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Portuguese Pages [257] Year 1999
Os Sons do Silêncio: o Portugal de Oitocentos e a Abolição do Tráfico de Escravos
João Pedro Marques
IMPRENSA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
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Nas citações das fontes primárias actualizei a ortografia e a pontuação dos originais. Nos casos, relativamente raros, em que fiz citações em segunda mão, conservei a transcrição da fonte utilizada. As notas de referência bibliográfica, ou de complemento do texto, foram inseridas em rodapé para facilitarem a consulta. Como é habitual, as citações bibliográficas fizeram-se de uma forma completa apenas na primeira referência. As obras que constam da bibliografia são apenas aquelas que foram efectivamente referidas e citadas no texto. Para uma biografia exaustiva de cada tema que compõe esta área de estudos — onde tanto tem sido escrito nas últimas décadas — podem consultar-se o livro de Joseph C. Miller, Slavery: a Worldwide Bibliography, 1900-1982, Kraus International, White Plains (N. Y.), 1985, e os suplementos bibliográficos anuais publicados desde 1983 na revista Slavery & Abolition. A fim de evitar mal entendidos, as aspas foram usadas exclusivamente para enquadrar citações devidamente referenciadas no texto. As palavras e expressões coevas utilizadas fora desse contexto surgirão em itálico.
ABREVIATURAS UTILIZADAS NO TEXTO:
Título: Os Sons do Silêncio: o Portugal de Oitocentos e a Abolição do Tráfico de Escravos
Edição: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. das Forças Armadas, Edifício ISCTE, Ala Sul — 1.º
1600-083 LISBOA — PORTUGAL Telef. 7995000 — Fax 7964953 URL:http://www2.ics.ul.pt Capa: João Segurado Coordenação técnica: Clara Cabral Composição e paginação: Celeste Pires Revisão: Soares de Almeida Impressão e acabamento: Tipografia Guerra — Viseu
ISBN 972-671-056-1 Depósito legal 140394/99 Data de edição: Setembro de 1999
AGM — Arquivo Geral de Marinha AHM — Arquivo Histórico Militar AHU — Arquivo Histórico Ultramarino AMNE — Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros ANTT — Arquivo Nacional da Torre do Tombo BN — Biblioteca Nacional de Lisboa BOGGPA — Boletim Official do Governo-Geral da Província de Angola DCD — Diário da Câmara dos Deputados DCP — Diário da Câmara dos Pares DG — Diário do Governo DL — Diário de Lisboa PRO — Public Record Office (Londres)
Índice AVESDOCINONtOS!.s
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Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos: do alheamento ao comprometimento político........iisisceii nn
29
1. A emergência do abolicionismo: das ideias aos actos.........iio: L1 Toleracionismo e abolicIOnismO sa dn id e d colEVes NedtaTcos 1.2;:As Drimentas abouÇÕES L c s d S ta ee ladaNde) ee s esaNdo e
30 30 49
2. Portugal um país atlheadO:: uAA AA dd pebo dA ooS a SSS fEN Çs
3
2.1. Factores de alheamento: censura e displicênCia........i%isaçaos ZDA Velha IdCOlODIa ESCEAVISTA o ssc STA RISSAN L RS LSVA TA LFECTASENTOS 2.3. O escravismo actualizado: a teoria do mal Menor........if[[ooo SNT 2.4. O toleracionisino é 0 SsIêncio! . a e AAAA dNA CeNaLNLoS
37 65 73 79
CAPÍTULO [
CAPÍTULO II Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista: do início da pressão inglesa à secessão brasileira.......ldcccscsciisiiis
91
1 A SNS DESSGIINCA: dress ctnerice aaa dNn S ta lal ds vedaaids 2. Tempo de cedências: de Viena à convenção de 1817 .sc 3. No terreno das ideias: a defesa do gradualisMO.......cisiiaçs 3.1. Uma história em dois tempos: à COntracção.......isciscsciiinçs
95 101 113 116
3.2. Uma história em dois tempos: a distensão.....iisisiiiiiiiiiiis
127
CAPÍTULO VI Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras ÁRTICAS P .s cccc
CAPÍTULO III Da
perda do Brasil às guerras liberais: as primeiras propostas abolicionistas e o regresso do SIlÊNCIO.......iiisciiienn
143
1. Remando contra a maré: os impasses da concertação abolicionista......... 2; Rumos do abolicionisto em Portugal...iutnsmancaestadmnesn NAA 21 Aquestão abolicionísta nãs COMES...uiusdosccsaret aaan 2.2. Persistências e adaptações do toleracioniSmMO........vcissisços 2.3. Um abolicionismo de inspiração inglesa........iisisineeas 2.4. O inconsistente abolicionismo de retaliação........iisieços
145 1553 187 164 173 182
Ls Iiapensido ANT emliiaens el ddch aaa ll Novos BEaSsiS teel dsc llc 12 O sepulero do eurOPOU suvc/semiedares TNENA Al 1.3. Monumentos:da nossa antiga glÓria..cusscasseasssssienanso E 2. Projectos coloniais goradoS........isssissssisisisss s Zl NTA CODINAIS! ese sesceemestuaea eel tee aaac DD 2s DEM DOMENS: cisacnanseiiasadaesS h SSS e
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3...As questões africanas nas (OFrtesS,..s.unsssticalE NSS TAA ,
439
COnClusõÕES su ss BIDIOBEAfIA:. .s ADEXOS
CAPÍTULO IV
193
VS PESsSSÕES & DEOCEIAMIEeNIDS: l te cA Sin astona o s aaaA AAAA SdAADAS 2. Q equivoco abolicionismo de SeteribrO.
Os sons do silêncio
que arranjaram tempo para ler alguns dos meus escritos, e à Aida Freudenthal, que me emprestou amavelmente o texto que lhe pedi (o que, como se sabe, nem toda a gente faz).
Françoise Aubin e Luís Filipe Thomaz estão, provavelmente sem o saberem, muito ligados a esta tese. Não apenas pela sua amizade e por tudo o que, ao longo do tempo, me tentaram ensinar sobre a construção da história, mas também porque, sem eles, a minha carreira de investigador não teria sequer começado. Estou grato, igualmente, a Serge Daget (infelizmente já falecido), David Eltis, Seymour Drescher e David Brion Davis, não apenas pela prontidão com que me enviaram os textos que lhes pedi — e que dificilmente obteria em Portugal —, mas também pelo facto de, à distância, terem acompanhado algumas fases do meu trabalho, comentando gentilmente as questões que lhes coloquei. Uma palavra é igualmente devida a Valentim Alexandre pela polémica que comigo travou nas páginas de Penélope. Se bem que, em mi-
nha opinião, essa polémica tenha resvalado frequentemente muito para lá dos limites aceitáveis (e, até, saudáveis), devo reconhecer que ela
teve alguns aspectos positivos, ajudando-me a fundamentar melhor as minhas interpretações. No âmbito do projecto «Mudança social e identidades culturais nas áreas da interacção histórica portuguesa», do Centro de Estudos Afri-
canos e Asiáticos do IICT, financiado pelo programa Praxis XXI, obtive os meios que me permitiram aceder à documentação do Public Record Office de Londres, importante para a elaboração da minha tese.
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Introdução Este livro reproduz, com pequenas alterações de pormenor e de uma forma ligeiramente abreviada, a minha dissertação de doutoramento.
Trata-se de um estudo sobre a abolição do tráfico de escravos em Portugal, cujo âmbito cronológico vai do final de Setecentos a meados da década de 1860, ou seja, do início do movimento político de contestação ao escravismo até à guerra civil norte-americana e ao encerramento dos mercados importadores cubanos, os dois acontecimentos que delimitaram a última fronteira do tráfico transatlântico. O meu fascínio pelo tema abolicionista remonta a 1988, época em
que ingressei no Instituto de Investigação Científica Tropical, e cresceu à medida que, aprofundando a história das instituições escravistas, me fui dando conta do carácter surpreendente das abolições, acontecimentos que, na minha ignorância inicial, me habituara a explicar de uma forma linear, economicamente determinada, e que agora me surgiam como fenómenos inesperados e complexos, envolvendo todas as esferas do humano. Mas o meu interesse pelo abolicionismo nasceu também de uma grande perplexidade pelo esquecimento a que o assunto foi votado em Portugal, um país que esteve extensamente envolvido no problema escravista e que, curiosamente, parece ter passado ao lado dessa parte da sua história. Por outras palavras, o que me atraiu no abolicionismo foi o seu carácter insólito; o que me empurrou para o estudo do processo abolicionista português foi a obscuridade que o cobria. O tráfico transatlântico da escravatura — uma vez que é dele que aqui se trata — desenvolveu-se quando a Era dos Descobrimentos permitiu o acesso simultâneo a uma África negra exportadora, ou potencialmente exportadora, de braços e a um Mundo Novo que deles care11
Introdução
Os sons do silêncio
cia. Entre os séculos Xv e xIX, transportaram-se mais de 11 milhões de
africanos para as colónias americanas e também para a Europa (ainda que em muito menor escala). O volume global desse transporte, a sua importância na formação do mundo Atlântico moderno, as condições penosas ou mesmo trágicas em que se efectuava, conferiram-lhe um lugar muito particular na nossa memória. Contudo, e quando visto numa perspectiva abrangente,
o comércio
negreiro não diferia radical-
mente de outros tráficos humanos que o Velho Mundo de há muito conhecia e se tinha habituado a aceitar sem protestos significativos. Não era sequer a primeira vez que se faziam transposições sistemáticas e continuadas de escravos a grande distância, ou, até, que a África se assumia como reservatório privilegiado de mão-de-obra. Relembre-se,
recuando apenas um ou dois séculos relativamente ao início dos descobrimentos portugueses, que o tráfico de escravos prosperava nas orlas do Mediterrâneo e do mar Negro, interessando fortemente Veneza,
Génova,
Barcelona,
e envolvendo
europeus,
asiáticos e os africanos
casos, haviam sido conseguidas não pela revolta sangrenta dos escravos mas, como dizia Tocqueville em 1843, pela «iluminada vontade dos senhores»?. Como motivo de estupefacção que foi e continua a ser, a «vontade dos senhores» tem constituído o problema central da historiografia do abolicionismo desde a obra pioneira de Thomas Clarksonºt. Passados quase dois séculos sobre a publicação desse livro, o debate sobre a origem, natureza e triunfo político da «vontade» abolicionista continua aberto e ainda centrado, fundamentalmente, na problemática da Grã-
-Bretanha, o que se justifica por ter sido essa nação que liderou o processo e que nele preserverou ao longo de todo o século XIX. Seja qual for a nossa perspectiva sobre a lógica profunda do acontecimento, quer o vejamos preferencialmente como um fruto de puras ideias ou de não tão puros interesses materiais (ou de ambas as coisas), a abolição do tráfico de escravos é, antes do mais, um território britânico. O que não quer dizer que o problema da «vontade dos senhores» se esgote nesse
que entravam no circuito através do mundo islâmico!. Relembre-se também que, pelas rotas do deserto, do mar Vermelho ou do Índico, os países muçulmanos importavam negros desde o século vIII, e a um ritmo
território. Ainda que com nuances e geralmente menos intensidade, ele diz respeito a todos os países da orla atlântica que possufam colónias
aparentemente
viveram os seus próprios processos abolicionistas durante o século XX — ou seja, interessa igualmente a Portugal. E foi precisamente o desejo de
constante?.
Porque
assim
era, porque,
para
além
de
escorado em fortes interesses políticos e económicos, o tráfico transa-
tlântico constituía apenas uma variante de formas de comércio extremamente antigas, disseminadas à escala planetária, firmemente sancio-
nadas pela lei, pela religião e pelo costume, poucos seriam os que, em meados de Setecentos, anteviam o seu fim. E, no entanto, algumas dé-
cadas depois, o tráfico tinha sido suprimido e a própria escravidão começava a desaparecer em consequência de uma série de medidas que o mundo ocidental decretara para si mesmo e impusera ao exterior. Esse conjunto de reformas antiescravistas apareceu aos olhos de muitos dos que as presenciaram como algo de verdadeiramente mila8roso, ou, numa perspectiva mais laica, como a fantástica demonstração de que o progresso permitia compatibilizar moralidade e interesse material. Para esses observadores oitocentistas, as abolições constitufam transformações tanto mais incríveis quanto, em quase todos os
ou traficavam em escravos e que, de forma mais ou menos induzida,
conhecer e compreender a «vontade» portuguesa e as forças que a te-
rão impelido num ou noutro sentido, a favor ou contra o fim do comércio negreiro, que me estimulou a desenvolver uma investigação específica nessa área ainda largamente por desbravar. A questão da «vontade dos senhores» — aliás, como qualquer ques-
tão relativa às instituições escravistas — nunca mereceu muita atenção por parte dos historiadores portugueses. De uma forma à primeira vista surpreendente, um país que foi pioneiro do tráfico transatlântico da escravatura e que administrou o Brasil e Angola, respectivamente os maiores importador e exportador de escravaria, ou deixou por muito tempo quase em branco essa página da sua história ou, o que é pior, preencheu-a com uma manipulação da verdade, com uma vulgata do processo abolicionista, assente numa versão construída a partir de um punhado de episódios, quase sempre os mesmos — Congresso de Viena,
! Cf. Charles Verlinden, L'esclavage dans 1'Europe Médiévale, De Temple, Brugge, 1955, e id., The Beginnings of Modern Colonization. Eleven Essays with An Introduction, Cornell University Press, Ithaca (N. Y.), 1970. ? Cf. Ralph A. Austen, «The Trans-Saharan slave trade: a tentative census», in H. Gemery e J. Hogendorn (eds.), The Uncommon Market. Essays in the Economic History of the Atlantic Slave Trade, Academic Press, Nova Iorque, 1979, pp. 23-76.
3 Alexis de Tocqueville, «On the emancipation of slaves» (1843), in Seymour Drescher (ed.), Tocqueville and Beaumont on Social Reform, Nova Iorque, 1968, p. 138. 4 Thomas Clarkson, History of the Rise, Progress, and Accomplishment of the Abolition of the African Slave Trade by the British Parliament, Londres, 1839 (1.º ed.: 1808).
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Os sons do silêncio
Introdução
decreto de 1836, bill Palmerston, caso da barca Charles et George —, e
talhados à medida para fornecer uma imagem edificante do zelo humanitarista português.
A coberto dessa imagem, o país reservou para si o papel mistificador de pioneiro do antiescravismo. Aqui e ali, surgiram algumas interpretações dissonantes que, acentuando o desinteresse dos Portugueses pelo assunto, circunscreviam o processo de abolição a uma luta pura-
mente pessoal, incompreendida e solitária, do visconde de Sá da Bandeira. Mas, se o mito da prioridade abolicionista portuguesa era uma completa distorção da verdade, a polarização da atenção na figura de um homem excepcional acabava por ter um efeito idêntico, porque, focando em exclusivo o ponto mais brilhante da história, tendia a criar a escuridão em seu redor. Dividida entre estas duas perspectivas, entre a distorção e a escuridão, a curiosidade historiográfica nacional satisfez-se geralmente com referências laterais, remetendo a questão abolicionista para um pequeno compartimento da história colonial ou diplomática do século XIX. Com a memória fixada em cinco ou seis episódios pré-seleccionados e na figura proeminente de Sá da Bandeira, os historiadores portugueses contentaram-se, por norma, em percorrer
uma
e outra
vez
a mesma
trama
narrativa,
como
quem
atravessa
apressadamente uma ponte que une margens mas ignora por completo as águas que sob ela correm. E, porque assim era, até meados da década de 1970, as mais seguras e detalhadas informações sobre o processo abolicionista em Portugal tinham de procurar-se em obras estrangeiras que tocavam tangencialmente o problema e que, geralmente, se haviam construído a partir de uma documentação exterior à sociedade portuguesa. Foi só a partir de 1974 que, graças aos trabalhos de José Capela e de Valentim Alexandre, a história da abolição do tráfico de escravos português começou a adquirir alguma espessura e sonoridade. Estes dois historiadores não terão produzido mais do que uma meia dúzia de tex-
tos onde abordaram, por vezes de um modo subsidiário, algumas facetas do problema antiescravista, mas essa pequena produção bastou, ainda assim, para enriquecer substancialmente o quadro de referência sobre o abolicionismo em Portugal e para estilhaçar vários dos mitos
3 De assinalar que, na década de 1960, Joaquim J. de Carvalho produziu uma muito aceitável tese de licenciatura sobre o assunto, que, infelizmente, não chegou a ser publicada: «L'abolition de la traite en Angola (1836-1845). Aspects législatifs et diplomatiques»,
Université Catholique de Louvain, 1964.
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construídos em seu redoró. Contudo, os trabalhos de Capela e de Alexandre não esclareceram decisivamente a questão da «vontade dos senhores», em boa parte porque não se debruçaram sobre a «vontade» em si mesma, tal como ela se terá manifestado por via da acção e da
palavra, da inacção e do silêncio significativos. Ainda que tenham prestado atenção aos aspectos activistas da política abolicionista e ao posicionamento de algumas personalidades mais marcantes, nenhum dos dois historiadores analisou detalhadamente aquilo que os Portugueses pensavam sobre o abolicionismo, possivelmente por não terem
descortinado motivo ou matéria suficiente para o fazer. O que, aliás, se entende. No período de 1970-1980,
tanto Capela
como Alexandre trabalhavam dentro do quadro conceptual do marxismo e concebiam a política abolicionista à maneira de Eric Williams,
principalmente como um subproduto do desenvolvimento económico. Relembre-se que, em Capitalism and Slavery, Williams explicara a abolição do tráfico de escravos em função da trajectória da economia imperial inglesa e dos interesses materiais de grupos de pressão no interior da sociedade britânica”. Essa tese é actualmente difícil de aceitar na sua formulação clássica, sobretudo depois do excelente trabalho de
demolição levado a cabo por Seymour Drescher8. Todavia, na época em
que Capela
e Alexandre
produziram
as primeiras
interpretações
sobre a lógica do processo abolicionista português, a obra de Williams constituía uma verdadeira ortodoxia e ambos perfilharam as suas con-
6 José Capela, Escravatura: a Empresa do Saque. O Abolicionismo, 1810-1875, Afrontamento, Porto, 1974; id., A Burguesia Mercantil do Porto e as Colónias (1834-1900), Afrontamento, Porto, 1975; id., As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura, Afrontamento, Porto, 1979; id., «Abolicion y abolicionismo en Portugal y sus colonias», in Francisco de Solano e Agustín Guimerá (eds.), Esclavitud y derechos humanos. La lucha por la libertad del negro en el siglo xtx, CSIC, Madrid, 1986, pp. 577-603; Valentim Alexandre, Origens do Colonialismo Português Moderno (1822-1891), Sá da Costa, Lisboa, 1979; id., «O liberalismo português e as colónias de África, 1820-1839», in
Análise Social, 16, 61-62, 1980, pp. 319-340; id., «Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-51)», in ibid., 26, 111, 1991, pp. 293-333. 7 Eric Williams, Capitalism and Slavery, Andre Deutsch, Londres, 1964 (1.º ed.: 1944). 8 Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition, University of Pittsburgh Press, Pittsburgh, 1977. Para o desenvolvimento e sistematização recente do debate, v. Seymour Drescher, «The decline thesis of British slavery since Econocide», e Selwyn Carrington, «The state of the debate on the role of capitalism in the ending of the slave trade», in H. Beckles e V. Shepherd (eds.), Caribbean Slave Society and Economy, Kingston, IRP, 1991, pp. 136-149 e 435-445, respectivamente; ver também Thomas Bender (ed.), The Antislavery Debate: Capitalism and Abolitionism as a Problem in Historical Interpretation, The University of California Press, Berkeley, 1992, e Seymour Drescher, «Capitalism and slavery after Fifty Years», in Slavery & Abolition, 18, 3, 1997, pp. 212-227. 15
Introdução
Os sons do silêncio
cepções básicas, ajustando-as ao caso em apreço. O que equivale a dizer que ambos procuraram explicar a movimentação portuguesa a respeito
riormente, viria a reformular essa sua interpretação inicial, deixando de insistir na ligação entre a lei de 1836 e os interesses africanos das bur-
da abolição a partir, fundamentalmente, dos interesses económicos em
guesias nacionais. No seu artigo de 1991, o abolicionismo era já encarado como uma extrema raridade na sociedade portuguesa!?. Mais recentemente ainda, e em resposta a algumas objecções que eu próprio levantei, Alexandre reconheceria a insustentabilidade da relação que
jogo. Os raciocínios que elaboraram com base nessa relação de causa-efeito eram semelhantes, e, se algumas das conclusões se opunham,
era porque a avaliação que faziam das condicionantes económicas era, também ela, oposta.
Assim, a divergência frontal dos dois historiadores quanto à inten-
procurara estabelecer entre o abolicionismo de Sá da Bandeira e os interesses das «classes dominantes»!3, Ou seja, a pouco e pouco, foi re-
mais de uma diferente ponderação do interesse das burguesias portu-
fluindo, nesse plano, para uma posição menos distante da de Capela. Contudo, esse reajustamento progressivo da perspectiva inicial abalou
guesas por África — que, de acordo com a teoria aceite, lhe deveria es-
a consistência da sua tese sobre o interesse das «classes dominantes»
tar subjacente — do que da identificação de um leque alargado de personagens ou de ideias que tivessem arrastado a «vontade dos senhores» num ou noutro sentido. Para Capela, o Portugal de 1836 seria uma sociedade bloqueada que não dispunha de uma burguesia industrial e onde, excepção feita a alguns espíritos mais lúcidos, ninguém estava interessado no filão africano; tratava-se, por conseguinte, de um país que nunca poderia gerar um abolicionismo genuíno, e, assim sendo, o decreto de 1836 não teria passado de uma «manobra» destinada a iludir as imposições inglesas e a preservar por mais algum tempo os interes-
por África — um aspecto a que voltarei adiante — e não se saldou por um ganho evidente ao nível do conhecimento das atitudes portuguesas
cionalidade do decreto abolicionista de Sá da Bandeira (1836) decorria
face à abolição do tráfico. Nessa área, Alexandre — como Capela, aliás —
ses das classes escravistas portuguesas”?. Para Alexandre, pelo contrário,
caracterizou basicamente pela negativa, insistindo na inexistência ou raridade do abolicionismo em Portugal, mas não preenchendo a lacuna que identificava. Assim, e excepção feita a alguns casos pontuais, o conhecimento histórico ficou-se pela constatação de um relativo vazio e a sociedade portuguesa foi perspectivada como uma entidade relativamente neutra, nem favorável nem adversa à abolição. Em conformidade, o abolicionismo acabou por ser explicado como algo que lhe era
quase todos os sectores da burguesia portuguesa estariam potencial-
relativamente alheio, como um processo que se revolvia nas altas esfe-:
mente interessados na exploração africana, e esse contexto explicaria
ir, num mesmo sentido pró-africano e pró-abolicionista. Mas, poste-
ras da diplomacia e da governação, que envolvia os Ingleses, alguns ministros portugueses e a gente recalcitrante das colónias, mas no qual a sociedade portuguesa pouco ou nada interviera. Essa caracterização espelhava aquilo que era mais evidente: o silêncio português a respeito da questão, ou seja, a pouca visibilidade de panfletos, livros e de um verdadeiro debate público sobre o assunto; reflectia também a inexistência de organizações abolicionistas ou antiabolicionistas vocacionadas para congregar em seu redor as eventuais opiniões da nação portuguesa. Contudo, na minha perspectiva, tratava-se de uma caracterização insatisfatória que, recorrendo a rótulos como «indiferença» ou «insensibilidade», deixava praticamente de fora o pensamento e o sentimento das camadas letradas portugueses a respeito das novas filantropias coloniais. E, porque os deixava de fora, não estava em condições de questionar o seu eventual papel no desen-
9 Capela, A Burguesia Mercantil ..., cit., pp. 11-13; ver também id., Escravatura ..., cit., pp. 181 e segs. e 231-232; id., As Burguesias Portuguesas ..., cit., pp. 209-210.
2 Id., «Portugal e a abolição ...», cit., pp. 301 e segs. 3 Id,, «Projecto colonial e abolicionismo», in Penélope, 14, 1994, p. 125; para o artigo
que, após a independência do Brasil, os governos liberais tivessem procurado abolir o tráfico de escravos, uma das «condições prévias necessárias ao reforço da presença económica portuguesa em África»!0: sem negar importância à pressão britânica, o autor recusou-lhe o estatuto de factor determinante na «vontade» abolicionista portuguesa e, simultaneamente, converteu o Sá da Bandeira de 1836 em proponente e executor de uma política que se fundava solidamente nos «interesses coloniais das classes dominantes»!!, Ao contrário de Capela, que perspectivava o decreto abolicionista de Sá da Bandeira como algo substancialmente desgarrado dos interesses e forças vitais do país, Alexandre pintava um cenário de convergência e de consenso nacional, com toda a gente a remar, ou a deixar-se
10 Alexandre, «O liberalismo ...», cit., p. 335. U Td., Origens ..., cit., pp. 14-21 e 45-46. 16
que suscitou o texto de Alexandre, ver João Pedro Marques, «Uma revisão crítica das teorias sobre a abolição do tráfico de escravos português», in ibid., em particular pp. 108-110.
1F
Introdução
Os sons do silêncio
rolar do processo abolicionista. Ora, a possibilidade de as elites políti-
dos Unidos.
cas e económicas, os publicistas e outros sectores da sociedade portuguesa, terem pesado no rumo dos acontecimentos, travando ou esti-
ideologias nunca deixou de constituir uma parte importante da historiografia do movimento antiescravista, mesmo na época em que as
mulando o fim do tráfico, tanto em 1836 como nas épocas anteriores e
conclusões de Williams, geralmente reconhecidas e aceites, tendiam a
posteriores, era algo que deveria ser seriamente considerado. A tese da
colocar as ideias numa posição de subalternidade explicativa relativamente aos mecanismos de natureza económica. Recorde-se que foi nesse período, já sob o império da tese materialista, que David Brion Davis produziu um estudo magistral, e ainda não ultrapassado, sobre a origem religiosa e filosófica do abolicionismo e o posicionamento da cultura ocidental face ao problema da escravidão!t. Todavia, nas duas
«indiferença» ou da «insensibilidade» generalizada dos Portugueses a respeito da abolição não podia aceitar-se sem reservas, já que, por razões puramente lógicas, parecia inconcebível que um processo que visava pôr fim a 400 anos de envolvimento e tolerância escravista e que se desenrolara no meio de pressões e conflitos internacionais tivesse laborado, em Portugal, num relativo deserto de ideias e de emoções.
É importante não perder de vista que em quase todos os países as atitudes oitocentistas acerca da abolição do tráfico de escravos não resultaram simplesmente de uma dialéctica interna, mas foram condicionadas também, ou sobretudo, por pressão externa. Ora, desde princípios do século XIX que os Ingleses confrontavam Portugal com o dilema da abolição; mesmo que o quisessem, mesmo que nenhuma força interior os impelisse a isso, os Portugueses não poderiam evitar reflectir sobre a questão. Em princípio, deveria ter existido, então, um pensamento português,
um conjunto de representações mentais, a respeito do abolicionismo. Seriam perspectivas escravistas? Seria um
abolicionismo pouco evi-
dente porque não popular e não militante? Tratar-se-ia de uma outra configuração ideológica que a nossa terminologia dicotómica escravismo/abolicionismo não permitia identificar com nitidez? Ou seria tudo isso em simultâneo e em diversas dosagens? Formulada nestes termos, a questão já não era a da irrelevância pública do abolicionismo em Portugal, mas a da identificação do que teria existido sob essa irrelevância, em vez de ou no lugar de um abolicionismo (ou antiabolicionismo) activo e franco. Dito de uma outra forma, a questão passa-
va a ser a da reconstrução dos quadros ideológicos produzidos em Portugal a respeito do problema da abolição do tráfico de escravos. Essa reconstrução aparecia-me como tarefa de apreciável importância, não apenas porque permitiria colmatar lacunas no nosso conhecimento do passado, mas também porque os mais recentes desenvolvimentos historiográficos apontavam insistentemente para o papel decisivo das ideologias na mudança de atitude dos povos ocidentais face ao problema do tráfico negreiro. As teorias que privilegiam as ideias como
factores explicativos do movimento abolicionista tiveram sempre uma grande relevância historiográfica, sobretudo em Inglaterra e nos Esta1R
De Thomas
Clarkson
até aos nossos dias, o estudo das
últimas décadas, com a demolição da tese de Williams, essa área de estudo redobrou de importância e muito do trabalho recentemente rea-
lizado tem ido, precisamente, no sentido de mostrar como uma convergência de ideias (económicas e não económicas) foi capaz de desenca-
dear a cruzada abolicionista e de permitir o seu triunfo. Reconhecida a importância da reconstrução dos quadros ideológicos, o problema passava a ser o da viabilidade da tarefa, uma vez que os discursos favoráveis ou contrários ao tráfico de escravos, não tendo assumido no Portugal de Oitocentos a evidência pública que tiveram nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, não estavam, regra geral, de-
vidamente localizados. De um ponto de vista historiográfico, a mais evidente característica da atitude portuguesa a respeito do problema: abolicionista era, até, o relativo silêncio, o que parecia obstar a qualquer veleidade reconstrutiva. Mas, a meu ver, era precipitado tomar o aparente laconismo da cultura portuguesa a respeito do tráfico de escravos como uma prova da irrelevância ou inconsistência do objecto de análise. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque, dada a natureza clandestina e moralmente anatemizada da prática escravista no século XIX, o silêncio prestava-se a diversas leituras, podendo corresponder não apenas a um alheamento asséptico, mas também a uma estratégia voluntariamente assumida por todos os que pretendiam a continuação do tráfico; estando o silêncio português potencialmente carregado de diferentes significados, nunca poderia ser liminarmente tomado como sinónimo de desinteresse ou de vazio. Em segundo lugar, porque, não sendo o conjunto de manifestações públicas a respeito do problema escravista,
de facto,
exuberante,
ele poderia
ainda
assim
ser muito
maior do que geralmente se julgava. Como admiti de início — e o estudo foi progressivamente confirmando -, a inexistência de um movi14 David B. Davis, The Problem of Slavery in Western Culture, Cornell University Press, Ithaca (N. Y.), 1966. 19
Os sons do silêncio
Introdução
mento abolicionista em Portugal não implicava necessariamente a ausência de ideias a respeito da questão, mas tão-só que a sua captação era muito mais trabalhosa, já que lidava com o difuso e com o esparso. No entanto, se fosse possível descortinar e reunir um número suficientemente alargado de efusões dos Portugueses a propósito da abolição
bitual. Tratou-se de um procedimento inevitável para dar conta daquilo que de outro modo não poderia ser captado senão de forma muito vaga. Como se verá adiante, grande parte da história das ideologias pró ou antiescravistas portuguesas gira precisamente em torno de uma posição intercalar, ambivalente, que o conceito novo de toleracionismo pretende
do comércio negreiro, seria, em princípio, igualmente possível dissipar
cobrir.
e descodificar o seu relativo silêncio. Foi essa a meta que me propus —
Virá a propósito assinalar que, por razões que adiante largamente se explicarão, e que têm sobretudo que ver com a dualidade da palavra escravatura na língua portuguesa, essa palavra será utilizada neste tra-
e daí o título que escolhi. Tanto a meta como o caminho a percorrer eram, em larga medida,
novos. Num livro muito recente, que é uma versão revista da sua tese de doutoramento, também Maria do Rosário Pimentel procurou estudar
os pensamentos escravista e antiescravísta portugueses, dos séculos XVI a XIX!5, Na obra, que evidencia um notável esforço de pesquisa, a autora fez, sobretudo, a identificação das vozes que, de um modo ou de outro,
abordaram
o
tema
escravista,
e expô-las
generosamente
em
transcrições ou resumos de cada pensamento considerado. O seu estudo catalogou
muitas referências ao assunto, feitas em livros, cartas,
alguns jornais, mas não entrou profundamente no século XIX nem na análise ideológica. Ora, o que a mim me preocupou foi, não tanto a descrição dos vários discursos individuais, mas a reconstrução dos sistemas de representações mentais subjacentes a cada um deles, bem
como a persistência, mudança ou extinção desses sistemas no decurso do tempo e em função dos acontecimentos das esferas política, económica ou social. Esse interesse pela desmontagem do discurso produzi-
balho não na acepção que a nossa linguagem
vulgar geralmente lhe
atribui, mas no sentido inespecífico, globalizante, que tinha nos séculos XVIII e XIX. O termo escravatura reportar-se-á, portanto, ao sistema escravista no seu conjunto, englobando tudo o que diz respeito ao trá-
fico de escravos e à escravidão.
:
Na medida em que o estudo das ideias foi considerado nuclear para a compreensão da posição portuguesa face ao problema da abolição do tráfico, esse estudo constituiu o itinerário principal deste livro. Mas não o único. Como referi logo no início desta introdução, o propósito último do meu trabalho foi o esclarecimento da «vontade», abolicionista ou não, do Portugal de Oitocentos. O que significa que a par das
ideias procurei considerar, sempre, a prática, o problema das acções e das inacções. E não o fiz apenas por uma questão de contextualização, porque as práticas condicionassem a produção de ideias, mas porque admiti que as acções eram em si mesmas manifestações de valores, e
do a respeito do tráfico de escravos já me havia levado, no início desta década, a realizar um trabalho exploratório sobre o abolicionismo na
que a «vontade» dos parlamentares, dos ministros, dos governadores
imprensa portuguesa!ó, Em certa medida, este livro pode ser visto como o amadurecimento e o prolongamento de perspectivas que aí apenas se esboçaram. À medida que a investigação e o trabalho de reconstrução ideológica foram avançando, apercebi-me de que a grelha conceptual de que partira era manifestamente curta e vi-me forçado a modificá-la. A introdução de novos conceitos obrigou, por vezes, à redefinição de alguns dos antigos, como foi nomeadamente o caso de abolicionismo, que aqui terá um significado muito preciso e mais estrito do que é ha-
Ao nível da incipiente historiografia do abolicionismo português, as práticas tinham sido bem mais estudadas do que as ideias. Isso era particularmente verdade no que se referia à actividade legislativa e diplomática, a que, tradicionalmente, se prestara alguma atenção. Mas existiam vertentes da acção pouco ou nada tocadas pela investigação anterior e que deviam ser necessariamente exploradas se se visava um
coloniais e de outras autoridades portuguesas se encontrava tanto no que diziam como no que faziam (ou não faziam).
conhecimento
mais amplo das atitudes portuguesas face ao abolicio-
nismo. Era, nomeadamente, o que acontecia com o problema da supressão, isto é, com a questão do combate ao tráfico de escravos levado
15 Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências. Época Moderna, ed. Colibri, Lisboa, 1995.
A Escravatura na
16 João Pedro Marques, «A abolição do tráfico de escravos na imprensa portuguesa (1810-1840)», pp. 7-30.
in Revista
Internacional
de Estudos TIN
Africanos,
16-17,
1992-1994,
a cabo pela marinha de guerra portuguesa e outras instituições policiais, que ainda não fora sistematicamente estudado. Ou o que sucedia com a reverberação da questão abolicionista ao nível das Cortes portuguesas, quase inteiramente por cartografar, desde a identificação 1
Os sons do silêncio
Introdução
dos paladinos da abolição e seus adversários, até à definição dos momentos de confronto e das manobras políticas de que se serviram para fazer valer os seus propósitos. A par dessas e de outras vertentes quase
intocadas subsistiam alguns problemas que, tendo sido já tratados, necessitavam de uma reequacionação ou aprofundamento. Nenhum historiador é obrigado a encerrar precocemente as questões; pelo contrário, deve procurar levá-las tão longe quanto possível porque o progresso da explicação histórica depende, substancialmente, do aprofundamento do
inquérito!7, Foi a partir dessa perspectiva epistemológica que considerei, tal como já havia feito a propósito da questão da raridade do abolicionismo, que a explicação de vários momentos da actuação pró ou antiabolicionista em Portugal não devia ficar no nível em que a inves-
tigação anterior a deixara. O principal problema — se bem que não o único — dizia respeito à política abolicionista ensaiada por Sá da Bandeira na segunda metade da década de 1830 e ao insucesso dessa política. Nessa área, e uma vez
que Capela negara a existência de qualquer «vontade» abolicionista portuguesa, o que estava em causa eram as interpretações propostas por Alexandre, autor que vira no decreto de 1836 a assunção de uma «vontade» abolicionista clara e convergente com os projectos africanos das «classes dominantes».
Ora, a ser assim, tratava-se de compreender
por que razão Sá teria sido incapaz de fazer executar a lei, e por que motivo entrara em rota de colisão com a Inglaterra, recusando assinar
um tratado que contribuiria para a concretização da suposta «vontade»
a dois homens excepcionais: Palmela e Sá da Bandeira. Mas, porque concebia a sociedade portuguesa como uma entidade relativamente neutra que não impulsionara nem obstaculizara a abolição do tráfico, continuou a explicar o fracasso do decreto e a resistência à conclusão
do tratado com a Gráã-Bretanha a partir de uma rede de dificuldades externas
e de carências
e mal-entendidos
internos!?.
Ora,
essa
inter-
pretação sobre a movimentação contraditória de Sá da Bandeira e sobre o fracasso do seu abolicionismo não era, a meu ver, inteiramente
convincente. Comportava várias zonas cinzentas e tendia a explicar o desaire mais pelas circunstâncias exteriores do que pelas convicções e deliberações dos legisladores. Havia, portanto, que aprofundar os as-
pectos interiores da questão: assinalar a resistência das colónias ao decreto de 1836, mas estudar, em paralelo, as eventuais resistências metropolitanas que poderiam ter influenciado a movimentação política de Sá; reconhecer a debilidade de meios financeiros ou materiais para
aplicação do decreto de 1836, mas explicar, simultaneamente, que forças teriam impedido que esses débeis meios tivessem ainda assim sido utilizados (ou só o tivessem sido tardiamente).
Tornou-se igualmente necessário repensar toda a questão do interesse das burguesias portuguesas por África, algo que Alexandre reafirmou mesmo quando reconheceu a extrema raridade do abolicionismo na sociedade portuguesa. Para justificar essa discrepância evidente : — que fragilizava a sua tese sobre a importância das colónias africanas na vida do Portugal liberal —, o autor recorreu a um argumento do foro cognitivo afirmando que as elites políticas e económicas do Portugal
abolicionista portuguesa. Alexandre já tinha oferecido algumas explicações para esse trajecto surpreendente. De início, e para dar conta do que, à luz da sua tese, constituía um fracasso paradoxal, isto é, a total incapacidade de um
de 1830-1840 apoiavam o projecto colonial em África mas não compreendiam que a implantação desse projecto passava pela extinção do tráfico negreiro?º. No entanto, e uma vez que não explicou esse pecu-
país fortemente interessado nas colónias africanas em impor a sua
liar fenómeno de incompreensão de burguesias simultaneamente inte-
«vontade» e aplicar a sua própria legislação abolicionista, o autor re-
ressadas em África e desinteressadas da abolição do tráfico, o seu ar-
correra a argumentos circunstanciais — o estado de guerra civil, a exal-
gumento levantava inevitavelmente uma série de interrogações. Seria essa suposta incompreensão um problema ideológico, cuja natureza ficaria esclarecida com a reconstrução dos respectivos quadros? Signi-
tação nacionalista, as debilidades financeiras do Estado português, e,
sobretudo, as resistências que o decreto de 1836 suscitava no ultramar — que, justificando esse fracasso, não punham em causa a sugerida «vontade»!8, Posteriormente, e como já se referiu, Alexandre matizou
a sua posição inicial, restringindo a verdadeira «vontade» abolicionista
ficaria que um dos termos da equação explicativa de Alexandre estava
errado, não sendo o abolicionismo tão diminuto, ou o interesse por África tão universal, quanto julgava? Poderia tratar-se da conjugação de tudo isso? A resposta a essas questões passava necessariamente pela
17 Paul Veyne,
Comment on écrit L'histoire. Éssai d 'épistêmologie,
ed. du Seuil, Paris,
1971 (trad. espanhola de Mariano M. Alonso, Como se escribe la historia. epistemologia, Fragua, Madrid, 1972, pp. 123-124 e 128-129).
18 Alexandre, Origens ..., cit., p. 46, e «O liberalismo ...», cit., p. 338. )
Ensayo
de
1À Id., «Portugal e a abolição ...», cit., p. 302. 20 Id., «Projecto colonial ...», cit., p. 125. a
Introdução
Os sons do silêncio
verificação do real interesse das burguesias portuguesas pelas colónias africanas. A necessidade de estudar ideias e actos obrigou-me a trabalhar um
leque muito amplo e diversificado de fontes. Tendencialmente, e no que se refere ao estudo dos quadros ideológicos, procurei analisar tudo quanto tivesse sido escrito no Portugal da época sobre a questão abolicionista, da legislação à literatura de ficção, dos livros e panfletos específicos à oratória parlamentar e, sobretudo, à imprensa periódica. Pelo gigantesco volume documental que forneciam, mas também pela frequência, curta, com que o forneciam, os jornais acabaram por cons-
tituir a principal estrada de acesso às correntes de opinião existentes na sociedade portuguesa. A gigantesca colecção da Biblioteca Nacional foi percorrida exaustivamente até 1851, data em que o problema do comércio negreiro perdeu importância com o fecho dos mercados im-
portadores brasileiros; de 1851 em diante, o estudo ficou limitado a alguns títulos seleccionados, escolhidos em função da sua especificidade ou relevância editorial. A imprensa foi, simultaneamente, uma fonte para o estudo das ideias e para a explicitação das práticas e processos políticos que levaram à abolição do tráfico de escravos em Portugal. Tal como o foi a enorme colecção de Diários parlamentares, documentação exaustivamente analisada desde a sua criação, no início da década de 1820, até meados da década de 1860. Devido a alguma irregularidade na sua publicação (sobretudo a do Diário da Câmara dos Pares), períodos hou-
ve em que as sessões das Cortes tiveram de ser seguidas no Diário do Governo (depois, Diário de Lisboa), o que acabou por introduzir uma pequena limitação analítica, na medida em que essas publicações nem sempre transcreviam as intervenções dos oradores na íntegra. Mas, como é natural, o estudo do processo político e diplomático assentou principalmente na documentação do ministério dos Negócios Estrangeiros existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e no arquivo do próprio ministério, nos papéis de Sá da Bandeira, que se encontram nos Arquivo Histórico Militar e Arquivo Histórico Ultramarino, e na documentação específica do Arquivo Geral de Marinha e da Biblioteca
ce (série Foreign Office 84) como forma de complementar a informação já recolhida nos manuscritos portugueses. Uma parte dessa documentação já existia nos arquivos de Lisboa, porque fora em devido tempo enviada para os embaixadores e ministros portugueses. Uma outra parte, relativa à grande polémica de 1836-1840, havia sido tradu-
zida e publicada em Portugal (se bem que nem sempre em versão integral). Num caso como no outro, e atendendo à duplicação dos documentos, utilizei preferencialmente a versão portuguesa dos mesmos.
Existia ainda uma terceira parte, mais substancial, que respeitava à correspondência trocada entre várias autoridades britânicas e que se revelou muito fértil porque permitiu perspectivar a «vontade» portuguesa a partir do lado de fora, tal como foi vista e sentida pelos Ingleses. Do trabalho realizado sobre essa extensa documentação resultou um texto voluntariamente próximo do documento. Essa proximidade justifica-se por dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, porque a explicitação do passado se revelava absolutamente imprescindível quando, como era o caso, se lidava com uma problemática geralmente silenciada ou desconhecida. Em segundo lugar, porque a proximidade
do documento introduz no labor de escrever história uma saudável disciplina que impede o historiador de imaginar os factos à luz dos seus desejos e projecções, ou de os referir sem os ter estudado escrupulo-
samente?!, Como não podia deixar de ser, a intenção explicitativa e, autodisciplinadora teve consequências quanto ao tipo de história que tentei produzir. Porque lidava simultaneamente com práticas e ideias, porque se pretendia próxima do documento mas não apenas descritiva, trata-se de uma história de registo duplo. A um primeiro nível procurei privilegiar a informação e, uma vez que a narrativa numa ordem cronológica pareceu a melhor forma de dar conta, com o necessário detalhe, das ideias, das políticas e até dos interesses pró ou antiescravistas do Portugal de Oitocentos, ela constituiu a matriz de base do livro. Sobre essa matriz procurei articular, depois, uma história que, passando a um outro nível, buscasse sobretudo a explicação.
Para terminar esta introdução restará tecer algumas breves conside-
(reservados). Privilegiei muito naturalmente os documentos
rações acerca da lógica expositiva a que este texto obedeceu. O processo abolicionista português é facilmente periodizável. Momentos como
que diziam respeito ao combate ao tráfico e os que interessavam às relações luso-britânicas. Sempre que necessário, investiguei muito pontualmente as correspondências trocadas com as legações de outros
o início da pressão política inglesa, a perda do Brasil, o esmorecimento do tráfico transatlântico de escravos devido ao fim da importação brasileira, marcam articulações nítidas entre períodos caracterizados por
Nacional
países e outros fundos documentais (como o da Academia das Ciências
de Lisboa e da Associação Comercial de Lisboa). Para o período de 1820-1850, utilizei igualmente a documentação do Public Record Offi214
2l Raymond Aron, «Comment !'historien écrit Vépistémologie: Paul Veyne», in Annales, 26, 1971, p. 1332. *
a propos du livre de
Introdução
Os sons do silêncio
problemáticas e metas abolicionistas diferentes. Assim, a narrativa procurou seguir essas etapas cronológicas, conciliando-as na medida do possível com as principais fases da história política portuguesa.
O capítulo 1 incidiu sobre os últimos anos de Setecentos e o princípio de Oitocentos — a fase em que o abolicionismo ainda era um problema exterior a Portugal —, e nele procurei definir com um mínimo de nitidez a rede de ideias e de concretizações políticas que, no exterior, iam levando à abolição do tráfico de escravos. Aliás, e atendendo precisamente aos aspectos internacionais do problema, todos os capítulos procuraram fazer, ainda que de uma forma geralmente sucinta, um ponto da situação quanto a metas, obstáculos e resultados da acção su-
pressora em cada uma das etapas da luta contra o comércio negreiro. No capítulo inicial essa abordagem foi um pouco mais alargada, de molde a proporcionar os elementos indispensáveis à compreensão de todo o processo subsequente. Feita a abordagem introdutória, a segunda parte do capítulo ponderou o distanciamento português relativa-
mente a uma problemática carregada de implicações para a vida do império euro-afro-brasileiro, para posteriormente, e visto que distan-
ciamento não implica vazio de ideias, estudar os sistemas de referência existentes no país a respeito do tráfico e da sua abolição. Os capítulos 11 e I1I cobriram o período de 1811 a 1834, grosso modo do início da acção policial britânica contra os navios negreiros portugueses até à convenção
de Évora-Monte,
Lisboa — muito em especial a dos governos setembristas — face à pressão britânica, tentando correlacioná-la com as correntes de pensamento e os interesses políticos que então cruzavam a sociedade
portuguesa, e que se manifestaram profusamente tanto na imprensa como nas Cortes. O capítulo v estudou o período que vai de 1842 até ao fecho dos mercados
importadores
cubanos,
tendo
articulação
o ano
de
radeira do comércio negreiro, bem como os desaires e os triunfos da luta antitráfico, e estudou a acção abolicionista portuguesa nesse con-
texto, procurando mostrar a importância que a noção de honra nacional assumiu enquanto motor dessa acção. Por fim, no capítulo vI, quebrou-se a sequência cronológica para
procurar inquirir da relevância assumida pela África na vida e no imaginário do Portugal liberal de 1820 a 1865, tentando descortinar eventuais nexos entre essa relevância e as atitudes portuguesas face à abolição do tráfico negreiro.
passando pela revolução
liberal de 1820 e pela secessão brasileira. Neles, tendo sempre como pano de fundo a pressão abolicionista britânica, procurei esclarecer as formas de resistência portuguesa a essa pressão, os pontos de fricção e de cedência. Uma vez definido esse quadro histórico de referência, os
dois capítulos estudaram a evolução que as várias correntes ideológicas sofreram nesse período, desde a emergência de uma defesa universal do gradualismo até ao novo esquecimento e adormecimento da problemática, no final da década de 1820. O capítulo IV constituiu o núcleo central do trabalho, tanto pela sua
dimensão física como por dizer respeito ao período mais polémico e documentalmente mais rico da história do processo abolicionista português. Debruçou-se sobre a época 1834-1842, época convulsiva da tentativa de sedimentação do regime liberal, da revolução de Setembro e da restauração da Carta, e que, na esfera abolicionista, assistiu ao incremento da pressão inglesa, à publicação do decreto de Sá da Bandeira, ao bill de Palmerston e, por fim, à conclusão do muito aguardado
tratado abolicionista anglo-português. Ao longo de todo o capítulo segui de uma forma muito detalhada a trajectória dos vários governos de 26
como
1851, que corresponde ao expirar do tráfico transatlântico brasileiro e ao triunfo da Regeneração em Portugal. Obedecendo ao modelo explicitativo sempre seguido, o capítulo começou por sintetizar a fase der-
27
Capítulo I
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos: do alheamento
ao comprometimento político
Não obstante o que afirma uma antiga tradição de índole patriótica, Portugal não foi um pioneiro no combate ao tráfico de escravos. Foi,
bem ao lição do durante tário às
invés, um dos países ocidentais que mais tarde decretou a aboodioso comércio — como passou a ser referido — e um dos que mais tempo permaneceu maioritariamente estanque ou refracideologias e políticas abolicionistas. A história dessas resistên-
cias e fechamentos, diferentes épocas, balho (tal como o nismo). Mas, para
a variação da forma e dimensão que assumiram em será extensamente cartografada ao longo deste traserão, também, as aberturas e adesões ao abolicioque essa cartografia adquira o seu verdadeiro signi-
ficado, o processo abolicionista português deve ser inserido num contexto mais amplo. Convirá não esquecer que em 1810, o ano em que Portugal assumiu a contragosto um primeiro compromisso para acabar com o comércio negreiro num futuro ainda indefínido, o impulso abolicionista tinha já um passado e era portador de uma dinâmica que adquirira grande relevância no exterior, sobretudo na Grã-Bretanha. Torna-se imprescindível, então, iniciar este estudo pela evocação das ideias e das primeiras conquistas políticas do movimento abolicionista, 29
Os sons do silêncio
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
não só como forma de relembrar as suas génese e Pujança na transição
d.e Setecentps para Oitocentos, mas também, e sobret udo, para melhor situar a posição portuguesa relativamente a ele.
1. A emergência do abolicionismo: das ideias aos actos Me.smf) para um observador atento, o súbito eclodir do entusiasmo
abolicionista na Grã-Bretanha de finais de Setecentos não poderia deixar de constituir um fenómeno algo inesperado, quase explosivo na rapidez com que se desenvolveu. Como referia em 1792 o embaixador português em Londres, a «benevolência universal» sobrep unha-se surpreendentemente ao interesse material e o partido dos que exigiam o fim do tráfico de escravos crescia «com uma rapidez que não era de pressupor»!. Não que a aversão ao escravismo constituísse em si mesma uma novidade. Mas a dimensão que essa aversão ia assum indo nos
Aqui e ali trouxera a figura do escravo negro para o âmago da novela moralista, do drama teatral e da poesia. O número de romances e poemas que evocavam especificamente o sofrimento africano crescera consideravelmente no decurso de Setecentos e algumas dessas obras obtiveram uma apreciável difusão. A lenda seiscentista de Inkle e Yarico, por exemplo, uma história que tratava da ingratidão de um marinheiro eu-
ropeu para com a índia que o salvara de um naufrágio, e que ele posteriormente venderia como escrava, fora apropriada por um ainda vago sentimento antiescravista inglês, traduzida para oito línguas diferentes e acabaria por inspirar cerca de quarenta histórias análogas. Significativamente, a partir do primeiro terço do século, a infeliz Yarico começara a ser representada como uma virgem negra e o palco da história, inicialmente confinado à ilha de Barbados, estendera-se à África e à Jamaica, pólos clássicos do itinerário negreiro?. Mais dirigida ao sentimento do que à razão, a imaginação literária ia construindo pontes de simpatia entre as culturas europeia e africana e, através delas, o euro-
ultlmos.apos do século XvIII, a amplitude e direcção das transforma-
peu podia rever-se no calvário do escravo. Na Era da Sensibilidade,
não ape:n'fis o sistema escravista inglês mas todos os outros, constituíam
por exemplo, em Candide* — podia levar o leitor a indignar-se com a
ções ex1g1das,.a faceta de cruzada religiosa que ameaçava submergir
mesmo uma alusão fugaz aos horrores da escravidão — como acontecia,
sem dúvida um conjunto de modificações relativament e bruscas e preocupantes para as demais nações coloniais. Ora, esse conjunto de modificações começara a perfilar-se apenas no último quartel de Sete-
violência do sistema escravista. Acrescente-se que cada vez mais gente
centos, ainda que as suas raízes estivessem claramente mais atrás.
como acontecia, por exemplo, com Oroonoko, uma história supostamente verídica de um príncipe africano que acabara os seus dias no Suriname, e que subiria à cena quase todos os anos durante o século
1.1. Toleracionismo e abolicionismo
XVIIP.
Dçsde inícios do século XvIII, pelo menos, que a literatura de ficção contrlpuía para o desenvolvimento dos sentimentos de aversã o ao tráfico e à escravidão. Prestando homenagem ao culto da sensibilidade novelistas e poetas tinham ajudado a construir um tipo de homem ca—, paz de empatizar com o sofrimento humano?. Mas a literatura sentimental não se contentara em desenvolver as noções de sensibilidade e
de benevolência (e de felicidade, decorrente do exercí cio desta última). à
l
.
.
.
71O.p Cipriano R. Fr eire a Luísí de Sousa Coutinho, i 4 de Abrili de 1792, ANTT,
? Para uma definiçã : ção
MNE,
aprendia a ler e que o raio de acção da novela junto de um público
mais heterogéneo era, ainda, alargado por via de adaptações teatrais,
Também nos textos dos mais influentes filósofos do tempo se podiam encontrar vários ataques à escravidão. Muita da filosofia da época ia no sentido do reforço dos direitos civis e políticos, da afirmação da ideia de liberdade como direito natural, inalienável, e, consequen-
temente, sapava a ideia de escravidão. Mas, para além disso, e de uma forma mais específica, mais dirigida, alguns pensadores iam realizando um apreciável trabalho de demolição dos argumentos lógicos que ser3 Wylie Sypher, Guinea's Captive Kings. British Anti-Slavery Literature of the Eighteenth Century, Chappel Hill, 1942, pp. 109-116 e 122 e segs.; Roger Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, 1760-1810, MacMillan Press, Londres, 1975, pp. 145-
-146.
do tipo i humano ) que Henry MacKenzie imortalizou no ro The Man of Feeling (1771), ver David B. Davis, The Problem of Slavery in the Ã;ln(;; Revolution, 1770-1823 , Cornell Univers aa i i ity Press, Ithaca (N. Y.) e Londres, 1975,
4 François-Marie de Voltaire, Candide, ou l'optimisme, Paris, 1759, pp. 59-61. 3 Aphra Behn, «Oroonoko: the Royal Slave», in E. A. Baker (ed.), The Novels of Mrs. Aphra Behn, Londres, 1905 (1.º ed.: 1688), pp. 1-81; Sypher, ob. cit., pp. 109-110 e 116; Anstey, ob. cit., pp. 146-147.
30
31
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
viam para justificar o tráfico e a escravidão do negro. Assim, ao velho
xava campo
postulado de que o escravo, como prisioneiro de guerra, seria executado em África caso não fosse comprado pelos negreiros ocidentais — acção
O racionalismo setecentista, por seu lado, só muito raramente conseguia despir-se de um certo grau de ambivalência a respeito da escravidão
que, supostamente, daria ao comprador o direito de fazer dessa vida resgatada o que muito bem entendesse —, respondia Hutcheson, por exemplo, que também na Europa os homens deviam as suas vidas a
do negro. Se a Histoire philosophique do abade Raynal constituía um
parteiras, cirurgiões,
camaradas
de armas ou vizinhos,
sem
que isso
permitisse estabelecer qualquer relação de dependência ou de propriedade entre salvador e salvado”. Numa época em que o transporte de africanos para as Américas atingia níveis nunca vistos, o sistema escravista era igualmente contestado em várias obras de economia política. À ideia tradicionalmente aceite de que a mão-de-obra escrava constituía a forma mais barata de
explorar economicamente as colónias americanas, contrapunha Adam Smith a noção de trabalho escravo dispendioso e pouco eficiente, uma
vez que o trabalhador nunca poderia ter incentivos para produzir: «a person who can acquire no property, can have no other interest but to eat as much as possible, and to labour as little as possible»7. A tese
aberto para várias interpretações pró e antiescravistas.
manifesto antiescravista radical que clamava por um Espártaco negro, muita da argumentação dos pensadores do tempo era bem menos acutilante, acabando por deixar espaço para uma defesa das instituições escravistas em termos de puro circunstancialismo ou do interesse público?º. O próprio Montesquieu reforçara involuntariamente os argumentos escravistas ao considerar que a escravidão podia ser racionalmente justificada em certas regiões por motivos políticos ou climáticos: Il y a des pays oú la chaleur énerve le corps, et affaiblit si fort le courage, que les hommes ne sont portés à un devoir pénible que par la crainte du châtiment [...]; comme tous les hommes naissent égaux, 11l faut dire que
Vesclavage est contre la nature, quoique dans certains pays il soit fondé sur une raison naturelle [...]. IIl faut donc borner la servitude naturelle à de
certains pays particuliers de la terre!º,
de Smith estava, aliás, longe de constituir uma perspectiva inédita ou isolada. Pelo contrário, vinha na sequência de vários estudos e projec-
Para além de ambígua, a crítica filosófica ao sistema escravista não
ções que tinham começado a difundir a crença na superioridade do tra-
era propriamente avassaladora. Ainda que o tema da liberdade fosse
balho livre e que, de caminho, tinham classificado o sistema escravista
uma preocupação dominante, os mais respeitados filósofos das Luzes
como algo de aberrante e de muito duvidosa eficácia económica. A desaprovação do escravismo provinha, então, de várias áreas da expressão literária. Ainda assim, é necessário não exagerar o peso es-
dedicavam pouco tempo à questão concreta do escravo africano. Era, vulgarmente, o problema da sujeição dos povos a poderes despóticos que prendia a sua atenção e foi dessa forma abrangente que a escravi-
pecífico do romance
do movimento
dão foi definida e atacada por muitos dos philosophes!!. Num cômputo
abolicionista. Em rigor, a novela que tomava os males do escravo como pano de fundo da intriga não estava isenta de ambiguidades e dei-
ou da filosofia no desencadear
geral, existia uma relativa diluição filosófica do problema do escravo
6 Francis Hutcheson, A System of Moral Philosophy, livro 1, XIv, Londres, 1755. Sobre a importância de Hutcheson na génese da atitude moderna relativamente à escravidão, v. Anstey, ob. cit., pp. 98-102. 7 Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, Londres, 1776, p. 157. 8 Já em 1755 Benjamin Franklin estudara comparativamente os custos do labor livre e não livre e verificara que o último era claramente mais oneroso; concluíra, para além disso, que, nas colónias, a instituição servil tinha um impacto demográfico e social extremamente negativo, dificultando o crescimento das populações brancas, privando os pobres de emprego e enfronhando sistematicamente os ricos no luxo e na devassidão. Uma visão semelhante era desenvolvida por vários fisiocratas franceses e veiculada pelo Ephémérides du Citoyen, um jornal que constituía, à época, o líder da argumentação económica antiescravista (cf. Davis, Western Culture, cit., pp. 426 e segs.).
9 Guillaume-Thomas Raynal, Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes, Paris, 1770. Convencionalmente atribuída ao abade Raynal, a Histoire philosophique era, na verdade, uma obra colectiva, que se ia acrescentando à medida que se reeditava. Na parte relativa ao tráfico e à escravidão colaboraram, entre outros, Diderot e Pechméja.
3)
33
10 Baron de Montesquieu, De L'Esprit des Lois, caps. VI-VII, livro Xv, Paris, 1849 (1.º ed.: 1748). Também Hutcheson reconhecia que a escravidão podia ser justificável em termos de utilidade social e política, e exemplos análogos podiam multiplicar-se. Para a apreciação da posição filosófica de Hutcheson, v. Anstey, ob. cit., pp. 101 e segs., e Davis, Western Culture, cit., pp. 394-396.
11 A título de exemplo, Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social, ou principes du droit politique, Neufchatel, 1762 (utilizei a trad. portuguesa de L. M. Brum, O Contrato Social, Pub. Europa-América, Mem Martins, 1974).
Os sons do silêncio
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
negro, diluição que viria posteriormente a ser notada (e lamentada) pelos abolicionistas militantes!?. Ou seja, por volta de 1760-1770 circulavam variadíssimas obras que censuravam de diferentes formas e por várias razões o sistema escravista, mas daí não decorria obrigatoriamente uma atitude abolicionista. É verdade que o tradicional quadro justificativo do comércio e posse de negros tinha sido fortemente abalado, mas uma coisa era dispor de um quadro de referências culturais que dificultava a defesa da instituição escravista, outra, muito diferente, era sentir a compulsão de
fazer algo acerca do problema. E, por norma, a atitude comum na Eu-
ropa das Luzes era a de passividade relativamente aos males do escravo. Daí que os filósofos não acalentassem geralmente grandes ilusões a respeito da viabilidade da abolição. Sabiam que as almas generosas e sensíveis apoiariam a ideia libertadora, mas sabiam igualmente que a ganância, que governava o mundo, não ouviria os seus apelos. Era certamente por essa razão que, em 1762, Adam Smith considerava praticamente impossível que a escravidão viesse a ser total ou geralmente abolida!3; de forma análoga, Condorcet reconhecia que as vozes daqueles filósofos que, de tempos a tempos, advogavam o fim do tráfico e da escravidão não frutificavam no seio dos governos e eram rapi-
damente esquecidas pela sociedade!º,
cravo, de lamento complacente perante as injustiças feitas ao africano, e de esperança que tempos mais felizes pudessem trazer o fim de instituições tão evidentemente bárbaras. Havia, claramente, um pensamento cada vez mais incompatível com a escravidão, e esse pensamento inclinava muita gente a admitir reformas apropriadas nesse
campo, reformas que poderiam ir até à abolição gradual, mas não mais do que isso. Como bem notou Davis, a crítica do escravismo poderia não ter sido mais do que uma moda filantrópica do iluminismo!6. Todavia, no último quartel do século começava a afirmar-se uma perspectiva substancialmente diferente. Entrelaçando habilmente interpretações históricas, exegese bíblica, economia política e etnografia, vários autores norte-americanos e ingleses tinham vindo a difundir três ideias centrais e convergentes: a de profunda culpa europeia pela existência do tráfico (e pela consequente barbaridade da África); a de iminência de castigo divino pela continuação de uma prática desumana; e
a de grande vantagem política e económica na sua proibição. Essa nova perspectiva, espicaçada pelo zelo religioso e pela miragem da recompensa material, promovia o crescimento de uma atitude actuante que visava o fim imediato ou quase imediato do comércio negreiro e, a breve prazo, o da própria escravidão. É essa atitude (e apenas essa) que, neste estudo, merecerá o nome
Efectivamente, o homem educado das Luzes poderia reconhecer a iniquidade do sistema escravista, mas percebia e aceitava a sua razão
de abolicionismo para melhor a diferenciar da que, por volta de 1770, constituiria a posição mais comum entre as elites ilustradas, e que designarei genericamente por toleracionismo. Abolicionismo terá, por-
e crueldade de tudo o que envolvia a escravidão negra, mas daí não se
tando-se à atitude dos que, condenando de algum modo o tráfico, não
de ser nas condições do mundo. A literatura de ficção ou de viagens trouxera-lhe um sentimento de choque e de indignação face à injustiça
seguia que defendesse alterações bruscas que pusessem em causa o delicado equilíbrio das forças históricas. Por norma, a resposta usual do humanitarismo iluminista ao problema escravista consistia em arquitectar planos ou instituir reformas que pudessem melhorar o sistema, não pôr-lhe um fim!5. O homem ilustrado de 1770 não era um abolicionista, tão-só um desaprovador, um crítico, em vários graus, do
sistema escravista. A sua atitude era de simpatia sentimental pelo es12 quanto mente 13 very», Essays
Davis, Western Culture, cit., pp. 391-392. Sobre a ambivalência do racionalism o à escravidão, ver, do mesmo autor e na mesma obra, todo o capítulo 13; e igualAnstey, ob. cit., pp. 94-125. Cf. C. Duncan Rice, «Literary sources and the revolution in British attitudes to slain Christine Bolt e Seymour Drescher (eds.), Anti-Slavery, Religion and Reform: in Memory of Roger Anstey, Dawson, Folkestone, 1980, p. 319.
14 Cf. Davis, Western Culture, cit., p. 421. d. ibid., pp. 396-398; Anstey, ob. cit., pp. 107 e segs. 34
tanto, um sentido preciso e restritivo, enquanto toleracionismo, reporeram (ou ainda não eram) abolicionistas, terá, como é inevitável, um contorno amplo e impreciso. À falta de melhor termo, toleracionismo
tem a vantagem de conservar algo do sabor coevo — o verbo tolerar usava-se frequentemente na época e no contexto — e de acentuar uma distinção essencial: se, para o abolicionista, o tráfico encapsulava práticas a tal ponto insustentáveis que devia ser imediatamente varrido da face da terra, para o toleracionista, o comércio negreiro, mesmo quando considerado irremediavelmente imoral e injusto, poderia ainda assim suportar-se por razões políticas ou outras. Na medida em que a palavra toleracionismo
cobre posições dife-
rentes, algumas das quais podiam estar próximas das do abolicionista, a distinção que proponho não deve ser vista como implicando a exis-
16 Davis, Age of Revolution, cit., p. 92. 2"8
Os sons do silêncio
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
tência de um qualquer fosso entre sectores irreconciliáveis. Essa diferenciação básica entre uma atitude mental de desaprovação do tráfico,
reprodução biológica dos escravos era, isso sim, um sinal _de vitalidade
que, por vezes, admitia o seu fim a médio ou longo prazo, de uma outra que o execrava e que pugnava pela sua extinção imediata é apenas
A apologia da acção abolicionista imediata começara a dlfl_mdlr-se no último terço de Setecentos, sobretudo por intermédio de dlsçursos
uma entre várias formas possíveis de perspectivar e classificar o espectro das posições assumidas pela cultura ocidental no século XVIII a respeito do iníquo comércio. Mas é uma forma que tem vantagens analíticas, já que, como se verá adiante quando se abordar mais detalhadamente o caso português, ela permite fazer uma primeira separa-
ção das águas quase sempre turvas do discurso político e jornalístico em redor da problemática da escravatura. O abolicionismo lutava pelo fim imediato do comércio de escravos; o toleracionismo (ou a sua ver-
tente mais ousada, para-abolicionista) podia aceitar a abolição, mas apenas uma abolição gradual. Ora, precisamente porque admitia uma componente de inacção, ou de retardamento da acção, o toleracionismo constituía uma corrente de opinião aberta à contaminação e viria a ser
frequentemente apropriado, perfilhado, pelos defensores do sistema escravista. Tal já não acontecia com o abolicionismo puro e duro, que se batia pelo imediatismo. Gradualismo e imediatismo passaram a ser, então, programas de acção (ou de inacção, conforme as intenções dos seus promotores), e o mais seguro — mas não único — elemento identi-
ficador do abolicionismo genuíno ideologia. Aliás, foi precisamente cionistas fizeram do imediatismo ceridade moral dos que se diziam
reside no tipo de acção proposto pela por essa razão que os próprios abolio melhor critério de aferição da sinsolidários com a sua causa!7.
Note-se que, de início, o imediatismo reportava-se tão-só à abolição
do comércio negreiro, já que os primeiros abolicionistas pressupunham que o corte do fornecimento de escravos africanos desencadearia inevitavelmente vários mecanismos
compensatórios
nas colónias ameri-
canas que levariam a que os próprios plantadores tivessem interesse em libertar os negros que ainda mantivessem em cativeiro. Mas, para que toda esta fantástica engenharia social pudesse ocorrer, o tráfico teria de parar imediatamente. Daí que, quanto ao problema do comércio negreiro, os verdadeiros abolicionistas fossem imediatistas (e tor-
nar-se-iam imediatistas também quanto à erradicação da escravidão quando constataram que as suas previsões iniciais tinham sido demasiado optimistas e que, longe de ser um passo para a emancipação, a 17 Id., «The emergence of immediatism in British and American anti-slavery thought», in The Mississipi Valley Historical Review, 49, 2, 1962, pp. 218-219.
36
das instituições escravistas e um meio de perpetuação do 51ste.ma)18..
de raiz religiosa produzidos por personalidades li.gadas.ao universo protestante. Inicialmente, o ataque frontal ao escravismo tinha sido desencadeado por alguns quakers das colónias norte-americanas. AÀs suas
mensagens contestatárias giravam em torno dos conceitos de pecadc? ê castigo divino, eram dirigidas às próprias congregações em que se 1nseriam e tiveram, naturalmente, um impacto limitado. Mas, na década
de 1770, uma vez conseguida a proibição do comércio e posse dç escravos a nível sectário, os quakers tinham-se voltado para objectivos mais amplos, pressionando as assembleias legislativas coloniais e », in Studia, 53, 1994, pp. 291 e segs.
? Cf. Davis, Western Culture, cit., pp. 109-115. 9 Crónica de Guiné, XXYV.
68
9 Ibid., XXVI. * António Vieira, «Sermão vigésimo sétimo», in Sermões, Problemas Raciais e Políticos do Brasil, ed. Cultrix, São Paulo, 1975, pp. 57-58.
69
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
Deus obrava na transmigração dos negros para o Brasil, e não pode-
desse «cativeiro temporal», conseguissem «muito facilmente a liberda-
ria, aliás, ser de outro modo. O Pai do Céu não criara esses homens à sua imagem e semelhança para os predestinar «para dois infernos, um nesta vida, outro na outra»; sem dúvida que o cativeiro da primeira
quotidiano, louvar a Deus «pela moderação do cativeiro» a que os
de eterna». Deviam, isso sim, sofrer com paciência os trabalhos do seu trouxera, e servir bem a seus senhores terrenos, na certeza de que, na
vida celestial, tudo se inverteria e recomporia”. No plano ideológico, a prática da escravização dos negros, iniciada
transmigração — a passagem de África à América — era ordenado por misericórdia divina «para a liberdade» da segunda transmigração, aquela que verdadeiramente contava, a passagem do mundo material à
com os descobrimentos, não desmantelou a velha ideologia escravista.
Pelo contrário, e como se vê pelo exemplo de Zurara, fez com edifício ganhasse mesmo uma nova justificação com a ideia de civilizadora. É certo que a partir de Quinhentos as condições em realizava o tráfico e a exploração do trabalho africano levaram a
vida eterna”. Através de uma série de exemplos bíblicos, Vieira de-
monstrava ao seu auditório de escravos que o caminho para Deus se fazia obrigatoriamente de sofrimento e redenção, de cativeiro e liber-
dade. A primeira transmigração era a das vicissitudes terrenas, mas o cativeiro que essa transmigração impunha constituía a preparação para
questionassem as formas de obtenção e manutenção
para o Africano, já que lhe permitia a libertação da alma. Apoiando-se nos estóicos, especialmente em Séneca, o orador discorria longamente sobre as dualidades corpo cativo/alma livre e escravo aparente/escravo real, para concluir que «a melhor parte do homem, que é a alma, é isenta de todo o domínio alheio, e não pode ser cativa; o corpo e somente o corpo, sim»”.
esse respeito.
A escravidão do negro no Brasil equivalia, então, apenas a «meio cativeiro»”º7. A alma do escravo era livre, ou melhor, potencialmente
/
-
nio. É que — sublinhava Vieira —, o cativeiro da alma tinha sem dúvida » uma importância muito maior que o cativeiro do corpo, e por isso dor das almas, não dos corpos. Se, chegado ao Brasil e admitido no seio da Igreja, o escravo renegasse o pecado, obteria a alforria da alma, ficando livre «do maior e mais pesado cativeiro»ºº. É certo que permaneceria fisicamente cativo, mas havia que encarar esse estado como mercê e não como castigo. Os escravos podiam ser «os mais venturosos homens do mundo», apesar do seu estado de escravidão física, porque os homens que não vendiam a sua alma ao pecado eram
mais livres do que os ricos e poderosos que se bandeavam com o mal. Consequentemente, não deviam revoltar-se contra a sua situação presente, pois era desejo divino que vivessem assim, para que, por meio 5 % ? B
TId., Id., Id., Td,,
ibid., ibid., ibid., ibid.,
p. 59. pp. 60-61. p. 62. p. 75.
Aos
olhos
dos juristas católicos e, depois,
de alguns
protestantes, a compra dos escravos negros nas costas de África implicava um risco moral grave, visto ser praticamente impossível ao comprador garantir que os seres humanos que adquiria provinham de apresamentos legítimos!%º. Mas eram discussões e objecções sobre a casuística, sobre o bem ou mal fundado da aplicação das regras neste ou naquele caso, que geralmente não punham em causa a legitimidade
livre, e seria o cúmulo da desgraça se os Africanos, já cativos do cor-
Cristo viera à Terra, como redentor do género humano, como liberta-
desses escravos.
Na Península Ibérica, pensadores como Luis Molina, Tomás de Mercado, Fernando Oliveira e alguns outros levantaram várias objecções a
a liberdade eterna. Por isso, essa primeira transmigração seria vantajosa
po, viessem a ficar igualmente cativos da alma, vendendo-a ao Demó-
que o acção que se que se
-
da escravidão. Uma vez que o acto escravizador era aceite pela Bíblia, pela filosofia e pelos padres da Igreja, o problema residia em saber se os escravos tinham (ou não) sido adquiridos por meios legítimos. É nessa antiga e sólida construção ideológica, aqui rapidamente evocada, que devemos inserir o pensamento do P.º Ribeiro da Rocha. O seu Ethiope resgatado não constituía uma proposta abolicionista mas, como indica sem margem para dúvidas o próprio subtítulo da obra — Discurso theologico-juridico em que se propoem o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a hum e outro foro, os Pretos cativos africanos, e as principais obrigações que correm a
quem deles se servir —, um esforço muito elaborado para compatibilizar o tráfico e a escravidão com a boa consciência cristã. Ribeiro da Rocha não contestava a legitimidade de escravizar o gentio, desde que ? Id., ibid., pp. 75 e 83. 100 Ver, em especial, P.º Fernando Oliveira, Arte de guerra do már, Arquivo Histórico da Marinha, Lisboa, 1937, cap. IV, pp. 23-25 (versão original de 1555). Para uma análise da maioria destes autores, ver Davis, Western Culture, cit., pp. 106-121 e 165-196, e Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol. 1, ed. Presença, Lisboa, 1983 (2.º ed.), cap. 9 (em especial pp. 181 e segs.).
o
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
dos escravos que já possuíam e, de futuro, «comerciar, haver e possuir estes ditos escravos africanos» sem cometerem qualquer pecado que Implicasse risco de condenação!%º, O grosso do Ethiope é precisamente n explanação dessa «outra via», cuja receita básica o próprio autor re-
«cativado em guerra pública, justa e verdadeira», ou por ter cometido
«algum delito grave», ou, ainda, por ter sido vendido por seu pai «na falta de outro remédio para suster os alentos vitais». Por certo a sorte da pobre gente assim escravizada seria amarga, mas não poderia dizer-se
sumia numa fórmula simples: o negro deveria ser sucessivamente «resgatado» de uma escravidão injusta a que os seus irmãos de África
que fosse injusta, «porque em tais circunstâncias, justos são, por direito natural e das gentes, estes títulos para a escravidão se contrair»!º!, Todavia, o bom cristão não podia fechar os olhos à realidade nem bloquear a consciência, e Ribeiro da Rocha considerava que as condições em que os escravos se obtinham em África não eram geralmente
0 haviam sujeitado; «empenhado» em respeitar, obedecer e servir o seu senhor enquanto não pudesse pagar o valor do seu resgate; «sustentado», sem ser por favor; «corrigido» dos seus vícios com bondade e tolerância e «instruído» na doutrina cristã e nos bons costumes; por fim,
as legítimas mas, bem ao invés, as do rapto e do roubo. Os captores
dos escravos seriam puros piratas e, consequentemente, toda a nego-
«libertado», se ainda fosse vivo, por algum dos modos previstos na
ciação com homens dessa laia punha graves problemas de consciência. Qualquer cristão que comprasse cativos sem prévia averiguação das
lei!º5, Em suma, Ribeiro da Rocha contestava certa forma, não a essência. Nada, no seu texto, pretendia pôr fim ao tráfico. Pelo contrário,
|
circunstâncias do seu cativeiro estava em grande risco de pecar. No início do seu livro,
essa eventualidade era explicitamente recusada!%,
e com base em Molina e outros juristas, o autor
apontava os perigos espirituais que impendiam sobre todos os que ti- » vessem relação com o comércio negreiro. Parecia adquirido pela jurisprudência que os problemas só se colocariam aos que conhecessem as » condições ilegítimas em que os escravos eram obtidos. Aqueles que as
ignorassem poderiam comprar e reter os escravos sem receio, porque a,f ignorância os fazia «possuidores de boa fé»!%?, Mas as almas de todos | os outros estavam seriamente ameaçadas: os negreiros que iam à costa . de África andavam em estado de eterna condenação e estavam obrigados a ressarcir a todos os cativos que tivessem comerciado e a cessarem inteiramente essa forma de negócio; as outras pessoas que, posterior-
mente, adquirissem os escravos para o seu serviço estavam obrigadas a vender-lhes e a restituir-lhes a liberdade (em proporções que depen-
diam da circunstância de aquisição), com os lucros que os cativos po- ) deriam entretanto ter obtido se estivessem livres e com a restituição | dos serviços que tivessem feito enquanto em escravidão!º%3, Perante tão «horrorosos encargos e [...] detrimentosas restituições»,
os potenciais aquisidores de escravos ficariam certamente «aflitos e )
2.3. O escravismo actualizado: a teoria do mal menor Em 1794, D. José Joaquim de Azeredo Coutinho, um natural do Rio
de Janeiro, bispo de Pernambuco e, depois, de Elvas, figura proeminente do iluminismo português, defendera que a falta de braços de que
o Brasil sofria só poderia ser suprida pelo tráfico de escravos, e propusera mesmo
a construção de embarcações especiais para o seu trans-
porte com melhores condições de habitabilidade e segurança!7. Tratava-se de um discurso relativamente neutro, que justificava o tráfico de escravos por razões de necessidade e que, como era frequente na época, arquitectava planos de melhoramento das suas condições. Mas Azeredo Coutinho não era um toleracionista. Em 1808, já no amanhecer da
questão abolicionista em Portugal, o bispo teve ocasião de desenvolver longamente o seu pensamento sobre o assunto em dois textos complementares, e aquilo que deles emergia era a velha ideologia escravista, combinada com uma série de argumentos reactivos que visavam muito
ansiosos», e foi na resolução desse problema, isto é, na obtenção de
uma solução tranquilizadora que salvaguardasse simultaneamente o tráfico e as almas dos possuidores de escravaria, que Ribeiro da Rocha | se envolveu, concluindo que existiria «outra via [...], outro género de . contrato», com que os cristãos poderiam «revalidar e suster» a posse 101 Rocha, ob. cit., p. 3. 102 Td,, ibid., pp. 26-27. 103 d. ; ibid., p. 62.
104 Td,, ibid., p. 63. 105 Td,, ibid., introdução. 106 Td., ibid., pp. 99-100. 107 D, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Ensaio Económico sobre o Comércio de Portugal e suas Colónias, Lisboa, 1794, pp. 95-96 e 98 (nota). Para a biobibliografia de Azeredo Coutinho, ver Innocêncio Francisco da Silva, Diccionário Bibliographico Portuguez, t. IV, Imprensa Nacional, Lisboa, 1860, pp. 384-386; o Diccionário contém dados sobre quase todos os autores portugueses e brasileiros analisados neste estudo e, tendo sido usado nesse âmbito, dispensar-me-ei de o referir caso a caso.
T3
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
expressamente as propostas filantrópicas que se iam perfilando no horizonte. Aliás, grande parte da obra que viria a lume nesse ano, em Lisboa, fora redigida pelo eclesiástico em 1796, retrovertida para fran-
cês e publicada dois anos depois em Londres, em pleno coração da polémica abolicionista!º8, O maior dos dois textos publicados em 1808 — Analyse sobre a justiça do Commercio do Resgate dos Escravos — destinava-se a demons-
trar que, ao invés do que pretendiam os Novos Filósofos, a escravidão não era contrária ao direito natural. Seguindo a linha ideológica traçada pelos teólogos cristãos desde a Idade Média, Azeredo Coutinho não
sociedades africanas, que, por essa via, garantiam um contacto comer-
cial regular com os europeus, adquirindo bens de que careciam (ao Mmesmo tempo que iam adoçando os seus costumes); para os Europeus, que desse modo conseguiam braços para o cultivo das plantações e o Inhor das minas; e, finalmente, para o bem das almas, visto que a es-
eravidão era o meio que se tinha descoberto para introduzir a verdadeifn religião entre aqueles bárbaros!!!., Claro que haveria sempre o risco de que os negreiros viessem a adquirir gente ilegalmente escravizada. Mas, como sabê-lo? Era também evidente que muito melhor seria se
pretendia que a escravidão fosse conforme ao direito natural primário,
08 negreiros, num gesto de pura caridade cristã, adquirissem escravos para os salvar da morte e, seguidamente, os libertassem. No entanto,
absoluto,
os ho-
da constatação de que tal prática não era seguida não poderia con-
mens livres e no estado de independência»; falava tão-só de «direito
cluir-se que os Europeus praticassem o mal. Entre o melhor e o mal
natural secundário, ou relativo, [...] que, no estado de sociedade, e no meio das circunstâncias, manda ao homem que entre dois males esco-
havia o bom, e a realidade impunha o bom. Efectivamente, quais seriam os comerciantes com forças e meios para comprar negros na costa de África sem receberem pelo menos o equivalente do que despendiam e dos riscos que corriam? Seria melhor «deixar matar os desgraçados do que salvar-lhes as vidas, ainda que à custa de ficarem escravos»!129 Azeredo Coutinho reconhecia que as formas assumidas pelo tráfico
«enquanto
proveniente
da natureza,
que
criou
todos
lha sempre o menor e o menos prejudicial à sua vida e à sua existência». A lei natural, em sociedade, era aquela que regulava o maior bem ou o mal menor e, para que as leis fossem justas, era apenas necessário que se fundassem numa justiça relativa — razão pela qual as nações ti-
nham de mudar constantemente as suas leis, porque a justiça dependia das circunstâncias, e estas mudavam constantemente!9, Na visão de Azeredo Coutinho, o comércio de escravos era indubitavelmente uma lei ditada pelas circunstâncias para o maior bem, ou o menor mal, das nações bárbaras e do mundo colonial. A África seria
uma terra de horror, de antropofagia, arbítrio e crueldade!!0, Logo, o que os negreiros levavam aos africanos era a possibilidade de optarem por um mal menor. Os europeus nada faziam que alterasse a prática corrente entre os povos africanos — o tráfico praticava-se em África,
independentemente da presença europeia — ou que atentasse contra as suas leis. E como as nações negras tinham a possibilidade, de acordo com as suas próprias estipulações, de comutar penas de morte ou prisão perpétua em escravidão e degredo, os europeus limitar-se-iam a aproveitar esse facto para adquirirem os condenados. Tráfico e escra-
vidão seriam, portanto,
o maior bem, ou o mal menor, para todas as
partes: para o escravo, que preferiria ser vendido a ser morto; para as
nem sempre eram agradáveis, mas estavam longe de corresponder aos
horrores pintados pelos Novos Filósofos, que descreviam o comércio negreiro como sendo o cúmulo da desumanidade, com homens empilhados em espaços exíguos nos porões dos navios, com pobres crianças
raptadas nas aldeias do interior, metidas em sacos e levadas por traficantes até às povoações costeiras — onde, não sendo vendidas, ficariam
abandonadas nas praias para pasto das feras. Tudo isso seriam «historietas» inverosímeis!!3, Em sua substituição, e apoiando-se nas descrições de Snelgrave, o autor pintava a travessia do Atlântico como uma
viagem suportável, quando não relativamente prazenteira: À medida que se compram, os negros se prendem dois a dois, mas as mulheres e os pequenos têm a liberdade de correr todo o navio; e quando se tem perdido a terra de vista, se soltam também os homens. Eles recebem a sua comida ou ração duas vezes por dia. Nos dias com bom tempo se lhes permite estar sobre o tombadilho ou coberta do navio, desde as 7
horas da manhã até à noite. Todas as segundas-feiras se lhes dão cachim108 D, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Analyse sur la justice du Commerce des Esclaves de la Côte d'Afrique, Londres, 1798. 109 Id., Analyse sobre a Justiça do Commercio do Resgate dos Escravos da Costa de Africa, novamente revista e acrescentada por seu author, Lisboa, 1808, pp. 1-16.
