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Portuguese Pages [228] Year 1998
Santuza Cambraia Naves
ISBN – 978-85-225-1084-9 Copyright © Santuza Cambraia Naves Direitos desta edição reservados à EDITORA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 – Rio de Janeiro, RJ – Brasil Tels.: 0800-021-7777 – 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 e-mail: editora@ fgv.br – [email protected] web site: www.fgv.br/editora Impresso no Brasil / Printed in Brazil É vedada a reprodução total ou parcial desta obra 1ª edição – 1998 Edição digital - 2012 R E V I S Ã O D E O R I G I N A I S : Maria Lucia Leão Velloso de Magalhães E D I T O R A Ç Ã O E L E T R Ô N I C A : Denilza da Silva Oliveira, Marilza Azevedo Barboza e Simone Ranna R E V I S Ã O : Aleidis de Beltran e Fatima Caroni P R O D U Ç Ã O G R Á F I C A : Helio Lourenço Netto C A PA : Inventum Design e Soluções Gráficas
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Naves, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular / Santuza Cambraia Naves. – Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998. 236p. Inclui bibliografia. 1. Música popular – Brasil. I. Fundação Getulio Vargas. II. Título. CDD-780.420981
a Felipe e Júlio
Não sei fechar um mundo bem redondo, Ainda que o remende como sei. Canto heróis de grandes olhos, barbas De bronze, mas homem jamais cantei. Ainda que o remende como sei E chegue quase ao homem que não cantei. Mas se cantar só quase o homem Não chega às coisas como são, Então que seja o cantar azul De um homem que toca violão. O homem do violão azul Wallace Stevens Tradução de Paulo Henriques Britto
Su már i o
Agradecimentos
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Introdução
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Capítulo 1 – Um tropical amor do mundo
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Apresentação: a “música interessada” A construção da civilização A cultura na civilização “A ‘colher torta’ do criador mexe o virado” A estética da monumentalidade
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Capítulo 2 – O apito da fábrica de tecidos
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A estética da simplicidade O ritmo dissoluto E o meu despertador é o guarda-civil É futurismo, menina Com sustenidos e bemóis/ desenhados na minha voz O poético e o prosaico
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Capítulo 3 – A cidade fragmentada
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A pererequice melódica difícil À merencória luz da lua Alô, alô, carnaval A ditadora sorridente do samba
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Capítulo 4 – À guisa de conclusão: tímido e espalhafatoso
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O engenheiro e o bricoleur Embaralhando classificações O noir e o solar
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Referências bibliográficas
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Agr ad eci men tos
Não pretendo ser econômica nos agradecimentos, porque várias pessoas contribuíram de diferentes maneiras para a realização deste livro. Algumas se fizeram mais presentes no plano intelectual, mostrandose extremamente generosas tanto para sugerir novas questões quanto para exercer, de forma muito criativa, a atividade crítica. Outras atuaram no plano da afetividade, e foram igualmente importantes. E há ainda outras que conseguiram, de maneira formidável, juntar os dois planos. Não tenho palavras, literalmente, para agradecer a Ricardo Benzaquen de Araújo, que orientou a tese de doutorado que deu origem a este livro, não só por ter acreditado no meu trabalho como também por ter pacientemente me ajudado, ao longo destes anos, a construí-lo. À maneira de um arquiteto, ele me deu “régua e compasso”. Ao aceitar a orientação, Ricardo me permitiu realizar uma antiga aspiração minha, a de me tornar, humilde e “espertalhonamente” – como diria Mário de Andrade –, sua fiel discípula. Agradeço particularmente a Luiz Eduardo Soares pelo estímulo que me deu, desde o início, para realizar o doutorado, atuando desde então como orientador intelectual e como amigo. César Guimarães, como professor, me ofereceu a oportunidade de divulgar trabalhos que eu vinha desenvolvendo, além de me convidar para desempenhar atividades de pesquisa na área acadêmica. Jamais me esquecerei de sua intervenção pronta, rápida e profundamente humana em determinadas situações-limite. Italo
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Moriconi é uma pessoa a quem sempre recorro, como aluna e como amiga. A convivência com Italo, com sua inteligência instigante e seu notável senso de humor, é sempre um ganho. Otávio Velho, por ter reconhecido meu trabalho, me abriu as portas de várias instituições, desde a época em que fui sua aluna no Museu Nacional; creio que posso dizer algo parecido a respeito de Hugo Lovisolo. José Reginaldo Gonçalves, Lúcia Lippi Oliveira e Berenice Cavalcanti têm sido interlocutores cuidadosos e sérios; todos eles, cada um à sua maneira, tornaram-se meus amigos. Meus colegas do Departamento de Sociologia da PUC – particularmente Eduardo Raposo, Maria Sarah da Silva Telles, Sônia Giacominni e Valter Sinder – sempre se mostraram prestativos, amigos e compreensivos. O mesmo posso afirmar com relação aos professores da Faculdade Candido Mendes-Ipanema, como Ruy Afonso Guimarães de Almeida, Ana Teresa Schaepfer Spinola e Ilana Wolfovitch. Eduardo Martins, de maneira afetuosa, me passou contatos importantes para a realização da pesquisa. Maria Isabel Mendes de Almeida tem sido uma grande aquisição na minha vida, atuando como amiga, colega de trabalho e interlocutora. Quão “dilacerante” para mim seria viver sem os seus adjetivos! Luiz Rodolfo da Paixão Vilhena fez intervenções importantes no meu trabalho; graças a ele, por exemplo, repensei algumas questões, tais como a da “flexibilidade” do músico popular. Maria Alice Rezende de Carvalho, Carol Gubernikoff Guimarães e Júlio César Valadão Diniz contribuíram com sugestões teóricas e bibliográficas. Sérgio Cabral me passou informações importantes sobre o universo da música popular; Isabel Lustosa atuou diversas vezes como mediadora entre mim e as pessoas que pensam este universo. Pablo Nogueira sempre se mostrou interessado pela pesquisa que eu desenvolvia, trazendo-me valiosas contribuições bibliográficas, principalmente as referentes a Jaime Ovalle. Elizabeth Xavier acompanhou todos os estágios da pesquisa e teve participação especial na elaboração do primeiro capítulo. Silvana Miceli de Araújo, além do interesse que sempre demonstrou por meu trabalho, mostrou-se também paciente todas as vezes que foi de certa forma envolvida no processo de produção deste livro. Estive o tempo todo, nesta aventura sociológica, em companhia de Bárbara Musumeci Soares, minha grande amiga. Outras pessoas, mesmo não participando diretamente desta “aventura”, estiveram afetivamente presentes, como Agostinho Guerreiro, Alba Gisele Gouget,
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André Rego, Antônio Carlos Bueno Ribeiro, Dulce Pandolfi, Leonarda Musumeci, Marco Paulo Fuzaro Mourão, Maria Celina Soares D'Araujo, Maria Paula Frota, Maria Teresa de Araujo, Mirtha Ramirez, Nice Rissone, Regina Novaes, Rosana Botelho, Sean Patrick Larvie, Sérgio Carrara, Teresa Diniz e Vitor Manuel Marques Fonseca. Paulo Henriques Britto, meu marido, teve uma participação fundamental neste trabalho. Além da sua companhia constante, de que é sempre um prazer partilhar, devo a ele grande parte da minha formação musical. Em sua atitude franciscana, ele me auxilia nas mais diferentes atividades, do trabalho manual ao intelectual, da impressão de um arquivo à discussão da obra de Stravinski. Meus filhos, Felipe e Júlio, que compartilham comigo o amor pela música, sempre acompanharam meu trabalho – mesmo “sem querer”. Além disso, Felipe me ajudou na fase inicial da pesquisa, colhendo informações no Museu da Imagem e do Som. Beto, meu sobrinho, mostrou-se tão envolvido com a minha pesquisa que chegou a fazer uma verdadeira peregrinação pelos sebos da cidade, à procura de livros que eventualmente pudessem me interessar. Agradeço também à Capes, pelo financiamento que obtive para a realização dos cursos e da pesquisa, e à Anpocs, por ter me concedido dotação para a finalização da tese.
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Discuto fundamentalmente, neste livro, a relação entre o modernismo e a música popular. Uma das idéias centrais que desenvolvo é de que a música popular concretiza um certo ideal modernista que valoriza o despojamento e rompe com a tradição bacharelesca, associada a determinadas concepções de erudição. Parto do pressuposto de que há uma convergência entre os músicos populares, que trabalham individualmente e sem recorrer a um projeto estético, e os poetas e ideólogos do modernismo, envolvidos num projeto coletivo consciente em torno da simplicidade e do sermo humilis, embora, na maioria das vezes, tanto na poesia modernista quanto na música popular, o humilde se concilie com o sublime. Nesta linha de argumentação, comparo essa atitude flexível e polifônica dos poetas modernistas e dos músicos populares com a postura fechada da maioria dos músicos modernistas, que só conseguem operar com o sublime. Esse estilo desenvolvido pelos compositores eruditos, como Villa-Lobos, torna-os mais próximos da sensibilidade francesa de fim de século (Debussy) e distantes do estilo mais humilde do Grupo dos Seis (Darius Milhaud, Francis Poulenc, Arthur Honegger, Georges Auriac, Louis Durey e Germaine Tailleferre), que, na Paris do início do século, incorpora a música popular sem grandes transfigurações e confere um grande peso aos “ruídos urbanos”. Recorro a um referencial teórico que lida com as diferentes atribuições de valor às linguagens estéticas que se propõem elevadas ou bai-
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xas, sublimes ou humildes, oficiais ou cotidianas, retóricas ou improvisadas, obscuras/afetadas ou naturais, e assim por diante. Encontra-se esse tipo de referencial nas análises de Mikhail Bakhtin (1987b) sobre a epopéia e o romance, nas de Erich Auerbach (1987 e 1993) sobre o sermo humilis franciscano, nas de James Clifford (1988) sobre a atitude etnográfica que confunde as distinções entre o baixo e o elevado, e nas de Marc Fumaroli (1994) sobre a tradição francesa da conversação. Adoto a perspectiva da tradição de estudos históricos e antropológicos representada, por exemplo, pelas análises de Clifford Geertz (1978) e Dominique LaCapra (1987), que repensam a relação entre os processos sociais e a interpretação de textos, evitando métodos de investigação tendentes a reduzir o texto a mero sintoma do contexto. Nessa perspectiva, procuro enfatizar tanto a gênese quanto o impacto das obras de arte em questão – a estética modernista e a música popular –, tentando captar sua ação transformadora com relação aos cânones vigentes. Assim, relativamente a uma das áreas de investigação desta pesquisa – o universo da música popular na virada dos anos 20 e na década de 30 –, procuro ver como certo segmento de compositores e intérpretes contribui para modificações no cenário artístico, na medida em que captam diferentes aspectos tanto do processo de urbanização e de modernização técnica quanto das tentativas de revitalizar determinadas tradições. Ou seja, ao invés de perceber as inovações culturais como resultado das transformações materiais em curso, prefiro atribuir estas inovações a uma tarefa interpretativa desses artistas populares, os quais, ao conferirem significado aos “ruídos urbanos”, ou mesmo a um tipo de silêncio associado ao rural, promovem alterações criativas na realidade. O tema das inovações culturais evoca outra questão, relativa à historiografia existente sobre música popular no Brasil. Notei, por exemplo, que é consensual entre os historiadores a idéia de que 1930 é um marco importante na música popular. A modernização das técnicas de gravação, assim como o surgimento do rádio e do microfone, por exemplo, seriam fatores em grande parte responsáveis pelas transformações operadas nos gêneros populares. É comum também afirmar-se que a geração que surge a partir dos anos 20 mostra-se bastante sensível para captar as novas linguagens e percepções que se criam com as mudanças aceleradas na cidade – no caso, o Rio de Janeiro. Não pretendi refutar tais interpretações, mas apenas enfatizar, ao lado das descontinuidades tão destacadas pelos pesquisadores, o aspecto das continuidades. Tentando tornar mais claro este ponto, chamo a atenção para um modo de
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atuar, no campo da música popular, em que muitas vezes se promovem inovações recorrendo à tradição. Esse procedimento incorporativo do passado cultural demanda, sem dúvida, uma explicação mais aprofundada, o que faço ao longo do livro. De qualquer modo, essa questão requer um rápido comentário inicial sobre os cuidados que procurei tomar para não reificar determinadas fantasias de modernização ou de urbanização. Em vez de procurar signos modernizantes na obra desses compositores, tomando como pressupostos essa mudança ocorrida na realidade objetiva e a percepção deste processo, tentei, de maneira mais cautelosa, perceber como os músicos do período concebiam o momento em que viviam e os espaços que demarcavam sua experiência. Analisando suas representações musicais, percebi, então, não sem surpresa, a convivência de fantasias de modernização com outras associadas a um registro antigo. A roça se confunde com a cidade e o mundo objetivo recebe um tratamento subjetivo. A tradição é portanto valorizada tanto pelos músicos populares quanto pelos eruditos. No caso destes últimos, como já observei, os textos musicais folclóricos, associados a um passado pujante e isento de contaminações – ou a um presente que permanece, mas em extinção –, são reverenciados e reelaborados num registro erudito. Os compositores populares tendem a trabalhar outro tipo de texto musical, geralmente o vinculado a uma tradição consagrada, como a do hinário, ou a operística, que se presta à prática de procedimentos irreverentes, como o parodístico. A propósito, uma das fases mais importantes da pesquisa que desenvolvi foi a observação dos processos metalingüísticos nas composições musicais. Percebi, por exemplo, que era recorrente nas obras de VillaLobos pós-30 a citação de peças folclóricas; esse recurso era usado, no entanto, para sacralizar as peças citadas, associadas às configurações raciais de nossa identidade coletiva. Numa clave diferente, alguns músicos populares, como Noel Rosa, tomavam textos consagrados para deformálos através da imitação parodística. Dito de outro modo, enquanto os compositores eruditos tendiam a enaltecer a tradição cultural, os populares, descomprometidos com projetos unanimistas, tratavam-na sem gravidade. E quando substituíam o texto pela vida que se desenrolava no cotidiano da cidade, lançavam mão, em grande parte das vezes, do procedimento satírico. Gostaria de esclarecer que não tive a intenção de realizar um estudo etnomusicológico ao desenvolver este tema, embora tenha me mantido atenta, durante toda a realização deste trabalho, para questões de isomorfismo entre música e letra, já que a canção popular só se rea-
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liza através da conjunção desses dois elementos que lhe são constitutivos. A atenção a apenas um dos elementos não só empobrece a análise como desvirtua a compreensão desse gênero musical. Neste sentido, concordo com Charles Perrone, que, embora reconheça as origens comuns da poesia da canção e da poesia destinada à leitura, afirma que as duas formas são concebidas para propósitos diferentes. O autor enfatiza o fato de que criam-se as letras de canção visando à transmissão oral numa obra musical. Assim, se um texto é criado para ser cantado, e não para ser recitado, ele deve ser estudado tal como foi concebido. Perrone afirma: “Seja qual for o enfoque – artístico musical, antropológico ou literário – será necessário que se leve em conta as características musicais de uma canção juntamente com os significados verbais ou funções culturais para que se possa verificar a ação complementar que há entre a música e o texto” (1988:11). Procurei portanto me manter atenta tanto ao significado quanto aos signos inscritos nas canções que tomei para analisar. Esse tipo de preocupação me levou a observar com cuidado não só as estruturas musicais em si, mas também os arranjos orquestrais e os estilos de interpretação da época. Fui percebendo, ao longo da pesquisa, que os arranjos tenderam a obedecer a um parâmetro que passou a se tornar hegemônico, a partir do início dos anos 30, com as inovações promovidas por Pixinguinha e Radamés Gnattali na gravadora Victor. A tosca simplicidade dos regionais, conjuntos de acompanhamento musical que se valiam de poucos instrumentos e concebiam o arranjo apenas como uma espécie de fundo, ou base, para orientar o intérprete, foi substituída pelas orquestrações exuberantes de sopros e cordas, em que os instrumentos não eram mais utilizados para “dar o tom”, mas de maneira contrapontística, possibilitando uma relação mais complexa entre o intérprete e os instrumentos. Este livro se propõe analítico e reflexivo; não se trata de uma pesquisa de construção histórica, que lidaria basicamente com fontes primárias. Recorri portanto a uma literatura extensa, que toma como objeto não só a música popular e erudita produzida no Brasil no período em foco, como também questões estéticas mais genéricas sobre o modernismo brasileiro e o europeu. Constam das referências bibliográficas teses, artigos, ensaios, biografias e publicações jornalísticas, além de periódicos de época, como Ariel – Revista de Cultura Musical e Klaxon. Não me furtei, no entanto, à pesquisa de fontes primárias, que realizei sobretudo no Museu da Imagem e do Som, ouvindo depoimentos dos principais agentes das mudanças estéticas mencionadas, e no
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CPDOC (Fundação Getulio Vargas), onde consultei documentação do Arquivo Capanema referente aos projetos de educação cívico-musical dos anos 30 e 40. Procurei formar também uma discografia que documenta a produção musical do período, incluindo obras de artistas tanto modernistas quanto populares. Também não tive a intenção de desenvolver um trabalho exaustivo, esgotando completamente as informações estéticas relativas às duas décadas que me propus estudar. Em vez de escrever a história da música popular nos anos 20 e 30, optei por analisar figuras e atitudes paradigmáticas do período. Os compositores do novo samba que se cria nos morros do Rio de Janeiro, por exemplo, são tratados em bloco. Não pretendi, com esse procedimento, apagar suas singularidades; mas, dadas as limitações impostas por meu próprio projeto, achei mais conveniente captar-lhes alguns traços comuns, como sua inserção na boemia, a representação da malandragem, sua atitude gauche e outros. E gostaria de fazer um comentário final, referente à heterogeneidade das informações bibliográficas sobre o período analisado. Além de dispor, como já observei, de uma literatura extensa, lidei com os mais variados tipos de textos – de escritos memorialísticos, biográficos ou autobiográficos, ora ingênuos, ora sofisticados, a estudos de cunho acadêmico, assim como me deparei com interpretações diferentes – e até mesmo antagônicas – sobre o tema investigado. Em vez de tomar essa heterogeneidade como um problema a ser enfrentado, preferi usar o bom senso e limitar-me à tarefa metainterpretativa a que me propus desde o início. Apesar de valorizar enormemente a questão das diferenças de interpretação, acredito que este tipo de análise demandaria uma outra pesquisa.
