
tasde comércio. Diferentemente do mapeamento de nave-
gação, todavia, a concebeu história
um caos a partirdoqual o cientistaproduziauma ordem.
Nãoé, portanto, uma simples questão de representar o mundo tal como ele era. Para Adanson (1763), o mundo natural “* sem o concurso do olho ordenador do cientista seria
oem
uma confusa mescla de seres que pareceriam ter sido agrupados aleatoriamente: aqui o ouro está mesclado com outro metal, com
a pedra, com a terra; lá, a violeta cresce lado a lado com um car-
ou categorias constitui um “mapeamento” não só de linhas
valho. Entre estas plantas, também, vagueia o quadrúpede, o réptl e o inseto; os peixes são fundidos, poder-se-ia dizer, com o elemento aquoso no qual navegam, e com as plantas que crescem nas profundezas das águas... Esta mescla é efetivamente tão generalizada e multifacetada que parece ser uma das leis da natureza.
vista em toda a sua extensão, é uma História imensa, encampan-
% Tal perspectiva pode parecer estranha a imaginações ocidentais do final do século XX, treinadas para ver a natu-
costeiras ou rios, mas de cada polegada quadrada, ou mesmo cúbica, da superfície terrestre. A “história natural”, escreveu Buffon em 1749, do todos os objetos que o Universo nos apresenta. Esta prodigio-
sa multiplicidade de Quadrúpedes, Pássaros, Peixes, Insetos, Plantas, Minerais etc., oferece um vasto espetáculo para a curio-
|
29. Citado em Marshall e Williams, op. cit. p.48.
30. Isto não quer dizer, evidentemente, que não havia mulheres naturalistas — elas certamente existiam, ainda que sua participação na esfera profissional fosse limitada e que não estivessem inicialmente entre os discípulos destacados para o desempenho de missões no exterior. CÊ. capitulos 6 e 8, adiante, para uma discussão sobre algumas mulheres escritoras de viagem em relação às missões científicas.
64
Teza como ecossistemas auto-reguladores que as interven-
ções humanas levam ao caos. (A história natural exigia a in-
tervenção humana ( rincipalmente intelectual) para que se
Compusesse a ordem. |Os sistemas classificatórios do século
XVIII suscitaram a tarefa de localizar todas as espécies do 31. Citado em Gay, op. cit. pp.1523.
32. Citado em Foucault, op. cit. p.148.
A
ee
planeta, extraindo-as de seu nicho arbitrário, particular (o caos) e colocando-as em seu posto apropriado no interior do sistema (a ordem — livro, coleção ou jardim), junto a seu recém-criado nome secular europeu. O próprio Lineu, ao longo de toda a sua vida, teve a seu crédito a introdução de 8.000 novos itens às listagens. Análises da história natural, tais como a de Foucault, nem sempre salientam as dimensões transformadoras, e apropriadoras de sua concepção. Uma a uma, as formas de
vida do planeta haveriam de ser extraídas do emaranhado de
seu ambiente e reagrupadas conforme os padrões europeus de unidade global e ordemiO olhar (etrado, masculino, europeu) que empregasse o sistema poderia tornar familiar (“naturalizar”) novos lugares/novas visões imediatamente após o contato, por meio de sua incorporação à linguagem do sistema. As diferenças de distância são eliminadas do
quadro: no que se referisse a mimosas, a Grécia seria indistinguível da Venezuela, África Ocidental ou Japão; o rótulo
“picos graníticos” poderia ser aplicado identicamente à Europa Oriental, aos Andes ou ao oeste americano.Barbara Stafford menciona aquele que provavelmente é dos exemplos mais extremos dessa realocação semântica global: um trata-
nao -
do de 1789, escrito pelo autor alemão Samuel Witte, afirma-
va que todas as pirâmides do mundo, do Egito às Américas, eram na verdade “erupções basálticas”.* o exemplo é significativo, pois evidencia o potencial do sistema de subsumir a
história e a cultura à natureza. A história natural não apenas extraía os espécimes de suas relações orgânicas e ecológicas um com o outro, mas também de seus lugares nas econo-
mias, histórias, sistemas simbólicos e sociais de outras popu-
ciência, consciência planetária, interiores
E anos, tanto para o mais laborioso dos botânicos, quanto para mais de um desenhista,“ ele prossegue acrescentando uma digressão que haveria de ser praticamente impensável,
“nos meios científicos, no final do século:
Menciono aqui apenas o trabalho exigido para uma exata descri-
ção destas plantas, sua distribuição em classes e a alocação de cada uma em seu apropriado gênero e espécie. O que então se-
ria se adicionarmos a isso um exame das virtudes atribuídas a
eles pelos nativos do país? Um exame que indubitavelmente é o
que mais atrai a nossa atenção em qualquer área desse estudo
A história natural, como um processo de pensamento, rompeu redes efetivas de relações materiais entre pessoas,
plantas e animais onde quer que fosse aplicada. O próprio
observador europeu não tem mais lugar na descrição. Frequentemente, o projeto lineano é representado pela imagem de Adão no Jardim do Eden. Para Lineu, diz Daniel
* Bootstin, “a natureza era uma imensa coleção de objetos na-
turais que ele próprio passava em revista como um supervi“sor, rotulando-os. Teve ele um precursor nesta árdua tarefa: Adão no Paraíso."* Ao invocar a imagem de inocência primordial, Boorstin, como muitos outros comentaristas, não a
questiona.” Caso fosse questionada, ter-se-ia podido ver por
que os seres humanos, especialmente os europeus, apresentaram, desde o início, um problema para os sistematizadores: poderia Adão nomeare classificar a si mesmo? Em caso afirmativo, estaria o naturalista suplantando Deus? Lineu já
de saída parece ter respondido afirmativamente a esta ques- | tão — consta haver ele certa vez afirmado que Deus havia “suportado que ele bisbilhotasse Seu gabinete secreto.””
lações. Para La Condamine, na década de 1740, antes que o
projeto classificatório tivesse se firmado, o saber dos naturalistas coexistia com os mais valiosos conhecimentos locais.
Notando profeticamente que “a diversidade de plantas e ár-
vores” no Amazonas “encontraria amplo emprego por mui[
66
33. Barbara Stafford — Voyage into Substance, Cambridge, M. I. T. Press,
1987, p.10.
rem
ciência e sentimento, 1750-1800
O Condamine, op. cit. p.37; os itálicos são meus.
35. Lindroth, op. cit., p.25.
36. Barbara Lindroth , num enunciado enigmático, converte a inocência em
um fato da natureza, sustentando que “A popularidade do relato não ficcional de viagem (no final do século XVIID ligava-se em parte ao desejo genético dos exploradores e do público de retornar a uma apreensão quase mítica da Terra tal como poderia ter sido ou comofoi descoberta antes que a consciência humana tivesse nela aparecido” op. cit., p.441). 37. Commager, op. cit., p7.
67
ciência e sentimento, 1750-1800
Para grande desconforto de muitos, inclusive do Papa, ele finalmente incluiu as pessoas em sua classificação dos animais (o rótulo homo sapiens é de sua autoria). Suas descrições, contudo, diferem daquelas de outras criaturas. Inicialmente, Lineu colocou entre os quadrúpedes uma categoria isolada homo (descrita apenas pela frase “conhece-te a ti mesmo”) e traçou uma única distinção entre homo sapiens e homo monstrosus. Já em 1758, o homo sapiens havia sido
classificado em seis variedades, cujas principais característi-
cas são sumariadas em seguida:
a) Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo.
b) Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso, espesso; narinas largas; semblante rude; barba rala; obstinado,
alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas. Guia-se por costumes. c) Europeu. Claro, sangúíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas. Governado porleis. d) Asiático. Escuro, melancólico, rígido; cabelos negros; olhos escuros; severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado por opiniões. e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele acetinada; nariz achatado, lábios tômidos; engenhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo capricho *
Uma categoria final, “monstro”, incluía anões e gi-
gantes (os gigantes da Patagônia ainda eram uma forte realidade), da mesma forma que os “monstros” artificiais, como os eunucos. A categorização dos humanos, como
se pode notar, é explicitamente comparativa. Dificilmen-
te se poderia ter uma tentativa mais evidente de “naturaliza” o mito da superioridade européia. Exceto pelos monstros e homens selvagens, tal classificação persiste pouco modificada em alguns dos textos escolares de hoje em dia.
|
38. John G. Burke, “The Wild Man's Pedigree”, em Dudley e Novak, op.
cit., pp.266-7.
“ciência, consciência planetária, interiores
Evidentemente, o mapeamento associado às navega-
"des também exerceu o poder de nomear. De fato, era no processo de nomear que os projetos religiosos e geográficos
se combinavam, no sentido em que os emissários reivindica-
“vam o mundo pelo batismo de marcos e formações geográ-
“ficas com nomes eurocristãos. Mas mesmo assim, é certo que
* o nomearcaracterístico da história natural é mais diretamen-
4 te transformador. Ele extrai todas as coisas do mundo e as * recoloca numa nova estrutura de conhecimento cujo valor re-
pousa precisamente naquilo que a distancia do original caó-
; tico. Aqui, o nomear, O representar e o reivindicar são todos a mesma coisa; o nomear dá origem à realidade da ordem.
De uma outra perspectiva, contudo, a história natural
não é de maneira alguma transformadora. Ou seja, tal como se vê a si mesma, ela não exerceria qualquer impacto no ou
sobre o mundo. A “conversão” da natureza bruta em um
systema naturae seria um ato prosaico e estranhamente abstrato, algo que não exerceria impacto sobre praticamente * nada — certamente não sobre almas. Em comparação com o
navegador e o conquistador, o coletor-naturalista é uma fi-
gura benigna, frequentemente simpática, cujos poderes de transformação se limitam aos contextos domésticos do jardim ou da sala da coleção. Como ilustrarei em maior detalhe no próximo capítulo, a figura do naturalista tem frequentemente algo de andrógeno; sua produção de conhecimento assume aspectos decididamente não fálicos, talvez pressentidos por Lineu em sua própria imagem de Ariadne seguindo seu fio até a saída do labirinto do Minotauro. Neste ponto, encontramos uma imagem utópica do indivíduo burguês europeu, simultaneamente inocente e imperial, professando uma benigna visão hegemônica que
não instauraria qualquer aparato de dominação. Quando muito, os naturalistas eram vistos como auxiliares das aspirações comerciais expansionistas da Europa. Falando clara-
Mente, em troca de viagens gratuitas e favores semelhantes, eles produziam conhecimento comercialmente utilizável. “É principalmente da história natural”, afirmava um autor num prefácio datado de 1759, “que apreendemos o va-
co]
ciência e sentimento, 1750-1800
ciência, consciência planetária, interiores
plantas constituiria o próprio fundamento de toda a economia
1 a 1 pública, dado ser aquilo que alimenta e veste uma nação.
Ao mesmo tempo,osinteresses da ciência e do comércio eram cuidadosamente mantidos separados. Expedições montadas em nome da ciência, como as de Cook para os Mares doSul, nos anos 1760 e 1770, frequentemente, obedeatentas a ciam a determinações secretas para que estivessem,
oportunidades comerciais e a perigos potenciais ) fato de | tais ordens haverem existido, ainda que secretas, evidencia a |
dialética ideológica entre empreendimentos científicos e co- | merciais. Por um lado, o comércio era visto em desvantagem |
em relação ao caráter abnegado da ciência. Por outro, acreditava-se que ambos refletiam e legitimavam aspirações
res mera ato
“8
-
s
'
;
> peste Pi
Fig. 7. Os quatro tipos antropomórficoslineanos, da esquerda para a direita, o troglodita, o homem de cauda, o sátiro e o pigmeu. Veiculado originalmente em Anthropomorpha (1760).
lor e importância de qualquer país, pois é por esta fonte
que podemos conhecer tudo o que ele produz.” Na introdução a um novo compêndio de viagens em 1756, De Brosse louvou a nova “possibilidade de se aumentar a Terra com o novo mundo, de enriquecer o velho mundo com toda a produção natural e toda a mercadoria utilizável do Novo.”* Em 1766, o resenhista de um livro de viagens, escrito por um dos alunos de Lineu, julgava as viagens dos
homens de ciência como superiores àquelas dos “homens
de fortuna”, tanto em termosliterários quanto comerciais:
As pesquisas do naturalista, em particular, não apenas lhe dão
prazer individual, como são proveitosas para outros; especialmente as investigações do botânico, cujas descobertas e conquis-
tas têm constantemente levado a conseqgiiências das mais significativas para a permuta e interesse comercial de seu país. Mais
mútuas. “Um comércio bem ajustado”, afirmava Anders
Sparrman, um pupilo de Lineu, “tanto quanto a navegação
em geral, seu fundamento naciência...ao passo que esta, por
sua vez, recebe apoio e deve sua extensão ao primeiro.” Pode-se dizer que as perspectivas comerciais colocaram de forma argumentativa a ciência no âmbito do interesse público geral, embora, na verdade, os benefícios da expansão mercantil e do imperialismo fossem drenados basi-
camente para pequenas elites(No entanto, no nível da ide- |
ologia, a ciência — “a descrição exata de tudo”, como a ca- | racterizou Buffon — criou um imaginário global que trans- |
cendia o comércio. Ela funcionou como um espelho rico e | multifacetado no qual toda a Europa pôde projetar a si mes- | ma como constituindo um “processo planetário” em expan- | são, enquanto abstraía desta imagem a competição, explo- | ração e violência acarretadas pela expansão comercial e po- | lítica e pelo domínio colonial Com efeito, no que se refere a plantas, animais e mi- | nerais — embora não a pessoas — os sistemas se aplicavam de maneira idêntica tanto à Europa como à Ásia, à África e
que isso, o célebre Lineu ousa afirmar que o conhecimento das
| |
TO
39. Adams, op. cit., p.310. 40. Citado emStafford, op. cit., p.22.
41. Resenha de Voyages and Travels in the Levant, de Hasselquist, em Monthly Review, Nova Série, vol. 35, 1766, pp.72-3. É 42, Anders Sparrman — A Voyage to the Cape of Good Hope, London, G. and J. Robinson, 1785, p.xiii.
EL
ciência e sentimento, 1750-1800
“ciência, consciência planetária, interiores
[ às Américas. A sistematização da natureza representa não
Eus passavam a ser considerados somente um pouco me-
nho discutindo, mas um discurso urbano sobre mundos não | urbanos, um discurso burguês e letrado sobre mundos não
forma, O sistema da natureza anulou formas camponesas loq 3
| apenas um discurso sobre mundos não europeus, como ve| letrados e rurais. Os sistemas da natureza eram projetados tanto no interior das fronteiras européias quanto em seu ex-
terior. Os herborizadores estariam tão satisfeitos na região
campestre da Escócia ou do Sul da França quanto no Amazonas ou na África meridional. Na Europa, a sistematização da natureza surgiu num momento em que as relações entre centros urbanos e áreas rurais estavam mudando rapidamente. As burguesias urbanas começaram a intervir numa nova escala na economia agrícola, procurando racionalizar o processo produtivo, aumentar os lucros,intensificar a ex-
ploração do trabalho camponês e administrar a produção de
alimentos de que os centros urbanos dependiam completamente. O movimento do fechamento de terras (enclosure movement) foi uma das intervenções mais conspícuas, retirando camponeses da terra e lançando-os nas cidades ou em comunidades de posseiros. Começaram nesta época as tentativas de se aperfeiçoarcientificamente a criação de ani-
mais domésticos e colheitas.º Qualquer forma de sociedade
de subsistência parecia tão atrasada em comparação a mo-
delos que buscavam a formação de excedentes de produ-
ção, quanto carente de “aperfeiçoamento”. Em 1750, o co-
mentarista francês Duclos, em suas Considerações sobre os
costumes deste século, sustentava que “aqueles que vivem a
cem milhas da capital estão cem anos distanciados dela em seu modo de pensar e agir”, uma visão que hoje em dia estudiosos do Iluminismo constantemente reproduzem sem questionar.” Na medida em que se aprofundavam as diferenças en-
tre os modos de vida urbano e rural, os camponeses euro-
nos primitivos que os habitantes do Amazonas. Da mesma
cais de saber dentro da Europa, exatamente como as indi-
genas no exterior. Sten Lindroth associa a abordagem documental e totalizadora de Lineu com procedimentos da burocracia estatal que eram particularmente desenvolvidos na Suécia, em particular processos de registro que elaborada-
mente documentavam e classificavam cidadãos individuais.
Em meados do século XVIII, afirma Lindroth, “nenhuma outra nação na Europa possuía conhecimento mais completo de sua população do que os suecos; um milhão e meio de cidadãos suecos eram todos eles registrados nas colunas estatísticas adequadas como nascidos, mortos, casados,
doentes etc.”“ De fato, os rótulos lineanos como gênero e espécie se assemelham notavelmente aos nomes e sobreno-
mes requeridos dos cidadãos — Lineu se referia aos nomes genéricos como “a moeda oficial de nossa república botânica.”º Ainda que a sistematização da natureza tenha precedido o advento da Revolução Industrial, Lindroth observa “no-
táveis semelhanças entre a forma propugnada nos escritos
(lineanos) e os princípios que emergiram na manufatura.”” Padronização e produção em série, por exemplo, já haviam deixado sua marca na produção, notavelmente nafeitura de
peças sobressalentes para armas de fogo. Outras analogias advêm da organização militar, a qual, exatamente por essa
época começou a padronizar uniformes, manobras, discipli-
na, e assim por diante.
Tais analogias tornam-se ainda mais sugestivas quan-
do se leva em conta que a burocracia e a militarização são
Os instrumentos centrais do império, e o controle sobre as | armas de fogo, o unico fator mais decisivo na sujeição de outros à Europa, continuando a ser assim até os dias de hoje. (Enquanto escrevi este capítulo — e talvez ainda ago-
43. Para um estudo detalhado enfocando o século XIX, consulte-se Har-
riet Ritvo — The Animal Estate, Cambridge, Harvard U. P., 1987. 44. Gay, op. cit. , p.á. Gay evidentemente trabalha dentro da ideologia do Iluminismo, sem questionar seriamente aquilo que o próprio Ilumi-
nismo encarou como seus “avanços”,
T2
45. Lindroth, op. cit. pl. 46. Foucault, op. cit., p.141. 47. Lindroth, op. cit., p.10.
73
ciência e sentimento, 1750-1800
ra, enquanto você o lê -, em Soweto e na margem ociden-
ciência, consciência planetária, interiores
ode imaginar o que haveria de tão avançado no capitalis-
tal do Jordão, pedras estão sendo atiradas contra veículos blindados por povos subjugados e desarmados.) Os estudos
mo avançado) mas, seja como for, houve efetivamente uma
dos, têm frequentemente negligenciado o papel dos agressivos empreendimentos coloniais e comerciais europeus como modelo, inspiração e base de testes para formas de disciplina social que, re-importadas pela Europa no século
gitimação. A sistematização da natureza leva esta imagem de
acadêmicos sobre o Iluminismo, resolutamente eurocentra-
XVIII, foram adaptadas para a construção da ordem burgue-
Isa, A sistematização da natureza coincide com o apogeu do
[tráfico de escravos, o sistema de plantations, o genocídio colonial na América do Norte e na África do Sul, as rebeliões de escravos nos Andes, Caribe, América do Norte é
noutras partes. É possível reverter a direção do olhar linea“no, ou daquele do viajante de Defoe, de forma a se observar a Europa a partir da fronteira imperial. Neste caso, surgem outras formas iluministas de padronização, burocracia e normalização. Pois o que seriam o tráfico de escravos e o
sistema de plantations se não maciços experimentos em en-
genharia social e disciplina, produção em série, a sistematização da vida humana, a padronização de pessoas? Experimentos estes que se mostraram mais rentáveis do que jamais
sonhado por qualquer europeu. (A riqueza que fomentou a
Revolução Francesa foi criada em Santo Domingo, que durante os anos 1760 era o lugar até então mais produtivo da Terra.) A agricultura baseada em plantations se constitui claramente num elemento crucial para a Revolução Industrial e a mecanização da produção. E, similarmente, mesmo no início do século XVII, não havia burocracias semelhantes às
burocracias coloniais, para as quais a Espanha forneceu um
sofisticado exemplo. Historiadores econômicos por vezes rotulam os anos 1500-1800 como período de “acumulação primitiva”, no qual, por meio da escravidão e monopólios protegidos pelo
acumulação. Na esfera da cultura, os muitos tipos de coleções que foram montadas neste período desenvolveram-se
em parte como a imagem dessa acumulação e como sua leacumulação a um extremo totalizante e, ao mesmotempo,
molda o caráter extrativo e transformador do capitalismo industrial e os mecanismos de ordenação que estavam come-
cando a formar a sociedade urbana de massas na Europa, sob a hegemonia burguesa. Como construto ideológico, ela forja uma imagem do mundo apropriada e reutilizada a partir de uma perspectiva européia unificada. Tanto na Europa quanto nas frentes externas de expan-
são, esta produção de conhecimento não expressa conexões com relações mutáveis de trabalho ou de propriedade, ou
com aspirações territoriais. Este, contudo, é um aspecto co-
mentado indiretamente por teorias contemporâneas sobre a estrutura do Estado moderno. O Estado, sustenta Nicos Pou-
lantzas, sempre se retrata “numa imagem topológica de exterioridade”, como se estivesse separado da economia: “Enquanto objeto epistemológico, o Estado é concebido como se
tivesse fronteiras imutáveis fixadas por meio de sua exclusão dos domínios atemporais da economia.”* Quando o ímpeto
da expansão européia volta-se para as áreas continentais afastadas da costa, para a “abertura” das regiões interiores, tais concepções estarão presentes tanto dentro da Europa quanto
em suas frentes de expansão. Os capítulos a seguir analisarão mais aprofundadamente como tais concepções são expandidas e disputadas naliteratura de viagem e de exploração.
estado, as burguesias européias foram capazes de acumular o capital necessário para desencadear a Revolução Indus-
trial. Pode-se, na verdade, pensar sobre o que haveria de
tão primitivo nesta acumulação (da mesma forma comose
T
48. Nicos Poulantzas — State, Power, Socialism, London, Verso, 1978, P- 17
(ed. bras.: O Estado, o poder, o socialismo, Rio de janeiro, Graal, 1980).
capítulo 3
narrando a
anticonquista
Na verdade, por vezes as autoridades da Companhia permitiam que o principal albergue de escravos da Cidade do Cabo fosse utilizado como um tipo de bordel.
(Philip Curtin et alii — African History (1978)) É um alívio apartar-se dessas cenas de distúrbios e desordem para observar os esforços da época (1793) envidados por vários colonizadores para aperfeiçoar os animais domésticos do país. (George M. Theal — A History ofSouthern Africa (1907))'
O capítulo anterior apresentou a sistematização setecentista da natureza como um projeto europeu de cons|
1. O material sobre a história sul-africana foi extraído das seguintes fontes: Chinweizu — The West and the Rest of Us: White Predators, Black Slavers and the African Elite, New York, Vintage, 1975; Philip Curtin, Steven Feierman, Leonard Thompson e Jan Vansina — African History, Boston, Little, Brown, 1978, especialmente capítulos 9 e 10; D. K. Fieldhouse — The Colonial Empires: A Comparative Surveyfrom the Eigbteenth Century, London, Macmillan, 1982 (14. edição, 1965); Vernon Forbes — Pioneer Travellers ofSouth Africa: A Geographical Commentary upon Routes, Records, Observations and Opinions of Travellers at the Cape, 1750-1800, Cape Town, A. A. Boekema, 1965; Mary Gunn e L. E. Codd — Botanical Exploration of South Africa, Cape Town, A. A. Boekema, 1981; George
M, Theal — History and Etbnography ofAfrica South of the Zambesi, vols. I e IN (até 1795), London, Allen & Unwin, 1897, reeditado como History ofSouth Africa before 1795, Capetown, C. Struik, 1964.
dá
ciência e sentimento, 1750-1800
trução do conhecimento que criou um novo-tipo de cons-
ciência planetária, eurocêntrica. Cobrindo a superfície do
mente o impacto da história natural e da ciência mundial so-
pre o relato de viagem. Por meio de um conjunto de exem-
devêssemos ser mais precisos no tocante à nomenclatura empregada: “européia”, nesta acepção, se refere antes de
que visavam não a descoberta de novas rotas de comendo:
tudo a uma rede de europeus alfabetizados do norte, prin-
cipalmente homens dos níveis mais baixos da aristocracia e
da média e alta burguesia. “Natureza” significa antes de tudo
regiões e ecossistemas que não eram dominados por “europeus”, embora incluindo muitas regiões da entidade geográ-
| fica conhecida como Europa. A O projeto da história natural determinou vários tipos de práticas semânticas e sociais e, dentre elas, a viagem e o relato de viagem estavam entre as mais vitais. Para os obje-
tivos deste livro, o que tem relevo essencial é a interligação entre a história natural e o expansionismo político e econômico europeu. Como sugeri acima, a história natural Es | defendeu uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre
todo o planeta; ela elaborou um entendimento racionaliza-
| dor, extrativo,dissociativo que suprimiu as relações funcionais, experienciais entre as pessoas, plantas e animais. Sob
plos, pretendo expor como a história natural forneceu meios para a narração de viagens internas e de exploração,
e sim vigilânciaterritorialapropriaçãoderecursos.e.contto
je administrativo. Pretende-se que esta discussão seja lida em conjunção com dois capítulos subsequentes, que abordam o relato de viagem sentimental, a outra forma principal de anticonquista neste período. Sustento que, na literatura
escritos ao longo do século XVIII incluindo o que tenho
chamado de o divisor de águas lineano: A situação atual do Cabo da Boa Esperança (Alemanha, 1719), de Peter
Kolb; Viagem ao Cabo da Boa Esperança (Suécia, 1775), de Anders Sparrman; Voyages in the land of the Hottentois
and the Kaffirs (Viagens na terra dos hotentotes e dos ka-
vés disso, selecionei quatro textos que ilustram exemplarmente o impacto discursivo da história natural e da nova consciência planetária. (Uma exemplo contrastante no
ção territorial e escravização. O sistema criou, como sugeri f anteriormente, uma visão utópicainocente daautoridade
ximo capítulo.) Minhas observações coincidem, em vários
ções imperiais explícitas de conquista, conversão, apropria-
' mundialeuropéia, à qual me referi como uma anticonguis-
| ta. O termo pretende enfatizar o significado relacionalda história natural, a extensão em que ele se tornou significati-
* vo, especialmente em contraste com uma presença expansionista européia, a princípio imperial e pré-burguesa.
| 78 N
|
mentares da subjetividade burguesa. No que se segue, examino a segiiência de quatro livros de viagem norte-europeus sobre a África meridional,
reza é em si, e assim se julga, uma apropriação do planeta totalmente benigna e abstrata. Não reivindicando qualquer potencial transformador, ela diferia radicalmente de articula-
mente, enquanto paradigma descritivo, este sistema da natu-
|
rial nas duas linguagens eternamente conflitantes e comple-
| erecursos e não sobre o controle de rotas. Concomitante-
global, especialmente aquela baseada na possessãode.terras
|
de viagem, ciência e sentimento codificam a fronteira impe-
firs) (Gra-Bretanha, 1789), de William Paterson; e Travels into the Interior of Southern Africa (Viagens ao interior da África meridional) (Grã-Bretanha, 1801), de John Barrow. Minha meta aqui não é a de resenhar a extensa literatura
estes aspectos, ela prefigura uma certa forma de hegemonia
]
O presente capítulo procurará ilustrar mais concreta- |
globo, ela enquadrou plantas e animais enquanto entidades discretas em termos visuais, subsumindo-as e realocando-as numa ordem de feitura européia, finita e totalizante. Talvez
|
narrando a anticonquista
de viagem sobre a África meridional neste período; ao os
relato de viagem da África meridional é abordado no próaspectos, com as de J. M. Coetzee em seu estudo de 1988
White Writing: On the Culture of Letters in South Africa (Escrita Branca: sobre a cultura letrada na África do Sub.
Os capítulos iniciais deste livro valioso se concentram fortemente nos relatos de viagem dos séculos XVII e XVII na África do Sul, incluindo aqueles autores. discutidos
ALma
ciência e sentimento, 1750-1800
narrando a anticonquista
aqui. Coetzee prossegue pelo exame de como a proble-
mática européia da representação persiste na literatura
dos séculos XIX e XX na África do Sul, da mesma forma
que tentei fazer para o caso da América espanhola no capítulo 7. A literatura sobre o Cabo da Boa Esperança é parti-
cularmente fértil para o estudo das transformações discursivas no relato de viagem, pois o Cabo foi um lugar onde
a viagem científica, o impulso de expansão para o interior, e as instáveis relações de contato que estes engendraram, atuaram conspícua e dramaticamente. A “grande era” da viagem científica está usualmente associada às expedições de Cook, Bougainville e outros aos mares do sul, inicialmente organizadas próximo à passagem de Vênus pelo
meridiano, em 1768. Estas expedições marítimas efetiva-
mente inauguraram a era da viagem científica e do relato de viagem científico. Mas, ao mesmo tempo, elas marcaram
um fim: o da última grande fase da navegação de explora-
ção européia. Cook descobriu e mapeou a costa do último continente não cartografado — a Austrália. De certa forma, preparou o cenário para a nova fase da exploração de ter-
ra firme./JO Cabo da Boa Esperança foi um dos poucos lu-
gares na África em que europeus do norte tiveram acesso ao interior continental. Era um ímã tanto para colonos como para exploradores ansiosos deixar suas marcas. Era um lugar onde a colonização do interior entrou em conflito aberto com o mercantilismo de base marítima e onde à competição entre as nações européias concretizava-se em
guerras. Nas primeiras décadas do século XIX, enquanto a expansão para O interior prosseguia, a África meridional
|
indígena khoikhoi (“hotentote”*, dispunha de carne fresca, enquanto a Companhia cultivava vegetais frescos para ocombate ao escorbuto, providenciava lazer, cuidava dos marinheiros enfermos, supria Os navios com tripulações saudáveis etc. indígena vulnerável a ataques e dependente da população prohia pecuarista para a obtenção de carne fresca, a Compan a curou inicialmente minimizar sua inserção na região e ex-
ploração do trabalho aborígene. Uma proposta de 1654 para
que se empreendesse a escravização dos khoikhoi foi e
da; assim foram procurados escravos, de início, na África cidental e, posteriormente, na Malásia e Ceilão. Apesar disso, o
conflito de fronteira foi imediato e constante (o primeiro assassinato inter-racial registrado ocorreu em 1653) e intensificou-se bastante na década de 1670, à medida que a expansão européia também avançava para O interior. Poucos anos depois da fundação da Colônia do Cabo,
a Companhia Holandesa das Índias Orientais admitiu, relu-
tantemente, conceder o estatuto de “cidadãos livres”, ou fazendeiros independentes, a uma parcela da população, permitindo-lhes que tomassem terras de cultivo e pastagem dos povos indígenas pecuaristas . Esta população de colonos in-
dependentes cresceu lentamente, em grande parte prove-
niente dos quadros de trabalhadores da Companhia, mari-
nheiros aportados, mulheres africanas ou euro-africanas.
(Até 1685 não havia proibições em relação ao casamento inter-racial; neste ano, o casamento entre europeuse africanos foi proscrito, mas não aquele entre europeus e mestiços.) Em 1689, o número dos colonos foi substancialmente aumentado por 150 dissidentes huguenotes holandeses, que trouxe-
ram consigo a Igreja Holandesa Reformada. Em 1699, a po-
também haveria de se tornar um posto de teste canônico para a missão civilizatória nos trabalhos da London Missionary Society (Sociedade Missionária Londrina) e de sua in-
controlável estrela, David Livingstone.
Fundada em 1652 pela Companhia Holandesa das Ín-
dias Orientais como um porto de suprimento para navios comerciais, a Colônia do Cabo provou ser um ponto de parada vital para os mais variados viajantes europeus. A população
|
2. Optei pela utilização da nomenclatura empregada por Curtin et alii (consulte-se nota 1) que se refere aos povos africanos pelos nomes de origem indígena e não pelas nomenclaturas coloniais européias. Assim, a não ser em citações, as pessoas a que a literatura européia chama de “hotentotes” são aqui mencionadas como khoikhoi; os “bosquímanos serão citados como !kung; os “kaffirs” serão chamados de nguni; na maior parte das vezes o termo tradicional “bôer” foi substituído pela expressão contemporânea “africânder”.
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ciência e sentimento, 1750-1800
pulação de cidadãos livres (bôer), ancestrais dos atuais africânderes, era de pouco mais de 1.000 homens, mulheres e crianças, possuindo uma quantidade não especificada de escravos. Um século mais tarde, eram 17.000, com mais de
26.000 escravos. Hoje são dois milhões. O perfil da sociedade agro-pastoril africânder de hoje — e a corrente guerra de raças sul-africana — já estava definido por volta de 1700. A prisão da Ilha de Robben, onde Nelson Mandela e os fundadores do Congresso Nacional Africano foram mantidos durante a década de 60, foi construída
em 1657 para hotentotes “que assaltassem ou roubassem um cidadão.”' Basicamente fora do controle da administração da .
narrando a anticonquista
XviI, era um império mítico, produtor de ouro, conhecido
como Monomotapa, aparentado com o Eldorado, por tanto tempo procurado nas Américas.”jNão se acredita que estas
rimeiras expedições tenham alcançado qualquer descoberta de valor, nem produzido, na era da narrativa de navegação, livros de viagem. Não foi senão após O início do século XVIII que a literatura européia sobre a África meridional realmente surgiu, sendo A situação atual do Cabo da Boa Esperança, de Peter Kolb, um de seus primeiros grandes expoentes.
Companhia e freguentemente em choque com os interesses
desta, a sociedade de cidadãos livres se desenvolveu de acordo com suas próprias linhas de expansão, forçando seu caminho para o interior, usualmente em conflito e circunstancialmente em aliança com a liderança autóctone Khoi-
khoi. Apoiados por cavalos (cuja posse era, por lei, vetada aos indígenas africanos), armas de fogo (que, porlei, os colonos europeus eram obrigados ter) e por alianças estratégicas com gruposrivais, os europeus gradualmente sobrepu-
neter Kolb e a defesa dos hotentotes Publicado em alemão em 1719, o livro de Kolb foitraduzido para o holandês (1721), inglês (1731) e francês (1741), mantendo-se como uma das principais fontes im-
pressas sobre a África meridional, ao longo da primeira me-
tade do século.” Matemático de formação, Kolb fora manda-
| jaram o poderindígena, desmantelando estruturas sócio-eco-
do para o Cabo, em 1706, por um patrono prussiano para
khoi ficaram cada vez mais restritos ao papel de trabalhado-
Kolb, do mesmo modo que o de La Condamine na Améri-
| nômicas locais. Epidemias de varíola em 1713, 1755 e 1767 | enfraqueceram a posição aborígene. Gradualmente, os khoi-
desenvolver pesquisa astronômica e meteorológica. Ainda que sua missão fosse científica, o relato de
res de subsistência, pastoreando o gado bôer ao invés do
ca do Sul, não o foi. Seu livro, como o de La Condamine, difere em vários aspectos daqueles escritos do outro lado
seu próprio. Por volta de 1778, o novo governador, Von Plat-
das linhas definidas por Lineu. Ele se concentra principal-
tenburg, relatou não ter encontrado comunidades khoikhoi autônomas na Colônia do Cabo. O que não quer dizer, evi-
dentemente, que a sociedade local e a resistência autóctone à colonização tenham acabado aí; ambas continuaram em formas que discutirei mais extensamente adiante. TDesde sua chegada, os europeus no Cabo montavam
periodicamente expedições para a exploração do interior. Um dos primeiros objetos de interesse, típico do século Fr
82
3. Curtin et alii, op. cit, p.295.
4. Theal, op. cit. vol. II, reimpressão de 1964, p.6S.
|
5. Verificou-se afinal que Monomotapa era um lugar realmente existente.
Nos séculos XII e XIV, um grande estado minerador de ouro, chamado
pelos historiadores modernos de Grande Zimbabwe, havia se consolidado no vale do Zambezi e entrado em longo conflito com o portugueses à cata do metal nos séculos XVI e XVII, entrando, por esta mesma época, emdeclínio. Seus remanescentes reagruparam-se no vale de um dos afluentes do Zambezi, onde também lavravam ouro. Seus dirigentes eram conhecidos como Mwene Mutapa, de onde veio o europeizado “monotapa” (Curtin et alii, op. cit., capítulo 9). 6. Peter Kolb (ou Kolben) — The Present State of the Cape of Good Hope. vol. 1, tradução para o inglês de Mr. Medley, London, W. Innys, 1751, reeditado por New York, Johnson Reprint Corporation, 1968.
ciência e sentimento, 1750-1800
narrando a anticonquista
mente, como a página-título alerta, sobre “Uma AVALIAÇÃO
Particular das várias NAÇÕES dos HOTENTOTES: Sua Reli-
gião, Governo, Leis, Costumes, Cerimônias e Opiniões; Sua Arte de Guerra, Profissões, Linguagem, Caráter &c., conjun-
tamente a Uma Pequena AVALIAÇÃO da COLÔNIA HOLAN-
DESA no CABO.”* A narrativa de Kolb consiste especialmente em uma descrição etnográfica vívida da sociedade e de formas de vida khoikhoi, no modo tradicional de descrição
de maneiras e costumes. Mesmo que seu relato seja baseado no que Kolb descreve como anos de contato com grupos muito diferentes de hotentotes, este contato em si não é relatado, nem o são as viagens de Kolb ao interior. Kolb
estava escrevendo antes que paradigmas narrativos para as
viagens e explorações no interior emergissem nas últimas décadas do século. Em 1719, os paradigmas de navegação ainda persistiam: a única parte de sua experiência que Kolb
ig
apresenta como narração é a sua viagem de seis meses em
direção ao Cabo. Mantidas as convenções da narrativa de
navegação, a viagem é contada como uma perfeita história
de sobrevivência, com tempestades, doença, água salobra e
ameaça de ataque emalto-mar.
Como previsto por seu título, a narrativa de Kolb inclui capítulos sobre as formas khoikhoi de governo, religião, cerimônias, economia doméstica, gerenciamento do gado,
medicina e assim por diante. É fácil admitir a vivacidade da
:
|
E
a
o
'
descrição, mas não é tão simples subscrever sua precisão.
Kolb afirma que “assumiu a Regra de jamais acreditar em
qualquer Coisa que não tenha visto, dentre aquelas que se possamver,” mas, justamente na sentença seguinte, ele sus-
tenta ter visto “que Negros nascem Brancos” e só mudam de
cor vários dias mais tarde” No entanto, seu relato é inegavelmente a mais substantiva fonte sobre a população indígena
do Cabo no período considerado. Citemos uma passagemre-
i ita: PSI, PEN, Fr Si ses eo sd |
n 7.pr Ibid., p.56. É
N.T.: Aqui,i como em outros pontos do texto, procureii manter a trans-
crição original das maiúsculas e do itálico.
º
Fig.8. Frontispício da edição francesa de A situação atual do Cabo
da Boa Esperança (Description du cap de Bonne-Esperance, Amslerdam, amCatubte, 1741), de Peter Kolb. “A História”, diz a legenda, “prepara-se para escrever aquilo que lhe é ensinado pela experiência, que se apresenta a si mesma com sua pedra de toque e sua di-
visa Rerum Magistra. No pano de fundo aparece a Baía do Cabo da are a E Boa Esperança; e sobre uma nuvem, a insígnia da Companhia da
dia Oriental, sustentada pelo deus do Comércio.
fn-
ciência e sentimento, 1750-1800
Para a preparação da Manteiga, eles usam, em Lugar de uma Batedeira, uma Pele de Animal Selvagem, disposta na Forma de um
Saco, a Parte com Pelos no Interior. Neste Saco, eles derramam o
Leite o bastante para enchê-lo pela metade. Eles então amarra m o Saco; e duas Pessoas, Homens ou Mulheres, seguran do, um numa Ponta, outro na Outra, sacodem o Leite animadamente
para frente e para trás até que ele se transforme em Manteiga.
Eles então a colocam em Potes, para untar seus Corpos e Estandartes, ou para vendê-la para os Europeus; pois os Hotentotes, a menos que a Serviço dos Europeus, não comem Manteiga
A última sentença é significativa, pois coloca “os Europeus” na mesma estrutura que “os Hotentotes”, num tipo de interação diária que se processa todo o tempo em zonas de contato. Tal interação terá pouca expressão nos autores
subsegiientes. A observação de Kolb sobre a manteiga reverte a direção usual do intercâmbio e valores culturais
eurocoloniais. Encontramos aqui os europeus consumindo
um alimento que os africanos rejeitam como não comestível; os europeus estão comprando um produto manufatura-
do dos africanos e não o vendendo para eles. Quem seriam
os bárbaros, quem os civilizados? Quem seria o mercado,
quem os mercadores?
Pode-se provavelmente atribuir tais manipulações de
perspectiva ao polêmico intento de Kolb de resgatar os khoi-
khoi dos estereótipos negativos estabelecidos por autores precedentes. Kolb ataca seus antecessores por “sua Irrespon-
sabilidade e Precipitação nas Caracterizações que fizeram
dos Hotentotes, cujas Mentes e Maneiras, embora bastante vis, não são tão vis quanto eles as descreveram.” Com um humanismo não encontrado em escritores ulteriores, Kolb
narrando a anticonquista
cia da ação missionária no Cabo. Em sua réplica, Kolb enfa-
tiza a profundidade do compromisso dos khoikhoi à sua própria religião — em outras palavras, insiste em que elesdevem ser compreendidos pelos europeus em termos idênticos
aos que os europeus entendem a si mesmos. Sem negara repugnância que muitas práticas dos khoikhoi suscitavam nos
europeus, ele rejeita paradigmas de diferenças essenciais que
tornam “natural” para os europeus agirem com os africanos
de formas diferentes que mantêm entre si. A passagem trans-
crita acima sobre a fabricação de manteiga, por exemplo,
prossegue com a condenação da “vileza” do produto e das imundas condições em que é elaborado — mas o parágrafo
seguinte condena igualmente os europeus que o compram
em grandes quantidades. Estranhos e frequentemente repul-
sivos, os khoikhoi, conforme o retrato fornecido por Kolb, não são um povo conquistado, nem ele advoga sua conquista. Na verdade, quando descreve as relações que mantêm
com os colonos holandeses, traça uma imagem idealizada de
duas nações que, após confrontações iniciais, estabeleceram “o mais solene Compromisso” de não mais guerrearem, mas, sim, existirem como uma Confederação e defenderem-se mutuamente contra inimigos comuns. Ao manter sua perspectiva interativa, o relato de Kolb, especialmente em comparação com avaliações posteriores, é
notavelmente dialógica. Os indivíduos khoikhoi são muitas vezes citados (embora jamais em sua própria língua) ou re-
presentados falando por si mesmos em resposta às questões do autor sobre suas ações e costumes; de fato, Kolb revela uma fascinação particular pelas complexidades da interação dentro da zona de contato. Logo noinício de seu texto, ex-
mantém que os hotentotes são acima de tudoseres culturais. É incisivamente crítico em relação às afirmações européias segundo as quais lhes faltaria a capacidade para a crença re-
plicita o que se poderia chamar de uma perspectiva de con-
cristãos que procuravam uma explicação para a total falên-
mente entrando em conflito com ambos. Uma outra história inicial discorre sobre um menino, criado por holandeses e
ligiosa, afirmações evidentemente sustentadas por escritores
1
8. Ibid., p.172. 9. Ibid., p.37.
tato por meio de uma extensa história sobre um talentoso empresário khoikhoi, chamado Claas, que se tornou um in-
termediário entre europeus e habitantes indígenas, casualmandado para o exterior, que retornou para juntar-se, nova-
mente, à sociedade aborígene.
É na insistência de Kolb sobre a comensurabilidade das
mo
ciência e sentimento, 1750-1800
sociedades khoilkhoi e européia que reside a limitação de sua abordagem. Sua estratégia para a defesa dos khoikhoi não consiste em mostrar que eles são iguais aos europeus (nisto
ele não acredita), mas em mostrar que são genuínos seres an/ tropológicos em termos europeus. Contrariamente às afirma-
' ções de seus detratores, eles efetivamente podem ser descri-
| tos com base no completo arsenal de categorias com o qual
Os europeus caracterizam outras sociedades como reais e hu-
“manas:religiões, governo,leis, profissões etc. — o catálogo in-
“tegral do título de Kolb. Estas são também as categorias por
meio das quais os europeus definem e avaliam a si mesmose se comparam com outros. A defesa dos khoikhoi por Kolb implica obviamente em assimilá-los a paradigmas culturais eu-
ropeus. As diferenças que extrapolam os paradigmas são inacessíveis ao discurso, ou podem ser expressas apenas como ausências e lacunas. Tanto assim que, como J. M. Coetzee su-
narrando a anticonquista
própria estrutura conceitual.” Tanto a análise de Peter Kolb uanto as análises contra as quais ele escreveu, exibem esta j profunda limitação. , Em fins do século XVIII, à medida que modernas categorias racistas emergiam, que o intervencionismo europeu
se tornava crescentemente militante e a sociedade khoikhoi
era fissurada e desmantelada pelos colonos, a posição humanista de Kolb desapareceu enquanto possibilidade discursiva. Os “hotentotes” deixaram de ser descritos, ou até mesmo descritíveis, por europeus em termos de eshegarias como governo, profissões, opiniões ou caráter (como notítulo de Kolb). De fato, a classificação feita por Lineu dos humanos (cf. p. 68), em 1759, eliminou exatamente aquelas
categorias com a frase depreciativa “governados pelo capricho”. Como outros comentaristas observaram, mesmo asfilosofias européias que valorizavam formas não européias de vida neste período, apresentavam uma propensão a assimilar esta atitude reducionista: nos enfoques europeus, os nobres selvagens americanos e polinésios paradisíacos eram
gere, as mais fundamentais diferenças entre a sociedade khoi-
khoi e a européia podem estar mais claramente presentes, em-
bora de forma perversa, no discurso de seus detratores. Coet-
zee atribui a generalizada vilificação dos “hotentotes”, nos escritos dos europeus dos séculos XVII e XVIII à frustração pelo fracasso dos khoikhoi em corresponder a expectativas antro'pológicas e econômicas. Desde seu primeiro contato com o Cabo, como documentado por Coetzee, os europeus incessantemente criticaram os hotentotes-por.suaindolência e preguiça — ou seja, seu fracasso em (ou resistência a) responder | à oportunidade de (demanda por) trabalho em troca de re-
valorizados justamente por sua ausência de governo, profissões, leis e instituições." Kolb escreveu antes que esta redução global das sociedades de subsistência à natureza houvesse sido adotada.
(Finalmente, e previsivelmente, o tratamento da terra e
do espaço na análise de Kolb se afasta radicalmente daquele assumido em obras posteriores. Em retrospecto, a ausên-
| compensa material. O que falta, segundo Coetzee, seria o re-
cia daquilo que viria a se tornar a história natural e do am-
conhecimento dos valores internos da sociedade khoikhoi e
biente é conspícua no trabalho de Kolb. Quando ela ocor-
de sua formas de vida voltadas para a subsistência. “O mo-
Te, Os termos em que ocorre são muito diferentes daqueles seguidos por escritores classificadores, pós-lineanos. A des-
mento em que o viajante-escritor condena o hotentote por não fazer nada, marca o instante em que o hotentote o colo-
crição abaixo do interior do Cabo, por exemplo, celebra a
ca frente à frente (caso ele admita isso) com oslimites de sua
variedade, mas não mostra nenhum sinal de impulso discri-
10. J. M. Coetzee — White Writing: On the Culture ofLetters in South Africa, New Haven, Yale U. P, 1988, p.32. Coetzee também parece aqui se
chocar contra os limites de sua própria estrutura conceitual. A visão alternativa de “ócio” a que ele parece se referir neste ensaio é aquela de Adão após a Queda, um paradigma cuja idealização e eurocentrismo ele claramente reconhece.
88
|
11. Como muitas vezes se nota, tais leituras de sociedades não européias
parecem refletir as ansiedades dos próprios europeus em relação à rápida institucionalização e racionalização de suas próprias sociedades. Novamente, o auto-entendimento ocidental opera apenas pela invenção de um outro que, efetivamente, é o próprio europeu.
7
ciência e sentimento, 1750-1800
Marero dont les Hottertrétes portert lewrs leur dorment de cem de des accoutmert
aba»
narrando a anticonquista
Millages
dk ttto: des
otterrtots .
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der Tpag 270.
Fig.9. “Como os hotentotes carregam e cuidam de suas criancinhas. e O equipamento para fumar tabaco”, da tradução francesa de 1741 da obra de Peter Kolb A situação atual do Cabo da Boa Esperança(Description du cap de Bonne-Esperance, Amsterdam, Jean Catuffe, 1741).
Fig.10. “Vilas e Cabanas dos Hotentotes”, da tradução francesa de 1741 da obra de Peter Kolb A situação atual do Cabo da Boa Esperança (Description du cap de Bonne-Esperance, Amsterdam, Jean Ca-
tuffe, 1741).
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minador ou classificatório:
As Planícies e os Vales são todos agradáveis Pradarias, onde a Natureza surge com tal Profusão de Encantos que maravilha os
Olhos que a observam, Elas como que sorriem em todo lugar;
narrando a anticonquista
cruéis de que jamais tive notícia”, Kolb termina seu primei-
ro volume com uma apavorante exposição de “uma ou duas Execuções”. Uma das histórias envolve o destino de um gru-
são sempre adornadas por lindas Árvores, Plantas e Flores, algumasdelas tão singulares e atraentes em Forma e Beleza, todas tão
po de escravos que tentaram escapar e, no processo, assassinaram um europeu, “cortaram sua Barriga, arrancaram
o mais doce dos Aromas. Entre estas estão o Aloés e outras curiosas Árvores medicinais e Abundantes Ervas com Qualidades médicas.”
morte:
Olorosas, que enchem os Olhos com incrível Prazer e o Ar com
suas Entranhas e as penduraram nos arbustos mais próximos.” Capturados e condenados, eles foram torturadosaté a Quatro dos homens foram feitos em pedaços: a Rainha Eleita foi
A linguagem empregada confirma a caracterização de
enforcada. Os Restantes presenciaram as Execuções com Cordas em seus Pescoços; foram depois severamente açoitados com Va-
James Turner da descrição seiscentista do panorama como um “composto”, “não o retrato de um lugar individual, mas
ras bifurcadas e marcados com ferros em brasa. Os quatro que fo-
uma construção ideal de motifs específicos. Seu propósito é
expressar o caráter de uma região ou a idéia geral de uma boa terra.” Como na narrativa de La Condamine, elementos particulares da fauna e flora são mencionados no texto de Kolb por seu exotismo, seu potencial como medicamento ou seu papel dentro do modo de vida dos indígenas. Por exemplo, os dois retratos botânicos mais elaborados que Kolb constrói, complementados por gravuras, são de subs-
tâncias que os próprios khoikhoi prezam, a folha da dacha (cannabis) e a raiz de Kanna (ginseng). Não há traço do projeto descritivo totalizador europeu. Mesmo que Kolb rejeite distinções essenciais entre africanos e europeus, uma outra estrutura hierárquica atra-
vessa seu mundo humanista: o escravismo. Embora comba-
tendo estereótipos reducionistas sobre os khoikhoi (que não eram possuídos como escravos), Kolb manifestamente
ram feitos em pedaços não mostraram qualquer Traço de Preocu-
pação quando foram atados sobre a Roda. Nem mesmo gritaram, nenhum deles, nem mesmo um Ob! ou emitiram qualquer sinal
de reclamação mesmo quando seus membros eram quebrados pelos mais violentos golpes que o executor lhes impunha...”
e assim por diante, por outra ensangúentada meia página.
Leitores do estudo de Michel Foucault sobre punição corpo-
ral Eu, Pierre Reviêre ...º reconhecerão aqui o discurso sensual e sensacionalista sobre tortura que precedeu a congregação de formas institucionais de controle social como as prisões, clínicas e escolas. Kolb não expressa qualquer des-
conforto com aquele discurso, embora as histórias sobre torturas de escravos efetivamente interrompam — irrompam no
— seu texto. A dimensão dialógica desaparece; não são as
palavras, mas a silenciosa ausência de gritos dos escravos
torturados que é registrada. No mundo de Kolb, a escravi-
dão parece ser uma perturbação, uma ocasião para o sensa-
escreve a partir do interior de um mundo pré-abolicionista. Sua descrição da Colônia do Cabo principia com casas e igrejas e termina com senzalas e estábulos. São'os escravos que continuamente levam a sociedade e o discurso de Kolb à desordem. Descrevendo os escravos da África ocidental no Cabo como “os canalhas mais intratáveis, vingativos e
|
12. Kolb, op. cit., p.23. 13. James Turner — The Politics of Landscape: Rural Scenery and Society
in English Poetry 1630-1660, Cambridge, Harvard U. P., 1979, p:10.
cional, mas também algo contido e normalizado. Algo que, evidentemente, tornar-se-ia, nas últimas décadas do século,
|
14. Kolb, op. cit., p.23. 15. Michel Foucault — 1 Pierre Reviere, baving Slaughtered my Mother, my Sister and my Brother, New York, Pantheon, 1975 (Trad. em inglês de Moi, Pierre Riviêre, ayant égorgé ma mére, ma soeur et mon frêre... Un cas de parricide au XIXe siecle, Paris, Gallimard, 1973. Ed. bras.: Eu, Pierre Rivitre, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, Rio de
Janeiro, Graal, 1982.)
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e
ciência e sentimento, 1750-1800
menos contido e normalizado. Nos escritores posteriores de viagens científicas, o sensacionalismo e a escravidão virtualmente desaparecem, como desaparece a maior parte dos dramas sociais de qualquer espécie. Por outro lado, como
procurarei mostrar no capítulo seguinte, ambos encontram um novo lar nos relatos de viagem sentimentais, muitos dos
quais se aliam à causa abolicionista. Nesse contexto, a linguagem sensacionalista sobre a dor, utilizada por Kolb para
reasseverar a escravidão, é estrategicamente transformada numa intensa retórica de protesto. Em suma, a narrativa de Kolb, como grande parte da
literatura produzida pela expedição La Condamine, antecede tanto o Sistema da Natureza como a normalização da exploração e viagem pelo interior, nas fronteiras da expansão européia. Também representa um momento particular na
história sul-africana. Quando da viagem de Kolb, sessenta
“anos de contínua presença européia não haviam produzido
uma conquista local, e a hegemonia nativa ainda se mantinha. Contudo, a dominação européia era sugerida, especial-
mente por aqueles livros contra os quais Kolb se opôs, que advogavam a imediata sujeição dos khoikhoi. No círculo ideológico daqueles livros, a própria resistência dos khoikhoi à cristandade, por exemplo, contava como evidência
de inferioridades intrínsecas que justificavam ainda mais a
conquista. Neste contexto, a identificação dos khoikhoi, por Kolb, enquanto seres culturais, políticos, religiosos e sociais possivelmente não seja um gesto igualitário ingênuo, mas
sim crítico, no qual a superioridade européia (à qual Kolb
certamente subscreve) não implica necessariamente a subjugação. Sessenta anos mais tarde, os discursos vigentes tornam obsoletos e virtualmente impossíveis quaisquer gestos semelhantes.
ando a anticonquista
naturalizando a zona de contato: anders sparrman e william
“paterson
O fim do século XVIIfoi uma época de crise e re-
volta no Cabo da Boa Esperança. Quanto mais crescia a E colônia européia, mais se intensificava a impaciência local “com as políticas protecionistas da Companhia das Índias
Orientais, um processo semelhante ao que ocorria ao mes“mo tempo nas Américas. Na Cidade do Cabo, uma revolta
dos colonos eclodiu em 1779. No interior, as energias agrá-
rias expansionistas dos Africânderes os levaram a um intenso e endêmico conflito tanto contra os interesses mer-
cantis da Companhia, quanto contra os povos indígenas. Em 1778, os dirigentes da Companhia tentaram estabelecer o Rio Fish como o limite interior para o enclave colonial,
além do qual tudo deveria continuar nas mãos das sociedades indígenas independentes Nguni (de língua banto,
“kaffir”). É desnecessário dizer que esta declaração não lo-
grou estabilizar a situação, ou que a Companhia não esta-
va preparada para se engajar tão extensamente quanto se-
ria necessário para que fosse obedecida. O “embrionário
povo africânder”, como Curtin et alii o chamam, continuou a perseguir seus próprios interesses e a construir sua própria sociedade. Leis de passe, como as suspensas na África do Sul em 1987, já estavam em vigor na década de 1770. Grupos Nguni continuavam a se opor à incursão Africân-
der além do rio, e estes continuavam a ser fustigados pelos grupos indígenas em seu meio, especialmente os !kung (bosquímanos). Eles tinham de se preocupar com outro fenômeno da zona de contato, os assim chamados “bandos mistos” de khoikhoi, !kung, escravos fugidos, euro-africanos, e o renegado branco ocasional."
Tr Curtin et alii, op. cit., p.298.
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narrando a anticonquista
Apesar dos distúrbios do período, pelos fins do século XVIII, a difusão da sociedade dos colonos estava tornan-
viagens na terra dos hotentotes e dos kaffirs) surgiu em in“olês em 1789, sendo que as traduções francesa e alemã e
| exeguível para os europeus.O florescimento da história natural tornou-a gradualmente mais desejável e a emergência
E Em 1781, agora tenente inglês, Paterson participou do ata“que britânico à Colônia do Cabo, o que levou à acusação de que suas viagens haviam sido motivadas por espionagem.E, “sem dúvida, provável que os britânicos tenham tirado vantagens de seu conhecimento estratégico. Nos prefácios a seus livros, tanto Sparrman quanto
do a viagem para o interior no sul da África cada vez mais
de novos paradigmas narrativos fizeram com quetais via- 4 gens fossem cada vez mais adaptadas à escrita e à leitura)
Estas mudanças estão claramente registradas na obra de dois viajantes dos anos 1770 — o sueco Anders Sparrman e o inglês William Paterson.
Pupilo de Lineu, Sparrman foi mandado para a África
meridional em 1772 como um naturalista que ganharia a vida como professor particular. Mais tarde, naquele mesmo ano, ele se juntou à segunda expedição de Cook ao redor do mundo, reassumindo seu trabalho no Cabo dois anos de-
pois e lá permanecendo até 1776. Considerado como “o pri-
meiro relato integralmente pessoal de viagens no extremo interior da África Meridional,” o muito citado Viagem ao Cabo da Boa Esperança,* de Sparrman, foi publicado em sueco em 1783, aparecendo numa tradução alemã em 1784, seguida por quatro edições inglesas a partir de 1785, e traduções em holandês e francês em 1787.
Paterson era filho de um jardineiro escocês e foi mandado ao Cabo, na qualidade de coletor botânico, pela con-
dessa de Strathmore. Foi descrito como “o primeiro a escrever e publicar em inglês um livro inteiramente devotado à descrição de experiências em primeira mão de uma viagem na África do Sul”“, sua Narrative of Four Voyages in the Land of'the Hoitentots and the Kaffirsº (Narrativa de quatro |
17. Forbes, op. cit., p.46. 18. Anders Sparrman — 4 Voyage to the Cape of Good Hope, London, G. and J. Robinson, 1785, vol. I, reedição, New York, Johnson Reprint Cor-
poration, 1971.
19. Forbes, op. cit., p.46.
'
A segunda edição inglesa vieram à luz no ano seguinte.
* Paterson identificam-se explicitamente com a inauguração de uma nova era de exploração do interior e de viagens científi“cas, particularmente no tocante à África. Escrevendo seu próprio prefácio, Paterson se define como alguém facima dos e contrário aos conquistadores e viajantes comerciais, pois, sus,
tenta ele, nenhum deles tinha sido capaz de entender a África:
Mesmo que a ambição jamais tenha instilado nos conquistadores do mundo o desejo de estender seus impérios aos desertos da África, mesmo que o comércio não tenha atraído homens para o
exame de umpaís cuja aparência exterior não seja de modo algum capaz de seduzir alguém cuja única meta fosse a de incre-
mentar sua riqueza ... mesmo assim, existem homens que, não
obstante todos os terrores associados a estes países, os vêem entreos objetos capazes de aumentar sua satisfação.”
(Estes novos homens são evidentemente os naturalistas. O prefaciador inglês de Sparrman também o qualifica como um inovador, observando que “de fato, o relato que oferece
do perfil integral do país pode ser considerado, em grande medida, como novo”, já que dos viajantes marítimos“jamais
se poderia esperar” que fornecessem tal informação.2 Como seria de se esperar, ambos estes autores distanciam-se claramente da literatura anedótica de sobrevivência E 1950) foi publicada em Joanesburgo. Preparado por Vernon S. Forbes e John Rourke (Paterson's Cape Travels 1777-79, Joanesburgo, Bren-
20. Lt. Guillaume Paterson — Relation de quatre voyages dans les pays des
thurst Press, 1980), o volume inclui notas meticulosas, mapas, materiais suplementares e muitas das lâminas coloridas originais. Em seu estado
uma luxuosa edição do manuscrito original de Paterson (descoberto nos
do-se a minha opção por utilizar o texto francês. 21. Paterson, op. cit. p.5. 22. Sparrman, op. cit, p.vi.
Hottentots et dans la Caffrerie, traduzido por M. T. M***, Paris, Letelier, 1790. Desafortunadamente, não tive acesso à edição original em inglês da narrativa de Paterson; as traduções do francês são minhas. Em 1980,
Original, o manuscrito difere muito da Narrative publicada, daí justifican-
ii
|
ciência e sentimento, 1750-1800
e do discurso sensacionalista sobre monstruosidades e maravilhas. Na verdade, eles fundamentam sua autoridade sobre tal contraste. O prefácio de Paterson austeramente anuncia que seu livro “não é um romance sob a pele de um livro de viagem”, ao passo que Sparrmanavisa ao leitor que “muitos dos prodígios e aparições incomuns sobre os quais tenho sido frequentemente questionado ... não serão encon-
Em teumerosos à ponto de desconcertar o não-iniciado.
a semelhante, encontramos Sparrman afirmando:
, apraMuito tarde da noite chegamos à fazenda de nosso condutor ladeado, era rio Este Bott. rio zivelmente situada no outro lado do é a pequenos intervalos, por belas e altas montanhas, cujos picos Nos ora. encantad de varieda encostas emprestavam ao cenário uma certamendeclives de algumas delas viam-se grutas e cavernas, que vicissite não existiam desde sua origem, mas eram resultado das ” sujeitos. estão naturais objetos os tudes e mudanças a que todos
trados em meu diário.” Ainda que “homens com um só pé
e, com efeito, Cíclopes, Sereias, Trogloditas e semelhantes
seres imaginários tenham quase que inteiramente desapare-
cido nesta era iluminada,” lembra Sparrman, seus predeces-
sores tinham sido culpados de “fábulas quase tão maravilhosas”, particularmente em relação aos hotentotes.? (A farpa aqui é dirigida principalmente a Peter Kolb). -— Ambos estes emissários lineanos organizam sua
“narrativa por meio do empreendimento cumulativo e ob/ /
/
servacional de documentar a geografia, a flora e a fauna.
O encontro com a natureza e sua conversão em história natural constituem o palco da narração. O procedimento
parece tão óbvio que é difícil imaginá-lo como uma ino-
vação. Como se poderia esperar, a paisagem nestes livros
não é mais emblemática ou composta, mas altamente es-
À1
pecífica e diferenciada. A passagem a seguir ilustra como o sistema da natureza origina a substância do relato de
| viagem de Paterson: Na
o
. Quando passou o calor do dia, rumamos para o Nordeste, através de uma região extremamente árida, mantendo a imensa cadeia de montanhas à nossa direita; quarenta milhas adiante avistamos ou-
tra cadeia de montanhas à nossa esquerda. Ainda que esta área seja extremamente árida em aparência, ela apresenta grande abundância de plantas da classe das euforbiáceas, de crássulas, de mesembriântemos e de várias espécies de gerânios.”
A linguagem é intensamente visual e analítica. Itálicos
várias páginas de tais benignos registros são suficienlista como “tes para novamente sugerir a imagem do natura
* Adão sozinho em seu jardim. Onde, poder-se-ia perguntar,
* estão todos? A paisagem é descrita como inabitada, devolu
“ta, sem história, desocupada até mesmo pelos próprios via-
“jantes. A atividade de descrever a geografia e identificar flo-
ra e fauna estrutura uma narrativa a-social na qual a presen-
— o que, é claro, explica que ele possa andar portoda parte como lhe aprouver, e que nomeie as coisas com o seu nome
ou o de amigos de seu país natal. A certa altura, numa ilhota deserta, Sparrman se descreve “alheio ao estudo botâni-
co — nas mesmas vestes que Adão usou em seu estado na-
tural”. Nos termos incorporados pelo naturalista, a autorida- | de e legitimidade da autoridade européia são incontestáveis | — uma visão indubitavelmente atraente a leitores europeus. | |Na maior parte do tempo, o mundo humano é naturalizado, funcionando como pano de fundo para a busca do,
naturalista. | Nos relatos tanto de Sparrman quanto de.
Paterson, como é normalmente o caso, o grupo em viagem constitui um microcosmo das relações coloniais, visto de
relance em passagens ocasionais. Fora do ângulo do olhar atento para a paisagem, servos khoikhoi se movimentam
| lineanos espalham-se pelas páginas, ainda que nunca tão 23. Ibid., op. cit., pp.xv-xvi. 24. Paterson, op. cit., p.23.
98
[*
ça humana, européia ou africana, é absolutamente marginal, | ainda que este fosse, evidentemente, um aspecto constante “ e essencial do viajar propriamente dito. No texto, as pessoas parecem desaparecer do jardim quando Adão se aproxima “
|
25. Sparrman, op. cit. p.128.
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N
ciência e sentimento, 1750-1800
para dentro e para fora das margens da história, levando água, carregando bagagens, tocando o gado, roubando bebidas alcoólicas, guiando, interpretando, procurando carre-
tas perdidas. Referidos apenas como “um (uns)/o(s)/meu(s) hotentote(s) (ou simplesmente omitidos, como em “nossa
bagagem chegou no dia seguinte”), todos são intercambiá-
veis, nenhum é distinguível pelo nome ou qualquer outra característica, e sua presença, sua disponibililé e estado subalterno, são tidos como certos. (Paterson: “Na manhã se-
guinte, havendo encontrado uma povoação hotentote duas milhas adiante, tomei um de seus habitantes como guia.”%)
Afora sua presença fantasmagórica como membros do . “grupo”, os khoikhoi habitam uma seara distinta nos textos
destes livros, onde são apresentados enquanto objetos de descrição etnográfica formal. Sparrman lhes dedica uma digressão descritiva de trinta páginas no meio de seu livro, enCe———
quanto Paterson os coloca numa nota de catorze páginas em seu primeiro capítulo, em meio a notas menores sobre o veado-do-cabo e a zebra. Estes retratos etnográficos pós-lineanos dos khoikhoi se afastam da descrição feita por Peter Kolb de maneiras que expressam esquematicamente o avan-
ço dos interesses colonialistas. Muito simplesmente, enquanto Kolb descreveu os khoikhoi primariamente como seres culturais, estes dois textos da década de 1780 os apresentam antes de tudo como corpos e acessórios. A estratégia etnográfica de pergunta e resposta de Kolb é substituída, em Sparrman e Paterson, pelo escrutínio visual enquanto meio de obtenção de conhecimento. O retrato de Sparrman dos hotentotes começa por cinco páginas devotadas às partes do corpo, especialmente as genitais,” quatro às vestimentas, três
aos ornamentos. Kolb também escreveu sobre corpos e genitais, no entanto, em seu discurso, os corpos eram entida-
des formadas ou, no jargão moderno, estabelecidas pela cul|
26. Paterson, op. cit., p.196. 27. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, e também no século XX, a genitália dos hotentotes foi objeto de infindáveis, usualmente pornográficos debates e discussões por toda a Europa. O tema — e fantasia — principal veio
100
narrando a anticonquista
; tura. AO descrever, por exemplo, uma cerimônia na qual jo“vens meninos tinham (supostamente) um de seus testículos
removidos e substituído por uma bola de gordura de ovelha, E E principal reação de Kolb é a de frisar repetidamente a fineza e precisão com que a operação é levada a cabo. Sparrman, por seu turno, observa que os homens hotentotes têm dois testículos e, com base em sua própria observação, nega a existência do procedimento descrito por Kolb. O efei-
to é a desculturação dos cada vez mais subjugados africanos.
Não é necessário que se diga que a dimensão dialógica da narrativa de Kolb contrasta com os aparatos descritivos estáticos de Paterson e Sparrman. As vozes indígenas quase nun-
ca são citadas, reproduzidas ou mesmo inventadas nestes es-
|
|
critos do final do século XVII; os atributos intelectuais e es- | l
pirituais analisados por Kolb são negados praticamente pon-
to a ponto. Quando Sparrman faz um comentário sobre a cannabis, ele explicitamente não pretende discutir o seu lugar nos costumes indígenas, mas sugerir que os colonizadores “a utilizem em panos para lençóis, na produção de sacos, lonas, cordame e outros artigos."*
Inteirados da atual crítica acadêmica ao discurso dos colonizadores, os leitores contemporâneos facilmente relacionam esta criação de um corpo sem discurso, desnudo, biologizado com a força de trabalho desenraizada, despojada e disponível, que os colonialistas europeus tão desuma-
na e incansavelmente lutaram para criar em suas bases no
|
a ser a questão sobre se as mulheres khoikhoi possuíam umelemento genital “adicional” que veio a ser chamado de “avental hotentote”. “Testemunhas” dos dois lados envolvidos no debate são numerosas, e o deba-
te representa sem dúvida um dos mais sórdidos capítulos na história do imaginário colonial desumanizado da Europa. Sander L. Gilman estuda alguns aspectos desta mitologia sexual em “Black Bodies, White Bodies: Toward an Iconography of Female Sexuality in Late Nineteenth-Century Art, Medicine, and Literature” in Henry Luis Gate (ed) — Race, Writing, and Difference, Chicago, Chicago U. P., 1986. O artigo de Gilman tem sido acertadamente criticado por reproduzir exatamente a dimensão pornográfica que está procurando condenar. Consulte-se, por exemplo, a resposta de Houston Baker a Gilman e outros na mesma coletânea.
28. Sparrman, op. cit., p.265.
101
ciência e sentimento, 1750-1800
E vora e munição, substâncias difíceis de armazenar e de obter em áreas remotas, € das quais a invasão colonizadora de-
mente despedaçadas. No entanto, a concordância entre es-
tão pouco é dito a respeito dos usos que teria tal munição.
tes textos vem já do fato de retratarem os povos africanos não como objetos de mudanças históricas em suas formas
!
=
|
* comida, alojamento, gado, serventes — fosse paga em pól-
exterior. Poder-se-ia argumentar que os relatos de Sparrman e Paterson simplesmente refletem mudanças que os próprios povos khoikhoi haviam experimentado durante as cinco décadas de intervenção colonial desde Kolb. Suas for-
mas de vida tradicionais tinham sido, afinal, permanente-
j
narrando a anticonquista
de vida, mas como indivíduos sem qualquer forma de vida, seres sem cultura (sans moeurs, na versão francesa de Paterson). Quaisquer mudanças que porventura tenham ocorrido, tendem a não ser expressas como mudanças, mas sim “naturalizadas” como ausências e lacunas. A descrição de Sparrman apresenta a si mesma como verdade atemporal e, sempre que as duas entram em conflito, simplesmen-
te rejeita a veracidade da narrativa anterior de Kolb. Assim como os khoikhoi são desterrados — extraídos da paisagem
| em que vivem -, são também retirados de sua economia,
cultura e história. Estes são procedimentos que a ação da história natural torna simples e, de fato, obrigatórios. Assim, a anticonquista “subscreve” a apropriação colonial, mesmo
' quandorejeita a retórica, e provavelmente a prática, da conquista e subjugação. Enquanto deixa rigidamente à parte os povos indíge-
nas africanos, Sparrman, em particular, frequentemente dramatiza suas interações com os colonos africânderes (bôe-
res), de cuja assistência ele também depende. Aqui, a pala-
vra que dá lustro e idealiza as relações entre colonos e viajantes é “hospitalidade”. Os encontros dos viajantes com os
africânderes são regularmente ajuizados, tendo por base o apreciado cenário burguês do rude e humilde campônio, re-
partindo alegremente seus víveres com o homem ilustrado
da metrópole, cuja superioridade essencial é aceita, ainda que suas fragilidades sejam desprezadas. Sparrman e Paterson raramente, se é que alguma vez o fizeram, mencionam as práticas de troca que estruturavam mais concre-
pendia total e sistematicamente. Nosrelatos de viagem, esta
que troca não é mencionada, talvez pelas mesmas razões
As complexidades da vida na zona de contato são
também expostas apenas de relance. A pobreza dos colonos africânderes frequentemente confunde categorias — tanto
Sparrman quanto Paterson contam ter se aproximado de ca-
panas africanas que afinal percebem ser lares de colonos)
itine-, europeus. Nas áreas mais remotas, solitários europeus para lugar um de rantes são encontrados movimentando-se
outro, cruzando os limites da diferença. Ambos os autores falam sobre alianças sexuais e casamentos transraciais — não apenas o caso comum de homens europeus e concubinas africanas, mas também de uma mulher que dá à luz o filho de um amante africano; de um europeu que se casa com uma mulher tribal por verdadeiro amor. A violência e destruição da zona de contato também são discernidas, mas apenas em suas consequências em traços nos corpos ou em anedotas: uma mulher ferida há anos por uma flecha bos- '
químana, um homem cuja mulhere filhos foram mortos, um chefe de quem se tinha tirado as terras. Conflito e tensões
entre trabalhadores africanos contratados e seus patrões europeus permanecem na penumbra — algumas vezes são mencionados, mas não dramatizados, desenvolvidos ou tes-
temunhados. Por exemplo, no texto de Sparrman, a campanha genocida contra os !kung (“bosquímanos”) é explicita-
da por meio de uma descrição desapaixonada, de forma semelhante a uma receita, de como os bôeres organizam uma caça aos bosquímanos.? Nolivro de Sparrman,/ contatos com a hospitalidade
do colono muitas vezes ensejavam a representação de um drama ideológico essencial à autoridade do naturalista: o de validar sua forma de saber sobre outras que a precederam.|
tamente suas relações com os colonos. Era costumeiro, por
exemplo, que a assistência dos colonizadores africânderes —
102
= Ibid., p.202.
103
ciência e sentimento, 1750-1800
narrando à anticonquista
“yma rica e frágil viúva de cingúenta e dois anos de idade.” Ao chegar, Sparrman tenta ocultar seu chapéu infestado de bichinhos para não alarmar sua anfitriã. Ele, todavia, é traído durante o jantar pelos criados, um dos quais sussurra para sua patroa que O chapéu do convidado “está cheio de
pequenas bestas (kleine bestjes).” Sparrman tem a presença de espírito necessária para a situação:
Foi então necessário que interrompesse por um momento minha refeição para que não me engasgasse com alguma das enormes palavras e longas frases do holandês, que necessitei cunhar ime-
diatamente para convencê-la da grande utilidade de se entender
estes pequenos animais, tanto para fins médicos como econômicos, e tambémpara a glória do grande Criador.”
Ao citar a frase africâner kleine bestjes Sparrman sublinha a substituição verbal que constitui sua missão enquan-
to naturalista. Ele fornecerá os nomes “corretos”. O aspecto multiglóssico é poderoso, pois a frase africâner alinha a paFig.11. Frontispício da tradução inglesa de 1785 de Viagem ao Cabo da Boa Esperança, de Sparrman, representando o “Panorama do campo no Cabo da Boa Esperança”.
as interações de Sparrman com os africânderes freqientemente representam choques entre o conhecimento campo-
CERSOMESUN!
ET
nês e a ciência. Significativamente, Sparrman impõe o termo “camponês” aosafricânderes em geral, mesmo os abastados,
Os quais certamente não aplicariam o termo a si mesmos. Em muitas anedotas, os africânderes são tratados com desprezo ou ridicularizados especificamente enquanto campo-
neses. /Uma série divertida de anedotas enfatiza o contraste
entre as visões da natureza mantidas pelo colono e aquelas do naturalista) Num dia particularmente fértil na coleta de espécimes, Sparrman nota que sua caixa de insetos está
cheia e ele é “forçado a colocar toda a profusão de moscas
e insetos em torno da aba de (seu) chapéu.” Procurando um lugar para se hospedar, é encaminhado para a casa de
30. Ibid., p.61. 104
troa africânder e seu criado africano na categoria dos não-
iniciados cientificamente. Na continuação da anedota, a explicação de Sparrman é bem-sucedida, mas uma nova per-
formance faz-se necessária pouco depois quando chega um numeroso grupo de amigos e parentes da viúva. Novamente a distância entre conhecimento leigo e profissional é hu-
moristicamente apresentada: “Eles tinham visto caçadores
de insetos antes, mas quando examinaram minha coleção de plantas e encontraram nela não apenas flores, mas também grama e pequenos ramos de arbustos e árvores, não puderam conter seu riso ante visão tão inesperada.” Sparrman está inquestionavelmente zombando de si mesmo nesta anedota, tanto quanto atribuindo um perfil Primitivo a seus anfitriões. Esta autozombaria é consistente Com a relação que esses dois escritores pós-lineanos estabelecem entre eles e seus leitores. Quando eventualmente aparece, o auto-obliterado protagonista da anticonquista é T
31. Ibid., p.63.
32. Ibid., p.65
105
ciência e sentimento, 1750-1800
frequentemente rodeado por uma aura não de autoridade, mas de inocência e vulnerabilidade. Sob este aspecto, a anedota de Sparrman sobre a viúva é reveladora. Deixando de
lado o potencial erótico convencional da cena Govem sol-
teiro / viúva rica), o escritor a transforma em paródia de dra-
ma edipiano. Infantilizando-se a si mesmo, Sparrman deserotiza a viúva ao comentarsua fragilidade e explicitar, ao in-
vés de apenas insinuar, sua idade. Ao se esforçar para não
narrando a anticonquista “de discipulado é sobejamente evidente. (Enquanto Lineu, o
ai/rei, preside em casa ao jardim/reino, os filhos se espa-
“ Jham pelo mundo à busca das peças faltantes que o com-
; pletarão:)A imagem de Adão no jardim primordial é uma
imagem que precede a criação de Eva. Como os prefácios a seus livros muitas vezes sugerem, O impulso que leva os lineanos ao exterior envolve uma escolha, como a do Dr.
falar com a boca cheia, o menino-Sparrman procura possuir
Frankenstein, contra a vida conjugal heterossexual e as mulheres. A ausência de Eva é indubitavelmente uma precon-
mente o discurso da história natural. O momento é, claro,
Em sua inocência, a busca do naturalista envolve,
a mãe-viúva por meio de palavras, utilizando especifica-
interrompido por outras pessoas que a requisitam, pessoas a quem Sparrmané incapaz de assustar ou impressionar. Socialmente, tanto quanto sexualmente, Sparrman leva a efeito uma anticonquista. Nada disso é muito grave, pois a pessoa que realmente importa é seu pai na Suécia, à espera do retorno de seu
filho. Diversamente de antecessores, como o conquistador e
o caçador, a figura do naturalista-herói assume, frequentemente, uma certa impotência ou androgenia; muitas vezes ele se retrata em termos infantis ou adolescentes. A produção de conhecimento do naturalista tem alguns aspectos decididamente não fálicos, talvez aludidos pela própria imagem feita por Lineu de Ariadne seguindo seu fio até a
saída do labirinto do Minotauro (cf. p. 69, acima). Serpeando pelos campos, olhando, coletando, improvisando, reagin-
do ao que quer que encontrem, os discípulos de Lineu não
se assemelham integralmente a Dr. Frankensteins ou a Prometeus, ladrões de fogo. (Os devaneios do caminhante solitário*, de Rousseau, inclui um famoso retrato do autor herborizando num longo manto turco.*) Os heróis naturalistas não são, todavia, mulheres — ne-
nhum mundo é mais androcêntrico do que aquele da história natural (o que não quer dizer, evidentemente, que não
tenham existido mulheres naturalistas). A estrutura paternal |
*N.T.: ed. bras.: Brasília, Editora da UnB, 1995. 33. Agradeço a Elizabeth Cook portrazer este exemplo à minha atenção.