110 Td,, ibid., pp. 58 e segs.
N Tg, ibid., pp. 33 e segs. 12 Td,, ibid., pp. 49-50. 15 5d., thbid, p. 42.
Os sons do silêncio
bos e tabaco para fumar, e a sua alegria mostra bem o quanto eles agrade-
cem este favor!!4,
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Porque foram escritos em período de ataque às instituições escravistas, os dois textos do bispo de Elvas introduziam elementos ideolóBicos novos que espelhavam a ideologia escravista numa fase de ac-
O bispo reconhecia que o sistema escravista não estava isento de abusos e que, no Brasil, vários senhores tratavam os seus escravos de
lualização, recorrendo a estratégias, imagens e ideias que viriam a ter um largo futuro e que importa fazer ressaltar. O elemento mais impor-
forma desumana. Por isso, um dos seus objectivos era o de os persua-
tunte prende-se com a necessidade de denegrir o abolicionismo. Logo
dir a que, no seu próprio interesse material, melhorassem as condições de vida dos cativos. No final de Analyse sobre a justiça do Commercio
no início da obra, os filantropos eram equiparados aos anabaptistas,
do Resgate dos Escravos da Costa da Africa, propunha-se um esboço de lei protectora do escravo que, no essencial, retomava uma preocupação cara à Igreja e de há muito enunciada por vários autores eclesiásticos!!5, O percurso já feito, de Zurara a Azeredo Coutinho, permitiu mostrar a perenidade da velha ideologia escravista em Portugal, a sua plasticidade e capacidade de adaptação a problemáticas diferentes. Apesar de os discursos evocados divergirem quanto às circunstâncias históricas em que foram produzidos, quanto ao público a que se destinavam e quanto aos objectivos que visavam, há um fundo comum que os atravessa a todos: a teoria da salvação das almas, geralmente complementada pelo conceito de imprescindibilidade do tráfico para a prosperidade do Brasil e pela teoria do mal menor — que trazia implícita a imagem de barbaridade e inferioridade civilizacional africana. De toda a forma, é muito possível que, com o ocaso de Setecentos, se tenha » dado uma alteração de acento tónico no interior da ideologia, com a » teoria da salvação das almas, central num António Vieira, a perder re+-
levância em favor das ideias mais pragmáticas de mal menor e de barbaridade africana. É importante assinalar que a ideia de barbaridade africana era praticamente universal, partilhada tanto por escravistas
numa clara tentativa de aproveitar o carácter messiânico do movimento
abolicionista para alimentar um contra-ataque ideológico que, enquadrado em referências anatematizadas, o desvalorizasse!!ó, Revista e publicada em 1808, a Analyse também já podia capitalizar o exemplo
trágico das revoltas de escravos em S. Domingos, e até o da própria França, que revertera a sua política abolicionista em 1802, considerando-a uma precipitação e um erro!!7. Podia, ainda, agitar o espantalho da Revolução, dissolvendo o problema da escravatura através de uma ligação, indissociável, do abolicionismo ao jacobinismo. Logo no prefácio e introdução à Analyse o bispo informava que escrevia o seu texto mais como contra-ataque aos «sectários dos bárbaros Brissot e Robespierre» e aos insidiosos princípios da «Seita Filosófica» do que propriamente como defesa das instituições escravistas!!8, Para o autor, a contestação ao comércio de escravos seria apenas uma forma lateral,
mascarada, de visar objectivos mais fundos e sérios: Os da Seita Filosófica [...], temendo acordar a vigilância dos Sobera-
nos, e dos que tinham nas mãos as rédeas dos governos, fingilam] dirigir as suas setas contra a justiça do Comércio do resgate dos Escravos da Costa de África, debaixo do pretexto de defender a Humanidade oprimida, para assim de longe, e por caminhos tortuosos irem espalhando a semente de seus infernais princípios.
como por abolicionistas. Contudo, para estes últimos, essa barbaridade era causada, ou, pelo menos, ampliada e estimulada, pelo tráfico de escravos; tratava-se, em boa medida, de uma barbaridade induzida, circunstancial. Para os escravistas, pelo contrário, tratava-se de uma Í;.
Para os afrontar, por pura estratégia argumentativa, ao que dizia, Azeredo Coutinho entrara na «mesma estrada» dos filósofos subversivos e tomara o «resgate dos negros» simultaneamente como objecto de
barbaridade intrínseca, originada pelo carácter feroz dos Africanos e causalmente desligada do tráfico de escravos. E era em torno dessa
defesa e como instrumento de contra-argumentação filosófica, entrelaçando desse modo a questão do tráfico numa problemática mais ampla
concepção de barbaridade intrínseca que se estruturava o escravismo de um Azeredo Coutinho.
4 Td,, ibid., p. 43, nota 2. 115 Td., ibid., pp. 107 e segs.; para propostas análogas de outros elementos da Igreja | Católica, ver, por exemplo, J. Benci, Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1954 (1.º ed.: 1700).
116 Coutinho, Analyse sobre ..., cit., pp. VI-IX. 17 [d,, ibid., pp. 52-53. 118 Td,, ibid., dedicatória; id., Concordância das leis de Portugal e das Bullas Pontificias, das quaes humas permittem a escravidão dos pretos d'Africa, e outras prohibem a escravidão dos Indios do Brazil, Lisboa, 1808, p. 39 (nota 1).
FT
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
e mais ameaçadora!!º, Diga-se de passagem que a ligação operada pelo
Vírias passagens de diplomatas e políticos portugueses que, para su-
bispo era, ao tempo, perfeitamente Jjustificável. Filósofos como Rous-
Portarem racionalmente a manutenção do tráfico, recorriam a uma sé-
seau, por exemplo, tinham associado a escravidão do negro a todas as
formas de autoritarismo e de arbítrio e, ao fazê-lo, persuadiam os espí-
Tie de argumentos novos: o problema da concorrência colonial; a defeh do gradualismo; e a ideia de relativa benignidade do tráfico negreiro
ritos conservadores de que seria politicamente perigoso atacar mesmo uma instituição tão remota como a escravidão colonial!20, Acresce que
Português (que o colocaria acima das suspeitas mais imediatas). São Blementos ideológicos claramente defensivos a que, como haverá oca-
a ligação entre abolicionismo e jacobinismo era corrente no período da
“&lÃho de verificar repetidamente, os opositores do abolicionismo vul— Barmente recorriam quando se sentiam ameaçados. Nessa mesma épo-
Revolução Francesa — mesmo em Inglaterra — e fora sugerida pelos próprios jacobinos. Brissot, por exemplo, escrevera em Outubro de 1789: «l” admission des noirs libres dans 1 Assemblée Nationale prépa-
—n, em França, por exemplo, os defensores do comércio da escravatura
— farantiam que o tráfico nacional era menos brutal que o inglês!?,
rera l'abolition de Vesclavage dans nos colonies, comme la convocation des hommes libres dans nos anciens États-Généraux préparera
Vabolition de la servitude féodale»!?!,
—2,4. O toleracionismo e o silêncio
Uma terceira forma de desvalorizar o abolicionismo consistia naquilo que poderíamos designar por crítica da filantropia telescópica,
À entrada do século XIX, a ideologia escravista mantinha-se viva,
tinha como paladino uma figura adaptara-se já, reactivamente, à Nistas. Mas não esgotava todo peito do tráfico de escravos. Em
isto é, a censura dos que choravam os males da distante África ao mesmo tempo que ignoravam as desgraças palpáveis do mundo que contemplavam. Em Azeredo Coutinho, os proponentes da abolição eram sistematicamente confrontados com o seu silêncio e apatia face a
injustiças tão grandes como o tráfico e muito mais próximas da por- | tal??, A crítica da filantropia telescópica, ou da hipocrisia abolicionista, abria caminho, aliás, a uma outra linha de defesa (que na obra do bispo apenas se esboçava): a da comparação favorável entre a vida do escra-
o fim do tráfico implicaria necessariamente
a ruína portuguesa.
|
Ex-
ceptuando o vinho e algum sal, azeite ou fruta, a riqueza do país provinha integralmente do comércio colonial que, por sua vez, se apoiava na rica agricultura brasileira. Ora, se essa agricultura estiolasse por falta de mão-de-obra escrava, como poderia Portugal subsistir!23? Esta variedade de argumentação defensiva não deve surpreender. A partir do momento em que começou a sofrer a pressão britânica, o — escravismo multiplicou as linhas de defesa. Isso mesmo transparece de 119 Td., Analyse sobre ..., cit., pp. IX-Xl e 50. 120 Cf. Davis, Western Culture, cit., p. 415.
— português de finais de Setecentos e início de Oitocentos vozes que corfespondiam ao que atrás classifiquei como toleracionismo. António Ribeiro Sanches era uma dessas vozes, ainda que, pelas Gircunstâncias da sua vida, possa considerar-se de certa forma uma voz
Mtípica relativamente à realidade cultural portuguesa da época. Médico de profissão, oriundo de uma família de cristãos-novos e suspeito de
vo nas Américas e a das classes laboriosas da Europa, supostamente mais infelizes e desvalidas.
Outra ideia defensiva avançada por Azeredo Coutinho era a de que
prestigiada do iluminismo português e emergência das novas ideias abolicioo quadro ideológico produzido a resparalelo, manifestavam-se no império
Judaísmo, Ribeiro Sanches saíra de Portugal na década de 1720, na primeira fase da idade adulta, tendo vivido primeiro em Londres e Leyden, depois, e por largos anos, na Rússia e, finalmente, em Paris,
onde se relacionou com a intelectualidade local e permaneceria até morrer, em 1782. Nas suas Cartas sobre a Educação da Mocidade in-
Surgiu-se contra a posição da Igreja Católica na questão da escravatura, sobretudo contra o facto de os eclesiásticos permitirem que os escravos nascidos no Brasil, e aí baptizados, permanecessem cativos!25, Ribeiro Sanches criticava a escravidão sobretudo por razões educativas e sociais. Como pedagogo, queria que, para além de uma boa instrução, os Jovens recebessem noções de humanidade e considerava impossível que tais noções se pudessem introduzir enquanto cada criança rica ti-
12! Artigo de Brissot no Patriote Français, 9 de Outubro de 1789, citado in Davis, Age 124 Cf. Chatillon, ob. cit., p. 142.
of Revolution, cit., p. 99 (nota 21).
122 Coutinho, Analyse sobre ..., cit., p. 29 (nota 1); id., Concordância ..., cit., pp. 3-5. 123 Id., Analyse sobre ..., cit., pp. 73-74.
125 António Ribeiro Sanches, Cartas sobre a Educação da Mocidade, parte XI, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1922 (1.º ed.: 1760), pp. 88-90.
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Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
vesse o seu escravinho: «aquela companhia tão íntima pela criação, ) altera o ânimo daqueles senhorinhos que ficam soberbos, inumanos, sem
Phvistas. Ribeiro dos Santos vivera a sua adolescência no Brasil, refessando depois ao Reino, e a Coimbra, onde se formara em Canônes.
spois de uma carreira como desembargador e docente universitário,
ideia alguma de justiça nem da dignidade que tem a natureza humana».
O autor lembrava que tinha vivido muitos anos em terras onde a escra- )
Virin a ser nomeado deputado do Santo Ofício e, em
vidão dos súbditos era geral e que pudera verificar «que nelas não se concebe ideia da humanidade e coração mavioso capaz de obrar acções de justiça, de ordem, com aquele amor da espécie humana»!126, Muito semelhante era a perspectiva de Luís dos Santos Vilhena, um | modesto professor de grego que passou parte da sua vida na Baía. Em » 1802 escreveu uma série de epístolas que descreviam a cidade brasilei- -
sembargo do Paço, antes de se tornar, no ano seguinte, responsável ln Real Biblioteca Pública (a actual Biblioteca Nacional)!2º. Homem
ra, as suas gentes e os seus problemas, e nelas fazia, naturalmente, alu
são aos escravos. Vilhena duvidava que o comércio negreiro fosse tão útil quanto se presumia. Parecia-lhe óbvio que não constituía um meio para a cristianização dos negros, relutantes em abdicarem das suas práticas e crenças ancestrais. Em contrapartida, a importação desenfreada de escravaria enchia o Brasil de uma «multidão de moléstias», de gente sanguinária, insolente e lasciva, que corrompia a família ca tólica e constituía uma ameaça para os senhores, conspirando frequentemente para os assassinarem!?7, Outro autor que acentuava os aspectos negativos do tráfico era Luís
| | |
1795, censor do
fonsível, o seu coração arrepiava-se com os horrores do mundo, fosS6m celes as ainda frescas tiranias do marquês de Pombal, ou as histó-
flns dos já distantes heróis da Índia narradas por um João de Barros ou um Diogo do Couto em livros que eram róis de «crueldades infinitas» 8 de «milhares de montões de mortos»!3º, A aversão de Ribeiro dos Suntos ao sistema escravista radicava nesse horror da violência mas —linha, igualmente, uma muito sólida armadura racional moldada em Montesquieu, Adam Smith, nos quakers e seus seguidores. Era essa
hrmadura que o levava a considerar que a escravidão não podia justifiGar-se nem pelo direito, nem pela religião, nem pela política, nem sequer pela economia, porque o trabalho escravo ficava «mais caro que o
que fazem homens livres»!3!, |
António de Oliveira Mendes, um natural da Bafa formado em leis na Universidade de Coimbra. Preocupado com a sorte dos negros, mas, .
Perspectiva similar era a de João Rodrigues de Brito, um eborense Qque viria a ser desembargador da relação da Baía, e que em 1807 escreveu uma série de Cartas sobre a economia política daquela cidade.
zar e humanizar o comércio negreiro. O autor partia do princípio que melhor conhecimento dos Africanos permitiria adaptar o tráfico às suas
Nelas, Brito preocupava-se com o estado anímico dos desgraçados esgravos, seres acabrunhados pela perpetuidade da escravidão, que lhes abatia o espírito, lançando-os na inércia. E sugeria uma remissão do cativeiro «mediante o justo preço adquirido por serviços relevantes, ou por assíduo trabalho nos dias que lhes são dados para o descanso»!3?, A sugestão não se fundava apenas em razões de humanidade, mas
especificidades físicas e culturais e aliviar-lhes o sofrimento. Por isso, |
também nas do interesse, visto que o desembargador acreditava ser o
também, com a dos plantadores que empatavam capitais na compra dos | cativos, Mendes apresentou uma Memória à Academia Real das Ciências de Lisboa, em 1793, na qual defendeu várias medidas para optimi
prestava uma grande atenção à África e suas gentes (clima, hábitos
trabalho livre inevitavelmente mais produtivo que o labor escravo.
alimentares, musicalidade, vestuário, tipo de habitação, índole dos ha- |
Quanto ao tráfico, lamentava que se iludissem descaradamente as leis
bitantes, etc.) e à análise das maleitas físicas e psíquicas que atingiam. Os escravos, sugerindo meios para as minorar ou debelar!?8, Em cartas particulares escritas no final do século xvIm também |
sobre a lotação dos navios negreiros, e que o governo não atendesse às condições de crueldade em que o transporte transatlântico era feito, nem tomasse medidas «em favor da saúde dos miseráveis negros»!33,
António Ribeiro dos Santos se manifestava contra as instituições es- | 129 Para uma sucinta autobiografia, ver L. F. Carvalho Dias, Algumas Cartas do Doutor António Ribeiro dos Santos aos Seus Contemporâneos, Coimbra, 1975, pp. 417-420.
130 Cartas sobre Pombal e sobre os escritores das nossas coisas da Índia, in ibid.,
126 Id., ibid.
127 Luís dos Santos Vilhena, Recopilação de notícias Soteropolitanas e Brasílicas, » contidas em vinte cartas ..., Bahia, 1921, pp. 136-137.
128 Luís António de Oliveira Mendes, Memória a Respeito dos Escravos e Tráfico da | Escravatura entre a Costa de África e o Brasil, Apresentada à Real Academia das Ciências de Lisboa em 1793, Pub. Escorpião, Porto, 1977. 80
pp. 444 e 455.
13! Carta sobre a escravatura, BN, Reservados, códice 4710, fls. 77-79. 132 João Rodrigues de Brito, Cartas económico-políticas sobre a Agricultura e Commercio da Bahia, Lisboa, 1821, p. 39.
133 Id,, ibid., pp. 34-35. 81
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
As Cartas americanas, escritos de índole moral persanes de Montesquieu. 1808 provavelmente como
de Teodoro Biancardi, são um conjunto de | assumidamente influenciadas pelas Lettres Numa dessas cartas, escrita em Lisboa em ';L resposta à apologia escravista de Azeredo ,w
Coutinho, Biancardi confessava a sua aversão filosófica e afectiva à escravidão, as suas objecções a que se comprassem homens em Africa para os explorar nas Américas: Nem a antiguidade da escravidão nem a utilidade produzida pelo trabalho dos nossos infelizes escravos pode disfarçar aos meus olhos a injustiça cruel com que nos fazemos senhores de entes nossos iguais por natu- ;É reza. Execrável será sempre para mim a memória do bárbaro que se | lembrou de ordenar o plano de tão odioso comércio, pois não sei por que | triste singularidade é necessário para a cultura das terras da América o que
se dispensa em todas as outras!3º,
lava e levava consigo para Portugal, país que, nas palavras de Catul,
Aparecia como instância redentora: Ditosa terra que é pátria das sensíveis almas; Quem escravo lá for, é livre, é grande; [...]
Apaga Portugal da Europa as manchas; Do crime cometido a Europa absolve;
Em seus ferros serei livre e tranquilo!38, Fis aqui, através de sete vozes distintas — tantas quantas consegui detectar —, a posição do toleracionista, do homem que teoricamente poderia admitir (e desejar) a abolição do tráfico e da escravidão, mas que, condicionado pela severa lei da necessidade ou do bem público, remetia um tal evento para um futuro longínquo e indefinido. O seu era um exame crítico mais ou menos dorido, mais ou menos resignado, do
sistema escravista, mas não era um libelo em favor da abolição. É possível que José Agostinho de Macedo tenha redigido o pequeno :
Nada há de inovador ou de particularmente contestatário no discur-
drama O Preto Sensível durante o período das guerras napoleónicas. Na peça fazia-se referência ao «pavoroso estrépito da guerra que a | desgraçada Europa inunda em sangue»!35. A acção passava-se no Bra- |
so de Ribeiro Sanches. A ideia de que o contacto entre senhores e escravos podia ser pernicioso remetia para Aristóteles, e a questão de saber se o baptismo libertava o escravo era, no fundo, uma problemática medieval; aliás, se Ribeiro Sanches se indignava porque o sacramento do baptismo não libertava o cativo nascido no Brasil, já tolerava que, por razões políticas, o adulto comprado em África ficasse em escravidão mesmo depois de baptizado!3º?. O teor contestatário da Memória apresentada por Oliveira Mendes à Academia das Ciências era ainda mais reduzido. Apesar de criticar alguns aspectos do modo de
sil e iniciava-se com Catul, um escravo que aguardava o raiar da aurora |
enquanto contemplava o filho adormecido e lamentava o triste fado de ambos. Amargurado, o escravo antecipava o momento em que o filhi- , nho Ihe seria arrancado para ser vendido a outro senhor, tal como a sua | mulher já o fora!36, O dia nascia, enfim, e, à pancada, o proprietário do
engenho, acordava a escravaria, forçando-a ao trabalho. Quis o destino, porém, que nesse dia Inácia, senhora nascida na Europa, visitasse o local pouco antes de encetar a viagem de regresso a Portugal. Ainda | que «por extremo liberal», Inácia não fora ao engenho defender os es- ,j
cravos, apenas «gozar da vista dos risonhos campos». Todavia, o seu | coração «sensível», incapaz de «ver desgraças», acabara por condoer-se | da sorte dos pretos!37, Através de uma série de acasos, Inácia viria a adquirir sucessivamente Bunga (a esposa), o pretinho e Catul, reunindo | a família desfeita. Num exercício de pura benevolência, a todos liber-
134 Theodoro José Biancardi, Cartas americanas, Lisboa, 1820, p. 80 (itálico meu). 135 José Agostinho de Macedo, «O preto sensível», in Minerva, 11, Lisboa, 1836, -:' p. 104.
136 Id,, ibid., p. 100. 137 Id,, ibid., pp. 103-105. 1)
funcionamento do tráfico e de lamentar a sorte do negro, não existia na
Memória contestação aberta à existência do comércio da escravatura nem qualquer apelo à sua abolição. Havia, inclusive, uma pequena passagem extremamente ambígua em que, e quanto àquilo a que chamava as «considerações morais» sobre o tráfico negreiro, o autor aconselhava explicitamente a leitura dos sermões do P.º António Vieira aos negros da Irmandade do Rosário, que, como vimos, justificavam o transporte de escravos de África em termos de propósito divino!%0, Também Vilhena não tinha verdadeiras alternativas que lhe permi-
tissem dispensar a importação de escravos (ainda que, à laia de complemento, sugerisse um melhor aproveitamento laboral do indígena); daí que não procurasse indagar se era «justo e decente» ir a África 138 d. ibidi; p. 115. 139 Sanches, ob. cit., p. 88. 140 Mendes, ob. cit., p. 88, nota 28. 83
Os sons do silêncio
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
comprar escravos para trabalharem nas colónias do Brasil!'*!, João Rodrigues de Brito acalentava a esperança de que o incentivo à imigração de asiáticos para o Brasil pudesse fornecer «braços laboriosos» que suplementassem ou até substituíssem o recurso à importação de africanos, mas não falava em abolição!*?. Também Biancardi a não referia. A sua diatribe contra os escravistas era essencialmente um desabafo de
Além de não muito incisiva, a censura ao sistema escravista circulíva pouco (pelo menos de forma impressa) e, ao que tudo indica, maNifestar-se-ia principalmente em círculos restritos ou privados. O livro —de Ribeiro Sanches foi editado em Paris em 1760 e teve uma tiragem
Ínfima: 50 exemplares, apenas, que foram remetidos para Portugal por via da embaixada. As cartas de Biancardi e de Rodrigues de Brito só se
homem sensível — «peguei na pena para desoprimir o coração»; se, na sua prosa, se interrogava com amarga ironia sobre a «singularidade» que fazia a escravidão aparentemente necessária nas Américas, não
apresentava
alternativas concretas que
a pudessem
interromper
publicaram no início da década de 1820, muitos anos depois da sua redacção. Outro ftanto quanto à peça de Agostinho de Macedo que
emergiria apenas em 1836, cinco anos após o falecimento do seu autor. Ou, ainda, quanto às cartas de Ribeiro dos Santos, de publicação re-
ou
substituir!,
f
cente. E seguro que, na época, também a imprensa não contribuía para
A pequena peça de Agostinho de Macedo tinha duas preocupações básicas. Em primeiro lugar, a de caracterizar o escravo como ser humano, sensível, com angústias e afectos idênticos aos do europeu. Depois, a de estabelecer uma separação nítida de dois espaços físicos e culturais, Brasil e Portugal, respectivamente terras de opressão e de liberdade. A esses dois mundos corresponderiam os estereótipos da brutalidade do senhor de engenho e do sentimentalismo culto de Inácia. Mas não existia na obra qualquer aceno abolicionista ou o desejo de pôr fim a instituições que podiam questionar-se — «quem tão feio tráfico autoriza?»!*t — mas se aceitavam pela necessidade do «imenso
» ' ) '5 . | -
n divulgação de qualquer contestação às instituições escravistas. Apesar de ter havido um incremento de novas publicações periódicas no final do século, os jornais eram ainda assim em escasso número, pouco difundidos e, naturalmente, amordaçados pela censura. Só muito ex-
trabalho» que fazia «as delícias da Europa»!*5. Ainda que, no final,
classificasse o tráfico como crime, a peça fazia, apenas, a apologia da acção pontual, do humanitarismo cristão do europeu que, de passagem, | dirigido pelo acaso e pelo bom coração, cruzava o seu sentimentalismo
faziam era de forma puramente noticiosa!*6, Os jornais culturais ou enciclopédicos, cujos fins confessados eram o divertimento e a instrução — na medida em que a censura o permitisse, claro está —, traziam
uma ou outra alusão, geralmente asséptica!*7, Com a questão da circulação das ideias tocamos no tema mais enevoado da difusão e impacto das duas correntes de pensamento analisadas na opinião pública. Não existem mais do que escassos sinais indirectos sobre o peso relativo dos ideários escravista e toleracionista entre as elites cultas, sinais que sugerem uma maior aceitação do toleracionismo, mas que não permitem concluir com segurança. À quase inexistência de escritos em defesa do tráfico e da escravidão pode não
que presenciava.
significar forçosamente uma ausência de interesses ou de noções adequadas à defesa das práticas escravistas, mas tão-só a falta de um estímulo directo que tornasse necessário pugnar por instituições que, no geral, se assumiam como imprescindíveis. Além do que não pode esquecer-se que o abolicionismo era muitas vezes visto como uma parte da Revolução Francesa e execrado por essa via indirecta, sobretudo após os episódios sangrentos de S. Domingos!%8. Seja como for, parece
14l Vilhena, ob. cit., p. 136. 142 143 144 145
cepcionalmente tocavam na questão do tráfico de escravos e quando o
Brito, ob. cit., p. 35. Biancardi, ob. cit., p. 80. Macedo, ob. cit., p. 102. Td., ibid., p. 104. A ideia de que os prazeres e delícias da Europa se compravam
custa do sangue dos negros era um dos lugares-comuns da literatura da época e é possível ) que, na composição do personagem de Inácia, Agostinho de Macedo se tivesse inspirado | em Bernardin de Saint-Pierre: «ces belles ouleurs de rose et de feu dont s'habillent no dames, le coton [...], le sucre, le café, le chocolat de leur déjeuner, le rouge dont elles rel vent leur blancheur, la main des malheureux noirs a préparé tout cela pour elles. Femm sensibles, vous pleurez aux tragédies, et ce qui sert à vos plaisirs est mouillé des pleurs teint du sang des hommes!» (Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre, Voyage à L'Isle de France, à UIsle de Bourbon, au Cap de Bonne Espérance, ... par un officier du Roi, 2. vols., )
Paris, 1773, pp. 121-122).
146 Cf. Gazeta de Lisboa, 15 de Março de 1796 (notícia sobre intervenção de Wilberforce nos Comuns). 147 A título de exemplo, ver a recensão do livro de viagens de Degrandpré no jornal Novidades Literárias, Filosóficas, Scientíficas, Poéticas e Mercantis, t. 1, Lisboa, 1802, p. 10.
| 84
148 Cf., por exemplo, Mercurio Britannico, XIv, 10 de Março de 1799. 85
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
Os sons do silêncio
pouco provável que, na época, e entre os líderes intelectuais portugue-
Fins.
ses, existisse muita gente que perfilhasse o escravismo de Azeredo | Coutinho. O próprio Coutinho admitia ter poucos seguidores, dirigia a | sua obra expressamente aos Brasileiros e fazia alusão a ataques que os 1
Blemento central do abolicionismo inglês, era a sua parte viva, contundente, dirigida às sensibilidades, a parte que frequentemente aparecia BXposta nos livros, nos jornais, nas barras dos tribunais, no Parlamento.
seus textos tinham sofrido!*º,
No mundo ocidental de finais de Setecentos,
Um
:
desses ataques foi desferido por Ribeiro dos Santos, que, na :
qualidade de censor, foi chamado a pronunciar-se sobre a Analyse do bispo, tendo-se manifestado contrário à sua publicação. O que mais feria a sua sensibilidade censória era, ao que dizia, o carácter «apologético e declamatório» utilizado por Coutinho numa causa que se defendia mal, «e que pior fica quanto mais se quer defender»!50, O pro- | blema da escravatura era, na sua perspectiva, um assunto controverso e'“
sobre o qual conviria «guardar mais silêncio do que falar». Ainda que " seria desejável que não se acrescentassem «mais obstáculos e motivos para fazer perpetuar a escravidão e desviar do coração dos Príncipes a beneficência que podefria] ainda um dia restituir a liberdade a estes | infelizes»!5!, a entre comum fosse o toleracionism de tipo este que É possível
essa exposição
constituía
um
o homem informado sabia
preferissem omitir o tema, atendendo aos interesses do império. Um bibliófilo e erudito como Ribeiro dos Santos era, estava relativamente
informado acerca dos avanços do abolicionismo realizados nos
" Estados Unidos, em França e na Grã-Bretanha. Talvez não tivesse lido
Contudo, aquele que foi um dos mais respeitáveis e fecundos escritores que Portugal teve no século XvIII, não colocou essa informação ao ser-
Real das Ciências de Lisboa e que aí, segundo informação de Ribeir dos Santos, teria ofendido «os sentimentos do público» (razão pe qual não foi aceite para publicação pela Academia)!5º. Mas é mui improvável que a faceta mais crítica do toleracionismo, a que estavé mais próxima do abolicionismo e que, por razões de comodidade, po deremos designar por para-abolicionismo, estivesse muito divulga para lá de um pequeníssimo círculo de gente ilustrada. Até porque seus aderentes seguiam, a esse respeito, a estratégia do silêncio. O mai; significativo no excerto de Ribeiro dos Santos acima citado é a exort ção ao mutismo: sobre o tráfico, convinha «guardar mais silêncio d
Viço do seu confessado desejo de pôr um termo ao tráfico. Desde o início que omissão e silêncio foram elementos centrais da história do processo abolicionista em Portugal, o que criou condições para uma persistente confusão entre aderentes e resistentes à chamada causa da humanidade, visto que o silêncio era uma táctica utilizada desde o início e quase universalmente pelos escravistas: foi usada em Liverpool, no período da grande campanha popular contra o tráfico Inglês!55; foi usada em França logo em 1789, quando os grandes proprietários de S. Domingos consideraram que deviam manifestar-se o menos possível (ao mesmo tempo que faziam tudo para que a questão iibolicionista não chegasse a ser debatida na Assembleia)!56; e foi se-
que falar». Ora, a exposição dos horrores inerentes ao sistema esc
vista era fundamental para a propagação das novas ideias contesta
guida também nos Estados Unidos, onde, a seguir à independência, o
149 Coutinho, Analyse sobre ..., cit., prefação (p. V). 150 Cf. Bastos, ob. cit., pp. 296-297.
153 Cf. Davis, Age of Revolution, cit., p. 425. 154 Carta de Ribeiro dos Santos sobre a escravatura, BN, Reservados, códice 4710
151 Id,, ibid.
RKA
já vimos,
Benezet, mas conhecia os debates parlamentares ingleses, vários textos de Quakers e a argumentação antiescravista de Montesquieu, de Adam Smith, de Brissot. Na sua correspondência particular, preocupava-se em indicar minuciosamente as páginas de livros e os artigos dos jornais — que deveriam ser lidos por quem quisesse contestar o escravismo!54,
elites letradas. Sabe-se que a obra de Azeredo Coutinho foi inicialmente concebida e apresentada em forma de memória à Academií
152 Td., ibid.; assinale-se que, apesar da recusa da Academia e da censura proferida Ribeiro dos Santos em 1806, a obra de Coutinho acabou por se imprimir e publicar Lisboa dois anos depois, por ordem superior.
e como
que o tráfico de escravos dificilmente conseguiria sobreviver a um amplo debate público. Como Charles James Fox dissera, a abolição só poderia ser evitada se um tal debate fosse omitido, cerceado, amordagndo!*, Tgual convicção existiria, também, em Portugal e seria ela que levava a que mesmo os potenciais aderentes às ideias abolicionistas
bem |
as circunstâncias pudessem obrigar os governos a «tolerar» o tráfico
Naturalmente,
porf em
(Ils. 75-76).
155 Drescher, «The slaving capital ...», cit., p. 132. 156 Chatillon, o0b. cit., p. 142.
Os sons do silêncio
Portugal e o abolicionismo na viragem para Oitocentos
assunto foi estranhamente esquecido, deixando de aparecer escritos
pró-escravistas!57,
formas,
À
O véu do silêncio que serviu para confundir na época confunde
agora o esforço de quem procura perceber numa dezena de manifestações expressas. gor, não é possível, a partir das escassas Portugal, estabelecer qual a relevância que problema
da escravatura tinham
da í
época, e qualquer interpretação que procure ir muito para além da sim- ples constatação da existência dessas duas posições é, dada a raridade de manifestação pública das ideias, fortemente especulativa. Da análise ressalta, no entanto, como
-
quadros mentais com base O que significa que, em ri- .) aflorações da temática em . as duas formas de pensar o |
na sociedade letrada portuguesa
conclusão segura, a inexistência de aboli- )
cionismo em Portugal, pelo menos de forma pública e captável pel historiador. Para além das manifestações subterrâneas de um Ribeir dos Santos, não é perceptível qualquer esboço de corrente de opiniã que perspectivasse o problema à semelhança dos abolicionistas britâni cos ou, sequer, que conhecesse o seu pensamento, acção e project universal. Note-se, a propósito, que foi a partir de uma breve notícia d Londres publicada na Gazeta de Lisboa, e não em consequência d qualquer contacto directo com os textos dos abolicionistas britânicos
mais
ou menos
recentes, mais ou menos
a
cultura cristã. As
perspectivas
escravista e toleracionista tinham
mmesmo um ponto de convergência importante, na medida em que ambns visavam, no imediato, a manutenção do status quo, fosse de uma
lorma expressa, fosse através da omissão e do silêncio. É esse pacto de Silêncio, esse estado de torpor e de alheamento, que contribui para ex-
Plicar não só a facilidade com que o governo português aceitou ligar-se À locomotiva abolicionista britânica, mas também o sentimento de lo-
Bro que se apoderou da nação quando, em 1811, os Ingleses passaram — das palavras à prática. Um sentimento de logro que viria a condicionar substancialmente a forma como, de então em diante, o problema da
escravatura passou a colocar-se ao país, tanto em termos políticos como
Ideológicos.
que Azeredo Coutinho sentiu a necessidade de tomar publicamente
defesa do tráfico de escravos!58, Sem acesso, ou com acesso muito reduzido, aos rios de ideias qu
iam correndo no exterior, Portugal também não estava em condiçõe de gerar águas abolicionistas próprias, internas. Durante o século XvI e início do século XIX, houve, pontualmente, uma ou outra contestaçã
quanto às formas assumidas pelo tráfico e a escravidão, mas nunca al £go que fundamentasse teoricamente uma mudança de atitude relativa mente às práticas instituídas do passado. Existiam no país duas con cepções diferentes — escravista e toleracionista — entre as quais poderi haver tensão mas também alguma convergência. As duas concepçõe não eram, por norma, diametralmente opostas, mas apenas diferente 157 Mesmo em Rhode Island, a abolição do tráfico acabou por passar sem grande difi-. culdade na assembleia legislativa de 1787; a oposição à medida só se manifestou publica-. mente quando, face ao escasso empenho dos governantes em aplicar a lei, os abolicionista: locais criaram uma organização que se encarregou de agitar a questão, denunciando os. abusos e levando os prevaricadores à barra dos tribunais; só então, quando a estratégia do | silêncio ficou comprometida, os traficantes e antiabolicionistas vieram para os jornais, | abrindo bruscamente os diques da controvérsia, que logo se estendeu aos Estados vizinhos | (cf. Tise, ob. cit., pp. 16 e 33, e Coughtry, ob. cit., pp. 205-207). À
158 Coutinho, Analyse sur la justice ..., cit., prefácio do autor. 88
flexíveis, de lidar
Ideologicamente com o velho problema da acomodação do escravismo
89
Capítulo II
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista: do início da pressão inglesa à secessão brasileira
Em tempo de paz, e de acordo com os princípios jurídicos admitidos pelas nações ocidentais, os navios mercantes não podiam ser interteptados pelas marinhas de guerra de nações estrangeiras. Porém, nuMa situação de conflito militar, a intercepção e captura da navegação Ínimiga constituía uma tarefa de rotina, e desde 1805 que a Royal — Navy tinha vindo a apresar, ainda que de forma semiacidental, embar-
Gnções negreiras de vários países (entre os quais Portugal)!. Do ponto de vista dos abolicionistas, a guerra criava uma ocasião de excepção — que urgia aproveitar, mesmo que esse aproveitamento nem sempre fosse fácil ou isento de escolhos legais, sobretudo se envolvia nações neutras ou aliadas?. De toda a forma, com ou sem subterfúgios, a partir ! Serge Daget, «Tactiques, stratégies et effets du droit de visite», in Daget (ed.), ob. eit., pp. 346-347. Para o caso do bergantim português Monte do Carmo, apresado em 1806, quando regressava com escravos da costa de Áffrica, ver o processo de julgamento dos enptores em ANTT, MNE, caixa 461 (maço de 1806).
? Sobre a argumentação utilizada para contornar a ilegalidade formal do apresamento de navios norte-americanos e espanhóis, ver David Murray, Odious Commerce.
Britain,
Spain and the Abolition of the Cuban Slave Trade, Cambridge University Press, Cambridge, 1980, pp. 13-19 e 40-41, e Bandinel, ob. cit., pp. 141-142. 91
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
da entrada em vigor do Abolition Act, em
1808, a Royal Navy iniciou
tomissários limitavam-se a pedir «uma estrita proibição da escraura de Bissau e suas dependências»6. Com o propósito de vedar a
um ataque sistemático ao tráfico negreiro, destacando dois navios p
a costa de África (onde deveriam igualmente apoiar o envolvimento
h da Serra Leoa aos negreiros, o relatório sugeria mesmo que, como
britânico na nova colónia da Serra Leoa, área que interessava muit
lida compensatória, se facilitasse às potências estrangeiras o prosuimento do tráfico para leste de Ajudá”.
particularmente à recém-criada African Institution, uma organização
destinada a consolidar o abolicionismo e a estimular o comércio lícito com África)?.
í
Inicialmente a marinha inglesa não interferiu com a navegação portuguesa na costa africana, o que se compreende por duas razões fundamentais: em primeiro lugar, porque não dispunha, então, dê
A costa ocidental africana a norte do equador
URA Nº 1]
meios navais suficientes para cruzar toda a costa e os negreiros do Bra-
sil não eram especialmente activos na zona efectivamente patrulhada,. Depois, e mais importante, porque, sendo Portugal uma potência aliad não existia ainda a mínima base legal para o apresamento dos tumbei-
Kio Niger
rost. O primeiro relatório elaborado pelos comissários britânicos sobre o estado do tráfico é esclarecedor quanto ao seu desejo de cingir «
uma vez que o grande palco do odioso comércio se situava na lin costeira entre Ajudá e Angola, e que os cruzadores então disponíveis não eram suficientes para actuarem num perímetro tão extenso, serií
escoamento de escravos dessa região”. Nesse âmbito geográfico trito, a grande ameaça parecia provir dos norte-americanos que, con
Três Pontas
a lei do seu país, se tinham envolvido no negócio, cobrindo os seuí
navios com bandeiras e papéis falsos (geralmente espanhóis). De Por
EFQUADOR
5 Tomé y
tugal haveria apenas que temer o tráfico dos chamados rios de Guin 3 Lloyd, ob. cit., p. 61; Curtin, The Image of Africa, cit., pp. 157-158. Sobre o início d colonização da Serra Leoa e a relação da colónia com a African Institution, ver Christop el Fyfe, A History of Sierra Leone, Oxford University Press, London, 1962, caps. Fv. 4 Tumbeiro era a designação genérica atribuída aos navios negreiros brasileiros. Angola, utilizava-se igualmente para referir os africanos que traziam os escravos até costa (cf. Joseph C. Miller, Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Sla Trade, 1730-1830, The University of Winsconsin Press, Madison, 1988, p. 314). 5 Report of the Commissioners Appointed for Investigating the State of Settleme and Governments on the Coast of Africa (Appendix A), Parliamentary Papers, 1811 ( lizei a trad. port., «Relação dos Comissários Nomeados para Investigar o estado dos Estabelecimentos e Governos na Costa de Africa que têm Relação com a Escravatura», l O Investigador Portuguez em Inglaterra, Setembro e Outubro de 1812, pp. 393-401 | 599-605, respectivamente; o excerto citado é o parágrafo 17.º); ver igualmente Fyfe, ob. c
pp. 105-114. 92
—
—O governo britânico não perfilhou inteiramente a sugestão restritiva
— dos seus comissários. Mas, ainda que, em princípio, não confinasse a
Sua acção aos interesses específicos da African Institution, tanto a ma6 «Relação dos Comissários ...», cit., parágrafo 23.º
7 Ibid., parágrafo 27.º 93
Os sons do silêncio
rinha como
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
a diplomacia inglesas actuavam em consonância com
!lh e para capturarem navios portugueses
rj
encontrados
a comerciar
nivos fora dos estabelecimentos efectivamente ocupados pela Coroa uguesa!!,
informações provenientes de Freetown. Por isso, num artigo secreto do tratado anglo-português de 1810, Portugal fora levado a prometer ) estrita proibição do comércio negreiro nos estabelecimentos de Cache e Bissau. O artigo estipulava até que, mediante certas condições, ess:
1 À tenaz britânica
estabelecimentos seriam cedidos à Grã-Bretanha por um prazo de cinquenta anos, o que, como
reconhecia Linhares,
constituía uma
impor-
tante concessão arrancada ao governo portuguêsº. As condições previstas nesse artigo secreto nunca se verificaram Bissau e Cacheu conservaram-se sob o domínio da Coroa portugues No entanto,
o comprometimento
abolicionista assumido pelo govem
do Rio de Janeiro no artigo 10.º do tratado de aliança e amizade de 1810 viria a converter-se numa importante alavanca na mão dos aboli:cionistas ingleses. Os homens da African Institution (nomeadamente, James Stephen e Zachary Macaulay) tiveram grande peso na elabora: ção de medidas legislativas abolicionistas e até certo ponto orientara
a acção do Foreign Office no problema da supressão, desempenhande de forma oficiosa o trabalho que viria a caber, depois, ao Slave Tr Departmentº. O tratado de 1810 restringia o tráfico aos domínios po tugueses, mas não obrigava à promulgação de qualquer medida conferia aos cruzadores ingleses quaisquer direitos de intervenção
O texto era a tal ponto vago e ambíguo que, mais tarde, William Scot um dos mais conceituados juízes do Almirantado britânico, viria a con
fessar-se incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito do artigi 10.º, «involved as it is by its own obscure and equivocal phraseolo
and by its application to the geography of a coast very superficial known here, and to Portuguese claims of sovereignty, not at all ui derstood»!º, Todavia, e ainda que cientes das ambiguidades do text em questão, os abolicionistas estavam decididos a utilizá-lo e deram-lk um sentido abusivamente mais amplo e mais preciso, fornecendo. Royal Navy os pretextos para começar a policiar e, eventualmenti apresar os negreiros portugueses em trânsito no Atlântico. Em 181 os comandantes
dos (então já) quatro navios do cruzeiro antitráfic
receberam instruções para actuarem na costa entre Cabo Verde e À
i
— De meados de 1811 a Janeiro do ano seguinte, os cruzadores britã-
lgos, para além de terem afugentado da costa africana alguns tumbeique se preparavam para carregar escravaria, apresaram pelo menos 1 deles, 13 dos quais nos portos da Costa da Mina; os outros 5 foram presados nas Antilhas, em Cabinda e no alto mar!2. Como é óbvio, só Navios capturados nas Antilhas se poderiam considerar prima facie Mm infracção ao estipulado no artigo 10.º do tratado de 1810, que apeWas autorizava o tráfico entre colónias portuguesas. No final de 1812, ubia a 24 o número de navios negreiros com bandeira portuguesa já resados!3, p
Esta actuação levantou um coro de protestos no Brasil, nomeada-
ente na Bafa. Os directores das quatro companhias de seguros e os Bgociantes baianos cedo representaram contra a actuação britânica, desmontando aquilo a que chamavam, Justificadamente, os «cabalísti&os pretextos» utilizados pelos ingleses para fundamentar os apresaMentos!*t. A irritação crescente da população brasileira colocava o goYerno do Rio numa posição delicada, na medida em que qualquer pProjecção violenta sobre os cidadãos e bens ingleses no Brasil poderia Implicar represálias políticas
e económicas.
Assim
se compreende
o
esforço inicialmente desenvolvido pelos governantes portugueses no fentido
do apaziguamento
da comunidade
comercial
brasileira,
dei-
' Xundo-lhe antever as indemnizações que certamente se conseguiriam
" Lloyd, ob. cit., p. 62; ver memorandum de John Barlow (secretário do Almirantado) Nos comandantes dos cruzeiros, 2 de Maio de 1811, in Correio Braziliense, Setembro de
IB15, pp. 384-385.
8 Linhares a Funchal, 6 de Março de 1809, ANTT, MNE, livro 566. Para o texto gral do artigo secreto, ver Castro, ob. cit., pp. 413-415. A 9 David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade, O) ford University Press, Oxford, 1987, pp. 104 e segs.; Turley, ob. cit., pp. 75-76. O Sl Trade Department era uma secção especializada do Foreign Office, criada em 1819, e de tinada a analisar toda a informação recolhida a respeito do tráfico negreiro. :
10 Scott ao Almirantado, 4 de Agosto de 1814, cit. in Eltis, ob. cit., p. 107.
94
12 AÀ Baía era a praça mais atingida, com 15 navios apreendidos (cf. Verger, ob. cit,, : p!a. 295-297, 321-232 e 637). Para a lista completa dos apresamentos de 181 1-1812, ver Correio Braziliense, Junho de 1812, p. 746.
!3 Eltis, ob. cit., p. 108.
14 Representações õ dos negociantes : fn da Baía, ao príncipe regente D. João, in O Investi-
uudnrgggrtuguez em Inglaterra, Maio de 1813, pp. 360-375; a expressão citada encontra-se
n p. 363.
95
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
do governo de Londres, «cuja dignidade e reconhecida boa fé garantem uma pronta e imediata reparação»!"5.
Brêntes
percepções
sobre
a natureza
e relevância
do
movimento
licionista inglês.
Em teoria, teria sido desejável para o governo do Rio de Janeiro qu
D, Domingos de Sousa Coutinho (conde do Funchal) vivia há mui-
a Inglaterra reconhecesse o arbítrio da sua acção policial e o corrigisse Só assim seria possível salvaguardar o prestígio nacional e obter a rá pida reparação dos interesses lesados dos traficantes da escravatura. N prática, porém, importava, antes do mais, garantir a manutenção do.
à nnos em Inglaterra e, melhor ou pior, podia medir directamente o ho que o tema da abolição tinha adquirido na cultura inglesa. ConselIlêentemente, chamava a atenção do governo português para a necessijde de apaziguar os «filantropistas» através de iniciativas antitráfico
abastecimento de escravos ao Brasil, e essa foi a meta prioritária do ;j
IMmadas de forma espontânea. O embaixador insistia em que a questão
governo português e aquela em que se obtiveram os primeiros resultados: em 6 de Maio de 1813, o Foreign Office instruía o Almirantado |
Gscravatura merecia mais atenção do que até então se lhe tinha dado * lêembrava que a oposição em Inglaterra estava «sempre alerta sobre Bhte assunto», outro tanto fazendo «o partido dos Metodistas, fortíssi-
para deixar de molestar os negreiros portugueses que actuassem bona/
fide ao abrigo do tratado e, nesse ano, só terão sido apresados 4 navios ) (e apenas 2 no ano seguinte)!6. Mais difícil de solucionar era o pro- Z blema das indemnizações por apresamento indevido. Londres não es- |
hulcsu era grande e Wilberforce — que Funchal classificava como «o
tava inteiramente segura de que a sua acção fosse conforme ao direit e, por isso, não era inteiramente afirmativa quanto à legalidade da ac-
gowning Street para examinar os artigos do tratado anglo-português felutivos ao comércio da escravatura; havia, portanto, que levar muito
o neste país»; a influência destes últimos na política abolicionista triarca
tuação da sua marinha. A expressão utilizada, logo no início de 1812 era a de que o apresamento dos navios portugueses «could not be con
aos negreiros
afectados,
sugeria
que
se )
;
A posição inglesa foi interpretada, valorizada e digerida de forma
Inglaterra:
diferente no Rio de Janeiro e na embaixada portuguesa em Inglaterra. À
Independentemente das razões que se prendem com as perspectivas
|
políticas e com as capacidades individuais das personalidades envolvi- ) das, essa divergência de interpretação e de aceitação reflecte, também,
mesmo
sido
chamado
a
|
«nenhum
regulamento,
nenhuma
lei, apareceu,
tendente,
ainda que a pouco e pouco, a diminuir esta importação de negros já tão excessiva no Brasil»?!. No ano seguinte, e a propósito de uma recente ameaça inglesa de proibir a assistência aos navios negreiros em trân-
sito para o Brasil, D. Domingos espraiava-se longa e significativamente sobre o tema da inacção portuguesa, permitindo-se tecer críticas e alvitrar soluções:
15 Aguiar a Arcos (governador da Baía), 21 de Maio de 1812, cit. in Verger, ob. cit.,
96
teria
Outro aspecto que aflorava assiduamente nos ofícios de Funchal era n censura à falta de colaboração abolicionista do governo do Rio com o seu homólogo de Londres. A inacção revelava-se, a seu ver, altamente prejudicial, não só porque lesava a imagem dos governantes portugueses, mas também porque predispunha negativamente os espíritos em
tânica, insustentável a longo prazo, parecia partir da suposição (acerta da) de que a maioria dos lesados preferiria evitar a morosidade dos tribunais para chegar rapidamente a acordos e alterações da lei que ga- |
Geral de Portugal em Londres, no início de 1815 subia a 34 o número total de navios negreiros portugueses apresados ou de outra forma lesados pela Royal Navy (ver O Investigador Portuguez em Inglaterra, Março de 1815, p. 141). !7 Liverpool a Funchal, 27 de Fevereiro de 1812, ANTT, MNE, livro 535. 18 Castlereagh a Funchal, 20 de Abril de 1813, ANTT, MNE, livro 535.
—
época?,
vas da ilegalidade do procedimento da Royal Navy!º. A estratégia bri- |
p 297 16 Castlereagh aos Lords do Almirantado, 6 de Maio de 1813, in Correio Braziliense, Setembro de 1815, pp. 385-386; Eltis, ob. cit., p. 108. De acordo com a lista do Consulado
fanáticos»
mente vivas do país, repetiu-se várias vezes na sua correspondência da
apresentassem primeiro, perante os tribunais do Almirantado, as pro-
rantissem o desimpedimento das rotas marítimas.
de
sério uma questão que poderia «dar que fazer a Sua Alteza Real»!º. Bste tipo de advertências e de informações acerca do unanimismo anti—tráfico inglês, e do ardor que convertia o abolicionismo numa espécie de fanatismo religioso capaz de congregar todas as forças politica-
no reconhecimento da razão portuguesa e, relativamente aos insistentes. de indemnizações
sorte
—
sidered to be unlawful»!7. De toda a forma, o governo inglês tardav pedidos
desta
— » '
Talvez Sua Alteza Real achasse útil antecipar ao tratado, aqueles artigos que tendem evidentemente a renovar as antigas regulações para o 19 Ofício de 7 de Abril de 1812, BN, Reservados, códice 9073.
20 Ver, por exemplo, ofícios de 1 de Abril e de 15 de Maio (secretíssimo) de 1813, BN, Reservados, códice 9073.
21 Ofício de 7 de Abril de 1812, BN, Reservados, códice 9073.
97
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
melhor tratamento dos negros na passagem da África para o Brasil, principalmente da Mina e de Moçambique, aonde Mr. Wilberforce acusa (nãe sei com que fundamento) de amontoar os negros sem proporção algu com a arqueação dos navios (como ordena a lei do Senhor Rei D. Pedro II) e sem atenção, por conseguinte, à quantidade de mantimentos, aguadas circulação do ar; e sobre esta verdadeira ou falsa acusação, ameaça Lorc d Castlereagh de persistir no rigor de negar todos os auxílios no Cabo dá n' Boa Esperança aos navios portugueses da escravatura porque, fiados nesses auxílios, diz MyLord, é que os portugueses amontoam negros sem. piedade. A Religião e a Piedade de Sua Alteza Real mereciam, por si sós, rê e sem influência estrangeira, uma investigação de motu proprio, para mediar o mal, se necessário é??.
J na costa de África, e, num segundo, e para corresponder à «quimede Mr. Wilberforce e outros apaixonados do sistema de colonização s de negros em Serra Leoa», que se proibisse o comércio de escra-
em Cacheu e Bissau?t. A cedência do tráfico destas duas praças lh um sacrifício necessário «para ver se Mr. Wilberforce e Stevens le/, que são os dois membros mais influentes da sociedade fanática "hnmada African Institution, e que tanto alarido fazem no Parlamento, persuadem a desistir da Costa da Mina e contentar-se com o probsto relativamente a Bissau»?. De forma consequente, Funchal ela-
brara um plano, fundamentado no parecer de um negociante de escraYos, que previa que,
a troco das indemnizações,
Portugal
proibisse
Hnteiramente o tráfico a norte do cabo das Palmas e que aceitasse que Funchal recordava que as acusações não provinham exclusivamen «-, da Inglaterra, assinalando que na Memória de Luís Oliveira Mendes (recentemente premiada em sessão pública da Academia das Ciências) expressamente se dizia «que se abusa grandemente da lei de 18 d Maio de 1684». O embaixador tomava «igualmente a liberdade de observar que a referida gloriosa lei do Senhor Rei D. Pedro H devia ser ampliada pois o número de escravos que ela consente que se embarque
Bissau fosse governada por um oficial inglês, como forma de garantir
“Qque o compromisso abolicionista seria efectivamente cumprido?, Mas as suas sugestões não colhiam o assentimento do Rio de Janei-
fo, À proposta de abolição parcial do tráfico, e consequente entrega da flscalização das disposições a um oficial britânico, era vista como im-
— plicando, para além do prejuízo inerente ao fechamento de um ramo da — fetividade comercial, «uma quebra manifesta na manutenção do exer-
eício da soberania [portuguesa]», pelo que se considerava inteiramente fora de questão??. De todos os alvitres do seu embaixador, o governo português reteve apenas o da regulamentação da lotação máxima dos
parece demasiado [...]; a lei de Jorge IIIT em 1789 exactamente fixava ay'_' número
à metade».
Sugeria,
também,
que
se estabelecesse
no Brasil
um imposto sobre os escravos de luxo ou urbanos. Na sua opinião, ingleses «estariam mais dóceis se vissem que Sua Alteza Real dava, d seu , alguns passos para a gradual abolição; mas que, vendo que nad se fazia senão por tratado e constrangimento, isto os irritava e enfurecia». Tendo, talvez, em mente o exemplo dos inquéritos em devido tempo efectuados pelo Parlamento britânico, Funchal sugeria que : «Gloriosa Investigação» que preconizava tivesse toda a seriedade e solenidade e que fosse dirigida por «pessoas conhecidas pela sua instrução e luzes, porque reflectiria uma grande honra ao soberano»?.
Návios negreiros, ao mesmo
unpresamento dos navios negreiros, que caíra num completo impasse,
havia também a oposição inglesa à união ibérica e ao desejo do governo do Rio de Janeiro de expandir o seu domínio para sul, para a região platina, e, ainda, uma crescente onda de recriminações sobre a forma como o tratado de comércio de 1810 estava a ser aplicado??. O fim do idílio luso-britânico acabaria por reflectir-se ao nível da composição do
Partindo desta perspectiva crítica quanto à actuação portuguesa (o 7
falta dela), partindo também da sua postura conciliatória para com interesses britânicos, Funchal estava, naturalmente, aberto a cedências. para a resolução do diferendo. No início de 1813, ecoando as propostas | inglesas, já falava da necessidade de ajustar uma convenção bilateral sobre o comércio da escravatura que estipulasse, num primeiro artigo, a indemnização que o governo de Londres daria pelos navios apresa-.
próprio governo. Se após o desaparecimento de Linhares, no início de 24 Ofício de 10 de Março de 1813, BN, Reservados, códice 9073.
22 Ofício de 27 de Setembro de 1813 (secretíssimo), BN, Reservados, códice 9074 (sublinhado original). 23 Td. (a Lei de 1789 a que D. Domingos se referia era o Dolben's Act).
98
tempo que deixava claro que não estaria
disposto a fazer novas concessões à Inglaterra?º. Nos meses precedentes, aliás, várias razões tinham contribuído para deteriorar o relacionamento Iuso-britânico. Para além do problema do
q À
25 Ofício de 27 de Setembro de 1813, BN, Reservados, códice 9074. 26 Funchal a Galveias de 26 de Agosto de 1813, ANTT, MNE, caixa 733. ?7 Galveias a Funchal, 7 de Janeiro de 1814, in Biker, ob. cit., vol. XVIII, pp. 26-30. 28 Alvará de 24 de Novembro de 1813, in Correio Braziliense, Março de 1814, pp. 478-490. ?? Para toda a movimentação diplomática em torno do problema da abolição do tráfico,
ver Alexandre, Os Sentidos do Império ..., cit., pp. 243-285.
99
Os sons do silêncio
1812, a pasta dos Estrangeiros fora entregue a Aguiar e a Galveias Í ministros ainda aceitáveis aos olhos de Londres, em Janeiro de 1814,
» Tempo de cedências: de Viena à convenção de 1817
Araújo de Azevedo foi chamado de novo ao governo como responsá-
Na estratégia política que o novo governo do Rio de Janeiro havia Irnçado, a capacidade de resistência à pressão inglesa passava, quase Xelusivamente, pelo aproveitamento de uma eventual inversão dialécTtien durante o realinhamento de forças no pós-guerra se, eventualmente Inrmados com o poderio da Inglaterra, alguns dos aliados passassem Para uma posição de neutralidade, e os neutros para a oposição. Iam Hosse sentido as instruções dadas aos representantes portugueses no
vel pela Marinha e Ultramar. Se bem que Aguiar tivesse permanecid Ç, na secretaria dos Estrangeiros, na prática D. João entregava a direcção | da política externa a Araújo de Azevedo, que, daí em diante, iria fazer 1 oposição clara à política britânica. Os protestos de Strangford, os seus esforços para impedir a nomeação do francófilo Araújo de Azevedo, as ,' suas tentativas para fazer regressar a família real a Lisboa, foram inúteis. Era a viragem. Na questão da escravatura, e em termos diplomáti
Congresso de Viena (Palmela, Saldanha da Gama e Lobo da Silveira).
cos, Aguiar e Araújo de Azevedo ficaram voluntariamente limitados táctica do desafio, táctica improdutiva no imediato, visto que a sua ex
“ Nossas instruções, depois de se historiar o processo dos apresamentos e
ploração eficaz implicaria a utilização de retaliações económicas, polí-ticas, ideológicas, ou seja, de uma diplomacia total que o Rio de Jan ro não podia contemplar. Numa conjuntura política adversa, já que guerra na Europa remetia para segundo plano os conflitos meramente jurídicos e dificultava qualquer tentativa de obtenção de apoio interna cional, inoperante a via da negociação e da cedência, que os ministro portugueses não quiseram reabrir, restava ao governo do Rio aguard pelo fim das hostilidades na Europa e pelos tratados e ajustamento que daí inevitavelmente resultariam. fj O conde do Funchal foi naturalmente desautorizado pelo novo go verno. Tido por incapaz e amigo dos Ingleses, foi liminarmente afasta-
Ínglesa, insistia-se na ideia central de que o comércio da escravatura só Poderia terminar «lenta e gradualmente». Ora, como a Inglaterra recorFin à força «sem atender a coisa alguma para, de repente, abolir a Bscravatura [do Brasil)», os plenipotenciários deveriam procurar no Congresso todos os apoios para se oporem a tais pretensões, nomeatlnmente o do Imperador Alexandre:
do da deputação ao Congresso
de Viena e da própria embaixada
de
Londres. Antes de sair, porém, o embaixador ainda teve ocasião repetir os seus avisos sobre a «obstinação com que Mr. Wilberforce e Parlamento» persistiam no projecto de fazer equiparar o comércio ne greiro à pirataria, e de deixar implícito que Portugal não poderia resis tir ao empenho abolicionista da Inglaterra, devendo fazer cedências o até abdicar por completo do tráfico (o que, na sua óptica, até nem seria uma catástrofe). Antevendo o funeral do odioso comércio, Funchal
considerava mesmo que se devia ir pensando naquilo que se poderia exigir dos Ingleses como contrapartida da abolição, para que Portug não caísse no «antigo método de se abandonar à generosidade do go
verno britânico, e, pelo contrário, insistilsse] no que é de direito e exi gi[sse]
a compensação, antes de ceder o comércio da escravatura»?0,
30 Ofício de 4 de Julho de 1814, BN, Reservados, códice 9075.
100
e
se fazer uma breve análise acerca do «falso verniz de filantropia»
É notório que Sua Majestade o Imperador da Rússia, tem os mais vivos desejos de abolir a escravidão nos seus Estados, mas viu os inconvenientes de o fazer de repente e dispôs todos os meios para o executar por uma lenta progressão [...]. A ruína deste vasto e precioso território do Brasil é : infalível se a Inglaterra consolida o seu projecto com a união de outras potências. Portanto, fará V. Ex.º quantas diligências forem praticáveis para a evitar, tratando gravemente sobre esta matéria com o ministro de Estado que acompanha o Imperador da Rússia, ou com os seus plenipotenciários, para os sondar ou convencer a este respeito. Este assunto é tão grave que Sua Alteza determina [...] que V. Ex.º declare que tem ordem positiva para se recusar à assinatura, e somente na última extremidade poderá assinar sub sperati, fazendo juntamente com os seus colegas um protesto contra
esta exigência forçada?!.
O teor destas instruções mostra até que ponto o governo do Rio prosseguia, na questão do tráfico, uma linha diplomática desfasada das
rfealidades políticas e ideológicas da Europa. Mostra também uma mMuito corrente confusão, que adiante se analisará, entre as problemáticas do tráfico de escravos e da escravidão. Aos olhos dos abolicionistas britânicos, que, na época, visavam apenas o fim do comércio marítimo de escravos, a questão da servidão russa pouco teria a ver com a *! Aguiar a Palmela, 16 de Junho de 1814, ANTT, MNE, livro 47 (sublinhado original). 101
Os sons do silêncio
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
do tráfico negreiro português. Distanciados geograficamente dos cen- -
tros de decisão, pouco conhecedores da motivação e das metas dos | abolicionistas, como vimos no capítulo anterior, os governantes portu- | gueses tendiam a misturar coisas diferentes num mesmo saco e a errar
na escolha dos interlocutores a privilegiar. O fim da guerra veio, então, encontrar o governo português irredutível no plano dos princípios e esperançado em conseguir iludir o problema da abolição. Mas a sua posição não melhorara. Na verdade, as
possibilidades de manutenção legal do tráfico português, já de si dé beis, tinham diminuído com as movimentações ocorridas em 1814, ano
em que a pressão do abolicionismo popular sobre o governo britânico se acentuara. A Grã-Bretanha emergira das guerras napoleónicas numa .ª: posição dominante e Wilberforce e seus pares contavam com essa su- | perioridade para liquidarem rapidamente o infame comércio. AÀ Franç fora derrotada e os países ibéricos estavam numa situação tão precária que — pensavam - seria relativamente fácil forçá-los à abolição32,;;j O governo inglês tinha uma visão menos maximalista sobre a sua posição de vantagem estratégica e se, por um lado, conseguiu que as grandes potências continentais aceitassem, em princípio, secundar todas as. medidas relativas à abolição que viesse a apresentar no Congresso de Viena, por outro lado acedeu, no tratado de Paris de 30 de Maio de
1814, a restituir as colónias à França e a aceitar que o tráfico francês prosseguisse por mais 5 anos.
j
Tratou-se de uma concessão altamente impopular em Inglaterra, / onde, por entre apelos à guerra, os abolicionistas levantaram a opiniã pública contra o que classificavam como a reanimação do odioso comercio. Em pouco mais de um mês entraram no Parlamento 772 peti-. ções — cerca de 1 milhão de assinaturas, a maior contestação escrita jamais vista??. Em
consequência, Wellington recebeu instruções par
tentar renegociar o acordado com os Franceses, procurando levá-los à abolição imediata a troco da oferta da Trinidad ou de compensações | monetárias**. Mas a pressão directa do lobby abolicionista britânico 32 Cf. Murray, ob. cit., p. 50. Assinale-se que, entretanto, e por pressão inglesa, já
Projectou-se também sobre o exterior, através de novo surto de publiBnções antiescravistas e de contactos directos. Nesse mesmo ano de 1814, Macaulay e Clarkson foram a Paris, onde, coadjuvados por abolicionistas locais, tentaram influenciar o governo francês?5. Nestas cirBunstâncias, e por muito flexível que pretendesse ser, parecia claro que o Foreign Office teria de obter algo em Viena para apaziguar a opinião — Ppública doméstica. Por isso, como indicava Liverpool a Castlereagh, as — Suas metas eram a abolição total do tráfico no prazo de 5 anos ou, pelo Menos, a sua imediata interdição ao norte do cabo Formoso?35. O Congresso teve início em Setembro de 1814 e, sob a direcção das
grandes potências, centrou-se no reequilíbrio político da Europa e na mManutenção da paz. Um novo conflito generalizado implicaria quase certamente novas revoluções e, consequentemente, a destruição dos Antigos Regimes. Por um curto período, no fim do ano, esteve imi-
nente a ruptura da aliança anti-revolucionária, devido às exigências
territoriais da Rússia. Em
3 de Janeiro de 1815, Inglaterra, França e
Áustria chegaram mesmo a constituir uma liga defensiva secreta para se oporem ao programa russo-polaco. No entanto, a Rússia viria a contemporizar e não chegou a ocorrer qualquer realinhamento de forças favorável aos propósitos escravistas da Coroa portuguesa. Nas negociações que entabulou com Castlereagh, a delegação portuguesa acabou por adoptar uma táctica e uma filosofia negocial oposta à que fora preconizada pelo governo do Rio. Na realidade, Palmela erigiu a Inglaterra como seu interlocutor privilegiado — como ele próprio dizia, era absolutamente necessário «tratar directamente e só com os ingleses»37? —, conciliou e negociou algumas cedências importantes. O acordo com a Inglaterra deu origem a dois documentos: a convenção de 21 de Janeiro de 1815 e o tratado anglo-português datado do dia seguinte. Pela convenção, o governo britânico comprometia-se a pagar a soma de 300 000 libras esterelinas de indemnizações como forma de terminar com as disputas sobre os apresamentos de negreiros efectuados pela Royal Navy até 31 de Maio de 1814 (em artigo adicional, e secreto, a Inglaterra obrigava-se à restituição dos navios apresa-
dos após 1 de Junho de 1814). Pelo tratado de 22 de Janeiro, Portugal
Suécia proibira o tráfico de escravos, em 3 de Março de 1813, que a Dinamarca se com- | prometera, por tratado de 14 de Janeiro de 1814, a colaborar com os Ingleses na supressãojz' ; do tráfico à escala mundial e que a Holanda viria a interditar o comércio negreiro, porª decreto de 17 de Junho de 1814 (cf. Bandinel, ob. cit., pp. 132-135). A
33 Reginald Coupland, The British Anti-Slavery Movement, Frank Cass, Londres, 1964 (1.º ed.: 1933), p. 154; Murray, ob. cit., pp. 49-50; Walvin, «The public campaign ...», cit., ) 1981, p. 68; Drescher, «Whose abolition ...», cit., pp. 159 e segs. é
34 Drescher, «Whose abolition ...», cit., p. 162.
35 David Geggus, «Haiti and the abolitionists: opinion, propaganda and international politics in Britain and France, 1804-1838», in David Richardson (ed.), Abolition and its Aftermath. The Historical Context, 1790-1916, Frank Cass, Londres, 1985, pp. 118-119.
36 Cf. Murray, ob. cit., pp. 54-55.
37 Palmela pp. 195-196.
a Aguiar,
12 de Novembro
de
1814,
in Biker, ob.
cit., vol. XVIII,
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
prometia abolir o tráfico a norte do equador, estipulando-se ainda que,
daí em diante,
o comércio negreiro no hemisfério sul não pudesse ser.
feito «para outro fim que não o de suprir de escravos às possessões
transatlânticas da Coroa de Portugal». O governo português compro*«'%_ metia-se também
a adoptar, de acordo com
a Inglaterra, as medida ;
que melhor pudessem «contribuir para a execução efectiva» da abolição decretada no hemisfério norte. Como contrapartida, anulava-se o tratado de aliança e amizade de 1810 — incluindo os seus artigos se-. cretos — e considerava-se saldado o empréstimo de 600 000 libras este-relinas contraído em 1809 (do qual o governo português pagara já cerca de 25%)38. Londres comprometia-se igualmente a restituir as
60 000 libras depositadas pelo governo português como caução desse empréstimo. Era a derrota em toda a linha da estratégia definida no Rio, e, ironi-
camente,
a concretização da perspectiva anglófila de Domingos
Sousa Coutinho, que via algumas das suas concepções
serem posta
d Am
em prática pelo sobrinho, Palmela. A historiografia portuguesa tem realçado sobretudo a acção deste último em Viena, ignorando tota
mente a figura do conde do Funchal. Mas, na época, Palmela comuni+ cava frequentemente com o tio, fosse de viva voz ou através de carta
confessando-lhe as suas dúvidas, pedindo-lhe conselhos e pareceres sobre pontos que antevia de negociação mais difícil (um dos quais, ob: viamente, o do tráfico da escravatura). Palmela fora nomeado para
embaixada de Londres e, ainda que não tivesse chegado a tomar pos estivera na capital inglesa de Janeiro de 1813 a meados do ano guinte, altura em que partira para França. E é muito significativo q de Paris, no início de Agosto de 1814, tenha escrito ao tio pedindo-lhe entre outras coisas, os documentos referentes ao apresamento de greiros na costa africana e um mapa no qual pudesse traçar «a linha ao norte da qual prometemos cessar o comércio da escravatura»?º. Mês meio depois, já de partida para o Congresso de Viena, o plenipotenci rio português inquiria do tio se se deveria pedir à Grã-Bretanha « anulação do tratado de comércio [de 1810] ou só [a de] alguns arti
dele», na eventualidade de uma abolição total do tráfico?º. Estas duz cartas indiciam não apenas o papel consultivo e orientador que Funche teve junto do sobrinho mas também que, para este, a abolição parcial
lição total poderia conceber-se a troco de compensações, como já linchal advogara. Em Viena, recebidas as instruções provenientes do Hlo, Palmela terá muito provavelmente conseguido demonstrar aos
Us colegas a impossibilidade de as executar, e os três plenipotenciás portugueses decidiram afastar-se do que lhes estipulara o governo Aeeitar novas bases de negociação com Castlereagh. A Inglaterra não obteve em Viena tudo quanto pretendia. Enquanto Corriam as conversações bilaterais, o início de uma conferência geral
bre o comércio da escravatura foi-se sucessivamente adiando. Essa Bonferência iniciar-se-ia, por fim, a 16 de Janeiro de 1815 e nela parti-
param os plenipotenciários da Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Muécia, Rússia, Áustria e Prússia, o que constituía um primeiro revés Pura os representantes ibéricos, que pretendiam limitá-la às nações *om interesses ultramarinos. Contudo, quando Castlereagh propôs a libolição imediata, encontrou uma posição cautelosa da França, a par tlh forte oposição espanhola e portuguesa*!. A discussão acabaria em 8
te Fevereiro com uma declaração ambígua que, classificando o tráfico bomo «repugnante aos princípios da humanidade e da moral univerSil», e, falando hiperbolicamente em «clamor público em todos os paíhes civilizados para pedir que fosse suprimido quanto antes», acabava por admitir o princípio da abolição gradual do comércio negreiro por — feconhecer «a dificuldade de lhe interromper subitamente o curso»*?. — De toda a forma, e ainda que Portugal preservasse o grosso do fluxo de &scravos para o Brasil — que, como se sabe, provinha das colónias afrigunas do hemisfério sul —, o tratado anglo-português de 1815 iria atingir duramente os interesses dos negociantes e plantadores da Baía, Pernambuco,
Pará
e Maranhão,
tradicionalmente
muito
ligados
aos
Mercados da Costa da Mina e da Guiné. Aparentemente resignado, o governo do Rio procurou minorar o alcance do irremediável, diluindo-o aqui, tentando esquivá-lo acolá. Persistindo na sua táctica de águas turvas, Aguiar congratulava-se com a omissão dos artigos relativos ao tráfico no Acto Final do Congresso,
pois, como dizia, «quanto menos ficar ajustado sobre esta matéria, mais facilidade haverá para repelir as instâncias que o Governo britânico não deixará de fazer para acelerar a total extinção do comércio de
seria um dado tido por evidente — algo que se «prometia» — e que à 38 Para os textos da convenção e tratado, ver Castro, ob. cit. 39 Palmela a Funchal, 6 de Agosto de 1814, ANTT, MNE, caixa 961 (itálico meu).
40 Td., 17 de Setembro de 1814, ANTT, MNE, caixa 961.
1! Palmela a Aguiar, 16 de Janeiro de 1815, ANTT, MNE, livro 47. 42 Castro, ob. cit., t. V, pp. 195-201. À declaração de Viena não foi assinada pela Espanha.
105
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
escravos»*. Já antes o ministro português havia escrito a Cipriano R
ho inglês tinha necessariamente de começar a abrir mão de práticas, no
beiro Freire (o novo encarregado de negócios em Londres) ordenando-
Mínimo, contestáveis. Por essa razão, a partir de 1815, os abolicionistas bateram-se
-lhe que se apressasse a receber do governo britânico as 300 000 libras. esterelinas, e instruindo-o para que tentasse obter uma cláusula de ex-. cepção para S. Tomé e Príncipe, situados «quase se pode dizer, debaixo do equador», e que, na estrita inteligência da letra da lei, estariam | doravante impedidos de ser entreposto do comércio lícito da escravatu- ra e até mesmo de importar escravos para a continuação da sua própria vida agrícola e comercial. Antecipando eventuais problemas que poderiam advir da obrigação contraída em Viena de adoptar, de comum. acordo com a Inglaterra, medidas para a «execução efectiva» da aboli-"
ção, Aguiar sugeria ao seu embaixador em Londres que se entendesse | depressa com os Britânicos sobre as medidas a tomar, chamando a si o
exclusivo da fiscalização da navegação portuguesa (a ser feita por cruzeiro nacional)*. Num
um |
outro plano, e procurando ganhar tempo, o
governo do Rio absteve-se de avançar com qualquer lei impondo pena
mulgar legislação adequada ao combate ao tráfico*6. No mar, já antes a
a quem infringisse o tratado de 22 de Janeiro de 1815 (só o faria em
1818, como veremos).
:
Royal Navy havia retomado a caça aos negreiros portugueses que, ilegalmente agora, continuavam a demandar a Costa da Mina. De Abril a Julho de 1815, foram apresados 5 navios da Baía e, perante a inacção
Apesar do terreno cedido pelo Rio de Janeiro, os convénios de Vief na não fizeram cessar o estado de conflitualidade luso-britânica em torno do problema da escravatura. Após 1815, as metas abollclomsta& f de Londres sofreram uma inflexão táctica, à medida que se tendia passar da supressão musculada para o legalismo estrito. Se em temp de guerra, como se referiu, os cruzadores podiam capturar os navio
do governo do Rio de Janeiro, alguns negociantes baianos fizeram ar-
mar os seus barcos na firme disposição de continuarem o comércio de
a
negros, fosse de que forma fosse. Em Setembro de 1815, o bergantim
inimigos e exercer direito de visita em relação aos neutros, com o ad vento da paz, e à luz do direito, os marinheiros da Royal Navy
nã
possuíam autoridade para visitar, e muito menos para deter, um navio de outra nação, mesmo quando essa nação tivesse já ilegalizado o co- . mércio negreiro através de um tratado com a Grã-Bretanha. A inter- ª venção sobre o tráfico estrangeiro — aliás não sancionada pelos pareceres dos jurisconsultos e, posteriormente, explicitamente condenada | pelos tribunais ingleses — implicava uma contradição com o princípio do primado da lei que a Grã-Bretanha pretendia fazer passar na nova ordem
emergente
no Congresso
de Viena.
No próprio momento
so-
bretudo pela obtenção dos instrumentos legais que lhe permitissem hetuar eficazmente na supressão do tráfico. E, nesse contexto, o direito de visita tornou-se, na prática, mais importante do que a obtenção de uma abolição total, difícil de alcançar no imediato e praticamente impossível de fiscalizar. Tratava-se, portanto, de aplicar em tempo de paz a prática naval utilizada em tempo de guerra, o que, 11pp11çando uma importante delegação das respectivas soberanias nacionais, só poderia ser conseguido através de pressões políticas**”. Daí que o asSédio a Portugal (e demais países negreiros) tivesse prosseguido após Viena. Logo no início de 1816, o Foreign Office dava conta ao representante português em Londres da sua intenção de bloquear os prometidos pagamentos até que D. João VI, cumprindo o estipulado, fizesse pro-
Leal Portuguez foi metido a pique pelos cruzadores britânicos. No ano seguinte, o dono do brigue Temerário tornou público na Baía que se dispunha a prosseguir o tráfico e a batalhar com os Britânicos se tal fosse necessário; o brigue seria apresado em Abril, quando se preparava para carregar 600 escravos em Ajudá, mas só após hora e meia de combate e «com grande mortandade de parte a parte»*7. Até ao final desse ano, a marinha inglesa tomou mais 6 navios da Baía e o estado de irritação no Brasil era tal que fazia temer «que a guerra entre as duas nações começasse antes que os respectivos governos a declarassem», como afirmava Saldanha da Gama numa memória entregue ao
em 3'
que parecia possuir condições e meios para esmagar o tráfico, o gover- | 45 Sobre o problema do direito de visita, ver Daget, «Tactiques, ...», cit., pp. 343-358;
%3 Aguiar aos plenipotenciários portugueses, 15 de Setembro de 1815, ANTT, MNE, livro 47.
* Aguiar a Cipriano R. Freire, 15 de Junho de 1815, in Biker, ob. cit, t. XVIII, pp. 134-137.
106
|
ver igualmente Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade. Britain, Brazil and the Slave Trade Question (1807-1869), Cambridge University Press, Cambridge, 1970, pp. 17-19.
46 Castlereagh a Cipriano R. Freire, 9 de Janeiro de 1816, ANTT, MNE, livro 536.
47 O Investigador Portuguez em Inglaterra, Março e Julho de 1816, pp. 71 e 115, respectivamente.
107
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
governo russo*8. A expressão, ainda que claramente destinada a im-. pressionar o destinatário, não era inteiramente destituída de fundamento, até porque, no início do ano, estalara uma sublevação de escravos na |
— Assim, e ainda que,, formalmente, Portugal não estivesse inteirante isolado na problemática negreira, as perspectivas de apoio ex-
Baía, que, fazendo descer sobre a cidade o espectro de S. Domingos, ;7 acirrara ainda mais os sentimentos antibritânicos da população
inhecido qualquer avanço, o marquês de Aguiar considerava já a hiióteése de anulação dos acordos de Viena. Mas Palmela, o novo embai-
branca*.
hidor em Londres, desaconselhava um tal passo:
h
Para tornar mais difícil a situação, Portugal não conseguiu
o alme-
*
jado apoio de uma grande potência. Por muito sensível que fosse à ar- ) gumentação de Saldanha da Gama, a Rússia, uma potência continental » pouco ou nada envolvida na problemática atlântica, não parecia dis posta a pôr em causa as recentes alianças por motivos moralmente tão
contestáveis como eram os do comércio da escravatura. Outro tanto se ) passava com as cortes austríaca e prussiana, pouco receptivas aos / avanços de Lobo da Silveira. A França, entretanto, deixara de constituir um apoiante potencial, uma vez que um dos primeiros actos d Napoleão no período dos Cem Dias fora precisamente a reabolição d tráfico (contando, assim, obter o favor da opinião pública inglesa); diplomacia britânica aproveitou, naturalmente, o precedente aberto e, após Waterloo, forçou Luís XVIII a sancionar a abolição por melw |
de um artigo adicional ao tratado de Paris. Restava a Espanha, recem«a -chegada ao tráfico transatlântico, e que dependia da mão-de-obra es-.
crava para suportar o crescimento económico de Cuba. Por momentos,» em 1815, Palmela ainda terá considerado a hipótese de formar umax aliança com o governo espanhol para, entre outras coisas, melhor re-. sistir às pressões abolicionistas britânicas. É possível que nessa altura Madrid já não estivesse em posição de dar acolhimento a uma proposta 1; desse género; a necessidade imperiosa de obtenção de um empréstim levara o governo espanhol a pactuar com as exigências inglesas e, n início de 1816, existiria já um projecto de tratado abolicionista anglo-/ -espanhol. Fosse como fosse, o cenário imaginado por Palmela nunc passou de uma intenção não materializada e, aliás, expressament recusada pelo governo do Rio, sempre interessado na expansão terri torial na região platina, obviamente incompatível com uma ahanç ibérica%º. 48 António Saldanha da Gama, Memória Histórica e Política sobre
o Comércio da E
cravatura, entregue no dia 2 de Novembro de 1816 ao conde Capo d'Istria, Ministro do Imperador da Russia, Imprensa Nacional, Lisboa, 1880, p. 37. Para o apresamento dos« navios da Baía, ver Verger, ob. cit., p. 638.
49 Verger, op. cit., pp. 332 e segs. 50 Alexandre, Os Sentidos do Império..., cit., pp. 331 e segs. 108
ho eram sombrias e, no final de 1816, como
a situação não tivesse
O nosso objectivo, mesmo para ganhar tempo, me parece pois dever Sser unicamente o de prolongar por quanto for possível a faculdade que têm os vassalos de Sua Majestade de tirar escravos da costa de África ao sul do Equador, finalidade que, para lhes assegurar por alguns anos ainda a tranquila posse desse direito, é indispensável que nos apressemos de cumprir e de exigir o cumprimento sem restrição do tratado de 22 de Janeiro de I815, porque, da sua inexecução, poderia seguir-se o declarar o governo britânico que o considera como nulo, exigindo então desde logo, e por assim dizer com o punhal aos peitos, o nosso assentimento a outras estipula-
çõÕes ainda mais lesivas para o sobredito comércio”!. *artindo de uma filosofia diametralmente oposta à do governo do Rio, o conde defendia que, quanto mais exaustivos
e minuciosos fos-
fom os acordos com a Inglaterra, mais fácil seria proteger a navegação ;porluguesa e o comércio
legal de escravos. Palmela chamava
igual-
— Mente a atenção do seu governo para os continuados esforços da InBlaterra junto das outras nações e considerava ser «muito de recear que s outras potências, em alguma ocasião que não faltará de deverem ter Muais condescendência com a Inglaterra, abandonem totalmente a nossa Ghusa e que, por conseguinte, a decisão final dela se não possa sem liMites arrastar»”?, A ocasião que o diplomata temia cedo se perfilou. O projecto expansionista brasileiro, refreado em 1812, não morrera. De certa forma
reforçara-se até com a decantação das ambivalências e com a americaNização cada vez mais clara das prioridades políticas do governo do
Rio. O Brasil foi elevado à condição de reino em finais de 1815 e a pulsão expansionista para sul reacendeu-se. Em 1816, as tropas portuBuesas iniciaram o movimento de ataque à Banda Oriental e Montevideu acabou por cair em 20 de Janeiro do ano seguinte. Na medida em que a Espanha continuava a reivindicar a soberania sobre a região, a
conquista da cidade configurava, num plano político formal, uma ngressão de Portugal ao seu vizinho ibérico, e o conflito repercutia ob5! Palmela a Aguiar, 10 de Outubro de 1816, ANTT, MNE, livro 464. 52 Id.