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Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta. Mário de Andrade, Oração de paraninfo
Apr esen tação: a “músi ca i n ter essad a” Um fenômeno que chama a atenção de quem pesquisa a música brasileira da virada dos anos 20 e da década seguinte é o dos direcionamentos opostos tomados pela música erudita e a música popular. A começar pelo fato de que o projeto musical modernista, articulado basicamente por Mário de Andrade, mantém a tradicional classificação hierarquizante entre erudito e popular, a despeito de toda uma valorização do “populário”. É significativa a posição de Mário de Andrade: se por um lado não vislumbra a possibilidade de se fazer música nacional sem o concurso do “populário”, por outro continua tendo por meta a criação de composições mais elaboradas, no âmbito da experiência erudita. Quanto a esta questão, ele é taxativo: “[...] é com a observação inteligente do populário e do aproveitamento dele que a música artística se desenvolverá”. Se Mário expressa sua admiração pela música popular brasileira de maneira contundente – “é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora” –, dela ainda exige, no entanto, uma série de desenvolvimentos, na medida em que a vê destituída de maiores elaborações formais, espontânea e descompromissada com
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quaisquer propostas de cunho construtivo (Andrade, 1962:24). A “música artística”, portanto, é a música erudita. Ao enfatizar a figura de Mário de Andrade, não nego a participação de literatos, compositores, críticos, musicólogos e outros no projeto musical modernista, como por exemplo Renato Almeida, Oswald de Andrade, Luciano Gallet, Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez. Apenas pretendo salientar o papel formador de Mário de Andrade neste movimento. Com relação a Camargo Guarnieri, por exemplo, Marcus S. Wolff afirma que este compositor já tendia para o nacionalismo musical antes de conhecer Mário de Andrade. Mas, segundo Wolff, o interesse de Guarnieri pela música popular e folclórica teria se intensificado a partir de seu contato com Mário de Andrade. Wolff (1991:4-6) observa que, no início dos anos 30, Lorenzo Fernandez e Camargo Guarnieri já adotavam a mesma postura nacionalista dos escritores modernistas, compartilhando com eles, portanto, o mesmo universo sociocultural. Voltando a Mário de Andrade, Gilda de Mello e Souza (1979:20) chama a atenção para o fato de que ele utiliza o conceito de Charles Lalo de nivelamento estético, que remete à idéia de se erigir um gênero inferior ao nível da “arte culta”, ou superior. Segundo a autora, esse fenômeno ocorreu quando os compositores começaram a introduzir a canção popular na polifonia católica, trabalhando-a com variações contrapontísticas, e quando Haendel incorporou a siciliana, uma dança folclórica, na criação da ária dramática e passou a executar a mazurca e a polonesa ao piano de maneira virtuosística. Em artigo sobre a música modernista, Arnaldo Contier analisa esse tipo de atitude que tende a reificar as distinções entre os domínios do erudito e do popular através da maneira pela qual Renato Almeida e outros musicólogos do movimento, no Brasil, lidam com a tradição cultural. Valoriza-se o imaginário do homem natural referenciado a rituais folclóricos, o qual, nesta linha de raciocínio, deve ser preservado. Por exemplo, em manifesto de 1926 – “A história da música brasileira” –, Renato Almeida condiciona a realização do projeto musical modernista à integração do compositor (intelectual) com a natureza (universo rural), tal como interpreta Arnaldo Contier (1992:274-5): [...] Para o autor, a “sinfonia da terra” era caracterizada pela natureza exuberante [...]. Em contato direto com essas florestas, o observador-pesquisador poderia decodificar as mais diversas imagens sonoras – consonantes e dissonantes –, atrelando-as a tonalidades altamente matizadas
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conforme intensidades mais “fortes” ou “suaves”, irmanadas “[...] numa surpreendente harmonia”. De acordo com essa interpretação do processo histórico, a música brasileira existia concretamente numa realidade cultural autóctone, simbolizada pelo universo selvagem ou primitivo. [...] O compositor, ou o homem novo, deveria aproximar-se dessa comunidade outrora representativa da miscigenação e dos laços de sangue oriundos da fusão das três raças tristes: o branco (bandeirante conquistador), o negro e o índio. A conexão intelectual homem culto-“homem rústico” concretizar-se-ia no projeto da brasilidade modernista fundamentada no romantismo conservador sobre os ideais de “nação” [...].
Mas prevê-se, no projeto musical modernista, a transfiguração desse imaginário popular por meio de recursos técnico-estéticos do domínio erudito, o único a propiciar condições para a existência do homem cultural, ou seja, o “agente social capaz de deglutir antropofagicamente as falas populares num discurso sonoro nacionalista atrelado à arte pura, como os Choros nº 10, de Villa-Lobos” (Contier, 1992:275-6). Contier acrescenta: Na realidade, o projeto em prol da brasilidade modernista baseava-se, de um lado, no estudo das manifestações consideradas dionisíacas, como Carnaval; e, de outro, na sua transfiguração em peças eruditas, conforme regras (apolíneas), oriundas da tradição técnico-estética da linguagem tonal e de formas de representação do universo sonoro europeu do século XIX: preservação da tensão/repouso estabelecida pela teoria sobre dissonância/consonância; ritmos sincopados, retoricamente definidos como a internacionalização da duração dos sons numa técnica “essencialmente” brasileira, ou autóctone; polirritmia; suítes, óperas, poemas sinfônicos (1992:276).
Uma visão evolucionista da história subjaz, por certo, a essa idéia de submeter o elemento popular a um desenvolvimento erudito. Mário de Andrade recorre às teorias de James Frazer e Edward Tylor para localizar as raízes religiosas das manifestações folclóricas, equiparadas, num certo sentido, a experiências místicas primitivas. Assim, ao utilizar essas teses antropológicas, Mário não só concorda com os mestres ingleses que os rituais folclóricos constituem uma sobrevivência de traços culturais de um momento menos evoluído localizado no passado, como também aceita sua visão do elemento folclórico como menos civilizado, ou “primitivo”, “relativamente a um padrão cultural que se considera civilizado” (Moraes, E., 1983:86-7).
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Outra questão se coloca. Num momento em que a música popular, atuando à margem dos círculos artísticos articulados em torno de um projeto de renovação estética, tende a assimilar o imaginário urbano, ou mesmo suburbano, referenciado a experiências modernizantes, a música erudita – vinculada a este mesmo projeto – se volta para a pesquisa dos elementos folclóricos, referenciados, na maioria das vezes, ao universo rural. Isso não significa uma situação de confronto, mesmo porque não há interlocução entre artistas populares e eruditos. Se esses dois tipos de artistas mantêm um certo convívio, ele tende a se dar num outro plano, onde a discussão intelectual cede lugar a um tom coloquial de conversação. Esse encontro tem lugar em alguns redutos boêmios do Rio de Janeiro, onde poetas, músicos e intelectuais modernistas exercitam uma escuta antropofágica da música popular que ali se executa. Em diversos relatos sobre o convívio de compositores de choro e samba com intelectuais e músicos do movimento modernista, Jaime Ovalle1 costuma aparecer como um mediador entre os mundos erudito e popular, assim como uma figura emblemática da postura incorporativa do elemento popular. Davi Arrigucci, ao descrever a boemia artística da Lapa dos anos 20, ressalta a importância de Ovalle como freqüentador desse reduto: Músico primeiro ligado ao piano e ao bandolim, iria se tornar conhecido também como o “Canhoto” do violão, nas rodas boêmias de seresteiros e sambistas cariocas. O samba acabava de nascer naqueles anos e alguns de seus expoentes iniciais fariam parte do enorme círculo de amizades de Ovalle, como Sinhô, Donga e João da Bahiana (1990:65-6).
Manuel Bandeira descreve esse aspecto transitivo de Jaime Ovalle, que tanto circula no “chão humilde” dos compositores mais simples quanto no terreno mais sofisticado da música erudita, em busca de uma
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Jaime Ovalle (1894-1955), compositor e poeta, dedicou-se, como autodidata, ao piano e ao bandolim, e depois ao violino e ao violão. Veio de Belém para o Rio de Janeiro ainda jovem, passando a se relacionar com intelectuais e músicos. “Poeta, conhecedor da música popular brasileira e violonista de choros e serestas, foi freqüentador assíduo da casa de Villa-Lobos”. Suas obras mais conhecidas, Azulão e Modinha, foram concebidas a partir de versos de Manuel Bandeira, seu grande amigo. Seus poemas escritos em inglês, reunidos sob o título The foolish bird, não foram publicados. (Enciclopédia da música brasileira: erudita, folclórica, popular, 1977:576).
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composição ao mesmo tempo elaborada e “fundamentalmente enraizada no pathos popular”.2 Arrigucci (1990:65-6) cita, além de outros músicos ligados a Ovalle, poetas, artistas e intelectuais que, aspirando um maior contato com as fontes populares, fizeram da Lapa um espaço literário, como Raul de Leoni, Ribeiro Couto, Dante Milano, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Caio de Mello Franco, Oswaldo Costa, Di Cavalcanti, Cícero Dias e Villa-Lobos. O violão, um dos instrumentos a que o compositor recorre, possibilita esse tipo de mediação entre o erudito e o popular, o que lhe confere um papel simbólico no panorama modernista. Pois, como argumento ao longo deste livro, o modernismo em sua versão brasileira promove uma certa dose, ainda que limitada, de descontinuidade com relação ao passado estético comprometido com os ideais de civilização. Tende a rejeitar, neste caso, principalmente as contribuições advindas da tradição clássica, legítima representante de um tipo de erudição que exclui as manifestações da cultura popular. Se o populário musical, como afirmei anteriormente, deve ser reelaborado por um processo musical erudito, ele não perde, entretanto, sua importância enquanto elemento definidor da “alma” nacional. Os ideólogos modernistas tentam afrouxar as distinções solidamente cristalizadas entre o erudito e o popular, as quais, no plano musical, correspondiam ao cultivo do piano ou do violão. Ao primeiro costumava-se reservar o teatro, enquanto o violão era confinado ao espaço circense. Os cantores que se acompanhavam com esse instrumento tão associado à plebe, como Eduardo das Neves e Mário Pinheiro, tornavam-se, pela força das circunstâncias, dublês de palhaço e de músico.3 Esse fenômeno de hierarquização dos instrumentos musicais explica de certo modo a aversão dos modernistas pela “pianolatria” vigente no país. No “Manifesto da poesia pau-brasil”, de 1924, Oswald de Andrade associa o piano à mesma tradição que teria engendrado a estatuária e a poesia parnasiana: Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinhas na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela [...] (Andrade, 1972a:7).
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Apud Arrigucci, 1990:69. Ver Prado, 1989/90.
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Rejeita-se o piano, por um lado, por se associá-lo à tradição romântica que se quer superar e, por outro, por se tratar de um instrumento que se prestou como nenhum outro à prática virtuosística. Propõe-se, em lugar dessa música de especialistas, a música camerística, mais afeita a inovações e a uma atividade mais integradora dos artistas. À recusa do piano sucede-se portanto a incorporação do violão, o que ilustra um outro aspecto da discussão modernista – compartilhada por algumas vanguardas européias e latino-americanas: a valorização das culturas populares e/ou primitivas. Nesse esforço modernista de aproximar o elevado (associado ao erudito) do baixo (popular), o violão ganha força simbólica como instrumento que possibilita a transição entre esses dois mundos. Dotado de amplos recursos musicais e de grande penetração social – aspecto que o valoriza perante os artistas de orientação nacionalista, não só no Brasil como em outros países –, o violão começa, a partir dos anos 20, a interessar cada vez mais a grande parte dos músicos eruditos.4 Em artigo de 1924 para a revista Ariel, ilustrado com o Violão de Pablo Picasso, Manuel Bandeira discorre sobre o instrumento, destacando sua importância como elemento definidor da nacionalidade: Para nós brasileiros o violão tinha que ser o instrumento nacional, racial. Se a modinha é a expressão lírica do nosso povo, o violão é o timbre instrumental a que ela melhor se casa. No interior, e sobretudo nos sertões do Nordeste, há três coisas cuja ressonância comove misteriosamente, como se fossem elas as vozes da própria paisagem: o grito da araponga, o aboio dos vaqueiros e o descante dos violões. Desgraçadamente entre nós o violão foi até aqui cultivado de uma maneira desleixada. [...] Houve também [...] uma certa prevenção contra o violão por carregar a fama de instrumento refece, alcoviteiro e cúmplice da gandaia em noitadas de sedução. Era, tipicamente, o instrumento mauvais sujet. Ele foi, porém, reabilitado pela visita que recebemos de dois artistas estrangeiros, os quais vieram revelar aos nossos amadores todos os recursos e a verdadeira escola dos grandes virtuoses de Espanha. Refiro-me a Agostinho Barrios e Josefina Robledo. [...] Mas o repertório? [...] o repertório do violão é, além do próprio, todo o repertório do alaúde. O alaúde é um instrumento cuja caixa é parecida com
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Ver Castagna & Schwarz, 1993.
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a do bandolim, um pouco maior, braço alongado, e tem o mesmo número de cordas, afinadas da mesma maneira que as do violão. O timbre é também o mesmo, ligeiramente mais tênue. [...] Os nossos tocadores de violão compuseram peças de caráter brasileiro interessantíssimas. Correm, porém, de oitiva. Tais são os maxixes de Arthiodoro da Costa, João Pernambuco, Quincas Laranjeiras e outros de igual valor. Villa-Lobos [...], que está agora em Paris, [...] tocou violão quando rapazola. E compôs muita coisa que está guardada a sete chaves... E não sei se não as atirou todas ao mar... Ele não gosta que se fale nisso. Preconceito muito pouco moderno e muito pouco nacional [...] (Bandeira, 1924a:463-8).
Chiquinha Gonzaga (1847-1935) tornou-se também uma figura emblemática, ao fazer, em um registro mais popular que Ovalle, e em época anterior, a mediação entre os mundos “baixo” e “elevado”. Sua própria condição de pianeira possibilita essa mediação. Ela recorre ao piano, considerado um instrumento nobre; mas o utiliza para executar composições “ordinárias”, associadas ao universo da baixa cultura. O termo “pianeiro”, com um teor originariamente depreciativo, é usado no Rio de Janeiro do final do século para designar o músico que toca o instrumento sem a formação exigida, em que se requer tanto o conhecimento musical quanto o uso de partituras. O termo remete também ao músico que, mesmo possuindo formação musical – como é o caso de Chiquinha –, dedica-se a interpretar ao piano composições populares, que permitem a prática do improviso.5 Também em outros aspectos de sua vida Chiquinha desloca-se pelos domínios do baixo e do elevado. Particularmente atenta aos ruídos musicais do Rio da virada do século e dos anos 10, e guiada pelo flautista Callado – reconhecido como criador do choro e nacionalizador da música popular –, Chiquinha começou sua carreira produzindo polcas e atuando como pianeira no ambiente dos chorões. A partir daí dedicou-se também a compor valsas e tangos, assim como à função de maestrina. Sua versatilidade estética correspondia à sua figura pública, construída à custa de várias inversões nos códigos culturais vigentes, o que a tornava bastante controvertida. Seus biógrafos tendem a enfatizar esse prisma. Assim, a narrativa de sua vida sofre uma série de inflexões. Tudo começa com a história de sua família – a Neves Gon-
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Ver Diniz, 1984.