106
dição para a infantilidade e inocência de Adão.
como sugeri anteriormente, uma imagem de conquista e sub-
missão. Eva é o jardim que ele, de modo não objetável, saqueia e possui. “Fizemos pausa para descansar,” diz Paterson várias vezes, “e acrescentei diversos espécimes à minha coleção.” Mas contrariamente ao conquistador, o botim não é arrancado de ninguém. Os pequenos espécimes ressecados não têm qualquer valor em si — eles são meramente instâncias de si mesmos, expressões de seu gênero e de sua | espécie. O prefácio de Paterson frisa o contraste entre a conquista e a anticonquista científica. Simultaneamente, ele reve-
la sua conexão. Nos “sertões” da África, escreve,
O naturalista encontrará um vasto campo para suas observações,
| e lá descobrirá objetos que, por sua imensa variedade, serão ca-
pazes de satisfazer todos os seus gostos; lá poderá ver todos os | objetos simples em seu estado natural, e discernirá nos selvagens
' hotentotes as virtudes que talvez tenha, em vão, esperado encon-
| trar nas sociedades civilizadas. Tomado por tais sentimentos, e ' muito excitado pela perspectiva de uma terra cujos produtos nos
| são desconhecidos, deixei a Inglaterra com a resolução de satis-
| fazer uma curiosidade que, se não vista como útil para a sociedaÀ É a «de, é ao menos inocente (itálicos meus).*
Que emaranhado ideológico pode ser encontrado Nestas poucas sentenças! Por um lado, a declaração de inocência e desinteresse, por outro, o vocabulário de concupiscência € desejo autocentrado. De um lado, um eu demandante (mas34. Paterson, op. cit. p.5.
107
ciência e sentimento, 1750-1800 4
culino) com necessidades a serem satisfeitas, e, ao mesmo
tempo, um eu receptivo (feminino) autopenetrado por sentimentos. O projeto diferenciador e cumulativo da ciência ex-
plicitamente se ajusta aquela outra forma de diferenciação e acumulação que é chamada de Gosto. O conhecimento é identificado ao consumo (como Sparrman à mesa dejantar da
viúva) e à satisfação de um desejo auto-reprimido. Na literatura da fronteira imperial, a inocência conspícua do naturalista, suponho, adquire significado em sua relação com uma assumida culpa pela conquista, uma cul-
“narrando a anticonquista
Em sua invasão doterritório controlado pelos povos nguni.
“Fles também continuaram a se ressentir profundamente da E relutância da Companhia em apoiá-los. Em 1786, a Compa“nhia enviou um landrost, ou administrador, para conter a Eve scente militância africânder. Ele permaneceu no posto apenas uns poucos meses e, pouco depois, um ataque afri-
* cânder contra os nguni provocou um levante geral sem pre-
cedentes de africanos contra europeus.” Empregados khoi-
jantes estivessem testemunhando as realidades diárias da
khoi e escravos !kung se rebelaram em grandes números e se juntaram aos nguni, fornecendo preciosos cavalos e ar| mas roubadas de seus patrões europeus. Eles foram devastadoramente empregados contra os colonosafricânderes, a quem o governo da colônia pouco fez para proteger. Os africanderes reagiram à administração colonial e em algu-
do porela, repousa sobre um grande desejo: uma forma de
num período em que os problemas financeiros da Companhia Holandesa das Índias Orientais limitavam sua capaci-
pa da qual a figura do naturalista eternamente procura se
esquivar, e que eternamente menciona, nem que seja apenas para distanciar-se dela mais uma vez. /Ainda que os via-
zona de contato, mesmo que as instituições do expansionismo tenham tornado possíveis suas viagens, o discurso de viagem que a história natural produz, e que é produzi-
tomar posse sem subjugação ou violência] Tal anseio alcan-
ça seus extremos no último relato sul-africano que me proponho considerar: As Viagens ao Interior da África Meridional nos anos 1797 e 1798, de John Barrow, livro lançado em Londres em 1801.
mas áreas proclamaram repúblicas independentes.
Incerteza e violência persistiram por muitos anos,
dade de reação. Em 1795, a Colônia do Cabo foi tomada
pela Grã-Bretanha (sob o pretexto de que estava em perigo de cair sob o controle dos franceses, que, sob Napoleão, haviam recentemente conquistado os Países Baixos). Os colo-
nizadores britânicos (os sul-africanos ingleses de hoje) co-
meçaram a chegar, evidentemente mal recebidos pelos africânderes. A Colônia foi devolvida aos holandeses em 1803,
—arranhões na face do país, ou o que o sr. barrow viu na terra dos
bosquímanos ||
As viagens de Barrow no interior da Colônia do Cabo foram originadas por um período de explosivas rupturas nas
relações internas entre a Companhia das Índias Orientais, a
sociedade colonial africânder e os potentados indígenas, conjuntamente à escalada da agressão externa da França e da Inglaterra. A tentativa de se conter a expansão européia no rio Fish não foi bem sucedida e os africânderes continua-
retomada pelos britânicos em 1806, e definitivamente colocada sob o jugo britânico em 1815. John Barrow, um jovem diplomata de carreira, chegou ao Cabo durante o primeiro
período do controle britânico como secretário pessoal do novo governador colonial, Lorde George McCartney. McCartney designou Barrow como seu representante no interior, obrigando-o a enfrentar longas viagens pela região. Seu trabalho era o de explorar os atritos entre colonos e os
dirigentes da Companhia, estabelecer o reconhecimento da
Presença britânica entre as populações africânderes e indí8enas e, além disso, documentar “a face do país”.
Ines Curtin et alii, op. cit. pp.301 e ss..
109
ciência e sentimento, 1750-1800 |
Diferentemente de Kolb, Paterson e Sparrman,
Barrow estava viajando oficialmente em nome de um em-
preendimento territorial eurocolonialista. Em suas narrati-
vas de viagem, a retórica de anticonquista do naturalista a emma
quase supera o papel de um relatório oficial, visando a le- :
gitimação da ocupação britânica do Cabo. No que pode .
parecer um paradoxo, o relato de Barrow faz apenas referências muito limitadas aos ângulos militares e diplomáticos de sua missão. Ele escreve um pouco no padrão de
Sparrman e Paterson, como naturalista, geógrafo e etnó-
grafo. Estes discursos aparecem de forma extremamente
institucionalizada no texto de Barrow, e são conectados à
a -
sos povoados localizados ao longo das margens do Guengka e suas ramificações, e no dia seguinte chegamos a um rio de magnitude muito considerável chamado Keiskamma.*
(E assim prossegue pela maior parte de 400 páginas, É. E tipo de narrativa estranha, extremamente contida, que | parece fazer todo o possível para minimizar a presença “humana. Em geral, o que é narrado é uma seqiência de
“vistas ou lugares. Detalhes visuais são intercalados com
“informação técnica e classificatória. Tende-se a formar um
quadro panorâmico salpicado por termos estéticos, mitigando o que de outra forma seria um vocabulário integral-
* mente insensível. Os viajantes são, sobretudo, apresenta-
expansão imperial de maneira mais explícita que nos es- —
“ dos como um tipo de olho coletivo móvel no qual são re-
peramento.
“sença é muito reduzida. Na passagem mencionada, por exemplo, o grande esforço do grupo para cruzar o rio não “é narrado ou dramatizado em termos humanos, e sim
critos de Sparrman ou Paterson, talvez porque Barrow | estivesse escrevendo como representante oficial (um secretário, de fato), ou talvez por conta de seu próprio temComo seus predecessores, o relato de Barrow em ge-
ral separa os africanos da África (e os europeus dosafricanos), relegando os primeiros a retratos ernográficos ensejados pela narrativa da viagem. A narrativa de Barrow consis-
te numa superabundância de descrições da natureza e da paisagem, uma catalogação carente de emoções daquilo a que Barrow, ele também, gostava de se referir como “a face do país”. A passagem seguinte é ilustrativa: O dia seguinte, atravessamoso rio Great Fish, ainda que não sem alguma dificuldade, posto que as ribanceiras eramaltas e íngremes, a corrente, forte, o leito, rochoso e as águas, fundas. Algumas belas árvores, salgueiros-da-babilônia, ou uma variedade daquela espécie, ladeavam o rio nesta área. O lado oposto apresentava um lindo campo, com muitas matas e cursos d'água e profusamente coberto de grama, entre a qual crescia em grande
abundância uma espécie de índigo, aparentemente o mesmo des-
crito pelo Sr. Masson como candicans. A primeira noite que acampamos na região dos kaffir estávamos próximos a um córrego chamado Kowsha, que deságua no rio
Great Fish. No dia seguinte passamos pelas vilas de Malloo e Tooley, os dois chefes e irmãos que havíamos visto em Zuure Veldt, vilas estas encantadoramente situadas sobre duas elevações que afloram do citado riacho. Também passamos pordiver-
110
gistradas as vistas/paisagens; enquanto agentes, sua pre-
expresso de maneira bastante indireta como uma enume-
ração dos traços do rio responsáveis pela dificuldade.
Prioridades heróicas são eliminadas; os protagonistas eu-
ropeus excluem-se de sua própria história.” Não há nem mesmo traços de qualquer coleta de espécimes. |
36. John Barrow — An Account of Travels into the Interior of Soutbern Africa in the Years 1797 and 1798, London, Cadell and Da-
vies, 1801: reedição, New York, Johnson Reprint Corporation, 1968,
pp.190-1, Uma sequência das Travels veio à luz em 1804 como um segundo volume. A não ser quando indicado, todas as citações são provenientes do vol. T.
37. Barrow mantém a auto-eliminação mesmo quando narra momentos de drama e grande perigo pessoal, que poderiam alcançar pontos dramáticos extremos. Ao descrever como se processou a fuga de um incêndio na mata, serão as carroças, o gado, os cães e O terreno que registrarão a
crise, ao passo que a experiência humana é fugidiamente aventada:
Saímos um pouco do caminho que levava ao lugar de onde provinha a fumaça; contudo, estando as carroças a sotavento, e dado que a ventania se intensificou, antes que percebêssemos estavam elas no meio do incêndio; e a fumaça estava tão densa e acre que não podíamos ver O grupo em toda a sua extensão. Os bois, tendo sido queimados nas
patas, tornaram-se ingovernáveis e fugiram a galope, em grande confusão, os cachorros ganiam, e houve gritaria geral. A fumaça era sufo-
111
ciência e sentimento, 1750-1800
narrando a anticonquista
Os moradores do campo, fossem africanos indígenas
mesma aos invisíveis observadores eae A própria lin-
ou colonos bôeres, aparecem na narrativa principalmente como elementos do panorama. Os povoados nguni mencio nados acima, por exemplo, são menos relevantes no discur-
guagem de Barrow sugere a fantasia de dominação e apro-
priação que está inscrita nesta postura de outra forma aber-
ta e passiva (O olho “determina” o que ele abrange em seu
so que os rios e cursos de água, e não se fornece qualquer sinal de seus habitantes. A história, que motiva a presença
olhar; as montanhas e vales “se mostram”, “apresentam um
cenário”; o país “se abre” para os visitantes. A presença eu-
de Barrow e determina seu itinerário, não tem qualquer papel constitutivo no texto. A travessia do rio Fish é descrita sem qualquer menção ao significado político do rio como
ropéia é absolutamente incontestada, Ao mesmo tempo, o
perscrutador olho europeu parece impotente para agir so-
bre ou interagir com este cenário que se oferece a si mesmo. Não heróico, não individualizado, sem ego, o olho não
fronteira da penetração africânder — ainda que seu estatuto de fronteira constitua a verdadeira razão para que Barrow o
parece capaz de fazer nada mais do que observar da periferia de sua própria criação: estamos novamente no reino da anticonquista.
esteja atravessando. As Montanhas Nevadas são ultrapassadas sem que haja qualquer referência à sua significação como a principal base para a atividade guerrilheira antieu-
As descrições de Barrow da paisagem são, às vezes,
ropéia — fonte de considerável apreensão para todos os via-
acompanhadas por um discurso explicativo, cuja estrutura
jantes no local. Noutra ocasião, logo após descrever uma
reflete os desenvolvimentos da história natural, no final do
faixa de “campo selvagem, inabitado”, Barrow efetivamente
século XVIII(Neste modo explicativo, a causalidade — e não a classificação — define a tarefa a cumprir, o papel do observador não é o de apenas coletar o visível, mas o de inter-
afirma que a região havia anteriormente sido “uma das divisões mais povoadas do distrito”, ora despovoada em consequência do “escandaloso conflito entre o campesinato e os
pretá-lo em termos do invisível. A descrição de uma graciosa área de acampamento ao lado de um lago salgado é seguido por duas páginas de especulações sobre as origens do sal.” Hipóteses químicas, térmicas e geofísicas são oferecidas para explicar a presença de minerais, a composição dos pântanos, as direções das cadeias de montanhas e dos
kaffirs.”* Mais tarde, Barrow diria que havia “propositalmen-
te evitado” a discussão política em seu relato, em parte por
discrição, e em parte porque “concluí, então, que havia uma única opinião a respeito do real valor do Cabo da Boa Es-
perança.”* Assim, O drama na narrativa de Barrow não é produzido pela história, nem pela agência dos próprios viajantes, mas pela face variada do país tal comoela se apresenta si |
cursos de rios. Experimentos são conduzidos, para revelar propriedades ocultas Lo mundo não é simplesmente dado
aos olhos, como o é para o colecionador lineano. Enquanto discurso, a explicação acrescenta uma dimensão de profundidade à superfície encoberta da terminologia lineana. Ela também gera novos poderes planetários para O praticante da história natural, agora de posse de um olho interior, encarregado de decifrar aquilo que Alexander von Hum-
cante; as chamas ardiam em ambos os lados das carroças, o que, es-
pecialmente para aquelas que continham uma quantidade de pólvora,
era muito alarmante. ... Por várias milhas, a face do campo era uma fo-
lha de fogo, e o ar estava obscurecido pela nuvem de fumaça. (Barrow, op. cit., p.195)
boldt (o grande mestre do modo explicativo) chamaria de
Tão suprimida é a presença humana que sintaxe faz com que as carroças se alarmem pelas chamas, e não as pessoas que estão em perigo de ser destroçadas pela explosão! 58. Barrow, op. cit., p.165. 39. Barrow, Travels, vol. II, p3.
12
“forças ocultas” da natureza! Qual é a relação que articula
estes novos poderes de explicação às forças ocultas da tecE
Tr 40. Barrow, op. cit., pp.125-6.
113
ciência e sentimento, 1750-1800
nologia industrial e ao faminto ímpeto empresarial recém-
surgido na Europa durante estas últimas décadas do século?
Deixando de lado as profundezas ocultas, não é surpreendente encontrar um emissário de uma potência imperial européia preocupando-se acima de tudo com a definição do território e com o rastreamento de perímetros,
pa
a ———a
especialmente na África meridional, onde a posse de territórios tornou-se parte da estratégia expansionista. Na narrativa de Barrow, mais que na de seus predecessores)O
olho que, numa acepção espacial, examina as potencialidades, sabe também estar examinando as perspectivas num sentido temporal — as possibilidades de um futuro colonial são codificadas como recursos a desenvolver, excedentes
a
ser comerciados,
cidades
a
construir.
Tais
perspectivas são o que torna a informação relevante numa
descrição.) Elas fazem com que uma planície seja “boa”, torna relevante que um pico seja “granítico” ou um vale “bem arborizado”.(As descrições visuais pressupõem — na-
turalizam — um projeto transformador incorporado pelos europeus.'Frequentemente, tal projeto explicitamente aflo-
ra no texto de Barrow, nas expectativas de “aperfeiçoamento” cujo valor é comumente descrito como estético. Um lugar na Baía de Algoa é descrito como “a mais bela posição que se pode imaginar para uma pequenavila pes-
queira”; não muito longe dali encontra-se um vasto pânta-
no “que por meio de uma simples drenagem poderia ser convertido num belíssimo prado”; a descoberta de minério contendo chumbo sugere “uma valiosa aquisição para
a colônia”, especialmente porque ela foi feita num lugar onde uma cidade mineira poderia ser facilmente fundada.“ Em seus momentos mais pragmáticos, Barrow não é averso a discutir o nível de preços de mercadorias ou o valor da presença militar britânica enquanto um mercado para a produção local. Afora estas manifestações explícitas, o “es-
pírito britânico de aperfeiçoamento” permeia o texto de 41. Ibid., pp.132-7.
42. Ibid., p.310.
114
“narrando a anticonquista
Barrow, suas prescrições emanando de uma fonte de poder, atrás do invisível e inocente “eu” narrador. É tarefa dos batedores avançados do “aperfeiçoamento” capitalista caracterizar aquilo que encontram como “não
iada anticonquisia, Eperfeiçoado” e, mantendoaterminolog çoamentos.As aspirações como disponível, aberto aaperfei
Eiropéias devem serapresentadascomoincontestadas. Nes-
te ponto,a separaçãotextualdepaisagense pessoas,derefatos sobre habitantes e relatossobreseus habitats, atende asua lógica. O olhar aperfeiçoador europeu apresenta hapitatsde subsistência como paisagens “vazias”, significativas apenas em termos de um futurocapitalista edeseu poten-
cial para a produção de excedentescomercializáveis. DO
]
ponto de vista de seus habitantes, obviamente, estes mesmos espaços são vivenciados de maneira intensamente humanizada, saturada de história local e significado, onde plantas, criaturas e formações geográficas têm nomes, usos,
funções simbólicas, histórias, papéis nas estruturas de conhecimento indígena.
Não apenasoshabitats devemserapresentadoscomo
vazios e não aperfeiçoados,masos habitantes também. Para 6olhar aperfeiçoador,aspotencialidadesdofuturo eurocolo-
nial são justificadas com base nas ausências e lacunas da vida africana no presente. Para Barrow, O presente africano não aperfeiçoado inclui não apenas os khoikhoi (hotentotes), os
Ikung (bosquímanos) e os nguni (kaffirs), mas também seus
exploradores e competidores africânderes. Os euro-africanos,
tanto quanto os africanos devem ser ajuizados especificamente em relação às aspirações britânicas; as reivindicações ho-
landesas anteriores e os 150 anos de ocupação batávica de-
vem ser depreciados. Quando a sociedade de colonos afri-
cânderes surge no texto de Barrow, é como objeto de crítica
generalizada, definida indiscriminadamente por sua falta de
gosto, conforto e espírito de aperfeiçoamento. A velha narrativa sobre a hospitalidade não é mais necessária: Um verdadeiro camponês holandês, ou bôer (como se chama a si mesmo), não tem a menor idéia do que um fazendeiro inglês
entende pela palavra conforto. Colocado num país em que não
115
À
ciência e sentimento, 1750-1800
apenas o que lhe é necessário, mas praticamente toda comodidade da vida poderia ser produzida pela indústria, ele não goza de nenhuma delas. Ainda que possua gado em abundância, faz muito pouco uso do leite ou da manteiga. Em meio ao mais fa-
vorável solo e clima para o cultivo de vinhas, ele não bebe vinho. Três vezes ao dia sua mesa é atulhada de montes de carne de carneiro, boiando na gordura de rabos de ovelha. Sua casa ou é aberta até o teto, ou coberta apenas por estacas e turfa...
Os assentos de suas cadeiras consistem de tiras de couro cru, As
janelas não têm vidros.
E assim prossegue por duas páginas. Numa leitura oposta, evidentemente, este retrato poderia ser um canto de louvor ao nobre selvagem e à vida simples. Assertivo de-
mais para que possa ser chamado de etnográfico, o retrato
termina com uma significativa mudança de terminologia (os itálicos são meus): Com a mente destituída de qualquertipo de preocupação ou reflexão, entregando-se excessivamente à gratificação de qualquer apetite sensual, o campônio africano cresce desproporcionalmente, até
ser levado pela primeira moléstia inflamatória que o acometa.*
Como nota Coetzee, os viajantes europeus fregiente-
mente condenavam os bôeres nos mesmos termos que usavam para condenar os hotentotes, usando como palavras-
chave “indolência” e “preguiça”. Ambos os grupos, afirma
ele, estavam sujeitos à intencional incompreensão dos euro-
peus no tocante às formas de vida tradicionais da África meridional, fossem elas dos africanos colonizados, ou dos euro-africanos colonizadores. Os bôeres (africânderes), sugere Coetzee, apresentavam um desafio particular para os valores burgueses europeus, precisamente porque, na qualidade de classe colonial dominante, com acesso virtualmen-
te ilimitado à terra e trabalho livre, tinham os meios apro-
priados à consecução dos ideais europeus de acumulação, consumo e enriquecimento por meio do trabalho e, no entanto, escolheram não alcançá-los. A seu ver, eles sugeriam
aos observadores europeus a possibilidade de que “sob 43. Tbid., pp.76-7.
116
narrando à anticonquista
: aquelas peles sujas, nuvens de moscas e rude vestuário”, os
“colonos africânderes poderiam “defender uma rejeição da
* disciplina e do trabalho em favor de uma maneira de viver “na qual os frutos da terra fossem usufruídos na medida em
que caíssem nas mãos, em que o trabalho fosse evitado
"como um mal, e o lazer e O ócio fossem uma e a mesma
coisa.”* O parâmetro de comparação de Barrow para Os “camponeses africanos” (donos de escravos) são, como se- |
fia de se esperar em 1801, “os trabalhadores pobres da In-.
glaterra”, cuja superioridade em relação aos euro-africanos |
residia de alguma forma no fato de que “seis dias por sema- |
na estavam condenados a uma faina de doze horas diárias | | para ganhar um pedaço de pão para sua família." Já esquecidos, ou jamais reconhecidos, estavam os intensos processos de doutrinação ou coerção necessários para criar a clas-
se trabalhadora inglesa e para compeli-la a adotar a mobili| dade ascendente e a ética do trabalho.“ As mesmas estratégias textuais estavam em ação no
outro lado do Atlântico. O retrato depreciador que Barrow fez dos holandeses da África do Sul teve sua contrapartida
nos escritos de viajantes correlatos sobre a sociedade colonial holandesa no Caribe, tais como o de John Stedman,
cujo trabalho será discutido no capítulo 5 e que Barrow havia provavelmente lido. Na América espanhola, um fluxo
de viajantes de negócios ingleses, no início do século XIX, zombariam da sociedade crioula hispano-americana da mesma forma que Barrow contra osafricânderes (consulte-
se o capítulo 7). Os paralelos não são coincidência. Em 1800, a Gra-Bretanha estava tão intensamente interessada
na América do Sul, como na África meridional. O próprio
Barrow traçou fortes paralelos entre as duas, chamando-as de “continentes opostos” e comparando a Colônia do Cabo
ao posto britânico na ilha de Staaten, próxima ao Cabo
E op. cit., p.32. 45. Barrow, op. cit., p.78.
,
46. CE. Coetzee, op. cit. p.27. O segundo volume de Barrow, escrito após o retorno do domínio holandês ao Cabo, continua o ataque aos africânderes de forma consideravelmente mais extensa.
ii
Horn.” A história viria a corroborá-lo. Alguns dos generais . britânicos que reconquistaram o Cabo para a Grã-Bretanha . em 1806, foram para a Argentina meses mais tarde partici-
par do ataque britânico a La Plata.
O principal objeto de interesse etnográfico das Via.
gens de Barrow não são os khoikhoi, mas os kung, mais conhecidos por seus epítetos coloniaisde bosjesmans ou bosquímanos. Povo que tem permanecido tema de grande interesse etnográfico e fantasia ideológica ocidental até os dias de hoje, os !kung sãoantigos habitantes do sul da Áfri-
ca que, quando do estabelecimento dos europeus, já se en-
contravam em dura competição com os imigrantes khoikhoi e nguni criadores de gado. Enquanto população extre-
mamente móvel, vivendo em pequenos grupos, nem man-
tinham animais, nem cultivavam lavoura. Nos séculos XVIL
e XVIII eram conhecidos e temidos antes de tudo pelos ataques noturnos ao rebanho dos khoikhoi e, posteriormente,
ao dos europeus. Repetindo a usual divisão textual de trabalho, Barrow
apresenta os !kung num retrato etnográfico de dezesseis páginas, separado do corpo principal da narrativa. Deixe-me usá-lo como oportunidade para refletir sobre como estes aparatos padronizados do relato de viagem produziam
temas não europeus para a audiência doméstica do imperia-
lismo. Eis aqui um trecho:
Por inclinação (o bosquíimano) é vivaz e alegre; e, como pessoa, ativo. Seus talentos estão bem acima da mediocridade; e avesso ao Ócio e raramente permanece sem emprego. Geralmente con-
finados a suas choupanas de dia, por temor de serem surpreendidos pelos fazendeiros, algumas vezes dançam em noites de lua cheia até o raiar do sol. ... As pequenas trilhas circulares em torno de sua cabanas são prova de sua inclinação por este diverti-
mento. Sua alegria É tanto mais surpreendente quando se observa que as migalhas que procura para sua subsistência são obti-
das com perigo e fadiga. Ele não cultiva o solo, nem cria gado;
e sua região produz poucos bens naturais apropriados à alimentação. Os bulbos da íris e poucas raízes gramíneas de um gosto
47. Barrow, op. cit, pl7 e pi, respectivamente.
118
narrando a anticonquista
amargo e penetrante, é tudo o que o reino vegetal lhes reserva. À procura destes bens, toda a superfície da planície próxima ao grupo foi raspada.*
A passagem etnográfica inicial torna homogêneo o
- enqu anto sué, é apresentando-o , isto isto j povo a ser subjugado ; jeitos, num coletivo eles, que se resume ainda mais a um
icônico ele (= espécime padrão adulto e macho). Este ele/eles abstraído é o sujeito de verbos num pre dem poral. Estes caracterizam qualquer coisa que “ele” é ou dei
xa de ser não como um evento particular no tempo, mas como uma instância de costume ou traço preestabelecido
(como uma planta particular é uma instância de seu gênero e espécie). Conjunções particulares de pessoas, quando textualizadas, transformam-se, então, na enumeração de
tais traços. O fato de que as comunidades !kung de finais
do século XIX viviam em constante apreensão e perigo, por
exemplo, é codificado como um costume de se esconder de dia e dançar à noite.
l
A antropologia crítica tem reconhecido a extensão
na
com que essas práticas descritivas têm atuado para normalizar uma outra sociedade, para codificar seus traços dis-
tintivos aos da sociedade do outro, o narrador, para fixar seus membros num presente atemporal em que todas as “suas” ações e reações reproduzem “seus” hábitos normais. Como sistema da natureza, elas trazem uma ordem
onde, para o observador externo, existe o caos. A produção textual da outra sociedade não é explicitamente fun-
damentada nem na observação do indivíduo, nem na situação de contato na qual a observação está tendo lugar.
“Ele” é uma entidade sui generis, frequentemente apenas uma lista de características, situada numa ordem temporal diferente daquela do sujeito perceptual e narrador. Johannes Fabian utilizou a expressão “negação de contempora-
Deidade” para se referir especificamente ao distanciamen-
E Ibid., pp.283-4. O livro de Barrow também inclui alentados retratos
etnográficos dos povos khoikhoi (hotentotes) e nguni (kaffir).
119
a
ciência e sentimento, 1750-1800 |
ciência e sentimento, 1750-1800
to temporal.” Esta é uma velha prática textual que efetiva-
mente complementa os processos de des-culturação e | des-territorialização discutidos anteriormente. Sob o aspecto gramatical, ocorrem na passagem citada dois pontos em que o presente “etnográfico” atemporal | da descrição normativa é interrompido por uma narrativa no —
pretérito. As trilhas em torno das cabanas dos bosquímanos
eram prova de sua inclinação para a dança, e, dada a sua procura de raízes, a superfície das planícies vizinhas foi ras-.
pada. De um modo fantasmagórico, estas duas instâncias de . verbos no passado se referem retrospectivamente a uma ocasião ou ocasiões específicas de contato entre Barrow e
os bosquímanos. O que eles historiam, contudo, não é seu encontro com eles, mas com os traços que deixaram na pai- .
sagem — os arranhões na “face do país”.
A voz normalizadora e generalizadora dos retratos
etnográficos de maneiras e costumes é distinta da paisagem
do narrador, mas complementar a ela. Ambas tem a chance- — la do projeto global da história natural: uma apresenta a ter-
ra como paisagem e território, rastreando potencialidades; a
outra apresenta os habitantes indígenas como corpos |
fugidios, igualmente rastreados conforme suas potencialida-
des. Conjugadamente, elas desmantelam a rede sócio-ecológica que as precedia e instalam uma ordem discursiva
eurocolonial cujas formas territoriais e visuais de autoridade são aquelas do estado moderno. Apartados da paisagem em disputa, os povos indígenas são abstraídos da história que está sendo feita — uma história na qual os europeus tencio-
nam reinseri-los como reservatório de trabalho explorado.
Neste contexto, não se pode deixar de notar que, em
contraste com a ociosidade detectada em africânderes e khoikhoi, Barrow encontra nos !kung as mesmas qualidades que valoriza na classe trabalhadora inglesa. Eles são avessos ao ócio e de bom grado trabalham duro por uma
narrando a anticonquista
ara os bosquímanos). Nenhum grupo se dedica à atividade agropastoril,
uma forma
de vida aparentemente
“oposta ao espírito de aperfeiçoamento. Tais observações,
não obstante sua aparente atemporalidade, articula o retra-
to de Barrow à conjuntura histórica particular que motiva o elogio aos !kung. O que quer que os modos de viver dos !kung tenham do século XVII, por volta da época da chegada antes cido * dos europeus, eles aparentemente já eram uma nação beligerante e mobilizada, odiada pelos khoikhoi como selva-
gens e maldosos. Este foi um mito que os colonos europeus prontamente assumiram, aliando-se aos khoikhoi em campanhas brutais de repressão contra aquele povo “selvagem”
que “abomina a vida pastoril”, como foi dito tão frequente-
* mente. Confrontados pelas constantes queixas sobre as “de-
predações dos bosquímanos”, os administradores da Companhia das Índias Orientais autorizavam periodicamente os colonos a montarem suas próprias campanhas de retaliação,
que se transformavam em promoções de caça genocida.
Tanto Sparrman quanto Paterson descrevem as técnicas que se desenvolveram para a localização e ataque dos acampa-
mentos !kung à noite. Os !kung responderam aos invasores tornando-se
cada vez mais arredios e retirando-se para regiões cada vez mais remotas. (Eles não viveram eternamente em seu suposto habitat “natural”, o deserto de Kalahari.) Aparentemente, mesmo à época de Sparrman e Paterson, as comu-
nidades !kung haviam se tornado difíceis de se encon-
trarem, tão bem escondidos estavam os sobreviventes. Alguns !kung, todavia, foram forçados a fazer parte da economia pastoril européia, por meio de métodos frequente-
mente criticados pelos viajantes. Enquanto a lei da CompaNhia proibia a escravização dos khoikhoi, permitia que os kung fossem escravizados, e assim foi feito, embora eles
pequena recompensa (pão para os ingleses, raízes amargas
Constantemente escapassem. Sparrman deplora um dos
|
bês !kung, conseguindo-se, assim, assegurar que a mãe aflita ficasse por perto e aceitasse a escravização pelos euro-
49. Johannes Fabian — Time and the Other: How Anthropology Makes its Object, New York, Columbia U. P., 1983, p.35.
120
Procedimentos empregados pelos europeus: o rapto de be-
121
ciência e sentimento, 1750-1800 |
peus em troca da proximidade de seu filho. Esta prática foi ]
adaptada de técnicas para a captura de animais.
No final do século XVIII, os !kung haviam deixado de .
ser uma ameaça séria e haviam adquirido o estatuto de | povo conquistado. Nos escritos europeus, começaram à
aparecer não como selvagens malévolos, mas dentro de um novo estereótipo sentimental, como vítimas benignas, ingê-
nuas e infantis. Barrow é um dos escritores que inaugura-. ram este estereótipo, como na passagem citada acima. Num
episódio da narrativa, ele encontra na casa de um coman-.
dante africânder uma família kung que havia acabado de | ser capturada pelos invasores africânderes. O resumo da conversação mantida por Barrow com o homem cativo
apresenta um marcante contraste em relação à retórica pre-
ponderante em seu livro. Ao invés de transformar o outro |
numa informação, Barrow procura expor sua perspectiva e . valorizar sua experiência da perseguição colonial: Ele nos descreveu a condição de seus compatriotas como verda- . deiramente deplorável. Afirmou que por vários meses todos os . anos, quando a geada e a neve os impediam de promover suas
excursões contra os fazendeiros, seu sofrimento devido ao frio e .
carência de alimentos era indescritível: que freguentemente assis-
tiam a morte de suas mulheres e filhos por inanição, sem que eles
pudessem lhes dar qualquer consolo. A boa estação lhes trazia | poucoalívio à sua miséria, Eles se sabiam odiados por toda a hu-
manidade e que a própria nação que os circundava era um inimigo planejando sua destruição. Não havia sopro de vento farfalhando as folhas ou canto de pássaro que não fosse tomado como anúncio de perigo.”
No entanto, não se colocava em dúvida que o locutor
fosse absorvido pela estrutura de poder eurocolonial. Ele já o havia sido, de acordo com os olhos de Barrow: “Pretendia-se”, assim termina o episódio, “que este homenzinho
nos acompanhasse; mas como ele parecia mais inclinado a honrar seus compromissos com suas mulheres, foi-lhe permitido seguir suas inclinações maritais” (itálicos meus). 50. Devo esta observação a Harriet Ritvo.
51. Barrow, op. cit., pp.241-2.
122
narrando a anticonquista
Ao final, o engajamento humanitário de Barrow com os !kung o leva até o outro lado da anticonquista científica, “onde se rompe sua retórica visual e objetivista. O reprimido “ volta a seu texto num episódio com o qual chego ao fim deste alentado capítulo. Fascinado pelos !kung, Barrow não quer nada mais que vê-los em seu estado “natural. A perseguição aos kung havia sido tão grande que a única for-
ma de contato com suas comunidades era a de literalmente
invadi-las. Apenas por meio de um culposo ato de conquista (invasão) pode o inocente ato de anticonquista (olhar) ser desempenhado. Em nome do olhar, Barrow relutantemente contrata alguns fazendeiros africânderes para fazer exatamente isso. Empunhando as ferramentas da conquista — ar-
mas e cavalos — eles penetram à noite, sob a condição estabelecida por Barrow de que nenhum tiro fosse desferido a não ser por revide. A aventura parece ter sido traumática
para ele, uma verdadeira descida ao inferno, cuja descrição contrasta dramaticamente com o resto do livro. O ataque no— turno à “horda” faz irromper na superfície do texto tanto a linguagem da conquista como a linguagem do remorso:
Nossos ouvidos estavam chocados pelo horrível grito da formação de guerra dos selvagens.; os guinchos das mulheres e os vagidos das crianças procediam de todos os lados. Eu cavalgava com o co-
mandante e outro fazendeiro, ambos os quais atiraram sobre a vila. Eu imediatamente expressei ao primeiro minha surpresa por ter sido justamente ele, entre todos os demais, a quebrar uma condição que havia solenemente prometido observar, e que eu esperara dele uma linha de conduta bastante diferente. “Bom Deus!”, exclamou, “não viu a chuva de setas que caiu sobre nós?” Eu certamente não havia visto nem setas nem pessoas, mas havia ouvi-
do o suficiente para perfurar o mais insensível dos corações.”
Seria difícil exagerar o quão completamente este
episódio destoa do resto do texto de Barrow. É a única
Cena noturna no trabalho, a única instância de diálogo di-
Teto, a única ocasião em que Barrow dramatiza a si mesMo como um participante, o único arroubo de emoção, a única explosão de violência, uma das poucas cenas onde
; Fr 52. Ibid., p.272. 123
ciência e sentimento, 1750-1800
povos e lugar coincidem, e a única vez que Barrow questiona sua insegurança a respeito de seu ambiente. Um dos poucos episódios dramáticos no livro de Barrow, é o úni.. co em que o sujeito locutor se divide, surgindo tanto | quanto observador como observado, O que parece provocar a crise é o fato de que Barrow opta por exercitar seu |
“direito” assegurado pelo Estado para “legitimar” a violência, não, contudo, para defender a si mesmo ou seus con-.
cidadãos, mas simplesmente para dar uma olhada, para satisfazer sua curiosidade. A ideologia que constrói o ver como inerentemente passivo e a curiosidade como ino- .
cente, não pode ser sustentada, e a ordem discursiva de. Barrow se rompe, juntamente com seu discurso moral humanitário. Nesse rompimento, insere-se um contra-discurso sentimental. Barrow extravasa de modo confessional: “Nada”, diria mais tarde, “poderia ser mais indefensável,
. | | |
posto que cruel e injusto, do que o ataque promovido por | nosso grupo à vila”? a
Estilo confessional, porém não transformativo, a per.
da da inocência por parte de Barrow não produziu um novo | ego nem novas relações de discurso. Sua descida ao infer-. no colonial seria repetida muitas vezes pelos escritores sub- .
seguentes. Um século mais tarde, quando a Europa seten- | trional havia criado sua própria lenda negra sobre a odiosa luta genocida pela África, aquela descida tornar-se-ia a história canônica sobre a Europa na África: a queda, de uma|
perspectiva ensolarada, para o coração das trevas.
pós-escrito histórico
“narrando a anticonquista
“Cabo para os interesses comerciais e militares britânicos. Seus argumentos podem ter sido efetivos, pois, em 1806, a
Grã-Bretanha de fato retomou o Cabo pela força. A jornada
Ele Barrow marcou o começo das mudanças introduzidas lo domínio britânico, que foi definitivamente confirmado
em 1815. Os britânicos fortificaram a fronteira do rio Fish,
* comprometendo-se, desta forma, a ajudar os africânderes contra os nguni. A resistência nguni continuou ao longo do
“século XIX; foram travadas guerras em 1819, 1834-5, 1846 e 1 1877-8. Enquanto isso, novas leis tentaram estabelecer a subjugação indígena. “Em 1809”, de acordo com a relato histó-
rico canônico de Curtin et alii, “o estatuto legal dos khoikhoi e de outros povos de pele escura não escravizados foi definido de tal forma que a maior parte deles foi obrigada a trabalhar para os europeus, ainda que usufruíssem de al-
guma proteção por possuírem contratos de trabalho escritos e acesso aos tribunais.” O truque inventado pelos bôeres
para escravizar os bosquimanosfoi legalizado: “Em 1812, os
proprietários de terra europeus foramautorizados a tutelar as crianças que haviam sido criadas em suas fazendas ... uma determinação que também imobilizava seus pais.” Em 1820, 5.000 colonos britânicos aportaram e, com eles, uma
nova força européia: a Sociedade Missionária Londrina (London Missionary Society], que estabeleceu uma resistência humanitária a alguns dos abusos mais brutais. O humanitarismo, ao lado da ciência, é sua própria forma de anti* Conquista; sua dinâmica, tal como representada nos relatos | de viagem, é o tema do próximo capítulo.
|
Em 1803, a Gra-Bretanha devolveu a Colônia do Cabo
aos holandeses, uma perda que afligiu tanto Barrow a ponto |
de ele abandonar tudo durante três meses para compor um | segundo volume de suas Viagens, evidenciando o valor do
53. Ibid., p.291.
124
- “Pe et alii, op. cit., p311.
125
7
capítulo 4
anticonquista II:
a mística da reciprocidade
Parece que por nossos pecados, ou por algum inescrutável juízo de Deus, em todas as entradas desta grande Etiópia (j. e., África) que costeamos, colocou ele um anjo vingador com uma espada flame-
jante de febres mortíferas, que nos impede de penetrar no interior para os mananciais deste jardim, de onde procedem osrios de ouro que fluem para o mar em tantas partes de nossa conquista, João de Barros (Portugal, 1552)
Em junho de 1797, um escocês de 25 anos surgiu repentinamente em Pisania, na costa da África Ocidental, so* Zinho, carente e maltrapilho. Seu nome era Mungo Park, e
havia acabado de passar um ano e meio no interior explo-
* tando a bacia do Níger. Ele estava prestes a voltar para a * Inglaterra e escrever um doslivros de viagem mais popula* Tes de seu tempo. Park havia viajado sob os auspícios da * Association for Promoting the Discovery of the Interior — Parts of Africa (Associação para a Promoção da Descober“la das Áreas Interiores da África), conhecida pela abrevia* São African Association (Associação Africana) e baseada em Londres. Esta aliança de aristocratas e ricos homens de ne-
Sócios, “que incluía pares do reino, baronetes, membros do Parlamento, um general aposentado e um bispo,” foi for-
“Te Lloyd — The Search for the Niger, London, Collins, 1973, pp.13-14.
2. E. W. Bovill - Missions to the Níger, Hakluyt Society, Série II, vol. 123, p.2.
ei
*
ciência e sentimento, 1750-1800|
mada em 1788 sob a liderança de Joseph Banks, e dirigiu. a exploração britânica da África Ocidental nas quatro déca-
das seguintes. (Banks seria sucedido em 1815 por ninguém.
menos que John Barrow, cujas viagens de juventude foram discutidas no capítulo precedente.) No encontro inau-. gural da Associação, “doze cavalheiros abastados” reuni. ram-se para lamentar que, nas palavras de seu próprio ma-.
nifesto,
Não obstante o progresso da descoberta nas costas e fronteiras. daquele rude continente (i. e., África), o mapa de seu interior ain: da não é mais que um extenso vazio, onde o geógrafo, com base. na autoridade de Leão, o africano, e do xerife de Edrissi, autor. núbio, traça com mão hesitante uns poucos nomes de rios inexplorados e de nebulosas nações. ... Atentos a este problema e de-. sejosos de resgatar esta era do peso da ignorância que, em outros aspectos, é tão oposta a seu caráter, uns poucos indivíduos,.
profundamente convictos da praticidade e utilidade de assim de-.
senvolver o acervo do conhecimento humano, arquitetaram uma. Associação para a Promoção da descoberta das regiões interiores
da África:
É
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A ênfase em relação à praticidade, a ausência de, qualquer menção à ciência e a imagem do conhecimento, humano como um “acervo” refletem os objetivos predomi-. nantemente comerciais da Associação Africana. Os membros eram expansionistas econômicos, interessados em, “comércio legítimo”, ou seja, nem em colonização, nem,
em assentamentos e, acima de tudo, avessos ao comércio, escravo. Em dois anos, a Associação teria noventa e cinco membros. A O projeto a que o grupo se dedicou inicialmente provou ser tão difícil que permaneceu sendo o único que empreendeu: estabelecer o curso, direção, nascente e foz do. 1
aqueles que habitassem as suas cercanias. Os fundadores ua nham grandes esperanças nas perspectivas que os pod ] riam estar aguardando. O Níger, como propôs Heródoto,
3. Ibid., p.á. 128
E ticonquista II: a mística da reciprocidade
pem poderia fluir para o leste, atravessando toda a África “até o Nilo, propiciando assim uma rota transcontinental de
comércio para o Mediterrâneo; especialmente desde Leão,
“o Africano, muçulmano espanhol cuja História e descrição da África data de 1550, Timbuktu havia existido nos mapas
mentais europeus como uma cidade de ouro, no centro de
um reino afluente e sofisticado. Relatos antigos haviam le“vado os europeus a especular que “o conhecimento e a língua do antigo Egito podem ainda sobreviver imperfeitamente” no interior e que em alguma região escondida até
“os cartagineses poderiam ser encontrados, mantendo “uma
parcela daquelas artes e ciências e daquele conhecimento “comercial pelos quais os habitantes de Cartago foram um dia tão afamados.” Os emissários da Associação eram insídos, como o foi Mungo Park, não apenas a localizar o
Níger, mas, para citar as ordens de Park, “a visitar as
rincipais cidades de suas cercanias, particularmente
Tombuctoo e Haussa.”
»
A idéia de um interior africano densamente povoado
com cidades e estados estabelecidos, redes comerciais e
“mercados para produtos britânicos, contrasta com as expectativas de poucas décadas antes, quando os estereótipos determinados pelo tráfico de escravos governavam as ideoloias européias. Em 1759, por exemplo, o tradutor inglês da Viagem ao Senegal (França, 1793) de Adanson apresentou a África como “um país coberto pela miséria”, cujo panorama
nsistia de “desertos escaldantes, rios e torrentes”, onde
eram encontrados “tigres, javalis, crocodilos, serpentes e ou-
tras bestas selvagens.” Os habitantes, tanto negros quanto Mouros, são descritos como “pobres e indolentes”, ainda
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- O francês René Caillié provou ser o primeiro europeu moderno a sobreviver uma jornada de ida e volta a Timbuktu. Quando ele retornou em 1828 reclamando a recompensa de 2.000 francos oferecida Pela Sociedade Geográfica Francesa por este feito, relatou que a cidade fabulosa era “à primeira vista, nada mais do que um conglomerado “ casas de aparência insalubre, construídas de terra” (citado em Lloyd, op. cit., p.73). .
5. Mungo Park — Travels in the Interior of Africa, Edinburgh, Adam &
Charles Black, 1860, p.3. As referências subseguentes serão a esta edição.
129
ciência e sentimento, 1750-1800 que “amistosos e dóceis”. Trinta anos mais tarde, tais.
panoramas foram vistos sob suspeita. O médico dinamarquês Paul Isert, em seu Viagens na Guiné e Ilhas Caribe-
nhas da América (1793), argumentava que os defensores da.
escravidão, que achavam os africanos “naturalmente pregui- . çosos, teimosos, inclinados para o furto, bebida e todos os.
vícios” deveriam viajar para o interior africano “se desejarem| sinceramente ser curados de seus preconceitos.” Em 1782
o editor britânico das célebres cartas do ex-escravo Ignatius| Sancho explicou os talentos literários deste indivíduo em termos semelhantes. “Aquele que adentrar o interior da Áfri ca”, escreve ele, “muito possivelmente descobrirá artes e n
ções que mantêm muito pouca analogia com a ignorância e. a grosseria dos escravos das ilhas produtoras de açúcar, e
patriados na infância e brutalizados sob o chicote do feitor.”
anticonquista II: a mística da reciprocidade
Como tais especulações sugerem, a re-imaginação do inte-
sior africano em fins do século XVIII coincidiu com a ex+raordinária aceleração do movimento antiescravagista após 4 770 e a reconcepção dos africanos como um mercado e
ão mais como mercadoria. De fato, a formação da Associa-
“cão Africana sucedeu por apenas uns poucos meses à inauuração de uma entidade igualmente histórica, a Society for e Abolition of the Slave Trade (Sociedade para a Abolição
“do Tráfico de Escravos). O afamado membro do parlamento William Wilberforce foi sócio de ambas. E
É difícil dizer o que é mais notável, o fato de que Mun-
“go Park tenha assumido sua missão para o Níger ou que tenha
“sobrevivido a ela. Seu esforço havia sido precedido por uma sé-
“rie de fracassos desalentadores. O primeiro emissário da Asso-
É ciação, Simon Lucas, havia retrocedido quando se encontrava a 100 milhas de Trípoli; o segundo, um americano chamado John
|
6. Michel Adanson — A Voyage to Senegal, in John Pinkerton (ed) — Voya: ges and Travels in all Parts of the World, London, Longman et alii, vol, 16. 1814, pp.598-9. A tradução (1759) é de “um cavalheiro inglês, que residiu por algum tempo naquele país.” Christopher Lloyd em The SearchforNiger cita Lorde Chesterfield durante os primeiros anos do século XVIII dizendo| a seu filho que “Osafricanos são o mais ignaro e rústico povo do mundo, | pouco melhor que osleões,tigres, leopardos e outras bestas selvagens qui aquele país produz em grandes números” (Loyd, op. cit. p.17). À 7. Paul Erdman Isert, p.305 (tradução minha). No original francês, lê-se: Mais, disent les défenseurs de Vesclavage,les nêgres sont naturellement paresseux, obstinés, adonnés au vol, a Vivrognerie, a tous les vices. ..Je nã autre chose à répondre à ces Messieurs, sinon que s'ils veulentsincêrement |
être guéris de leurs prójugés contre les Negres, ils n'ont qu'a se donner la|
peine de faire un tour dans Vintérieure de VAfrique, ils y observeront par| tout, Hinnocence,la simplicité des moeurs, la bonne foi. Lã, seulement sont |
en vogue ces pratiques d'enfer , ou les rudes agens, les Européens, avec | leurs productions, ont introduit les appétits qui les y excitent. À
Visitante da costa da Guiné, Isert estava entusiasmado porter sido con-
vidado para o interior por uma mulher (a quem descreve como uma princesa) que procurava aconselhamento médico para um parente. Da | mesma forma que a maioria de seus contemporâneos, o abolicionismo de Isert não fazia dele um igualitarista. Para substituir a escravidão, ele lh
Ledyard, morreu antes de partir do Cairo; o terceiro, Daniel
Houghton, disfarçado como árabe, juntou-se a uma caravana
“ no deserto, mandou umas poucas mensagens entusiasmantes e
desapareceu em Bambouk, no Saara. No entanto, o entusiasmo
doméstico pela aventura do Níger nunca esmoreceu. Quando
Park ofereceu seus serviços, em 1794, a Associação Africana
“ainda possuía aproximadamente 100 membros em todo o con“tinente (incluindo um jovem alemão de nome Alexander von “Humboldt, cujas viagens ainda estavam por acontecer), e havia
* Conseguido persuadir o governo britânico a designar um côn-
sul e cingúenta soldados para a Senegâmbia a fim de assistir ao desenvolvimento do comércio ao longo dos rios Níger e Gâm* bia, onde quer que se provasse que fluíam. Em dezembro de 1795, Park dirigiu-se de Pisania, o
Principal posto avançado europeu sobre o rio Gâmbia, para 9. Meu sumário da expedição de Park e de seu contexto africano bascouSe nas seguintes fontes: Philip Curtin — The Image ofAfrica: British Ideas
propunha mover as plantations para a África, onde os africanos contis |
and Action, 1780-1850, 2 vols., Madison, Wisconsin U. P., 1985; Lloyd, Op. cit; Kenneth Lupton — Mungo Park, the African Traveler, Oxford U.
nuariam à trabalhá-las como mão-de-obra assalariada ou em servidão | contratada (ibid., p.397). a 8. Citado em Wylie Sypher — Guinea's Captive Kings: The British Anti-Slavery Literature ofthe XVIIth Century, Chape Hill, North Carolina U. P., 1942, p.152.
130
P., 1979. Peter Brent — Black Nile, London, G. Cremonesi, 1977; Richard
Owen — Saga ofthe Níger, London, R. Hale, 1961; Ronald Syme — 4 Mun80 Park, London, Burke, 1951.
E.
131
mticonquista TE a mística da reciprocidade
ciência e sentimento, 1750-1800.
: e Bambara da África do Centro-Oeste, confirmando o
o interior, acompanhado inicialmente por um grupo de seis .
que foi sendo sistematicamente reduzido até restringir-se É
y A um comentarista inglês havia descrito como “o mais
evado estado de progresso e civilização superior dos hados itantes do interior quando comparados aos habitantes
um único menino escravo a quem se havia prometido q li
berdade caso completasse a jornada, e que finalmente tam. bém desapareceu. Viajando para o leste, Park se movimentou dentro do território habitado pelos mandingos (africa-.
níses próximos à costa.” Uma descoberta que talvez sus-
tasse humildade nos europeus, ao levantar a questão de
al seria a sua responsabilidade e a dotráfico de escravos
nos muçulmanos, muitos dos quais se tornaram vítimas do
tráfico de escravos) e posteriormente no território dos ful ni,
cujo
império
se
estendia
internamente
e
t
incluía.
Timbuktu. Aqui, entre os odiados mouros, como Park os:
chama, os problemas começaram. Ele passou a encontrar:
bandoleiros, nações em guerra e reis ambiciosos; foi aprisionado e torturado durante um mês por um potentado fula
chamado Ali, descrito ao estilo orientalista como um mode. lo do absolutismo corrupto. Ao obter sua libertação, Park di
rige-se para o sul, dentro do reino rival de Bambara, que . margeava o Níger. Em sua capital, Segu, ele afinal avistou “o
longamente procurado e majestoso Níger, brilhando ao sol.
da manhã, tão amplo quanto o Tâmisa em Westminster, e.
fluindo vagarosamente para o leste” Desistindo de alcan- | çar Timbuktu, Park, privado de recursos e faminto, voltou-.
se para a costa, juntando-se por uma boa parte do caminho | a uma caravana de escravos de cuja caridade ele dependeu. | Retornou a Pisania um ano e meio mais tarde — muito de-
pois de ter sido dado como morto.
E
Park jamais alcançou Timbuktu e não encontrou os| egípcios, os cartagineses ou os remanescentes de antigos | reinos cristãos. Mas ele atingiu o Níger e fez a observação |
crucial de que este fluía para o leste, deixando aberta a en-.
tusiasmante possibilidade de que ele fosse conectado ao |
|,
Nilo(Isto não ocorre.) Igualmente importante, Park fez con-. tatos de primeira mão com os vastos e prósperos reinos Fu10. Park, op. cit., p.177. A observação de que o Níger fluía para o leste | provou ser, afinal de contas, enganosa, pois ele finalmente vira abruptamente para o sul e de volta para o oeste, desaguando na angra de Be-
nin na costa ocidental do continente. Este curso inesperado não foi do-
cumentado pelos exploradores europeus até a década de 1820, quando | é mencionado por Richard Lander.
132
ebaixamento” do “estado de progresso” da sociedade icana na costa; humildade que também deveria ser estiulada pelo estado de progresso da Europa, que a manti-
no
ET
nha ignorante sobre as sociedades da África Ocidental e
Central, ao passo que estas, há muito, tinham contato com
'as mercadorias e o conhecimento da Europa.
É
E
Mais importante que tudo, Park viveu para completar
a viagem de retorno à Inglaterra e expor seus achados para seus patrocinadores europeus. As fantasias mercantis da Associação adquiriram uma nova intensidade, “Pelas descobertas do Sr. Park,” regozijaram-se seus membros,
uma porta foi aberta para toda nação mercantil entrar e comerciar da extremidade ocidental à oriental da África. ... Com as devidas informações e empenhodo crédito e iniciativa britânicos, é difícil imaginar a extensão potencial a que pode chegar a demanda pelas manufaturas de nosso país, por parte de países vastos e populosos.”
O próprio Park assumiu o crédito pelos feitos geográficos e comerciais: “tornando a geografia da Africa mais
* familiar aos meus compatriotase ... abrindo à sua ambição * E indústria novas fontes de riqueza e novos canais de co-
mércio,”' Deus sabe que os novos canais eram necessários, asSim como um estímulo ao moral. As últimas décadas do século XVIII haviam sido um período difícil para o imperialismo europeu. A exploração do interior era bloqueada pela
doença em boa parte do mundo tropical e pela resistência
“— a Park, op. cit., p.ix. 12. Bovill, op. cit. p.á8. 13. Park. op. cit., p.107.
133
ciência e sentimento, 1750-1800,
, nticonquista II: a mística da reciprocidade
movimentos de independência estavam adquirindo impulso,
ns deles procurando apoio britânico e francês. Nos Ana resistência indígena ao poder colonial intensificava-se firmememente. Em 1781, um levante generalizado das populações indígenas andinas havia abalado profundamente as a o
E
Jes,
ites coloniais espanholas. Desde 1770, comunidades de es“cravos fugidos no Suriname haviam ameaçadoa estabilidade Ee a viabilidade da economia das plantations. Em 17/90, a revolta de escravos em Santo Domingo havia derrubado o po-
E colonial francês, criando um governo independente, não “branco, e todo o restante do Caribe ameaçava seguir a mes-
“ma via.” O choque de Santo Domingo foi grande a ponto de |paralisar o movimento abolicionista britânico — mas apenas
|temporariamente. O inexorável ímpeto do abolicionismo “permaneceu central para a sensação de crise, não apenas na
* Grà-Bretanha. Experimentos em estratégias imperiais alternativas produziram fracassos desanimadores, tais como as tentativas britânicas de colonizar Serra Leoa com ex-escravos. À * procura da passagem noroeste não estava alcançando resul“ tados, e era difícil ver alguma outra coisa proveitosa nas regiões polares. Como sempre, as potências coloniais euro-
* péias tinham seus tesouros dilapidados pelos conflitos que
Fig.12. Frontispício retratando a observação do Níger por Mungo |
* mantinham entre si, enquanto os bastiões eurocoloniais pas-
Park. Da edição de 1860 da obra de Park Viagens no Interno
* savam de mão em mão, posições seguras cujo valor (exceto
África.
* pelo tráfico de escravos), em muitos casos, continuava obscuro, assim como os interiores permaneciam desconhecidos. Entretanto, acima de tudo, o euroimperialismo enfren-
já indígena. O assassinato de Cook havia abalado a idílica fan-. tasia polinésia. No Caribe, seriam necessários vários milhares |
* lava umacrise de legitimidade. As histórias de tratados que-
de soldados britânicos para finalmente expulsar os índios ca.
brados, genocídios, deslocamentos em massa e escraviza-
ribenhos de suas terras em St. Vicent — terras estas que lhes. haviam sido outorgadas por tratado.” Os Estados Unidos, como se sabe, haviam obtido sua independência, e outros bastiões coloniais estabelecidos estavam sendo ameaçados| como raramente se vira até então. Na América espanhola, 05 |
ções tornaram-se cada vez menos aceitáveis na medida em E uma recente fonte em inglês sobre a revolta andina, veja-se Steven J. Stern (ed.) — Rebellion and Consciousness in the Andean Peasant :
MM 14. Sobre a morte de Cook, consulte-se Marshall Sahlins — Islands ofHISs tory, Chicago, Chicago U. P., 1985; sobre os caraíbas, veja-se Peter Hulme — Colonial Encounters, Cambridge U. P., 1987. 4
World, 18!P to 20!b Centuries, Madison, Wisconsin, Wisconsin U. P.,
1987; sobre os quilombos do Suriname, consulte-se Richard Price — FirstTime: The Historical Vision ofan Afro-American People, Baltimore, Johns
Hopkins U. P., 1983; sobre a revolução de Santo Domingo, consulte-se o
clássico de C. L. R. James — Black Jacobins: Toussaint L'Ouverture and the Santo Domingo Revolution, New York, Vintage, 1963.
135
ciência e sentimento, 1750-1800
que as ideologias racionalistas e humanitárias se firmavam Particularmente após a Revolução Francesa, as contradiçõ es entre ideologias domésticas igualitárias e democráticas, de
um lado, e, de outro, implacáveis estruturas de dominação | e extermínio no exterior tornaram-se mais agudas. Noen .
tanto, as demandas do capital persistiam. Acompanhando à expansão capitalista, a competição entre as nações euroim-
periais intensificar-se-ia continuamente. E, como sempre, s
ria sua própria competição, uns com os outros, que forç
as potências coloniais a encontrar novas formas para as i tervenções euroimperialistas e novas ideologias legitimiza. doras: missão civilizadora, racismo científico, e paradigmas | de progresso e desenvolvimento baseados em tecnologia.
Não por acaso, as exultações imperiais da Associação Africana em reação ao retorno de Mungo Park foram expressas em uma linguagem racista e numa imagem de re-mapeamento: “Assim como o grande continente da Áfri-
ca, em meio aos seus oceanos de areia, ocasionalmente.
expõe seus oásis ... assim também, em analogia com a face
do país, a mente simplória e torpe deseu povo apresenta í
ocasionalmente traços de inteligência e filantropia, ricos
pontos de gênio e cenas localizadas de desenvolvido esta- |
belecimento social.”'º Estas palavras insultuosas não che- 7 gam a fazer justiça ao impacto das viagens/ Viagens de
Park. Mesmo antes que seu livro aparecesse, a Associação
Africana sabia que tinha um sucesso em suas mãos. “Park
prossegue triunfalmente”, declarou o encarregado de supervisionar seus escritos. “Algumas das partes que me re-
meteu ultimamente se igualam às melhores já elaboradas
em língua inglesa.”7 A primeira edição de Travels in the Interior Districts ofAfrica (Viagens nos distritos interiores da África) surgiu em abril de 1799 e suas 1.500 cópias foram vendidas em um mês. Duas outras edições foram lançadas no mesmo ano; traduções francesa e alemã e uma edição americana vieram à luz em 1800. Park ganhou mil guinéus |
16. Bovill, op. cit., p.48. 17. Prefácio a Park, op. cit., pp.viii-ix.
136
anticonquista IE a mística da reciprocidade
índice da crescente pujança da indústria da literatura de
editado na forma de antologia, citado viagem. O livro foi e constantemente reeditado desde então. Suas cenas dra-
“máticas € estilo despretencioso se transformaram em pe-
ras de toque para Os escritores-viajantes europeus nas décadas seguin intes.
o
Ainda que invariavelmente lidas, como a “história i s e sem adornos” que Park afirmava ser, as Viagens “de sua autoria exemplificam ricamente a erupção do esti-
pimpie
e
do do
Ca
“Jo sentimental na narrativa européia sobre a zona de con“tato no final do século XVIII. Ou, de um ponto de vista
contrário, seu livro mostra algumas das formas pelas quais “a zona de contato foi recuperada pelo sentimentalismo europeu, numa época em que, como EEEs Hulme tão apre priadamente notou, “a simpatia sentimental européia co-
meçou a fluir ao longo das artérias do comércio europeu,
à procura de suas vítimas.”* Nas páginas seguintes, pretendo enfocar o texto de Park em maior detalhe como um
exemplo do relato de viagem sentimental na fronteira imperial. Minha leitura irá salientar pontos de contraste em
relação ao relato de viagem científica, tal como discutida no capítulo anterior. O objetivo é o de sugerir como o sen-
timentalismo tanto desafia quanto complementa a autori-
dade emergente da ciência objetivista. Passo, então, a outros exemplos do estilo sentimental, especialmente os debates sobre a escravidão, numa tentativa de inserir o rela-
to de viagem sentimental no contexto das crises do euroimperialismo em fins do século XVII.
O anti-herói experiencial Ainda que certamente pudesse tê-lo feito, Mungo Park
não escreveu uma narrativa de descoberta, observação ou de
Coleta geográfica, mas sim uma narrativa de experiência pessoal € aventura. Ele escreveu, e descreveu a si mesmo, não como
É [ Hulme, op. cit., p.229.
137
ciência e sentimento, 1750-1800
nticonquista Il: a mística da reciprocidade
homem de ciência, mas como herói sentimental. Ele se fez o protagonista e figura central de seu próprio relato, que toma.
forma de uma série épica de dificuldades, desafios e encontros
que as
com o imprevisível. Park abre seu caminho pelo interior da ca ocidental de cidade em cidade, de povoado em povoado.
vezes para baixo) da escala social, de encontros palacianos com
príncipes a cenas de indigência onde pede comida para escravos. Ele atravessa o ermo do deserto, enfrentando as vicissitudes da sede, as feras e os bandoleiros. A passagem seguinte. exemplifica o dia-a-dia na narrativa do livro de Parker: Na manhã seguinte (10 de março) partimos para Samamingkoos.
Na estrada alcançamos uma mulher e dois meninos, com um: q
asno; ela nos informou que estava indo para Bambarra, mas ti
nha sido parada no caminho por um grupo de mouros, que ha
viam tomado a maior parte de suas roupas e algum ouro; disse-|
nos ainda queela tinha necessidade de voltar para Deenaaté que.
a lua do jejum acabasse. Naquela mesma noite à lua nova surgiu,
o que prenunciava o mês do Ramadã. Grandes fogueiras foram
feitas em diferentes locais da cidade, e uma quantidade de pro-
4
11 de Março — Ao amanhecer, os mouros estavam preparados; ]
contudo, como sofri muito no caminho devido à sede, fiz com | que meu jovem ajudante enchesse um cantil de água para meu á próprio uso; pois os mouros me asseguraram que eles não provariam nem carne, nem líquido até o pôr do sol. Entretanto, pos- — teriormente percebi que o excessivo calor do sol e a poeira levantada ao longo da jornada superaram seus escrúpulos, e torna-
ram meu cantil uma parte muito útil de nossa bagagem.”
O espaço/tempo textual correspondente ao espaço/tempo da viagem é preenchido (ou constituído) por ati- — vidade humana, interações entre os próprios viajantes ou |
com as pessoas que eles encontram. A pausa para falar
com a mulher e os dois meninos é recriada textualmente por uma pausa para reproduzir a sua história que, em si
pessoas fazem lá. Não há qualquer descrição da
em paisagem. A natureza está presente apenas na medida
negociando seu salvo-conduto com um potentado após outro, trocando miçangas por alimento e proteção. Ele também se move verticalmente, para cima e para baixo (na maior parte das.
visões maior do que a usual ornou a ocasião.
esma, constitui um drama humano. Paradas noturnas são “caracteriza das não pelo lugar em que acontecem, mas pelo
Rae atua sobre o mundo social: a lua cheia inaugura o
madã; a poeira e o sol fazem com que todos tenham ee Do ponto de vista gramatical, os agentes humanos abun-
no texto de Park, e há uma predominância de cons“dam ! truções verbais ativas , ainda que as passivas também ocorram. O mundo natural se relaciona ativamente com as pessoas: a lua inaugurou O Ramada; a poeira superou Os escrúpulos das pessoas e iornou útil o cantil O contraste com o relato de viagem científico e infor-
“ mativo, discutido no último capítulo, não poderia ser mais
esquemático. O livro de Parker surgiu, por exemplo, menos de dois anos após o lançamento das Viagens de John Barrow. * Como foi discutido anteriormente, o espaço/tempo da via-
* gem, no relato de Barrow, é apresentado basicamente pela
expressão lingúística “face do país”, tal como vista pelos agentes cuja presença é eliminada pela linguagem do texto. As interações sociais dentro do grupo de Barrow e entre este grupo e os habitantes locais não são dramatizadas, e quando muito são mostradas tangencialmente. Com o propósito de comparação, reconsideremos a passagem de Barrow, citada
na página 110 e, para maior conveniência, condensada aqui:
O dia seguinte, atravessamos o rio Great Fish, ainda quenão sem alguma dificuldade, posto que as ribanceiras eram altas e íngremes,
a corrente, forte, o leito, rochoso e as águas, fundas. Algumas belas
árvores, salgueiros-da-babilônia, ou uma variedade daquela espécie, ladeavam o rio nesta área. O lado oposto apresentava um lindo
campo, com muitas matas e cursos d'água ... A primeira noite que acampamos na região dos kaffir estávamos próximos a um córrego
chamado Kowsha, que deságua no rio Great Fish. No dia seguinte passamos pelas vilas de Malloo e Tooley, os dois chefes e irmãos que havíamos visto em Zuure Veldt, vilas estas encantadoramente situadas sobre duas elevações que se destacam do riacho citado.
Notexto de Barrow, conforme se poderia esperar, os
Verbos declarativos e construções intransitivas são numero19. Park, op. cit. p.107.
138
SOs: as margens são altas, os povoados são localizados, ob-
139
anticonquista H: a mística da reciprocidade
ciência e sentimento, 1750-1800
jetos estão próximos a outros objetos, as margens apresenta-.
vam matas e cursos de água, elevações se destacam e cuia sos d'água caem. Construções ativas não expressam ações, |
mas espetáculos sem movimento: as árvores margeiam o rio, a ribanceira apresenta um lindo campo, Ao aliar-se às práticas científicas/burocráticas do objetivismo,a autoridade !
do discurso de Barrow reside no distanciamento daquilo
que é dito da subjetividade tanto do locutor quanto do experienciador. Com Park, ocorre o oposto. O relato sentimental se baseia explicitamente naquilo que está sendo ex l presso na experiência sensorial, juízo, agência ou desejos. dos sujeitos humanos. A autoridade reside na autenticidade y da experiência sentida por alguém. Os predicados tendem . a ser ligados a observadores bem localizados, freguente-. mente por meio de verbos experienciais ou processos mentais: os mouros asseguraram a Park que tinham a intenção.
de jejuar, mas ele concluiu, com base na experiência, que |
eles não o fizeram.
Em relação à base dêictica do discurso, o pronome |
“eu” é evidentemente o elemento que mais claramente mar. ca a linha de complementaridade entre ciência e sentimento. Considere-se, por exemplo, a maneira como Park descre- . ve um dia de sede severa. Ela pode ser comparada à narra- . ção de Barrow do incêndio na selva, tal comofoi citado na — nota 37 do capítulo anterior (os itálicos são meus): (Dois meninos) mostraram-meseus cantis de pele vazios e medis- . seram que não haviam visto água nas matas. Este relato não me ! proporcionou qualquer consolo; todavia era inútil lamentar, e eu segui adiante tanto quanto possível, na esperança de alcançar al- : gumlugar com água ao longo da noite. Minha sede tornou-se en-
tão insuportável, minha boca rachou e inflamou-se; uma repenti-
'
na escuridão frequentemente caía sobre meus olhos, juntamente à — outros sintomas de desmaio; e, dado que meu cavalo se encontra-
va extremamente fatigado, comecei seriamente a temer que eufos- |
se morrer de sede. Para aliviar o doloroso ardor em minha boca & sarganta, masquei algumas folhas de diferentes arbustos, mas conclui que todos eram amargos e foram de nenhuma utilidade.”
20. Ibid., p.160.
É difícil imaginar um locutor mais suscetível e uma
autodramatização maior. As esperanças e medos do próprio park e sua própria experiência corporal constituem os even-
“tos € registram sua significância. A linguagem das emoções consolo, lamentar, esperanças, insuportável — atribui valor “—
aos eventos. À informação é textualmente relevante (tem va“Jor na medida em que se apóia sobre o viajante-locutor e a inforsua procura. Na narrativa científica, por contraste, * mação é relevante (tem valor) na medida em que se liga a
metas e sistemas de conhecimento institucionalizados exterde nos ao texto. Nas Viagens de Park, a cena que gerações
“ Jeitores acharam ser de longe a mais memorável, é uma em que o discurso da ciência é absorvido no narcisismo do discurso sentimental. A cena, que ornava a página título da edi-
ção de 1860 das Viagens de Park (veja-se fig. 13), apresen-
ta seu momento de crise mais profundo, quando pilhado
por bandidos em território hostil, ele é abandonado à morte no deserto. Encontrando-se “nu e sozinho, rodeado porani-
mais selvagens e homens ainda mais selvagens,” Park con-
fessa que “minhas forças começaram a me abandonar”. Ele
é salvo pela epifania de um naturalista:
Neste momento, por dolorosas que fossem minhas reflexões, a beleza extraordinária de um pequeno musgo em fertilização, capturou irresistivelmente o meu olhar. Menciono isto para mostrar
como a mente algumas vezes extrai consolo de circunstâncias in-
significantes; pois ainda que a planta toda não fosse maior do que a ponta de um de meus dedos, não pude contemplar a delicada conformação de suas raízes, folhas e cápsula sem admiração. Poderia aquele Ser (pensei eu) que plantou, regou e levou à perfeição, nesta obscura parte do mundo, algo que parece terimportância tão diminuta, observar sem preocupação a situação e sofrimentos de criaturasfeitas à sua própria imagem?- certamente não!
O homem de sensibilidade, na hora da provação, vê bor meio da linguagem da ciência e encontra o alternativo
entendimento espiritual da natureza como imagem do divi21. Ibid., p.225. 141
no. Se a invasão do acampamento bosquímano por John
Barrow provocou uma quebra no discurso científico, o emocionante esforço pessoal de Park aqui é um triunfo da lin-
guagem do sentimento e de seu protagonista, o indivíduo.
Se, como sugeri mais acima, o proprietário rural, produtor de informação e auto-eclipsado, está associado
aos aparatos panorâmicos da burocracia estatal, este sujei-
to sentimental e experiencial habita aquele autodefinido
“outro” setor do mundo burguês, a esfera privada — lar do desejo, sexo, espiritualidade e do Individual. Sobrea fron-
teira imperial, se o primeiro incorpora ambições territoriais
anticonquista TE: a mística da reciprocidade
quERA
ciência e sentimento, 1750-1800 .
TRAVELS
THE INTERIOR OF AFRICA BY MUNGO PARK. E
originárias do Estado, o último, como pretendo mostrar,
congrega os ideais não da domesticidade, mas do comércio e da iniciativa privada. Sob muitos aspectos, os dois
discursos não poderiam ser mais diferentes — mas evidentemente esta é exatamente a questão. Os dois não pode-
riam ser mais diferentes porque são em larga medida definidos um em termos do outro; são complementares, e, em
sua complementaridade, balizam os parâmetros da hege-
monia burguesa emergente. Na fronteira imperial, o sujeito sentimental partilha de certas características cruciais com seu correspondente científico: evidentemente, o caráter europeu, masculino e de classe-média; mas, também, a inocência e a passividade. Ele, da mesma forma, é o nãoherói de uma anticonquista. Como procurarei mostrar por meio da leitura do livro de Park, o expansionismo europeu + é tão esterilizado e mistificado na literatura sentimental
quanto no modelo científico/informacional. Ainda que es-
teja posicionado no centro de um campo discursivo e não tanto na periferia, e ainda que seja composto por um cor-
Po integral e não tanto por um olho desencarnado, o pro-
tagonista sentimental é igualmente construído como uma
presença européia não intervencionista. Os eventos acon-
tecem para ele, que os suporta e sobrevive. Enquanto
construção textual, sua inocência repousa menos na auto-
eliminação do que na submissão e vulnerabilidade, ou na
exposição da auto-obliteração. Mungo Park descreve assim mesmo como um receptor, não como um iniciador, tão destituído de desejos quanto seu equivalente científico. 142
EDINBURGH: ADAM AND CHARLES BLACK, NORTH BRIDGE. MDCCCLK.
JLE Fig.13. Página título, da edição de 1860 das Viagens de Park, ilustrada pela famosa cena na qual Park se desespera após perder tudo para ladrões.
FE
ciência e sentimento, 1750-1800.
o
a mística da reciprocidade Alguns dos momentos mais dramáticos na muito dra. mática narrativa de viagem de Mungo Park são as cenas d
chegada que pontuam sua narrativa em intervalos particu: larmente numerosos. Como argumentei em outros textos,
as cenas de chegada são uma convenção de quase todos os
tipos de relatos de viagem, e constituem momentos pe
liarmente potentes para a identificação das relações de con
tato e o estabelecimento dos termos de sua representaçã No exemplo seguinte, Park narra sua chegada a uma ci de à noite, à procura de comida e alojamento:
Aconteceu deste ser um dia de festejos em Dalli, e o povo es-:
tava dançando na frente da casa do Dooty. Mas quando ouvi ram que um homem branco havia entrado na cidade, eles dei xaram a dança e vieram até o lugar em que eu estava hospedado, andando em ordem regular, dois a dois, com a música os precedendo. ... Eles continuaram a dançar e cantar até a meia
anticonquista II: a mística da reciprocidade
ele e os habitantes da aldeia, não um vácuo ou um abismo.
“A comparação com as Viagens de Barrow é novamente instiva. Barrow narra uma cena de chegada semelhante:
Uma grande multidão de pessoas dos mais diversos tipos afluiu de todos os lados e nos seguiram ao longo da estrada. Como o tem-
po estava quente, os homens puseram de lado suas túnicas € es-
tavam completamente nus. Mas as mulheres mantiveram as suas, feitas de pele de bezerro, e seu esforço para satisfazer a curiosida-
de suscitada pelo aparecimento dos estranhos parecia acarretarlhes grande incômodo *
Mesmo que as metáforas sejam as mesmas, na versão
“de Barrow os europeus e os africanos (e homens e mulheres)
* permanecem em esferas separadas e não interativas, cada uma delas responsável por suas próprias vontades, intenções
* e ações. Os aldeões incomodam, instigam e satisfazem a si
“mesmos. Os viajantes europeus, pode-se supor, passam e “vêem: nada faz com que se sentem imóveis e sejam vistos.
* Naversão de Park, por outro lado, os dois lados determinam
noite, e durante este tempo fui rodeado por uma tal multidão . que tive de permanecer sentado imóvel para satisfazer sua curiosidade.>
as ações e vontades do outro. Park senta-se imóvel pela “ne-
A estrutura deste episódio poderia ser descrita como.