109
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
viamente na Europa, pondo em causa o seu recente e precário reequilíbrio político, algo que o gabinete brasileiro parecia não considerar3, | Logo no início de 1817, Palmela dava conta da adesão das grandes potências à causa da Espanha e, até, de que a Rússia falava em represálias e no uso imediato da força contra Portugaló*. O governo inglês _f não escondia a sua posição crítica face à tomada de Montevideu e foi mesmo ao ponto de ameaçar Portugal com o rompimento da garantla b de protecção militar. No Verão de 1817, as chefias militares portuguesas | viviam momentos de grande apreensão na perspectiva da perda do apoio | militar inglês, sobretudo porque nesses meses a Espanha parecia inclinada à retaliação, procedendo à concentração de tropas na Estremadur
Essa conjuntura internacional desfavorável subordinou a problemá—, tica do tráfico de escravos à necessidade imperiosa de conservar o apoio político da Inglaterra. Numa palavra, a crise de Montevideu abriu caminho à política de conciliação e de cedências que Palmela pretendia aplicar. Dela resultou a convenção de 28 de Julho de 1817 que instituía o direito de visita (recíproco) e criava duas comissões
mistas anglo-portuguesas para julgamento rápido e sem apelação das infracções à legislação antitráfico. Uma das comissões deveria sediar no Brasil, a outra numa possessão britânica na costa africana (que viri
13, que impusera limites ao número de escravos transportados, de brdo com a tonelagem dos navios; como bem notava o redactor de
Portuguez, essa seria a forma de promover a introdução no Brasil do inlor número possível de escravos enquanto os Ingleses não obrigasM a acabar de todo com essa actividade””. AÀ convenção de 1817 era uma novidade no direito público da EuroDPA e uma importante cedência ao nível da soberania política. O goverlA português fora o primeiro a condescender nesse campo, e o facto de l Espanha ter feito outro tanto em 23 de Setembro de 1817, e a Holanh em 4 de Maio de 1818, em nada diminuía a imagem negativa do Bonvénio. A França recusaria o direito de visita até finais de 1830 e os Bastados Unidos até à década de 1860. Plenamente ciente do aspecto desprestigiante da concessão, Palmela asseverava que o decoro e a independência nacionais ficariam salvaguardados pela reciprocidade, já “Qque o governo inglês igualmente sujeitava os seus navios mercantes a ferem visitados pelos da Armada portuguesa%?8. Ninguém ignorava, po" fém, que os direitos mútuos eram meramente teóricos, sobretudo se, tomo
se previa
(e efectivamente
aconteceu),
não
fossem
exercidos
pelo governo português. Apesar de tudo, a convenção era inescapável e trazia alguns ganhos
a ser a Serra Leoa). Haveria ainda uma terceira comissão transitória
n Portugal. Em primeiro lugar, trazia-lhe a garantia política de que a
que, em Londres, procederia à revisão dos processos dos negreiros | portugueses já condenados”. Em 26 de Janeiro de 1818, para dar cumprimento ao estabelecido três anos antes, o governo brasileiro fez, p fim, publicar um alvará com força de lei que proibia o tráfico a norte do equador e impunha pesadas penas aos infractores (perda dos escra-
Gri-Bretanha se manteria fiel ao compromisso de salvaguarda da inte-: gridade do reino português. Depois, o recebimento dos montantes ain-
da em débitoóº. Todavia, o maior benefício situava-se no plano diploMático. Apercebendo-se de que pouco mais haveria a esperar de uma nação tão forte como a inglesa do que «boas palavras e satisfações indirectas», o embaixador português antecipara-se a todas as outras polências na regulamentação dos cruzeiros e do direito de visita, adquirindo uma posição de relativa vanguarda negocial difícil de contestar, no contexto, e que colocava o Rio de Janeiro ao abrigo de mais exi-
vos, confisco dos navios, cinco anos de degredo em Moçambique, en-
tre outras penalidades)*. Contudo, o gabinete do Rio dava com uma/ mão e tirava com a outra, visto que a nova lei revogava o alvará de'f
gências imediatasóº, Quando,
na Conferência de Aix-la-Chapelle,
no
:
Outono de 1818, a Grã-Bretanha voltou a insistir na fixação de uma
355 Assinale-se, a propósito, que dessa revisão de processos viriam a resultar mais de. À
data limite para a existência do tráfico de escravos português, e também, na extensão do direito de visita à França, Áustria, Rússia e Prússia,
zera Castlereagh, 9 de Abril de 1817, ANTT, MNE
livro 464.
54 Id., 11 e 19 de Fevereiro de 1817, ANTT, MNE, livro 464. 400 000 libras de indemnizações com a importância já estipulada sessão de 29 de Agosto de 1842, ção de 1817, ver Castro, ob. cit.,
aos proprietários dos navios apresados, o que perfazm Á em Viena, uma soma superior às 700 000 libras (DCP, » p. 228, intervenção de Palmela). Para o texto da conven- | t. V, pp. 324-369; sobre o modo de funcionamento das
comissões, ver o anexo C da referida convenção e também Leslie Bethell, «The mlxed' comissions for the suppression of the transatlantic slave trade in the nineteenth century», in ) The Journal of African History, 7, 1, 1966, pp. 79-93. f
571 O Portuguez, Fevereiro de 1818, p. 278. 58 Palmela a Barca, 10 de Janeiro de 1817, ANTT, MNE, livro 464.
59 Palmela a Bezerra, 14 de Julho e 12 de Outubro de 1817, ANTT, MNE, livro 464.
56 Alvará de 26 de Janeiro de 1818, in J. J. de Andrade e Silva, Collecção Chronologica da legislação portuguesa, Lisboa, 1859, pp. 607-609.
não foi difícil a Palmela defender o status quo. Ainda que a contragosto, Portugal sujeitara os seus navios mercantes à devassa da mari-
À
'
60 Palmela a Barca, 10 de Fevereiro de 1817, ANTT, MNE, livro 464. 111
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
nha de guerra inglesa, o que nenhuma das grandes potências estava ainda disposta a fazer. A apresentação num mesmo bloco das questões da abolição e do direito de visita embaraçava as potências e tirava força à posição inglesa. Em Aix-la-Chapelle, a questão Rareçia blogl.leadaºl. É certo que a Inglaterra continuou a insistir por via diplomática para que Portugal abolisse o tráfico a sul do equador, mas .de uma Afo'rma
)
teiro. Em Viena e, mais claramente, em Londres, com a convenção de
|1817, Palmela teceu uma armadura legal difícil de quebrar a não ser de
forma violenta. Mas o que importa sobretudo realçar, no contexto deste
não tão incisiva. Apesar de tudo, também os abolicionistas britânicos tinham atingido um objectivo parcelar importante, já que acreditavam,
à época, que o direito de visita equivaleria a uma espécie de «practical
»
abolition»62. Confirmava-se, assim, o optimismo revelado por Palmela
;
f nas considerações finais à convenção de 1817: Parece fora de dúvida que a execução da presente convenção nos per-
mitirá continuar tranquilamente o tráfico lícito da escravatura enquanto » Sua Majestade não houver por bem de o abolir inteiramente. E se se con- ) siderar que as comissões mistas não poderão começar
Na década de 1810, Portugal tivera de enfrentar a primeira onda de L pressão abolicionista britânica e fizera as primeiras cec.lê_ncifls. No espaço de sete anos, passara de uma vaga concessão abolicionista para a abdicação de parte considerável do seu tráfico _de escravo.s.,Mal.s im- ) portante ainda: ao permitir a intervenção da marinha e dos _]UIZCÉ 1nglef- 1
ses no controle e julgamento dos infractores, o governo português abri- . da possibilidade de manter,
defensiva
e indefinidamente,
o
«system of doing nothing», que, nas sugestivas pala'vrqs_ de C,h'flmbeflain, o encarregado de negócios inglês no Rio, constituiria a típica ati-
tude da administração portuguesa face à supressão do tráfico negreiro6?.
Ainda assim, à entrada da década de 1820, Portugal era a única nação colonial que mantinha um tráfico de escravos legal a sul do equador, o que constituía uma situação excepcional em grande pgrte devida ao jogo de concessões e de reequilíbrios políticos nos quais Palmela
1819, p. 364. Para as objecções das grandes potências à extensão df) Siireito de_visita dese-
jado pela Grã-Bretanha, ver o mesmo jornal, pp. 365-79, e a edição de Maio de 1819, pp. 472-475.
62 Citado in Lloyd, ob. cit., p. 45. 63 Palmela a Barca, 29 de Julho de 1817, ANTT, MNE, livro 464. 64 Cf. Bethell, The Abolition of the Brazilian ..., cit., p. 15. 119
estudo, é que o conflito arrastado entre os governos Rio de Janeiro em torno da problemática escravista, recriminações e cedências que marcou, desse ponto década de 1810, acabou por condicionar fortemente questão abolicionista passou a ser vista em Portugal.
de Londres e do o entrelaçar de de vista, toda a a forma como a
3. No terreno das ideias: a defesa do gradualismo
a exercer as Suas
funções senão pouco mais ou menos daqui a um ano e meio, pode-se infe- : rir que o governo britânico perdeu a esperança d.e nos obrigar a acelerar Íf precipitadamente a época da cessação daquele tráfico.
ra mão
governo central que se virara decididamente para os seus objectivos sul-americanos (em desfavor dos da antiga metrópole), a definição da estratégia diplomática que acabaria por vingar coube-lhe quase por in-
Foi na sequência e no contexto da pressão inglesa que a problemáticn abolicionista começou a aflorar e a adquirir alguma expressão escrita na cultura portuguesa. Os principais veículos dessa expressão foram os jornais, em especial os que se editavam no estrangeiro e que escapavam ao controlo da censura, e, tanto quanto transparece do conjunto de opiniões aí publicadas, a política de manutenção das instituições escravistas seguida pelo governo do Rio de Janeiro era, pelo menos até 1815, perfeitamente conforme com os pensamentos e sentiMentos a esse respeito manifestados na sociedade portuguesa. O Correio Braziliense, lançado em 1808 e publicado em Londres sem interrupções até 1822, foi o primeiro órgão da imprensa liberal não censurado a ser posto em circulaçãoó5. O seu redactor era Hipólito José da Costa, um maçon de origem brasileira que, emigrado em In65 Algumas referências úteis sobre os periódicos publicados em Portugal podem ser encontradas em Innocencio F. da Silva, o0b. cit., vários vols., e no manuscrito de Silva Pereira, Diccionário jornalístico Portuguez, que se eêncontra na Academia das Ciências de Lisboa; Silva Pereira publicou também uma listagem sobre as publicações periódicas, O jornalismo portuguez. Resenha chronológica de todos os periódicos portuguezes impressos e publicados no Reino e no estrangeiro, desde o meiado do século XVII até à morte do saudoso Rei Senhor D. Luis 1, bem como dos jornais em língua estrangeira publicados em Portugal durante o mesmo tempo, Lisboa, 1895. Para a caracterização de algumas publicações e para o que se refere ao problema da avaliação da importância dos periódicos, ver José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, Lisboa, s. d.; especificamente para os títulos do período em apreço, são importantes as observações de um redactor contemporâneo, Joaquim Ferreira de Freitas, in O Padre Amaro, Londres, Outubro de 1820, pp. 315-354, bem como a obra de C. Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1957.
113
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
glaterra, aí se tornou «o mais famoso, temido e influente publicistg português do tempo»“%. O Investigador Portuguez em Inglaterra foi | criado em 1811, patrocinado e subsidiado pela em'ba'ufada_ em Londres f para combater a influência «perniciosa» que Hipólito ia ganhandp |
junto da opinião pública6?. O jornal era custeado pelo Erário e, teoricamente, orientado pelo embaixador português em Londres.. Apesar..;. disso, tinha uma abertura muito maior do que a permitida à imprensa ) censurada em Portugal ou no Brasil. No final de 1813, José leer.at.o
:
Freire de Carvalho — também ele um maçon perseguido pela Inquisi- j ção — assumiu a liderança do jornal, que, a partir qaí, reforçou a sua | orientação liberal; isso explicará os conflitos posteriores com Pa.llmela e os esforços do diplomata para, como dizia, fazer do lnves_tzgador Ú «um jornal inteiramente ministerial por meio do qual possa o [...] go- -
verno e os seus ministros rebater os sofismas dos outros e exercer um: saudável influência sobre a opinião da Nação»S8. Liberato abandonou jornal (que deixaria de se publicar por falta de subsídio governament;íl) 1 em finais de 1818 e viria a fundar um periódico quil?zenal, o Cam?eao Portuguez, que saiu em Londres até 18216º. Outro importante veículo das ideias liberais era
relevantes, como
Verdades, um título que nasceu em Londres em 1814 e acabou no ano h seguinte. Era redigido por Francisco de Alpuir_n de .Menezes_, que, mai tarde, e já em Portugal, se assumiria como miguelista convicto. A im portância do Microscópio é difícil de medir. Aparentemente, era igno-
das
Sciencias,
das Artes
e das
Letras,',kj
70 Cf. Silva Pereira, Diccionário ..., cit., p. 194.
i
68 Palmela a Aguiar, 5 de Janeiro de 1817, ANTT, MNE, livro 464.
|
À
69 Para dados sobre Liberato, ver as suas Memórias da Vida de José Liberato Freire de ' Carvalho, Assírio & Alvim, Lisboa, 1982 (1.º ed.: 1855). p 114
fielmente o
do público por determinado assunto. Ainda assim, a atenção dispensada pela imprensa a um acontecimento ou problema vale como indicador, e pode adquirir lastro explicativo quando combinada com os re-
66 Rizzini, ob. cit., p. 26. códice 9072.
1820. A curva de interesse dos publicistas, seguindo
tempo e o nível de intensidade da pressão inglesa, cartografa essa pressão, ao mesmo tempo que indicia a relevância desse factor exógeno no desencadear do interesse dos Portugueses pelo tema abolicionista. As omissões e silêncios são sempre difíceis de interpretar e, por si sós, não podem servir para atestar garantidamente do interesse ou desinteresse
lidade de Solano Constâncio, que depois estaria com outros redactore:s,và dos Annaes
mática da escravatura adquiriu expressão pública a partir de 1812, expressão que se acentuou no período que marginou os Congressos de Viena e de Aix-la-Chapelle, mais precisamente nos anos de 1814 a 1818, tendo-se depois esbatido progressivamente até inícios da década
de
rado no Brasil e a sua insignificância e curta vida nem sequer justifica ram qualquer proibição. O Observador Luzitano em Paris, do qual S À publicaram apenas 4 números em 1815, era propriedade e responsabi- ) na publicação
quem Rocha Loureiro dizia que «escrevia coisas na Idade d'Ouro que Não se escreviam na Idade do ferro»7º, | Os folhetos liberais não teriam muitos assinantes — cerca de 500 paf os de maior nomeada —, mas há que ter em conta que passavam de mão em mão, eram lidos no continente e no Brasil, adquirindo por isso Importância capital na formação da opinião das elites letradas. Mais do que pelo número de assinantes, o impacto dessa imprensa livre pode
vestigador Portuguez em Inglaterra. Foi, fundamentalmente, através da imprensa liberal que a proble-
de |
o Microscópio
supõe, pelo padre Inácio José de Macedo, um espírito conservador, de
Baziliense ou O Portuguez tinham «uma influência e uma importância pública que seria inútil dissimular»7!. Palmela chegou mesmo a obter de Castlereagh um boicote ao Correio e tentou, sem SUCesso, que as nutoridades britânicas expulsassem o redactor de O Portuguez”2. Ambos os jornais foram apreendidos diversas vezes pelas autoridades portuguesas, e igual sorte teve o Campeão Portuguez e o próprio In-
O Portuguez, periódico que João Bernardo .da.,
menos
D jornal foi publicado na Bafía entre 1811 e 1821 e parece ter tido um Impacto assinalável junto da população local; era redigido, ao que se
ser avaliado pela preocupação que causava nos círculos governamenlnis. Como considerava o conde de Palmela, títulos como o Correio
Rocha Loureiro publicou em Londres entre 1814 e 1825 (com uma interrupção no início da década de 1820, correspondepte ao pe%rlodo em que o redactor esteve em Portugal). De um liberalismo rad_lcal, Joã Bernardo foi responsável por uma cerrada oposição às autoridades lu : ; iE : so-brasileiras. Outros jornais houve,
Igualmente editados em Paris entre 1818 e 1822. Dos jornais sujeitos à — gensura, e existentes na Biblioteca Nacional, só a Idade d'Ouro do “ Brazil dedicou alguma atenção ao problema do tráfico de escravos.
71 Palmela a Aguiar, 5 de Janeiro de 1817, 16 de Julho de 1817, ANTT, MNE, livro 464.
72 Palmela a Barca, 16 de Julho de 1817, ANTT, MNE, livro 464; v. também Rizzini,
ob. cit., p. 30.
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
, sultados de outro tipo de análises (de conteúdo, de contexto político séetc.). E, no caso da imprensa portuguesa das primeiras décadas do essenção motiva à culo XIX, não pode haver qualquer dúvida quanto cial dos silêncios e das abordagens então efectuadas. A análise dos jornais da primeira dúzia de anos do século não revela qualquer alteração relativamente à matriz silenciosa que vinha do anteam rior. Nas folhas publicadas no reino nesse período não se encontr mais do que alusões esparsas à questão dos escravos. Eram as guerras napoleónicas
que, compreensivelmente,
absorviam
À )
* :
a maior parte da |
sua atenção. Mesmo no Brasil, a julgar pela muito reduzida amostra da imprensa disponível na Biblioteca Nacional, o tema parece ter sido ini-/ cialmente omitido em jornais como a Gazeta do Rio de Janeiro ou
Idade d'Ouro do Brazil. Já vimos que é possível atribuir à censura al gum peso na quase ausência de referências ao abolicionismo em Portugal. Mas, como também já vimos, a censura não explica tudo. A 1812 houve uma omissão voluntária que decorria da percepção mai ou menos consciente do melindre do assunto. Esse aspecto ressalta d forma clara da imprensa não censurada publicada no estrangeiro, já qui
nem o Correio Baziliense nem o Investigador, OS únicos que existiam à
época, abordaram de forma substantiva a problemática abolicionista
antes do apresamento de navios negreiros portugueses na costa de Áfrio ca. O próprio Correio Braziliense reconheceu que o seu alheamento inicial fora propositado e explicou-o pela delicadeza e dificuldade do tema7?.) Na medida em que a discussão emergiu a partir da pressão externa, e seguiu ao sabor das suas variações, a problemática nacionalista impregnou imediata e fortemente a maior parte dos discursos produzido tornando-os nebulosos, intrincados, e dando-lhes uma tonalidade geral
é relativamente uniforme. Mas, por trás do véu da retórica nacionalista,
possível descortinar não só a existência de duas formas diferentes perspectivar o problema abolicionista mas também que essas du formas podiam convergir, por uma espécie de contracção do espec ideológico, originando uma perspectiva praticamente unânime.
|pnlogig frontal do tráfico negreiro. No plano das ideias escritas, a caÍ l'uc%crístlca mais interessante da década de 1810 é o desapareci;nento
do ld_eol_ogia escravista, ou melhor, a sua dissimulação no discurso tolc::ucmmsta. Essa dissimulação é atestada pela permanência de con“Boitos escravistas (nomeadamente os de mal menor e de barbaridade
Intrínseca do africano) em boa parte do discurso toleracionista da dégnda, Devido à amálgama que resultou da dissimulação, o toleraciohismo passou a comportar dois registos diferentes: um registo sincero e
Um registo simulado.
A qoção de fusão do escravismo no toleracionismo é essencial para h análise
e compreensão dos discursos produzidos, tanto na década de
IB1IO como nas que se lhe seguiram. Um dos erros mais comuns na lmcrpretação do fenómeno abolicionista prende-se com a deficiente Identificação das mensagens expressas. Aparentemente, alguns histo— Fladores partem para a análise discursiva na expectativa de encontrar defesas frontais das instituições escravistas, e, como raras vezes as enc«)lylran?, concluem que os ideários favoráveis ao tráfico e à escravidão
seriam irrelevantes na Europa de Oitocentos. Mas essa conclusão, incorrecta, apenas reflecte as falsas expectativas do investigador., Na Verdade, uma interpretação cabal do que foi dito e escrito no século XIX a respeito do tráfico e da escravidão nunca pode perder de vista que, devido ao ascendente que a teoria dos direitos naturais adquirira fnros eram os que ousavam postular a justiça da escravidão, e que, porque assim sucedia, a ideologia escravista tendia a dissimular-se n(; toleracionismo. .Esse fenómeno de dissimulação aconteceu em quase todo o mundo
ocidental e, naturalmente,
perto:
também
em
Portugal.
Vejamo-lo
mais
de
Em 1819, Solano Constâncio tecia, nos Annaes das Sciencias, das A'rles e das Letras, algumas considerações a respeito da obra From
Cape Coast to Ashantee, de T. E. Bowditch, um naturalista britânico que recentemente visitara o interior africano/t. Ao fazê-lo, Constâncio
explanava de forma clara o seu pensamento sobre o problema do tráfi-
3.1. Uma história em dois tempos: a contracção A Analyse sobre a justiça do Commercio do Resgate dos Escravos da Costa da Africa, do bispo Azeredo Coutinho, foi a última gran fez u 73 Correio Braziliense, Março de 1814, pp. 607-608 (assinale-se que o jornal alusão breve ao assunto em Março de 1811). 116
co de escravos. Começava por postular a existência de um sistema
português de relacionamento com os negros, sistema que constituíria a
coroa _de glória da relação de Portugal com África e que se resumia no «espírito de mansidão e de fraternidade» com que, no geral, Portugal tratara as nações indígenas, nas quais introduzira, «por meios, de doçu-
á : 71 Sobre a figura e obra de T. E. Bowditch, cf. Curtin, The Image of Africa ..., cit., gura p. 169.
Os sons do silêncio
ra», o cristianismo e os conhecimentos técnicos que então.possma. Enh quanto vários autores estrangeiros considçravam os Africanos como | animais destinados por natureza à escravidão, o s,ls.tema português, instituído desde os primórdios, aceitava, como princípio, qt_le7c5>s negros , eram «homens como os brancos», suscept?vels de e,:dpcaçao : Solapo |
procurava depois demonstrar que a boa via f%lant—roplca,.a verdadeira ' rota abolicionista, residia precisamente na aplicação do sistema português, não na abolição à inglesa. E porquê? Desde logo,'pelo estadgfd_e f barbárie e de superstição em que se encontravam os h?bltantes de Af Ti- ' ca (estado esse que seria muito anterior ao des_envolv1mento 'do .tra j
de escravos). Apoiando-se na descrição do reino de Ashanti feita poi Bowditch, o redactor constatava que nesse reino eram frequentes sacrifícios humanos. A partir dessa constataçãp, engrenava na probl mática abolicionista, considerando ser uma «.trlste verdade» que, dçvx
do às restrições do comércio negreiro, a maior parte dos prisioneiro não tendo préstimo para os reinos negros e não podend? ser escoa para as Américas, era barbaramente assassmadít. Concluía, assim, q
a humanidade nada tinha ganho com a supressão do tl'áfi.C(.), em que Inglaterra tanto se empenhava com o pretexto da filantropia: Se em vez, pois, de pôr um termo à compra de negros na costa de Afri ca, se estabelecesse um sistema pelo qual,.s.alvando-os de uma morte ce__; ou de uma sorte ainda talvez pior, conc111ássem(.)s a necessidade que,w América tem de braços com os deveres da humamdac_ie, e adoptassem to das as nações um regime adequado ao carácter e hábitos d.o negro, é qui acostumando-o ao trabalho não excessivo, lhe dess—e os meios de, um di melhorar de condição, nesse caso poderia a extracção de homens d_a A e ser um notável bem para os desgraçados assim vendidos, e para a indústri mai e comércio dos países para onde eles foss?m transp.ortadcls. L...] era fácil à Inglaterra persuadir e até obrigar [sic], as mais nações a que tratas sem melhor os escravos, e a que, pouco a pouco, lhes fossem conc.ede % certa porção de liberdade, depois de os fazerem Capazes fle a aprec1aãe dela fazerem bom uso, do que impedir a horrível Éamlflcma quçf e a tempo imemorial fazem dos seus semelhan,tes. as nações negras dg .â rica, a qual, se bem que muito anterior ao comércio da escravatura, ainda c cerá com a abolição deste tráfico76.
O toleracionismo de Solano organizava-se em torno de três ei 'Í, básicos — barbárie intrínseca do negro, falhanço do método aboli t
75 Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, V, 1819, pp. 157-158.
76 Ibid., pp. 161-162 (itálico meu).
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolici onista
nista inglês, adequação do sistema civilizador português — e defendia, a par da realização de melhoramentos no sistema escravi sta, a continuação do tráfico como mal menor. Fazia a apologia de um método proBressivo ou, como se diria numa fraseologia e imagét ica posteriores, a
defesa do sistema português «aos abraços» contra o método inglês «à força»”7. Se exceptuarmos a ideia de fracasso da supressão britânica,
nlgo que poderia diagnosticar-se em 1819 mas que, naturalmente, ainda se ignorava nos primeiros anos do combate antitrá fico, constatamos
que este eixo racional era igualmente adoptado por periódi cos como Idade d'Ouro do Brazil, Observador Luzitano em Paris, Microscópio
de Verdades, ou, em certos momentos, pelo Investigador Portuguez em Inglaterra; e que, regra geral, essa matriz básica da defesa de manu-
tenção do sistema escravista aparecia inserida num leque de associações mentais que procurava reforçá-la e cujas vertentes discursivas esSenciais passavam não só por ideias já existentes em Azered o Coutinho mas também pela aceitação do gradualismo indefinido e pela defesa da
honra nacional, o que constituía uma novidade.
A imprensa toleracionista adoptava várias formas de desval orização do abolicionismo britânico. Uma delas consistia em classif icá-lo como uma simples moda, algo que, por definição, remetia para o campo do
efémero e insubstantivo. Como diagnosticava a Idade d'Ouro do Brazil, seria tão-só o amor da moda, não o da humanidade, que dava tanto
calor à questão, e que a tornava assunto privilegiado «nos círculos, cafés, etc.»78, Outra forma de desvalorização, convergente com a Já referida crítica da filantropia telescópica, obtinha-se pela aprese ntação do abolicionismo como uma preocupação social excessiva e deslocada; para conseguir esse efeito, bastava relativizar a desumanidade do tráfico, comparando-o com outras situações de opressão tidas por igualmente penosas: Paréce em geral, que [os escravos no Brasil] só são escravos no nome
porque é certo serem eles muito mais felizes do que nas suas próprias pátrias, onde andam sempre em guerra uns com os outros, [...] e creio que também mais felizes que os marinheiros ingleses, do que eram os conscriptos ou soldados de Bonaparte, e mesmo do que são os soldados suíços que vão servir as nações estrangeiras”º,
77 Ver, adiante, pp. 286-288. 78 Idade d'Ouro do Brazil, 1 de Novembro de 1814. Para observações semelhantes, ver: Microscópio de Verdades, n.º 2, 1814, p. 85; Observ ador Luzitano em Paris, Março de 1815, p. 410; e O Investigador Portuguez em Inglaterra, Setembro de 1813, pp. 381 e segs. 79 Microscópio de Verdades, n.º 2, cit., pp. 84-85.
Os sons do silêncio
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
No limite, comparações deste jaez podiam descambar em verdadei- ';
ras manobras ideológicas de inversão. À Idade d'Ouro do Brazil, por exemplo, publicou uma muito detalhada descrição do cativeiro dos pri- sioneiros cristãos em Argel, explanando as condições desumanas
em j
que viviam, trabalhavam e morriam. Em conformidade, o redactor.x apelava ao concurso das nações cristãs para que atacassem Argel e pu- | sessem fim à escravidão dos brancos. É significativo que um jornal que | ridicularizara o recurso às emoções em favor do escravo negro, considerando-o próprio dos romances sentimentais, não se abstivesse de re- ) correr a tons trágicos para pintar, com detalhe, o cativeiro dos cristãos no Norte de África. Mas mais significativo ainda é que, nas considera- . ções que tecia a respeito dos relatos sobre a situação em Argel,_ o mouros fossem repetidamente designados simplesmente por «africa nos»8º, Mais do que uma manobra de diversão ou de uma simples di luição por comparação, tratava-se de uma verdadeira inversão de posi--
ções, mediante a qual a África aparecia a escravizar os cristãos e oQ pratos da balança se equilibravam. O Investigador Portugyez em Inglaterra (já sob a pena de José Liberato) tornava o mecanismo ainda . mais claro: Do sul da África transportam os europeus inumeráveis escravos pretos para o norte de África transportam os africanos inumeráveis escravo brancos. Os primeiros fazem gemer a humanidade inglesa; os segundos apesar de serem brancos como eles, e de muitos até serem os seus mai
Í
fiéis aliados, não lhes merecem uma só lágrima de piedade*!,
Mas
a desvalorização
mais fre-
pia inglesa. Desde logo, por razões estritamente económicas. A falta de
braços negros equivaleria à ruína do Brasil, à privação da metrópole - tão dependente da prosperidade brasileira —, à queda da indústria e do comércio,
à decadência da marinha,
a breve trecho, à fome para
milhares de famílias. Sem possibilidade de importar escravos, a América portuguesa converter-se-ia num deserto. Mas, para além de todas as considerações ligadas à ideia de sobrevivência económica do império, insistia-se igualmente na necessidade de resistir à falsa filantropia
britânica por motivos de honra e patriotismo. AÀ perspectiva constantemente defendida era a de que seria profundamente humilhante ceder às exigências estrangeiras, e de que o governo português, conhecedor
-Bretanha, mas também o élan moral das novas ideias filantrópicas, e a correspondente dificuldade (ou impossibilidade) de lhes fazer frente de
e manobrismo político britânico, repleta de fantasmas
sobre decadência e vitimização portuguesa, que remetia para todo um passado recente de desentendimentos entre as duas nações (e, mz_lis res motamente, para a velha ideia de progressivo enfraquecimento impe rial causado pelos estrangeiros). Era ponto assente para todos os publ
uma forma directa. Um vago gradualismo, remetendo a solução para tempos futuros e indefinidos, surgia então como uma estratégia defensiva adequada, simultaneamente capaz de professar adesão às novas 82 Idade d'Ouro do Brazíl, 6 de Dezembro de 1814; para análises idênticas, ver: Mi-
80 Idade d'Ouro do Brazil, | de Outubro de 1816. 81 O Investigador Potuguez em Inglaterra, Julho de 1814, pp. 145-146 (itálicos orig nais); ver igualmente a edição de Julho de 1816, pp. 117-118.
120
com passo oblíquo, mas
firme e constantemente, para o fim a que se propõe chegar»82 Defendia-se, obviamente, a necessidade de resistirà falsa filantro-
que alguns publicistas sugerissem o recurso às armas para vingar as tomadias já efectuadas pela Royal Navy, tais alvitres eram raros dentro do sistema de ideias produzido na época a propósito da abolição do tráfico. Reconhecia-se, regra geral, não só a força política da Grã-
quente, e mais contundente, do abolicionismo operava através do comn ceito de filantropia suspeita, uma ideia plena de conotações negativa sobre ludíbrio
Brazil — «encobre debaixo de pomposos sentimentos de filantropia, os
seus vastos e profundos projectos: caminha
Resistência, portanto, por razões económicas e de dignidade nacional. Mas que tipo de resistência poderia ser posto em prática? Ainda
hipocrisia britânica —, até ao momento em que as esquadras inglesa. holandesa atacaram Argel e impuseram um tratado destinado a termi dos brancos.
riam do que o lucro do seu comércio, o domínio da África, a ruína das colónias rivais: «a Inglaterra» — asseverava-se na Idade d'Ouro do
resse nacional sem necessitar da tutela moral da Inglaterra%3.
dos — e de forma polivalente, como se vê, para demonstrar também a
a escravidão
Viam a uma falsa humanidade, usada como capa para fins inconfessá-
Veis. Com a captura dos navios negreiros, os Ingleses pretenderiam aniquilar o comércio português na costa de África. Impondo a abolição do comércio de escravos a todas as nações coloniais, mais não visa-
das leis da humanidade, saberia perfeitamente conciliá-las com o inte-
O tema argelino foi explorado por todos os jornais aqui considera-
nar com
cistas portugueses que as movimentações diplomáticas do Foreign Office no sentido de estancar a exportação de escravos de África se de-
Í J
croscópio de Verdades, n.º 7, 1815, p. 105; Observador Luzitano em Paris, Fevereiro de I81 5 pp. 176-177; e O Investigador Portuguez em Inglaterra, Julho de 1814, p. 147. 83 Ver, por exemplo, Observador Luzitano em Paris, Fevereiro de 1815, pp. 188-189. T3
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolici onista
Os sons do silêncio
ideias filantrópicas, de preservar a honra nacional e de evitar abalos no& sistema colonial. Como dizia o Microscópio de Verdades, era necessário «ir abolindo muito gradualmente» e de acordo com a vontâde 6 conveniência portuguesa, nunca ao ritmo imposto pelos Ingleses**. In-.l do mais longe, a Idade d'Ouro do Brazil ac.onsel.hava mesmo a Eur?;? " iluminada a que «deixasse para tempos mais felizes o total exterrrnmq; | escravos»*5. À [SICÁ %Í)Sção gradualista era unanimemente
advczga.da na 1mprenãadd
primeira metade da década de 1810. Mas o que é alr!da mais r?ve a 168 é que todo o esquema ideológico proposto por essa imprensa fosse in teiramente perfilhado pelos próprios negociantes de escravos (ou 1 ' quem falava em seu nome). Ao mesmo tempo que proclamgvam pu camente os seus sentimentos de humanidade e de fll.antropla, que ap davam o tráfico de «indecoroso» e «ofensivo da lçl natural e dos. reitos do Homem», ao mesmo tempo que reconheciam que a al?ohç . seria um «saudável resultado da ilustração do séçulo», os negreiros da Baía, por exemplo, clamavam contra a filantropz.a suspeita dps Ing f ses e, escudando-se no interesse e na honra nacional, requeriam u . abolição gradual, pedindo mais «vinte anos» para o seu negócio, e «ui andar lento e vagaroso» das políticas abohc1orpstas, em vez do «gol
decepador e subversivo de princípios estabelçcªdos 2 ója arreigados pel x diuturnidade do tempo e pela velhice dos prejuízos»*. negr ._ comércio do continuação a pretendiam que os suma, Em escravist sistema do frqntal tinham abandonado inteiramente a defesa e, aceitando teoricamente o princípio da abolição, faz.lam a apologla gradualismo. O seu discurso colara-se à vertente mais ousafia do &, racionismo, contaminando-a e esvaziando-a das suas v1rtua11dages
-abolicionistas. De facto, e porque constituía um modo de acção cot placente e ambíguo, o gradualismo podia func1onar. quer como av cauteloso às abolições quer como tentativa de d'omeístlcztçao e de evi t ção das pressões abolicionistas vindas do exterior, 1st9 ç, como umí.:
tratagema do escravismo. Era uma porta aberta à duplicidade e, atrav
vista encapotado até ao antiescravista tímido e cauteloso. Egsas du posições coexistiam camufladas numa ideologia que as cobria amb 84 Microscópio de Verdades, n.º 2, cit., p. 87.
85 Idade d'Ouro do Brazil, | de Novembro de 1814.
:
86 «Primeira Representação dos negociantes da Bafa», in O Investigador Portugue Inglaterra, Maio de 1813, pp. 370-371.
199
'
de tal forma que a distinção entre os que desejavam sinceramente o fim gradual do tráfico e os que se agarravam a essa bandeira apenas para protelar a questão é extremamente difícil de fazer apenas com base nas
manifestações da imprensa da primeira metade da década de 1810.
É muito significativo que até 1815 o pensamento toleracionista tenha sido aceite e veiculado por todos os jJornais que se debruçaram sobre o
assunto, inclusive por aqueles (como o Correio Brazil iense ou O Por-
luguez) que apareceriam depois a propor ideias muito próxim as do
abolicionismo. Claro que nem sempre os juízos expres sos nesses jor-
nais concordavam ponto por ponto com o encadeado de ideias que esquematizei atrás, ou apresentavam, na Íntegra, toda a sua conste lação de elementos. Mas, se lhes faltava um dos eixos básicos, tinham todo o resto da panóplia ideológica. De facto, e à semelhança dos seus colegas publicistas, tanto Rocha Loureiro como Hipólito da Costa viam na pressão abolicionista inglesa
uma
ingerência intolerável, atentatória do decoro
nacional,
e decor-
rente de uma filantropia hipócrita, e, em torno dessa avaliaç ão, articulavam vários juízos sobre a absoluta necessidade de resistir aos interesses ocultos da Inglaterra, em nome da preservação das colóni as e da salvaguarda da honra nacional. O Correio Braziliense chegou mesmo a
advogar o recurso a represálias contra a acção da Royal Navy*7,
A ideia de que a abolição implicaria a ruína do Brasil, devend o, por
isso, ser recusada, foi igualmente defendida pelo Correi o Braziliense,
O Portuguez e O Investigador (no período anterior a 1815). A visão atastrofista sobre os efeitos do abolicionismo na economia e sociedade coloniais, era, aliás, muito facilitada pela constante confus ão quanto ao objecto da pressão britânica. Os publicistas utilizavam a palavra
escravatura de forma ambivalente, misturando e confun dindo o problema do tráfico de escravos com o da escravidão. Lauren ce Jennings
notou que também em França houve momentos particulares em que a confusão entre os conceitos de tráfico e de escravidão se instalou no 87 Correio Braziliense, Julho de 1814, p. 914. O Investi gador Portuguez em Inglaterra [oi o único periódico que, nesta fase, se aproximou das posições abolicionistas britânicas, Muito provavelmente pela pena de Domingos de Sousa Coutinho que, no dizer de Liberato, «folgava muito em fazer às vezes seus artigos sobre coisas de Portugal e sobre política, debaixo de nomes supostos» (Carvalho, Memórias, cit., p. 81). Sem recusar inteiramente a lese da filantropia suspeita, O Investigador olhava com alguma simpatia para a acção dos lilantropos britânicos, procurando desligar, na medida do possível, o problema propriamMente humanitário dos seus ulteriores aproveitamento s políticos (ver, por exemplo, edição de Setembro de 1813, p. 92). Mas essa posição de relativa abertura aos métodos abolicionistas britânicos desapareceria do periódico no tempo de Liberato.
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
discurso jornalístico e no debate político, com ambos os termos a ses
rem utilizados de forma confusa, sinónima ou interligada, e outro tantc se terá verificado no mundo anglo-saxónico88. Mas em português essa confusão era ainda mais fácil devido à utilização dúplice do termo escravatura. i Em rigor, a palavra significava escravaria ou escravagem, 1isto éÉ, um número relativamente grande de escravos; ou então, corresponden=
do a uma forma abreviada de comércio ou tráfico da escravatura, des signava a compra e venda de seres humanos*%º. Contudo, em lingugge corrente, escravatura utilizava-se igualmente no sentido de escrav1d» remetendo para tudo o que dissesse respeito ao estatuto jurídic.o .
utilização forçada de gente em cativeiro. Por via desse uso glob.ahza ou pouco rigoroso do termo, a transferência de objecto da discus tornava-se possível e a imprensa da época laborava em constantes , entendidos, passando imperceptivelmente de um aspecto para o ou fundindo os dois planos do problema, entrelaçando propósitos e sob'« valorizando as consequências de uma eventual abolição (do tráfico, Através da utilização ambivalente da palavra escravatura era poss'í_,_
fazer crer, por exemplo, que os Ingleses pretendiam impor a liberta : dos escravos no Brasilº0. Tudo indica que a confusão fosse involu.“' ria, uma vez que ela aparece também na correspondência diplomá que, em princípio, não seria para divulgar publicamente. De' tod; forma, o discurso veiculado pela imprensa da década de 1810 inve
recordê-mo-lo, resolvera separar claramente a abolição do tráfico d emancipação dos escravos para evitar entrar desde logo em terrent tão sensíveis e complexos como eram os da propriedade privada a'." plantadores. Em conformidade, seccionara o seu objectivo para evita acumulação de potenciais adversários. Ora o que os jornais portug _
ses revelam é um movimento contrário — talvez inconsciente, mas Si nificativo e ideologicamente actuante — de persistente confusão term nológica e conceptual entre tráfico de escravos e escravidão qu
permitindo o escorregamento temático, tendia a inflacionar o problema nibolicionista, e, naturalmente, a aumentar o nível das objecções. No
Portugal de 1812-1815, a confusão terminológica assumia o papel de mecanismo defensivo tendente a dramatizar o impacto da filantropia britânica no império luso-brasileiro.
É verdade que nem o Correio Braziliense nem O Portuguez defen-
diam a tese do tráfico como mal menor para o Africano. Ambos consi-
deravam a actividade negreira desumana e injusta. Contudo, raramente explicitavam as condições de desumanidade a ela inerentes e quase
Nunca recorriam ao apelo afectivo em favor do escravo. A relativa au-
sência de apelo afectivo é, aliás, um aspecto marcante em toda a im-
prensa portuguesa da época. O tipo de argumentação caro aos filantro-
pos britânicos, com adjectivação negativa e forte evocação da sensibilidade do leitor, era raro no Portugal de princípios de Oitocentos,
onde, por norma, se abordava a questão de forma sintética, sem entrar
em detalhes sobre os horrores da actividade negreira. Se essa assepsia
discursiva não surpreende em jornais como a Idade d'Ouro do Brazil
ou Microscópio de Verdades, para os quais o tráfico não era propriamente um mal, não deixa de ser relevante que, em periódicos suposta-
mente adversos ao comércio negreiro, como o Correio Braziliense ou O Portuguez, o apelo afectivo e as referências negativas, quando exis-
liam, tendessem a ser atenuadas graças a comparações com casos tidos por igualmente horríveis ou bárbarosº!. Muitas vezes a atenuação operava por analogia com situações de opressão política. Assim, e a propósito do rumor que então corria de que, em Viena, as grandes potências se preparavam para impor a abolição total do tráfico de escravos
num prazo máximo de oito anos, O Portuguez exclamava: Oh, que humanos e filantrópicos governos! Doem-se mais das misérias dos africanos, que não presenciam, do que dos russos, polacos e italianos a quem forjam pesadas correntes para lhes cingir os pulsos! Está invertida toda a ordem da natureza: até aqui lastimavam-nos mais as misérias que víamos de que essas que nos referiam; agora acontece o contrário: abrem mais profundo traço nos corações compassivos os recitados dos quakers, do que o espectáculo dos povos gemendo e arrastando cadeiasº?.
38 1, C. Jennings, «Slave trade repression and the abolition of Frer.xch .slaver ; S. Daget (ed.), De la traite ..., cit., p. 364; Davis, Age of Revolution, cit., mtroduçw capítulo 9, h 8º Ver Novo Diccionário da Língua Portugueza, Lisboa, 1817, e Diccionário da | gua portugueza, t. 1, Lisboa 1858 (6.º edição). i % A título meramente exemplificativo, ver O Portuguez, Julho de 1814, p. 149, e ço de 1815, p. 445.
124
?! Ver, a título de exemplo, ibid., Junho de 1814, p. 149-151 (para uma comparação
entre o tráfico e certos hábitos da Inglaterra rural).
” Ibid., Março de 1815, p. 399.
125
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
Assinale-se uma vez mais que, na época, o comparatismo € a crítica da filantropia telescópica eram dois dos métodos a que recorriam, pof o negreiro. Como093 todo o lado, os partidários da ó continuação do comérci o E mb um deles escrevera, «humanity has no need to visit distant regions»* Tendencialmente havia, pois, e mesmo nos periodistas que raciocinas vam com base no conceito de iniquidade do tráfico, um esvazmment'
ou diluição do problema do sofrimento do escravo, e a consequente desvalorização indirecta do abolicionismo. O Portuguez chegou mesmo a contribuir para a sua desvalorização directa quando o equiparou à S uixotismo”?. ' totahda pçla o veiculad co ideológi umFTr(Írrªs%mo, até 1815 o quadro s dos jornais aqui considerados admitia nuances que perm1tfm Éal.ar
linhas tendenciais, consoante a maior ou menor acentuação tónica determinadas ideias. Mas não existia oposição essençlal entre, es tendências que convergiam todas na defesa do gradualismo. Até m
pretendia a abolição imediata, ou, sequer, a çurto prazo, do escravos, tido como vital para a sobrevivência do ?rasd.' Ço 1 Correio Baziliense, «os escravos são uma população flctlgsla, valor e perigosa; mas, ainda assim, é melhor que nada» >. EM
conformidade, o jornal abstinha-se de censurar o goYerno do Rio
C
nada decidir quanto ao comércio da escravatura e limitava-se a espera «que
os melhoramentos
do
nosso
século» É
viessem i
a produz ir «um ni
gradual e prudente reforma neste ramo»%. Ora, a uniformidade de pc sições da imprensa portuguesa no período em causa sugere que, sob : impulso da pressão britânica, se operara uma contracção do especth ideológico, resultante não só da dissimulação do escravismo no Eole cionismo mas também de uma convergência e quase sobfepomçao da várias vertentes do toleracionismo, dando origem a um discurso quas
gradualismo.
93 Frase do texto anónimo (atribuído a George Turnbul!l), An Apology for Negro
) çf. very: or the West India Planters vindicated from the Carge ?f Inh.umamt.'y.(l786), a mais seve tey, ob. cit., p. 294. Para os que garantiam que os escravos não seriam surleltos seria p ' ros castigos do que um colegial inglês, por exemplo, ou que à sua condição não 400. e 289 pp. ibid., v. pobre, camponês do ou operário do que a 9 O Portuguez, Julho de 1814, p. 239; ver também O Investigador Portuguez em ,. glaterra, Julho de 1814, p. 144.
95 Correio Braziliense, Junho de 1814, p. 914. % Ibid., Março de 1814, p. 609. 126
a
A contracção ideológica só se atenuou na segunda metade da déca-
de 1810, altura em que, em contraste com o discurso da Idade
d'Ouro do Brazil ou dos Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras
(já evocado atrás), se insinuou no Correio Braziliense, em O Portu-
guez e, depois, no Investigador Portuguez em Inglaterra, um segundo
esquema de pensamento agora claramente para-abolicionista que propunha uma condenação frontal do tráfico e da própria escravidão por rnzões filosóficas, económicas, sociais e políticas. Já em meados de 1814, por alturas da assinatura do tratado de Paris,
p Correio Braziliense aflorara levemente um conjunto de ideias que
hipontavam para o fim do tráfico e para
dos da década de 1810, sublinhêmo-lo muito fortemente, nenhum
riódico fico de dizia o pouco
3,2. Uma história em dois tempos: a distensão
a emancipação gradual dos es-
eravos, ideias que o jornal viria a desenvolver plenamente no final de 1815º7, Um discurso similar, e que se tornou progressivamente mais virulento, foi proposto em O Portuguez a partir de Março de 18158 E também O Investigador Portuguez em Inglaterra avançou nesse sentido através de uma memória publicada em Janeiro de 1817 (ou seja, já no período em que Palmela se encontrava na embaixada de Londres)?º. Outras visões francamente antiescravistas surgiram em 1820 em folhetos escritos por António de Oliva, um jovem tenente de infantaria e estudante de Coimbra, e por Francisco Soares Franco, pro-
fessor de medicina da Universidade de Coimbra e futuro deputado às Cortes Constituintes!%, O pensamento que emergia de forma nítida e ' Ibid., Dezembro de 1815, pp. 735-739. ?” O Portuguez, Março de 1815, pp. 398-448. ” O Investigador Portuguez em Inglaterra, Janeiro de 1817, pp. 245 e segs.; tudo in-
dica que tenha sido Palmela a impulsionar a publicação do texto (supostamente escrito no Rio de Janeiro em meados de 1815), dada a similitude entre algumas das opiniões aí expressas e as que ele próprio defendia na sua correspondência oficial. Não parece fundada a hipótese, admitida por Alexandre (Os Sentidos do Império..., cit., p. 667, nota), de que o pendor pró-abolicionista do Investigador pudesse também atribuir-se à entrada de José Liberato para a redacção do jornal: em primeiro lugar, porque Liberato entrara para a redacção do jornal muito antes; depois, porque nada indica que fosse um antiescravista; nas suas Memórias não sugeria qualquer interesse, mesmo que vago, pelo tema, não o referindo a propósito da sua passagem pelo Investigador nem a propósito da sua viagem de 1819 n Paris, onde teve oportunidade de encontrar o abade Grégoire — cuja posição ou relevo abolicionista parecia desconhecer, pois passou-a em claro (Carvalho, ob. cit., p. 109); para nlém disso, foi precisamente no período em que o Investigador foi dirigido por Liberato a seu bel-prazer (1814-1816) que o periódico mais se aproximou das perspectivas escravistas. 100 António de Oliva de Sousa Sequeira, Projecto para o Estabelecimento Político do Reino-Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Coimbra, 1820; e Francisco Soares Franco,
Ensaio sobre os melhoramentos de Portugal e Brazil, quarto caderno, Lisboa, 1820.
127
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
pública através desses textos pró-abolicionistas, propunha uma novi forma de encarar as implicações da abolição do tráfico e da gradua emancipação dos escravos. Em geral, o raciocínio desenvolvido parti da ideia de inelutabilidade da interdição geral do iníquo comércio pot imposição internacional e advogava a correspondente aceitação das (e " adaptação às) novas circunstâncias daí decorrentes. No final de 1815, o Correio Braziliense reconhecia que era chegad o tempo de «encontrar o mal cara a cara». Face à recém-decretada abolição francesa e à então já previsível cedência espanhola à pressão humanitarista britânica, o governo português ficaria isolado na cená internacional e deveria preparar-se para um «golpe inevitável». Hi lito atrevia-se, por isso, a falar aos seus concidadãos de uma forma que ele próprio rotulava como «um pouco forte», incentivando-os à abor-
lição do tráfico e à emancipação gradual dos escravos!º!, Também O Portuguez sublinhava repetidamente o carácter inelutável da aboli [ ção. Viena criara circunstâncias novas, capazes de mudar a face da Américas. Portugal ainda conservava o direito de comerciar em esc a vos mas os Ingleses não descansariam na sua luta pelo fim do sistem escravista, e não haveria forma de fugir a esse desenlace. Em con
quência, o governo do Rio era aconselhado a preparar-se para o ines
tável e os «capitalistas do Brasil> advertidos de que deveriam ir pondi
«as barbas de remolho», porque o comércio da escravatura não poderil
"
durar muito mais tempo:
Não se engane o nosso povo com o descanso do seu governo o qua estando em véspera de uma tão principal medida, ainda para ela não feito o menor preparativo; não se creia que a extinção da escravatura nãs terá lugar porque o nosso governo não se prepara para ela, oh não. O g verno do Rio há-de assiná-la de repente com a mesma precipitação qu houve quando a Corte se passou para o Brasil, que nem vasilhas tinha par
nelas levar sua aguada!0?,
A nova postura de reconhecimento e aceitação da inevitabilidade de abolição, contribuía largamente para desinvestir a conotação negati de filantropia suspeita que todos os publicistas (incluindo Rocha Lou reiro e Hipólito da Costa) haviam ajudado a colar à política abolicio nista inglesa. Pontualmente, as propostas para-abolicionistas podiar até aparecer inteiramente dissociadas de referências à pressão política
externa. Mas mesmo quando continuavam a referi-la, e quando a ideik 101 Correio Braziliense, Dezembro de 1815, pp. 735-739. 102 O Portuguez, Dezembro de 1817, pp. 121-122. 128
( c./'i—lantropia suspeita permanecia embutida no novo discurso, a tónica Jd não estava na necessidade de lhe resistir, mas na de aceitá-ia' a mo-
vi.m—entaçãf) inglesz) seria, talvez, interesseira, mas redundaria. numa :::L.::)âª:lfãga, seria «uma boa obra, feita por más mãos, maus meios e
Corq o apagamento do fantasma inglês inverteu-se também o papel ldç_nlóglco da defesa da honra nacional. Dada a inevitabilidade da agolição, por decisão do concerto das nações, seria imperativo actuar para Sulvaguarda da dignidade portuguesa. Essa vertente activista era grti—
culurm?nte evidente em O Portuguez, um jornal que chegou a col[)lfes-
hur «mágoa» por ver «a escravidão /sic] ser proibida no Brasil por deereto de outras nações»!, O sentimento era agora, por vezes, de vergonha e de embaraço face à protecção que o govern,o do Rio co,nferia ao tráfico de escravos. Que diriam os Ingleses, perguntava Rocha Loureiro, «vendo que ao passo que estamos todos os dias prometendo c'lc em preve e gradua.llmente acabarmos de abolir a escravatura, ao ;:;:tt;g;:;l (;));)r uma lei expressa e clara agora facilitamos dela a ex: T.ambém a tese de que a interdição do tráfico de escravos causaria inevitavelmente a ruína brasileira — tese em que o toleracionismo de 1812.-1'815 tanto havia insistido — se atenuou nas colunas do Correio !irazzltens.e e de O Portuguez a partir do Congresso de Viena. Em cêrtos casos inverteu-se até, com a ideia de desastre económico a aparece r ui—;socmdz'l ao prosseguimento do tráfico, não ao seu fim. Hipólito da Costa delixava um aviso claro a esse respeito logo nos finais de 1815: se o Brasil tentasse opor-se à «torrente de opinião de todas as potência s. contra a escravatura», ou se descuidasse a prevenção atempad a dos
ctel_tos da abolição, a indústria sofreria um decaimento geral e tornar
-se-ia qifícil remediar «o atrasamento na população»!%, O autor dz; memória publicada pelo Investigador Portuguez em Inglaterra ia mesmo mais longe e reprovava a importação de africanos, não apenas por acreditar na superioridade do trabalho livre, mas porql;e conside rava a compra de escravos equivalente a um jogo de sorte e de azar. O capital empatado na aquisição de um negro aniquilar-se-ia com. a sua 103 Ibid., Junho de 1817, p. 840. :g: Ibid., Março de 1815, p. 405. Ibid., Fevereiro de 1818, p. 279: a «lei expressa e clara» a que Rocha Loureiro se
ÍL'el 1A era o alvªlª de e escravo s tlallspor t ªdos
26 em
de
Jª“e" o de H navio.
1818
que
Cªdª
ªCabªIª
1%6 Correio Braziliense, Dezembro de 1815, pp. 738. 129
c om
as
restriçõ ç es
ao
Ilúlnelo
de
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
morte, pelo que a operação só poderia vir a ser luc.rativa se O escrav , deixasse descendência. Porém, nesse caso, abrir-se-lam as portas a ou tros males de ordem social e política, contribuindo-se para o aumeqt |
desproporcionado dos negros e para a insegurança dos brancos,j muite minoritários no Brasil. A memória acrescentava que, ao coqtr_ano d,,. que vulgarmente se propalava, os efeitos económicos da abolição esta-ã«
W
riam longe de ser catastróficos:
O Brasil, quando finalizar a importação de escravos, háíde _vir a achar_?' -se nas circunstâncias em que se acham há oito anos as colónias inglesas nas Antilhas; ora, nestas tem continuado a haver café, açúcar, etc.,'e como
os
preços têm sido os mesmos, as colónias têm vivido e existido felizmente! ';.
Em alternativa à escravaria vinda de África, advogava-se ipv.zlr' velmente o recurso à importação de máquinas e o fomento da imig ; ção dos Europeus, e o Correio Braziliense, que ainda em Junho nad que 1814 defendera a continuação do tráfico por ser «melhor não via agora «nenhuma dificuldade em se pod.erem transporta.r,da. E ropa para o Brasil colónias inteiras de gente útil, grande parte já civilk zada»!08, A apologia da imigração europeia como altert.latlva ao trafi de africanos surgia frequentemente reforçada por sentimentos de? dis sonância social entre pretos e brancos. Ao contrário do escravis que tradicionalmente reivindicara para o comércio Ele negros uma fq f. ção civilizadora e integradora das bárbaras populações afrlcaqas — fu.
ção que, em parte, justificaria ideologicamente o seu prosseguxrPento o para-abolicionismo procurava ligar o seu programa de. acção a u
projecto de reformulação social e de decantação epidérmica da soci :
dade brasileira. Era por essa razão que, para fundamentar melhor a de
fesa da abolição gradual, a memória publicada no Investigqdor consi derava ser necessário diminuir, e, depois, terminar, «a importa desta raça que o Criador plantou em outra parte e que, pela sua c
parece destinada para um privativo e único lugar na _Terra»lºº. Par: autor da memória seria previsível que, uma vez terminado o tráfico, Brasil viesse a carecer de mão-de-obra, mas o recurso às populaçõe
força, a África bárbara, inculta e despovoada o mercado para o nosso provimento? A cor negra e as feições hediondas, ou anti-europeias, serão talvez os atractivos e as únicas recomendações da casta que queremos amal-
gamar connosco!10?
O Correio Braziliense, congratulando-se com a anunciada chegada de imigrantes suíços ao Brasil, argumentava de uma forma similar: a cor era «um obstáculo invencível» para assimilar os negros, «enquanto
os europeus, depois de passada uma só geração em que se extinga a
diferença da linguagem, formarão, de todas estas famílias de emigrados, um povo verdadeiramente brasiliense em todos os sentidos»!!!,
Na segunda metade da década de 1810 a aceitação da abolição do tráfico aparecia, então, estreitamente associada à ideia de uniformização
do espectro racial, uma ideia que, assinale-se, não desembocava neces-
sariamente no segregacionismo. António de Oliva, que também advogava a imigração europeia e os incentivos ao trabalho dos «indígenas errantes» como formas de suprir a previsível carência de mão-de-obra, e que desejava igualmente purificar o espectro racial, defendia a miscigenação como forma de diluição da negrura das gentes:
Como o Brasil deve ser povoado da raça branca, não se concedam benefícios de qualidade alguma aos pretos que queiram habitar no país depois de abolida a escravatura; essa faculdade é só concedida aos que já foram
escravos.
E como,
havendo
mistura
da raça
preta
com
a branca,
geração!!?,
Na sua extravagância sociológica e genética o tenente de Viseu ia mesmo ao ponto de sugerir que os homens maiores de 25 anos não £go-
zassem dos foros de cidadão sem serem casados, e de recomendar que
africanas deveria ser evitado:
Suponhamos [...] que o Brasil precisa da importação de homens; não os tem na Europa bem gentis, e na China bem industriosos? Há-de ser, po 107 Q Investigador Portuguez em Inglaterra, Janeiro de 1817, p. 252.
108 Correio Braziliense, Dezembro de 1815, pp. 737-738 (itálico meu). 109 O Investigador Portuguez em Inglaterra, Janeiro de 1817, p. 252.
130
à
segunda ou terceira geração ficam brancos, terá o Brasil em menos de 100 anos todos os seus habitantes de raça branca, porque havendo igualmente casamentos de brancos com indígenas, acabará a cor de cobre; e se quiserem apressar a extinção das duas raças, estabeleçam-se prémios aos brancos que casarem com pretas ou indígenas na primeira ou segunda
1 Thid,, p. 260. Para a relação entre abolicionismo e hostilidade aos Negros, e para a raridade dessa hostilidade na Europa (em contraste com a sua frequência nas Américas), ver Seymour Drescher, «The ending of the slave trade and the evolution of European scientific racism», in Social Science History, 14,3, 1990, pp. 416 e segs.
!! Correio Braziliense, Abril de 1819, p. 429 (itálico meu). 112 Sequeira, ob. cit., p. S1.
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
se pedisse a Roma autorização para que OS eclesiásticos pudessem ' contrair matrimónio nos Estados portugueses!!?, por SOÉ S vida Uma perspectiva muito semelhante era desenvol Franco no seu Ensaio.
O médico constatava que os negros coqstltula n
uma raça separada da espécie branca «pelas feições mais ev1denteszw1 isto é, «pela cor»!!4, Eram gente sacrificada e para la'm_entar, mas ta “»—.' bém gente perigosa cujas malfeitorias seria necessário precaver, to- | mando-se as medidas «para reduzir a nação portuguesa americana uma só, sem prejuízo da sua agricultura e sem perda qos actual's. col nos»!!5, Essa solução mágica passava por uma complicada [.)O.ll.tlca de decantação racial: os índios já civilizados, ou que viessem a civilizar seriam absorvíveis na grande nação branca que Soares Franco pret dia criar no Brasil, «visto que a sua cor [era] pouco diferente, pelo m
nos em comparação da preta»!!6; o mesmo se aplicava, por maior for de razão, aos filhos de europeus e índios. O principal prob'lema Tes
nos negros e seus descendentes, e, para lhe fazer façe, havia que recl
rer à imigração europeia e à extinção dos «mestiços» (opera(.la_ po meio de uma reprodução biológica administrativamente corldlcm da)!!7, Tal como Oliva, Soares Franco pressupunha que a fusão racié dissolvia progressivamente
o tom
escuro
da pele. Uma
vez que
«mestiços» — que, na sua terminologia, seriam apenas aquele's em c )
geração entrasse um progenitor africano — conserva.vaín «só metad ou menos, do cunho africano», se se unissem depois à ca'sta bran
gerariam filhos com uma cor menos «baça», e se a terceira geraçã resultasse da união com brancos, o «cunho africano» perder_—ss.a-law to talmente!!8. Haveria pois que fazer cessar o tráfico e que proibir es tamente casamentos entre mestiços e africanos, para que toda a neg) ria fosse «baldeada na raça branca»!!9. Considerando que a opção celibato era uma liberdade nociva, Soares Franco pretendia. igu.alme impor obrigatoriedades matrimoniais, propondo que nos primeiros c quenta anos daquilo a que chamava «o novo estabelecimento do B.
13 114 H 116 17 118 119
Td,, ibid., pp. 52-53. Franco, ob. cit., p. 6. Td,, ibid., p. 8. Td,, ibid. 1d., ibid., p. 18. Td,, ibid., pp. 18-19. Td., ibid., p. 19.
fil», os homens não pudessem exercer empregos, nem receber honraFlas, sem previamente casarem!?2º, — Maso carácter radical, quase despótico, das políticas demográficas
hdvogadas pelo jovem Oliva, e pelo não tão jovem Soares Franco, ia Bontra a aparente tendência dos para-abolicionistas da época, para os Quais o fomento da imigração europeia não seria de modo algum compatível
com
despotismos.
Pelo contrário,
essa imigração
só poderia
Bonstituir uma solução para o problema do povoamento brasileiro se losse acompanhada de sólidas garantias de liberdade civil e religiosa, Numa palavra, de uma alteração política que persuadisse o mundo de Ue as autoridades e instituições no Brasil eram acolhedoras e liberais.
ª importante verificar que um dos motores deste primeiro despertar do hbolicionismo ou do para-abolicionismo português terá sido o liberalismo político. Na segunda metade da década de 1810, o sistema escraVista começou a ser frequentemente apresentado pelos jornais liberais publicados em Londres — com excepção do Investigador Portuguez em " Inglaterra, o jornal da embaixada — como estando em oposição essencial ao amanhecer das liberdades sociais e políticas. Essa tese constilufa como que o pináculo de todo um raciocínio que, de forma simpli— ficada, pode enunciar-se assim: a abolição do tráfico de escravos seria Inevitável (por imposição exterior); a solução para minorar as conse-
quências dessa abolição dependia em larga medida do fomento da imigração branca; e esta, por sua vez, aconselhava ou exigia a liberaliza-
g&ão do regime político. Para O Portugez, por exemplo, a imigração só poderia ser incentivada «se, com sistema liberal, [o Brasil] acarinhasse
6 trouxesse a si o imenso povo da Europa, que treme de se ir para lá estabelecer com ódio e receio ao despotismo do governo»!2!. Numa passagem anterior,
o mesmo jornal pedia ao rei que desse aos povos
«uma livre constituição que por vassalos lhe grangeará homens livres, e não máquinas e bestas como os escravos são»!22. A mensagem central era, portanto, clara: o fim do tráfico de escravos não seria catastró-
fico para o Brasil, a solução estava ao alcance da mão e passava, em última instância, pela liberalização do sistema político.
120 Td., ibid p.21. 12! O Portuguez, Fevereiro de 1818, p. 278. Aparentemente, Soares Franco (ob. cit,
pp. 12 e segs.) não se dava conta do carácter demasiado autoritário das suas regras anticelibato, porque também ele estabelecia um nexo entre abolição do tráfico e liberalismo
político e social.
12º Ibid., Junho de 1817, p. 840. 127
133
Os sons do silêncio
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Reforçando este conjunto de ideias existia ainda o habitual fundo de preceitos morais antiescravistas a que os jornais por vezes recorriam, invocando os filósofos, procurando mostrar que a escravidão não podia ser útil nem ao escravo, que nada obrava por virtude, nem ao senhor, que contrafa,
no contacto
com
a escravaria,
todos
os vícios inerentes
2
escravidão, «fazendo-se feroz, voluptuoso e insensível aos males dos
outros»!23, No início da década de 1820, o Correio Braziliense chegou mesmo a defender a abolição (gradual) da própria escravidão no Brasil por razões de ordem pedagógica!?, E alguns anos antes a memória publicada pelo Investigador Portuguez em Inglaterra reservou um espaço para estigmatizar o escravismo em termos religiosos, fazendi intervir, na linha dos primeiros abolicionistas militantes norte-american
ou ingleses, como Benezet ou Granville Sharp, a ameaça do flage divino: E pode uma nação considerar-se me convicção de que a liberdade é de violar sem a sua indignação? É tria quando me lembro que Deus é
nistas de todo o período eram os folhetos de António de Oliva e de Soares Franco. Oliva pretendia até que a própria escravidão fosse abolida «desde logo», indemnizando-se os senhores e subsidiando-se os
pretos libertados, para que casassem e se estabelecessem!27. Francisco
Soares Franco, depois de demonstrar que o comércio negreiro era contrário à religião e à política, pedia que se proibisse rigorosamente a importação de mais escravos, aceitando, como única excepção a essa regra, que continuassem a importar-se aqueles que fossem necessários ao
trabalho nas minas (importação essa que deveria ser limitada a um único porto brasileiro)!28, Mas os discursos de Oliva e de Soares Franco parecem Ser casos
extremos no Portugal da segunda metade da década de 1810. Além disso,
livre pondo diariamente de parte a fit um dom de Deus e que esta se não po: por isto que eu tremo pela minha : recto [e] que não dorme sempre a su
justiça!?5.
j
O discurso para-abolicionista emergiu na segunda metade da déca de 1810 como uma adaptação ao irremediável, como antecipação profilaxia de uma crise anunciada. Surgiu como tranquilizador pa aqueles que iriam sofrer uma alteração e visou incentivá-los a aceitar, & curto prazo, uma modificação que se sabia inescapável. Mas era, es sencialmente, um discurso border-line, a meio caminho entre o tole cionismo e o abolicionismo. O Portuguez ainda chegou a recomen
ao governo que, no futuro, abolisse «por si mesmo» o tráfico da escra vatura mas esse incentivo à iniciativa própria era invulgar!?6, Por nof ma, os proponentes da abolição assumiam uma atítude passiva, adap tativa, esperando que a medida viesse a ser forçada pela Grã-Bretanh
o pensamento para-abolicionista que se apresentava nos jornais e
notas diplomáticas, raramente era consistente, e muito menos insistente ou militante. Comecemos por notar que quase nunca havia júbilo na forma como os jornais formalmente favoráveis ao abolicionismo viam Os primeiros passos para a aplicação prática dos seus supostos desejos. Apenas dois meses volvidos sobre as suas primeiras defesas da abolição, O Portuguez insurgia-se contra o facto de, em Viena, os plenipo-
tenciários portugueses terem negociado a proibição imediata do tráfico a norte do equador em lugar de estipularem «só uma abolição gradual»!2?, Em 1818 o Correio Braziliense lançou uma violenta diatribe contra a concessão do direito de visita e o estabelecimento de comissões mistas para julgar rapidamente os negreiros!3º, Este tipo de contradições.revela a volubilidade do para-abolicionismo, uma linha de pensamento que se crispava ou distendia de acordo com o nível e flutuações da ingerência estrangeira, e que, quando confrontada com medidas concretas, tendia a refluir para posições próximas do toleracionismo
de cariz nacionalista,
mais
obstaculizador,
em
vez
de
avançar decididamente em louvores à abolição. Também o abolicionismo era inconsistente e o próprio Soares Franco, que alguns meses
e ajustando as suas proposições em função de uma suposta inevitabili
depois da publicação da sua apologia da abolição do comércio negreiro viria a ser eleito deputado às Cortes Constituintes de 1821, e, poste-
p
dade proveniente do exterior. Os únicos textos francamente abolicio
riormente, à Câmara dos Deputados de 1826, não aproveitou esse
ensejo para materializar aí a sua confessada oposição ao escravismo —
123 Esta frase de Hipólito da Costa (Correio Braziliense, Dezembro de 1815, p. 738 reproduz quase palavra por palavra o discurso de Montesquieu (ob. cit., XV, cap. 1); igualmente O Portuguez, Dezembro de 1816, pp. 188-189, e O Investigador Portuguez Inglaterra, Janeiro de 1817, pp. 253-254.
124 Correio Braziliense, Novembro de 1822, pp. 574-576. 125 Q Investigador Portuguez em Inglaterra, Janeiro de 1817, p. 254.
126 Q Portuguez, Junho de 1817, p. 840. 134
vê el i
127 128 129 16 mente.
Sequeira, ob. cit., pp. 50-51. Franco, ob. cit., pp. 14-16. O Portuguez, Maio de 1815, p. 71. Correio Braziliense, Janeiro e Março de 1818, pp. 91-94 e 311-312, respectivai
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
Alexandre viu uma adesão às teses abolicionistas surgiu logo em 1815,
pelo contrário, terá primado pelo silêncio quando a questão foi discutida. Outro tanto se aplica, aliás, a Rodrigues de Brito, o autor das Car. tas sobre a Bafa analisadas no capítulo anterior, também ele deputade
como se mostrou, e esta datação mais precoce, bem como o envolvi-
em 1821. Acrescente-se que o número de manifestações escritas a favor da abolição do tráfico de escravos não foi elevado. O espaço qu
Braziliense — que, longe de ter sido «discreto», foi o que primeiro avançou com sugestões de abolição, inclusive da própria escravidão —,
mento nesse discurso para-abolicionista de um órgão como o Correio
os jornais lhe concederam, ainda que significativo, foi circunscrito no
fragilizam a tese de que a nova posição ideológica representasse fun-
tempo e, tudo somado, terão sido poucas as pessoas que manifestaram
damentalmente uma oposição entre interesses brasileiros e metropolitanos. A meu ver, a mutação da linha argumentativa dos jornais liberais publicados em Londres deve ligar-se sobretudo ao ajustamento da forma de pensar dos toleracionistas sinceros às alterações emanadas de Viena e às circunstâncias mutáveis da pressão inglesa. Viena estabelecera o princípio universal da abolição, mas estipulara também que ca-
publicamente a sua opinião e sentimentos sobre a causa da humanidade. No final de 1822, Hipólito da Costa admirava-se mesmo de queê «todos os escritores do Brasil» ainda guardassem silêncio sobre um:í
«questão tão importante como a da gradual e prudente extinção da escravatura»!3!, Mas a explicação era evidente: o mutismo continuava à ser a melhor estratégia de preservação do status quo. De toda a forma, e apesar das inconsistências e hesitações, a segund
metade da década de 1810 viu a difusão pública de um ideário ab cionista ou quase abolicionista e a sua emergência nessa época específica requer uma explicação. Valentim Alexandre situou o aparec1men da nova corrente de pensamento no período de 1817-1820 e interpre ' tou-o de forma dupla: primeiro, como decorrendo da «influência»
movimento antitráfico britânico
e «do peso do próprio ambiente que
rodeava a questão na Inglaterra» (o que explicaria que um Solaní Constâncio, residente em Paris, não tivesse sido «influenciado», m tendo-se a favor da continuação do tráfico); depois, como indiciandi
uma «tensão crescente entre interesses americanos e interesses euro peus, no interior do império luso-brasileiro» (o que, por sua vez, explicaria que o Correio Braziliense, um órgão muito activo na defesa interesses brasileiros, não tivesse participado na contestação do tráfico,
«fazendo-se muito discreto sobre esta questão»)!32. Mas estas inter”
pretações não são inteiramente satisfatórias. A primeira é algo retórici uma vez que não se percebe por que razões o movimento abolicioni inglês teria influenciado os jornalistas liberais portugueses apenas/ partir de 1817, ou por que razão os residentes em Paris, como Solan Constâncio, seriam necessariamente imunes a tal influência. A segun razão, sendo ajustada, não parece decisiva. O tom contundente co que certos jornais — em especial O Portuguez — discutiam a questão da abolição do comércio negreiro no último terço da década de 1810 pode. interpretar-se, de facto, como reflectindo uma oposição à linha polític seguida no Brasil. Mas
apenas o tom. O tipo de apologias nas quais
131 Ibid., Novembro de 1822, p. 574. 132 Alexandre, Os Sentidos do Império ..., cit., pp. 669-671. 124h
beria a cada Estado determinar a época em que o infame comércio de-
via cessar. Introduzira, dessa forma, uma moratória, uma pausa no ritmo abolicionista imposto pela Grã-Bretanha, e era esse hiato, que se antevia curto, que os que efectivamente aceitavam e desejavam a abolição, procuravam aproveitar. O discurso que se encontra em alguns jornais a seguir a 1815 era a versão pública daquilo que, em termos restritos, encontramos nas notas de Palmela, aconselhando o governo a
ir preparando «os espíritos» para a «extinção final e indispensável do tráfico»!. Não sendo radical, a alteração discursiva de O Portuguez
ou do
Correio Braziliense não erigia uma barreira inultrapassável entre toleracionismo e abolicionismo, tanto mais quanto as ideologias, adaptativas e plásticas, permitiam um contínuo movimento de apropriação e decalque de ideias, de dissimulação de propósitos através da adopção de proposições e de imagens caras às ideologias adversas. E, no início da década de 1820, já o tímido programa para-abolicionista dos publicistas emigrados em Londres fora, depois de despojado dos seus gumes mais cortantes, parcialmente incorporado num toleracionismo obstaculizador que não cessava de se actualizar. Essa incorporação era já evidente num texto de Maciel da Costa, desembargador do Paço e futuro ministro do novo Brasil, intitulado Memória sobre a necessidade de abolir a introducção dos Escravos Africanos no Brasil e que se publicou em Coimbra em 1821!34, Tal como acontecia com a prosa do Cor133 Palmela ao ministro dos Estrangeiros, 13 de Fevereiro de 1818, ANTT, MNE, livro 464. 134 João S. Maciel da Costa, Memória sobre a necessidade de abolir a introducção dos escravos africanos no Brasil: sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer, e sobre os meios de remediar a falta de braços que ella pode occasionar, Coimbra, 1821.
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
Os sons do silêncio
reio Braziliense, o texto destinava-se a tranquilizar os espíritos dos. plantadores, preocupados com notícias sobre a proximidade do fim do tráfico para o Brasil. Mas não só. No que dizia respeito a eventuais veleidades abolicionistas, servia também para informar os dirigentes el
constitucionalistas saídos da recente revolução liberal portuguesa sobre ó os limites aceitáveis da sua acção reformadora. | Ao contrário do que o título do seu livro poderia deixar entender, .
tendessem reunir em colónias [...]. Entre os servos polacos e os bárbaros
africanos e americanos vai um espaço imenso. Medio tutissimus ibis!?8, Nesta estrutura racional largamente evocativa do escravismo, o au-
tor implantava, depois, várias ideias recentemente veiculadas pelos para-abolicionistas. Desde logo a de que haveria vantagem em decretar a abolição de motu proprio porque o tráfico por tempo indefinido seria
Maciel da Costa defendia apenas uma abolição gradual e, a propósito ' dessa defesa, reactualizava uma vez mais a vertente obstaculizadora do | toleracionismo, ajustando-a às mais recentes proposições para-abo-
contrário aos interesses do império. Depois, a de que a indústria nunca poderia prosperar solidamente senão em mãos de gente livre. Por fim, a de que o sistema escravista indefinidamente perpetuado acarretava
licionistas. A estrutura da obra é, desse ponto de vista, perfeltamente i
sérios riscos para a segurança do Estado. Por todas essas razões, o trá-
esclarecedora. O autor começava por considerar que, ao invés do quau pretendiam os abolicionistas, o tráfico, apesar de contrário à noção europeia de humanidade, seria benéfico para os Africanos, que ganhariam com a transferência «de seus areais ardentes para o belo clima do. Brasil, [onde seriam] empregados no suave trabalho da agricultura»!3 Teria ainda a vantagem de permitir que os negros fossem instruídos nos deveres da religião, o que constituiria para eles um inegável pro;ç gresso. Os fllantropos tmham tendência para exagerar os males do es«# sofriam em África: viam a escravidão na América «por vidros de e
grossar»!36, Regra geral os senhores de engenho cuidavam paternalmente da sua escravaria, não a obrigando a trabalhos superiores às suas.
forças e recompensando-a com a liberdade em caso de boa conduta!37,/ Na parte final da obra, num capítulo destinado a defender que a África portuguesa se tornasse colónia agrícola do Brasil logo que fosse abol do o tráfico, Maciel da Costa recomendava que, quando tal acontecesse, houvesse o cuidado de impedir que as autoridades coloniais se entusiasmassem excessivamente com as novas ideias filantrópicas a ponto de começarem a libertar o Africano: Reunir os indivíduos, doutriná-los, vesti-los, sustentá-los largamente, curá-los em suas enfermidades, não são já benefícios preciosos para míseros selvagens, sem asilo seguro, sem segurança pessoal, vítimas do bárbaro alvedrio de seus régulos, e em continua guerra de horrores e carniçaria humana? Por aqui, pois, é que se deve começar a grande obra da civiliza- / ção deles, e não tratá-los como se fossem paisanos europeus que se pre-xl
fico devia cessar, mas não «sem preparo e sem um prazo arrazoado», sob pena de arruinar a agricultura e comércio!?º, Nesse ponto concreto,
Maciel da Costa não era taxativo, nunca situando a época em que a importação de negros deveria acabar mas, implicitamente, apontava para o longo prazo. AÀ expressão «vinte anos», uma quantificação cara ao pró-escravismo oitocentista, aparece várias vezes no seu texto, nu-
ma óptica de prazo mínimo!?º, Entretanto, e fosse qual fosse o período que viesse a ser fixado, o número de escravos importados anualmente deveria situar-se na ordem dos 25 000 ou 30 000 para não criar desequilíbrios insanáveis na componente racial e na segurança do Estado.
Era verdade que a insegurança social e política poderia ser minorada pela miscigenação,
13R
desejava uma sociedade miscigenada?
mão-de-obra escrava, Maciel da Costa advogava o recurso ao trabalha-
dor livre, que deveria ser atraído por meios suaves e cordatos. Como medida complementar, haveria que poupar os escravos existentes, promover a sua reprodução biológica, e que inspirar o amor ao trabalho nas gentes do povo, de todas as cores, empregando até os indígenas, na medida do possível!º?,
No decurso da década de 1810, e sob o efeito da pressão política inglesa, as ideias existentes a respeito da problemática escravista emergiram do silêncio e alteraram-se com 138 13º 140 141 122
B$ 1A ibid, p. 11. 136 Td,, ibid., p. 13. 137 [d,, ibid.
mas quem
«Para quê misturar e confundir raças? O Africano pode ser tão homem de bem como os Americanos, os Asiáticos e Europeus, mas conserve-se cada um na sua esfera que lhe coube em sorte!!! » Para substituir a
Td,, Td., Id,, Tq,, [d.,
ibid., ibid., ibid., ibid., ibid.,
o impacto dessa pressão. Mas
pp. 86-87 (itálico original). p. 8. p. 38; para outra referência ao prazo de vinte anos, ver p. 40. p. 35 (nota 1). p. 52. 139
a
Os sons do silêncio
Manutenção do tráfico de escravos num contexto abolicionista
década não assistiu à afirmação do abolicionismo em Portugal. O facta de a abolição parcial do tráfico ter sido imposta por pressão políticáa externa facilitou, isso sim, a emergência
de um
Vim, no essencial, a constelação de ideias que desembocava quase hempre na defesa do gradualismo. E o gradualismo, sobretudo quando escorado num forte sentido de honra nacional, constituía uma po-
discurso de índole
nacionalista em que tanto o escravismo como o toleracionismo se en-
lente barreira contra o avanço das ideias e, sobretudo, das práticas nbolicionistas.
nais de extrema ambiguidade, pontes mentais pelas quais se podia facilmente passar de uma posição a outra. Em períodos de maior pressão externa, aqueles que estavam mais próximos do abolicionismo (e que designei por para-abolicionistas) tendiam a refluir para posições defen-
do toleracionismo obstaculizador, e as duas posições fundiam-se nurma só. O escorregamento entre elas era, aliás, facilitado não só pela
similitude da fraseologia mas também pela raridade de condenaçãe moral do traficante. Os negreiros eram vulgarmente designados tãoalgo de vergonhoso no envolvimento em práticas ainda não anatem zadas: «aonde está a vergonha de fazer um comércio que por ora s& Julga necessário para a cultura do reino do Brasil [...]?», pergunta a propósito, O Investigador Portuguez em Inglaterra (no período
berato)!º3, Porque não existia em Portugal uma dicotomia clara entr
vítimas e verdugos, os discursos para-abolicionistas difundidos
na
imprensa na segunda metade da década de 1810 tendiam, de certa f ma, a diluir-se, faltando-lhes a carga emocional e moral que tinha
em Inglaterra.
:
Havia, por outro lado, a mutabilidade adaptativa do velho ideá
escravista, agora camuflado em roupagens toleracionistas. Como s viu, os pontos de convergência entre um escravista dissimulado co: mo Maciel da Costa e os para-abolicionistas que se faziam ouvir er certa imprensa liberal portuguesa de 1815 em diante eram inúmeros Esta capacidade mimética do pensamento pró-escravista e a corre lativa incapacidade dos toleracionistas sinceros para dele descola rem, promovendo de forma inequívoca o abolicionismo, explicam. placidez, a quase homoestasia do cenário ideológico em Portugal Com excepção de uma discordância pontual, não há no registo escrito português da década de 1810 vestígios de luta ideológica em torno do problema da abolição do tráfico de escravos, porque todos partilha- / À :
143 O Investigador Portuguez em Inglaterra, Julho de 1816, p. 113.
140
141
Capítulo III
Da perda do Brasil às guerras liberais: as primeiras propostas abolicionistas e o regresso do silêncio
Apesar da profusão de tratados e legislações abolicionistas, o tráfico de escravos cresceu de forma clara após o final das guerras napoleóniCcas, com a exportação total de África a atingir novamente níveis muito
elevados a partir de meados da década de 1810 (gráfico n.º 1). Parte desse aumento da exportação resultava de um incremento do tráfico português que ainda corria legalmente a sul do equador. Outra parte, porém, era inteiramente ilícita.
De facto, os negreiros tinham reagido à ilegalização da sua actividade através de uma série de tácticas que lhes permitiam contornar as medidas de supressão que, um a um, os vários governos iam decretando. Uma dessas tácticas, talvez a mais corrente, consistia no chamado embandeiramento, isto é, na venda do navio a um sócio, real ou simu-
lado, de um país onde o tráfico ainda fosse legítimo ou tolerado por autoridades complacentes. Obtinham-se, por via desse estratagema, os
papéis e bandeiras indispensáveis para pôr os navios da escravatura ao abrigo
da esquadra
antitráfico inglesa!.
Mas
existiam
vários
outros
! O embandeiramento era, e continua a ser, um velho estratagema seguido pelos armadores como forma de contornarem leis mais rigorosas ou penalizadoras. Naturalmente, era 142
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
Hênci
métodos, aplicáveis sobretudo no caso de Po.rtugal (porque ainda nã o ilegalizara o comércio negreiro no hemisfério .sul): pasªaport?s para
We os abolicionistas britânicos enfrentavam — estava a relutância de fírios dos países envolvidos em fazer respeitar as respectivas leis, ou BMm concederem meios de acção mais amplos à marinha de guerra inflesa para que desenvolvesse uma acção supressora universal e mais Blicaz.
Molembo ou Cabinda (quando, na verdade, o navio se destinava à Cost a
da Mina); duplos passaportes, um para o tráfiço de escravos a sul, ou-
tro para o comércio lícito de produtos vegetais e animais, a no;te :»( linha (o que justificaria a presença do navio nessas latitudes); etc.º.