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zaga –, que se situava “numa camada social intermediária entre a camada senhorial e a escravaria” (Diniz, 1984:47), o que já denota a idéia de ambigüidade. Um segundo momento é marcado pelo episódio da expulsão de Chiquinha pela família, “em virtude de sua separação do marido”, sendo então “imediatamente adotada pelo ambiente musical boêmio”. A qualificação de boêmia, portanto, aliada ao fato de exercer uma profissão não adequada às mulheres, ajuda a construir a personagem cujo comportamento é “severamente condenado”, sofrendo em conseqüência cada vez mais “hostilidades”: No Rio de Janeiro de 1877 o nome Chiquinha Gonzaga foi cantarolado em maldosas quadrinhas satíricas pelas ruas (Diniz, 1984:116).
Ressalta-se, neste contexto, a originalidade de seu comportamento: Costumava [...] confeccionar ela própria seus vestidos. [...] Naqueles tempos em que a moda era a saia-balão e a mulher elegante não dispensava o chapéu como acessório do maior respeito e status, Chiquinha ousava dispensá-los. Substituía-o por um lenço de seda envolvido e confundido com seus cachos (Diniz, 1984:115).
A ousada personagem não ficava alheia ao cenário político da época, aderindo prontamente às causas progressistas; participou da campanha abolicionista e, logo depois, do movimento republicano. Desencantada mais tarde com o novo regime, escreveu Aperte o botão, cançoneta que, por seu teor irreverente, não foi bem-aceita pelo governo florianista. Suas músicas foram apreendidas e Chiquinha recebeu ordem de prisão, o que não teria se concretizado “devido ao seu parentesco com pessoas ilustres” (Diniz, 1984:144-8). Mas sem dúvida o episódio mais narrado pelos pesquisadores de música popular é o encontro de Chiquinha Gonzaga com Nair de Teffé, outra personagem feminina que, por suas atitudes inusitadas, surpreende o Rio do início do século. A primeira-dama, casada com o presidente Hermes da Fonseca, assumia um comportamento destoante tanto de sua origem de classe quanto de sua condição feminina, ao tomar aulas de violão – instrumento à época associado ao populacho – e ao manter um certo convívio com compositores populares, como Catulo da Paixão Cearense. Nair de Teffé radicalizou esse comportamento em 1914, promovendo no dia 26 de outubro uma apresentação musical de Chiquinha Gonza-
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ga no Palácio do Catete. A compositora executou ao violão o tango Corta-jaca, de sua autoria, o que provocou reações bastante negativas na cidade, como a de Rui Barbosa, comentando o fato em sessão do Senado Federal: Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aquelas que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o cortajaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, sr. presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria! (Rui Barbosa apud Diniz, 1984:236-7.)
Retomando a questão da ênfase conferida pelos musicólogos modernistas aos elementos folclóricos – associados em geral ao registro rural –, é importante observar que essa atitude não deve dar a entender que os ritmos urbanos tenham sido inteiramente excluídos do projeto modernista. Em vários artigos de crítica musical, Mário de Andrade demonstra seu interesse pelos gêneros musicais que se desenvolvem em algumas cidades brasileiras, como o samba e o maxixe. No Ensaio sobre a música brasileira, por exemplo, ele se mostra atento às fusões de ritmos que se desenvolvem nas cidades, como o jazz e o maxixe, e também avalia o processo de maneira positiva: Os processos do jazz estão se infiltrando no maxixe. [...] E tanto mais curioso que os processos polifônicos e rítmicos de jazz que estão nele não prejudicam em nada o caráter da peça. É um maxixe legítimo. De certo os antepassados coincidem... (Andrade, 1962:25).
Ou quando Mário avalia, em artigo de 1924, a música de Marcelo Tupinambá: O que exalta a música de dança de Marcelo Tupinambá é a linha melódica. Muito pura e variada. O compositor encerra nela a indecisão heterogênea da nossa formação racial. Ora tem o espevitamento do quase branco das cidades, ora a melancolia do nosso interior (Andrade, 1963:118).
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Heitor Villa-Lobos, o músico mais conhecido do movimento modernista, compõe várias obras de temática sertaneja; e apresenta, pelo menos nos anos 20, todo um ciclo de composições em que nitidamente incorpora ritmos cariocas, como a série dos Choros. J. Jota de Moraes atribui a Villa-Lobos, na década de 20, uma atitude mais experimental e menos conformista, no sentido de buscar novos materiais, de explorar novas combinações de instrumentos e de criar percussões ricas e variadas. A série de Choros, gerada por esse singular processo de composição, reúne elementos provenientes das músicas erudita e popular. Moraes associa esse tipo de procedimento aos “exercícios de liberdade” que Villa-Lobos teria se permitido quando se encontrava em Paris. Mas a partir do momento em que retorna ao Brasil e se vê longe do libertário ambiente musical parisiense, Villa parte para uma estética neoclássica, significativamente representada por suas Bachianas (Moraes, J., 1983:173). Contudo, ao propor que se faça uma “música interessada”, ou seja, comprometida com o projeto nacionalista, Mário de Andrade não só defende a transfiguração erudita das manifestações populares como tende a enfatizar os elementos folclóricos, marcadamente rurais (ou sertanejos) de nosso repertório cultural. De acordo com José Miguel Wisnik, essa valorização do regional corresponderia à concepção desenvolvida pelo nacionalismo modernista de que a música urbana exprimiria “o contemporâneo em pleno processo inacabado” (Squeff & Wisnik, 1983:148). Mas nota-se que essa idéia de um inacabamento do nosso processo histórico, com seu viés evolucionista, acaba contribuindo para a própria confecção da categoria “música interessada”. Mário de Andrade dá a entender que só seria justificável fazer música meramente “desinteressada” quando ultrapassássemos o momento de formação nacional. Essa orientação corresponde às reflexões mais genéricas sobre Arte (com A maiúsculo) que Mário desenvolve em Introdução à estética musical, obra que inicia em 1925 com propósito assumidamente didático.6 Ele afirma, por exemplo, o caráter necessariamente “interessado” da arte primitiva, pois “o homem não podia ainda dissociar conscientemente os prazeres de interesse imediato dos de interesse mediato, enfim: separar o Belo do Bom, do útil”. E enriquece o argumento dizendo que, ao contrário das representações artísticas aceitas universalmente como superiores,
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Ver Toni, 1995.
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como as de Ésquilo, Shakespeare, Cervantes, Beethoven e outros, nas representações artísticas primitivas a expressão não é livre, por se subjugar sempre a uma necessidade prática de comunicação. O que caracteriza a evolução da arte, portanto, é o fato de sua expressão se tornar livre. Assim, o artista deixa de ser “um operário das necessidades líricas do povo” e se permite obedecer “às suas impulsões líricas individuais” (Andrade, 1995:25-7). Pelo que se depreende dos textos posteriores de Mário de Andrade, como o Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, estaríamos ainda num patamar histórico que exige a atuação do artista-operário, depositário de uma concepção útil e moralizante de arte. As “impulsões líricas individuais” seriam mais compatíveis com um estágio avançado de desenvolvimento. Mário de Andrade já expõe esse tipo de concepção evolucionista de arte – e de teor claramente moralizante – em artigo de 1924 – “Marcelo Tupinambá”: A arte musical brasileira, se a tivermos um dia, de maneira a poder chamar-se escola, terá inevitavelmente de auscultar as palpitações rítmicas e ouvir os suspiros melódicos do povo para ser nacional, e por conseqüência ter direito de vida independente no universo. Porque o direito de vida universal só se adquire partindo do particular para o geral, da raça para a humanidade, conservando aquelas suas características próprias, que são o contingente que enriquece a consciência humana. O querer ser universal desgraçadamente é uma utopia. A razão está com aquele que pretender contribuir para o universal com os meios que lhe são próprios e que lhe vieram tradicionalmente da evolução do seu povo (Andrade, 1963:115).
Mas nota-se, por este artigo, que Mário de Andrade não está lidando com uma perspectiva classicamente evolucionista, que implica a idéia de uma trajetória linear e uniforme rumo ao progresso. Com relação a este ponto, Eduardo Jardim de Moraes afirma que o modernismo brasileiro, a partir de 1924, faz uma nova projeção de nossas possibilidades de ingressar na ordem universal. Começa-se a ter um novo entendimento desse processo, segundo o qual a entrada do país na modernidade dependeria não só de um tempo próprio como também de um desenvolvimento singular das nossas potencialidades culturais. É a partir desse raciocínio que Mário de Andrade analisa a constituição da arte musical brasileira, que seria alcançada quando adquiríssemos o direito de vida universal. Mas antes de chegar lá, ou
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seja, ao estatuto da “humanidade”, teríamos que lidar com as questões relativas à nossa “raça”, à nossa singularidade, ao nosso perfil peculiar. Ou, como observa E. Moraes, teríamos que constituir um retrato-do-Brasil que possibilitasse a apreensão da entidade nacional “como uma parte distinta das outras partes componentes do concerto internacional e como uma realidade que se apresenta como uma totalidade” (1983:68). Detenhamo-nos então na concepção de “música interessada” proposta por Mário de Andrade. De acordo com a postura construtiva que o ideólogo do modernismo assume no Ensaio sobre a música brasileira, escrito num momento que interpreta como “de nacionalização”, a “música interessada” seria um tipo de experiência estética a ser desenvolvida por um artista comprometido com a construção do projeto nacional. Mário elege, portanto, um critério social e “de combate”, e não filosófico, para se pensar a música brasileira. O escritor dá também a entender que estaria questionando sua própria trajetória vanguardista, voltada em excesso para a busca da renovação cultural, ou, em seus próprios termos, da “originalidade”. Propõe-se então a atenuar esse tipo de atitude e a fortalecer a prática construtiva, o que implica, entre outras coisas, a recuperação do ensino e da pesquisa (histórica e etnográfica), tendo como principal objeto o folclore. E pontifica: “Faz tempo que não me preocupo em ser novo. [...] A minha obra desde Paulicéia desvairada7 é uma obra interessada, uma obra de ação” (1962:73). Mário de Andrade dissocia, portanto, a idéia de originalidade tanto das propostas de ruptura radical com o passado quanto da meta de atualização diacrônica do país à nova ordem universal, passando a enfocar essa idéia sob outro prisma, vinculando-a à própria tradição cultural do país. Promove-se o que Moraes analisa como a “des-historização do projeto modernizador”, que reinventa um registro temporal próprio para a história brasileira, no qual convivem concomitantemente passado, presente e futuro. Essa nova concepção de temporalidade – cuja formulação em muito se deve à definição de temporalidade popular – predominaria, como vimos, nas discussões modernistas principalmente a partir de 1924 e tenderia a abolir os conflitos entre os ideais inovadores e conservadores. Eduardo Moraes então conclui:
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Paulicéia desvairada foi publicada em 1922.
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Diferentemente do que ocorre em outros modernismos onde a idéia de revolução ou de descrédito do passado se situa no centro das indagações, no caso brasileiro a modernização vem caracterizada como atualização, onde não está afastado o compromisso com a tradição (1983:6-7, 28-9).
Assim, as manifestações populares, sobretudo as folclóricas, são tomadas como matrizes para composições eruditas, elaboradas, que apresentam ao mesmo tempo uma caracterização nacional. E coerentemente com essa concepção unificadora que subjaz à confecção do “retrato-do-Brasil”, evita-se que tais manifestações se confundam com o exótico ou se restrinjam a um único elemento, como o indígena. Todos os elementos do nosso “populário” devem concorrer para a formação de nossa musicalidade étnica, pois a arte nacional, segundo Mário, “não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos”, mas já está feita “na inconsciência do povo” (1962:15-6).
A con str u ção d a ci vi li zação Esse viés construtivo do projeto musical modernista estabelece, a meu ver, uma continuidade com o processo civilizador iniciado no Brasil no século passado, embora o faça atualizando esse processo, conferindo-lhe um caráter mais includente8 com relação ao repertório popular. Recorro a Norbert Elias e a seu conceito de civilização, principalmente no que a palavra remete, de acordo com sua interpretação, às acepções francesa e inglesa do ideal de progresso – tanto do Ocidente quanto da humanidade – e a uma perspectiva universalista. Elias argumenta que o conceito de civilização tende a enfatizar as semelhanças entre os seres humanos e a atenuar as diferenças nacionais, expressando o sentimento de autoconfiança característico de povos que já constituíram sua identidade e que, ao longo do tempo, estabeleceram solidamente suas fronteiras (1990:25).
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Usei o termo “includente” em dissertação de mestrado sobre Caetano Veloso (Ribeiro, 1988) para designar um tipo de atitude estética que se caracteriza por incorporar peças do repertório cultural – nacional e estrangeiro – de maneira eclética e menos comprometida com linhas unívocas e definidas. Essa atitude, pelo que observei, caracteriza a arte pop, o novo rock inaugurado pelos Beatles e a chamada estética pós-moderna. No caso brasileiro, o exemplo mais claro é a prática iniciada pela tropicália.
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Considero também importante para os objetivos desta discussão enfatizar a questão colocada por Elias quanto à univocidade a que é levada a conduta humana sob os efeitos do processo civilizador. Cria-se, segundo ele, um tipo específico de ordem, em que o controle historicamente efetuado por outrem é convertido em autocontrole. A personalidade é então modelada de maneira civilizadora quando as funções sociais, sob o efeito da competição na sociedade ocidental, se tornam cada vez mais diferenciadas, e o indivíduo é forçado a se conduzir de maneira mais diferenciada, uniforme e estável (1993:193-274). Partimos portanto do pressuposto de que o ideal de progresso predominante no país a partir do século XIX assume os contornos do processo civilizador analisado por Norbert Elias, na medida em que se toma a Europa como modelo e se assume uma atitude excludente para com o que se desvia de uma direção univocamente traçada. Em sua análise de Sobrados e mocambos (1936), de Gilberto Freyre, Ricardo Benzaquen de Araújo lida exatamente com essa concepção de processo civilizador ao interpretar o relato apresentado por Freyre das modificações ocorridas no país, no plano cultural, a partir da vinda da Corte portuguesa. No rol das mudanças, Gilberto Freyre enfatiza o fenômeno da decadência do patriarcalismo, atribuída em grande parte à própria presença do monarca numa terra tradicionalmente tendente a manter suas características feudais, com o poder descentralizado e assumido por membros do patriciado rural. A sociedade colonial teria se modificado, portanto, em seus principais aspectos, pois os senhores de engenho e de fazenda, com seu estilo de vida vinculado à casa-grande, começariam a perder a grandeza que ostentavam na época colonial.9 Na análise de Araújo, o processo civilizador, no caso resultante da união de esforços da soberania monárquica e da moderação dos costumes, atua no sentido de “refrear aquele híbrido e anárquico, quase bárbaro poder exercido pelos senhores de engenho e outros grandes proprietários durante o período colonial” (1994:16). Essa nova nobreza urbana que então se configura e que passa a habitar os sobrados, embora partilhe com as casasgrandes rurais o ideal de autarquia, cultiva, no entanto, “um estilo bem mais moderado e burguês” (1994:116). Eis como Ricardo Benzaquen de Araújo sintetiza essa questão:
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Freyre apud Araújo, 1994:110.
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Dessa forma, nosso autor esboça um quadro no qual ainda é até possível se falar em autoridade patriarcal, mas somente na medida em que fique bem claro que esta categoria possuía aqui um sentido bastante diferente do que é empregado em CGS [Casa-grande & senzala]. Afastando-se do campo, da escravidão e da poligamia – mas não inteiramente da hybris [...] –, essa autoridade passa a ser exercida sobre uma família basicamente monogâmica, de corte bem mais disciplinado e ocidental, muito mais compatível, portanto, com o conjunto das modificações estudadas até o momento (1994:120).