“troca, eles lhe dão abrigo e o alimentam. Enquanto representação, a cena é governada pela reciprocidade.
uma apropriação mútua. A chegada de Park interrompe o ritual local que, então, se reconstitui em torno dele. Ele se.
apropria e é simultaneamente apropriado pelo ritual, levado |
a desempenhar um papel para satisfazer a curiosidade do 4
povo, em troca de satisfazer a sua própria. Contudo, seu pa-
pel é passivo, posto que sua própria ação e vontade têm pe- ; queno relevo. Ele não prevê eclipses, não cura doentes, não apresenta truques com baralho e nem se transforma no ho- mem que queria ser rei. Isto não é conquista, mas anticonquista. Não obstante, existe uma relação “necessária” entre 22. M. L. Prau, “Fieldwork in CommonPlaces”, in James Clifford e Geor-
ge Marcus (eds.) — Writing Culture, Berkeley, California U. P., 1987. 23. Park, op. cit. pp.104-5. Esta faz lembrar o retrato de Timbuktu por Leão, o africano, que a descreveu como sendo habitada por “um povo
de disposição gentil e alegre, que expendia uma grande parte da noite cantando e dançando pelas ruas.”
cessidade” de satisfazer a curiosidade dos habitantes e, em
Reciprocidade, assim sustento, é a dinâmica que, acima de tudo, organiza a narrativa interativa de Park, centrada no humano. Ela está presente, por vezes, como uma realida-
de adquirida, mas sempre como um objeto de desejo, um valor. Nos encontros humanos cuja sequência constitui a narrativa de Park, o que estabelece o drama e a tensão é quase
que invariavelmente o desejo de se atingir a reciprocidade, de se alcançar o equilíbrio por meio da troca. Os encontros
com os dirigentes locais, que formam os elementos básicos
de constituição da narrativa, são antes de mais nada, nego-
Ciações nas quais Park procura assegurar sua sobrevivência
E John Barrow — An Account of Travels into the Interior of Southern Africa in the years 1797 and 1798, London, Cadell and Davies, 1801, re-
edição, New York, Johnson Reprint Corporation, 1968, p.192.
145
ciência e sentimento, 1750-1800
e salvo-conduto em troca da oferta de bens europeus. Eles.
são um confronto para encontrar um equilíbrio entre a fini tude dos bens de Park e o grau de ganância praticada por
seus anfitriões. Mesmo quando a pilhagem e o roubo redu-
anticonquista KH: a mística da reciprocidade
“to seja observada (pelo leitor ou pelos africanos). Ele de fato “ comercia, mas nunca por lucro. Inúmeras vezes o leitor vê
mercadorias européias propiciando trocas simbólicas e sub-
“sistência. Na melhor das hipóteses, Park acaba ficando com
ziram Park à indigência e à mendicância, encontramo-o in-variavelmente esforçando-se para retribuir. Quando, por ca-. ridade, é alojado por uma escrava, ele presenteia sua “com-.
* que tudo isto. A epifania suscitada pelo musgo fértil é um
escravo que lhe pede comida, o indigente Park responde.
“definido pelas mercadorias européias. Ele se tornou aquela criatura em cuja viabilidade e autenticidade seus leitores
padecida hospedeira” com “dois dos quatro botões de bronze que sobraram em meu colete, a única recompensa que eu. poderia lhe dar.”> Em outra circunstância reveladora, a um
que não tem nenhuma para dar. O homem replica, “Deite
Mais importante, talvez: ele se prova, ao final, maior
momento transcendente não porque Park tenha sobrevivido, mas porque ele finalmente perde tudo. Ele não é mais
provisões quando estavas faminto. Esqueceste-te do homem -
podem se guiar para acreditar: o despojado, essencial e inerentemente poderoso homem branco.
nheci”, escreve Park, “e mendiguei alguns amendoins de| Karfa para dar-lhe como recompensa por sua gentileza ante-
visão recíproca
que te trouxe leite em Karankalla?”” "Imediatamente o reco-
rior”.* Finalmente, sem mais nenhum botão sobrando, Park |
entrega seu próprio corpo numa negociação com o objetivo .
de completar sua jornada. Desesperado, encontra um merca-
dor de escravos que se dirige para a costa e lhe promete “o| valor de um escravo de qualidade” a ser pago quando ele fosse entregue a seus contatos britânicos naquela região. As lutas diárias de Park, então, consistem principal.
mente de tentativas de alcançar a reciprocidade entre ele e os outros, ou de suportar sua ausência. É neste ponto, acre-. dito, que seu relato expressa a expansão comercial em cujo +
nome ele viajou e escreveu. Enquanto na narrativa de.
Barrow as aspirações territoriais e colonizadoras do euroimperialismo são idealizadas na face despovoada do país, na de Park as aspirações comerciais expansionistas são ideali- À
zadas num drama de reciprocidade. Negociando seu trajeto
através da África, Park é o protótipo do empresário. No entanto, o momento decididamente não recíproco do capita-
lismo europeu dificilmente poderia ser identificado nesta fi. gura solitária e muito sofrida, independentemente de quan- | |
nada mais que sua vida — e sua inocência.
No relato de Park, centralizado no sujeito, as mercadorias não são a única base de troca. Em contraste com o relato de viagem científico, o próprio observar se baliza, em seu texto, conforme os parâmetros de reciprocidade. Como a cena de chegada citada acima sugere, em contrapartida por sua observação da África e dos africanos, Park seguida-
mente se retrata como objeto de análise destes últimos. Numa inversão com tons de paródia, a valise de Park se transforma num gabinete de curiosidades para seus “compa-
nheiros de viagem”africanos, enquanto seu corpo é avalia-
do simultaneamente como um panorama e um espécime zoológico:
Os espectadores à volta, e especialmente as senhoras, eram bem
mais inquisitivos; eles me faziam milhares de perguntas, inspecionavam cada item do meu vestuário, mexiam em meus bolsos e me
obrigaram a abrir o meu colete e mostrar a brancura de minha
pele; eles até mesmo contaram meus dedos, das mãos e pés, como
se duvidassem que eu fosse verdadeiramente um ser humano.”
25. Park, op. cit., p.180.
26. Ibid., p.234. 146
147
Como esta passagem sugere, o exame recíproco é or
ganizado conforme parâmetros de gênero, e determinado por aquela grande obsessão sentimental: o erótico transra.
cial. Enquanto os homensafricanos são os principais objetos
do próprio olhar de Park, as mulheres africanas são os agen-
tes especiais para a visão de Park. A cena descrita acima tem:
início com a apresentação de Park ao déspota Ali, que o está
olhando através de um espelho sustentado por uma acom-.
CE
—
e
E
panhante. Ali perde o interesse em Park quando perceb; que ele não sabe nada de árabe; Park torna-se, então, objeto do olhar feminino, cujo voyeurismo agressivo o feminiza. “a no processo — uma outra anticonquista.
Frequentemente, este escrutínio feminino é o preço. que Park paga por comida. Numa corte mandingo, ele é en tregue para inspeção a todo o serralho do rei, situação ey
que o imperativo de reciprocidade se impõe de forma cô-
mico-erótica. As mulheres zombam de Park, sustentando. que a brancura de sua pele e a “proeminência de (seu) na: riz” são artificiais. “De minha parte”, diz ele, “sem questio-
nar minha própria deformidade, prestei muitos elogios à be
DRO
leza africana.”* Noutra ocasião, uma crise se forma quando|
um grupo de mulheres visita Park com o objetivo de “estabelecer, por inspeção efetiva, se o rito da circuncisão é es-.
tendido aos nazarenos.” Park se livra da averiguação pela | E insistência numa forma de reciprocidade: Fiz-lhes ver que, em meu país, não era costumeiro oferecer de- — monstração ocular em tais casos, ante tantas belas mulheres; mas |
se todas se retirassem, com a exceção da jovem senhora a quem | indiquei (selecionando a mais jovem e graciosa), eu satisfaria à |
curiosidade dela. As senhoras gostaram da brincadeira, e partiram |
rindo animadamente; quanto à jovem dama,... enviou-me algu- — ma comida e leite para minha ceia.”
Cenas de serralho como esta, devem muito às conven-
ções da escrita orientalista que floresceu na Europa ao lonF 28. Ibid., p.49.
29. Ibid., p.119.
148
; jticonquista H: a mística da reciprocidade
E do século XVIII. Como nas afamadas Cartas Persas de
ontesquieu, muito da comédia repousa na inversão paró-
dica das relações de poder e normas culturais eurocentradas, especialmente normas sobre ver e ser visto. Entretanto, nesem primeiro lugar, para voltado, te ponto meu interesse está E z de forma como Park usa da o interativ armente particul caráter o discurso é utimesmo o “este discurso; e, em segundo, como . uistador anticonq de posição sua r lizado para confirma
E
ciência e sentimento, 1750-1800
O imperativo de reciprocidade se estende também ao
“conhecimento e à cultura. Repetidas vezes, Park dedica-se a
“retratar as reações dos africanos em relação a ele, da mes-
ma forma que as suas diante deles, e estabelecer a comen-
“surabilidade das formas de vida européia e africana, não
“obstante suas diferenças. Seu relato incluí muitas situações
“nas quais as duas estão muito deliberadamente justapostas ao que se poderia chamar de “visão recíproca”.” Numa oca-
sião, por exemplo, a perícia médica de Park é requisitada e “ele propõe uma amputação para salvar um jovem que ha“via sido ferido por um tiro na perna. Os africanos respon-
dem com horror. “Eles evidentemente consideraram-me uma espécie de canibal por propor uma operação tão cruel e desconhecida, que a seu ver acarretaria mais dor e perigos do que o próprio ferimento.”As práticas medicinais indígenas são seguidas e o paciente é levado à morte. Park não explicita qualquer crítica à decisão de se rejeitar a cura
européia, e também não procura contraditá-la com algum
comentário próprio. Ao invés disso, o leitor é capaz de acei-
tar que a perspectiva africana no tocante à amputação é tão plausível quanto a convicção de Park de que, sem ela, o paCiente morreria. Não é fortuito que este confronto ideológico se dê em
torno daquele que haveria de constituir (e ainda é) um dos
instrumentos mais efetivos do euroexpansionismo — a medi-
Emne 30. Devo esta expressão ao meucolega Martin Evans, que a utiliza para falar do diálogo entre os Estados Unidos e a Europa. Cf. seu America: The View from Europe, Stanford Alumni Association, 1976.
31. Park, op. cit., p.91.
149
ciência e sentimento, 1750-1800.
cina ocidental. Numa época em que a medicina estava se re. velando como um dos principais pontos de poder da Europa|
— especialmente em relação ao mundo islâmico, cujos diri-
gentes frequentemente requisitavam médicos europeus para tratá-los -, Park sugere uma postura agnóstica sobre o assun-
to. Seu fracasso em estabelecer a superioridade da medicina |
européia sobre a “superstição” africana assume claramente| nesse contexto implicações igualitárias, desafiando um lugar- j comum da ideologia imperialista. Outros exemplos doenfo-
que de reciprocidade produzem o mesmo efeito. Numa oca-
sião, por exemplo, escravos que se dirigiam para a costa, . confidenciam a Park sua crença de que serão vendidos para
serem comiídos. Eles rejeitam a explicação de Park de que es- | tão sendo enviados para o trabalho agrícola. Ao invés de r- . dicularizar ou rejeitar a visão deles, Park respeita sua plausi- |
bilidade, apenas observando que esta crença “naturalmente |
faz com que o escravo contemple com grande terror umajor- — nada em direção à costa.”* A questão de se a escravidão é |
equivalente ao canibalismo ainda está em aberto. Algumas |
vezes Park constrói analogias para fazer com que práticas |
africanas tenham sentido em termosingleses. Para explicar a — propensão dos mandingos a expoliá-lo de seus bens, por |
exemplo, ele inverte as polaridades raciais e geográficas: “Suponhamos que um comerciante negro do Hindustão tenha |
chegado ao centro da Inglaterra, com uma caixa de jóias em À suas costas, e que as leis do reino não o protejam...» Uma incongruência repetidamente tratada por Parker | por meio da perspectiva de reciprocidade é a da sua própria | presença na África, um tema sobre o qual os africanos com fre- —
quência o questionam. Quando foi dito a um rei “que eu ha- —
via vindo de grande distância e enfrentado grandes perigos para contemplar o rio Joliba, ele perguntou se não havia rios em meu próprio país e se um rio não é igual a outro.”* Outro monarca, ao ouvir o relato de Park sobre si mesmo, não pare-
Aanticonquista I: a mística da reciprocidade
“ceu mais que “meiosatisfeito”. “A idéia de viajar porcuriosida“de era nova para ele,” diz Park. “Pensou ser impossível, disse, que qualquer homem em seu juízo perfeito empreendesse “uma jornada tão perigosa apenas para observar umpaís e seus | habitantes.” Numa certa leitura, estes perplexos interlocutores africanos colocam em questão O princípio estruturador básico
da anticonquista: a alegação de busca inocente de conheci-
“ mento. Em outra leitura, eles reforçam a anticonquista de Park:
"os africanos,afinal, não o consideram ameaçador, apenastolo.
No episódio citado acima, Park restabelece a inocência de seu
olhar observador, oferecendo ao rei “meio satisfeito” um obje-
to de observação, ou antes, um não-objeto de observação. Para
— provar que não pretende intervir no comércio local, ele mos“tra ao rei os parcos conteúdos de sua valise. “Ele ficou convencido; e ficou evidente que sua suspeição havia nascido da * crença de que todo homem branco era necessariamente um
comerciante.” Park e seu leitor sabem, evidentemente, que o
rei não está assim tão errado. Park recupera sua inocência ao
custo de expor, através da “errônea” impressão do rei africano, a inevitável má fé do imperialista. A perspectiva de reciprocidade de Park e sua forma de apresentar as contradições da ideologia euroexpansionista, certamente, contribuíram para a impressão de verossimi-
lhança e confiabilidade produzida nas várias gerações de leitores de seu livro. Ao longo do século XIX, críticos de
cada nova edição louvavam a humildade e verossimilhança
de Park.” O encanto durou. O eminente africanista contemporâneo, Philip Curtin, segue avaliação semelhante: “Ele (Park) simplesmente contou aquilo que havia visto, sem arTogância, sem parcialidade e (dado que não era um erudi-
to) sem interpretação.”” Ainda que a ingenuidade possa 36. C£., por exemplo, Prefácio, ibid., pp.viii-ix,
37. Philip Curtin — The Image ofAfrica, Madison, Wisconsin U. P., vol II,
|
32. Ibid., p.291.
33. Ibid., p.240. 34. Ibid., p.182.
150
P.207, Seguindo trilha semelhante, Christopher Lloyd qualifica Park não “como o tipo de homem capaz de adicionar colorido romântico a suas aventuras, dado que era, por temperamento, incapaz de preencher sua
narrativa com descrições verborrágicas” (op. cit., p.47).
151
ciência e sentimento, 1750-1809
«conquista IE a mística da reciprocidade
estar mal colocada, a admiração não está. Em comparação
sie o. : . com muití ssimos outros viajan tes, especialmente alguns dos
sa]
"Jesse relaciona com o outro, da mesma forma que com um simples proprietário
vitorianos que o sucederam, Park apresenta mundos Plaust
de mercadorias, e trocam equivalente por equi-
veis de ação e experiência africanas. Sua abordagem relaci
valente. Propriedade porque cada um dispõe apenas do que é
nal da cultura sugere possibilidades genuínas de autocrític Ao mesmo tempo,ainda que sejam relativizadas, ou mesm .
sy EiBenifiam porque cada um SIEape bei a a Fagen força, queo 68 porta sm a eo eiaia iadlivicigal, o outroA éjúnica, o egoísmo, ganho e interesse
parodiadas, as ideologias européias não são jamais direta-
p
Cada um cuida apenas de si mesmo e ninguém se preocupa com
mente criticadas. O livro de Park deve muito de seu poder
os demais. E RR er re iapd
sa eseabinação de Rihanisima, igualiaramo E relativial mo crítico, ancorados firmemente na convicção da autenti-
cidade, poder e legitimidade europeus.
contrato é o resultado final em que sua vontade conjunta encon-
ã final comum. Igualdade porque cada um detrará- uma expressão ç
Dadcialei, eles todos india juntos para seu prooa comum, prosperidade comum, e interesse comum.”
H
A reciprocidade tem sido sempre a ideologia do capi.
Estes são os conceitos, diz Marx, que suprem o “livrecomerciante vulgaris” com “suas idéias, seus conceitos e * padrões, pelos quais julga a sociedade de capital e trabalho “assalariado”. Em vários aspectos, esta é a utopia que vemos * Park tentando criar aonde quer que vá na África. Os obstáculos à utopia não são, é claro, europeus, mas africanos. A
talismo sobre si mesmo. Em seu instigante estudo daliteratura sentimental na fronteira colonial, Peter Hulme demons:
tra este ponto, fazendo uso da clássica análise da reciprocidade por Marcel Mauss em Essai sur le don. Mauss argu:
menta que, em sociedades sem Estado, não capitalistas, a
reciprocidade funciona como base dainteração social, mes-. mo em formações radicalmente hierarquizadas, comoo fe
“ganância africana, o banditismo africano e o tráfico africa“no de escravos ameaçam a mística da reciprocidade a todo “momento — e eles são os únicos pontos em que Park não
dalismo. Nas palavras de Hulme, “somente sob as relaçõ
sociais fetichizadas do capitalismo é que a reciprocidade desaparece completamente, ainda que sua presença seja trom-
retribui. Ele preferiria morrer a roubar. Poderiam também “Os africanos se tornar assim tão bons? Ao longo de sua “anticonquista, Park abraça os valores subjacentes à maior não-troca não recíproca de todos os tempos: a Missão Civi-
beteada em altos brados.”* Ao mesmo tempo em que elimi- | na a reciprocidade como base da interação social, o capita lismo a retém comolastro de umadas histórias que ele mes-.
* lizadora.
mo conta sobre si. A diferença entre troca igual e desigual | é suprimida. Marx apresenta este ponto de forma um pouco.
]
mais abrangente numa famosa passagem de O Capital
Graças à malária, febre amarela e disenteria, a exploTação do rio Níger, nas cinco décadas seguintes, foi esporá-
| dica até que o Dr. William Baikie decidiu testar a eficácia do * Quinino contra as febres mortais que haviam ceifado todos * 95 sonhos de expansão naquela área. Como fenômenolite-
A. esfera de circulação ou troca de mercadorias, dentro de cujas —
fronteiras a compra e venda da força de trabalho se processa, é .
fário, o esforço do Níger foi, contudo, um sucesso. Ele produziu uma literatura de exploração pujante e amplamente
de fato um verdadeiro paraíso para os direitos inatos do homem. + É o reino exclusivo da liberdade, igualdade, propriedade e de |
Bentham. Liberdade porque tanto o comprador quanto o vendedor de uma mercadoria, digamos, a força de trabalho, estão de- j
lida, muito da qual escrito conforme o modelo vivaz estabe-
terminados apenas por seu livre-arbítrio. Eles estabelecem um
contrato como pessoas livres, que são iguais perante a lei. Seu 38. Hulme, op. cit. p.147.
152
E
39. Karl Marx — Capital (1867), tradução americana de Ben Fowkes, New York, Vintage, 1976, (ed. bras.: O Capital, São Paulo, Difel, 1985], vol. L, P.280. Para uma discussão crítica desta passagem, consulte-se Don L. Do"ham — History, Power, Ideology, Cambridge U. P., 1990, pp.198 e ss.
153
ciência e sentimento, 1750-18 0
lecido pelas Viagens de Park. As linhas da trama sentim
capítulo 5
sivas expedições para o Níger; e o solitário protagonista eu-
eros abolição
tal, da má sorte e vitimização provaram-se muito aprop das para a expressão dos sofrimentos e fracassos das suces.
ropeu revelou-se de fato o único capaz de sobreviver na região. Incapaz de honrar seu próprio precedente, Mungo
Park perdeu a vida em 1806 quando retornou ao Níger à
frente de uma grande e altamente militarizada expedição foi absorvida pela Royal Geographical Society (Socieda
Geográfica Real) em 1831.
Sentimentalidade e sensibilité começaram a se firmar
To relato de viagem mais ou menos ao mesmo tempo que
“a ciência, a partir da década de 1760. Quando as Viagens de M ungo Park apareceram, em 1799, encontraram leitores já
“afeitos às dramatizações sentimentais da zona de contato, muitas das quais geradas pelo movimento abolicionista. É Sexo e escravidão são os grandes temas dessa literatura. Ou,
“talvez, um único grande tema, pois os dois aparecem inva*riavelmente unidos nas narrativas alegóricas que invocam o
* amor conjugal como uma alternativa à escravização e à do“ minação colonial, ou como versão recém-legitimada destas. E. O ralato de viagem sentimental baseou-se, assim
* como o relato de Park, em tradições mais antigas daquilo “que tenho chamado literatura de sobrevivência — histórias “em primeira pessoa retratando naufrágios, náufragos, motins, abandonos e (especialmente na versão terrestre) cati-
* Veiros. Popular desde a primeira onda expansionista européia em fins do século XV, esta literatura continuou a flores-
cer em seu prórpio rumo no século XVIII, mantendo-se até
hoje. Embora seu sensacionalismo de baixo nível tenha ex--
Perimentado a oposição das formas burguesas de autorida-
de que venho analisando neste livro, a literatura popular de
sobrevivência beneficiou-se do fortalecimento da cultura impressa de massa. Os sobreviventes que retornavam de Naufrágios ou cativeiros, podiam financiar o reinício de sua
Vida normal, escrevendo suas histórias para vendê-las em
Panfletos ou coleções baratos. Em 1759, por exemplo, o
Monthly Review anunciava a publicação de uma quarta edição, “com consideráveis acréscimos”, de French and Indian
154
155
EPP =
que partiu com alvoroço e desapareceu até o último h
mem. A Associação Africana, reduzida a catorze membr
ciência e sentimento, 1750-1800.
Cruelty: Exemplified in the Life, and Various Vicissitudes of Fortune, of Peter Williamson (Crueldade francesa e índia:
exemplificada na vida e nas várias vicissitudes da fortuna.
de Peter Williamson), na qual se promete ao leitor relatos do: rapto de Williamson quandocriança, e de sua vida como es. cravo, lavrador, prisioneiro de índios e soldado voluntário. . assim como do “Escalpelar, do Incendiar e outras Barbarida- .
des”, tudo por um xelim. Acrescenta o Monthly Review.
“Imaginamos que a história de Peter Wiliamson seja, em ge-.
ral, expressão dos fatos com uns poucos ornamentos per- |
doáveis acrescentados pela mão de algum amigo literário. Ela é impressa em benefício de seu desafortunado autor.” |
A literatura de sobrevivência já tinha desenvolvido os temas do sexo e escravidão que tão intensamente engajariam | autores sentimentais no fim do século XVIII. Muitos foram. prisioneiros e náufragos que sobreviveram apenas por terem. se tornado escravos de pagãose infiéis. (Os governos euro— peus do século XVIII ainda possuíam — e precisavam — de. um sistema de pagamento de resgates para cativos escravi
zados pelos árabes na África do Norte. A manutenção con- | temporânea de reféns nos países árabes reflete esta tradi-.
ção.) Muitos foram os prisioneiros (e fugitivos) que se torna-
ram maridos, esposas ou concubinas de seus captores. Ao| longo da história do eurocolonialismo antigo e do tráfico de | escravos, a literatura de sobrevivência forneceu um contex-
to “seguro” para expressar configurações alternativas, relati-|
aros e abolição
Em parte pelo advento do movimento abolicionista, e
parte pelo estabelecimento da literatura de viagem en-
to uma indústria editorial rentável, o padrão sentimental
consolidou-se muito rapidamente nas décadas de 1780 e 1790
“como uma poderosa forma de representação dasrelações co“Joniais e da fronteira imperial. Tanto no relato de viagem “ quanto na literatura imaginativa, o sujeito doméstico do impé“rio encontrava-se preparado para partilhar novas paixões,
“identificar-se com a expansão de uma nova forma, por meio
“da empatia com heróis/heroínas-vítimas individuais.” Não inesperadamente, tais retóricas subjetivistas e perpassadas pela empatia eram vistas como estando em dispusta com a au-
“toridade da ciência. As resenhas literárias fervilhavam com dis-
cussões sobre como livros de viagem deveriam ser escritos “puma era ilustrada, sendo que as duas principais tensões “estavam entre o relato “ingênuo” (popular) e o letrado,e entre o relato e a escrita informacional e a experiencial. Debates es-
“tilísticos quanto aos valores relativos da “ornamentação” e da
“verdade nua”frequentemente refletiam as tensões entre o homem de ciência e o homem de sensibilidade, ou entre o es-
“eritor letrado e o popular. Um vocabulário erotizado pela nu-
“ dez, pelo embelezamento, pelo vestido e o despido introduziu os desejos dosleitores na discussão. Em 1766, antes da in“ vestida sentimental, um livro de viagens sobre o Oriente Mé-
“dio escrito por Hasselquist, discípulo de Lineu, inspirou o - Monthly Review a celebrar a superioridade dos “homens de
vizadoras e assuntos-tabus dentro do contato intercultural: |
* Ciência” sobre os “homens da fortuna”, que meramente “trans-
contexto da literatura de sobrevivência era “seguro” para en- | redos transgressores, posto que a própria existência de um|
peculação ou progresso.” Ao mesmo tempo encontra-se am| bivalência a respeito da linguagem quefez livros, como o de Hasselquist, críveis, mas muitas vezes de leitura enfadonha. O * Crítico prossegue lamentando a aparente falta de “talento para
europeus escravizados por não europeus, europeus sendo | assimilados por sociedades não européias e europeus parti. cipando da fundação de novas ordens sociais transraciais. O |
texto pressupunha a conclusão imperialmente correta: o so-.
brevivente sobreviveu, e procurava sua reintegração na SOciedade de onde provinha. A história era sempre contada do
ponto de vista do europeu que retornava.
a
portam-se de país para país e de cidade para cidade sem es-
à composição literária” por parte de Hasselquist:
“RR é claro, um corpo de escritos de viagem sentimental produzido na Europa sobre a Europa e que funcionava ao longo de linhas seme-
lhantes aquelas que considerei aqui.
1. Monthly Review, New Series, vol. 21, 1759, p.453.
156
3: Monthly Review, New Series, vol. 34, 1766, pp.72-3.
157
ciência e sentimento, 1750-1800 Suas observações são escritas descuidadame nte, sem gran 4 atenção à ordem ou ao sistema; e têm a aparência de um me
diário, publicado com o mesmo negligente despojamento com que foi originalmente escrito, no próprio curso das viagens que relata. — Mas uma beleza nua não é talvez menos atraente pe ausência de atavios, que por vezes servem apenas para obs cer aqueles encantos que era sua função aperfe içoar
Beleza despojada ou nudez negligente? A relação lei.
tor-texto é estruturada nos mesmos termos masculinos.
erotizados que estruturaram a relação do viajante europ eu:
com os países exóticos que visitava.
Trinta anos mais tarde, o mesmo periódico, resenhan.
eros e abolição A ornamentação nem sempre havia sido tão saudada,
“nem tampouco o sentimento. John Hawkesworth provocou Ema controvérsia ruidosa na Inglaterra nosanos 1770 quando, designado para editar os relatos da primeira expedição
de Cook, decidiu ele mesmo integrá-los num único relato “em primeira pessoa, repleto de seus próprios ofinaientos, se lhe fosse exigido que escrevesse simplesmente em nome dos diversos comandantes”, afirmava, “eu poderia “apresentar apenas uma narrativa despojada, sem qualquer “opinião ou sentimento que fosse meu.” O debate em torno “da intervenção de Hawkesworth não era apenas sobre or-
do as Travels into Different Parts ofEurope ( Viagens a dife
namentação, mas sobre editores e escritores de aluguel (ghost writers). A literatura de viagem não permaneceu imu-
do de escrita de livros de viagens e jornadas tem, nos últi
ne à profissionalização da escrita no século XVIII. Agora que ela havia se tornado um negócio lucrativo, escritoresviajantes e seus editores se baseavam cada vez mais em es* critores e editores profissionais para assegurar um produto competitivo, frequentemente transformando completamente - os manuscritos, em geral na direção do romance. Debates sobre ornamentação, sedução, verdade nua, e tópicos cor-
rentes partes da Europa), se alegrava em dizer que “o méto-
mos anos, experimentado aperfeiçoamento considerável Anteriormente, a maior parte das publicações deste tipo er
constituída por meros diários de ocorrências, cheios de te
diosas minúcias de detalhe e raramente avivados por obser-|
vações engenhosas ou embelezados pela graça do estilo”. Agora, todavia, podem-se encontrar “muitas produções que, . no que se refere à maneira como estão escritas, indepen-
dentemente da informação que contêm, podem ser exami
nadas com prazertanto pelo erudito quanto pelo homem di bom gosto.” A mudança ocorreu na direção do prazer. Para
este crítico da década de 1790, a possível fragilidade no red
lato de Owen não residia na ausência de ornamentação, mas na ausência de sexo e sentimento, pois Owen é um.
pastor protestante. Num enunciado que talvez tencionasse.
tanto alertar quanto trangúilizar, o crítico acreditava que “embora o autor tenha, tanto no sentimento quanto na linguagem, preservado uniformemente o decoro do caráter — clerical, seu trabalho contém tanto material interessante que |
não há perigo de merecer censura por insipidez ou enfas-
tiamento.”
4. Ibid., p.74.
5. Monthly Review, NewSeries, vol. 21, 1796, p.l.
158
4
relatos são frequentemente debates sobre o papel destas figuras e os compromissos envolvidos ao se escrever por dinheiro. O Monthly Review considerou uma história de viagem de 1771, The Shipwreck and Adventures of Mons.
Pierre Viaud (O naufrágio e as aventuras do Mons. Pierre Viaud) “consideravelmente comprometida pela ornamenta-
ção”, como evidenciavam episódios extremamente implau* Síveis como o “encontro do autor com tigres e leões nas matas da América do Norte.” O relato de M. Viaud é, contudo, tedimido, em certo grau, “pelo certificado que lhe foi atri* buído... assinado por Lieut Swettenham.”
6. John Hawkesworth (ed.) - An Account of Voyages undertaken by order of his Present Majestyfor Making Discoveries in the Southern Hemishere, 4 vols., London, W. Straham, 1773-85, vol. I, p.v. O formato em Primeira pessoa, afirma Hawkesworth, “poderia, ao aproximar o aventuTeiro e o leitor, ... mais fortemente excitar o interesse e, consequentemen-
te, propiciar maior entretenimento” (ibid).
7. Monthly Review, New Series, vol. 44, 1771, p.421.
159
ciência e sentimento, 1750-1800
aros e abolição
Nenhum ornamentador irritou mais a instituição cien. tífica do que François Le Vaillant, um naturalista daquela onda que, como foi discutido no último capítulo, começou. a explorar o interior da África meridional no final do sé lo XVIII. Como dito anteriormente, a literatura sobre a Co.
“te o herói de sua própria história. Aqui, também, reciprocida“de e troca são eixos centrais de um drama humanoirresistível, que se desenrola num mundo não capitalista regido pela
ropeus da viagem científica e do relato de viagem. Le.
alitário é asseverado; exemplos da nobreza selvagem e E onsibilité rousseaunianas abundam no texto, acrescentados,
proposital, Naturalista especializado, ele se juntou ao em-
“um jovem chamado, muito romanticamente, Casimir Varon.
lônia do Cabofoi influente na formação dos paradigmas eu-
Vaillant era e permanece sendo tormento em seu lado
preendimento sul-africano e passou os anos 1781 a 1785 se-. guindo as pegadas de Anders Sparrman e outros. Monto uma imensa coleção de espécimes que posteriormente pro-. curou vender, em meio à Revolução Francesa, para vários.
governos europeus. Mas nos dois volumes de seu Voyages.
dans Vintérieur de "Afrique, que vieram à luz em 1790 (mais. três volumesse seguiriam em 1796), ele se mostrou um alia-. do ambíguo da causa da ciência e da informação. Ainda que. copioso em informações botânicas, zoológicas e etnográfi-
cas, o livro de viagem de Le Vaillant é saturado de sensibilité rousseauniana. Como Mungo Park, a quem certament
influenciou, Le Valliant produziu uma narrativa explicita-.
mente experiencial e narcisista, estruturada em torno de dramas humanos dos quais ele é o protagonista, O padrão
é facilmente reconhecido no excerto seguinte em que de creve uma noite chuvosa no acampamento:
Wy
Deixamosa floresta imediatamente e procuramos nos estabelecer | num posto mais alto, em campo aberto. Digo com a mais amar. ga angústia que não foi possível deixar o lugar em que estávamos ilhados. Os pequenos riachos que anteriormente haviam pa j
recido tão alegres e encantadores, tornaram-se torrentes furiosas | que carregavam areia, árvores e pedaços de rocha; senti que era,
impossível cruzá-los a não ser à custa de tremendo risco. De ou=. tro lado, meu gado, comfrio e atormentado, havia desertado meu. acampamento. Não sabia onde ou como mandar alguém para fe=.
cuperá-lo. Minha situação não era de forma alguma reconfortan- | te; senti grande aflição. Já meus pobres hotentotes, cansados € | doentes, haviam começado a resmungar.*
8. François Le Vaillant — Voyages de F. Le Vaillant dans Vintérieure de,
160
Do começo ao fim, Le Vaillant, como Park, é certamen-
Didoé e pela luta armada. Um espírito relativista e
“ao menos em parte, pelo assistente editorial de Le Vaillant,
A narrativa de Le Vaillant se tornou irrevogavelmente
objeto de sensacionalismo devido a um drama particular“mente sem precedentes nos escritos sobre a África do Sul:
* um caso de amor entre ele mesmo e uma jovem gonacqua * (khoikhoi), chamada Narina. O relacionamento entre os dois constitui o centro de vários capítulos em que Le
Vaillant descreve sua visita ao povo gonacqua. Enquanto
Mungo Park se retrata como um involuntário objeto erótico das mulheres africanas, Le Vaillant torna-se um pretendente
É |
VAfrique 1781-85, editado e resumido por Jacques Boulanger, 2 vols., Paris, Librairie Plon, 1931, vol. I, p.52. No original francês:
Nous quittames aussitôt les bois pour aller nous établir plus haut, en rase campagne. Je voyais avec le plus amer chagrin qu'il m'était pais possible de sortir de Fendroit ou nous truvions circonscrits. Ces petits ruisseaux, qui auparavant nous avaient paru si agréables et si riants, s'étaient changés en torrents furieux qui charriaient les sables, les arbres, les éclats de rochers; je sentais qu'à moins de s'exposer aux plus grands dangers, il était impossible de les traverser. D'un autre côté, mes boeufs harassés, transis, avaient désertée de mon camp; je ne savais pas ou et comment envoyer aprês eux pour les ratrapper. Ma si-
tuation n'était assurément point amusante; je passais de tristes moments. Déjã mes pauvres Hottentots, fatigués et malades, commencaient a murmurer.
9. A presença de Varon suscitou várias alusões homofóbicas veladas à Possível homossexualidade de Le Vaillant. O narcisismo e dandismo deste último (uma tendência a se vestir de maneira extravagante quando em Viagem pela África, por exemplo) são mencionados de forma igualmente crítica. “Ele entesourava em sua carreta uma frasqueira de talcos, perfumes e pomadas”, escreve Vernon Forbes em 1965. Quaisquer que sejam as preferências sexuais de Le Vaillant, tais reações sugerem a exten-
são em que a figura do exploradorcientífico estava presa a paradigmas heterossexuais de masculinidade.
161
enamorado que persegue o objeto de seu desejo. O desco-
bridor torna-se voyeur ao se esconder entre as árvores pa espreitar Narina e suas acompanhantes banhando-se no rio quando aproveita para lhes roubar as roupas.” O dram erótico é apresentado como tendo sido vivenciado trang la e bem-humoradamente por todos os envolvidos, e n nhum coração é ferido. O episódio contribuiu muito para o impacto que o livro de La Vaillant causou entre os leito
europeus, num momento em que as histórias de amortrar racial estavam se tornando um tema também na ficção." a O livro de Le Vaillant foi amplamente tão lido quanto
“vivement attaqué', como observa seu prefaciador de 193 Seguindo a edição francesa de 1789 de suas viagens, s ram três edições inglesas e uma alemã, em 1790, e uma e
ção holandesa, em 1791, enquanto uma edição italiana cinco volumes surgiu em 1816-17, atestando o continuado interesse pela obra, não obstante a permanente crítica a seu estilo e à sua falta de fidedignidade. Para seus contem
porâneos objetivistas, como John Barrow, a dramaticida
o narcisismo e o erotismo de Le Vaillant escandalizavam tanto quanto suas imprecisões. Os comentaristas de hoje dia tendem a concordar.” 10. Le Vaillant, op. cit., pp.113-14.
os e abolição
Le Vaillant é lido universalmente como um escritor
francês, mas é certamente pertinente notar que ele era na
verdade um branco crioulo do Caribe, um produto da zona
He contato. Ele nasceu numa plantation no Suriname, filho “de um cônsul francês de Metz e de sua esposa francesa. A
família se mudou para a França quando Le Vaillanttinha aproximadamente 10 anos. Foi durante sua infância na fa-
“zenda que ele desenvolveu sua forte vocação e habilidade
precoce de naturalista. De fato, sua experiência de vida coJonial e seu conhecimento do holandês o ajudaram a se qualificar para a viagem à África do Sul. A história de Nari“na se baseia em instituições sociais e sexuais (tais como o
“casamento de Suriname” — veja-se adiante) que Le Vaillant
teria certamente presenciado no Caribe, assim como sobre um tipo de drama erótico que há muito estava presente na * imaginação européia sobre as Américas. A experiência de Le Vaillant numa sociedade colonial multirracial deve ter * certamente definido tanto seu relacionamento com as pes-
“ soas na África meridional quanto o retrato que delas faz nas Viagens, ainda que não haja maneira sistemática de se afe-
“rir a extensão em que isto foi feito. Ainda há muito a ser “aprendido sobre o papel que crioulos das Américas, África “ou Ásia, tiveram nos diálogos que deram origem tanto às
“doutrinas colonialistas quanto anticolonialistas, não apenas
11. Le Vaillant também relata, sem ornamentações, uma visita a uma mulher
“no século XVIII, mas desde os primórdios do colonialismo
rência que outros autores mencionam, se tanto, apenas enquanto boatos.
“al de se ver a cultura européia emanando para a periferia
branca que havia se tornado a chefe de um povoamento, tendo herdado o. cargo de um homem africano com quem havia se casado — um tipo de ocor-— 12. O venerável Vernon Forbes, mesmo reconhecendo que os “sentimentos românticos e verbosidade florida” dos livros de Le Vaillant “aparentes mente o recomendavam perante muitos de seus contemporâneos” (Pioneer Travellers of South Africa, 1750-1800, Cape Town, A. A. Boeckema,
1965, p.117), conclui que “a vaidade era a fraqueza fatal que levou aos. seus numerosos exageros fantasiosos e fabricações. ... É lamentável que, ele não tenha notado quão duradoura teria sido sua reputação caso se contentasse em expressar a simples verdade de tudo o que havia visto € | feito” (Cibid., p.127). A posição de Le Vaillant foi parcialmente redimida desde a descoberta, em 1963, de 65 aquarelas feitas por ele, ou de acorm E do com suas instruções, ilustrando suas viagens sul-africanas. Indepen=. dentemente de seu valor estético, as gravuras demonstram que Le. Vaillant realmente visitou alguns dos lugares cuja descrição foi acusado |
de haver fabricado Gbid., p.127).
162
europeu que os produziu. No geral, uma tendência impericolonial a partir de um centro autogerador, obscureceu o
movimento constante de pessoas e idéias na direção inver“Sa, particularmente durante os períodos do Iluminismo e do
Romantismo (cf. capítulos 6 e 8 adiante).
= Wylie Sypher em Guinea's Captive Kings: British Anti-Slavery Literature of the XVIlHh Century (Chapel Hill, North Carolina U. P., 1942, capítulo 1), comentaristas sociais do período registram frequentemente a presença crioula entre a elite social das capitais da Europa,
usualmente de forma depreciativa; herdeiras das Índias Ocidentais são Personagens comuns na ficção dos séculos XVII e XIX. A história polí tica e social tem sido, talvez, menos honesta a este respeito. Ao longo do
163
didi datas imaaa
ciência e sentimento, 1750-1800.
ciência e sentimento, 1750-1800:
denarina a joana
! A polifonia parece ter sido intencional, Referindo-se a seu livro “como “talvez uma das mais singulares obras jamais oferecidas
Não por coincidência, o Suriname de onde Le Vaillant era nativo foi o cenário para um livro de viagem que poucos
anos mais tarde intensificou dramaticamente a idealizaçã erótica da zona de contato. Poucosrelatos de viagem receberam aclamação (e promoção) internacional mais entusiásti do que Narrative ofa Five Years' Expedition against the Revol-. ted Negroes ofSuriname (Narrativa de uma expedição de ci É co anos contra os negros revoltosos do Suriname), de John.
Stedman, a qual conquistou imaginações por toda a Europa
E durante trinta anos, após sua publicação em 1796. Publicado luxuosamente em dois volumes com 80 gra-
vuras, incluindo 16 de William Blake, a Narrativa de Stedman | é um vívido compêndio discursivo, interligando todo o:
repertório de códigos europeus da fronteira colonial no século XVII. etnografia, história natural, reminiscência militar, | és sea a Fis ã BEN histórias de caçadas, descrição social, relatos de sobrevivência, crítica antiescravista e amor inter-racial. A combinação faz de
i
À
seu livro “uma das mais detalhadas descriçõesfeitas por estran-
q:
“RH 4 E + a
geiros da vida na sociedade da plantation no século XVIIS. |
o
»
x
seg
23
e
período em que Le Vaillant viveu, as esferas políticas européias eram ani-. madas por representantes de movimentos de independência e antiinde-
pendência das Américas, pressionando os poderes europeus porinfluên-|
cia e apoio, Os filhos de crioulos eram tão presentes nos meios intelectuais e educacionais quanto as herdeiras em círculos sociais. Muito da liderança intelectual e política de ambos os lados do debate sobre o anti-. escravagismo foi constituído por euro-americanos: quacres, de um lado, À e proprietários de escravos das Índias Ocidentais, de outro. u 14. Circunstancialmente, poucoslivros de viagem foram objeto da qualificada atenção acadêmica e editorial recebida (merecidamente) pela obra— de Stedman. Somos afortunados por dispor do benefício da recente edição e comentário de R. A. J. van Lier (Barre, Massachusetts, Imprint So-
ciety, 1971), dos quais farei uso aqui; e da recente edição por Richard| Price e Sally Price do manuscrito original de Stedman (Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1988), acompanhada por valioso comentário histórico. |
15. John Gabriel Stedman — Narrative ofa Five Years Expedition against the | Revolted Negroes ofSurinam (transcrito do manuscrito original de 1790), RE chard Price e Sally Price (eds.), Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1988, psi A. bem da precisão, daqui por diante esta fonte será citada como Price e Price.
164
“ao Público”, Stedman o descreve em seu prefácio como tendo “sido arranjado “de certa maneira como em um grande jardim,
Ece podemos encontrar a olorosa flor e o espinho, a mosca E“salpicada de ouro e o abjeto réptil”, na esperança de que o “todo seja “variegado ao ponto de veicular ... tanto informação
to diversão.”'“ Nos quarenta anos que se seguiram à sua
“primeira edição, o livro foi vertido para o alemão (1797), para
“o francês (1798), o holandês (1799), o sueco (1800) e para o
italiano (1818); seu enredo amoroso foi aproveitado e reapro-
* veitado como teatro, poesia, conto e romance.
John Stedman foi um escocês que herdou de seu pai
o cargo de oficial da Brigada Escocesa do exército holan* dês.” Nascido em 1744, ele parece ter levado muito a sério
o individualismo moderno emergente. Esforçou-se bastante para se tornar uma tipo de cavalheiro picaro; escreveu em seu diário ter seguido o modelo de Roderick Random, Tom
* Jones e Bamfylde Moore Carew, um garoto inglês que fugiu
de casa e se juntou aos ciganos. Como escritor, seu ídolo era Lawrence Sterne. (Muito a contragosto e a despeito de sua vigorosa resistência, viu a maior parte do estilo sterniano ser
eliminado da edição de seu manuscrito, enquanto um * pouco de seu sentimentalismo foi introduzido). Stedman foi para o Suriname em 1773 como voluntáro'numa expedição militar que havia sido montada em res-
posta a uma crise no sistema colonial de exploração. Por uma série de razões, incluindo a geografia da região, os escravos do Suriname haviam percebido ser possível escapar
* em grande número pelas densas florestas onde sua recaptuTa era muito difícil. Em meados do século XVIII, dois quilombos incipientes, Saramakas e Djukas, haviam se estabelecido no interior e promoveram uma guerra de terror 16. John Gabriel Stedman — Narrative ofa Five Year's Expedition against the Revolted Negroes of Surinam, 2 vols., R. J. van Lier (ed.), Barre, Massachusetis, Imprint Society, 1971, p.xvii. A bem da clareza, daqui por
diante esta fonte será citada como Stedman.
17. Estou baseando-me aqui nas introduções de Price e Price e de Stedman.
165
ciência e sentimento, 1750-1800.
eros e abolição
contra os proprietários das plantations. Incapazes de derrotar as comunidades dos quilombos, em 1760 os proprietários foram forçados a assinar tratados de paz comelas, os
quais incluíam garantias de sua independência em troca do
“compromisso de seus membros não mais auxiliarem qual-
quer fugitivo futuro. Os resultados foram desastrosos para
os donos das plantations. As notícias do pacto aceleraram astronomicamente as defecções dos escravos e, em poucos
anos, a economia do Suriname ficou em perigo devido à impossibilidade de manter a força de trabalho escrava. Em
1773, o governo holandês acorreu em seu auxílio, enviando
a missão da qual Stedman participou, para aniquilar novos “grupos de quilombolas e reconduzi-los à escravidão. A campanha terminou em 1778, quando os escravos rebeldes abandonaram a área e foram para a Guiana Francesa. Foi uma vitória pírrica, pela qual poucos escravos foram recapturados e com a qual as forças européias demonstraram sua incompetência para a guerra na selva. As baixas européias
“na campanha chegaram a mais de 80%, a maioria devido a doenças. Os descendentes das comunidades dos quilombos, ainda chamados Saramakas, vivem, ainda hoje, na região e mantêm a característica cultura afro-americana que desenvolveram no século XVIII.
Grande parte do relato de Stedman sobre seus anos no Suriname é devotada à vívida narração da desorganizada e pessimamente equipada campanha de guerra na selva,
que se mostrou radicalmente ineficiente contra os quilom-
bos, mas extremamente eficaz em expor os soldados europeus a doenças tropicais. Stedman descreve seus tormentos em detalhes lastimáveis, intercalando os sofrimentos com retratos minuciosos, mas certamente não técnicos, da flora e
fauna, geralmente motivados pela caça de foragidos ou pela E
|
einimando
:
E
:
E
e
Fig. 14. “Um negro rebelde armado e em guarda”, Da Narrativa de
uma expedição de cinco anos contra os negros revoltosos do Surina-
me (1796), de John Stedman.
Preparação de comida. É assim, por meio da campanha mi-
litar, que Stedman se liga à nova era da viagem pelo inte-
rior. Enquanto o Suriname, diz ele na introdução, seja co-
Nhecido há muito tempo, “na medida em que é habitado e
cultivado pelos europeus perto da costa marítima”, obstáculos naturais tornaram impossível a exploração do interior.
à minha observação.” No intervalo entre as expedições contra os quilombos, 4 Stedman viveu no coração da sociedade colonial holandesa, e
cujo funcionamento descreveu em detalhes dramáticos e
muitas vezes críticos. De fato, suas descrições depreciativas dos proprietários de terras holandeses — ociosos, sádicos, |
glutões — coincide, quase que ponto a ponto, com as piores .
avaliações que Barrow fez dos africânderes. Seria difícil di zer qual aspecto de seu livro causou maior sensação na Europa: as denúncias sombrias e sombriamente ilustradas da crueldade holandesa contra os escravos, ou seu idealizado E
romance e casamento com a escrava mulata Joana. O movi- . mento abolicionista fez amplo uso das dramáticas ilustrações (especialmente de Blake) retratando os horrores da es- cravidão; a história de amor gerou uma prole literária romântica que inclui uma peça de teatro escrita por Franz Kratter intitulada Die Sklavin in Surinam (1804), uma nove- — la de 1824, Joanna or the Female Slave ( Joana ou a escrava), publicada em Londres, o romance de Eugêne Sue Ad- | ventures d'Hercule Hardi (Paris, 1840) e os romances holan- — deses Een levensteeken op een dodenvela, de Herman J. de | Ridder (1857), e Boni, de Johan Edwin Hokstam (1883).º .
Pretendo examinar aqui o enredo amoroso de Stedman| como uma
re-visão das relações coloniais num momento |
de crise aguda na sociedade do sistema de plantation.
De acordo com Stedman, ele encontrou Joana, de 15 anos de idade, pouco depois de sua chegada ao Suriname, | na casa de um colono, onde era uma escrava doméstica e | protegida da família. Ele foi instantaneamente atingido por | sua beleza e encantos, ambos realçados por um estado de ] relativa nudez. A explicação de suas origens é uma parábo- |
la expressiva das complexidades do sexo e relações entre
raças na colônia. Joana é filha de um “cavalheiro respeitá|
18. Stedman, op. cit., p.2. 19. Consulte-se Price e Price, op. cit. pp.lxxiii-bocriii para um sumário das muitas edições, traduções e adaptações do texto de Stedman.
168
“vel e de uma escrava que lhe deu cinco filhos. O cavalhei-
o, que não era o proprietário de sua concubina, havia ten-
tado comprar a alforria de sua prole, mas a oferta foi recu-
| Eca e ele morreu de tristeza. O mesquinho (e rude) pro-
prietário de escravos ficou arruinado, “dado que sua injustiça e severidade fez com que todos os seus melhores ne-
gros carpinteiros fugissem para a selva.” Fugindo para a * Holanda, deixou sua esposa para ser presa por seus débitos. Esta senhora agora vivia, servida por Joana, na casa
onde Stedman a encontrou. O destino da própria Joana permanecia incerto, pois ela era um dos bens que final-
mente seriam vendidos para que se pudesse pagar as dívi-
das de seu dono. Ao saber certo dia que este evento esta-
va efetivamente prestes a ocorrer, Stedman correu para Joana, num frenesi de ansiedade: “Encontrei-a banhada em lá-
grimas. — Ela me lançou um tal olhar — oh! Que olhar! — que
a partir daquele momento decidi ser o seu protetor contra qualquer insulto.”?
No mesmo momento, Stedman toma a “estranha decisão” de comprar e educar Joana, e de retornar com ela para a Inglaterra. Joana recusa sua proposta baseando-se, de forma persuasiva, em que, dada a sua qualidade de escrava, “retornasse eu (Stedman) logo para a Europa, ou viria ela a
ser separada de mim para sempre, ou acompanhar-me-ia
para uma parte do mundo onde a inferioridade de sua con-
dição acarretaria grande inconveniente tanto para si quanto para seu benfeitor, e, assim seria ela, em ambos os casos,
infeliz.” Stedman caiu enfermo, e quando Joana veio com
Sua irmã para vê-lo, suas restrições haviam sido superadas misteriosamente. Ela não concorda em ir para a Inglaterra e ser educada, mas, por ora, “se atira a seus pés”, “até que o
HE p.59. Price e Price contrastam esta passagem com o que Stedman escreveu em seu manuscrito original: “Bom Deus; corri à Procura da Pobre Joana e a encontrei banhando-se com suas Acompanhantes no Jardim.” (Price e Price, op. cit. plx) Segue-se a isso um poema voyeur que lembra o de Le Vaillant na África, celebrando as belezas da
inconsciente amada. 21. Stedman, op. cit, p.59.
paste e msm ee
Apenas a necessidade de uma campanha militar “[o) impôs |
“ eros e abolição
mare
ciência e sentimento, 1750-1800 /
ciência e sentimento, 1750-1800 .
eros e abolição
destino nos separe” ou sua conduta o descontente. Stedman se recupera, e eles se casam “numa cerimônia decente ... na qual fui O noivo mais feliz que jamais existiu.”> A vida conjunta do casal inclui um interlúdio paradicabanarural (construída para eles por escravos), numa síaco e o nascimento de um filho a que batizam com o nome de Johnny. Passam períodos juntos e outros apartados, depen-
dendo do retorno de Stedman para a selva e de Joana para
a sua plantação. Quando o regimento de Stedman é chamado de volta para a Europa, ele novamente insiste com Joana para que o siga e, novamente, ela se recusa. Stedman parte sem ela, prometendo mandar-lhe dinheiro. Cinco anos mais tarde, casado com outra na Inglaterra, recebe a notícia da morte de Joana, aparentemente envenenada pelas mãos
de pessoas invejosas de sua prosperidade e distinção. Seu filho chega à Inglaterra com duzentas libras acumuladas por
sua mãe e, posteriormente, morre no mar como jovem ma“rinheiro. Stedman fecha seu livro com uma elegia a seu filho perdido e com um lastimoso adeus ao leitor, de quem
se espera que tenha sido capaz de “percorrer esta narrativa com compassiva sensibilidade.”> O casamento de Stedman com Joana, da mesma for-
ma que muitos casos de amor inter-raciais na ficção desta
época, é uma transformação romântica de um modo de ex-
ploração sexual nas colônias, segundo o qual homens euro-
peus a serviço da metrópole compravam mulheres locais de
; rn dhro seceernde or Llersh. snes do patad Fig.15. “Marcha através de um pântano, ou charco em Terra firma”
Da Narrativa (1796), de Stedman.
170
suas famílias para servir como acompanhantes sexuais e domésticas enquanto durasse sua estadia. Na África e no Caribe, e provavelmente em outros lugares também, tais ajustes podiam ser oficialmente sancionados por cerimônias formais de pseudocasamento, para as quais uma permissão consular (por parte de pessoas como o pai de Le Vaillant) era algumas vezes requerida. Em 1782, por exemplo, o viajante dinamarquês, Paul Isert, descreveu o sistema em detalhe na Costa da Guiné, acrescentando que tal concubinato = Ibid., p.62. 23. Ibid., p.440.
am)
ciência e sentimento, 1750-1800 ]
era considerado essencial para a sobrevivência dos euro. peus, dado que as mulheres sabiam como preparar comida e medicamentos locais, e podiam cuidar dos europeus quando estes adoecessem.” O relato de viagem sentimental converte esta função na figura da mulher beneficente cons
substanciada pela “nativa protetora”, que, por piedade, bondade espontânea ou paixão erótica, cuida do europeu sofre- . dor. Ela é umafigura chave nesta versão sentimental da anti- |
conquista. Na verdade, em seu diário, discutido por Richar
Price e Sally Price, Stedman descreve sua aliança com Joa na como apenas um acordo de concubinato formal. Ela fo adquirida de sua família, após alguma negociação sobre ; questão do preço, e se tornou uma das muitas companhe ras sexuais de que Stedman dispôs no Suriname. Traços des- |
ta situação permaneceram na versão romantizada do livro, .
muitos dos quais expressos por ou através de Joana e não. por Stedman. A aparição inesperada dela em seus alojamen-
tos “na companhia de sua irmã”, por exemplo, corresponde
a uma negociação na vida real, mencionada no diário de.
Stedman.> No relato de viagem publicado, o sistema de. concubinato parece ter sido articulado, acima de tudo, com. o conhecimento de Joana, e com sua sistemática resistência Desde o princípio, Joana rejeita a união; por exemplo, ao.
deixar claro que o arranjo é provisório, independentemente| do que Stedman diga. Embora ele não mencione comprar os serviços de Joana, Stedman relembra ter-lhe comprado
presentes no valor de vinte guinéus — mas, no dia seguinte
ao seu noivado, ela lhe devolveu os presentes, com o di-
|
24. Isert, op. cit., p.241. “Le conseil voit avec plaisir de pareilles alliances, |
parce qu'un Européen qui se porte à cette démarche ne sera pas probable- — ment tourmenté bien vite de la maladie de son pays.” Referir-se à relação
entre Stedman e Joana como concubinato não quer dizer que a ligação de
Stedman a Joana tenha sido menos real e profunda do que a que teve com 4 qualquer outra mulher. Quando, de volta à Europa, ele se casou novamen- | te, deu à suafilha o nome de Joana e o filho de ambos veio a se juntar à : ele, como relata o livro. De fato, de acordo com Price e Price, o editor de. :
Stedman atenuou no livro suas declarações de compromisso a Joana. 25. Mencionado em Price e Price, op. cit., p.xxxiii.
172
eros e abolição
nheiro, insistindo na realidade de seu status de escrava e esposa. Ela lhe disse que tudo o que deseja é seu amor e bom
tratamento. Quando lhe é oferecida a alternativa de ir para a Inglaterra como sua esposa, Joana se recusa em termos
que identificam o lado desumanizador da proposta igualitá-
ria e humanitária de Stedman. Aqui está a versão (supostamente) literal da resposta da escrava (itálicos meus):
Horrível como parece ser a fatal separação, talvez definitiva, ainda assim ela não poderia senão preferir a permanência no Suri-
name: em primeiro lugar, pela consciência de que, enquanto pro-
priedade, não tem a posse de si mesma (ela ainda é uma escrava); em segundo lugar, por orgulho, dado que, com base em sua presente condição, preferiria antes ser uma das primeiras de sua própria classe na América, que um reflexo meu ou estorvo para
mim na Europa, como estava convencida de que seria o caso, à menos que nossas circunstâncias se tornassem um dia mais inde-
pendentes”
Como Peter Hulme tão perceptivamente notou, as
* histórias de amor transracial que proliferaram na narrativa de fins do século XVIII foram baseadas de diversas formas
sobre antecedentes da literatura clássica expansionista, no-
tadamente a Odisséia e a Eneida. A história de Dido e Enéas, por exemplo, é um antecedente do casal composto pela nativa protetora e pelo viajante sitiado, e para o padrão
do amar e partir.” Ao mesmo tempo, estes enredos respondem às últimas crises oitocentistas do imperialismo europeu,
na medida em que este se achava bloqueado em novasfrentes pela doença tropical e pela resistência, e desafiado em
antigas frentes pelos movimentos de independência, abolicionismo, declínio na rentabilidade da escravidão e rebe-
liões indígenas e de escravos em escala e eficácia sem precedentes. O livro de Stedman foi lido, para que se tenha uma idéia, no contexto seguinte à revolta escrava de Santo Domingo, em 1791, um evento sangrentoe terrificante cujo
Sucesso parece ter paralisado sozinho o movimento aboli-
& Stedman, op. cit., p.426. 27. Hulme, op. cit., p.249.
173
ciência e sentimento, 1750-1800
cionista por diversos anos. A crise de legitimidade provoca-
da pelo abolicionismo e pelas guerras americanas de ind pendência exigia que se imaginassem mundos que tr cendessem a escravidão e a conquista militar. É fácil ver enredos de amor transracial como imagens nas quais a premacia européia é garantida por laços sociais e afetivos,
Yo
onde o sexo substitui a escravidão como a forma de outros
serem vistos para pertencerem ao homem branco; em que o amor romântico, e não mais a servidão filial ou a for garante a submissão voluntária do colonizado. Joana e Sted.
man são substitutos imaginários de Sexta-Feira e Crusoé. Nessa transformação, desaparece uma dimensão funda-. mental do colonialismo, ou seja, a exploração do trabalho. As Joanas, como os Sextas-Feiras, são propriedades, ainda.
que não sejam possuídas por sua força de trabalho. A ale-.
goria do amor romântico leva, enganadoramente, a que se. retire de cena a exploração. x Se os enredos de amor transracial articulam “o ideal. de harmonia cultural através do romance”, para usar as
bem escolhidas palavras de Hulme,* o que faz deste ideal um ideal é, mais uma vez, a mística da reciprocidade. Enquanto ideologia, o amor romântico, como o comércio €
pitalista, se vê como recíproco. Reciprocidade, o amor
tribuído entre indivíduos igualmente valiosos um para outro, é seu estado ideal. O fracasso da reciprocidade, ou
da equivalência entre as partes, é sua tragédia central e seu escândalo. O romance de Stedman com Joana, da mesma
forma que a jornada de Mungo Park, é representado por meio de dramas de troca. Os diálogos dos amantes fre-
quentemente consistem de sentidas interlocuções sobre 0| que deveria ser considerado uma compensação por alguma coisa. Joana manda uma cesta de frutas para Stedman, |
com o objetivo de ajudá-lo a se recuperar da “depressão |
de espírito” na qual cai ao saber da situação em queela se |
encontrava. Aquele gesto, afirma ele posteriormente, o tor |
na devedor dela pelo resto da vida, fazendo de seu débito |
28. Ibid., p.lál.
174
ara com ela a base para reivindicá-la. Assim como as tro“cas de presentes de Mungo Park são uma recapitulação ideológica das aspirações do comércio, em cujo nome ele * viaja, assim também o romance recíproco de Stedman com Joana recapitula as aspirações brancas nas Américas numa
era de valores igualitários. Ainda que os amantes desafiem
as hierarquias coloniais, no final, eles obedecem a elas. A reciprocidade é irrelevante. Tal é a lição a ser aprendida das histórias de amor coJoniais, em cujo desenrolar sempre se rompe a “harmonia cultural através do romance”. Seja ou não correspondido o
“amor, seja o amante colonizado homem ou mulher, o resultado parece ser aproximadamente o mesmo: os amantes são
“separados, o europeu é reabsorvido pela Europa, e o não-europeu morre prematuramente. O destino de Joana e Stedman, por exemplo, difere apenas marginalmente do destino de outro casal famoso, Inkle e Yarico, cuja história adquiriu dimen-
são mítica em fins do século XVIII. Nesta história popular e
* apócrifa, Yarico, mulher ameríndia, apaixona-se por Inkle,
marinheiro inglês náufrago, a quem encontra numa praia e
revivifica. Eles convivem pacificamente até que, ao recuperar
a saúde, Inkle readquire também sua ganância por lucro e vende Yarico como escrava. Nas versões mais lúgubres, Yarico procura fazer com que seu amante mude de idéia, contan-
do-lhe estar esperando um filho seu. Inkle replica, aumentando o preço pelo qual a está vendendo.”
Stedman menciona diretamente a história de Inkle e Yarico em seu livro, referindo-se a seu (notavelmente) per-
feito contraste em relação à sua própria. A primeira dessas
Narrativas tem por tema a quebra de reciprocidade pela ga-
nância capitalista e frisa as contradições da ideologia do
amor romântico. Não admira que seja inesquecível. Ainda que absorvida, como foram todas estas histórias, pela proE: Es De acordo com Hulme (op. cit., pp.225 e ss.), esta história foi impressa em 1734 na London Magazine e multiplicou-se em diversas versões entre 1754 e 1802. Mary Wollstonecraft usou-a enquanto modelo narrativo; Goethe sugeriu a montagem de uma peça de teatro inspirada nela.
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Fig.16. “Joana”. Da Narrativa(1796)
1750-1800 ciência e se ntimento,
ciência e sentimento, 1750-1800.
paganda abolicionista, ela exprime, muito claramente come
erose abolição
da plantation. Vivendo em meio à escravidão, Joana é en-
alguém poderia desejar os valores de negócio-é-negócio.
* focada à parte dela; aos leitores é permitido vê-la como pro-
histórias é a mesma. Joana e Yarico terminam sem seus ma-.
apresentar uma crítica do comportamento europeu, mas só
apoiando a escravidão. Mas, não obstante Stedman ser q. oposto de Inkle, (ele retribui o amor recebido de Joana a não quer abandoná-la), e Joana ser o oposto de Yarico (ela se recusa a seguir os passos de seu amante), a base das duas:
ridos e escravizadas nas colônias, enquanto Inkle e Stedman
acabam voltando para a Inglaterra. Em qualquer dos senti-
dos, a expectativa de “harmonia cultural através do roman-. ce” não é preenchida; a alegoria de uma sociedade pós-es-: cravagista integrada nunca se realiza. Isto não serviria aos. propósitos nem da causa escravista, nem da antiescravista, Joana termina envenenada, não por seus vizinhos invejosos,.
mas pelo gênero ficcional.
Í
Como os críticos observaram, os heróis e heroínas.
coloniais da literatura sentimental européia raramente são |
“puros” não-brancos ou escravos “verdadeiros”. Como Joa-| na, eles são tipicamente mulatos ou mestiços que já pos-.
suem vínculos com a Europa, ou, reapresentando um velho.
motif, são “realmente” príncipes ou princesas.” O perfil con- |
vencional do objeto de amor não europeu distingue ele ou ela dos retratos estereotipados de escravos e selvagens. Joa-.
na, por exemplo, tem “a mais elegante forma que a natureza pode exibir ... e com uma face na qual reluzia, a despei- ] to do tom escuro de sua pele, um lindo tom carmim. ... Seu nariz era perfeitamente bem formado, e bem pequeno; seus | lábios, pouco proeminentes,” e assim por diante.” Mesmo |
que universalmente lidas como abolicionistas, as histórias | de amortransracial neutralizam tipicamente dimensões con-
cretas da escravidão. Os vínculos amorosos se desenrolam |
em algum espaço marginal ou privilegiado onde as relações de trabalho e propriedade estão suspensas. Os naufrágios |
muitas vezes ensejam tais espaços. No caso de Joana, a ru| na de seu amo a removeu de seu lugar na estrutura social
priedade, mas não como trabalhadora forçada. Tais caractede “narrativa de “tÍSticas são marcas do que Hulme chama : pouco na direum “avança que * concessão”, no sentido de ção do reconhecimento de um ponto de vista nativo e de faz isso à custa de não abordar a questão central.”
Em sua própria irrealidade, contudo, estes idealiza-
dos subalternos meio-curopeus expressam uma outra dimensão totalmente real da sociedade caribenha de fins do
século XVIII. Nesta época, tanto no Caribe quanto em
grande parte da América espanhola, as populações de pes-
soas não escravizadas de origem miscigenada haviam igualado ou ultrapassado o número de brancos em todos os lugares. Grupos miscigenados (mestiços, mulatos e negros livres) adquiriram uma nova e dramática importância política durante os levantes anticoloniais nas Américas no final
do século XVIII e princípio do XIX. Forneceriam eles lide-
rança para as classes inferiores em revolta, ou seguiriam
seus próprios interesses de classe e tomariam o partido das
elites brancas? Nas lutas de independência, apoiariam os movimentos de independência liderados por crioulos, ou as potências coloniais européias? Do ponto de vista da hegemonia européia, o amor romântico foi um artefato tão bom quanto qualquer outro para “abarcar” tais grupos no imaginário político e social — como subalternos. O hábito de Stedman de se referir a Joana como “minha mulata” tem relevância política. Evidentemente, é traço típico da ficção sentimental encobrir o político com o erótico e procurar re-
solver incertezas políticas na esfera da família e da repro-
dução. No livro de Stedman, tal alegoria se choca com um
drama político mais literal: os interlúdios amorosos com a “sua mulata” se alternam com incursões militares ao interior Para lutar contra negros rebeldes; os primeiros produzem
um filho, as últimas, soldados europeus mortos. A despeito
30. Cf. a discussão deste motifem Sypher, op. cit. especialmente cap. 331. Stedman, op. cit., p.52.
178
+ 32. Hulme, op. cit., p.253.
179
ciência e sentimento, 1750-1800
eros e abolição
das leituras abolicionistas, no texto de Stedman, a harmonia social permanece alinhada à escravidão, e a emanci ) ção, à ação guerreira mortífera. O novo elemento na narrativa de Stedman é a rejei ção, por Joana, da cultura européia e do convite à assimila.
name;* muitas destas narrativas evocavam os eventos drados máticos das décadas de 1770 e 1780. Este testemunho texto o "“saramakas, transposto por um antropólogo para
ou mesmo de sua contemporânea Phyllis Wheatley, Joana não querser instruída, usar sapatos ou encontrar o rei da In-. glaterra. Nas dramáticas palavras que Stedman lhe atribui,
ravos entracana, na medida em que os primeiros ex-esc
ção. Ao contrário de sua famosa predecessora Pocahontas,|
ela preferia permanecer a primeira em meio à sua própria.
classe na América a ser “um reflexo de, ou um estorvo para”.
Stedman na Europa. Lidas comoalegorias políticas, estas pa-. lavras aludem a uma outra situação que os europeus esta-.
vam cada vez mais sendo chamados a imaginar na década.
de 1790 — a independência das Américas. Joana introduz. “exatamente este termo em seu adeus a Stedman: houvessem eles sido mais independentes um do outro, diz ela, talvez | seu relacionamento tivesse perdurado. Assim é que Joana e.
seu filho quadrarão, na posse de uma renda e de um escra-
vo negro, ficam para trás, para branquear a raça e inaugurar uma nova elite pós-colonial. Mas o quadro resultante é | de neocolonialismo, não de autonomia: o lar americano permanece na dependência de Stedman, uma família incomple-
ta semele, leal e sem meios ou motivo para se revoltar. A |
impresso, ocupa um espaço discursivo quecomeçou a to-
mar forma durante a vida de Stedman. As últimas décadas
do século XVIII marcaram o início da literatura afro-ameri-
vam nos circuitos da cultura letrada européia, atráves da
o porta aberta pelo movimento abolicionista. Em geral,
principal ponto de entrada era a autobiografia. As primei-
ras autobiografias de escravos, cuja publicação era frequentemente providenciada por intelectuais ocidentais dissidentes, eram autodescrições, até certo ponto estruturadas
conforme os parâmetrosliterários e concepções ocidentais
de cultura e de indivíduo (self), embora em direta oposição às ideologias oficiais do colonialismo e escravagismo
(os quais, entre outras coisas, excluíam os africanos das
“concepções ocidentais de cultura e indivíduo). Stedman estava muito consciente deste tipo de literatura emergente.
Ele menciona as cartas de Ignatius Sancho e a poesia de
Phyllis Wheatley. Enquanto ele estava escrevendo o seu li-
vro, muitos europeus estavam lendo The Interesting Nar-
rative of tbe Life of Olaudab Equiano (O interessante relato da vida de Olaudah Equino) (1789), que se encontrava
morte de Joana por envenenamento é uma forma extraordinária de se desfazer esta fantasia. O envenenamento, fre-
na oitava edição inglesa em 1794. De forma muito elabo-
dos instrumentos mais dramáticos com que os escravos do.
identificação comunitária e alteridade. Suas dinâmicas são
quentemente relacionado à religião afro-caribenha, era um
Caribe destruíam seus senhores. Aparentemente, a Afro-
América teve a última palavra no enredo de amor, assim |
4 como no terreno militar. As comunidades escravas rebeldes do Suriname ti. nham suas próprias versões da luta de resistência descrita
por Stedman. No livro First-Time: The Historical Vision of | an Afro-American People (Primeira vez: a visão histórica |
de um povo afro americano), Richard Price coletou contos | e histórias orais que lhe foram fornecidos pelos descendentes das populações de quilombos no interior do Suri- |
180
rada, estes primeiros textos procuravam não reproduzir, mas associar-se aos discursos ocidentais de identidade,
transculturais e pressupõem relações de subordinação e resistência. Tais dinâmicas subsistem, acredito, na autobio-
grafia contemporânea em formas correlatas, como a história oral, o testemunho e a arte popular. Isto é o que que-
ro dizer quando afirmo que os relatos dos saramakas cole-
tados por Price se inserem num circuito editorial que comeSou no tempo de Stedman. Como propus anteriormente,
quando tais textos “etnográficos” são lidos simplesmente
E
33. Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1983.
ciência e sentimento, 1750-1800.
como auto-expressão autêntica ou assimilação “inautênti. z : ca”, seu caráter transcultural éA obliterad o, sua associação
dialógica com modos ocidentais de representação, perdida.
para ajudar um estabelecimento costeiro que se sabia estar em grandes dificuldades. Numa segunda viagem, o marido de Falconbridge empreendeu uma missão comercial que
o sentimento e a mulher viajante
, fracassou. Ele morreu na África, de bebida e desconsolo,
a história de Mme. Godin estava circulando pela Europa, uma
inglesa, Anna Maria Falconbridge, estava escrevendo um livro:
de viagem sobre a África que colocaria de cabeça para baix a tradição sentimental e suas vinculações abolicionistas. O
vro, intitulado Narrative of Two Voyages to the River Sierra Leone (Narrativa de duas viagens ao rio Sierra Leone) (1802), . é um dos raroslivros de viagem europeus sobre a África, es. critos por uma mulher antes de 1850, e um dos mais insólit
de qualquer período. Gênero, casamento e dominação mas-
culina são temas conspícuos em uma narrativa que se propõe expor a hipocrisia e a ignorância dos abolicionistas superfi ciais. Sentimentalismo e humanitarismo são arregimentado
para a causa do antiescravagismo.
Falconbridge foi para a África Ocidental em 1791. como a jovem esposa de Lorde Alexander Falconbridge, | um médico que, após anos de trabalho em navios negre ros, havia se tornado um conhecido abolicionista. Com
Account ofthe Slave Trade on the Coast ofAfrica (Relato 5 bre o tráfico de escravos na costa da África) (1788), el
havia contribuído para o arsenal literário do movimento| abolicionista, documentando vivamente os horrores do trá-. fico negreiro tanto para os africanos escravizados quanto | para os marinheiros europeus empregados nos navios.. Abandonando o “comércio africano”, Falconbridge asso.
ciou-se à Companhia Serra Leoa, empreendimento abolicio-.
nista voltado para o estabelecimento de colônias para ex. escravos (os “negros pobres”) em Serra Leoa, transporta
segundo o testemunho de Falconbridge, deixando-a lá para iniciar uma nova vida por si mesma.
Assim como Park, Stedman e outros sentimentalistas
de sua época, o relato epistolar das duas viagens de Falcon-
* bridge à África assume frequentemente a forma de uma nar-
rativa de sofrimentos e atribulações, utlizando as tradições
mais antigas da narrativa de sobrevivência. Além das maze-
las dos colonos de Serra Leoa, Falconbridge se concentra sobre suas próprias adversidades. Imediatamente ao chegar na
* África, por exemplo, ela é capturada e feita escrava. Seu captor, no entanto, não é outro que não seu próprio marido, que, para evitar que se envolvesse com os afluentes merca“dores de escravos do litoral, a mantém cruelmente confinada no apertado e imundo navio em que haviam chegado. Ao descrever seus alojamentos, Falconbridge certamente pretendia evocar as descrições abolicionistas de navios negrei-
ros (tais como aquelas escritas por seu próprio marido):
=
ta V
Ao discutir a história de Mme. Godin (ver capítulo 2). sugeri que as mulheres protagonistas tendem a suscitar inver sões irônicas quando surgem nas zonas de contato. Enquani
182
dos da América do Norte. Na companhia de sua nova esposa, Anna Maria, foi enviado pela Companhia, em 1791,
|
|
Pense em si mesmo confinado numa jaula flutuante, sem espaço para
andar, ficar de pé, ou mesmo se deitar estirado; exposto à inclemência do tempo, tendo seus olhos e ouvidos ofendidos a todo momento por atos de indecência e por uma linguagem abjeta demais para ser reportada — acresça-se a isso a imundície e o fedor que continua-
mente assalta seu nariz e você terá uma vaga noção do que era a escuna Lapwing.*
Quando Falconbridge consegue se libertar e chegar à Praia, ela começa, como qualquer viajante europeu, a obServar e fazer descobertas. Em contraste com a retórica da
anticonquista, todavia, as cenas que observa não são nem bem-vindas, nem inocentes. Ela vai para um jantar na casa
O Falconbridge — Narrative of Two Voyages to Sierra Leone,
London, L. I. Higham, 1802, reimpressão, London, Frank Cass, 1967, p.24.
183
| |
ciência e sentimento, 1750-1809.
“eros e abolição
de um dos mercadores de escravos locais, por exemplo, “involuntariamente passeia” até uma janela, “sem a mínima suspeita do que estava por ver”. Ela perscruta o pátio dos «A escravos: 2:08
* portadas da Inglaterra. Uma vez entre elas, Falconbridge
Avalie-se quais foram meu espanto e sentimentos ante a visão da 4 duzentas ou trezentas vítimas miseráveis, agrilhoadas e agrupadas em círculos, mitigando as exigências naturais de alimentação por
ta, o ver viola normas de conduta para o seu sexo. A divi-
meio de uma tina de arroz colocada no centro de cada círculo. E
O sentimento de culpa decorrente desta visão se.
transfere para ela mesma:
;
A virtude maculada admoestou-me com um rubor por nãoter eu
desviado o olhar de tais cenas revoltantes; mas, fosse por curi
sidade feminina, ou outra razão qualquer, não pude meretirar de lá por vários minutos... é bem certo que, desde então, evitei a
perspectiva deste lado da casa.”
dh
O termo “perspectiva” (prospects) lembra o sujeito eu: ropeu hegemônico que avalia a paisagem e sonha com sua| transformação. E como essa persona é um homem, posse sivo em sua vontade, então Falconbridge identifica se
olhar e desejo com seu sexo (“modéstia”, “curiosidade femi
nina”). Enquanto mulher, ela não deveria ver, mas ser vista, ou pelo menos não ser vista vendo. ;
Em contraste com a retórica da descoberta objetivista, | cuja autoridade é monológica e auto-suficiente, Falconbridge é resolutamente dialógica, procurando (mais do que des-
denhando) o conhecimento local. Suas descobertas subse-. quentes, longe de alçar à glória os desígnios europeus, dá| vazão a uma crítica veemente contra seu marido, os aboli-. cionistas, a Companhia Serra Leoa e o governo britânico. | Seu olhar revela não as utopias da anticonquista, mas as dis: | topias de exploração e negligência, tanto mais inquietantes 4 por serem frutos do humanitarismo. O estabelecimento |
cujas dificuldades eles têm de aliviar, é uma comunidade bi | racial de escravoslibertos da Nova Escócia e mulheres trans: |
relata novamente o que gostaria de jamais ter sido levada a saber: “Nunca vi, e Deus permita que jamais venha a testemunhar outra vez, tanta miséria quanto fui aqui forçada a
ver.”* Em contraste com a retórica masculina da descobersão do trabalho é muito bem definida: os viajantes homens devem ser impulsionados pela curiosidade, que legitima cada um de seus movimentos; em Falconbridge, a curiosidade (desejo), rotulada como feminina, deve ser mantida
sob controle. Sua professada relutância em saber parece a
antítese da possessão, uma recusa da supremacia. É uma
outra forma de anticonquista.