1. Remando contra a maré: os impasses da Exportação de escravos da costa de África (número)
concertação abolicionista
[GRÁFICO Nº 1] 90 000+
No início da década de 1820, era geralmente reconhecido que o odioso comércio só poderia ser eficazmente combatido através da
80 0007
lleção concertada de todas as nações nele envolvidas. Contudo, e ain-
26 600)
da que, com excepção da portuguesa, todas elas já o tives.sem legal-
GOonIE 50 0007
mMente abolido, essa concertação revelava-se praticamente impossível de obter. O tráfico da Grã-Bretanha e dos pequenos transportadores como a
40 0001
Holanda e a Dinamarca acabara inteiramente, e o transporte de escravos para os Estados Unidos esmorecera muitíssimo3. O abastecimento de escravos às plantações norte-americanas fazia-se agora quase que
30 000 20 0004
10000
exclusivamente através de um sistema interno de breeding e comercia-
e
:
lização. Havia, no entanto, vários cidadãos norte-americanos directa-
1813 1814 1815 1816 1817 1818 1819 1820 1821 1822 1823 1824
mente envolvidos no transporte. de escravaria para as colónias de outros países, que escapavam à alçada da marinha de guerra britânica.
Fonte: David Eltis, «Slave departures from Africa, 1811-1867. An annual time series», in African Economic History, 15, 1986, p. 171.
Com a lei de 1820, que equiparara o tráfico à pirataria,
Mas, como é óbvio, os navios negreiros eram apenas a parte m visível do icebergue escravista, e não necessariamente a mais 1Imp tante. Havia várias facetas e prevaricadores, na questão do tráfico « e
escravos, e os estratagemas negreiros só tinham sucesso, gu, melho
dizendo, tanto sucesso, porque se apoiavam na complacência ou co ! vência de muitas autoridades. Na base da manutenção do tráflco. escravos a partir de 1820 — e esse, sim, era o grande problema políti h
adoptado também pelos negreiros, e os próprios GS i
AN á os ingleses o tinham
ing
en
3 Na ausência de informações seguras sobre o volume do tráfico de escravos norle-americano após 1807, : |Eltis considerou ( uma importação média : conjectural de 1000 es-
; ê na sequênci praticado
Ã
i ista (o Dolben's Act de 1789), que impunha restri: díl PNE a mºdãdª dªrºª;gíi ã:l:::râg⪠(Íe acordo com a tonelagem do navio (ver À
ções ao número de escra porreis tey, ob. cit., pp. 11-12, em particular nota 33). :
;
irgeê
? Para os estratagemas dos negreiros portugueses, ver Verger, ob.
os vários casos registados pelas fontes inglesas (PRO FO 84/10).
0b
/cias
cit.,
pp
o governo fede-
ral procurou combater esse envolvimento e criou mesmo uma pequena esquadra que actuou na costa africana a partir desse ano, tendo feito um total de 11 apresamentos?. Mas tratou-se de uma acção transitória. Como a marinha norte-americana constatou a expensas próprias, a supressão dificilmente se coadunava com o cumprimento rigoroso da letra dos tratados. Os navios de cruzeiro encontravam pela frente negreiros que dispunham de dois ou três conjuntos de papéis, a usar consoante as circunstâncias, e a acção repressiva dos Estados Unidos
p 40 4 0NB À
'
cravos/ano até 1822 (Eltis, «The nineteenth-century transatlantic slave trade: an annual ; Ó : : : S ; f
time series of imports into the Americas, broken down by region», in The HispanicÀ Ameri-' can Historical Review, 67, 1987, p. 135, nota 67). 4 A. « R. R. Booth, «Th United ; ; : Booth, «The States African Squadron, 1843-1861», in; Boston Univer-
sity Papers on Africa, vol. 1, Boston, 1964, p. 83 (nota 20).
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
acabou por dar origem a várias reclamações e atritos diplomáticos co m
a França e a Espanha. Cedo os comandantes dos vasos de guerra forar . instruídos para que não actuassem senão em casos incontroversos : depois, em 1824, o cruzeiro cessou de todo”. Em Março desse anq ch
gou a ser assinada uma convenção anglo-americana que reito de vísita e de captura aos navios de ambas as nações; chegaria a ser ratificadaé. O comércio negreiro francês, que ressurgira em 1814 hiato da guerra, não só se mantivera, apesar da abolição
guês, tanto o ainda legal, realizado no hemisfério sul, como o ilícito,
concefha c-l' | todavia, não
feito a partir da Costa da Mina e da área dos chamados rios de Guiné e
após o longo imposta e :
8 abdicando inteiramente de exercer o direito de visita sobre os vasos Mercantes com bandeira inglesa (direito que só começaria a exercer na década de 1840). A passagem dos representantes portugueses, Altavila 8 Figaniêre, pela comissão mista da Serra Leoa foi fugaz e inglória. D clima inóspito, as doenças e a falta de dinheiro levaram-nos a abandonar o cargo e a regressar à Europa, deixando atrás de si uma correspondência repleta de lamúrias sobre a prepotência britânica, sobre os Nfeus achaques e maleitas e, sobretudo, sobre vencimentos que nunca
1815, como subira notoriamente de 1818 em diante. Simultaneamen te sensível aos interesses dos seus plantadores coloniais e à necessidade de demonstrar que não favorecia o iníquo comércio, a França enveres
dara por uma política extremamente ambígua, formalmente abolici_ nista mas inoperante na prática. É verdade que promulgara uma lei
n-
titráfico em 15 de Abril de 1818 e que criara um cruzeiro formado
p
três navios que deviam operar nas águas africanas de interesse nacio (isto é, em torno do Senegal)7. Mas a lei abolicionista de 1818 era un l
lei frouxa, que mais parecia destinada a indicar o que (e como) po fazer-se do que a impedir que se fizesse. Por outro lado, Portal,
um
ministro da Marinha reconhecidamente inimigo dos Ingleses, mantewt o cargo de 1818 a 1821, e durante esse período a marinha de guern francesa não fez um só apresamento?. Como a França se recusava tef minantemente a conceder direito de visita a uma nação estrangeira, | a entrar numa liga internacional antitráfico,
tráfico cubano não constituía um problema de monta, tendo caído muiIssimo após as grandes importações realizadas nos anos anterioresº. Prosseguia também em larga escala o comércio de escravos portu-
o comércio da escravat
efectuado sob a protecção do seu pavilhão ficava inteiramente fora : alçada da Royal Navy. Uma parte da actividade negreira francesa dirigia-se às colónias manescentes (a Guiana e as ilhas de Guadaloupe e Martinica). A ou parte contribuía para fornecer escravos a Cuba, que continuava abe
importação de africanos, apesar da entrada em vigor do tratado ab l cionista anglo-espanhol. No entanto, no início da década de 1820,
Cabo Verde!0. O governo português não participava praticamente nas lnrefas de supressão, não tendo enviado navios para as costas africanas
Mais chegavam!!. No início da década de 1820, Lisboa tentara insis-
lentemente transferir a sede da comissão da Serra Leoa para Cabo Verde, A captura e condenação de navios negreiros contribuía grandeMente para o povoamento dos territórios onde eram julgados uma vez Qque os escravos libertados ficavam a cumprir um período de aprenditagem de 15 anos. Graças a esse sistema que, como era usual no aboligionismo britânico, fundia estreitamente humanidade e interesse mate— Tfial, Freetown absorvera, logo em 1811, perto de 2000 libertos e a continuação dos apresamentos foi alimentando regularmente as necessidades demográficas da colónia!?. Na perspectiva portuguesa, o sistema inglês permitia «o recrutamento de pretos [...] sem despesa nem ? Entre 1816 e 1820, Cuba teria importado uma média superior a 25 500 escravos/ano;
Mas, no período de 1821 a 1823, essa média caíra para 3600 escravos/ano e o tráfico cubaNho manter-se-ia a níveis geralmente contidos antes de se reacender, em pleno, a partir de
1828 (cf. Eltis, «The nineteenth-century ...», cit., p. 122).
10 António Carreira, O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Cabo Verde, 1810-1850. Subsídios para o Seu Estudo, Junta de Investigação Científica do Ultramar, Lisboa, 1981,
pp. 24-38; G. E. Brooks, «A nhara of Guinea-Bissau region: mãe Aurélia Correia», in C.
, Robertson e M. Klein (eds.), Women and Slavery in Africa, University of Winsconsin Press, Madison, 1983, p. 312. Para a organização do tráfico ilícito na Costa da Mina, ver
Verger, o0b. cit., cap. 15.
? Id., ibid. 6 L. Bethell, The Abolition of the parte a parte, ver Gazeta de Lisboa, 12 7 S. Daget, «Armateurs Nantais et verte», in Enquêtes et Documents, XI,
Brazilian ..., cit., pp. 21-25; para as objecçõ de Março de 1825. Á ; trafic négrier illégal: une histoire sans petite boil 1987, pp. 714-75. |
8 Id., «Les croisiêres français de répression de la traite des noirs sur les cotes occider tales de 1 Afrique (1817-1850)», in ibid., xIv, 1988, p. 31. j
!! Para as queixas dos comissários portugueses, ver ANTT, MNE, cx. 224, e J. César de Figaniêre e Morão, Descripção de Serra Leoa e seus contornos. Escripta em doze cartas à qual se ajuntão os trabalhos da Commissão-Mixta Portugueza e Inglesa estabelecida
naquela colónia, Lisboa, 1822. Os comissários eram pagos tarde e a más horas com o di-
Nheiro proveniente da venda dos navios apresados, e como durante meses não houve nehhum ...
|? Fyfe, ob. cit., pp. 114 e segs. 147
á E Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
incómodo», razão pela qual se pretendia desviar esse fluxo populaci nal de Freetown para Cabo Verde, colhendo, sem sacrifício, os benefi
Itempadamente avisado da aproximação de um cruzador inglês se liltava a desembarcar os escravos que já tivesse a bordo e a aguardar (ue o cruzador se afastasse para voltar a carregá-los!6. Por esse motiYo, Londres pretendia fazer aceitar por parte de Portugal, e também da olanda e da Espanha, um princípio que autorizasse o apresamento e PoNdenação de todo o navio que, mesmo não tendo escravos a bordo, ho encontrasse manifestamente equipado para os transportar. Pretendia
cios do esforço financeiro e naval inglês — o que, naturalmente,
dres recusou!3. Em 1824, Palmela manifestou a intenção de pôr fim participação portuguesa na comissão mista com a justificação de que t problema do tráfico não mais diria respeito a Portugal, mas sim a Brasil (que, em conformidade, deveria assumir as despesas)!4. E, a parti
de 1826, o governo português assumiu frontalmente que não voltariar a ser nomeados comissários para a Serra Leoa, o que constituía o reco: nhecimento de uma situação de facto, já que desde 1821 que os julg mentos estavam inteiramente a cargo dos comissários ingleses!*.
limbém que se permitisse o desmantelamento dos cascos condenados,
Para evitar que fossem adquiridos por traficantes e reintroduzidos no Blrcuito. Mas apenas a Holanda aceitou a cláusula do equipamento.
À Espanha (em 10 de Dezembro de 1822) e Portugal (a 15 de Março
Assim, no início da década de 1820, e após vários anos de esforç(í
políticos e de pressões junto dos governos das restantes nações col ' niais, a política abolicionista britânica parecia ter chegado a um imp w'
se. Globalmente, o tráfico crescera e tudo indicava que continuari
crescer a menos que a Inglaterra pudesse obter a cooperação activa d outras nações. De todos os problemas existentes, o do tráfico portugt l parecia ser o mais grave, não só porque ainda era parcialmente leg mas também porque a sua dimensão ultrapassava a de todos os ou' juntos. E foi, naturalmente, sobre Lisboa que, até 1823, se exerceu grosso da pressão abolicionista britânica com vista à ilegalização def nitiva de toda a forma de comércio negreiro e à concessão de um maior amplitude de acção às forças antitráfico. É certo que em 181 Portugal havia concedido o direito de visita e concordado com a c ção de comissões mistas para julgamento dos navios apresados. cedo se verificou que tais concessões eram muito insuficientes. Cot meios limitados e face a uma área de patrulha enormíssima, a Roy: Navy deixava escapar entre os dedos boa parte dos tumbeiros. Acre que os que efectivamente interceptava e visitava só podiam ser ap dos em flagrante delito. O que permitia várias formas de evasão da nomeadamente nos portos africanos, onde qualquer navio negr
de 1823) limitavam-se a anuir, através de artigos adicionais às conven-
pÕes e tratados já existentes, ao vago princípio de que os navios podeflam ser apresados sem escravos a bordo desde que revelassem sinais Inequívocos de os haverem desembarcado recentemente!7. Curiosamente, a partir de 1823, e ainda que não tivesse obtido qualQquer concessão significativa por parte do governo português, o Foreign Office afrouxou a sua pressão abolicionista sobre Lisboa. Esse afrouXamento pode relacionar-se, em parte, com um relativo cansaço e de-
— Sencanto face aos escassos resultados obtidos em 15 anos de esforços contra o tráfico estrangeiro. No final da década de 1820, Wellington, então chefe do governo, escrevia a Aberdeen, o responsável pelo Foreign Office, reflectindo perfeitamente esse estado de espírito: «We shall never succeed in abolishing the foreign slave trade. But we must tnke care to avoid to take any step which may induce the people of England to believe that we do not do everything in our power to discourage and put it down as soon as possible!8.» | O pessimismo manifestado por Wellington correspondia a um sentimento que se fora instalando na sociedade britânica desde o início da década e que se acentuara a cada novo impasse ou desaire da supres-
!3 Silvestre P. Ferreira a Cristóvão Morais Sarmento, 5 de Abril de 1823, AÀ
Í
MNE, livro 571 (neste despacho, o ministro português enuncia os vários ofícios anteri
são. O problema do tráfico estrangeiro revelava-se muito mais difícil de :solucionar do que muitos abolicionistas haviam imaginado, quanto mais não fosse porque era indirectamente alimentado pela própria vitalidade económica da Grã-Bretanha. Na verdade — e essa era uma das
onde a mesma questão se tratara). 14 Thornton a Canning, 8 de Março de 1824, PRO FO 84/31. 15 Na embaixada de Londres, Palmela era agora contra a não nomeação de comi rios, o que revela o universo de contradições e de hesitações em que os políticos portu, ses se moviam na questão do tráfico de escravos: ver Palmela a Porto Santo, 9 de Janeil
de 1826, in J. J. Reis e Vasconcellos, Despachos e Correspondência do Duque de Pal
IW
vol. 2, Imprensa Nacional, Lisboa, p. 204, e Palmela a Canning, 9 de Agosto de 182
ANTT, MNE, livro 481. 1AQ
D
6
.
-
” 16 Um eco dessa situação encontra-se nas Instruções do governo de Lisboa a José Basilio Rademaker, 13 de Fevereiro de 1823, in Biker, vol. XX, ob. cit., p. 248. 17 DA Id., ibid., p. 24. Para o texto da convenção adicional anglo-portuguesa de 1823, ver ], de Castro, ob. cit.
|
18 Wellington a Aberdeen, 4 de Setembro de 1828, in Bethell, The Abolition of the
Brazilian ..., cit., p. 66.
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
grandes contradições da nova era abolicionista e liberal —, o comba ao tráfico desencadeado pelos governos de Londres fazia-se em & multâneo com a conquista comercial dos novos mercados da Amé
Latina. De 1808 em diante, os Britânicos providenciaram boa parte da mercadorias e do crédito utilizados no comércio da escravatura. Apro ximadamente na mesma época em que o Parlamento inglês aprovava | Abolition Act, Portugal abria os seus portos brasileiros à navegaçãea
estrangeira, uma medida que viria a possibilitar o estabelecimento de cerca de uma centena de casas comerciais britânicas no Brasil!?. E, s o tráfico negreiro da Baía era essencialmente alimentado pelos prodi
tos da agricultura local, as fundamental no stock típico Cuba, aliás) para a costa de significavam mais do que Abriam também um canal
manufacturas inglesas assumiam um pap de exportações do Rio de Janeiro (como d África?º. Mas as casas comerciais inglesa grandes quantidades de produtos baratos de acesso ao maior centro financeiro
úfico para o Brasil e Cuba reorganizava-se com o apoio indirecto de
iipitalistas
e comerciantes britânicos?3. Esse envolvimento parecia ine-
Ável, a menos que se bloqueasse e asfixiasse um dos canais da vitaidade económica britânica. Então, e para além das resistências externas, havia também interes8 internos que se opunham a que o governo inglês forçasse excessiimente a mão na imposição a Portugal e à Espanha do seu ritmo aboTlleionista. Desse modo, as perspectivas de concretização da abolição Iniversal eram algo sombrias, e desde 1823 que a acção dos aboliciohistas se fora canalizando preferencialmente para o objecto mais tangíVel da emancipação dos escravos nas colónias britânicas. A meta última
do
movimento
abolicionista
britânico
sempre
fora
o
fim
da
escravidão. Durante anos admitira-se que a supressão do tráfico inglês forçaria os plantadores das West Indies a proporcionar melhores con-
dições
de vida
aos escravos e a orientarem-se
espontaneamente
no
Os abolicionistas viram no mecanismo
do
mundo, às suas seguradoras e aos seus capitais. Para o negreiro bra:
kentido da emancipação.
leiro ou cubano, a grande vantagem das casas import-export britânici residia naquilo a que Eltis chama «the ability to wait for paymeni uma capacidade alicerçada nas amplas disponibilidades financeiras nf_,
um meio eficaz não só para impedir que os colonos importassem ilegalmente mais negros mas também para revelar, preto no branco, as
sócios sediados em Glasgow, Liverpool ou Londres?!. Tanto na co '. de África como na América, o comércio da escravatura constituía
tipo de actividade económica em que os pagamentos eram feitos a pre zo relativamente longo. O crédito era, por conseguinte, um mecanisn central do empreendimento escravista e era esse crédito que as cas: comerciais britânicas vinham prodigalizar, adiantando as mercadorit aos negreiros e aceitando esperar, por vezes, até dois anos pelo paí
mento. Como Eltis mostra, há uma relação positiva entre a exportaçí de produtos ingleses para Cuba e Brasil e o afluxo de escravos a ' regiões??. Ou seja, por amarga ironia, no preciso momento em qu abolicionistas tentavam pôr fim ao infame comércio à escala mundi 19 Eltis, «The British contribution to the nineteenth-century transatlantic slave tra in Economic History Review, 32, p. 220 (em especial, nota 3). 20 Os têxteis feitos em Manchester substituíram rapidamente os tecidos indiano: tinham constituído um suporte importante do comércio negreiro português — inclusi caso do tráfico moçambicano, onde os panos ingleses chegavam via Bombaim. Eltis à mite que por volta de 1820 os produtos de origem britânica constituíssem já o grosso « manufacturas transportadas pelos negreiros luso-brasileiros para a costa africana (ibh pp. 219-220). Para o comércio de tabaco da Baía com a Costa da Mina, ver Verger, ob. pp. 28 e segs. À 21 Td., ibid., p. 220. Assinale-se que a eficácia do mercado de capitais londrino época, incontestável, e aí se obtinham os empréstimos às mais favoráveis taxas de juro. |
22 Id., ibid., pp. 214 e segs. 141
fegisto ou matrícula (isto é, na estatística de nascimento, óbitos, etc.)
condições de fertilidade
e mortalidade em que operava o sistema es-
cravista. O registo dos escravos serviria, assim, para acordar as cons-
ciências ainda adormecidas, inclusive as dos plantadores, que poderiam Ver com seus próprios olhos a urgência em procederem a alterações. Já por duas vezes, em
1812 e 1815, Wilberforce procurara avançar nos
Comuns com uma proposta para a obrigatoriedade de matrícula dos escravos coloniais, mas houve a intenção de contemporizar com as prerrogativas das colónias e durante alguns anos aguardou-se que as administrações coloniais legislassem elas mesmas sobre essa matéria. O que fizeram: até 1820, todas as colónias inglesas nas Caraíbas avançaram efectivamente com leis de registo. Mas, como depressa se constatou, eram invólucros ocos que, usando a fraseologia abolicionista, não provocavam
alterações de fundo no status quo escravista.
Como repetidamente sucedia (e continuaria a suceder), os adversários da abolição tinham-se colado às posições abolicionistas para melhor defenderem o seu terreno?º. ZÍ Para os aspectos contraditórios da política inglesa, ver id., Economic Growth jA
|À
W. A. Green, British Slave Emancipation. The Sugar Colonies and the Great Expert.'ment, 1830-1865, Clarendon Press, Oxford, 1976, pp. 100-101; Davis, Age of Revolution, cit., pp. 160 e segs.; id., Slavery and Human ... cit., Pp. 176-177; Roger Anstey, «Religior; and British slave emancipation», in Eltis e Walvin (eds.), ob. cit., pp. 38 e segs.
151
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
Face à ineficácia revelada pelas autoridades coloniais, os aboliol nistas britânicos fundaram, em 1823, a Society for the Mitigation al Gradual Abolition of Slavery Throughout the British Dominions, se transformaria depois na Anti-Slavery Society, e avançaram com um
campanha à escala nacional visando a abolição gradual da escravid Apesar dos seus 63 anos, Clarkson emprestou o seu prestígio à causa partiu para novas viagens pelo país, formando comités locais, discur sando, agitando. Editaram-se jornais especializados e surgiu de novo.
propaganda intensiva e a literatura especializada distribuída gratuita mente (com a Anti-Slavery Society a publicar cerca de 3 milhões d exemplares entre 1823 e 1831)º?5. Na sua esteira, regressaram as gr D des iniciativas de massa e, com elas, levantaram-se novas ondas pet cionistas, que viriam a atingir o ponto mais alto em 1833, quando” Parlamento recebeu qualquer coisa como 5000 petições, assinadas pc milhões de pessoas?. Nesse mesmo ano, a Inglaterra emancipou | cerca de 780 000 escravos existentes nas suas colónias, pagand
milhões de libras como compensação aos seus proprietários??. Esti lou-se que a escravidão terminaria legalmente a partir de 1 de Ago de 1834 e que os escravos entrariam num regime de aprendizagem 6 anos, findo o qual ficariam inteiramente livres (mas o períod aprendizagem seria posteriormente anulado em 1 de Agosto de 18
A emancipação de 1833 constituiu para os Ingleses um forte moti de orgulho colectivo, dando azo a um período de grande entusia nacional. Foi objecto, também, da profunda admiração das nações vais. Mas o que importa aqui assinalar é que, de 1823 a 1834, as e gias dos principais líderes abolicionistas, como
Clarkson, Buxton
fio liberal portuguesa iniciada no Porto em 24 de Agosto de 1820
liva, entre outras coisas, trazer o Brasil de volta ao redil nos mercantilista do império. Essa meta foi dinamitada pelo sesso revolucionário e, se, após meses de hesitação, D. João )u por regressar a Lisboa, aceitando o papel que as Cortes
mais ou próprio VI acaConsti-
Íntes lhe haviam destinado, do outro lado do Atlântico, o Brasil, onde fhde cedo haviam repercutido os princípios liberais proclamados no
)rto e em Lisboa, não se dispôs a aceitar a restauração do antigo siseMma imperial, nem o seu antigo estatuto de dependência colonial, nem uer um sistema bicéfalo de dois reinos unidos?8. No início de 1822, príncipe D. Pedro, que permanecera no Rio como regente, recusou
gressar à metrópole, preferindo encabeçar a onda autonomista, e, em bBtembro desse ano, os Brasileiros tornaram-se independentes de facto. Dra, o aparecimento do novo Estado punha em causa a rede legal antitráfico tão laboriosa e persistentemente construída pelo Foreign Office, *obretudo porque esse novo Estado — que, naturalmente, não tinha aindh qualquer compromisso abolicionista com a Grã-Bretanha — era
lfio-só o maior importador de mão-de-obra africana, «the very child hnd champion of the slave trade», como dizia Wilberforce?º. Todavia, he a independência brasileira constituía uma ameaça para os filantro-pos, ela era também uma prenda inesperada, como o havia sido a guerfn 15 anos antes, na medida em que o novo país, necessitando dos bons pfícios britânicos para fazer valer as suas pretensões face à exmMetrópole, poderia ser levado a importantes cedências no plano abolicionista. No Congresso de Verona, em 1822, a Inglaterra já havia deixado claro que nenhum novo Estado americano seria reconhecido sem
Lushington, estiveram maioritariamente centradas na questão das Indies. Durante esse período, a preocupação com a supressão do tr co, não tendo desaparecido — longe disso —, tornou-se um assunto
nbolir o tráfico de escravos?º. Não surpreende, por isso, que, no final desse ano, Canning tivesse considerado que seria através do Brasil que 0 comércio da escravatura poderia vir a ser acabado e que, correspon-
sencialmente diplomático e naval, que o governo de Londres gerir mais elasticamente, de acordo com as suas conveniências estr
dentemente,
gicas e sem a compulsão da pressão filantrópica popular. E não foi essa a única mudança importante no panorama aboli nista internacional. De forma quase sincrónica, a desagregação do 1 pério luso-brasileiro alterou substancialmente os dados da problemá supressora, implicando a reorientação da diplomacia britânica. A rev 25 Cf. Turley, ob. cit., p. 48. 26 Td., ibid., pp. 63 e segs.; Walvin, «The public campaign ...», cit., p. 73.
27 Davis, Slavery and Human ..., cit., p. 1O8. Para as razões que explicam tão extray gante concessão monetária, ver W. A. Green, ob. cit., pp. 119 e segs.
152
a maior
pressão
abolicionista
britânica
tenha
incidido
sobre o Rio de Janeiro. A partir de então desenvolveu-se um cerrado jogo de avanços e reeuos diplomáticos, durante o qual o governo brasileiro alternou a promessa de rápida abolição (a 4 anos de vista) com silêncios e resistên28 Para o impacto da revolução portuguesa no Brasil, ver Maria Beatriz Nizza da Silva, «A repercussão da Revolução de 1820 no Brasil. Eventos e ideologias», in Revista de História das Ideias, 2, 1978-1979, pp. 1-52, e Alexandre, Os Sentidos do Império ..., cit., pp. 490 e segs.
? Citado in Bethell, The Abolition of the Brazilian . ., cit., p. 31. 0TA LDA p 31 153
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
p equivaleria, implicitamente, ao reconhecimento da independência
cias. A sua posição política era extremamente difícil, visto não w"' ceder na questão abolicionista sem virar contra si as principais for económicas do Brasil — os fazendeiros e os comerciantes — e sem arris
sileira, mas também porque haveria o risco de a abolição ser interJ
tada como um acto de hostilidade para com o Brasil, e ões sobre os portugueses que aí viviam?ó. No início Mermédio de Porto Santo, Lisboa regressou claramente ibstaculização da abolição do tráfico e só em Outubro o após ter sido concluído o tratado luso-brasileiro que
car fortemente a própria fragmentação política do país. Não obstante' dimensão das dificuldades, o tratado anglo-brasileiro para a aboh total do tráfico de escravos viria a ser concluído em Outubro de 182 : e, depois de renegociado para corresponder a algumas objecções ingle
suscitar retade 1825, por à política de de 1826, um sancionava a
ndependência do Brasil — e já com Porto Santo fora do governo —,
sas, finalmente assinado em 23 de Novembro do ano seguinte?!. O acor:
Portugal admitiu que era tempo de pôr um ponto final na questão:
do previa o final do tráfico efectuado em navios brasileiros 3 anos a pó: a sua ratificação (que viria a ocorrer em 13 de Maio de 1827) e estig
O governo português reconhece ter chegado o momento de o desumano tráfico da escravatura, e por isso nenhuma dúvida em inserir no tratado de comércio [...] um artigo pelo qual S. sima se obrigue não só à total abolição do tráfico de escravos
matizava a actividade negreira, equiparando-a à pirataria?. .'. Com a atenção abolicionista britânica preferencialmente centradi nos problemas da escravidão interna e do tráfico brasileiro, o papel d Portugal esbateu-se um pouco. Os governos portugueses sempreti
pertencentes
à Coroa de Portugal,
mas também
fazer cessar pode haver M. Fidelísnos Estados
a concorrer com
S. M.
Britânica para a total extinção de um tão bárbaro comércio nos países on-
nham alegado que só os seus interesses transatlânticos haviam obstadet a que terminasse imediata e inteiramente o seu envolvimento no co
de ele infelizmente ainda existe?”.
mércio negreiro, e parecia evidente que a cisão do império em doit blocos alterara irremediavelmente o seu posicionamento face ao p
pulações bilaterais de 1815 e 1817 e o alvará de 26 de Janeiro de 18 tinham interditado a exportação de escravos para territórios estrang ros, algo que o Foreign Office fez notar logo no final de 182233. Ape:
Os esforços da Inglaterra para obter «a written pledge» que comprometesse formalmente o governo de Lisboa na abolição do tráfico tinham sido coroados de êxito38. O indispensável convénio seguir-se-ia sem grande urgência, dado que, de qualquer modo, seria sempre necesSsário preservar o abastecimento de escravos ao Brasil até 1830 (para dar cumprimento a uma cláusula do tratado abolicionista anglo-brasileiro que, entretanto, se concluía).
sar de tudo, o governo português, através de sucessivos ministros, 1 reagindo às pretensões inglesas de uma forma ziguezagueante. EM 1822-1823, na fase de maior assédio do Foreign Office, resistiu a essa
2. Rumos do abolicionismo em Portugal
blema, quanto mais não fosse de um ponto de vista estritamente | Devido à secessão do Brasil, e à luz das leis e tratados vigentes, o ti
fico português ficara ilegalizado ipso facro, já que as sucessivas esti
pretensões ameaçando com a ruptura de todos os tratados??. Mais de, no início de 1824, e por acção de Palmela, procurou imiscuir-se n negociação particular que a esse respeito então decorria entre a Grí -Bretanha e o Brasil, manifestando-se aberto à possibilidade de abolir ( tráfico como forma de obter a colaboração britânica numa futura reu nião imperial, ou em troca de compensações financeiras*”. Mas, algun! meses depois, Palmela recusaria a abolição imediata, não só 1
A trajectória ziguezagueante dos executivos de Lisboa estava em
certa medida ligada às convulsões políticas internas e à complexidade da situação criada pela secessão brasileira, na qual a abolição do tráfico assumia um peso diplomático considerável, fosse como moeda de troca, fosse como
elemento de conciliação ou de pressão. Mas, para
além disso, tinha igualmente subjacente não só a maior ou menor pressão da Inglaterra mas também
3! 32º 33 *
Td., ibid., pp. 28-61. , Para o texto do tratado anglo-brasileiro, ver Gazeta de Lisboa, 26 de Março de 1827 À Ward a Silvestre P. Ferreira, 13 de Novembro de 1822, ANTT, MNE, caixa 485. Silvestre P. Ferreira a Ward, 12 de Dezembro de 1822, in Biker, vol. XX, ob. cili,
pp. 242-245.
f
35 Palmela a Vila Real, 13 de Janeiro de 1824, in Biker, vol. XXI, ob. cit., p. 315. 154
f
D
o ascendente do toleracionismo sobre
um abolicionismo ainda incipiente. Esse ascendente só não é imedia36 Thornton a Canning e Palmela a Thornton, 18 de Junho e 14 de Setembro de 1824, respectivamente, PRO FO 84/31. 37 Francisco de Almeida a A'Court, 2 de Outubro de 1826, ANTT, MNE, livro 180.
38 Canning a A'Court, Setembro de 1826, PRO FO 84/54.
155
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
tamente perceptível devido à relativa escassez de manifestações espé cíficas. Se excluirmos publicações que já vinham de trás, como o € _'_
lidicional, o Brasil, e começou a estruturar-se de preferência em torno
reio Braziliense, por exemplo, verifica-se que só de forma esporádlc
A uma outra problemática: o interesse pela África. E, nesse terreno de
temática foi abordada nos jornais da primeira época liberal. Tudo S mado, duas ou três dúzias de análises e referências ao escravismo muito pouco para uma época que acolheu a publicação de dezenas d
ds obstáculos, cedo caindo em novos silêncios.
novos títulos, na sua maioria centrados nos monumentais debates
em
torno do liberalismo e da organização política dos Estados, na questã brasileira, na dos direitos da sucessão ao Trono e nas vicissitudes d luta entre absolutistas e liberais. Para essa nova imprensa, a liberdadi era, incontestavelmente, uma questão candente, saturada e sobrem : gada, mas que se polarizava fundamentalmente em termos pohtlcos que justifica a analogia tão comum nos séculos XVIII e XIX entre esc *.' vidão e sujeição dos povos a regimes autoritários. Em Portugal, o ' estava essencialmente em causa era a escravidão das nações, a escr:
dão política. No turbilhão da contestação social subsequente à revolt ção de 1820, discutia-se assiduamente em torno das condições de vi e dos direitos das classes mais desfavorecidas — entre as quais se cof
tização do abolicionismo desligou-se parcialmente do seu cenário
ição, o abolicionismo nascente encontrou surpreendentemente noVejamos seguidamente essas considerações tecidas a respeito do »blema da abolição do tráfico, começando pelas Cortes.
1, A questão abolicionista nas Cortes O problema da abolição foi evocado nas Cortes Constituintes de 1821-1822, fundamentalmente a propósito do artigo da Constituição que estipulava as condições necessárias para a aquisição da nacionaliide portuguesa. O projecto inicial sobre que incidiram os trabalhos
fos constituintes excluía dos direitos de nacionalidade e de cidadania D$ escravos existentes nas possessões portuguesas (com excepção dos Que viessem a obter carta de alforria) e, no geral, a discussão não deu
tavam os «escravos» rurais, formulação que, na terminologia da
Brande motivo a que se questionasse a existência da escravidão. Argu-
prensa da época, servia para designar o braceiro ou jornaleiro?? —, mi muito raramente se argumentava a propósito do tráfico e da escravidí dos africanos. M Porém, raridade não significa inexistência ou vazio, e é incorr afirmar, como fez Telmo Verdelho num estudo recente, que a pal
Mentou-se muito em torno dos direitos do nobre e do plebeu, do cidao activo ou passivo, mas não do escravo. Num primeiro momento
escravatura
(no sentido de escravidão colonial) não se encontra
periódicos de 1820-1823%, Se bem que o problema escravista te sido subvalorizado pelos jornalistas da nova era liberal, algumas o—— siderações sobre o tema acabaram por ser feitas, tanto nas colunas d jornais como nas Cortes, a nova tribuna que a revolução abrira, ainc1 que intermitentemente, à voz pública. E essas considerações permi constatar que a década de 1820 assistiu, de facto, à emergência de discurso abolicionista, ainda que, tudo o indica, muito minoritá
inconsistente. Permitem também ver que o toleracionismo persi se adaptou às novas condições criadas com a perda do Brasil. E, fim, mostram que os acontecimentos da época fizeram deslocar o do debate, colocando-o numa nova órbita: impulsionada pelo espívt
libertário do vintismo e, sobretudo, pela secessão brasileira, a probl 39 O Amigo do Povo, n.º 11, 1821. 40 Telmo dos Santos Verdelho, As Palavras e as Ideias na Revolução Liberal de INIC, Coimbra, 1981, p. 91.
156
hipenas Braancamp,
moralmente
incomodado
pela sanção que a lei
lundamental parecia dar à persistência da escravidão, aludiu ao assunto. O deputado chamou a atenção para a separação estabelecida entre
livres e escravos, uma distinção implícita e, a seu ver, gravosa, que se tontinha na lei fundamental:
Confesso que me custa a sancionar este princípio [...] numa assembleia onde vejo residirem as ideias mais liberais. Todos os homens livres, diz o artigo, [e] a palavra livre creio que deve ser riscada deste artigo. Vejo que somos obrigados a conservar a escravatura nas possessões ultramarinas, mas quisera que esta triste necessidade fosse indicada como excepção e não como regra geral, que há-de regular para todos os nossos vindouros. Quisera que este artigo indicasse que, por ora, enquanto se não pode abolir a escravatura, faremos esta diferença. Proponho pois estas
reflexõest!-
As «reflexões» de Braancamp não encontraram um eco imediato na assembleia e os oradores que lhe sucederam voltaram a deambular pelns diferenças a estabelecer entre cidadãos activos e passivos. Só Mar*! Diário das Cortes, sessão de 2 de Agosto de 1821, p. 1768.
157
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
giochi, um pouco mais adiante, procurou repescar o assunto, .pe'din d que se atendesse à proposta de Braancamp para que se suprimisse | palavra «livres» do artigo constitucional. O deputado lisboeta ia
sições de extrema cautela. Para preservar a união dos portugueses de
:
mo mais longe, pretendendo que os escravos nas possessões ultramari nas fossem considerados cidadãos e que, em respeito aos «direitosd homem», se criassem mecanismos para impedir a sua venda. Margio: chi prometia, para mais tarde, a apresentação de «projectos de lei pa a abolição da escravatura [sic]J», mas pretendia impor, desdç logo,
suspensão dos direitos de cidadão para todo aquele que continuasse | negociar em escravos; propunha até que a representação brasileira (ainda ausente) fosse impedida
de tomar assento no Soberano
Con
àmbos os hemisférios, uma união que começava a sofrer os primeiros sacões emancipacionistas, era preciso compatibilizar interesses, minorar divergências, e a corrente maioritária na Câmara procurava precisamente privilegiar a contemporização, num esforço desesperado para
evitar o rasgamento imperial. Importa referir que tanto Margiochi como Bettencourt ou Agostinho José Freire faziam parte daquilo que por vezes se designa por «integracionistas», um grupo de deputados politi-
camente próximos das posições de Manuel Fernandes Tomás e que tinha, quanto aos insurgentes brasileiros, uma posição de relativa rigidez política. Desejavam, naturalmente, a união do império português,
gresso caso não aderisse aos princípios antiescravistas que acabava d enunciar*”?. Uma posição tão radical não colheu o beneplácito da Câ mara, nem mesmo o do próprio Braancamp, cujo propósito se resumi
face ao evoluir da insurreição brasileira, e partindo do princípio de que Portugal não possuía meios militares para se envolver num conflito
tão-somente à elaboração de um plano para a extinção gradual do tráf
arrastado em terras distantes — além do mais com poucas hipóteses de
co e o estabelecimento de medidas parcelares como a liberdade, d ventre, isto é, a liberdade de todos os escravos que viessem a nasce futuramente no Brasil. Mas Braancamp considerava, de toda a forma
que qualquer decisão a tomar nessa área exigiria a presença dos dç tados brasileiros*?. Essa era, aliás, uma posição quase unânime. Ai que também Bettencourt e Agostinho José Freire se manifestassem voráveis à inclusão no texto constitucional de alguma indicação apontasse caminhos para a futura libertação do escravo, a esmagadle maioria dos representantes da nação preferiu nada decidir até à che gada dos deputados do Brasil, considerando que qualquer medidé mesmo a liberdade do ventre, poderia ser perturbadora e até noc para os próprios escravos assim libertados que, previsivelmente, seri. 1 abandonados à sua sorte: «não falemos em semelhante questão por ora porque faria conceber uma ideia terrível se lá [no Brasil] soubesse_ semelhante coisa [...] quem havia de criar aqueles meninos? Era preci :
so pôr uma casa de expostos em todas as aldeias»*?. Margiochi não chegou a apresentar os prometidos projectos de'l_ para a abolição da «escravatura».
As condições
não eram propíc
Bem pelo contrário, com a chegada dos deputados brasileiros, q ocorreu algumas semanas depois, e devido ao novo rumo político to
mado no Brasil, as escassas intenções abolicionistas manifestadas em sede de Cortes no Verão de 1821 evaporaram-se ou refluíram para po:
mas com o Brasil numa posição de subordinação à ex-metrópole. Ora,
sucesso militar —, os «integracionistas» acabariam por defender que seria preferível aceitar a secessão a ter de prolongar a união com um parceiro insubmisso*5. Como diria Fernandes Tomás um pouco mais tarde, num discurso que deu brado e ficaria célebre, «se o Brasil EA
não quer unir-se a Portugal como tem estado sempre, acabemos com isto: passe o Sr. Brasil muito [bem] que nós cá cuidaremos da nossa vida»i6, Todavia, e fosse ou não este tipo de discurso um simples bluff político, os «integracionistas» eram minoritários nas Cortes, onde os contemporizadores prevaleciam*”. E, para estes, a questão escravista era um assunto delicado, a evitar na medida do possível. Existiam até, à época, razões puramente circunstanciais que desa-
conselhavam que se insistisse muito na alteração da estrutura social brasileira: um Brasil escravista estaria sempre de algsum modo depen-
dente de Portugal. A existência da escravidão surgia como um justificativo para os que, como Trigoso ou Póvoas, agitavam nas Cortes o fantasma de S. Domingos, o prognóstico sangrento de que os escravos trucidariam metrópole), pretexto de mentos da
a população branca num Brasil fragilizado (se desligado da e defendiam o envio de tropas para o Rio de Janeiro a garantir a segurança dos brancos contra eventuais levantaescravaria, muito mais numerosa*8. Em parte por isso, a
%3 Alexandre, Os Sentidos do Império ..., cit., pp. 594-595 e 618 e segs. 46 Diário das Cortes, sessão de 22 de Março de 1822, pp. 582-583. *7 Alexandre, Os Sentidos do Império ..., cit., p. 625.
4P Ibid., p. 1770.
B Ibid.
*8 Diário das Cortes, sessão de 23 de Novembro de 1821, pp. 1999-2001; ver também
4 Ibid., p. 1771 (discurso do abade de Medrões).
158
sessão de 26 de Junho de 1822, p. 560 (discurso do deputado Girão).
159
Da perda do Brasil às guerras liberais
Os sons do silêncio
bfª"f; questão do escravismo tendia a ficar no ponto em que à deputaçã”o
africano afloravam por vezes como manifestação de um desejo vago, de uma porta a deixar aberta para ulterior exploração, se as circunstân-
apresentadmw
cias assim o permitissem ou exigissem. Em bom rigor, a ideia não era
essa pelo deputado da Baía, Borges de Barros, ilustra perfeltamÉnte co—aí_' de perspectiva. A proposta, que se destinava a promover a fix?çao
inteiramente nova. Já em 1814, antecipando o momento em que Portugal se visse privado da sua colónia americana, Saldanha da Gama elaborara uma Memória onde fazia a resenha das potencialidades económicas da África portuguesaó?. O Observador Luzitano em Paris publicara, no ano seguinte, uma notícia semelhante sobre Angola*?. Também o In-
ões ao sileira a desejava: medidas irrelevantes, pequeníssimas concess
anémico
abolicionismo
vintista. O projecto de decretq
er lónias estrangeiras no despovoado território brasileiro, fazia depend ) sucesso l eventua do escravo ao qualquer medida vagamente favorável dessa futura colonização: Se a imigração de estrangeiros para o Brasil for grande nestes primei. ªg ros tempos, terminará o tráfico de escravos entre aquele reino e .!.Án.gof 'mça Cons.tlt a ar promulg se que em dia do s dentro de seis anos, contado f limitar no Brasil, ficando aos governos das províncias a faculdade de ) f fornecer prometa que tal seja os emigrad de a dito prazo quando a afluênci os necessários braços à lavoura.
Quanto à escravidão, o projecto admiítia apenas possibilidades ponr tuais de emancipação, como forma de recompensa «por alguma acçã: virtuosa» ou por «bons serviços prestados a seus senhores>_>. També
se admitia que fossem livres «o filho, e a escrava, que o tiver de casamento
e, para
estimular
a reprodução
biológica,
Veremos
p'rorflowa—se_
sibilidade
entre escravos, garantindo-se carta de alforria à «e':scr ]
era a confirmação do sistema escravista, não o seu fim. Como dizia co — u ; melancolia o deputado Girão, se se criassem dois Congreâsos .se dx; metropolitano, outro brasileiro, uma possibilidade qug, ef)tao,
'
Mas a questão da abolição das instituições escravistas não se abor-
d ai Rita no resumo que fez dos trabalhos coloniais da assembleia”! i da assim, as alusões às possibilidades de desenvolvimento económ
s
es e na Se 51 José Gonçalo Santa Rita, «As questões coloniais nas Cortes Constltm.nt de Lisboa, XIV, 3 Letras de Faculdade da Revista in )», (1821-1823 Legislatura gunda
1949, p. 9.
160
por um
conjunto
de razões
de alterações
no sistema escravista.
Era, nomeadamente,
o
território angolano e se considerava, a par de outras medidas, a utilida-
de do cultivo das «plantas generosas» como forma de fazer prosperar os estabelecimentos portugueses da costa. O parecer da comissão, não indo ao ponto de pedir a abolição do tráfico, deixava no entanto, em tom interrogativo, algumas sugestões nessa área: Não seria mais próprio de uma Nação generosa e livre, tentar antes ir civilizando pouco a pouco estes gentios, ensinando-lhes a cultivar suas terras e lavrar suas minas, e o grande cabedal que se emprega na compra dos escravos empregar-se antes na compra do ouro, prata, cobre, marfim e outras produções do vasto e rico interior da África?
dou apenas na óptica do interesse brasileiro. Se bem que a ate?çqo q as Cortes dispensaram ao resto do ultramar, e, em particular, à Afric não tivesse sido grande — muito pelo contrário, como já notou Sat? '
50 Ihid., sessão de 26 de Junho de 1822, p. 565.
no capítulo vI, que,
caso do parecer acerca das províncias de Angola e S. Tomé e Príncipe, apresentado às Cortes pela respectiva comissão do ultramar em 19 de Abril de 1822. Aí se fazia um levantamento das riquezas potenciais do
casada que apresentar seis filhos vivos [...] ficando o seqhor obri gad. tip sustentá-la durante a criação do último filho»*?. Um projecto dçs.te
49 Ibid., sessão de 18 de Março de 1822, p. 541.
adiante,
particulares, esse discurso era pouco mobilizador no Portugal da primeira metade do século XIX. Por agora acentue-se apenas que uma parte desses alvitres e pareceres políticos aceitava ou advogava a pos-
se
cutia —, perder-se-ia a esperança de poder suavizar a miserável situaç é do escravo colonial através da Constituição portugues.aSO.
ções estavam a adoptar5*. Mas foi com a aurora constitucional, e sobretudo a partir do desencadear da crise brasileira, que reemergiu com
mais consistência um discurso pró-colonização africana.
se senhor» e «os escravos que nas doenças forem abandonados pelgs senhores»;
vestigador Portuguez em Inglaterra havia transcrito cartas e notícias
sobre o desenvolvimento das colónias africanas francesas e inglesas, acentuando que se Portugal perdesse tempo, e não entendesse «a nova ordem das coisas», poderia vir a ficar sem lugar e impossibilitado de «participar das vantagens do sistema [colonizador]» que as demais na-
52 António Saldanha da Gama, Memória sobre as Colónias de Portugal situadas na
:
costa Ocidental de África. Mandada ao Governo pelo antigo Governador e Capitão-Geral do Reino de Angola ... em 1814, precedida de um discurso preliminar, augmentada de alguns additamentos e notas, ..., Paris, 1839.
33 Observador Luzitano em Paris, Março de 1815, pp. 407-418. 54 V.., por exemplo, carta impressa in O Investigador Portuguez em Inglaterra, Setembro de 1812, pp. 402-407.
161
Os sons do silêncio
Da perda do Brasil às guerras liberais
Subliminarmente sugeria-se que se terminasse, ou se pusessem e traves,; ao «cruel e injusto tráfico da escravatura», para, em altern'atlva',% aproveitar a mão-de-obra excedentária no desenv,oh.nmento afrlcan | isto é, para que se dirigisse «efxcazmer,te o comércio da escravatu para os trabalhos da agricultura e das minas de. ferro, ouro e prata que. houver na província»”*,. É provável que o principal mentor desse para N -abolicionismo da comissão tenha sido Alexandre de Mo'ralAs S.arment ; um homem que várias vezes se pronunciou contra a e)-ugteqcm d.o co»'í mércio negreiro numa perspectiva próxima'da dos abolicionistas 1ngle
ses, não se coibindo sequer de evocar pgbllcamer)te os _horrores cau dos pelo tráfico%. A sua aversão à prática negreira viria mesmo a $ materializada numa proposta legislativa, se bem que só quatro anos mais
tarde. Como é sabido, as Cortes foram dissolvidas (3 de Junh
acordo entre as partes contratantes. O Aberdeen Act pretendia, então, »
preencher o vácuo que se seguiria ao terminus dessa prorrogação, mas
tífero devido à geografia das zonas africanas envolvidas, e o governo inglês, mesmo
quando fortemente instado, recusou por norma essa li-
nha de acção?%6. Mas, para além disso, existiam razões políticas que restringiam muito fortemente a intervenção inglesa contra o tráfico cubano.
não foi utilizado imediatamente em toda a sua extensão?º. Palmerston,
pelo contrário, usou-o de uma forma mais agressiva, encorajando a actuação da Royal Navy nas próprias águas territoriais do Brasil.
limitado a um só centro importador, era, por razões técnicas e políticas, muito difícil de cercear. Como vimos atrás, o bloqueio naval era infru-
A par-
tir de meados de 1849, os negreiros começaram a ser apresados nos » rios e nos portos, por vezes sob os canhões das fortalezas brasileiras, e,
ainda que essa acção fosse uma clara violação da soberania de uma | nação independente, a comunidade diplomática do Rio de Janeiro não saiu em defesa dos ofendidos, o que constituía um sinal inequívoco do isolamento brasileiro na questão?!. Em 4 de Setembro de 1850, o governo brasileiro, através do seu ministro da Justiça, Eusébio de Quei-
Os grandes obstáculos já não se colocavam a nível interno, uma vez
que o anticoercionismo perdera força após 1850. O fim do tráfico brasileiro constituía um importante trunfo abolicionista e garantia um saldo positivo em favor da política musculada de Palmerston. É certo que os anticoercionistas continuavam activos e que, em
1857, Hutt ainda se
batia pela retirada do cruzeiro da costa de África, mas a sua moção foi derrotada no Parlamento por 223 votos contra 2437. Nessa época, O
ro deixou de existir?.
aval da Inglaterra à continuação da luta antitráfico era tão nítido que os próprios pacifistas da British and Foreign Anti-Slavery Society advogavam, ou pelo menos não rejeitavam, o recurso à força?8. E, precisamente porque esse aval existia, a maioria da população inglesa não compreendia por que razão o governo de Londres não forçava a Espanha a aplicar seriamente os tratados e a sua própria legislação antitráfico, da mesma forma que havia forçado Portugal e o Brasil?º.
30 Ver Verger, ob. cit., pp. 378 e segs., e Bethell, The Abolition of the Brazilian ..., cit. Ppp. 242 e segs. T 3! Lloyd, ob. cit., pp. 143-145; Verger, ob. cit., pp. 381 e segs.; Bethell, The Abolitioh ih
34 Contabilizando também a emigração forçada de mão-de-obra negra contratada, a exportação a partir do Zaire e portos a norte da sua foz atingiu valores próximos do máximo absoluto no quinquénio de 1858-1862 (Eltis, «Slave departures ...», cit., p. 168).
rós, fez publicar «espontaneamente» uma lei que punha fim ao tráfico
brasileiro??. A importação de escravos para o Brasil caiu a pique a partir dessa altura: em 1851 ter-se-ão importado apenas 5000 escravos e ) no ano seguinte pouco mais de 1000; daí em diante, e excepção feita a uma importação episódica de 300 escravos em 1856, o tráfico brasilei-
of the Brazilian ..., cit., pp. 309 e segs.
70
32 Verger, ob. cit., pp. 390-391; Bethell, The Abolition of the Brazilian ..., cit., pp. 32*& e segs.; para o articulado da lei, ver DG, 7 de Janeiro de 1851; para a defesa da tese da | «espontaneidade» brasileira, ver os longos discursos de Paulino Soares de Sousa, o minis-/ tro dos Estrangeiros, transcritos in ibid., 22 e 23 de Julho de 1852. i
33 Eltis, «The nineteenth-century ...», cit., p. 115; I"Ao
35 Id., «The nineteenth-century ...», cit., pp. 122-123.
36 37 38 3º
Lloyd, ob. cit., p. 171. Murray, ob. cit., p. 266. Id., ibid., pp. 301-302. Id., ibid., pp. 261 e segs. 309
Os sons do silêncio
Todavia, o desenvolvimento de uma política drástica quanto a Cuba esbarrava numa dificuldade elementar. Nos últimos quinze anos da sua existência, e prosseguindo a tendência já verificada na década de 1840, o tráfico corria preferencialmente sob a protecção da bandeira norte-americana e, uma veêz que os Estados Unidos não haviam concedido
direito de visita, escapava quase por inteiro ao controle do cruzeiro inglês. Os Norte-Americanos tinham uma pequena esquadra na costaá de África, mas a sua acção antitráfico era pouco eficaz. Por via legal, financeira ou propriamente naval — enviando maus navios para a costa —,
o governo de Washington cortava as pernas ao seu próprio cruzeiro*o, Para além disso, a acção naval nas águas de África não tinha apoio na
retaguarda. Os indivíduos incriminados passavam pela prisão apenas até pagarem fianças reduzidas ou até serem rapidamente libertados devido a falhas técnicas, e nem uma só condenação foi proferida pelos tribunais norte-americanos contra qualquer um dos 13 negreiros captu— rados pelo cruzeiro entre 1843 e 1859º!, í O receio de choques com os Estados Unidos induzia Londres à pruz — dência na abordagem da questão do tráfico espanhol. Cuba era cobiçada pelos Norte-Americanos e existia entre os plantadores da ilha uma forte corrente favorável à anexação. Se o governo de Madrid fosse fo çado a aplicar de forma estrita a legislação antitráfico que promulgar sob pressão diplomática inglesa, havia o sério risco de que os plantad res cubanos se lançassem nos braços dos Estados Unidos. Assim, por razões puramente políticas, a Inglaterra era forçada a contemporiz com as hesitações abolicionistas espanholas, e foi só com o aproxim da guerra civil norte-americana que a situação se alterou*?., A partir d 1857, os Ingleses capturaram alguns navios negreiros cobertos pe pavilhão dos Estados Unidos, e, quando o embaixador americano pr testou, o Foreign Office retorquiu, como já fizera aos Portugueses, que
A honra nacional; Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
forçou o governo a enfrentar o problema**. Em 1859, o cruzeiro, comandado por Inman, começou de facto a actuar, com os navios (a va-
por) constantemente em acção. Inman resolveu o problema do reabastecimento dos cruzadores — chamados a actuar no Zaire, a larga distância da sua base naval de Cabo Verde — através da colocação de embarcações de reabastecimento nas águas congolesas e, de Dezembro de 1859 a Junho de 1861, a pequena esquadra norte-americana capturou 14 negreiros, libertando cerca de 4000 escravos. Ou seja, em
18
meses, Inman fizera mais do que os seus antecessores em 18 anos*, A acção contra o tráfico hispano-americano prosseguiria depois, mas a cargo de ingleses e espanhóis. Uma vez que as exigências da guerra civil o obrigaram a retirar os seus vasos de guerra da costa de África, Lincoln viu-se forçado a ceder aos velhos pedidos britânicos, e, em 1862, os Estados Unidos concederam, excepcional e transitoriamente, o direito de visita, aceitando a criação de comissões mistas an-
glo-americanas para julgar sumariamente os navios negreiros, que seriam desmantelados*ó. Nesse mesmo ano, a justiça norte-americana enforcou o primeiro (e único) negreiro*?, Foi o início da asfixia do trá-
fico cubano, privado dos navios e da bandeira protectora dos Estados Unidos. Aliás, pela mesma época, já as autoridades espanholas assumiam elas mesmas a responsabilidade de atacar o infame comércio. Em 1863, 8 traficantes portugueses foram expulsos pelo governador de Havana*8, Três anos depois, o governo de Madrid promulgaria um decreto (depois sancionado pelas Cortes) instituindo medidas estritas e
duras, e a importação de escravos em Cuba cessou logo após. Com o encerramento da «porta» cubana, terminou o tráfico transatlântico dos negros. Subsistiam apenas os tráficos ou pseudotráficos a mais curta distância, na costa oriental de África e no arquipélago de S. Tomé e Príncipe (este último protegido pelo governo português, como veremos).
se os Norte-Americanos não cumpriam as suas obrigações, o governo.
britânico seria forçado a fazê-lo por eles*?. A posição desafiante d Inglaterra surgia numa altura em que o próprio governo dos Estado Unidos dava mostras de estar interessado em actuar firmemente. H vários anos que, para além das apologias da escravidão, surgiam n país vozes que defendiam a reabertura do odioso comércio, e o recei de que ele pudesse restaurar-se nos próprios portos norte-americanos.
2. Portugal e os negreiros Se, em termos globais, o bil! de Palmerston não teve as consequências que os seus promotores imaginavam, em Portugal a medida reve44 Davis, Slavery and Human ..., cit., pp. 233-243.
40 Booth, 0b. cit., p. 88.
* Td,, ibid., p. 116; Murray, ob. cit., p. 247. 42 Murray, ibid., pp. 219 e segs. * Cf. Booth, 0b. cit., p. 109.
45 46 47 48
Booth, ob. cit., pp. Murray, ob. cit., p. Booth, ob. cit., pp. Murray, ob. cit., p.
109-110. 305. 107 e 110. 312. 311
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
rizavam tudo, desde os comportamentos culposos ou simplesmente suspeitos das autoridades portuguesas, até aos detalhes mais recônditos do dia a dia metropolitano”!. No seu esforço de cooperação com a Inglaterra, os ministérios portugueses foram várias vezes para além do estipulado em 1842. Em
lar-se-ia decisiva, estando na origem de modificações importantes na
atitude portuguesa perante o tráfico de escravos. Como bem notou James Bandinel, o secretário do Slave Trade Department, os governantes
portugueses, «shamed into something like a co-operation for this object», dispunham-se agora a actuar contra os negreiros e a demonstrar ao mundo que não protegiam a sua acção criminosa??. Efectivamente,
Maio de 1845, o governador de Moçambique, Abreu de Lima, autorizou os cruzadores ingleses a entrarem em portos e bafas não vigiados
as informações que associavam estreitamente os Portugueses à escravatura eram demasiado numerosas e evidentes para serem escamoteadas, com a agravante de que emanavam não apenas das fontes britâni-
por autoridades portuguesas. Lisboa recusou-se inicialmente a sancionar a decisão do seu governador, mas, face às insistências de Londres,
cas mas também de outros (e mais imparciais) quadrantes. George Tams, um médico alemão que visitou a zona de Angola em 1841, deixou
um
veredicto
elucidativo
sobre
o assunto:
a colónia
albergava
inúmeros traficantes — alguns dos quais o autor nomeava — que actua- | vam perante a passividade das autoridades civis e militares%º. Descri- —
acabaria por assinar, a 12 de Agosto de 1847, uma convenção anglo-portuguesa que concedia aos cruzadores britânicos a faculdade de exercerem a sua acção antitráfico nos pontos da África oriental portuguesa onde não existissem autoridades oficiais — ou seja, em qualquer parte com excepção de Inhambane,
Sofala, Quelimane,
baía de Lou-
que saturavam as notas diplomáticas e as páginas dos jornais estrangeiros, Portugal confrontava-se com a necessidade política de impor rapidamente a supressão em colónias que dependiam quase que em
renço Marques, Moçambique por três anos, acabaria por ser onde Portugal tinha o grosso luso-britânica assumiu formas
exclusivo do comércio negreiro, e numa metrópole que não só não condenava moralmente o traficante como, muitas vezes, o protegia.
(ou reivindicado por Portugal) com o intuito de combater o tráfico ne-
ções como as do alemão eram frequentes, e, face a elas e às acusações
1840 a Royal Navy fizera alguns desembarques em território português
Essa necessidade gerou uma acção antitráfico minimamente consis- / tente e esteve na origem de uma nova forma de pensar a questão.
2.1. No terreno: a costumada conivência e o empenhamento abolicionista
niente de Londres fosse seriamente considerada e, regra geral, atendida
a exportação*3.
Contudo,
o
5! Em 1847, o embaixador inglês em Lisboa chegou ao extremo de denunciar um pequeno anúncio publicado no Periódico dos Pobres, do Porto, no qual se prometiam «vergonhosas» alvíçaras a quem restituísse à proveniência um escravo pertencente à tripulação de um navio brasileiro fundeado no rio Douro (Luz a Seymour, 5 de Outubro de 1847, ANTT, MNE, livro 184); para outros exemplos das incontáveis participações britânicas sobre o pouco zelo abolicionista das autoridades coloniais, ver: relatório do Dr. Rosas sobre o estado do tráfico de escravos na costa de Angola, anexo ao ofício de Howard de Walden a Palmerston, 12 de Março de 1841, PRO FO 84/361; Howard de Walden a Gomes de Castro, 27 de Fevereiro (documentos anexos) e 16 de Agosto de 1843, ANTT, mour, 6 de Setembro de 1847, ANTT, MNE, livro 184. 52 Gomes de Castro a Howard de Walden, 30 de Dezembro de 1845, ANTT, MNE, livro 185; Bayard a Seymour, 27 de Maio e 16 de Julho de 1847, ANTT, MNE, livro 184; e Tojal a Bayard (e documentos anexos, entre os quais se encontra a autorização inicial do governador Abreu de Lima), 17 de Julho de 1847, ANTT, MNE, caixa 387.
envolvimento português no odioso comércio, esquadrinhavam e valo49 Bandinel, ob. cit., p. 299. V
Visita às possessões portuguezas da costa occidental d'Africa, 2..KÀ “
217
cheios de escravos destinados
MNE, caixa 496; Portugal e Castro a Southern, 16 de Novembro de 1846, e Luz a Sey-
no mais curto espaço de tempo possível. E os Ingleses, que continua-
vols., Porto, 1850.
greiro. Se bem que esse comportamento agressivo e abusivo se tivesse
prolongado de . forma esporádica, por norma, de 1842 em diante, as autoridades inglesas passaram a abster-se dessas práticas intrusivas e a solicitar autorização para fazer desembarcar pequenos destacamentos seus em áreas específicas, nomeadamente no Ambriz, onde existiam barracões
A grande preocupação de todos os governos portugueses durante a década de 1840 foi a de enfileirar de forma inequívoca na política abo- licionista britânica, procurando em paralelo sedimentar a soberania portuguesa em África. Havia, aliás, a muito clara percepção de que a defesa da soberania dependia do respeito escrupuloso pelos compromissos abolicionistas já assumidos. Daí que toda a participação prove-
%0 George Tams,
e Ibo. A concessão, inicialmente válida prorrogada por mais três”?. Em Angola, das suas forças coloniais, a cooperação mais contidas. No início da década de
“
353 Relatórios do capitão Foote, datados de. 23 de Agosto e 25 de Outubro e de 13 de Novembro
de 1843, e extracto de uma carta do capitão Virgil, datada de 6 de Julho de
313
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
e a guerra civil de 1846-1847 fizeram com que decrescesse significativamente o empenhamento naval nas colónias. Em meados de 1842, e com vista a tornar a supressão mais eficaz, o governo cabralista optara
governo português, compreensivelmente cioso da sua soberania, esquivou-se a conceder tais autorizações, assumindo ele mesmo a responsabilidade da destruição dos ditos barracões, assim que a existência
por dar autonomia aos comandantes dos navios do cruzeiro, desligando-os da obediência cega às directivas dos governadores coloniais e permitindo-lhes que desempenhassem a sua «principal missão» como
dos mesmos lhe fosse oficialmente participada pelas autoridades britânicasº. A questão da destruição dos barracões assumiu importância acrescida a partir de 1845, em consequência do já referido tratado anglo-francês, visto que, para pôr fim ao tráfico a partir da fonte, as duas potências contratantes aumentavam a sua força naval na costa de África
melhor entendessem, «fazendo-se de vela ou estacionando-se quando o julgarem oportuno, sem para isso carecerem de ordem dos respectivos
—
e autorizavam-se reciprocamente a estabelecer acordos com os potentados africanos ou, em certos casos, a recorrer à força e à ocupação territorial. O tratado preocupou naturalmente o governo de Lisboa e,
de acções bem sucedidas nas costas ocidental e oriental de África: entre 1839 e 1842, a Armada tinha capturado ou destruído 17 navios;
em consequência, o ministro da Marinha, Joaquim José Falcão, refor- — çou igualmente o cruzeiro português e expediu ordens aos governado- res coloniais e comandantes dos navios para que redobrassem os seus esforços no combate ao tráfico, cooperando estreitamente com os Ingleses, fornecendo-lhes informações e coadjuvando-os na sua acção. Eram também encorajados a estabelecer, sempre que possível, tratados » abolicionistas com os régulos africanos e a combater o bárbaro comércio em terra, destruindo os barracões suspeitos*5. Mas, ao mesmo tempo que procurava precaver futuras complicações, o ministro português
fazia já valer o crédito entretanto acumulado na colaboração dos últimos anos. Uma vez que Londres era a primeira a reconhecer «a boa fé e escrupulosa pontualidade» com que Portugal observava os seus com- promissos abolicionistas, Falcão solicitava ao governo inglês que não | considerasse aplicáveis ao território português os artigos que acabara de negociar com a França (solicitação que foi atendida)%. De facto, desde 1840 que Portugal colocara a maioria dos seus va: sos de guerra nas estações navais africanas tendo como missão prioritária a repressão do tráfico da escravatura. Essa opção política manter-se-ja inabalável nos anos seguintes e nem mesmo a revolução popular
zembro de 1844, ANTT, MNE, caixa 496.
como
Pedro
Alexandrino
da Cunha,
Francisco
Gonçalves
Cardoso,
João Máximo Rodovalho, João Baptista Garção e vários outros, mens que ao mesmo tempo que defendiam a soberania nacional biam de facto o comércio negreiro, ganhando juz ao respeito dos pares britânicos e aos frequentes louvores dos governos de Lisboa Londres”. Tem sido dito que, na década de 1840, o cruzeiro português foi
hocoiseus e de usa-
do de uma forma selectiva, de acordo com os interesses opostos dos
dois maiores grupos de traficantes de Luanda: o que conseguisse os favores do governador procuraria, através do cruzeiro, eliminar a competição do grupo rivalóº. Mas essa apreciação parece resultar, sobretu-
do, da campanha lançada pelos próprios negreiros contra a acção naval e distorce apreciavelmente a verdade“!. No geral, a acção antitráfico da
de Julho de 1844, PRO FO 84/521).
ordens para os destruir, ver Gomes de Castro a Seymour, 11 de Julho de 1848, ANTT, | %
314
fim da exportação para o Brasil, a Armada ainda apresaria mais 11 lanchas e 22 navios”º. Nessa acção antitráfico ilustraram-se comandantes
vos a bordo, foi vista pelas autoridades inglesas como a prova decisiva de que Portugal estava efectivamente a cooperar no combate ao tráfico (Howard de Walden a Aberdeen, 28
mour, 6 de Maio de 1847, ANTT, MNE, livro 184; Tojal ao ministro da Marinha, 22 de f Maio de 1847, AGM, caixa 311. Para mais participações sobre barracões e respectivas a
56 Falcão a Gomes de Castro, 8 de Julho de 1845, ANTT, MNE, caixa 386.
Tomé e Príncipe); posteriormente, com o tráfico a esmorecer devido ao
59 A captura, na foz do Dande, do brigue brasileiro Caçador, com perto de 850 escra-
º Gomes de Castro a Howard de Walden, 15 de Abril e 17 de Maio de 1844, AN MNE, livro 185; Portugal e Castro a Southern, 10 de Dezembro de 1846, e Bayard a S
35 Portaria de 8 de Julho de 1845, AGM, caixa 311.
mas, de 1843 a 1850, a sua eficácia praticamente duplicou, apresando ou destruindo 15 lanchas e 46 navios (35 dos quais no eixo Angola/S.
57 António M. Campelo ao major-general da Armada, 18 de Junho de 1842, AGM, caixa 311 (itálico meu). 58 Para a lista dos apresamentos e afundamentos de navios negreiros, ver anexos C, D e E.
1844 e anexa à nota de Howard de Walden a Gomes de Castro, 8 de Março e 12 de De-
MNE, livro 184.
governadores»””. Mais libertos da tutela muitas vezes limitativa do palácio governamental, os cruzadores portugueses efectuaram dezenas
60 Eltis, Economic Growth ..., cit., p. 95. 6! Sobre a existência de dois partidos de traficantes em Luanda, o grupo de Miranda e o grupo Catela (ou melhor, a família de Eusébio Catela, o representante português na co-
missão mista de Luanda), e sobre a forma como o cruzeiro português favoreceria um dos
315
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
marinha portuguesa foi suficientemente meritória e fiável para permitir
Como,
comodoro britânico pelo qual a costa entre Ambriz e Cabo Ledo ficava a cargo da Armada portuguesa, libertando assim os navios ingleses para outras áreas de intervenção, a norte e sul dessa faixaó?. O reconhecimento do mérito à acção antitráfico portuguesa não significa que os navios de guerra tenham pura e simplesmente cortado a direito na caça
aos negreiros. Na verdade, existiam vários dilemas que limitavam ou podiam limitar essa acção e que fizeram com que a marinha portuguesa viesse a ser vítima da sua eficácia. Um dos aspectos do problema era de natureza diplomática e colo- | cava a Armada na mesma situação que a Royal Navy conhecia há dé- -
cadas. Grande parte dos navios apresados e julgados no tribunal de presas de Luanda — criado em 1844 para julgar os navios que não cafam na alçada da comissão mista — eram brasileiros, o que originou uma série de queixas do governo do Rio. Correspondendo a essas queixas, no final de 1844, Lisboa mandou circunscrever a acção an-
vio, insistindo na perfeita legitimidade deste último acto: o navio de guerra das nações reconhecidas tem direito a registar vaso mercante no alto mar, isto é, verificar a sua identidade, a lede seus papéis, o direito com que iça a sua bandeira, e se, por é um pirata, que todas as nações civilizadas têm direito de perse-
dade, e a fim de evitar mais desinteligências com o Brasil, ordenou-se aos comandantes portugueses que não apresassem navios estrangeiros senão quando fossem incontestavelmente negreiros e estivessem fundeados «ou pairando nas águas consideradas como pertencentes à Coroa de Portugal, isto é, compreendidas dentro do espaço de tiro de canhão da praia do território pertencente à mesma Coroa»6, Em finais de 1847, e porque mesmo assim não haviam estancado as reclamações do guição ao tráfico brasileiro, dando
disso conhecimento
ao governo
britânico: Tendo havido repetidas reclamações por parte do governo [...] do Brasil contra os cruzadores portugueses [...] vai o governo de S. M. expedir as mais terminantes ordens aos comandantes dos sobreditos cruzadores para que não revistem os navios brasileiros que encontrarem fora dos ditos limites [...]; e quando aconteça que os referidos cruzadores apresem alguma embarcação brasileira fora dos limites marcados pelos tratados, o que não pode deixar de dar lugar a desinteligências entre o governo de S. M. e o brasileiro, está o mesmo governo [...] resolvido a ordenar aos membros do tribunal [...] que não tomem conhecimento dessa presa67.
a Canning, 12 e
65 Catela ao ministro dos Estrangeiros, 31 de Maio de 1848, ANTT, MNE, caixa 223.
62º Lloyd, ob. cit., pp. 101 e 119; Eltis, Economic Growth ...., cit., p. 175 (nota 49). 63 Circular de 12 de Dezembro de 1844, AMNE, caixa 1153.
tencente à Coroa de Portugal, mas também porque alguns dos oficiais apresadores portugueses tinham o mau hábito de se esquecerem de anotar a que distância precisa da costa haviam efectuado as capturas (ou iniciado as perseguições que levariamà captura)%”. Em conformi-
Dois anos depois, para evitar a degradação das relações com o Brasil, o governo português viria mesmo a considerar essencialíssimo que os comandantes navais se abstivessem de interferir com a navegação estrangeira a pretexto de que os navios não cumpriam as rotas assinaladas nos seus passaportes, e chegou mesmo a um acordo tácito com o executivo brasileiro pelo qual este desistiria de quaisquer reclamações
guir e exterminaróº,
grupos em causa, ver Gabriel (representante britânico da comissão mista) 13 de Setembro de 1845 (privado), PRO FO 84/569.
não
Rio, o governo de Lisboa foi levado a confinar ainda mais a sua perse-
titráfico dos seus cruzeiros: «não é lícito aos comandantes das embarcações de guerra portuguesas registarem por motivos do tráfico da escravatura, os navios brasileiros senão nos nossos portos»63. Essas instruções suscitaram pasmo e alguma resistência por parte dos comandantes navais, inconformados com a proibição do registo da bandeira brasileira no alto mar. Homens como Alexandrino da Cunha ou Rodovalho chamavam a atenção do governo para a diferença existente . entre «dar busca» — algo que os cruzadores só poderiam fazer a coberto de tratados, já que implicava a abertura de escotilhas, o desarrumo d carga e a verificação do conteúdo dos volumes — e «registar» um n Todo qualquer galidade fim, não
apesar dessas normas mais limitativas, os apresamentos
cessassem, os Brasileiros passaram então a invocar a ilegalidade dos mesmos, por serem supostamente feitos fora das águas territoriais. Invocavam frequentemente essa razão não só porque a costa para norte do paralelo 8º sul não era ainda unanimemente reconhecida como per-
o estabelecimento de um acordo formal entre o governo de Angola e o
|
64 Rodovalho a Pedro Alexandrino da Cunha, 13 de Abril de 1845 (anexo ao ofício de À Falcão a Gomes de Castro, 12 de Julho de 1845, ANTT, MNE, caixa 386). í
66 Loureiro e Tojal ao major-general da Armada, 29 de Maio de 1846 e 30 de Julho de 1847, respectivamente, AGM, caixa 311.
67 Luz a Seymour, 19 de Outubro de 1847, ANTT, MNE, livro 184. GT
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
quanto aos casos pendentes, desde que os Portugueses se abstivessem de fazer novos apresamentos fora da linha de respeito6, Mas não eram apenas questões diplomáticas que condicionavam a acção naval. As finanças coloniais dependiam largamente da tributação sobre o comércio externo, que era em boa parte brasileiro. Ora, sendo perseguidos, os negreiros brasileiros tendiam a afastar-se da área ad-
na sua supressão”º. E porque a dualidade comportamental existia entre
as autoridades portuguesas, a acção dos governadores era por vezes criticada pelos Ingleses, enquanto
ministrativa portuguesa, acorrendo preferencialmente ao Ambriz e ou-
Com
o estabelecimento de um ponto fortificado no Ambriz, não se . [...] nem creio venha a melhorar os rendi-
mentos [...]; antes me parece que o seu estado há-de piorar [...].
navais era ge-
ca de suprimir o tráfico. Foi o que aconteceu em Moçambique com Fortunato do Vale e, sobretudo, em Angola quando, de 1845 a 1848, o
tros portos do Norte, com inevitável prejuízo das alfândegas portuguesas. No final da década, o governador de Angola, Silveira Pinto, explicava claramente a situação, desaconselhando mesmo a ocupação de pontos a norte do paralelo 8º sul: evita a exportação de negros
a dos comandantes
ralmente louvada?!. A dualidade portuguesa a respeito da supressão só se rompia quando à frente dos governos coloniais ficava um comandante da marinha perfeitamente identificado com a necessidade políti-
-
A impor- )
governo esteve entregue a Pedro Alexandrino da Cunha, ficando a Estação Naval a cargo de Gonçalves Cardoso. Como era de prever, Cunha e Cardoso foram atacadíssimos, tanto em Angola, onde a sua acção desencadeou ondas de contestação e todo o mostruário de argumentos catastrofistas de ruína e perda colonial, como em Lisboa, com
a im-
prensa setembrista a alinhar numa campanha contra a «opressão naval» ou «a devastadora cruzada»7”?. As invectivas contra esses e outros «ma-
que é sejam quanto vÍncia,
satisfeito o resto? Infelizmente, em escravos, e posto que eles não embarcados em pontos onde existem autoridades portuguesas [...] mais distantes forem esses pontos de embarque da capital da pro. menos géneros de permuta aí hão-de entrar, e, por conseguinte, o
rendimentos hão-de diminuiróº.
pois, até ao início da década de 185073.
A acção antitráfico do governo de Lisboa foi então gerida num terreno muito estreito, balizado pelas pressões antagónicas da Inglaterra e do Brasil, pela necessidade imperiosa de salvar a honra nacional e pe-
las condições periclitantes das finanças coloniais. Acrescente-se a tudo
Ou seja, quanto mais eficaz fosse a supressão, pior para as finança
coloniais. O dilema a que Silveira Pinto se referia não era novo e todos os seus antecessores o haviam enfrentado a partir do momento em que | o tráfico de escravos se tornou ilegal. Por norma, e para manter o equi-. líbrio económico
rinheiros estúpidos, brutos e ferozes», vistos como «o principal obstáculo ao aumento e prosperidade das possessões», prosseguiriam, de-
das colónias, os governadores
tendiam
a funcionar.
isso que os navios de cruzeiro estavam materialmente a cargo das províncias que serviam, sendo pagos pelas finanças locais!t?. Dentro des70 Falcão ao major-general da Armada, 20 de Novembro de 1845, AGM, caixa 311.
como uma espécie de contrapeso à acção dos comandantes navais, e, | por vezes, faziam-no de uma forma demasiado empenhada — como su- | cedeu, por exemplo, com Lourenço Possolo, que viria a ser processadi
No seu esforço para proteger os negreiros, Possolo chegou mesmo a tentar interferir nas decisões da comissão mista (cf. relatório dos comissários, 31 de Dezembro de 1844, ANTT, MNE, caixa 223).
por «conivente» no tráfico de escravos, ou, «pelo menos, desleixado
Estrangeiros, 8 de Março de 1849; Castelões ao ministro dos Estrangeiros, 4 e 9 de Agosto de 1849, ANTT, MNE, caixa 387; e Palmerston a Seymour e Jackson a Palmerston (priva-
71 Para críticas a Silveira Pinto, por exemplo, ver Gomes de Castro ao ministro dos do), 26 de Maio e 9 de Outubro de 1849, PRO FO 84/762 e 757, respectivamente.
À t
68 Gomes de Castro ao no original), e Castelões caixa 387; para a anuência de Janeiro de 1849, PRO
ministro dos Estrangeiros, 15 de Fevereiro de 1849 (sublinhado ao mesmo ministro, 14 de Dezembro de 1849, ANTT, M do governo inglês a essa política, ver Palmerston a Seymour, FO 84/762; de notar que, mesmo que o navio negreiro fo
avistado e perseguido ainda dentro da área portuguesa, bastar-lhe-ia sair dessa área (3 lhas) para ser intocável.
D
6º Silveira Pinto ao ministro da Marinha (confidencial), anexo a Vila Nova de Ourém ao Ministro dos Estrangeiros, 30 de Maio de 1849, ANTT, MNE, caixa 387. Para as críticas do governo inglês à posição de Silveira Pinto, ver Palmerston a Howard, 10 de Julho
de 1849, PRO FO 84/763. 2A1R
72 AÀ Revolução de Septembro, 27 de Fevereiro de 1846 e 4 de Setembro de 1847; ver também a edição de 16 de Setembro de 1847 do mesmo jornal e O Patriota, 7 de Setembro de 1847 e 28 de Abril de 1848. Alexandrino da Cunha foi atacado também pelos negreiros no Brasil e a sua integridade física esteve ameaçada quando por lá passou em finais da década de 1840 (ver A Revolução de Septembro, 16 de Agosto e 1 de Outubro de 1849). 73 A Revolução de Septembro, 23 de Maio e 9 de Agosto de 1849, 31 de Janeiro de 1850 e 29 de Outubro de 1851. 74 Q apuro financeiro era de tal ordem que levou a que o ministério da Marinha tivesse instado pela retirada de alguns navios da Estação Naval de Luanda (Tojal ao ministro dos Estrangeiros, 17 de Maio de 1847, e Gomes de Castro ao ministro dos Estrangeiros, 30 de Dezembro de 1848, ANTT, MNE, caixa 387).
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
ses condicionalismos, e na maior parte dos casos, a esquadra cumpriu a sua
missão,
afastando
o tráfico
de escravos
da área portuguesa.
ro enorme de apresamentos durante a década de 1840 (cerca de 700), as comissões mistas anglo-portuguesas acabaram por julgar poucos desses casos, em claro contraste com os tribunais do Almirantado in-
Em
meados da década de 1840, a situação parecia perfeitamente controla-
da, o que Jjustifica que a rainha tivesse lido um discurso do Trono no qual dizia ter sido «coroada do mais feliz resultado» a firmeza com que fizera executar o decreto de 1836 e o tratado abolicionista de 184275.
glês:
Não se tratava de uma simples tirada de propaganda política, mas de uma afirmação que resultava das informações provenientes das colónias. Pela mesma altura, Demony, o árbitro português na comissão mista de Luanda, comunicava que já não havia negreiros com bandeira portuguesa e que o tráfico acabara praticamente em Angola desde que o
governo mandara queimar barracões”6; e Duprat,
| 844, para apreciar os apresamentos feitos pelas autoridades portuguesas ao abrigo dos direitos territoriais, e que escapavam à alçada da comissão mista: entre 1840 e 1850, os cruzadores portugueses que actua-
bique que referiam «estar aquela costa de todo limpa de negreiros»”7.
vam principalmente na foz do Dande e nas zonas de Ambriz, das Benguelas (Nova e Velha) e do Quicombo (figura n.º 1) apresaram al-
Abril
de 1847, os ofícios do cônsul português no Rio referiam já que o tráfi- co estava «animadíssimo»,
informação
confirmada,
gumas lanchas e 41 navios suspeitos de se dedicarem ao tráfico de es-
aliás, pelas fontes
inglesas. Mas, ao mesmo tempo que alertava para o incremento do tráfico para o Brasil, o cônsul — nem mais nem menos do que o suposta-
mente regenerado João Baptista Moreira — realçava também
que o
odioso comércio era agora quase todo exterior a Portugal e que a bandeira dos Braganças estava «salva de semelhante labéu»7'8. De facto, da acção conjunta das marinhas inglesa e portuguesa resultara um muito menor envolvimento do pavilhão português no tráfico " de escravos. À partir da assinatura do tratado de 1842, a esmagadora maioria dos navios que traficavam na costa africana passara a navegar com bandeiras espanhola, norte-americana, brasileira ou, pura e sim- -
plesmente, sem bandeira alguma, pela simples razão de que muitos dos -
de 1830, caiu
Julgamentos efectuados pelo tribunal de presas criado em Luanda, em
o comissário português
sabemos, prematuras. Em
da Serra Leoa, muito activa na década
julgando 3 casos apenas em 1840-1842; as da Boa Vista e nunca julgaram caso algum e foram dissolvidas em 1851; a Boa Esperança julgou 4 casos entre 1843 e 1850; e mesmo de Luanda, que, no biénio de 1844-1845, foi chamada a
pronunciar-se sobre 15 casos (dos quais apenas 6 com bandeira portuguesa), poucos mais julgou daí em diante”º. Outro tanto ressalta dos
no Cabo, transmitia dessa cidade informações do governador de MoçamEstas notícias triunfais eram, como
a comissão
em letargia, da Jamaica do Cabo da a comissão
-
cravos; mas, destes, só 5 tinham bandeira portuguesa. A partir da constatação de que o tráfico transatlântico atingiu pro-
porções extremamente elevadas no quinquénio de 1846 a 1850, afirma-se muitas vezes que a supressão levada a cabo em Angola e Moçam-
bique pouco terá adiantado. Mas essa é a perspectiva de quem olha a questão a partir da América, dos pontos receptores, onde, de facto, continuaram a chegar números muito elevados de escravos. Contudo,
nos pontos emissores, na costa de África,
e numa perspectiva portu-
guesa, muita coisa tinha efectivamente mudado. De um ponto de vista formal, a parte portuguesa do tráfico diminuíra, como já vimos. Mas a própria quantidade de escravos exportados a partir da África portugue-
nais do Almirantado inglês ao abrigo do bill Palmerston — ainda válido
sa, em navios de qualquer nacionalidade, diminuíra também, o que constituía um balanço positivo para o esforço de supressão. Não para o
para os navios sem bandeira —, que não previa penas para as tripula
esforço supressor dos Ingleses, que visavam o fim de todo o tráfico de
ções envolvidas. Por essa razão, e se bem que tivesse havido um núme- -
escravos, e para os quais a década de 1840 foi de desaire e desalento.
negreiros preferiam, em caso de apresamento, ser julgados pelos tribu- -
Mas a perspectiva portuguesa era substancialmente diferente da ingle75 DCD, sessão de 2 de Janeiro de 1846, p. 1. “ 76 Demony ao ministro dos Estrangeiros, 30 de Dezembro de 1845, ANTT, MNE, caixa 223. :
77 Duprat ao ministro dos Estrangeiros, 3 de Fevereiro de 1847, e Duprat a Saldanha, 2 P de Julho de 1847, AMNE, caixa 1150. 78 Bayard a Seymour, 11 de Agosto de 1847 (contendo em anexo ofício de Moreira data do de 10 de Abril de 1847), PRO FO 84/676; ver igualmente Saldanha a Seymour, 22 d Março de 1848, ANTT, MNE, livro 184, e participação do comandante Murray anexa ofício de Gomes de Castro ao ministro dos Estrangeiros, 8 de Março de 1849 ANTT, MNE h caixa 387. Y
390
sa. O objectivo político dos governos de Lisboa era, para lá da salvaguarda da honra nacional, o de restringir e suprimir o tráfico nas pos-
sessões portuguesas.