Esse ideal de contenção, associado portanto à guinada reeuropeizante do país, levaria os sobrados a adotar um procedimento excludente para com os segmentos asiáticos, africanos e mesmo indígenas, que, no reduto da casa-grande, teriam vivenciado “um registro mais voltado para a ‘proximidade' e a ‘confraternização'”. Tal esforço de aparar as irregularidades, com seu viés moderador, tem sido associado mais recentemente ao registro republicano, o qual, buscando legitimar-se, imporia um modelo de civilização para o país que excluiria a diversidade social. José Murilo de Carvalho é um dos autores que se dedicam a analisar as transformações operadas no imaginário político e social a partir da implantação desse registro, principalmente no Rio de Janeiro, dada a sua condição de capital. Os governantes, segundo Carvalho, assim como grande parte dos intelectuais, preocupam-se em conferir a esta cidade um perfil condizente com o mundo “civilizado” (1988:16). Mas “civilizar”, neste contexto, significa basicamente afrancesar, tomando-se os parâmetros dessa nação européia para lidar com os vários planos da vida social. Carvalho lembra, a propósito, que a própria simbologia revolucionária da República nos foi fornecida pelos franceses: Entre os propagandistas, o entusiasmo pela França era inegável. A proximidade do centenário da revolução de 1789 só fazia aumentá-lo. Silva Jardim pregava abertamente a derrubada do Antigo Regime no Brasil, fazendo-o coincidir com o centenário. Não se esquecia de incluir o fuzilamento do conde D'Eu, francês, a quem destinava o papel do infortunado Luís XVI, numa réplica tropical do drama de 1792. O entusiasmo não podia ser melhor expresso do que nas palavras de um oficial da Marinha, recordando em 1912 os tempos da propaganda: “Todas as nossas aspirações, todas as preocupações dos republicanos da propaganda, eram de fato copiadas das tradições francesas. Falávamos da França bemamada, na influência da cultura francesa, nas menores coisas das nossas lutas políticas relembrávamos a França. A Marselhesa era nosso hino de
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guerra, e sabíamos de cor os episódios da grande revolução. Ao nosso brado ‘Viva a República!' seguia-se quase sempre o de ‘Viva a França!' [...] A França era nossa guiadora, dela falávamos sempre e sob qualquer pretexto” (Carvalho, 1993:12-3).
A repressão ao entrudo no final do século XIX e aos batuques africanos no início deste século, exaustivamente estudada por diversos autores, é bastante representativa dessa atitude que tende a eliminar o que não se enquadra no modelo de contenção então hegemônico, adotando como prática a rejeição a vários tipos de manifestações da chamada “baixa cultura”, vistas como bárbaras e associadas a um Brasil arcaico. Um exemplo desse tipo de análise pode ser encontrado no artigo de Peter Fry, Sérgio Carrara e Ana Luiza Martins-Costa intitulado “Negros e brancos no Carnaval da Velha República”, no qual se analisa a repressão tanto à prática do entrudo em algumas cidades brasileiras a partir de meados do século passado, quanto aos batuques africanos no início do século. Os autores mostram como a prática do entrudo começa a remeter a um passado colonial obscuro e passa a ser substituída por uma festa carnavalesca estruturada “em préstitos luxuosos, bailes de máscara e brincadeiras de rua”, configurando-se um todo onde reina “ordem, alegria e civilidade”. E, segundo eles, é por essa mesma lógica que opõe a barbárie à civilização que se explica a proibição, por parte das autoridades policiais, de batuques africanos. Pois a constituição da cidadania carnavalesca pressupunha um procedimento excludente para com “toda uma categoria social que era então convidada a redefinir, ou mesmo esquecer, seus valores e práticas distintivos, tratados como idiossincrasias individuais” (1988:259). Um registro semelhante opera no cenário marcado pela fantasia de civilização da belle époque, que enforma, entre outras coisas, o processo modernizante por que passa o Rio de Janeiro com Pereira Passos, num momento em que as tradições coloniais são vistas como atrasadas e vergonhosas. De acordo com Jeffrey Needell, “Pereira Passos não condenava apenas as ruas estreitas e imundas, mas também as fachadas sem pintura, os estilos rurais de consumo e os aspectos ‘bárbaros' do Carnaval” (1993:70-1). E depreende-se de depoimento de Renato Murce a Sérgio Cabral que esse intuito civilizador chega até os anos 20 e 30, alcançando o rádio em seu início, quando se tenta fazer da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (idealizada pelo antropólogo Roquette Pinto e pelo cientista Henrique Moritze) um veículo de orientação predominantemente didá-
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tica, programando-se apenas música erudita e palestras educativas. Renato Murce complementa: “Nada de música popular. Em samba, então, nem era bom falar”. Coerente com a linha de programação, em sua estréia no rádio (em julho de 1924) Murce interpreta peças de Puccini, Verdi, Massenet e Bellini, a convite de Roquette Pinto (Cabral, 1990:36). Sérgio Cabral cita trecho de discurso de Roquette Pinto, por ocasião da transferência de sua emissora para o governo (setembro de 1936): “É certo que não fundamos a Rádio Sociedade para só irradiar o que o público deseja. Nós a fundamos, principalmente, para transmitir aquilo que o público precisa”. De acordo com Cabral, Roquette Pinto estaria afinado, na época, com o primeiro gerente da BBC de Londres, J. C. W. Reith, o qual faz o seguinte pronunciamento em 1924: “Acredito que todos admitirão que explorar uma descoberta científica tão importante apenas para fins de entretenimento corresponderia a prostituir suas potencialidades e insultar o caráter e a inteligência do povo” (Cabral, 1990:37). Essa concepção de cultura, que remete à idéia de erudição e se opõe à prática do entretenimento, é portanto comum entre os promotores dos modernos meios de comunicação. Mas há indícios de reação ao próprio veículo em si, por parte de pessoas ligadas a formas mais tradicionais de expressão. Em estudo sobre a Rádio Nacional, Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira (1984:15) afirmam, por exemplo, que tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos houve uma recusa ao rádio por parte de homens de imprensa, que passaram a contrapô-lo ao jornal, veículo por excelência da comunicação escrita. O rádio, nesse tipo de entendimento, é visto como “um veículo imediatista e loquaz, sem a nobreza e a perenidade da palavra impressa”. Ao expor essas análises sobre a ocorrência de um processo civilizador no país em diversos momentos históricos, embora de maneira não exaustiva, fui movida pela intenção de contrastar dois sistemas classificatórios: o dos ideólogos da modernização via civilização e o dos modernistas, que buscam uma via alternativa ao universalismo. No primeiro caso, segue-se um modelo clássico, que, com o objetivo de manter um certo ideal de ordem, tende a promover separações entre estilos elevados e baixos. Na experiência modernista, busca-se embaralhar as distinções tradicionais e recuperar, em nome da originalidade cultural, elementos “inferiores” renegados pelo processo civilizador. Levando-se em conta as diferenças entre os dois ideais de modernização, torna-se mais fácil perceber as descontinuidades promovidas pelo movimento modernista.
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Atendo-me à renovação efetuada na esfera musical, considero importante destacar o momento de preparação e de realização da Semana de 22, o que inclui a preparação do evento e suas repercussões. Observamos, por exemplo, que às vésperas da Semana os modernistas assumem uma atitude provocadora e irreverente com relação ao passado estético, atribuindo a Carlos Gomes, por sua vinculação com o gênero operístico – principalmente o derivado do legado romântico, considerado excessivo na forma e no sentimentalismo piegas –, o papel de passadista-mor e contrapondo-o à figura inovadora de Villa-Lobos. Oswald de Andrade desencadeia uma grande polêmica, envolvendo o crítico musical Oscar Guanabarino, ferrenho defensor da tradição, ao atacar radicalmente o compositor de Campinas em artigo publicado no Jornal do Commercio – “Semana de Arte Moderna” – em 12 de fevereiro de 1922: Carlos Gomes é horrível. Todos nós o sentimos desde pequeninos. Mas como se trata de uma glória da família, engolimos a cantarolice toda do Guarani e do Schiavo, inexpressiva, postiça, nefanda. [...] Ora, enquanto na Alemanha se procedia à renovação estética, formidavelmente anunciada por Wagner, e na França, César Franck precedia Debussy, o nosso Carlos Gomes, batuta em punho, cabelo sensacional, olhar de fera americana, acreditava em Ponchielli. [...] De êxito em êxito, o nosso homem conseguiu difamar profundamente o seu país, fazendoo conhecido através dos Perís de maiô cor-de-cuia e vistoso espanador na cabeça a berrar forças indômitas em cenários terríveis.10
Mário de Andrade, algum tempo depois, investe também contra Carlos Gomes, embora num estilo mais moderado: [O Brasil] não produziu músico mais inspirado nem mais importante que o campineiro. Mas a época de Carlos Gomes passou. Hoje sua música pouco interessa e não corresponde às exigências musicais do dia nem à sensibilidade moderna. Representá-lo ainda seria proclamar o bocejo uma sensação estética. Carlos Gomes é inegavelmente o mais inspirado
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Oswald de Andrade apud Mariz, 1983:29. De acordo com Annateresa Fabris, à diferença “de seus companheiros, que usam a argumentação persuasiva, Oswald de Andrade recorre abertamente à provocação, trivializando pela paródia os valores de seus antagonistas”. “É nesse contexto que deve ser lida sua diatribe contra Carlos Gomes, na qual lança mão da difamação para exaltar, por contraste, a modernidade de Villa-Lobos” (Fabris, 1994:150-1).
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de todos os nossos músicos. Seu valor histórico para o Brasil é e sempre será imenso. Mas ninguém negará que Rameau é uma das mais geniais personalidades da música universal... Sua obra-prima, porém, representada há pouco em Paris, só trouxe desapontamento. Caiu. É que o francês, embora chauvin, ainda não proclamou o bocejo sensação estética (apud Wisnik, 1983:81).
Carlos Gomes é apresentado, por ocasião da Semana, como figura emblemática do padrão clássico-romântico adotado pelas elites culturais européias entre o século XIX e a I Guerra Mundial, que orienta o gosto dominante no Rio e em São Paulo nas décadas de 10 e 20. Só se apresentam nos programas de concerto e se cultivam nos conservatórios as obras de compositores considerados “clássicos”, entre os quais se incluem Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Chopin, Wagner, Brahms, Strauss, Schumann e Paganini, além de autores de óperas, como Verdi, Mascagni e Puccini. Mahler é um dos poucos contemporâneos que então se executam nas salas de concerto. Procedia-se, segundo Arnaldo Contier, ao “congelamento do ‘passado' estético”, o que se consolidava “na mentalidade de segmentos sociais consumidores da chamada Arte Culta (óperas, poemas sinfônicos, sonatas)” (1992:260-1). A programação musical da Semana promoveu, portanto, uma ruptura com essa concepção de arte culta, ao incluir, além de Villa-Lobos, compositores franceses que significavam uma alternativa à tradição clássico-romântica: Debussy, Blanchet, Vallon, Satie e Poulenc. Blanchet e Vallon foram pouco representativos no cenário modernizante da época, ao contrário dos três outros compositores.11 Sempre se atribui a Claude Debussy (1862-1918), por exemplo, o gesto inaugural para o surgimento da “música moderna”, com a apresentação ao público de Prélude à l'après-midi d'un faune, composto entre 1882 e 1884. Os procedimentos inovadores de Debussy em Prélude são muitos, a começar por sua ousadia no tocante às relações harmônicas usuais; embora não faça uma música atonal, ele cria uma composição livre da tonalidade diatônica que vigorou como regra durante um longo período. Dando continuidade a esse procedimento anticonvencional, Debussy cria Prélude sem obedecer a um tema definido, libertando-se portanto das regularidades e homogeneidades de ritmo exigidas pelo desenvolvimento temático tradicional. E Debussy é apontado como pioneiro “na utilização sistemática
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Ver Wisnik, 1983.
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da instrumentação como elemento essencial da composição”. Paul Griffiths argumenta que “as obras de Debussy perdem substância quando arranjadas para instrumentações diferentes” (1994:9). Prélude, por exemplo, foi concebido para flauta, e mudaria em muito as suas características se fosse executado por outro instrumento. Sem pretender esgotar a contribuição de Debussy ao ambiente vanguardista do final do século, e procurando me ater à criatividade do compositor ao elaborar Prélude, mencionaria também sua concepção estética próxima da poética de Mallarmé. Como se sabe, Debussy inspira-se na écloga L'après-midi d'un faune, escrita pelo poeta francês em 1876. Coerente com o ponto de vista de Mallarmé, Debussy não vê a música como um meio de expressar emoções pessoais, assim como também não a concebe como modo narrativo, o que implicaria um aprisionamento a uma conexão lógica ditada pela consciência. Libertado pela imaginação onírica, Debussy escreve: Eu desejaria para a música uma liberdade que lhe é talvez mais inerente que a qualquer outra arte, não se limitando a uma reprodução mais ou menos exata da natureza, mas às misteriosas correspondências entre a Natureza e a Imaginação (apud Griffiths, 1994:10).
Quanto a Erik Satie (1866-1925) – que teria, segundo alguns musicólogos, exercido influência em Debussy por suas experimentações harmônicas –, não se pode deixar de ressaltar a atualidade de sua obra no contexto modernista, principalmente o francês. A proposta de Satie de reduzir a música ao estritamente essencial ajusta-se perfeitamente à tendência que se desenvolve, no pós-I Guerra, de reagir contra os excessos associados ao romantismo do século XIX. Vários compositores da época, em busca de novos parâmetros estéticos, tentam recriar tanto o espírito clássico quanto o barroco do século XVIII. Ao contrário, por exemplo, das complexidades da música de Mahler, ou das indefinições formais de Debussy, o classicismo e o barroco lidariam, segundo alguns músicos modernistas, com formas claras e concisas. Bach se destaca, entre os vários compositores recuperados, por se atribuir objetividade – procedimento bastante valorizado no momento – às suas construções musicais. Faz sentido, portanto, nesse contexto, a criação do balé Pulcinella, por Stravinski, em 1919/20, a partir de peças de Pergolesi, contemporâneo do compositor alemão. Mas é importante observar que Stravinski não se propõe a parodiar o texto musical que lhe serve de fonte. Ao invés de fazer troça do passado,
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põe-se a retrabalhar a forma antiga de modo afetuoso, porém distanciado, tal como se procede na atitude neoclássica (Griffiths, 1994). Ao contrário de Stravinski, que recorre ao pastiche para brincar docemente com a tradição barroca, Satie adota o processo parodístico para destilar seu sarcasmo contra o passado romântico e as convenções musicais de modo geral. Um bom exemplo desse tipo de procedimento utilizado pelo compositor francês é a peça D'Edriophthalma, da série Embryons dessechés, citação paródica da Marcha fúnebre de Chopin. Executada ao piano por Ernâni Braga, em meio aos eventos musicais da Semana de Arte Moderna, esta peça de Satie é representativa do espírito transgressivo dos modernistas com relação ao passado clássico-romântico. A inclusão desta peça no programa chegou a provocar reação negativa até por parte de integrantes do movimento, como é o caso da pianista Guiomar Novaes, que, em carta dirigida ao jornal O Estado de S. Paulo, em 15-2-1922, manifesta seu desagrado para com a profanação parodística da música de Chopin (Wisnik, 1983:70-1). A inclusão de Francis Poulenc (1899-1963) no programa da Semana é coerente com a escolha de Satie. Juntamente com Darius Milhaud, Arthur Honegger, Georges Auriac, Louis Durey e Germaine Tailleferre, Poulenc integra o Grupo dos Seis, tendência musical francesa assim cognominada pelo crítico Henri Collet. Os integrantes deste grupo, bastante influenciados por Erik Satie, assumem uma atitude irreverente para com seu próprio passado estético nacional e para com a tradição romântica. Os compositores mais confrontados foram portanto Debussy e Wagner. Paul Griffiths afirma que, de acordo com o projeto musical dos Seis, a música deveria ser “direta, secamente espirituosa e atual”. O modelo escolhido foi Erik Satie, que exercitava uma espécie de dadaísmo. Bastante representativas de sua tendência à concisão e de seu humor parodístico são as peças musicais Choses vues à droite et à gauche (sans lunettes) e Sonatine bureaucratique (Griffiths, 1994:66). Ao assumir uma atitude inconseqüente em relação à música, tomandoa como algo descartável e desprovido de aura, Satie manifesta uma sensibilidade pouco afeita à idéia do sublime. Poulenc, talvez o mais anti-romântico dos Seis, revelou-se desde cedo um apaixonado pelas canções de rua e pela música popular dançante.12 Significativas do apego de Poulenc à frivolidade e de seu descompromisso com registros mais elevados são as canções que compõe
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Ver Abraham, 1979.