Em completa privação, os desiludidos colonizadores
relatam ter emigrado com base em mil e uma promessas, afinal não cumpridas pela Companhia. Disputas com os habitantes locais tornaram impossível assentar os colonos onde eles pudessem se manter. “Estou surpresa”, afirma “ Falconbridge, “nossos famigerados Filantropos, os Diretores da Companhia, deveriam se submeter à crítica que merecem por brincar com as vidas de tal número de seus próximos, e com isso quero dizer, por mandá-los em tal número, de uma só vez para cá, antes que casas, material de construção ou outras comodidades estivessem prepara-
das para recebê-los.”” Ela se sente particularmente aflita com a condição física e espiritual de sete mulheres britãnicas do grupo. Ao conversar com elas, relata, dizem-lhe que não são de forma alguma colonizadoras voluntárias,
mas prostitutas de Londres que haviam sido agrupadas, drogadas, “seduzidas a ir a bordo do navio, e casadas com homens negros a quem jamais haviam visto antes,” e en-
tão embarcadas para a África para uma nova vida. Nova-
Mente, a reação de Falconbridge é um protesto emoldurado por uma retórica de descrença inocente. “Meu bom
Deus”, diz ela, |
o
36. Ibid., p.38.
37. Ibid., p.150.
o
185
“eros e abolição
ciência e sentimento, 1750-1800.
“nha alguma vez sentido por ele.”” Ela rapidamente encon-
o conteúdo desta história fez-me estremecer; ... não consigo ae al ditar nela; pois é difícil imaginar que o Governo Britânico, ne era avançada e iluminada, invejado e admirado como é port o universo, possa ser capaz de exercer ou permitir tal Gótica in. fração da Liberdade humana *
“tra um novo companheiro na colônia. Assim, ecos do femi-
nismo de finais do século XVII encontram lugar na zona de
* contato, paradoxalmente no contexto de um sistema favorável ao escravismo! Em suas páginas finais, Falconbridge de-
clara que havendo “adquirido informação suficiente para
Liberdade, iluminismo, progresso, o universo — o vocabulário oficial do humanismo burguês é sarcasticamente convocado a prestar contas. A retórica de descrença 4 Falconbridge, como seu professado desejo de não saber, f
formar pensamentos independentes sobre o assunto,” ela
agora considera a escravidão “de forma alguma objetável
* seja pela moralidade ou religião.”*
pouco da autoridade dos discursos magistrais que aleg querer ver e saber, mas que apenas vêem o que querem ver
e sabem o que querem saber.
Anna Maria Falconbridge se encontra mais isolada nos anais do relato de viagem africano do que se poderia espe“ar. Enquanto viajante e escritora viajante, ela mantém pontos “ de contato com as “exploradoras sociais” dos anos 1820-1840,
1a
Ao mesmo tempo, em termos do sistema de gênero, a retórica de Falconbridge é menos uma antítese da retóri:
cujos escritos discuto no capítulo 7. Porém, enquanto Park,
ca masculina de descoberta e possessão que seu exato com-. plemento, uma realização exata do outro (Outro) lado dos valores masculinos de cujos suportes compartilha. Da mes-
“ Stedman e outros sentimentalistas tiveram muitos admirado-
res e discípulos, ninguém parece ter seguido as pegadas de Falconbridge. Enquanto as escritoras eram “autorizadas” a
ma forma que a retórica masculina de descoberta, a rejeição. feminina do conhecimento, assumida por Falconbridge, |
funda-se em pressupostos de privilégio e inimputabilidad europeus, em anticonquista. Sua linguagem partilha o mes-|
mo imperativo de inocência de Park, Barrow ou Stedman,. embora o imperativo seja atendido de maneira diferente:
Falconbridge afirma uma inocência já garantida pelo seu
sexo. O que é incomum a respeito de seu texto é que ela utiliza esta candura como base de lançamento para um atar que muito específico a uma outra versão da anticonquista. Por se manter na tradição sentimental, o aspecto por
lítico na narrativa de Falconbridge se apresenta nas esferas,
a decisão de Joana de permanecer na América, mostra, desde seu interior,
Os limites das ideologias de amor romântico e humanitarismo. A despeito de sua postura favorável ao escravagismo, o apoio crítico que Falconbridge lhe empresta, assim como seu relato de uma história de vida anti-
sa como um momento crítico no qual as feministas européias lutaram para
vinda, posto que, por seus maus tratos, ela desde muito ha via afastado “qualquer fagulha de afeição que porventura td K
186
39. Ibid., p.169.
40: Ibid., p.186. Embora o livro de Falconbridge tenha sido indubitavelmente motivado, se não patrocinado, pelas campanhas a favor da escravidão na Inglaterra, a autora também revela um motivo pessoal para publicar suas cartas, uma vingança privada, radicalmente não sentimental (aqui também, o político é pessoal): a Companhia tem se recusado sistematicamente a pagar as somas devidas a seu marido. Sua vendetta, como
mo do século XVII. Historiadores das mulheres da era burguesa, frequentemente, consideram as duas décadas subsequentes à Revolução France-
tura morte de seu esposo como sendo perfeitamente bem.
38. Ibid., p.66.
|
moralista, fazem com que, até certo ponto, deva ser alinhada ao feminis-
do erótico e do doméstico. Enquanto nahistória de Stedman e Joana, o casamento é incongruente com a escravidão, Mt texto de Falconbridge os dois são um, tanto para as prostr tutas britânicas quanto para si mesma. Ela qualifica a prema
|
produzir romances, seu acesso ao relato de viagem parece ter ““sido ainda mais limitado do que seu acesso à viagem propria-
consolidar aberturas para uma mudança radical no sistema de gênero, enquanto outras forças procuravam fechá-las por meio de artifícios como as leis de restrição à participação política feminina. O radicalismo do fim do Século XVIII, segundo esta leitura, foi amplamente derrotado no início do século XIX, cooptado pelas ideologias da domesticidade ou maternidade republicana, ou contido em movimentos claramente oposicionistas como
O fourierismo. CE. Joan Landes — Women and the Public Sphere in the Age
of the French Revolution, Ithaca, Cornell U. P., 1988.
187
ciência e sentimento, 1750-1800
mente dita, pelo menos quando se tratava de deixar Europa. Enquanto leitoras, evidentemente, elas eram impor.
tantes e participantes ativas no gênero. Algumas vezes entra.
vam no processo de escrita pela porta dos fundos. Em 181 uma inglesa chamada Catherine Hutton publicou um livro ij ntitulado The Tour ofAfrica (A viagem através da África), uma. jornada ficcional através da África compilada a partir da lite-.
ratura de viagem existente sobre a região. O livro é narrado. na primeira pessoa por um personagem masculino fictício. que se apresenta em apaixonada descrição: Sou filho de um cavalheiro do campo inglês, de boa família
grande fortuna. A primeira coisa gravada em minha mente
minha mãe foi a de que nasci para ser um grande viajante. Se
repetição constante dessa previsão, durante minha infância, tev alguma influência na formação de meu caráter ... deixo para qu osfilósofos decidam; mas é certo que, quando podia escapar de | minha babá, era encontrado em algum terreno ou posto em qu
não havia estado antes. . . Quando completei vinte e um anos, encontrava-me rico, independente, sem qualquer relação de consangúinidade com meu país nativo, e resolvi seguir o meu destino, ou gratificar a minha inclinação, qualquer que fosse o princí-| pio determinante, vendo o mundo.”
“eros e abolição
africanas. Às histórias narram episódios da vida local da
- África Ocidental, no mais das vezes, com protagonistas africanos.? Tudo, de acordo com o prefácio de Lee, “alicerçado na verdade: cada descrição das cenas, modos e costumes
foi tirada da vida real.”* Ainda que ela admita uma grande " inclinação por “estudos e reflexões sobre fatos”, Lee não contempla a possibilidade de escrever seu próprio relato dos anos que passou na África Ocidental. No entanto, o que se verifica é que Lee engenhosamente faz de suas histórias um ensejo para — e não um “substituto — suas próprias lembranças da África. Cada
uma das narrativas vem acompanhada por uma enorme
lista de notas de rodapé, algumas delas se estendendo por páginas e complementadas por ilustrações. É aqui, nas notas, que encontramos o conteúdo do livro de viagem que Lee jamais escreveu: comentários explicativos, descrições etnográficas, observações de flora e fauna, anedotas pessoais.“ Em seu livro, as notas parecem ser a
“principal fonte de vaidade de Lee. Na introdução, ela reclama da necessidade de se conter ao escrevê-las, “para
reprimir uma exuberância de observação e circunstân-
cias” e para “evitar o egocentrismo”: “O número de 'eus' que suprimi, as sentenças que tiveram de ser transforma-
Não se pode deixar de imaginar se essa introdução con- |
vencional foi também a fantasia de Hutton sobre si mesma. | Nenhumtexto expõe mais claramente a divisão sexual| de trabalho, envolvendo viagem e escrita, do que um livro. intitulado Stories of Strange Lands and Fragments from the |
Notes of a Traveller (Histórias de terras estrangeiras e frag- .
mentos de anotações de um viajante) (1835), por Sarah Lee |
(ou sra. R. Lee, como assinava). Lee era viúva de T. Edward| Bowdich, conhecido naturalista e comerciante que havia |
viajado pela África Ocidental procurando negociar acordos. mercantis com os ashanti. Como ela afirma, Lee ocupava-se |
diligentemente da edição dos escritos póstumos de seu ma- | rido, quando um editor de revista a estimulou a escrever al |
gumas histórias baseadas em
suas próprias experiências |
41. The Tour of Africa, seleção e organização de Catherine Hutton, 3 q vols., London, Baldwin, Cardock and Joy, 1819, vol. I, pl.
188
|
42. Sra, R. Lee (antes Sra. T. Edward Bowdich) — Stories ofStrange Lands and Fragments from the Notes of a Traveller, London, Edward Moxon, 1835. Em suas palavras introdutórias, a primeira história, “Adumissa”, atribui a Lee a autoridade de mediadora, com base na quintessência do dra-
ma doméstico da zona de contato, seu diálogo com o criado: “Aquela foi a casa de Adumissa', disse meu criado certo dia, enquanto me assistia
num passeio pela cidade de Ogwa. 'E quem foi Adumissa?”, perguntei.
'Ora, madama, não ouviu vosmecê falar de Adumissa, que era a mulher
mais bonita que homemnegro já viu?” (p. 1). 43. Ibid., pexiv.
44. A passagem citada na nota 42, por exemplo, vem acompanhada de uma observação de pé de página ondese lia: “Adumissa era como geralmente se chamava,na costa ocidental da África, uma mulherde pele avermelhada; ou seja, sua compleição era de um marrom rico e quente e que Certamente torna mais distintos os traços de beleza e as emoções interioTres que a pele totalmente negra...” (ibid., p.19), Esta história de dezenove páginas é seguida de doze páginas de notas sobre uma vasta gama de itens, de flores e frutas à arquitetura e o uso das presas do elefante.
189
ciência e sentimento, 1750-180 )
das e retorcidas para evitar este provocativo monossílab é quase inacreditável.”5 Rasurado, revirado e deturpado: a própria Lee nom
as restrições ao seu relato, mesmo que só resista a elas
cialmente. Não é coincidência que dedique seu livro a nova figura feminina de autoridade no cenário europeu rainha Vitória. Em sua dedicatória, Lee a lembra explie mente de que “a proteção daliteratura e das escritoras é objeto digno de uma Rainha Britânica.” No que tange ao
relato de viagem, Vitória certamente atenderia aquela d
manda, pois durante o seu reinado houve uma profusão de relatos de viagem de mulheres tão global e imperial quan suas próprias ambições territoriais.
E:
ros e abolição
“20 de dezembro de 1989: A despeito de novas conversações de paz mantidas na semana passada entre o comandante do exército Desi Bouterse e o líder rebelde Ronny Brunswijk, os com-
bates continuam a recrudescer na guerra civil que envolve a nação há três anos e que até recentemente estava relativamente paralisada. De acordo com o governo, na manhã do dia 4 de dezembro os mercenários contratados por Brunswijk atacaram o posto militar em Kraka no Suriname oriental, matando seis soldados do governo. O ataque veio na esteira de conversações
com os rebeldes, que Bouterse havia qualificado como tão “positivas quanto otimistas.”
(Washington Report on the Hemisphere)
pós-escrito 23 de Julho de 1989:
Jornais holandeses noticiaram no domingo que guerra de guerrilha no Suriname terminou num acordo que permitirá aos rebeldes manter suas armas € nalmente se juntar à força policial daquela naçãola
no-americana.
4
(San Jose Mercury News).
45. Ibid., p.xiv. 46. O material sobre as mulheres vitorianas viajantes inclui Leo Hamalian|
— Ladies on bte Loose: WomenTravellers of the 18ºP and 19” centuries, (1981); Herbert M. van Thal (ed.) — Victoria's Subjects Traveled, London, A. Barker, 1951; Dea Birkett — Victorian Women Explorers, London, Basil Blackwell, 1990; Marion Tinling — Women Into the Unknown: A Sourci
book on Women Explorers and Travelers, New York, Greenwood, 1989. |
A Beacon Press recentemente começou a publicar uma série de livros de | viagens empreendidas por mulheres que inclui um número de vitorianas.. Para a discussão da hoje legendária Mary Kingsley, consulte-se o capí lo 9, adiante.
190
191
“parte 2 a reinvenção da américa, 1800-50
capítulo 6
alexander von humboldt e a
reinvenção da américa
No Velho Mundo, as nações e as distinções de sua civilização formam os principais pontos no quadro; no Novo Mundo, o homem
e suas criações quase que desaparecem em meio à estupenda
mostra de selvagem e gigantesca natureza. A raça humana no
Novo Mundo apresenta apenas uns poucos remanescentes das
hordas indígenas, pobremente avançados em civilização; ou então meramente exibe a uniformidade de maneiras e instituições
transplantadas por colonos europeus para costas estrangeiras.
(Alexander von Humboldt — Narrativa pessoal de viagens às regiões equinociais do novo continente (1814))
Você está interessado em botânica? Minha esposa também. ((Únicas) palavras de Napoleão a Alexander von Humboldt (1805))
Fo: numa estrutura social intrincada e numa con-
— juntura histórica crítica que Alexander von Humboldt e
“ Aimé Bonpland pisaram ao chegar à América do Sul em 1799. Ao longo dos marcantes cinco anos que se seguiram, * eles participaram daquele período enquanto viajavam pelo
que gostavam de chamar de Novo Continente. Sua jornada
istórica e o monumento impresso que ela produziu estabe-
leceram as linhas para a reinvenção ideológica da América 195
a reinvenção da américa, 1800-50:
do Sul, operada nos dois lados do Atlântico, durante as tu-.
multuadas primeiras décadas do século XIX. Enquanto in. surreições populares, invasões estrangeiras e guerras de in. dependência convulsionavam a América espanhola, os ex. tensos escritos de Alexander von Humboldt sobre suas via-
gens equinociais fluífam de Paris em diapasão constante, alé cançandotrinta volumes durante o mesmo número de anos Numa época em que o abrandamento das restrições às via gens começava a levar um grande número de viajantes europeus à América do Sul, Humboldt permaneceu como o:
único interlocutor mais influente no processo de reimagina-: ção e redefinição que coincidiu com a independência da. América espanhola em relação à Espanha. Humboldt era, ainda é, considerado como “o explorador mais criativo de
seu tempo”; suas viagens americanas foram vistas como “um modelo de jornada de exploração e um supremo triunfo | geográfico.” Ele foi celebrado tanto na América européia .
quanto na Europa, e seusescritos foram a fonte de novas e |
seminais visões da América nos dois lados do Atlântico. | Charles Darwin escreveu a bordo do Beagle que “todo o. curso de (sua) vida deveu-se ao fato de ter lido e relido” em
sua juventude a Narrativa Pessoal de Humboldt.? Simón Bolívar, arquiteto chefe da independência da América espa-. nhola, rendeu homenagem ao “Barão Humboldt” como “um |
grande homem que, com seus olhos, arrancou a América d
sua ignorância e, com sua pena, pintou-a tão bela quanto. sua própria natureza.” Este capítulo e os dois seguintes
abordam a reinvenção ideológica da América do Sul nas pri.
meiras décadas do século passado, adotando uma série de.
perspectivas. Neste capítulo examino os escritos de Alexan-| der von Humboldt sobre a América do Sul e sua relação|
1 1. Hanno Beck — “The Geography of Alexander von Humboldt”, em. Wolfgang-Hagen Hein (ed.) - Alexander von Humboldt: Life and Work, | traduzido do alemão por John Cumming. Ingelheim am Rhein, C. E.)
“ alexander von humboldte a reinvenção da américa
* com paradigmas anteriores da literatura de viagem e com as
ambições européias na região. O capítulo 7 aborda a onda de escritores viajantes que seguiram nas décadas de 1810,
1820 e 1830, quando a América espanhola se abriu total-
mente para visitantes norte-europeuse, acima de tudo, para
o capital norte-europeu. Nesse contexto, apresento uma
comparação entre escritores masculinos e femininos. O ca-
pítulo 8 avalia como os intelectuais sul-americanos, defron-
tando-se com a nova era republicana e a afluência do investimento europeu, selecionaram e adaptaram perspectivas
européias enquanto procuravamcriar valores descoloniza-
dos e hegemonias. Da mesma forma que no restante deste livro, um tema central continua sendo o das relações entre
o relato de viagem e os processos de expansão econômica
européia. O fim do domínio colonial espanhol implicou uma ampla renegociação das relações entre a América espa-
nhola e a Europa setentrional — relações políticas e econômicas e, com igual relevo, relações de representação e ima* ginação. A Europa teve de reimaginar a América e a América, a Europa. A reinvenção da América, portanto, foi um processo transatlântico que envolveu as energias e imagina-
ções de intelectuais e de um vasto público leitor em ambos
os hemisférios, embora não necessariamente da mesma forma. Para as elites da Europa setentrional, a reinvenção é li-
gada a prospectos de grandes possibilidades expansionistas
para o capital, tecnologia, mercadorias e sistemas de conhe-
cimento europeus. As elites recém-independentes da Amé-
rica espanhola, por outro lado, se deparavam com a necessidade de uma auto-reinvenção no que se referia às massas européias e não européias que procurariam governar. Não
deixa de ser fascinante, assim, que os escritos de Alexander von Humboldt tenham fornecido enfoques fundamentais Para estes dois grupos.
Boehringer Sohn, 1987 (original alemão de 1985), pp.221, 227. j 2. Citado em Douglas Botting — Humboldt and the Cosmos, New York, /
Harper & Row, p.213.
a
traduzida por mim para o inglês.
=
3. Simón Bolívar — Carta a A. von Humboldt, 10 de novembro de 1821, q
196
197
a reinvenção da américa, 1800-509
“uma situação muito extraordinária. e complicada”
á
“alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Quando os povos indígenas dos Andes se revoltaram nos “anos 1780, suas demandas incluíram a eliminação de uma “Jista impressionante de encargos impostos pelas elites coloniais, religiosas e crioulas.
A despeito de sua própria subordinação aos espa-
* nhóis, após três séculos os crioulos euro-americanos ha-
Quando Humboldt e Bonpland zarparam de
Coruha, a estrutura da América colonial espanhola já e
va numa crise aberta há pelo menos duas décadas. N dez anos seguintes teriam lugar transformações revolucio nárias maduras, culminando com a independência de to
a América continental espanhola em 1825. A sociedade co
lonial espanhola era culturalmente complexa, forteme hierarquizada e saturada de conflitos. Os espanhóis nasci dos na Europa ocupavam o topo da escala social e mant nham o monopólio dos maiores privilégios políticos
econômicos. Abaixo deles vinham os criollos (crioulo isto é, as pessoas nascidas na América e com declarada cendência européia (ou branca). Abaixo destes, vinha grande maioria da população americana, agrupada
“viam se estabelecido solidamente como elites proprietárias de terras, comerciantes, mineradoras e burocráticas com controle de enormes recursos, incluindo grandes extensões de terra, O trabalho forçado de milhares de escra-
vos africanos e índios sob servidão temporária, e o poder de cobrar impostos e tributos de qualquer um de seus in-
feriores hierárquicos. Em 1800, por exemplo, na província
de Caracas, onde Humboldt e Bonpland iniciaram sua jornada sul-americana, a população compreendia meio mi-
lhão de pessoas, dos quais 25.5% eram classificados como
brancos (principalmente crioulos), 15% negros escravos, 8% de negros libertos, 38.2% de pardos e 14% de ameríndios.” Umas 4.000 pessoas, cerca de 0.5% da população,
acordo com as várias ascendências não européias: indi negros (libertos ou escravos), mestiços, mulatos, zambos|
possuíam toda a terra produtiva, que era trabalhada pelo conjunto de mão-de-obra composta por escravos africa-
de ascendência índia, européia e africana. (Este foi o rest
Terra natal dos líderes revolucionários Francisco Miranda,
outros* — as categorias se multiplicaram, assinalando grat tado da obsessão da Espanha com a pureza de sangue, legado de seu contato com a África do Norte transplan do nas Américas.) O trabalho dessas maiorias subordin
das, especialmente ameríndios e africanos, tinha produz do a riqueza da Espanha e, de fato, da Europa, nos d
nos, negros libertos, peões mestiços e brancos pobres.
Simón Bolívar e Andres Bello, a Venezuela seria o centro do movimento de independência liderado pelos crioulos na América do Sul, e foi lá que Humboldt e Bonpland pasSaram seu primeiro ano.
séculos e meio que se seguiram à conquista espanho.
zambo a uma pessoa de progênie africana e ameríndia. O termo pardi como o inglês “colored”, é algumas vezes utilizado para se referir todos esses grupos. Esses termos apenas tocam a superfície da cla cação racial na sociedade colonial espanhola. (N.T.: No original ingl o,
RR líderes da revolta no Peru emitiram um comunicado acusando a coroa espanhola de “impostos insuportáveis, tributos, 'piezas', lanzas', tarifas aduaneiras, impostos sobre vendas, monopólios, “cadastros”, dízimos, despesas militares, vice-reis, cortes supremas, magistrados-chefes e outros ministros, todos semelhantes em sua tirania, os quais, juntamente com os servidores judiciais da mesma laia, vendem a justiça em leilão ... abusando dos nativos do reino como se fossem animais, condenando à morte todos aqueles que são incapazes de roubar...” Extraído de Boleslao
Nesta tradução brasileira, optamos por grafá-los em vernáculo e itáli dada a grande proximidade semântica da maioria deles nos doi f idiomas neolatinos. a
p.153. Tradução para o inglês de Jan Mennell. 6. John Lynch — The Spanish American Revolutions 1808-1826, New York, W. W. Norton, 1986 (22, edição), pp.190-1.
au
«a
4. O termo mestiço se refere a uma pessoa de ascendência européia& ameríndia; mulato, a um indivíduo de origem africana e europél
estes termos são grafados em espanhol, estando por isso em itálico
198
Lewin — Tupac Amaru, Buenos Aires, Siglo Veinte, 1973, Apêndice 1,
199
Como eles puderam facilmente notar, desde há m to tempo os proprietários de terra e comerciantes crioul se impacientavam com os privilégios políticos e restriçõ econômicas impostas pelos espanhóis. Por outro lado, muitos viam na Espanha o único poder capaz de mante o controle sobre as maiorias subalternas. Seus temor eram bem fundados. A inesperada força dos quilombosd rebeldes no Suriname, a tenacidade dos índios caribenh
em St. Vicent, o grande, embora fracassado, levante do índios andinos em 1781 e a bem-sucedida revolta escra de Santo Domingo em 1790 haviam devida e univers mente aterrorizado em toda parte as castas feudais e os. donos de escravos. Todas essas violentas ocorrências ain da estavam (e, a propósito, estão ainda hoje) se suceden-
Y do quando Humboldt e Bonpland entraram em cena. Tais. precedentes, juntamente com ideologias revolucionárias.
da França, Caribe e Estados Unidos, estavam galvanizan.
do as já rebeldes populações subordinadas, muitas veze
em torno de líderes letrados, preparados para levar adian: te suas reivindicações por meio de vias institucionais. Em .
1795, na Venezuela, um grupo de escravos em revolta de. mandou a formação de uma república sob a “lei france-
sa”, com a emancipação dos escravos e abolição de al
guns impostos particularmente ultrajantes. Dois anos mais .
tarde, uma ainda mais ameaçadora aliança multirracial en-
tre trabalhadores e pequenos proprietários produziu uma |
conspiração radical com o mesmo programa a que se | acrescentava “a abolição do tributo indígena e a distribui
ção de terras para os índios.” Clamava-se também pela|
“harmonia entre brancos, índios e pardos, “irmãos em | Cristo e iguais perante Deus,”
Tais levantes coincidiam com um esforço da Espa-
nha, em finais do século XVIII, para reafirmar seu contro- |
le sobre as colônias. Com efeito, o patrocínio espanhol das | |
7. Ibid., p.194. Aqui e ao longo desses comentários tenho me baseado | no lúcidas e detalhadas considerações de Lynch.
200
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
viagens de Humboldt e Bonpland era "como suas economias internas locais do, as colônias americanas tinham se endentes e menos lucrativas para a
parte deste esforço. haviam se expanditornado menos deEspanha. Contraria-
: mente ao que estereótipos podem sugerir, a coroa espa-
nhola procurou reassegurar seu controle por meio de um
movimento de reformaliberal. Estimulada em parte pelos
relatórios de Antonio de Ulloa e Jorge Juan, os acompanhantes da expedição La Condamine, a Espanha começou a se encaminhar para a modernização do que via como estruturas coloniais políticas e sociais obscurantistas erigidas sobre o dogmatismo religioso, despotismo local, escravidão e exploração brutal dos povos indígenas. Para muitos membros das elites crioulas, a Espanha passou a ser vista
cada vez menos como sua protetora contra as massas re-
beldes; para membros das maiorias subordinadas, ela começou progressivamente a se afastar da imagem de inimi-
go opressor. Os crioulos conservadores ficaram furiosos
“com a legislação que garantia os direitos das maiorias subordinadas nas colônias, que abria as escolas para a popu-
lação dos “negros livres”, que coibia os abusos contra os
escravos, servidão temporária, os sistemas de tributos, e assim por diante. O sistema de missões também foi desafiado, na medida em que a Espanha procurou reintegrar as
missões à hierarquia eclesiástica normal e substituir os mis-
sionários independentes por padres e por um controle centralizado. Quando os conflitos coloniais recrudesceram,
pela época em que Humboldt e Bonpland chegaram, não era raro ver as maiorias exploradas ao lado da “iluminada”
coroa espanhola contra os “libertadores” crioulos. Da mes-
ma maneira, alguns crioulos apoiaram a independência,
principalmente, como uma forma de assegurar seus privi-
légios de classe contra o desafio liberal de sua pátria-mãe.
Em 1794, os fazendeiros venezuelanos conseguiram forçar a rejeição de uma nova lei sobre os escravos que a Espanha havia imposto cinco anos antes e que havia clarificado o direito dos escravos e as responsabilidades de seus donos. Era, como Simón Bolívar observou em sua famosa
201)
mama e —
a reinvenção da américa, 1800.5
É, exander von humboldt e a reinvenção da américa
a reinvenção da américa, 1800
construiu comotal. Ao contrário dos discípulos de Lineu ou
carta para a Jamaica em 1815, “uma situação muito extra
empregados da Associação Africana, ele não escreveu “dos 4
dinária e complicada”. ; A partir da década de 1780, crioulos de todas facções adeptas da independência peregrinaram até Londr,
ou viajou como um humilde instrumento dos aparatos eu-
por outro lado, floresciam os contatos entre as associaçõ O.
protecionismo hispânico havia sido legendário, mantendo.
os portos da América espanhola oficialmente fechados p
mercadorias e quase todas as pessoas estrangeiras. O cor e Pt
trabando sempre fora comum, mas por volta de 1780 a d
manda por relações comerciais mais amplas havia tornado | inexequível o sistema como um todo. Muitos estudiosos du-. vidam que os movimentos de independência da América es-. panhola tivessem se cristalizado se não fosse pela incansá: vel pressão do capital norte-europeu. Muitos também con-.
er era
Et
h
sideram os interesses expansionistas europeus como uma |
na io o k = Bm
das razões pelas quais aqueles movimentos fizeram tão pou-. co para mudar as estruturas sócio-econômicas básicas.
“a viagem de trinta volumes Em parte, devemos agradecer à ideologia romântica | pela estatura monumental que a figura de Alexander von | Humboldt adquiriu na historiografia do século XIX. Mais | que qualquer outro autor discutido neste livro, Humboldt foi e é reconhecido não como viajante ou escritor de via-
gem, mas como um Homem e uma Vida, numa forma que se tornou possível apenas na era do Indivíduo. Humboldt se
|
8. Simón Bolívar — “Reply of a South American to a gentleman of this island Qamaica)”, 6 de setembro de 1815. Tradução para o inglês a cargo | de Harold A. Bierck, Jr. (ed.) e Vicente Lecuna (compilador) — Selected Writings of Simón Bolívar, New York, Colonial Press, 1951, vol. I, p.110.
202
] quema
paternal consubstanciado por uma autoridade em
dinário vigor, habilisuapátria de origem. Pessoa de extraor 2 as jornadas e temas própri suas * dade e ilustração, estruturou a energia de uma ção " de estudo e despendeu em sua efetiva
escritos assuvida inteira. Tanto suas viagens quanto seus
mem uma proporção épica a que ele devotou sua vida e for-
tuna para criar. Pois Humboldt efetivamente teve uma Vida
que só o destino pode propiciar. Ao contrário de Anders
Sparrmans ou de Mungo Parks, Humboldt era membro de
uma elite nacional possuidora de riqueza própria, com a
qual ele organizou e promoveu seus empreendimentos geográficos e literários. A escala épica de seus feitos é devida
— tanto à sua fortuna e ao perfil de sua época, quanto ao seu próprio gênio audacioso e à sua apaixonada auto-realização. Ao escrever sobre Humboldt, portanto, deparamo-nos com a obrigatoriedade de nos reportar à Vida e ao Homem.
No que se segue, tanto reconhecemos quanto resistimos a
esse imperativo. Num paradigma muito frequentemente associado às
mulheres viajantes vitorianas, o que moveu Humboldt foi
sua herança e uma orfandade longamente esperada.” Ele nasceu em 1769, o mesmo ano que Napoleão, e tinha apes nes9. Ao contrário da maioria de outros escritores de viagem discutido acadêmicos, te livro. Humboldt tem sido objeto de significativos estudos Alemanha. em grande parte laudatórios e provenientes principalmente da Alexander von As fontes básicas incluem os dois volumes de Hanno Beck AleHumboldt. Wiesbaden, Franz Steiner, 1959; Heinrich Pfeiffer (ed.) —
xander von Humboldt: Werk und Weltgeltung, Munich, R. Piper, 1969;
Forscher, Kurt Schleucher - Alexander von Humboldt: Der Mensch, Der recentes, fontes s melhore das Uma Der Schrifisteller, Berlin, Stapp, 1988. t: LeHumbold von er Alexand ensaios de a coletâne ilustrada a belamente ger Sohn, 1985), ediben und Werken (Ingleheim am Rhein, C. H. Boehrin
inglesa tada por Wolfgang-Hagen Hein,foi lançada em 1987 em tradução es. Em francês, de John Cumming. Os ensaios e à bibliografia são excelent
203
ame
britânico e francês haviam recusado alianças oficiais comos
=D
e Paris procurando apoio contra a Espanha. Os governos
comerciais da América do Norte e da América espanhola.
seu cria“ropeus para obtenção do conhecimento, mas como um esde em nome “dor. Ele não foi enviado para missões e
a reinvenção da américa, 1800
nas oito anos quando seu pai faleceu, em 1777, após has
prestado serviço por vários anos na corte prussiana, con
camareiro de Frederico II. Alexander e seu irmão Wilhe m então com 10 anos, foram deixados com sua mãe, uma huguenote francesa e severa calvinista. Suas infâncias transe; reram num ambiente austero, devotado inteiramente à
dição livresca. Beneficiaram-se muito do privilégio curio:
mas frutífero, de crescer na corte sem pertencer à nobreza,
Intelectos ousados, exerceram uma impressão marcani
Dara Pam E
no k E: Ra
| |
“dormia apenas quatro horas por dia, gastava pouco tempo
em companhia feminina e lia um grande número de bons livros.”"” Quando sua mãe morreu, em 1797, Humboldt viu-se
livre, aos 30 anos, para deixar a carreira da qual havia se en* fastiadoe darvazão a seu apaixonado desejo de deixar a Eu-
Wilhelm apaixonou-se pela linguagem e filosofia, Alex
* te, um convite para acompanhar uma missão inglesa que pre-
que lhe permitiu desenvolver suas inclinações científicas, com
|
çar a publicar e a viajar pela Prússia. Desde hámuito temme “no havia ele adquirido os hábitos que caracterizariam a “vida, assim descritos por um admirador contemporâneo: “Ele
“ropa — para praticamente qualquer outro lugar. = Levou algum tempo para que isso fosse viabilizado.
der, pelas ciências naturais, que estudou na Universidad ] Góttingen e na Escola de Minas de Freiburg. Como estuda te, Alexander tornou-se amigo íntimo de Georg Fórster, naturalista que havia acompanhado Cook em sua segunda: viagem, e cujos escritos o haviam tornado famoso. Os do viajaram juntos em 1790 para a Inglaterra e até a Paris revolucionária. dg Terminados seus estudos, Alexander estabilizou-se financeiramente, trabalhando como consultor de mineração inspetor do governo prussiano, uma posição que não esta à altura nemde seus talentos, nem de suas ambições, mas|
Ko
|
quando jovens em Berlim, onde frequentavam os salons.
judeus liberais em lugar daqueles da aristocracia alem
k E
jexander von humboldt e a reinvenção da américa
uma fonte básica é, de Charles Minguet, o enciclopédico e a-crítico Ale- |
xander von Humboldt, Historien et géographbe de rAmérique espagnol, 1799-1804, Paris, Maspero, 1969. Minguet também organizou a edição da, Biblioteca de Ayacucho das Cartas Americanas, de Humboldt (Caracas, q 1980), com traduções de Marta Traba. Como sempre, a edição de Ayacu: Ny cho traz umabibliografia extraordinariamente útil. Entre os trabalhos mais à populares, Humboldt and the Cosmos (New York, Harper & Row, 1973), . de Douglas Botting, é vivaz e útil; Pierre Gascar — Humboldt | explorateur | (Paris, Gallimard, 1985) contribui com poucas novidades, a não ser por 4 alguma franqueza sobre a homossexualidade de Humboldt. Entre fontes hispano-americanas sobre Humboldt, utilizei particularmente, de Oscar |
Rodríguez Ortiz (ed.), Imágenes de Humboldt, Caracas, Monte Avila, 1985.
O professor Kurt Miiller-Vollmer, da Stanford University, descobriu recen- | temente uma vasta coleção de manuscritos e correspondência de Humboldt, na Alemanha, que provavelmente afetará a futura discussão do re. levo de Alexander sobre a obra de seu irmão Wilhelm.
204
Projetos para as Índias Ocidentais fracassaram; posteriormen-
“ tendia subir o Nilo foi inviabilizado pela invasão do Egito por
Napoleão. Uma oportunidade de se juntar à expedição fran-
“ cesa ao redor do mundo surgiu e, em seguida, se evaporou.
Com Bonpland, a quem havia encontrado em Paris, Hum-
boldt novamente teceu planos para o Egito, na esperança de
* se associar à expedição de Napoleão; novamente a guerra e a política franco-prussiana interferiram. Ilhados em Marselha,
sem outro lugar para ir, os dois partiram para a Espanha com a ambiciosa intenção de promover uma jornada para a Améo
|
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10. Prefácio de Pierre Bertaux, em Hein, op. cit., p.7. Como sugere esta citação, a homossexualidade de Humboldt continua a ser tratada de maneira cavalheiresca por parte de seus comentaristas, isto é, como um segredo constrangedor. Ele vivia num mundo quase que exclusivamente masculino de colegas, discípulos, amigos e companheiros e sustentou uma série de relacionamentos íntimos duradouros. Um companheiro de muito tempo foi o jovemaristocrata equatoriano Carlos Montúfar, que encontrou Humboldt em Quito, em 1802, e o acompanhou, junto com Bonpland, pelo restante de suas viagens americanas e em seu regresso à Europa. Na
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França, Montúfar parece ter sido substituído na vida de Humboldt por Louis Gay Lussac, famoso comofísico e balonista, com quem Humboldt viajou e viveu por vários anos. Talvez a mais conhecida de todas tenha sido a apaixonada ligação de Humboldt com o astrônomo François Arago, com quemse encontrou todos os dias por quinze anos. Assim como muitos viajantes europeusdo século passado e do atual, o prazer de Humboldt em viajar indubitavelmente advinha, em parte, da necessidade de escapar das estruturas sexistas e matrimonialistas da sociedade burguesa. A história da viagem e da ciência é significativamente erigida sobre o fato de que eramestes contextos legítimos para a intimidade entre indivíduos do mesmo sexo e para uma sociedade exclusivamente masculina.
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a reinvenção da américa, 1800-
rica. Em Madri, depois de meses agenciando seus intere junto às autoridades, ganharam o apoio do primeiroespanhol Mariano de Urquijo, que os ajudou a persuadir Ca
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
| América do Sul. O Sistema da Natureza continuava a unifi-
“car o planeta: Humboldt e Bonpland decidiram viajar até o com a intenção de passar por Bo-
los IV a conceder-lhes uma inusitada carte blanche para
Peru por terra € não mar otá e trocar observações com O naturalista lineano José Ce-
da maior que o de La Condamine em 1735, devido em
as cordilheiras, chegaram a Quito, leções. u Atravessando o. onde ficaram durante mais seis meses. Sua estada foi marca-
jar pelos territórios hispano-americanos, inteiramente às es pensas de Humboldt. Foi um triunfo diplomático talvez à medida à experiência cortesã, conhecimento científico e fi me tenacidade de Humboldt. Ele indubitavelmente lembro
ao rei quão úteis haviam se revelado os relatórios de Antoni
de Ulloa e Jorge Juan (especialmente suas descobertas conf
denciais) para a reforma da política colonial espanhola. vez Carlos IV esperasse que Humboldt e Bonpland o ajud
sem a retomar o controle de suas indóceis colônias. Ce mente o rei estava ansioso por utilizar os conhecimentos d Humboldt sobre minas, e lhe pediu que relatasse espec mente seus achados mineralógicos. Os dois amigos zarparam (num navio chamado nad menos que Pizarro) para a Venezuela, em 1799, onde pas-
saram mais de um ano viajando para cima e para baixo do
Orinoco, cruzando grandes planícies (os Ilanos), subindo:
dois meses com ele e suas coJes tino Mutis. Permaneceram
“da por um acontecimento que, mais do que qualquer outro, capturou a imaginação pública na Europa, quando notícias a seu respeito alcançaram os jornais, poucos meses depois: a
tentativa de escalar o monte Chimborazo, então considerado
o pico mais alto do mundo. Vestido com uma sobrecasaca e botas de abotoar, e acompanhado de um pequeno grupo, * Humboldt chegou a 400 metros do cume de 6.300 metros antes de ser obrigado a retornar devido ao frio e à falta de oxigênio. Em fins de 1802, sua expedição alcançou Lima,já informada de que o encontro com os franceses não se materializaria. Em lugar disso, navegaram para o México, onde fi“caram mais umano, pesquisando principalmente o rico acer-
vo mexicano de arquivos, bibliotecas e jardins botânicos
montanhas, descendo rios, atravessando selvas, de povoado: em povoado, de fazenda em fazenda e de missão em são, medindo, coletando, fazendo experimentos, desenhan
nunca antes abertos para não-espanhóis. Empreenderam uma rápida visita aos Estados Unidos, onde Humboldt foi recepcionado por ThomasJefferson. Em agosto de 1804 retornaram a Paris para serem recebidos como heróis por parte
seguiram presenciar e registrar, em detalhe, a preparação d
feitos através de suas cartas e que, nos intervalos entre estas,
do e registrando tudo isso por escrito. No Orinoco, eles con-.
veneno curare, tema sobre o qual havia grande curiosida:
na Europa. Viajando pessoalmente pela via aquática interior.
que liga o Orinoco e o Amazonas, Humboldt e Bonpland |
confirmaram definitivamente sua existência para os euro.
peus céticos. (Os não-céticos estavam usando esta via há dé-.
cadas como rota postal.) Foi também aqui que habitantes lo; cais lhes demonstraram as maravilhas da enguia-elétrica. So-
brecarregados com uma imensa coleção de espécimes €. plantas, eles prosseguiram para Havana, em 1802, mas qua= se imediatamente souberam que uma expedição francesa | cumprindo uma volta ao mundo estava sendo esperada no Peru. Na expectativa de se juntar a ela, retornaram para à,
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do público que, de maneira descontínua, havia seguido seus supunha que ambos estivessem mortos. Como La Condamine, e talvez seguindo seu exemplo, Humboldt imediatamente pôs-se a capitalizar rendimentos sobre suas viagens nas esferas inter-relacionadas da alta so-
E verdade, Humboldt visitava os naturalistas hispano-americanos quando quer que os encontrasse ao longo de suas viagens — mesmo Os de sexo feminino, tais como Manuela Santamaria de Manrique, cuja coleção visitou em Bogotá. Os encontros e relações de Humboldt com mulheres naturalistas são parcamentes documentados naliteratura oficial européia. Minha fonte nesse contexto, por exemplo, é La mujer en la sociedad moderna escrito pela feminista colombiana do século XIX Soledad Acosta de Samper (Paris, Garnier, 1895, p.298).
207
a reinvenção da américa, 1800-509
ciedade, da ciência e da burocracia oficial parisienses, Semanas após seu regresso, organizou uma exposição botânica no
Jardin des Plantes. Enquanto figura de Bonpland se esma cia ao fundo, até finalmente desaparecer após sua volta a zona de contato,” Humboldt transformou-se numa celebrida:
de continental. A ânsia por informações de primeira mão à respeito da América do Sul era generalizada e intensa, e: Humboldt havia feito de si mesmo uma enciclopédia ambulante. Ele dava aulas, organizava encontros, escreveu cen
nas de cartas, visitava dignitários, pontificava incansavelme
te (e, conforme alguns, cansativamente) em salons. Enquanto isso, constituiu equipes de anotadorese ilustradores pa a conversão de suas coleções e notas em livros.
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
sentimentais do que os trinta volumes de Viagens às Regiões Equinociais do Novo Continente em 1799, 1800, 1801, 1805 e 1804, todos publicados em Paris e em francês, e boa parte
de seu conteúdo atribuída a Humboldt e Bonpland conjuntamente.” A epopéia impressa teve início poucos meses após
o retorno de ambos à França, com o Ensaio sobre a geogra-
fia das plantas (1805), e terminou em 1834 com os volumes
finais de Revista de gramíneas, o Atlas geográfico efísico ea História e geografia do Novo Continente. No todo, as Viagens incluem dezesseis volumes de botânica e geografia de plantas, dois de zoologia, dois de mensurações astronômicas e
vam a mesma escala épica de suas viagens. Durante o curso .
barométricas, sete de descrição geográfica e geopolítica (incluindo o afamado Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha) e três de narrativas de viagem propriamente ditas. Um experimentador por excelência, Humboldt se especiali-
pado do esboço de planos para o vasto monumento impresso que sua viagem produziria. Na Europa do Norte, a Améri- .
“ estabeleceram novos padrões para o uso de mapas, diagra-
Livros! As ambições de Humboldt como autor alcança-|
de sua jornada americana, ele havia frequentemente se ocu-
ca espanhola era virtualmente uma carte blanche que Hum-
boldt parecia determinado a preencher completamente por | meio de seus escritos, desenhos e mapas. Ele levou a limites |
sem precedentes o impulso enciclopédico que, no caso da expedição francesa ao Egito, produziria os vinte e quatro vo-
lumes da Description de "Egypte. Para um admiradoratual, as | ambições textuais de Humboldt remontavam a “uma incrível, |
quase maníaca dependência de papéis, registros e anotações |
-. uma hipocondria cultural,” Nada poderia estar mais dis- +
tante das modestas aspirações dos contadores de histórias |
- 12. Depois da América do Sul, Aimé Bompland seguiu a trilha da carreira lincana e tornou-se curador do jardim real: o jardim de ninguém mais. que a imperatriz crioula Josephine em seu retiro próximo a Paris. Depois. a de seu divórcio, ele se tornou seu confidente querido e estava em sua companhia quando ela morreu. Aparentemente de coração partido, re tornou para a América do Sul, estabelecendo domicílio no Paraguai onde foi em seguida aprisionado durante vários anos pelo notório ditador Dr. Francia. Humboldt, que por anos cuidou para que a pensão de Bonpland lhe fosse remetida, apelou a Simón Bolívar em seu favor e ajudou a assegurar sua libertação. Bonpland faleceu no Paraguai em 1858. 13: Ottiz, op. cit, pio.
208
zou não apenas na impressão, mas também, com grandes custos para si, na feitura de gráficos. Suas inovações visuais
mas e tabelas. Em seus trabalhos não técnicos, as gravuras de fenômenos arqueológicos e naturais são ainda hoje impres-
sionantes (cf. as figuras 19, 22, 23 e 24).
Foi através de seus escritos não técnicos e não por seus tratados científicos que Humboldt procurou, e alcançou, seu impacto mais amplo na imaginação do público da Euro-América. Estes serão os trabalhos de que-me ocuparei aqui: em primeiro lugar, Ansichten der Natur Imagens da natureza, 1808, revisado e expandido em 1826 e 1849), uma das obras favoritas de Humboldt sobre suas viagens americanas e a única que escreveu em alemão; Vues des
cordilleres et monuments des peuples indigênes d'Amérique Umagens das cordilheiras e monumentos dos povos indiígenas da América), que foi lançado em dois volumes ricamen-
te ilustrados, em 1810, seguidos por uma edição popular re-
14. A especialidade de Bonpland era botânica e sobre este tema é que
se concentrou sua contribuição como autor. Todavia, o trabalho de escri-
tório exercia pouco fascínio sobre ele, e são primariamente seus dados, mais que sua autoria, que são reconhecidos por estas páginas-título.
209
a reinvenção da américa, 1800-50 ]
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
hispano-americanos estavam lendo, relendo e discutindo nas décadas de 1810 e 1820. Escritos de viagem em seu sentido mais corriqueiro, estas obras não técnicas são também ousados experimentos discursivos, nos quais, como pretendo de-
monstrar, Humboldt procurou reinventar O imaginário popu-
lar da América e, através da América, do próprio planeta.
Mesmo ao se propor recriar a América do Sul em conexão
com sua nova abertura para a Europasetentrional, Humboldt tentou simultaneamente recompor a subjetividade européia,
afastando-se de sua característica separação entre estratégias subjetivistas e objetivistas, entre ciência e sentimento, informação e experiência. Ao lado de outros de seus contempo-
râneos, ele propôs para os europeus um novo tipo de consciência planetária. Os comentaristas geralmente lêem os escritos america-
nos de Humboldt relacionando-os à famosa querelle d'Amérique — a longa e arrogante disputa entre intelectuais euro-
peus sobre o tamanho, qualidade e variedade relativos da flora e fauna americanas em comparação com as da Europa e de outros continentes. Na segunda metade do século,
Buffon defendeua tese de que a natureza era menos desen-
Fig.18. Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland no Orenoco. Gra-
vura de O. Roth (Staatsbibliothek, Berlim).
sumida em 1814; e, finalmente, o inacabado Relation historique ou Narração pessoal de suas viagens, cujos três volumes foram publicados em 1814, 1819 e 1825.Estes, mais que to-
dos, eram os livros que o público leitor do continente e os
15. Na sequência estarei citando as traduções consagradas dos escritos de Humboldt para o inglês. Para o Ansichten der Natur, estarei utilizando a tradução de E. C. Otte e Henry G. Bohn, London, Henry G. Bohn, 1850 (ed. bras.: Quadros da natureza, Rio de Janeiro, W. M. Jackson, 1950). Para o Vues des Cordillêres estarei utilizando a tradução de 1814, Views of the Cordilleras and Monuments of the Indigenous Peoples of America, elaborada por Helen Maria Williams (a bem conhecida radical inglesa), 2 vols., London, Longman et alii. Para o caso da Relationhistorique também farei uso da tradução de Helen Maria Williams, Personal Narrative of Travels to the Equinoctial Regions ofthe NewContinent, Lon-
don, Longman etalii, 1822.
JS”
volvida nas Américas do que no resto do mundo porque este continente era mais novo. Conforme o estabelecido por Antonello Gerbi, em seu enciclopédico Dispute of the New
World (1955, 1983) (A disputa do Novo Mundo), a questão foi
candentemente discutida, e todo pensador deste período parece ter achado necessário assumir uma posição a respeito." 16. Antonello Gerbi — La disputa del nuovo mondo: Storia di una polemica (Milano, R. Ricciardi, 1955). Uma edição revista e ampliadafoi traduzida por Jeremy Moyle para o inglês como The Dispute ofthe NewWorld: The History of a Polemic, Pitisburgh, Pittsburgh U. P., 1983. (ed. brasileira: O Novo Mundo. História de um Polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Consulte-se ainda, de Gerbi, Za natura delle indie nove (Mi-
lano, R. Ricciardi, 1975), tambémtraduzido por Jeremy Moyle como Nature in the New World, Pittsburgh, Pittsburgh U. P., 1985. Espantosamente, na tradução eminglês deste trabalho, o nome de Alexander von Humboldi é substituído no índice pelo de seu irmão Wilhelm. A confusão, que frequentemente ocorre, atesta O grau em que a reputação de Alexander no século XX foi eclipsada pela de seu irmão. Em sua abordagem das crônicas dos séculos XVI e dezessete sobre as Américas, Gerbi repousa extensivamente
eu)
a reinvenção da américa, 1800-50 y
Ainda que não aborde, em detalhe, o próprio debate emo suas obras populares, a celebração por Humboldt da natureza americana se constitui num engajamento nele, visand. basicamente enaltecer o “Novo Continente”. Todavia, Hum.
boldt de forma alguma considerava sua obra como sendo voltada, ou subordinada, a este debate. Gerbi julga sua po. sição na disputa como “anômala” e “algo marginal”, exercen-
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Tão engolfado e miniaturizado era o humano na concepção cósmica de Humboldt, que a narrativa deixou de ser
uma forma viável de representação. E ele a evitou deliberadamente. Seus primeiros escritos não técnicos sobre as Américas tomaram a forma de ensaios descritivos e analíticos pre-
parados como aulas. Imagens da natureza, publicado pela
do apenas uma “influência tardia e lateral.”” Na análise a se. .
primeira vez em 1808, em alemão, como Ansichten der Natur e, em francês, como Tableaux de la nature, teve sua
querelle d'Amérique como fenômenos que se cruzam e qu são moldados por preocupações e ansiedades européias co-. muns em relação às Américas. ia
apresentadas em Berlim em 1806. Este trabalho foi seguido pelo luxuosamente ilustrado Imagens das cordilheiras e monumentos dospovos indígenas da América, em 1810. A “ima-
guir, achei mais produtivo tratar os escritos de Humboldt e
origem numa amplamente aclamada série de conferências
s CEEE via
E Pope tao
—
gem” ou quadro foi a forma escolhida por Humboldt para
[3
doe
“UM
Como sugerem os títulos de seus trabalhos, Alexander| von Humboldt reinventou a América do Sul antes de tudo | enquanto natureza. No entanto, não como a natureza aces-
Ea, des
sível, coletável, reconhecível, categorizável dos lineanos, |
o
Des
natureza selvagem e gigantesca
táculo capaz de ultrapassar o conhecimento e intelecção hu-
mas como uma natureza dramática, extraordinária, um espemanos. Não uma natureza que senta e espera ser conheci- |
da e possuída, mas uma natureza em movimento, impulsionada por forças vitais em grande parte invisíveis para o olho ; humano; uma natureza que apequena os homens, determina O seu ser, excita suas paixões, desafia seus poderes de |
percepção. Não é de se estranhar que frequentemente os re- — tratos representem Humboldt engolfado e miniaturizado |
seja pela natureza, ou por sua própria biblioteca que a dis- |
cute. |
sobre a enciclopédica resenha de Humboldt deste material no Examen eritique de Vhistoire de la géograpbie du nouveau continent, uma obra extraordinária quase inteiramente esquecida pelas resenhas oficiais das contribuições de Humboldt. 17. Gerbi, Dispute, op. cit., pp.411, 416.
seus experimentos naquilo que chamava “a forma estética de tratar os objetos da história natural”. Ele apresentou tentativas
inovadoras de corrigir o que considerava como as falhas do relato de viagem de seu tempo: por um lado, uma preocupa-
ção irrelevante com o que chamava de o “meramente pessoal”, e, por outro, um acúmulo de detalhes científicos que eram espiritual e esteticamente enfraquecidos. A solução de Humboldt em seu Imagens foi a de combinar a especificidade da ciência com a estética do sublime. A vivacidade da descrição estética, de que ele estava convencido, seria complemen-
tada e intensificada pelas revelações científicas das “forças ocultas” que moviam a natureza. O resultado, nas palavras de
um historiador da literatura, “introduziu na literatura alemã Um tipo inteiramente novo de discurso sobre a natureza "* A experimentação discursiva de Humboldt é bem ílus-
trada pelo famoso ensaio de abertura em Imagens da natureza, intitulado “Sobre as estepes e os desertos”. Ele parte, como em muitas das Imagens, da perspectiva de um hipotético viajante, o vestígio de uma persona narradora. Neste Caso, a pessoa abstrata (ainda que completamente européia e masculina) volta seus olhos da zona cultivada costeira da
18. Robert van Dusen — “The Literary Ambitions and Achievements of
Alexander von Humboldt”, European University Papers, Bern, Herbert
Lang, 1971, p.á5.
213
a reinvenção da américa, 1800-50 |
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Venezuela para os Ilanos ou grandes planícies do interior. No trecho a seguir, note-se o entrelaçamento da linguagem visual e emotiva com a linguagemclassificatória e técnica el a orquestração deliberada da resposta do leitor: Ao sopé da elevada cordilheira granítica que, nos primevos está-
gios de nosso planeta, resistiu à irrupção das águas na formação do golfo caribenho, estende-se uma planície vasta e sem limites.
Quandoo viajante se afasta dos vales alpinos de Caracas e o lago de Ticarigua, salpicado de ilhas, cujas águas refletem as formas
das bananeiras vizinhas — ao deixar os camposvicejantes com o verde claro e suave das canas-de-açúcar taitianas ou a sombra dos coqueiros — seus olhos repousam nosul sobre Estepes, cujas aparentes elevações desaparecem no horizonte distante. Saindo da rica exuberância de vida orgânica, o espantado viajante se vê repentinamente na lúgubre margem de um ermo sem árvores.”
Tendo suscitado a desolação de seuleitor, Humboldt em
seguida a alivia, preenchendo a terra devastada (“estendida
ante nós, como a crosta pedregosa e nua de algum planeta desolado”) com um significado denso e poderoso. Apresentando
sua própria versão de consciência planetária, ele compara os llanos venezuelanos às charnecas da Europa do Norte, às pla-
nícies do interior da África e às estepes da Ásia central. Se-
guem-se páginas de descrição analítica, frequentemente estatís-
tica, mas numa linguagem que é também repleta de ação, luta
e de uma certa sensualidade. No trecho mais longo a seguir,
Humboldt procura, por exemplo, explicar por que a América do Sul é menos quente e seca do que outras terras em latitu-
de semelhante. A passagem não é narrativa; não aparece nenhumser animado. Entretanto, a prosa é tão impregnada de ação que quase leva à exaustão. Os leitores deveriam imaginála apresentada como uma conferência (itálicos meus):
A estreiteza deste continente extensivamente denticulado na par | te mais ao norte dos trópicos, onde a atmosfera repousa sobre uma base fluida, ocasiona a ascensão de uma corrente menos quente de ar; suas amplas extensões de terra estendem-se até Os
dois pólos gelados, um vasto oceano varrido por frescos ventos |
o
A , pa a —— ic Pe Llural Medos a e PELADA De! todo É goE omprtatto Larat Picos t Jrnnto £ p, »
'
Fig.19 Pontes nativas do Icononzo. Da obra Vistas das Cordilheiras (1814), de Humboldt.
19. Humboldt — Views of Nature, op. cit., p.3.
245] o
a reinvenção da américa, 180
tropicais; a planura da costa oriental; correntes defrias águas ma. rinhas da região antártica, que, inicialmente seguindo uma ção de sudeste para nordeste, se chocam com a costa do abaixo do paralelo 35" da latitude sul, e avançam para o no pelas costas do Peru até o cabo Parina, onde repentinamente de
viam-se para o oeste; as numerosas montanhas onde abunda as fontes, cujos picos cobertos de neve pairam sobre os extrai de nuvens e causam a queda de correntes de ar por seus de ves; a abundância de rios de enorme vazão, que após mui nuosidade procuram a costa mais distante, Estepes, carentes areia, e portanto absorvendo menos o calor: florestas impe veis, as quais, protegendoa terra dos raios solares, ou irra
“alexander von humboldt e a reinvenção da américa
o próprio Humboldt delineou este contraste numacarta esa“erita na noite anterior à sua partida para a jornada americ “pa. A um amigo de Salzburg, escreveu que mesmo que fos-
se coletar plantas e fósseis e fazer observações astronômio de minha “cas “nada disso constitui o . principal propósit , à combinavoltados sempre expedição. Meus olhos estarão sobre o inanimada * ção de forças, à influência da criação
mundo animado dos animais e das plantas, e para esta har-
calor da superfície de suas folhas, cobrem as planícies rica
* monia.”” Certamente Humboldt estava procurando aquilo que encontrou no novo continente, e encontrou aquilo que estava procurando. Sua meta enquanto cientista tornou-se
quantidades de umidade, em parte absorvida, em parte gerad -- Desses aspectos, apenas, depende a vegetação luxuriante
“ tureza, declarou que seu objetivo era O de reproduzir o
Encontra-se aqui uma prosa que fatiga não por m notonia ou tédio, como às vezes os lineanos faziam, mã
tal percepção, “a maravilhosa exuberância da natureza” se reduz prosaicamente a “um acúmulo de imagens separa“das” que não apresentam “a harmonia e o efeito de um quadro. n22 Como notam todos os seus comentaristas, a ênfase de
te irrigadas do Equador e exalam para o interior do país, nos pontos mais distantes das montanhas e do Oceano, pProdig exuberante e aquela riqueza da folhagem que são peculiarmen-. te características do Novo Continente?
por dramáticos arrítmicos fluxose refluxos que devem se intensificados numa apresentação oral. A “ascensão” de ar “menos quente” se dissemina por “amplas extensões” at
“pólos gelados”; um “vasto oceano” se estende por “pla costas”; a fria água, como um invasor indesejado dos tróp
cos, atinge, avança e repentinamente se desvia; monta
abundam, pairam; rios são enormes, abundantes, procur
do costas agressivamente; florestas são impenetráveis, e nem com invisível atividade enquanto protegem, irradiam: acobertam, exalam, absorvem, geram. Pode-se pe numa câmara que esteja continuamente mudando de po. ]
ção e de foco — a não ser pelo fato de que o visual não de
sua meta enquanto escritor. No prefácio a Imagens da na-
prazer que uma mente sensível experimenta a partir da elevado pelo viscontemplação imediata da natureza lumbre (insight) da conexão entre as forças ocultas.” Sem
— Humboldt sobre harmonias e forças ocultas o alinha à estética espiritualista do Romantismo. Entretanto, esta mesma
ênfase também alinha ao industrialismo, à era da máquina
aos desenvolvimentos científicos que estavam produzindo e sendo produzidos por aquela era. (De fato, talvez não hou-
vesse mais clara intersecção entre a “criação inanimada” e “o
mundo animado de plantas e de animais” que a indústria mineira na qual Humboldt havia trabalhado por muitos anos e
que era uma das principais fontes de interesse da Europa so-
sempenha praticamente nenhum papel na descrição. Hum-| boldt invoca aqui não um sistema da natureza ancorado no visível, mas um infinito processo de expansão e contração |
bre as Américas.) Outros autores têm analisado o trabalho de
rencia claramente daquele de seus predecessores lineanos.
ideológicas e suas relações com literatura de viagem.
de forças invisíveis. Sob este aspecto, seu discurso se dife-
| 20. Ibid., pp.7-8.
216
Humboldt relativamente aos debatescientíficos europeus de
Seu tempo. Estou abordando seus escritos de um ângulo totalmente diverso, concentrando-me sobre suas dimensões
em em Hein, op. cit., p.56.
22. Humboldt — Views ofNature, op. cit., p.ix.
217
a reinvenção da américa, 180
ê
alexander von humboldt e a reinvenção da américa assim dizer, O sol nascente, em coro com a música matinal dos pássaros e as flores desabrochantes das plantas aquáticas. Cavalos e bois, animados de vida e prazer, vagam e pastam nas planícies. A luxuriante vegetação rasteira oculta o Jaguar lindamente malhado, que, furtivamente, em seguro esconderijo, e cuidadosamente medindo a extensão do salto, atira-se, como o tigre asiático, com um pulo felino, sobre sua presa que passa,”
Em contraste com as narrativas sentimentais egocent;
das discutidas nos capítulos 4 e 5, muitas das quais ele
tamente havia lido, Humboldt procurou apartar a emoção.
autobiografia e narcisismo e associá-la à ciência. Seu obje
vo, como afirma em seu prefácio a Imagens da naturez,
o de reproduzir no leitor “a antiga comunhão da Nature com a vida espiritual do homem.” O mundo equatorial é ur lugar privilegiado para tal exercício: “Em nenhum outroly gar”, sustenta Humboldt, “ela (a Natureza) nos impressio
mais profundamente com uma sensação de sua grande;
em nenhum outro lugar ela nos fala mais enfaticamente,”
Ainda que partilhando da estrutura básica da anticonquista científica, portanto, o tipo de consciência planetá;
de Humboldt torna o clamor pela ciência e pelo Home; consideravelmente mais grandioso do que aquele dos
sificadores de plantas que o precederam. Comparado
herborizador humilde e discipular, Humboldt assume ur
postura divina e onisciente tanto sobre o planeta quanto
Pa?
Ee
er Eni ++uese
1 F
bre seu leitor. Pois evidentemente é de imediato ele, e a Natureza, que nos “impressiona” e “nos fala mais enfatie mente”. Como um virtuoso, ele toca em complexas sensib
lidades que pressupõe existirem em sua audiência. As pri cipais imagens sensoriais apresentadas acima, por exemplo,
são as de imprevisíveis rajadas de frio — a última coisa
alguém do norte espera ou deseja na imaginada zona tó
da. (Quão apropriado é, para a corrente fria que sobe o P
cífico, levar o nome de Humboldt.) Em “Sobre estepes e desertos”, após a longa disserta citada acima, sobre forças globais e ocultas, o viajante-obse vador hipotético finalmente retorna para a paisagem desolada
Em contraste com a escrita estritamente científica, nes-
“te caso a autoridade do discurso não recai sobre um projeto descritivo totalizante que persiste fora do texto. Aqui, o projeto totalizante vive no texto, orquestrado pela mente e
alma infinitamente expandidas do locutor. O que é partilha-
do com o relato de viagem científico, no entanto, é a extirpação do humano. A descrição acima apresenta uma paisagem prenhe de fantasias sociais — de harmonia,indústria, liberdade, joie de vivre não alienada — todas elas projetadas sobre um mundo não humano. Traços de história humana, não identificados, são lá encontrados: o cavalo e os bois
- chegaram através de uma força não menos oculta do que os espanhóis invasores. Mas os habitantes humanos dos llanos estão ausentes. A única “pessoa” mencionada nestes “me-
lancólicos e sagrados ermos” é o próprio viajante europeu,
hipotético e invisível. Imagens da natureza foi um livro muito popular, e um que parece ter sido particularmente caro a Humboldt. Muito depois de ter abandonado sua Narrativa pessoal, ele revisou e ampliou Imagens da natureza por duas vezes (em 1826 e 1849). E estava certo ao se preocupar com isso. Foi de Imagens da natureza, e de sua continuação, Imagens das cordi-
Ibeiras, que os públicos leitores europeu e sul-americano selecionaram o repertório básico de imagens que vieram sigNificar “América do Sul)” durante o conturbado período de
dos parágrafos da abertura e a transforma ante os olhos '
seus leitores num cenário de movimento e vitalidade:
transição de 1810-50. Três ícones em particular, canonizados
Pelas Imagens de Humboldt, combinaram-se para formar a Tepresentação metonímica padrão do “novo continente”: flo-
Mal é umedecida a superfície da terra, já a fértil estepe se cob de Kyllingias, com as muitas Paspalum paniculadas e uma var dade de gramíneas. Excitada pelo poder da luz, a Mimosa herb cea desdobra suas folhas dormentes e pendentes, saudando,
23. Ibid., p.154.
Testas tropicais superabundantes (o Amazonas e o Orenoco), |
24. Ibid., p.16.
219
a reinvenção da américa, 1800-50.
AM
montanhas de picos nevados (a cordilheira dos Andes e os vulcões do México) e vastas planícies interiores (os llanos venezuelanos e os pampas argentinos).> O próprio Humboldt escolheu esta tríade canônica na última edição de Ima gens da natureza, apresentada como “uma série de artigos que tiveram sua origem na presença dos mais nobres obje-
tos da natureza — no Oceano -, nas florestas do Orenoco —.
nas savanas da Venezuela -, e nos ermos das montanhas pe
ruanas e mexicanas. Na verdade, foi necessário uma apreensão altamente “26
seletiva dos escritos de Humboldi para reduzir a América de
Sul à pura natureza e à tríade icônica de montanha, planí cie e selva. Referir-me-ei adiante a alguns dos outros mod
utilizados por Humboldt para pensar e escrever sobre
América do Sul, notavelmente o arqueológico e o demográ-.
fico. Mas foi inquestionavelmente a imagem da natureza pri mal estabelecida em seus escritos científicos e em suas Im
gens que foi codificada no imaginário europeu como a nov:
ideologia do “novo continente”. Por quê? Por uma razão ideologia, como o continente, não era, na verdade, nova. « europeus do século XIX reinventaram a América enquant natureza, em parte porque aquela foi a maneira pela qual europeus dos séculos XVI e XVII haviam originalmente in-. ventado a América para si mesmos, e, em grande parte, pe las mesmas razões. Ainda que profundamente alicerça nas construções setecentistas de Natureza e Homem,o indi
víduo-observador de Humboldt é também uma cópia exata
e autoconsciente dos primeiros europeus inventores da.
América, Colombo, Vespúcio, Raleigh e outros. Eles tambémTAM descreveram a América como um mundo primitivo de natus reza, um espaço devoluto e atemporal ocupado por plantas. e criaturas (algumas delas humanas), mas não organizado
“ alexander von humboldte a reinvenção da américa em sociedades e economias; um mundo cuja única história
era aquela prestes a se iniciar. Seus escritos também retrataram a América em meio a um discurso de acúmulo, abun-
dância e inocência. A rapsódica invocação por Humboldt de
yum mundo primal florescente ecoa escritos semelhantes à famosa carta de Colombo aos monarcas espanhóis em 1493: Todas essas ilhas são muito belas, e se distinguem pela diversidade de cenários: elas são ocupadas por uma grande variedade de árvores de imensa altura e que, acredito, mantêm sua folhagem por todasas estações; pois, quando as vi, estavam tão verdes e luxuriantes quanto usualmente estão na Espanha no mês de maio.... Além disso, há na mesma ilha de Juana sete ou oito espécies de palmeiras que, como todas as outras árvores, ervas e frutos, de
muito ultrapassam as nossas em dimensões e beleza. Os pinheiros são também muito formosos, e são encontrados campos e prados extensíssimos, uma variedade de pássaros, diferentes tipos de mel e muitas espécies de metal, mas nenhum ferro.”
Nos escritos de Humboldt, de tempos em tempos Co“lombo surge pessoalmente. Em Imagens da natureza, por exemplo, o ensaio sobre as cataratas do Orenoco reapresen-
ta o famoso encontro de Colombo com o rio Orenoco em sua terceira viagem à América.”
Ironicamente, o edifício paradisíaco dos cronistas do século XVI foi erigido sobre o desapontamento decorrente do fracasso de Colombo em encontrar aquilo que procurava: a China, o grande Khan, as enormes cidades e as infin-
dáveis estradas a que havia se referido Marco Polo. Humboldt sempre admirou Colombo por responder à desilusão atribuindo ao lugar um valor estético intrínseco. Mesmo que
a estratégia tenha fracassado para convencer o rei e a rainha
“pç — Carta de 14 de março de 1493, em Four Voyages to the New World: Letters and Selected Documents, editado e traduzi-
|
25. Em Imagens da natureza, a selva é o tema de “Cataratas do Orenoco | e “Vida noturna e animais na floresta primordial”; as montanhas de pi nevados são o tema de considerações sobre a famosa escalada do Chim borazo e de vários ensaios sobre vulcões em Imagens das cordilheiras, os. anos venezuelanos são o tema do clássico “Sobre estepes e desertos”.
26. Humboldt — Views ofNature, op. cit. p.ix.
220
do para a edição americana por R. H. Major, New York, Corinth Books,
1961, pp.é-5.
28. A “visão” se inicia através dos olhos de um hipotético “marinheiro” que “ao se aproximar das graníticas praias da Guiana ... vê à sua frente a ampla embocadura de um poderoso rio, que em seu desaguarse assemelha a um mar ilimitado.” Humboldt — Views of Nature, op. cit., p.206.
221
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
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Mu
a reinvenção da américa, 1800-5
Fig.20. Representação pictórica da. natureza nos Andes (1805) con- +
forme desenho feito por Humboldt em 1803 após sua escalada do | Chimborazo. As legendas identificam diferentes espécies botânicas | encontradas nas diferentes altitudes.
de Espanha, ela plantouraízes profundas nas mentes de seus
súditos. Trezentos anos mais tarde aquela fantasia paradisía- | ca ressurgiu no primeiro contato renovado de Humboldt. Até | o rótulo “Novo Continente” é revivido, como se três séculos
de colonização européia jamais tivessem acontecido ou feito
alguma diferença. O que valeu para Colombo, vale novas
mente para Humboldt: o estado de natureza primal é trazido à cena como um estado relacionado à perspectiva de inter
ça
222
Fig.21. Desenho de umartista andino indígena de Cerro de Potosi, local
da maior mina espanhola nas Américas, datado de 1588. Ao pé da montanha encontra-se a cidade de Potosi; no cume é representada uma aparição da Virgem de Copacabana, já por muito tempo associada à montanha. Acredita-se que o artista original seja Francisco Titu Yupanqui.
ms
a reinvenção da américa, 1800-50 .
eae
venção transformadora por parte da Europa. A carta de €
lombo (citada acima) aos monarcas espanhóis, em 1493, f
vam prestes a ser convocados como soldados nas guerras de independência. A selva havia sido penetrada pelo sistema co-
gração ao mundo paradisíaco que havia descoberto, mas
sociais microcósmicas de seus postos avançados. A cordilhei-
seguida por uma segunda onde ele propunha não sua int
vasto projeto de colonização e escravização a ser presidi
por ele próprio. Humboldt não tinha esta aspiração. No en. . tanto, às vésperas da independência da América hispânica, . na iminência de uma “disputa capitalista pela América”, nã
Pepper. =. mere
lonial das missões, cuja influência ia muito além das ordens ra andina (“a montanha das solidões,” a que Humboldt se re-
fere) era também o lugar de moradia para a maioria dos hapitantes do Peru, entre os quais as formas de vida pré-colom-
diferente da disputa capitalista pela África (ainda por vir),
bianas e a resistência à colonização continuavam a ser poderosas realidades cotidianas. Historicamente, essa cordilheira
novo começo para a história da América do Sul, um nov ponto de partida (norte-europeu) para o futuro que ora s
O retrato ecológico do monte Chimborazo tal como elabora-
Imagens de Humboldt e sua abordagem estabelecem u
inicia, e remodelaria aquela “terra selvagem”. As Imagens
ES pr
“ alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Humboldt formulam um ponto de partida aborígene p
um futuro que muitos de seus contemporâneos encaravam
como previamente determinado e no qual apaixonadame: te acreditavam. A formulação é pacifista e utópica: nenhum | dos obstáculos ao progresso ocidental aparece no horizon Não se trata aqui de sugerir que as representações de |
também foi o grande veio central de riqueza mineral colonial.
do por Humboldt (ver fig.20) contrasta de forma intrigante com as representações andinas indígenas de um outro pico famoso, o Cerro de Potosi, onde a Virgem de Copacabana
presidia a maior mina de prata do mundo (verfigura 21).
a narrativa pessoal de humboldt
Humboldt eram um tanto implausíveis e carentes de verossi milhança. Gostaria, contudo, de sustentar que elas não era
inevitáveis, que seus contornos eram condicionados por uma particular circunstância histórica e ideológica, e por relaçõ
particulares de poder e privilégio. A América do Sul não pre-. cisava ser inventada ou reinventada como natureza primal.
despeito da ênfase na natureza primal, em todas as suas explorações Humboldt e Bonpland jamais se colocaram além das fronteiras da infra-estrutura colonial espanhola — nem pos. deriam, pois dependeram inteiramente das redes de vilarejos missões, postos avançados, haciendas, estradas e sistemas de
trabalho colonial para sustentar a si mesmos e ao seu proje | to, para a obtenção de comida, abrigo e da força de trabalho |
que os guiaria e transportaria sua imensa bagagem. Mesmo as | imagens canônicas das planícies do interior, montanhas de pi- 4
Nos três volumes da Narrativa Pessoal (1814-25) de Humboldt, a própria narração traz à superfície as aspirações européias, juntamente com a infra-estrutura da sociedade hispano-americana tal como Humboldt a encontrou. Sob
pressão do público para que produzisse um apanhado narrativo de suas viagens, Humboldt iniciou este trabalho relu-
tantemente, uma década após o seu retorno. “Superando sua aversão” à narrativa pessoal, ele completou três volumes em cinco anos, antes que abandonasse o projeto e destruísse o manuscrito do quarto.” Ao menos inicialmente, o emPreendimento foi bem recebido. “Que simpatia excita o via-
jante”, exulta o tradutor inglês da Narrativa pessoal, “enquanto imprime o primeiro passo que leva a civilização e todas as suas bênçãos ilimitadas pelo deserto intocado.” A
cos nevados, e as densas selvas, não se localizavam fora da | história da raça humana, ou mesmo da história do euroimpe-. rialismo. Os habitantes dos /lanos venezuelanos e dos pam- |
pas argentinos, embora afastados dos centros coloniais, esta-.
224
E Mesmo sendo um fiel admirador de Mungo Park e de suas Viagens, Humboldt considerava a escrita pessoal dramática de Park como uma louvável “relíquia de época passada”, identificada comas crônicas espanholas do século XVI (Prefácio da Narrativa pessoa.
225
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
tiva? O trecho seguinte da descrição de uma excursão pela selva até uma suposta mina de ouro na Venezuela, ilustr
como a Narrativa pessoal entrelaça agência humana e tem-.
poralidade com o espetáculo da natureza:
4
Os fazendeiros, com a ajuda de seus escravos, abriram uma trial entre as árvores até a primeira cascata do rio Juagua. ... Quando o. vão era estreito a ponto de não podermos encontrar lugar para
nossos pés, entrávamosna torrente, a atravessávamos a vau ou so-.
bre os ombros de um escravo, e escalávamos a parede oposta Quanto mais avançávamos, mais densa se tornava a vegetação. vários lugares as raízes das árvores haviam rompido a rocha calcã-. rea, inserindo-se nas falhas que separavam osleitos. Nós (sic) tive.
mos algum trabalho para levar as plantas que colhíamos a cai
passo. As canas,as heliconias de delicadas flores púrpuras, os cos-.
tos e outras plantas da família das amomáceas ... formam um nx
sua função instrumental. Frequentemente, como na passaem acima, eles são totalmente subsumidos naquele ambío “nós” pelo qual os senhores incluem a si próprios como
agentes do trabalho de seus servos. O liberalismo de Humboldt, seu apoio às revoluções francesa e americana, sua
veemente e nunca abandonada oposição à escravidão são
bem conhecidos. No entanto, Narrativa pessoal naturaliza as
relações sociais e a hierarquia racial, representando os ame-
ricanos, acima de tudo, em termos de disponibilité, a quintessência da relação colonial.
No início do prefácio à Narrativa pessoal, Humboldt
alude diretamente ao processo euroexpansionista que motiva seus escritos. “Se algumas páginas de meu livro foremalgum dia salvas do esquecimento”, lemos, então
tável contraste com a cor marrom das samambaias arborescentes,
o habitante das margens do Oroonoko perceberá com deleite que populosas cidades enriquecidas pelo comércio, e férteis cam-
de folhagem delicadamente moldada. Os índios fizeram incisões com suas largas facas nos troncos das árvores e chamaram nossa .
pos cultivados pelas mãos de homens livres, adornam exatamente aqueles locais onde, ao tempo de minhas viagens, não encon-
atenção para aquelas lindas madeiras vermelhas e amarelo-ouro
que um dia serão procuradas por nossos torneiros e marceneiros.
trei senão florestas impenetráveis e terras inundadas.”