O próprio Sá da Bandeira
o enunciara, como
chefe do governo, logo em 1839: «o não podermos acabar inteiramente com o tráfico da escravatura não obsta a que façamos todas as diligên79 Bethell, «The mixed commissions ...», Cit., p. 91; id., The Abolition of the Brazilian ..., cit., pp. 188-189.
321
Os sons do silêncio
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
cias para o afugentar, quanto seja possível dos nossos domínios»80, Mais tarde, António José de Ávila colocaria a questão de uma forma
ainda mais nítida: «nós não nos comprometemos a acabar o tráfico da escravatura em possessões que não sejam as nossas»8º!, Isto significa que a supressão, sem ter sido triunfal, longe disso, teve algum sucesso. As costas do Congo e de Angola
[FIGURA N
1]
i
/
O que, aliás, é confirmado pela recente historiografia. De acordo com as estimativas de Eltis, o tráfico de Angola — sempre definida como toda a costa para sul do Zaire, incluindo, portanto, portos ainda fora do domínio português, como Ambriz ou Ambrizete — baixou efectivamente a partir de 1839 (data em que se iniciou a supressão naval) e apesar de ter voltado a subir no período de 1846-1849, nunca atingiu os antigos valores. E outro tanto pode dizer-se a respeito da costa oriental africana. Com o fim do tráfico brasileiro, a queda em ambas as zonas foi acentuadíssima: de 1852 a 1864, na região de Angola, a exportação média foi de 1500 escravos/ano, aproximadamente,
Rio Zaire
quando
no período de 1840-1851 havia sido superior a 17 000 escravos/ano; na costa oriental africana também se assistiu a um abaixamento da exportação, ainda que menos vincado, com a média a cair, nos mesmos
períodos de tempo e em números redondos, de 8500 para 1900 escravos/ano. Após 1864, a exportação transatlântica a partir dessas zonas cessou de todo (gráfico n.º 1). Se não há razões para questionar o zelo abolicionista da marinha de guerra, o mesmo não pode dizer-se a respeito das autoridades terrestres, nomeadamente das autoridades subalternas. No final de 1846, o representante português na comissão mista do Cabo narrava para Lis-
boa mais um episódio dessa falta de zelo: O major Teixeira, governador de Quelimane, e o presidente da Câmara Municipal daquela vila, fugiram em um navio por eles fretado, e com direcção a Rio de Janeiro, e 500 escravos. Muita pena senti eu de tal notícia,
a qual certamente é um desdouro para nós portugueses de ver que duas autoridades em tão eminentes cargos ousassem cometer semelhante aten-
tado, no momento em que os poucos trabalhos desta comissão convenciam o governo britânico de que a bandeira portuguesa jamais servia de capa a
tão torpe comércio8?, Denúncias como esta eram correntes. Recebendo pouco e a más horas, raros seriam os subalternos que resistiam ao engodo do tráfico. O coronel Resende, sucessor do major Teixeira, amealhou, no pouco tempo em que esteve à frente do governo de Quelimane, uma
fortuna de quase 100, contos com a qual viria a adquirir uma grande
80 Câmara dos Senadores, sessão de 26 de Fevereiro de 1839, in DG, 4 de Março de 1839,
$! DCD, sessão de 24 de Dezembro de 1858, p. 257; ver igualmente a missiva do «
mandante da Estação Naval de Luanda, Manuel Tomás Cordeiro, à rainha, 21 de Nover H bro de 1849, PRO FO 84/793. "
322
82 Duprat ao ministro dos Estrangeiros, 20 de Maio de 1848, AMNE,
também Palmerston a Seymour, 16 de Janeiro de 1849, PRO FO 84/762.
33
caixa 1150; ver
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
ção do comissário britânico, George Jackson%*. Houve também fortes suspeitas de envolvimento no tráfico ilícito de Eusébio Catela e de Félix Domingues, respectivamente o comissário e árbitro portugueses*. O envolvimento dos representantes oficiais com os negreiros era quase inevitável, não apenas porque o tráfico de escravos constituía, directa ou indirectamente, o principal modo de vida e suporte econó-
propriedade na margem sul do Tejo%?. E o seu é apenas um caso en-
tre muitos. A corrupção e a conivência com os negreiros estendia-se
Exportação transaglânlica de escravos das áreas de Angola e da África oriental (1836-1864) (número)
mico das colónias africanas, mas também
porque os negreiros eram
personalidades prestigiadas nas comunidades em que se inseriam, grandes beneméritos que apoiavam as instituições: Ana Joaquina dos
[GRÁFICO Nº 1] 50 000 -
Santos disponibilizou-se a enviar dois dos seus navios
45 000 4
a Montevideu
para trazer cavalos e mulas para o governo de Angola%; Arsénio de Carpo ofereceu uma casa para hospital do pessoal da Estação Naval e uma tipografia à cidade de Luanda8”; Augusto Garrido promoveu uma subscrição em favor dos colonos desvalidos de Moçâmedes (para a
40 000 4 35 000 4 30 000 4
qual concorreram outros negreiros, como Matoso ou Flores)88; algo de
25 000 4
semelhante já havia sido feito para acudir aos deportados de Torres
20 000 +4
Vedras8º;
15 000 4
pão e aguardente à guarnição militar, aos presos pobres e aos libertos
na década de
1850, Flores ofereceu
generosamente
carne,
de Luanda”º; e os exemplos de generosidade cívica dos negreiros pode-
10 000 4
riam multiplicar-se abundantemente. O aspecto mais grave da conivência com os traficantes residia, porém, na complacência das autoridades judiciais. Essa complacência era tão patente que, em 1847, o então comandante da Estação Naval, Gon-
5 000 4 o
çalves Cardoso, ameaçou demitir-se se José Maria Matoso e Augusto I ——
Área de Angola
— «
África oriental
81 Duprat ao ministro dos Estrangeiros, 12 de Dezembro de 1846, ANTT, MNE,
Fonte: Eltis, «Slave departures ...», cit., pp. 169-170 (não existem dados suficientes para estim:
a exportação da costa oriental de África no ano de 1858).
como uma rede por toda a sociedade residente europeia ou mestiç tocando mesmo a própria comissão mista anglo-portuguesa de Luanda O secretário da comissão, Joaquim Leandro Maldonado, seria demitid
por Alexandrino da Cunha por conivente no tráfico, mas não só ma teve o seu lugar de escrivão do juiz de direito — até ter decidido, po
iniciativa própria, pedir a exoneração — como alguns anos depois viria a ser nomeado para escrivão do Terreiro Público, para grande indigna
|
caixa 223; cf. texto da conferência entre os membros da comissão mista anglo-portuguesa de Luanda, de 24 de Agosto de 1852, AMNE, caixa 1153. 85 Catela chegaria mesmo a ser pronunciado pelo juiz de direito da comarca de Luanda, ainda que, no seu caso, possa ter estado sobretudo em causa uma vingança de natureza política (Catela ao ministro dos Estrangeiros, 15 de Fevereiro de 1847, ANTT, MNE, caixa 223). 86 Annaes Maritimos e Coloniaes, n.º 4, 1841, p. 159 (relatório apresentado às Cortes pelo ministro da Marinha em Agosto de 1840).
87 Ibid., n.º 1, 1844, p. 10, e BOGGPA, 12 de Março de 1849, p. 2; Para as acções beneficentes de Carpo, ver A Revolução de Septembro, 31 de Janeiro de 1845.
88 BROGGPA, 2 de Fevereiro de 1850, p. 2; Augusto Garrido não deve ser confundido, como fez Clarence-Smith (The Third Portuguese Empire, 1825-1975. A Study in Economic Imperialism, Manchester University Press, Manchester, 1985, p. 49), com Augusto Guedes Coutinho Garrido, secretário da comissão mista e, também, do tribunal de presas de Luanda, para a confusão de Clarence-Smith
$9 O Patriota, 12 de Novembro de 1847. º BOGGPA, 19 de Setembro de 1857 e 29 de Maio de 1858, pp. 6 e 2 (respectiva83 Howard de Walden a Palmerston, 28 de Agosto de 1850, PRO FO 84/799. 324
mente).
325
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
Garrido, que haviam dirigido pessoalmente um embarque de 150 escravos num navio equipado em Luanda, não fossem punidosº!. Fre-
absolvição dos negreiros%. E que, outras vezes, tal não foi tecnicamente possível devido a irregularidades processuais (eventualmente
quentemente, os juízes de Angola absolviam as tripulações negreiras,
propositadas). Mas, excepção feita a esses casos, continuava a existir
mesmo quando a comissão mista ou o tribunal de presas condenavam as embarcações, o que, como é óbvio, suscitava a indignação das auto-
alguma tolerância do poder judicial — tal como do poder político, aliás — para com os traficantes de escravos. O exemplo mais gritante diz respeito a Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo, um dos mais importantes
ridades britânicas”?.
E o problema não era exclusivo de Angola.
Em
Cabo Verde, um homem como Francisco Cardoso de Melo, que aparecia como proprietário de diversos tumbeiros condenados na Serra Leoa durante a década de 1830, foi absolvido pelo juiz de direitoº?. Para obstar à impunidade que resultava desta plácida jurisprudência, o mi- nistério autorizou os governadores coloniais a interporem recurso para é
o tribunal da relação de Lisboa «dos despachos dos juízos de direito que não condenarem obrigatoriamente os réus processados pelo crime de tráfico da escravatura»?t. O que pouco terá adiantado. Nas colónias, | a inoperância judicial continuou a ser gritante, como Demony, o co-. missário português em Luanda, informava em 1851: | Por esta ocasião cumpre-me levar ao conhecimento de V. Ex.º que m consta estar concluído o processo a respeito do patacho português Veig: que em Novembro do ano passado saiu do porto desta cidade, e fora n
negreiros a actuar em Angola. Arsénio, um madeirense que fora de-
portado para a colónia e que aí adquiriria riqueza no tráfico, era um indivíduo insinuante e descarado que influenciava quase todos os governadores e que, para além disso, teve artes de se tornar responsável pelo depósito de carvão destinado aos vapores da Royal Navy e de suscitar a protecção de várias personalidades inglesas (entre as quais os próprios membros da comissão mista de Luanda)”7?. Carpo levou a sua desfaçatez ao ponto de requerer o lugar de cônsul português no Rio e de avançar com um plano para pôr fim ao tráfico no prazo de um ano?. O primeiro acto do governo de Alexandrino da Cunha, em 1845, foi, precisamente, a prisão e deportação de Arsénio, primeiro para Cabo Verde, depois para Lisboa?”º. Mas, na capital do império, essas pri-
dia imediato [...] apresado pelos cruzadores britânicos carregado de escra-
vos [...]; e parece que o juiz de direito da comarca não achou motivo par:
pronunciar pessoa alguma”?5, E, em Lisboa, as coisas não eram diametralmente opostas. É cert que por vezes os tribunais metropolitanos reverteram as sentenças de” 1 Cardoso a Cunha (governador de Angola), 2 de Abril de 1847, in ibid., 24 de Abri de 1847, p. 3.
92 Ver, por exemplo, os casos da sumaca Lealdade e do patacho Espírito Santo, in ibid., 2 e 9 de Maio e 21 e 24 de Outubro de 1846; para as indignações inglesas ver, ent outros, o extenso relatório dos comissários de Luanda (Jackson e Gabriel) enviado a P; merston, 14 de Fevereiro de 1848, PRO FO 84/719. “ 3 Informação não assinada (pela caligrafia, parece ser de Sá da Bandeira), datada de Julho de 1842 e anexa ao ofício de Falcão ao ministro dos Estrangeiros, 3 de Outubro dê. 1842, ANTT, MNE, caixa 384; ver também queixas inglesas acerca da actuação dos juízes (e da conivência culposa do governador João de Fontes Pereira de Melo) em Cabo Verde (resumo de um relatório inglês a propósito de Cabo Verde, ANTT, MNE, caixa 496, maço
de 1843).
º4 Portaria de 12 de Fevereiro de 1848, in BOGGPA, 15 de Abril de 1848, p. 2 (itál meu). ? Demony a Atouguia, 4 de Novembro de 1851, AMNE, caixa 1153; esse estado coisas prolongou-se pela década de 1850 adentro (ver, por exemplo, BOGGPA, 31 de Julho de 1858, p. 10); sobre o caso do patacho Veiga, ver também Jackson a Palmerston (privado), 12 de Dezembro de 1850, PRO FO 84/792. “
326
% Essas reversões de sentença eram lisongeiramente encaradas pelos comissários ingleses de Luanda, não tanto porque daí resultasse qualquer punição para os criminosos — entretanto evadidos —, mas porque constituiriam uma prova da sinceridade das autóridades portuguesas (Jackson e Gabriel a Palmerston, 30 de Abril de 1847, PRO FO 84/671). 97 Falcão a Gomes de Castro, 24 de Outubro de 1845 (confidencial) e 6 de Novembro de 1845 (reservado), ANTT, MNE, caixa 386. Para a acção de Arsénio sobre as autoridades, ver A Revolução de Septembro, 31 de Março, 17 de Maio e 10 de Novembro de 1845; encontram-se na série PRO FO 84/521 várias missivas escritas por Arsénio a diversas personalidades britânicas (inclusive a Lord Aberdeen) que ilustram bem a forma como o negreiro se insinuava junto dos Ingleses. Entre os inúmeros louvores de autoridades inglesas à hospitalidade e prestabilidade de Carpo, ver Clinton a Aberdeen, 18 de Janeiro de 1844 (privado), PRO FO 84/517. Para biografias de Carpo, ver Carlos Pacheco, «Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo. Uma vida de luta contra as prepotências do poder colonial em Angola (1.º parte)», in Revista Internacional de Estudos Africanos, 16-17, 1992-1994, pp. 49-102. João Pedro Marques, «Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo: um percurso negreiro no século XIX», in Análise Social (no prelo). Assinale-se, ainda, que a tentativa de cair nas boas graças das forças de supressão era prática corrente entre os negreiros e que em Luanda, por exemplo, Augusto Garrido, para além de privar com o almirante da Royale, procurou insistentemente a agência do depósito de carvão destinado a servir os vapores de guerra franceses (Jackson e Gabriel a Palmerston, e resposta deste, respectivamente, 13 de Fevereiro e 18 de Novembro de 1847, PRO FO 84/671). 98 Falcão a Gomes de Castro, 4 de Dezembro de 1844, ANTT, MNE, caixa 385. Para o plano «abolicionista» de Arsénio Carpo, ver A Revolução de Septembro, 23 de Junho de | 846; a desfaçatez de Carpo era proverbial e já Tams (ob. cit., p. 194) se lhe referia. 99 Falcão a Gomes de Castro, 6 de Novembro de 1845 (reservado), e documentos ane-
xos, ANTT, MNE, caixa 386.
ZNT
Os sons do silêncio
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
são e deportação, suscitaram forte reprovação. Apesar de o ministro da
Marinha asseverar que Arsénio estava «muito implicado em manejos clandestinos para o fomento e progresso do embarque de escravos em
Angola», e de lembrar que o decoro da nação estava «empenhado» em combater esse tráfico, ainda assim houve vozes que, tanto nas Cortes
como, mais assanhadamente,
na imprensa setembrista, se levantaram
em defesa do negreiro!%, É evidente que neste apoio a Carpo jogavam oposições partidárias ao governo cabralista, sendo possível que inter-
viessem também solidariedades maçónicas mais ou menos subterrâneas. Mas a forma como o apoio foi dado revela que os negreiros go-
zavam de forte acolhimento na metrópole e, sobretudo, que a sua figura ainda não estava irremediavelmente anatemizada (um aspecto que será desenvolvido adiante). Aliás, Arsénio gabava-se nas suas cartas de ter muitas e poderosas protecções em Lisboa. E a verdade é que sairia incólume, não só desse mas de outros processos que lhe moveram, tendo regressado a Angola em 1849, depois de ter viajado pela
Europa
ostentando
um
«luxo asiático, como
se fora um Príncipe de
avultadas rendas»!0!, Igualmente muito apoiado em Lisboa era Francisco António Flores, . um brasileiro cuja actividade como agente de grandes traficantes do
Rio (a casa Armaral e Bastos) remontava à década de 1840, e que viria a .dommar a cena angolana nos primeiros anos da década seguinte
Amdg que o comércio negreiro para o Brasil tivesse cessado, os lucros
aljís&mos que podiam obter-se no tráfico cubano estimularam a cria
ção de novas companhias negreiras, ou o alargamento das já existentes e Flores integrou-se nesse movimento de reorganização!O, A partir d Luanda, importava mercadorias da Europa e Estados Unidos e despa chava escravos do Ambriz para Cuba, fosse por conta própria, foss
como agente de sociedades sediadas no Rio, Havana ou Londres!º%3, Mas havia outros que, tal como Flores, tinham começado como agentes de casas brasileiras e que agora, findo o tráfico com o Brasil, opta-
vam por permanecer em África, centrando a sua actividade no Zaire e reorientando-a para Cuba!º, Algumas das conexões destes negreiros eram em Lisboa e no Porto. E, no início da década de 1850, aproveitando o valimento dessa gente junto das altas repartições do Estado, houve mesmo uma tentativa para reorganizar o tráfico a partir de Portugal, onde residiam vários negreiros expulsos do Rio — como Manuel Pinto da Fonseca ou Tomás da Costa Ramos (o maneta) — e que se dispunham a prosseguir o tráfico para Cuba. Contando com a passividade das autoridades metropolitanas, construíram-se e aparelharam-se no Porto dois brigues (o Guerra e o Trajano) destinados a transportar escravos para a América, numa
operação coordenada por Tomás da Costa Ramos e que aparentemente envolvia o governador de Angola, influenciado por Flores!%. O negreiro acabaria por ser expulso de Angola em 1855, no seguimento de várias queixas inglesas, mas o seu lugar seria ocupado por outros (entre os quais Luís Leivas, um seu agente)!%, De toda a forma, as iniciativas 103 Demony a Atouguia, 21 de Maio de 1853, AMNE, caixa 1153; o caso do brigue Newport, apresado pela marinha inglesa em 1854, perto de Ambriz, ilustra perfeitamênte os meandros do tráfico e a rede de relações comerciais mais ou menos clandestina de Flores; sobre esse caso, ver documentação do tribunal do vice-almirantado de Sta. Helena, ANTT, MNE, caixa 43, maço 17, doc. 12 (cotas do ficheiro metálico); ver também, na mesma caixa, maço 6, doc. 14 (Particulars of Pinto Perez and Company, London, acquaintance and principal transactions with Francisco António Flores, of Loanda). 104 Sobre as trajectórias de homens como António Severino de Avelar, José Martins Pamplona ou Guilherme da Silva Correia (o Guilherme do Zaire), ver Roquinaldo Ama-
ral Ferreira, «Dos Sertões ao Atlântico: Tráfico Ilegal de Escravos e Comércio Lícito em 100 DCpD, .sessão de 13.de Fevereiro de 1846, p. 8. Para ataques à actuação do govern (é d?fçsas mMais ou menos implícitas de Carpo), ver ibid., pp. 10-11 (discurso de Joaquim / António de Aguiar) e sessão de 11 de Fevereiro de 1846, p. 10 (discurso de José Mari: Sratndde). ãalr)a as censuras à acção governamental contra Carpo na imprensa, ver, soº
retudo,
atriota,
7 de Novembro de 1845 e 24 de Março de 1846,
e A R
ólução
d
Septembro, 5 e 7 de Novembro de 1845. : e TA . P s 1 01 Acórdão da sente_nça proferida contra Arsénio por falência culposa, BOGGPA, 3 de | Jglho de 1852, p. 7 Assinale-se que também esta sentença condenató ria seria anulada em | LleOÉl; Em 184.5 já Costa Cabral contara a Howard de Walden que gente do partido setemb.rlsftla, mçlumdo homens de elevado status social, estavam a fazer grandes esforços para influenciar os juízes a favor de Carpo (Howard de Walden a Aberd
bro de 1845, PRO FO 84/579). 102 :
cap.
9.
uh
: : , ver Eltis, Economic Para a reorganiVE zação das sociedad es negreiras Growth . , 270
ci
Angola, 1830-1860», dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro (não publicada).
105 Demony a Atouguia, 21 de Maio de 1853, AMNE, caixa 1153; de assinalar que já no final da década de 1840 algumas casas comerciais brasileiras tinham feito construir navios no Porto e em Porto Brandão, na margem sul do Tejo, navios esses que depois destinavam ao tráfico negreiro; mas a construção naval era uma actividade perfeitamente lícita que o governo de Lisboa não podia cercear, do mesmo modo que o seu homónimo de Londres também não podia cercear a exportação de têxteis para o Brasil, não obstante saber que uma parte deles se destinava à aquisição de escravos na costa de África (Seymour a Palmerston, 27 de Maio de 1848, PRO FO 84/724; Jones, cônsul inglês no Porto, a Palmerston, 8 de Agosto de 1849, PRO FO 84/764; Howard a Tojal e resposta deste, 14 e 17 de Setembro de 1849, PRO FO 84/763; Howard a Palmerston, 9 de Abril de 1850, PRO FO 84/798). Para a biografia dos negreiros, ver Karasch, ob. cit., pp. 12 e segs. 106 Para um exemplo de uma queixa inglesa a respeito de Flores, ver Howard a Tojal, 3 de Julho de 1850, PRO FO 84/799.
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
ensaiadas a partir de Lisboa ou do Porto foram escassas, porque o governo, pressionado pela imprensa e pelas Cortes, tomou medidas para obstar ao prosseguimento de tais negócios (ainda que os tribunais nun-
4000 contos!!!, Fosse qual fosse o quantitativo preciso, o esforço de cooperação abolicionista português era indubitável e suscitou até o elogio público do próprio Palmerston:
ca tenham castigado os que nele se achavam envolvidos). Na tribuna, Sá da Bandeira criticou publicamente a discrepância
O governo português tem cooperado activa, cordial e since'ramente na supressão do tráfico da escravatura, e se, por acaso, tem havido alguma
entre as sentenças do tribunal de presas e dos tribunais de comarca das
excepção a este brioso procedimento, apenas se encontrará em poucos dos
ceria a inoperância de todo o sistema punitivo, incluindo o da metrópole: «quanto à imposição de penas, nem um só indivíduo tem sido castigado por participante no tráfico, apesar de terem sido metidos em processo três governadores gerais e outros empregados»!%8, A sua vi- são desencantada era perfeitamente ajustada à situação e só pecava por ser algo excessiva. Na segunda metade da década de 1840 houve uma
ções dos negreiros!!2,
colónias!07, Mas num escrito da mesma época o ex-ministro reconhe-
ou outra condenação de gente humilde (marinheiros e outros), mas es-
sas condenações nunca foram às últimas consequências. A pena mais comum era a de serviço compulsivo por dois ou três anos sem venci- À mento a bordo dos navios da Armada, mas raramente se cumpriu na Íntegra, ou por anulação das sentenças, ou por amnistia!0º, AÀ complacência dos tribunais coloniais ou metropolitanos para com os negreiros manteve-se, com nuances, durante todo o período estudado, isto é, até à década de 1860!!0, Essa complacência (e a de outros
Á ªi
sectores da sociedade portuguesa) não anula, porém, o esforço feito À pelas administrações posteriores a 1839 para suprimirem o tráfico da . escravatura. Esse esforço, considerável para as disponibilidades do
país, estava, aliás, contabilizado, senão em vidas humanas pelo menos em dinheiro. Em Maio de 1848, o ministro da Marinha calculou que,
desde 1842, o Estado despendera 668 000 réis com o estabelecimento
das estações navais para a repressão do tráfico, e, em 1860, o deputado Pinto de Magalhães garantia que esse dispêndio já ultrapassava os »
|
108 Sá da Bandeira a Palmela, rascunho de Julho de 1849, AHU, Papéis Sá da Bandei-
da década
de
1850,
tratou-se efectivamente
de uma
se moldou à sua acção antitráfico, abdicando do desenvolv1ment0.de
iniciativas próprias. É verdade que, logo em 1842, Sá da Bandeira, mais liberto da política de partido e da rede de concessões que fora forçado a fazer anos antes, enquanto ministro, apareceu a dar livre cur-
so ao seu abolicionismo e a propor medidas para melhorar o decreto de 1836!!3, Mas essas propostas não tiveram seguimento e só mais tardç, em meados da década de 1850, os Portugueses se aventurariam a trilhar uma via abolicionista autónoma e, eventualmente, divergente dos
interesses ingleses. De facto, e uma vez que Portugal conseguira restringir, ou até mesmo impedir, o tráfico feito a partir das áreas que domir.lava, uma forma possível de melhorar o resultado da supressão em África passava .pçlo alargamento da administração portuguesa a zonas que a Coroa. reivindicava mas não ocupava. A ocupação de territórios como Cabinda ou Ambriz era um velho objectivo político dos governos de Lisboa que nunca avançara por debilidades e ambivalências internas e, tamPém,
pela oposição do governo britânico. Para legitimar as suas pfetensoes e forçar a anuência de Londres, os executivos portugueses invocavam
berto da filantropia e do direito moral de intervir no combate contra o tráfico de escravos!!4, Esse objectivo político fora definido no final da década de 1830 por Sá da Bandeira, que, nos anos seguintes, constan-
ra, maço 824; Sá tinha por certo em mente, entre outros, o caso do ex-governador Possolo, que, tendo sido metido em conselho de guerra, acabaria por morrer sem ter sido julgado
(ver Gomes de Castro ao major-general da Armada, 16 de Agosto de 1848, e documentos
11 Ver, respectivamente, Câmara dos Pares, sessão de 24 de Maio de 1848, in DG, 25
anexos, AGM, caixa 311). 109 Ver ofícios do procurador régio a Lazarim, 21 de Janeiro e 8 de Julho de 1848, e José Maria de Araújo ao major-general da Armada, 6 de Julho de 1849, AGM, caixa 311.
$
€ 420-421, respectivamente; José Júlio Rodrigues (representante português na comissão mista de Luanda) ao ministro dos Estrangeiros, 6 de Março de 1863, AMNE, caixa 1153.
/
11º BOGGPA, 31 de Março de 1860 e 7 de Janeiro e 11 de Novembro de 1865, pp. 4-5, 10
Até meados
cooperação que seguiu escrupulosamente a liderança da Inglgterra, que
não apenas razões históricas mas também a luta antitráfico, o dual mandate dos britânicos, isto é, a extensão da ocupação territorial a co-
107 Câmara dos Pares, sessão de 24 de Maio de 1848, in DG, 25 de Maio de 1848; ver
igualmente sessão de 7 de Abril de 1851, in ibid., 21 de Abril de 1851 (intervenções de Sá e também de Lavradio).
empregados inferiores que, infelizmente, talvez tenham cedido às tenta-
À
de Maio de 1848, e DCD, 18 de Junho de 1860, p. 242. 112 ROGGPA, 24 de Janeiro de 1852, p. 3 (resumo do discurso de Palmerston na sessão do Parlamento de 14 de Julho de 1841).
113 DCP, sessão de 16 de Agosto de 1842, p. 175. 114 Curtin, Image of Africa ..., cit., p. 281.
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A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
temente insistiu na necessidade de se ocupar Ambriz, Cabinda e a foz.
gola que, para absolverem os negreiros brasileiros, invocavam, entre
do Zaire, «a fim de tornar mais eficaz a repressão do tráfico»!!5, Mas
outras razões, que os apresamentos feitos a norte do paralelo 8.º sul não eram legais, por terem sido efectuados em águas não portuguesas!!8,
tratava-se naturalmente de um objectivo perfilhado por todos os governos portugueses. Ao contrário do que por vezes se afirma, Sá da Ban-
O Ambriz viria a ser, efectivamente, ocupado pelos Portugueses em 1855, num momento em que a guerra da Crimeia implicara uma redução substancial do poderio naval inglês na costa ocidental africana!!º.
deira não tinha o exclusivo da defesa de um projecto colonial ou da abolição. Nesse plano, caracterizava-se por uma persistência que faltava a outros, mas não é verdade que os seus objectivos expansionistas ou abolicionistas fossem específicos, ou que tivessem sido abandona-
dos pelos sucessivos
governos
da década de 1840. Em
Mas a Inglaterra opôs uma resistência inultrapassável à ocupação da zona do Zaire, apesar das justificações de cariz humanitário constantemente invocadas pelos governos de Lisboa.
1848, por
exemplo, Gomes de Castro escrevia ao embaixador inglês referindo-lhe recentes megaembarques de escravos no Ambriz, e sublinhando que
»
esses lamentáveis acontecimentos teriam sido evitados se a região esti- » vesse já sob domínio português: Aproveito para fazer sentir a V. S.º o prejuízo que resulta para a causa , da emancipação de não se ter dado o desejado apoio ao governo de S. M. | nas suas diligências para se fortificar naquele porto do seu território, preferindo-se os interesses do comércio — que, aliás, se poderiam assegurar de | um modo razoável -—, ao interesse da humanidade, pelo qual tão grandes
Um outro aspecto em que Portugal se afastou das directivas britânicas — e desta vez não para promover o abolicionismo mas para o contornar — diz respeito à transferência de mão-de-obra para S. Tomé e Príncipe, um velho problema que se agudizou com o arranque da economia de plantação no arquipélago durante a década de 1850. De acordo com o estipulado no tratado anglo-português de 1842, os colonos que pretendessem transferir-se de uma colónia para outra podiam fazer-se acompanhar de 10 escravos domésticos. Esse número reduzido era claramente insuficiente para responder às novas necessidades labo-
de Castro e, mais geralmente, a forma .
rais das roças e cedo se procuraram várias formas de ultrapassar as disposições legais. Inicialmente, foram os próprios navios da Armada — que não esta-
como as duas partes se situavam face ao problema do alargamento da |
vam sujeitos à inspecção do cruzeiro inglês — que serviram de veículo
soberania portuguesa na costa africana, estavam repletas de ironias.
à transferência de negros de uma colónia para outra. Logo em 1852 a corveta 8& de Julho levou para S. Tomé escravos recapturados nas zo-
sacrifícios se estão fazendo em vidas e propriedades!!6, As observações de Gomes
A primeira era a de que Portugal procurava aproveitar o problema da , , supressão para expandir a sua tutela em África, isto é, tentava pôr em í prática aquilo que no passado tanto temera da Inglaterra. Uma segund ironia era a de que a sua reivindicação fosse apoiada pelos comissário ingleses em Luanda, fundamentalmente preocupados com as questões )
humanitárias, e que acreditavam que o alargamento da soberania por- | tuguesa até Cabinda e Molembo significaria «aditional hopes of success in this noble cause of humanity»!!7, Outra ironia era a de Pal-. merston, o paladino da supressão, não partilhar a perspectiva dos seus comissários (e, claro está, a dos governos portugueses), subordinando a | eficácia supressora a interesses de outra ordem. E a ironia final era a d a política de Londres acabar por ser reforçada por vários juízes de An- |
nas de Angola e da Costa da Mina!20, Um pouco mais tarde, o governo colonial presidido pelo bispo de Luanda, ordenou ao comandante da sumaca Trindade que transportasse 42 escravos para S. Tomé!2!, Uma prática deste tipo comportava fortíssimos riscos políticos, até porque poderia haver um oficial inglês mais impertinente que, excedendo as suas instruções, apresasse o navio (coisa que efectivamente se temeu,
tanto em Luanda como na metrópole). Mas, mesmo que tal não suce118 Ver, por exemplo, o acórdão da sentença da tripulação da sumaca Lealdade e as considerações que tal acórdão suscitava ao embaixador inglês em Lisboa (Seymour a Sal-
danha, 30 de Dezembro de 1847, PRO FO 84/676). 119 No período de 1845 a 1851, a Royal Navy contou com 30 a 36 navios de guerra na África ocidental, mas, na época da guerra da Crimeia, a força foi reduzida para menos de
115 Câmara dos Pares, sessão de 5 de Fevereiro de 1846, in DG, 13 de Fevereiro de ) 1846.
116 Gomes de Castro a Seymour, 12 de Dezembro de 1848, ANTT, MNE, livro 184: / ver também Tojal
a Howard, 6 de Novembro de 1850, PRO FO 84/799.
117 Gabriel e Brand a Aberdeen, 25 de Março de 1846, PRO FO 84/626. 337
metade (cf. Eltis, Economic Growth ..., cit., pp. 92-94).
120 Demony ao ministro dos Negócios Estrangeiros, 8 de Agosto de 1852, AMNE, caixa 1153
12! Demony a Atouguia, 16 de Abril e 25 de Agosto de 1854 (e documentos anexos), AMNE, caixa 1153.
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A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
assistiu à diminuição do tráfico, como na metrópole, onde, em conformidade com a acção supressora, tinha vindo a afirmar-se uma nova maneira de conceber a abolição do iníquo comércio.
desse, o facto de o transporte se ter dado e de ter chegado ao conhecimento público já bastava para abalar fortemente a credibilidade abolicionista portuguesa. Como
exclamava o conde de Tomar,
na Câmara
dos Pares, «que vergonha para nós! É com o título de passageiros do Estado, e em navios do Estado, que se exportam escravos de Luanda
para S. Tomé? (sensação em todos os lados da Câmara)»!22,
2.2. Na retaguarda: a honra nacional
Lisboa desaprovou o comportamento do governador de Angola no caso dos transportes de escravos para S. Tomé a bordo dos navios da
No Verão de 1848 realizara-se em Colares uma vistosa cerimónia
Armada!?3, Surgiram, então, falsos colonos que funcionavam como testas de ferro dos proprietários insulares, fazendo duas ou três viagens por ano entre Luanda e S. Tomé e levando consigo dez escravos de
religiosa indirectamente relacionada com o tráfico de escravos: um membro da sociedade portuguesa que arriscara o seu dinheiro no negócio negreiro, obtendo o substancial lucro de 30 contos, oferecera, em
cada vez; ou que distribuíam nominalmente
cumprimento da promessa então feita, parte dessa soma à tradicional festa em honra da Virgem Maria. A propósito desse episódio da pequena história social e votiva, Seymour, o embaixador inglês em Lis-
os escravos embarcados
pelos passageiros que iam no navio, de forma a não infringir a letra do tratado de 1842 (ainda que fosse notório que os transportados não eram escravos domésticos, mas sim gente que iria ser vendida no arquipéla-
go). Depois, o processo sofisticou-se com a intervenção dos próprios governadores. Uma vez que a legislação apenas proibia a exportação — de escravos, as autoridades portuguesas passaram a jogar com a termi-. —
boa, referia que largas maquias continuavam a fazer-se entre os especuladores negreiros portugueses — sobretudo os do Porto — e que a
dimensão desses interesses conferia grande valor ao esforço abolicionista do governo português, esforço tanto mais de realçar quanto, como
nologia, concedendo «passaportes» aos escravos e chamando-lhes /li- ) bertos ou pretos livres. Já em 1853 o governo autorizara excepcional-
o episódio de Colares mostrava, o clima moral lhe era adverso, não
mente o ex-negreiro e neoplantador João Maria de Sousa e Almeida a |
stigmatized in England», nem sequer a convicção de que o tráfico fos-
transportar 100 desses libertos para o arquipélago!?. E a prática prosseguiria nos anos seguintes, sobretudo a partir de finais da década de 1850, não obstante os protestos ingleses. De Fevereiro de 1861 a Junho
se contrário aos princípios da religião!??. Havia muito de verdadeiro na avaliação do embaixador 1ngles se
de 1862, as ilhas de S. Tomé e do Príncipe receberam quase 1500 afri-
bem que, como se verá, não toda a verdade. Passado o grande sobres-
canos, com diversas designações ou estatutos!?5, Para além desta exportação oficial, e a fazer fé nas participações inglesas, o arquipéla- — £go importaria ainda escravos do Gabão, transportados clandestina mente em pequenos barcos costeiros e em condições extremamente penosas!?6, Empenhamento abolicionista e conivência com os negreiros eram, | então, duas vertentes contraditórias da acção portuguesa. Do seu con- | fronto algo de positivo resultara tanto na Africa portuguesa, onde se 122 Câmara dos Pares, sessão de 28 de Fevereiro de 1855, in DG, 12 de Março de . 1855; ver também sessão de 11 de Julho de 1854, in ibid., 15 de Julho de 1854.
123 Td., sessão de 28 de Fevereiro de 1855, in ibid., 13 de Março de 1855 (discurso do ministro da Marinha).
124 O Portuguez, 22 de Novembro de 1853. 125 Mapa de 16 de Julho de 1852, AMNE, caixa 1153. 126 Magenis a Loulé, 23 de Maio de 1862, AMNE. caixa 985. 334
havendo no país o «public feeling by which the trade in human flesh is
salto do bill, o tema do tráfico de escravos caíra de novo numa relativa sonolência e obscuridade. Nas Cortes, o assunto era aflorado duas ou
três vezes por ano, no relatório do ministro da Marinha ou quando um parlamentar — geralmente, Sá da Bandeira — inquiria do governo o resultado da actividade supressora. Os jornais pouco espaço dedicavam à questão, abordando-a apenas a propósito de um ou outro apresamento polémico, ou quando transcreviam debates do Parlamento britânico e reclamações cubanas ou brasileiras. É verdade que, por momentos, no início da década de 1850, alguns periódicos apareceram a assumir um papel abolicionista pressionante sobre o governo. Os casos do Guerra e do Trajano, os dois brigues negreiros que aparelharam no Porto, foram denunciados em primeira mão por O Portuguez!?8. Durante algumas semanas assistiu-se em Portugal a uma situação muito diferente da que se vivera na segunda 127 Seymour a Palmerston, 27 de Setembro de 1848, PRO FO 84/724. 18 O Portuguez, 26 e 31 de Dezembro de 1853 e 12 e 14 de Janeiro de 1854. 335
Os sons do silêncio
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
metade da década de 1830, quando alguns tumbeiros equipavam despreocupadamente no Tejo. O papel que nessa época coubera à embaixada inglesa e a jornais como The Lisbon Mail ou The Lisbon English Journal era agora assumido, pelo menos em parte, por uma imprensa
tigens a quem ali se demorasse cinco minutos. O convés, alagado por esta onda de cabeças humanas, apresentava um aspecto estranho: desde ré até vante não se podia dar um passo que não ressoasse um grito de dor. Depois de marcarmos o navio tratámos destes infelizes [...] despejámos água
lisboeta e portuense que se sentia mais alerta e desafogada para incre-
em baldes e distribuímos com
par o odioso tráfico (quanto mais não fosse porque terminara o transporte de escravos para o Brasil e «as razões que até aqui aconselhavam
a circunspecção e a prudência no modo da repressão tinham cessado inteiramente»)!29, Contudo, tratava-se de um zelo abolicionista episó-
dico. O único periódico que desenvolveu um esforço consistente nesse sentido foi o Boletim Oficial do Governo Geral da Província de An-
gola, principalmente no período em que Pedro Alexandrino da Cunha exerceu o governo da colónia. O Boletim demorava-se frequentemente
':
na referência à desumanidade do tráfico, na descrição das capturas dos
negreiros, na exposição dos prevaricadores — que taxava de criminosos — » e no louvor à acção policial. Para além disso, resumia o julgamento das presas e não se coibia de fazer a apologia da acção antitráfico inglesa, » noticiando os apresamentos efectuados pela Royal Navy (e até pelos . cruzadores franceses) e publicando resumos dos acórdãos do tribunal )
do vice-almirantado de Santa Helena. / Mais raros ainda eram os discursos que apontavam no sentido da britanização do antiescravismo português. No final de 1844, A Revolu ção de Septembro publicou um texto de António Lopes de Mendonça,
um jovem oficial da Armada (e futuro deputado), que, através da des- f,í
crição de um episódio da luta antitráfico que ele próprio vivera — o | apresamento, na foz do Dande, do brigue brasileiro Caçador —, procu- . rava fazer sobressair a desumanidade e o horror do infame comércio:
larga os mantimentos
[...]. Nos
três
Sobre esta descrição, tos, Lopes de Mendonça ção e de arrependimento vés da explicitação do instinto dos grandes
que resultava do contacto directo com os facconstruía, depois, um discurso de culpabilizacuja intenção última era a de promover, atramal, uma postura actuante: «o povo tem o
sentimentos,
ouvirá o nosso brado e há-de in-
dignar-se como nós perante esta atrocidade exercida contra a humanidade e contra Deus». Era, em suma, o discurso abolicionista de matriz britânica, assente na estigmatização do negreiro, visto como um ho-
mem que vendia a alma ao diabo, um «solitário no mundo moral»!3, Esse tipo de discurso surgia também por via de traduções de textos estrangeiros. Na década de 1850, por exemplo, o Diário do Governo
transcreveu a mensagem dos quakers aos soberanos cristãos, um texto que atacava o tráfico de escravos em termos de pecado e remorso, co-
mo algo inteiramente incompatível com a mensagem de Cristo!3!. Um pouco depois, e no âmbito mais amplo do combate à escravidão, A Revolução de Septembro divulgou, em forma de folhetim, uma tradução do livro de Harriet Stowe,
Uncle
Tom's
Cabin,
or Life Among
the
Lowly, obra que conhecia então um enorme sucesso editorial e perante a qual, como o próprio jornal dizia, «o mundo inteiro estremece de horror»!32, Mas a retórica pró-abolicionista de matriz anglo-saxónica, assente na explicitação do crime e na condenação moral do negreiro,
Eram oitocentos e quarenta e quatro pretos amontoados confusamente nos estreitos limites do brigue [...]. Durante dois largos dias não lhes h viam dado alimento, tinham as entranhas mirradas de fome e a gargan sequiosa. A atmosfera estava abrasada e o calor que exalava aquele lento. matadouro vinha queimar-nos as faces; e eles, junto corpo a corpo, resp rando com dificuldade não sei como não morriam sufocados. E era um ar.
centrada nas emoções e no sentimento, incentivadora de uma postura actuante, era e continuou a ser pouco frequente na imprensa, na litera-
viciado pelo seu hálito, envolto em nuvens de fumo que exalava o excre-. mento apodrecido. A escotilha da coberta, por onde respiravam, daria ve
130 ÀA Revolução de Septembro, 7 de Dezembro de 1844, pp. 1-2.
31 DG, 21 de Abril de 1852.
129 A Revolução de Septembro, 2 de Janeiro de 1854; para outras intervenções desse jornal na polémica do Guerra e Trajano, ver também as edições de 27 de Dezembro de | 1853, 13 de Janeiro e 8 de Abril de 1854. A imprensa teve igualmente um importante papel de denúncia no caso da escuna Locomotora, outro navio destinado ao tráfico de escravos que aparelhou no Porto em meados de 1856 (ver documentação específica no AGM, |
caixa 311).
mão
dias que levámos a conduzir aquela presa ao porto de S. Paulo de Luanda, vivemos num mundo de angústias [...]. De noite ouvíamos ressoar por horas, gemidos, gritos e prantos: ar, ar — pediam eles na sua língua [...]. Vinte e dois negros morreram durante esta pequena viagem.
|
132 À Revolução de Septembro, 22 de Dezembro de 1853. Uncle Tom's Cabin, or Life Among the Lowly, foi publicado pela primeira vez em 1852 e foi um estrondoso sucesso,
vindo
a ser eventualmente
traduzido
em
37 línguas;
a autora,
Harriet Beecher
Stowe, foi alvo de uma recepção entusiástica na sua visita a Inglaterra em 1853. A sua segunda novela antiescravista, Dred, saiu em 1856 e foi um outro sucesso esmagador em Inglaterra, com 100 000 livros vendidos em menos de um mês (ver Turley, ob. cit., pp. 103-104).
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pusera algo de semelhante num discurso fortemente condenatório da actividade escravista:
tura e, ao que tudo indica, nas preocupações da época. E, mais do que pouco frequente, era inoperante. Em 1854, na época em que Sá da Bandeira apresentou uma proposta de lei para a abolição da escravidão, Gomes de Amorim escreveu a peça Ódio de Raça, para, como ele mesmo confessava, auxiliar o público «a formar juízo com que desse força aos intuitos dos legisladores»!33, Mas em 1869, no prefácio da edição da sua peça em livro, o autor fazia um balanço desalentado des-
Eu quisera que todos aqueles que se empregassem no desumano [...] tráfico dos escravos fossem declarados infames, que fossem privados dos direitos não só políticos mas também civis, que fossem finalmente tratados como os judeus tratavam os leprosos, isto é, afastados das povoações, incomunicáveis, e concedendo-se-lhes apenas o alimento necessário para
conservarem a sua desonrada vida!37,
se proselitismo: São passados quinze anos. Ódio de Raça representou-se quase sempre durante eles [...]; mas, forçoso me é confessá-lo,
a minha ideia [...]
»
só teve por apoteose alguns desmaios e lágrimas de pessoas sensíveis e » nervosas, e as palmas dos homens
sinceros que não fazem leis. Eu não
contava, decerto, regenerar os pretos e moralizar os brancos com o meu humilde trabalho; mas supunha que mereceria a pena de ser discutido num país que possui escravos, o assunto que, em outras nações cultas tem preocupado os maiores estadistas, os grandes filósofos e os grandes
poetas. Enganei-me!3º,
Á
O tema abolicionista era de tal forma desviado do núcleo central de preocupações do país que havia mesmo quem encarasse as sucessivas . insistências pró-abolicionistas de Sá da Bandeira como
uma simples .
exibição destinada a gratificar a sua vaidade pessoal e a colher aplau sos e popularidade fácil no estrangeiro!35, Porque em Portugal, não
Sá da Bandeira tiveram qualquer acolhi-
fosse sempre referido como
«vergonhoso»,
«criminoso»,
«abomino-
$o0», «infame», poucos estavam na disposição de ir ao ponto de acoimar os negreiros. A Revolução de Septembro, que conhecia perfeitamente os traficantes radicados em Lisboa, não pretendia hostilizá-los: «requeremos só que se lhes vede a possibilidade de realizar as suas empresas»!38, A partir da década de 1840, alguns jornais abandonaram um discurso abstracto, sem nomes nem rostos, e apareceram a denunciar dois ou três negreiros das colónias, como Arsénio de Carpo ou Francisco Teixeira de Miranda (o Mirandinha), descrevendo a sua in-
obstante alguns discursos condenatórios, não se generalizara ainda uma
anatematização consistente do negreiro. Aquando da discussão do Acto Adicional, Sá da Bandeira chegou a propor que se retirasse o direito de |
fluência no poder político local. Mas tratava-se, antes do mais, de uma forma de atacar a presumida incompetência da administração cabralista, que permitia que o tráfico prosseguisse. Nesse contexto, os mercadores de escravos eram apenas instrumentos de uma acção partidária,
mas não eram proscritos ou desvalorizados pelo que faziam, e, bem ao invés, podiam ser defendidos desde que o contexto fosse diferente. Como já vimos, Carpo foi fortemente apoiado pela imprensa setembrista: «não sabemos nem queremos saber dos crimes ou das virtudes
voto a todos os indivíduos que tivessem traficado em escravos, argu-
mentando que essa o seu «crime» não tagem de dissuadir de que [...] haviam de acharem honras blica, é de esperar transacções»!36, A
Mas nem Lavradio nem
mento nas Cortes portuguesas, ainda que nessas Cortes várias vezes se tivesse condenado a actividade negreira. A discrepância entre o dito e o feito encontra-se igualmente na imprensa. Porque, ainda que o tráfico
gente estaria permanentemente estigmatizada e qu prescrevera. À seu ver, a medida teria ainda a van novas infracções «porque se eles tivessem a certe de incorrer nesta interdição política, e que em lug na sua pátria haviam de encontrar a reprovação pú que muitos deles se absteriam de entrar nas infame proposta, aliás, não era nova, pois já Lavradio pr
do Sr. Arsénio», clamava A Revolução de Septembro!?º. E esse apoio não resultava de um qualquer lapso ou desvario momentâneo. Em 1855, o mesmo jornal, que algum tempo antes prometera ser severo para «com os contrabandistas de carne humana», recordava o recém-falecido Manuel Pinto da Fonseca, um dos maiores negreiros na déca-
da de 1840, como um benemérito que «empregava os seus capitais em 133 Francisco Gomes de Amorim, Ódio de Raça, Lisboa, 1869, p. 10. 14 Td,, ibid., pp. 11-2. | 135 Câmara dos Pares, sessão de 12 de Março de 1845, in DG, 14 de Março de 184 (discurso de Falcão, ministro da Marinha).
4
136 Td., sessão de 1 de Julho de 1852, in ibid., 7 de Julho de 1852. 229Q
137 pcP, sessão de 5 de Agosto de 1842, p. 118. 138 À Revolução de Septembro, 2 de Janeiro de 1854. 13º Thid., 5 de Novembro de 1845. I%O
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para a caridade»!º0,
|
Para além desta anatematização intermitente do negreiro existia, claro está, uma verdadeira não anatematização, que, de alguma forma, |
constituía ainda um vestígio do pensamento escravista. Essa não ana-. tematização está muito bem espelhada em Mario, um romance históri-. co de Silva Gaio publicado pela primeira vez em 1868, cujo valor co- . mo fonte histórica reside na circunstância inescapável de todo o autor.
escrever para uma audiência e não poder narrar sem fazer pressuposvª ções sobre o universo mental dos seus leitores. É nesse sentido que asl alusões fugazes e não comentadas de Silva Gaio ao comportamento do.
traficante de escravos são muito eloquentes sobre as imagens e valores. que uma determinada audiência aceitava tacitamente nesse momento. Mário era um jovem liberal que, arrastado num drama amoroso, fo deportado para Angola em plena era miguelista. Aí, no mais duro d degredos, estabelecera uma sólida amizade com um hercúleo escravo negro, e ambos acabaram por evadir-se, errando pelo sertão até ating rem a costa, onde viriam a encontrar um navio que carregava escrav ria nas imediações de Moçâmedes. O significativo em Mario é que não existe qualquer referência negativa, condenatória, ao tumbeiro & à actividade da sua tripulação. Pelo contrário, o capitão negreiro qi
Silva Gaio propõe ao leitor está longe de ser um monstro ou um c minoso; é, isso sim, um indivíduo profundamente humano, que condói da sorte dos fugitivos, os veste e alimenta, transportando-o
gratuitamente para o Brasil e tornando-lhes a viagem «cómoda. salutar»!!, Era, aliás, difícil que a anatematização do negreiro se generalizas rapidamente numa sociedade que o distinguia e recompensava de d versas formas, nomeadamente por via da nobilitação. Durante a déc de 1840, vários homens ligados ao tráfico de escravos haviam receb
benesses do poder central. Caetano José Nosolini, o maior negreiro ( Bissau, um homem apanhado em flagrante delito no tráfico ilícito, s ria promovido a tenente-coronel em 1843, para grande indignação d Ingleses!?2; Arsénio de Carpo seria feito comendador; outros ace riam à nobreza ou ao pariato, como sucedeu com Manuel Antón Martins (barão da ilha do Sal) ou Joaquim Ferreira dos Santos (barã
depois conde de Ferreira, e par do Reino em 1842). Em meados do século, as promoções honoríficas tornaram-se mais nítidas quando, com o fim do tráfico brasileiro, centenas de negreiros regressaram a Portugal. A relevância económica dessa gente era enorme, como assinalaria em 1856, o embaixador inglês em Lisboa: The slave dealers are, with some exceptions, the only capitalists in Portugal, and their ill-gotten money [...] gives them in this country, where penury and financial embarrassment are so predominant, a position, which, if it does not inspire respect, would enable them to command silence!?%, A aceitação social a que o embaixador se referia iria mesmo mate-
rializar-se em títulos de nobreza para vários dos ex-negreiros que regressaram e (ou) aplicaram o seu dinheiro em Portugal: logo em 1850 José Bernardino de Sá, um dos maiores traficantes do Rio, um homem
que muito recentemente tivera um navio apresado e condenado na comissão mista de Luanda, foi feito barão (e depois visconde) de Vila Nova do Minho; António Leite Guimarães foi elevado a barão da Gló-
ria em 1852; João Maria Sousa e Almeida seria feito barão de Água-Izé; e outros que haviam promovido o tráfico ilícito de uma forma mais indirecta foram igualmente recompensados: em 1853 Vicente Rio Tinto, o ex-dono de O Nacional, seria feito barão de Rio Tinto; o famigerado João Baptista Moreira acederia ao baronato em 1855. Era também difícil a anatematização rápida do negreiro numa sociedade onde, a par de algumas visões condenatórias, subsistiam formas de toleracionismo que relativisavam fortemente a malignidade do
tráfico e dos seus autores. Por isso não estranhava que um Joaquim António de Aguiar, por exemplo, considerasse que o procedimento tido pelo poder para com Arsénio de Carpo era «mais [grave] do que traficar em escravos»!%4; ou que se dissesse nas Cortes que era «mais grave e vergonhoso o assassinato pela cultura do arroz do que ir à costa da
África buscar uma carregação de escravos»!*5. Tudo indica que para uma parte muito substancial da população portuguesa o comércio negreiro continuasse a ser uma questão distante, cuja gravidade ou injustiça eram muito relativas. Havia, aliás, um tema paralelo que interessava mais a imprensa e que contribuía para abafar de novo a questão: a emigração de portugueses para o Brasil e para a Guiana, em condições
140 Thid., 20 de Janeiro de 1854 e 30 de Agosto de 1855. 14l António da Silva Gaio, Mario. Episódios das Luctas civis portuguezas de 1820-183 Guimarães & C.º, Lisboa, 1924 (1.º ed.: 1868), p. 247.
142 Howard de Walden a Aberdeen, 20 de Maio de 1843, PRO FO 84/464. 2AN
143 Citado in Clarence-Smith, ob. cit., p. 53. 144 Ihid., sessão de 13 de Fevereiro de 1846, p. 11. 145 Ibid., sessão de 4 de Fevereiro de 1859, p. 32 (discurso de Cesário). maa
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mos daqueles, é incompreensível, desarrazoado e atroz. Pois não terão os
que se consideravam equivalentes às do tráfico de negros (e muito
homens brancos o seu Brougham, o seu Palmerston!47?
mais condenáveis porque envolviam portugueses): Temos visto decretos, leis e até tratados para repressão da escravatura
negra. Será possível que as Cortes aprovem a escravatura branca, visto que ainda não fulminaram uma tão escandalosa imoralidade? Não será o branco (pelo menos) tão filho de Deus como o negro? Donde procede, pois, tanto sentimentalismo a favor destes, e tanta indiferença a respeito dos outros, os quais, não além do Equador
mas à nossa vista, e com
nosso
consentimento, vêm ser buscados para a escravatura, e constituem a carre- ) À gação de um navio, como acontece com os escravos africanos?!1%6,
O Portugal de meados de Oitocentos escreveu sempre mais sobre a ) escravatura branca do que sobre o tráfico dos escravos africanos, o ) que de algum modo atesta a importância relativa dos dois temas no imaginário português. Nesse âmbito, é significativo constatar que o'f próprio Lopes de Mendonça — que, como vimos, havia assinado um texto abolicionista a propósito da captura do brigue Caçador — se noBrasil. Mas existem outras provas que sugerem que mesmo entre os. que eram chamados a operar nos mares de África no combate ao tráfi-/ co havia uma tendência para subalternizar a questão da escravatura. O romance Eugénio foi escrito pelo oficial de marinha Francisco Mari
Bordalo e publicou-se pela primeira vez no Rio de Janeiro em 184 (sendo reeditado em Lisboa em 1854). Trata-se de uma obra sem gran de qualidade literária que tem, todavia, a vantagem de retratar a vid dos marinheiros nos navios de guerra portugueses, a sua visão de Áfr
ca e, também, do problema da escravatura. Uma parte da acção deco a bordo de uma corveta de guerra que, em meados de 1842, ia par Angola reprimir o odioso comércio. E o que perpassa na visão de Bo dalo é uma censura à filantropia telescópica. O autor condofa-se m da sorte dos marujos da Armada, sujeitos a dura disciplina, do que dos negros escravos, que não conhecia: O filantropo que emprega o dinheiro, a saúde e o talento na grande o bra da repressão do tráfico da escravatura [...] não se lembra que ao pé de si, quase aos seus olhos, muitos dos seus compatriotas, da sua mesma co Á gemem como os negros, porque são escravos, porque a contra-gosto s u fiz os fizeram soldados ou grumetes. Seria justo que todos os homens bons zessem uma cruzada contra o sórdido e inumano tráfico de africanos; [...]
mas abandonarmos os compatriotas — os brancos — para só nos lembrar-
)
Em suma, os antigos quadros mentais não desapareceram subitamente, e, quando analisamos o discurso produzido no Portugal de | 840-1860 a respeito da abolição do tráfico, continuamos a encontrar, em pano de fundo, um toleracionismo sincero ou simulado, aparentemente dominante, e um abolicionismo de raiz britânica, que apenas aflorava aqui e ali. Mas, sobre esse pano de fundo que vinha de décadas passadas, fora-se entretanto afirmando — e era essa a grande novidade da época, que escapara à avaliação de Seymour — a convicção de que o tráfico tinha de cessar porque nisso estava comprometida a honra nacional. Era essa ideia que constituía o principal motor do esforço português no combate ao comércio negreiro. A grande diferença relativamente a épocas passadas residia na convergência que agora se verificava entre brio nacional e abolicionismo: em vez de uma concepção de honra nacional frontalmente adversa à pressão humanitarista inglesa (como acontecera até ao período setembrista, inclusive), agora a honra
nacional era quase unanimemente vista como compatível com uma supressão imposta internacionalmente. Para as elites políticas representadas no governo e nas Cortes, o ataque ao tráfico passou a ser encarado
como uma necessidade impreterível, não apenas por razões de humanidade ou de interesse económico futuro, mas, principalmente, porque
nisso estava empenhado o decoro português. Desde 1840 que essa preocupação se instilou no discurso ministerial e na oratória parlamentar, passando daí para a sociedade civil. As inúmeras notas feitas a lápis na margem das notas recebidas da embaixada inglesa revelam que a principal preocupação dos ministros cabralistas era a de não dar qualquer azo a que se pensasse que Portugal não se aplicava no cumprimento de uma obrigação a que se comprometera por tratado. E era com base nesse tipo de preocupação que se justificava, depois, a actuação abolicionista dos vários agentes políticos. Foi para salvaguardar o «decoro nacional» que, em 1845, Abreu de Lima, por exemplo, autorizou que os cruzadores ingleses entrassem em portos e bafas não vigiados por autoridades portuguesas em Mocambique!*8, Já vimos atrás como o tratado anglo-francês de 1845 147 Francisco Maria Bordalo, Eugénio. Romance Marítimo, Lisboa, 1854 (2.º ed.), p. 110.
148 Documento anexo em ofício de Tojal a Bayard, 17 de Julho de 1847, ANTT, MNE, 146 O Correio Portuguez, 30 de Março de 1843 (itálico meu). AAA
caixa 387.
343
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d | -
preocupou o governo de Lisboa, levando-o a reforçar o seu cruzeiro na costa de África. Mas virá a propósito acentuar que essa preocupação. assentava menos no medo de que do tratado pudesse resultar directamente uma apropriação de território colonial português do que do facto de ele poder pôr em cheque o brio e a dignidade nacionais. Em 8 de
Ã
Julho de 1845, no próprio dia em que expedia ordens aos comandantes navais para que incrementassem as tarefas de supressão, o ministro da
h
Marinha explicava ao seu homólogo dos Estrangeiros a lógica que pre- sidira à expedição de tais ordens:
|
Foi o meu primeiro cuidado, como V. Ex.º sabe, prover aos meios de aumentar quanto antes, e quanto seja possível, a força das nossas Estações'g Navais nas costas de África Ocidental e Oriental, pois que é evidente que só pelo reforço dado àquelas Estações, e pelo eficaz emprego delas na ani-'í' quilação do tráfico [...] conseguiremos prevenir ou diminuir o risco que poderão correr já não digo a integridade das mesmas possessões, mas honra e o decoro do pavilhão português, se pelas forças navais das dua nações, e não pelas nossas, se pusessem em prática alguns dos meios qu na mesma convenção se estipulam como conducentes à extinção do dit tráfico.
Portugal acelerava o ritmo repressor para não perder o ritmo do parceiros. Enviava, por isso, mais navios, e ordens mais rigorosas, fa
zendo sentir às autoridades navais «quanto a honra nacional e o ben do país interessa em que cada vez mais redobrem seu zelo e esforço Mas fazia-o sem qualquer alarde, precisamente para preservar a honr nacional: Não me parece, porém, a propósito que destas novas ordens e instru ções se faça actualmente ostentação, publicando-as ou dando delas es cial conhecimento ao governo inglês, pois que por esse facto poderia j gar-se que só agora, e quando aquelas duas poderosas nações põem er prática tão eficazes meios de reprimir o tráfico de escravos, é que nós lembramos de concorrer activamente para o mesmo fim, quando é verd
ministros.
Como
os
governantes
não
se cansavam
de
recordar,
Portugal contraíra «obrigações que a honra nacional reclama sejam cumpridas»!50, Ano após ano, os vários governos foram sublinhando que, não só «pelas considerações de moralidade e de respeito à dignidade da espécie humana», mas também «pelas obrigações internacionais», Portugal não podia deixar de empregar os seus esforços para acabar o comércio de escravatura!5!, Esse discurso encontrou sempre eco na oratória parlamentar, tornando-se aí relativamente unânime. Se bem que as Cortes não tivessem dedicado um grande espaço ao problema do tráfico de escravos, qualquer acção ou omissão governamental que pudesse ser tomada como uma contemporização administrativa para com os negreiros passou a ser escrutinada e censurada, porque, como dizia o deputado Otolini, «compromete o decoro nacional para com a Grã-Bretanha»!5?, E, porque o que estava em causa era, acima de tudo, a honra nacional, nunca se considerou seriamente a hipótese de retirar o cruzeiro, ainda que fossem vários os parlamentares que, em sintonia com o movimento anticoercionista britânico, questionavam a eficácia da supressão. No final da década de 1840, homens como Fontes Pereira de Melo, Lopes de Lima, Lavradio, Sá da Bandeira, entre outros, faziam um
balanço desalentado dos esforços supressores e não escondiam o seu cepticismo quanto à viabilidade de acabar com o tráfico. Para quase todos os que se pronunciaram sobre o assunto, o cruzeiro era uma instituição onerosa e pouco eficiente, e, quando a questão se levantou nas Cortes, apenas o ministro Gomes
de Castro defendeu
a ideia da sua
utilidade prática!53, Mas, ainda que fosse opinião corrente que a presença dos cruzadores era «uma mera formalidade para satisfação do tratado, mas para nada mais», todos reconheciam que o esforço devia
prosseguir, ainda que fosse financeiramente pesado, por razões de pura susceptibilidade política: «Nós devemos guardar a observância e fidelidade do tratado [...]. A nossa bandeira de certo já não se emprega em 150 DCD, sessão de 10 de Fevereiro de 1845, p. 1 (relatório do ministro da Marinha). 15! Tbid., sessão de 19 de Junho de 1852, pp. 4-5 (relatório do ministro da Marinha).
sido o primeiro a reconhecer!*º, A preocupação, que aqui se manifestava ao nível reservado da coi respondência interministerial, passava depois para o conhecimento pú 149 Falcão a Gomes MNE, caixa 386.
blico por via dos relatórios governamentais, dos discursos do Trono ou dos
de Castro, 8 de Julho de 1845 (e documentos 344
anexos), À
152 Ihid., sessão de 7 de Setembro de 1842, p. 115; para exemplos posteriores, ver ibid., sessões de 18 de Julho de 1854 e de 5 de Junho de 1855, pp. 330 e 62, respectivamente (intervenções de Correia Caldeira a respeito dos casos da sumaca Trindade e dos brigues Guerra e Trajano); ver também Câmara dos Pares, sessões de 11 Janeiro, 25 de Fevereiro, 5, 9, 17 e 24 de Junho de 1854 e 5 e 16 de Março de 1855, in DG (datas correspondentes). 153 Câmara dos Pares, sessão de 4 de Maio de 1849, in DG, 29 de Maio de 1849. 23AS
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cada vez mais a imagem de uma Inglaterra materialmente sacrificada em prol da humanidade, como um exemplo a seguir:
tal tráfico; o cruzeiro deve continuar contudo, porque assim deve ser!54,» Mesmo após o fim do tráfico brasileiro, os parlamentares por-
tugueses continuaram a ser extremamente ção do status quo abolicionista. A penúria pensar na extinção das comissões mistas, melindre da situação era unanimemente
cautelosos quanto à alterado tesouro induzia alguns a caras e redundantes. Mas o ) reconhecido e o deputado )
Santos Monteiro tremia só de pensar que «qualquer alteração no trata- | do sobre escravatura» colocaria o país numa má posição: «não sei |
mesmo se nos seria airoso requerer que o tratado fosse reformado, quando nós somos, ainda que muito injustamente, acusados de proteger
o tráfico da escravatura»!55,
4
A Inglaterra, economicamente falando, perdeu na actualidade quando em 1807 aboliu a escravatura [...]. A questão da escravatura tem sido olhada
pelas nações mais cultas como uma questão de sacrifícios em prol da ideia
humanitária e não como uma questão económica!58, O sacrifício inerente ao combate contra o iníquo comércio permitiria uma purificação moral do país e, simultaneamente, preservaria a sua honra. Esse conceito de dupla utilidade — ou tripla utilidade, se considerarmos também a ideia do benefício económico que, a prazo,
Precisamente porque a luta antitráfico não servia um interesse mate rial imediato — como veremos no capítulo seguinte —, e porque era car
poderia resultar para as colónias — foi frequentemente afirmado pelos
em vidas e dinheiros, desenvolveu-se muito cedo a noção de sacrifício
estruturando-se a partir de casos concretos (e reforçando-se através
inerente à supressão. Logo em 1840, Bonfim, então ministro da Mari-
deles).
nha, situara o problema: o governo não podia tolerar o tráfico negreiro,
Um dos momentos privilegiados desse reforço — talvez o seu momento mais alto — ocorreu em 1858-1859 em torno do apresamento da barca Charles et George, um incidente internacional que opôs os governos português e francês. Desde meados da década de 1850 que a França, a braços com falta de mão-de-obra nas suas colónias, procurava obter autorização do governo português para contratar trabalhadores escravos no Zaire e na costa de Moçambique (os chamados engagés). Essa gente — prometia-se — seria formalmente libertada no acto de
líderes de opinião, por vezes de uma
mas era necessário que os Portugueses soubessem que a Mãe Pátria tinha de fazer sacrifícios!%. Depois, ao longo das décadas de 1840 e, mais esbatidamente,
de 1850, a pedagogia do sacrifício foi acompai
nhando o esforço de defesa da honra nacional: a nação estava «altamente empenhada» na abolição porque a isso era obrigada pelos tratados e porque desejava elevar a prosperidade das colónias. Mas, «pa conseguir tais fins, [...] enormes são os sacrifícios de dinheiro, de vi
das e de saúde arruinada para manter e desempenhar o serviço de cr zeiro»!57, O discurso pedagógico que, ao invés da miragem do lucro propunha o espectro do sacrifício — para a redenção e recompensa futuras — ia-se afirmando em prejuízo da velha convicção de que na base do antiescravismo britânico estariam apenas intuitos egoístas e mercantis. A filantropia suspeita, essa velha ideia do toleracionismo obs taculizador, tornou-se rara entre as elites portuguesas (ainda que nã tivesse desaparecido por inteiro). Ao invés, essas elites invocavam
forma
abstracta, outras vezes
contratação e devolvida à procedência uma vez terminado o período de
trabalho obrigatório nas colónias francesas. Argumentavam as autoridades de Paris que as condições propostas seriam benéficas tanto para os negros como para Portugal!5º. O governo francês predispunha-se mesmo a pagar ao Estado português um direito de exportação de 10 patacas por cabeça!60, Mas tratava-se, efectivamente, de relançar o tráfico sob uma outra forma, e tanto Atouguia como, depois, Sá da Bandeira recusaram as pretensões de Paris.
— O que não impediu que os navios franceses acorressem à costa de Africa a efectuar o transporte de negros. E foi no âmbito dessa activi154 Td., sessão de 12 de Agosto de 1848, in ibid., 14 de Agosto de 1848 (discurso de
dade que, em 29 de Novembro de 1857, a barca Charles et George vi-
Tojal); ver outros discursos na mesma sessão, nomeadamente os de Gomes de Castro e ,;“ Sá da Bandeira (que defendia que o cruzeiro deveria continuar «ainda que se não tire dissc grande proveito»); sobre a mesma questão, ver igualmente sessão de 4 de Maio de 1849, in ibid., 29 de Maio de 1849), e DCD, sessão de 18 de Junho de 1850, p. 275 (discurso de
ria a ser apresada por um navio da Armada portuguesa na ilha de Qui-
Fontes Pereira de Melo).
bém sessão de 18 de Dezembro de 1858, p. 198 (discurso de Pequito).
iÀ
155 DCD, sessão de 6 de Junho de 1855, p. 78. 156 Annaes Maritimos e Coloniais, n.º 8, 1841, p. 350.
157 DCD, sessão de 13 de Fevereiro de 1846, p. 8 (discurso de Falcão). UTA
158 Ibid., sessão de 7 de Março de 1856, p. 74 (discurso de Martens Ferrão); ver tam159 Lisle (embaixador francês em Lisboa) a Sá da Bandeira, 20 de Março de 1857, e Walenski a Lisle, 3 de Abril de 1857, AHU, Papéis Sá da Bandeira, maço 2922.
160 Duprat a Loulé, 25 de Novembro de 1858 (confidencial), AMNE, caixa 1151. 347
"T
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
tangonha, uma parte da costa moçambicana inteiramente vedada ao
debate que aqui nos interessa, porque foi em torno do apresamento do
comércio estrangeiro. A barca tinha 110 negros a bordo — alguns dos quais amarrados —, para além de vários objectos expressamente proibi-
navio que se construíiu uma projecção que invertia e limpava as imagens herdadas do passado, uma projecção de um Portugal na vanguar-
dos pela legislação antitráfico, e seria condenada em Moçambique a 8
da do humanitarismo, fiel e sacrificado executor dos tratados abolicionistas. Por essa razão, o pequeno episódio do Charles et George
de Março de 1858, punindo-se o seu capitão com 2 anos de trabalhos públicos. O caso assumiria uma dimensão internacional quando, na
ganhou foros de grande acontecimento, vindo a tornar-se uma referência imprescindível nos compêndios de história de Portugal e a suscitar
sequência da apelação do condenado para Lisboa, o governo francês exigiu a devolução do navio e a libertação do seu capitão. Paris não reconhecia o direito de apresamento nem a legalidade do julgamento,
trabalhos historiográficos específicos!6?,
uma vez que a barca estaria autorizada a contratar trabalhadores livres » e tinha a bordo um delegado governamental para superintender esses contratos — o que, alegadamente, lhe conferiria um estatuto oficial e, por definição, excluiria qualquer hipótese de traficância em escravos. | Na sequência de um ultimatum verbal suportado pela vinda de vasos de guerra franceses ao Tejo, Portugal acabaria por entregar a barca e li- )
estava invertida: em vez de um Portugal conivente no odioso comércio,
bertar o seu comandante.
Porque, de facto, no caso da barca francesa, a situação tradicional
'
O caso do Charles et George não era virgem. Já antes tinham ocor- | rido episódios semelhantes, nomeadamente o da entrega ao governo | espanhol do navio negreiro Glória, apresado e condenado em Moçam bique na época do governador Marinho. Mas o caso da barca frances adquiriu uma enorme importância na construção da boa consciência abolicionista portuguesa, porque teve retumbância internacional e po que permitiu fazer uma ligação directa entre pró-abolicionismo e hon nacional, desempenhando por isso um papel relevante no process de expiação de culpas passadas e na exorcização de velhos fantasma. A questão do Charles et George,
que ocupou
grande espaço na im
prensa e nas Cortes, foi sobretudo pretexto para afrontamentos polí cos e exaltações patrióticas. Uma parte do debate versou sobre o fac propriamente dito; a outra parte, sobre a forma como o governo d Lisboa se houve perante ele!6!, É o primeiro desses dois campos d 161 As reclamações francesas de 6 e 11 de Maio de 1858 suscitaram uma nota do ent: ministro da Marinha, Sá da Bandeira, que o seu homólogo dos Estrangeiros, Loulé, com sua «proverbial indolência» (A Revolução de Septembro, 16 de Novembro de 1858), exp diria para Paris apenas a 18 de Setembro. E só no início de Outubro daria instruções ao embaixador na capital francesa para propor a mediação de uma potência estrangeira (o qui seria recusado). Portugal também não procurou atempadamente o auxílio da Inglaterra numa pendência que se previa complicada e que a envolvia, tendo recorrido a ela apena quando a questão já se estremara. Ainda vieram dois navios da Royal Navy ao Tejo, ma os Ingleses não interferiram, tendo aconselhado mesmo o governo de Lisboa a ce Quando a Charles et George foi libertada, os mais cáusticos representantes da oposiçã como Rodrigues Sampaio, por exemplo, consideraram justificadamente que os Portugu bem podiam queixar-se «da injustiça do governo francês e da imbecilidade do noss:
o mundo podia ver um pequeno país que cumpria fielmente os acordos
e obrigações abolicionistas, enfrentando para tanto a cólera de uma nação poderosa como a França — algo que a própria Inglaterra, não ousara fazer. E verdade que, no rescaldo dessa acção desafiante, Portugal acabara por sujeitar-se ao ultimatum francês; todavia, no contexto, essa
sujeição não era verdadeiramente humilhante, porque correspondia a um sacrifício em prol de uma ideia nobre que toda a nação política devia glorificar. Como dizia Martens Ferrão, «não é vergonha ser humilhado por sustentar uma grande causa»!63; ou, como pretendia Mendes Leal, «é belo e é nobre sofrer por uma causa destas (apoiados)»!69, Com o Charles et George, o país obtinha um triunfo moral que lhe enobrecia a afronta: «o forte triunfou só na aparência, o fraco é que ficou honrado (muitos apoiados)»!55. E tanto mais honrado quanto o empenhamento abolicionista português, nesse caso, se fazia ao arrepio
dos mais imediatos interesses materiais. Portugal, que pela extensão das suas colónias muito podia auferir com o relançamento do tráfico, sacrificara o lucro imediato e sofria como defensor «dos direitos e da dignidade da espécie humana, no penoso mas nobre sacrifício» em que se oferecera como vítima!66, A recompensa desse sacrifício media-se pelo crédito ganho pelo país, uma vez que o assunto do Charles et (ibid., 26 de Outubro de 1858). Assinale-se em parte devido ao impacto negativo da sua 162 Fortunato de Almeida, ÀA questão da tado, Coimbra, 1917; Eduardo dos Santos,
que o governo viria a cair em Março de 1859, actuação no caso da barca francesa. barca Charles et George e o Conselho de Es«A questão da barca Charles et Georges», in
Studia, 45, 1981, pp. 131-283.
163 DCD, sessão de 20 de Dezembro de 1858, p. 310. 164 Ihid., sessão de 21 de Dezembro de 1858, p. 221. 165 Ibid., sessão de 18 de Dezembro de 1858, p. 194 (discurso de Bartolomeu dos Mártires); ver também Câmara dos Pares, sessão de 5 de Janeiro de 1859, in DG, Janeiro de 1859 (discurso de Algés).
166 DCD, sessão de 18 de Dezembro de 1858, p. 198 (discurso de Pequito). 2aÃO
24 de
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
George adquirira uma grande difusão internacional e que o mundo ci-. vilizado se pronunciara massivamente a favor da actuação portuguesa: Com este procedimento chamou Portugal a atenção da Europa e eu [...] folgo de ver que o sufrágio das nações fez justiça a um Estado que, apesar de abatido pelos revezes, apesar de debilitado pela adversidade, soube to- ) mar um lugar tão eminente na causa sagrada da civilização do mundo [...] Dói sempre a afronta mas, por este lado, abençoada seja a violência que os [factos] fez divulgar. Em vez de nos humilhar engrandeceu-nos [...]. AÀ pu- | blicidade não faltou, e foi a mais larga e satisfatória de que há muitos anos )
se honra Portugal!67,
dos traficantes, a inoperância das leis,
a má fé de vários governos, e
ganharam legitimidade moral adquirida não por palavras mas por acções. Nesse aspecto, o episódio do Charles et George fora particularmente importante de um ponto de vista ideológico, porque contribuíra
para limpar um passado de desleixo e de inoperância e para reivindicar um lugar entre as nações abolicionistas, não tanto porque o abolicionismo estivesse largamente disseminado na sociedade portuguesa, mas
porque existira um esforço concreto, palpável, para fazer aplicar as leis e obrigações impostas pelos tratados. Mas essa era apenas uma das vertentes da questão. Num país simultaneamente adverso ao tráfico e complacente para com os negrei-
Para além do ganho que permitia a nível do crédito internacional do.
ros, a função ideológica do Charles et Georges ia para além da catarse
país, alguns acreditavam que o sacrifício perante a violência francesa tinha virtualidades abolicionistas directas. Ainda que Lisboa tives sido forçada a libertar o negreiro, o episódio serviria a causa da hum nidade, porque, implicando a censura geral da Europa ao comportamento francês, obrigaria o governo desse país a repensar o seu sistema de engajamento e a proibi-lo: «assim, o facto praticado no Tejo servi a causa da humanidade, sendo abolido completamente o novo tráfi
humanitarista. A grande ironia do caso da barca francesa era que, por detrás das declamações e dos aproveitamentos propagandísticos, Por-
da escravatura»!68. Ou seja, através do Charles et George, Portugal aparecia na vanguarda da luta antiescravista e, o que mais era, nu
outro, servia, paradoxalmente, para reivindicar o alívio das restrições
tugal estava numa situação muito semelhante à da França. Também tinha, tal como a França, ilhas carentes de mão-de-obra. Se, por um
lado, o episódio do Charles et George conferia legitimidade moral para reivindicar a vanguarda abolicionista — vindo, dessa forma, dar força a uma opção abolicionista baseada na defesa da honra nacional —, por que se levantavam
contexto de complacência ou de fraqueza por parte da Inglaterra: O filantrópico estandarte vacilou nas mãos da poderosa Inglaterra , Portugal, o pequeno Portugal, levantou-o da poeira onde rojava e levan: tou-o quanto bastou para que a Europa, atónita, visse, num instante, Portugal desempenhando o papel da Inglaterra! Portugal à frente da cruzada
para abolir o tráfico!6º!
:
à transferência de mão-de-obra
S. Tomé e Príncipe. Desde o início do século que Portugal se confrontara com a necessidade de transplantar escravos para o arquipélago, em larga escala, e com a impossibilidade legal de o fazer. Já vimos que esse impedimento legal não foi cumprido e que se usaram alguns estratagemas para contornar as restrições impostas por tratado, estratagemas nem sempre bem recebidos por poderem abalar a honra nacional. Ora, com o caso da barca francesa, as coisas mudavam
ver igualmente sessões de 15 de Novembro e de 24 de Dezembro de 1858, pp. 47 e 2 (discursos de S. Vasconcelos e de Casal Ribeiro, respectivamente), e também A Revoluç
de Septembro, 19 de Dezembro de 1858. 168 DCD, sessão de 20 de Dezembro de 1858, p. 207 (discurso de Sá da Bandeira); também Câmara dos Pares, sessões de 4 e 5 de Janeiro de 1859, in DG,
|
19 e 24 de Jane:
de 1859 (discursos de Porto de Mós e de Algés, respectivamente).
169 Câmara dos Pares, sessão de 5 de Janeiro de 1859, in DG, 24 de Janeiro de 1859 (discurso de Linhares), e igualmente sessão de 3 de Janeiro de 1859, in ibid., 15 de Janeirc de 1859 (discurso de Tomar). Deve assinalar-se que, na imprensa e nas Cortes, houve tam bém quem defendesse a retirada, ou a forte redução, do cruzeiro antitráfico português, ma eram vozes mais isoladas.
350
de Angola para
de feição para os
que defendiam o transporte de libertos. Não era verdade que a França o fazia? E que a Inglaterra o tolerava? Nas Cortes, Abranches (deputado por S. Tomé) foi o maior defensor da política toleracionista, propondo que o governo permitisse, «em favor da humanidade e da liberdade», que os escravos fossem comprados em Angola, libertados e, já como libertos, transportados para o arquipélago, onde trabalhariam «por certos e determinados anos a favor de quem os tivesse remido». O deputado voltaria insistentemente ao assunto, invocando o exemplo francês como precedente a seguir, e pretendendo que se chegasse a acordo com os Ingleses para transplantar negros para S. Tomé — falava em cerca de 20 000!7º%, A sua posição 170 DCD, sessão de 28 de Janeiro de 1859, p. 294. 351
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
agora com a muito curiosa particularidade de fundir os argumentos pró-escravistas com as mais modernas reivindicações de vanguardismo
tinha o apoio expresso de deputados como Afonseca, Pinto de Magalhães ou António José de Seixas, mas não encontrou um eco alargado nas bancadas parlamentares — e daí a insistência!!!, Encontrou-o, em
abolicionista. Promoviam-no publicamente alguns governantes, depu-
contrapartida, nas cadeiras do governo e do Conselho Ultramarino. Uma vez que estava em causa a prosperidade de S. Tomé, era necessário capitalizar o esforço abolicionista português no sentido da obtenção de uma situação de favor por parte da Inglaterra. Como dizia o então
tados — naturalmente, os mesmos que defendiam de forma activa o transporte de libertos para S. Tomé — e jornalistas. Uma das manifestações mais eloquentes desse tipo de discurso encontra-se na Revista das
ministro da Marinha, Mendes Leal, ao seu homólogo dos Estrangeiros:
Quando a Inglaterra se propôs acabar com o ominoso trato da escravidão africana, Portugal acolheu com entusiasmo aquela lembrança e inscreveu espontaneamente o seu nome naquela grande cruzada cristã e humanitária. Quando a posteridade quiser memorar os nomes dos negrófilos
Colónias:
Passar a impedir totalmente o granjeio daquele rico solo seria, sem razão nem justificação, abdicar os foros de nação independente [...]. Temos pago com os mais custosos sacrifícios [...] o nosso respeito e lealdade ao tratado de 1842. É preciso, é indispensável, que esse tratado se não torne um instrumento de intolerável compressão a todos os nossos
mais distintos [...] há-de inscrever na mesma página os da Inglaterra e Portugal, Wilberforce e Sá da Bandeira. Esta é a verdade.
desenvolvimentos!7?,
No entanto, ao mesmo tempo que colocava Portugal na primeira li-
Os casos do Charles et George e dos libertos transferidos para S. Tomé e Príncipe constituem dois exemplos da dualidade portuguesa a respeito da supressão. A forma como a nação lidou com essa dualidade não foi uniforme. Por norma, o silêncio foi a maneira escolhida para tentar compatibilizar o capital de empenhamento abolicionista já ad-
| »
nha do abolicionismo, e um português no Panteon humanitarista, a Revista das Colónias defendia o transporte de libertos para S. Tomé em termos muito próximos dos escravistas de inícios do século. Afirmava,
cipe. Tratava-se de um silêncio comprometido e pudico que apenas se .
nomeadamente, que esse transporte seria vantajoso para todos, inclusive para os escravos. Se as «hordas selvagens e cafreais», que em África andavam «constantemente em guerra aberta umas com as outras, pelos mais fúteis pretextos», pudessem vender os prisioneiros que re-
quebrava de quando em vez para fazer recomendações sobre a necessi-
sultavam das suas guerras, poupar-lhes-iam certamente a vida:
» /
quirido com a tolerância a uma espécie de tráfico para S. Tomé e Prín.
dade imperiosa de salvaguardar a honra nacional. Como admoestava Sá Nogueira, um homem que vinte anos antes se notabilizara na oposição à concertação abolicionista com os Ingleses, «não desejo que pese
sobre o governo português a suspeita de que fecha os olhos a este tráfi co»!73, Todavia, por entre esse silêncio mais ou menos cúmplice emergia, ainda, o discurso obstaculizador dos que acreditavam na bar baridade intrínseca do africano e contestavam o abolicionismo. Era, no fundo, o velho discurso toleracionista forjado após 1807, que surgia. ú
!7! Para outras intervenções de Abranches sobre o mesmo tema, ver ibid., sessões de de Fevereiro e 15 de Abril de 1859, pp. 41-42 e 190, respectivamente, sessão de 6 de Mar: ço de 1860, p. 43, e Câmara dos Deputados, sessões de 19 de Junho e 20 de Julho de 1861 7 de Fevereiro de 1862 e 12 de Abril de 1864, in DL, 21 de Junho e 23 de Julho de 1861 10 de Fevereiro de 1862 e 14 de Abril de 1864.
fetichismo [...]; tornar livres e úteis membros da sociedade outros tantos
inimigos actuais da civilização, do trabalho, hoje sequestrados da grande família humana pela ignorância, preguiça e barbárie; fornecer às colónias portuguesas, onde os braços escasseiam, esses tão necessários e bem quistos agentes de riqueza e prosperidade, que ali seriam recebidos como
172 Mendes Leal ao ministro dos Estrangeiros, 10 de Novembro de 1863 (confiden
irmãos e tratados como naturais!7º,
cial), AMNE, caixa 985; ver igualmente parecer do Conselho Ultramarino datado de 9 de Novembro de 1861, in Annaes do Conselho Ultramarino, Março de 1862, p. 26, e relatóri do ministro da Marinha apresentado à Câmara dos Deputados a 23 de Janeiro de 1864, i ibid., Março de 1864, p. 24.