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sobre textos de Apollinaire, como Le bestiaire, de 1919, e Banalités, de 1940.13 Esses compositores franceses, assim como outras vanguardas do início do século – dadaístas e cubistas, por exemplo – associam modernidade com despojamento e rompem com a tradição clássico-romântica, comprometida com a idéia do sublime. Nesse tipo de registro, valorizam-se as formas simples, associadas à idéia de objetividade; este é um dos motivos pelos quais se atribui um viés neoclássico à estética musical que se desenvolve após a I Guerra, representada por compositores dos mais diferentes matizes, como o Stravinski de Pulcinella, Prokofiev, Satie e o Grupo dos Seis. J. Jota de Moraes argumenta que é difícil conceituar o neoclassicismo, já que o termo se aplica às mais diferentes manifestações, embora seja possível alinhavar alguns princípios estilísticos dessa estética: “utilização de formas equilibradas e baseadas no conceito de simetria, por vezes abordadas de maneira irônica; clara definição dos processos temáticos; retomada da harmonia, agora enriquecida pela utilização simultânea de várias tonalidades; contenção da expressividade”. Moraes chama a atenção para um aspecto importante: embora o neoclassicismo costume ser atribuído a uma reação ao romantismo, principalmente ao expressionismo germânico, tanto um como o outro lidam com a tradição: “o neoclassicismo como mera paródia da música do passado; o expressionismo como desenvolvimento lógico da tradição pós-romântica” (Moraes, J., 1983:42-3). Em relação ao caso específico de Satie, Wisnik (1983) observa que ele reúne as características de profanador e de reinstaurador da aura musical, de acordo com os procedimentos – dadaístas ou neoclássicos – que se propõe utilizar. Ao assumirem uma atitude performática, durante a Semana, de crítica ao passado clássico-romântico, os modernistas brasileiros se mostram afinados com algumas tendências musicais européias, representadas tanto por Stravinski quanto pelo Grupo dos Seis. E no primeiro momento modernista, como mostrarei mais adiante, os ideólogos do movimento se permitem uma postura mais iconoclasta, predisposta tanto a negar o sublime quanto a questionar as classificações inerentes à concepção de arte culta. No decorrer do movimento, principalmente a partir de 1924, tende-se a uma atitude mais conciliatória para com a tradição e menos intolerante com relação às obras que se pautam pelo sublime. O
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Griffiths, 1994; Abraham, 1979; e Parker, 1977.
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que se mantém é a predisposição de recuperar o repertório popular, tradicionalmente excluído pelo conceito de cultura que se pauta pelo ideal de “civilização”. Muitos anos após a Semana, por exemplo, em 1937, em ensaio intitulado “Evolução social da música no Brasil”, Mário de Andrade se reporta aos acontecimentos relacionados à independência do país. De acordo com a interpretação de Arnaldo Contier: Para Mário, “1822” significou um golpe instaurado pelas elites agrário-exportadoras, que promoveram o divórcio entre o Estado (considerado uma figura de ficção) e o povo em geral. Assim, de 1822 até “1918-22”, esse “povo” fragmentou-se em “raças” separadas culturalmente em compartimentos estanques, não provocando, portanto, uma possível miscigenação ou aculturação entre brancos, negros e índios. Por esse motivo histórico, os compositores brasileiros do século XIX – Carlos Gomes, Francisco Manuel da Silva, Leopoldo Miguez – foram obrigados a aderir ao “internacionalismo musical”, ora parafraseando, ora compilando modelos utilizados por Verdi ou Wagner. Nesse momento, consoante essa explicação, tornava-se impossível, “historicamente”, o aproveitamento das “falas populares” nas obras desses compositores (1992:277).
Embora se reporte a acontecimentos relacionados a um outro momento histórico, Mário, neste ensaio, adota um ponto de vista semelhante ao de Gilberto Freyre ao analisar a vinda da Corte portuguesa. Freyre, como vimos, encara 1808 como um momento que redefine os traços da sociedade colonial; a partir daí criam-se condições propícias para a hegemonia, entre as elites, de uma perspectiva universalista, com seu viés excludente para com os elementos que não se enquadram no padrão europeu. Mário, no texto citado, localiza esse tipo de processo civilizador na fase iniciada com a independência do país em 1822. Tanto um quanto o outro lamentam o predomínio, no país, da lógica da separação – entre o erudito e o popular, o branco e o negro, o elevado e o baixo, e assim por diante –, responsável, em grande medida, pelo surgimento de um panorama cultural descolorido e isento de originalidade, muito mais tendente à compilação do que a um processo criativo.
A cu ltu r a n a ci vi li zação Retomemos o ponto relativo às atualizações promovidas pelos modernistas musicais brasileiros no seu projeto cultural, tendo em vista o compromisso desses intelectuais com a construção da nação.
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Uma primeira questão que se coloca prende-se ao fato de que, tal como os seus contemporâneos europeus, nossos modernistas rompem com a perspectiva excludente do processo civilizador; assim, não só valorizam o popular como também passam a incorporá-lo a sua proposta estética. Esse tipo de conduta é concomitante com o desenvolvimento, na França dos anos 20, de uma atitude etnográfica, que se devota a questionar radicalmente os valores artísticos legados pelo classicismo e a embaralhar as classificações tradicionais. James Clifford se reporta ao próprio significado, na época, da palavra etnografia, que denotava a idéia de um apelo ao exótico, ao paradoxal, ao insólito. Atualizado após a I Guerra, o conceito de cultura perde o C maiúsculo, que antes garantia a sustentação de um sistema de hierarquias morais e estéticas. A nova atitude, tal como a dadaísta, a cubista e a surrealista, põe-se a reclassificar categorias familiares, como “sublime” e “vulgar”, “alta” e “baixa cultura” e outras equivalentes (Clifford, 1988:129-30). De certa forma, os direcionamentos tomados pelos estudos musicais no século XX correspondem a essas perspectivas includentes ou excludentes de se lidar com a tradição popular. A musicologia, por exemplo, que começa a ganhar contornos a partir de 1919, com seu viés positivista, fundamenta sua prática numa taxonomia musical comprometida com a idéia da superioridade da música ocidental. Imbuído dessa concepção, o musicólogo compartilha com os historiadores da tradição humanista os mesmos valores e estilos. Já a etnomusicologia, desviando-se dessa tradição tomada pela musicologia, alinha-se com a antropologia, voltando-se, conforme a tendência desta área, para o estudo das músicas não-ocidentais. Se por um lado o etnomusicólogo procura descrever tecnicamente as composições trabalhadas, por outro indaga sobre o papel desempenhado pela música nas diferentes sociedades (Kerman, 1987:1-13). Em suma, se a musicologia e a etnomusicologia se distinguem muito mais em função de suas filosofias e ideologias do que propriamente de seus objetos, podemos pensar na equivalência possível entre os universos da etnomusicologia e do modernismo musical, e podemos também ver a etnomusicologia como representativa da relação entre os estudos folclóricos e o discurso das ciências sociais.14 E, sem dúvida, um dos pressupostos dessa nova mentalidade responsável pela própria definição de etnomusicologia é a
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Ver Vilhena, 1995.
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emergência do primitivismo como um valor. Assim, questiona-se toda uma tradição – nesse sentido, mais clássica do que romântica – que historicamente fez prevalecer uma idéia de “arte superior” associada na maioria das vezes à cultura branca européia, e que promoveu, portanto, exclusões no repertório popular. Mas a despeito desse procedimento mais inclusivo, o projeto musical modernista mantém a tendência, associada ao processo civilizador, a hierarquizar e a promover determinadas ordenações num sentido unívoco. Recorro, a propósito, à análise de Eduardo Jardim de Moraes (1983:4-5) sobre a argumentação predominante entre os modernistas brasileiros a partir de 1924, que tende a compatibilizar o antigo e o novo. Assim, ao invés de se enfatizar, no processo modernizador, o aspecto da ruptura, valoriza-se, pelo contrário, sua capacidade de estabelecer continuidade com o passado. O autor então conclui que o modernismo se mostra, dessa forma, comprometido com a preservação da ordem. Tudo indica que esse desvelo com a ordem – tributário do esforço construtivo do movimento – leva os modernistas a aderirem a certos ideais civilizadores. Não por acaso, esta é uma das questões levantadas pelos “antropófagos” ao criticarem o movimento modernista. Vejamos o que Moraes diz a respeito: [...] a contestação da Antropofagia relativamente à ótica modernista visava as próprias categorias que informavam a elaboração dos retratos-do-Brasil. A visão analítica que havia sido adotada pelo Modernismo, e em particular por Mário de Andrade, em sua opção por uma abordagem etnográfica e folclórica do material popular – fundamento da vida nacional – teria aparecido, à primeira vista, como a possibilidade do reconhecimento das singularidades componentes da vida nacional. A crítica antropófaga vinha indicar que a utilização desta perspectiva analítica, tomada de uma etnografia que sacrificava a integridade do objeto analisado à imperiosa dominação de uma racionalidade que se afirmava como “civilizada”, terminava por conduzir o Modernismo à reafirmação do modo de ser dependente da entidade nacional (1983:190-1).
No campo musical, essa postura comprometida com um certo tipo de ordem aparece, à primeira vista, na manutenção já mencionada anteriormente da hierarquia erudito-popular. Um exemplo revelador desse procedimento são os impasses encontrados por Mário de Andrade ao elaborar seu modernismo musical, pois, na medida em que a “música interessada” não se restringe a uma produção de cunho
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naïf – o “populário” apenas serve de base para uma composição artística –, não há como dispensar a concorrência de elementos estrangeiros. Os processos de harmonização, por exemplo, deveriam necessariamente ultrapassar as nacionalidades, pois a “música artística” não poderia se limitar à pobreza dos processos harmônicos populares, os quais deveriam se sujeitar a um desenvolvimento erudito. A possibilidade de criarmos nós próprios um sistema de harmonização também é descartada, já que tal criação, sem contar com recursos acústicos e sem se basear no populário, seria não só falsa como também individualista, pois se apresentaria destituída de um caráter nacional. E Mário enfatiza o aspecto “desraçado” da harmonização européia, partindo do pressuposto de que certos processos de harmonização tendem a ser mais individuais do que propriamente raciais (Andrade, 1962:49-51). Há uma certa propensão, entre os musicólogos de viés modernista, como Mozart de Araújo, de estabelecer um critério funcional para definir as músicas folclórica, popular e erudita. Assim, a música é interessada – o que se aplica ao caso da folclórica e da popular – quando se vincula a determinados aspectos da vida cotidiana ou a rituais coletivos, como a canção de ninar, o canto de trabalho ou o de recreação, o ritmo marcial etc. Já a música desinteressada, ou erudita, feita para se ouvir, visa ao puro deleite, livre de qualquer critério de funcionalidade. Se a música interessada requer a participação do ouvinte, a erudita apenas supõe a edificação do mesmo. Vemos que esse tipo de distinção entre o popular e o erudito se constrói a partir da concepção de dois tipos de sociedade: uma holista, associada ao registro “primitivo”, e outra individualista, identificada com a idéia de civilização. A partir desse raciocínio, atribui-se uma concepção predominantemente intelectual à música erudita, enquanto a popular é vista como derivada de impulsos sensoriais. Se na composição erudita “o autor se liberta da isocronia rítmica, da simetria métrica e da quadratura estrófica, podendo criar livremente o seu ritmo”, na música popular o autor é completamente tolhido pela tradição, pelos ritmos preexistentes. Também nas fórmulas melódicas aconteceria este fenômeno, já que na música popular as “frases, motivos, células melódicas, inflexões e jeitos de entoar” tendem a se generalizar, perdendo suas características individuais, “ao mesmo tempo que concentram em sínteses inconscientes as qualidades [...] duma raça [...]”. Mas se a música popular sofre essas restrições nos aspectos rítmico e melódico, ela é a única capaz de expressar os “interesses afetivos de uma co-
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munidade nacional”; daí se buscar na música popular não a originalidade, mas a autenticidade nacional (Araújo, M., 1994:154-7). Por essa lógica, os redutos populares são os que conservam os elementos que constituem a alma da raça – a pureza original – não contaminada pela civilização, e os aspectos dionisíacos que a vitalizam. Luiz Rodolfo Vilhena (1995:171) observa que a própria idéia de cultura popular nasceu em meio a concepções puristas, que atribuíam uma aura de autenticidade aos fenômenos identificados ao povo, associada à espontaneidade e/ou à antigüidade. Em artigo de 1924 para Ariel, Sérgio Milliet utiliza esse tipo de argumentação: É um grande erro considerar-se o maxixe música sem importância. Ele representa parte de nossa alma, e a alma de uma raça é cousa seriíssima. Justamente o que devemos cultivar são os elementos espontâneos brotados em nosso povo. Devemos partir dos seus característicos, a ingenuidade, a sensualidade, a melancolia e o chiste da modinha para, com estes dados, chegarmos a uma música nossa, e portanto universal. Tupinambá, Nazareth e Souto não devem esquecer o que sucedeu a Catulo da Paixão Cearense, nosso maior poeta somente enquanto foi “caboclo” (1924a:215).
Esse tipo de ordenamento hierarquizante que vigorava sob o processo civilizador também parece ter continuidade na recusa, pelos modernistas, dos sons populares transformados pelas tecnologias emergentes, como o rádio, o microfone e as novas técnicas de gravação. Passa-se a associar a nova realidade a um universo caracterizado não só pelo consumo, em que tanto o autor quanto a obra se tornam facilmente descartáveis, como também pela fruição fácil de um produto inferior. Contier argumenta, por exemplo, que “com a ampliação do sistema radiofônico e a indústria do disco, as músicas populares urbanas e sertanejas passaram a ‘incomodar' os artistas eruditos”: [...] Em 1930, Luciano Gallet, em face da crise na música culta no Brasil, apontava três razões: a) as rádios-sociedades “[...] entram pelas portas do Brasil inteiro e espalham música ruim, sem o menor critério de seleção”; b) os editores de música: “[...] as rádios lançaram ainda os ‘artistas populares’: compositores de assobio, executantes de ouvido, cantores-ignorantes”; c) o editor de disco “[...] só vê que o Samba-tal garante uma tiragem imediata de 70 mil discos [...]” (1992:280).
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Em carta a Mário de Andrade de 14-12-1929, Luciano Gallet revela sua preocupação com o alastramento, no país, de execuções musicais sem orientação, sem critério: Felizmente que aqui já há reação e que se começa a perceber o brasileiro; mas de momento o terreno está em falso, ao menos em grosso. Da minha campanha inicial de fazer subir o inferior ao elevado, chegou-se agora ao resultado seguinte: o inferior desenvolveu-se espantosamente (o que não é mau, preferível ao cultivo do estrangeiro) mas sem orientação, cheirando freqüentemente a exploração do gênero. Por força que não há nem pode haver critério entre essa gente. Ainda outro dia ouvi essa coisa espantosa: a MODINHA do Villa, cantada em rádio, com acompanhamento de dois violões, tocadores de ouvido que inventavam um acompanhamento qualquer. Ainda não seria mau de todo, se no fim, o speaker não anunciasse pomposamente: “Modinha de Villa-Lobos, o eminente compositor brasileiro”! [...] (apud Bardanachvili, 1995:76.)
Mário de Andrade, em palestra proferida em 1934 na Sociedade de Cultura Artística intitulada “A música popular e a música erudita”, distingue a música que denomina popularesca da música popular. A primeira ele define como uma espécie de “submúsica, carne para alimento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial com que fábricas, empresas e cantores se sustentam, atucanando a sensualidade fácil de um público em via de transe”. Embora reconheça a existência de exceções no campo da música popularesca, admite que a maioria “é chata, plagiária, falsa”, “uma espécie de arte de consumo”. Nesse contexto, a obra “é esquecida e substituída por outra”, assim como seu autor “é usado, gastado e em seguida esquecido e substituído por outro” (apud Mariz, 1983:43). Assim, se o elemento popular, sobretudo o folclórico, se converte em matriz imprescindível para a realização da música artística, ou interessada, o mesmo não se pode dizer da produção popularesca, que Mário atribui principalmente a Catulo da Paixão Cearense e a Juvenal Galeno. Esse tipo de música, voltada para o divertimento e não para a comoção, não captaria a alma popular, nem tampouco o elemento nacional, na medida em que sua expressão viria do nosso lado europeu.15 Villa-Lobos compartilha com Mário de Andrade da rejeição à música popular divulgada pela mídia. No anteprojeto que encaminha a
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Moraes, E., 1983:132-3.