O tema permanece sendo a extasiante natureza; os
americanos, tanto senhores quanto escravos, são menciona-
dos, mas apenas a serviço imediato dos europeus. Só são tos dando início a uma ação quando indicam para os visitan-. tes recursos exploráveis. De fato, o gesto convidativo dos in-. dígenas parece detonar a relativamente rara alusão a um fu
turo tido como firmemente mantido nas mãos do capital da indústria (“nossos”) europeus. A presença dos americanos
redor das margens do espetáculo natural, pode-se aprender | muito sobre a sociedade hispano-americana a partir deste|
trabalho, mas o que se aprende vem transmitido do interior| da estrutura das relações coloniais. Americanos, sejam eles
missionários espanhóis, funcionários coloniais, colonos crioulos, escravos africanos, servos ameríndios ou peões | llaneros, são apresentados na grande maioria das vezes emma
|
À
30. Williams — Prefácio a Narrativa Pessoal, de Humboldt, op. cit., volI, peviii o 31. Humboldt — Personal Narrative, op. cit. voL.II, pp.73-4. 4
226
(caso lhes seja permitido parar de trabalhar para observar algo)? Caso sobrevivam, os habitantes da floresta verão os
como sujeitos instrumentais é típica da Narrativa pessoal. AO |
Lo
Deleite e adorno, cidades e campos: atribui-se significado às entrelaçadas fantasias cívica e estética por meio da visão contrastate das “florestas impenetráveis” e das “terras inundadas”. Mas quem será este observadorfuturo? Serão os próprios agricultores aqueles que observarão com deleite
campos como adornos? Entre Humboldt e seu enlevado equivalente futuro existe uma cadeia de eventos dos quais Humboldt se exclui, embora escreva em seu nome.
Dado que meu interesse básico recai sobre representações da América do Sul, não discutirei o bem conhecido
Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha G. e., Méxi-
co) e sua continuação, o Ensaio político sobre a Ilha de Cuba. Estas obra abordam a sociedade humanautilizando
descrição estatística e demográfica e uma análise social ba-
In
32. Ibid., vol, p.li.
227
a reinvenção da américa, 1800-50)
seada no determinismo ambiental. Ao contrário dos escritos)
sobre a natureza, estes não criam um mito, embora parti-
alexander von humboldt e a reinvenção da américa nº
PIpd
lhem de dois aspectos do mundo mítico da natureza primal:
a-historicidade e ausência de cultura. Os pesquisadores acadêmicos ainda dão valor aos Ensaios políticos enquanto fon-
te, especialmente para a história da escravidão e das relações raciais. Afirma-se que o Ensaio político de Humbold
sobre o México produziu sozinho um surto tos britânicos na mineração local da prata, e de exagero quando tais inversões foram à 1830. A exposição de Humboldt sobre a
de investimenele foi acusado bancarrota em. é escravidão em
Cuba permaneceu explosiva: em 1856, uma edição nort americana de seu Ensaio político sobre Cuba foi expurga:
do capítulo em defesa da abolição. Humboldt, com maisdi oitenta anos, protestou furiosamente na imprensa alema.
Geograficamente, os Ensaiospolíticos sobre Cuba e M xico são classificados como complementares em relação aos escritos naturais estetizados que descrevem a América do Su Em parte, este papel menor se deve à logística das próp viagens de Humboldt. Ele permaneceu apenas um curto pe ríodo em Cuba e seu ano no México foi gasto principalmente na, ou próximo da, capital, junto a acadêmicos e biblioteca
“ Atastee 2aAaeDetocde Drcuofo
Fig.22. Estátua de sacerdotisa asteca. De Imagens das cordilheiras(1814), de Humboldt
Os Ensaiospolíticos refletem essa pesquisa, seguindo linhas d relatórios estabelecidas pelas burocracias coloniais. O cont
te com seus escritos sobre a América do Sul, contudo, é tam
bém ideológico, pois Humboldt realmente considerava o M xico, em particular, comocivilizado de uma forma que a Am rica do Sul não era. “Nada me impressiona mais profuni
mente”, escreve ele no prefácio a seu ensaio sobre o Méxi “do que o contraste entre a civilização da Nova Espanha € pobreza física e moral da cultura daquelas áreas pelas quais acabo de passar.”* Seu projeto no México passa a ser o de plicar seu notável progresso em comparação com a Améni
equatorial. Tais atitudes são evidentes no último trabalho a considerado aqui, o popular Imagens das cordilheiras.
Fig.23. Manuscrito hieroglífico asteca encontrado por Humboldt no 33. Citado em Hein, op. cit. p.74.
228
Vaticano. De Imagens das cordilheiras (1814)
a reinvenção da américa, 1800-5 )
“aamérica arqueologizada Afirmei anteriormente que foi necessária uma recencã um tanto seletiva dos escritos americanos de Humboldt para. que se produzisse a imagem da América enquanto natureza primal. É sintomático desta recepção que o popular Imag das cordilheiras e monumentos dos povos indígenas da Amé rica (1810 e 1814), em dois volumes, quase que instantanea mente perdeu a segunda metade de seu título, lembradoa
nas como Imagens das cordilheiras. Publicado originalment
em 1810 como um Atlas pitoresco, em dois volumes, que
cluía sessenta e nove soberbasilustrações, foi uma sequên:
popular para Imagens da natureza. Imagens e monument como o denominarei abreviadamente a partir de agora, com. bina comentários ilustrados sobre maravilhas naturais — monte Chimborazo, pontes de pedra naturais, cataratas, lago
pirâmide de Cholula, a pedra do calendário azteca, a estátua | de uma sacerdotisa azteca, pinturas e manuscritos hieroglíficos. O livro não foi lembrado por seu componente arqueol
gico. Ainda hoje em dia, um comentarista moderno o descar. vistas de montanhas e arte azteca.”* E O próprio Humboldt, evidentemente, pretendia fazer | algo mais que uma “estranha mistura”. Sua meta, aparente- |
mente não alcançada, foi a de criar algo que fosse recebido |
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
artes.”> A harmonia resulta, neste caso, da assimilação da cultura à natureza numa forma que garante o estatuto inferior da América indígena: quanto mais selvagem a natureza, mais selvagem a cultura. Não obstante, os ensaios arqueo-
lógicos de Imagens e monumentos tinham ao menos o potencial para contestar dramaticamente a celebração des-his-
torizada da América primal e a associada visão primitivista dos ameríndios dela decorrente. Mesmo um conhecimento
superficial da cultura e história inca, azteca ou maia abala a
imagem de selvagens numafloresta primal, incluindo a ima-
gem que o próprio Humboldt tinha dos ameríndios como
“remanescentes de hordas indígenas”. Talvez seja esta a verdadeira razão dos ensaios arqueológicos não terem jamais interessado os leitores e comentaristas de Humboldt. Um poderoso modelo para a redescoberta arqueológica da América foi o Egito. Lá também os europeus estavam reconstruindo uma história perdida por meio da e como “redescoberta” de monumentos e ruínas. Lá também a recuperação ocorreu no bojo de um novo expansionismo europeu
e de uma nostálgica reconsideração dos impérios antigos. Descobertas egípcias, como a da pedra de Rosetta, indubita-
velmente inspiraram o interesse de Humboldt pelos manuscritos e pedras hieroglíficos americanos, tema de alguns dos mais longos e eruditos ensaios de Imagens e monumentos. No contexto de dois séculos de ignorância e indiferença européias, as observações de Humboldt sobre a história indígena são notáveis, algumas vezes até mesmo proféticas: após
descrever a famosa pedra do “calendário azteca”, descoberta
não comoalgo estranho ou uma mistura, mas como harmô nico e articulado. O objetivo de “apresentar no mesmo tra
por trabalhadores do sistema de abastecimento de água da Cidade do México, em 1790,ele afirma que os aztecas “tornar-se-ão particularmente interessantes se um governo, ansio-
balho os rudes monumentos dastribos indígenas da Améri.
ca e as pitorescas paisagens dos países montanhosos nos|
so por lançar luzes sobre a remota civilização dos america-
quais elas habitam” é o de mostrar que “o clima, a natureza,
Nos, promover pesquisas, escavando em torno da catedral, na Praça principal da antiga Tenochtitlan.”* Nos anos 1970 a es-
do solo, a fisionomia das plantas, a visão da bela ou selva|
gem natureza têm grande influência sobre o progresso das| 34. Botting, op. cit., p.202.
230
|
35. Humboldt — Views and Monuments, volI, pp.39-40.
36. Ibid., vol.II, p.45.
231
a reinvenção da américa, 1800-50.
cavação ocorreu, depois que um grupo de trabalhadores do ; sistema de eletricidadedefrontou-se com aquilo que, afinal, — provou ser o Grande Templo (Templo Mayor dos astecas. Apesar de obviamente fascinado e emocionado por seus achados arqueológicos, Humboldt permaneceu depre- | ciativo em relação às conquistas das civilizações pré-colom- |
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
mantêm continuidades vivas com o passado pré-europeu,
aspirações fundamentadas historicamente e reivindicações
sobre o presente. Todavia, é improvável que aqueles que
são vistos pelos colonizadores como “remanescentes das
hordas indígenas” vejam-se da mesma maneira. O que os
colonizadores rejeitam como arqueologia frequentemente
bianas — quando comparadas, evidentemente, com aquelas
vive entre os colonizados como autoconhecimento e cons-
demos deixar de reiterar, não causa qualquer espanto, seja
mentos de resistência anticolonial.” A rebelião andina de
forma,” escreve ele, “mas é muito interessante, na medida
massa prevendo o retorno dos antigos incas e a restauração
do Mediterrâneo clássico: “a arquitetura americana, não po-
pela magnitude de seus trabalhos, seja pela elegância de sua
em que elucida a história da civilização primitiva dos hab
tantes das montanhas do novo continente.”” Enquanto na Grécia “as religiões se tornaram o principal apoio das belas
artes”, entre os astecas o culto primitivo da morte resulta em q monumentos cuja única função é “suscitar terror e assom-
bro.”* Como em relação à reinvenção monumental do Egi |
to ocorrida no mesmo período, a conexão entre as sociedades sob investigação arqueológica e seus descendentes con- — temporâneos permanece absolutamente obscura, na verdade, irrecuperável. Esta, obviamente, é parte da questão, À
imaginação européia produz objetos arqueológicos por | meio da separação dos povos contemporâneos não euro- 4
peus de seus predecessores pré-coloniais e mesmo colo- niais. Reviver a história e a cultura indígenas como arqueo-
logia é revivê-las enguanto algo morto. Este ato simultanea-
mente as resgata do esquecimento europeu e as situa numa era passada. Neste livro tenho falado repetidamente a respeito da 4
maneira como o discurso europeu sobre a paisagem dester- |
ciência histórica, dois dos principais ingredientes de movi1781, por exemplo, incluiu um renascimento carismático de
de seu império. Isto pressupunha a existência, entre à população andina, de um conhecimento corriqueiro de histó-
ria, mitologia e genealogia incas, preservada em quipos e em formas orais, escritas e pictóricas. Dos dois líderes da rebelião, um se denominou Tupac Amaru, adotando o nome
do último governante inca legítimo, que foi queimado vivo
em 1572 pelos espanhóis, na praça principal de Cuzco. Em
1781, após o fracasso da rebelião, o novo Tupac Amaru foi
estripado e esquartejado no mesmo lugar.”
humboldt como transculturador “Osíndios”, lê-se na passagem da Narrativa pessoalcitada anteriormente, “chamaram nossa atenção para aquelaslindas madeiras vermelhas e amarelo-ouro”. No Orenoco, um corregidor que “forneceutrês índios para nos preceder e abrir
ra os povos indígenas, separando-os dos territórios que
estes podem ter dominado em certa época e no qual per-
manecem levando suas vidas. A perspectiva arqueológica é complementar. Ela também suprime os habitantes conquistados da zona de contato enquanto agentes históricos que |
E
37. Ibid., vol.l, p.9.
38. Ibid., p.é4
232
Ts Consulte-se a discussão em Michel Adas — Prophets ofRebellion: Millenarian Protest Movements against the European Colonial Order, Chapel Hill, North Carolina U. P., 1979. 40. Estas personagens e estas histórias continuam a ser intensamente significativas nos Andes de hoje: um movimento guerrilheiro peruano contemporâneo agora leva o nome de Tupac Amaru, como os Tupamaros uruguiaios nos anos 60; as contrapartidas bolivianas Tupac Katari e Bartolina Sisa foram ambos adotados como símbolos pelos movimentos Camponeses bolivianos.
233
a reinvenção da américa, 1800-509. uma trilha”, mostra em conversação ser “um homem agradável
e de espírito cultivado”. Poucaslinhas adiante, naquela m
ma caminhada, um missionário aborrece Humboldt com ansiosos monólogos sobre a recente agitação entre os escravos. Tais
traços da interação cotidiana entre habitantes americanos e vel sitantes europeusinsinuam os relacionamentos heterogêneos E
heteroglóssicos que produziram o ver e o conhecer dos euro-. peus. Trazido à superfície pela narrativa, o “meramente pes-. soal”, como Humboldt o chamava, levanta uma questão desa-.
fiadora: Que papel, direto ou não, tiveram os interlocutores
americanos de Humboldt na reinvenção européia de seu con tinente? Em que medida Humboldt foi um transculturador.
transportando para a Europa conhecimentos originalmente
americanos e produzindo conhecimentos europeusinfiltrade
por conhecimentos não europeus? Em que medida, dentro relações coloniais de subordinação, os americanos o marca: ram, da mesma forma que ele marcou a América? Tais questões são difíceis de responder partindo-se d formas burguesas, autocentradas, de analisar textos — razão
pela qual é importante colocá-las, não apenas em relação a Humboldt, mas sobre toda a escrita de viagem. Todo relato
de viagem tem sua dimensão heteroglóssica; seu conheci.
mento advém não apenas da sensibilidade e dos poderes de
observação do viajante, mas da interação e experiêne usualmente dirigida e gerenciada por “viajados” (travelees)? que agem em conformidade com sua própria compreensão |
de mundo e do que são e devem fazer os europeus. Por
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
exemplo, Humboldt se gabava de ter sido a primeira pessoa a trazer O guano para a Europa, comofertilizante, uma “descoberta” que afinal levou a tal intensificação do uso deste produto que acarretou, na última quadra do século XIX,
uma guerra entre Peru e Chile, levando a economia deste
último a se tornar totalmente dependente dos banqueiros
britânicos. É claro que a descoberta de Humboldt foi fruto
da informação de peruanos habitantes da costa, que lhe mencionaram a substância e suas propriedades fertilizantes. Quem pode saber quais eram suas suposições e expectati-
vas? As convenções do relato de viagem e de exploração (produção e recepção) constituem o sujeito europeu como
fonte auto-suficiente e “monádica” de conhecimento. Esta
configuração virtualmente garante que a história interativa da representação só surgirá marginalmente,* ou por meio das formas de representação do próprio “viajado”, tais como materiais auto-etnográficos do tipo por vezes mencionado ao longo deste livro. O que tem sido documentado são os encontros de
Humboldt e Bonpland com intelectuais hispano-america-
nos, a quem eles ativamente procuraram. Ao vedar seu império a estrangeiros, a Espanha relegou o resto da Europa
a uma profunda ignorância tanto em relação à história, cul-
tura e línguas indígenas americanas, quanto em relação à
botânica, zoologia e mineralogia americanas. Estas temáticas continuaram, contudo, a ser estudadas nas Américas, (Seria necessário repetir que as universidades no Peru e
México datam do século XVI?) Humboldt e Bonpland, as-
sim nos é informado, esforçaram-se muito para encontrar
41. Humboldt — Personal Narrative, op. cit, vol, p.178. O corregidor deti
nha um cargo algo semelhante ao de umpolicial de distrito; o detentor de tal cargo era comumente odiado por aqueles sobre os quais ele exercia domíni 42. Este termotôsco, “viajado” (travelees) foi concebido em analogia como o termo “destinatário” (addressee). Como este último significa a pessoa à | quemse dirige um falante, “viajado” refere-se às pessoas que acompanham| um viajante enquanto receptores da viagem. Alguns anosatrás, teóricos da literatura começaram a falar de “narratados” (narratees), figuras correspon:
dentes aos narradores no ponto de recepção da narrativa. Obviamente, |
viagens são estudadas precipuamente a partir da perspectiva do viajante, | mas é perfeitamente possível e extremamente interessante estudá-las nã| perspectiva daqueles que dela participam.
4
Naturalistas americanos, como Mutis em Bogotá; foram os
intelectuais hispano-americanos que os puseram em conta-
E 43. Joahannes Fabian escreveu umainteressante monografia sobre a heteroglossia em relatos de viagem na África Oriental durante o século XIX,
Procurando determinar, particularmente, onde as palavras swahili ocorrem em textos europeus: Language and Colonial Power: The Appropriation of Swahili in the Former Belgian Congo, 1880-1930, New York, Cambridge
U. P., African Studies Series no. 48, 1986. A interpretação lingúística formal no ocidente normalmente assume a perspetiva do grupo no poder.
235
a reinvenção da américa, 1800-50 |
to coma antiguidade inca e asteca. Em larga medida, Humboldt, com seus ensaios arqueológicos, estava transportan- . do para a Europa uma tradição americana erudita que da.
tava dos primeiros missionários ibéricos e foi mantida por.
intelectuais espanhóis, mestiços e indígenas. O ano de Humboldt no México (1803-4) foi gasto quase inteiramente| em comunidades intelectuais e científicas da Cidade do Mé- -
xico, onde estudou os acervos existentes de história natu-
ral, lingúística e arqueologia. Ao regressar à Europa, ele. pesquisou assiduamente com base naquilo que havia aprendido, rastreando esquecidos manuscritos ameríndios,| tais como os codicilos maias, que desde os Habsburgos es- |
tavam juntando pó em bibliotecas em Paris, Dresden, no|
Vaticano, em Viena e Berlim.“ 4 Em alguns setores da cultura crioula, portanto, uma| natureza e uma antigúidade americanas glorificadas já exis- | tiam como construtos ideológicos, fontes de identificação e | orgulho americanista, fortalecendo o sentido crescente de:
separação da Europa. Num exemplo perfeito da dança de |
espelhos na construção colonial de significados, Humboldi
transculturou para a Europa conhecimentos produzidos po americanos num processo de defini-los como separados da,
Europa. Após a independência, as elites euro-americanas | reimportariam aquele conhecimento enquanto conheci: | mento europeu, cuja autoridade legitimaria o poder euroamericano.
44. Com base neste contato coma intelectualidade mexicana, Humboldt | continuou a pesquisa sobre a história dos escritos europeus sobre am Américas, e produziu um Examencritique de Vhistoire de la: géograph q ,
du nouveau continent (Exame crítico da história da geografia do novo |
continente), em cinco volumes. Tem-se aqui outro trabalho extraordiná- | rio, em geral desconsiderado no legadooficial de Humboldt. Ele resenha ã de forma enciclopédica o enorme acervo de crônicas dos séculos xvI Sa XVII sobre as Américas. Antonello Gerbi, em seu Nature in the New, World (ap. cit., 1985), se apoia extensivamente no tratamento dado pORE
Humboldt a esse material.
236
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
interlúdio romântico A perspectiva que venho apresentando sobre os escri-
tos de Humboldt frequentemente provoca uma reação im-
paciente por parte doscríticos literários. Qual a razão, perguntam-me, para todo este aparato explicativo histórico-co-
lonial-ideológico, quando é perfeitamente óbvio que Humboldt, em seus escritos, está simplesmente sendo um romântico, simplesmente exercendo o Romantismo. Enquanto romântico, de cepa alemã, o que mais poderia ele
fazer na América do Sul? É suficiente ler o prefácio a Ima-
gens da natureza, que termina com uma citação da Noiva de Messina, de Schiller, sobre o quanto a natureza é perfeita até que o homem a deforme meticulosamente. Antes que tivesse saído da Prússia para qualquer outro lugar, não havia sido Humboldt o único cientista que Schiller tinha con-
“vidado para publicar em seu jornal? Ainda que Schiller pu-
desse não ter visto este fato dessa maneira (ele aparente-
mente não gostava de Humboldt), não se poderia alegar,
por exemplo, que Humboldt em suas Imagens americanas estava simplesmente seguindo o programa de Schiller ex-
posto em Educação estética da humanidade (1795) Não são os românticos que clamam pelo “cultivo das sensibilidades”? Não estaria Humboldt, por exemplo, procurando “ilustrar” seu leitor da maneira prescrita por Schiller: “provendo
as faculdades receptivas dos mais diversos contatos com o
mundo?“ Por que seriam necessários Colombo, o colonialismo espanhol, lutas de independência, revoltas de escraVos ou mesmo a América para se entender a maneira de escrever de Humboldt? O que já se sabe sobre o Romantismo fornece uma explicação perfeitamentesatisfatória sem ultraPassar os limites da Europa ou da Literatura.
1 == “NT: ed. bras.: Cartas para a educação estética da bumanidade, São Paulo, Herder, 1963. 45. Citado por John Brenkman em Culture and Domination, Ithaca, Cornell U. P., 1988, p.64.
237
a reinvenção da américa, 1800-590
Como alguns leitores já terão notado, é exatamente .
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Na verdade, tal perspetiva foi sugerida na América do
que Humboldt “é” um romântico, o Romantismo “é” Hum-.
sul há cerca de cinquenta anos atrás, pela escritora venezuelana Tereza de la Parra, em seu romance autobiográfico Memórias de Mama Blanca (1929). O Romantismo é invocado
titui ou “explica” o escrito de Humboldt sobre a América
(como a riqueza que moveu a Revolução Francesa) veio do
essa satisfação e esses limites que coloco em questão atra vés dos escritos americanos de Humboldt. Na medida em. boldt; na medida em que algo chamado Romantismo cons- 4
na figura da esposa de Napoleão, a imperatriz Josefina, que
estes escritos constituem e “explicam” aquele objeto. Afir- . mar que o primeiro simplesmente “reflete” o último é privi legiar a literatura e o europeu de uma maneira que dev estar sujeito a debate. A perspectiva deste livro pediria a que se repense o “Romantismo” (e a “Literatura”, e a “Europa?
caribe. “Acredito”, diz o narrador,
à luz de escritores como Humboldt e de processos históri-
cos como o cambiante contato com as Américas. O “Roman-
tismo”, portanto, enseja uma ocasião para repensar os hábi-|
tos de imaginar a “Europa” e a “Literatura” como entidades | sui generis que se inventam a partir de seu interior e se pro- . jetam, então, sobre o resto do mundo. Pode-se entrever o+ que seria imaginar a “Europa” como também se construindo | a partir de seu exterior, devido a materiais infiltrados, doa-
que como o tabaco, o abacaxi e a cana de açúcar, o Romantismo foi uma fruta indígena (americana) que cresceu doce, espontânea e escondida em meio aos langores coloniais e à indolência tropical até o fim do século XVIII. Por aquela época, Josefina Tascher, sem o suspeitar, como se fosse o micróbio ideal, o levou (para a
Europal, enleado no laço de um de seus penteados, passou o germe a Napoleão naquela forma aguda que todos conhecemos
e, pouco a pouco, as tropas do Primeiro Império, assistidas por
Chateaubriand, espalharam a epidemia por toda a parte.”
É um conjunto de imagens ricamente transculturado.
A referência aos penteados evoca a iconografia da América
“como uma amazona usando um enorme cocar enquanto ar-
dos, absorvidos e apropriados, a partir de impostos de zo-. nas de contato de todo o planeta. 14
rasta pelos cabelos a cabeça de um espanhol; a imagem do
novos discursos sobre a América, o Egito, a África merídio-|
própria pilhagem. O mesmo micróbio indubitavelmente é o que ao final trouxe a imperatriz Josefina para junto de Aimé
Na mesma medida em que o “Romantismo” molda os
nal, a Polinésia ou a Itália, eles também o moldam. (Os românticos são, sem dúvida, conhecidos por se postarem ao| longo das periferias da Europa — o Helesponto, os Alpes, 08 | Pireneus, a Itália, a Rússia, o Egito). O Romantismo consis: te, entre outras coisas, de mudanças nas relações entre a Eu ropa e outras partes do mundo — em particular as Américas, |
que estão justamente se libertando da Europa. Se alguém|
desengatar Humboldt de Schiller e fixá-lo em outra linhas. gem “romântica” — George Forster e Bernardin de St. Pierre | (dois dos ídolos pessoais de Humboldt), Volney, Chateau briand, Stedman, Buffon, Le Vaillant, Capitão Cook e o Di | derot do “Suplemento à viagem de Bougainville” — poderia | ser tentado afirmar que o Romantismoteve sua origem nas , zonas de contato da América, da África do Norte e dos ma= res do sul.
238
micróbio evoca a história da sífilis como doença do império, aqui reimportada pela Europa como resultado de sua Bonpland, que começou como zelador de seus jardins e ter-
minou como seu devotado amigo e confidente. Discussões sobre origens são sem dúvida desprovidos de sentido. Contudo, não é sem sentido,frisar as dimensões
transculturais daquilo que é canonicamente denominado de
Romantismo Europeu. Os ocidentais estão acostumados a
pensar que os projetos românticos de liberdade, indívidualismo e liberalismo emanaram da Europa para a periferia
colonial, mas estão menos acostumados a considerar as
emanações das zonas de contato para a Europa. Certamente a Europa foi tanto influenciada por, quanto uma influên-
tas, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1982, p.329.
239
a reinvenção da américa, 1800-50
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
cia sobre as tensões que na década de 1780 suscitaram o levante indígena nos Andes, as revoltas na África do Sul, a rebelião de Tiradentes, no Brasil, a revolução que derrubou o
poder branco em Santo Domingo, e outros eventos seme-
lhantes nas zonas de contato. Benedict Anderson sustentou de modo instigante a idéia de que, contrariamente à corriqueira análise difusionista, o modelo da moderna nação- es-
tado foi elaborado em grande parte nas Américas e importado pela Europa durante o século XIX.”
Creio que se deva procurar uma perspectiva relacio-
é tão frequentemente associado. Pois evidentemente o de-
bate sobre a suposta imaturidade ou inferioridade da natureza americana não era uma questão exclusivamente européia ou científica. Como Antonello Gerbi documentou, os i
intelectuais das Américas eram participantes ativos e extre-
mamente interessados no debate sobre a natureza, assim
como nas polêmicas então correntes sobre a escravidão. De fato, é possível que nenhum desses debates viesse a se concretizar enquanto tal sem a participação dos americanos, para quem tais temas possuíam relevância urgente. À parte as contendas específicas sobre as idades relativas dos diversos continentes e de seus ecossistemas, as di-
mensões ideológicas da querelle d'Amérique dependiam da
Eee
AA RCOETE IID O
nal similar na famosa querelle d'Amérique a que Humboldt
tentativa de se ligar as Américas à Europa numa relação essencial de negatividade, o pivô da semântica colonial. Esta
ES io
tentativa surgiu, evidentemente, num momento de crescen-
te instabilidade nos empreendimentos coloniais europeus nas Américas. Por um lado, a exploração global estava abrindo novas realidades e possibilidades. Por outro, o controle eurocolonial estava claramente ameaçado. Aqui
estavam sociedades assumindo uma vida própria. Em alguns Fig.24. Frontispício do Atlas da América, de Humboldt. A alegoria representa um príncipe guerreiro asteca derrotado sendo consolado por Atena, deusa da sabedoria, e Hermes, deus do comércio. NO chão encontra-se uma estátua destroçada. Ao fundo estende-se uma
montanha modelada no Chimborazo e a pirâmide de Cholula no México. A legenda diz “Humanidade, Conhecimento, Economia”.
e mo
Casos, encontravam-se intelectuais americanos construindo visões positivas e descolonizadas de si mesmos em relação à Europa. Encontravam-se aqui maiorias não européias 47. Benedict Anderson — Imagined Communities: Reflections on the Origins and Spread of Nationalism, London, Verso, 1983.
a reinvenção da américa, 1800-50 |
colocando-se contra a dominação européia. E mesmo on a hegemonia branca estava segura, o que se produzia eram
sociedades muito diferentes das de seus antepassados europeus, e que se tornariam mais diferentes quando fossem descolonizadas: seriam multirraciais, muitas predominante: mente não brancas; irregularmente cristãs, quando muito;
não tendo jamais sido monarquias, seriam construídasa par. tir de estruturas como a escravidão, o sistema de Plan
tions, a hacienda, a mita,* instituições que os europeus ha:
viam idealizado e de que haviam se aproveitado, mas qu não haviam sido vivenciadas na Europa enquanto forma: ções sociais e culturais. Elas seriam sociedades que a Eur
pa provavelmente nem mesmo entenderia, e menos ainda .
controlaria. Forças ocultas efetivamente! Gerbi sugere que Hum boldt, a partir de sua visão positiva e totalizadora, pôs-se a 4
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
as energias invisíveis e as repentinas rajadas frias que rodopiam nos escritos de Humboldt delineiem as convulsões
históricas tão claramente a caminho. Eles certamente assim o
fizeram, conforme Simón Bolívar, um admirador de Humboldt. “Um grande vulcão repousa a nossos pés”, escreveu
ele logo após a vitória sobre a Espanha. “Quem reprimirá as classes oprimidas? O jugo da escravidão se partirá, cada tom
de pele buscará supremacia.”?
Como espero mostrar no próximo capítulo, a própria mistificação das forças sociais é o que tornou os escritos de Humboldt utilizáveis por líderes e intelectuais euro-americanos interessados em descolonizar suas culturas e sociedades, ao mesmo tempo em que preservavam os valores europeus e a supremacia branca.
apaziguar as ansiedades nos dois lados do Atlântico, re
mando a América para dentro de paradigmas planetários b:
nós-escrito
seados na Europa. “Com Humboldt”, afirma Gerbi, “o pe
samento ocidental finalmente alcança a conquista pacífica a anexaçãointelectual para seu próprio mundo, o único Cos-
mos, de regiões que até então praticamente não haviam sido | mais que objeto de curiosidade, espanto e desprezo.”º A p gina título do Atlas géographique et physique du Nouvem r gravura alegórica de Hermes e Atena (veja-se a fig.24) olhan
do consternados para um príncipe asteca derrotado, de ca beça baixa, suas armas ao chão. Enquanto Hermes, patront ce um pedaço de vegetação inequivocamente não ameri
na: um ramo de oliveira. Ao fundo se ergue o pico neva o
|
48, A mita era a mais odiada forma de trabalho forçado de massa na ES | panha colonial: exigia-se de vilarejos que fornecessem quotas da força |
de trabalho que iria labutar em minas e demais atividades. O índice de | mortalidade entre trabalhores de uma mita era muito elevado. 49. Gerbi — Dispute, op. cit., p.40S.
242º
Hoje em dia, depois que sua fama na Europa esmaeceu ou se fundiu à de seu irmão, Alexander von Humboldt
é firmemente reverenciado e revivido pela cultura oficial sulamericana precisamente por sua valorização da região incon-
dicional e intrínseca. “Estamos sembrados de recuerdos de
Humboldt”, diz um comentarista — “Estamos semeados pelas memórias de Humboldt”*' Que claro testemunho isto forne-
ce do legado do mito europeu humboldtiano da América: o
locutor considera-se como o próprio solo no qual Humboldt semeou suas palavras. Dentro do mito europeu, não se atribui ao hispano-americano qualquer outra existência, e certa-
mente nenhuma voz: apenas a Natureza fala. ]
50. Simón Bolívar — Carta ao General Paez, 8 de agosto de 1826. Tradução eminglês de Bierck e Lecuna, op. cit., voLII, p.628. 51. Pascual Venegas Filardo — Viajeros a Venezuela en los siglos XIXy XX, Caracas, Monte Avila, 1973, p.14. Gabriel Garcia Márquez tem se referido aos escritos de Humboldt como uma fonte de sua visão “realista mágica” da América do Sul.
a reinvenção da américa, 1800-50 .
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Mastalvez existam ainda outras genealogias entrelaça- |
das. A arpillera ou estampa de tecido na figura 25 é exem. + plo de uma forma de arte de exportação que surgiu no Pem nos anos 1980, baseando-se nas antigas tradições andinas i de fabricação de bonecas e arte têxtil. Feitas por mulheres |
proletárias em clubes de mães, em vilas e cidades, as. arpilleras contemporâneas frequentemente retratam cenas | da vida rural, como esta o faz. Entitulada “La Cosecha”, “A
Colheita”, ela enfatiza a organização vertical da vida agríco- | la nas comunidades andinas tradicionais. No topo, nas pas-
tagens altas, processa-se o pastoreio, um pouco mais abaixo, crescem as flores tão apreciadas na vida diária e no namoro, seguem-se os grãos e a grama, então as batatas, e
assim por diante, até as laranjas e bananas no vale tropical |
embaixo. Ela representa um tipo de vida na qual as comu- |
nidades em diferentes épocas do ano cultivam uma grande | variedade de produtos agrícolas em diferentesaltitudes, des-
de condições tropicais a temperadas e até semi-frígidas.
Compare-se a arpillera com o famoso desenho legen-
dado de Humboldt do monte Chimborazo, na figura 20. Humboldt utilizou esta gravura para retratar a mesma eco- q
logia vertical da região andina, onde múltiplos tipos de feio
ma e vegetação coexistem numa única latitude. Ambas as |
representações estabelecem uma forma de mapeamento | atemporal; ambas parecem pretender celebrar a plenitude, |
a variedade e o detalhe. A arpillera também partilha com Humboldt do uso de legendas de referência (numa linguagem européia), indicando papas, “batatas” em espanhol, e /
sierra, “montanhas”, em espanhol. Diferenças entre as duas | representações também são evidenciadas: a arpillera retrata |
um espaço social repleto de pessoas e animais domésticos, cujas atividades contribuem tanto quanto o mundo das | plantas para a diversidade. As legendas escritas assinalam | dois dos mais significativos elementos da cultura andina tra=
dicional: a serra (lar dos deuses) e a batata (alimento bási-
co importantíssimo). Enquanto as legendas de Humboldt
são referenciais e específicas, estes dois significantes
(signifiers) na arpillera são enganosos de uma forma intrín- 7
Fig.25. Arpillera, Peru, anos 1980. O trabalho retrata, em estilo fol-
clórico, a organização vertical da vida agrícola andina. O gado pasta em altas altitudes (sierra) onde pessoas também colhem gramíneas e flores; batatas (papas) de vários tipos são cultivadas em altitudes médias; bananas, laranjas e outras frutas tropicais nas terras baixas. Lhamas trabalham em todos os lugares como animais de carga.
seca à comunicação transcultural: poder-se-ia esperar que eles soassem diferentemente para audiências andinas e metropolitanas. Os não-andinos, por exemplo, podem não saber das deidades andinas que residem nos picos das montanhas ou dos poderes curativos das batatas. E se eles “sabem” dessas coisas, as conhecem enquanto estrangeiros.
Conhecem-nas, por exemplo, em espanhol, ao passo que os iniciados as conhecem em quíchua ou aimará. Mesmo que
apropriadas pela Europa, as legendas da arpillera parecem Seguir linhas outras que não as do objetivismo europeu.
245
* alexander von humboldt e a reinvenção da américa
a reinvenção da américa, 1800
auto-etnográfica, transculturando elementos de discursos " metropolitanos para criar auto-reflexões voltadas para a re-
Mas existe uma base histórica para relacionar à
arpillera contemporânea com o desenho de Humboldt d
representações auto-etnográ-. "cep ção na metrópole. Em tais ficas, os indivíduos subjugados empregam, e procuram em
1805? Feita para consumidores metropolitanos,* estaria à q) pillera pressupondo a tradição ocidental de descrição ob
3
regar, as construções metropolitanas daqueles subjugados a a metrópole. Nesta “dança de espelhos”, como Taussig
tivada, des-historicizada do panorama? Estaria ela propon f
uma versão contrária? Estaria sugerindo uma “folclórica:
Kama a América de Humboldt permanece sendo um dos
contra-versão miniaturizada que o próprio Ocidente te encomendado para complementar a tradição concretizadora? Além disso,teria a própria interpretação vertical (“fantá E tica”, como Michael Taussig a chama”) do Chimborazo uma
espelhos.
dimensão andina? Teriam os guias e intérpretes que lá o le-
varam lhe passado algo de seu conhecimento sobre o eco sistema e de seu respeito por ele? Nos anos 1960, estudiosos dos Andes ficaram fascin
dos pelo que chamaram de “arquipélago vertical” da tradi cional produção agrícola andina. As comunidades andinas, notaram eles, compreendiam todos os complexos agroeco-
lógicos conhecidos no mundo. Tanto quanto Humboldt ha: via se maravilhado com o mundo das plantas, os antropól gos e agrônomos da década de 60 também se maravilharam | com o mundo sócioecológico — muitas vezes como se o. houvessem descoberto. Estaria a criadora da arpillera retra-. tando o arquipélago vertical tal como ela o conhece ou tal.
como sabe que os agrônomos o conheceram, ou contra a
forma como ela sabe que os agrônomos o conheceram? Estaria ela reproduzindo um mito nacional peruano? Um pro-.
duto da zona de contato, a arpillera talvez desempenhe |
aquilo a que me referi no capítulo 1 como uma postura | 348
52. O fato de que a arpillera tenha tido origem no Peru comoarte co- á mercial ou de exportação a insere, a meu ver, fora do reino do que a me-
trópole chama de “autenticidade”. Isto é, ela não poderia ser analisada como expressão ou auto-expressão andina “pura”. Ao propor esta asserção, estou consciente de que passo por cima de questões importantes e difíceis da história da arte e da antropologia da arte. 53. Michael Taussig — Shamanism, Colonialism and the Wild Man: À
À | j j
Study in Terror and Healing, Chicago, Chicago U. P., 1987 (ed. bras.: Xa- g
manismo, colonialismo, e o bomem selvagem: umestudo sobre o terrore a cura, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1993], p.305. í
246
em,
capítulo 7
reinventando a
américa II:
a vanguarda
capitalista e as
|
exploratrices sociales
prolegômenos Haioriadores da região andina registram que, des-
de a época de Sir Walter Raleigh, havia se sedimentado uma previsão entre a nobreza andina de que os ingleses viriam
para a América do Sul para restaurar a dinastia inca." Quan-
|
do esta profecia surgiu em letra impressa em 1723, no prólogo a uma nova edição de Comentários reais dos Incas, do
| |
inca Garcilaso de la Vega, o livro foi censurado pelas auto-
ridades coloniais em razão de seus potenciais efeitos insur-
|
recionais sobre as elites nativas. O fato de que no século XVHI um livro escrito em espanhol (citando uma profecia transcrita em latim) pudesse ser visto como fonte provável de agitação da nobreza inca em Cuzco evoca tanto a exten-
|
1. John Rowe — “Movimiento nacional Inca”, Revista Universitaria de Cuzco, no.107, 1955, p.12. Citado por Teresa Gisbert — Iconografia y mitos indígenas en el arte, La Paz, Gisbert and Co., 1980, p.204.
249
h
a reinvenção da américa, 1800-50.
reinventado a américa IH:
são com que a elite nativa manteve uma identidade de ca
ta à parte, quanto a extensão de suas interconexões com as instituições culturais dos conquistadores. Após mais de 250 À anos desde a conquista, eles haviam se adaptado ao domí- |
nio espanhol, casando-se com colonos espanhóis e parti lhando os frutos da exploração colonial, e haviam mantido | identidades independentes e aspirações políticas. Quando os ingleses finalmente chegaram, um século
mais tarde, a elite indígena não mais existia enquanto for
mação social ou força política. Seu poder, crescente ao lon- 4 go do século XVIII, havia sido quebrado em primeiro lugar |
pela onda de repressão subsegúente à rebelião de 1781, e |
finalmente pelas forças republicanas que venceram a luta 4 pela independência. Até o final das guerras de independência, todavia, o general insurreto San Martín, cuja mãe pertencia à nobreza indígena, havia lutado pela restauração da —
monarquia inca, na qual identificava o caminho para a in- + dependência da Espanha. San Martín surge brevemente no texto que se segue, como um fugitivo na casa de uma via-
jante inglesa que possuía uma compreensão notavelmente |
limitada da marcante história subjacente a suas aspirações |
peculiares. Ela jamais havia visto os retratos andinos das tre- — ze cabeças da dinastia inca (veja-se figura 26), ou as mais novas versões nas quais o próprio San Martín aparecia, em ) trajes incas.” Após a independência, a dinastia inca continua-
va a ser um tema favorito dos pintores de Cuzco, e suas re-
presentações seriais tornaram-se souvenir entre viajantes in-
gleses que finalmente chegaram com um século ou dois de atraso.
Fig.26. Dinastia inca-espanhola. Da Viaje en América meridional (Madrid, Antonio Marin, 1748), de Antonio de Ulloa e Jorge Juan. Uma versão altamente estilizada, e europeizada, de uma representação andina tradicional da dinastia incaica. Retratos dos 14 incas, numa segiiência cronológica, de Manco Capac a Atahualpa, são seguidos por retratos de 8 monarcas espanhóis desde a conquista. Em certas versões tardias, já na era da independência, o último posto é ocupado por Simón Bolivar ou pelo general mestiço San Martín, vestido como um inca (Gisbert, 1980).
a vanguarda capitalista Na esteira de Alexander von Humboldt, viajantes eu-
ropeus acorreram à América do Sul às dúzias. Homens, mu-
lheres, cientistas, soldados, especuladores — eles todos emocionados por estar lá. Em 1825, W. B. Stevensonestava exa2. Para uma análise detalhada desta tradição pictórica, consulte-se Gisbert, op. cit., p.204.
250
gerando apenas um pouco quando afirmou, “sem o menor exagero,” que, embora as terras da América do Sul “tenham
-—
EEE EEE dc
a reinvenção da américa, 1800
sido descobertas no século XVI, permaneceram quase des: conhecidas até o começo do XIX"* Apenas vinte anos tes, quando John Mawe foi, conforme ele afirmou, “indi do a empreender uma viagem de experimentação com; cial, em escala limitada, ao Rio de La Plata”, fora jogadon; prisão imediatamente após a sua chegada e pôde conhece o interior apenas comoprisioneiro. Durante os anos 1820, as revoluções sul-american.
reinventado a américa H:
eram frequentemente enviados para o “novo continente”, por companhias de investidores europeus, como especialis-
tas à procura de recursos exploráveis, contatos e contratos com as elites locais, informações sobre possíveis associações, condições de trabalho, transporte, mercados potenciais e assim por diante. A não ser em “casos isolados”, nos diz o historiador argentino Noe Jitrik, Eles eram instigados a nos visitar movido por uma poderosa curiosidade mercantil, instrumentos, por vezes involuntários ..., da incansável expansão econômica européia que, desde o fim do século XVIII, e mesmo antes disso, combinava conhecimento com
nas quais a Grã-Bretanha e a França foram os maiores par ticipantes militares e financeiros, tornaram-se fonte de ime so interesse na Europa, tornando-se, como disse Stevens “um serviço quase obrigatório” para os viajantes, “incumbi se de escrever” As revoluções foram também o que torno
as viagens possíveis, e as oportunidades abertas por eles aram um impulso que, sem dúvida, equiparava-se às pai xões estéticas e científicas de Humboldt. Como outro
comentaristas têm observado, a onda de viajantes na Amé rica do Sul nas décadas de 1810 e 1820 foi principalment de britânicos que, em sua maioria, viajaram e escreve como batedores avançados do capital europeu. Engenhi ros, mineralogistas, criadores de gado, agrônomos, be
como militares — esses viajantes de princípios do século XI
|
3. W. B. Stevenson — AnHistorical and Descriptive Narrrative of20 nYears Residence in South America, 3 vols., London, Hurst, Robinson and Co
1825, voLI, p.vii. Stevenson foi acusado de ser um espião inglês, o que possivelmente ele era, e passou vários meses de sua visita no cativeiro. 4. John Mawe — Travels in the InteriorofBrazil, particularly in the Goi
and Diamond Districis ..., Philadelphia, M. Carey, 1816 (ed. bras: Via-. gens ao interior do Brasil, São Paulo, Itatiaia, 1978], Introdução. Mawe
também escreveu The Linnean System of Conchology(1823) e um trata " do sobre pedras preciosas. ; p.viii. voll, cit. op. 5. Stevenson — 6. Consulte-se, por exemplo. Jean Franco — “Un viaje poco romântico:| viajeros británicos hacia sudamérica, 1818-28”, Escritura no.7, 1979 (Ca-: racas), pp..129-42; Noe Jitrik — Los viajeros, Série “Los Argentinos”, B nos Aires, Editorial Jorge Alvarez, 1969; Michael Taussig — “On the dian's Back: The Moral Topography of the Andes and its Conquest”, ID. Shamemism, Colonialism and the Wild Man, Chicago, Chicago U. 1987: e Kristine L. Jones — “Nineteenth Century British Travel Accounts Argentina”, Ethnobistory, número especial sobre literatura de viagem, e É nografia e erno-história, vol.33 no.2, 1986, pp.195-211.
252
implementação, interesse científico com a necessidade de dominação concreta € humanismo com produção e mercados.”
Este capítulo se concentra na reinvenção da América ocorrida em seus escritos, em contraste com aqueles de Alexander von Humboldt e dos próprios crioulos americanos. Ele também aborda a questão do sexo, pois esta onda de escritores-viajantes incluiu algumas mulheres européias, entre as primeiras a serem tomadas a sério neste gênero.
Nofinal do século XVIII, as classes mercantis da Grã-
Bretanha e da França não faziam segredo de seus planos a
respeito da América espanhola. A Inglaterra, de forma malsucedida, invadiu o Prata em 1806 e novamente em 1807, e
teve uma longa participação no resultado das lutas contra a
Espanha. Da mesma forma, as elites hispano-americanas não escondiam suas esperanças de novos relacionamentos produtivos com a Europa setentrional. Os líderes crioulos seguiam regularmente para Londres e Paris à procura de apoio para seus esforços. Foi assim que Simón Bolívar encontrou Alexander von Humboldt em 1808, por exemplo. Quando as revoluções hispano-americanas irromperam com
Vigor após 1810, oficiais britânicos, agindo como mercenános, se mostraram altamente influentes na luta militar contra a Espanha, bem como nos conflitos internos que se se-
&uiram. Com eles vieram milhares de soldados e marinhei1
7. Jitrik, op.cit., p.13. A tradução para o inglês é minha.
253
reinventado a américa IH:
ros britânicos, inclusive uma Legião Britânica que lutou ao. lado de Bolívar. Empresários privados europeus, comoJo
Miers e John Robertson no Chile, forneceram, nem semp de bomgrado, um contínuo financiamento para a causa re
cas, encarregados de investigar o colapso de suas precipitadas esperanças. Na verdade, exceto pelos empreendimentos
publicana. A partir de 1818 o braço direito de Bolívar foi um
irlandês de nome Daniel O'Leary.
o
Em meados da década de 1820, pequenas comuni
des de expatriados europeus estavam se formando em mui
EPPEedao gi de
pos. A mineração era uma obsessão usual, especialmen para o investimento britânico durante as décadas de 1810
À
tânico, jorrou sobre a América do Sul na forma de emprés-
timos para a construção de estradas de ferro e de rodagem,
modernização de portos e minas, e para o desenvolvimen-
1820. O colapso da autoridade espanhola havia levado mui tas das mais famosas minas da América à ruína; para rea vá-las eram necessárias ampla capacitação financeira e tee-
to de novas indústrias, como a dosnitratos no Peru e a pro-
nológica, ambas ausentes nas colônias. Os estrangeiro prontamente acorreram; da noite para o dia, companhias de.
investimento em mineração germinaram na Bolsa de Valores de Londres, enquanto investidores preparavam-se p ficar ricos rapidamente. Numa carta escrita em 1826, Simó Bolívar reafirmava as altas esperanças que havia depositad na Grã-Bretanha, “aquela senhora do universo”. “Se assegurarmos uma aliança com ela”, escreveu para seu aliado, Ge-. neral Santander, “podes estar seguro de que nossa felicida: de futura estará garantida.”
Ela não estava, nem tampouco a dos investidores bri
tânicos, ao menos a curto prazo. As dificuldades tecnológi
cas e logísticas do comércio e indústria nas novas repúbli cas, despedaçadas e empobrecidas por anos de guerras ! descaso, provaram ser muito maiores do que se havia ante
cipado. Vários e bem conhecidos relatórios de viagem di
período, tais como Rough Notes ofsomeJourneys across th Pampas and in the Andes (Minutas de algumas jornadas através dos Pampas e nos Andes) (1826), de Frank Bon Head, e Journey from Buenos Ayres to Chile (Jornada o |
j
8. Carta a Santander, 1826, citado em John Lynch — The Spanish Amen can Revolutions 1800-1826, NewYork, W. W. Norton (28, edição), p:343
o [254
ligados a empréstimos financeiros e pela indústria pecuária argentina, O grande afluxo inicial do investimento britânico na América espanhola estava em forte retirada na década de
1830. A penetração econômica européia deveria readquirir seu ímpeto agressivo na segunda metade do século. A partir da década de 1850, o capital europeu, especialmente bri-
tas capitais sul-americanas, e as portas estavam amplamente abertas aos empreendimentos econômicos de todos os
Buenos Aires ao Chile) (1827), de Joseph Andrews, foram escritos por enviados de sociedades de mineração britâni-
dução de grãos na Argentina e no Chile. Pelo final da década de 1880, vários países, incluindo os três citados, haviam
se tornado basicamente dependências econômicas da GrãBretanha, ou melhor, dos investidores da Bolsa de Valores
Britânica. A trajetória neocolonial é tanto pressuposta quanto
estabelecida por muitos dos escritores-viajantes do período pós-independência na América hispânica. Eu os chamo
de vanguarda capitalista. Longe de mistificar os planos expansionistas europeus em seus escritos, a vanguarda capitalista tendia a discuti-los — na verdade, a consagrá-los. Joseph Andrews dedicou suas Viagens, de 1827, ao ministro da fazenda (Chancellor of the Exchequer) britânico “pelo talento político e previsão que abriram para a GrãBretanha as vantagens comerciais integrais dos novos es-
tados independentes da América do Sul.” W. B. Stevenson dedicou as suas ao mercenário britânico Lord Cochrane,
“Pelos importantes serviços prestados à Emancipação sulamericana e aos interesses comerciais da Grã-Bretanha.” Um itinerário em particular tornou-se um paradigma
15 Capitão Joseph Andrews — Journeyfrom Buenos Aires ... to Santiago de Chili and Coguimbo in theyears 1825-26, London, John Murray, 1827, pi. 10. Stevenson — op. cit. volI, pi.
255
a reinvenção da américa, 1800-590.
heróico canônico para a jornada sul-americana do ing] chegando ao porto de Buenos Aires, prosseguia por te através dos pampas argentinos, subia a cordilheira dos Andes e descia no outro lado, para as capitais do Chile e d Peru, de onde finalmente embarcava para casa. Era uma
trilha antiga, em grande parte sobre estradas incaicas ou
pré-incaicas. O caminho havia sido sulcado profundamen. te durante o período de domínio colonial espanhol, quan-.
E
EN
Prep
do as restrições espanholas ao comércio prescreviam a « municação direta entre Buenos Aires e a Espanha. Mercadorias e cartas endereçadas à Argentina tinham de ser pri-
reinventado a américa TI:
mas os logísticos. Os viajantes lutam numa batalha desigual contra privações, ineficiência, indolência, desconforto, maus cavalos, estradas sofríveis, clima ruim e atrasos.
Na verdade, a sociedade hispano-americana é apresentada nesta literatura principalmente como obstáculos logís-
ticos ao movimento avançado dos europeus. Enquanto tais questões eram raramente discutidas por Humboldt (e
muito menos adquiriam dimensão heróica), para a van-
guarda capitalista elas eram por vezes quase obsessivas, e
a jornada alegoriza o desejo de progresso. Cronogramas proliferam, como em John Miers:
meiramente remetidas a Lima e, então, encaminhadas po terra para as regiões no sudeste do continente. Esta exte-.
Estávamos viajando há treze dias, cobrindo 180 léguas, numa média de apenas 12 léguas por dia, ao invés das vinte e cinco léguas que esperávamos poder alcançar. Agora que havíamos percorrido uma boa distância na estrada do correio central, não es-
nuante jornada terrestre de Lima a Buenos Aires é objeto. do mais famoso livro de viagens escrito na América col
tava tão facilmente propenso a admitir as desculpas pelo atraso
nial espanhola, cinicamente intitulado Lazarillo de ciegos caminantes (Guia para o cego ambulante, 1771). Num |
novo projeto, mas igualmente imperial, a vanguarda capi-. talista fez esta mesma viagem de trás para diante, fazendo | uso da mesma infra-estrutura que os ibéricos haviam em- |
pregado. Após a independência, Buenos Aires e seus arre:
dores rapidamente sobrepujaram Lima como ponto de entrada e centro das energias empresariais transatlânticas,| que então fluíam na direção do oeste, como ocorria na|
América do Norte.
Ig
Ao contrário dos exploradores e naturalistas, estes|
viajantes da década de 1820 não registraram realidades | que supunham novas; não se apresentaram como desco- | bridores de um mundo primal; e os fragmentos de natu-.
reza que coletavam eram amostras de matérias primas, | não fragmentos dos desígnios cósmicos da natureza. EM| seus escritos, a retórica contemplativa e estetizante da
descoberta é frequentemente substituída por uma retórica | de consecução de objetivos, de conquista e realizações. | Em muitos relatos, o próprio itinerário torna-se a oportU=| nidade para uma narrativa de sucesso, na qual a viagem| é, em si, um triunfo. O que se conquista são itinerários, não reinos; o que se supera não são os desafios militares, |
que os tropeiros estão sempre prontos a apresentar em todas as ocasiões.”
Observe-se que Miers estava particularmente apressado, visto que cruzava os Andes, acompanhado de sua mu-
lher na iminência de dar à luz. Ela assim o fez, no assoalho de uma agência de correio, e se tornou famosa, como Mme. Godin, por uma história que jamais escreveu, Como se poderia esperar, a natureza primal revestia-se de interesse consideravelmente menor para estes aventurei-
ros do que para Humboldt e seus discípulos. Certamente ela
não possuía nenhum dos valores intrínsecos ou estéticos, que Humboldt lhe atribuíra. De fato, como Jean Franco observou, esta onda de viajantes-escritores frequentemente assumia uma postura conscientemente antiestética em seus escritos,
introduzindo retóricas pragmáticas e econômicas que não compartilhavam do esteticismo ou da tolerância de Humboldt e de seus seguidores mais elegantes. Em 1815, John Mawe secamente se declara incapaz de descrever o panorama “selva-
gem e romântico” do Prata, contentando-se simplesmente em
|
11. John Miers — Travels in Chile and La Plata, London, Baldwin, Cardock and Joy, 1826, vol.I, p.91. Miers também foi autor de um tratado de botânica.
251
a reinvenção da américa, 1800-509.
exclamar: “Que cenário para um agricultor arrojado! Atualmente, tudo está negligenciado.”? Em contraste dire com Humboldt, a natureza inexplorada tende a servista ne
literatura como incômoda ou feia e seu próprio caráter primi tivo, um sinal do fracasso da audácia humana. A negligênc
passa a ser a pedra de toque de uma estética negativa que le-. gitima o intervencionismo europeu.” Provavelmente influe ciado pelas descrições estéticas de Humboldt, Robert Proct
em 1825, expressou desapontamento em relação à visão do.
topo dos Andes. Ele expressa de forma evidente sua decepa
|Io
ção em termos de dinheiro e dominação:
du am Emissor
Mesmo levando em consideração o exagero poético, certamen inferi, a partir de minha leitura dos relatos de outros viajantes,
ã
AAPEAÇÃA
Existem naquele país todas as condições para empreendimentos,e
toda perspectiva de sucesso: só está faltando o homem para pôr
em movimento toda esta máquina, agora inativa, mas que, com capital e indústria, pode ser fonte de ganhos certos e, afinal, de ri-
queza.'
Aqui, o termo “homem” evidentemente designa alguém que não os então habitantes do país. Para o francês Gaspar Mollien (Viagens na República da Colômbia, 1824),
a natureza primal era ou desinteressante ou indecifrável. Na
e compensando nossa labuta pela imensidão e exuberância | seus panoramas.”
dos que lembram sua França nativa:
gras desordenadamente distribuídas e parecendo muito. mais rústicas e selvagens do que aquelas pelas quais já ha-. víamos passado.” Charles Brand, em 1828, achou os par pas argentinos “estéreis e inóspitos”, enquanto encontrou. satisfação estética em cenas de trabalho indígena. “Era lin:
do”, diz ele, pm duas colunas de mulas se encontrav:
numatrilha, “ver os peões mantendo suas tropas separadas.
uma da outra.” Charles Cochrane, que foi à Colômbia paid 12. Mawe — Travels, op. cit., p.121. 13. Esta estética negativa não se originou com a vanguarda capitalista. é encontrada, por exemplo, nosescritos de comentaristas espanhóis do
culo XVIII, especialmente nos críticos da política colonial. Entre estes crf
ticos sobressafam-se os antigos companheiros de La Condamine, Antonio|
de Ulloa e Jorge Juan, que, juntamente a seus escritos públicos haviam| produzido uma crítica interna, as Noticias secretas de America. Esta só se tornou disponível em inglês em 1807, quando provocou sensaçã 14. Robert Proctor — Narrative ofaJourneyacross the Cordillera ofthe Andes and ofa Residence in Lima, London, Archibald Constable, 1825, p:79
15. Tenente Charles Brand — Journal ofa Voyage to Peru: A Passage À
the Cordillera of the Andes in the Winter of 1827 .... London, Henry burn, 1828, p.57.
258
descreveu o panorama americano como uma máquina dor-
mente esperando para ser acionada:
passagem seguinte, a floresta é introduzida no texto como
Ao invés disso, segundo ele “enormes montanhasn
|
investigar o potencial das minas e de criação de pérolas,
que minha vista poderia se estender até o Chile, descrito como o mais rico país do globo, estendido a nossos pés como um map;
E
reinventado a américa II:
um lugar não de densidade semântica, mas de ausência de significado; a beleza é encontrada em cenários domesticaApósatravessar uma floresta muito fechada, subimos continuamen-
te até chegarmos a um ponto de onde um cenário realmente mag-
nífico se apresentou à nossa visão: toda a província de Maraquita
se estendia à nossa frente, suas montanhas parecendo, de onde estávamos, insignificantes morrotes: podíamos, contudo, distinguir as
casas brancas de Maraquita. Muito mais próxima de nós, estava a cidade de Honda, com seus muros banhados pelo Magdalena, cujas margens emprestam beleza peculiar ao panorama circundante.
Poder-se-ia supor que era o Sena serpenteando pelos ricos prados
da Normandia. Esta linda vista, contudo, logo desapareceu quando novamente internei-me na selva.”
A descrição termina, mais do que começa, com a flo-
Testa primal; o exotismo e a estética do espectador de Hum-
boldt e seus seguidores são totalmente abandonados. Algu-
Mas vezes, os escritos de Humboldt são especificamente se-
lecionados como objeto de crítica. Stevenson os considera
Tr Capitão Charles Stuart Cochrane — Journal ofa Residence and Travels in Colombia during the years 1823 and 24, 2 vols., London, Henry Colburn, voLI, p.vii. 17. Gaspar Mollien — Travels in the Republic of Colombia in the years 1822-283, London, C. Knight, 1824, p.57.
259
a reinvenção da américa, 1800-509
“demasiadamente científicos e se concentram em muito poucos detalhes para se tornaram adequadosà leitura aten-. to.”* (Os detalhes ausentes em Humboldt são, aparen mente, logísticos, capazes de informar visitantes potenciais
sobre questões práticas). O edênico e o pastoral são fre. quentemente substituídos, nos escritos da vanguarda capi lista, por uma visão extrativista modernizadora, bem exem-. plificada pela metáfora “devaneio industrial”. Eis a visão
um engenheiro de minas a respeito dos Andes, em 1827:
ESPEPgr==———
Olhando para a cadeia mais próxima e seusaltíssimos picos, Don.
Thomas e eu erigimos castelos de areia sobre suas portentosas encostas. Escavamos ricos veios de minério, construímos forna:
lhas, imaginamos uma multidão de trabalhadores movimentando-
se pelos cumes como insetos ocupados, e tivemos a visão da sel- | vagem e vasta região povoada pelas energias de britânicos a uma distância de nove ou dez mil milhas.”
Enquanto a sociedade hispano-americana ocupava a margens dos escritos de viagem de Humboldt, ela foi parte integrante dos relatos da vanguarda capitalista sobre a Am:
*
rica. As elites eram frequentemente louvadas por sua hospitalidade, sua forma aristocrática de viver e seu apreço pel europeus. Contudo, a sociedade hispano-americana
geral é incessantemente criticada por seu caráter retrógrad
sua indolência e, acima de tudo, por seu fracasso em expl
rar Os recursos que a rodeavam. A antiestética da negligê cia é aplicada tanto ao mundo social americano quanto ao.
panorama. “Enquanto a natureza foi profusa em suas bên-
çãos,” afirmou John Mawe, “os habitantes têm sido negli gentes em desenvolvê-las.”” Observa Mollien, “A maior
parte das terras permanece ociosa; elas, contudo, produz
riam colheitas consideráveis caso os habitantes fossem mi
nos indiferentes. Nenhum encorajamento logra retirá-los d
|,
seus hábitos indolentes e de sua rotina usual”! De acordo |
reinventado a américa II;
com John Miers, “A população fora dos vilarejos, embora vi-
vendo no mais fértil solo, e não tendo nada para fazer, nunca cultiva sequer a menor área.” O paradigma capitalista
extrativista e maximizador é pressuposto, tornando misteriosas as formas de vida de subsistência, não acumuladoras. Os fracassos da vida econômica hispano-americana
são diagnosticados nesta literatura não simplesmente como a recusa de trabalhar, mas também, mais especificamente,
como o fracasso em racionalizar, especializar e maximizar a produção. Os visitantes europeus expressavam seu assom-
bro diante da ausência de cercas, da indiferença pela sepa-
ração de ervas daninhas e plantações, da falta de interesse pela diversificação de culturas, do fracasso (particularmente irritante para John Mawe) em se “preservar a raça” de cães, cavalos e até dos próprios autóctones. Com igual vigor, os crioulos (isto é, os euro-americanos), especialmente no interior das províncias, são criticados por não desenvolverem hábitos modernos de consumo. Ainda que frequentemente “se externasse entusiasmo pelos aspectos pitorescos da sociedade provincial, um após outro destes contrariados viajantes lastima a indiferença em relação às virtudes do conforto, à eficiência, limpeza, variedade e gosto. Tais críticas
são particularmente agressivas na Argentina, onde o “inte-
ror”, a parte do país mais próxima à capital do vice-reino do Peru, era a mais — e não a menos — desenvolvida parte daquela região. A crítica à sociedade argentina provinciana, portanto, era dirigida não apenas à vida de subsistência do gaúcho, mas também à cultura tradicional, baseada na bacienda, da elite colonial. John Mawe declarou-se incapaz de conceber ou tolerar uma sociedade cujos membros, mes-
mos os privilegiados, escolhessem viver sob uma dieta de Carne e chá mate. O interior colonial gera uma ladainha de
lamúrias. As acomodações são consideradas repulsivamente toscas, os cavalos, difíceis de obtê-los, os atrasos, insuporta-
Velmente longos. Igualmente horripilante é o hábito de se 18. Stevenson, op. cit., voll, pi.
19. Joseph Andrews,citado por Franco, op. cit. p.133. 20. Mawe, Travels, op. cit., p.32. 21, Mollien, op. cit., p.89.
260
Partilhar pratos de comida, panelas, copos e leitos. Os em22. Miers, op. cit. p.30 e passim.
261
a reinvenção da américa, 1800, pregados são preguiçosos, mentirosos, desonestos. Como.
reinventado a américa II: Pai
Mãe
na África, os “hábitos imundos” da população são tema constantes comentários. Na maior parte das vezes, é nesse: contexto impróprio que ocorrem as raras aparições das m ú
E iropes — crioulo
apenas um dos muitos viajantes que se declaram enojado;
z Buroçõa Crioula
Filhos
Cor
er Crioulos
o Branco.
lheres americanas. Chegando em Lima, Charles Brand
Branco Índio
Branca
Mestigos
Mesicos
fra fico, 2/8— li
das mulheres locais que seriam “desmazeladase sujas”, “fu.
Branco
Mestiça
Crioulos
Branca — fregiientemente bastante claro.
mam charutos” e “nunca usam espartilhos.”> (Veja-se adia
Mestiço
Branca
Crioulos
Branca — mas um tanto trigueiro.
lar nos pampas argentinos: “Tais são os hábitos imund
Negro
te a descrição dramaticamente diferente das mulheres lim nhas por Flora Tristan.) John Miers registrou impressão si desta gente que nenhum deles jamais pensa em lavar su faces e muito poucos alguma vez lavam ou consertam
roupas: uma epa permanecem em uso dia e no
aii esBArçarerA. ] es : 2 Tal ladainha de críticas, evidentemente, está ancora: . . co o na mais completa hipocrisia, pois é o suposto atraso da:
América que, em primeiro lugar, legitima as intervençõesda vanguarda capitalista. Ideologicamente, a tarefa da vanguarda é a de reinventar uma América como atrasada e negli. genciada, de forma a enquadrar seus cenários e sociedad não capitalistas como manifestamente carentes da explo ção racionalizada trazida pelos europeus. Estudiosos do curso colonial reconhecerão aqui a linguagem da missão: vilizadora pela qual os europeus do norte produzem (p
si mesmos) os outros povos como “nativos”, seres reduzidi
e incompletos, que padecem da incapacidade de se torr o que os europeusjá são, ou de se transformar naquilo qgj os europeus pretendem que eles sejam. Assim se vê a V:
guarda capitalista nos futuros daqueles a quem procura
plorar: como um tipo de inevitabilidade moral e histórica. |
Mestiço Branco
Índia
Mestiço Negra
Crioulos Mulatos
Branca
Zambos
Branco io
Mulata memos
Quarterão Branco
4/8 branco, 4/8 índio,
Trigueiro — frequentemente de cabelos claros. 7/8 branco, 1/8 negro — fregiientemente claro. 4/8 branco, 4/8 negro — acobreado escuro.
Quarterões Mulanmé
6/8 branco, 2/8 negro — claro. 5/8 branco,3/8 negro — fulvo.
Branca
Quarterões
6/8 branco,2/8 negro — fulvo.
Quinterona
Crioulos
Branco — olhos e cabelos claros.
Mulato Negro Zambo
Índia Negra Mulata
Negra Zamba Negra
Paco favo Zambos
Ang ni Hinegro, 698inha 5/8 negro, 3/8 branco.
Negro Cafuzo
Cafiza Negra
Zambo-cafuzos Zambo-cafuzos
15/16 negro, 1/16 índio. 7/8 negro, 1/8 índio.
o
Negro - Índio Negro
Negro
naneoma imita
Negra
Zambos Zambos Zambos Negros
7/8 ranio, 1/8 negão — hastaclaro. =
4/8 negro, 4/8 branco. 15/16 negro, 1/16 branco. 7/8negro, 1/8 branco.
Fig.27. Tabela da Narrative of Twenty Years Residence in South America (Relato de vinte anos de residência na América do Sul) (1825), de W. B. Stevenson, retratando “a mistura de diferentes castas, sob seus nomes comuns ou distintivos.” Não obstante seus detalhes,
Stevenson alerta que o quadro “deve ser considerado como genéri-
co, e não inclui casos particulares.” “Classifiquei as cores”, avisa ele, “de acordo com sua aparência, não de acordo com a mistura de castas, pois sempre frisei que a prole recebe mais a cor de seu pai do que de sua mãe.” (vol.1, p.286)
23. Brand, op. cit., p.182.
24. Miers, op. cit., p.31.
262
Os leitores acostumados a pensar na missão civilizadora em relação à África podem se surpreender por encontrar a mesma linguagem aplicada às populações pós-colo-
268
a reinvenção da américa, 1800-5
niais da América hispânica — de rancheiros, comerciant es |
pequenos negociantes e outros indivíduos decid idament
nãotribais, até um leque de sociedades indíg enas com uma É experiência de trezentos anos levando a vida sob o euroce
lonialismo. Tal é, entretanto, a imensa flexibilidad e desta normalizadora e homogeneizadora retórica da desig ualda de. Ela assevera o seu poder sobre qualquer um e qualqu :
lugar cujas formas de vida tenham sido Organizadas por.
princípios outros que não o de maximizar e racionalizar me-. canismos de produção industrial e manipulações do capi lismo mercantil.” Ela tolera todo tipo de contradiçõ es. N: América espanhola, como em qualquer outro lugar, as críti cas à indolência continuaram inteiramente compatívei s com formas de servidão baseadas na exploração intensiva do tra- | balho, das quais os viajantes foram testemunhas concr etas. A infra-estrutura humana necessária para suas próprias via. gens exigia um exército de muleteiros e peões, sem cont ar os famosos silleteros andinos, que carregavam os europeus .
nas costas pela Cordilheira (veja-se fig.28).º A maior parte |
dos viajantes nos Andes viu, em primeira mão, cenas como | a de mineiros indígenas vivendo até à morte certa, sob mi- |
séria inenarrável, nas minas geladas e envenenadas por mercúrio na Cordilheira. Uma contra-evidência como esta
colocou um pequeno problema para o inerente olhar impe-
rial. Alguém precisava apenas observar uma pessoa em re- |
pouso para ser testemunha, se assim o desejasse, do traç o de ociosidade. Era preciso tão somente que se visse sujeira | para que se constatasse a falta de asseio. Esse inerente po-
der discursivo é impermeável até que aqueles que são vistos sejam também ouvidos. As contradições, por vezes, efetivamente afloram nes-
ta literatura. Nos pampas, John Miers ficou, no mínimo, lev-
emente intrigado ao constatar que as pessoas que pareciam 25. Este era também um discurso usual dentro da Europa, aplicado por
metropolitanos a periferias rurais e camponesas.
26. Para umarica diatribe sobre esta prática e outros aspectos desta lite-
ratura, ver Taussig, op. cit.
264
reinventado a américa II:
tão indolentes eram, “entretanto, saudáveis, robustas, musculosas e atléticas.”” Charles Brand foi inspirado pela liberdade e igualdade da sociedade dos pampas: “Vivendo tão livres e independentes como o vento, eles não podem, nem
irão reconhecer a superioridade de qualquer outro mortal.”
Achava, “entretanto, estranho”, que esses indivíduos livres
escolhessem por vontade própria ser “tão sujos e indolentes; as mulheres, em particular, ... são abjetamente assim. Não têm eles qualquer idéia de conforto...”* Outros escritores, como Robert Proctor, tinham a mente mais aberta.
Francis Bond Head, num relato dramático e muito popular,
constitui uma exceção a todo esse discurso. Em seu român-
tico Rough Notes taken during Some Rapid Journeys across the Pampas and among the Andes (Notaspreliminaresfeitas durante algumas rápidas jornadas pelos pampas e entre os
Andes) (1826), Head contradiz agressivamente seus compatriotas. Em sua descrição da canônica jornada de Buenos Ai-
res ao Chile, expressou um entusiasmo incansável e apaixo-
“nado pela vida livre dos pampas, na verdade, idealizandoa. Ele também idealizou sua ecologia, sustentando que, entregue a si mesmo, o pampa produzia culturas rotativas e
não tinha ervas daninhas. Head denunciou vociferadamen-
te o abandono e abuso de que eram objeto os índios dos pampas. A mortífera exploração dos mineiros andinos inspirava-lhe profundo horror: “nenhum sentimento senão a
avareza poderia aprovar o assentamento de um números de criaturas irmãs” num local tão desolado.” A conclusão de
Head, contudo, revela uma franca ingenuidade: ele supõe
que os mineiros “permanecem por sua própria vontade em tal vida de privações”, posto que poderiam simplesmente se mudar para os pampas.” No entanto, seu relato se destaca em meio àqueles emissários empresariais, por sua perspecTt 27. Miers, op. cit., p.32. 28. Brand, op. cit., p.74. 29. Capitão F.B. Head — Rough Notes taken during Some RapidJourneys across the Pampas and among the Andes, London. John Murray, 1826, p.224.
30. Ibid., p.228.
265
a reinvenção da américa, 180
reinventado a américa H:
iva crítica em relação ao euroexpansionismo e sua ótica re-
à cultura. Ria tivizadora em relação
Modos de vida de subsistência, sistemas não monetários de troca e economias regionais auto-sustentadas são
anátemas para O capitalismo expansionista. Ele procura
destruí-los onde quer que os encontre. O ponto básico no
discuíso da vanguarda capitalista era claro: a América Latina deveria ser transformada num cenário de indústria e eficiência; sua população colonial deveria ser transformada de uma massa indolente, ordinária, sem asseio — onde se carece de ambição, hierarquia, gosto e dinheiro —, em mão de
obra assalariada e mercado para bens de consumo metro-
politanos. Estas aspirações eram amplamente partilhadas
pelos crioulos liberais e urbanos hispano-americanos, que buscavam dominação política e ideológica após a indepen-
dência. No entanto, ainda que aparentemente não tenham
se oposto ao discurso da vanguarda capitalista, não o ado-
“taram completamente. Como discutirei no próximo capítulo, precisamente porque estes crioulos não eram a vanguar-
da capitalista, mas seus anfitriões, eles tenderam a expres-
sar suas aspirações modernizadoras e republicanas por outros meios.
as exploratrices sociales Ainda que frequentemente acompanhados por mulheres, os vanguardistas capitalistas registraram-se com letras maiúsculas num mundo totalmente masculino e heróico. A questão do gênero em sua construçãotorna-se clara quando se examinam os relatos de mulheres viajantes do mesmo peEga Sillero andino carregando em suas costas um europeu pela
E
eira. Não fosse pela chuva, provavelmente o passageiro teria
sido retratado lendo um livro, a forma recomendada de se passar O
tempo neste tipo de viagem.
ríodo — mulheres com quem os vanguardistas não estavam. Uma imagem de Flora Tristan foi queimada em Lima e
Arequipa quando seu livro de viagem Peregrinações de uma
bária chegou ao Peru, vindo de Paris, em 1838. No mínimo alguns membros das classes superiores peruanas não se sen-
tiram lisonjeados pelo retrato que ela pintou depois que 266
267
a reinvenção da américa, 18
reinventado a américa II:
viveu entre eles durante um ano (1833 -4). Provavelm
três filhos, dos quais dois sobreviveram, havia se separado
gostaram ainda menos do sermão que ela lhes ofereceu seu prólogo, sobre como deveriam estar lidan do com os
do marido,e já estava engajada no que foi uma longa e exe-
blemas de seu país. Radicalizada e fortalecida por sua a 4
riência peruana, a própria Tristan veio a se tornar uma
d:
figuras mais proeminentes do socialismo francês Pré-marxis-
tas, fundadora do Sindicato dos Trabalhadores. Anos mais tar
de, sua filha Aline retornou ao Peru como uma jovem viúy:
juntamente com seu filho, Paul Gauguin, que, tanto quanto sua extraordinária avó, construiria fama na zona de contato.
apr ra sr een
Flora Tristan é uma das duas mulheres que escreve: | ram relevantes relatos de viagens sul-americanos nas décadas subsegientes à independência. Seus escritos e os da
viajante inglesa Maria Callcott Graham, Voya ge to Brazil 4 (Viagem ao Brasil) e Journal ofa Residence in Chile (Diário
de uma estada no Chile) (1824), são meu objeto de análise
na segunda parte deste capítulo. Estes textos, fascinantes em | j Si mesmos, suscitam comparações interessan tes com aque- 4 les da vanguarda capitalista e sugerem algumas das linhas gerais do relato de viagem de mulheres burguesa s tal como este tomou forma na primeira metade do sécul o passado. Eles também constituem um aspecto do que venh o chamando de reinvenção da América. A mãe de Flora Tristan era francesa, casada com um | aristocrata peruano, filho da abastada família Trist an, de
Arequipa. Ela cresceu na França, numa casa frequentad a por
hispano-americanos da elite, incluindo Simón Bolív ar.” A morte prematura de seu pai, sem que tivesse deixado um testamento, levou Flora e sua mãe abruptamente à miséria.
Ainda muito jovem, Tristan foi trabalhar numa loja de gra-
vuras e estampas, casando-se então com seu propr ietário
como forma de escapar das privações. O casamento foi de-
sastroso. À altura de seus vinte e poucos anosela tinha tido
crável batalha contra ele, pela custódia de seus filhos. (Ao final, num escândalo muito público, o ex-marido de Tristan” baleou-a pelas costas. Ela sobreviveu e ele ficou preso durante muitos anos). Esta brutal história conjugal, aliada à perda (em função de seu sexo), da propriedade e do status que deveria ter herdado de seu pai, subjaz ao compromisso de Tristan, por toda a sua vida, com o feminismo e a justiça econômica.
Depois de oito anos lutando para manter-se e aos seus filhos, Tristan tomou a decisão desesperada de ir para
o Peru na esperança de reivindicar uma herança da família
de seu pai e, dessa forma, alcançar a independência financeira. Ela partiu de navio no dia do seu trigésimo aniversário. Seus parentes peruanos a receberam calorosamente,
conforme seu relato, mas o patriarca que governava a família, o renomado monarquista Pío Tristan, tirou vantagem de um detalhe técnico legal para negar-lhe uma herança (foilhe prometida uma pequena pensão).? Tristan não tentou
esconder seu desespero ante a recusa. No entanto, permaneceu com seus parentes no Peru por mais de um ano e lá
alcançou o despertar político que a atirou no ativismo de larga escala quando de seu retorno à França, em 1834.
Tristan passou os últimos dez anos de sua vida na
França e Inglaterra escrevendo e agitando em prol dos direitos dos trabalhadores, da “total emancipação das mulhe-
res, e da reorganização pacífica da sociedade de acordo com linhas cooperativistas.”* Sob o disfarce de relatos de
viagem, escreveu críticas às condições sociais na Inglaterra
32. O detalhe técnico consistia em que os pais de Flora haviam se casado na Espanha, mas seu casamento não tinha sido registrado na França. A família já por longo tempo se envolvia nas questões coloniais peruanas.
I
31. Aimé Bonpland também era um amigo da família. As ligações da família com Bolivar eram conhecidas o suficiente para levarà especulação de que ele foi o pai biológico de Flora Tristan. Evidentemente, havia à necessidade de se encontrar uma explicação genética para suas atividades revolucionárias...
268
Como a própria Tristan rememora, Pío Tristan, que herdou a liderança da família pela morte da avó de Flora, em 1831, teve uma longa carreira no exército espanhol e havia sido governador de Cuzco. Ele estava considerando concorrer à presidência peruana quando ela o encontrou. 33. Jean Hawkes — Introdução do tradutor a Flora Tristan — Peregrinations ofa Pariah, 1833-34, Boston, Beacon Press, 1986, p.xiii.
269
a reinvenção da américa, 1800:50.