174 Revista das Colónias, 11 de Dezembro de 1863 (itálico original).
173 Câmara dos Deputados, sessão de 31 de Maio de 1864, in DL, 2 de Junho de 1864
250
Se eles tivessem a certeza de encontrar compradores aos seus escravos não se lembrariam de os matar, porquanto o interesse os moveria a conservá-los. Perguntamos agora aos falsos intérpretes dos tratados que princípio anti-cristão, anti-humanitário haveria, em permitir [...] o resgate desses escravos, concedendo-lhes imediatamente a carta de alforria e o baptismo cristão, mediante o engajamento, por exemplo, de 5 anos dos seus serviços [...], sempre sujeita a sua execução e cumprimento à vigilância paternal dos poderes constituídos? Os males que daqui resultavam eram os seguintes: salvar tantas vidas quantos os escravos resgatados; trazer ao grémio cristão outras tantas almas, entregues no mato aos erros do
3
353
A honra nacional: Portugal e o combate aos negreiros em meados do século XIX
Os sons do silêncio
Segundo o jornal, o transporte de libertos para as colónias já era | praticado por Estados Unidos, França e Inglaterra, pelo que Portugal deveria ter o direito de fazer outro tanto. E esse era o elemento novo
era a convicção de que a mudança em África seria rápida. O tráfico fora investido de todos os malefícios e supunha-se que a sua supressão acarretaria transformações benéficas quase imediatas. Em Portugal,
que o episódio do Charles et George viera proporcionar a uma ideolo- -
porém, e por razões que veremos a seguir, esse discurso não era verda-
gia velha de séculos. Como é evidente, o artigo da Revista das Coló--
deiramente mobilizador e poucos acreditariam que o eldorado africano
nias não constitui senão uma reactualização do discurso escravista que tivera a sua última manifestação frontal no início de Oitocentos, pela -
estivesse ao virar da esquina, tão perto que justificasse um empenhamento abolicionista por motivações estritamente económicas. Aliás,
pena
não
de Azeredo
Coutinho,
e depois
submergira,
aflorando
apenas À
se vislumbrava
sequer,
no horizonte,
um
número
suficiente
de
quando a tensão polémica o fazia romper as suas roupagens tolerantes,
portugueses interessados em investir capitais ou vidas na exploração
gradualistas, falsamente abolicionistas. Nele coexistiam elementos . muito antigos (resgate dos escravos, salvação das almas, função civilizacional do trabalho compulsivo) com outros mais recentes (a proposta
económica de África. Tal como não se vislumbrava, entre as elites po-
líticas, unanimidade ou consenso quanto a um projecto de expansão que fizesse de África uma das prioridades da vida nacional.
de engajamento a prazo, defendida, por exemplo, por José Joaquim Freire em 1840), ou até recentíssimos (como acontecia com o aprovei
tamento do episódio do Charles et Georges). No seu núcleo, porém, ainda persistiam as ideias de barbaridade intrínseca do africano e a teo-. ria do mal menor, o que atesta a perenidade das grandes linhas de força do pensamento pró-escravista ao longo de todo o perífodo estudado. — » Os discursos de alguns deputados, governantes e jornalistas assina: lam a sobrevivência do toleracionismo obstaculizador no Portugal 1860 e a sua constante actualização, uma actualização que ia ao ponto de endeusar Sá da Bandeira para escudar as propostas escravistas atrás da sua imagem prestigiada. De toda a forma, tratava-se de uma sobrevivência que talvez já não espelhasse o sentimento do país e que não tinha uma dimensão semelhante à que assumira no final da década dê 1830. Nos cerca de 20 anos que mediaram entre o bil! de Palmerston é a questão do Charles et George, algo mudara em Portugal. Durante esse período, as classes dirigentes portuguesas foram passando para O outro lado da barreira, não tanto porque se tivesse difundido no país uma mania antiescravista, mas porque a defesa da soberania e da hon
nacional as forçara a acompanhar o ritmo inglês. Nesse sentido, combate ao tráfico de escravos em Portugal pode ser explicado, aci de tudo, por motivos políticos e pela necessidade de restaurar um prestígio altamente abalado pelo acumular de acusações que, apesar de terem atingido o seu ponto mais alto na grande crise de 1838-1839, con-
tinuaram nos anos seguintes.
|
É claro que, a par da defesa da honra nacional, se falava também
necessidade de extinguir o tráfico por motivos de natureza económica, para permitir a exploração e o desenvolvimento das ricas colónias africanas. Uma das características do pensamento abolicionista pioneiro 354
E nts
Capítulo VI
Impasses coloniais: novos Brasis ou
verdadeiras Africas?
Nos capítulos anteriores fiz várias referências à pouca apetência dos liberais portugueses para se envolverem económica e fisicamente em África. É agora altura de abordar essa reduzida apetência, o seu nível,'
os seus contornos e as suas causas. E é necessário fazê-lo de uma forma relativamente alargada, porque existe, hoje em dia, a convicção errónea de que as possessões africanas constituíram uma preocupação central das classes dominantes portuguesas desde os primeiros alvores do regime liberal — o que, a ser verdade, exigiria que se explicasse por que razão classes dominantes profundamente interessadas em África permaneceram tanto tempo alheadas do problema da abolição do tráfico. A convicção errónea de que os liberais se teriam interessado seriamente por África é, aliás, relativamente recente. Até finais da década
de 1970 seria certamente pacífico afirmar o seu escasso interesse pelas colónias, mormente se a afirmação visasse, como é aqui o caso, os primeiros dois terços do século XIX. E seria pacífico por ser algo
simultaneamente compatível com os juízos emitidos a tal respeito por vários vultos da historiografia portuguesa de finais de Oitocentos — como Oliveira Martins e Pinheiro Chagas, por exemplo! — e com as ! Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Portugal em África, Guimarães Eds., Lisboa, 1953 (1.º ed.: 1891), pp. 10 e 21; Manuel J. Pinheiro Chagas, As colónias portuguesas no século XIX (de 1811 a 1890), Livraria A. M. Pereira, Lisboa, 1890, pp. 102, 107 e 114.
357
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
outra, promovida pelas Cortes, destinada a formar uma sociedade que pudesse escoar os vinhos da Estremadura através de relações comerciais favorecidas com África. Para esta última, o governo teria mesmo nomeado uma comissão destinada a promover a subscrição de acções, de que fariam parte os grandes capitalistas Farrobo e Porto Covo, mas o projecto não chegara a obter a necessária autorização legislativa?.
teses historiográficas mais modernas e acreditadas. Defendia-se nessas h teses que, exceptuando um punhado de figuras públicas e alguns mo- mentos
especiais em
que a atenção
dedicada aos assuntos
africanos
podia ser febril, a relação de Portugal com as suas colónias se caracte- rizava antes do mais pelo desinteresse. E porque presumivelmente as- sim seria a quase todos os níveis da sociedade, vários autores sustentaram a ideia de que Portugal gerara um colonialismo anómalo, não apoiado em interesses materiais evidentes e consistentes: «no indus- » tries seeking overseas markets, no middle class seeking overseas fortu-
nes, no capitalists seeking overseas investments», na versão de Hammond, o mais celebrado arauto dessa tese?. O colonialismo português teria sido, então, um movimento reflexo e reactivo, propulsionado por factores de natureza política e ideológica, como a necessidade de garantir o prestígio do país, a voragem da competição internacional (que redundaria, depois, no scramble for Africa de finais de Oitocentos) e o concomitante receio quase paranóico de que os estrangeiros viessem roubar o que sobrava do velho império.
Ao pôr a tónica nesses dois planos, o autor transmitiu a ideia de que
jJá na década de 1830 a grande burguesia, personificada por figuras de relevo social e financeiro como Farrobo ou Pinto Basto (o presidente
da Associação Mercantil de Lisboa), desenvolvera um apreciável apetite pelas riquezas africanas. E certo que nem esses nem outros planos
| -
haviam sido levados à prática, mas Alexandre atribuiu tal desaire basi-
camente a razões exteriores — porque o desejo das burguesias por África estaria lá. E estaria lá, quanto mais não fosse, por razões decorrentes
) | )
da própria lógica do desenvolvimento do capitalismo português, que
então se fazia num quadro marcado pela perda do Brasil e pela superioridade da Grã-Bretanha. Nas condições impostas por esse quadro, a «via colonialista» surgiria como a resposta mais adequada e «quase todos os sectores da burguesia portuguesa — o mercantil, o industrial, o agrário — estavam potencialmente interessados nessa expansão (com as excepções importantes dos produtores e comerciantes do vinho do Porto e dos produtores de cereais)»5. Esse contexto explicaria, entre : outras coisas, que a acção governativa se tivesse virado para a abolição do tráfico de escravos, uma das «condições prévias necessárias ao re-
Durante uns anos, a perspectiva de Hammond — que é, aliás, com- patível com o que temos visto a respeito da atitude portuguesa face à )
abolição do tráfico da escravatura — teve grande aceitação, mesmo en- d tre historiadores portugueses?. Mas, a partir de finais da década de )
1970, as teses do colonialismo não económico e do desinteresse dos -
liberais por África foram contestadas por historiadores como Miriam h
Halpern Pereira, Ângela Guimarães e, sobretudo, Valentim Alexandre. | Este autor detectou alguns projectos de desenvolvimento e exploração
forço da presença económica portuguesa em África»6.
Ou seja, para
económica das colónias africanas e viu neles uma manifestação revela-
Alexandre, as peças da política africana de Lisboa ajustavam-se num
a sua inter-
por Sá da Bandeira em 1836 a ir «ao encontro dos interesses coloniais das classes dominantes portuguesas»”. Assim, onde antes se vira alheamento e apatia, a recente historiografia do colonialismo português descobria as classes dominantes metropolitanas fortemente interessadas em explorar as potencialidades africanas, e descobria um Estado que procurava corresponder a esse interesse. Essas descobertas adquiriram grande aceitação em Portugal — e alguma também no estrangeiro8 -—, convertendo-se rapidamente
dora da existência, no Portugal oitocentista, de burguesias fortemente -
interessadas
nas possessões
africanas. Para fundamentar
todo coerente e bem
pretação, Alexandre deu grande destaque a um projecto para a forma- ção de uma companhia para a África oriental, surgido em 1853, e, num | segundo
texto, avançou
provas
ainda mais precoces
desse interesse,
nomeadamente dois planos da década de 1830: uma iniciativa da As- ) sociação Mercantil Lisbonense para criar uma Companhia Africana, e )
2 R. J. Hammond, «Some economic aspects of Portuguese Africa in the 19th and 20th Centuries», in L. Gann e P. Duignan (eds.), Colonialism in Africa, 1870-1960, 1, Cambridge University Press, Cambridge, 1975, p. 256; ver igualmente, do mesmo autor, Portugal and Africa, 1815-1910. A Study in Uneconomic Imperialism, Stanford University Press, Stanford (Ca.), 1966, e Alan K. Smith, «António Salazar and the reversal of Portuguese colonial policy», in The Journal of African History, XV, 4, 1974, pp. 653-667. 3 A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, vol. 2, Palas Eds., Lisboa, 1978 (1.º ed.: 1974), p. 128; Capela, Escravatura ..., cit. le E-d*)
)
sincronizado, com o abolicionismo preconizado
4 Alexandre, Origens ..., cit., pp. 90-91 e 112-128, e «O liberalismo ...», cit., pp. 330-332.
3 Id., ibid., p. 335.
ó Td,, ibid. 7 Id., Origens..., cit., p. 17.
8 Clarence-Smith, ob. cit. 359
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
'
numa nova ortodoxia historiográfica. Contudo, e talvez por ser uma reacção ao trabalho de Hammond, a perspectiva de Alexandre constitui )
uma avaliação demasiado optimista dos reais interesses das burguesias portuguesas por África, avaliação que, como veremos, não assenta .
numa base documental suficientemente sólida (sobretudo no que diz | respeito aos dois primeiros terços do século XIX, a época que aqui nos | interessa). Para além disso, e no plano das ideias, o autor terá valoriza-
.
do em exclusivo a corrente de opinião fortemente pró-africana, ignorando as que dela divergiam de vários modos, e, ao fazê-lo, transmitiu ,
pressão para a prossecução dos seus supostos intentos materiais e políticos. Nesse ponto, Alexandre apenas constata a existência de uma curiosa incompreensão: «se, dentre as elites políticas e económicas, qua-
se todas apoiam o projecto colonial, poucos são na época os que em Portugal compreendem que a implantação desse projecto passaria pela extinção do tráfico negreiro»!!. A existência de fragilidades ou lacunas na tese de Alexandre não implica a adopção automática das teorias do indiferentismo e do colonialismo não económico, tal como foram formuladas por Hammond
e
uma visão distorcida — porque ainda não calibrada — do posiciona- ) mento do país a respeito dos empreendimentos coloniais em África. — »
outros. É verdade que essas teorias não colidém com o que já se analisou a respeito da vulgar posição portuguesa face ao abolicionismo. No
Estas duas razões bastariam, por si sós, para contestar a nova orto- 5
entanto, elas pecam por esquematismo e um nível excessivo de gene-
doxia. Mas acresce que a sua forma de conceber a relação dos Portugueses com as colónias africanas tem óbvias implicações para o pro- |
ralização. Fixadas na quase total ausência de vultuosos empreendi-
blema do abolicionismo em Portugal. Efectivamente, a teoria inicial d
— e, porque ignoram, não avaliam — os planos não concretizados, as diversas correntes de opinião então manifestadas e os seus significados. Assim, perante duas teorias opostas e a vários títulos insatisfató-
Alexandre parece francamente incompatível com os elementos já de senterrados, nos capítulos anteriores, a respeito das atitudes portugue sas quanto à supressão do tráfico de escravos. É verdade que, muit recentemente, o autor redimensionou e reformulou a sua primeira in terpretação sobre a natureza do processo abolicionista português, dei
xando cair a ideia de estreita convergência entre o antiescravismo d Sá da Bandeira e os «interesses coloniais das classes dominantes». N nova formulação que propõe, e bem ao invés, esse antiescravismo re duz-se a um quase epifenómeno, que, «longe de dar voz a um senti mento generalizado», corresponderia «a uma posição extremament minoritária»º. Todavia, esta recente correcção da pontaria veio criax*fl um novo problema no âmbito da sua teoria geral, na medida em que ao mesmo tempo que circunscreve muito o significado sociológico d
mentos económicos dos Portugueses em África, ignoram inteiramente
rias (se bem que por razões diferentes), torna-se absolutamente necessário retomar a questão do interesse ou desinteresse do Portugal liberal
pelas colónias, para tentar demonstrar duas coisas: em primeiro lugar, que o envolvimento dos Portugueses no tema colonial e em África esteve muito longe de ser tão generalizado quanto Alexandre pretende,
mesmo entre as elites políticas; em segundo lugar, que esse é um dos motivos — se bem que não o único — que explica por que não se desenvolveu em Portugal uma oposição activa ao tráfico de escravos.
1. Imagens de África
abolicionismo em Portugal, Alexandre reafirma o forte interesse da
elites por África, insistindo na «grande importância» ou «relevo» que questão colonial terá assumido na vida política portuguesa de 1820 em diante!0. Ora, a ser assim, não se percebe — nem o.autor explica — por que razão elites políticas e económicas quase unanimemente interessadas em África mantiveram durante tanto tempo uma atítude geral d .« oposição, alheamento ou silêncio relativamente à supressão do tráfico de escravos, obstinando-se em não entender a necessidade dessa su-) 9 Valentim Alexandre, «Projecto colonial e abolicionismo», in Penélope, 14, 1994,' p.125. À 10 Td,, ibid., p. 123; e id., «Crimes and Misunderstandings. Réplica a João Pedro Marques», in Penélope, 15, 1995, p. 166. À PTAA
No período que cepções que a seu levaramà prática sugerido que essa fundamentalmente,
mediou entre 1820 e 1865, e com três ou quatro extempo se analisarão, os capitalistas portugueses não qualquer projecto de investimento em África. Foi inibição ou astenia investidora se ficaria a dever, a razões de algum modo independentes da vontade
dos agentes económicos, nomeadamente a obstáculos de natureza polí-
tica e financeira. Adiante haverá ocasião para contestar a validade deste tipo de justificações, e haverá também oportunidade para avaliar
!! Id., «Projecto colonial ...», cit., p. 166. 361
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas ?
Os sons do silêncio
a consistência e significado dos próprios projectos económicos surgi- . dos (e geralmente não concretizados) no período em causa. Para já, e'llf,
somente bastem ao consumo de Portugal mas que possam ser exportados em muito grandes quantidades para os outros mercados da Europa!º?.
por uma questão de método, importa partir um pouco mais de trás, do problema da vontade, ou, ainda antes, das imagens que os Portugueses |
de Oitocentos tinham da África, já que é em função da imagem que' têm da realidade que os homens procuram orientar a sua acção. E, no campo das imagens, o que a documentação revela não é a existência | de uma quase unanimidade pró-africana, de um «projecto colonial» em torno do qual se congregariam as «classes dominantes», comoiª' Alexandre sugere, mas uma pluralidade de perspectivas total ou par-o cialmente divergentes. Vejamos cada uma dessas perspectivas, antes de aferirmos a sua importância relativa enquanto geradoras de acção
estado das colónias, a comissão ultramarina das Cortes aludira à «pas-
mosa fertilidade» de Cabo Verde!5. Sabia-se, claro está, que o arquipélago sofria com a irregularidade e escassez das chuvas, mas, ainda assim, os entusiastas nunca cessaram de louvar a generosidade do terreno cabo-verdiano, as «abençoadas terras onde o mato sem cultura de urzela», como escreveria Lopes de Lima, em meados da década de
1840!6, E o que se dizia de Cabo Verde repetia-se acerca das outras colónias, fosse elegendo uma delas como pináculo da opulência tropi-
1.1. Novos Brasis
cal, fosse, como mais vulgarmente acontecia, considerando-as a todas
igualmente ricas. Sá da Bandeira, por exemplo, não tinha qualquer dúvida de que todas elas produziriam «perfeitamente» tudo quanto se ia
Durante todo o período aqui considerado, de 1820 em diante, exi tiu um grupo muito evidente de portugueses que acreditavam que as africanas
repetida por Sá e por muitos outros, antes como depois de 1836, assentade que os solo e subsolo africanos em 1822, nos seus relatórios sobre o
produz azeite [de purgueira] e os rochedos espontaneamente se cobrem
ou de inacção.
colónias
Esta projecção, inúmeras vezes nesta forma como noutras, e tanto va, acima de tudo, na convicção eram espantosamente ricos. Logo
constituíam
novos
mananciais
de
riqueza,
comprar
nov
ao Brasil!7. E, normalmente,
era dessa forma
generalizante
que a riqueza africana aparecia retractada na imprensa quimérica. O Nacional, por exemplo, pintava toda a África portuguesa como um con-
Brasis!?. Aqueles que, na esteira de Oliveira Martins, poderemos d signar por quiméricos ou entusiastas partilhavam a ilusão muito co-. mum de que uma política ilustrada corrigiria os males do mundo projectavam em África cenários de inaudita abundância!3. Na sua ve são quase oficial, tal como foi assumida por Sá da Bandeira em 1836, projecção quimérica podia enunciar-se assim:
junto de «terras quase virgens, cheias de minas de ouro e diferentes
14 Relatório de 19 de Fevereiro de 1836, apresentado às Cortes pelo então ministro da Marinha (Sá da Bandeira). Encontra-se uma versão ligeiramente modificada deste texto no
Para avaliarmos o que são os domínios portugueses ultramarinos n devemos considerar somente o que actualmente são, mas sim aquilo de que são susceptíveis [...]. Nas províncias do ultramar existem ricas minas 'À de ouro, cobre, ferro e pedras preciosas. Em África podemos cultivar tu quanto se cultiva na América; possuímos terras da maior fertilidade n ilhas de Cabo Verde, em Guiné, Angola e Moçambique, onde poderem: cultivar em grande o arroz, o anil, o algodão, o café, o cacau, numa pala: vra, todos os géneros chamados coloniais e todas as especiarias, que n
preâmbulo do decreto de abolição do tráfico de escravos de 10 de Dezembro de 1836.
15 Diário das Cortes, sessão de 28 de Junho de 1822, p. 620. 16 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a Statistica das Possessões Portuguezas na Africa Occidental e Oriental, na Asia Occidental, na China e na Oceania, parte 1, Imprensa Nacional, Lisboa, 1844, p. 13; ver também Neves, o0b. cit., pp. 72 e segs., e Sebastião Xavier Botelho, Memória Estatistica sobre os dominios Portuguezes na Africa Oriental, Lisboa, 1835, p. 30. E, na imprensa, A União, 26 de Junho de 1850, e A Revolução de Septembro, 17 de Junho de 1851 (carta de Barbosa Leão). Existem muitos outros documentos que atestam a visão quimérica de Cabo Verde, mas pareceu desnecessário referi-los exaustivamente. Esse princípio simplificador, aplicar-se-á também, e pelas
mesmas razões, às notas seguintes, onde procurarei não exorbitar nas referências docu-
13 Joaquim Pedro de Oliveira Martins, O Brasil e as Colónias Portuguesas, Guimarães Eds., Lisboa, 1953 (1.º ed.: 1880), p. 200.
mentais (ainda que as principais características das correntes de opinião analisadas ao longo deste capítulo estejam abundantemente ilustradas tanto na imprensa como na tribuna parlamentar). 17 DcCD, sessão de 13 de Fevereiro de 1839, p. 246, e Câmara dos Pares, sessão de 24 de Maio de 1848, in DG, 25 de Maio de 1848; para outros exemplos, ver DCD, sessões de 8 de Fevereiro de 1827 e de 8 de Março de 1828, pp. 275-276 e 732 (discursos de Morais Sarmento, Braklami e Lima Leitão).
io V o )
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!2 Menos frequentemente equiparavam-se as colónias africanas a outros pólos de pros peridade, novas Américas, novas Cubas, novas Califórnias, novas Austrálias, novas Javas,
consoante o que estivesse em voga a cada momento.
À
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
tórios já descreviam, pois que, às produções conhecidas costumavam adicionar as riquezas presumíveis, fantasiadas, aquelas que ainda se
metais preciosos»!8, A Revista alinhava pela mesma bitola quando pedia encarecidamente aos corpos mercantis que voltassem os olhos para
escondiam sob o véu da ignorância:
as enormes riquezas africanas:
«o acaso, e só o acaso, nos paten-
teou os tesouros já descobertos no continente da África; porém, ele
Esta nação [...], muito pode certamente alcançar no tráfico de um comércio de mercadorias, todas preciosas, que jazem abandonadas e sem preço em Bissau, Cacheu, Geba e Farim; nos ricos sertões de Angola e
guarda no seu seio muitos outros até agora desconhecidos, pelo pouco que se tem investigado»??. Por via desta contabilização do ainda igno-
Benguela; e nos ainda mais ricos de Inhambane e Quelimane, Rios de Sena, Manica e Zumbo, além do Tormentório. Ouro, marfim, tartaruga, abada, cera, algodão, arroz, café, tabaco, courama, anil e imensas drogas de
seriam «cem vezes» mais ricas do que o Brasil ou Cuba?.
rado, ia-se mesmo ao extremo de afirmar que as possessões de África Seria, então, no continente africano, como Sá da Bandeira afiança-
va, que residiria «a prosperidade geral de toda a monarquia»?. Na sua
alto valor, além de imensas outras produções [...], enriquecerão em poucos anos os especuladores!?,
visão, como
A promessa de pingues lucros aos particulares era um dos elementos constitutivos do discurso quimérico, havendo mesmo quem jurasse que, tendo dinheiro,
o empregaria na agricultura em África, porque ali
na de vários outros, as colónias poderiam manter «muitos
milhões de habitantes ricos e felizes»25. E, precisamente porque elas eram investidas de propriedades geradoras de enorme prosperidade, muitos políticos e publicistas quiméricos convertiam-nas em tábua de —
se poderia ganhar «mais de sete mil por cento»2?º, Mas, geralmente, a — antevisão quimérica da fortuna colonial tendia a ultrapassar o plano do
salvação para tirar Portugal da precária situação financeira em que se encontrava desde as invasões francesas e a independência do Brasil. Já na década de 1820, homens como Braklami ou Francisco António de
»
Campos tinham apontado o caminho: para remediar os males que afli-
motores do novo Brasil consideravam que Portugal estava especial- . mente bem posicionado para tirar proveito da fertilidade de base do
giam o país, era necessário volver os olhos para os «estabelecimentos
solo africano, não só porque as colónias portuguesas dariam produtos
deira esperança de um Portugal em queda, «o único recurso que temos para nos tirar das nossas tristes circunstâncias»27. Alguns iam mesmo mais longe e revestiam essa ideia salvífica de
ganho individual para abarcar, colectivamente, toda a nação. Os pro-
superiores aos da concorrência — melhor açúcar do que o brasileiro, | arroz mais saboroso que o asiático, algodão equivalente ao persa, etc. —, mas também porque eram domínios enormes. Daí que acreditassem que as possessões africanas permitiriam obter melhores resultados do ) que as estrangeiras, podendo abastecer não apenas Portugal mas toda a Europa. Como escrevia O Estandarte, «possuímos um território tão / extenso quase como o império do Brasil,
colorações imperiais, reforçando-a através da ligação à história do país. Já vimos no capítulo IV como Sá da Bandeira exponenciou essa ligação para fundamentar o seu decreto abolicionista de 1836. Mas vários outros políticos e jornalistas o tentaram igualmente, e no contexto mais
e mais pingue, mais virgem e
de cultivação mais barata»?!., Aliás, para os entusiastas, a portentosa África portuguesa era muito mais do que as memórias, notícias e rela18 O Nacional, 27 de Agosto de 1838. 19 A Revista, 15 de Abril de 1836. Entre muitos outros exemplos da projecção quimérica na imprensa, ver O Patriota, 11 de Abril de 1845, O Jornal do Povo, 7 de Setembro de 1848, e A Revolução de Septembro, 24 de Setembro de 1854.
20 DCD, sessão de 28 de Janeiro de 1840, p. 201 (discurso de Manuel António de Vasconcelos); ver igualmente sessão de 20 de Julho de 1850, p. 249 (discurso de Fontes Pereira de Melo), O Tempo, 13 de Agosto de 1839, e A Revolução de Septembro, 24.de Setembro de 1854; a Revista das Colónias (30 de Outubro de 1863) prometia o juro de que falavam «as sagradas escrituras: cento por um». 21 O Estandarte, 4 de Fevereiro de 1848; ver também O Panorama, 19 de Janeiro de 1839, p. 18, e DCD, sessões de 15 de Fevereiro e de 28 de Outubro de 1840, pp. 164 e 537 (discursos de Pereira e de Sá Nogueira, respectivamente). 2I64
africanos»26. Depois, todos os entusiastas fizeram das colónias a derra-
22 Botelho, Escravatura ..., cit., p. 17; Lima, ob. cit., p. 30; DCD, sessão de 19 de Julho de 1850, p. 232 (discurso de Agostinho Albano).
23 Marinho, Memória contra ..., cit., p. VII. 24 DCD, sessão de 13 de Fevereiro de 1839, p. 246. 25 Câmara dos Senadores, sessão de 26 de Abril de 1839, in DG, 2 de Maio de 1839; para antevisões semelhantes, ver DCD, sessão de 11 de Janeiro de 1841, p. 16 (discurso de Agostinho Albano), e sessão de 4 de Julho de 1848, p. 6 (discurso de Fontes Pereira de Melo). 26 DCD,
sessão de
11 de Dezembro
de 1826, p. 155 (discurso de Braklami), e sessão
de 8 de Fevereiro de 1827, p. 278 (discurso de Francisco António de Campos). 27 Ibid., sessão de 29 de Julho de 1940, p. 438 (discurso de Joaquim António de Magalhães).
Para outros exemplos:
sessão de
14 de Abril de
1849, p.
139 (discurso de J. [.
Guedes); sessão de 23 de Maio de 1859, p. 343 (discurso de Rebelo Cabral); e sessões de 29 de Fevereiro e de 6 de Março de 1860, pp. 248 e 44 (discursos de Arrobas e de Abranches, respectivamente).
365
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
amplo da imagética quimérica. Lima Leitão, por exemplo, fazia do novo Brasil um passaporte para regressar ao «antigo esplendor» dos «tempos heróicos». Sem as colónias, Portugal ficaria das últimas na
fortemente interessados em compensar esse abalo, investindo em Áfri-
ca. Depois, seria só canalizar os braços laboriosos para os novos palcos -
tornar-se-ia, na expressão de Joaquim António de Magalhães, «mais poderoso do que nunca foi»?8. A crença na fertilidade africana não era de modo
algum apanágio
exclusivo dos quiméricos. Pelo contrário, tratava-se de uma convicção comum na época, partilhada com diferentes nuances por uma gama
sentenciava José Liberato, logo em
1822, para ser rico
plantadas populações e meios, a construção do novo Brasil seria fácil e rápida, porque nos terrenos africanos quase tudo produzia espontanea-
muito vasta de pessoas. Mas, no contexto da ideologia do novo Brasil,
essa crença adquirira a força das verdades elementares e, sobretudo, enganchava-se com outras convicções, num entrançado muito peculiar. Uma dessas convicções, de matriz competitiva ou retaliadora — como vimos no capítulo III, a respeito dos discursos de Solano Constâncio, José Liberato e outros —, era a de que, tal como nos pratos de uma balança, a subida das colónias portuguesas equivaleria à decadência do Brasil. Como se presumia que as terras de África eram muito mais férteis do que os já cansados solos americanos, e como se sabia que a mão-de-obra escrava era ali dez vezes mais barata do que no Brasil, conclufía-se que as renovadas colónias portuguesas rivalizariam a breve trecho com a antiga colónia. Em meados de 1840, constatando um recente incremento no comércio português com Angola, Lopes de Lima já via quebrar-se a «cadeia de interesses recíprocos» que uniam Affricanos e Brasileiros e, em conformidade, prognosticava a chegada de um tempo «em que o continente de Angola [...], de escravo que era do continente do Brasil, se mostrará seu rival nas exportações»?. Outra das convicções integrantes do imaginário quimérico era a de que a metamorfose africana se faria com capitais e colonos europeus. A emancipação do Brasil provocara um abalo indesmentível no comércio externo português e presumia-se que não faltariam negociantes
tropicais. Como
e feliz Portugal «de nada mais precisa do que despir-se desta habitual, velha e inveterada preguiça» e, em meados do século, não obstante os anos e anos de desaires acumulados, continuava a acreditar-se que o transplante de homens de Portugal para África seria volumoso desde que o governo disponibilizasse transportes gratuitos?º, Uma vez trans-
escala das nações civilizadas; com elas, seria opulento e respeitado,
mente, em «copiosa abundância» e «sem trabalho»3!. É verdade que alguns dos entusiastas mais conhecedores das colónias recomendavam
»
«a paciência indispensável para esperar os resultados em tempo próprio», porque sem paciência nada se conseguiria??. O grosso, porém, era muito
. | | ) . | . ) |
| |
?8 DCD, sessões de 21 de Fevereiro e de 8 de Março de 1828, pp. 586 e 732, respecti-.. vamente (discursos de Lima Leitão), e sessão de 9 de Fevereiro de 1839, pp. 240-241 (para | o discurso de J. A. de Magalhães). Ver igualmente Câmara dos Pares, sessão de 4 de ) Agosto de 1853, in DG, 16 de Agosto de 1853 (discurso de Lazarim), e Câmara dos De- )
menos
cauteloso.
Em
1834,
na
sua Memória,
o angolano
Joaquim António Menezes prometia o levantamento de Angola «em muito poucos anos»; pela mesma época, Sá da Bandeira falava «numa curta série» de «10 ou 12 anos», para tirar «grandes resultados» das províncias africanas; e, mais ousadamente,
Marinho
imaginava que «a
fortuna do Brasil e da Havana» podia transferir-se «imediatamente» para mãos portuguesas?, As concepções dos quiméricos portugueses acerca da rapidez e facilidade do desenvolvimento africano eram manifestamente coincidentes com a visão que os abolicionistas britânicos tinham sobre as mesmas matérias. No entanto, e por norma, os entusiastas portugueses não eram abolicionistas, ficando-se, geralmente, pelo toleracionismo 30 Cf. Campeão Portuguez em Lisboa, 11 de Maio de 1822, p. 92; Câmara dos Pares, sessão de 26 de Abril de 1850, in DG, 30 de Abril de 1850 (discurso de Sá da Bandeira); e A Revolução de Septembro, 6 de Dezembro de 1854. 3! DCD, sessão de 10 de Fevereiro de 1827, pp. 294 e 296 (discurso do bispo de Cabo Verde); para projecções idênticas, ver sessão de 9 de Fevereiro de 1839, p. 241 (discurso de J. A. de Magalhães); O Nacional, 27 de Agosto de 1838; O Estandarte, 3 de Agosto de 1849 (referindo-se apenas ao cultivo do algodão); A União, 26 de Junho de 1850; A Revolução de Septembro, 17 de Junho de 1851 (carta de Barbosa Leão) e 14 de Setembro de
1854.
putados, sessão de 14 de Março de 1865, in DL, 16 de Março de 1865 (discurso de Francisco Costa, que via nas colónias não apenas a fonte de toda a fortuna futura, mas também |
32 DCD, sessão de 4 de Março de 1828, p. 675 (discurso de Chapuzet). 33 Menezes, 0b. cit., p. 34; DCD, sessão de 13 de Fevereiro de 1839, p. 247 (discurso
«a única razão de ser da nossa nacionalidade»). 2?º Lima, ob. cit., pp. 66-67. Encontram-se prognósticos semelhantes in Joaquim Antó- . nio de Carvalho Menezes, Memoria Geografica e Politica das Possessões Portuguezas nºAffrica Occidental, que diz respeito aos Reinos de Angola, Benguela e suas dependen- *
de Sá da Bandeira; Sá era extremamente preserverante nas suas convicções e em 1858, apesar do acumular de contratempos, ainda prometia que «em poucos anos» se poderiam adquirir grandes riquezas na agricultura africana; ver ibid., sessão de 26 de Janeiro de 1858, p. 212); Marinho, Memória contra ..., cit., p. VII; entre as muitas previsões equiparáveis, ver Botelho, Escravatura ..., cit., p. 40, e A Revolução de Septembro, 22 de Julho de 1852 (artigo comunicado).
cias ..., Lisboa, 1834, p. 33, Correio de Lisboa, 24 de Janeiro de 1838, O Estandarte, 26 de / Agosto de 1848, e A Nação, 2 de Outubro de 1849.
366
367
Os sons do silêncio
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
gradado ou ficado estacionárias»?8. Por vezes, o raciocínio tornava-se mais generalista e tendia a considerar que a primeira das causas da de-
índole política e ideológica já analisadas nos capítulos anteriores, mas também porque as suas concepções sobre a rapidez e facilidade da
cadência de África estaria não tanto na corrupção dos homens mas na
metamorfose colonial africana se estribavam em ideias muito pecu- | liarmente portuguesas,
que tendiam
a desvalorizar a importância
malignidade dos regimes políticos, fossem eles o velho absolutismo
da )
que se derrubara em 1820 ou, numa versão actualizada e mais (basicamente setembrista), o recente despotismo cabralista da de 1840%º. Curiosamente, e excepção feita a entusiastas como Sarmento ou Sá da Bandeira, o tráfico foi visto durante muito
supressão do tráfico. A primeira dessas ideias era a de que a África . portuguesa só não se desenvolvera ainda porque os governos anteriores
a haviam preterido a favor da Ásia, depois, e mais gritantemente, a fa- | vor do Brasil. Já em 1822 José Liberato considerava que ao Brasil «se sacrificaram sempre todas as outras partes da monarquia»?*. Em mea- dos do século, essa explicação repetia-se com grande insistência:
restrita década Morais tempo
apenas como uma causa secundária do atraso de África, uma causa não inteiramente impeditiva do seu progresso. O comércio negreiro era certamente negativo, porque levava os habitantes das colónias à dis-
solução moral e ao esquecimento de outras formas de obtenção da riqueza. Mas, como Menezes bem sublinhava a respeito de Angola, essas não eram «as principais causas do atrasamento e rectrogradação em que se acha aquela importante possessão»*º, Este conjunto de concepções ajuda a explicar por que razão uma grande parte dos entusiastas coloniais não se sentia minimamente obri-
Quando se descobriram as nossas províncias de África logo se começa- | ram ali alguns estabelecimentos agrícolas que bem depressa prosperaram, | mas, com a descoberta do Brasil, retirou-se-lhes a protecção e os cuidados.
que até ali se lhes tinham dado, entregando-os todos para o país novamente descoberto. As províncias de África ficaram inteiramente abandonadas, arrasando-se até todos os estabelecimentos agrícolas, para assim se
fazerem prosperar os do Brasil**.
gada a pugnar pela abolição do odioso comércio. Só após a crise do
bill de Palmerston a ideia da imprescindibilidade da supressão terá começado a afirmar-se progressivamente. Mas, mesmo assim, em meados do século ainda apareciam entusiastas a desvalorizar — ou até a censurar, por prejudiciais às colónias — os esforços feitos pelos suces- : sivos governos para suprimir o tráfico de escravost*!. E, porque, para os
Desse modo, e nas palavras de Sá da Bandeira, a África acabara por ser vítima de uma «mal prevista e impolítica predilecção» dos gover- |
nos absolutistas pelo Brasil*ó. Outra importante razão do atraso das | colónias africanas, na perspectiva quimérica, residia na venalidade ej
incompetência das autoridades coloniais. Daí «deriva toda a desgraça», . proclamava Menezes?'. Quase todos os entusiastas partilhavam esse ponto de vista e mesmo Sá da Bandeira, que considerava a abolição do | tráfico verdadeiramente essencial para o progresso das colónias, insis- ) tia constantemente na tecla da venalidade: «as nações europeias que têm colónias aplicam o maior cuidado na escolha dos governadores ;," delas, que têm por isso prosperado, enquanto as portuguesas têm retro- |
quiméricos,
36 Câmara dos Senadores, sessão de 10 de Julho de 1840, in DG, 21 de Julho de 1840. 37 Menezes, ob. cit., p. 13. 368
africano devia atribuir-se antes do mais
a um
38 Câmara dos Senadores, sessão de 26 de Abril de 1839, in DG, 2 de Maio de 1839; em 1858, Sá ainda justificava o atraso de Moçambique (e os subsídios que o Estado lhe concedia) em termos de sucessivos maus governos e administrações (DCD, sessão de 28 de Julho de 1858, p. 334); também Marinho (Memória contra ..., cit., pp. 93-94) atribuía à corrupção a principal responsabilidade pela miséria das colónias portuguesas; para mais opiniões coincidentes, ver DG, 24 de Janeiro de 1848, O Patriota, 27 de Janeiro de 1848 e 16 de Fevereiro de 1850, e A Revolução de Septembro, 2 de Janeiro de 1851. 3º DCD, sessão de 8 de Março de 1828, p. 732 (discurso de Lima Leitão); ver igualmente Diário das Cortes, sessão de 15 de Janeiro de 1822, p. 3726, e Menezes, ob. cit., p. 11; para a atribuição da ruína colonial à política dos Cabrais, ver, por exemplo, O Patriota, | de Fevereiro de 1850.
34 Campeão Portuguez em Lisboa, 11 de Maio de 1822, p. 91; para outros exemplos da | mesma década, ver: Diário das Cortes, sessão de 28 de Junho de 1822, p. 620 (relatório da comissão do ultramar sobre Cabo Verde); DCD, sessão de 4 de Março de 1828, p. 675 (discurso de Chapuzet); e Neves, 0b. cit., p. 230. 35 DCD, sessão de 28 de Janeiro de 1840, p. 199 (discurso de Manuel António de Vasconcelos), e também ibid., sessão de 4 de Julho de 1848, p. 11 (discurso de Fontes Pereira de Melo), Memorial Ultramarino e Marítimo, 1836, pp. 22-23, Paquete do Ultramar, 5 de Julho de 1839, e A Restauração, 9 de Agosto de 1842.
o atraso
conjunto de velhas e erradas opções políticas, haveria tão-só que voltar ao princípio para endireitar os desvios do passado e atar de novo, fa-
/)
À »
40 Menezes, ob. cit., p. 10 (itálico meu). 41 Ver, como exemplos, A Revolução de Septembro, 31 de Dezembro de 1845, DCD, sessões de 20 de Janeiro e de 16 de Maio de 1849, pp. 152 e 279 (discursos de Lopes de Lima), e sessão de 18 de Junho de 1860, pp. 239 e 241-242 (discursos de Abranches e de Pinto de Magalhães, respectivamente). 260
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas ?
Os sons do silêncio
cilmente, «o fio do comércio africano», quebrado com a colonização '.
Ú
do Brasil??. Alguns dos remédios que permitiriam a modificação do estado de coisas seriam, aliás, e ao que se julgava, relativamente simples. Uma vez que a questão do regime político já estava resolvida de antemão com a vitória liberal, o problema da venalidade solucionar-se-ia com o recurso a gente incorruptível. Logo em
_nha metade do que se votava para o da Guerra: «a proporção devia ser
) -
1822, a comissão ultramarina
das Cortes considerara que «o primeiro e mais essencial meio de me- Á lhoramento, é mandar [...] governadores capazes para estas províncias», e essa receita foi constantemente repetida ao longo dos anos: «de que carecem aqueles países, tão abundantes em ricas produções? Primeiro que tudo, de boas autoridades» — perguntava e respondia A Re- .
vista?3. Um outro tipo de terapêutica, mais global, exigia um número considerável de homens e vultuosos capitais. Já em 1826 Braklami pretendia que a população ociosa fosse «transplantada voluntariamente» para Áffrica, e, nos quarenta anos seguintes, quase todos os quiméricos pediram a colonização em massa, a promoção da emigração vo luntária — ou mesmo
'
| “
involuntária — para as colónias portuguesas44.;(
Quanto aos capitais, alguns preconizavam que fosse o próprio governo | a investir nos cultivos tropicais para, com o seu exemplo, animar o | particulares*5. A iniciativa estatal deveria, aliás, dinamizar tudo quant: dissesse respeito ao ultramar e, em especial,
a marinha de guerra. Os |
quiméricos queriam navios, consideravam que OS vapores eram tão necessários ao desenvolvimento do país como os caminhos de ferro e 42 Memorial Ultramarino e Maritimo, Março de 1836, p. 23; perspectivas idênticas
sobre a simplicidade da correcção de rumo in À Restauração, 9 de Agosto de comunicado), e Francisco Maria Bordalo, Ensaios sobre a Estatistica das Portuguezas na Africa Occidental e Oriental, na Ásia Occidental, na China e Imprensa Nacional, Lisboa, 1859, p. 69. 43 A Revista, 14 de Abril de 1836; para a citação anterior, ver: Diário das
1842 (artigo | Possessões » na Oceania, . % Cortes, ses-
são de 28 de Junho de 1822, p. 621 (relatório da comissão do ultramar acerca de Cabo
defendiam a necessidade de canalizar grandes fundos para a construção naval. Arrobas, por exemplo, reivindicava para o ministério da Mari-
Verde; itálico meu); O Nacional, 27 de Agosto de 1838; Paquete do Ultramar, 26 de Julho | de 1839; O Patriota, 27 de Março de 1848; e DCD, sessão de 24 de Março de 1852, p. 309 | ' (discurso de Jeremias Mascarenhas). | de sessão Braklami); de (discurso 156 p. 44 DCD, sessão de 11 de Dezembro de 1826, | Janeide 9 de sessões Magalhães); de Pinto de (discurso 84-85 pp. 1856, de 8 de Março ro e de 2 de Agosto de 1858, pp. 59 e 8, respectivamente (discursos de Soares Fran- | co); A Revista, 14 de Abril de 1836. A partir de meados do século, e por razões que adiante se referirão, era vulgar que os quiméricos mais moderados pedissem apenas a colonização de «feitores» em lugar de uma colonização em massa (O Estandarte, 4 de ) Í Fevereiro de 1848). 45 Lima, ob. cit., p. 49; Barbosa Leão pretendia que o Estado criasse quintas-modelo | nos vales do Cuanza e do Zambeze (cf. A Revolução de Septembro, 1 de Julho de 1851).
inversa mas já com esta me contento por agora»*6. Outros, defendiam a criação de impostos especiais para o desenvolvimento naval: E Rreciso fazermos um esforço para termos marinha (apoiados). Temo-los feito para estradas, e à força de [se] falar na imprensa e na tribuna em estradas _[...], conseguiu-se introduzir esta necessidade na opinião pública L...]. Assim como se fez então, faça-se agora: à força de gritar, é necessário que nos convençamos todos de que a marinha é o nervo da nossa prosperidade futura [...]. Eu voto um imposto, seja de que natureza for, para ser
aplicado ao desenvolvimento da marinha*?.
Ou seja, os quiméricos queriam um Estado que não olhasse a meios para desenvolver o ultramar, um parlamento que, «com os olhos fechados, com o coração alegre», votasse todos os anos uma «larga so-
ma» para as colónias*8. Caso os investimentos do Estado não bastas-
sem, deveria favorecer-se a formação de sociedades particulares. Quase todos os políticos quiméricos defendiam, ou toleravam, a for-
mação de companhias privilegiadas, vistas como o «meio facílimo» para contornar as carências do Erário e desenvolver o ultramar*º. Também a imprensa entusiasta de Lisboa era praticamente unânime quanto: à formação de sociedades favorecidas. A Revista, por exemplo, recoqhema que uma companhia colonial privilegiada extrairia avultadas riquezas das regalias concedidas, «mas, quanto não cresceria, a par destas, o comércio e a indústria nacional? Quantos braços se não em-
pregariam? Que novas riquezas não veria o Tejo? [...] A imaginação se
%6 DCD, sessão de 28 de Maio de 1853, p. 280. %4 Ibid., sessão de 2 de Junho mente .sessão de 8 de Fevereiro de de Maio de 1848, p. 3 (discurso de 28 de Março de 1863, in DL, 21 de
de 1855, p. 24 (discurso de Alves Martins); ver igual1836, p. 375 (discursB de Leonel Tavares); sessão de 15 Fontes Pereira de Melo), e Câmara dos Pares, sessão de Abril de 1863 (discurso de Soares Franco).
48 Câmara dos Deputados, sessões de 23 de Fevereiro e de 6 de Agosto de 1861, in DL,
2_6 de Fevereiro e 9 de Agosto de 1861 (discursos de Pinto de Magalhães); ver também sessoes4ge 5 e 6 de Agosto de 1861, in ibid., 9 de Agosto de 1861 (discursos de Afonseca). i DCD, sessões de 17 e 18 de Abril de 1855, pp. 139 e 146, respectivamente (discurso de Silvestre Ribeiro). Entre muitas outras apologias das companhias, ver Diário das Cortes, sessões de 27 de Abril e de 8 de Junho de 1822, pp. 980 e 385-388, respectivamente (discursos de Soares Franco, Vaz Velho e Morais Sarmento); DCD, sessão de 9 de Fevereiro de 1839, p. 241 (discurso de J. A. de Magalhães), e sessão de 18 de Julho d p. 189 (discurso de Soares Franco). AA
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Seja como for, entre 1836 e 1840 a desaparição do Memorial foi compensada por uma imprensa política que dedicou apreciável atenção à
perde no infinito ao contemplar o movimento rápido de tão infalíveis progressos»%, Um remédio mais indirecto — mas nem por isso menos importante —
ideia colonizadora em África, publicando memórias,
alvitrando, recla-
mando, sobre a forma de melhor aproveitar as riquezas que brotavam dos trópicos. Na década de 1840 houve uma nítida flexão nesse fervor
para a correcção dos erros antigos passava pela promoção pública das colónias. Por norma, os entusiastas empenhavam-se vivamente em que a nação acordasse do seu «longo sono» de trezentos anos*!. Em conformidade, a divulgação de uma imagem positiva da África constituía um objectivo expressamente assumido desde 1820 e tenazmente perseguido nos anos seguintes. Em 1836, considerando que uma das causas da decadência em que se encontravam as colónias era o pouco conhe-
promocional e as projecções quiméricas pró-africanas tornaram-se me-
nos frequentes nos principais jornais de Lisboa (e raras nos do Porto); mesmo
os Annaes Maritimos e Coloniais acabaram por dedicar mais
espaço e atenção à Ásia do que à África%6. Nesse período de relativa recessão promocional, o mais consistente incentivador da ideia coloni-
cimento que delas havia, Sá da Bandeira (então ministro da Marinha)
zadora foi o Boletim Official do Governo-Geral da Provincia de An-
mandou publicar o Memorial Ultramarino e Marítimo”?. Na parte oficial do seu primeiro número, o jornal transcrevia, a par de legislação e correspondência ultramarinas, o relatório então apresentado por Sá às Cortes no qual se explicitava o essencial do seu projecto colonizadorS3; na parte não oficial, repetia-se a mensagem através da publicação de uma memória que pintava as colónias como «um manancial de riquezas em bruto» capazes de ressarcir Portugal de grande parte do que perdera com a independência do Brasil, «manancial» que, assim o es-
gola, criado em 1845. Mas tratava-se de uma promoção mais realista do que quimérica, dirigida não tanto à pintura de eldorados tropicais mas à melhoria da agricultura local, tal qual era levada a cabo por «pobres pretas e pretos» e pelos «capitalistas e cultivadores da província de Angola»57. O jornal procurava incentivar a modernização das técnicas agrárias, e viria a prosseguir esse incentivo na década de 1850 através da publicação de memórias sobre a plantação e cultivo da man-
) »
)
perava o autor do texto, atrairia gentes do Reino e de fora «na esperan- —
ça de futuros e sólidos interesses»**. O Memorial teve apenas esse primeiro número, não sobrevivendo
|
queda do ministério patriota em Abril de 18365*. Só em 1840 surgiu uma publicação equivalente, Annaes Maritimos e Coloniaes, que procurava retomar a via aberta pelo Memorial. O desaparecimento dos Annaes em
Ainda assim, e apesar de ter havido uma redução muito sensível na frequência e até na veemência do discurso do novo Brasil, a década de 1840 não foi — longe disso — vazia de projecções optimistas sobre África. Foi mesmo nesse período que se publicou uma espécie de súmula do pensamento entusiasta, os Ensaios sobre a statistica das Pos-
sessões Portuguezas, uma obra encomendada pelo governo ao deputado e oficial da Armada Lopes de Lima, na qual se fazia uma prospecção exaustiva das produções dos reinos vegetal, animal e mineral das colónias da África Ocidental. O autor concluía essa prospecção de uma forma quase panfletária:
1846 viria depois a ser suprido, já nas décadas de 1850
1860, pelos Boletim e Annaes do Conselho Ultramarino e publicaçõe específicas como Revista das Colónias, Marinha e Ultramar e outras.
Muitas outras riquezas naturais encerram por ventura estes bosques e matas cerradas, essas deleitosas várzeas, esses rios e lagoas, essas ásperas
50 À Revista, 14 e 15 de Abril de 1836; ver igualmente O Athleta, 26 de Julho de 1838 Miscellanea Politica, 18 de Agosto de 1838, O Patriota, 2 de Outubro de 1844, tandarte, 4 de Fevereiro de 1848 e 3 de Agosto de 1849.
dioca, do tabaco, do anil e do cafésº.
e O Es
31 A Revista, 15 de Abril de 1836; DCD, sessão de 18 de Janeiro de 1836, p. 117 (dis curso de Leonel Tavares); Bordalo, Ensaio ..., cit., p. 69. : 52 Memorial Ultramarino e Marítimo, pp. 3-4 (portaria de 5 de Fevereiro de 1836). |
O redactor do Memorial era o conselheiro António Maria Campêlo, o segundo na hierar- quia do ministério da Marinha.
53 Ibid., pp. 11-15. 34 Ibid., pp. 21-23.
Í :
55 Segundo O Nacional (26 de Abril de 1836), a publicação terá sido suprimida pel novo responsável pela pasta da Marinha, Manuel Gonçalves de Miranda, um ministro me- nos interessado nas colónias. éd n
356 Em 1847, e justamente em consequência dessa flexão entusiasta, A Nação (16 de Setembro de 1847) queixava-se de que as colónias africanas não valiam «metade da atenção que vale a eleição de um deputado».
37” BOGGPA, 31 de Julho de 1847, p. 2. 58 Ibid., 26 de Abril de 1851, pp. 1 e segs.; 22 de Maio de 1852, pp. 3-4; 13 de Janeiro e 31 de Março de 1855, pp. 5-7 (em ambos os casos); 15 e 31 de Março de 1856 (pp. 6-7 e 2-4, respectivamente); e 15 e 22 de Janeiro e 19 de Novembro de 1859, pp. 6-9, 8-9 e 2-3, respectivamente. O mesmo tipo de propaganda foi feito posteriormente, de Outubro de 1856 em diante, pelo Boletim do Governo da Provincia de Moçambique. T
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serranias, do interior da Baixa Guiné [...]. Aquelas, porém, que enumeradas são já de si bastantes para chamar a atenção do povo guês — que nem todo delas terá notícia — e suscitar a bem entendida de homens laboriosos que, vivendo indigentes na pátria [...], podem se na África, dentro em poucos anos, ricos e respeitados, como a tem acontecido [...].
deixo portucobiça ir vertantos
: )
E não será melhor tentar este caminho para chegar à :
opulência do que consumir meses e anos nas escadas das secretarias a so- ' licitar empregos que, ainda mesmo obtidos, os não poderão tirar nunca de
-
uma penosa mediocridade [...]? A emigração para Angola, onde o comér- cio português está de ano para ano assumindo agora um espantoso incremento, oferece outras vantagens, outras garantias, outra independência so- cial, que não a mofina emigração para o Brasil, onde o português escravo mal pode invocar a protecção de um governo estranho contra os duros 7 tratamentos de seus bárbaros senhoresº.
O trabalho de Lopes de Lima seria completado cerca de quinze ano: mais tarde por um outro oficial da Armada, Francisco Bordalo, num:
época em que a promoção do novo Brasil reganhara evidência na imprensa nacional, havendo mesmo jornais que preconizavam (e prome—í' tiam) a publicação de pelo menos um artigo por semana, para convencer os descrentes das vantagens das possessões de África6o, ' Ainda que com inflexões, o discurso optimista acerca das potencia lidades de desenvolvimento colonial está largamente representado n ;
Portugal de Oitocentos. Contudo, há que não ficar hipnotizado pelo canto da promoção africana, porque, a par dele, continuava a fazer-s
na imprensa a apologia das potencialidades do Brasil — a «terra de es peranças»6ó!— e, claro está, da própria metrópole. Convirá não esquec também
que a promoção
da imagem
de uma
África potencialmen
rica e facilmente explorável se confrontava com um conjunto de vis menos entusiásticas — por vezes, francamente negativas — do conti nente africano.
1.2. O sepulcro do europeu Os sonhos de um continente negro próspero não tinham nascido em 1820. Vinham muito de trás, aflorando na correspondência de governadores coloniais que, de forma algo irrealista, procuravam reproduzir outras Américas na costa de África. As experiências com a agricultura
tropical eram antigas e tinham esbarrado uma e outra vez em obstáculos aparentemente inultrapassáveis. Sem recuarmos excessiva e desnecessariamente, lembremos que já no início do século XIX o governador de Angola, D. Miguel António de Melo, tentara desenvolver o cultivo de plantas nobres, bem como retomar o projecto de extracção e fundição do ferro iniciado por Sousa Coutinho em 1767%?. Mas os seus esforços foram baldados, tal como haviam sido os dos seus antecessores (e viriam a ser os de muitos que lhe sucederam). Lembremos também que, pela mesma época, a tentativa de povoamento da ilha de S. Vicente redundara num completo fracasso, apesar do apoio de um poder central que decretara isenções e privilégios «suficientes para fazer povoar 40 ilhas, se disso fossem susceptíveis, quanto mais uma», como
dizia Manuel António Martins. O fracasso das sucessivas tentativas sedimentava,
Se o soubermos agricultar e granjear, com pouca semente nos responderá com maior novidade que os reguengos do Reino e lezírias do campo de Santarém. E mais, é propriedade tão pacífica, mansa e obediente, que sem termos uma mão em o morrão aceso sobre a escorva da bombarda, e a lança na outra, nos dará ouro, marfim,
35º Lima, ob. cit., pp. 30-31 (itálicos originais). 60 A Revolução de Septembro, 14 de Setembro de 1854. Assinale-se que essa militâns cia jornalística estava muito longe de ser consistente e que em 1857 já eram raríssimas as abordagens da temática colonial nas páginas de A Revolução de Septembro; pela mesma altura, e confirmando a inconsistência, A Pátria (10 de Janeiro de 1856) reconhecia que a imprensa quase nunca falava no ultramar. b
61 Q Panorama, 20 de Dezembro de 1837, p. 279; ver também A Revolução de Sepr tembro, 2 de Dezembro de 1854. h VTA
naturalmente, o
pessimismo quanto à viabilidade económica dos territórios africanos. Mas mais castrante ainda era a descrença quanto às possibilidades do seu povoamento, uma descrença que acompanhava a presença portuguesa em África desde o início dos descobrimentos. Na primeira das suas décadas Da Ásia, já João de Barros tematizava assim as promessas e desvantagens dos territórios que designava genericamente por «Guiné» ou «Etiópia»:
cera, courama,
açúcar, pimenta,
malagueta [...]. Mas, parece que por nossos pecados, ou por algum juízo de Deus oculto a nós, nas entradas desta grande Etiópia que nós navegamos, pôs um Anjo percuciente com uma espada de fogo de mortais febres, que nos impede não poder penetrar ao interior das fontes deste horto de 6º Lucia M. L. Tomás, «A Administração de Luanda e do Seu Hinterland entre 1797 e | 802. Elementos de Reflexão Crítica e Propostas de Reforma no Discurso de D. Miguel António de Melo» (não publicado). 63 Manuel António Martins, Memória demonstrativa sobre a necessidade de novas
providências para a Provincia de Cabo Verde, Lisboa, 1822, p. 5. AYTE
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bacteriologia, e depois de ter sido reconstruído o mecanismo da transmissão do protozoário ao homem, que o quinino e outros alcalóides
que procedem estes rios de ouro que por tantas partes da nossa conquista
saem ao mar$º,
afins puderam
Com algumas nuances, a visão do grande historiador de Quinhentos acerca das «febres» permanecia válida na primeira metade do
' f
século XIX. Ainda que a varíola, o tétano e outras doenças provocas-
sem altas mortalidades em África, as grandes debulhadoras de vidas europeias eram as febres perniciosas, remitentes ou intermitentes, isto —
é, a febre amarela e a malária. A primeira, inexistente na démica tanto na América do Sul como na África tropical, ção viral propagada pelos mosquitos (da floresta e Aedes rante mais de 200 anos, desde a primeira epidemia ocorrida na península do Iucatão, em
Ásia mas en- | é uma infec- ' aegypti). Du-” identificável
1648, a febre amarela foi. um
das grandes pragas do mundo. Na sua forma mais aguda, carectenzad por febre descontínua, delírio, icterícia e extensas hemorragias subcu tâneas e gastrintestinais — o temido vómito negro —, mata geralment no prazo de 5 a 8 dias. Contudo, e como acontece usualmente com a | doenças a vírus, os que sobrevivem a um primeiro ataque adquirem
imunidade duradoura. Mais complicada é a malária, uma doença hipe rendémica em África, caracterizada por surtos de febre elevada, profu sa transpiração e intensos arrepios — as sezões —, e cujos causadore
são quatro tipos de plasmódios (protozoários) transmitidos ao home. pela fêmea do mosquito Anopheles. Os vectores dos plasmódios mai comuns — P. vivax e P. falciparum — encontram-se em toda a área pa | lúdica, ainda que sejam raros em altitude superiores a 1500 metros. l?o norma, o primeiro ataque da doença dura algumas semanas e é seguid: por recidivas até que a infecção termine espontaneamente num praz variável, consoante a estirpe infecciosa envolvida. Contudo, e mesm actualmente — recorde-se que a malária continua a ser a mais mortífer
doença tropical—, muitos dos casos não tratados, sobretudo os causa-dos pelo P. falczparum tendem a cursar com complicações cerebrais ef gastrointestinais, levando frequentemente à morte logo ao primeiro embate. A vitória sobre a febre amarela só começou a desenhar-se noí último terço de Oitocentos quando ficou estabelecida a natureza conta-/ giosa da doença e o papel desempenhado pelo mosquito nesse contágio; essas descobertas, e, já no século xXx, o desenvolvimento de vac
nas adequadas, permitiram um melhor controle das epidemias. No quê diz respeito à malária, foi só no final do século XIX, com os avanços da 64 Da Ásia, década 1, livro 1, cap. 12.
ser correctamente
utilizados, quer como
profilácticos
quer como curativos, Os progressos da malariologia e da virulogia alteraram substancialmente o horizonte de vida nos trópicos, nomeadamente em África. Mas, nos primeiros dois terços do século XIX, a situação era bem dife-
rente. Com uma medicina quase desarmada para fazer face às doenças tropicais, a residência na costa africana era uma lotaria à qual muitos
não escapavam. O «clima», isto é, a insalubridade do ambiente, parecia
um obstáculo inultrapassável para a fixação europeia. Figaniêre, que esteve na Serra Leoa em
1820, como membro da comissão mista an-
glo-portuguesa, deixou uma descrição do local e das suas gentes numa série de doze cartas. Nelas, representava-se a si próprio constantemente
atacado por «febres» e à beira da morte, dando graças ao Omnipotente por ter sobrevivido mais um dia. Para o comissário português, a Serra Leoa era o «sepulero de europeu», um inferno sem hipótese de desen-
volvimento e onde nem os negros podiam viver$6, O quadro traçado a respeito da Serra Leoa aplicava-se com matizes às outras Áfricas, entre as quais as portuguesas. No final do século XvVIII, Angola mantinha a imagem de região com grande incidência de doenças mortais — sobretudo nos meses húmidos, nos quais, como dizia o provérbio local, «há muito mantimento mas não há quem
o coma»67 —, e essa imagem persistiria pelo século XIX adentro, constantemente alimentada pelas queixas dos que visitavam a colónia ou lá residiam. Em 1844, os representantes portugueses na recém-criada comissão mista de Luanda pediam encarecidamente que o governo lhes concedesse a faculdade de poder sair daquele «pestífero país» sempre que o seu estado de saúde fizesse recear «a morte, que tão facilmente
arrebata os que vivem nesta terra expostos continuamente às mortíferas 65 Philip D. Curtin, Death by Migration. Europe's Encounter with the Tropical World in the Nineteenth Century, Cambridge University Press, Cambridge, 1989, pp. 65-66; para os avanços da higiene e da medicina tropical em finais de Oitocentos, ver os caps. 5 e 6 dessa obra.
6 Figaniêre, ob. cit., pp. 12-14, 16, 22, 32, 36 e 38. A expressão «sepulcro do euro-
peu» foi aparentemente inventada pelo próprio Figaniêre e viria a ter um grande futuro na sua versão inglesa, «the white man's grave», expressão que rapidamente se popularizou através do livro de F. Harrison Rankin, The White Man's Grave: a Visit to Sierra Leone in 1834 (cf. Fyfe, ob. cit., p. 151, e Curtin, The Image of Africa..., cit., p. 179, nota 4). 67 José Pinto de Azeredo, Ensaios sobre algumas enfermedades d'Angola, dedicados ao Serenissimo SenhorD. João, Principe do Brazil, Lisboa, 1799, p. 49. FT
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febres»68. Referências como estas eram frequentíssimas e são tão co- | nhecidas que será desnecessário explaná-las aqui mais longamente. b A imagem das ilhas de S. Tomé e Príncipe, da Guiné (cuja «insalubrida-  de» Lopes de Lima reconhecia) e até da «mortífera» ilha de São Tiago, no arquipélago de Cabo Verde, era semelhante”º. E o mesmo pode di-zer-se a respeito da costa oriental de África, considerada ainda «mais.
doentia» do que a de Angola”º. Na sua «topografia médica da provín- Ú
cia de Moçambique», publicada nos Annaes Maritimos e Coloniaes, 4 Jacques de Salis Celerina, resumia a sua experiência de 9 anos como À
:
físico-mor da colónia na seguinte frase: «este clima não perdoa a nin guém, e todos, mais cedo ou mais tarde, pagam-lhe o tributo»”!.
Na medida em que a probabilidade de viver um ano em África intei-. ramente ao abrigo da picada do mosquito era baixíssima, e na medid
do-se em níveis de mortalidade invulgares”?. Os dados das companhias de seguros britânicas sobre mortalidade e morbilidade europeias nos trópicos indicam que a morte de europeus na costa africana seria, nessa época, cerca de quatro vezes superior à que se registava na Índia ou nas
Caraíbas'!?.
E,
recentemente,
Curtin
confirmou
essa
relação
de
grandeza através do estudo comparativo da mortalidade dos soldados europeus em várias partes do mundo temperado e tropical. Se bem que
esse estudo se apoie em amostras demasiado exíguas para terem pleno valor estatístico, o pequeno quadro que adiante se apresenta — e que considera apenas alguns casos exemplares extraídos das estatísticas médicas militares utilizadas por Curtin — dá uma indicação sobre a importância desse desnível (quadro n.º 1):
em que o europeu chegava à costa africana sem qualquer imunidad
contra o agente patológico específico, a mortalidade nos primeiro tempos de residência atingia níveis extremamente elevados. Em com pensação, nos casos de sobrevivência aos primeiros embates das febres, podia adquirir-se alguma forma de resistência imunológica, e d percepção de que as coisas se processavam dessa forma advinha a con
Mortalidade de contingentes militares em várias regiões do globo (1817-1838)
[QUADRO N. 1] Região
vicção de que o maior risco residia precisamente nos primeiros mese
T:l,iíãª?elzl%r)-
1830-1836 1817-1836 1830-1838
1,53 6,98 7,14
Jamaica....
1817-1836
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1819-1838
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1819-1836
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GraBICiAnhd: Ceilão.. a BN
de contacto com o ar africano??. Claro que quase todo o mundo tropi cal constituía uma ameaça epidemiológica séria para o europeu. Aliá a febre amarela transbordava por vezes desse mundo tropical, provo cando graves epidemias nas áreas temperadas — Lisboa, por exemplec foi seriamente atingida em 1857. Mas, em África, e talvez porque à
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Fonte: Curtin, Death by Migration, pp. 7-8. Ainda que a Serra Leoa n e, por isso, não inteiramente representativa da insalubridade africana, início do século XIX, eram frequentes em África taxas de mortalidade da os recém-chegados à costa africana essa taxa variava entre os 35% e 80%
estirpes mais agressivas do P. falciparum fossem aí prevalecentes, es:
ameaça assumia dimensões desconhecidas noutros locais, concretizar
el;:&oàgloo
b
fosse anormalmente mortífeCurtin refere (p. 18) que, no ordem dos 20%; e que entre (Id., Image of Africa ..., cit.,
pp. 433-487).
68 Eusébio Catela e Félix António Domingues ao ministro dos Negócios Estrangeiro
13 de Agosto de 1844, ANTT, MNE, caixa 223; para a situação clínica em Angola, ver Jill R. Dias, «Famine and disease in the history of Angola, c. 1830-1930», in The Journal )
African History, 22,3, 1981, pp. 349-378. 69 Lima, ob. cit., p. 9. Deve assinalar-se que, apesar de tudo, Cabo Verde teria algu ilhas reputadamente mais saudáveis do que Lisboa.
70 Td,, ibid., p. 50.
71 Annaes Maritimos e Coloniaes, n.º 2, 1846, p. 54. A «topografia» de Celerina terá
|
Não existem estatísticas seguras para avaliar a situação sanitária nas colónias portuguesas durante a primeira metade do século XIX, mas as informações disponíveis indicam que também aí se registavam altos níveis de mortalidade. Bergara, que fora deportado para Angola em
sido, provavelmente, a primeira descrição extensa das moléstias daquela costa escrita em português. 72 De facto, é provável que no primeiro terço do século XIX morressem de 25% a 75
1830, contava na Câmara
anos seguintes, a mortalidade poderia cair para cerca de 10%, o que, sendo ainda substane cial, parecia mais tolerável (cf. Curtin, Image of Africa..., cit., p. 71, e estatísticas no fim 3 da obra).
73 Id., «Epidemiology and the slave trade», in Congrês International des Africanistes, Présence Africaine, Paris, 1972, pp. 106 e segs.
378
379
dos europeus — conforme as zonas — logo nos contactos iniciais com a costa africana. Nos
dos Senadores que quase metade dos seus
74 Id., Image of Africa ..., cit., p. 71.
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colegas de infortúnio havia perecido nos primeiros 8 meses de exílio”. Segundo Tams, o médico que visitou Angola em 1841, na época das chuvas um terço dos soldados brancos de Benguela era vítima do «clima»'6, Lopes de Lima recordava que, no espaço de dois anos, de 1824 a 1826, tinham morrido 52 dos 54 degredados que ele próprio transportara para Benguela”?. Num plano sobre a reorganização militar de Angola afiançava-se que, de acordo com as estatísticas dos hospitais de Luanda e Benguela, a mortalidade entre os soldados europeus era supe-
xuais. Alguns atribuíam a febre amarela — ou melhor, uma variedade
patológica que designavam por tifo náutico — directamente ao tráfico de escravos; de acordo com essa explicação, os pobres negros, com-
primidos e encafuados nas suas «enxovias flutuantes», envenenariam o
ar, contaminando os navios «de uma infecção cadavérica» que, combinada «com o calor, com a humidade e muitos outros princípios nocivos», convertia cada tumbeiro numa verdadeira bomba de «gás mortí-
fero e contagioso»8?,. Mas, se havia divergências quanto à etiologia das febres, as suas
rior a 50%78. A imagem do sepulcro do europeu fazia-se destas infor-
mações esparsas mas assiduamente repetidas. Ainda incapaz de ligar a doença a um agente biológico específico, a medicina da época tendia a explicá-la através de falsas teorias. Vigorava, geralmente, a ideia de que as febres tropicais seriam causadas por uma conjugação de factores, com destaque para os miasmas, ou gases pestilenciais, provenientes
da putrefacção
da matéria
orgânica
/ | .
e da
proximidade dos pântanos. O termo malária (do italiano mala aria), já difundido no século XvIII, espelha fielmente a conexão que se julgava | existir entre o ar respirado e o aparecimento das febres, e Celerina, por 4 exemplo, considerava que a primeira das causas próximas da grande /
insalubridade de Moçambique era «a respiração de uma atmosfera in- . fectada com miasmas deletérios»”º. Mas essa era apenas uma explicação. A par dela existia uma outra que responsabilizava a humidade do. ar ou os banhos de mar; Pinto de Azeredo, o prestigiado médico português que esteve em Luanda no final do século XVIII, considerava que simples facto de ter os pés húmidos podia, por si só, desencadear «de senterias perniciosas»8, Outra teoria, inspirada na patologia dos humo” | res, centrava-se na transpiração causada pelo calor africano; pressu- /) pondo uma forte simpatia hepatocutânea, a teoria admitia que a transpiração levasse ao mau funcionamento do fígado que, por sua ve debilitava o organismo, susceptibilizando-o à doença8!. Outros factores.
debilitantes, propiciadores da doença, poderiam ser a evacuação exces-. siva, a vida desregrada e os excessos alimentares,
alcoólicos ou se |
75 Câmara dos Senadores, sessão de 26 de Fevereiro de 1839, in DG, 4 de Março
d
1839.
76 Tams, ob. cit., p. 111 (ver também p. 38).
TPAnnaes Maritimos e Coloniaes, n.º 2, 1846, p. 53 (ver igualmente pp. 45-45, 48
' ;
8! Tams (ob. cit., p. 203) era um dos que acreditavam nos malefícios da transpiração. 380
século XvII, a sua utilidade estava longe de ser universalmente reco-
nhecida. Em primeiro lugar porque algumas das cascas utilizadas não tinham (ou tinham poucos) alcalóides antipalúdicos, frustrando as expectativas terapêuticas. Depois, porque a quina só era eficaz contra a malária, e a medicina da época, confundindo sintoma e doença, não a
distinguia claramente das outras afecções febris, prescrevendo quina para situações em que era completamente inútil. Além disso, para ser actuante, a quina tinha de ser tomada regularmente como profiláctico, e de uma forma vigorosa, em grandes quantidades, como curativo — o que raramente se praticava. Por fim, porque era tóxica e, se tomada em excesso, podia ter efeitos secundários sérios, como a surdez, perturbações oftálmicas e, dizia-se, a loucura. Era, por isso, fortemente desa-
conselhada por certas escolas médicas e o seu uso passou por fases alternadas de popularidade e descrédito. Pinto de Azeredo, por exemplo, referia que, em Angola, se evitava o tratamento à base de quina, devido
ao seu carácter «cáustico», preferindo-se substituí-la por limonadas e outros refrigerantes*3. É verdade que o médico português escreveu numa época em que a mais útil alcalóide da quina, a quinina ou quinino, que começaria a ser
78 DL, 18 de Junho de 1861.
80 Azeredo, ob. cit., p. 50.
temidas pela patente dificuldade de com elas lidar. Na verdade, as doenças virais, como a febre amarela, não tinham qualquer antídoto específico e a única defesa eventualmente eficaz consistia no abandono dos locais infectados, antes de se ter dado o contágio. Mas a malária podia ser combatida através da quina, vernáculo que cobria uma variedade de plantas rubiáceas cujas cascas possuífam propriedades antifebris. Todavia, se bem que a quina fosse usada desde meados do
quinologia ainda não se desenvolvera. Foi só em 1820 que se isolou o
77 Cf. O Estandarte, 26 de Janeiro de 1848.
50).
consequências, essas, eram unanimemente reconhecidas e justamente
82 Gazeta de Lisboa, 28 de Fevereiro de 1825 (resumo da teoria do Dr. Audouard, médico dos hospitais militares de Paris).
83 Azeredo, ob. cit., pp. 84-85. aIR1
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comercializado alguns anos depois, sobretudo sob a forma de sulfato. Era, potencialmente, a primeira «wonder drug», como lhe chama Cur-l tin, dirigida ao combate de uma doença específica*t. O sulfato de qui-. nino começou a ser testado clinicamente na década de 1820 e foi ex-| tensamente usado pelos Franceses na Argélia, na década segumte*—r vulgarizando-se a partir dessa época. Em meados do século começou a ter um uso intensivo como curativo e até profiláctico, e a expedição do que sucedera 12 anos antes, não houve uma só baixa entre a tripulação
que subiu o Níger%. A nova droga, combinada com medidas de higiene mais rigorosas e com a tendência para prescindir das terapêuticas agressivas ou muito tóxicas — como a sangria ou o uso de mercúrio que, na prática, ajudavam
Oitocentos. Em
a matar o pa01ente —, terá contrxbmdo
certas zonas, essa redução pode mesmo
pa
ter chegaf
aos 50%8%6, Mas a existência do sulfato de quinino não provocou umã mudança radical nas perspectivas sombrias que pesavam sobre a re
O cenário médico na Angola de meados do século espelha perfeitamente os diferentes fados do quinino. No final da década de 1840,
num período de relativa euforia médica, o Boletim de Angola publicava mensalmente quadros sobre o movimento dos hospitais. Por vezes, esses quadros faziam-se acompanhar de observações terapêuticas tendentes a enaltecer o «triunfo do sulfato da quinina, dado em altas doses, nas febres de Angola» e a destruir os preconceitos que existiam a
respeito da salubridade da província88. Mas o tom triunfalista desses primeiros tempos cedo foi temperado por visões mais cautelosas ou desalentadas. No início de 1850, já se referia
a «maléfica influência
[...] de uma atmosfera inconstante», que originava inúmeras doenças difíceis de controlar pela medicina, e já se alçava a voz contra os que tinham investido excessivamente na nova droga, conferindo-lhe falsos poderes miraculosos e usando-a indiscriminadamente%º. Em 1861, o veredicto pessimista de algumas autoridades sanitárias ainda persistia. Depois de constatar que o número de casos de febres ultimamente registado tinha sido notável, terminando muitos deles mortalmente, o físico-mor de Angola afirmava:
foi limitado por várias razões convergentes. Desde logo, pela relutân: cia de alguns clínicos em abrir mão de práticas curativas de há muito estabelecidas. Depois, pela subutilização da droga, quer do ponto deê vista curativo, quer, principalmente do ponto de vista profilático. Por fim, pela incerteza quantoà etiologia das febres: recordemos que, nà década de 1860, os Europeus continuavam a atribuí-las à conspurcação atmosférica é que o grosso dos seus esforços em termos de políti 2d sanitária ia no sentido de secar os pântanos ou arrotear os terrenos florestados8”.
São inúmeras as causas que nesta província dão origem tão frequente a semelhantes moléstias, produzindo um resultado bem funesto para os europeus que vêm servir nesta colónia. Umas são irremediáveis e dependentes da considerável diferença do clima. Outras não estão neste caso e por : isso se pode esperar que o tempo, o trabalho e a civilização conseguirão pouco a pouco chegar a destrui-las ou, pelo menos, muito diminuir-lhe a péssima influência que elas actualmente exercem sobre a saúde de tantos
indivíduos”O, Ou seja, em meados do século xIX, assistiu-se nas colónias portuguesas a um
84 Curtin, Death by ..., cit., p. 62. 85 Id., Image of Africa ..., cit., p. 311; Temperley, White Dreams ..., cit., p. 170. 86 Noutras áreas dos trópicos, como na Índia ou na Jamaica a diminuição parece ter do ainda maior (Curtin, Death by ..., cit., p. 62). s 87 Id., ibid., pp. 66-67. Em Portugal, as memórias sobre o melhoramento dos estabe e
fogo cruzado de relatórios médicos optimistas e pessi-
mistas sobre os resultados da nova farmacologia. Por trás da discrepância
apreciativa
estava,
naturalmente,
o confronto
de
diferentes
escolas terapêuticas. Mas estavam também os saldos de cura (que variavam consoante as épocas do ano) e a relativa impotência da medici-
cimentos coloniais insistiam na ideia de que a secagem dos pântanos e o desbaste das flc restas, seguido do cultivo dos terrenos drenados e desbravados, serviriam para dissipar 0 à pernicioso (ver, a título de exemplo, «Memória sobre o melhoramento do arquipélago * Cabo Verde», in Independente, 21 de Janeiro de 1822; para recomendações análogas, ma mais tardias, ver A Revolução de Septembro, 8 de Setembro de 1851). Mas grande dessa prescrição sanitária decorria da experiência norte-americana, e era adequada nesí caso, porque os arroteamentos tinham efectivamente contribuído para dificultar as condi ções de reprodução do mosquito, que aí servia de vector ao P. vivax. Porém, em Afnca, Anopheles gambiae e Anopheles funestus eram muito menos sensíveis a essas mudan ambientais, uma vez que lhes bastavam pequenas poças de água expostas à luz solar par
sobreviver e reproduzir-se. Mais: o Anapheles gambiae tendia a estabelecer o seu nicho ecológico na proximidade do homem, pelo que a sua propagação era mesmo favorecida pelo arroteamento e cultivo de novos espaços (Curtin, Image of Africa . ., cit., p. 81).
$$ BOGGPA, 10 de Abril de 1847.
8º Ibid., 26 de Janeiro de 1850, p. 3 (relatório de J. Vieira de Carvalho, cirurgião-mor interino de Angola). % Ibid., 4 de Maio de 1861, p. 7 (relatório de Faustino José Cabral, físico-mor de Angola). aAQRR
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na para fazer face à situação. Entre o Verão de 1860 e finais de 1861, o exército enviado da metrópole para combater no Noroeste de Angola perdeu cerca de 45% dos seus efectivos?!. Aliás, se nessa época ainda poderia haver perspectivas um pouco menos sombrias quanto ao prog-. nóstico das febres intermitentes e biliosas, a febre amarela continuava ) a ser incurável. Como escrevia em 1861 o cirurgião da brigada em Luanda, «neste clima não conhecemos febre alguma que tanto faça de-
apologia das potenciais riquezas moçambicanas, o brigadeiro Marinho, por exemplo, traçava um quadro negro da região, «país insalubre, mui mortífero»,
numa
palavra,
«um
cemitério»,
de onde
qualquer
pessoa
devia «sair [...] logo que pudesse»?. O mesmo tipo de mensagem perpassava na literatura de ficção que de alguma maneira remetia para África. Em Eugénio, o romance de Francisco Bordalo, só se ia para o ultramar se forçado pelas circunstâncias e disposto a «sacrificar a vida
em um clima pestífero»”; era para fugir à dor de um amor não corres-
sanimar»”. .,
Assim, apesar dos avanços da medicina, a imagem da insalubridade
continuou a impregnar fortemente todo o sistema de referências tecido ) a respeito de África, e a um ponto tal que raramente se falava nas colónias sem associar, de uma forma ou de outra, fosse para a sublinhar
fosse para a refutar, a ideia de sepulcro do europeu. Essa associação, quase incontornável é particularmente eloquente no contexto da retóri
pondido que o jovem Eugénio decidira trocar a suave Europa «pelas
praias áridas e mortíferas da costa ocidental de África», onde teria grandes hipóteses de «achar a sepultura»º8. Também em Mário, o romance de Silva Gaio, a África era ambivalente: por um lado, região
esplendorosa, luxuriante, «pompa
da natureza»; por outro, uma terra
que «não perdoa aos que a percorrem»”?. Este discurso dual também surgia na in?prensa quimérica, e mesmo O Nacional, um dos periódicos que mais promoveu o novo Brasil, deixava escapar aqui e ali visões contraditórias e pessimistas:
ca quimérica. Por norma, os que promoviam a imagem do novo Bras
procuravam desvalorizar o problema da insalubridade. E faziam-no d vários modos: ou negando redondamente a perigosidade do ambient: tropical — «a moléstia não existe [...], África não mata ninguém, os qu para ali vão é que se matam a si próprios»?? — ou reconhecendo a
existência de um risco epidemiológico, maior ou menor, consoante as, zonas, mas minorando-lhe as consequências”º, ou ainda assumindo | problema em toda a sua dimensão, mas considerando-o resolúvel%”. S que, a par desta trilogia justificativa, existia igualmente um discurs
: Para que os europeus se possam dar à agricultura na costa de África, é mister que o nosso governo decrete uma reforma de clima, [ou] todos su-
cumbirão, como a experiência não de meses mas de séculos tem mostrado [...]. Eis os termos precisos da questão; o mais são sofismas miseráveis,
são banalidades filhas de vistas particulares e de completa ignorância da :
estatística das nossas possessões!00,
dual — consequentemente, menos tranquilizador — entre os que pinta-)
prensa Nacional, Lisboa, 1861, pp. 47-48. Para o alarme causado pela grande epidemi: ocorrida em Cabo Verde em 1845, ver Boletim Official do Governo-Geal de Cabo Verd
Diferentes formas, pois, de lidar psicologicamente com o problema do sepulcro do europeu no seio do imaginário quimérico, mas todas elas reveladoras da existência de um lençol muito espesso de convicções negativas, que novas informações alarmistas viriam constantemente reforçar. Não pode esquecer-se que, em Portugal, os jornais publicavam periodicamente as listas dos europeus vitimados pelas doenças no ultramar!!, O peso dessa necrologia — que, como reconhe-
14 de Fevereiro de 1846, pp. 509-511, e números seguintes.
cia Gomes de Castro em
vam
a África em tons esperançosos.