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Gustavo Capanema no final dos anos 30, e que trata da criação do ensino de canto orfeônico nas escolas de todos os níveis, ele propõe, entre outros itens – como “zelar pela execução correta dos hinos oficiais [...] intensificar o gosto e a apreciação da música elevada [...] concorrer para maior unificação do caráter da nossa raça [...] estabelecer a coesão do sentido nacionalista e proporcionar bom critério da apreciação do povo” –, a ajuda ao governo para a realização da “censura artística nas estações de rádio”.16 Júlio Medaglia (1989/90:72) afirma que Villa-Lobos defendia a alfabetização da “rebelde musicalidade” do povo brasileiro, ou seja, a “música de repetição” cujo desenvolvimento passou a ser propiciado pelo rádio e pelo disco. Percebe-se aí o deslocamento de categorias associadas pelo processo civilizador ao universo da baixa cultura. Se no projeto modernista o significado do termo se mantém – implicando a definição de “baixo” relativamente ao que se considera “elevado” –, o qualificativo, antes relacionado ao popular, passa a ser atribuído a uma nova categoria: o massificado. Ou seja, o popular (ou populário, na acepção de Mário de Andrade), identificado sobretudo com as manifestações folclóricas das “três raças”, é agora valorizado, enquanto se rejeita o popularesco. Como prevalece a idéia de uma modernidade em construção, seleciona-se um repertório condizente com o modelo a ser implantado, o qual, se é mais democrático, não deixa também de ser excludente. Por outro lado, ao rejeitarem o popularesco – buscando um registro mais elevado para a composição popular –, os modernistas musicais demonstram também seu comprometimento com a idéia do sublime. Só seria válido, nesse sentido, dedicar-se a um tipo de música que capte a alma popular, que leve à comoção, criando-se interdições que se aplicam às obras banais, cujo intuito é despertar da sensualidade fácil das massas em busca do prazer. Esse procedimento excludente com relação ao popularesco é objeto do seguinte comentário de Contier: Em síntese, a brasilidade apoiava-se no folclore, negando, portanto, as experiências de Satie (Parade, 1917), que se baseou em canções de mu-
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“Anteprojeto de criação da Divisão de Educação Cívico-Musical ou Serviço Nacional do Controle da Aplicação do Canto Orfeônico ou Inspetoria-Geral de Educação Cívico-Musical.” Arquivo Gustavo Capanema, CPDOC/FGV (GC 37.02.19f). O documento traz um carimbo com data de 1940.
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sic-hall e de shows circenses, ou as obras de Villa-Lobos inspiradas nos choros ou serestas dos artistas populares e urbanos. Os modernistas brasileiros temiam os ruídos e os sons oriundos da “cidade que sobe” (São Paulo, por exemplo) (1992:281).
Ao fazer esta afirmação, Contier contrapõe o projeto dos musicólogos brasileiros – que não só acentuam os aspectos bucólicos na leitura que fazem do país, como preservam o valor tradicionalmente instituído ao erudito – ao estilo despretensioso adotado pelo Grupo dos Seis em Paris, que confere um grande peso aos ruídos urbanos e incorpora a música popular sem excessivas transfigurações. Esse tipo de análise nos permite inferir que, se os músicos populares se mantêm espontâneos, não corrompidos pelo processo de modernização e condizentes com um estágio cultural primitivo, são canibalizados pelos compositores modernistas. Mas se perdem a ingenuidade original, deixando-se contaminar pelos meios de comunicação de massa, tornam-se alvo de críticas por parte dos mesmos. Mas retomemos a explanação de Contier no ponto em que mostra as mudanças na trajetória de Villa-Lobos pós-22 e principalmente pós-30. De acordo com ele, essa guinada estética do compositor se deve ao fato de ele ser “silenciado” pelos nacionalistas, que fazem objeções aos ruídos urbanos. Nos anos 10, e ainda nos anos 20, VillaLobos procederia de acordo com os modernistas europeus, como Stravinski, os músicos futuristas e pré-concretistas, ou como o norte-americano Charles Ives, incorporando a música popular urbana (serestas e choros), utilizando o descritivismo de ruídos das máquinas e fazendo experiências politonais e polirrítmicas, além de outras incursões no terreno da música moderna (Contier, 1992:282). Renato Almeida, musicólogo e folclorista que teve contatos estreitos com o grupo modernista, também afirma que à época da Semana de 22 os integrantes do movimento compartilhavam com VillaLobos esse gosto pelas últimas novidades musicais, principalmente as provenientes da França: Durante os dias da Semana passávamos largo tempo no Teatro Municipal, assistindo aos ensaios de Villa-Lobos, por cuja arte a fascinação de Ronald [de Carvalho] era então considerável, e à noite, era comum irmos à chácara do Carvalho, onde conhecemos o conselheiro Antônio Prado, ainda em plena vivacidade de espírito. Era ele um freqüentador assíduo dos espetáculos turbulentos da Semana. Fomos apresentados, pela primeira vez, a d. Nazaré Prado, que vivia no entusiasmo do movimento, e faziam-
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se ali reuniões interessantíssimas, repetindo-se os espetáculos do Municipal, sem vaias e assobios. Ronald lia sempre os Epigramas, executava-se música moderna: Villa-Lobos, Poulenc, Satie, Milhaud. [...] (Renato Almeida apud Mariz, 1983:32.)
Manuel Bandeira, em artigo de outubro de 1924 para a revista Ariel, já se mostra perceptivo para com as mudanças operadas na visão de modernidade de Villa-Lobos: Noto aqui [...] que o nosso querido amigo [Villa-Lobos] voltou [de Paris] brabo com os modernos. Não é moderno! Acabaram-se as blagues! [...] Um momento houve em que espíritos muito diversos se uniram no propósito necessário de negar, de arrasar, de destruir. Foi o período da blague dissolvente, da análise que desmontava com um riso mau os mecanismos mais especiosos. Hoje a época é de reconstrução. Espírito clássico. Clássico no sentido precisamente de esforço formal e construtivo, não de regrinhas defuntas (1924b:477).
Wisnik (1983:44) também admite que a sensibilidade “moderna” estava presente em Villa-Lobos e em Luciano Gallet já na segunda década do século, embora enfatize mais a influência do impressionismo francês sobre estes compositores, e mais particularmente de Debussy. Wisnik então afirma que [...] por ocasião da Semana havia no Brasil compositores reconhecidos e já maduros que não prometiam sair do universo romântico em que se formaram, separados, por um hiato considerável, dos compositores que traziam idéias novas, todos em clara fase embrionária, com exceção de VillaLobos que já se apresentava em concertos desde 1915, deixando “ousadias” harmônicas, rítmicas ou timbrísticas invadirem o campo de seu aprendizado tradicional. Luciano Gallet, mais novo que Villa-Lobos, manifestava preocupações relativamente avançadas quanto ao problema da composição musical, sendo a sua aproximação ao Modernismo menos uma explosão instintiva, como no caso de Villa-Lobos, e mais uma reflexão cerebral [...] (1983:52-3).
Mas, segundo Wisnik, embora Villa-Lobos tenha de fato alargado as possibilidades musicais, sua obra apresenta características que a fazem destoar da produção modernista mais rigorosa, colocando-o, dessa maneira, à contramão da modernidade – pelo menos em sua acepção européia, ou francesa. Wisnik refere-se, por exemplo, ao fato de a música de Villa em muito se prestar a uma “escuta expressiva, deixando-se ouvir
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mais ou menos facilmente como descrição” (1983:36-7). O autor fundamenta este ponto abordando os limites impostos por nosso nacionalismo musical à adoção de certos parâmetros modernistas franceses. Pelo que se depreende de sua argumentação, a presença de Darius Milhaud17 entre nós em 1917 e 1918 não teria sido tão impactante no universo modernista brasileiro quanto se costuma afirmar. Pois, segundo a versão corrente, Milhaud teria atuado como uma espécie de mediador cultural entre os nossos músicos – como Villa-Lobos e Gallet – e os compositores europeus contemporâneos, favorecendo assim o surgimento do modernismo musical no Brasil (Wisnik, 1983:39). Ora, a opção dos nossos músicos por Debussy contrasta visivelmente com o antidebussysmo do chamado Grupo dos Seis, a já mencionada tendência vanguardista francesa, bastante influenciada por Erik Satie e Jean Cocteau, da qual Milhaud é membro influente. Dito de outro modo, enquanto os compositores brasileiros se apegam à estética impressionista, mesmo quando trabalham com temas populares, Milhaud e os demais integrantes do Grupo dos Seis valorizam o urbano – particularmente o popular – em sua simplicidade original. Em artigo para Ariel (sobre o concerto de Sousa Lima de 20 de outubro de 1924), Mário de Andrade admite que os músicos brasileiros não seguem uma orientação modernista rigorosa: E nem se poderá dizer que Debussy seja moderno. Ao contrário, a moderna geração russa, espanhola, alemã, francesa, mesmo alguns italianos, reage francamente contra Debussy. De legitimamente modernista só havia um nome no programa Poulenc [sic], porque tanto Villa-Lobos como Manuel de Falla não são exatamente modernistas, isto é, não dirigem e cerceiam a sua maneira de criar a um conceito exclusivista modernizante (1924:499-500).
O antidebussysmo militante dos músicos modernistas de Paris faz sentido no contexto nacionalista do pós-guerra, época de reafirmação de identidades nacionais. Procura-se, nesse momento, revolver a
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(1892-1974) – um dos integrantes do Grupo dos Seis, o compositor francês viveu no Rio de Janeiro em 1917/18 como adido de Paul Claudel, então embaixador da França. Ficou conhecido pelo desenvolvimento da politonalidade na música. Seu interesse pela música brasileira, principalmente a popular, “teria marcado sua obra posteriormente composta na França, como é o caso de Le boeuf sur le toit (1919), para orquestra, e das Saudades do Brasil (1921), para piano” (Wisnik, 1983:39).
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história para encontrar o “fio original” da música francesa. Le coq et l'arlequin, manifesto de Jean Cocteau de 1918 pelo qual o Grupo dos Seis se orienta, rejeita, por julgá-las excessivas, as tradições alemã e russa. Cocteau se pronuncia contra o sublime romântico, a carícia impressionista, a pedalização dos russos; Bach é valorizado, enquanto se descarta a contribuição de Beethoven, Wagner, Debussy, Mussorgski e RimskiKorsakov (Cocteau apud Moraes, J., 1983:44). E a simplicidade é eleita, neste manifesto, como o valor mais alto da tradição estética francesa. De acordo com Wisnik: [...] dessa revisão do passado sobressai a necessidade de uma volta ao contraponto em detrimento da complicação harmônica, valorizando-se a clareza e o despojamento polifônico na exposição das idéias, contra toda espécie de grandiloqüência ou edulcoramento. Dentro desse ponto de vista, Bach interessa, e Beethoven não. E pensando assim, os Seis opõemse a Debussy, contrapondo a seus pianos e pianissimos, à sutileza de seus efeitos harmônicos (tidos como “doçuras acariciantes”), os ritmos fortes, a violência, a crueza dos efeitos. [...] Preconizam uma arte “realista, simples, nua”. A timbração instrumental teria sua base não nas cordas, mas na rudeza dos sopros e da percussão: um “rico orfeão de madeiras, metais e bateria”. Mais do que essas considerações de ordem estilística, Le coq et l'arlequin prevê a utilização intensiva da música popular próxima: os bailes de subúrbio, as feiras, o café-concerto, o circo. Seguindo essa orientação, Milhaud compôs Cocardes, para pequena orquestra de banlieue, à maneira dos músicos de rua (1983:46-7).
Darius Milhaud afirma essa tradição francesa da simplicidade em tom de manifesto, atribuindo a Gounod um papel fundador na tendência: Cada país tem sua tradição. Rameau, Berlioz, Chabrier, Gounod, Bizet, Debussy, Fauré, Satie, Auric, Poulenc e Sauguet são a música francesa. No século XIX sua voz foi abafada pelas correntes cezar-franckistas e wagnerianas e pelo éparpillement sonoro de [Rimski-]Korsakov. Debussy sentiu a necessidade de continuar Rameau. Hoje, graças à previdência de Erik Satie, é para o lado de Gounod que os jovens se voltam (apud Milliet, 1924b:260).
Isto explica, segundo Wisnik, o fato de Milhaud enfatizar muito mais as figuras de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá do que VillaLobos e Gallet, já que o compositor francês tenderia a valorizar principalmente a música popular urbana, mostrando-se pouco afeito a composições ao estilo debussysta (1983:46-7). Em artigo de 1924 para Ariel,
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Milhaud, a propósito, faz uma crítica contundente à influência francesa no meio musical brasileiro: A curva traçada pela evolução da música em França, depois de Wagner, reproduz-se exatamente do outro lado da terra. Todo movimento, toda tendência encontram um eco no hemisfério austral. Às vezes, as influências se dividem: Vincent d'Indy e a Schola servem de modelo aos compositores argentinos e chilenos, enquanto no Brasil a orientação é nitidamente debussysta e impressionista. O papel da França na cultura musical do Brasil é preponderante. Graças aos compositores Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald, que foram diretores do Conservatório do Rio de Janeiro, a biblioteca desse estabelecimento possui todas as partituras de orquestra de Debussy e do Grupo da S.M.I. ou da Schola, bem como todas as obras publicadas de Satie. Ao contrário, a música contemporânea austro-alemã é quase desconhecida naquele país e o movimento, tão importante, determinado por Schoenberg é mais ou menos ignorado. É de lamentar que os trabalhos dos compositores brasileiros, desde as obras sinfônicas ou de música de câmera dos srs. Nepomuceno e Oswald, às Sonatas Impressionistas do sr. Guerra ou às obras de orquestra do sr. Villa-Lobos [...], sejam um reflexo das diferentes fases que se sucederam na Europa, de Brahms a Debussy, e que o elemento nacional não seja expresso de uma maneira mais viva e mais original. A influência do folclore brasileiro, tão rico de ritmos e de uma linha melódica tão particular, se faz raramente sentir nas obras dos compositores cariocas. [...] Seria de desejar que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês, como Tupinambá ou o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia indefinidamente renovada, a verve, o entrain, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa, que se encontram em cada obra destes dois mestres, fazem destes últimos a glória e o mimo da Arte Brasileira. Nazareth e Tupinambá precedem a música de seu país como as duas grandes estrelas do céu austral (Centauro e Alpha do Centauro) precedem os cinco diamantes do cruzeiro do sul [sic] (1924:264-6).
Vê-se, portanto, que esse tipo de empenho civilizador é incompatível com a sensibilidade modernista dos Seis – tendência da qual Milhaud faz parte –, afeita desde o início a aceitar as contribuições da cultura popular, a chamada música comercial (ou de entretenimento) divulgada pela mídia e também as advindas do mundo técnico emergente. Dois exemplos extremados de incorporação da linguagem urba-
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na pela música modernista podem ser vistos no manifesto de Luigi Russolo de 1913 intitulado “A arte dos ruídos – manifesto futurista”, no qual Russolo afirma que a máquina constitui matéria-prima para o seu trabalho, e também em Parade, de 1917, de Erik Satie. Trata-se de uma música que Satie compôs para um balé com libreto de Massine, cenários e figurinos de Picasso, inspirado numa idéia de Jean Cocteau. Comenta J. Jota de Moraes: “Ponto de confluência do cubismo, do dadaísmo e mesmo do futurismo, o espetáculo tinha na música um mero suporte sonoro. Como disse Cocteau, a partitura de Parade deveria servir de fundo musical a ruídos sugestivos tais como sirenes, máquinas de escrever, aeroplanos, dínamos” [...] (1983:34-7). Retomando o tema da música popularesca, vemo-nos diante do seguinte problema: o projeto musical modernista, na medida em que nega a “indústria cultural” e tende a incorporar o popular mais identificado com os elementos folclóricos da tradição cultural, exibe uma tensão entre a motivação modernista – influenciada pela música européia, que valoriza a pesquisa formal e procura adaptar-se à cena moderna, incorporando de alguma forma a linguagem urbana – e a que se caracteriza por uma sensibilidade atada às manifestações culturais rurais, ou sertanejas. Cria-se, por outro lado, um tipo de registro em que a concisão característica do processo civilizador é substituída pelo excesso e pela grandiloqüência. Com relação a esse aspecto do projeto musical, Contier observa: Em síntese, esse projeto implicava uma defesa mais temático-ideológica do que essencialmente musical (significantes), obrigando o compositor moderno a elaborar critérios metodológicos para escrever textos inspirados nas danças das “[...] multidões inquietas, doidas e extasiadas de prazer”, conforme a tradição musical clássico-romântica oriunda da Europa. Entretanto, alguns traços de fragmentos de textos modernos eram considerados por R. [Renato] Almeida radicais e incompatíveis com o “perfil” do retrato sonoro do Brasil a ser esboçado pelo artista comprometido com o imaginário de “22”: “[...] não temos que ser modernos à Satie, ou à Schonberg, mas modernos dentro de nossas forças e da nossa sensibilidade” (1992:276).