(Passeio em Londres, 1840) e França (Uma viagem be, França, inédito até 1977), juntamente com um romance.
chamado Mephis, o proletário (1838) e numerosos ensaio: Em 1843, ela publicou o trabalho pelo qual viria a ser mais | conhecida, a Union ouvriêre (A união dos trabalhadores), a um manifesto social e político com o objetivo de unir os tra.
Aid om
mimar o
om
balhadores franceses, mulheres e homens, num único sindi-
cato operário que alcançaria igualdade e justiça para a clas- . se trabalhadora e finalmente provocaria uma transformação. ] pacífica da sociedade francesa. Como para outros pensado- | res socialistas desse período, a total emancipação das mu-. lheres era o pré-requisito para tudo o mais. No ano seguinte à publicação de A união dos trabalhadores, Tristan lite- | ralmente trabalhou até a morte em prol de sua causa, via jando por cidades industriais francesas, advogando a Union |
e suas idéias em reuniões de trabalhadores. Perseguida pe- ã las autoridades públicas, ela provavelmente estava próxima |
de começar o movimento não violento de massa que alme- —
java quando foi acometida por tifo e faleceu no final de a 1844. Tristan foi rapidamente esquecida na Europa até que | sua memória foi revivida pelo movimento feminista após a j
Primeira Guerra Mundial e novamente nos anos 1970. No -
Peru sua história foi recuperada nos anos 1870 quandoa fe- 4 minista boliviana Carolina Freyre de Jaimes clamou por sua: 4 reabilitação. Da mesma forma, nos anos 1930, a líder socialista peruana Magda Portal saudou Flora Tristan numa biografia louvando-a como precursora do feminismo socialista. Hoje, seu nome identifica uma das mais influentes instituir
ções feministas peruanas, o Centro Flora Tristan, em Lima.
O Journal of a Residence in Chile during the Year j
1822 (Diário de uma estada no Chile durante o ano de 1822), de Maria Graham Callcott, é hoje em dia mais fácil
de se encontrar em espanhol do que em inglês. Desde o
surgimento de sua tradução em espanhol em 1902, o rela-
to de Graham se tornou muito respeitado na América hispânica como uma fonte perceptiva e simpática a repeito da
sociedade e política chilenas no período da independência.
Nascida em 1785, Graham estava beirando os 40 quando
270
reinventado a américa TI:
zarpou para a América do Sul juntamente com seu marido,
Thomas Graham, capitão da marinha britânica contratado para auxiliar na guerra contra a Espanha. Graham partiu como esposa e chegou como viúva, pois seu marido mor-
reu em seus braços durante o contorno do Cabo Horn. Re-
cusando a chance de retornar diretamente à Inglaterra, ela permaneceu no Chile por um ano (1822-3) sob a proteção
de Lorde Thomas Cochrane, um mercenário britânico bem conhecido, engajado na causa independentista. Em 1823, possivelmente seguindo as atividades de Cochrane, Graham se mudou para o Rio de Janeiro, onde se associou à corte portuguesa (postada no Brasil desde a invasão de Portugal por Napoleão). Ela trabalhou por um curto período como preceptora para a família real portuguesa, antes de retornar para a Inglaterra em 1824. Quando de sua viagem sul-americana, Maria Graham já era uma viajante experimentada, escritora de viagem e observadora política. Nascida numa família dedicada à na* vegação, ela foi educada sob a direção de uma governanta
“extremamente iluminada” e aos vinte e poucos anos acom-
panhou seu pai (que também deve ter sido bastante “iluminado”) à Índia.” Uma segunda estada naquela região, agora acompanhada por seu marido, em 1810-11, resultou em seu primeiro livro de viagem, Journal of a Residence in India (Diário de uma estada na Índia) (1812), e, posteriormente,
Letters from India (Cartas da Índia) (1814), seguidos, em
1820, por Three Months in the Hills of Rome (Três meses nas
colinas de Roma). Embora não seja dito no livro, foi Graham que editou e compilou os diários e notas de “oficiais e outros cavalheiros” para elaborar o Voyage of HMS Blonde to
the Sandwich Islands (Viagem do HMS Blondeàs ilhas Sandwich) (1826), que relata a expedição de Lord Byron aos mares do sul, em 1824-5. Após suas viagens americanas, ela traduziu algumas memórias políticas, publicou uma History 34. José Valenzuela D. — Introdução do tradutor a Maria Graham — Diario de mi residencia in Chile in 1822, Santiago, Editorial del Pacífico,
1956, p.18.
atl
a reinvenção da américa, 180050
reinventado a américa TI:
of Spain (História da Espanha) (1829) e uma History of
Painting Uistória da pintura) (1836), e tornou-se bastante conhecida por seus livros infantis.” Graham e Tristan faleceram no espaço de dois anos
(1842 e 1844, respectivamente). Ainda que suas viagens te-
nham sido separadas no tempo por uma década e geogra ficamente pela (muito contestada) fronteira entre o Chile eo Peru, ambas foram testemunhas fascinadas e argutas das lutas de independência sul-americanas e das turbulências políticas e militares que a elas se seguiram. Contrariamente ao estereótipo, os dramas políticos da América hispânica sur-
gem muito mais constantemente nos escritos destas mulhe - j
res do que naqueles da vanguarda capitalista ou dos diseípulos de Humboldt. Este é um dentre vários pontos de con-
traste entre elas e seus congêneres masculinos,
Como sugeri, ao estruturar seus livros de viagem, os componentes da vanguarda capitalista frequentemente confiam no objetivo dirigido e na urdidura linear da narrativa de conquista. Os relatos de Graham e Tristan não
seguem este padrão, embora pudessem tê-lo feito. Seu en-
redo se desenrola de uma forma centrípeta em torno de lugares de moradia, de onde a protagonista parte e aos quais retorna. As duas mulheres começam seus relatos com o estabelecimento de seu domicílio num centro urbano (Graham em Valparaíso e Tristan em Arequipa). Mesmo que ambas empreendam longas jornadas por terra, pelo campo e, através dele, até outras cidades, é este posicionamento fixo inicial que organiza a narrativa. Centrados mais no urbano do que no rural, os escritos dessas 4 mulheres seguem também uma agenda descritiva diferente. As vidas política e social são centros de engajamento pessoal e ambas demonstram um forte interesse etnográ-. É fico. Nos relatos da vanguarda capitalista, os objetivos in-
tervencionistas frequentemente produzem uma energia reativa e decisória. Mesmo partilhando muitos desses ob-
|
35. Mais conhecidos foram Little Arthur's History of England e Litile Mary's Ten Days.
272
Fig.29. “Vista da Baía de Valparaíso a partir de minha casa”, Diário
de uma estada no Chile (1824), de Maria Graham. Note-se que a vista é construída a partir de uma perspectiva interna,
jetivos, Graham e Tristan têm pouco interesse imediato nos acontecimentos à sua volta e escrevem ao longo delinhas interpretativas e analíticas. Elas rejeitam o sentimentalismo e o romantismo quase tanto quanto o fez a vanguarda capitalista. Para elas a identidade na zona de contato reside antes em seu sentido de independência pesSoal, propriedade e autoridade social do que em erudição científica, sobrevivência ou aventureirismo. Não menos que os homens, estas mulheres viajantes ocupam um mundo de servos e servidão onde seus privilégios de classe e de raça são pressupostos, onde refeições, banhos, Cobertores e luminárias surgem do nada.
ars |
a reinvenção da américa, 1800-50 j
“Tomei posse de meu chalé em Valparaíso”, escreve . Graham em sua entrada de 9 de maio de 1822, “e sinto um. alívio indescritível por estar sossegada e sozinha.”* Ela ha-
via chegado ao Chile há dez dias, e uma semana se passou
desde o funeral de seu marido. Tanto para Graham quanto para Tristan, o mundo dointerior de suas casas é o lugar de seus “eus”; ambas privilegiam suas moradias, e acima de tudo, seus aposentos particulares, como refúgios e fontes de j
bem-estar. Graham descreve sua casa em detalhe, incluindo :
a vista de portas e janelas: o Chile será observado inicial: mente a partir do interior destes locais. (Recordemo-nos dk
reinventado a américa II:
O fato previsível de que a ambientação doméstica
tem uma presença muito mais proeminente nos relatos de
viagens de mulheres do que nos de homens (onde é neces-
sário procurar muito para se encontrar ao menos uma descrição do interior de uma casa) é uma questão não apenas
de diferentes esferas de interesse ou especialização, mas de modos de constituir o conhecimento e a subjetividade. Se
a tarefa dos homens era a de compor e possuir tudo o que
os circundava, estas mulheres viajantes procuravam, antes
de mais nada, compor e possuir a si mesmas. Sua reivindi-
cação territorial recaía sobre um espaço privado, um império pessoal, do tamanho de um quarto. A partir desta seara
Anna Maria Falconbridge observando o átrio dos escravos
partir de uma janela da sala de estar.) Deve-se frisar, t via, que o mundo privado do interior da casa não é eguiva
privada de autismo, Graham e Tristan se retratam emergin-
lente à vida familiar ou doméstica, mas, na verdade, à sua
ausência: é antes de tudo o lugar da solidão, a área priva em que a subjetividade isolada encontra e cria a si mesma, para em seguida se lançar ao mundo. Tristan, alojada nas
sidências de seus parentes, repetidas vezes retrata-se violar do a convenção social e retirando-se para ao seu quark para se recompor. Os próprios aposentos se transfoTa é em alegorias de seus estados subjetivos e relacionais: Este quarto, de pelo menosvinte e cinco pés de comprimento
do para explorar o mundo em expedições circulares que as levam ao público e ao novo e, posteriormente, de volta ao
familiar e ao circunscrito. Uma versão deste paradigma foi
encontrada, evidentemente, nas rodas de visitas, tão manifestas na vida social urbana, para homens e mulheres. Am-
“bas as mulheres transitavam nos círculos da elite crioula e
de expatriados. Graham leva seusleitores a visitar o gover-
nador, a tomar chá com sua anfitriã, a se encontrar com
mulheres ilustradas, como a poetisa Mercedes Marín del Solar. Tristan, menos tolerante com a sociedade peruana, re-
clama continuamente do tédio provocado pelas visitas contínuas. Seu interesse era mais voltado para espetáculos lo-
vinte e cinco pés de altura, era iluminado por uma única jane
nha inserida no alto da parede. ... O sol jamais penetrava nest
aposento, que em sua forma e atmosfera não era diferente de
uma caverna subterrânea. Uma tristeza profunda se espalha: por minha alma enquanto examinava o posto que minha família : me havia atribuído.”
cais, como as procissões da semana santa, uma peça de mistério, a celebração do carnaval e, como veremos adian-
te, para a guerra civil.
Igualmente coerente com estes livros é a atividade
mais especificamente exploratória com que se idenficavam
36. Maria Graham — Journal ofa Residence in Chile during tbeyear 1822, |
HE London, Longman et alii, and John Murray, 1824, p.115. 37. Tristan, op. cit., pp.98-9. Note-se tambéma descrição de sua cela coi ventual “como um houdoir parisiense”, p.194. Esta é a primeira traduçã & em inglês do livro de Tristan. Como muitas de suas versões, ela foi subs:
tancialmente resumida a partir do original de 600 páginas. A edição H
cesa de 1979, pela Maspero, se restringe a um quarto disto. À ediçã completa que consultei foi a tradução espanhola de Emilia Romero, Lima
Editorial Antárctica, 1946, republicada em 1971 por Moncloa-Cam
nico, também em Lima.
214
;
as mulheres da classe média urbana no princípio do século XIX. O trabalho político de reformadoras sociais e de prati-
Cantes de caridade incluía a prática de visitar prisões, orfa-
natos, hospitais, conventos, fábricas, cortiços, albergues e
Outros lugares de gerenciamento e controle social. A crítiCa alemã Marie-Claire Hoock-Demarle usa o termo explora-
trice sociale (“exploradora social”) para discutir o trabalho
de Flora Tristan e de sua contemporânea germânica Bettina
275
a reinvenção da américa, 1800-50 |
von Arnim.* No Peru, Flora demonstrou grande interesse na | vida dos numerosos conventos de Arequipa e visitou um acampamento militar, um moinho de farinha, uma plantação 4
de cana-de-açúcar, bem como um hospital, um manicômio e um orfanato, todos os três, quase sempre, muito mal administrados. ... Acredita-se que as obriga- 4 ções assistenciais são satisfeitas caso as crianças tenham apenas
o suficiente para sustentar sua miserável existência; mais ainda, |
elas não recebem educação ou treinamento, de tal forma que
qualquer um que sobreviva tornar-se-á mendigo.”
O rótulo também é aplicável a Maria Graham.As
explorações sociais de Graham, no Chile, incluem visitas a
uma prisão, uma aldeia dé artesãos, portos, mercados e re-
tiros religiosos para meninas: “Ali, sob a direção de um padre idoso, as jovens criaturas que assim se retiram são man-
tidas rezando noite e dia, com tão pouco alimento e tempo | de sono que seus corpos e mentes se enfraquecem,”*
Como tais citações deixam ver, a crítica escrita ou fa-
mente, que a crítica ao gosto se restringisse exclusivamente
aos homens. Flora Tristan a pratica com prazer e com mais
desenvoltura do que muitos escritores homens. Acha a co-
zinha de Arequipa “detestável”:
O vale do Arequipa é muito fértil, no entanto os vegetais são de baixa qualidade. As batatas não são polpudas, as couves, alfaces e ervilhas são duras e sem gosto. A carne é seca e as aves tão du-
ras como se tivessem saído do vulcão. ... As únicas coisas que
realmente apreciei em Arequipa foram os bolos e outras gulosei-
mas preparadas pelas freiras.
O estudo de Hoock-Demarle sobre as exploradoras sociais se concentra, em particular, na linguagem empregada pelas escritoras para contar suas investigações e articular suas
críticas. Os termos “exploradoras” (“exploratresses") e “exploração” (“exploration”) são introduzidos por Hoock-Demarle para distinguir o trabalho destas “mulheres contestatórias” da “pesquisa” e “pesquisadoras” (enquêtes, enquétrices) oficiais, cujo discurso apropriado consistia em descrições estatísticas e
lada é parte integral da investigação social como prática po-
técnicas. Visando audiências mais amplas, argumenta ela, as
que ambos estejam fundados sobre valores de classe. Podese dizer do reformismo social, outro ramo da missão civilzatória, que ele constitui uma forma de intervenção imperial
tica tinha tudo a ver, é claro, com o impulso oposicionista,
lítica. Obviamente esta crítica institucional difere da ofereci | da pela vanguarda capitalista, que se baseava na denúncia | da falta de gosto dos hábitos de vida americanos — ainda -
feminina na zona de contato. Isto não quer dizer, evidente|
reinventado a américa II.
38. Marie-Claire Hoock-Demarle — “Le Langage littéraire des femmes enquêtrices”, em Stéphane Michaud (ed.) — Un fabuleux destin: Flora Tristan, Dijon, Editions Universitaires, 1985. Veja-se também Magda Portal ei alii — Flora Tristan: Una reserva de utopia, Centro de la Mujer Peruana Flora Tristan, 1985; Dominique deSanti — Flora Tristan, la femme révoltê, Paris, Hachette, 1972; Jean Baelen — La Vie de Flora Tristan: Socialisme etféminisme au 19e siêcle, Paris, Seuil, 1972; Rosalba Campra — “La ima-
gen de América en Peregrinations d'une paria de Flora Tristan: experiencia autobiográfica y tradición cultural”, em Amérigue Latine/Europe, número especial de Palinure, Paris, 1985-6, pp.04-74. 39. Tristan, op. cit., p.121. 40. Graham, op. cit. p.271.
276
exploradoras sociais evitavam linguagens estatísticas especializadas baseadas na autoridade técnica e, em vez disso, faziam uso da prática novelística para expressar suas descobertas, produzindo uma “sutil fusão do literário e do social, desenvolvido ao nível do estilo.” A rejeição da descrição estatís-
em geral, especificamente antiestatista de seu trabalho. Sua adaptação à linguagem novelística realista, afirma HoockDemarle, capacitou as exploradoras sociais a evitar a armadilha do tecnicismo burocrático, a seara do discurso oficial masculino, que elas percebem ter pequeno impacto sobre
as massas. Elas também escapam do fácil sócio-sentimentalismo
que está começando, não sem sucesso, a explorar o gênero do panfleto.”
41. Tristan, op. cit., pp.122-3. Graham, emcontraste, encontra “batatas de primeiríssima qualidade. Couves de todosos tipos; alfacesinferiores ape-
nas àquelas de Lambeth ...” e assim por diante (op. cit., p.132). 42. Hoock-Demarle — op. cit. pp.105-6.
at
reinventado aamérica II;
a reinvenção da américa, 1800-50 |
“Mademoiselle, a senhora fala dos negros como alguém que os conhece apenas através dos discursos dos filantropistas no parla-
As observações estilísticas de Hoock-Demarle são |
aplicáveis tanto aos escritos sul-americanos de Tristan quan- . to aos de Graham. AO visitar a estância litorânea de Chorrillos, próxima a Lima, por exemplo, a sempre inquiri-
mento, masinfelizmente a pura verdade é que não se pode fazêlos trabalhar sem o chicote.”
“Se é assim, monsieur, só posso rezar pela ruína de suasrefinarias, e acredito que minhas preces serão logo atendidas. Uns poucos anos mais e o açúcar de beterraba substituirá seu açúcar de cana."“
dora Tristan visita uma refinaria de açúcar (“Até então só ha- 4
via visto açúcar nos Jardins Botânicos, em Paris”). Ela des. . creve o lugar por experiência, numa linguagem que é expli- q
Tristan conclui que conversar com o velho fazendeiro
cativa, mas não técnica:
“era tão proveitoso quanto conversar com um surdo,” e, um
tanto petulantemente, se declara “encantada” por saber que um “grupo de senhoras inglesas” estava boicotando o açúcar produzido sob trabalho escravo. Em contraste com as
Estava muito interessada nos quatro moinhos usados para espre-. mer as canas; eles eram propulsionados por uma queda d'água. Emia
O aqueduto que traz a água até a refinaria é muito fino e sua
formas monódicas, totalizadoras, de autoritarismo discursivo, Tristan busca e explora a heteroglossia. Mesmo que Graham e Tristan optem pela narrativa
construção é muito trabalhosa, dadas as dificuldades do terreno. Cheguei até o vasto armazém, onde os tonéis para a fervura do = " 1... = A = = 8 açúcar estão localizados, e então continuamos até a refinariavi zinha, onde o açúcar é separado do melaço.*
pessoal e pelos discursos dramáticos associados à nenhuma das duas confia fortemente nos recursos timento. A dor de Graham, após o funeral de seu é resumida à entrada de uma linha em seu diário:
Comoseria de se esperar, a visita fornece uma ocasião |
para um ataque verbal à escravidão e à economia da planta- .
tion. Tristan apresenta a crítica de uma forma novelística por ã meio de um longo diálogo dramatizado com o proprietário |
novela, do senesposo, “Tenho
estado muito mal; enquanto isso, meus amigos procuraram uma casinha para mim a alguma distância do porto, e es-
da plantation, no qual ela desempenha o papel de heroína |
tou me preparando para me mudar para ela.“ Tristan efe-
do iluminismo. As táticas, todavia, são aquelas da novela rea- | lista e não, da sentimental. Como mostra a passagem abaixo, . a crítica de Tristan não mostra qualquer traço da sentimenta- |
tivamente emprega o emocionalismo para expressar sua
fato, ela estabelece sua autoridade em parte pela apropriação |
por exemplo, ela apresenta o que parece ser uma versão
vida interior, mas é frequentemente anti-sentimental em relação àqueles que a rodeiam. Bem no início de seu livro,
lidade encontrada nos escritos abolicionistas precedentes. De
deliberadamente oposta à então famosa história de Stedman e Joana (veja-se capítulo 5). Durante a conversa num jantar com um proprietário de terras francês das ilhas de Cabo Verde, seu anfitrião lhe conta que depois de seus es-
de uns poucos elementos da retórica econômica:
(Tristan:) “O escravo precisa trabalhar tantas horas que lhe é impos- | sível exercer seu direito de comprar sua liberdade, Se os produtos de seu trabalho perdessem seu valor, tenho certeza que a escravi-
cravos tentarem envenená-lo três vezes, fora obrigado a se
dão seria mudada para muito melhor.” (Proprietário da plantation:) “Como assim, mademoiselle “Se o preço do açúcar mantivesse a mesma relação com o custo E do trabalho que o produz, da mesma forma que os preços com os custos do trabalho na Europa, o senhor, não tendo qualquer compensação pela perda de seu escravo, não o faria trabalhar tanto e o trataria melhor.”
43. Tristan — op. cit., p.281.
Casar com “uma de minhas negras” para permanecer vivo. Agora sua esposa prepara a comida e deve experimentar tudo antes que ele o faça. Eles têm trêsfilhos e ela os “ama intensamente”. Isto posto, Tristan indaga “O senhor não Pensa mais em retornar à França?”, “Por que a senhora diz
]
44. Ibid., pp.282-3.
45. Graham — op. cit. p.115.
ato
a reinvenção da américa, 1800-50 y isto?”, replica ele. “Seria por causa desta mulher?” Tão logo a
reinventado a américa IH:
Mais do que tratar a olaria artesanal como um exem-
sua fortuna estiver formada, diz, preparar-se-á para retornar
plo deplorável de atraso e carente de correção, neste episó-
da, sua mulher não reclamará: “Ela venderá seusfilhos por
utopia matriarcal. A produção não mecanizada, de cunho familiar, é presidida por uma figura feminina de autoridade. Entretanto, mesmo quando afirma valores não industriais e
e a convidará para ir junto, sabendo que ela irá recusar por. que “todas essas mulheres têm terror do mar.” Abandonabom preço e então encontrará outro marido.” Tristan fica
“rubra de indignação.” Em diálogos dramáticos como os que acabo de citar, Tristan se constrói e idealiza como alguém que, agressiva e interativamente, busca o conhecimento. Maria Graham faz o mesmo, num deliberado contraste com as formas objetivistas de saber, baseadas na relação estática entre observador e observado. Logo no início de sua estada no Chile, por exemplo,
Graham sai um dia para visitar uma olaria funcionando. Che- | ga a um pobre vilarejo onde não há nenhum sinal da fábrica
que ela esperava encontrar, “nenhuma divisão de trabalho, nenhum maquinário, nem mesmo uma roda de oleiro, nenhum dos apetrechos de indústria que eu considerava praticamente
indispensáveis para uma atividade tão artificial como a de elaborar objetos de cerâmica.” Ao invés disto, ela encontra uma família sentada sobre peles de carneiro à frente de uma chou- | pana, com um monte de argila recém-preparada. “Como a
maneira mais rápida de se aprender um ofício é a de se jun- +
tar de pronto àqueles com quem se quer aprender, senteime | sobre a pele de carneiro e comecei também trabalhar. ... A | velha, que aparentemente era a chefe, fitou-me gravemente, apanhou então o meu trabalho e mostrou-me como reiniciá- —
lo.”” Graham segue descrevendo o processo de feitura da ce-
râmica, novamente numalinguagem explanatória, mas decidi-
damente não técnica. Em contraste com o homem-de-visão
(seeing-man) ou observador estatístico, Graham, de forma
aqui totalmente consciente, apresenta-se adquirindo conheci-
mento de maneira participativa e mais numa posição infantil
do que patriarcal. Contudo, para lembrar os termosutilizados no capítulo 4, o experiencial ocorre aqui sem O sentimental. 46. Tristan — op. cit., p.28.
47. Graham — op. cit., p.141.
280
dio Graham a apresenta quase que como uma utopia, e uma
feminino-cêntricos, Graham também afirma o privilégio eu-
ropeu. Em relação a ela, os oleiros mantêm o traço essen-
cial de disponibilité do colonizado — aceitam sem questio-
nar a intrusão de Graham e assumem espontaneamente os papéis que ela pretende que assumam. Quando Graham volta um olhar crítico para os arredores, na aldeia, seus julgamentos se referem não ao abandono, à ignorância ou ao
fracasso por parte da população, mas à categoria humanitá-
ria, embora também negativa, categoria de pobreza: “É im-
possível imaginar um grau maior de pobreza aparente que aquele exibido nas cabanas dos oleiros do Rincona. ... Os nativos, no entanto, chamaram minha atenção para a linda paisagem que possuem, que é de fato magnífica, do lado
oposto do oceano até os picos nevados dos Andes.”
Em outras ocasiões, Graham critica explicitamente o
conhecimento objetivo de seus equivalentes masculinos. Ela
descreve um almoço no qual “teve a oportunidade de ob-
servar quão até mesmo homens sensíveis são descuidados ao fazer suas observações em terra estrangeira.”* Ela ouve,
enquanto um médico e naturalista elogia as qualidades medicinais de uma planta chamada culen, que, sustentava ele,
poderia ser cultivada no Chile. Graham replica que a população local lhe havia mostrado uma planta que chamavam de culen, mas o especialista lhe diz que isto não é possível, Pois ele “jamais havia ouvido falar de tal planta por aqui.”
Graham volta para casa e, no matagalatrás da propriedade, encontra pedras cobertas com a planta, Sendo ela própria Uma naturalista amadora, fornece um apanhado de seu pró-
Prio procedimento como herborizadora, que mistura cons49. Ibid., p.139.
281
a reinvenção da américa, 1800-50 i
reinventado a américa II.
cientemente conhecimento objetivista de elite, com a perí-
cia laica da população local. Ela se retrata como um agente | um tanto ingênuo de ambos. Ao descrever uma flor chama-
da cabello de angel ou “cabelo de anjo” Ccuscuta), usa uma — linguagem claramente não técnica, e logo se volta para o y
conhecimento local:
A flor cresce em densas aglomerações, e sua cor se assemelha a. À cera branca, com uma tonalidade rósea no centro. ... Ambos es-
tes parasitas são considerados emolientes pelos nativos e são aplicados sobre feridas. Logo me vi numa situação em que meu conhecimento de plantas
era insuficiente e, portanto, levei um grande punhado para um vizinho, reputadamente um conhecedor de suas propriedades.”
O Culen, vem ela a saber, possui poderes contra mal- |
.
dições.
Graham também faz observações sobre a vanguarda |
capitalista. Viajando de Valparaíso para Santiago,ela se es- | panta por nunca ter lido nada a respeito da beleza do cami-
nho. Seu ceticismo em relação às aspirações industriais da Europa é resumido numa vívida figura alegórica que cons.
trói em Vifa a la Mar:
:
Estava contristada por ver uma grande quantidade de excelente|
maquinaria, própria para tornear cobre, jazendo na orla, onde Mr.
Miers havia construído uma pequena ponte de atracação. Tal ma-
quinário tinha sido objeto de inveja por certos membros do go-
verno porque uma parte dele poderia ser utilizado na cunhagem de dinheiro; e, no entanto, temo que aquela inveja não leve o
verno a comprá-lo e assim reformar os inadequados procedimentos de sua casa da moeda. Entretanto, aqui jazem rodas, parafusos e alavancas esperando que circunstâncias mais favoráv permitam que Mr. Miers desenvolva outros projetos.”
Fig.30. Retrato de “Dona Maria de Jesus, uma jovem que recentemen-
te se distinguiu na guerra do Recôncavo”, por Maria Graham. Graham acrescenta: “Suas vestes são aquelas de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote axadrezado,
que, segundo me disse ela, foi inspirado numa ilustração representando um escocês das terras altas, como a mais feminina das vestes |
50. Ibid., pp.153+4. 51. Graham — op. cit., p.301.
|282
militares. O que diriam disso os Gordons e MacDonalds?” (Journal of a Voyage to Brazil, 1824, p.292.)
283
a reinvenção da américa, 1800-5()
Política e feminotopias Ainda que nessa época as histórias oficiais estivessem
sendo feitas nos campos de batalha, Tristan e Graham fazem de suas casas e de si mesmas postos privilegiados de compreensão e ação política. Os círculos da elite política em que
ambas circulavam, estavam profundamente envolvidos nas
intrigas e levantes do período. Durante a estada de Gra
)M
o Chile estava em guerra (auxiliado pelo amigo de Graham, À
Lorde Cochrane) contra o baluarte monarquista do Peru. o empregador de Cochrane, o general argentino San Martin, havia liderado o exército que obteve a independência, primei-
ramente para o Chile, em 1818, e, depois, para o Peru, em 1821. Em 1822, San Martín estava lutando para consolidar sua
vitória, a que se opunham tanto monarquistas quanto repu-
blicanosliberais, que rejeitavam seus planos de estabelecer 3
uma monarquia constitucional americana. Simón Bolívar, der da causa republicana, recusou-se a apoiar San Martín e
em fins de 1822, o desapontado general deixou o Peru e se-
guiu para o Chile. Da casa de Maria Graham em Valparaíso,
rumou para o exílio na Europa. Graham faz extensos comen- | tários sobre os desdobramentos da crise de 1822. Oferecendo conselhos e opiniões (“se eu fosse um legislador...”), ela. se retrata intervindo em favor de prisioneiros de guerra, ofe-
recendo sua própria casa como ponto de encontroe refúgio
para os aliados de Lorde Cochrane e, num episódio culminante, recebendo o fugitivo e derrotado San Martín. E A visita de Flora Tristan ao Peru coincidiu com um es-
tágio posterior da mesma crise. Na década anterior, o Peru t- +
nha tido doze diferentes chefes de Estado. Tristan testemu-
nhou um período de guerra civil subsegiúente a um golpe de
Estado, no começo de 1834, que envolvia significativamente
seu tio monarquista Pío. Ela também retrata a casa da família
Tristan como um pontoestratégico de reuniões quando o con- |
flito leva a uma batalha na própria Arequipa. Conforme seu N relato, Tristan se engaja profundamente nacrise e se descreve
oferecendo conselhos sensatos a todas as facções, permane- |
284
reinventado a américa TI:
cendo calma durante a refrega, visitando acampamentos militares e subindo heroicamente num telhado para observar o campo de batalha (“Somente uma pessoa de minha natureza
intrépida poderia ter suportado permanecer por lá”s?), À parte seu engajamento político no Peru e a destruição de suas esperanças pessoais, Tristan desenvolveu a ambição de se tornar umaativista política. Para sua transforma-
ção foi crucial uma das mais dramáticas figuras da vida pú-
blica peruana, Doria Pencha, mulher de Agustín Gamarra, presidente do Peru de 1829 a 1833. Mulher extraordinária e ambiciosa, dizia-se que Doria Pencha dirigira o país duran-
te o mandato de seu marido. De capote e culotes, a cavalo,
ela liderou uma campanha militar para resistir a um golpe contra o homem que ela havia escolhido para substituí-lo. Tristan se ocupa extensamente em seu livro deste exemplo de militarismo e liderança femininos. Ela também se sente
intrigada por outro fenômeno feminino no campo de bata-
lha, as rabonas, mulheres indígenas que em grande núme-
ro seguiam os exércitos, sustentando as tropas (basicamen-
te indígenas) e, quando podiam, engajando-se no combate. Para Tristan, a coragem, vigor e autoconfiança das rabonas demonstram claramente “a superioridade das mulheres nas
sociedades primitivas.” “Não seria isso também verdadeiro,”
pergunta ela, “entre os povos num estágio mais avançado de civilização se ambos os sexos recebessem uma educação similar? Devemos esperar que algum dia este experimento seja tentado, ”* A admiração de Tristan pelas rabonas exemplifica a perspectiva feminocêntrica presente nela e em Graham, e a
dívida de ambas para com as imagens de poder feminino
produzidas pela Revolução Francesa e pelo feminismo original. As duas escritoras apontam repetidamente para exemIN 52. Tristan — op. cit., p.206. 53. Ibid., p.180. Maria Graham também menciona as rabonas ao visitar
umorfanato emSantiago onde são abrigadas crianças que perderam seus
dois genitores no campo de batalha. Afora estas alusões, nem Tristan,
nem Graham dedicam atenção significativa à sociedade indígena e mes-
tiça no Peru ou no Chile.
285
a reinvenção da américa, 1800-50 . plos de força e heroísmo femininos. Graham apresenta figu- |
ras como uma rancheira famosa por ser “a melhor domado- ! ra destas bandas”, uma recruta de infantaria que encontra
no Brasil (veja-se ilustração 30), a esposa de um antigo po-
reinventado a américa II.
uma vestimenta negra, da forma de um capelo, que cobre completamente a cabeça e a parte superior do corpo com a
exceção de um olho. O costume,restrito a Lima, era muito marcante e um dos favoritos dos ilustradores (veja-se ilus-
lítico, encarcerada e exilada por se recusar a ler cartas -
tração 31), mesmo que os forasteiros o criticassem pela ex-
milhas até Santiago para encontrar seu esposo numaprisão |
lhos (cf. Charles Brand, (p. 262). Tristan desenvolve uma detalhada análise feminista deste código de vestimenta. Posto
codificadas de seu marido e uma mulher que caminhou 500 militar. Além de Doria Pencha (“esta mulher de ambição 4
verdadeiramente napoleônica”), Tristan repetidamente volta | à história de sua prima Dominga, que passou dez anos, con- 4
tra a sua vontade, num convento e que escapou contraban-.
deando um cadáver para seu leito e ateando-lhe fogo.
Os relatos das duas mulheres também incluem constru-.
ções elaboradas do que poderia ser adequadamente chamado de “feminotopias.” Estes são episódios que apresentam mundos idealizados de autonomia, poder e prazer femininos. Tristan encontra tal feminotopia em Lima, para onde viajara sozi- | nha, para passar as últimas semanas de sua estadia. Ela fica.
fascinada pela independência das mulheres de Lima. “Não há| lugar na Terra,” regozija-se ela, “onde as mulheres sejam tão livres e exercitem tanto poder quanto em Lima.”* Como Fran cis Bond Head nos pampas, ela idealiza: as /imerias são mais
altas que os homens, amadurecem mais cedo, têm gravidez
simples, são “irresistivelmente atraentes” sem serem lindas, é estão muito acima dos homens em inteligência e vontade de poder. Elas vêm e vão como lhes aprouver, mantêm seus no: mes após o casamento, usam adereços de homens, jogam, fu-.
mam, cavalgam de calças, nadam e tocam violão. Carecem, |
contudo, de educação e são muito ignorantes. du No centro da feminotopia de Tristan insere-se uma| longa análise do estilo singular da moda de rua das limenas, o saya y manto, que ela vê como crucial para sua liberdad 4
social e sexual. A saya é uma saia longa, muito justa, feita de pequenos franzidos, de forma tal a “revelar toda a forma | do corpo e expor cada movimento da usuária”;” o manioé
|
54. Ibid., p.269.
55. Ibid., p.270.
286
posição das formas e pela horrificante ausência de espartique ele permite às mulheres a circulação incógnita, argu-
menta ela, o saya y manto é o instrumento de sua liberda-
de. O que outros escritores registram como a falta de asseio e o desmazelo das mulheres de Lima, Tristan apresenta
como uma prática cultural estratégica:
Quando as mulheres de Lima querem tornar seu disfarce ainda
mais completo, colocam um velho corpete, um velho manto e uma velha saya caindo aos pedaços e já perdendo seus franzidos; mas para mostrar que vêm da boa sociedade usam sapatos e meias imaculados e portam um de seus melhores lenços. Esta
é uma reconhecida forma de disfarce e é conhecida como disfrazar. Uma disfrazada é tida como eminentemente respeitável, de
tal forma que ninguém a incomoda.*
A análise do saya y manto por Tristan tem anteceden-
te direto nos escritos de outra famosa viajante feminista, a
inglesa Lady Mary Montagu. Montagu viajou para Constantinopla em 1714 quando seu marido foi designado embaixa-
dor na Turquia, e viveu ali até 1718. Embora não tenha conseguido publicar suas cartas em vida, elas foram extensiva-
mente lidas na Europa quando, finalmente, surgiram em
1763. Tristan certamente as tinha lido, pois suas observações sobre o saya y manto ecoam diretamente a discussão de Lady Montagu a respeito das vestes das mulheres turcas. Também condenando a “extrema estupidez” de escritores anteriores que discorreram sobre as mulheres turcas, Mon-
tagu observa que “É fácil de se ver que elas têm mais liber-
dade que nós, pois não se permite que nenhuma mulher,
qualquer que seja sua posição social, saia às ruas sem que T 56. Ibid., pp.274-5.
287
a reinvenção da américa, 1800-590.
esteja usando dois véus, um cobrindo-lhe toda a face, com. a exceção dos olhos, o outro escondendo-lhe todo o penteado.” Após ter descrito as encorpadas vestes, ela conclui,
Pode-se imaginar quão efetivamente isto as disfarça, posto que 4 não há nada que distinga a grande dama de sua escrava, e é im.
possível para o mais enciumado dos maridos reconhecer sua esposa quando a encontra; nenhum homem ousa tocar ou seguir
uma mulher na rua, Esta máscara perpétua lhes dá inteira liberdade de seguir suas inclinações sem medo de serem descobertas7
É bastante interessante que a feminotopia no texto de.
Maria Graham também tenha um sabor claramente oriental. . Ela descreve um passeio por um retirado jardim particular | em Valparaíso, cultivado por uma mãe idosa e suas cinco fi- A
lhas de meia idade. Graham leva uma jovem amiga até lá, |
onde passam um delicioso dia que termina com uma elabo-
rada refeição preparada para elas pelas proprietárias. É um episódio incomum, cheio de tons alegóricos e parece estar desvinculado do restante da narrativa de Graham. A própria . Graham invoca a imagem de um Jardim do Éden mantido, sem tensões, por mulheres. A família de mulheres é repre- |
sentada em termos que evocam e reproduzem as tradício-| nais representações alegóricas européias da América Latina| como uma figura feminina, usualmente uma amazona seio desnudo. A mãe, que as cumprimenta quando chegam, | é extremamente velha, seus cabelos brancos alinhados.
numa longa trança que lhe caía pelas costas. A mais jovem das filhas “aparentava ter ao menos cinquenta anos de ida: de, forte, bem feita, com os remanescentes vestígios de uma beleza decidida, passo elástico e voz agradável.”* Assim,
Graham contesta o culto da juventude, a valorização da mu
lher em termos exclusivamente associados à procriação ea |
própria imagem da América Latina como o “novo continen- + te.” Numa cena de conotações sensuais e orientais, as mu |
57. Lady Mary Montagu — Embassy to Constantinople: The Travels of.Lad
Mary Wortley Montagu, Christopher Pick (ed. e org), Introdução de Der vla Murphy, London, Century Hutchinson Ltd, 1988, p.111, 58. Graham — op. cit., p.158.
288
reinventado a américa II:
lheres sentam-se em tapetes e almofadas e comem laranjas.
A elaborada refeição que partilham no final do dia tem lu-
gar da mesma maneira, enquanto a velha come e distribui comida com as mãos, embora pratos e garfos tenham sido
trazidos para as duas européias. O jardim em si não é decorativo, mas produtivo: não contém flores domésticas, mas
árvores frutíferas de todos os tipos, incluindo aquelas de
frutas conspicuamente americanas como a lucuma e a chirimoya. No final de sua visita, Graham abruptamente se volta para o tema da bruxaria: “há algo em seu olhar, quando circundada por suas cinco altas filhas, que irresistivelmente
trazia à minha mente aquelas irmãs sobrenaturais, e me senti um tanto inclinada a lhes perguntar o que seriam elas.” Assim termina o episódio, envolto numa atmosfera de paganismo, erotismo feminino e misteriosa irmandade. Se o discurso da vanguarda capitalista é estruturado por uma mistura da estética (ou antiestética) com a econo-
mia, aquele das exploradoras sociais mescla a política e o
pessoal. Enquanto os vanguardistas tendem a arquitetar o enredo de seus relatos na forma de buscas do sucesso, im-
pulsionadas por fantasias de transformação e domínio, as
exploradoras desenvolvem enredos baseados na busca de auto-realização e em fantasias de harmonia social. Estas características são evidentes nas formas como Graham e Tristan terminam seus livros, com episódios que por meio de
termos fundamentalmente políticos, alegorizam a busca pes-
soal. De forma impensável, seja para Humboldt ou para a vanguarda capitalista, a reinvenção da América Latina coincide com a reinvenção do eu.
Ao deixar o Chile, Graham constrói o que se pode con-
siderar uma antiutopia feminista. Ao contornar o Cabo Hom,
seu navio pára brevemente nas ilhas Juan Fernández. Embora tenham sido uma antiga prisão política, as ilhas são mais famosas comoo lugar em que Alexander Selkirk, o modelo para
Robinson Crusoé, viveu como náufrago por muitos anos. Descendo à terra, Graham se encontra sozinha numa clareira
+
59. Ibid., p.160. 289
a reinvenção da américa, 1800-50.
reinventado a américa II: adiante uma outra versão de Crusoé quando o viajante argen-
tino Domingo Faustino Sarmiento visita Juan Fernández.)
Flora Tristan também constrói seu momento de partida como uma alegoria política e profecia pessoal. Quando o navio em que pretende viajar chega em Callao, quem haveria de encontrar a bordo senão Doria Pencha Gamarra, a
líder política e militar cuja carreira tanto a havia fascinado? Gamarra, em desesperado desalinho, derrotada e rumando
para o exílio (para lá enviada pelo novo comandante militar, O tio de Flora, Pío). Doria Pencha também é descrita em tons que evocam a figura alegórica da América Latina, uma
imagem, de fato, bilateral, Quando Tristan a encontra, a Se-
nora Gamarra está usando uma túnica brilhante de seda bordada, meias rosa, chinelos brancos de cetim, um xale
vermelho de crepe-da-China, “o mais belo que vi em Lima,” anéis em todos os dedos, brilhantes e pérolas. “Seu vestuá-
rio vivo, elegante e distinto,” observa Tristan, “formava um
estranho contraste com a dureza de sua voz.”” A própria
Gamarra soluciona o enigma. Estas “roupas européias” não são dela, afirma, mas foram-lhe impingidas por sua irmã. A túnica dificulta seus movimentos, as meias “deixam que sin-
ta frio nas (suas) pernas,” e ela tem receio de queimar o xale
com seu charuto. Ela se descreve para Flora nas “únicas rouFig.31. “Mulheres de Lima”, por W.B.Stevenson, em Narrative ojia Twenty Years Residence in South America (1825), retratando o saya | y manto.
pas adequadas (para ela)”:
Por anostenho viajado por todo o país com calças de tecido rús-
tico feito em minha nativa Cuzco, uma sobrecasaca bordada em
onde ela experimenta sua própria versão do Robinson Crusoé:
ouro e botas com esporas de ouro. Amo o ouro, é o metal precioso que dá ao país sua reputação, o melhor ornamento que um peruano pode ter.”
muito cedo, contudo, sentiria que a aguda solidão é tão desa-
Ante os olhos da fascinada “Florita”, Gamarra tem uma série de violentos ataques epiléticos que quase a ma-
“Ainda que inicialmente possa com exultação clamar 'Sou O monarca de tudo o que vejo/Lá meu direito é indisputável';
gradável quanto antinatural."” Rejeitado o paradigma de pos se territorial, Graham arremata citando as linhas de Cowpes,
“Melhor morar em meio a sobressaltos/que reinar sobre este
horrível lugar.” Enquanto ruma em direção ao mundo, viúva
tam — uma morte não diferente daquela da própria Tristan,
apenas seis anos mais tarde, quando ela também se extenuou no combate político.
e solitária, tais receios devem ter sido muito reais. (Veja-se
60. Ibid., p.352. 290
61. Tristan, op. cit, p.294.
62. Ibid., p.295.
291
a reinvenção da américa, 1800-509 Em 1826, um crítico irritado da Blackwood's Magazine À
reclamou da mediocridade do relato de viagem contempora..
neo. O catálogo de enlpados incluía “o noviço inexperiente, “o janota superficial” e “a mulher romântica, cujos olhos se f restringem a meia dúzia de quartos de hóspedes e que tudo
vê por intermédio da ficção poética.“ Deve-se notar o fato,
não o conteúdo da reclamação: em 1828 o número de eseri- — toras de viagem européias com livros publicados já era suf
ciente para formar uma categoria que fosse objeto das reclamações de homens. Algumas delas estavam viajando além
das fronteiras da Europa e estava emergindo umaliteratura para criar relações especificamente femininas com o expansionismo norte-europeu, um sujeito doméstico feminino do | império, e formas de autoridade imperial feminina na zona . de contato. Flora Tristan e Maria Graham foram os primeiros
exemplos de uma série de mulheres viajantes pela América |
hispânica, cujos relatos adquiriram grande notoriedade na segunda metade do século: Fanny Calderón de la Barca, cujo | clássico Vida no México veio a público em 1843; a notável |
Ida Pfeiffer, cujo A Lady's Travels Round the World (Viagens de uma dama ao redor do mundo) foi publicado em 1852; e
Lady Florence Dixie, autora de Across Patagonia (Através da Patagônia) (1881), para nomear apenas algumas. Ao discutir a emergência dos relatos de viagem de mulheres na África (capítulo 5), observei que o acesso das | mulheres ao relato de viagem parecia ainda mais restrito
reinventado a américa II:
de endereçar-se diretamente a toda a posteridade. A preten-
são de autoridade de Tristan liga-se diretamente ao feminismo europeu do fim do século XVII e início do XIX. Não é
mera coincidência que muitas das primeiras escritoras de viagem também tenham sido e tenham escrito como femi-
nistas, notavelmente Lady Montagu e Mary Wollstonecraft. O primeiro texto que a própria Tristan escreveu sobre o Peru foi um manifesto intitulado Za Necessité defaire un bon acceuil auxfemmes étrangêres (Sobre a necessidade de receber bem as mulheres estrangeiras, 1835), no qual ela expõe as necessidades das mulheres em viagem pelo exterior e as exorta a se educar por meio da excursão. O manifesto em si sugere uma nova legitimidade para a viagem da mu-
lher burguesa. Não por acaso, enquanto as Peregrinações de
uma pária, de Tristan, iam para o prelo em 1837, a rainha Vitória subia ao trono da Inglaterra disposta a codificar aquela que seria a Busca Imperial da mulher européia par excellence: a Missão Civilizadora. Ao mesmo tempo,a claustrofobia de seu reinado propiciaria o surgimento de outra figura particularmente provável de ser encontrada na zona de
contato: a Aventureira Solteirona, dando as costas para a Eu-
ropa, fugindo até os confins do mundo de seu tempo e — al-
gumas vezes — retornando para escrever sobre isso.
que seu acesso à própria viagem. Frequentemente mulheres
publicavam suas viagens em formas incidentais, como cartas, forma utilizada por Lady Montagu, na Turquia, Mary | Wollstonecraft, ma Escandinávia (1794), e Anna Maria Falconbridge, na África Ocidental. Maria Graham usou a for- q
ma de diário, comum a homens e mulheres viajantes. Flora Tristan, contudo, seguiu a forma que havia se tornado canônica e fonte autorizada de informação na era burguesa, à narrativa autobiográfica. Ela se expõe como protagonista de
suas viagens e de sua vida, e reivindica a intencionalidade | 63. Blackwood's Magazine, Edinburgh, W. Blackwood, 1828, p.621.
292
293
e
Capítulo 8
reinventando a américa/ reinventando a europa: a auto-
modelação crioula | |
A América é a arca que contém o misterioso futuro da humanidade e que um dia se abrirá; então o Eterno erguerá em sua mão a herança prometida a todos os homens.
|
José Mármol, Canções do andarilho (Argentina, 1847))
Atento apenas às alegrias que imagina, Célere cruza a vasta distância,
|
Chegando alquebrado, exausto, fatigado,
Ao feliz destino de sua esperança, Onde, afinal, ele se põe a observar, maravilhado ... Um grande deserto coberto de lava! (Gertrúdis Gómez de Avellaneda, “O viajante americano” (Cuba, 1852))
En outubro de 1826, enquanto a Espanha se resig-
nava com a perda de seu império americano e John Miers, com o fracasso de seu empreendimento ligado ao cobre, no
Chile; enquanto Simón Bolívar destruía o último bastião mo-
narquista no Peru e Alexander von Humboldt trabalhava em Paris preparando o terceiro volume de sua Narrativa pes-
295
|
a reinvenção da américa, 1800:50.
soal, O primeiro número de um novo periódico surgia em.
Londres. Era a revista em língua espanhola, intitulada Reper-
torio Americano, fundada pelo intelectual venezuelano An. drés Bello, que havia viajado com Bolívar para Londres em 1810 para buscar auxílio britânico contra o domínio espanhol. Enredado na metrópole, Bello permaneceu em Lom
dres durante dezenove anos antes que retornasse à Améri-
ca do Sul, em 1829, para se tornar um dos maiores estadistas e intelectuais da era posterior à independência. O Repertorio Americano de Bello foi uma tentativa del
propiciar conhecimento e visão para a tarefa de fundar as |
novas repúblicas americanas. Bello se fez um condutor e
um filtro para escritos europeus que pudessem ser úteis na i
reinventando a américa/reinventando a europa:
fundamentais da literatura hispano-americana tenha sido escri-
to e publicado na Inglaterra por alguém que havia estado no
exterior por mais de quinze anos, e como parte de um trabalho mais amplo que permaneceu inacabado, pode parecersintoma irônico de uma desagradável circunstância cultural neocolonial. Mas, para Bello, um americanismo transmitido do oeste para a Europa, não sugeria nem ironia, nem uma circuns-
tância desagradável. Esta lógica cultural euro-americana (crioula) é o meutema neste capítulo.
Escrevendo na celebração da independência hispano-
americana, Bello abriu sua “silva americana” com uma ex-
pressão de descoberta: “Salve, fecunda região”, principia o
processo de construção de nações na América. A revista, .
poema, tal como afirmaria um viajante que se aproximasse de um lugar pela primeira vez. Numa intrincada sintaxe
na.” À seção sobre Ciências Físicas e Naturais incluiria ape- |
ção de louvor à natureza americana:
prometia ele na apresentação, seria “rigurosamente america-
nas materiais “de aplicação direta e imediata à América”: as | seções sobre Humanidades e Ciência Intelectual e Moral in cluiriam tão somente materiais “condizentes com o estado atual da cultura americana.” | O primeiro número do Repertorio continha artigos sobre À Virgílio e Horácio, sobre o uso do barômetro e a melhoria do |
algodão, sobre o emprego do tempo e sobre o processo revolucionário na Colômbia. Também incluía um longo poema de 4 Bello que desde então passou a ser considerado como “a pro- |
clamação inicial e consciente da literatura americanista sobre o continente (sul-americano].”” Identificada como uma “ode ame- | ricana” (“silva americana”), o poemaé intitulado “La Agricultu-
ra de la zona tórrida” (“A agricultura da zona tórrida”). Origi- |
nalmente, ele era a introdução de um épico de três partes in-
titulado América, que Bello jamais completou. Para os leitores contemporâneos pós-coloniais, o fato de que um dos textos 1. Andrés Bello — “Prospecto” El Repertorio Americano, vol.1, outubro,
1826, London, Bossange, Barthes, and Lowell. O governo venezuelano publicou uma edição em fac-símile de El Repertorio Americano em 1973, Caracas, Ediciones de la Presidencia de la República, 2 vols.
2. Pedro Grases — Nota Introdutória, em Antologia de la poesta de Andrês Bello, Madrid, Seix Barral, 1978, p.ás.
296
poética logo superada em espanhol, o poeta entoa uma canSalve, fecunda zona, Que al sol enamorado circunscrebes El vago curso, y cuanto ser se anima En cada vario clima, Acariciada de su luz, concibes! (Salve, fecunda região,
tu que ao sol enamorado circunscreves
o incerto curso, e que acariciado por tua luz,
a qualquer ser animado,
em todos os vários climas, concebes!)
Um catálogo celebratório continua, listando as riquezas naturais da América: Tú (fecunda zona) tejes al verano su guirnalda De granadas espigas; tú la uva Das a la hirviente cuba; No de purpúrea fruta, o roja o gualda,
A tus florestas bellas
Falta matiz alguno; y bebe en ellas Aromas mil el viento y greyes van sin cuento Paciendo tu verdura desde el Ilano Que tiene por lindero el horizonte, hasta el erguido monte, De inaccessible nieve siempre cano.
297
a reinvenção da américa, 1800-
(Tu teces para o verão tua guirlanda
de pesadas espigas; dás a uva à fervente cuba; De nenhuma fruta, seja púrpura, vermelha ou branca, A tuas belas florestas falta qualquer matiz; onde nelas o vento bebe mil fragrâncias, Onde rebanhos sem conta pastando tua verdura desde a planície
Que tem porlimite o horizonte, até a sobranceira montanha, De inacessível e sempre branca neve.)
O catálogo segue em frente por mais quarenta linhas |
num vigoroso tom americanista, cantando loas a produtos ex.
clusivamente americanos, tais como a cana-de-açúcar, o co
rante da cochinilha, o nopal, o tabaco,a iucá, O algodão,a fru- |
ta-pão e assim por diante. A influência das Geórgicas, de Vir-
gílio, sobre este poema tem sido muito discutida. Estas linhas : introdutórias também trazem a marca de Cristóvão Colombo, .
invocando o mundo primal do discurso europeu da rapsódia j de chegada na América. Bello faz alusão direta a Colombo num poema anterior, chamado Alocución a la poesia (Invo- q
cação à poesia,” 1823), onde instiga a “divina poesia” a deixar | a “cultivada Europa, que desdenha sua rusticidade nativa” e |
vir até a América, onde “o mundo de Colombo te abre seu 4
grande palco.” Novamente abundam as ironias coloniais. Os apelos à rusticidade são vazados na menos rústica e mais so-
fisticada retórica poética espanhola disponível na época; ao
mesmo tempo,esta linguagem espanhola refinada é temperada com referentes históricos e materiais americanos (ou ame-
ricanistas) — Aztec, yaravi, Caupolicán, yucca — que Bello cer-
tamente se sentiu obrigado a explicar em notas de rodapé.
reinventando a américa/reinventando a europa:
Várias dessas notas explicativas citam uma figura que, temporal e textualmente, ergue-se entre Cristóvão Colombo e
Andrés Bello: Alexander von Humboldt. Como jovem estudan-
te em Cumana, Bello havia se encontrado com Humboldt e Bonpland pouco depois da chegada deles na Venezuela e os acompanhou em alguns passeios locais. Acompanhou assiduamente os escritos de Humboldt, à medida que eles emanavam de Paris nos anos de 1810 e 1820. Não aparecia nenhuma
edição do Repertorio Americano sem umacitação de Humboldt, selecionada e traduzida para o espanhol por Bello. A abertura da ode americana de Bello não apenas se assemelha às invoca-
ções estetizadas da América por Humboldt nas Imagens da natureza. Ela repete e subsume expressões de Humboldt,até a famosatríade de “floresta” (linha 9), “Ilano” (“planícies,” linha 12)
e “monte siempre cano” (“montanha, sempre branca,” linha 15). “Se algumas páginas de meu livro forem arrebatadas do olvido,” havia declarado Humboldt, em 1814, “o habitante das ribanceiras do Oroonoko contemplará em êxtase ... cidades en-
riquecidas pelo comércio e campos férteis cultivados pelas
mãos de homens livres.” Ele não poderia estar mais errado em relação ao Orenoco, mas estava certo a respeito dolivro. Suas páginas foram realmente arrebatadas. Os escritos de Humboldt
— bem mais do que aqueles da vanguarda capitalista e das exploradoras sociais — tornaram-se matéria-prima essencial para as
ideologias americana e americanista, forjadas por intelectuais crioulos, nas décadas de 1820, 1830 e 1840. Seus escritos foram
a pedra de toque para a literatura cívica que aclamava a inde-
pendêncialiterária da América hispânica, formulando auto-ava-
liações orgulhosamente americanistas e, ao mesmo tempo, como expresso pelo historiador cultural Pedro Henríquez Ure-
na, sendo não europeo (“europeu”), mas europeizante* Nos tex|
3. Andrés Bello — “Silva a la agricultura en la zona tórrida,” linhas 1:15. Utilizei a edição de 1952 das Obras Completas de Bello, Ministerio de Educación, Caracas, vol.1, pp.65-74. |
4. Andrés Bello — “Alocución a la poesia.” op. cit., p.43. As linhas em |
questão, da estrofe de abertura, são as seguintes:
tempo es que dejes ya la culta Europea que tu nativa rustiquez desama, y dirijas el vuelo adonde te abre mundo de Colón su grande escena.
298
5. Alexander von Humboldt — Introdução, Personal Narrative of Travels to the Equinoctial Regions of the New Continent, trad. inglesa por Helen Maria Williams, London, Longmanet alii, 1822, vol.l, pi. 6. Pedro Henríquez Urenia — Seis ensayos en busca de nuestra expresión, Bos
nos Aires, Babel, 1927, pp.27 e ss. Henríquez Urenia considera que q “afán europeizante” coexiste com o ímpeto criollista nas letras hispano-americanas. A discussão que se segue dos textosliterários não procura alcançar nada parecido com uma análise em profundidade das letras sul-americanas no pe-
299
a reinvenção da américa, 1800-5 0—
tos fundamentais da literatura hispano-americana, a América La. tina primal e estetizada de Humboldt fornece frequentemente o
ponto de partida para as prescrições morais e cívicas às novas repúblicas. Sua reinvenção da América Latina para a Europa foi transculturada porescritores euro-americanos para o interior do processo crioulo de auto-invenção. Esta transculturação e seus 3 aspectos de seleção e invenção ocupam, na segiência, o centro de nossa atenção.
De certa maneira, a distinção entre o “europeu” e o
“europeizante” encapsula a apropriação transatlântica por
meio da qual crioulos da elite liberal inicialmente procura-
ram sua base estética e ideológica enquanto americanos de
raça branca. Tal fundamento foi difícil de ser alcançado e era extremamente vulnerável a tremores e erupções vulcã-
nicas subterrâneas. Política e ideologicamente, o projeto
crioulo liberal envolveu a fundação de uma sociedade e cultura americanas independentes e descolonizadas, ao mesmo tempo em que mantinha valores europeus e supremacia branca.” Num sentido relevante, a América latina haveria de
permanecer sendo a “terra de Colombo,” como afirmou
Bello (Gran Colômbia era o nome que Simón Bolívar escolheu para a grande república sul-americana que esperava
fundar). Concomitantemente, os críoulos eram obrigados a
se defrontar com a flagrante ambição neocolonialista dos europeus que tanto admiravam e com o clamor por igualdade das maiorias subordinadas índia, mestiça e africana,
muitos dos quais haviam lutado nas guerras de independên-
cia. Dentro das fileiras crioulas, os liberais enfrentavam poderosas forças conservadoras que, embora favoráveis à independência, opunham-se a mudanças tais comoo livre-co-
ríodo da independência, nem se engaja nos debates atuais no interior da crítica literária. O objetivo, muito mais restrito, é o de discutir certos pontos de contato com o relato de viagem europeu e extrapolacões a partir dele. 7. O general mestiço San Martín, um dos líderes do movimento de independência, cuja mãe pertencia à nobreza inca, defendia um sistema de governo monárquico para a América do Sul após a independência. As
possibilidades incluíam a coroação de Bolívar como imperador, seguin-
do-se o exemplo de Napoleão, ou a reinstauração da dinastia inca.
reinventando a américa/reinventando a europa:
mércio, a abolição, a educação secular ou até mesmo o próprio republicanismo.* Não é preciso identificar-se com os interesses e pre-
conceitos das elites crioulas para reconhecer os desafios com que se defrontavam os sul-americanos no momento da
descolonização. A “independência” não era um processo
conhecido, mas algo que estava sendo improvisado mesmo enquanto escreviam. As palavras “descolonização” e “neocolonialismo” não existiam. Tanto na América do Norte
quanto na do Sul, esta primeira onda de descolonização sig-
nificou, na verdade, embarcar num futuro que se encontra-
va muito além da experiência das sociedades européias (como permanece hoje em dia). Afinal, não foi na Europa
que instituições “européias” como o colonialismo, a escravi-
dão, o sistema de plantation, a mita, o tributo colonial,
padre-missionário feudal e outros. haviam sido vividos
como história, linguagem, cultura e vida diária. Nesse sentido, no período de independência, a América espanhola era de fato um Novo Mundo em movimento, num curso de experimentação social para o qual a metrópole européia fornecia parcos precedentes. As elites encarregadas de construir novas hegemonias na América Latina foram desafiadas a imaginar muitas coisas que até então não existiam, incluin-
do a si mesmas enquanto indivíduos e cidadãos da América Latina republicana.
Permitam-me indicar alguns dos papéis desempenhados pelas imagens constantes da “Ode à Agricultura na zona
Tórrida”, de Andrés Bello. Afirmei anteriormente que as Ii-
nhas introdutórias do poema (“Salve, fecunda região”) reapresentavam o ato interpretativo de Humboldt de redescobrir a América Latina como natureza primal: ou melhor, reapresentavam a forma como Humboldt reapresentou Colom8. Tais desafios e aspirações eram também experienciados em grande parte pelas elites brancas na América do Norte. O que tenho a dizer aqui sobre a estética e ideologia crioula pós-colonial na América do Sul-apresenta muitos paralelos com os acontecimentos nos Estados Unidos, onde o termo “crioulo” (“creole”) não é comumente usado, mas onde seria apropriado que o fosse.
301
a reinvenção da américa, 1800-50
reinventando a américa/reinventando a europa:
Cerrad, cerrad las hondas heridas de la guerra; el fértil suelo, áspero ahora y bravo E
al desacostumbrado yugo torne del arte humana, y le tribute esclavo. Del obstruido estanque del molino recuerden ya las aguas del camino;
el intrincado bosque el hacha rompa,
consuma el fuego; abri en luengas calles
la oscuridad de su infructuosa pompa. Abrigo den los valles a la sediente cana;
la manzana y la pera en la fresca montana el cielo olviden de su madre Espana: adorne la ladera el cafetal... (Fecha, fecha as profundas
feridas da guerra; que o fértil solo,
agora bruto e selvagem,
caia sob o inusitado jugo
da arte humana e lhe pague tributo escravo, Que as águas se lembrem do caminho
para a represa e para o moinho; que sobre o intrincado bosque caia o machado, e que o consuma o fogo; abra-se em longas ruas a obscuridade de sua infrutífera pompa. Dêem os vales abrigo à sedenta cana; que a maçãea pêra
na fresca montanha esqueçam o céu de sua mãe Espanha; que o cafezal adorne as encostas...)
Fig.32. Frontispício, primeiro número do Repertorio Americano (1826),
editado em Londres por Andrés Bello. A figura européia da Liberdade,
portando o gorro frígio, cumprimenta a América, em sua caracterização européia tradicional, como uma ameríndia de seios desnudos.
Após representar a fantasia primal do observador euro-
peu, Bello traz à cena o futuro transformado com que tal
bo. O que importa, todavia, é que Bello repete a descober-
observador apenas sonha, mas que é pressuposto por sua presença. Uma visão social é introduzida na paisagem vazia da disponibilité. Conscientemente fundamentador, o texto desvir-
sódia à natureza, o poema de Bello abruptamente muda sua
rando legitimá-lo como umprojeto coletivo e hegemônico.
ta apenas enquanto um gesto. Após sessenta linhas de raptrajetória e se move da celebração à exortação. Ele incita
seus leitores a “fechar as profundas feridas da guerra,” a se voltar para o trabalho e resgatar a terra selvagem:
302
tua sua versão da narrativa difusionista de progresso, procu-
9. Andrés Bello, “Silva,” op. cit., linhas 203 e ss.
303
a reinvenção da américa, 180050 .
Alguns detalhes dessa visão são relevantes no que se: refere àquele projeto. A fantasia de Bello em relaç ão à nova
América é agrária, não capitalista e clar amente nem indus- 4
trial, urbana ou mercantil. Em flagrante contraste tanto com Colombo quanto com a vanguarda capitalista, os minerais por exemplo, estão ausentes do catálogo de Bello das rique.
zas naturais, e sua chamada ao trabalho não inclui a mine-. q
ração. O comércio também nãofaz parte detai s prescrições,
A parte Virgílio, esta não é uma decisão purament e literária,
Tais ausências são conspícuas, posto que tanto para os capitalistas europeus quanto para os americanos , o comércio
€ Os minerais eram os principais elementos nas lutas pela in0M
dependência. Bello se desloca resolutamente do modelo pastoral para o agrícola (geórgico) e não para o indust rial
ou o mercantil. A crítica da vanguarda capitalista ao gosto e
suas prescrições consumistas não são encontradas em ne-
nhum lugar. Ao contrário, Bello exorta os habitantes das novas repúblicas a rejeitar os enervantes males das cidades em
favor da vida simples do campo: “Oh jovens nações, levan -
tai/para o espantado ocidente vossas cabeças/recém coroadas de lauréis,/honrai o país, honrai a vida humilde/do trabalhador e sua frugal simplicidade.” Em seu brado em fa-
vor dos humildes fazendeiros dispostos a trabalhar, Bello
participa da crítica burguesa européia à sociedade provi n-
cial tradicional, no sentido desta não ter conseguido apode-
rar-se de seu meio ambiente para se aperfeiçoar. Ao mesm o tempo, nem o trabalho assalariado, nem o consumismo e nem o asseio, nem o conforto, têm qualquer lugar no louvor de Bello à vida simples da terra. A perspectiva não industrial, pastoral de sua “Silva” deveria ser entendida não
meramente como nostálgica ou reacionária, mas como uma
resposta dialógica ao olhar mercantilizador e embebido de ambição dos engenheiros ingleses. Como em outros textos que examinarei a seguir, no poema de Bello a terra devoluta americana se torna umfat o
|
histórico tanto quanto (e não ao invés de) um fato da natu-
reinventando a américa/reinventando a europa:
reza. A Espanha é definida como uma força retrógrada cuja “conquista bárbara,” lemos, destruiu os campos, as cidades de Ataualpa e Montezuma e os filhos da América devem
agora expiar esta perda. A paisagem deve “esquecer sua mãe espanhola.”” As linhas finais do poema equiparam a
derrota da Espanha com a escalada dos Andes enquanto
grandes feitos pelos quais a posteridade imortalizará os novos americanos. A imagem canônica da montanha de cume nevado é assim apropriada pela visão cívica republicana. De uma forma curiosa, os limites do empreendimento emancipador emergem na linguagem usada por Bello para imaginar seu paraíso agrário americano. Leitores atentos ao estilo poderão ter notado que nas linhas citadas acima a sintaxe deixa os agentes sem especificação. De quem serão os braços a empunhar o machado que cortará a árvore? Quem
plantará os pés de café que adornarão as encostas das coli-
nas? Como se o próprio Bello estivesse se sentindo desconfortável em relação a estes aspectos (ou como se estivesse antecipando a crítica desconstrucionista), ele interrompe sua própria descrição para levantar uma questão surpreendente e crucial. Ao se referir à cena que retratou, pergunta o poeta, “Seria este um desarrazoado erro produzido por uma ilusória fantasia?” Como o que para dissipar a incerteza, pela primei-
ra e única vez no poema, a figura autorizada do observador
surge abertamente. “Eu os observo agora”, reza o texto, Invadindo a espessa opacidade da floresta; ouço as vozes;
percebo o confuso barulho; no ferro soa
o distante eco de golpes; o vetusto tronco geme, por longo tempo esfalfa a multidão azafamada; atingido por centenas de machados, ele estremece afinal, parte-se, e rende sua copiosa coroa.”
11. Ibid., linhas 302 e ss. Atahualpa e Montezuma foram, respectivamente,
Os governantes dos impérios inca e asteca, quando do primeiro contato
com os espanhóis.
12. Ibid., linhas 227-35. No original em espanhol:
10. Ibid., linhas 351 e ss.
304
Mírola ya que invade la espesura de la floresta opaca; oigo las voces,
305
a reinvenção da américa, 1800-50
reinventando a américa/reinventando a europa:
A indeterminação, todavia, persiste. O “eles”, aqui,
permanece vagamente definido como uma “multidão laboriosa” — e mesmo esta presença nebulosa é detectada apenas
enquanto um“distante eco.” No que tange às relações concretas de trabalho e propriedade, os poderes do observador parecem se dissolver em barulho confuso, sons distantes e
uma árvore abatida por mãos não vistas. A questão ensejada
neste momento não é “Onde estão todos”, mas “Quem está
executando o trabalho?” e “Para quem?” É neste ponto que as aspirações liberais parecemse tornar incapazes de representar a si mesmas. A consciência cívica crioula frequentemente parece ainda menos inclinada que Humboldt a representar para si os americanos em cujos nomes e por cujos corpos haviam sido travadas as guerras contra a Espanha, cuja labuta construiria as novas repúblicas, e cuja continuada sub-
jugação formava a base para os privilégios euro-americanos. No reino estético (assim como no político), não se podia Iidar com as inquietas multidões americanas. Uma dinâmica similar persiste noutra passagem de cu-
SU a EM
ARENS E AN
"e Fi
ee
nho humboldtiano, umtexto do próprio Simón Bolívar, es-
Fig. 33. A sangria da seringueira (árvore-vaca). Gravura de E. Ria] extraída do livro de Paul Marcoy Travels in South America, 1875.
crito em meio às guerras de independência. Emfins de 1821, quinze anos após ter encontrado Humboldt em Paris, Bolívar ficou famoso como o Grande Libertador na América do Sul. Deixando a recém-fundada República da Grã Colômbia nas mãos do general Santander, ele partiu com seu exército
e seu ajudante irlandês Daniel O'Leary para conquistar Quito e Guaiaquil, no Equador. Ele executou esta missão e passou o ano seguinte no Equador, aguardando uma oportunidade para se lançar contra o baluarte real do Peru. Talvez para passar o tempo, Bolívar organizou uma expedição para escalar — evidentemente — o Monte Chimborazo. Talvez tamsiento el rumor confuso; el hierro suena, los golpes el lejano eco redobla; gime el ceibo anciano, que a numerosa tropa largo tiempo fatiga; batido de cien hachas, se estremece, estalla al fin, yrinde el ancha copa.
JR
BM
a reinvenção da américa, 1800-590 .
bém para passar o tempo, escreveu um relato pessoal desta 4
experiência, utilizando-se de Humboldt como um ponto de
referência básico. “Procurei as trilhas de La Condamine e Humboldt,” diz ele. Já havia visitado as encantadas nascentes do Amazonas e desejava escalar a atalaia do universos De fato, a escalada de Bolívar foi aparentemente a primeira tentativa oficial de escalar o Chimborazo, desde a in-
cloncluída expedição do próprio Humboldt, em 1802. Re- j cordando-se da dramática narrativa de Humboldt a respeito ã dos efeitosfísicos da altitude, Bolívar descreve como “alcan- —
çou a região glacial,” onde “o éter sufocava a (sua) respira- | ção.” Aproximando-se do lugar onde (comoele nota) Hum-
boldt havia sido forçado a recuar, o americano é “tomado
pela violência de um espírito desconhecido por mim,” que. lhe permite prosseguir. “Deixei para trás as pegadas de Humboldt” para chegar, afinal, aos “cristais eternos que en-
compassam o Chimborazo.”* No cimo da montanha, Bolívar se entrega a uma visão delirante, na qual a escalada do
Chimborazo se torna uma alegoria de sua própria missão política e épica como libertador das Américas. O “paí dos séculos” surge e mostra a Bolívar quão ínfimas são todas as realizações humanasfrente ao infinito: “Por que desfalecem | criança ou velho, homem ou herói? ... Pensam vocês que | suas ações têmalgum valor para mim?” Equiparando a gran-
de altitude ao grande poder, Bolívar replica “Que mortal q não sentiria vertigem alçando-se tão alto? ... Eu domino à
terra com meus pés; alcanço a eternidade com minhas mãos ... em sua face leio a história do passado e os pensamentos
do destino.” O espírito, então, o aconselha: “Observe, aprenda,” para “expor aos olhos de seus semelhantes a imagem do universo físico, o universo moral,” para “contar à
verdade para a humanidade.” Bolívar recobra, então, os senltidos pela “voz tremenda da Colômbia.”
13. Simón Bolívar — “Mi delirio en Chimborazo," Escritosfundamentales, editado por German Carrera Damas, Caracas, Monte Avila, 1982, p.235. 14. Ibid., p.236.
15. Ibid., p.237.
308.
reinventando a américa/reinventando a europa:
Ainda que siga as pegadas cósmicas de Humboldt,
nada poderia estar mais longe do repertório imaginativo e
verbal do naturalista alemão do que este delírio místico e
sua indisfarçada alegoria paternal/imperial. Enquanto Humboldt procurou em seus escritos obliterar seu estatuto de sujeito histórico e político, este é justamente o reconhecimento que Bolívar faz de si próprio no pico do Chimborazo. O
modo de representação de Humboldt depende de uma distinção ideológica entre conhecimento e conquista; o relato de Bolívar integra a ambos. Ele transforma a natureza numa
alegoria para a história humana e subsume a história humana à eternidade. Nada poderia contrastar de maneira mais aguda com o cientificismo estetizado de Humboldt que o simbolismo rígido invocado por Bolívar. Para Humboldt, a ciência que revelará as “forças ocultas” do cosmos, como ele coloca — e não o misticismo, o delírio, o revolucionarismo
ou a privação de oxigênio.
Tanto em termos de viagem quanto de discurso, portanto, Bolívar deixa para trás as pegadas de seu predecessor europeu — mas apenas depois de optar por segui-las
num primeiro momento. Esta passagem de Bolívar resume de muitas formas o lugar de Humboldt na literatura crioula inicial: como um ponto do qual parte a consciência ameri-
canista e além do qual procura ir. O “modo estético” de Humboldt “tratar os objetos da história natural” re-encenou
uma América Latina num estado primal do qual ela haveria
agora de se erguer para a glória da eurocivilização. No mito que resultou de seus escritos (e pelo qual Humboldt não deve ser tido como único responsável), a América Latina foi imaginada como um terreno desocupado e devoluto; as relações coloniais foram subtraídas e a própria presença do viajante europeu permaneceu inquestionada. Venho cha-
mando esta configuração de “anticonquista”, expressando assim um projeto expansionista incipiente sob uma forma mistificada. Como espero mostrar, esta mesma mistificação
É o que tornou os escritos de Humboldt particularmente utilizáveis pelos líderes e intelectuais crioulos, para procurarem reimaginar suas sociedades e eles mesmos.
309
reinventando a américa/reinventando a europa:
a reinvenção da américa, 1800-50 a
||
Suas planícies,/o grão dourado e a doce cana/cobrem em conjunto.
espere até o anoitecer
A laranjeira, o abacaxi, o sonoro plátano,/ filhos do solo equinocial ,
mesclam-se/ com a frondosa videira, o pinho rústico/ e à majestosa
árvore de Minerva (a oliveira]./Neves eternas coroam as cabeças/do puríssimo Iztaccihual, do Orizaba/e do Popocatepec; e mesmo assim a destruidora mão do inverno jamais toca/ os campos sempre férteis.”
Quando lemos os textosliterários canônicos do período
da independência na América Hispânica, somossurpreendidos | pela frequência com que Humboldt é invocado enquanto símbolo que inaugura (e presumivelmente legitima) aspirações j imaginárias e intelectuais especificamente crioulas. Aquelas as- |
Contudo, quando a noite cai sobre esta paisagem, uma nova visão coloca a história em cena. A sociedade aste-
pirações, por seu turno, são frequentemente expressas em ter- 4
ca pré-colombiana desfila ante o poeta, exibindo a “inuma-
mos alegóricos abstratos que, como sugiro, mantêm suspensas j
na superstição” em cujo nome foi construída a pirâmide. A pirâmide, conclui Heredia, é um lembrete “da loucura e furor humanos,” tais como aqueles que haviam acarretado o
algumas das contradições presentesna tentativa de se legitimar | sociedades hierarquizadas através de ideologias igualitárias. Num outro texto clássico da década de 1820, o poeta. cubano José María Heredia repete a escalada de Humboldt na pirâmide de Cholula, no México, descrita em Imagens
seu próprio exílio. A tirania espanhola é equiparada com o que, para Heredia, havia sido a barbárie asteca. Novamente aqui os tropos humboldtianos funcionam
das cordilheiras (ver fig.34). Heredia visitou o lugar em. 1820 durante seu exílio político de Cuba poratividades in-. dependentistas. Sua visita deu origem ao famoso poema “No (templo) Teocalli de Cholula.” Como Bolívar sobre o Chim- ; borazo, e como os poetas românticos europeus admirados |
como pretexto para um meditar histórico e político america-
nista que não é de forma alguma humboldtiano, mas
criollísimo (“extremadamente crioulo”), como o próprio He-
redia tem sido chamado. Por exemplo, Humboldt comparou extensamente o Teocalli com o Egito e o Mediterrâneo Antigo, acreditando que datasse de “uma época em que o
por Heredia, o “eu” do poema escala a pirâmide em busca de poder e conhecimento. O poema é aberto pela voz observador com uma estrofe louvando a canônica nature americana. “Quão bela é a terra onde viveram os valentes
México estava num estágio de civilização mais avançado que a Dinamarca, a Suécia e a Rússia.” Esta é uma atitude
muito diferente, em relação ao legado asteca, do que aque-
astecas!”, inicia Heredia. “Em seu seio , numa única área estreita, vê-se com assombro todos os climas que existem ds
pólos ao equador.” A alusão aqui, direta ou não,é à fam
sa observação de Humboldt sobre a ecologia vertical da. zona equinocial (ver pg. 224). A estrofe segue através da tríade canônica de imagens americanas: os llanos, a floresta. e o pico coberto por neve: 16. José María Heredia — “En el teocalli de Cholula,” linhas 1-5. Lê-se ni
original espanhol: Cuanto es bella la tierra que habitaban los aztecas valientes! En su seno en una estrecha zona concentrados, con asombro se ven todos los climas que hay desde el polo al ecuador.
310
|
17. Ibid., linhas 5-16. Sus Ilanos cubren a par las doradas mieses las canas deliciosas. El naranjo y la piãa y el plátano sonante, hijos del suelo equinoccial, se mezclan a la frondosa vid, al pino agreste,
y de Minerva al arbol majestuoso. Nieve eternal corona las cabezas de Iztaccihual purísimo, Orizaba Y Popocatepec; sin que el invierno toque jamás con destructora mano los camposfertilísimos.
18. José Martí — “Palabras sobre Heredia,” El Economista Americano, New York, Julho de 1888, em Martí — Obras completas, Editorial de Ciencias
Sociales, La Habana, 1975, vol.5, p.136.