Ao
mesmo
tempo
que fazia
a
91 René Pélissier, Les guerres grises. Résistance et révoltes en Angola (1845-1941 Pélissier, Montamets, 1977, p. 108; Jill R. Dias, «Angola», in Nova história da Expansão Portuguesa, p. 425 (no prelo).
92 Relatórios sobre a epidemia de febre amarella em Loanda no anno de 1860, 1
1861, ainda «andava na boca de todos», fa-
23 Jorge Faro, «Os problemas de Bissau, Cacheu e suas dependências, vistos em 18
por Manuel António Martins», in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, XM, 50, 195 p. 214; ver também DG,
17 de Agosto de 1838, Paquete do Ultramar, 4 de Setembro
1839, e BOGGPA, 28 de Dezembro de 1861, p. 3 (para a perspectiva de Welwitsch).
de
d
94 Lima, ob. cit., p. 31; ver igualmente DG, 16 de Outubro de 1838. 95 Botelho, Escravatura..., cit., p. 26. Com os avanços da nova medicina tropical, al guns dos quiméricos que perfilhavam esta posição mais cautelosa, contentando-se com é promessa de melhorias graduais, passaram a acreditar que a solução da insalubridade a cana tinha sido encontrada, e a proclamar que «as moléstias indígenas» estavam «aniquil. ' das», podendo residir-se nos trópicos «sem qualquer receio» (Câmara dos Pares, sessão 20 de Fevereiro de 1848, in DG, 23 de Fevereiro de 1848, discurso de Sousa Azevedo).
384
? 7 8 ?
Marinho, Bordalo, Id., ibid., Gaio, ob.
Memória contra ..., cit., pp. 63 e 94. Eugénio, cit., pp. 70 e 89. pp. 21-22. cit., pp. 82, 96 e 154.
100 Q Nacional, 23 de Fevereiro de 1839; ver também ibid., 1 de Julho de 1839, e Paquete do Ultramar, 20 de Agosto de 1839.
10! Cf,, a título de exemplo, lista de óbitos de Moçambique publicada in O Correio Portuguez, 2 de Agosto de 1844.
385
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas ?
Os sons do silêncio
zendo das colónias «o cemitério dos europeus»!0? — aparece bem ex- | presso no cuidado que houve, logo no final da década de 1840, e publicitar regularmente os triunfos da mais recente medicina tropical, A seguinte transcrição de um boletim mensal dos hospitais de Luanda, publicado no jornal oficial de Angola, dá bem a ideia do que estava em causa: O terror que este país sempre causara aos europeus vai ser aniquilado [...]. A publicação do movimento mensal dos hospitais, que no prmc1plo J parecera de pouco interesse, tem hoje tomado uma tão vital importância pelo conhecimento que a todos leva de que em tão má paragem se pod viver, e viver com pouco receio, quando em debelar as moléstias que o trora foram tão mortíferas se emprega um tratamento que quase sempre à! vence, que não hesito em sustentar que é talvez um dos maiores bens que se podia dotar esta Província. E é [a] este trabalho [...], que é confiad
hoje a missão importantíssima de reabilitar os ânimos timoratos, e de ab talvez uma nova era de felicidade e de abundância a esta rica possessã desterrando progressivamente o temor de uma morte prematura que a dos parecia ser a sorte mais certa dos que pisavam este solo, porque perd do este [temor] que a todos fazia hesitar em transpor tão longo espaço
de
mar, [...] muitos e laboriosos cidadãos correrão a buscar neste solo ainda
virgem as riquezas que a pátria cansada lhes denega!%3,
j
Este e outros relatórios foram, depois, publicitados nas páginas do jornais do continente, na tentativa de desvanecer o medo de ir para &
condenados, é imolá-los nas aras da desesperação e da morte; [...] a África
é o sorvedouro desses infelizes! É uma vasta sepultura, um cemitério hor-
roroso de corpos vivos!06, A imagem negativa existente na sociedade portuguesa a respeito da salubridade africana era de tal forma evidente em meados do século que, não obstante o seu optimismo, o próprio Lopes de Lima reconhe-
cia, em 1844, que ainda teriam «de correr anos antes que se dissipem os preconceitos contra a vivenda em África»!º7, E, de facto, a visão do sepulcro do europeu persistiria como imagem emblemática das possessões africanas, sendo muito revelador que, quando a cultura do arroz se
expandiu nos vales dos grandes rios portugueses, desencadeando forte oposição médica, política e social, pelo consequente aumento do paludismo, se tenha clamado que as populações não queriam ver as suas terras transformada «numa costa de África»!08, A imagética sepulcral podia estar na base de uma recusa terminante da aventura africana, mas, ao nível das elites que nunca tinham ido (nem tencionavam ir) a África, ela limitava-se geralmente a reforçar a
descrença no novo Brasil, a convicção de que, na melhor das hipóteses, as colónias só seriam viáveis a longo prazo. A dimensão atribuída a esse longo prazo separaria os radicalmente cépticos dos apenas reservados. Mas, num caso como no outro, a sua visão mais ou menos desalentada fazia com que as colónias fossem encaradas mais como um
ónus, uma pesada herança, do que como a porta aberta para a redenção
colónias africanas!º, Mas, apesar do esforço propagandístico, a vi sepulcral da África permaneceu fortemente arreigada na cultura port guesa. Disso dava conta João Maria de Sousa e Almeida, o negreiro Benguela, que, de visita a Portugal em meados da década de 1840, : «admirava da descrença que havia em Lisboa a respeito das colónia sendo as que pior fama tinham as ilhas [de S. Tomé e Príncipe] que mais estimava»!%, E porque essa má fama efectivamente existia, di seminada, havia gente que nas Cortes se insurgia contra a deporta de presos para as possessões ultramarinas:
nacional. Para todos os que olhavam as colónias africanas como uma
promessa adiada sine die, elas eram, sobretudo, o legado de uma história heróica que, como tal, seria necessário manter, ainda que à custa de importantes sacrifícios. 1.3. Monumentos da nossa antiga glória Em
1839, discursando nas Cortes, o conde da Taipa recorreu a uma
Mandar para os nossos presídios de África, que são precisamente
OS
alegoria para caracterizar a sua posição a respeito das colónias africanas:
sítios mais sáfaros, insalubres e doentios desta inculta parte do mundo,
of
Catarina II, dizendo-lhe um filósofo que o globo ia gradualmente mudando de temperatura, disse: deleita-me a ideia que daqui a duzentos anos
102 Câmara dos Deputados, sessão de 27 de Julho de 1861, in DL, 30 de Julho de 18 103 ROGGPA, 13 de Março de 1847 (relatório do físico-mor Manuel Rodrigues de Bastos 104 Ver, a título de exemplos, DG, 25 de Janeiro de 1848, e Annaes do Conselho, UI rramarmo Julho de 1858, p. 484.
o
105 Amândio César, O 1.º Barão d'Água-Izé, Agência-Geral do Ultramar, Lisbo
1969, p. 22.
106 DCD, sessão de 2 de Dezembro de 1844, p. 276 (discurso de Vasconcelos e Sá); para um outro exemplo, ver Câmara dos Pares, sessão de 12 de Fevereiro de 1848, in DG, 15 de Fevereiro de 1848 (discurso de Bonfim).
107 Lima, ob. cit., p. 55. 108 DCD, sessão de 19 de Fevereiro de 1859, p. 121 (discurso de Melo Soares).
386
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hão-de produzir árvores de laranjeiras /sic] os campos de S. Petersburgo; '«ª portanto, deleita-me a ideia a respeito das nossas possessões ultramarinas, ) mas que nós vamos carregar 100 ou 200 navios de café ao porto de An- ) gola, isso duvido eu.
O conde não excluía a possibilidade de África ainda poder vir a dar «muita felicidade à nação», mas, para que tal acontecesse, seria neces- . sário «desenvolver grandes somas,
e mesmo
depois delas desenvolvi-
das, hão-de ser os nossos 5.º ou 6.º* netos que hão-de gozar dessas fe-. licidades. Entretanto, deleita-me a ideia»10º, | Taipa era um assumido defensor da opção metropolitana, um h mem que considerava que a primeira fábrica de Portugal era «a fábri de trigo», pelo que o país deveria dedicar todo o seu zelo à agricultu-
ra!!º, Mas, com matizes, com mais ou menos veemência, a sua posiçã era partilhada por muitos que descriam da possibilidade de melho
rapidamente as possessões africanas (e, portanto, desaconselhavam empate de somas de que o Erário carecia). Para gente como Girão, Derramado, Bettencourt, Mouzinho da Silveira, Tavares de Macedo, Pombal, Loulé e outros, os melhoramentos das colónias deviam pro
dos seus recursos próprios, de forma a que não constituíssem um ón para o continente. Ao contrário do que pretende a nova ortodoxia, nãe
eram raras as vozes que, de um modo ou de outro, se opunham projectos quiméricos. Tavares de Macedo foi, talvez, um dos que lhor e mais frequentemente expôs, tanto por via oral como escrit sua reserva quanto ao aproveitamento imediato das colónias. Essa
serva partia de uma concepção melancólica (ou realista) das poten lidades africanas: No estado actual do mundo, que poderemos esperar da África? & possível elevar os nossos estabelecimentos a não vista prosperidade, serão condenados pelas circunstâncias a permanecer na quase nenhun importância que actualmente têm? Parece-nos que a verdade está ent dois extremos e que as terras de África, apesar da sua natural riqu nunca poderão obter uma prosperidade igual à da Europa ou da América
lhos das diversas indústrias, e seria muito criminosa barbaridade seduzir
europeus para tão desigual batalha!!!, Na perspectiva de Tavares de Macedo, as inescapáveis circunstâncias sanitárias da África implicavam que o sonho do seu melhoramento teria de passar pelos naturais. Uma vez que o «clima» africano para os pretos não era pior do que o da Europa para os brancos, «só por meio
da população negra, indígena do país», é que poderia haver «sólidos progressos industriais» nos estabelecimentos portugueses!!2. Daí se seguia, como conclusão, que «um sistema de colonização da África equinocial só poderia realizar-se por meio de um bem entendido méto-
do de civilizar os negros»!!3, Tal método seria aplicável, porque os Africanos não eram naturalmente estúpidos, como pretendiam os traficantes de escravos. Todavia, significava que a melhoria das colónias
seria forçosamente muito lenta, porque dependia da prévia civilização dos naturais — processo que, por sua vez, ficava a aguardar o fim efectivo do tráfico de escravos!!4, Por outro lado, o desenvolvimento africano exigiria meios financei-
ros que, ultrapassando em muito os montantes que um governo sensato poderia disponibilizar, só estavam ao alcance de sociedades capitalistas. Tavares de Macedo não era contra as companhias coloniais privi-
legiadas, tal como o não eram o grosso dos políticos portugueses, fossem eles cépticos ou quiméricos. Se exceptuarmos uns quantos frontalmente opostos à outorga de benefícios e protecções aos empreendedores coloniais, a grande maioria dos governantes, parlamentares e jornalistas, mesmo aqueles que, em teoria, abominavam os monopólios, aceitava a concessão de privilégios, desde que fosse para cuidar das colónias!!5. As divergências radicavam apenas no nível de protecção tido por aceitável, não só por questões de soberania, mas também devido à penúria das finanças públicas e aos interesses potencialmente antagónicos das várias colónias. Isto é, o problema dos pri-
ilhas de Ásia que lhes correspondem em latitude. [...] é infelizmente coil
1
tão sabida, o número de vidas europeias sacrificadas pelos ares de Afw que não será possível haver suficiente número de colonos para os t
112 Ihid., pp. 128 e 130. 13 Ihid., p. 136. 114 Desde cedo que Tavares de Macedo proclamou que, enquanto per51stlsse o tráfico,
109 Ihid., sessão de 9 de Fevereiro de 1839, p. 242. 110 Câmara dos Pares, sessão de 8 de Fevereiro de 1836, in DG, 16 de Fever 1836.
388
Annaes Marítimos e coloniais, n.º 3, 1842, pp. 128-129.
a8 colónias nada valeriam, não podendo prosperar, «não só pelos cabedais que se distraem para esta especulação, como pela dificuldade que há em se poderem civilizar os negros» (DCD, sessão de 9 de Fevereiro de 1839, p. 234). 115 Nisso eram quase unânimes os jornais cartistas e setembristas e a praça de Lisboa, como reconhecia Gomes de Castro, um notório opositor das companhias privilegiadas (ibid., sessão de 15 de Outubro de 1840, p. 328). 3RO
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vilégios a conceder a uma eventual companhia era, essencialmente, u problema de razoabilidade. Como dizia Tavares de Macedo, a questão. era a de saber «até onde se deverão alongar os limites de uma justa
uma conveniente protecção»!!6, Dentro desses limites não haveria ob—' jecções. Infelizmente, nas condições históricas concretas que se lhexig deparavam, não parecia haver um número suficiente de capitalistas. interessados em investir nas colónias (como se verificará detalhada—f mente mais adiante). Em 1855, Tavares de Macedo chegou mesmo a
fazer uma rápida recapitulação dos vários projectos havidos até à data, recordando que alguns dos promotores de companhias se tinham def't j sinteressado, enquanto outros fa21am promessas tão vagas e vorazes muito úteis, «mas uma das primeiras necessxdades é que possa havl estas companhias e que elas queiram formar-se com condições razoáveis»!!7, Ora, apesar dos constantes desafios e promessas dos govei S nantes — «venham essas companhias, apresentem condições razoáve que o governo aceita-as»!!8 —, as sociedades exequíveis não aparecia Os investimentos nas colónias teriam de ser, então, basicamen estatais e, naturalmente, subordinados a uma escala de prioridades qual as possessões africanas ocupavam um lugar muito baixo, vis' não constituírem uma prioridade nacional. Dito de outra forma, as co”lónias teriam de se bastar a si mesmas e contentar-se com alguma protecção metropolitana, nomeadamente com a protecção pautal, que, par
pensavam que o milagre económinovos Brasis se fariam através da para as férteis terras africanas, Os
reservados contavam sobretudo com os naturais civilizados e com um processo lento, dependente do efectivo fim do tráfico de escravos, da civilização dos negros e dos magros recursos do Estado português. É curioso verificar que, no plano abolicionista, a sua perspectiva era, no fundo, a que Acúrsio das Neves tinha defendido em 1830, ou seja,
provinha de uma posição de base toleracionista que, sob a pressão extrema dos Ingleses, acabara por descolar do antiescravismo ambíguo para aceitar frontal e incondicionalmente o abolicionismo. O Bbill de Os cépticos consideravam também que o problema dos homens probos seria extremamente difícil de solucionar, porque, dadas as condições de alto risco sanitário associadas à residência em África, não haveria pessoas competentes e honestas dispostas a ir para o ultramar, a menos que fossem extremamente bem pagas. Se bem que, como recomendava Rodrigo, tal só pudesse dizer-se «baixinho», em meados do século, e não obstante o propalado avanço da medicina tropical, continuava a ser extremamente difícil encontrar gente qualificada disposta a
transplantar-se para o ultramar!??. Aliás, na perspectiva dos reservados, seriam precisamente as condições muito desfavoráveis de «clima», e não a política dos governos absolutos ou a venalidade das autoridades coloniais, como pretendiam os entusiastas, que justificariam em boa parte o atraso das colónias: «não se diga que o Brasil medrou só à
dade que, em geral, os reservados queriam investimentos no ultram mas investimentos muito limitados, porque consideravam que não c bia ao Estado gastar milhares e milhares de contos com as colónias!20 116 Ihid., sessão de 17 de Abril de 1855, p. 140.
custa das nossas possessões» — advertia Gomes de Castro em 1840 —,
WT Ihid. 118 Ihid., sessão de 18 de Abril de 1855, p. 141 (discurso de Atouguia, ministro da M
121 pCD, sessão de 22 de Abril de 1839, p. 184 (discurso de Manuel António de Car-
rinha); ver igualmente sessão de 15 de Abril de 1859, pp. 187-188 (discursos de Silvestre. Ribeiro e de Ferreri, respectivamente). 7
11º Ihid., sessão de 17 de Abril de 1855, p. 140. As pautas de 1837 haviam reduzido direitos cobrados sobre os produtos provenientes das colónias.
120 Ihid., sessões de 9 de Janeiro de 1858 e de 18 de Julho de 1860, pp. 58 e 189 (disº
i
corrente de pensamento); ibid, Câmara dos Deputados, sessões (discursos de Ferreri); sessão d ' de Garcês, que, entre outras coiã de «desgraça» para o país, casq
OS sucessivos governos, arrastados pela «imaginação ardente» dos quiméricos, nelaiinves-)
tissem demasiadamente).
b., apenas a que fosse «absolutao serviço regular e para manter a
Palmerston fora, decididamente, uma espécie de terramoto que, nessa matéria, separara as águas em Portugal.
homens como Tavares de Macedo, era mais do que suficiente!!º, É v
cursos de Soares Franco, referindo, genericamente, essa sessão de 1 de Março de 1860, p. 10 (discurso de Ferreri); de 8 e 9 de Abril de 1863, in DL, 10 e 12 de Abril de 1863 5 de Maio de 1865, in ibid., 8 de Maio de 1865 (discurso sas, afirmava temer que a África se constituísse em factor
Queriam marinha, mas marinha q. mente indispensável» para garantir di gnidade nacional!2!, Ou seja, enquanto os entusiastas co em África seria rápido, e que os transferência de homens e capitais
A
valho, ministro da Fazenda); sessão de 15 de Maio de Castro); sessão de 22 de Abril de 1850, p. 271 (discurso Fevereiro de 1853, p. 172 (discurso de Velez Caldeira); Junho de 1857, in DG, 10 de Julho de 1857 (discurso de
1848, p. 6 (discurso de Gomes de de Carlos Bento); sessão de 24 de Câmara dos Pares, sessão de 20 de Fonte Arcada).
122 Câmara dos Pares, sessões de 6 de Março de 1851 e de 17 de Junho de 1854, in
DG, 10 de Março de 1851 e 24 de Junho de 1854 (discursos de Rodrigo da Fonseca e de Atouguia, respectivamente). Sobre a relação entre «clima» e dificuldade em conseguir candidatos qualificados para o ultramar, ver DCD, sessões de 16 e 28 de Julho de 1860, pp. 163 e 374 (discursos de José Estevão e lei sobre médicos da Armada); Câmara dos Deputados, sessão de 2 de Dezembro de 1865, in DL, 5 de Dezembro de 1865 (discurso de Francisco Costa). aa
Os sons do silêncio
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Africas ?
«o Brasil medrou à custa do seu bom clima, que respondia melhor aos
parece-me que só se pode dizer como bons desejos, mas não com fundamentos sólidos»!26. E Lobo de Ávila ia mesmo mais longe:
desvelos das colónias que para ali se foram estabelecer»!23, Pela mesma época, Rodrigo da Fonseca atribuía o atraso da África à sua perene insalubridade: Na província de S. Tomé e Príncipe, província desgraçada mais pelo seu clima do que por outras causas, desde 1810 até agora parece que a Divina Providência a tem visitado com terríveis flagelos que têm extinguido quase toda a sua população. [...] por mais de uma vez da Corte do Rio de Janeiro saíram governadores encarregados de providências, levando em sua companhia facultativos e instrumentos de lavoura, procurando dessecar pântanos e tornar aquele país mais salubre; e, no cabo de dois ou três meses, desapareciam governador e médicos e cirurgiões, e os instrumentos de lavoura ficavam sem ter mãos que os empregassem [...]; a ilha vizinha de Fernando Pó ainda o ano passado sofreu uma calamidade horrível, ficou quase inteiramente despovoada; e no país vizinho continental de Serra Leoa, apesar dos grandes planos de Inglaterra, de seus grand meios e imensos recursos que para lá tem mandado, a mortalidade tem sido espantosíssima [...]; quando tantas causas se conspiram para tor-. nar essa terra inóspita, de nada valem as diligências feitas por todos os.
governos!2?4,
Há muita gente que exagera os recursos que nos podem provir das nossas colónias [...]; não entendo que se possam lançar as esperanças do país nas nossas colónias, fazendo com que continue aquele sistema errado, antigamente seguido, que era desprezar o torrão em que vivemos na esperan-
| '» À
ça de que, das colónias, nos viriam todos os recursos [...]; dizer-se que nas
colónias é que está todo o futuro do nosso país é um grave erro econôómico [...]. Eu o que combato é o princípio exclusivo e exagerado de que o futuro do país está todo nas nossas colónias. Não está tal. Está no desenvolvi-
,' .
mento da sua produção interna!27, /
As perspectivas mais comedidas, menos esfuziantes, sobre a dimensão da riqueza africana eram confirmadas por alguma da nóvel imprensa colonial. O Boletim de Cabo Verde, que começou a publicar-se em 1842, ajudava a fundamentar uma imagem que era como que o reverso da perspectiva quimérica. Nas suas páginas, as ilhas do arquipélago eram representadas como locais áridos e pedregosos, regularmente assolados pela fome, e onde as sucessivas tentativas agrícolas falhavam,
devido à falta de chuvas e à intensidade dos ventos. Os «topázios e
Os reservados pensavam, por fim, que a riqueza africana era par À cialmente enfabulada. Quando, no início da década de 1850, se difu
ametistas», a riqueza mineral que alguns quiméricos imaginavam
no
nos seus sonhos: «tomara duas minas de carvão, e boas»!25, De form:
subsolo cabo-verdiano, não seriam mais do que «frutos do bosque en-, cantado de Aladino»!?8, Assinale-se que a perspectiva céptica não fluía apenas do Boletim cabo-verdiano, mas igualmente de jornais metropolitanos, quando reproduziam as desalentadas missivas dos seus correspondentes nas colónias!?º,
análoga, Tavares de Macedo admitia que Portugal poderia «tirar certo recursos», mas nunca «grandes recursos», das suas colónias: «não digo.
Entre os que franziam o nariz à miragem africana havia, naturalmente, diversos graus de reserva, que variaram ao longo do tempo em
diu a crença de que a África portuguesa estaria cheia de minas de cobre e de ouro, Rodrigo da Fonseca continuou a recusar a imagem de nova Califórnia que muitos pretendiam colar-lhe e conservou-se modest
que estas províncias não possam
sustentar-se e prosperar [...]; [mas] )
estabelecer o princípio de que dali nos hão-de vir grandes riquezas, 123 DCD, sessão de 28 de Janeiro de 1840, p. 202. 124 Ibid., sessão de 25 de Novembro de 1840, p. 375 (itálico meu). A convicção de que o «clima» constituía um obstáculo inultrapassável (ou quase) era plenamente confirma pela prática, e alimentou longamente a perspectiva céptica ou reservada de África. E 1859, ainda se escrevia de Angola que, atendendo ao clima da região — «aqui sempre padece, ou mais ou menos» -—, era mister contentar-se «com o progresso lento da colóni (BOGGPA, 26 de Fevereiro de 1859, p. 9); ver igualmente Câmara dos Deputados, ses de 20 de Março de 1865, in DL, 22 de Março de 1865 (discurso de Garcez). h
125 Câmara dos Pares, sessão de 6 de Março de 1851, DG, 10 de Março de 1851; ver. também DCD, sessão de 25 de Novembro de 1840, p. 374 (para um esclarecimento u,; mesmo Rodrigo da Fonseca relativizando a suposta riqueza da mina de enxofre de Benguela). i
392
função dos resultados das sucessivas experiências e também do conceito que cada um tinha dos Africanos. À um conceito muito negativo correspondia geralmente um elevado grau de reserva, como se verifica no pensamento de Saldanha da Gama. O ex-governador de Angola fora um
dos pioneiros
da ideia africana e, relembrêmo-lo,
escrevera em
126 DCD, sessão de 17 de Abril de 1855, p. 140. 127 Thid., sessão de 1 de Junho de 1855, p. 18; para outros exemplos deste tipo de juízos, ver: sessão de 1 de Fevereiro de 1849, pp. 6-7 (discurso de Ferreri); sessão de 6 de Julho de 1857, p. 83 (discurso de Passos Manuel); e Câmara dos Deputados, sessão de 5 de Maio de 1865, in DL, 8 de Maio de 1865 (discurso de Garcez). 128 Boletim Official do Governo-Geral de Cabo Verde, 4 de Junho de 1844, p. 244. 129 A Revolução de Septembro, 5 de Novembro de 1845 e 27 de Fevereiro de 1846, por exemplo. 20
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Africas?
Os sons do silêncio
revisto e acrescentado pelo autor, que, agora, duvidava francamente da —,f possibilidade de civilização da África: | Ali estamos nós há alguns séculos e todavia os povos em trato e con- . tacto connosco acham-se hoje com pouca diferença no mesmo estado em .3 que se achavam quando pela primeira vez aportámos àquelas regiões. On- À de estão também os brilhantes resultados que se esperavam da famosa Li- .
des à c1v1llzaçaol3º
Em conformidade com o de África, Saldanha da Gama um discurso preliminar (tão incidia fundamentalmente na politano. Na circunstância, a
seu cepticismo quanto ao melhorament resolveu complementar a Memória com extenso como a própria Memória) ond problemática do desenvolvimento metro: fórmula adequada para tirar o povo por.
tuguês do abatimento em que se achava resumia-se a duas palavras: indústria e estradas (estas, porventura, a mais urgente necessidade do
país)!3!,
Neste estado de coisas, qual seria então, para os não quiméricos — independentemente do grau da sua reserva ou cepticismo —, o valoi
último das possessões africanas? Era, como o próprio Saldanha Gama acentuava, um valor eminentemente histórico e patrimonial. colónias constituíam uma herança física e moral, restos de um passade grandioso, «monumentos da nossa antiga glória [...] que acabrunham nossa pequenez e insultam a nossa actual indolência»!32. Como t deviam ser preservadas, ainda que com grande sacrifício, pois «sen pôr o último remate à nossa degeneração deixar aniquilar aqueles estabelecimentos que, se não estiveram feitos, não haveria hoje portugu que ousasse imaginá-los, e, menos, empreender a sua execução, se correr o risco de passar por visionário ou mentecapto»!33, Seria, p rém, absolutamente imprescindível que os Portugueses redimensiona sem o seu velho projecto imperial. A nação nada ganhava em correr atrás de quimeras, em deixar-se seduzir pelo sentimento febril, mas passageiro, dos heroísmos passados. E, como o óptimo era inimigo do. 130 Gama, Memória sobre ..., cit., mlll
B1 d. ibid., pp. 2-7. 1210 ibidi p. L. 133 Id,, ibid.
bom, Portugal teria de se ajustar à sua meta natural e assumir a pequenez da sua força intrínseca. Os Portugueses de Oitocentos já não eram os vultos heróicos de antanho: «tinham as molas da alma bambas e podres para grandes coisas»!34, Todos
como
os reservados
perspectivavam
respeitáveis «monumentos
as colónias,
antes do mais,
da nossa glória nacional» que, na
medida em que o eram, deviam ser conservados!35, Naturalmente, en-
contramos essa perspectiva em Tavares de Macedo, para quem a questão colonial nunca poderia ser considerada apenas pelo lado do lucro ou do prejuízo: O lugar que os descobrimentos [...] dos portugueses lhes deram na história geral do mundo é tão belo aos nossos olhos, e tão invejado dos estrangeiros, que o primeiro lado por onde qualquer português logo encara os nossos estabelecimentos ultramarinos é como herança de nossos maiores, como um vínculo de glória que a todos nos enobrece [...]. De sorte
que, o lado económico, que em outras circunstâncias devera ser o principal aspecto desta questão, é para nós de alguma sorte secundário e subordinado a outro, de natureza mais elevada!36,
Precisamente por isso, não era possível abandonar as possessões ultramarinas, apesar de a sua conservação custar «avultadas despesas e alguma coisa mais»!37, Para além de Tavares de Macedo e Saldanha da Gama, várias outras
figuras públicas proclamavam a necessidade de preservar as colónias, principalmente por razões históricas, para que, como dizia Alexandre Herculano, as almas dos antigos cavaleiros portugueses não viessem bramar de praias distantes: «que fazeis do legado de glória que vos 1FA chid p 2. 135 DG, 3 de Janeiro de 1840 (discurso do Trono); ver também: ibid., 18 de Outubro de 1851
(preâmbulo
do decreto de criação do Conselho
Ultramarino);
Câmara
dos Pares,
sessões de 23 de Maio e de 14 de Agosto de 1853, in ibid., 31 de Maio e de 16 de Agosto de 1853 (discursos de José Maria Grande e do ministro do Reino, respectivamente); e DCD, sessão de 2 de Maio de 1860, p. 13 (discurso de Carlos Bento).
136 Annaes Maritimos e Coloniaes, n.º 2, 1842, pp. 71-72 (itálicos meus); para outro discurso similar de Tavares de Macedo, ver DCD, sessão de 18 de Abril de 1855, p. 151.
137 Annaes Maritimos e Coloniaes, n.º 3, 1842, p. 126 (nota). O «alguma coisa mais» reportava-se, por certo, ao desdouro causado pelo bil! Palmerston; é significativo que, na década de 1840, essa perspectiva tivesse surgido mesmo em alguns dos mais importantes órgãos da imprensa setembrista, que chegaram a afirmar que, por causa das colónias africanas, Portugal tinha uma posição mais embaraçada na Europa e via-se obrigado «a sacrificar interesses reais à posse de estéreis senhorios» (A Revolução de Septembro, 22 de Fevereiro de 1843).
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Os sons do silêncio
em favor de impérios distantes que beneficiavam o poder real, mas não o conjunto da sociedade:
herdámos? Que fazeis do edifício alevantado por nós, e amassado com
o nosso sangue?»!38, Para os reservados, as colónias eram intocáveis, não porque fossem lucrativas, ou se esperasse que viessem a sê-lo a breve prazo, não porque fossem uma tábua de salvação, estavam carregadas de história:
mas porque
É preciso que não esqueçamos que as nossas colónias, esses belos flo- | rões da Coroa de Portugal, devem ser conservados por glória e interesse
.
A glória adquirida nessa época mas comprámo-la com a desgraça ça, com o tragar golo a golo, por afrontas [...]. Que significa, pois,
foi das maiores que futura, com a morte séculos, um cálice qual é o valor real
o mundo tem visto, de toda a esperanimundo de males e dessa glória? Pura-
mente negativo [...]. A Ásia e a América perderam-nos!*!,
do país, e que uma nação pequena e abatida como a nossa, vive mais do seu passado do que do seu presente: a sua nacionalidade sustenta-se mais da contemplação da sua história, do que da sua vitalidade proprla " (apoiados)!?º,
ritária na sociedade portuguesa. Deixemo-la, para sublinhar de novo que a maior parte dos reservados que se pronunciavam sobre a questão
E, porque assim era, Lopes de Lima foi criticadíssimo quando ven- '1
africana encaravam as colónias, fundamentalmente, como um vestígio de uma glória passada. É evidente que também para os quiméricos elas
deu uma parte da província de Timor aos Holandeses. Como acusava o deputado Rodrigues Cordeiro, «vendeu, não tendo em conta nenhuma
o sangue que ali haviam derramado, as proezas que ali haviam feito, os nossos antepassados»!0, Era também como monumentos de antiga glória que os opositores
das aventuras distantes, aqueles que Camões imortalizara na figura do |
É, no entanto, possível que esta posição de Herculano fosse mino-
constituíam monumentos de antiga glória. Havia um fundo comum en-
tre as perspectivas quimérica e reservada, que possibilitava, aliás, um certo fluir de posições de um lado para o outro do espectro ideológico, tanto por razões pessoais como políticas. Lavradio, por exemplo, foi-se tornando mais reservado com o decorrer do tempo!*2?. Por outro lado, e como é evidente, o jogo político e a responsabilidade governamental
«velho do Restelo», viam as colónias remanescentes. Já se evocou essai?'
condicionavam
corrente de opinião com referência à década de 1820, através de
Fontes era quimérico; como governante, tendia a ser reservado!*3, Mas,
O Com- -
pilador. Importa agora assinalar que a posição de recusa de alarga-
mento de um império ultramarino disperso e distante, visto como uma falsa via de desenvolvimento — um sepulcro em sentido figurado —, continuou a manifestar-se nos anos seguintes de uma forma que, n
limite, podia descambar num balanço negativo das glórias passadas. Em 1846, O Nacional, do Porto, por exemplo, fez publicar, sob o títul de «cogitações soltas de um homem obscuro», um texto de Alexandre Herculano que, enaltecendo romanticamente a Idade Média e tudo o que lhe estava associado, classificava a opção ultramarina iniciada com D. João II como «um abismo» que cortara com toda a tradição histórica e política do país. Estabelecera-se, então,
1840, p. 65. Entre outras perspectivas semelhantes, p. 313 (discurso de Gomes de Castro); sessão de 22" Rebelo da Silva); sessão de 24 de Março de 1852, e O Correio Portuguez, 21 de Dezembro de 1844. de Maio de 1853, in DG, 31 de Maio de 1853 (dis-
140 DCD, 27 de Março de 1852, p. 334.
a flutuação.
Como
deputado
ultramarino,
se abstrairmos das flutuações pessoal ou partidária, se nos concentrarmos num discurso-tipo e em perfis retóricos, é possível perceber que, não obstante reservados e quiméricos defenderem, ambos, que as coló-
nias constituíam simultaneamente um legado sagrado e um potencial manancial de riqueza, os reservados colocavam a tónica no primeiro aspecto, os quiméricos colocavam-na no segundo. Os reservados tratavam
fundamentalmente
de conservar as colónias o melhor possível,
ainda que com grande sacrifício. Os quiméricos, adversários da «pesarosa contemplação, com as mãos ociosas cruzadas sobre os brasões», que ia grassando no país, pretendiam investir fortemente nelas, para as
a monarquia absoluta «so-
bre as ruínas da monarquia liberal da Idade Média» e, ao mesmo tem- po, esquecera-se o Norte de África, o horizonte normal da expansão, . 138 DCD, sessão de 6 de Julho de ver: sessão de 14 de Outubro de 1840, de Abril de 1850, p. 268 (discurso de p. 304 (discurso de Xavier Cordeiro); 139 Câmara dos Pares, sessão de 23 curso de José Maria Grande).
também
1l Nacional (Porto), 19 de Novembro de 1846. Para uma análise à perspectiva de Herculano, ver Rui Ramos, «As origens ideológicas da condenação das descobertas e conquistas em Herculano e Oliveira Martins», in Análise Social, 32, 140, 1997, pp. 113-141. 142 Como ele próprio reconhecia, existiam em Portugal diferentes opiniões a respeito das colónias: «uns julgam que as províncias ultramarinas não servem de coisa alguma, e outros entendem que são uma grande coisa. Eu, porém, sou um justo meio» (cf. Câmara dos Pares, sessão de 28 de Junho de 1849, in DG, 24 de Agosto de 1849).
143 A flutuação de opiniões de acordo com o cargo exercido foi, em devido tempo, muito bem assinalada por Oliveira Martins (Portugal em África, cit., pp. 10-11 e 21). s Tae )
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Africas?
Os sons do silêncio
gias são diferentes. A cada uma das perspectivas em presença corres-
pondiam comportamentos diversos. Os quiméricos eram activos, procuravam aparecer a público com as suas propostas, procuravam moti-
manescentes. Lopes de Lima foi um dos quiméricos que primeiro defendeu (e pôs em prática) essa política racionalista, que viria depois a ter maior expressão e acolhimento a partir do último terço do século x1X!º5, Existiam, então, várias perspectivas de África que, divergindo, se : sobrepunham parcialmente. Na sua definição mais pura, as imagens de . novo Brasil e de sepulcro do europeu eram incompatíveis entre si. Mas qualquer delas podia aglutinar-se, convergir, com a ideia de preservação -
var. A posição dos cépticos e reservados, pelo contrário, era passiva, discreta, ambígua, clarificando-se apenas se e quando estimulada. É de novo, e noutro contexto, o problema do silêncio que atrás analisei e valorizei a propósito da abolição do tráfico negreiro. Assim sendo, a
comparação do peso específico de cada uma das perspectivas da África no seio da sociedade portuguesa tem de ser feita também, ou sobretudo, a partir das acções e das omissões, a partir das realizações e das resistências à realização. E tudo isso nos leva, directamente, à questão dos projectos e iniciativas coloniais concretos no período em apreço.
vas, resultavam duas posturas distintas face ao problema colonial: uma, essencialmente optimista e voluntarista; outra, desalentada ou expectante. -
2. Projectos coloniais gorados
unanimidade em torno do «projecto colonial». Havia, isso sim, e no mí
A análise dos projectos coloniais no período de 1820 a 1865 serve dois propósitos. Por um lado, permite avaliar a capacidade mobilizadora das ideias quiméricas e a inércia inerente às perspectivas cépticas; independentemente dos resultados práticos — nem sempre a fé move
nimo, dois projectos coloniais diferentes e não necessariamente conver: gentes, sendo que um deles era fundamentalmente um projecto ... metro-
politano, que reservava às colónias um papel muito acessório.
montanhas -—, interessará aqui considerar as iniciativas efectivamente avançadas, com ou sem sucesso. Por outro lado, será ocasião para
desses projectos, no Portugal de 1820 a 1865. E, para percebermos esse peso, não poderemos ficar pela simples contabilização do número de opiniões expressas. Se pudéssemos, o problema da ponderação da im portância respectiva estaria imediatamente solucionado, uma vez que discurso optimista é mais frequente do que o pessimista ou reservado,
questionar a solidez da base empírica em que Alexandre se apoiou para defender a tese do profundo interesse das «classes dominantes» por África. Esses dois propósitos obrigam ao levantamento e avaliação dos vários projectos económicos surgidos no período em consideração, tarefa que, tanto quanto sei, nunca foi realizada na Íntegra, nem pelos que defendem a importância dos interesses em causa, nem pelos que
tanto nos jornais como noutras formas de manifestação pública. Mas
comparação não pode ser feita apenas pela verbalização, num ou nou-r tro sentido, porque a natureza e os canais de manifestação das ideolo- | 144 Câmara dos Deputados, sessão de 23 de Abril de 1862, in DL, 25 de Abril de 186 (discurso de Mendes Leal). 145 Ao contrário do que geralmente se supõe, a tese da alienação das possessões ultramarinas não surgiu apenas nas décadas de 1860 e 1870. Lopes de Lima terá sido um do autores de um texto publicado em A União (26 de Janeiro e 19 de Fevereiro de 1848) no qual se preconizava a alienação parcial das colónias. Para a identificação de Lopes de Li ma com um dos homens que se escondiam sob o pseudónimo de Lelio e Lolio (os autores do referido texto), ver A Revolução de Septembro, 21 e 26 de Junho de 1855. Para a defesa de posições análogas por parte de outros entusiastas nas décadas de 1860 e 1870, ver, por exemplo, os artigos de António José de Seixas no Jornal do Comércio, 31 de Agosto de 1868 e 12 de Março de 1869, e J. B. Ferreira de Almeida, Portugal e os seus Dominios Ultramarinos. Memória apresentada à Commissão de Exploração Africana da Sociedade
de Geographia de Lisboa, Lisboa, 1877.
dela
:
Trata-se
de
um
exercício
de
explicitação
que
será,
da tese de Alexandre decorre da própria explicitação do que terá omiti-
do ou sobrevalorizado. " |
2.1. Nem capitais ...
>
A ideia de fomentar a criação de companhias que pudessem explorar as riquezas africanas manifestou-se logo na década de 1820 e che-
|
;
398
duvidam.
eventualmente, maçador, mas do qual não é possível prescindir, não só porque não quero ser suspeito de tirar partido da relativa obscuridade da coisa para minimizar o objecto, mas também porque a contestação
399
|
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Os sons do silêncio
gou, por vezes, às Cortes. No
Carmo
apresentou uma
início de Outgbro
de 1822_, Bento
do
ç:_'
companhias de comércio, uma para a África omden.tal, outra para Mo-
»
uma para as pescarias de Cabo Ve.rde e outra para Mo-
-
cambique e Ásia, para as quais pedia vários excl'uswos'ªªõ. NOÉ relató- | rios apresentados a respeito do estado das colónias, a comissão Pltra— marina das Cortes também tomou a iniciativa de sugerir a criação de companhias,
çambique — caso os comerciantes de Lisboa habitualmente l'lgados ao
comércio asiático manifestassem interesse no seu estabelecimento!47,
Mais tarde, em 1828, Lima Leitão defendeu uma ideia ambiciosíssima,_'
pretendendo que se autorizasse, na generalidade, a -formação de uma Companhia
de Entre-os-Trópicos,
reservada excl.uswa_mente a ac)c*o«
nistas portugueses e à qual deveriam conceder-se isenções temporárias de direitos, bem como o exclusivo de todo o comércio colonial (comr;
excepção do de Macau) por um prazo de 20 anos. [:imq Leitão pretendia que, assim que existissem 12 negociantes de primeiro plano manifestamente interessados em investir na dita companhia, o governo r
colhesse as suas sugestões e as apresentasse às Cortes, para que as mesmas elaborassem e aprovassem o regulamento da futura socied de!48. Mas
a sua proposta não chegou a discutir-se antes do encerra-.
mento da Câmara, nada dela resultando. Estas sugestões ou propostas parecem corresponder a manifestaçõe de uma preocupação política, ou do voluntarismo de glguns par'lame
tares, mas não permitem concluir que existissem, subjacentes, interes ses económicos concretos e evidentes que só não teriam avançado de vido a factores exteriores (como fossem a instabilidade política ou resistência parlamentar à concessão de privilégios). Bem pelo contr rio, os elementos disponíveis sugerem que o interesse dos negociant j é metropolitanos por África seria muito limitado. s purí eram Refira-se, em primeiro lugar, que alguns dos projectos balões de ensaio que se esperava pudessem vir a encher, uma vez lan; çados. É significativo que a lei para a criação da companhia das pescas de Cabo Verde — o mais modesto dos projectos apresentados — ten sido efectivamente aprovada pelas Cortes em 1822, apesar de, como : dizia, haver sérias dúvidas de que existisse na metrópole um só indiv duo disposto a «tomar conta daquele tráfico da pesca»!*º. E acrescen À 146 Diário das Cortes, sessão de 2 de Outubro de 1822, pp. 656-657. 147 Ihid., sessões de 19 de Abril e 28 de Junho de 1822, pp. 888 e 621, respectivamente, ' 148 DCD, sessão de 8 de Março de 1828, pp. 732-734. 149 Diário das Cortes, sessão de 8 de Junho de 1822, p. 388 (discurso de Vasconcelo ADO
-se, em segundo lugar, que, nos períodos em que as Cortes estiveram
suspensas, o país não assistiu a qualquer corrida à África. De facto,
«indicação» no sentlqo de se criarem duas
nessa época, só em casos raros se passou da suposta intenção à acção, e nunca de uma forma espontânea, consistente ou bem sucedida. Em 1824-1825, correspondendo a instâncias do governo que lhe acenava
com o final do tráfico de escravos, um pequeno núcleo de fabricantes e negociantes de Lisboa enviou para Angola alguns produtos metropolitanos (alcoóis, pólvora, linho, etc.), mas os resultados da especulação foram decepcionantes!5º, Um dos carregadores, João Paulo Cordeiro, foi autorizado a estabelecer uma feitoria em Angola, mas o estabelecimento teve uma actividade reduzidíssima, só se mantendo à custa de
«exuberantes privilégios», como dizia José Acúrsio das Neves, vindo a desaparecer com a derrota política de D. Miguel e a falência de Cordeiro, o principal financiador do monarca!5!. Em
1825, também Vicente
Tomás dos Santos obteve do poder real o exclusivo de todo o comércio
da baía de Lourenço Marques (incluindo o marfim) e as habituais isen-
ções do pagamento de direitos de importação e exportação; todavia, a sociedade por si formada nunca cumpriu as suas obrigações contratuais, aproveitando-se do exclusivo para se dedicar ao comércio ne-
greiro, e acabou por ser extinta em 1834, depois de várias vicissitudes
e reclamações!5?,
Tal como aconteceu na década de 1820, o período de 1834 a 1851, isto é, o tempo que vai do triunfo liberal ao fim do tráfico brasileiro, viu emergir alguns projectos de formação de companhias destinadas a explorar economicamente as colónias africanas, mas todos se goraram, não tendo praticamente passado do papel. O mais ambicioso foi o da Associação Mercantil Lisbonense, órgão
oficioso dos interesses patriotas, criado em meados de 1834 pelo deputado e industrial José Ferreira Pinto Basto. A Associação reunia, ou
«desejava reunir», como diz Pulido Valente, «os negociantes e manu-
factores contra a agiotagem, ou seja, contra a alta finança parasitária que vivia do Estado e se presumia ligada à Inglaterra», e, logo de iní-
cio, reclamou medidas a favor do comércio e da indústria e promoveu
a formação de companhias: a das Sedas, a das Pescarias e a Fidelidade
150 Alexandre, «O liberalismo ...», Cit., pp. 327-328.
151 Neves, ob. cit., pp. 240-1; Alexandre, Origens ..., cit., pp. 34-35. 152 Alexandre, ibid., p. 328; Tito Augusto de Carvalho, As Companhias portuguesas
de colonização, Lisboa, s. d., pp. 72-73.
401
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
e concreti(seguros)!53. Mas, para além dessas iniciativas efectivament nto de lecime zadas, as suas vistas viraram-se também para o estabe de uma uma Companhia Africana!%*. O projecto previa a constituição sociedade com
sede em Lisboa, aberta indistintamente
brico do azeite de purgueira, sangue-de-drago e cultura de vegetais preciosos!58, Como
a accionistas
io, agriportugueses e estrangeiros, e cujo objectivo seria «o comérc a África cultura e mineração e qualquer outra sorte de indústria de toda es isençõ zar autori e [portuguesa]»!55. Esperava-se que o Estado pudess
mas alguns elementos da história do próprio plano permitem supor que:
as matas e ter- ) fiscais e importantes concessões, como a posse de todas da companhia, / renos não cultivados nas colónias (que, uma vez na mão
m o di- | ficariam livres de quaisquer imposições ou tributos), e també portos de reito de negociar directamente com navios estrangeiros nos comercial África (o que significava, na prática, que a sua actividade tada escaparia largamente à tributação). Em contrapartida, a projec para África Companhia obrigava-se apenas a transportar gratuitamente , findo o períodóí«f alguns colonos ou degredados, e a devolver ao Estado
torias de concessão de 20 anos, os terrenos explorados com as benfei neles entretanto realizadas!6. O projecto foi apresentado ao governo no início de 1836, e Sá da e qualque Bandeira, então ministro da Marinha, garantiu apoio a «toda empresa» que a Associação pudesse intentar para
o melhoramento
zado n ultramar!57. Mas o empreendimento nunca chegou a ser autori
que interes moldes requeridos. Infelizmente eram também os únicos
a um comnsavam à Associação Mercantil Lisbonense, que se furtou damente nomea os, vite de Sá para participar em planos menos leonin ver o no da criação de uma companhia de Cabo Verde para promo
çado.
progrediu de forma muito hesitante, por vezes devido a atrasos e des-
158 Pinto Basto a Sá da Bandeira, 13 de Fevereiro de 1836, AGM, caixa 50. No final de 1837 o governo, por intermédio do então ministro da Fazenda, João de Oliveira, instou dç novo com a Associação para que reunisse os seus sócios e preparasse planos' para a criação de várias companhias, particularmente para Angola, Moçambique e S. Tomé e Lis; de de de a-
155 Cf., Fonseca, ob. cit., p. 42. 156 1d., ibid., pp. 43-46. Associaçãe 157 António Pedro de Carvalho (secretário do ministério da Marinha) à À
de Janeiro de 1836. Mercantil Lisbonense, 12 de Janeiro de 1836, in A Revista, 16 AnIDXO
não seria grande. Comecemos por notar que a comissão da Associação Mercantil Lisbonense que estudara o assunto, em 1835, defendera que as condições do projecto deviam ser primeiro submetidas à consideração do Público e só depois de conseguida a sua aprovação, manifestada por meio de subscrição de acções, se deveria avançar com um pedido de concessões ao governo!5º, A estratégia seguida acabou por ser inversa, tendo-se privilegiado a via governamental, o que sugere escassa ç)onfiança no entusiasmo colonial dos investidores portugueses, Aliás já em meados de 1835 um anónimo avisara os promotores do em: preçndimento da necessidade de aprontar fundos por lhe parecer que os capitalistas em Portugal não estariam dispostos a aplicar dinheiros numa Companhia Africana!6, Por essa razão, o plano, que previa um capital de 4000 contos, abria-se também a estrangeiros, o que, se aumentava as perspectivas de angariação de meios financeiros, implicava o risco de colocar as colónias africanas sob a tutela de forças e interesses exteriores a Portugal!6!, Acrescente-se que, enquanto outras iniciativas da Associação tiveram uma adesão rápida e entusiástica — as se-
das e os seguros, por exemplo!6? -., a projectada Companhia Africana
153 Valente, ob. cit., p. 58.
a formação de uma 154 Em 30 de Setembro de 1835, depois de ter sido lembrada avançaram com lisboetas negociantes dois luso-afro-brasileiro, ciedade de comércio a Manuel da C. resposta ver África: projecto no sentido de criar uma companhia para e J. Roque 1835, de Agosto de 3 Lisbonense, Mercantil L.º de Actas da Associação in Prim (1834-1900)», Fonseca, «A Associação Comercial de Lisboa e o Império Colónias, das Ministério Mundo, no portuguesa Congresso da História da Expansão p. 15), um autor que defe: boa, 1838, p. 12. José Capela (A Burguesia Mercantil ..., cit., afirma que as propostas África, por a tese do desinteresse das burguesias metropolitanas Mercantis do Porto e Associações das junto 1835-1836 em surgidas exploração africana seriamente ame supunham o que e Lisboa provinham de comerciantes ligados ao tráfico,
nunca chegou à fase de subscrição de acções, não existem
dades objectivos sobre o nível de adesão que a projectada Companhia Africana teria sido capaz de suscitar junto dos capitalistas nacionais
Prmcnge, mas esta persistiu na defesa do seu plano global (Portaria do ministro da Fazenda, Joag de Oliveira, 15 de Dezembro de 1837, e resposta da Associação Mercantil Lisbonense, in J. Roque da Fonseca, Cem Anos em Defesa da Economia Nacional,
História da Associação Comercial de Lisboa, Lisboa, 1934, pp. 79-81).
1834-1934
159 Fonseca, «A Associação Comercial ...», cit., p. 53.
:ªº Id., ibid., p. 59. 6! Sobre o problema da admissão de estrangeiros nas iniciativas da Associ A Revista, 24 dç Março de 1836; a própria Associação reconhecia os incom?:n?gr?t%svã; recurso aos capitais estrangeiros (parecer a respeito dos barcos a vapor, 18 de Março de 1839, livro de Actas da Associação Mercantil Lisbonense). :
162 Cf. Fonseca, Cem Anos ..., cit., pp. 53 e 71-73. 1oo
:
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
leixos dos próprios membros 163 é : á ª]st;: lgíer:rslgmível falta de coisas, pela persistência do jecto africano tinham partido
monopólio por 30 anos do sal, da urzela e de todas as substâncias animais (incluindo o marfim) produzidas no território a sul de Moçâmedes e obrigava-se a fundar pelo menos três estabelecimentos comerciais nessa região geográfica!6?, Mas nada resultaria dessa sua proposta, que, aliás, mereceu um parecer negativo da Associação Marítima e Colonial!68, O mais elucidativo sinal do desinteresse dos financeiros portugueses pelos empreendimentos africanos foi dado, ainda que de forma in-
da Associação, o que está longe de sugeentusiasmo ;')od.e explicar-se, entredout:f: iníquo_ comércio. Os prcfmotoges. o ;;Sªdo princípio de que o traf1ço avia ce :
o do «de direito e quase de facto» com a entrada em vigor do tr.ata mineraura, abolicionista anglo-brasileiro em 1830, pelo que a a%ãàcult
voluntária, precisamente
ção e indústria passariam a ser possíveis em África!ó, Ora, ociº. .me;se%
neãr(z; seguintes demonstraram o mal funglado de tal pressupogto ã a118 ;xga adlante: a çlara consmez;::; dqs capitalistas 11);4râugl;1 “” | Bent dlstantes..Em 843, Companhxa. Afrlça.r;a, .vgla
mesmo a pronunciar-se contra a formação de companhias privilegiadas | ónias!65, H parê)aíncu(ãígnprovável desinteresse dos rpeigs fmancei_ros .pl())rtuguese's ' pelo empreendimento africano da Assoc1e.1çfdo. Mercantll Lãs onenseeã | que, las aborta: .as 1n1c1alt1v outras aliás, plenamente confirmado por
| certos casos, permitem esclarecer melhor os níveis de adesão que pro
jectos do género suscitavam na égoca. Em.meados de 1837 surílram .osi j estatutos de uma Companhia de África Ocidental. Em ªulho, a gsocxâl-,
ção Mercantil Lisbonense, que funcionava como íãrgao consultivo h_q governo, foi chamada a dar parecer sobre a formação dessa Corpp:;n 1& e demorou quase um ano a fazê-lo. Mas, ainda que o parecer não
i , negativo
OSsS
ó, E AA nunca foi avante! en Qc1 idental Áfri a Companhiai de África
1844, José Ferreira Pinto Basto Júnior, filho do entretanto
falecido
dador da Associação Mercantil Lisbonense, apareceu como propogçntg
ª,
Rarflgª d 163 A título de exemplo, ver Associação Mercant'%l Iíisbonense "«1 T,ºr;ás er S ãrà_c;ãêt lsâ.xãoãr íãg;ícg:: âssoc::㪠d.a Actas Fonseca, 26 de Abril de 1838, livro de k « das envio o Fonseca da más ici um de cerca há aguardava o ?Z;:; :glt:f;tªvêosrã;aígia Africana e pelas quais a Associaçã
ano.
À
" 164 Cf. Fonseca, «A Associação Comercial ...», cit., p. 42. 165 Parecer sobre a formação da Companhia Africana Portuguesa, anexo ao ofício
» Falcão a Gomes de Castro, 15 de Maio de 1843, ANTT, MNE, f:alx.a 384. o flt sgbre'ar e Lisbonens Mer.cantll o Associaçã da 1838 de 166 Parecer de 18 de Maio Tito panhia de África Occidental, in Fonseca, Cem Anos ..., cit., p. 80; ver também
gusto de Carvalho, ob. cit., pp. 84-85.
e Colonial,
uma
os seus membros muitas figuras das elites portuguesas!6º, No seu zelo em favor do ultramar, a Associação tentou, também ela, estimular a criação de companhias de âmbito colonial. Para tal, formou um grupo de trabalho que, após estudar o assunto, viria a explanar largamente as condições que o Estado deveria exigir e os privilégios que poderia conceder a eventuais companhias. À explanação concluía com um parecer para que se formasse uma nova comissão destinada a incentivar a criação de companhias: A comissão conclui recordando-vos a necessidade de empregar diligências para que um projecto vago passe a ser uma realidade; para o que lhe parece indispensável [...] a criação de uma nova comissão cujos mem-. bros estejam, pelo seu zelo e posição social, em circunstâncias de poder tratar com ricos negociantes, a quem persuadam de empregar os seus capitais em empresas desta natureza, e, por outra parte, de poder solicitar ao governo de Sua Majestade, as concessões e protecções que tais empresas
reclamam!7º,
Esse parecer viria a ser estudado e debatido numa série de sessões
fu
de uma companhia destinada a comerciar no Sul de Angola. Pedia
Marítima
promover o melhoramento da marinha e das colónias, e que tinha entre
começado a perder vapor, tendo sido congelada a partir de Ê ; tanto em consequência da oposição governarr_xental, mas por haver no seio da própria Associação, como veremos de que pouco haveria a esperar por pz?r—te na formação de empresas para as regiões Cardoso, um dos promotores iniciais da
pela Associação
organização que se formara em Lisboa, em 1839, com a finalidade de
de trabalho nas quais se propôs que, assim que se perfilassem 40 ou 50 accionistas interessados, se redigisse o regulamento-padrão para com-
panhias coloniais. Mas o assunto acabaria por ser abandonado, por 167 Proposta apresentada por Pinto Basto Júnior em anexo a ofício de Falcão a Gomes de Castro, 13 de Janeiro de 1844, ANTT, MNE, caixa 385.
168 Annaes Maritimos e Coloniaes, n.º* 5 e 6, 1845, pp. 223 e 260, respectivamente.
169 Faziam parte da Associação prestigiados oficiais da Armada no activo, comercian-
tes de créditos firmados e vários homens que haviam sido, eram ou viriam a ser governa-
dores, deputados coloniais, ministros de diversas pastas (sobretudo da Marinha), como Vieira de Castro, Bonfim, Vila Real, Miranda, Atouguia, Tojal, Falcão, Lavradio, Saldanha e, obviamente, Sá da Bandeira (para a lista completa dos sócios iniciais da Associação Marítima, cf. ibid., n.º 1, Novembro de 1840, pp. 52-55).
170 Ibid., n.º 10, 1843, p. 524.
aAn
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
falta de interesse ou de empenho
dos sócios, que não compareceram
»
em número suficiente à sessão de 18 de Março de 1844, e não mais | recolocaram a questão na ordem do dia!7!, Conclusões análogas podem extrair-se das iniciativas de Jacinto » Dias Damásio. No início de 1843, Damásio e Freire Marreco, dizen-
»
do-se pessoalmente abonados pelo conde de Farrobo, avançaram com uma proposta para a criação de uma Companhia Africana Portuguesa. Era de novo um projecto imenso, destinado a tomar conta de todas as colónias africanas. Os proponentes pretendiam pôr de pé uma socieda- À de que estabelecesse «novos mananciais de riquezas» naqueles climas «inóspitos e insalubres» e fizesse «em poucos anos» o que Portugal não tinha podido fazer em quatro séculos. Previa-se a realização de um capital de 2400 contos e pretendia-se, a par de vários monopólios por 50 anos, ter o direito de escolher os magistrados e os governadores civis e militares a nomear para cada colónia. Após ter criado uma comissão para dar parecer sobre o plano, e uma
vez que algumas
daaj«'
condições pedidas eram inaceitáveis, o governo apresentou uma conª:,( traproposta com condições reputadamente vantajosas, mas, apesar de os pontos em desacordo serem. escassos, a Companhia acabou por : cusar, porque, como recordaria depois Tavares de Macedo, «só queriá o que tinha imaginado»!7?. Damásio reapareceria em 1848 com uma proposta apresentada na efémera Liga Promotora dos Interesses Mat. riais do País. Atribuindo o fracasso da sua iniciativa anterior a «ci cunstâncias» que não especificou, o negociante pretendia agora a cri
ção de uma sociedade menos ambiciosa, com um fundo de 600 contos, que, entre outras coisas, promovesse a exportação de vinhos para África. Mas,
tal como
sucedera com
o projecto anterior, nada daí res
tou!73, Como nada resultou também da pretensão de um grupo de c
pitalistas ingleses e espanhóis que,
na década de
1840, sondaram
possibilidade de formar uma companhia para Moçambique,
governo recusaria, «não tanto porque (a companhia) queria privilégios,
como por ser estrangeira»!74, Para terminar este périplo pelas intenções metropolitanas de exploração colonial no período de 1834 a 1851 faltará referir o caso da projectada Companhia dos Vinhos da Estremadura, a que Valentim Ale-
xandre deu relevo, e cujos objectivos expressos incluíam, de facto, o
«fazer brotar copiosos mananciais de riqueza e prosperidade nas Províncias Ultramarinas»!?5, Esse era, porém, um objectivo lateral que, recorrendo a uma fraseologia destinada a amolecer objecções políticas, procurava por essa via obter, entre outras coisas, privilégios e monopólios para a introdução de vinho, aguardentes e vinagres nas colónias. Mas o propósito central do projecto era, confessadamente, socorrer os proprietários e lavradores da Estremadura, ameaçados de ruína. Precisamente porque envolvia várias componentes e motivações, a tentativa de criação de uma Companhia de Vinhos da Estremadura não pode servir de barómetro seguro para aferir do interesse das burguesias portuguesas pelos empreendimentos africanos — da mesma forma que o não pode um projecto análogo apresentado na mesma época para a formação de uma Companhia dos Vinhos do Alto Douro, que igualmente solicitava condições favorecidas e monopólios para a introdução de vinhos e aguardentes no ultramar!76, Refira-se a talhe de foice, e por ser significativo neste contexto, que, se bem que Farrobo tenha sido inicialmente nomeado para a comissão destinada a recolher subscrições para a Companhia de Vinhos da Estremadura, pediu (e obteve) imediatamente escusa — um detalhe que Alexandre não mencionou!77, E que, num segundo projecto da Companhia, elaborado no início de 1843 por uma nova comissão (da qual, agora sim, Farrobo fazia parte),
171 fhid., n.ºº 11 e 12 de 1843, e n.º 3 de 1844, pp. 571-573, 637-638 e 145-146, pectivamente (actas das sessões da Associação Augusto de Carvalho, ob. cit., pp. 88-91.
Marítima e Colonial);
ver também
Ti
172 pCD, sessão de 17 de Abril de 1855, p. 140 (Tavares de Macedo fazia parte comissão governamental que estudara o assunto). Para o projecto, correspondentes pa res e negociações entre as partes, ver documentação em anexo ao ofício de Falcão a mes de Castro, 15 de Maio de 1843, ANTT, MNE, caixa 384.
173 A Liga, 11 de Novembro de 1848, pp. 15-16. A Liga Promotora dos Interés Materiais do País espelha de certa forma o nível de importância que as questões colo: niais assumiam no espectro das preocupações portuguesas da época. A finalidade associação — na qual estavam filiados homens como Farrobo, Anselmo Braancamp António José de Ávila, Pombal, Passos Manuel, Terceira, Gomes de Castro e outra: notabilidades — era, como o próprio nome indicava, promover o desenvolvimento da riquezas físicas do país; em teoria, o melhoramento das colónias era um dos alvos visas ANKÁ
a
o que o
dos pela associação, e o redactor do jornal A Liga (4 de Novembro de 1843, p. 3) prometia ocupar-se desse assunto atentamente; mas a promessa não passou disso mesmo, porque o jornal acabou por votar toda a sua atenção à economia política, à indústria, à reorganização dos correios e, de uma forma mais lata, às vias de comunicaç ão e à agricultura (mas não às colónias).
174 Câmara dos Pares, sessão de 28 de Junho de 1849, in DG, 24 de Agosto de 1849
(discurso de Gomes de Castro).
175 Ibid., 2 de Janeiro de 1839. 176 DCD, 12 de Março de 1839, p. 543.
177 Cf. DG, 2 de Janeiro de 1839.
ANT
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
tre 1852 e 1853, teriam entrado em Portugal cerca de 100 milhões de
desapareceu completamente a fraseologia pró-ultamarina e, até, qual- Y quer pretensão aos mercados coloniais!78. Vejamos, seguidamente, os derradeiros anos do período em estudo.
Em teoria, a partir de 1851, o efeito conjugado do fim do tráfico para o Brasil e da Regeneração deveria ter criado condições mais favoráveis a um investimento em África, se tais desejos investimentistas proliferassem no país. O escasso interesse por África até então evidenciado pelos negociantes e capitalistas portugueses fora muitas vezes atribuído à agitação política que o país vivera até à Patuleia. Era nessa perspectiva que, em 1850, o Diário do Governo considerava que a turbulência política tinha constituído o principal impedimento
-
178 Q único exclusivo que se pretendia em 1843 era o de «Lisboa e seu termo», algo que a comissão considerava ser «a pedra angular e o alicerce seguro» do projecto (cf. O Cor: reio Portuguez, 18 e 20 de Fevereiro de 1843). 179 DG, 5 de Março de 1850. Para outros auspícios do mesmo tipo, ver também as e ções de 10 e 26 de Outubro do mesmo ano.
180 Revista Económica, 24 de Abril de 1846, p. 164. ” 181 Em 1850 eclodiu no Brasil uma grave epidemia de febre amarela, que se dizia ter” sido trazida pelos navios negreiros e que afectou cerca de 100 000 pessoas, matando muitas delas (ver Verger, ob. cit., pp. 393-394). 408
Se o cômputo do montante total transferido para Portugal varia de
)
a que corressem «os
Depois, no início da década de 1850, factores como a febre amarela e o ataque final ao tráfico brasileiro aceleraram muito esse movimento de retorno!8!. Charles Vogel, o cônsul francês em Lisboa, referia que, en-
havia recebido um depósito de 1 200 000 libras esterlinas!83.
) j
capitais a fecundar o solo de longínquas províncias ultramarinas»; em conformidade, o jornal manifestava-se convicto de que, uma vez que o país já repousava «à sombra da ordem e da liberdade regrada», a nação haveria de providenciar os fundos para que o melhoramento coloni * fosse avante!7º, reforçapolítica natureza de razões em A esperança assim fundada va-se por motivos de ordem financeira, já que, pela mesma altura, como se referiu no capítulo v, afluíam volumosos capitais ao reino. N origem desse afluxo estava o retorno de muitos portugueses residentes. " em África e, principalmente, no Brasil. Já na década de 1830 a perseJ guição ao tráfico, o bill Palmerston e outras razões tinham 1mpe11do_. alguns traficantes a abandonar o hemisfério sul, transferindo-se para a Europa. Joaquim Ferreira dos Santos, um dos grandes negreiros do Ri durante a década de 1830, foi dos que então regressou ao reino. Mas vários outros o anteciparam e seguiram, de tal forma que já em 1846 Revista Económica realçava a importância fulcral para a economia portuguesa das «avultadas somas» que chegavam do Brasil, perte centes a negociantes que vinham fixar a sua residência em Portugal!80,
cruzados!8º, Em meados de 1851, também Palmerston, ecoando as informações recebidas por via diplomática, garantia no Parlamento que haviam regressado a Portugal cerca de 140 negreiros residentes no Brasil, trazendo consigo as suas fortunas; e que um banco de Lisboa
acordo com o observador, não há qualquer dúvida quanto à importância do afluxo de capitais. Muitos dos que retornavam ou investiam eram, como Palmerston afirmava, notórios negreiros, alguns deles extremamente ricos, como Manuel Pinto da Fonseca — talvez o mais importante traficante de escravos da década de 1840 —, José António de
Sousa Basto, José Bernardino de Sá, os irmãos Leite Guimarães, entre outros. Mas o que importa assinalar é que, reconvertida voluntariamente ou à força, nobilitada ou não, essa gente aplicou os seus dinheiros na indústria, na terra, na banca, no comércio e na dívida pública, mas só muito raramente em África. Quer isto dizer que, apesar do fim do tráfico brasileiro, da pacificação interna e do afluxo de capitais ao reino, a relação do capitalista português com as colónias africanas não
se alterou substancialmente, se bem que, por momentos, a apresentação de um grande projecto colonial para Moçambique tivesse permitido acalentar algumas esperanças nesse sentido. Mas tratava-se outra vez de um falso alarme, de «um disparate», algo «fora das raias do possível», como diria Francisco Bordalo!8$º, O referido projecto foi proposto ao governo em 1853 por figuras de realce da vida portuguesa: visconde da Luz, marquês da Bemposta Subserra, Anselmo e José Ferreira Pinto Basto Júnior, João Rebelo da
Costa Cabral (aos quais se juntaria depois o conde de Ferreira, ou seja, o ex-negreiro Joaquim Ferreira dos Santos). Os signatários da proposta visavam a criação de uma denominada Companhia Luso-Africana Oriental para administrar e explorar toda a África oriental portuguesa. Requeriam ao Estado, entre várias benesses, a posse e a administração
daqueles territórios por 99 anos — período durante o qual as Cortes ficariam impedidas de legislar para eles —, o direito de dispor de forças marítimas e terrestres (que seriam pagas pelo Erário), o de estabelecer 182 Charles Vogel, Le Portugal et ses colonies. Tableau politique et commercial de la Monarquie Portugaise dans son état actuel, Paris, 1860, p. 116. 183 ROGGPA, 24 de Janeiro de 1852, p. 3 (resumo do discurso de Palmerston, proferido a 14 de Julho de 1851).
184 Bordalo, Ensaios ..., cit., p. 76. 409
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
alfândegas, cobrar impostos e cunhar moeda, o de nomear e demitir quase todos os empregados da província (incluindo eclesu'ístlcos e comandantes das forças militares), a isenção por prazos mais ou menos
longos do pagamento de impostos, a posse de um foro. e_x_clusivo para julgamento de todas as causas e, o que era mais, a possibilidade .de poder sublocar a outras entidades as concessões e privilégios que viessem
a ser obtidos da Coroa!85, Em contrapartida, dispunham-se a fazer quase tudo: abolir o tráfico de escravos, civilizar os cafres, expulsar os negros invasores e reivindicar os territórios usurpados, abrir Éstradas,
desentupir rios, fundar povoações, cortar florestas, secar pântanos, cultivar o solo, promover o estabelecimento de colónias, construir e reparar templos, estabelecer escolas, manter uma esquadra para comér- cio de cabotagem e com a metrópole. À O Conselho Ultramarino, chamado a pronunciar-se, assinalava que ) o projecto da companhia equivalia a uma verdadeira transferência d.e soberania e que, como tal, devia ser recusado!$6, Mas, nas suas consi
derações, o Conselho chamava também a atenção para o f:arácter vago e perigoso da proposta, que não oferecia garantias — tais como uma. entrada de capital obtido pela subscrição de acções — que respondes sem pelo «cumprimento das estipulações que se contratassem»._ Nãof previa também meios para que «o governo, na falta. de execução do. prometido, pudesse compelir a Companhia a cumprir». O pedido d sublocar era mesmo uma porta aberta a uma eventual acção especulati
va, porque nada obstava a que se criasse uma companhia fantasma qu se limitaria a vender as concessões obtidas. Ora, como o Conselho di zia, «nenhuma concessão deve ser outorgada a qualquer empresa com o fim de ela a poder vender»!87, Para além dessas objecções, o Conse
lho sublinhava o carácter megalómano e suicida do projecto, que, a s autorizado, levaria rapidamente os eventuais investidores à ruína!S8 Em conformidade, a maioria dos conselheiros sugeria que se encami_ã
nhasse o entusiasmo colonial dos proponentes para outras iniciativas de âmbito mais limitado, mas autorizável e mais proveitoso, como
formação de várias companhias sectoriais. O conselheiro Almeida Gar rett, que discordou parcialmente do parecer — dando, por isso, um vot em separado —, foi mais longe nessa via pedagógica e elaborou as ba
reduzia substancialmente os privilégios concedidos, que, ainda assim, permaneciam extensos. : Face à existência de opiniões discordantes no seio do Conselho, o governo viria a nomear uma comissão — significativamente, presidida
por Garrett — que teve várias reuniões de trabalho e elaborou, em Julho de 1854, uma proposta destinada a harmonizar as pretensões das partes, governo e capitalistas!8º, O projecto ainda foi brevemente ventilado nas Cortes, mas nunca se concretizou, apesar de, em
Sofala, Quelimane e Tete, apresentada em
Boletim Ihid., p. Ibid., p. Ihid., p.
do Conselho Ultramarino, Agosto de 1854, pp. 53-54. 62. 55. 56-60. 410
1858 pelo inevitável Pinto
Basto Júnior, e um projecto avançado pelo francês Alfredo de Courson e pelo deputado Afonseca para criar uma companhia destinada a construir 2500 km de caminho de ferro em Angola (e a estabelecer pequenas colónias de povoamento ao longo da via)!9!, Vingou sim, ainda que apenas por alguns anos, uma companhia de navegação intitulada União Mercantil. Mas, apesar de ter ido avante — ou precisamente porque o foi, e em condições favorecidas, subsidiado e apoiado pelo Estado —, o trajecto dessa companhia revela, não a adesão dos investidores portugueses aos projectos de âmbito colonial, mas, bem pelo contrário, um cavado desinteresse das praças de Lisboa e Porto por esse tipo de empreendimentos. Desinteresse que é igualmente revelado, aliás, pelo percurso de iniciativas anteriores não concretizadas. O estabelecimento de carreiras regulares entre a metrópole e as colónias constituía, de há muito, uma das principais preocupações dos
entusiastas, e, perante o desenvolvimento da navegação a vapor norte-americana e inglesa em meados do século, essa preocupação viria a acentuar-se por puro instinto de autodefesa. Logo em meados de 1850, alarmados com a entrada da navegação estrangeira nos circuitos marí-
timos tradicionalmente portugueses, quatro conspícuos cidadãos requereram à Câmara dos Deputados que se estimulasse a criação de uma companhia nacional capaz de competir com as estrangeiras, porque disso dependeria a sobrevivência do próprio país:
As nações entre as quais se estabeleçam aquelas carreiras a vapor [inglesas e norte-americanas], se não cuidarem de quanto anrtes as estabelece-
ses daquilo que poderia contratar-se com a companhia. Nessas basesd 185 186 187 188
1855, os inte-
ressados já terem reformulado os seus objectivos em bases mais restritas, visando sobretudo a exploração mineira!º%. Tal como não se concretizaram uma proposta mais modesta para explorar os distritos de
189 Tito Augusto de Carvalho, ob. cit., pp. 101-104.
10 DCD, sessões de 17 e 18 de Abril de 1855. DG,
P Tito Augusto de Carvalho, ob. cit., pp. 105-106; para o projecto de Courson, ver 12 de Setembro de 1857.
411
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
'ils, no verdadeirem do mesmo modo [...], tornar-se-ão miseráveis tributári
não resta ro sentido da expressão dessas nações ilustradas [;...]; meios momento a perder para estudarmos e pormos em prática os a ainda deveremos imediatamente lançar mão, a fim de podermos, sobx:e evitar este golpe mortal que está a ponto de ser descar'reg,ad.o
um só de que tempo, (l)gsznos—
'É
molde a sustentar uma empresa de navegação: «querer instituir entre
4 1 í À
países remotos, vastos [...] meios de comunicação e de transporte, an-
existência social!?É. sos interesses nacionais e até, talvez, sobre a nossa
ntaram Passando das palavras aos actos, dois dos r.equerentes apíese vapor ' a ção um projecto para a criação de uma compz.mhla de navega
o 51mult.anea- H para o Brasil, ilhas adjacentes e África ocidental, fazend que acudissem mente um apelo aos negociantes de Lisboa e ?orto para
soao projecto!º3. Dois anos depois, formar-se-la efect_lvamente uma ape?94 ssada ciedade com capitais portugueses e brasileiros, mas intere em Cab,o. Verde)'?,, na navegação a vapor para O Brasil (com escz.da
a. O er.nfº Para África a questão revelar-se-ia muito mais probl.ematlc aos _ca].pltahsfpreendimento proposto em 1850 era «apenas um c?nv1te tismo»; tas, um lembrete aos comerciantes, uma exclitação ao patrio pecuni ns «home alguns de e poderia talvez contar com a boa vontad a cabo os se sos», mas não tinha os meios necessários .para levar
dos incen propósitos, e nunca os teve, não se concretizando, apesar | TA vos da imprensa!”. tç po 1almen essenc ção O que não surpreende, atendendo à motiva inter passo tica do projecto. Em termos comerciais, tratav.a-,seí de um
de 1851 aprese , pestivo, como se acentuava num relatório de 1mcl(?s Batalha. Ness tado, entre outros, por Pinto Basto Júnior e Francisco
nbla Ele n documento, considerava-se «prematuro» criar uma compa uma ligação f vegação colonial enquanto não se tivesse estabele-mdo
l. Na verd S roviária à Espanha e criado uma grande companhia colonia não era as colóni de, o movimento comercial entre Portugal e as de Sád | 192 A Revolução de Septembro, 11 de Julho de 1850 (requerimento de Aires a o apresenf , ?chuster Cngtlano e Mexia Sousa de o Soares, João
gueira, F. P. Celestin
_mamfestaçoes de pfe(?cu5211çges Câmara dos Deputados em 6 de Julho de 1850). Para e de 1851, e A Pátria, Janeiro de 17 e mesmo jaez na imprensa, ver A Nação, 2 zembro de 1855.
193 Q Patriota, 2 de Dezembro de 1850.
:
e dP u_ma.reformulaçao da já 194 Tratava-se da Companhia Luso-Brasileira, resultant ncia dlrçcta com uma em: concorrê em e estatal apoio existente Companhia Luzitana; sem ob lades;. ainda procurou 'dnflc'ulc_ grandes enfrentar a viria sileira Luso-Bra a presa inglesa, acal mas ), ocidental África à até o navegaçã ter um subsídio (em troca de estender a sua de 1856; para os estatutos ria por ser dissolvida (A Pátria, 29 de Janeiro e 13 de Abril 25 ; empresa, ver DG, 24 de Dezembro de 1852). 195 À Revolução de Septembro, 16 de Dezembro de 1850; ver igualmente a edição m de Dezembro do mesmo jornal.
tes de existirem os objectos das transacções e das trocas, e antes de se
criarem os hábitos e as relações comerciais, fora inverter a ordem e sucessão natural das coisas»; e, precisamente porque existia essa or-
dem natural, a comissão considerava que a iniciativa africana devia passar para segundo plano, devendo preferir-se a criação da companhia ferroviária, por ter «uma influência mais imediata e directa na prospe-
ridade agrícola, industrial e comercial do reino»!%, Ainda que o projecto fosse intempestivo, o poder político persistiu no seu afã de levar a cabo a navegação a vapor para África. Em 1856 chegou a firmar-se um contrato com Bernex Philipon (em representação de capitalistas nacionais e estrangeiros), contrato que depois se transferiu para uma Companhia Real Portuguesa de Navegação a Vapor que não chegou a organizar-se!º”. Só na parte final da década o governo conseguiria induzir alguns negociantes portugueses — Fortunato Chamiço Júnior, José Pereira Serzedelo, Joaquim Fradesso da Silveira e Cândido de Freitas Abreu —, associados a estrangeiros — W. S.
Lindsay e outros ingleses (que participavam por via da venda de navios a vapor, parcialmente pagos em acções), Duarte Medlicot, Francisco António Flores e Pinto Peres & C.º —, a formar
a Companhia
União
Mercantil. Inicialmente destinada a estabelecer a navegação a vapor para os Açores e a África Ocidental, a Companhia viria a assumir também, em contrato posterior, a navegação para o Algarve. Para levar a cabo a parte africana da sua actividade, a União Mercantil contava com apoio do Estado, que lhe garantia para além de um bónus inicial, subsídios anuais de 58 contos durante todo o período de exclusividade (20 anos)!98, A Companhia começou a operar apesar de não ter obtido o capital necessário para o fazer: dos 900 contos previstos, conseguiu apenas os cerca de 320 contos trazidos pelos sócios fundadores, o que a forçou a recorrer massivamente ao crédito bancário. A direcção da sociedade ainda tentou arranjar subscritores em Espanha e Inglaterra, mas o resultado foi nulo, e, em 1860, após dois anos de esforços, a União Mer196 Relatório de 6 de Março de 1851, in ibid., 2 de Junho de 1851. 197 Para o contrato com Philippon e o papel desempenhado por esse capitalista francês, ver DG, 28 de Junho de 1856, e Câmara dos Pares, sessão de 27 de Junho de 1863, in DL, 5 de Outubro de 1863 (discurso de Miguel do Canto).
198 Cf. BOGGPA, 9 de Outubro de 1858, pp. 5-8. Para o contrato de navegação para o Algarve, ver DG, 8 de Setembro de 1858.
413
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
metade eram es- : cantil tinha apenas 16 accionistas (dos quais mais dgeâ ; Nq posterior jn- ' trangeiros) e o mesmo capital com que se 1mclara1_ assim a situação: -se-ia quérito às actividades da Companhia, caracterizar
realizar o capital necessário, endividando-se sempre mais em meados de 1864, esgotados todos os meios de auxílio e indulgência, o governo pôs-lhe um ponto final, abrindo imediatamente um concurso público
a aãºsocmr—sç ,O projecto da companhia está público mas ninguém corre dores a corT1paà empresa [...]; 3600 acções eram as tomadas pelos func.la |
empresa. Mas, como não se apresentaram licitantes a concurso, acaba-
em condições
e
.
s
ferro entre Luanda e Cambambe e chegou a formar-se uma sociedade
é
200
para o efeito (que garantiria também dois vapores no Cuanza). A via férrea não arrancou e só em 10 de Junho de 1865 se assinou um con-
nín 1 Em 1861, para atrair investidores e evitar a falê_nçia da Compa pc.zlo1 2gluaMsq o governo e as Cortes aceitaram um contrato adicional , capital**. garantia aos accionistas um juro mínimo de 6% sobre o consese apenas dos, os resultados dessa operação não foram os espera -se, no Pot guindo obter cerca de 55 contos. Em Junho de 1861 tentou er resultad to, a emissão de 200 acções (18 contos), mas sem qualqu Em
Agosto desse mesmo
ano, um
novo_contrato
com )o Estado
trato com o luso-americano Archer da Silva, para levar a cabo a nave-
gação a vapor no Cuanza. A 6 de Setembro de 1866, Archer transferiria o contrato obtido para uma companhia fundada em Londres a partir de capitais ingleses e norte-americanos2%, Somente no final do período que aqui nos interessa as burguesias portuguesas deram provas tangíveis de pretenderem arriscar os seus dinheiros em África. Como subli-
a;z,_
nhou Mendes Leal, os capitais pareciam «desejosos, agora, de correr
estlmo de 4 9.& mentava a garantia de juro para 7% e avalizava um e.rppr que a Comu_ contos. Esse e outros balões de oxigénio ainda permitiram melhoroíl : nad.a ou pouco mas panhia se mantivesse por algum tempo, 98 ?cgoe í mais sua situação, uma vez que apenas foram tom'fldas dí.l «in (equivalentes a menos de 9 contos). Era a prova irrefutável «antiga e pe rença pública» ou daquilo a que Mendes Leal chamava a favores obi do—s apesar sistente insensibilidade dos capitais»?02. Como, consegui não tidos e de uma nova direcção, a União Mercantil
ao ultramar, quando até aqui eram tão remissos»2%, O objecto do súbito interesse era a formação do Banco Nacional Ultramarino, fundado
pelos irmãos Chamiço, a instâncias do governo, e cujos estatutos seriam aprovados em 11 de Agosto de 1864. Tratava-se de um banco privilegiado, isento de contribuições e impostos, ao qual o Estado atribuía um subsídio anual de 30 contos, e que operaria tanto no continente como no ultramar (tendo, neste caso, e excepção feita a Macau, o
exclusivo das operações bancárias). O banco previa um capital inicial de 4000 contos, mas admitia-se que começasse a sua actividade a partir do momento em que conseguisse um fundo de 800 contos2%,
199 pL, 18 de Agosto de 1863 e 28 de Junho de 1864. como Soares Fran , 200 Ihid., 5 de Julho de 1864 (itálicos meus). Alguns quiméricos dos Pog?u(g;x;s '
a faltg de apoio por exemplo, confessar-se-iam pasmados com a complet i le., hia Umao.Melícarlxtl Compan à África, com vam negocia que dos ar, e, em particul r(êu_ -se assinale 1863_), de Junho de de_27 de Outubro de 1863, Câmara dos Pares, sessão s a par ;cnp disposto mente alegada estariam Lisboa de praça da principais negociantes ou, até, para o Algarve, mas tãz; 3pe numa empresa de navegação a vapor para os Açoreã, dos Deputados, sessões Câmara (cf. o conjunt em África, ou para os três destinos 1865). de Maio de 9 e 6 ibid., 1865, de de Maio trouxessem a breve treclªlo uma pro 201 Para a esperança de que essas novas condições o.s, sessão de 26 díi blçvere%? Deputa(.i dos Câmara ver ia, cura nas acções da Companh Ti das Obras Públicas, ministro do 1861, in ibid., 28 de Fevereiro de 1861 (discurso
;
203 Para o contrato com a firma Bailey & Leetham, de Hull, ver ibid., 26 de Outubro
,
de 1864. Em 1867, uma companhia inglesa adquiriria o activo da União Mercantil e reassumiria a navegação para África, sob o nome de Empresa Lusitana (Clarence-Smith, ob.