“A 'colh er tor ta' d o cr i ad or mexe o vi r ad o” Procurando refletir sobre a concepção de cultura inerente ao projeto musical modernista, julgo importante registrar a atitude conci-
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liatória dos ideólogos do movimento para com duas tradições diferentes: uma que se ancora na perspectiva da diferença, básica para a valorização do popular; e outra que se fundamenta nos pressupostos universalistas da perspectiva iluminista. O popular – ou populário, na acepção de Mário de Andrade – é bastante valorizado, principalmente em sua configuração rural ou folclórica. Fonte inesgotável de riqueza cultural, o popular nos forneceria a matéria-prima para esboçarmos os traços gerais de nossa identidade, sem a qual nos seria vedado o ingresso na ordem universal. Assim, o modernismo que aqui se implanta é impregnado de valores particularistas; mas esses valores importam por viabilizarem o cosmopolitismo. Apesar da aspiração universalista, o movimento brasileiro promove descontinuidades com a tradição do universalismo ao descartar a idéia de progresso inerente ao conceito clássico de “civilização”, projetando não só um tempo próprio como uma trajetória singular rumo ao “concerto das nações”.18 O conceito de cultura adotado por nossos musicólogos, ao reunir universalismo e particularismo, demonstra afinidade com a tradição romântica alemã.19 É justamente dentro dessa tradição que civilização e cultura são contrapostas. O conceito de cultura que então se configura estabelece um elo diferente com a temporalidade, eximindo-a de intenções ou propósitos claramente configurados. Ao invés de um caminho homogêneo e linear que se desdobra no futuro, lida-se com uma trajetória sinuosa, mas própria, compatível com as singularidades de cada nação, pois se a civilização tende a apagar as diferenças nacionais, a cultura, pelo contrário, tende a enfatizá-las.20
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Ver Moraes, E., 1983. Ver, por exemplo, a introdução de Telê Porto Ancona Lopes (“Uma difícil conjugação”) a Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, em que a autora, pesquisando a biblioteca de Mário e analisando a estrutura do romance – ou “idílio” – citado, sugere o contato do escritor com os expressionistas alemães (Lopes, 1982). Jorge Schwartz, em seu artigo “O expressionismo pela crítica de Mário de Andrade, Mariátegui e Borges”, afirma que Mário de Andrade, além de conhecedor da língua alemã, manteve contato com artistas influenciados pelo expressionismo, como Anita Malfatti (que estudou na Alemanha) e Lasar Segall (nascido em Viena e com passagem pela Alemanha). Segundo Schwartz (1990:85), o grotesco, utilizado pelo expressionismo, teria sido “a resposta estética de Mário de Andrade às suas preocupações sociais”. Luiz Fernando Dias Duarte (1995) argumenta que se a “ciência romântica” foi sobretudo um fenômeno alemão, “sua influência para cá do Reno”, no entanto, foi “permanente e fundamental”. 20 Ver Elias, 1990:24-5. 19
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Os alemães formulam seu conceito de cultura em função do surgimento, no final do século XVIII, da idéia de Bildung, cujo significado é “formação”, ou “autoformação”. Como o próprio nome indica, há uma clara referência à idéia de aperfeiçoamento individual. Lida-se com a proposta de um desenvolvimento harmonioso das capacidades naturais de uma cultura ou indivíduo. Tal como na acepção de “cultivo”, de Georg Simmel, esse processo de aperfeiçoamento só se consuma quando se parte do “núcleo interno original” do indivíduo. Mas, de acordo com Simmel, para que a cultura se configure para o indivíduo, é necessário que ele crie propositalmente e acrescente ao seu processo imanente de desenvolvimento – associado a forças naturais – elementos externos e objetivos. Assim, consuma-se o aperfeiçoamento através do “entrelaçamento teleológico de sujeito e objeto”, pressupondo-se de antemão que a intervenção externa acompanhe as tendências “inerentes” do indivíduo em questão. À idéia de aperfeiçoamento individual, os ideólogos da Bildung – críticos da formulação iluminista relativa a uma “lei suprema válida para todos” – acrescentam a proposta de se preservar as particularidades. Em Herder, por exemplo, um dos precursores do Sturm und Drang e do ideal alemão de Bildung, a idéia de uniformidade cultural é contestada, pois o autor afirma a diversidade das culturas contra o universalismo do Iluminismo francês. Cada indivíduo, segundo Herder, apresenta uma originalidade insubstituível, e há uma Bildung da comunidade, assim como há a do indivíduo (Dumont, 1994:82-3). Esse tipo de concepção, que, segundo Louis Dumont, tenta recriar a Alemanha, incorpora o indivíduo iluminista. Mas como esse indivíduo é avaliado negativamente, ou seja, como um ser abstrato e desprovido de vitalidade – na medida em que se apresenta como universal e despido de qualquer particularidade –, tenta-se investi-lo de valores holísticos, lidando-se com as idéias de organicidade, de totalidade e de perfeição. Procura-se então promover na Alemanha uma continuidade entre holismo e individualismo, introduzindo no indivíduo iluminista um grau de originalidade. Mas trata-se de uma originalidade que não se realiza através do simples; pelo contrário, ela tende a se complexificar por meio de relacionamentos com o exterior, seja com sujeitos individuais, seja com uma rede mais ampla caracterizada por uma espécie de minissociedade. Por meio de um processo dialético, parte-se da tese, representada pelo simples, pelo unilateral, e atinge-se a síntese, representada pela totalidade. Assim, o indivíduo aqui contemplado não é o da Renascença, uma espécie de microcosmo do todo, nem o romântico, que luta contra o
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mundo, mas é o que se forma em interação com um meio. Trata-se de um sujeito-totalidade, cujo desenvolvimento conta tanto com as “capacidades inatas” quanto com a “influência do meio”: formação por desenvolvimento e formação por adaptação (Dumont, 1994:82-3). Interessa também à nossa discussão ressaltar o caráter normativo da Bildung, voltado para o ideal de autoformação, de enriquecimento da personalidade. Se esse autodesenvolvimento é alimentado pelas particularidades, estas se subordinam, no entanto, ao desenvolvimento ideal da humanidade. Dumont, a propósito, discorre sobre as relações estreitas entre a antropologia proposta por Humboldt, uma das figuras mais expressivas desta vertente do pensamento alemão, e a Bildung. Nessa antropologia, cabe ao estudioso não só observar mas também julgar. O pesquisador deve ser ao mesmo tempo “observador da natureza, historiador e filósofo”, tentando conciliar a primazia normativa proposta por Kant e o inventário da diversidade humana promovido por Herder (Dumont, 1994:116). Analisando essa questão, Dumont reporta-se ao próprio significado da Bildung: “reunir em si o que há de mais diverso na humanidade, destilá-lo até ver a idéia exprimir-se dos modos mais perfeitos, sem segregar o particular do universal, e o subjetivo do objetivo, de modo que tudo esteja inter-relacionado” (1994:107-8). Esse ideal parece se aplicar ao projeto modernista brasileiro até aqui analisado, o qual, se valoriza a tradição, dela requer, no entanto, que saia de um estado bruto e venha a ser lapidada. Lida-se com a racionalidade, tal como no processo civilizador, mas trata-se de uma erudição que, ao invés de excluir os elementos que não se enquadram no padrão “civilizado” hegemônico, não só afirma o popular como se coloca a serviço dele. Metáforas fortes de cultivo são vislumbradas em jornais e revistas modernistas, como Ariel : Revista de Cultura Musical, que se mostra inclinada tanto à discussão e ao embate – como os periódicos de vanguarda em geral – quanto a um didatismo de viés iluminista – com propostas normativas de melhoria do ensino musical.21 Em artigo de 1924 para Ariel, por exemplo, Florestan avalia as potencialidades musicais dos brasileiros, traçando um quadro em que tudo prima pela pujança, pelo excesso. O fato de sermos “sonhadores”, “de grande vivacidade sentimental”, além de possuirmos um cancioneiro de “rara originalidade, de riqueza rítmica excepcional, de melodia voluptuosa e
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Ver Poggioli, 1968.
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vária”, nos destina a ser “um dos povos musicais do universo”. Teríamos, portanto, as mesmas características “naturais” de outros povos de folclore musical abundante, o que nos possibilitaria, tal como a eles, a formação de escolas musicais. O autor toma como modelo a experiência estética dos compositores das airs de cour e dos cravistas franceses do século XVIII, que criaram estilizações das pastourelles, das bergerettes e das canções trovadorescas. O exemplo alemão, obviamente, também é citado: “o desenvolvimento nacionalista da escola de Hamburgo e a utilização dos cantos dos minnesanger e dos grandes mestres cantores e principalmente o emprego estilizado do lied que lhe deu Weber, Schubert, Schumann, Wagner e Brahms”. Florestan (1924:316-7) acrescenta ao seu argumento o relato do procedimento estético dos compositores da Ars Nova, que se apropriaram dos cantos toscanos, e de Monteverdi e da escola napolitana, que buscavam sua fonte musical nos cantos e danças dos pescadores. Em suma, o autor propõe que, à maneira de outros artistas europeus, busquemos no folclore os elementos de nossa vitalidade. Esses elementos, sem dúvida, configuram nossa originalidade, singularizando-nos perante os outros povos. Mas, tal como os artistas citados – franceses, alemães e italianos –, que lidam com um repertório popular exuberante, temos que aprimorar esses elementos, domesticando-os num certo sentido. Luciano Gallet assume entre nós esse tipo de atitude pedagógica. Ao longo de sua trajetória, seu projeto nacionalista vem sempre acompanhado de preocupações com o aprimoramento musical dos brasileiros.22 Em 1930, por exemplo, ele escreve as Bases para a organização
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É importante para esta discussão destacar alguns momentos da trajetória de Luciano Gallet. Depois de estudar arquitetura, trabalhou algum tempo como desenhista, enquanto começava a tocar piano, mesmo sem ter formação musical, em uma pequena orquestra de salão. Iniciou em 1914 seus estudos de piano com Henrique Oswald, no Instituto Nacional de Música, e de harmonia com Agnelo França. Neste mesmo ano, estudou interpretação com Glauco Velásquez. Em 1917 fez curso de harmonia com Darius Milhaud, que o teria iniciado na música moderna. A partir de 1918, começou a se interessar mais pela música e pelo folclore brasileiros, “que em grande parte ignorava, apesar de seguir a corrente nacionalista” (Enciclopédia da música brasileira, 1977:299-300). Rosane Bardanachvili afirma que a estreita relação de Gallet com Mário de Andrade, iniciada em 1926, foi apenas “um motor que impulsionou Gallet a refletir sobre uma trajetória que ele mesmo vinha traçando desde o início da década de 20”. Segundo Bardanachvili (1995:30), os contatos com Mário de Andrade fizeram Gallet se sentir cada vez mais pertencente a um movimento nacionalista.
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da Rádio Cultura do Brasil, cujo teor são propostas de organizar cursos regulares de musicologia. Inicia neste mesmo ano, com o texto-manifesto “Reagir”, campanha pela orientação do gosto musical. Rosane Bardanachvili relata em linhas gerais a missão que se atribui o compositor: além de fundar associações, Gallet “pensava também em comércio musical, em intercâmbio internacional, em métodos didáticos para o aprendizado da música brasileira, em programas de rádio, em revista musical, em reformulação de curriculum das escolas de música, em organização de concertos” etc. (1995:70). A maneira pela qual Gallet lida com o repertório musical popular é também bastante ilustrativa do procedimento ancorado no ideal da Bildung. Afinado com o tipo de sensibilidade que valoriza o passado estético, o compositor se propõe a harmonizar algumas canções brasileiras. Apesar de dizer que não se trata de compor, ou de estilizar essas canções, e mesmo limitando sua tarefa a um intuito didático, ele admite ter trabalhado para a sua própria evolução e para a alheia, “com o enriquecimento e comentário rítmico, harmônico e polifônico de cada peça” (Luciano Gallet apud Bardanachvili, 1995:84). Mário de Andrade discorda do tom humilde de Gallet, assim como da afirmação do compositor de que seu trabalho se limita a “puras harmonizações ilustradas com ritmos característicos”, já que, segundo Gallet, em todas as composições que ele trabalha a linha melódica é conservada autêntica. Mário argumenta: Isso não é verdade e creio mesmo que Luciano Gallet é artista por demais para se sujeitar a esse trabalho etnográfico. Fatalmente a “colher torta” do criador mexe o virado. Luciano Gallet está mais é fazendo obra de muito boa criação (apud Bardanachvili, 1995:84).
Esse ideal da Bildung também se revela na discussão modernista através de algumas categorias de Mário de Andrade, como o “músico interessado”, ou o “músico completo”. Tais categorias se constroem em função de uma postura pedagógica que se propõe formar não só concepções artísticas como também subjetividades afinadas com a nova estética. Contier (1992:272-3) refere-se, por exemplo, a manifesto de Renato Almeida de 1926 – História da música brasileira –, no qual algumas obras de Villa-Lobos, como os Choros, são vistas “como sintomas do aparecimento do homem novo, capaz de aglutinar discípulos comprometidos com o ‘coletivo' e com a modernidade”. E, ao que tudo indica, quem mais se aproxima desse ideário
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modernista é Villa-Lobos,23 cabendo-lhe como uma luva a qualificação de “músico artista”, o qual, segundo Mário, estaria encarregado de “assuntar” a “realidade da execução popular” e desenvolvê-la. É justamente Villa que é citado por Mário como autor de tal procedimento: Mais uma feita lembro Villa-Lobos. É principalmente na obra dele que a gente encontra já uma variedade maior de sincopado. E sobretudo o desenvolvimento da manifestação popular (Andrade, 1962:37).
De fato, Villa realiza como ninguém a prática antropofágica preconizada pelo escritor com relação ao populário, trabalhando as manifestações da tradição popular – como o chorinho carioca e vários ritmos regionais – com um instrumental erudito legado pela cultura ocidental. Disso resulta, evidentemente, uma obra mesclada de tendências tanto nacionais quanto universais, a despeito da trajetória do compositor, marcada, principalmente a partir de 1930, por uma prática intervencionista de cunho nacionalizante. Luiz Paulo Horta destaca, por exemplo, a influência francesa – que estaria “no ar”, “no inconsciente, ou no subconsciente” – não só sobre o compositor, como também sobre o próprio ambiente carioca da belle époque. Mas Villa, segundo o autor, procederia permanentemente, na obra e na vida, através da união de contrários, conciliando sempre a tradição da disciplina, representada pela presença de Bach, com a experiência da liberdade, vivenciada com os chorões. Horta acrescenta: “A sua boemia foi sóbria: em vez de álcool, café forte (fortíssimo). E a imaginação delirante não cortou a capacidade de trabalho” (1987:17-22). O compositor nem sempre corresponde, no entanto, ao perfil do músico-artista delineado por Mário, principalmente quando incorre em alguns deslizes, tendendo ao exotismo (com a pseudomúsica indígena, por exemplo) ou ao individualismo. Mário dá a entender que a carreira de Villa-Lobos estaria sofrendo um desvirtuamento em função de seu
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Luciano Gallet também foi alvo da atenção de Mário de Andrade nos anos 20, embora nunca tenha alcançado, no cenário musical, a mesma visibilidade de Villa-Lobos. José Miguel Wisnik descreve a situação singular de Gallet na música brasileira: “Segregado tanto naquela parte inicial de sua obra que o modernismo nacionalista rotulou de ‘francesismo', como no aproveitamento rigoroso e sintético do folclore em sua obra posterior, Luciano Gallet foi condenado então ao naufrágio pela quase inviabilidade dos propósitos de sua música num meio açambarcado pelo nacionalismo de efeito fácil e vistoso” (1983:54-5).
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sucesso – devido em grande parte ao apelo ao exótico – “mais individual que nacional” (Andrade, 1962:14). Dois anos depois do Ensaio sobre a música brasileira, em artigo de crítica musical – “Villa-Lobos versus Villa-Lobos” –, Mário retoma esse tipo de preocupação não só com a obra, como também com a vida do compositor. Reporta-se, por exemplo, às etnografias fantasiosas produzidas na época sobre os contatos de Villa-Lobos com os índios, como a publicada em Paris, que atribui a ele o episódio supostamente ocorrido com Hans Staden, socorrido a tempo por missão científica alemã de ser devorado por índios em ritual antropofágico (Andrade, 1963:143-4). Quanto ao viés individualista do compositor, Mário chega a se referir a Villa como bicho-domato, ou seja, uma pessoa em que “as violências, os erros, as grandezas, os defeitos, os valores se realizam sem controle, sem nenhuma organização social”. Ou então reprova os excessos da imaginação criadora de Villa, dizendo que em sua personalidade musical há “uma permanente falta de autocrítica, uma perigosa complacência consigo mesmo” (1963:161). Villa-Lobos, no entanto, não perde o título de “músico da Semana” – na condição de único compositor brasileiro a constar nos programas –, nem tampouco o acompanhamento fiel do crítico Mário de Andrade, tanto para apreciar grande parte de sua obra quanto para alertá-lo sobre os perigos que incorre em função de sua tendência a um individualismo indomável. Vemos portanto que esse conceito de modernidade, moldado por um esforço formal e construtivo, projeta os ideais de contenção no plano da subjetividade. Afinal, a “música nacional” exige um homem novo, cuja vontade deve ser aplacada e cujos excessos de personalidade devem ser aparados meticulosamente. Delineia-se este “homem novo” tal como no ideal de “cultivo” do romantismo alemão, em que se busca a identidade original do indivíduo para em seguida limpá-la dos traços fortuitos, alcançando assim o ideal grego de autocontrole e do pleno desenvolvimento das faculdades humanas.24 Mas esse coro clássico que parece ser engendrado a propósito de Villa-Lobos é acrescido, tal como se procede ao se orientar pela Bildung, do elogio romântico da singularidade, da originalidade. Manuel Bandeira, por exemplo, em artigo de 1924 para Ariel, reconhece positivamente o gênio de Villa-Lobos:
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Ver Bruford, 1975.