311
a reinvenção da américa, 1800-50.
la expressa pelo criollísimo Heredia. Como em vários textos 5
discutidos adiante, o exílio, mais que a exploração, contextualiza o observadore cria a alteridade entre aquele que vê e o que é visto. A dinâmica da descoberta é transculturada |
numa estrutura de nostalgia e perda. Cinquenta anos mais |
tarde, referindo-se a Heredia como “el primer poeta de .
América” (“o primeiro poeta da América”), o ensaísta cuba- |
no José Martí descreveu o verso de Heredia no mesmo vo- |
cabulário humboldtiano: “vulcânico como as entranhas (da | América) e sereno como suas alturas.” Heredia, disse ele, | mostra “a diferença entre uma floresta e um jardim: no jar |
dim tudo é polido, podado e forrado com cascalho. .. |
Quem ousaria entrar numa selva com um avental e uma te-. soura de podar?”” Assim, duas gerações mais tarde, o pais- q agem primal estetizada determina ainda um vocabulário erftico americanista. São os povos indígenas do presente e não do passa- |
do que Esteban Echeverria alegoriza em seu longo poema | narrativo O cativo (Argentina, 1837), mais um trabalho que | parte do tropo da paisagem humboldtiana. Por volta dos| anos 1830, quando o poema foi escrito, a lua-de-mel com — os engenheiros ingleses havia se esmaecido momentaneamente e a Argentina nativa de Echeverria estava envolvida numa longa guerra civil entre independentistas progressistas, centros tradicionais de poder e emergentes alianças mercantis transatlânticas. No vazio cenário americano, Eche-
verría apresenta não a visão utópica que Bello havia tido, | mas uma distopia moral e cívica. De forma convencional, O
cativo se inicia com o cenário de “Sobre as estepes e deser- |
tos” de Humboldt, o sol dourando os distantes picos dos |
Andes enquanto “o deserto, incomensurável, aberto e mis- À
terioso” se estende amplo como o mar. E novamente está paisagem é invocada apenas como um símbolo. A cortina |
da escuridão desce sobre ela e se ergue, como na contem
plação de Heredia em Cholula, sobre a guerra racial ameri
cana. Os índios dos pampas fluem pela noturna terra devas 19. Ibid., pp.136-7. 312
reinventando a américa/reinventando a europa:
tada numa horda selvagem representada não por uma visão
(como em Bello), mas pelo caos de imagens dispersas e sons confusos:
Então, comoo ruído/ de um trovão quando à distância soa/ na pacífica planície foi ouvido um surdo e confuso clamor:/ desvaneceuse ... € então, violento como ulo horrendo/ de uma turba imensa,
no vento espalhou-se carmim,/ enchendo as bestas de pavor”
O solo estremece. Uma nuvem de poeira, cavalos, lanças, cabeças, cabeleiras — e um lapso (como em Bello e
como em John Barrow) para interrogações aterrorizadas: “Quem será? Que multidão ensandecida/ perturbaria com
seus alaridos os silentes ermos de Deus? ... Onde estará indo? De onde veio? Por que grita, corre, voa?”A não ser pelos cavalos, a representação de Echeverria dos índios dos pampas dificilmente se distingue daquela de seus correlatos
bosquímanosna literatura sobre a África meridional discuti-
da no capítulo 3. Como na descida noturna de John Barrow “sobre os bosquimanos, ao adentrar a zona de contato e confrontar o objeto do extermínio, o código visual e a autorida-
de do observador imperial se despedaçam em som, ceguei-
ra e confusão. É difícil imaginar que apenas uma década antes estes mesmos indígenas dos pampas haviam sido procurados como aliados potenciais na luta militar pela independência. Agora, tornaram-se temíveis e desconhecidos.
O cativo prossegue dramatizando a derrota da civili-
zação nas mãos da barbárie. Uma simbólica família de colonos, composta pela crioula branca María, seu marido inglês T 20. Esteban Echeverria — La cautiva, Buenos Aires, Editorial Huemul, 1974, pp.22-3. Lê-se no original em espanhol: Entonces como el ruido/que suele hacer el tronido cuando retumba lejano/se oyó en el tranquilo llano sordo y confuso clamor;/se perdió
- Y luego violento, como baladro espantoso/de turba inmensa, en el
viento se dilató sonroso/dando a los brutos pavor.
21. Ibid., pp.23, 24. O texto, em espanhol, é o seguinte:
«Quién és? ;Que insensata turba/con su alarido perturba las calladas soledades/ de Dios? ... iDónde va? ;De dónde viene?/ ;De qué su gozo proviene? ;Por qué grita, corre, vuela ...?
313
a reinvenção da américa, 1800-50
reinventando a américa/reinventando a europa:
Latina parecem tê-lo abandonado — ou ele a elas, pois ele,
o crioulo americano, não possui um representante em sua
própria narrativa. Sugeri no capítulo 2 que a narrativa de ca-
tiveiro constitui tradicionalmente um contexto seguro para o
relato dos terrores da zona de contato porque a história é
contada por um sobrevivente que retornou, reafirmando as ordens sociais européia e colonial. O cativo de Echeverria, não obstante o seu título, faz o oposto. Narrado naterceira e não na primeira pessoa, ele conta a outra história, daqueles que não sobreviveram ao encontro e não lograram en-
gendrar uma ordem social branca.
Poucos anos mais tarde, a alegoria americana fundamental foi parcialmente historicizada por um trabalho não
ficcional, frequentemente considerado como o mais importante escrito do período de independência hispano-ameri-
Fig.34. A pirâmide de Cholula tal como retratada em Imagens das cordilheiras (1814), de Humboldt.
cano. Refiro-me à biografia política Civilização e barbárie: a vida deJuan Facundo Quiroga (1845), do argentino Domingo Faustino Sarmiento. Civilização e barbárie é outro exemplo no qual a reinvenção da América de Humboldt fornece o ponto de partida para um projeto discursivo
Brian, e sua filhinha, é perseguida e brutalmente assassina-
Humboldt.” Neste caso, o projeto envolve a confrontação
da pelos índios. Ao contrário de boa parte dos escritos da década anterior, o poema de Echeverria efetivamente dramatiza o confronto indígena-curopeu, a violência e o terror da zona de contato, embora na forma um tanto mistificada da alegoria romântica racial e da família. Falando-se mecanicamente, a alegoria parece clara: a civilização, representa-
da pela tríade do homem inglês, da mulher crioula e de sua filha, perde a batalha — a promessa da vanguarda capitalista é reduzida em O cativo a um único cadáver inglês. O futuro, supõe-se, reside nos homens crioulos e em sua prole masculina. Mas onde estão eles? Em Buenos Aires, talvez
(escrevendo longos poemas?), ou, como discutirei em breve, viajando em direção a Paris. Após testemunhar três décadas de guerra civil e caos, Echeverría parece ter ficado
sem termos positivos com que pudesse formular o grande
experimento americano. Tanto a Europa como a América
314
claramente crioulo, que “deixa para trás as pegadas de
não das incertezas do futuro, mas das ambigiiidades do
passado. O ensaio de Sarmiento é uma polêmica na qual o
autor legitima os valores crioulos liberais depreciando o le-
gado das tradições coloniais, consubstanciadas na figura de Juan Facundo Quiroga, um poderoso líder político e militar do interior da Argentina.” Civilização e barbárie se baseia
nos Ensaios políticos de Humboldt, assim como em seus escritos estéticos, numa tentativa de se opor à “tenebrosa e
bastarda herança” que parecia ser um poderoso obstáculo |
22. A figura de Facundo voltou dramaticamente à tona desde 1989, por
meio do presidente peronista, Carlos Menem, que é oriundo da província de La Rioja, da mesma forma que Facundo Quiroga. A despeito de suas origens, de imigrante libanês e muçulmano, Menem se baseia fortemente no legado de Facundo, de maneira particularmente notável pela utilização de espessas suíças, iguais às que adornam este último nos retratos encontrados emtodos oslivros escolares argentinos.
315
a reinvenção da américa, 1800-50 para as aspirações dos crioulos europeizados.? A “barbárie”, contra a qual viam a “civilização” enterrada, consistia
simultaneamente de sociedades indígenas — ainda majoritárias em muitas regiões —, populações de escravos e ex-es-
cravos, a tradicional sociedade colonial espanhola, autocrática, conservadorae religiosa, e a mistura destas três. A mis-
cigenação era vista como o resultado da violência colonial |
reinventando a américa/reinventando a europa:
O horizonte é sempre incerto, sempre se confundindo com as fi nas nuvens € névoas que impedem que à distância se identifique 9 ponto em que o mundo termina e o céu começa, Tanto ao norte quanto ao sul, os selvagens preparam emboscadas, esperando
por noites enluaradas para cair como um bando de hienas sobre
o gado que pasta nos campos e sobre os indefesos colonos.
Aqui estão elas novamente, as confusas hordas indí-
que pilhou seres já inferiores, cuja própria barbárie os tor — nou sujeitos à conquista européia.
genas noturnas. Selvagens na noite, eles surgem na pai-
natural, o ensaio de Sarmiento se inicia com uma terra de- -
taneamente expõe sua culpa tácita por procurar o refúgio
De uma forma tão tradicional que deve ter parecido .
sagem vazia como imagem incorpórea que por todo o planeta legitima as campanhas européias de conquista e simul-
serta — um capítulo sobre “O aspecto físico da República da Argentina e caracteres, hábitos e idéias que sugere,” e uma epígrafe em francês de “Sobre estepes e desertos”, de Humboldt — “A extensão dos pampas é tão prodigiosa que ao nor—
da escuridão. Sempre parte de uma narrativa expansionista, esta retórica polarizadora nega as reivindicações indígenas à terra (eles sempre vêm do nada ou de algum lugar não visto), da mesma forma que suprime períodos inteiros
do o tropo de disponibilité, Sarmiento apresenta a “imensa
pampas e o colonialismo espanhol.
te encontram-se palmeiras e, ao sul, neves eternas.”* Seguin-
extensão” da Argentina como “inteiramente despovoada.” Ele vê “imensidade por toda parte: imensas as planícies, | imensas as florestas, imensos os rios.” Sarmiento, todavia, re-
jeita a celebração humboldtiana destes espaços vazios, re-
simbolizando-os como “o mal de que sofre a República Argentina.” Eles provocam “confusão”, segundo ele, terror, quando os habitantes dos pampas são incluídos no quadro:
23. Estas passagens são extraídas de Cantos del peregrino, o poema de José Mármolcitado na epígrafe. Neste texto se via “América no puede ser libre todavía,/ porque su herencia ha sido de bastarda oscuridad” Can tos delperegrino, Juan Mármol (ed.), Buenos Aires, Félix Lajouane, 1889.
24. Domingo Facundo Sarmiento — Facundo o civilización y barbarie,
Prólogo Noé Jitrik, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1977 (ed. bras.: Facundo: civilização e barbárie no pampa argentino, Porto Alegre, Editora da
Universidade, 1996], p.23. Curiosamente, Sarmiento atribui a epígrafe à
Francis Bond Head, provavelmente por engano, ainda que ao menos um
crítico argentino, Ricardo Piglia, sugira que a referência errada possa ser | intencional e paródica. Uma tradução em inglês de Civilización y bar barie surgiu sob o título Life in the Argentine Republic in the Days ofibe Tyrants (New York, Collier Books, 1961). A tradutora é Mary Mann qua com seu marido Horace Mann, manteve um longo diálogo com Sarmiens to sobre política educacional. As traduções em inglês utilizadas aqui são de minha autoria. (N.T.: Nesta passagem, como em outras, adotamos O procedimento de traduzir tendo como base o texto em inglês).
316
de histórias de contato, como aquela entre os índios dos
Deixando de lado os índios, Sarmiento prossegue es- boçando uma visão oficial da zona de contato e sua mesti-
zaje cultural. As teorias européias do determinismo ambien-
tal são aplicadas aos habitantes mestiços dos pampas, os gaúchos. As extensas planuras do interior da Argentina, afirma Sarmiento, emprestam um caráter “asiático” (ou seja, despótico) à vida humana da região: “a predominância da força bruta, o domínio do mais forte, a autoridade sem limi-
tes ou responsabilidade, a justiça sem processos ou debates.”” Ao mesmo tempo, de uma forma que reflete sua lei-
tura entusiástica de Francis Bond Head, Sarmiento é fascina-
do e atraído de muitas formas pela sociedade e pelos modos
de vida gaúchos. O restante de seu livro apresenta com as-
sombrosa clareza o reconhecimento contraditório e não resolvido de Sarmiento de que a cultura gaúcha (de contato)
“bárbara” que ele despreza fornece exclusivamente elemen-
tos “argentinos”, que exercem tremenda influência sobre as
elites em processo de descolonização. De uma forma inima-
8inável na Europa, os árbitros culturais na emergente metró25. Sarmiento, Facundo, op. cit., p.23.
26.Ibid., p.28.
317
a reinvenção da américa, 1800-50 4
reinventando a américa/reinventando a europa:
pole argentina abraçaram a cultura gaúcha como fonte de |
uma furiosa estética de autenticidade centrada no homem, Assim são expostas as contradições da descolonização bran- — ca neste extraordinário experimento textual.
O corpo de Civilização e barbárie compreende uma biografia histórica do autocrata provincial ou caudillo Juan Facundo Quiroga. Através da abordagem da vida de Facun- | do e de sua morte violenta, Sarmiento explora as dificuldades | da Argentina em se consolidar como nação. Pela análise de | Sarmiento, a brutalidade de Facundo, seu autoritarismo con- |
servador, seu uso da violência e de um exército particular
rie” que contamina a sociedade argentina e que obstrui o pro- | cesso de construção republicana da nação. Ao mesmo tempo em que condena esta barbárie, Sarmiento exibe uma profun-
da fascinação por Facundo enquanto personagem e pelas formas de vida dos mestiços do interior (onde o próprio Sar-
miento foi criado). Mesmo que condenadas por seu atraso, as províncias do interior, centros da vida Argentina sob o jugo espanhol, são simultaneamente reconhecidas como fonte da j
cultura material autenticamente americana e do material cul-
tural autenticamente argentino — os ingredientes de umafo:
mação cultural (gerenciável) independente. Mais tarde, Sarmiento reivindicaria o interior para a nova imaginação nacional, num trabalho autobiográfico intitulado Recuerdos depros
|
lista. Os viajantes ingleses e franceses foram lidos na Amé- 4
rica hispânica; eles são citados aqui e ali e jornalistas como| Bello traduziram seleções de seusescritos. E, no entanto, 40 enfrentar os desafios de descolonizar suas culturas, subjugal |
318
americanista codificada por Humboldt, que a havia encontrado, em parte, nessas mesmaselites.
Poder-se-ia interpretar séria e erroneamente as relações
crioulas com a metrópole européia (mesmo em suas dimen-
sões neocoloniais) caso a estética crioula fosse vista comosimples imitação ou reprodução mecânica dos discursos europeus. Como sugeri, Humboldt foi invocado principalmente como um símbolo e um ponto de partida para outros projetos imaginati-
turação dos materiais europeus, selecionando-os e empregando-os de forma a não simplesmente reproduzir as visões hegemônicas da Europa ou simplesmente legitimar os desígnios do capital europeu. É significativo que, por repetidas vezes, escritores tenham se apropriado do discurso de Humboldt a respeito da problemática da construção de nações de uma maneira que seus próprios escritos em geral rejeitavam. Em contraste com a apropriação visual da ciência e da estética européias, os escritos sul-americanos projetavam na paisagem dramas morais e cívicos, projeções ideologicamente voltadas para a legitimação da hegemonia crioula sobre e contra não apenas o velho glês e, talvez, ainda mais importante durante a década de 1820, sobre e contra as reivindicações democráticas dos povos subordinados compostos de mestiços, africanos e indígenas. O cenário selvagem de Humboldt fornece um palco para ima-
Em resumo, a despeito de sua frequentemente apais.
as maiorias, reimaginar as relações com a Europa, forjar mos dos de autocompreensão para as novas repúblicas, de se les gitimar como classes dirigentes, projetar sua hegemoniã
se com extraordinária constância para a estética utópica
domínio espanhol, mas também o imperialismo francês e in-
vincia (Memórias de província, 1850).
te a visão intervencionista e industrial da vanguarda capitãs
perimento histórico no qual estavam envolvidos, voltaram-
vose ideológicos de criollisimo. Pode-se ver as representações crioulas de uma forma mais acurada enquanto uma transcul-
como instrumentos políticos básicos exemplificam a “barbá-
xonada anglofilia, quando as elites letradas sul-americanas refletiram sobre a emergente sociedade americana nas décadas de 1820, 1830 e 1840 elas não assumiram simplesme
para O futuro e imaginar possibilidades para o inusitado ex-
gens de guerra racial, genocídio e etnocídio.
Pois, evidentemente, nem todos haveriam de ser libertados, igualados e irmanados pelas revoluções sul-america-
nas, da mesma forma que não o foram por aquelas ocorri-
das na França e nos Estados Unidos. Havia muitas relações
de trabalho, propriedade e hierarquia que os libertadores
nãotinham intenção ou esperança de descolonizar. Projetos liberais como o de Bolívar encontraram resistência feroz por
Parte de setores tradicionalistas da elite; projetos radicais
319
FAFICH/U! a reinvenção da américa, 1800-50
não vingaram. Levantes populares, então frequentes, foram -
reprimidos. No que tange aos povos indígenas subjugados, |
reinventando a américa/reinventando a europa:
Duas décadas depois, em 1847, Domingo Faustino
Sarmiento exprimiu uma visão um tanto mais complexa,
escravos, setores mestiços e pardos sem privilégio e mulhe-
igualmente tingida de desespero abstrato. “Que esforço não demandaria,” exclamou,
domínio masculino, impulsionaram a penetração eurocapi-
desemaranhar este caos de guerras e desmascarar o demônio que as agita em meio ao clamor das facções, das odiosas pretensões das capitais, do arrogante espírito da província-que-se-fez-estado, da ... máscara da ambição e do vento que a Europa sopra na direção da
res de todos os grupos, as guerras de independência e suas consequências confirmaram, na maior parte dos casos, o |
talista e, geralmente intensificaram a exploração. Para os povos de subsistência auto-suficiente das selvas e das planí cies, a independência significou a intrusão da cultura da mercadoria, do trabalho assalariado, do controle estatal e do genocídio em regiões que anteriormente haviam permane- | cido fora do alcance destes instrumentos da expansão eurocapitalista. Ocorreu uma conversão maciça das terras —
América, trazendo-nos seus artefatos, seus imigrantes, e forçandonos a entrar em sua balança de desenvolvimento e riqueza>
A Europa é apontada como parte do problema e não como a solução.
do interior em propriedades privadas, por exemplo, por
meio da criação de fazendas de todos os tamanhosas quais |
demandavam exércitos de trabalhadores assalariados sem-
reinventando a europa
velmente importada da África meridional (consulte-se o ca-
Esta sombria avaliação foi feita num texto cujo surgimento, em retrospecto, parece quase inevitável após a independência: um livro de viagem crioulo sobre a Europa. O
terra. Llaneros e gaúchos eram obrigados a se filiar a ranchos específicos e a portar passes — uma tática muito possipítulo 3).
Se a vanguarda capitalista podia abertamente se entu- |
siasmar com tais desdobramentos, a partir de um ponto de vista americanista eles instituíram contradições internas que não|
era constituído relacionalmente, à vista (entre outras coisas)
poderiam ser facilmente eliminadas por aqueles que buscavam
dos espanhóis, dos europeus do norte e dos americanos
estabelecer valores anticoloniais e igualitários. Talvez por isso |
não brancos. Na sociedade americana, esse indivíduo se
a literatura cívica tenha tantas vezes projetado alegorias morais | abstratas. Numa carta escrita em 1826, Simón Bolívar lamenta-
va o que havia passado a ver como uma maldição que com- | prometia permanentemente o futuro da América do Sul:
Somos a prole vil do espanhol predador que veio à América para sangrá-la até o fim e procriar com suas vítimas. Mais tarde, a ge-
ração ilegítima destas uniões juntou-se à prole de escravos trans-. portados da África. Com tal mistura racial e tal currículo moral podemos nós estabelecer leis acima de líderes, e princípios acima de homens?”
|
27. Simón Bolívar — Carta a Santander, citada em John Lynch — The spanish ; American Revolutions 1808-1826, New York, W.W.Norton, 1986, p.250.
indivíduo crioulo pós-colonial, como todos os indivíduos,
imaginava em parte como contraponto à horda indígena, construída como o seu “outro” bárbaro. Os espanhóis também erambárbaros. Era inevitável que a cultura crioula fi-
nalmente também reivindicasse e definisse para si mesma a ]
Europa do norte: era inevitável, ou assim parece ser, que, por volta de 1850, um intelectual crioulo escrevesse um li-
vro de viagem sobre a Europa. Ainda que não inevitável, certamente não é surpreendente que aquele intelectual devesse ser o mesmo que havia escrito Civilização e barbárie.
Na verdade, foi em virtude de Civilização e barbárie que 28. Domingo Faustino Sarmiento — Viajes, Prólogo de Roy Bartholomew, Colección Clásicos Argentinos, Buenos Aires, Editorial de Belgrano, 1981, p.22.
321
a reinvenção da américa, 1800:50|
Domingo Faustino Sarmiento foi enviado ao exterior em|
1845. O furor gerado pelo livro foi suficiente para inspirar o
empregador de Sarmiento, o governo chileno, a mandá-lo para o estrangeiro para estudar sistemas de educação públi
ca e analisar o potencial de imigração de outros países. Ele permaneceu fora pordois anos visitando a França, Espanha,
Itália, Suíça e Alemanha, bem como o Norte da África e os Estados Unidos.
O que há de novo não é o fato de que Sarmiento |
tenha ido para o exterior ou mesmo que tenha visitado o que visitou. O que há de novo é que ele escreveu um | livro sobre essa experiência. Os crioulos hispano-ameri-
canos usualmente viajavam para a Europa e muitas ve-
zes enviavam seus filhos para que lá estudassem, mas eles não produziram uma literatura sobre a Europa.
Poder-se-ia sugerir que, enquanto súditos coloniais, eles
careciam de autoridade discursiva ou de uma posição legítima de discurso a partir da qual pudessem represen-
tar a Europa. Dentro das restrições coloniais talvez não
existisse projeto ideológico que pudesse motivar uma
representação crioula da Europa. (Os hispano-americanos certamente não tinham acesso a licenças de impressão e editoras.) Desta forma, as assimetrias coloniais são evidenciadas por aparatos de escrita: a metrópole conti-
nuamente (e até obsessivamente) representa a colônia para si, e também continuamente exige da colônia que represente a si mesma para a metrópole, na infindável
reinventando a américa/reinventando a europa:
registros de gasto centavo por centavo, o que nos faz lembrar o quanto Sarmiento idolatrava Benjamin Franklin. Como em relação a outros textos tratados neste capítulo, não procurarei comentar este trabalho extensivamente, ape-
nas mencionarei alguns trechos relevantes.
Não surpreendentemente, Sarmiento inicia suas Via-
gens examinando a questão de sua própria autoridade discursiva. Para qualquer escritor contemporâneo, afirma Sarmiento no prefácio, é difícil produzir um livro de viagem interessante, agora que a “vida civilizada reproduz em to-
dos os lugares as mesmas características. Tal dificuldade é
tanto maior se o viajante provém de uma das sociedades menos avançadas com a intenção de se ilustrar com as mais avançadas.” Vem daí, diz ele, “a inabilidade de observar e a falta de preparo intelectual deixa o olho turvo e
míope, dada a extensão do que há para ser visto e a multiplicidade dos objetos aí incluídos.”” Como exemplo, Sarmiento cita sua própria incapacidade de ver fábricas (um exemplo altamente significativo a esta altura) a não ser como inexplicáveis amontoados de maquinário. Se achasse que seu próprio texto seria comparado àqueles de gran-
des escritores de viagem europeus como Chateaubriand,
Lamartine, Dumas ou Jaquemont, conclui, “[Ele) seria o primeiro a abandonar a pena,”” A despeito de seu gesto deferente, Sarmiento segue escrevendo seu relato sem evidenciar o espírito claudicante
documentação burocrática e de registros em que parti. cularmente o império espanhol parece ter se especiali-
zado. Para as colônias, contudo, reivindicar algo de seu
país-mãe, mesmo que fosse uma reivindicação puramen-
te verbal, implica uma reciprocidade incongruente com as hierarquias coloniais.
|
29. Ibid., p.xiv. A tradução para o inglês é de minha autoria. O título original de 1849 era Viajes en Europa, Africa y América. O contemporâneo de Sarmiento Juan Bautista Alberdi tambémescreveu sobre suas viagens na Europa em 1843-4, numa série de pequenas peças coletadas sob o título Veinte dias en Genova (Vinte dias em Gênova). Como Sarmiento, ele também escreveu sobre viagens dentro da América do Sul, sobre visitas a
do de onze cartas públicas escritas para amigos e mentores
Paraná e Tucumán. Mesmo que merecedores de considerável interesse, os escritos de viagem de Alberdi não têm escopo comparável aos de Sarmiento e releguei sua discussão para uma oportunidade futura. Consulte-se Juan Bautista Alberdi — Viajes y descripciones, Serie Grandes Escritores Ar-
passagem pelos Estados Unidos e mais de cem páginas de
a Elizabeth Garrels detalhes sobre os relatos de viagem de Alberdi. 30. Sarmiento — Viajes, op.cit., p.xviii.
As Viagens de Sarmiento, que surgiram na forma de li-
vro em 1849, compreendem mais de 600 páginas consistinde seu país de origem, juntamente com um ensaio sobre sua
322
gentinos, Alberto Palco (ed.), Buenos Aires, Ediciones Jackson, s.d. Devo
323
a reinvenção da américa, 1800-50 .
que se atribui neste prefácio. Efetivamente, ele enfrentaa questão imediata à sua frente: na era da independência.
como se posiciona o cidadão crioulo e homem de letras em 4
relação à Europa? O livro tem início com uma fascinante di | gressão que articula esta questão de maneira alegórica. O -
navio de Sarmiento deixa Valparaíso (Chile), com destino a -
Montevidéu e, em seguida, Le Havre, mas, como que refle-
tindo as dificuldades de Sarmiento para começar seu texto,
o navio é logo em seguida paralisado por uma calmaria de quatro dias ao largo da costa chilena. Este não-evento, decididamente incongruente com a retórica padrão dolivro de viagem, tem lugar nas ilhas Juan Fernández, onde Alexan- — der Selkirk, o modelo de Robinson Crusoé, havia vivido como náufrago. Sarmiento e seus companheiros de viagem obviamente ficam tão atentos ao precedente quanto Maria Graham antes deles, e, como ela, aproveitam a ocasião para adaptar para si mesmos o mito de Crusoé. Indo à terra para passar um dia na ilha de Mas-a-fuera (Mais Adiante), ficam atônitos ao descobrir que ela já é habitada por quatro náu-
fragos norte-americanos que vivem, nas palavras de Sarmiento, “sem qualquer preocupação com o amanhã, livres de toda sujeição e além do alcance das vicissitudes da vida
civilizada.”* Como sugere esta linguagem, o relato de Sar-
miento sobre a vida em Mas-a-fuera mantém algo do espíri-
to utópico do Crusoé de Defoe. Ele retrata o paraíso masculino que de fato retém muitas das características da utopia agrícola de Bello. Coerente com sua época, é também um paraíso republicano; não existem Sextas-Feiras escravizados, |
e a única hierarquia visível é a existente entre gerações. Predomina um ethos cavalheiresco. Os homens se divertem organizando uma caçada diurna às cabras selvagens que
abundam na ilha. (Podemos nos recordar que Crusoé capturou e criou estas cabras; o original Selkirk, por outro lado,
disse que dançou com elas devido à falta de companhia humana). Contudo, à medida que o relato prossegue, Sarmiento gradualmente desmistifica o paradigma utópico. Fica pa31. Ibid., p.9.
324
reinventando a américa/reinventando a europa:
tente que os quatro homens são infelizes e divididos em
grupos — levando Sarmiento a concluir que “A discórdia é
uma condição de nossa existência, mesmo onde não há go-
vernos ou mulheres.” Como Robinson Crusoé, o episódio de Mas-a-fuera de Sarmiento presta-se a uma leitura alegórica, sugerindo aqui as complexas relações do próprio Sarmiento com as cultu-
ras norte-curopéia, norte-americana e argentina tradicional.
Na sua escala fundamental das civilizações, os habitantes de
Mas-a-fuera são mais “periféricos” (como a expressão suge-
re) do que ele mesmo, mas não tão periféricos quanto alguns dos habitantes do interior argentino. Ao observar que os náufragos americanos mantiveram um calendário preciso, Sarmiento relembra o episódio em que a população de uma das capitais provinciais da Argentina descobriu, graças a um viajante em trânsito, que havia, não se sabe como, perdido o registro de um dia. Dizia-se que, por terem permanecido nessa situação por um ano, eles haviam “jejuado às
quintas-feiras, assistido à missa aos sábados e trabalhado aos domingos.”*? Aparentemente, mesmo como náufragos,
os anglo-americanos podem manter umcontrole melhor sobre o tempo racionalizado do que as províncias coloniais.
Alegoricamente, o episódio de Más-a-fuera permite
que Sarmiento se situe com respeito aos múltiplos referentes culturais que o afetam. No tocante à Europa, ele está li-
geiramente “mas-a-fuera” — um pouco à parte dela. Ao mesmo tempo, sua marginalidade possui uma dimensão afirma-
tiva. O episódio do Crusoé transculturado enseja a imagem
que a terminologia contemporânea chama hoje em dia de “realismo mágico.” Ao encarar a metrópole, o realista mágico recupera uma mensagem da fronteira: suas ficções (Robinson Crusoé) são minhas realidades (Mas-a-fuera); seu passado é meu presente; o que para você é exótico (um mundo sem a mensuração do tempo por relógios) é meu dia-a-dia (o interior argentino). Apenas depois de situar-se
32. Ibid., p.22. 33. Ibid., p.10.
E
a reinvenção da américa, 1800-50
dessa maneira é que Sarmiento dá continuidade ao seu pa.
pel de escritor de viagem como mediador cultural. Sopra o vento e eles navegam adiante. Ao chegar a Paris, Sarmiento adentra em sua Mega
cultural não como um peregrino nem como conquistador 2a mas como um infiltrado. Ele não assume a Posição do
observador olhando panoramicamente para uma Paris radi calmente diferente de si mesmo. Sarmiento se introduz em il
Paris no papel de flaneur que, assim sustenta, é um obser
vador privilegiado da cidade:
Flaner é algo tão sagrado quanto respeitável em Paris, é uma ati- 4 vidade tão privilegiada que ninguém ousa interrompê-a. O faneur tem O direito de botar o seu nariz em qualquer lugar. Se você parar à frente de uma rachadura de um muro é observá-la atentamente, algum entusiasta se juntará e parará com o intuito de ver aquilo que está sendo observado por você; um terceiro se
reinventando a américa/reinventando a europa:
tagens, reproduzem o discurso de acumulação de Humboldt e sua postura de inocente deslumbramento: “É você um homem de letras? Então passe um ano lendo o que
é aqui publicado num único dia. ... Seria você um artista? A exposição de 1846 do Louvre ainda está aberta. Dois mil e quatrocentos objetos de arte, pinturas, estátuas, gravuras, vasos, tapeçarias, ... Interessa-se por sistemas políticos? Oh! Nem mesmo se aproxime do labirinto de teorias, princípios e questões!"
Num gesto paródico e transculturador, ele redireciona o discurso de acumulação para seu próprio contexto de ori-
gem, a metrópole capitalista. Subtrai-se, contudo, uma dimensão do paradigma metropolitano, a da aquisição. Uma figura
alienada, o flaneur, não tem capital e não acumula nada. Ele não compra, não coleta amostras, não classifica ou almeja transformar o que vê. No entanto, ele efetivamente reage, e
rarão, a rua se entupirá e uma multidão será formada.”
Sarmiento, o arqui-flaneur reage ao espetáculo dos flaneurs levantando uma questão muito americana e republicana: “Se-
Embora o próprio Sarmiento não trace a analogia, o flaneur é de muitas maneiras um análogo urbano do explorador do interior. De fato, suas alegrias e privilégios, como os descreve Sarmiento, assemelham-se claramente aqueles do naturalista. Como o explorador, “o flaneur persegue algo que ele mesmo não sabe o que é; ele procura, vê, examina,
um ex-colono; e, às vésperas de 1848, também profético. O mundo fica mais simples para Sarmiento quando ele vai para a África do norte, onde seu status dentro da dicotomia civilização/bárbarie é claro. Aqui, e talvez apenas aqui, ele pode ser um europeu puro e simples, e um colo-
agregará, e, se oito se juntarem, então todos os que passam pa-
passa de um ponto a outro, movimenta-se suavemente, re-
torna, caminha, e chega ao fim ... algumas vezes às margens do Sena, outras, no bulevar e, mais frequentemente, no
Palais Royal”* Para o flaneur, Paris produz O equivalente ao que Humboldt encontrou nas regiões equinociais: uma abarrotada cornucópia, um lugar de infindável e exótica va-
riedade e abundância, todas as possibilidades simultaneamente presentes. O que Humboldt viu nas selvas e pampas, Sarmiento vê nas lojas da Rue Vivienne, nas coleções do Jardin des Plantes, nos museus, galerias, livrarias e restau-
rantes. As descrições de Paris por Sarmiento, cheias de lis34. Ibid., p.112. 35. Ibid., p.116. 326
ria este realmente o povo que fez as revoluções de 1789 e 1830? Impossível!” Um ousado e arrogante enunciado para
nialista. De uma forma surpreendentemente esquemática,
Sarmiento se identifica totalmente com os franceses e seu projeto colonial na Argélia. Os beduínos tornam-se o exato análogo dos gaúchos argentinos, primitivos e ignorantes; O mundo se divide entre civilização e barbárie de uma maneira muito mais clara do que no livro de Sarmiento de mesmo título. O próprio Sarmiento passa a soar como a vanguarda capitalista, enojado pelo desconforto e pela sujeira, por pessoas comendo com as mãos. Só os europeus podem
salvar o deserto da incúria e “esterilidade primitiva”.* Naqui36. Ibid., pp.114-15.
37. Ibid., p.112. 38. Ibid., p.266.
327
a reinvenção da américa, 1800-50 q
reinventando a américa/reinventando a europa:
crioulas deste período, por exemplo, traçaram mapas se-
lo que, em parte, ele identifica como um paraíso fourierista, E
Sarmiento vislumbra a futura colonização da Argélia:
mânticos muito diferentes. Compreensivelmente, elas não adotaram a posição do discurso androcêntrico do observador, nem mesmo como postura. Afinal, nesse paradigma,
o
Em todo lugar, a população européia ocupava-se das múltiplas tarefas da vida civilizada. As planícies hoje desertas vi cobertas q de sedes de fazenda, jardins, campos de trigo; e os lagos ... assu
a mulher é a paisagem — o que é equivalente a dizer que o
paradigma da paisagem não é um suporte por meio do qual
miram formas regulares, com suas águas contidas em canais o» denados”
as mulheres crioulas poderiam se estabelecer ou legitimar como indivíduos. Nas décadas de 1830 e 1840, a escritora
e assim por diante. Se a Argélia é agora a França, a |
cubana Gertrúdis Gómez de Avellaneda, por exemplo, pro-
América, por seu turno, permanece nas mãos dos árabes; o
duziu uma poesia americanista de tipo muito diferente da-
continente padece, segundo Sarmiento, de uma tendência a -
quela de seu compatriota e contemporâneo Heredia, e um romance cujo tema não era civilização versus barbárie, mas
vaguear emsua solidão, fugindo do contato comoutros povos do mundo, com quem não deseja assemelhar-se. Americanismo ..
o amor não correspondido de um nobre escravo mulato por
uma mulher branca crioula.? O retrato do viajante americano por Avellaneda, citado na epígrafe deste capítulo, invo-
não é nada mais do que a reprodução da velha tradição castelhana e do orgulho e imobilismo do árabe.”
ca de forma sofisticada as paisagens convencionais america-
Mais tarde, como presidente da Argentina (1868-73), Sarmiento patrocinou uma série de campanhas genocidas
nistas, e, então, afirma que o viajante que as procura encon-
tra tão somente “um grande deserto forrado de lava.” Os mitos utópicos são “ilusões de ótica da alma.”* O uso que faz Avellaneda de um campo de lava ressecada para simbolizar sonhos destruídos inspira-se diretamente (ou parodicamen-
contra os índios dos pampas e o aprofundamento da ruptu-
ra da sociedade gaúcha independente, Durante toda a sua vida defendeu a educação pública e a imigração da Europa para diluir a “herança do obscurantismo bastardo” com que se preocuparam Echeverria, Bolívar, Mármol e outros. Ao mesmo tempo, legitimadas em parte por Civilização e bar-
te) na fascinação humboldtiana por vulcões e pelas forças da energia vulcânica.
A romancista argentina Juana Manuela Gorriti alegori-
bárie, as formas de vida e expressões artísticas do gaúcho
foram apropriadas pela cultura letrada, para criar o que veio a ser visto como uma tradição nacional argentina.
zou os dilemas culturais e políticos crioulos de maneiras que frequentemente invertiam as convenções de seus contemporâneos homens. Uma de suas novelas, escrita na década de
1840, enquanto estava exilada (com Sarmiento e Mármol) por
“palavras bárbaras |
A América primal reinventada por meio de Humboldt, embora extremamente proeminente, não foi de modo algum o único paradigma a fundamentar o emergente americanismo literário do período da independência. Escritoras
Toma es 39. Ibid., p.270. 40. Ibid., p.33. 328
41. Por essa razão, o Poema de Chile, de dimensões épicas, escrito nos anos 1930 e 1940 pela grande poeta chilena Gabriela Mistral, representa uma inovação radical. 42. O romance em questão é intitulado Sab (1841). A poesia de Avellaneda inclui várias obras com títulos idênticos a textos de Heredia. Ambos escreveram, por exemplo, odes ao mar, a Washington, o Niágara e ao sol. Em alguns casos, como no poema ao Niágara, Avellaneda explicitamente alude a seu antecedente herediano. 43. “El viajero americano,” em Gertrudis Gómez de Avellaneda — Antolo-
gia poética, Mary Cruz (ed.), Editorial Letras Cubanas, La Habana, 1983, pp.156-8.
a reinvenção da américa, 1800-50
decreto do ditador Rosas,“ começa com o que Gorriti intitu-
lou “Um olharà pátria” (Una ojeada a la patria). O olhar vem de uma expatriada que, disfarçada de homem,retorna à fa-
zenda de sua infância. Efetivamente, sua observação registra
uma paisagem americana hiper-historicizada e não des-historicizada. A protagonista encontra a fazenda ocupada por ou-
tros — na verdade, por um espanhol, que a recebe hospitalei-
ramente. A paisagem, longe de ser vazia, está recheada de história: cemitérios, ruínas de missões e fazendas, velhos ami-
gos, histórias, memórias. Suas próprias pinturas de infância . ainda adornam as paredes da casa. Neste conto, a renegocia-
ção das relações com as novas nações é baseada na identificação em primeira pessoa com a região e não sobre as polaridades entre crioulo e gaúcho, crioulo e índio ou crioulo e
espanhol, As vestimentas masculinas, aparentemente, são um instrumento para que a mulher seja imaginada como uma cidadã-indivíduo republicana (ainda que não como homem),
Noutra história fascinante escrita nesse mesmo período, Gor-
riti se utiliza de um drama de incesto como alegoria para as
relações transculturais entre crioulos e Europa, de um lado, e crioulos e indígenas americanos, de outro. Em “Aquele que 4 semeia o mal não deve esperar o bem,” uma criança andina, | filha de uma mulher indígena estuprada por um oficial peruano, é encontrada e adotada por um naturalista francês, que a leva para a França e a educa como francesa. Anos mais a q
de, um jovem crioulo peruano estudando em Paris se apaixo” | na por ela e tendo-a como noiva retorna ao Peru. O legado 4 do rapto e abdução coloniais volta para assombrar a todos na medida em que a narrativa se desenrola e revela que o pai
do jovem é o oficial crioulo que originalmente estuprou as mãe da jovem: a francesa não é francesa, mas mestiça, e O casal em formação, irmão e irmã. Gorriti opta por dramatizar O
entrelaçamento das histórias racial e cultural e não a sua POM larização; sem que o saiba, em sua história, a Europa € infil- [ trada pela América, tanto quanto O inverso. ai recentete| so mais ; 5 44. Juana Manuela Gorriti — Suenos y realidades. A edição deste trabalho é de Buenos Aires, La Nación, 1907.
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reinventando a américa/reinventando a europa:
Como o conto andino de Gorriti sugere, a Europa e à América crioula não eram as únicas formações culturais em jogo na negociação da identidade, subjetividade e cultura na América do Sul pós-colonial. Mesmo ao tempo em que Andrés
Bello exportava valores europeus de Londres, as guerras de
independência catalisavam novos contatos internos entre culturas regionais, populares e indígenas. Não é, contudo, no reino das letras que se pode mais prontamente observar a mestizaje cultural que compunha o dia-a-dia nas sociedades (e
exércitos) multiétnicos das Américas. A história literária canônica reconhece apenas alguns poucos traços deixados pelas formas de arte indígena e mestiça nas atividades de constru-
ção da cultura oficial das elites crioulas. Os exemplos mais conspícuos (como nos Estados Unidos) vêm especificamente
da zona de contato multicultural dos exércitos hispano-ameri-
canos, tanto realistas quanto independentistas. Na década de 1810, no Peru, por exemplo, um jovem poeta e soldado mes-
tiço chamado Mariano Melgar (que também apreciava tradu-
zir Ovídio) transculturou uma canção andina quíchua para uma forma poética escrita a que chamou de yaravi. Seu trabalho constituiu um exemplo pioneiro daquilo que veio a se tornar um importante nicho indigenista na literatura nacional peruana. Na Argentina, onde os militares propiciaram o con-
tato de muitas zonas culturais, uma forma de canção popular improvisada denominada cielito entrou na cultura impressa por meio de panfletos e jornais e foi a fonte de parcela significativa da poesia de circunstância e política do período da independência. A principal figura relembrada por esta adaptação, Bartolomé Hidalgo, é frequentemente celebrado nas histórias literárias argentinas como o primeiro poeta nacional. Hi-
dalgo foi também o iniciador do que veio a ser uma ampla
apropriação da cultura oral gaúcha pela imprensa, especialmente a longa canção de improviso em verso e o duelo poé-
tico dialógico. O corpo resultante da literatura gaúcha argen-
tina é vasto € único, incluindo itens tais como uma reescrita,
em estilo gaúcho, do mito de Fausto (1866).
Materiais como estes não podem ser facilmente absor-
vidos por ideologias de autenticidade e narrativas unitárias
331
a reinvenção da américa, 1800-50
de origem. Como a expressão etnográfica, seu poder ex-
pressivo está ancorado na dinâmica intercultural da zona de
contato e na história da subordinação colonial.
“pós-escrito Num dos textos fundamentais da moderna crítica literária latino-americana, significativamente intitulado Tientos y
diferencias (Matizes e diferenças, 1967), o escritor cubano
Alejo Carpentier reconta uma anedota sobre Goethe. Em 1831, ao contemplar uma gravura de uma paisagem onde planejava construir uma casa de campo, Goethe escreveu com prazer sobre quão moderado e pacífico era o lugar, e expressou a esperança de que, como ele próprio, a natureza ali viesse a “abandonar seus loucos e febris arroubos”
para adotar “uma beleza circunspecta e complacente.” Car-
pentier replica a Goethe, “arquiteto do Iluminismo,” em ter mos americanistas: podes construir o tipo de casa que te aprouver, diz ele, mas “nosso continente é um continente de furacões ... ciclones, terremotos, ondas de marés, enchentes
... de uma natureza incontida, ainda dirigida por seus arrou-
bos primitivos.”* O explícito contraste traçado aqui por Carpentier (em 1967), entre um lado e outro do Atlântico, é geográfico; mas é também o contraste histórico entre um lado e outro
do marco humboldtiano. A linguagem de Humboldt ressoa profundamente nos romances de Carpentier e ecoa em seu
conceito do real maravilloso da América Latina. A reinven-
ção da América Latina por Humboldt é a fonte tácita que
gera a comparação de Carpentier com a Europa, o passo
perdido na direção de Goethe, mentor de Humboldt. Qua Humboldt esteja ausente é, sem dúvida, um ponto essencial:
Carpentier está desempenhando o papel de Humboldt, ocus
|
45. Alejo Carpentier — “Problemática de la actual novela latinoamericanã,
Tientos y diferencias, Montevideo, Editorial Arca, 1967, pp.24-5.
332
reinventando a américa/reinventando a europa:
pando seu discurso, trangúilo como se nenhuma história os separasse. Assim, 150 anos depois de Imagens da natureza, Humboldt continua sendo um ponto de partida para a esté-
tica americanista crioula. Desse modo, Carpentier vê a si
próprio como um sujeito euro-americano transcultural, uma encruzilhada crioula que espelha imagens para frente e para trás através do Atlântico, com atordoante espontaneidade. Para alguns, aquela subjetividade transcultural incorpora um legado neocolonial de auto-alienação; para outros, ela constitui a essência da cultura nas Américas. Escolher um ou outro lado dessa dicotomia determina leituras muito diferentes de textos neo-humboldtianos, como o romance de viagem autobiográfico de Carpentier Os passos perdidos (Cuba,
1953). O protagonista desta obra é um crioulo intelectual
hispano-americano que, depois de muitos anos na Europa, retorna para a América do Sul numa expedição de pesquisa que sobe o Orenoco à procura das origens da música humana. Sua descrição da selva amazônica é uma reescritura distópica de Humboldt:
À medida que ladeâvamos as margens, a sombra lançada por várias coberturas de vegetação trazia uma aura de frescoraté as ca-
noas. Mas uns poucos segundos de pausa eram suficientes para
transformar este alívio num insuportável fervilhar de insetos. Parecia haver flores emtodo lugar, mas em quase todos os casos as
suas cores eram o enganoso efeito de folhas em graus variados de maturação ou decadência. Parecia haver frutos, mas a rotundidade e maturidade desses frutos eram o efeito enganador de
bulbos limosos, aveludados fétidos, vúlvulas de plantas carnívoras semelhantes a pensamentos salpicados de xarope, pintalgados cactos que alçavam a um palmo do solo tulipas de esperma cor de açafrão. E quando surgia uma orquídea, lá, muito alto, acima do bambuzal, mais além dos yopos, tinha-se algo tão irreal, tão inalcançável quanto o mais vertiginoso edelweiss alpino. Tam-
bém havia árvores, que não eramverdes, e pontilhavam as mar-
gens com massas de amaranto ou luziam com o amarelo de sarça ardente. Até o céu por vezes mentia quando, invertendo sua
altura na superfície espelhada dos lagos, fundia-se em profundidades celestemente abissais.*
46. Alejo Carpentier — The Lost Steps (Los pasos perdidos, 1953), tradução para o inglês de Harriet de Onís, New York, Knopf, 1956, p.129.
333
ay
a reinvenção da américa, 1800-50
reinventando a américa/reinventando a europa:
O lugar permanece em grande parte inalterado desde a
Humboldt escreveu — um exemplo daquela atividade visce-
gens da natureza, mas muitos dos signos apreciados estão in-
ção.” Dever-se-ia concluir que as estruturas de recepção dos
de descoberta, mas de incognoscibilidade, um mundo que a
desde 1820? Estariam tão arraigadas as relações de autorida-
«Vida notuma na floresta primordial” de Humboldt em Ima- |
ralmente americana que Jean Baudrillard chama de simula-
vertidos. A cornucópia americana é aqui uma abundância não |
escritos americanistas de Humboldt permanecem inalteradas
consciência metropolitana não está equipada para decifrar ou |
aceitar. O indivíduo crioulo e masculino retrata a si mesmo 4 como preso na dança de espelhos da construção de significa- |
de, hierarquia, alienação, dependência e eurocentrismo que deram aos aspectos essenciais da obra de Humboldt o seu poder de atração em 1820, a ponto de permanecerem invi-
queresta da certeza européia humboldtiana é a orquídea bran- |
Mundial, caracterizada por subdesenvolvimento, industriali-
do pós-colonial, onde até mesmo o céu é por vezes falso. O |
síveis? Alternativamente, talvez a era pós-Segunda Guerra
ca (evidentemente), tão inacessível daqui quanto dos Alpes. Alexander von Humboldt morreu em 1859, aos 90
zação e dívida externa do terceiro mundo,intervencionismo
político e (mais recentemente) ecocídio (ecocide), tenha fei-
anos. Nas últimas três décadas, a comemoração de seus vá-
to renascer a necessidade de um mito do Éden americano,
dificilmente soa um tom crítico. “Os americanos jamais |
de novo, pergunta ansiosamente a metrópole, eles poderiam nos ter salvado?
rios centenários e bicentenários produziu uma considerável literatura sobre ele na América hispânica, em cujas páginas
mesmo que apenas como uma lembrança. Se começássemos
deveriam esquecer Humboldt,” afirma um comentarista: “Os escritos deste erudito os fez conhecer (les han hecho cono-
cer) o país em que vivem.”” Humboldt é visto na cultura ofi-
cial como necessário, como algo que, em retrospecto, tinha
de acontecer. Inúmeras vezes, lê-se que “coube” a Alexander
von Humboldt “dar-nos uma linda visão” da América do Sul. “Nossa paisagem teria de esperar o século XIX para ser | amorosa e extensivamente descrita, primeiro por viajantes |
estrangeiros e depois por escritores nacionais.”* Um comen- 8
tarista contemporâneo assevera que efetivamente isto “cous |
be” a Humboldt porque a população colonial havia, de algu ma forma, passado a partilhar da suposta falta de senso es- 7
tético dos ameríndios.” Na primavera de 1985, os norte-ame- 4
ricanos foram convidados para um renascimento nostálgico ! e capcioso de Humboldt, pela revista National Geographic, .
cujas fotografias e mapas prometiam a mais literal reconstru” 4
ção possível da perspectiva e do mundo primal sobre o qual
|
47. Humberto Toscano (ed.) — El Ecuadorvisto por los extranjeros, Puts | bla (Mexico), Ed. Cajica, 1959, p.553.
48. Pascual Venegas Filardo — Viajeros a Venezuela enlos siglos XIXy AX, Caracas, Monte Avila, 1973, p.15. 49. Toscano — op. cit., p.43.
334
|
50. Jean Baudrillard — America, London, Verso, 1988 (ed. bras.: América, Rio de Janeiro, Rocco, 1986]; e Simulations, New York, Semiotext(e), 1983
335
parte 3 estilística
imperial,
1860-1980
—|capítulo 9
do Vitória Nyanza ao Sheraton San
Salvador
Pousar neste aeroporto (...) é mergulhar diretamente num Estado
em que nenhum solo não é sólido, nenhuma perspectiva é confiável e nenhuma percepção é tão definida que não possa se dis-
solver e se transformar em seu reverso.
Joan Didion, Salvador (Estados Unidos, 1983)) Eles me puseram numa sala, é a primeira coisa que vi quando
desvendaram meus olhosfoi a bandeira americana ao lado da boliviana e uma gravura emoldurada com duas mãos, que dizia “Aliança para O Progresso”. (...) A escrivaninha estava cheia de carimbos.
(Domitila Barrios de Chungara, Deixem-mefalar (Bolívia, 1978))
o monarca de tudo o que vejo Ninguém mais ajustado ao cenário do monarcade-tudo-o-que-vejo do que a série de exploradores britá-
nicos que desperdiçaram a década de 1860 procurando a
nascente do Nilo. Assim como os lineanos tinham seus
sistemas de nomeação e os humboldtianos sua poética da
ciência, os vitorianos optaram por uma marca pictórica verbal, cuja função maior era a de reproduzir para a audiência de seu país de origem os momentos culminantes
em que “descobertas” geográficas eram “vitórias” para a
339
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
estilística imperial, 1860-1989
Inglaterra. Ironizada e modernizada, sua vívida retórica
cia e magnificência da natureza e divers ificando a visão contí-
nua de veget ação: excessivaodpara ombrear com, : se não supe-
imperial persiste hoje nos escritos de seus herdeiros pós-
rar, os mais admirados cenários das regiões cláss icas.!
coloniais, para os quais resta no planeta que se possa
conquistar. Um de meus favoritos no gênero monarca-de-tudo-oque-vejo encontra-se em Lake Regions of Central Africa (Re-
Descrições de promontórios são evidentemente muito comuns em todosos tipos de relatos românticos e vitorianos. Como ilustrado por muitos exemplos já discutidos neste Ii-
giões dos Lagos da África Central) que foi publicado em
vro, no contexto do relato de exploração, tal artifício é utili-
1860 e alcançou considerável renome naquela prolífica e altamente competitiva era do relato de viagem. Aqui, num tour deforce descritivo, Burton expõe o dramático momen-
zado para desempenhar uma tarefa particular na construção
semântica que à primeira vista deve parecer um enorme desafio. O pintor verbal deve tornar marcantemente significativo o que é, especialmente do ponto de vista de uma narrativa, praticamente um não-evento. Via de regra, a “descoberta” de lugares como o lago Tanganica envolvia alcançar aquela região e perguntar aos habitantes locais se eles sabiam de algum grande lago — ou o que quer quese estivesse procurando — na área, e, então, contratá-los para que o levassem até lá, a partir do que, com sua direção e apoio, pro-
to de sua descoberta do lago Tanganica:
Nada, na verdade, poderia ser mais pitoresco que esta primeira vista do lago Tanganica, estendendo-se ao sopé das montanhas, aquecendo-se sob o deslumbrante sol tropical. Abaixo e
além de um curto primeiro plano de rugosas e íngremes elevações, abaixo das quais as trilhas ziguezagueiam dolorosamente, uma estreita faixa de verde esmeralda, jamais resseca-
da e maravilhosamente fértil, inclina-se na direção de umafita de brilhante areia amarela, aqui, margeada por juncosos caniços, lá, clara e limpidamente cortada pelas pequenas ondas
ceder-se-ia à descoberta do que eles já conheciam.
Grosseiramente, portanto, a descoberta neste contexto consistia em um ato de conversão dos conhecimentos (discursos) locais em conhecimentos europeus nacionais e con-
quebrando na orla. Mais à frente estendem-se as águas, uma
extensão do mais claro e suave azul, de largura variando de trinta a trinta e cinco milhas, borrifada pelo fresco vento do leste com pequeninas linhas de espuma nevada. O pano de
tinental, associados a formas e relações européias de poder. Colocar a questão dessa forma é, obviamente, por de lado
fundo, à frente, é dado por uma alta e escarpada parede de
de modo um tanto agressivo o que efetivamente constituiu a dimensão heróica desse tipo de descoberta, a saber, a superação de todas as barreiras geográficas, materiais, logísticas e políticas à presença física e oficial de europeus emlugares tais como a África Central. Gostaria de salientar as contradições da perspectiva heróica. Afinal, o ato da descoberta em
montanha cor de aço, aqui, salpicada e coroada por uma neblina pérola, lá, erguida e agudamente desenhada contra o ar azul celeste; suas falésias em sorvedouro, marcadas pela mais
profunda cor de ameixa, caem na direção de colinas de di-
mensão similar a de morrotes, que aparentemente inserem seus pés nas ondas. Para o sul, e em oposição ao longo e baixo ponto atrás do qual o rio Malagarazi descarrega a lama ver-
melha suspensa por sua violenta corrente, encontram-se Os
si, pelo qual tantas vidas anônimas foram sacrificadas e tan-
abruptos promontórios e cabos de Uguhha, e, ampliando O olhar, vê-se além uma concentração de ilhotas marcando O horizonte do mar. Vilarejos, terras cultivadas, as frequentes canoas dos pescadores sobre as águas e. após uma maior apro-
tas misérias suportadas, consistiu naquilo que na cultura européia é tido como uma experiência puramente passiva — a experiência de ver. Na situação em que Burton se encontra-
ximação, os murmúrios das ondas quebrando na praia, em-
prestam uma certa variedade, um movimento e uma vida à paisagem que, como todos os mais belos cenários nessas regiões, não requer senão um pouco da proporção e acabamento da arte — mesquitas e quiosques, palácios e casas de campo, jardins e pomares — contrastando com a profusa exuberân-
340
va no lago Tanganica, os feitos heróicos da descoberta foram
particularmente demandantes. Burton havia estado tão doen|
1. Richard Burton — The Lake Regions of Central Africa: A Picture of Ex-
bloration (1860), New York, Horizon Press, 1961, voLII, pás.
341
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
riores Britânico], para a London Missionary Society, um diá-
rio, uma aula, um livro de viagem. Eis aqui a linguagem en-
carregada por si só de fazer o mundo, e com altos interesses em jogo. Como os exploradores vieram a notar, rios de dinheiro e prestígio dependiam do crédito que conseguissem fazer com que outros lhes atribuíssem.
Ao analisar a retórica vitoriana de descoberta, achei proveitoso identificar três meios convencionais que criam
valor qualitativo e quantitativo para a conquista do explorador. O texto de Burton citado logo acima os ilustra bem. Em
primeiro lugar, e o mais óbvio dentre eles: a paisagem é es-
tetizada. A visão é tomada como umapintura e a descrição é ordenada em termos de pano de fundo, primeiro plano,
simetrias entre água salpicada de espuma e colinas salpica-
das de névoa, e assim por diante. No texto de Burton existe toda uma retórica binária em ação, confrontando o grande e o pequeno,o atrás e o à frente. É importante notar que dentro dos próprios termos do texto o prazerestético da visão por si só constitui o valor e a significância da jornada. FEYE VIEW OF THE GREAT CATARACTS OF TUE ZAMBES!
(CALLED MOSIOATUNTA, OR
VICICEDFÁLLS), AND OF THE ZIGZAO CHASM BELOW THB FALLS THROCOM WHICH THE RIVER ESCAFES,
Fig.35. Cataratas Vitória, Frontispício de Narrative ofan Expedition to
the Zambesi (1865), de David Livingstone.
te que teve de percorrer boa parte do trajeto carregado por assistentes africanos. Seu companheiro John Speke, embora capaz de caminhar, havia perdido a visão em consequência de uma febre e, portanto, no momento crucial da descoberta, estava literalmente incapaz de descobrir o que quer que fosse. Mesmo que o sofrimento exigido para se alcançar a descoberta seja inesquecivelmente concreto, neste paradigma de meados do período vitoriano, a própria “descoberta”,
mesmo dentro da ideologia da descoberta, não existe em si
mesma. Ela apenas se “torna” real quando o viajante (ou ou-
tro sobrevivente) volta para casa e a evoca através de textos: um nome num mapa, um relatório para a Royal Geographic Society, para o Foreign Office (Ministério das Relações Exte-
Ao final da passagem citada, Burton resume tudo isso: “Verdadeiramente foi um espetáculo para a alma e o olhar! Es-
queci a faina, os perigos e as dúvidas sobre se conseguiríamos retornar, e me senti pronto a suportar o dobro do que havia suportado; e todo o grupo parecia juntar-se a mim em
júbilo.”
Em segundo lugar, a densidade semântica nessa passagem é algo que se procura obter. A paisagem é representada como sendo extremamente rica em substância material e semântica. Tal densidade é alcançada especialmente por meio de um enorme número de modificadores adjetivais — é raro 2. A primavera de diana da aventura (exibido no Brasil tendência vigente
1990 viu o lançamento de uma heróica versão hollywoode Burton e Speke intitulada The Mountains ofthe Moon sob título As montanhas da lua). Levando adiante uma nos anos 1980 (Out ofAfrica, TheJewel in the Crown; A
Passage to India; Lord Greystoke, etc. (respectivamente exibidos no Brasil
com os títulos Entre dois amores, A jóia na coroa (minissérie televisiva),
Passagempara a Índia e Greystoke — A lenda de Tarza, o rei da selval), a nostalgia imperialista fornece uma resposta cultural para o absoluto fracas-
so de uma modernização da África que obedeça o estilo ocidental.
E
ET
estilística imperial, 1860-1980
estilística imperial, 1860-1980
que um substantivo apareça no texto sem ser modificado, Note-se, também, que muitos dos modificadores são derivados de substantivos (como “juncosa” (sedgy), “coroada” (cabped) ou “similar a morrotes” (mound-like)) e assim acrescentam densidade pela introdução de objetos ou materiais adicionais no discurso. Têm interesse particular neste contexto umasérie de expressões de cores nominais: “verde esmeralda,)” “espuma nevada, “montanha cor de aço” “neblina
pérola” “cor de ameixa” Ao contrário dos adjetivos puros de
cor, estes termos inserem referentes materiais na paisagem, referentes que invariavelmente, do aço à neve, ligam explicitamente a paisagem à cultura nativa do explorador, temperando-a com alguns pequeninos pedaços de Inglaterra. O vo-
cabulário científico está completamente ausente.
A terceira estratégia em ação foi discutida aqui e ali ao
longo deste livro: a relação de domínio predicada entre
quem vê e o visto. A metáfora da pintura é em si sugestiva, Se a paisagem é uma pintura, então Burton é tanto o obser-
vador que lá a julga e aprecia, como o pintor verbal que a produz para outros. Segue-se da analogia da pintura que
aquilo que Burton vê é tudo o que há para se ver, e que o panorama deveria ser visto de onde o observador o viu.
Dessa forma, a cena é ordenada de maneira dêictica, a par-
tir da posição privilegiada do observador, e é estática. A relação espectador-pintura também implica que Burton tem o poder, se não de possuir, ao menos de avaliar esta cena. Conspicuamente, o que ele julga faltar é mais Arte,
onde Arte (mesquitas e quiosques, palácios, jardins) é iden-
tificada à alta cultura e instituições mediterrâneas. Evidentemente, as povoações e plantações africanas mencionadas não são suficientemente estéticas. Aqui, a estética mediterrã-
nea não cristã reflete profundas ambivalências não confor-
mistas de Burton sobre a cultura inglesa vitoriana, suas rígidas bases de família e de classe, sua moralidade repressiva e arrogantes objetivos coloniais. (Ele já havia estabelecido sua
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
são civilizatória como um projeto estético, é uma estratégia
muito utilizada pelo Ocidente para estabelecer que outros estão abertos a — e carentes de — sua influência benigna e
embelezadora. Outro explorador do Nilo, James Grant, num relato escrito um ou dois anos após o de Burton, na verda-
de providenciou os elementos faltantes em uma de suas cenas de descoberta. Afirma ele que, ao alcançar o lago Vitó-
ria Nyanza, teve a inspiração de fazer um esboço, “incluindo
nele vapores e navios ancorados na baía,” juntamente aos
barcos africanos que já havia mencionado, Frequentemente, em tais situações, o grupo de trabalho indígena é posto em cena para verificar a conquista européia. Burton assevera acima que “todo o grupo parecia juntar-se a mim em júbilo” no lago Tanganica; Grant observa que “mesmo os indiferentes
Wanyamuezi vieram olhar. ... Os Seedes estavam extasia-
dos.” Os membrosafricanos do “grupo”, sem dúvida, eram envolvidos pela excitação da busca em expedições deste tipo. A convenção de escrita que articula suas reações para confirmar a conquista européia subordina sua resposta, designa-lhes a tarefa de carregar, junto como resto da carga, a
bagagem emocional de seus senhores. A cena do monarca-de-tudo-o-que-vejo, portanto, pare-
ce envolver uma interação particularmente explícita entre estética e ideologia, no que se poderia chamar de uma retórica da presença. Na exposição de Burton, caso a tomemosliteral-
mente, as qualidades estéticas da paisagem constituem o valor social e material da descoberta para a cultura de origem do explorador, ao mesmo tempo em que suas deficiências estéticas sugerem uma necessidade de intervenção social e material pela cultura da base do explorador. O companheiro e rival
mais jovem de Burton, John Speke, baseou-se nesta mesma
equação para expressar seu desencanto quando uma de suas descobertas o desapontou. Enquanto acompanhava Burton
em sua expedição do Nilo, Speke se convenceude que a fon-
te do Nilo seria encontrada no lago Vitória N'yanza (comofoi
fama ao cumprir uma peregrinação a Meca disfarçado de
árabe, numa época em que seu desmascaramento provavelmente custar-lhe-ia a vida.) Ao mesmo tempo, retratar a mis-
3. James Augustus Grant — A Walk Across Africa or, Domestic Scenesfrom myNileJournal, Edinburgh, 1864, p.196.
345
k
estilística imperial, 1860-1980
mais tarde chamado). Numa famosa disputa, Burton, seu men-
tor, rejeitou convincentemente a sugestão, que mais tarde provou ser verdadeira. Para confirmar sua hipótese, Speke em-
preendeu uma segunda expedição na companhia de James
Grant. Os resultados foram bastante decisivos, mas, posto que
esta segunda expedição não havia sido capaz de mapear a total circunferência do Vitória N'yanza, a afirmação de Speke
permaneceu tecnicamente aberta a dúvidas. Muitos dos leito-
res já devem conhecer a feroz polêmica que se seguiu na Inglaterra entre Burton e Speke, resultando no suposto suicídio
de Speke. O relato de Speke sobre a expedição Journal of'the
Discovery ofthe Source ofthe Nile (Diário da descoberta da origem do Nilo), 1863) foi escrito em meio a esta polêmica. De forma notavelmente esquemática, Speke descreveu seu desa-
pontamento e angústia filial na cena de descoberta em que
culmina sua narrativa. A passagem citada abaixo exibe muitos elementos da metáfora do monarca-de-tudo-o-que-vejo: o va-
lor da visão é expresso em termos de prazer estético, o grupo
espontaneamente dá seu testemunho, o caderno de anotações é mencionado, mas a vista em si é aventada como um desa-
pontamento (itálicos meus):
Fomos todos recompensados; pois as “pedras”, como os Waganda
chamam as cachoeiras, foram, sem dúvida, o lugar mais interessante que havia visto na África. Mesmo tendo sido a caminhada longa e fatigante, todos imediatamente correram para vê-las, e mesmo meu caderno de esboços virou objeto de atenção. Embora
linda, a paisagem não era exatamente o que eu esperava, pois à
ampla superfície do lago estava fora do alcance da vista pela intromissão do contraforte de uma colina, e as cataratas, de cerca de 12
pés de profundidade e 400-500 pés de largura, eram quebradaspelas rochas. Mesmo assim era um espetáculo capaz de atrair alguém por horas — o troar das águas, os milhares de peixes saltando para
as cataratas com toda a sua força, os pescadores wasoga e waganda saindo em seus barcos e posicionando-se sobre todas as rochas com suas varas e anzóis, hipopótamos e crocodilos estendendo-se,
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador tória N'yanza e, como havia previsto, aquele lago é à gran de fon-
te do rio sagrado que embalou o primeiro expositor de noss a
crença religiosa. Eu lamentei, todavia, quando pensei no quan to havia perdido pelos atrasos na jornada, que me haviam tirado o prazer de examinar o ângulo nordeste.
O desapontamento estético de Speke espelha exatamente o seu desapontamento logístico. Obstáculos bloqueiam a visão; o suave fluxo do rio, como o próprio movimento do explorador, é interrompido. O lago Vitória N'yanza está indubitavelmente atrás das rochas, das cataratas e da colina, da mesma forma que estava o lago Tanganica, no caso de Burton, “aquecendo-se sob o deslumbrante sol tropical,” mas Speke não pode vê-lo — no entanto, apenas o ver, e o escre-
ver sobre o visto, pode constituir plenamente a descoberta. Preso à retórica e, ao mesmo tempo, a uma batalha edipiana pública contra Burton, Speke exibe aqui o seu fracasso no momento mesmo em que reivindica sua conquista. A retórica
o utiliza, e ele a ela. A estetização é reduzida às categoriastri-
viais do interessante e do atraente, não do sublime; nem metáforas, nem adjetivos, nem a alusão à Europa propicia densidade de significado. A reivindicação européia ao domínio e a vontade de intervir também estão ausentes neste contexto. Speke escreve sobre a cena com peixes, pescadores, gado e barcas como um todointegral que de nenhuma forma lhe pertence ou mesmo lhe acena. Se algo assim cabe a alguém, é
com os pescadores wasoga e waganda que encontraremos o domínio, e Speke é um dos milhares de peixes que tentam, sem possibilidade de sucesso, subir as cataratas. De fato, no
final do parágrafo, Speke abandona a metáfora monárquica
para encontraro significado de seu ato numa série de imagens
edipianas: o velho pai Nilo, seu antepassado religioso Jesuse
o pai não mencionado e rancoroso, Burton.
dormentes, na água, a barca navegando acima das cataratas, O gado bebendo às margens do lago —, no todo, aliado à bela natureza da região — pequenas colinas, encimadas por grama, com ár-
vores em seus vincos e jardins em suas ondulações mais baixas —
um quadro tão interessante quanto se poderia desejar. A expedição havia enfim desempenhado suas funções. Eu constatava agora que o velho pai Nilo indubitavelmente nascia no Vi-
346
4. John Hanning Speke — Journal ofthe Discoveryofthe Source ofthe Nile, Edinburgh, Blackwoods, 1863, p.466.
N.T.: A autora comete aqui uma pequena imprecisão: Speke estava se referindo a Moisés e não a Jesus quando fez menção ao “primeiro expo-
sitor de nossa crença religiosa.”
347
estilística imperial, 1860-1980
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
te do Nilo, Chaillu concentrou-se sobre um outro enigma: o
gorila. Desde tempos imemoriais, notícias sobre um enorme
animal, semelhante a um ser humano, emanavam do Congo, mas a curiosidade ocidental sobre este animal havia sido suprimida por relatos igualmente vívidos sobre canibalismo em toda aquela região. A febre também foi um dissuasivo
importante, da mesma forma que os comerciantes africanos do interior, que parecem ter sido particularmente ciosos em
proteger seus negócios da intromissão européia. Entretanto,
com o advento do pensamento evolucionista e das modernas teorias raciais nos anos 1850, a possibilidade de existên-
cia do gorila adquiriu um novo e extraordinário significado (por exemplo, como o animal inferior de quem os africanos
seriam mais proximamente aparentados do que os europeus).* Tornou-se imperativa para os europeus a confirmação ou refutação da existência de tal criatura. Por este mesmo período, os avanços médicos tornaram a viagem africana mais segura, Embora nem todos acreditassem nele, De
The Ripon Falls-the Nile fowing out of Victoria N'yanza.
Fig.36. Cataratas de Ripon, em Journal of the Discoveryof the Source of the Nile (1863), de John Hanning Speke.
“homens brancos hifenizados e a crítica interna A solenidade e o tom autocongratulatório da cena do
monarca-de-tudo-o-que-vejo são um convite virtual à sátira e à desmistificação. Paul Du Chaillu, explorador do Congo
e contemporâneo de Speke e Burton,foi um escritor-explo-
rador que aceitou tal convite, escrevendo um livro de via-
gem em 1861 que transgride furiosamente a matriz ideológico-estética da arte-e-império. Du Chaillu foi um franco-
americano cujo pai havia sido comerciante na África Oct-
dental. Enquanto os britânicos tentavam “conquistar” a fon-
h
us
Chaillu efetivamente “descobriu” o gorila e escreveu a seu
respeito no popular e sensacional Explorations and Adventures in Equatorial Africa (Explorações e aventuras na África Equatorial) (1861). É uma descoberta tão carregada ideologicamente que, desde então, os ocidentais tiveram que reencená-la repetidas vezes. (Uma reencenação da década de 1980 teve lugar no filme Gorilas in the Mist, baseado na vida da primatologista Dian Fossev.) A “descoberta” dos gorilas por Du Chaillu tornou-o famoso, e seuslivros de viagem extremamente agradáveis, lhe deram notoriedade — como satirista, autor sensacionalista e
mentiroso. Do mesmo modo que Henry Morton Stanley, outro americano hifenizado (neste caso, anglo-) que logo se destacaria no Congo, Du Chaillu desafiou diretamente o decoroliterário dos cavalheiros viajantes britânicos e sua retó-
5. Donna Harawayproduziu uma estudo monumental dos multifacetados
significados dos primatas em ideologias ocidentais. Consulte-se o seu Primate Visions, New York, Roulledge, 1989.
“NT: exibido no Brasil com o título Nas montanhas dos gorilas.
estilística imperial, 1860-1980
rica legitimadora da presença, substituindo-a pelo que se
poderia chamar uma retórica da presença ilegítima. Considere-se, por exemplo, o que acontece à cena do monarca-
de-tudo-o-que-vejo neste excerto da vívida narrativa de exploração de Chaillu. Ela se inicia como um eco de Burton para, então, se transformar em paródia:
Desde esta elevação — de aproximadamente 5000 pés acima do nível do oceano — saboreei uma vista desobstruída, até onde o
olhar poderia alcançar. As colinas que havíamos vencido no dia
anterior jaziam serenamente a nossos pés, assemelhando-se a
meros montículos feitos por toupeiras. Por todos os lados estendiam-se as imensas florestas virgens, entrevendo-se aqui e ali o reflexo de um curso de água. E bem ao longe, no leste, assoma-
vam os picos azuis da mais distante cadeia da Sierra del Cristal, o objeto de meus desejos. O murmúrio da correnteza abaixo
preenchia meus ouvidos, e enquanto forçava meus olhos na di-
reção daquelas montanhas distantes que almejava atingir, come-
cei a imaginar como esta selva seria caso a luz da civilização cris-
tã pudesse em algum momento ser apropriadamente introduzida
entre os filhos negros da África. Sonhei com as florestas dando espaço a plantações de café, algodão, especiarias; com os pacífi-
cos negros rumando felizes para suas tarefas diárias; com o cul-
tivo é as manufaturas; igrejas e escolas; afortunadamente, a esta altura de meus pensamentos, levantando meus olhos em direção ao céu, vi, pendente do ramo de uma árvore sob a qual estava sentado, uma imensa serpente, evidentemente preparando-se
para devorar este sonhador intruso em seus domínios.
Aqui também encontramos muitos elementos comuns ao tropo imperial: o domínio da paisagem, os adje-
tivos estetizantes e o amplo cenário ancorado no observa-
dor. Mas, tão logo os olhos do explorador recaem sobre “o
objeto de seus desejos,” uma fantasia intervencionista substitui totalmente a realidade da paisagem à sua frente e se transforma no conteúdo da visão. Ao contrário das fan-
tasias de Burton e Grant de adicionar pequenos retoques aqui e ali para o aperfeiçoamento do cenário (uma mes-
quita aqui, um vaporali), Du Chaillu orquestra uma trans6. Paul Du Chailu — Explorations and Adventures in Equatorial Africa,
New York, 1861, p.83.
350
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
formação integral, de teor despudoradamente colonialista
(e americano). Surge, então, a serpente para ironizar a fan-
tasia culpada, e aponta para sua culpa, Ao mesmo tempo,
duplo do sonhador e símbolo do outro, a serpente (note-
se, não é uma simples cobra) vem diretamente do Jardim do Éden, trazendo entre outras coisas o indesejado (mas
também bem-vindo) conhecimento de que a confortável plantação-pastoral é um fruto proibido capaz de levar à
expulsão do paraíso. Quem poderia saber disto melhor do que um americano logo após a Guerra Civil? Em face da intervenção serpentina, Du Chaillu, o pecador/intruso original, abandona seu papel visionário e se apóia no instrumento material básico da missão civilizatória: “Meus sonhos de civilização futura desapareceram instanta-
neamente,” lemos; “Afortunadamente, minha arma estava à mão.” Este é o fim da serpente (“minha preta amiga”, ele a chama), mas, de momento, nada de sátira, “a civilização cristã com que havia sonhadotão agradavelmente uns poucos minutos antes, recebeu novo choque”: Meus homens cortaram a cabeça da cobra, e dividindo o corpo em
pedaços apropriados, o assaram e comeram no mesmo lugar; e eu, pobre faminto, mas civilizado mortal, permaneci à parte, ansiando por uma refeição, mas incapaz de suportar esta, É isto que cabe à
civilização, que é algo muito bom em seus termos, mas que não tem lugar numa floresta africana quando a comida é escassa.
A cena tem todas as nuances de uma comunhão ou
última ceia, exceto pelo fato de que o Messias é um forasteiro que não partilhará da refeição, e poderia se tornar parte dela. Longe de partilhar e refletir os paradigmas de desejo e valor do explorador, “o grupo”, no retrato de Du Chaillu, age com base em valores próprios que, de formas muito variadas, são incompatíveis com os seus. Ao longo de seu livro, Du Chaillu repetidas vezes nos diz não comer cobra ou gorila. Por que não? Em termos simbólicos, aparen-
temente, comer cobra (“minha preta amiga”) seria comer Sa7. Ibid., p.84.
estilística imperial, 1860-1980
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
zado, escrevendo no apogeu da missão civil izadora, Du
Chaillu é, de fato, uma Serpente prematur a no jardim africa-
no imperial. Trinta anos mais tarde, foi exatamente lá, no
Congo, que a missão civilizadora desmascarou-se no dram a sádico e genocida do surto da borracha do Cong o. De seus
esconderijos nas montanhas, os gorilas talvez tenham obser vado enquanto os europeus se tornavam e viam uns aos outros tornando-se brancos bárbaros tão selvagens e brutais
como aqueles que eles sempre haviam imaginado habitando a África. Denunciado na Europa pela intervenção de intelectuais críticos, a barbárie européia no Congo tornou-se um
dos grandes escândalos políticos da virada do século. Entre
CROSSING À MANGROVE SWANF, WITH THB TIDE OUT.
Fig.37. “Cruzando um mangue, durante a maré baixa,” de Explorations and Adventures in Equatorial Africa (1861), de Du Chaillu. tanás (aliás, o africano como o outro), ao passo que comer
gorila levanta o espectro do canibalismo (aliás, o eu como africano).