: :
30 de Abril de 1864; para ave.x_press Hortº%)z. Id., sessão de 28 de Abril de 1864, in ibid., ldes da Companhia União l&;:t : «indiferença pública» no relatório de inquérito às actividf á ao longo do tempo, ver 1 acções das ntação movime e cantil, e para o mapa da emissão
5 e 8 de Julho de 1864, respectivamente.
AA
nova
manutenção da ligação a vapor com as colónias2º3. Em 1859 foi aberto concurso para a construção de um caminho de
vantagens queãa  verdade] a praça [de Lisboa] apreciava e aproveitava as Éransport,e,nrlnas não d empresa lhe proporcionava em aperfeiço.adf)s meios de asmo até lhe sacrise julgava, por isso, obrigada a ter patriotismo e entusi y Mercantil]ºº?. ficar os capitais, como pretendia a direcção [da União .
de uma
ria por contratar directamente com firmas estrangeiras para assegurar a
d.e Abril de 1861 [...]; [ng nhia, 3600 acções eram ainda as emitidas em 24
.
mais favoráveis para o estabelecimento
tit., p. 65):
204 Pinheiro Chagas, ob. cit., p. 164; Dias, «Angola», cit., p. 369. 205 Câmara dos Deputados, sessão de 28 de Abril de 1864, in DL, 30 de Abril de 1864 (itálico original). 206 Ihid., 19 de Agosto de 1864. Sobre a formação do banco, ver Braga Paixão, Cem anos do Banco Nacional Ultramarino na vida portuguesa, 1864-1964, t. 1, Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, s. d., pp. 5 e segs.; de assinalar que o banco não conseguiria o capital inícial previsto, só tendo podido começar a funcionar porque um decreto o autorizou a fazê-lo com apenas 500 contos, e que, posteriormente, apesar da existência do banco, foi escasso o investimento metropolitano nas colónias. 418
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
sar da sua lenta decadência,
A par dos planos para a formação de companhias coloniais — que mais não eram do que um déjà vu, um prolongamento onírico de im-
o volume do comércio brasileiro, com uma
potências regularmente manifestadas desde inícios do século -—, surgi-
percentagem que rondava os 12%-15% do comércio total, permaneceu muito mais importante do que o africano2!?,
ram algumas ambições comerciais de âmbito geralmente individual e
Houve também ambições de índole agrícola. Na viragem das déca-
mais modesto. Em 1841, Ribeiro dos Santos organizou uma expedição comercial a Angola, expedição que teve um fim desastrado, devido à
das de 1830 para 1840 surgiram alguns pedidos de concessão de terrenos nas colónias. Rio Tinto (o proprietário de O Nacional), José Inácio
doença e morte de vários dos seus membros (incluindo o próprio Ribeiro dos Santos)2º7. Por essa época, existiam já algumas casas comer-
de Seixas, José Ribeiro dos Santos e vários outros solicitaram (e obtiveram) terrenos baldios em Cabo Verde, para aí criarem estabelecimentos rurais e mercantis?!3, Tratava-se, como diria Lopes de Lima, de
ciais de Lisboa — como as de José Inácio de Seixas, António Joaquim
tes», como dizia, depreciativamente, Dias Damásio, mas nada que con-
uma ideia «bem lisonjeira», que, por momentos, fez supor «que sobre [Cabo Verde] iam derramar-se grossos capitais e dar à sua agricultura um impulso extraordinário». No entanto, os enfiteutas metropolitanos acabariam por dar «outro destino aos seus cabedais» e a expectativa gorou-se?!4, Pela mesma época concederam-se igualmente terrenos em Angola a alguns negociantes (entre os quais Francisco Batalha), mas
figurasse propriamente um «entusiasmo mercantil», como pretendiaw,w
também
ao invés, Lopes de Lima, as casas mercantis lisboetas envolvidas no
concessão de terras não se revelou a via que o Estado precisava para interessar os Portugueses pelas colónias de África. Em meados da década de 1840, o «infatigável lavrador» João Pereira Barbosa, que dez anos antes trocara o Brasil por Angola, para aí produzir café, constituía
de Oliveira, Francisco Batalha e outros — envolvidas na troca com Cabo Verde e Angola. Nos decénios seguintes, António Joaguim de Oliveira enviaria também
navios seus à costa oriental de África, como
Tomás Maria Bessone, seu colega na Associação Mercantil Lisbonense, já fazia?08, Sendo mais do que uma mera «meia dúzia de negocian-
comércio africano acabariam por ser parcialmente responsáveis pelo incremento do comércio colonial verificado em meados do séculoººº._ Contudo,
esse incremento
ficou muito
aquéI,n das expectativas
que.
previam a rápida substituição do Brasil por África. Como escrevia
talvez a única história de sucesso agrícola nas colónias (e, por isso, foi agraciado pela rainha)2!5. Ainda assim, um sucesso muito relativo,
o
redactor de O Patriota, em 1845, apesar da melhoria evidente, as rela-:,i
ções comerciais com África «esta[vam] longe de ser importantes»2!0;. seis anos depois, negociantes como Pinto Basto, Francisco Batqlha
|
outros continuavam a considerar que, ainda que o comércio de África estivesse «um pouco mais desenvolvido, tem sido para nós um comér cio quase nulo»?!!, Efectivamente, e não obstante um crescimento im- | portante na década de 1850, o comércio africano continuou a ser um
muito pequena parte do comércio total português. No início da década de 1840, o trato das possessões africanas corresponderia a menos d 1% desse total, tendo subido na década seguinte e estabilizado depoi por muitos anos em percentagens da ordem dos 3%-4%. Ou seja, ape
nesse caso os resultados foram escassos. Aliás, a política de
pois, como ele próprio confessava, «a África sempre é África, e não se podem comparar os seus produtos com as grandes vantagens que se fazem na América»?!6, Assim, em meados do século, e como o então
212 Clarence-Smith, 0b. cit., pp. 24-25 e 64; para as percentagens do comércio brasileiro no período de 1839-1851, ver Maria de Fátima Bonifácio, Seis Estudos sobre o Liberalismo Português, Estampa, Lisboa, 1996, p. 131.
?!3 DG, 5 de Janeiro de 1839, e DCD, sessão de 7 de Março de 1839, p. 497 (relatório
do ministro da Marinha); para os contratos estabelecidos com cerca de dúzia e meia de interessados, ver Boletim e Annaes do Conselho Ultramarino.
214 Lima, ob. cit., parte 1, p. 34. 207 Tams, ob. cit., pp. 45 e 149. 208 Bordalo, Ensaio ..., cit., p. 70.
209 DCD, sessão de 20 de Janeiro de 1849, p. 152 (discurso de Lopes de Lima); para comentário depreciativo de Dias Damásio, ver documentos anexos ao ofício de Falcão Gomes de Castro, 15 de Maio de 1843, ANTT, MNE, caixa 384.
210 O Patriota, 24 de Setembro de 1845. 211 A Revolução de Septembro, 2 de Junho de 1851. 416
215 Q epíteto de «infatigável lavrador» foi-lhe atribuído por Lopes de Lima (ibid., p. 48). No relatório lido às Cortes em Agosto de 1840, já Bonfim, então ministro da Marinha, louvava João Guilherme Pereira Barbosa, «o único homem que se tem votado à agricultura [colonial]» (cf. Annaes Marítimos e Coloniais, n.º 4, 1841, p. 164).
2!6 Carta de José Pereira Barbosa ao governador de Angola, datada de 17 de Outubro
de 1845, in DG, 6 de Janeiro de 1846. Para o percurso de Barbosa na colónia de Angola, ver Aida Freudenthal, «Arimos e Fazendas. A Transição Agrária em Angola, 1850-1875» (tese de mestrado não publicada), pp. 102 e segs.
AVTF
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
governador de Angola narrava em ofício confidencial ao ministro da Marinha, a agricultura angolana era um falhanço completo: Muitas e repetidas recomendações têm sido feitas acerca do aumento da agricultura, e seria esta a nossa tábua de salvação; e, que se tem conse-
guido? Nada ou quase nada [...]; onde estão esses capitais e esses homens brancos que queiram ir internar-se num sertão com a certeza de encontra-
rem moléstias perigosas e nenhuns meios para se tratarem?!7?.
o algodão e outros produtos por muito menor preço do que na América [...], os capitalistas da Europa hão-de lançar as suas vistas sobre a África
portuguesa??!, Mas eram falsas esperanças — aliás, não partilhadas pelos reservados — e, ainda que tivessem surgido alguns pedidos de terras por parte de investidores estrangeiros, nada resultou daí?2??. Para melhorar o incentivo legal e aproveitar a crise algodoeira de-
Apesar da escassez de resultados, a política de concessões retomou-se nos anos seguintes. Em 1854-1855 surgiram alguns candidatos a terrenos em Cabo Verde?!8, Mas seria em Angola e S. Tomé e Príncipe que, com o fim do tráfico para o Brasil, houve um nítido incremento da — economia de plantação. Alguns brasileiros e portugueses foram atraí- dos pelo baixo preço da mão-de-obra em África, numa altura em que esse preço subia no Brasil, e atravessaram o Atlântico para aproveitar a situação em Angola. Na década de 1850 surgiram plantações de cana-de-açúcar na costa e houve mesmo uma corrida à distribuição de terras no Golungo-Alto e no Cazengo para plantar café, de tal forma que em 1855 haveria 321 cultivadores no distrito do Cazengo (contra ape-
nas 36 no ano anterior); e o número de agricultores subiria para 1050 em 1856?!?, Mas eram, na sua grande malona agricultores negros, procuravam
africanos que, respon- “
obter a demarcação
e o reconhec
mento oficial das suas terras220, Em 1856, o governo fez passar uma lei de alienação de terrenos 7 baldios ultramarinos, que, como Sá da Bandeira confessava, visava ) atrair, para além do colono pobre, os capitalistas nacionais e, sobretu—_f. do, estrangeiros: É provável que quando as nossas colónias da África forem mais c nhecidas, quando se vir que, por exemplo, em Angola se pode ter o açúcar, 217 Anexo a ofício de Vila Nova de Ourém ao ministro dos Negócios Estrangeiros, 30 : de Maio de 1849, ANTT, MNE, caixa 387. | 218 Entre esses candidatos havia uma sociedade de que fazia parte Anselmo Jóséª;w
Braancamp (cf. Annaes do Conselho Ultramarino, Julho de 1854 e Junho de 1855, pp. 411 e 155-156, respectivamente). 219 DG, 30 de Abril de 1857. O cultivo do café não era isento de escolhos e, não ob: tante o progresso do sector da plantação, o núcleo das exportações para a metrópole continuou a provir das actividades agrícolas, recolectoras ou caçadoras dos povos mdlgenasx_ (Clarence-Smith, ob. cit., pp. 74-76); para as lamentações dos plantadores, ver as opiniões | de Cândido Fortunato da Costa e de Joaquim Rodrigues Graça, in BOGGPA, 13 de Janei de 1855 e 15 de Março de 1856, pp. 5-7 e 6-7, respectivamente.
220 Freudenthal, ob. cit., pp. 75 e 99 e segs.; Dias, «Angola», cit., pp. 441-442. 418
sencadeada com a guerra civil norte-americana, o governo dispôs-se a conceder terras em Angola e Moçambique (e depois também em Cabo Verde e na Índia), em condições ainda mais vantajosas «a quaisquer
sociedades, companhias ou indivíduos, nacionais ou estrangeiros, para a cultura do algodão ou de outros géneros». Instituíam-se prémios monetários para os melhores produtores e concediam-se isenções de direitos sobre a exportação de algodão e a importação de materiais, má-
quinas e utensílios necessários para a cultura e construção das plantações. Em compensação, e como era usual, os concessionários obrigavam-se a iniciar a exploração dos terrenos concedidos num prazo máximo de 5 anos, posto o que a concessão caducaria??3. As condições convidativas atraíram a atenção de uma dúzia de potenciais investidores, gente a quem foi concedida uma grande (por vezes muito grande) extensão de terreno, e que se comprometia, em troca, a criar companhias agrícolas com generosos fundos??. Infelizmente, as ex22! DCD, sessão de 14 de Julho de 1856, p. 198. 222 Em 1858, Carlos Bembé, agente de uma companhia alemã, solicitou terrenos nas margens do Zambeze, o conde Henrique d' Arpoire pediria um terreno na zona do Cuanza para plantar café e algodão e, pela mesma altura, falou-se numa sociedade de Manchester eventualmente interessada na exploração do algodão em Angola (Annaes do Conselho Ultramarino, Julho e Dezembro de 1858, pp. 605 e 675, respectivamente). Para o cepticismo sobre o resultado prático da legislação, ver Câmara dos Deputados, sessões de 19 e 20 de Janeiro de 1863, in DL, 21 e 23 de Janeiro de 1863 (discursos de Ferreri e de Carlos Bento) e Câmara dos Pares, sessão de 17 de Março de 1863, in ibid., 11 de Abril de 1863 (discurso de Vila Maior).
223 BOGGPA, 22 de Fevereiro de 1862, pp. 60-61 (decretos de 4 de Dezembro de 1861).
224 Em Angola, as maiores concessões, na ordem dos 170 000 ha de terreno, foram feitas ao Santos e 5000-10 entre os
inglês John Beaton, ao francês Jean de Bellegarde e à grande casa de Fonsecas, Viana; a maioria, porém, eram extensões muito mais pequenas, na ordem dos 000 ha (e os fundos exigidos contratualmente eram proporcionalmente menores); concessionários, estava Alfredo Duprat, o representante português na comissão
mista do Cabo; para a listagem das concessões então feitas, ver BOGGPA,
16 de Setembro
de 1865, p. 347; também houve um ou outro pedido de terrenos em Cabo Verde e Moçam-
bique (cf. Annaes do Conselho Ultramarino, Janeiro de 1862, Novembro de 1863 e Março de 1864, pp. 2, 88 e 30, respectivamente). 419
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
pectativas optimistas não se concretizaram e, por norma, essas grandes
x
trabalho e à abundância»228.
concessões foram completamente infrutíferas, com os contratos a ca-
ducarem sem qualquer aproveitamento??5. Localmente, e ao abrigo da lei de 1861 que autorizava os governadores coloniais a concessões não superiores aos 1000 ha, fizeram-se contratos de aforamento com can-
em extensão como em capital, que não prometiam a explosão produtiva há tanto tempo esperada (ainda que tenham originado um crescimento assinalável da produção algodoeira entre 1861 e 1865)225. Por ironia, a política de desenvolvimento colonial — que, em teoria, — devia suportar o abolicionismo suave — parecia depender sobretudo dos empreendedores locais, entre os quais se incluíam, em lugar de destaque, os negreiros ou ex-negreiros mais ou menos reconvertidos. Eram jl,j ) eles os maiores interessados no desenvolvimento de empreendimentos agrícolas e comerciais nas colónias para, de algum modo, ensaiarem a reconversão do que fora até então a sua actividade económica (doravante seriamente ameaçada). Refiram-se seguidamente várias iniciati- —
vas que tinham negreiros das colónias como seus principais motores, f porque elas são muito esclarecedoras, não só quanto à dinâmica desses motores,
mas
também
quanto
ao alheamento
dos
1831,
Martins retomaria a ideia já
guelista???. No final da década, já como barão da ilha do Sal, e ligado a
didatos locais, mas eram empreendimentos muito mais modestos, tanto
meios
Em
avançada como deputado, propondo-a, sem sucesso, ao governo mitrês dos comerciantes de Lisboa que então se haviam candidatado à concessão de terrenos em Cabo Verde — José Inácio de Seixas, João Gomes da Costa e Jerónimo Brandão e Sousa —, planeou uma Companhia de Guiné, cujos estatutos seriam aprovados pelo governo em Maio de 1839. O capital previsto era de 800 contos e à Companhia caberia administrar todos os estabelecimentos estatais na Guiné, podendo am-
pliá-los e fortificá-los. Concedia-se-lhe o monopólio da importação e exportação e a isenção de direitos por um período de 10 anos, obrigando-se a Companhia, por seu lado, a fomentar a missionação e a promover o povoamento??O, Contudo, o plano nunca chegou a ir avante, apesar de, em 1843, Martins ainda procurar reanimá-lo, pedindo ao governo a aprovação de novos estatutos??!. Mas não se passou daí porque, como diria Tavares de Macedo mais tarde, os próprios accionistas terão entendido que não valeria a pena???. Aliás, Martins acabaria por morrer em 1845 e o assunto arquivou-se.
A Companhia
financeiros
| metropolitanos. Logo no fim de 1822, Manuel António Martins apresentou um projecto para a constituição de uma companhia para Cabo Verde e Guiné para a qual pedia um exclusivo de 20 anos??7, A proposta baixou à comissão de comércio das Cortes, de onde não voltaria. Alguns anos de- ) pois, o proponente tentou, apoiado pelo governo, pôr de pé uma em presa de pescarias em Cabo Verde. Fez alguns investimentos, forneceu barcos, redes e anzóis, construiu um armazém, mas a iniciativa morreu »
por desinteresse dos locais, que «preferiam a vadiagem e a miséria, ao
de Agricultura e Indústria de Angola e Benguela
formou-se em Luanda, em
1836, sob proposta do então governador,
D. Domingos Oliveira Daun, irmão do marquês de Saldanha. Na carta que então escreveu ao irmão, D. Domingos pedia-lhe que tomasse «al+ gumas acções», porque a iniciativa angolana arrancara com apenas 72
subscritores locais que não garantiam fundos superiores a 30 contos?33. Para realizar o resto do capital previsto (80 contos), os directores da
sociedade contavam com a participação de accionistas metropolitanos. Para tanto, conseguiram o patrocínio da Associação Mercantil Lisbonense, que fez publicar em dois dos mais importantes jornais portugueses um anúncio sobre a formação da empresa angolana, na expectativa de que os negociantes do Reino adquirissem o resto das acções2%º, A Companhia seria aprovada pelo governo de Lisboa, mas não reco-
225 Chagas, ob. cit., pp. 117-118, 123, 155-156, 160 e 163. A excepção à regra diz res-
peito à concessão de mais de 9000 ha feita a Teresa Torres Barruncho, que viria a ser )
228 Juízo a posteriori do Boletim Official do Governo-Geral de Cabo Verde, 29 de Junho de 1844, p. 260.
Y
22º Faro, ob. cit., pp. 205 e segs. 230 Tito Augusto de Carvalho, ob. cir., pp. 86-88; para os estatutos da Companhia, ver
a grande exportadora de algodão de Benguela em 1863-64 (cf. Dias, «Angola», cit., )
p. 435).
226 Para relações das cerca de 29 concessões então efectuadas, ver BOGGPA, 10 de
Outubro de 1863, 23 de Abril de 1864 e 18 de Março e 9 de Setembro de 1865, pp. 340,í 138, 109-110 e 335-336, respectivamente. Para o incremento da produção algodoeira do: distritos de Benguela e Moçâmedes no período imediatamente anterior a 1865, ver Dias, »
Annaes do Conselho Ultramarino, Abril de 1855, pp. 92 e segs.
227 Diário das Cortes, sessão de 20 de Dezembro de 1822, p. 216; Santa Rita, ob. cit. pp. 85-87.
231 A Revolução de Septembro, 11 de Março de 1843. 232 DCD, sessão de 17 de Abril de 1855, p. 140. 233 ?liveisra Daun ao marquês de Saldanha, 7 de Março de 1836, in Documentos àcercaseit.p.s. 234 Cf. O Nacional, 24 de Agosto de 1836.
420
491
«Angola», cit., pp. 435-436.
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
Esta matriz de iniciativa colonial e desinteresse metropolitano manter-se-ia nos anos seguintes. Por vezes a iniciativa era de âmbito
lheu subscrições suficientes, vindo posteriormente a cessar toda a actividade não apenas porque D. Domingos morreu em 21 de Agosto de 1836, vítima de febres, mas porque os accionistas locais continuaram a optar pelo comércio de escravos, mais rentável??5, Em Moçambique surgiu um empreendimento análogo, também estimulado pelo governador, e que obteve o patrocínio do próprio Sá da Bandeira. A iniciativa, que apontava para um capital de 500 contos (em moeda da província, equivalente a cerca de 200 contos em moeda forte), foi apresentada às Cortes por via do ministério da Marinha, para que as mesmas a aprovassem «prontamente»2%, O regulamento da Companhia foi, entretanto, sancionado pelo governo, ficando apenas em suspenso três artigos que, implicando a concessão de privilégios, careciam de autorização legislativa?37. Como essa autorização tardasse, O governo aprovou-os por decreto em 13 de Maio de 1840º%8. Mas a Companhia gorou-se, tal como as suas congéneres, e neste caso o desaire foi mesmo absoluto, uma vez que a iniciativa não conseguiu um
puramente africano, com os governadores coloniais a tentarem atrair os
capitais locais para empreendimentos lícitos. Outras vezes as iniciati-
vas partiam de particulares, geralmente implicados no tráfico de escravos, e destinavam-se aos investidores europeus. Era o caso de Arsénio
Pompílio Pompeu de Carpo, que, em 1848, acalentou o projecto de formar uma sociedade que construísse e explorasse uma via férrea de Luanda ao Calumbo e uma serração movida a vapor no vale do Cuanza.
Associavam-se ao seu projecto Eduardo Possolo (filho do ex-governador de Angola), Alberto Schutz (cônsul português em Hamburgo, com ne-
gócios em Luanda) e Silvano Pereira (negociante português sediado
em Londres). O capital previsto era de 150 contos e o projecto, que
surgia envolto em roupagens humanitaristas, convidando os «verdadei-
ros filantropos» a que tomassem acções «a fim de melhorar a sorte dos
pretos de África», prometia um lucro de 10% ao ano2%!. Mas, se bem que tivesse agentes credíveis no estrangeiro e em Lisboa — Francisco Batalha, no caso —, encarregados de angariar accionistas, o projecto
só subscritor, nem na metrópole nem no Estado da Índia?3º. O estron-
doso desaire da projectada Companhia de Moçambique foi mesmo usado pela Associação Mercantil Lisbonense para fazer um balanço » desalentado do que poderia esperar-se com a formação de companhias » comerciais para as colónias:
não suscitou o interesse necessário.
A iniciativa dos negreiros abria-se tanto ao comércio como à agricultura e à mineração. Na parte final da década de 1830, Caetano José
Nosolini e a sua mulher africana, Aurélia Correia, que se mantiveram
Tratar hoje de instalar nesta capital uma Companhia, seria acreditar numa ilusão, sem dar um passo no objecto a que se propusesse, e muito mais para partes tão longínquas. De Moçambique há dois anos apareceram aqui os estatutos de uma Companhia de Agricultura já ali formada; tudo parecia vantajoso; fizeram-se convites públicos; ninguém subscreveu29! 235 Para os propósitos e intenções declaradas da Companhia, ver J. J. de Carvalho, ob. -
cit., pp. 159-160.
:
236 Sá da Bandeira ao ministro da Marinha, 7 de Fevereiro de 1838, ANTT, MNE, livro 316.. 2371 DG, 29 de Maio de 1838.
|
envolvidos no tráfico até à década de 1840, tentaram desenvolver plantações na parte ocidental da ilha de Bolama?42?. Terão sido mesmo os primeiros que tomaram a iniciativa de cultivar amendoim para exportação. Contudo, o empreendimento era ambivalente, se não mesmo uma simples capa para o prosseguimento do tráfico, uma vez que, como era prática corrente, os escravos que trabalhavam nas plantações poderiam ser exportados a todo o momento. Em Dezembro de 1838, o brigue Brisk, da Royal Navy, atacou a plantação, capturando 212 escravos, que remeteu para a Serra Leoa; regressou no ano seguinte, causando
238 Tito Augusto de Carvalho, ob. cit., pp. 75-76. 239 Para a recusa de Goa, Damão e Diu em participar nos fundos da Companhia, ver
mais
estragos, que terão levado
Nosolini
a abandonar
o em-
testemunho do deputado Peres da Silva (DCD, sessão de 15 de Outubro de 1840, p. 319); sobre a total falta de receptividade da cidade do Porto ao projecto da Companhia Moçam-
bicana, ver Capela, A Burguesia Mercantil ..., cit., p. 17. 240 Parecer sobre a formação de uma Companhia para o Estado da Índia, 3 de Julho de | 1840, Livro de Actas da Associação Mercantil Lisbonense, pp. 250-251. Deve assinalar-se. que, em 1840, o deputado moçambicano Teodorico Abranches afirmou nas Cortes (DCD, sessão de 15 de Outubro de 1840, p. 326) que existiriam dois subscritores em Lisboa, um com 5 e outro com cerca de 15 contos, e que a Companhia conseguira já um total de 100 contos (ou seja, um pouco menos de metade do capital previsto). Mas nada encontrei que confirmasse tal afirmação.
| ) .
24! Para a intitulada Companhia Africana Ocidental Portuguesa, ver Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo, Projecto d'uma Companhia para o melhoramento do commercio, agricultura e industria na Provincia de Angola, que se deve estabelecer na cidade de S. Paulo d'Assumpção de Loanda, Lisboa, 1848, p. 7. Sobre a ligação de Eduardo Possolo a Arsénio de Carpo e, por essa via, ao tráfico de escravos, ver A Revolução de Septembro, 9 de Janeiro de 1845.
24º Carreira, ob. cit., pp. 42-44. 452
Os sons do silêncio
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
preendimento?*3. Em Angola, Ana Joaquina dos Santqs Silva foi igualmente uma das primeiras a inovar, tentando produzir açúcar no
tram como a política africana de Lisboa estava ligada às iniciativas dos ex-negreiros, homens que acabavam por ser os mais receptivos desti-
Bengo. O estabelecimento de um engenho exigia cerca de v,mte vezes
natários e executantes da mensagem
o capital requerido para arrancar com uma plantação de cAafe ou de algodão, e a investidora associou-se inicialmente ao fr.ances l?lerre Reguaise?Ht, Se bem que a sociedade se tivesse dissolvido muito precocemente, Ana Joaquina preserverou, embora sem grande lucro?*, José
Maria Matoso também tentou investir na agricultura, tal como Arsénio de Carpo e o seu sócio, Mirandinha, os quais viriam a fazer uma pro- À posta ao governo para a colonização da região do Huíla, proposta recu- — sada após parecer negativo da Associação Marítima e Coloma]ºªªª. A recusa governamental ao plano de Carpo não deve ser vista como sinal de uma aversão inultrapassável do poder político aos negreiros e : ex-negreiros. O governo de Lisboa conceder-lhes-ia terras, isçn_ções fiscais e explorações mineiras e, por vezes, com resultados positivos. » A concessão, em 1853, de terrenos baldios na ilha do Príncipe a João
Maria de Sousa e Almeida estaria mesmo no arranque da economia de plantação no arquipélago?*7. Mas, tanto antes como depois, foram fei: tas concessões a notórios traficantes, como Jacome Filipe Torres, José y
Maria Matoso, Arsénio de Carpo ou Francisco António Flores — O mesmo homem que viria a estar com os seus associados londrinos da ' Pinto Peres & C., na génese da Companhia União Mercantil, de que » atrás se falou?8. As concessões feitas a Flores são as que melhor ilus-
243 Td., ibid., pp. 32-33; G. E. Brooks, ob. cit., p. 314; o cultivo do amendoim para exportação seria depois continuado por António Ferreira e João Marques de Barros (cf. Boletim Official do Governo-Geral de Cabo Verde, 25 de Maio de 1852, pp. 377-378). '
244 Jackson e Gabriel a Palmerston, 14 de Fevereiro de 1848, PRO FO 84/719; e BOGGPA, 12 de Setembro de 1846. 245 Freudenthal, o0b. cit., p. 93.
246 Annaes Maritimos e Coloniaes, n.º 11, 1845, pp. 456-457. Carpo e Mirandinha já antes haviam proposto a formação de uma companhia de mineração, em .Massangano,_ei outra de colonização, no Lobito (cf. «Memória sobre Angola», parte sexta, in A Revolução | de Septembro, 1846). 247 Sousa e Almeida, um natural da ilha que fizera fortuna com o tráfico em Benguela, f viria a ser um dos impulsionadores da cultura do café e do cacau, sendo, por isso, recom- ) pensado com comendas e o título de barão de Agua-Izé. Para a conf:essão dos terrenos na | ilha do Príncipe, ver O Portuguez, 22 de Novembro de 1853; ver 1gl_1almente Alexa.ndNre, Origens ..., cit., p. 53; para a lista de plantadores do arquipélago premiados nas exposições de Londres (1862) e do Porto (1865), ver Annaes do Conselho Ultramarino, Maio de 1866,
BAA
é
248 Para o envolvimento de Pinto Peres & C.º no tráfico, ver o processo do navio New- '
port, caixa 43, maços 6 (doc. 14) e 17 (doc. 12); os agentes da Companhia União Mercan-ªâ;'l ANA
A
quimérica.
Foi Flores que, para
poder explorar algumas minas de cobre, levou o governo português à ocupação do Bembe, em 1856, custeando grande parte das despesas da expedição militar, obrigando-se à construção de uma estrada no prazo de três anos e a cumprir um programa de colonização, em troca da concessão das minas por tempo ilimitado??9. A concessão ao negreiro
brasileiro provocou
forte reacção da embaixada inglesa em Lisboa e
uma muito significativa resposta de Sá da Bandeira:
Li no Diário do Governo que tinha sido feita, há algum tempo, a concessão das minas do Ambriz a Francisco António Flores, concessão que como V. sabe, desagradou bastante ao meu governo. Ouso esperar que [...] não venha a ser o pretexto para que esse famigerado negreiro seja autorizado a regressar a Angola ou a Ambriz [...], porque por várias vezes recebi ordens para declarar que o meu governo consideraria tal permissão como um acto destinado a encorajar o tráfico de escravos da parte de
Portugal [...]. Quero crer que o vosso [governo] não se fiará demasiado
nas garantias que o Flores deu de ter abandonado o tráfico de Eescravos, uma vez que há todas as razões para crer que ainda em 1854 ele exercia o referido tráfico. A isto, Sá replicou:
Quanto ao Flores pode ter a certeza de que, enquanto eu for ministro, não lhe será dada autorização para voltar a Angola [...]. Há um ponto em que não podemos estar de acordo: V. pensa que um negreiro nunca poderá vir a ser um industrial sincero; e eu, muito embora tenha uma opinião pa-
recida com a sua, creio contudo que deve ser dado todo o apoio a trafi-
cantes de escravos que queiram ter iniciativas honestas250,
A ocupação da zona do Bembe e a concessão da mina de cobre a Francisco António Flores foram louvadas por alguma imprensa como sendo a aurora de uma nova era de abundância. O Jornal Marinha e til em Luanda e S. Tomé eram igualmente ex-negreiros (respectivamente, Augusto Garrido e Sousa e Almeida).
?%º Condições aceites por decreto de 1855 (cf. BOGGPA, 14 de Fevereiro de 1857,
pp. 1-3); Flores não cumpriu as contrapartidas a que se comprometera.
250 Howard de Walden a Sá da Bandeira e resposta deste, ambas de 16 de Outubro de
1856, AHM, Arquivo Sá da Bandeira, caixa 5 (itálico meu); de Londres, onde estava como embaixador, Layradio confessava-se igualmente surpreendido com a concessão feita a um homem como Flores (Lavradio a Atouguia, 16 de Março de 1856, AMNE, caixa 985). a 6 ds
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
eldorado e lhes acenavam com os «desmesurados salários» que lá se
Colónias, para o qual essas minas seriam «talvez as mais ricas do mundo», antevia grandes transformações: «o exemplo está aberto; os possuidores de capitais não têm mais do que segui-lo»?5!. Vivia-se, então, a mania mineira na sequência do gold rush da Califórnia e da Austrália, e o deslumbramento tocava igualmente Portugal, transbordando para as colónias. Em conformidade, a segunda metade da década de 1850 e início da de 1860 foi fértil na concessão de minas, tanto a ex-negreiros como Flores ou Carpo, como a outras pessoas — entre as
auferiam, acorriam às terras brasileiras a uma cadência que o Diário do Governo, já em 1838, considerava «espantosa»25º,
O volume dessa emigração é difícil de asseverar com rigor, mas era
incontestavelmente grande. Uma notícia do Rio informava que em 1837 haviam chegado mais de 12 000 portugueses da Madeira e dos Açores àquela cidade?55. Em meados de 1842, o ministro da Marinha remetia, alarmado,
quais, Domingos Pinto Basto, que pretendeu pesquisar minas em Cabo
Verde?5?. Mas a esmagadora maioria dessas concessões foi improdutiva, até porque coincidiu com um período de turbulência militar em Angola e Moçambique. O próprio Flores acabaria por ceder a sua concessão no Bembe a uma companhia que conseguiu formar em Londres — a Western Africa Malachite Copper Mines Company Ltd. —, mas a
——
exploração nunca foi rentável, vindo a ser abandonada no início da dé-
À
cada de 1870, após ter exportado algum cobre para Lisboa (ao cuidado de Pinto Basto)2*?.
»
ao seu homólogo
dos Estrangeiros
um
mapa
de-
monstrativo dos navios entrados no Rio de Janeiro entre 23 de Dezembro de 1842 e 15 de Fevereiro de 1843, pelo qual se via que tinham sido transportados 1673 passageiros em navios provenientes dos Açores, do Norte e de Lisboa?”. De facto, a emigração portuguesa não provinha toda das ilhas. O continente, sobretudo as regiões de Porto e Minho, fornecia a mais substancial fatia de emigrantes. Após a ruptura dinástica, e passado um período de flutuação e de incerteza, os hábitos
antigos renovavam-se e o Brasil voltava a ser procurado para tentar fortuna?57?. De acordo com os dados do consulado português na cidade, terão chegado 25 000 portugueses entre 1853 e 1855, e, a fazer fé numa petição apresentada pela cidade do Porto, em 1856 terão emigrado
2.2. ... nem homens
mais 13 000 almas?*8,
Tal como não existiram interesses económicos metropolitanos sufí- cientemente pujantes e consistentes para propulsionar a formação de uma companhia colonial — e para sustentar precocemente uma política » antitráfico —, também não existiu uma população disposta a procurar o ) sustento e a fortuna nas praias e sertões africanos. O estabelecimento de europeus nas colónias era uma das pré-condições do plano colonia de Sá da Bandeira e outros projectistas quiméricos, mas também aí es se plano falhou rotundamente desde o início. Os caixeiros, os trabalha dores rurais e os deserdados da sorte, atraídos pela propaganda das as sociações colonizadoras brasileiras, que lhes pintavam o Brasil como.
sil constituiu o destino de 86% dos emigrantes portugueses (o que equivale a quase 71 000 pessoas, no período em causa)2º. O remanescente fluía para os Estados Unidos e, principalmente, para algumas possessões britânicas. Neste último caso, tratava-se de uma emigração
De 1855 a 1865, e de acordo com as estatísticas disponíveis, o Bra-
251 Marinha e Colónias, | de Fevereiro de 1857, pp. 5-6. 252 Annaes do Conselho Ultramarino, Fevereiro de 1857, p. 566; para as concess: em Angola, ver BOGGPA, 14 de Fevereiro, 11 e 25 de Julho de 1857; 9 de Abril de 1859 1 e 22 de Fevereiro, 24 de Maio e 6 de Setembro de 1862; 17 de Janeiro e 26 de Sete bro de 1863; e Boletim do Governo-Geral da Provincia de Moçambique, 12 de Junho
1858.
253 Alexandre, Origens ..., cit., p. 52. Pélissier, ob. cit., p. 103; sobre a Western Af
254 DG, 13 de Janeiro de 1838.
255 Ibid., 22 de Outubro de 1838. 256 Falcão a Gomes de Castro, 11 de Maio de 1843, ANTT, MNE, caixa 384. 257 A emigração nortenha portuguesa de meados do século, composta sobretudo de jovens que sabiam ler, escrever e contar, dirigia-se de preferência ao Rio de Janeiro e às actividades industriais e comerciais. Até meados do século, o tráfico de escravos foi uma das actividades comerciais que atraiu portugueses ao Brasil, como o atestam as carreiras de alguns dos grandes negreiros e como ficou literariamente espelhado no romance de Camilo Castelo Branco, A filha do Doutor Negro, Lisboa, 1919 (1.º ed.: 1864), pp. 214 e segs.; após o fim do tráfico brasileiro, alguns portugueses passaram a dedicar-se ao tráfico de mão-de-obra europeia (ver, a esse respeito, DL, 7 de Outubro de 1861, representação de José Barbosa contra João Baptista Moreira). 258 Jules Duval, Histoire de | 'émigration au xIXº siêcle. Europeênne, asiatique et africaine. Ses causes, ses caractêres, ses effets, Paris, 1862, p. 165.
25º Joel Serrão,
A Emigração Portuguesa. Sondagem Histórica, Horizonte, Lisboa,
ca Malachite Copper Mines Company Ltd., ver BOGGPA, 9 de Abril de 1859, PP 1-2 para a relação de carregamentos de cobre enviados para Lisboa, ver ibid., 24 de Maio 1862 e de 23 de Janeiro de 1864, pp. 148-149 e 25, respectivamente.
1977 (1.º ed.: 1972), pp. 42-43; Miriam Halpern Pereira, A Política Portuguesa de Emigração 1850-1930, A Regra do Jogo, Lisboa, 1981, p. 15.
ADAÁ
4T
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas ?
Os sons do silêncio
já residual, mas que chegara a assumir grande importância em
anteriores. Com
a emancipação,
anos
decretada e imposta na década
de
1830, as colónias inglesas na América confrontaram-se com um sério problema de carência de mão-de-obra, devido à relutância dos ex-es-
cravos em trabalhar como assalariados?6º, A única solução era encorajar a imigração de uma população que pudesse fomentar a competição em termos de emprego, garantindo braços e fazendo descer o nível dos salários. Logo em 1835, os governadores das West Indies, pressionados pelos plantadores autorizaram a imigração dos chamados recaptu--— rados (isto é, dos escravos capturados a bordo dos negreiros). Essa prática, 1n1c1almente contrariada pelo governo de Londres por motivos de elementar seriedade política, acabaria por ser aceite, com restrições, quando a necessidade se sobrepôs ao escrúpulo. Entre 1841 e 1847, / cerca de 36 000 africanos libertados em Santa Helena e na Serra Leoa foram transportados para as West Indies. A esse número juntaram-se perto de 100 000 asiáticos e também alguns milhares de europeus, en-
lotação só permitia 54º6, Alguns anos depois, o patacho Arrogante, cuja lotação legal era de 89 pessoas, transportou quase 400 para o Brasil?65, Na galera Defensora, que saíra superlotada do Porto, perderam-se 35 passageiros, vítimas da fome e dos maus tratos266, Tais condições de transporte, e a situação de exploração que muitas vezes esperava os que hipotecavam temporariamente a sua força de trabalho em troca de alimentação e passagem gratuita para as Américas, mereceram na época o nome de escravatura branca e originaram inúmeras representa-
ções, denúncias e queixas, sobretudo da comunidade portuguesa no Brasil, impressionada com o estado de degradação em que cafam as vítimas de um novo tráfico?67, A escravatura branca suscitou a atenção das Cortes portuguesas lo-
go em 1836, justificando intervenções no sentido de cercear o fluxo migratório ou, em alternativa, de o fazer inflectir para África?68. Em
1838, o Parlamento nomeou mesmo uma comissão especial para estu-
dar o assunto, mas não houve oportunidade de apreciar as suas conclusões. No ano seguinte, Sá da Bandeira, um dos mais empenhados em
tre os quais sobressaífam os portugueses da Madeira, onde uma grave crise agrícola estimulava a emigração?6!. Em 1841, a Guiana ingle
desviar a hemorragia de braços das Américas para as colónias africa-
abriu as portas a quase 4300 madeirenses; em 1845, num período de um pouco mais de 12 meses, chegaram mais de 8500, e essa corrente
nas, pediria a reactivação dessa comissão?6º, Em 1842 apresentaria um projecto de lei destinado a dificultar a emigração e voltaria ao assunto
humana prosseguiu, favorecida pelo governo inglês através da conce são de prémios aos transportadores. Se bem que a importância do flu
ver», dirigindo a emigração para África, a fim de estabelecer colónias,
nos anos seguintes, incentivando o governo a que fizesse «o seu de-
migratório tivesse minguado nos finais da década de 1850, até 18 | terão emigrado para as West Indies mais de 33 000 madeirenses (27 000
«em locais sadios»27º,
dos quais para a Guiana)26?, A emigração para os Estados Unidos teve uma dimensão muito me-
264 W. A. Green, British Slave Emancipation, cit., pp. 286-728.
nor. Entre 1855 e 1865 entraram no país perto de 3000 açorianos, | que constituía um incremento importante, já que, de acordo com a es-
265 Câmara dos Pares, sessão de 3 de Abril de 1854, in DG, 24 de Abril de 1854 (informação de Gomes de Castro);
tatística oficial norte-americana, no período de 1819 a 1855 não terã_
emigrado para os Estados Unidos mais do que 2000 portugueses?63, As condições de transporte dos emigrados, tanto para o Brasil co
»
por exemplo, aportou a Demerara com 213 passageiros, quando a
A Revolução de Septembro, 13 de Fevereiro de 1854.
266 DCD, sessão de 7 de Julho de 1855, p. 112 (discurso de Justino de Freitas). Dos 35 navios de emigrados que entraram no Rio, provenientes de Portugal, entre 1855 e 1861, 32 iam com excesso de passageiros, trazendo mais (ou muito mais) do que a sua tonelagem permitia (ver a respectiva lista in DL, 24 de Outubro de 1861).
267 O Nacional (Porto), 13 de Julho de 1846; O Patriota, 13 de Outubro de 1851. Na década de 1860, a polémica em torno da actuação do cônsul-geral João Baptista Moreira atingiu enormes proporções, sendo extensamente publicitada no Diário de Lisboa de 5 de Outubro de 1861 em diante.
268 DCD, sessões de 18 de Janeiro e de 5 de Fevereiro de 1836, pp. 117-118 e 349-350, 260 W. A. Green, «Was British emancipation a success? The abolitionist perspectiv in Richardson (ed.), cit., p. 188.
26! Td., «The West Indies and British West African policy in the nineteenth-century, A corrective comment», in The Journal of African History, Xv, 2, 1974, p. 257; Curti Image of Africa ..., cit., pp. 438 e segs. 262 W, A. Green, British Slave Emancipation,
cit., p. 287.
263 Duval, ob. cit., p. 168; Serrão, ob. cit., p. 42. 47IR
respectivamente (discursos de Leonel Tavares e de Passos Manuel).
26 Ibid., sessão de 7 de Março de 1839, p. 496. 270 DCP, sessão de 26 de Abril de 1843, pp. 354-355. Para opiniões convergentes, ver as intervenções de Lavradio e Linhares na mesma sessão; para o projecto de lei de 1842, ver sessão de 16 de Agosto de 1842, p. 164. Na sua constante insistência para que se desviasse a emigração para as colónias africanas, Sá recorria, por vezes, ao argumento paradoxal de que a emigração para Demerara conduzia à morte, dada a insalubridade da coló-
4299
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
Na medida em que as circunstâncias concretas desaconselhavam a tomada de medidas drásticas, o governo e os órgãos legislativos pouco mais podiam fazer do que criar alternativas e utilizar meios indirectos para estimular o povoamento da África (e para condicionar, nos limites da legalidade e da conveniência, a debandada para as Américas). Nesse
Os mais fervorosos partidários das colónias preconizavam a aplica-
ção de meios fortes para impedir a emigração??!. Mas essas pretensões raramente vingavam devido à oposição dos contemporizadores. Consideravam estes que, dadas as condições do país, a emigração acabava por ser benéfica para todos; o movimento de minhotos para o Brasil constituía «uma emigração natural, porque quase todos têm ali os seus
sentido se compreende a política de concessão de passaportes gratuitos
e auxílios de fixação para todos os oficiais mecânicos e respectivas famílias que pretendessem passar-se para as províncias africanas, posta em campo logo no início de 1837. E se compreendem, também, as normas que impunham limites ao número de emigrados transportados
parentes [...] e, por consequência, tudo quanto se fizesse para impedir a
emigração desta província seria dar-lhe um grande prejuízo»?”?; analogamente, e atendendo à ruína que lhe estava subjacente, a emigração da Madeira era vista como um bem, não se devendo «obstar a que essa
gente, não tendo no seu país modo de vida, o vá procurar fora»?73, Aliás, seria inconstitucional restringir os movimentos a homens juridicamente livres, além do que os emigrantes contratavam livre e espon-
em cada barco que saía dos portos portugueses com destino às Américas — normas que, num outro plano, visavam a salvaguarda de condi-
taneamente com os comandantes
última instância qualquer eventual desvio da emigração das Américas -
Mas nenhuma dessas medidas se revelou eficaz. Para o emigrante pobre, a evitação de África explicava-se não só pelo estado sanitário das colónias mas também por razões de natureza económica e administrativa. Não há dúvida de que a imagem de sepulcro do europeu era fortemente dissuasora, mas é provável que condicionasse mais a emigração das camadas letradas do que a de seres humanos num estado de extrema miséria, como eram os madeirenses que, apesar de tudo, se
para as Áfricas portuguesas dependeria sempre, como
dispunham a ir para a Guiana — cuja salubridade também não era pro-
ções de viagem minimamente humanas?276.
dos navios e não cabia ao governo
constituir-se em tutor de cada indivíduo, para o obrigar a fazer o con- — trário do que ele entendia ser melhor para si””4. Também não conviria — hostilizar os governos amigos da Grã-Bretanha e, principalmente, do — Brasil, que utilizavam meios perfeitamente legítimos para atrair colo- nos às suas terras. E, ainda que nenhuma dessas razões existisse, em
)
notava Gomes
de Castro, «dos colonos quererem, e [...] de dinheiro para os trazer para |
priamente modelar. Todavia, mesmo que as condições (ou a reputação
ali»275,
das condições)
de saúde pública fossem
semelhantes,
a África seria
normalmente preterida em favor das Américas, já que pouco ou nada teria a oferecer a quem não dispunha de mais do que a sua força de trania inglesa (Câmara dos Pares, sessões de 3 de Julho de 1849 e de 26 de Abril de 1850, in DG, 4 de Setembro de 1849 e 30 de Abril de 1850). 271 DCD, sessão de 17 de Abril de 1855, p. 138 (discurso de Castro Guedes); sessão d 19 de Maio de 1857, p. 233 (discurso de Silvestre Ribeiro); sessão de 27 de Junho de 1860, pp. 356-735 (discurso de Portocarrero). |
272 DCP, sessão de 26 de Abril de 1843, p. 353 (discurso de Gomes de Castro); v também: O Puritano, 18 de Setembro de 1846; Câmara dos Pares, sessões de 3 de Abril 1854, in DG, 24 de Abril de 1854 (discurso de Gomes de Castro); id., sessão de 12 de J neiro de 1863, in DL, 17 de Janeiro de 1863 (discurso de Ferrão).
273 DCP, sessão de 26 de Abril de 1843, p. 355 (discurso de Ornelas). Para uma defesa ainda mais veemente da emigração madeirense, ver Câmara dos Pares, sessão de 3 de J lho de 1849, in DG, 4 de Setembro de 1849 (discursos de Palmela e, sobretudo, do bar
balho. Sem capital, sem máquinas e instrumentos agrícolas,
o madei-
rense médio, mesmo que sobrevivesse ao «clima», não poderia sequer competir no mercado de trabalho com uma mão-de-obra escrava superabundante. Por outro lado, parecia haver uma desconfiança visceral quanto ao que era nacional. Silvestre Ribeiro contava, nas Cortes, que os Madeirenses recusavam a ida para Cabo Verde por falta de confiança nas promessas do governo português; e A Revolução de Septembro
atribuía a aversão portuguesa à emigração para África não só ao «horror» da insalubridade local, mas também à «pouca fé na suficiência agrícola daquelas terras»277,
de S. Pedro), e DCD, sessão de 11 de Janeiro de 1858, pp. 77 e 80 (discursos de Noguei e Lousada, respectivamente).
274 DCP, sessão de 26 de Abril de 1843, p. 354 (discursos de Vila Real e de Gomes d Á. Castro); Câmara dos Pares, sessão de 3 de Julho de 1849, in DG, 4 de Setembro de 184& (discurso de Palmela e do barão de S. Pedro); e ibid., 8 de Outubro de 1861 (artigo de Josólw Feliciano de Castilho).
275 DCP, sessão de 26 de Abril de 1843, p. 356. 430
276 Para o debate da lei de 1855, ver DCD, sessão de 11 de Julho de 1855, e Câmara dos Pares, sessão de 13 de Julho de 1855, in DG, 9 de Agosto de 1855.
277 DCD, sessão de 28 de Maio de 1853, p. 284; A Revolução de Septembro, 28 de Novembro de 1850.
431
Os sons do silêncio
Então,
por razões
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
médicas,
económicas
e psicológicas,
a África
talidade — «apesar de ser aqui a Sintra da Costa de África, ainda assim têm sido bastantes as doenças»?8? — e noticiando os primeiros dissabo-
nunca constituiu um destino suficientemente chamativo, apesar de todos os incentivos e propaganda.
Mesmo
em finais do século
XIX, a
res com a agricultura:
emigração para essas paragens não terá ultrapassado 3% do total da emigração portuguesa, o que a situa num plano semelhante ao da emigração contemporânea para o Havai?!8, De toda a evidência, o discurso pró-africano dos políticos e jornalistas não era suficientemente cativante, nem a legislação de combate à escravatura branca suficientemente restritiva, para conseguir atrair o emigrante português para as terras da África, terras que se limitaram, como habitualmente, a rece-
»
ber o seu stock regular de degredados, de funcionários em desgraça, e . pouco mais. Esse pouco mais refere-se sobretudo a pequenas iniciati- vas de colonização de dimensão limitada e de resultado negativo ou
incerto.
y
Em 1840, o cônsul de Portugal no Brasil remetera para Angola al- | guns vadios portugueses, que foram mandados para o presídio Duqu: de Bragança, tendo morrido quase todos no caminho?”?. Nesse mesmo ano estabeleceu-se um pequeno presídio em Moçâmedes e, em 1845, um
outro foi fundado
na Huíla. Mas
o mais
auspicioso
empreend
mento colonizador ocorreria em 1849, quando um grupo de 180 port gueses residentes em Pernambuco foi, a seu pedido, transportado p Moçâmedes. Era uma (pequena) lança em África que, naturalmen foi de pronto capitalizada pela propaganda colonizadora. Logo em 1849 o Boletim de Angola abriu as suas páginas a «um colono» do recém-formado estabelecimento de Moçâmedes que, em artigos regul res, procurou promover a jovem colónia?80. Os primeiros artigos era
vibrantes e entusiastas: os cereais e as árvores de fruto cresciam'e pontaneamente, pelo que seria «facílimo» fazer prosperar o estabe cimento, de forma a que, «em poucos anos», ele se tornasse um mais frequentados pela navegação. Face a esse maná, para quê ir pr curar fortuna às terras americanas, onde se sofriam insultos e ma tratos?8!? Mas, se esse era o tom geral das primeiras missivas, os rel tos posteriores matizaram-se muito, não escondendo o drama da m 278 Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, Arc. Lisboa, 1977 (1.º ed.: 1971), p. 49.
279 Lima, ob. cit., p. 47 (nota 1); DCD, sessão de 14 de Junho de 1849, p. 168 (dlSG so de Lopes de Lima).
280 Q «colono» redactor era Bernardino Abreu e Castro, o chefe da colónia; para da propaganda da colonização de Moçâmedes na imprensa metropolitana, ver DG, Novembro de 1849, 5 de Março, 19 de Abril, 10 e 26 de Agosto de 1850.
281 ROGGPA, 6 de Outubro de 1849, p. 3. 432
Não espere que só lhe hei-de contar maravilhas em respeito à colónia [...]; pelo que respeita a milho e feijão, não é agora a estação competente, o que tem desgostado alguns colonos, que daqui tomam pretexto para dizerem que a terra não produz, mas cujo desgosto provem de não quererem trabalhar; presumiam que vinham para África para se deitarem em lençóis de rosas; enfim, os descontentes são daqueles que em toda a parte querem viver à custa do público e pena é que vão arrastando os outros.
Este excerto foi escrito numa altura em que os colonos ainda esperavam que «o Nilo de Moçâmedes» viesse fecundar as terras283. Mas, alguns meses depois, e face à terrível seca, já se questionava o próprio nexo do empreendimento?%, De facto, a chegada dos colonizadores a Moçâmedes coincidiu com uma forte seca, que tornou a agricultura
praticamente impossível. A colónia ainda recebeu mais duas levas de emigrantes, em 1850 e 1851, mas depois o fluxo estancou temporariamente, em consequência das notícias desalentadas entretanto enviadas
para o Brasil?%º5, Alguns povoadores mudaram-se para a Huíla, mas aí sofreram tais privações que regressaram a Moçâmedes,
e o «colono»
que emprestara
remeteu-se. a
a sua pena como
arauto da colonização
um silêncio prolongado, só voltando a dar notícias jornalísticas dez anos depois?86, Apesar dos desaires no Sul de Angola, na década de 1850, o Conselho Ultramarino procurou atacar frontalmente o problema da emigra-
ção para as Américas, dirigindo-a, em alternativa, para África, onde Sá da Bandeira esperava colocar qualquer coisa como 3000 ou 4000 colonos?87, Foi nesse período, em 1857, que se estabeleceu uma pequena 282 Ibid., 16 de Fevereiro de 1850, p. 3. Alguns anos depois reconhecer-se-ia que a mortalidade nos primeiros anos do povoamento de Moçâmedes havia sido «espantosa» (cf. Annaes do Conselho Ultramarino, Julho de 1858, p. 484).
283 Jhbid., 16 de Fevereiro de 1850, p. 3. 284 Ihid., 20 de Julho de 1850, p. 3. 285 Chagas, ob. cit, p. 102; ainda que, posteriormente, tenham chegado mais alguns colonos, em 1857 Moçâmedes tinha apenas 213 habitantes brancos (Boletim do Conselho Ultramarino, Agosto de 1858, p. 497).
286 BOGGPA, 22 de Janeiro de 1859, p. 9. 287 DCD, sessão de 26 de Janeiro de 1858, p. 212; tratava-se de uma forte recidiva daquilo a que Oliveira Martins (O Brasil ..., cit., pp. 219, 221, nota, e 228-229) viria a chamar a «mais perigosa das quimeras», porque «fazer de um clima mortífero um bom destino da emigração colonizadora» equivalia a induzir gente ignorante «a caminhar para um ce43%
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas ?
Os sons do silêncio
colónia de alemães na área de Moçâmedes, e um pouco depois uma companhia de militares europeus foi fixada na Huíla, como colónia de soldados-camponeses; mas ambas se malograram, devido à mortalidade, à guerra, ao abandono e dispersão dos povoadores, pouco dispostos, no caso da Huíla, a sujeitar-se à disciplina militar?83. A mesma coisa aconteceu a um grupo de colonos do Minho enviado para a bafa de Pemba, no Norte de Moçambique. O grupo colonizador partiu em Abril de 1857, mas, à chegada, verificou-se que o local escolhido para a colónia não tinha água. Tendo-se arranjado um outro local mais para o interior, trouxeram-se coolies de Macau e libertos para fornecer mão- -de-obra. Mas sem sucesso. O estabelecimento em breve se desfez,
como já se havia desfeito o de Bazaruto, dois anos antes?*º. Até 18594 o governo fez outros esforços colonizadores em Angola, Guiné e Tete,x 7
mas «a todas essas colónias sucedeu o mesmo que à de Pemba, ou pi ainda, por não chegarem a constituir-se»2%, Em 1861 fundou-se a c lónia de Capangombe, com alguns degredados e portugueses chegado do Rio, na qual se depositavam grandes esperanças (e que viria a t algum sucesso, anos depois), e, pela mesma época, alguns pescador do Algarve transferiram-se para a zona de Moçâmedes, estabelecend o m
vimento imigratório permaneceu débil: em 1862 e 1863, o número
mitério»; para a definição da linha política do Conselho Ultramarino, ver BOGGPA,
d
considerado à luz dos projectos e iniciativas que tinham por objecto o continente, as ilhas adjacentes, a Europa e as Américas, ou até mesmo
as possessões asiáticas???, Face ao exposto, não parece legítimo pressupor um grande apetite dos Portugueses pelas colónias africanas e atribuir a não saciação desse apetite exclusivamente a razões exteriores, ou seja, não à vontade dos agentes, mas a factores que de algum modo fossem independentes dessa vontade e a transcendessem. Exis-
plo) continuadamente interessados em África. Mas não mais do que 1sso, o que significa que, sendo necessário matizar fortemente a tese de Hammond, não pode aceitar-se a perspectiva contrária: os projectos não materializados, e as suas trajectórias, dificilmente podem ser vistos como prova de um interesse de quase todos os sectores da burguesia portuguesa na expansão africana, como pretende Valentim Alexandre. ' Em certa medida, a não materialização dos projectos de desenvolvimento africano reflecte, precisamente, a falta de adesão das burguesias portuguesas à visão optimista do novo Brasil e a sua maior permeabilidade às perspectivas pessimista e reservada. Ainda que tal não
20
Novembro de 1852, p. 1.
Eis aqui feito, de uma forma suficientemente detalhada, o levanta-
mento e a avaliação de projectos económicos e realizações colonizadoras no período de 1820 a 1865. Esquadrinhados esses 45 anos da vida portuguesa, foi tudo quanto consegui detectar sobre o interesse das burguesias e do povo miúdo por África. É um pecúlio escasso quando
tiam, sem dúvida, alguns sonhos e é até possível detectar um pequeníssimo núcleo duro de persistentes (como Pinto Basto Júnior, por exem-
-se mais a sul, em Pinda (ou Porto Alexandre, na terminologia inglesa
onde se havia criado um presídio sete anos antes. Não obstante,
colonos transportados por conta do Estado para a totalidade das colónias portuguesas foi de 156 e 213, respectivamente?9!,
f
288 Dias, «Angola», cit., p. 426. Para os regulamentos das duas colónias, ver DG, 7 Março de 1857, e Annaes do Conselho Ultramarino, Dezembro de 1857, pp. 509-510.
289 Chagas, ob. cit., p. 130; para o regulamento da colónia de Pemba, ver DG, 2 de F vereiro de 1857. O governo lançou uma subscrição pública para angariar fundos para colónia de Pemba, mas os seus resultados foram modestos: menos de 2 contos de réis, V maior parte dos quais provenientes de um pequeno grupo de 30 entusiastas de Lisboa, incluía, naturalmente, negociantes com interesses na zona (como Bessone), ex-governadore! coloniais (como Pinto de Magalhães), ex-negreiros (como Flores), deputados quimérici (como Sá Nogueira ou Soares Franco) e, claro está, Sá da Bandeira, o principal mento ideia (ibid., 20 de Março de 1857).
seja normalmente referido, a imagem do sepulcro do europeu condicionava, para além da emigração e da viabilidade dos empreendimentos agrícolas, a própria exequibilidade dos projectos comerciais, como confessavam os mais lúcidos e bem informados quiméricos. Em 1831, Manuel António Martins, o promotor da Companhia de Guiné, reconhecia que «uma companhia há-de custar a organizar entre negociantes
e capitalistas [...] que ouvem o nome de África com tal horror que lhes parece que só pegar em produções de África com a mão, se Ihes intro-
2% Chagas, ob. cit., p. 132. Assinale-se que as motivações do esforço de coloni eram, simultaneamente, económicas e políticas: tal como aconteceu com a ocupação ( Ambriz, as tentativas de colonização militar procuravam acima de tudo antecipar os apet tes estrangeiros a respeito do território nacional, assegurando a posse de áreas que se supt nham cobiçadas, e demonstrar à comunidade internacional que não havia fundamento pa uma eventual tentativa de expropriação com base no argumento de que Portugal não ap veitava as suas colónias. 423A4
291 Annaes do Conselho Ultramarino, Janeiro de 1863 e Março de 1864, pp. 13 e 30,
respectivamente. 292 Recorde-se que chegou a existir o projecto de formação de uma companhia para Timor (ver ibid., Julho de 1854, p. 40) e que, relativamente à Índia, as companhias foram não só projectadas mas efectivamente constituídas. AcMeA2DE
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Africas?
Os sons do silêncio
As notícias das dificuldades da Serra Leoa tinham começado a en-
duz veneno pelas unhas»2%3. Também Lopes de Lima confirmaria, alguns anos depois, que «a maior dificuldade» para o funcionamento de eventuais companhias coloniais era «poder achar oito, ou dez ou doze sujeitos idóneos» que se dispusessem a ser seus administradores e agentes nos portos de África, «pelo terror que a muitos inspiram aquelas terras insalubres»2%. A relação entre a insalubridade e a actividade comercial foi, aliás, muito bem
sintetizada numa
frase de um
mento havia sido uma verdadeira catástrofe. A doença, os conflito com os naturais, as deserções, causaram verdadeiras razias entre o
auspiciosos princípio reorganizou em 1791 o povoamento só sub depois, do próprio Es
tado britânico. Ainda assim, e não obstante os vultuosos investimentos
realizados, os resultados estavam longe de corresponder às expectativas e a mortalidade continuou altíssima entre os europeus?”/. Algo d semelhante de passava com a vizinha Libéria dos Norte-Americanos fundada no início da década de 1820 e que servia, entre outras coisa:
para receber os escravos que viessem a ser libertados nos Estados Uni dos ou recapturados pela esquadra antitráfico que então começava operar na costa africana??, 293 Faro, ob. cit., p. 214.
294 Lima, ob. cit., p. 48. 295 ROGGPA, 9 de Fevereiro de 1856, p. 7. Para a relação entre o «clima» e a relu cia em empregar capitais nos empreendimentos agro-comerciais em Angola, ver as cons) derações tecidas pela Associação Comercial de Luanda, in ibid., 5, 12 e 19 de Novem de 1864, pp. 404-405, 416-418 e 432-433 (em especial, esta última página). 29 Curtin, Image of Africa ..., cit., p. 177. 297 Temperley, White Dreams ..., cit., p. 45. 298 John D. Hardgreaves, «African colonization in the nineteenth century: Liberia Sierra Leone», in J. Butler (ed.), Boston University Papers in African History, vol Boston University Press, Boston, 1964, pp. 59-60. A DL
meados da década de 1810, e o país manteve-se informado sobre os resultados dos esforços colonizadores dos seus parceiros coloniais. Na década de 1820, o saldo era claramente negativo. A Gazeta de Lisboa,
por exemplo, não escondia aos seus leitores que na Serra Leoa se perdiam «imensas vidas» e se enterravam «grandes capitais», para que o
artigo
comunicado do Boletim de Angola, em 1856: «quereis que Angola vá por diante? Que seja o empório do comércio? Diminui-lhe a mortandade e as doenças»?%. O exemplo dos ensaios de colonização tentados pelas outras potências também constituiu um elemento dissuasor das veleidades empresariais nos trópicos africanos, pelo menos até meados do século, época em que o cenário terá começado a desanuviar-se. A Bulama Island Association tinha perdido mais de 60% do seu pessoal europeu nos primeiros meses de actividade?%. Na Serra Leoa, o arranque do povoahabitantes da Province of Freedom, fundada sob filantrópicos em 1787. Quando Falconbridge a apenas restavam 50 dos 450 colonos iniciais e sistiu com a intervenção de capitais privados e,
trar em Portugal através do Investigador Portuguez em Inglaterra, em
empreendimento «oferecesse qualquer razoável prospecto de ser bem sucedido»2º. E, nas décadas de 1830 e 1840, os horizontes continua-
À ú Ú
ram a ser sombrios. Sabia-se que o comércio lícito francês e inglês (sobretudo o de azeite de palma) ia crescendo auspiciosamente em certas regiões, mas a difusão da civilização europeia em África era uma
desilusão.
Como
reconheceria
Tavares
de
Macedo,
em
1842,
«apesar da humanidade e inteligência do governo dinamarquês, apesar de uma longa série de esforços [...], este governo tem estado a ponto de ceder as suas possessões, e por ventura só o não tem feito por não ter achado quem lhe dê por elas algum valor»3, Na parte final do período que aqui nos interessa, os quiméricos — ou, pelo menos, alguns deles — perceberam a importância decisiva da insalubridade como factor inibidor de todo e qualquer sonho africano. Essa percepção, através da qual a imagem da verdadeira África começou a temperar o imaginário do novo Brasil, trouxe consigo uma clara: diminuição das expectativas — Matos Correia ia mesmo ao ponto de decretar que «a nossa África nunca há-de ser o Brasil»3º! — e implicou algumas mudanças estratégicas, mudanças já patentes, por exemplo, na proposta de lei de saúde ultramarina, apresentada em 1862 pelo então ministro da Marinha, Mendes Leal. No preâmbulo dessa proposta, ao
mesmo tempo que continuava a afirmar-se que o país só precisava de «ter fé» nas potencialidades das suas colónias para que os sonhos de grandeza se convertessem em realidade, estabelecia-se um «plano» colonial que obedecia estritamente a «uma ordem lógica de necessidades», colocando-se o problema da saúde à cabeça da lista (enquanto as reformas fiscais tendentes a facilitar o comércio ocupavam tão-só o sétimo lugar nessa escala de prioridades): Sendo efectivamente a insalubridade do clima
[...] a principal causa
que aflige os naturais e, como disse, desvia os europeus de quase todas es29º Gazeta de Lisboa, 12 de Fevereiro de 1824, p. 157.
300 Annaes Marítimos e Coloniaes, n.º 3, 1842, p. 139. 30! Câmara dos Deputados, sessões de 22 de Fevereiro de 1861 e de 20 de Janeiro de 1863, in DL, 25 de Fevereiro de 1861 e 23 de Janeiro de 1863. 4%7
Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?
Os sons do silêncio
precede f sas províncias [...], claro é que a urgência de atalhar este mgl as riquezas, à qualquer outro empenho. Se o trabalho é a fonte dg todas em : saúde é a condição indispensável do trabalho. Granjear o,sqlo, medrar mas antes — fortuna, enriquecer o país, são justos desejos e úteis propósitos, de tudo, mas para tudo, é preciso viver30?,
Mas essas alterações e moderações entusiastas foram tardias. Até eldo- À meados do século, a propaganda quimérica apoiou-se na ideialdo. lização materia não a rado facilmente atingível, e, num certo sentido, 1 dos projectos empresariais e povoadores do períqdo de 1820 a 1865 se perrepresenta a derrota dessa propaganda. Desde muito ced(') que
cebera em Portugal que a promoção da ideia africana seria fundamen—-' tal para suscitar um interesse de fundo na socied.ade portuguesa. Em 1826, o deputado Braklami circunscrevera magnificamente o proble qu -lhe .ava-se ma, na proposta de lei que apresentara às Cortes. Afl.g?r apesar da penúria de capitais e da exigência de s,acr.1f101os. ao Estfldo 1. e aos particulares interessados, a colonização em África seria possível P.ort os benéfica. A questão estava em que era necessário persuadir gueses:
«nada é superior à vontade geral de uma
Naç'f'lo decidida
Contud ma; da convicção nasce a decisão e, desta, o entusiasmo»3%, suasiva desejada por Braklami
e seus pares falhou rotundamente
o número
da actividade agrícola e mercantil, indiciam muito fortemente a preva-
lência da reserva e do cepticismo sobre o entusiasmo e a quimera. existem provas ainda mais concludentes, mais cristalinas, dessa valência num palco onde é possível assistir em directo, de forma balizada e, até certo ponto, mensurável, ao confronto das visões mista e reservada da África. Esse palco é o parlamento,
Mas preveropti-
o ponto de
maior concentração, afrontamento e convergência das elites políticas portuguesas.
3. As questões africanas nas Cortes A julgar pela sua actividade legislativa, as Cortes dispensaram pouca atenção às questões africanas, mormente até à década de 1850. Valentim Alexandre alegou recentemente que a escassez de projectos de lei para o ultramar não constituía uma prova do desinteresse dos par-
lamentares portugueses por África, e que tal escassez se ficaria a dever, antes, a razões de outra natureza: desde logo, ao «peso muito diminuto que no parlamento tinha a representação do ultramar, enfraquecida
qualquer empresa, o tudo está em convencê-la da necessidade da me e não obstante os esforços da propaganda colonizadora, a acção pe
Os resultados práticos (ou a carência deles), e, sobretudo,
reduzido de projectos e iniciativas, tanto a nível da colonização como
o
Portugal de 1820-1830, e continuaria a falhar nos anos seguintes. Em meados da década de 1850, os jornais continuavam a apelar aos l?rlos sonhos dos investidores portugueses: «negociantes, homens ricos abastados, de vós depende tudo! Ajudai o governo na grande obra
p)o'rq , civilização africana»; mas tratava-se de um apelo descrente, io do contrár ao e como os mesmos jornais reconheciam, em Portugal,
que se verificava em Inglaterra, «o amor pátrio que nos hogne.ns de di nheiro existia outrora» não se manifestava relativamente a África?,
ainda, na prática, pelo facto de muitos dos seus deputados não terem
qualquer ligação com as colónias que os elegiam»; depois, ao facto de haver em Portugal «a tendência para a concentração nas mãos do governo de todas as decisões de política colonial, incluindo as que, por serem do foro legislativo, estavam em princípio reservadas ao parlamento»3%, Mas, a meu ver, essa argumentação não colhe, desde logo porque se desvia do objecto. Para o que está em causa é irrelevante que a representação ultramarina fosse grande ou pequena, visto que o que pretendemos ponderar é o interesse das elites metropolitanas por África, e esse interesse é passível de ser manifestado tanto pelo número de leis apresentadas e aprovadas, como pelo acolhimento dado aos projectos legislativos que interessavam ao ultramar, fossem eles muitos ou
vê 302 [d., sessão de 23 de Abril de 1862, in ibid., 25 de Abril de 1862 (itálicos meus); progra 1
a definição de um igualmente O Progressista, 18 e 24 de Outubro de 1863, para
uma visão mais tardia so Slml3lã;.DCD, sessão de 11 de Dezembro de 1826, p. 156. Para de 18 de Julho de l8v sessão a importância de propagandear as colónias, ver ibid., ) i Franco). pp. 188-189 (discurso de Soares lb.ld., 18 de Jane também ver 1854; de o Dezembr de 6 o, Septembr de o 304 ÀA Revoluçã àquilo que cons t ro de 1855, e A Pátria, 21 de Dezembro de 1855 (para uma invectiva es). portugues as capitalist dos rava ser o excesso de cautelas PESNO)
poucos. Aliás, a iniciativa legislativa para o ultramar não era exclusiva dos deputados coloniais, e alguns dos projectos que interessavam às colónias foram avançados por deputados metropolitanos (como Gomes de Castro, Lopes Branco e outros). Quanto à segunda alegação de Alexandre, sendo verdadeira, é-o sobretudo a partir de 1843, ano em que o 305 Alexandre, «Crimes ...», cit., p. 166. ARO
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Os sons do silêncio
governo cobriu o que até então tinha sido uma prática de çxçepção, no sentido jurídico do termo, com uma lei permanente (depois, incorpora-
produtos provenientes das possessões ultramarinas, o que, no caso de Angola, correspondia mesmo a um aumento de tributação. Como dizia
mesmo que esta segunda razão se aplicasse como uma luva- a todo o período que aqui se discute, ainda assim tal não 51gm.f1car'm que as Cortes não mantivessem na fíntegra a sua capacidade legislativa para o : . ultramar. immenor ou maior da avaliar legítimo e perfeitament É, portanto, portância das colónias no universo das preocupações políticas portuguesas pelo número de projectos e de debates que suscitaram no par- |
com preferência à do Reino, nem povoar climas distantes, deixando aqui desertos os campos [...]; sei a máxima do Evangelho que manda
Mouzinho
da e constitucionalmente legitimada no Acto Adicional de 1852). Mas
lamento.
Como
veremos
seguidamente,
esse
número
foi
sempre
considerado pelos contemporâneos como um bom indicador da atel?çao dispensada aos assuntos ultramarinos, e as Cortes foram sempre vistas como uma das janelas donde era possível observar e aferlr.os diferentes interesses e a hierarquia de prioridades políticas na sociedade po tuguesa. Ora, dessas observações e aferições resu)ta que, no perío' que aqui nos interessa, sobretudo até meados da dc?c.ada de 1_850, existiu uma desvalorização nítida dos problemas coloniais. Se foi escassa à aprovação de projectos legislativos, não foi porque a representaç. ultramarina não procurasse agendá-los. Mas as Câmaras desvaloriz vam, remetiam para outro dia, o que, em primeira análise, sugere u subalternização do tema. Porém, o estudo dos trz?balhos pa.rlamençar
permite ir além dessa avaliação puramente dedutlva. e medir o desint resse não só quantitativamente, pelo número de projectos apresentad e discutidos, mas também qualitativamente, pelo conteúdo dos debate,
porque tão significativo como o número de Qrojectos aílalisgdos discurso que a esse respeito se produziu. Vejamos, então, ainda q 2 sucintamente, aquilo que a análise revela. hmlta muito foi III, capítulo no referi já como 1820, Na década de o tempo dedicado pelo parlamento aos assuntos africanos. Um refl da subalternidade das Áfricas encontra-se no grande debate sobrçi liberdade do comércio, realizado nas Cortes em 1827. O projec_to de apresentado a esse respeito destinava-se, sobretudo, a garantir no fontes de receita para o Estado e a abrir o leque de mercados aos ne ciantes portugueses, através da criação de novas redes comerciais e d estabelecimento de regras de reciprocidade que facilitassem o afl das mercadorias americanas a Lisboa e ao Porto. Procurava-se sup diminuição do trato com o Brasil através do estímulo de outros cir u tos comerciais, mas não especialmente daqueles que uniam Portugal. suas colónias africanas. O projecto fixava em 10% os direitos sobr i
idos
,
da Silveira, não
amar o próximo
como
se podia incentivar «a cultura da África
a nós mesmos;
porém,
mais nunca ele man-
dou»3%, Muito significativo aqui, mais ainda do que a opinião de Mouzinho, é que a proposta dos quiméricos para que as produções africanas pagassem apenas 3% de direitos, de forma a poderem concorrer com os produtos americanos, tenha sido recusada, sem grande debate,
ficando os direitos a pagar pela maior parte das produções africanas nos 10% previstos37, Após Évora-Monte, com a atenção quase que exclusivamente centrada no Reino, a situação global de escasso empenho pelas colónias não se alterou radicalmente (ainda que, com as pautas, se tivesse cami-
nhado para um aligeiramento fiscal). Poucos assumiam frontalmente que as colónias africanas constituíssem uma preocupação menor, mas, no geral, remetiam para o esquecimento as questões que lhes respeitavam. Como notava perspicazmente Peres da Silva, deputado pela Índia, as Câmaras condenavam as propostas para o ultramar a uma
espécie de «prisão perpétua, sem sentença, numa cela dos frades de S. Bento», em lugar de as matarem «num
cadafalso, pub]icamente»ªºgí
Peres da Silva era, aliás, um dos mais críticos quanto ao descuido colonial dos seus colegas parlamentares. No início de 1840 chegou a
quantificar esse descuido, fazendo contrastar o número de projectos avançados a respeito do continente com os que interessavam ao ultramar. Esse exercício comparativo vinha na sequência de uma pequena refrega parlamentar, surgida a propósito de um novo adiamento da discussão de uma proposta para Cabo Verde, apresentada pelo deputado Sá Nogueira.
Sigamos, por momentos,
essa refrega, porque ela
306 DCD, sessão de 8 de Fevereiro de 1827, p. 277. 97 O projecto de Mouzinho nunca chegaria a ser lei, por não ter passado na Câmara
dos Pares, dissolvida, tal como a dos Deputados, em 1828. Mas um alvará de Dezembro de 1829 fixaria efectivamente em 10% os direitos de entrada dos géneros coloniais no reino. Para um desenvolvimento e análise do pensamento económico de Mouzinho da Silveira,
especificamente no que respeita ao projecto sobre o comércio externo, ver as considera-
ções de Valentim Alexandre in Mouzinho da Silveira, Obras, 2 vols., Gulbenkian, Lisboa, 1989, pp. 174 e segs.
398 DCD, sessão de 25 de Novembro de 1840, p. 373.
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ilustra magnificamente nas Cortes:
a subvalorização das questões ultramarinas
O Sr. Sá Nogueira: Sr. Presidente, eu pedi a palavra para pedir a V. Ex.º propusesse à Câmara se convinha que se discutisse em primeiro lugar o projecto, que já por três vezes tem sido dado para ordem do dia, para o estabelecimento de um porto franco na ilha de S. Vicente, de Cabo Verde. Eu, Sr. Presidente, não pretendo de modo algum que seja posta de parte a discussão do projecto sobre a propriedade literária; entretanto, vejo que o projecto de que falei é de muito maior importância, ou de uma importância mais geral, e como é muito pequeno é natural que leve muito pouco tempo
" — -
em discutir-se; e, por isso, peço a V. Ex.º unicamente que o ponha em Á discussão pelo menos por meia hora [...]; todos conhecem a conveniên-.
cia de se tratar dos projectos do ultramar porque são de interesse geral, e,
se não começarmos já a discuti-los correm o risco de não serem discuti- ) dos nesta sessão, assim como não foi discutido projecto algum sobre o ultramar nas sessões anteriores. Na sessão passada, a única coisa que se discutiu a respeito do ultramar foi a lei para a continuação dos tribut quanto ao mais passou-se a sessão como se não houvesse possessõe: ultramarinas [...].
O Sr. J. M. Grande: Como se trata de preferências, eu queria que fo dada ao projecto dos forais [...]. O Sr. Passos (Manuel): Eu traria igualmente um requerimento [...]. deputados que vieram das províncias sabem que hoje o negócio mais im
portante para a Nação Portuguesa é a discussão da lei dos forais [...].
O Sr. Presidente: O Sr. Sá Nogueira mandou para a mesa um reque mento para que da sessão de hoje se destinasse meia hora para a discus do projecto n.º 136; vou pô-lo à votação. O Sr. Garrett: Deve ficar para segunda leitura.
O Sr. Sá Nogueira: [...]. Espero que o Sr. deputado não continu opor-se ao requerimento, porque, se acaso ele insistir, então hei-de também insistir em que se discutam outras matérias que são de intere mais vital para o país do que o projecto do Sr. deputado [sobre a p ú q priedade literária].
O Sr. M. A: de Vasconcelos: Sr. Presidente, pedi a palavra para apoi o requerimento do Sr. deputado [Sá Nogueira] e para fazer uma pequ observação [...], porque mesmo marcar meia hora para a sua discussão vez não seja suficiente; destinando-se, porém, o resto da sessão para a cussão desse projecto, talvez se pudesse acabar hoje; o que muito de va, não só por todas as razões que o Sr. deputado deu para se fazer nes sessão alguma coisa a favor do ultramar, porque nada se tem feito [...].
»
O Sr. Garrett: Pois havemos de ir agora votar um artigo, ocupar o tempo com isso, e de repente passarmos para Cabo Verde? Peço antes ao Sr. deputado que insistiu nisto que concorde em que hoje se não trate de Cabo Verde, destinando-se para esse objecto uma sessão, ou então não se fale mais em letras; mas estar a misturar um projecto com outro não me
parece conveniente. O Sr. Sá Nogueira: Se V. Ex.º e a Câmara concordam em dar-me um dia determinado para tratar deste projecto, não tenho dúvidas nenhumas em retirar o meu requerimento, mas é necessário que se marque um dia |6) P ; O Sr. T. J. de Abranches: Pedia a V. Ex.º que desse um dia para discutir os projectos do ultramar; são poucos, não passam de oito (vozes: oito, são muitos). [...].
O Sr. M. A. de Vasconcelos: Eu também sou de opinião que tratemos do ultramar porque estão aí projectos oferecidos às Câmaras Legislativa: há três anos ou talvez mais [...].
;
O Sr. Peres da Silva: Eu pedi a palavra quando ouvi dizer a dois Srs. deputados que oito projectos que havia sobre o ultramar eram muitos. Desde 1834 até hoje tem havido nas Câmaras Legislativas talvez mais de 600 projectos e nenhum tem sido a respeito do ultramar [...]. Eu creio que [...] nós não devemos olhar só para uma parte do Reino porque aquelas
possessões também têm um direito à nossa contemplação?º, A atitude geral que se encontra espelhada neste excerto do debate parlamentar, e na quantificação comparativa de Peres da Silva, estava longe de ser o resultado puramente circunstancial dos dias conturbados do pós-setembrismo, tendo prosseguido nos anos seguintes, por vezes com outros protagonistas, mas sempre com o mesmo tipo de argumentos. Um segundo exemplo, apenas: em 1848, Fontes Pereira de Melo, então deputado por Cabo Verde, apresentou um projecto de lei
para a construção de um cais na ilha de São Tiago, e um outro para isentar temporariamente do pagamento de dízimos todo o café que viesse a ser plantado no arquipélago?!0, Fontes contava desse modo estimular o comércio e a indústria locais e procurava interessar a sua audiência, fazendo contrastar as potencialidades das colónias e o estado de abandono a que estavam votadas. Mas a indiferença era geral, como o proponente notava, com amargura: «olho para a Câmara e ve309 Ibid., sessão de 21 de Janeiro de 1840, pp. 112-115. 310 Jbid., sessões de 22 de Maio e de 23 de Junho de 1848, pp. 2-3 e 1-2, respectivamente. AAQ
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jo-a deserta. Para quê falar neste objecto? Para quê insistir sobre igto? Ô
[...] todos dizem que são muito importantes as províncias ultramarinas [...], mas ninguém quer ouvir falar delas»3!!, O projecto viria a ter uma » segunda leitura meio ano depois e acabaria por ser aprovado, mas não À sem antes se ter atascado longamente nos meandros dos adiamentos e aditamentos, das emendas e substituições, numa série de embaraços -
às nossas colónias do que o que diria respeito numa junta de paróquia»?!5, Em 1856, Bernardo da Costa propôs que semana para discutir os projectos de lei para o de uma intenção voluntarista que, de tempos
a uma eleição contestada se destinasse um dia da ultramar. Era o reactivar a tempos, aflorava nas
Cortes e que, na opinião de José Estevão, seria a forma de pagar «o
as medidas destinadas a promover as colónias. Ao cabo de dias de po-
grande descuido de todos os parlamentos portugueses sobre este assunto»3!6, Mas imediatamente se levantaram resistências, surgiram tri-
lémica, Fontes admirava-se de ver criar tantas dificuldades a uma coisa
Cas, escaramuças,
regimentais a que os cépticos geralmente lançavam mão para protelar
tão simples, e sentenciava: «quando para um objecto aparecem tais embaraços, fracas esperanças pode ter o ocuparmos alguma vez para ali de uma reforma em dos)»3!2. Alguns anos depois, e como já havia feito
desta natureza ) ultramar de nos grande (apoia- / Peres da Silva,
Fontes contabilizaria os labores legislativos assinalando que, até então,
apenas nas (e, Ao mente
haviam passado pelos trâmites parlamentares 3 leis ultrama ainda assim, de importância secundária)?!3. longo de todo o período em consideração, mas muito especia de 1821 a meados da década de 1850, os representantes col
niais, como Sá Nogueira, Trindade, Peres da Silva, Fontes Pereira Melo, Jeremias Mascarenhas, Bernardo da Costa e muitos outro
queixavam-se frequentemente de que os seus assuntos eram tratados com a maior indiferença, que as questões das colónias ficavam «eternizadas» numa
Câmara que só se ocupava «com
f
medidas
de interes
interno», quase nunca fazendo caso «do desgraçado estado das proví cias ultramarinas»3!4, Nesse queixume eram acompanhados por vári parlamentares de círculos metropolitanos, incluindo o próprio Sá_ Bandeira, geralmente discreto quando se tratava de pôr a nu as hesi ções do país quanto às suas colónias: «o que eu vejo é que, nas noss discussões políticas, trata-se com menos consideração o que é rela
regimentalismos,
susceptibilidades,
«