Impraticáveis práticas “civilizadas” baseadas sobre E
civilizadas” pressuposições de supremacia branca — assim é que Du Chaillu apresenta o projeto imperial. Dessa forma, o sujeito imperial é dividido em seu escrito: Du Chailu é ora parodista, ora parodiado; ora sonhador, ora desmistificador de seu próprio sonho; ora Adão, ora serpente; ora provedor de civilização, ora carente dela; ora caçado, ora caçador. Seu discurso adquire aqui sua densidade semântica por meio das próprias contradições da presença européia na África. Esta perspectiva perversa é muito provavelmente conectada ao
fato de que o próprio Du Chaillu não é nem europeu, nem africano, mas um franco-americano. Homem branco hifeni-
as testemunhas européias encontravam-se vários homens brancos hifenizados, armados de papel e pena: Henry Stanley, o anglo-americano que liderou a luta pela África e transformou o relato de exploração inglês de modo a alcançar seus objetivos; Roger Casement, o anglo-irlandês que trabalhou incessantemente para divulgar os horrores expostos por Stanley; e Josef Conrad, o anglo-polonês que transformou o desastre do Congo numa alegoria do fracasso da Eu-
ropa. Cada um destes foi um homem branco cujas identifi-
cações nacionais e cívicas eram múltiplas e frequentemente conflitantes; cada um deles havia vivenciado em profundas
histórias pessoais e sociais as duras realidades do euroex-
pansionismo, da supremacia branca, do domínio de classe e
da heterossexualidade. Os homens brancos hifenizados
foram osprincipais arquitetos da frequentemente imperialis-
ta crítica interna do império. No transcorrer deste capítulo considero a continuidade desta crítica na obra do franco-
argelino Albert Camus e do afro-americano Richard Wright.
a dama no pântano É difícil imaginar um tropo mais decisivamente ligado
a gênero do que a cena do monarca-de-tudo-o-que-vejo. Mas evidentemente existiram mulheres-exploradoras, como
estilística imperial, 1860-1980
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
dominação e intervenção. O resultado, como sugiro adian-
te, é uma voz monárquica feminina que assevera se u próprio tipo de domínio, mesmo ao negar a dominaçã oleipar rodiar o poder. Kingsley foi para a África, quando tinha cerca de 30
anos de idade, como entomologista e ictiologista, interessada principalmente, levando-se em consideração o que nos con-
ta, nas formas de vida microscópicas que habitavam os mangues inexplorados do Gabão. O domínio que ela procura
estabelecer, portanto, não poderia estar mais distante dos bri-
lhantes promontórios procurados por seus colegas vitorianos.
De fato, “seus” pântanos, como ela os chama, são uma pai-
sagem que os próprios africanos não parecem nem usar nem valorizar, um lugar em relação ao qual jamais contestaram a presença européia. Kingsley retrata a si mesma descobrindo seus pântanos não pela observação do terreno ou mesmo por caminhar em torno deles, mas locomovendo-se prazerosa-
mente através deles num barco ou mergulhada até o pesco-
ço em água e lama, vestindo espessas saias e usando suas bo-
tas continuamente por semanas a fio. Sua persona cômica e
Fig.38. “A morte de meu caçador,” de Explorations and Adventures in Equatorial Africa (1861), de Du Chailly.
Alexandra Tinné e Mary Kingsley que lideraram expedições
na África, e esposas-exploradoras, como Florence Baker,
que acompanhou expedições subindo o Nilo. Como as ex-
ploradoras sociais discutidas no capítulo 7, estas mulheres,
em seus escritos, não dispendem muito tempo com pro-
montórios. Nem estão qualificadas para fazê-lo. O discurso
heróico masculino de descoberta não está facilmente disponível para mulheres, o que pode constituir uma das razões pelas quais exista um número tão reduzido de relatos de exploração produzidos por mulheres. O extraordinário Travels
in West Africa (Viagens na África Ocidental) (1897), de
Mary Kingsley, é provavelmente o exemplo mais extenso que existe. Utilizando a ironia e a inversão, ela constróiseu
próprio suporte de fabricação semântica a partir de matérias
primas originárias do discurso masculino monárquico de
auto-irônica exerce impressão indelével sobre qualquerleitor
de seu livro. Aquiestá ela numa famosa passagem, recémsaí-
da do interior e viajando para a costa num pequeno barco em que se usava um cobertor como vela; como sempre, era a
única européia e a única mulher no grupo:
Mesmo havendo apreciado a vida na África, julgo que jamais a apreciei tão completamente quanto naquelas noites em que descia o Rembwe. O grande, negro e sinuoso rio em que uma trilha de prata orvalhada surgia onde tocava o luar: em cada lado via-se o negro mangue e, acima dele, discernia-se, no que permitia a al-
tura do manguezal, a massa de estrelas e o céu iluminado pela
lua, À frente, distinguiam-se as formas de nossa vela, saída do reino das roupas de cama para a glória: e o pequeno lampejo vermelho de nosso fogareiro dava uma nota isolada de calor à fria luz da lua. Três ou quatro vezes durante a segunda noite, en-
quanto manobrava aolargo da ribanceira sul, notei que a parede
do mangue estava mais fina e, levantando-me, olhei através do emaranhado de suas raízes e brotos para o que pareceu serem planícies, acre após acre de prata polida — mais espécimes daquelas lagunas lamacentas, uma das quais, antes que houvéssemosal-
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A estetização é substituída, em Kingsley, por uma
cançado Ndorke, por pouco não me tragou. Eu as observava, à medida que lentamente prosseguíamos, sentindo uma certa fascinação... Oh! Que me seja dado um rio na África Ocidental e uma
permanente ironia cômica aplicada sobre si mesma e
àqueles à sua volta. O prazer é constante, mas ele decor-
canoa por puro e bom prazer. Dificuldades, diria você? Bem, sim,
re do brincar e não da beleza: a África constitui um pe-
mas onde não há dificuldades? As únicas dificuldades naquelas noites no Rembwe foram a série de horríveis sustos que tive ao manobrar em direção a sombras de árvore que tomava por bancos de lama ou por árvores propriamente, tão negras e sólidas pareciam. Afortunadamente, nunca soei o alarme por causa disto, e todas as vezes pilotei solitária e galantemente desviando-me da sombra, chamando a mim mesma, mas não sendo chamada, de tola. ... De dia o cenário do Rembwe certamente não era tão ado-
ríodo extremamente alegre e agradável. Acima de tudo, o livro de Kingsley deve sua duradoura popularidade a esta magistral irreverência cômica. Magistral: é exatamente isso. Ao mesmo tempo em que troça da soberba e pos-
sessividade de seus confrades masculinos, a ironia de Kingsley constitui sua própria forma de domínio, empregada num mundo pantanoso muito seu, que o homemexplorador não viu ou não quer ver. Se os exploradores do Nilo, de pé nos brilhantes picos de suas colinas, são
rável e podia-se dormir sem lástima durante o trajeto.*
Que mundo poderia ser mais feminizado? Lá brilha a
lua iluminando o caminho; o barco é uma combinação de quarto e cozinha; Kingsley, a deusa doméstica, mantendo a guarda e saboreando a solidão de sua noite de vigília. Lon-
reis, muito abaixo, movendo-se através da escuridão e da
lama, Mary Kingsley é a Rainha, Cleópatra sobre o Nilo,
talvez, tão isolada na direção de seu barco quanto sua
ge de compartilhar de sua alegria, o grupo, graças do bom Deus, está dormindo. O lugar é quase subterrâneo — como uma toupeira, O viajante perscruta o ambiente através de Taí, zes e brotos. A beleza e densidade de significado não resi-
contrapartida na Inglaterra. Ao imaginar Mary Kingsley como uma rainha, quero capturar o fato de que ela realmente encontrou um posto no interior do projeto do império, embora rejeitasse muitos dos tropos da dominação imperial. De fato, como um recente trabalho biográfico nos lembra; Kingsley participou muito ativamente na política de expansão da Gra-Bre-
dem na variedade e cor que se desnudam, mas na idealiza-
ção que o véu da noite permite à mente do observador. De dia, o que se observa não é nem variedade nem densidade, mas seu oposto, monotonia. Isto é equivalente a dizer que Kingsley cria valores a partir da rejeição decisiva e feroz de mecanismos textuais que criaram valores no discurso de seus predecessores masculinos: fantasias de domínio e pos-
tanha, guiada por uma posição política particular. Imperia-
lista, mas apaixonada anticolonialista, ela usou sua fama como escritora e exploradora para exercer forte pressão em favor da tese de que o expansionismo e as relações de fronteira deveriam ser deixadas nas mãos dos comerciantes. Administrações coloniais, operações missionárias e grandes companhias eram todas elas opressivas, destruti-
sessão, pintura que é simultaneamente um inventário mas
rial. Ela enfatiza o produto de sua subjetividade (européia e
feminina): a prata polida é o resultado de sua própria ima-
ginação em ação num pântano de mangues. Longe de tomar posse do que vê, ela passa discretamente ao largo; longe de imaginar uma intervenção civilizadora ou embelezas dora, ela considera apenas a ingênua possibilidade de “causar danos à África”, numa colisão que sem dúvida iria cau-
vas e carentes de agilidade (como, na verdade, a experiência do Congo estava comprovando na década de 1890). Os exploradores do Nilo nos anos 1860 estavam, é claro, escrevendo nas décadas relativamente inocentes antes que a
sar-lhe ainda mais mal.
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8. Mary Kingsley — Travels in West Africa, London, Virago Press, 1982, pp.338-9. Primeira edição, London, Macmillan & Co., 1897.
9. Deborah Birkeit — “West Africa's Mary Kingsley” History Today, no.37,
Maio de 1987, pp.10-16. A literatura secundária sobre Kingsley é agora muito extensa.
357
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estilística imperial, 1860-1980
doVitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
corrida pela África levasse as rivalidades européias a um
ge forma-se uma névoa branca, muito quente e pegajosa, ce
gando-nos mais do que a noite.”
feroz frenesi territorial. Na época em que Kingsley ficou órfã e viu-se livre para viajar, a disputa pela África estava
bem avançada e a missão civilizatória bastante questiona-
da. No período mesmo em que Kingsley escrevia, outros escritores, como Joseph Conrad e André Gide estavam transformando a África, de um promontório banhado pelo sol, no coração das trevas, dominado pela culpa, onde a ganância européia pelo domínio se defrontava com a im-
possibilidade de controle total.
Retórica e politicamente, Kingsley procura umaterceira posição que resgate a inocência européia. Politicamente ela sustenta a possibilidade de expansão econômica sem dominação ou exploração. Em sua retórica ela procura se-
parar autoridade e dominação, conhecimento e controle.
Para ela, “não saber” não significa “precisar saber”; “não ver” não significa “precisar ver”; “não chegar” não significa
“precisar chegar.” Em seus escritos, a desajeitada e cômica inocência de todos, incluída a dela própria, sugere uma for-
ma particular de ser um europeu na África. Intrinsecamente utópica, sua proposta parece expressamente voltada a responder às agonias do europeuque chegou ao pântano após cair de seu promontório. Quão esquemático é o contraste entre a cena utópica do Rembwe evocada por Kingsley (ci-
tada acima) e seu correlato em Heart of Darkness (Coração das Trevas) (1900), de Joseph Conrad: O crepúsculo chegou gradualmente ao (rio), muito antes que O sol houvesse se posto. A corrente fluía suave e rápida, mas uma
taciturna imobilidade descia sobre as margens. Era como se às árvores vivas, amarradas pelas trepadeiras e todo tipo de vege-
tação rasteira, tivessem sido transformadas em pedra, até mesmo o mais tenro ramo, a mais delicada folha. Não era um simples dormir — parecia não ser natural, como um estado de transe. Nem mesmo o mais tênue som de qualquer espécie podia
A noite aqui ameaça a subjetividade européia com a
destruição e aniquilação. O coração das trevas gira num vórtice em torno do medo. Em seu momento utópico no no,
Kingsley expressamente substitui este medo por “uma certa fascinação.” Os “terríveis sustos” que experimenta são aque-
les que inflige sobre si mesma ao se dirigir contra sombras e
tomá-las por perigos reais. Apenas a necessidade de certeza e controle é que torna temíveis a incerteza e a vulnerabilidade, afirma ela. Tais coisas podem ser expurgadas. Não é ape-
nas a sua condição feminina que lhe permite expurgá-las de seus escritos. Além de ser mulher, ela é também uma crian-
ça na África, brincando num mundo não-edipiano egocentrado pelo qual Speke deve ter ansiado até a sua morte. A África é a sua mãe, e por aquelas tremeluzentes, escurase limosas vias, Kingsley está parindo a si mesma.
olamento do homem branco Nos relatos de viagem contemporâneos, a cena do
monarca-de-tudo-o-que-vejo se repete, só que agora desde
as sacadas de hotéis de grandes cidades do terceiro mundo. Nesse contexto, como acontecido com os exploradores precedentes, aventureiros pós-coloniais posicionam-se para es-
tabelecer o significado e o valor daquilo que vêem. Eis um exemplo de narrativa de viagem sobre a África Ocidental,
com o título A quetribo você pertence? (1972), de autoria do romancista e ensaísta italiano Alberto Moravia. Este é o parágrafo introdutório do livro: Da sacada do meu quarto tive uma visão panorâmica de Acra, ca-
pital de Gana. Sob um céu de azul incerto, preenchido por né-
ser ouvido. Você observaisto em espanto e começa a suspeitar
que esteja surdo — e então, repentinamente, a noite cai e também o deixa cego. Por volta das três da manhã algum peixe grande salta para fora d'água e o barulho de seu mergulho me
faz pular como se houvesse havido umtiro. Quando o sol sur-
“|358
É
[
10. Joseph Conrad — Heart of Darkness and Other Stories, New York,
Houghton Mifflin, 1971 (ed. bras.: O coração das trevas, Porto Alegre, L&PM, 1997], p.213
Eca
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voa e nuvens de um amarelo áspero e cinza, a cidade se assemelhava a uma grande panela de espessa e escura sopa de repolho
na qual ferviam numerosas peças de macarrão. Os repolhos eram
as árvores tropicais de rica, ampla e pesada folhagem de um verde escuro salpicado por tons negros; os pedaços de macarrão os recém-construídos edifícios de concreto reforçado, vários dos quais eram agora vistos por toda a cidade.”
Poucos anos mais tarde, num popular relato de uma
viagem de trem pela América Latina (The Old Patagonian Express) (O velho Expresso da Patagônia) (1979), o romancista e escritor de viagem anglo-americano Paul Theroux assumiu a mesma atitude na Cidade da Guatemala:
A Cidade da Guatemala, de conformação extremamente horizontal, é como uma cidade de costas. Sua feiúra, uma feição ameaçada (as casas baixas, melancólicas, têm rachaduras devidas a terremotos em suas fachadas; os edifícios distanciam-se de você com
seu perfil reluzente), é ainda mais intensa naquelas ruas onde, logo após a última casa de aparência instável, surge o cone azul de um vulcão. Eu podia ver os vulcões da janela do meu quarto
de hotel. Eu estava no terceiro andar, que era o andar de cober-
tura. Eles eram vulcões altos e pareciam capazes de expelir lava.
Sua beleza era inegável, mas era a beleza das bruxas. O estouro
de seus fogos havia lançado esta cidade abaixo.”
O contraste entre estas visões grotescas e sem alegria das cidades e os panoramas encantadores e cintilantes retratados por Burton, Grant e outros não poderia ser maior. No entanto, as três estratégias que salientei no texto de Burton — estetização, densidade de significado e domínio — ainda es-
tão em ação aqui, transpostos para um momento histórico
muito diferente e para uma chave estética diferente. O texto de Burton, como sugeri, criava densidade de significado por
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
de Theroux e Moravia partilham destas propriedades. Não
obstante o fato de também não estarem em território familiar, estes autores, como Burton, reivindicam autoridade para
suas observações. O que vêem é o que existe. Não se sugere nenhumtraço de limitação a seus poderes interpretativos. E, talvez menos explicitamente que em Burton, as relações de subordinação e posse são articuladas por meio de metá-
foras. Para Theroux, a Cidade da Guatemala está de costas,
numa posição de submissão ou derrota perante ele, e apresenta uma feição ameaçadora. À imagem de uma mulher espancada chega aqui próxima à consciência. Moravia vê Acra como um prato de sopa que Gana parece ter preparado, inclusive com macarrão, para que ele o coma.
Também temos estetização nestas passagens, exceto
que onde Burton encontrou beleza, simetria, ordem e o sublime, Moravia e Theroux encontram seus opostos estéticos:
feiúra, incongruência, desordem trivialidade. Ao identificar beleza, ordem e grandeza em sua paisagem, Burton o cons-
tituiu verbalmente como um prêmio valioso, projetando en-
tão sobre ela a visão de um futuro ainda mais ordenado e belo sob a direção européia. Tal é o precipitado otimismo do império incipiente. Moravia e Theroux, por seu turno, estão
falando desde a década de 1970, profundamente inseridos na era pós-colonial do “subdesenvolvimento” e da descolo-
nização. Restam poucos mundos prístinos abertos à descoberta européia, e os antigos, há muito, desmentiram o mito da missão civilizadora. O impulso destes autores metropolitanos pós-coloniais é o de condenar o que vêem, trivializálo, e dissociar-se radicalmente dele. É como se não houvesse história ligando o Theroux norte-americano à América es-
meio de uma copiosa utilização de adjetivos e uma proliferação generalizada de referentes concretos e materiais introduzidos, tanto seja literal quanto metaforicamente. Os textos
panhola ou o italiano Moravia à África, embora muito do que lastimam sejam depredaçõesligadas à dependência produzida pelo Ocidente. Há, talvez, um futuro implícito em seus
11. Alberto Moravia — Which Tribe Do You Belong To? traduzido para o in-
próprios. Theroux é ameaçado por vulcões semelhantes a bruxas capazes de levar a cidade abaixo, incluindo seu ho-
glês por Angus Davidson, New York, Farrar, Straus, and Giroux, 1972, p.l.
12, Paul Theroux — The Old Patagonian Express, Boston, Houghton Mifflin,
1978, p.123.
textos, um futuro de violência, estabelecido por e contra eles
tel (consulte-se adiante o relato de Joan Didion exatamente
sobre uma experiência deste tipo); a imagem da sopa de Mo361
estilística imperial, 1860-1980
ravia traz à mente o missionário de histórias em quadrinhos sendo fervido no caldeirão do canibal.
Enquanto suas visões da cidade são erigidas em torno
do feio, do grotesco e do decadente, as paisagens rurais,
para Theroux e Moravia, carecem de qualquer significado.
As descrições tanto do campo sul-americano quanto do africano indicam uma espécie de subdesenvolvimento estético
e semântico que ambos os autores, em puro estilo. euroimperial, relacionam ao pré-histórico. Aqui está uma amostra de Theroux, ao se aproximar de seu destino na Patagônia.
Note-se, nesta passagem, como a ausência de significado e diferenciação é primeiro predicada à natureza e depois estendida ao mundo humano: O panorama tinha uma aparência pré-histórica, do tipo que com-
põe a pintura de pano de fundo para o esqueleto de um dinossau-
ro num museu; simples, terríveis colinas e fossas; espinheiros e rochas; e tudo aplainado pelo vento e dando a impressão de que um
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
espanhol, teria ele algo melhor para fazer? Teria sido tudo menos indiferente?) O contraste não poderia ser mais pronunciado — ou mais completo. Aqui as categorias normativas não são beleza versus feiúra, mas densidade versus ca-
rência de significado. Uma das marcas conspícuas da cultura de mercadorias ocidental é precisamente a proliferação
de diferenciações, especializações, subdivisões e jogos de
gosto. O que parece estar faltando aqui é diferenciação — algo não apenas ausente, mas escasso. Não há nada sobre
o que os poderes de apreciação de Theroux possam se debruçar. A embaraçada introdução de Moravia ao que ele chama
de “paisagem africana” apresenta similaridades óbvias. Nova-
mente, a linguagem é extensivamente normativa: a paisagem carece de forma, finitude, padrão e história. Jamais se sugere
a possibilidade de limitações na autoridade do locutor. Dessa forma, uma jornada pela África, quando não é
grande dilúvio havia desnudado o terreno e extraído todas as características particulares. E o vento ainda trabalhava sobre ele, im-
mera excursão restrita a um e outro daqueles enormes hotéis que os habitantes do mundo ocidental espalharam pelo Continente Negro, é um verdadeiro mergulho na pré-história.
lezas das viagens de trem é a de que você sabe onde está ao olhar pela janela. Nenhum letreiro é necessário. Uma montanha,
Mas o que é esta pré-história que tanto fascina os europeus? Antes de mais nada, deve-se dizer, é a efetiva conformação da paisagem africana. A principal característica desse panorama não é a diversidade, como na Europa, mas antes sua terrificante monotonia. A face da África se assemelha mais àquela de
pedia as árvores de crescerem, varria o solo desde o oeste, expunha mais rochas e até desenraizava aqueles feios arbustos, As pessoas no trem não olhavam pela janela, exceto nas estações, e mesmo assim apenas para comprar uvas ou pão. Uma das be-
um rio, um prado — tais marcos dizem o quanto se percorreu. Mas este lugar não possui marcos, ou melhor, tudo são marcos, indistinguíveis uns dos outros — milhares de colinas e leitos de rios secos, e um bilhão de arbustos, todos idênticos. Eu cochilei e acordei: horas se passaram; o cenário da janela não havia se altera-
uma criança, com menos traços marcantes delineados, do que a face de um adulto, sobre a qual a vida imprimiu inúmeras Jinhas significativas; em outras palavras, ela porta semelhança maior com a face da terra em tempos pré-históricos, quando não havia estações e a humanidade ainda não havia aparecido, do que com a face da terra como é hoje, com inúmeras mudan-
do. E as estações eramindiferentes — uma cobertura, uma plata-
forma de concreto, homens observando, meninos comcestas, Os cachorros, as desgastadas camionetas.
ças: promovidas tanto pelo tempo quanto pelo homem. Esta
Procurei por guanacos. Não havia nada melhor para fazer. Não havia guanacos.”
monotonia, além disso, expõe dois aspectos verdadeiramente pré-históricos: reiteração, isto é, repetição de um mesmo tema
ou motivo de maneira obsessiva e até aterrorizante; e ausência
Se Burton construiu a descrição do Vitória N'yanza tendo em vista a posse e a ambição, Theroux constrói a Patagônia a partir da paralisia e da alienação. (Caso soubesse
13. Ibid., p.397. 362
de forma, isto é, de fato, a total ausência de limite do finito, de padrão e de contornos.”
|
14. Moravia — op. cit., p.8.
363
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Nunca há uma desculpa para este hábito ocidental de-
sumanizador de representar outras partes do mundo como
não tendo história. Para um europeu meridional, emitir tal asserção sobre à África (ou para um norte-americano, sobre a América do Sul) exige um enorme ato de negação. Para
que se efetue isto impunemente faz-se necessária uma escri-
ta muito persuasiva e bem elaborada. No entanto, Theroux ao e Moravia caem voluntariamente em aberta contradição
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador conglomerados repugnantes de incongruências, assimetrias,
perversões, ausência e vacuidade. Mesmo lamentando, estes observadores não abandonam seus promontórios e seus cadernos de esboços. Conquanto não se possa mais esperar que o grupo “junte-se a eles em júbilo,” eles ainda estão lá em cima, comandando a vista, estabelecendo seu valor, ol-
vidados das limitações de suas capacidades perceptuais e de suas relações de privilégio perfeitamente naturalizadas. Ou
sustentar seus pontos de vista normativos e autorizados.
talvez imperfeitamente naturalizadas, pois, durante as déca-
das belezas das viagens de trem é a de que você sabe onde
nhado por persistentes temores de aniquilação e violência. É neste medo que o observador contemporâneo registra O
“Uma Como manter, como faz Theroux, por um lado, que
está ao olhar pela janela” e então acrescentar, por outro
lado, que na Patagônia isto não funciona dado que a paisa-
gem “não se altera”? Para Theroux, isto significa que a Pa-
tagônia está violando as normas estéticas da viagem de trem por se mostrar incapaz de fornecer os marcos apropria-
dos. Os patagônios, que não olhavam pela janela, estão sendo incapazes de viajar corretamente em seus próprios trens. da De modo similar, para estabelecer o caráter anômalo
“paisagem africana,” Moravia chega a afirmar que a face da
à face África, tal como se apresenta hoje, não parece com
e a da terra tal como ela hoje se apresenta. Esta é a lógica retórica do preconceito não questionado. Theroux e
Moravia,
ambos
autores
canônicos e
amplamente lidos, exemplificam um discurso de negação,
perdominação, desvalorização e medo que, no século XX,
manece sendo um poderoso elemento ideológico da consciência ocidental a respeito das pessoas e regiões que esta
procura manter sob jugo. É o código oficial metropolitano ido “terceiro mundo,” sua retórica de trivialidade, desuman
zação e rejeição que coincide com o fim do domínio colo-
nial emgrande parte da África e Ásia, o surgimento dos mor
de vimentos de libertação nacional e processos acelerados em urbano nto crescime e modernização, industrialização recurmuitas partes do mundo. Não há mais cornucópias de
sos solicitando a intervenção industriosa e aperfeiçoadora
mais exótido Ocidente, os recentemente assertivos e não
cos povos e regiões tornam-se aos olhos do observador
364
das de 1960 e 1970, o domínio do observador vem acompa-
que sempre esteve lá: a contrapartida do olhar dos outros,
demandando reconhecimento enquanto sujeitos da história. Como ainda os dois pequenos exemplos que apresentei sugerem, aparentemente o lamento do homem branco permanece notavelmente uniforme pela representação de di-
ferentes lugares, e por ocidentais de diferentes nacionalida-
des. É um monolito, como o construto oficial do “terceiro
mundo” que ele codifica. Nos leitores metropolitanos con-
temporâneos este discurso frequentemente produz uma in-
tensa “impressão de algo real.” Num curso de graduação que ministrei sobre relatos de viagem, o Old Patagonian Express de Theroux neutralizou semanas deleitura crítica cuidadosamente desenvolvida. Os estudantes chegavam aliviados e
confiantes — é isso, esse sujeito realmente capturou a forma
como a América do Sul realmente é, você simplesmente
pode afirmar que ele sabia o que estava dizendo. Theroux
havia atiçado suas imaginações, capacitando-os a defender sua veracidade pela própria vivacidade de sua escrita, e pela riqueza e intensidade com que expectativas, estereótipos e preconceitos dos próprios estudantes haviam sido confirmados. Os alunos estavam levando a cabo e sendo levados pelo
projeto ideológico do terceiro mundismo e supremacia branca. Eles estavam reproduzindo as ideologias oficiais da metrópole como haviam sido ensinados a fazê-lo. Eu estava apta a lhes assegurar que estavam em companhia respeitável. Numa resenha a The Old Patagonian Express, publicada
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no órgão da cultura livresca oficial, o New York Times Book Review, Paul Fussell louvou Theroux por seu “olhar aguça-
do, capaz desta astuta percepção.” Os exemplos de percepção astuta incluíam, por exemplo, o aperçu no Peru de que “os índios têm feição ampla, como peças de xadrez”; que o altiplano andino parecia, da janela do trem, um “mundo
composto pela bagunça de gatos.” Se este livro não é tão in-
teressante como a anterior odisséia ferroviária de Theroux pela Ásia, dizia Fussell, num crescendo de arrogância, a culpa é da América, não do autor: A Europa e a Ásia têm uma feição mais rica para este tipo de empreendimento do que a América Latina, que, em comparação,carece de perfil distintivo, profundidade de associações literárias e
históricas, e variedade. Para qualquer um versado emEuropa, ela é desesperadamente enfadonha. A miséria no México é idêntica à miséria em El Salvador (...) e analfabetismo aqui é como analfabetismo lá (...)º
e assim por diante. (O Review não publicou as cartas recebidas que se opunham à resenha de Fussell.) O lamento do homem branco é tambémo lamento do
Intelectual e do Escritor. Podemos vê-lo, em parte, como uma
tentativa de suprimir o discurso de outra voz monolítica que
emergiu nas mesmas décadas: a voz do turismo de massa. Os
poderes criativos e a profundidade do escritor de viagem de-
vem competir com os pacotes de dez dias e nove noites, passagem aérea mais hotel, gorjetas incluídas, e as fantasias atraentes e ideais da propaganda turística. Nas décadas de
1960 e 1970, visões exóticas de plenitude e paraíso foram
apropriadas e mercantilizadas numa escala sem precedentes pela indústria turística. Escritores “reais” aceitaram a tarefa de fornecer versões “realistas” (degradadas, contramercantiliza-
das) da realidade pós-colonial. O “efeito de algo real” que Theroux teve sobre a classe em que lecionei foi, sem dúvida,
parcialmente alcançado pela identificação dos próprios estudantes com a representação “real” sobre e contra as represen-
|
15. Paul Fussell - Resenha de The Old Patagonian Express de Paul Theroux, New York Times Book Review, 26 de agosto de 1979, p.1.
E
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
tações mercantilizadas por meio das quais o turismo, de forma muito bem sucedida, lhes vende o mundo.
-— hifens pós-coloniais Quinze anos antes de Moravia, outro estrangeiro pos-
tou-se numa sacada em Acra e escreveu sobre ela num livro
que Moravia poderia muito bem ter lído. O romancista e en-
saísta afro-americano Richard Wright fez sua primeira viagem à África na ocasião da independência de Gana, em 1957. Ele relatou a experiência numlivro de viagem cujo título, Black Power (Poder negrol, anunciava as formas emer-
gentes de identificação global e subjetividade histórica tão
temidas pelos mestres do lamento do homem branco. Como os homens brancos hifenizados antes dele, em Black Power,
Wright põe-se diretamente a trabalhar parodiando e reacomodandoa tropologia herdada. Considere-se, por exemplo,
a reconfiguração de Wright da cena do balcão, na descrição
de seu primeiro dia em Acra:
Quis prosseguir e olhar mais, mas o sol estava demasiado forte.
Passei atarde aflito, estava impaciente por ver mais desta África. Meu bangalô era limpo, silencioso e sem mosquitos, mas não havia sido para isto que eu tinha vindo para a África. Minha mente
já cogitava outras acomodações. Postei-me em minha varanda e vi nuvens de busardos negros circulando lentamente no pálido
céu azul. À distância, divisei o nevoento e cinzento Atlântico.”
As duas últimas sentenças fornecem uma instância bem reduzida, umvestígio da cena convencional do promontório.
O panorama vislumbrado é o do Oceano Atlântico que, ao contrário do lago Tanganica, não inspira quaisquer fantasias de posse ou civilizadoras. Wright o codifica enquanto mal e morte, como bem se entende que o faça, pois entre o afro-
americano e a África, o Atlântico é o lugar da morte, a passa-
gem mediadora. Todavia, ao mesmo tempo, Wright declara 16. Richard Wright — Black Power, NewYork, Harper, 1954, p.154.
367 |
o
estilística imperial, 1860-1980
explicitamente sua insatisfação com a convenção da sacada
do prédio e com localização privilegiada do balcão, no qual
ele sente que NÃO se pode ver e julgar adequadamente. No seu relato, Wright está claramente preocupado em reconhecer limites em sua capacidade enquanto observador (aqui, por exemplo, ele precisa se ocultar do sol). Provavelmente um quarto das sentenças de seu livro é composto de perguntas retóricas. Na passagem acima praticamente não há metá-
foras e quase nenhuma negação.
A rejeição do balcão por parte de Wright, como por
parte de Kingsley, baseia-se na consciência de que existem
alternativas — acomodações alternativas, para começar, mas também convenções alternativas de representação. Nas normas representativas do livro de viagens de Wright, pode-se apenas representar e julgar aquilo em que se está. Quando, na passagem citada, ele não pode estar nas ruas, Wright se descreve em seu quarto. Como Kingsley, ele parece estar procurando formas de abdicar da relação a priori de dominação e distância entre descritor e descrito. Fora da cidade, Wright se retrata como quase tão alie-
nado da vida tribal e rural quanto Moravia. No entanto, de
uma forma novamente semelhante à de Mary Kingsley, ele se sente em casa à noite, quando é suspensa a relação ob-
servador-observado. À noite, toma corpo um indivíduo for-
talecido, para quem a incerteza, a vulnerabilidade e o invisível trazem alegria, plenitude e uma expansão interior. Esta é a versão de Wright da cena da selva-à-noite (itálicos meus): A noite caí repentinamente, como umnegro e úmido veludo. O ar, carregado de oxigênio em demasia, intoxica o sangue. O grito de
alguns pássaros selvagens atravessa a escuridão e pára abrupiamente, deixando um tenso vácuo. Um mau cheiro vem de algum
lugar. Um distante ribombar é ouvido e então desaparece, como. se estivesse envergonhado de si mesmo. Um inexplicável golpe de
vento agita a cortina da janela, fazendo-a inchar e depois cair flácida. Um passarinho gorjeia sonolento na noite lânguida. Fragmen-
tos de vozes africanas soam na escuridão para em seguida desaparecer. A chama de minha vela queima reta, arde minutosa fio sem
um único bruxuleio ou tremor. O som de um caminhão, cujo mo-
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador tor reclama enquanto ele luta para subir a colina íngreme, traz-me 2 e
de volta o mundo que conheço.”
No escuro, o culto do homem-observador é dissolvi-
do (não existe um “eu” no trechocitado, até que a vela seja mencionada.) A percepção fica fragmentada, mas não à
consciência e a identidade (ocidentais) — assim como o fo-
gareiro-útero de Kingsley sobre o Rembwe, a vela fálica de
Wright arde, estável. Aqueles com propensão lingiúística po-
dem ter percebido como o caráter fragmentário e brusco das
impressões é contraposto a um ritmo forte e contínuo e como as imagens se tornam mais inócuas na medida em que o texto prossegue. Wright está tentando representar uma experiência de ignorância, desorientação, incompreen-
são e autodissolução que não dê ensejo ao terror ou na lou-
cura, mas antes a uma serena receptividade e um intenso
erotismo. O caminhão não surge para realizar um salvamento; sua tarefa não é a de trazer Wright de volta a seu mundo, mas trazer seu mundo de volta a ele: as fronteiras entre o conhecido e o desconhecido são permeáveis. Elas também são permeáveis nos escritos do franco-ar-
gelino Albert Camus, contemporâneo de Wright e outro extraordinário súdito hifenizado do império. A ficção de Camus
apresenta um engajamento profundo e muito específico com as formas de discurso discutidas aqui. Boa parte dela explora as contradições do colonialismo — um desafio que a crítica ocidental obstinadamente procurou afastar lendo as narrativas de Camus como descontextualizadas parábolas existenciais e morais.” Um pequeno exemplo será suficiente
para sugerir alternativas. O conto de Camus “A mulher adúl-
tera” em O exílio e o reino (1957), relata a experiência de
uma francesa, nascida na Argélia, que acompanha seu marido numa viagem de negócios ao interior argelino. Ali ela
percebe, em suas palavras, que “nada era como esperava.” Sua própria crise existencial na história coincide com o seu 17. Ibid., p.263. 18. Veja-se M.L. Pratt — “Mapping Ideology: Gide, Camus and Algeria,” College Literature, vol.8, 1981, pp.158-74,
369
estilística imperial, 1860-1980
reconhecimento da impotência do poder colonial nas re-
giões interioranas. Não por acaso, seus dois grandes momen-
tos da verdade na história têm lugar enquanto ela se posta sozinha no alto do último forte francês ao sul, observando o Saara. Eles são fascinantes rearticulações da cena do monarca-de-tudo-o-que-observo. No primeiro deles, transcrito adiante, a paisagem pré-histórica, carente de significado, tão cara ao pensamento hegemônico ocidental, é postulada para ser em seguida rejeitada. Não obstante a perspectiva do promontório, faz-se referência repetidamente a coisas que o ob-
servador não pode ver ou compreender:
De leste a oeste, seu olhar se deslocou vagarosamente, sem en-
contrar um único obstáculo, ao longo de uma curva perfeita. Em-
baixo, os terraços azuis e brancos da cidade árabe superpunhamse uns aos outros, salpicados pelas manchas vermelho-escuras
das pimentas secando ao sol. Nenhuma alma podia ser vista, mas dos aposentos internos, juntamente com o aroma de café sendo torrado, elevavam-se vozes gargalhando ou incompreensíveis sons de passos. Mais ao longe, o bosque pálido dividido por mu-
ros de barro em quadrados imperfeitos, farfalhava suas folhas no alto das ramas sob um vento que não podia ser sentido no terra-
ço. Ainda mais ao longe, e por todo o lugar até o horizonte, estendia-se o reino ocre e cinza das pedras, no qual nenhuma vida era visível. A alguma distância do oásis, contudo, próximo ao
uádi que contornava o bosque de palmeiras pelo oeste, divisavam-se amplas tendas negras. Em toda a sua volta um grupo de dromedários imóveis, pequenos à distância, formava em contraste com o solo cinza os caracteres negros de uma escrita estranha cujo significado havia de ser decifrado. Acima do deserto, o silêncio era tão vasto quanto o espaço.”
Um panorama indistinto, atemporal e vazio é disposto em termos similares àqueles do lamento do homem bran-
co, mas quase imediatamente sua “curva perfeita” é inter
rompida por formas irregulares, multicoloridas e por qua-
drados imperfeitos — a cidade árabe. Mais ao longe, o mor-
to “reino das pedras” se mostra povoado por tendas e dro19. Albert Camus — “The Adulterous Woman,” em Exile and the Kingdom (1957), tradução para o inglês de Justin O'Brien, New York, Vintage Books, 1957 (ed. bras. O exílio e o reino, Rio de janeiro, Record, 1997], pp.22-3.
370
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
medários, uma sociedade escrita numa linguagem que a
protagonista colonial não pode ler. Mais importante, ela reconhece que não pode ler, e, aqui, a euro-africana se sepa-
ra do observador europeu. Pois o observador raramente ex-
perimenta tais perplexidades: em seus livros ele é “autor”-
izado não só a ler aquilo que vê, mas a escrever sobre isto em caracteres romanos. A protagonista colonial de Camus,
confiável dentro de suas limitações, nota coisas — coisas hu-
manas — que ela não consegue decifrar, ocorrendo em todo
o cenário. Ela fez isso durante toda a sua vida.
“A mulher adúltera” encerra-se com uma cena de clima noturno no mesmo forte quando, sozinha no silêncio da noite, a mulher experimenta uma momentânea fusão orgás-
tica com o “reino do deserto” que “jamais poderá ser seu,” e então retorna chorando para seu triste leito conjugal. Esta
momentânea permeabilidade das fronteiras colonialistas entre a euro-africana e a África constitui o adultério a que se refere o título do conto, uma forma de adultério cultural. A mulher adúltera é a única protagonista feminina da ficção de Camus. Os fluidos limites da subjetividade feminina fornecem os meios para que se imagine o que uma descolonização do eu poderia significar. Camus elabora uma fugidia imagem, e não mais que isso, de uma agoniada renúncia que se constitui também numalibertação emancipatória, e
então retrocede. Sua exploradora colonial volta do interior não em triunfo, como os heróis do Nilo, mas em desesperança e perplexidade. Como ela, o próprio Camus pertencia
à “terceira catégoria” do euro-africano, uma categoria cujo potencial mediador haveria de se perder na polarização da guerra colonial. “A mulher adúltera”, de Camus, e Black Power, de Wright, foram ambos escritos em meados dos anos 1950,
quando os conflitos coloniais em muitas partes da África es-
tavam se movendo rapidamente rumo à confrontação violenta. Ambos foram escritos em conexão direta com momentos
específicos das lutas pela descolonização. Os contos de Camus -datam da deflagração da brutal guerra franco-argelina que Fanon analisou como um paradigma dos horrores da
371
estilística imperial, 1860-1980 violência colonial moderna. Um em cada seis argelinos morreria antes que a independência fosse conquistada. Wright
estava testemunhando a fundação da nação independente de Gana, anteriormente Costa do Ouro, possessão britânica,
um evento que se tornou paradigma para a desmontagem pacífica dos aparatos coloniais. Um francês hifenizado e uma
americana hifenizada, ambos escreveram vinte anos antes de Theroux e Moravia, antes do advento do lamento do homem
branco. O poder negro (black power) e o adultério cultural que vislumbram em suas noites africanas, durante os anos
1950, evidenciam fissuras nas estruturas de dominação ocidental e da ideologia colonialista dentro da metrópole, fissuras pelas quais fluíram a literatura e o pensamento dos movimentos de libertação do terceiro mundo nas décadas de
1960 e 1970. Naqueles anos dramáticos, o lamento do homem branco foi empregado no contato com vozes contestatórias que gradualmente estavam se apossando do mundo.
Em certos escritores brancos da década de 1970, a amarga nostalgia por linguagens perdidas de descoberta e dominação é uma resposta tanto àquele desafio, quanto à depravação do “desenvolvimento” e ao maugosto do turismo.
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
desmantelar o gênero, esmagá-lo sob o peso de uma realidade que se tornou ainda mais sombria do que aquela que Paul Theroux encontrou ou mesmo pretendia encontrar. Num discurso que não é gerado nem pela beleza e plenitude, nem pela feiúra e carência, Didion parece rejeitar radicalmente o projeto estetizador do relato de viagem. Ela não constrói nada, não pinta nada, não domina nada. Ela cita muito, A única paisagem panorâmica nolivro é uma miniatura que parodia o tropo da descoberta. Na chegada, olhando do avião, Didion se dá conta de que EI Salvador “é me-
nor que alguns condados da Califórnia.. justamente a cir-
cunstância que encorajou a ilusão de que este lugar pode ser gerenciado”? Assim, as grandes aspirações dos poderes imperiais são reduzidas aqui a um desejo burocratizado pelo
simples “gerenciamento.” Bem-vindos à década de 1980! A voz e a autoridade do indivíduo metropolitano são,
em Salvador, atenuadas não ao ponto de dissolução, mas
de desilusão. O estar lá não produz nem uma sensação de dominação (como em Burton e Theroux), nem de auto-realização (como em Kingsley e Wright). Repetidamente, Didion se retrata vendo menos do que esperava, ou desviando seu olhar quando o esperado ocorre inesperadamente. A narrativa é deliberadamente polifônica. Não há subjetividade integrada, nenhuma chama constante de uma indivi-
dualidade tem o controle das longas citações de funcioná-
A própria brevidade de Salvador(1983), de Joan Didion, sugere um ponto final para isto tudo, ou ao menos o anseio por algo assim. O livro de Didion, um relato de uma viagem a El Salvador motivada pela crise política da América Central nos anos 1980, concentra-se não sobre a categoria do “subdesenvolvimento,” mas sobre o terror, uma chave da matriz ideológica da década de 1980. Didion vai para El Salvador para ver o terror em suas formas oficialmente iden-
tificadas: terrorismo de Estado, o terror dos esquadrões da
morte paramilitares e a insurreição terrorista. Ela escreve um livro de viagem de pouco mais de cem páginas que se cons-
tituí, antes de mais nada, numa tentativa de finalmente se
rios de embaixada, advogados de direitos humanos, jorna-
listas e escritores. Em larga medida, seus discursos oficiais conflitantes falam por si mesmos, frequentemente dando a
impressão de um pastiche. Todo o projeto de observação é
desestabilizado — na verdade, muito literalmente. A única cena de varanda de hotel tem lugar durante um terremoto:
“Recordo ter me encolhido sob a moldura de uma porta em
meu quarto no sétimo andar,” diz Didion, “e de ver, através da janela, o vulcão San Salvador aparentemente balançar da
esquerda para a direita.” O que Theroux imaginava e te20. Joan Didion — Salvador, New York, Washington Square Press, 1983, pp.40-1.
21. Ibid., p.60.
estilística imperial, 1860-1980
mia em relação aos vulcões da Cidade da Guatemala, final-
mente acontece.
Talvez isso não seja coincidência, pois Didion especi-
ficamente invoca Theroux como seu predecessor em El Sal-
vador. A certa altura, ela cita a descrição feita por este autor em The Old Patagonian Express, de uma experiência alie-
nante enquanto lecionava na Universidade de El Salvador.
Na época de sua chegada, diz-nos ela, as coisas haviam se
tornado muito piores. A Universidade havia fechado há mui-
to tempo e “umas poucas classes eram mantidas na frente de lojas em vários pontos de San Salvador.”” O lamento do homem branco em favor de um mundo (meramente) desaparecido não pode mais dar conta da situação. Os estereótipos
do subdesenvolvimento são quebrados. Observando a clientela afluente e metropolitana num luxuoso supermercado,
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
ção. Enquanto o terror estabelece o ponto de vista
autoritário a partir do qual o panorama geral faz i os leitores são poupados de qualquer esteio a ginar ou compreender seus desdobramentos. Didion vi-
vencia o terror apenas enquanto um estado de supressão
de poder, para citar a cena da chegada na abertura do livro, “no qual nenhum chão é firme, nenhuma amplitude de visão é suficiente e nenhuma percepção é tão definitiva que não possa ser dissolvida em seu exato reverso.
A única lógica é a da aquiescência"* (itálicos meus). Como o infausto Speke, Didion não consegue assumir
este ponto de vista, mas ela acaba permitindo que seus leitores acreditem que ele está lá. Assim, se o seu livro,
agressiva e lucidamente, procurou abdicar da autoridade
do observador, aquela autoridade lhe foi calorosamente
dadeira noche obscura.”* Com o seu “não está mais,” Didion
restituída no ponto da recepção. Os órgãos oficiais da cultura metropolitana ansiosamente a saudaram como um descobridor voltando de uma Fonte. Numa dúzia de frases publicitárias de contracapa, o New York Times, o Washington Post, o USA Today e a revista People saudaram Salvador exatamente por aquilo que ele rejeita: niti-
ferentes formas de entendimento, distintas relações entre observadores ocidentais e seus observados selecionados — e
supremacia do observador. “El Salvador tornou-se o verdadeiro coração das trevas,” exultou o Atlantic Monthly.
Didion nota que ela (itálicos meus) “ndo está mais interessa-
da neste tipo de ironia, que esta não era uma história que seria esclarecida por tais detalhes, que talvez esta não fosse uma história que pudesse ser esclarecida de modo algum, que esta talvez fosse menos uma “história”, e mais uma ver-
parece inaugurar (descobrir?) uma nova fase que requer di-
nesse exato ponto, comose desistisse e atirasse a toalha, sua
linguagem retrocede para o velho vocabulário de luz e sombra que constitui exatamente aquele discurso no qual ela “não está mais interessada.”
O que seria uma “verdadeira noche obscura”? Por
que precisa isto ser nomeado em outro idioma? Porque em contraste com Conrad, Didion na verdade identifica
seu tema como algo inacessível à sua constituição ocidental e feminina. O terror, baseado no que não é visto, não é dito, não é conhecido, torna-se a fonte de uma
plenitude que o visitante não testemunha ou cria, de algo que ela não pode empregar na densidade da descri22. Ibid., p.81. 23. Ibid., p.36.
ST4
dez,
verossimilitude,
percepção
e
precisão,
toda
a
Finalmente sabemos! A loucura e o terror não estão em
nós, mas em EI Salvador! Assim, a “lógica da aquiescên-
cia” leva, como sempre, a um ponto final que, ao ser descoberto como tal, enseja o alívio.” Esta lógica deve ser muito ocidental. Em San Salvador, Didion visita a Catedral Metropolitana, local de um notório massacre político ocorrido em 1980. Ela vê tinta vermelha espalhada nos degraus externos, ao passo que, internamente, “aqui e ali no linóleo barato,” nota “o que
parece ser realmente manchas de sangue ressecado, O tipo de manchas causadas pelas gotas de uma lenta he24. Ibid., p.13.
25. Ibid., citado na orelha do livro.
375
estilística imperial, 1860-1980
morragia ou por uma mulher que não percebe ou não se preocupa por estar menstruando.””* Mulheres imaginárias
sempre têm servido como ícones nacionais. Esta, descuidada, anti-estética e derramando inconscientemente seu próprio sangue, parece ser o ícone de Didion para El Salvador, suscitado pela perspectiva metropolitana de domínio masculino, Mas a mulher que sangra de Didion é imaginária, Se uma mulher salvadorenha estivesse ali, e se lhe fosse fa-
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
cação da autoridade, por parte de Didion, permanece adja-
cente à reivindicação de Barrio — e qual das duas condiciona a outra é questão a ser esclarecida .*
cultado falar, ela provavelmente observaria que para ela as
diferenças entre tinta e sangue, ou entre menstruação e
lenta hemorragia, não são de modo algum objetos para o esquecimento, indiferença ou aquiescência. Provavelmente salientaria que o terror, para ela, consiste de mais coisas
do que o meramente não visto ou não dito. Tais esclarecimentos, de fato, têm ocorrido na medida em que as mu-
lheres na catedral têm logrado penetrar nos circuitos me-
tropolitanos de comunicação, na última década e meia por meio de movimentos políticos e media cooperativa, como na história oral, no testimonio, em entrevistas, filmes e vídeos. A epígrafe no início deste capítulo, por exemplo, é extraída do testimonio da ativista camponesa boliviana Do-
mitila Barrios de Chungara, relatando uma das numerosas prisões e interrogatórios que ela sofreu nas mãos do go-
verno de seu país. No momento em que a venda é tirada de seus olhos, Barrios reclama a autoridade de fazer um retrato explicitamente politizado da zona de contato a partir da perspectiva do indivíduo histórico dominado/resis-
tente.” Tal ponto de vista parece inacessível em Salvador,
até mesmo na imaginação. Historicamente falando, a abdi26. Ibid., p.79. 27.Domitila Barrios de Chungara com Moema Viezzer — Let Me Speak,
tradução para o inglês de Victoria Ortiz, New York, Monthly Review
Press, 1978. O original em espanhol éSime permiten bablar... Testimonio de Domitila, una mujer de las minas de Bolivia, Mexico, Siglo
XXI, 1977. Para uma introdução à categoria da “literatura de resistência”, consulte-se Barbara Harlow — Resistance Literature, New York, Methuen, 1987. ——
376
28. Talvez Didion alcance tanto quanto um livro de viagem pode honestamente alcançar no que se refere ao terror, e talvez este seja justamente o desafio que ele apresenta a seus leitores: Como podem os ocidentais conhecer o terror e a zona de contato sem que procurem dominálos? O antropólogo Michael Taussig testemunha este desafio em seu notável livro Shamanism, Colonialism and the Wild Man: A Study in Terror and Healing (Cambridge, Harvard U.P., 1987). Ao analisar a “cultura do terror” durante o auge do ciclo da borracha na virada do século, na região colombiana de Putumayo, Taussig sugere que quando se procura compreender as práticas e a semiótica do terror observa-se que elas são construídas não apenas a partir do que NÃO é visto, dito ou sabido, mas também a partir do que as pessoas vêem, dizem e sabem E do que as pessoas não vêem, mas ouvem outros dizerem que viram; do que as pes-
soas não ouviram dizer, mas ouviram ou leram outros dizendo que ouviram; do que as pessoas não fizeram, mas ouviram outros dizerem que viramfeito, e assim por diante. A maquinaria cultural e ideológica do terror, sustenta Taussig, se sustenta não apenas sobre concepções (distorcidas) que cada um dos lados mantém a respeito de seu inimigo, mas sobre concepções distorcidas que cada um dos lados mantém a respeito das concepções distorcidas que seu inimigo mantém a respeito dele. Igualmente importante, em seu título Taussig emparelha terror com cura e insiste que ambos podemser encontrados juntos, que onde há terror a cura também pode ser encontrada — nos poderes dos xamãs, por exemplo. Talvez Didion concordasse que o envolvimento com os efeitos do terror demande um contato prolongado e um longolivro (tal como é o de Taussig) que relate a seus leitores mais do que eles se importem em saber (comofeito pelo livro de Taussig). Ela também poderia afirmar que
a tour de force de Taussig repousa sobre uma espécie de onipresença de
um único homem, algo que ela rejeita.
Endice remissivo
Academia de Ciência (França), 45-48 Account of the Slave Trade on the Coast ofAfrica (Relato sobre o tráfico de escravos na costa da África) (Falconbridge), 54, 182 Acra, 359, 361, 367
Across Patagonia (Através da Patagônia) (Dixie), 292 Açúcar, refinaria de, 278
Adams, John, 49, 50
Adanson, Michel, 130
Adão no paraíso, 671
África; consulte-se também países e regiões específicos, 12, 23, 24,
27, 28, 35-37, 5456, 66, 71, 72, 74, 79, 80, 81, 83, 92, 95-97, 107,
108, 110, 114, 116-118, 129-131, 133, 136, 138, 146, 147, 150,
153, 156, 160-161, 163, 171, 182-183, 188-189, 224, 340-367, 371 “África do Sul, literatura de viagem referente à, 76, 79-80, 95-96, 117, 161, 241
Africânderes (consulte-se Boêres), 81, 95, 102-104, 117, 241, 115-
117, 120-125, 168
Agricultura, 26, 74
“Agricultura da zona tórrida” (Bello), 296, 298, 301
Aguirre, 48
Alberdi, Juan Batista, 323 Algoa, Baía de, 114
Ali, potentado fulani, 132 Amazonas, 45, 48, 49, 51, 65, 66, 72, 73, 206, 219 América espanhola; investimento na; literatura da; protecionismo na; sociedade da, 28,30, 36, 46, 117, 134, 196, 202, 253, 301, 361 América do Sul; descolonização da; trilhas terrestres; reinvenção
da; revoluções na, 28, 35, 42, 48, 50, 58, 195, 196, 211, 219, 227,
239, 255, 307, 365 Ameríndios; veja-se também Incas, Aztecas, Pampas, 47, 198, 199,
226, 334
Anderson, Benedict, 241
Andes; viajantes nos, 265
Andrews, Joseph, 255, 260 Anti conquista; definição do termo, 62, 103, 105, 113, 148, 172, 215
379
índice remissivo
índice remissivo
Arequipa, 267, 268, 272, 284
Breve narrativa das viagens pelo interior da América do Sul (La
Argentina, 37, 255, 261, 312, 315, 319, 325, 331
Brosse, Charles de. 70 Brunswijk, Ronny, 191 Buenos Aires, 255, 256, 316
Argélia, 327, 328, 369
Arnim, Bettina von, 275
Arpillera (estampa de tecido), 244-246
Arqueologia, na América do Sul, 232 Associação Africana, 35, 127, 128, 203 Atlantic Monthly ,375
Atas géographique et physique du Nouveau Continent (Humboldo, 242 Austrália, 80
Auto-etnografia, explicação do termo; texto, 33 Aztecas; arte, 231, 310, 379
Baikie, Dr. William, 153 Baker, Florence, 101, 354 Bambara, 132 Bambouk, 131
Banks, Joseph, 128 Barrios de Chungara, Domitila, 376 Barrow, John; discussão da obra, 79, 108-120, 310 Beagle, 196 Bello, Andrés; revista fundada por; poemas, 12, 199, 280, 296, 302, 304 Betagh, um pirata, 43-44
Black Power (Wright), 367, 371, 372
Blackwiwod's Magazine, 292 Blake, William, 164 Boêres (Africânderes), 196 Bolívar, Simón; escalada do Chimborazo; enquanto Grande Libertador, 196
Bonpland, Aimé, 36, 204, 206, 209, 224
Boorstin, Daniel, 57 Borracha, 49 Bosquímanos (consulte-se !Kung), 81, 95 Bott, Rio, 99, 230 Bougainville, Louis, 80, 238
Bouguer, Pierre, 45
Bouterse, Desi, 191 Bowdich,T. Edward, 188, 189
Brand, Charles, 259, 265, 285
Condamine), 48-49
Buffon, Georges, 61, 62, 238
Burton, Richard, 344, 345, 346
Byron, Lorde George, 271
Cabo, Cidade do. 77, 95 Cabo, Colônia do; descrição; literatura sobre; reconduzida para os
holandeses, 80, 82, 117, 160
Cabo da Boa Esperança: literatura sobre o, 36, 79, 83, 104 Cabo Hom, 117, 271, 289 Cabo Verde, Ilhas, 279 Caiena, 51 Caillié, René,
Cairo, 131
129
Calderón de la Barca, Fanny, 292
Callao, 291 Camus, Albert, 353 Cannabis, 92, 101 Capital, Das (Marx), 74, 152 Caracas, 199, 204 Caribe, 28, 74, 134, 135, 171 Carlos IV, rei da Espanha, 206 Carpentier, Alejo, 332 “Carta sobre a insurreição popular em Cuenca” (La Condamine) 49 Carter, Ron, 32 Casement, Roger, 253 Cativo, O (Echeverria), 312, 314 Cenas de chegadas, 144 Centro Flora Tristan, Lima, 270 Cerro de Potosi, 225 Chile, 43, 254, 258, 268, 322 Chimborazo, Monte, 205, 307 Cholula, México, pirâmide em, 310 Chorrillos, 278 Churchill, 43 Ciência, autoridade da, 63, 157
381
" índice remissivo
Civilização e barbárie: a vida de Juan Facundo Quiroga (Sarmien-
Echeverria, Esteban, 12
Claas, empresário khoikhoi, 87
Egito, 66, 127, 208, 232, 382
to), 315, 318
Classificação, global; sistemas de, 68, 198 Cochrane, Charles Stuart, 255, 271 Cochrane, Lorde Thomas, 284 Coetzee, J. M.; sobre os hotentotes, 79, 88, 116
Colômbia, 296, 300
Colombo, Cristóvão, 299
Comentários reais dos Incas (de la Vega), 249
|
índice remissivo
>>
Comércio, 35, 71, 227, 242, 300 Companhia da Índia Oriental; Holandesa; Sueca, 85 Companhia Serra Leoa, 182 Concubinagem, sistema de, 172 Congo, 348, 349 Congresso Nacional Africano, 82 Conrad, Joseph, 353, 358 Considerações sobre os costumes deste século (Duclos), 72 Contacto, zonas de ; explicação do termo 12, 180, 238 Cook, James, 80, 134, 204 Copacabana, Virgem, de 227 Costa do Ouro, 372 Crioulos; consciência cívica dos; contacto com a Europa; estética, escritoras, 163, 198, 261, 300, 329 Cuba, 228, 310
Cuenca, Equador, 45
Culen Guma planta), 281 Curare, 49, 94, 200, 309 Curtin et alii, 78, 151 Cuzco, 26, 250, 291 Darwin, Charles, 196 Defoe, Daniel, 41, 74 Description de "Egypte (Humboldt), 208 Didion, Joan, 338, 361, 373 Dido e Enéas, 173
Disputa do Novo Mundo, A (Gerbi), 211 Dixie, Lady Florence, 292
Djukas, 165
Du Chailluy, Pierre, 348, 349, 351 Duclos, 72
[382
Educação estética da bumanidade, A (Schiller), 237 El Dorado, 49 El Salvador; Universidade de, 366, 372 Eneida, A, 38, 173 Ensaio político sobre a Ilha de Cuba (Humboldt), 227 Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha (umboldo, 208,
227
Ensaio sobre a geografia das plantas (Humboldi), 209 Equador, 42, 45, 310 Eriksson, Gunnar, 281, 284 Escravos, crueldade holandesa com os; assassinato de; e envenenamento; rebeliões, 168
Espaço/tempo, 138
Espanha; colônias americanas da, 46, 200, 222, 253 Euro-africanos, 95, 115 Exílio e o reino, O (Camus), 369 Expansionismo, 35, 108, 231 353
Exploração, do interior; científica, 25, 35, 133
Exploradora social, 275 Explorations and Adventures in Equatorial Africa (Explorações e
aventuras na África Equatorial) (Du Chaillu), 349
Fabian, Johannes, negação de contemporaneidade, 119 Falconbridge, Anna Maria; vida e obra, 182 Falconbridge, Lorde Alexander, 182 Familles des plantes (Adanson), 61 Fausto, o mito de, 331 Feminista, movimento, 187, 270
Feminotopias, 286
Filipe III, da Espanha, 25 Filipe V, da Espanha, 44 First-Time: The Historical Vision of an Afro-American People (Primeira vez: A visão histórica de um povo afro-americano) (Price), 180 Fish, rio, 95, 108 Forbes, Vernon, 77, 97 Forster, George, 238 Fossey, Dian, 349
Foucault, Michel, 61
índice remissivo Franco, Jean, 20, 257 Frederico II, da Prússia, 204
French and Indian Cruehty ... of Peter Williamson (Crueldade
francesa e índia ... de Peter Williamson) 155
Freyre de Jaimes, Carolina, 270 Frézier, M., 43, 54 Fussell, Paul, 366 Gabão, 353 Gamarra, Agustin, 285 Gamarra, Dona pencha, 291 Gâmbia, rio, 131 Gana, 359, 361 Garcilaso de la Vega, Inca, 249 Gaúchos, 317, 320, 327
Gauguin, Paul, 268 Geórgicas, As (Virgílio), 298 Gide, André, 358 Godin, Louis, 48, 46 Goethe, Johann Wolfgang, 332
Gómez de Avellaneda, Gertrudis, 295, 369
Gorilas, 349
Gorillas in the Mist (filme), 349
Gorriti, Juana Manuela, 329-330
Grà-Bretanha, expansão imperial; “espírito de aperfeiçoamento”,
46, 124
Graham, Maria Callcott; sobre a situação política; como Robinson Crusoé, como exploradora social; uso da narrativa pessoal por; visita ao jardim de repouso, 270 Graham, Thomas, 271 Grant, James, 345 Guaman Poma de Ayala, Felipe, 268 Guatemala, Cidade da, 358, 359
Guaiaquil, 307 Guia para o cego ambulante, 256 Guiana Francesa, 167
Hasselquist, 157 Hawkesworth, John, 159 Head, Francis Bond, 254, 265 Heart of Darkness (Conrad), 358
índice remissivo
Heredia, José Maria, 310, 311 Heródoto, 128
Hifenizados, Homens brancos, 353 Histoire naturelle, (Buffon) 61 História e descrição da África, (Leão, o africano) 129
História da Espanha, (Graham) 272 História e geografia do Novo Continente (Humboldo, 209 História natural, 28, 42, 96, 236 História das pirâmides de Quito (La Condamine), 47 Homossexualidade, 161, 205 Hoock-Demarle, Marie Claire, 275, 277 Hotentotes, consulte-se Khoikhoi, 86, 100
Houghton, Daniel, 131, 359
Hulme, Peter, 137, 173 Humanos, categorização dos, 68 Humboldt, Alexander von; morte; análise de; influência de; querelle dAmerique; como transculturador; viagens: escritos, 211212, 241 Hutton, Catherine, 188 Iluminismo, 72, 163 Imagens das cordilheiras... (Humboldt), 209, 211, 230
Imagens e monumentos... (Humboldt), 230, 231 Imagens da natureza (Humboldt), 209, 213
Incas, 33, 233 Índias Ocidentais, 163, 205
Inkle e Yarico, estória de, 175
Inocência primordial, 67
Interesting Narrative of tbe Life of Olaudah Equiano, The Unteressante relato da vida de Olaudab Equiano, O), 181 Inter-racial, estórias de amor, 164
Invocação à poesia (Bello), 298
Isert, Paul Erdman, 131, 171
Jardim do Éden, 67, 288
Jardin des Plantes, 208, 326 Jefferson, Thomas, 207 Jitrik, Noe, 253 Joana, a história de, 168, 171-174 Jordão, margem ocidental do, 74 Journal of the Discovery of the Source of the Nile (Diário da desco-
385
índice remissivo
índice remissivo
Livingstone, Dr., 23, 24, 80
berta da origem do Nilo) (Speke), 346, 347
Journal ofa Residence in Chile (Diário de uma estada no Chile)
London Missionary Society (Sociedade Missionária Londrina), 80, 125
(Graham), 268, 270, 271
Journal of a Residence in India (Diário de uma estada na Índia)
Lucas, Simon, 131
Luís XV, da França, 46
(Graham), 271
Journey from Buenos Ayres to Chile (Jornada de Buenos Aires ao Chile) (Andrews), 254, 255 Juagua, rio, 226 Juan, Jorge, 46, 201 Juan Fernandez, Ilhas, 289, 326 Juana, Ilha de, 221
Jussieu, Joseph de, 45, 50
Kaffirs, consulte-se Nguni, 81, 115 Kalahari, deserto de, 121 Khoikhoi (hotentotes); genitália; como eram vistos os; revolta, 80, 87, 109
Kingsley, Mary, 354
Kolb, Peter, discussão da obra de, 83, 92, 94 !Kung (bosquimanos); ataque aos; descrição dos; revolta, 95, 103, 118
La Condamine, Charles-Marie de; escritos de, 42,51 La Condamine, expedição, 42, 45, 51, 306
La Figure de la terre (Bouguer), 47
McCartney, Lorde George, 109
Magalhães, Fernão de, 63 Mandela, Nelson, 82
|
Mandingos, 132, 160
Manteiga, 86, 116 Maraquita, 259 Marin del Solar, Mercedes, 275 Marti, José, 323
Marx, Karl, 153 Mas-a-fuera, 324, 325
Matizes e diferenças (Carpentier), 333 Maupertius, Pierre, 42 Mauss, Marcel, 52
Mawe, John, 252, 257 Mensuração dos primeiros três graus do meridiano (La Condamine), 48, 49 Melgar, Mariano, 331 Memórias de Mama Blanca (Parra), 239
Devaneios do caminhante solitário (Rousseau), 106
La Plata, 118, 252
Memórias de província (Sarmiento), 318
Lady's Travels Round the World, A [Viagens de uma dama ao redor do mundo] (Pfeiffer), 292 Lake Regions of Central Africa (Regiões de lagos da África Central) (Burton), 340 Lapônia, 42 Leão, o Africano, 128 Le Vaillant, François, 160, 161 Ledyard, John, 131 Lee, Sarah, 188 Letters from India (Cartas da Índia) (Graham), 79, 271 Lima; mulheres em Lima, 256
Menem, Carlos, 315
Lindroth, Sten, 59
Lineu (Carl Linné); discípulos de; discussão da obra de, 56, 65, 106 Listowel, Dame Judith, 24 Literatura de sobrevivência, 29, 49, 156
Mephis, o proletário (Tristan), 270 México, 207, 220, 227, 311
Miers, John; cronogramas de, 48, 254, 255 Militar, organização, 73
Minas/mineração, 43-44, 252-265 Miranda, Francisco, 36, 199 Missão civilizatória, 31, 80, 276 Mollien, Gaspar, 259, 260 Monarca-de-tudo-o-que-vejo, 339, 340, 345 Montagu, Lady Mary, 287 Moravia, Alberto; discussão da obra de, 359, 361 “Mulher adúltera, A” (Camus), 369, 371 Mutis, José, 58, 207
387
índice remissivo
Napoleão Bonaparte, 109, 195, 203, 300 Narina, estória de, 57 Narrativa abreviada de uma viagem ao Pery (Bouguer), 47. Narrativa de concessão, 179
Narrativa pessoal (Humboldt), 195-196, 219, 225
Narrative of a Five Years' Expedition against the Revolted negroes of Surinam (Narrativa de uma expedição de cinco anos con-
tra os negros revoltosos do Suriname) (Stedman), 164 Narrative ofFour Voyages in the land of the Hoitentos and the Kaffirs (Narrativa de quatro viagens na terra dos botentotes e dos
kaffirs) (Paterson), 96
Narrative of Two Voyages to the River Sierra Leone (Narrativa de duas viagens ao rio Sierra Leone) (Falconbridge), 182-183 Naturalista, figura do, 69, 106 Natureza, sistematização da; primal, 47, 76, 139, 212 Negro, rio, 49 Nevadas, montanhas, 112 New York Times, 366, 375 New York Times Book Review, 366 Newton, Isaac, 42, 45 Nguni (kaffirs), 95, 109 Níger, rio, 127-131
Nilo, rio, 10, 339
nomenclatura , 56, 63 Noiva de Messina, A (Schiller), 237 Notícias secretas da América (Ulloa e Juan), 50 Nova Crônica e o Bom Governo e a Justiça (Guaman Poma), 25, 33 Odisséia, A, 173
Odonais, Godin des, 51 Odonais, Isabela Godin des, 46, 51-52
Old Patagonian Express, The [Velho expresso da Patagônia, O] (Theroux), 360, 365
O'Leary, Daniel, 254, 307 Order of Things, The (Foucault), 61 Orellana, 48 Orinoco, 36, 206 Ovalle, Alonso de, 44
Owen, John, 158 Panorama, conforme Moravia e Theroux; nos escritos vitorianos,
índice remissivo
92, 112, 129, 257
Paris, 27, 198, 202, 278, 326
Park, Mungo; e o incidente com o escravo; viagens de; discussão da obra de, 127, 132-142 Parra, Teresa de la, 239
Passeio em Londres (Tristan), 270
Passos perdidos, Os (Carpentier), 335 Patagônia, 68, 292
Paterson, William; discussão da obra, 79, 97, 107 People, revista, 375
Peregrinações de uma pária (Tristan), 267, 295 Peru, 10, 25, 206, 230 Pfeiffer, Ida, 292
Philosophia Botanica (Lineu), 56 Pietschmann, Richard, 25, 27 Pintor verbal, 341, 345 Pirâmides, 45, 67 Pisania, 127, 131 Pizarro, 206
Planetária, Consciência; explicação do termo; circunavegação; emergência; cartografia, 11, 29, 63, 79, 214
Pocahontas, 180 Polo, Marco, 221 Portal, Magda, 270
Poulantzas, Nicos, 75 Povos de “hábitos imundos”; indígenas; estereótipos dos; onde estão eles?, 99-101, 109-112, 120-124, 262, 265
Prata, rio da, 36 Presente, O (Mauss), 233 Price, Richard e Sally, 172, 180 Proctor, Robert, 258, 265 Que tribo você pertence”, A (Moravia), 359 Quichua ; canção, 27, 245
Quito, 42, 205
Raleigh, Sir Walter, 48, 220 Ramada, 138-139 Relato de viagem, como autobiografia; cenários domésticos da;
estetização da; como prática medíocre; estilos de, 139, 153, 160, 187, 1,70
seo]
índice remissivo
Rembwe, 355, 358
Repertorio Americano, revista, 296, 299 Retratos etnográficos, 100, 110
Revista de gramíneas (Humboldt, 209
Revolução Francesa, 74, 136, 239 Revolução Industrial, 73-74 Robben, ilha, 82 Robertson, John, 254 Robinson Crusoé, 289-290 Romantismo, 12, 217, 237
Roosevelt, Theodore, 29 Rough Notes of some Journeys across the Pampas and among the
Andes (Notas de algumas jornadas através dos pampas e entre os Andes) (Head), 254, 267
Rousseau, Jean Jacques, 106, 160, 161
Royal Geographical Society (Real Sociedade Geográfica), 154, 342 Saint Pierre, B. de, 238
Salvador (Didion), 372, 373
San Martín, general, 251, 300 Sancho, Ignatius, 130, 181 Santander, general Antonio, 254, 307 Santo Domingo; revolta dos escravos, 74, 135
Saramakas, 165 Sarmiento; como flaneur viagens ao exterior de; discussão da obra de, 12, 291, 315 Saugnier, viajante francês, 54
Schiller, Johann von, 236, 238 Segu, 132 Selkirk, Alexander, 289, 324
Senegâmbia, 131
Sentimental, estilo; nos escritos de Park; sexo e escravidão, 28-29, 137
Serra Leoa, 135, 182, 185 Serralho, cenas do, 148-149
Shamanism, Colonialism and the Wild man ... (Xamanismo, colo-
nialismo e o homem selvagem...) (Taussig), 246, 252
Shipwreck and Adventures ofMons. Pierre Viaud, The (Naufrágio e aventuras de Mons. Pierre Viaud, O), 159 “Silva” (Bello), 296-297 Sindicato dos Trabalhadores, França, 268 Sistema da natureza, O (Lineu); análise de, 41, 55, 94, 119, 217
]
índice remissivo
Situação atual do Cabo da Boa Esperança, A, 79, 83, 91
Sobre a necessidade de bem receber as mulheres estrangeiras (Tristan), 293
“Sobre estepes e desertos” (Humboldt), 214, 218 Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos, 131 Soweto, 74
Sparrman, Anders; chapéu infestado de insetos; e a viúva; discussão da obra de, 58, 71, 95, 104, 202 Species Plantaruam (Lineu), 56, 60 Speke, John Hanning, 342 Spivak, Gayatri, 28 Staaten, ilha, 117 Stafford, Barbara, 66, 70 Stanley, Henry Morton, 349, 353
Stedman, John; vida e obra, 117, 164-167 Sterne, Laurence, 165 Stevenson, W.B., 251-252
Stories ofStrange Lands and Fragmentsfrom the Notes ofa Travel ler (Estórias de terras estrangeiras efragmentos de anotações de um viajante) (Lee), 188-189 Suriname; e os escravos, 58, 135, 163-164
Tacarigua, lago, 214 Tanganica, lago, 340-341
Taussig, Michael, 246-247 Tenochtitlan, 232 Teocalli de Cholula, 310
Theroux, Paul, discussão da obra, 360-361
Three Months in the Hills of Rome (Três meses nas colinas de Roma) (Graham), 271 Timbuktu, 129, 132 Tinné, Alexandra, 354 Tiradentes, rebelião de, 241 Tour ofAfrica, The (Viagem através da África, A) (Hutton), 188 Trabalho, divisão do, 187 Tráfico de escravos; abolição do; ataque ao; em Cuba, 43, 74, 129, 182
Transculturação, explicação do termo, 30, 181 Travels into Different Parts of Europe (Viagens a diferentes partes da Europa) (Owen), 79, 158 Travels in the Interior Districis of Africa (Viagens nos distritos inte -
riores da África) (Park), análise de, 136
391
1 índice remissivo
> Travels in West Africa (Viagens na África Ocidental) (Kingsley), 354
Travels into the Interior ofSouthern Africa (Viagens ao interior da
Wanyamuezi, 345
Trípoli, 131
Washington Post, 191, 375 Wheatley, Phyllis, 180-181
África meridional) (Barrow); análise de, 79, 111
Tristan, Flora; e a crítica do gosto; sobre a partida de; vida e viagens; sobre a situação política; sobre a escravidão; uso da nar-
rativa pessoal por, 262, 267-268, 270, 275 Tristan, Pio, 269 Tupac Amaru, 233 Turner, James, 92 Ulloa, Antonio de, 44, 46, 49, 54, 206
White Writing: On the Culture of Letters in South Africa (Escrita branca: sobre a cultura letrada na África do Sul) (Coetzee), 79
Wilberforce, William, 131
Williamson, Peter, estória de, 156 Witte, Samuel, 66 Wollstonecraft, Mary, 292-293
Wright, Richard, 353, 367-368
Urenia, 299
Xerife de Edrissi, 130
USA Today, 375 Valparaíso, 272, 274, 282, 324 Vanguarda capitalista, 251, 255-257 Varon, Casimir, 161 Venezuela; mina de ouro na, 66, 199-201, 226
Zuure Veldt, 110, 139
Urquijo, Mariano de, 206
Vênus, 80
Viagem à América do Sul (Ulloa e Juan), 49, 221 Viagem ao cabo da Boa Esperança (Sparrman), 79, 96 Viagem ao Senegal (Adanson), 129 Viagens às regiões equinociais do Novo Continente... (Humboldo,
209
Viagens na Europa, África e América (Sarmiento), 323
Viagens na Guiné e ilhas caribenhas da América (Iser), 130
Viagens na República da Colômbia (Mollien), 259 Viagempela França, Uma (Tristan), 270
Vida no México, A (de la Barca), 292
Viha a la Mar, 282
Virgílio, 296, 298
Visão recíproca, 147, 149 Vitória, Rainha, 345-347, 362
Vitoriana, escrita, 340-342 Vitória Nyanza, lago, 345-347, 362
Von Plattenburg, 82
Voyage of HMS Blonde to the Sandwich Islands (Viagem do HMS Blonde às ilhas Sandwich) (Graham), 271 Voyage to Brazil (Viagem ao Brasil) (Graham), 268, 283
Voyages dans | interigur de ['Afrique (Le Vaillant), 160
392
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RIO DE JANEIRO
RuaSabará, 483 - Higienópolis
(atacado)
Jair Canizela
(011) 287-0688
Rua Cons. Ramalho, 692
01325-000 - São Paulo - SP
Rio de Janeiro Odisséia Distribuidora de Livros Geovanne Mazolli (021) 351-7432 Ay Bráz de Pina, 104-s. 503 21070-030 - Rio deJaneiro - RJ
Santa Maria
CESMA - Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria Télcio (055) 221-9165 RuaAstrogildo de Azevedo,68
97015-150 - Santa Maria - R$ Livraria da Editora UFSM Ronaldo Morales (055) 220-8115
Prédio da Biblioteca Central UESM- Campus - Camobi
97105-900 - Santa Maria - R$
São Leopoldo Editora da UNISINOS
Rosângela Gentillini (051) 5920335 Ay. Unisinos, 950
93022-000 - São Leopoldo - R$
GOIÁS Goiânia Livraria Alternativa
Gabriel ou Cila Maria
(062) 229-0107
(062) 212-1035 (fax) Rua 21, nº 61
Pelotas 74030-070 - Goiânia - GO EDUCAT - Editora da Univ. Católica Editora da Universidade de Pelotas Católica de Goiás Maria HelenaSilva Gisele (053) 284-8236 (062) 227-1080 RuaFélix da Cunha, 412 Av. Universitária, 1440 Cxpt 86 96010-000 - Pelotas - RS
Porto Alegre
Multilivro - Distribuidora & Livraria Lida Blásio H. Hickmann (051) 311-2109 Ay Oswaldo Aranha, 440, cj 101
90035-190 — Porto Alegre — R$ Editora da Univ. Federal do Rio Grande do Sul Geraldo ou Laerte (051) 224-882]
Ay. João Pessoa, 415 90040-000 - Porto Alegre - R$ DISTRITO FEDERAL Brasília Editora da Univ. de Brasília Mara Tânia ou Paulo Oliveira (061) 226-6874 SC. Qd 2, blC, nº 78
74210-000 Goiânia-GO
MINAS GERAIS
79002-233 - Campo Grande - MS MATO GROSSO Cuiabá DLP — Distribuidora de Livros Ltda. Maria Miranda (065) 624-5229 Av. Coronel Escolástico, 592 C 78010-200 - Cuiabá - MT ALAGOAS
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BAHIA
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Juiz de Fora Editora da Univ. Federal de Juiz de Fora Lucimar S. Bartels
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MATO GROSSO DO SUL
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A Casa do Livro de Brasília Lida (061) 224-3472/224-1378 SDS Edifício Venâncio VI lojas 3/9/13/17
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Moisés E de Mello (071) 329-0326 RuaDireita da Piedade, 203 40070-190 - Salvador - BA
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Feira de Santana Universidade Estadual de Feira de Santana Livraria InterUniversitária
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