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Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se que venha cheio de Paris. Entretanto Villa-Lobos chegou de lá cheio de VillaLobos. A ardente fé, a vontade tenaz, a fecunda capacidade de trabalho que o caracterizam renovam a cada momento em torno dele aquela atmosfera de egotismo tão propícia às criações verdadeiramente pessoais. A maioria dos artistas estrangeiros que vão a Paris estudar ou trabalhar quase nada logram fazer nos primeiros tempos [...]. Fica-lhes a sensibilidade como que desnorteada pelo tumulto de todo um mundo novo de sensações. A sensibilidade de Villa-Lobos, porém, resistiu ao choque traumático Paris. [...] A formação dos outros como que vem de fora para dentro; a dele, de dentro para fora. Formação vulcânica, não sedimentária. A qualidade dominante do seu espírito é a imaginação, a que deve a sua música aquela prodigiosa riqueza de ritmos e de combinações de timbres que espantou a Schloezer. Villa-Lobos não precisava ouvir com os ouvidos do corpo as excelentes orquestras de Paris. Pela sua imaginação alucinatória ele as antecipava interiormente [...] (1924b:475, grifo meu).
Dito de outro modo, tenta-se criar, no nosso cenário musical modernista, espíritos coletivistas, prontos a rechaçar as tentações do individualismo e a corrigir os desvirtuamentos de nossa “moral cultural” (Andrade, M., 1975:237). Tudo indica que o “homem novo” de Renato Almeida configura-se através do ideal de “cultivo” próprio da tradição alemã (Simmel, 1971), muito bem representado pela imagem da transfiguração do homem natural em homem cultural (Contier, 1992). Projeta-se um indivíduo que, se é livre o suficiente para controlar seu próprio destino, molda-se, no entanto, pelo princípio do auto-aperfeiçoamento (Dumont, 1994). Em 1935, por ocasião da formatura de alunos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Mário de Andrade, na condição de paraninfo, apresenta em seu discurso uma categoria idealizada – o músico completo – que se contrapõe à figura do músico especializado, o virtuose, e se constitui negativamente aos valores do mundo burguês. Faria parte desse mundo o fenômeno, condenado veementemente por Mário, da “miserável mutação de música em comércio”, que levaria os conservatórios brasileiros a viverem “numa pressão angustiosa”: [...] A própria circunstância de serem eles institutos em que o ensino se sistematiza, se moraliza por assim dizer, os obriga a estatuir um ensino mais legítimo de música. E assim, inicialmente eles nascem atormentados pelo seu próprio destino, que os torna indestinados num país onde todos pedem tocadores e ninguém pede música. A maioria dos conservatórios
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se comercializa então, engolidos pela torrente niveladora. Se tornam produtores de pianistas e violinistas, confundindo a elevação cultural da sua finalidade com as acomodações despoliciadas do ensino particular. Não são conservatórios, são cooperativas de professores particulares (Andrade, 1975:238-9).
Seria também recorrente nesse mundo o problema da vaidade individual, “que sacrifica os valores nobres da arte pela esperança dum aplauso público” (Andrade, 1975:237). Eis como Mário investe contra a “glória” em sua configuração burguesa: Qual o pai que desejou tornar o filho um músico completo? Talvez nenhum. Qual o pai que desejou ver o filho um pianista ou cantor célebre? Talvez todos. Nós não andamos à procura da vida, e por isso a vida nos surpreende e assalta a cada esquina. Nós andamos apenas suspirando pela glória. A glória é uma palavra curta em nosso espírito, e significa apenas aplauso e dinheiro. Nós nem queremos ser gloriosos, nós desejamos ser apenas célebres [...] (1975:237-8).
Mas o cerne da questão, nesse discurso pessimista que Mário profere em 1935, é sem dúvida seu desconsolo, motivado pela guinada especializante e utilitarista desse novo mundo burguês que se configura: [...] O nosso músico precisa da existência universitária [...], porque a inobservância do nosso músico quanto à cultura geral é simplesmente inenarrável. Nenhum não sabe nada [...], os interesses completamente fechados, duma estreiteza inconcebível, só e exclusivamente entreabertos para as coisas da música. [...] Os violinistas vão aos recitais de seus próprios alunos ou dos violinistas célebres, os pianistas só se interessam por teclados. [...] Uma curteza de espírito assombrosa; um afastamento desleal das outras artes, das ciências, da vida econômica e política do país e do mundo; uma incapacidade lastimável para aceitar a existência, compreendê-la, agarrá-la; uma rivalidade vulgaríssima; uma vaidade de zepelin sozinho no ar. Cada qual se julga dono da música e recordista em especialidade. A vida, a vida totalizada, se restringe a um dar lições, preparar de vez em longe algum recitalzinho e falar mal dos colegas. Vida tão exangue e inovadora que não se sabe mais se estamos dentro da música ou dum mosqueiro de passagem (1975:242-3).
Mário de Andrade rejeita, neste discurso, o próprio ideal de vocação no sentido que Max Weber confere ao termo. Quando Weber
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passou a intervir na cena pública alemã, no final do século XIX, a perspectiva da Bildung já se encontrava em declínio. Vinculada ao ideal de Kultur, que valorizava a cultura geral e o diletantismo, essa perspectiva já não faria sentido num mundo de novas realidades sociais, com a racionalização e o progresso consolidando o conhecimento útil. Uma maneira de se enfrentar essa nova situação seria então a alternativa de valorizar a tradição da Reforma em detrimento da tradição renascentista, substituindo o modelo grego pelo puritano. Propunha-se então a retomar o conceito de vocação de sentido essencialmente religioso, como o do calvinismo, porém desvinculado da ética extramundana que lhe era atribuída por Lutero. Em face das crises valorativas da época, a vocação – que pressupõe a atividade diferenciada de cada indivíduo no trabalho deste mundo – tornou-se um poderoso instrumento para a construção de uma identidade vinculada a um modelo que não importa em variedade nem em cultivo do self (como na Bildung), e sim em especialização. O ascetismo (do tipo protestante) inserido nessa ética dá uma ênfase muito maior à produtividade e à inovação do que à obediência à tradição.25 E Mário, como vimos, levanta uma série de objeções aos fenômenos típicos de um universo de feitio burguês, menos afeito a valores oriundos de experiências integradoras. Assim como contrapõe o virtuose (especialista) ao músico completo, Mário investe contra a torrente niveladora que avassala a vida musical, tornando comercializável a arte e retirando do músico a aura, ou, em seus próprios termos, a “elevação cultural”. Ao self fragmentado pela divisão do trabalho contrapõe valores holísticos que remetem a um indivíduo cultivado, aperfeiçoado e completo. Em vez do sujeito submetido aos limites da profissão – o burguês especialista –, propõe o próprio homem da Bildung, “livre para ser ele próprio” – o aristocrata, o diletante, o portador de cultura geral (Dumont, 1994:102-3). Em carta a Schiller, Humboldt, um dos principais ideólogos da Bildung, critica o estilo de vida do filisteu, que vive para o trabalho e trabalha para satisfazer necessidades materiais. Humboldt elogia a vida criativa e o gozo despreocupado da vida (Bruford, 1975). E complementando seu ataque ao domínio do utilitarismo burguês, Mário apresenta a idéia de substituir as posturas meramente em-
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Ver Goldman, 1989; e Bruford, 1975.
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penhadas na busca da felicidade individual por um espírito de luta revestido de um “tropical amor do mundo”: Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à conformista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido sequer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta [...] (Andrade, 1975:256).
A estéti ca d a mon u men tali d ad e Atingimos um ponto da discussão em que convém salientar a correspondência estreita entre Bildung e tradição. No caso do projeto musical modernista brasileiro, lida-se com um conceito de cultura muito próximo ao formulado por essa vertente do romantismo germânico. Mas, apesar de sua vinculação com o passado, essa idéia de cultura não é incompatível com a perspectiva de mudança, desde que o mundo novo projetado se adapte às sinuosidades do terreno, aos obstáculos acumulados ao longo do tempo. Aplicado à musicologia modernista, o conceito de cultura auxilia a identificar o populário, peçachave, segundo Mário de Andrade, para que se crie a música nacional. Para se realizar esse projeto, pode-se – e deve-se – recorrer aos processos de harmonização desenvolvidos pelos europeus. Mas esses processos só podem ser acionados para trabalhar uma matriz original, que seja representativa de nossas características raciais. A cultura, portanto, dado o seu vínculo forte com a tradição e a sua perspectiva essencialista, não seria condizente com práticas revolucionárias; o conceito, tal como empregado aqui, remete à idéia de evolução. A Bildung mantém-se também vinculada ao ideal de totalidade. Esse aspecto, de igual forma, não a torna incompatível com o projeto construtivo dos nossos modernistas, desde que o mundo novo vislumbrado – a nação brasileira – tenha seu contorno redondo, plenamente acabado. Esse ideal de completude, próximo do modelo da Bildung, indica a maneira pela qual os ideólogos musicais do modernismo constroem sua imagem de sociedade. Mário de Andrade, por exemplo, muitas vezes a concebe como uma totalidade, como também é o caso de Villa-Lobos. Enio Squeff (1993:67) desenvolve essa questão, tentando mostrar que tanto Villa-Lobos quanto Mário fazem um mapeamento
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musical do Brasil: o músico, através de sua própria obra, e o escritor, a partir de uma perspectiva filosófica ou conceitual. Se Mário envereda por uma cruzada pedagógica, recolhendo peças do repertório popular e investindo na formação de músicos interessados no projeto nacional, é Villa-Lobos que, antecipando-se aos modernistas, empreende viagens desde 1905 pelo interior do país (Nordeste, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais), tentando realizar “o sonho de conhecer o Brasil” (Horta, 1987:18-23). E é Villa-Lobos quem se propõe a realizar, à frente da Superintendência da Educação Musical e Artística (Sema), a partir de 1932, o projeto acalentado por Mário de unificar o Brasil através do coral, a que o escritor atribui no Ensaio sobre a música brasileira um valor musical e social. A este direcionamento tomado por Mário de Andrade, Villa-Lobos e outros musicólogos do movimento – que, como vimos, tende a assumir um compromisso com um projeto de totalidade, caracteriza-se sempre pelo recurso ao excesso e costuma resultar numa certa gravidade – daremos o nome de estética da monumentalidade. A perspectiva unanimista desse tipo de estética já aparece esboçada em 1924, na revista Ariel, cuja seção “Sinfonietta” apresenta um texto programático com o seguinte teor: [...] Precisamos quanto antes desenvolver o canto coral entre nós. [...] a fundação de sociedades corais brasileiras viria preencher a lacuna talvez mais sensível da nossa cultura. E talvez também assim modificaríamos em parte este excessivo individualismo latino da nossa gente e tornaríamos a nação mais humana e mais harmoniosa e unânime nos seus movimentos de progresso. [...] (Ariel, 1924:146.)
Essas expectativas de completude, continuidade e essência há muito – desde a Grécia antiga – se incorporaram às concepções de arte e cultura no Ocidente. Só no século XIX se verificaram mudanças nessas concepções, como respostas aos efeitos da industrialização emergente, do surgimento da sociedade de massas e das mudanças sociais subseqüentes. Assim, no século XVIII a palavra arte remetia à idéia de “habilidade manual”, enquanto cultura tinha a conotação de “cultivo”, tanto de plantas quanto de seres humanos. No século XIX ocorre uma mudança nesses conceitos: não só a arte passa a designar uma atividade associada à pureza, à espontaneidade e à criatividade, como também o artista passa a ser referenciado à figura do gênio, isto é, um indivíduo especial, portador de uma sensibilidade refinada. Quando esse tipo de concepção se torna hegemônico, o artista se se-
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para da sociedade – de massa ou burguesa –, colocando-se contra ela. O termo cultura sofre uma transformação semelhante, passando a significar algo elevado, acima da média. Recorre-se então à arte e à cultura, nesse contexto, para se proteger dos perigos da vulgaridade e do nivelamento.26 Não há como negar que, ao longo do século XIX, tais categorias sofreram novos desenvolvimentos, principalmente com a criação do conceito antropológico de cultura. A partir dessa nova definição, questiona-se a perspectiva universalista e postula-se a diversidade humana. Mas há quem afirme, como James Clifford, que as definições do século anterior não foram inteiramente transformadas, na medida em que esse conceito manteve seu significado original: “um corpo coerente que vive e morre”. Clifford complementa: “A cultura é permanente, tradicional, estrutural (em vez de contingente, sincrética, histórica). A cultura é um processo de ordenação, não de ruptura. Ela muda e se desenvolve como um organismo vivo. Ela normalmente não ‘sobrevive’ a alterações abruptas” (1988:233-5). Trata-se de uma acepção a-histórica de cultura, em que a tradição é vista como algo a ser cultuado, velado; valoriza-se portanto a repetição, e não a ruptura. Esse tipo de interpretação organicista encontra correspondência numa estética essencialista e não existencialista, grave e densa, ao invés de irreverente e leve, e sobretudo inteira, imune às contaminações e às rachaduras do tempo. Tal procedimento é bastante visível no campo da arquitetura, principalmente na Itália, que abriga, como observa Massimo Canevacci, “os maiores e mais sufocantes vestígios de um passado monumental e comemorativo” (1993:74). Assim, argumenta, não foi sem razão que este país se tornou o cenário ideal do futurismo que, em seus primórdios, acirrou a crítica da estética monumental e seu estilo neoclássico. Em manifesto de 1914, por exemplo, Sant'Elia proclama o rompimento com a tradição arquitetônica em nome da “formidável antítese entre o mundo moderno e o antigo”: [...] Perdemos o sentido do monumental, do pesado, do estático, enriquecemos a nossa sensibilidade com o gosto pelo leve, pelo prático, pelo efêmero, e pelo veloz. Sentimos que não somos mais os homens das catedrais, dos palácios e dos púlpitos; mas dos grandes hotéis, das estações ferroviárias, das imensas estradas, das portas colossais, dos mercados co-
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Ver Clifford, 1988.
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bertos, das galerias luminosas, das auto-estradas, das demolições saudáveis (apud Bernardini, 1980:157).
Nesse texto programático, Sant'Elia refere-se a uma estética monumental que se constrói através do excesso – de adornos, de peso, de riqueza, de reverência etc. Trata-se de uma forma artística apegada à memória, ao cultivo de uma tradição mítico-ancestral. Interessa particularmente a esta análise que desenvolvo a interpretação de Reginaldo Gonçalves da monumentalidade como uma das modalidades de discurso que vigoraram nas narrativas do patrimônio histórico brasileiro, principalmente a partir dos anos 30, sob a gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Caracteriza esse tipo de narrativa a idéia de que o presente não prescinde do passado; assim, cabe à tradição – representada pelos bens do patrimônio – fazer a mediação entre o momento contemporâneo e os tempos idos, que lhe são superiores. Essa estratégia discursiva tende também a construir uma visão homogênea de nação, à qual os indivíduos aparecem totalmente submetidos. Representando-se, dessa maneira, a nação como uma totalidade, cria-se uma idéia de espaço público “monológico, policiado, fechado”, e ao mesmo tempo “sem diferenças, sem pluralidade”.27 No campo musical, as realizações do tipo monumental geralmente se associam às obras sinfônicas, que permitem, dada a sua própria natureza, efeitos grandiosos. O excesso manifesta-se em tais obras através de vários meios, desde a própria abundância e variedade de instrumentos de que dispõe a orquestra sinfônica até recursos expressivos vários, como os extremos dinâmicos (fortissimo seguido de pianissimo, por exemplo), a extensão dos movimentos, a abundância de temas diferentes e a complexidade do desenvolvimento, entre outros. Costuma-se associar o excesso ao próprio espírito europeu da belle époque, em que os artistas tentam prover a elite rica e zelosa dos costumes de novidades com pouco teor transgressivo. O ideal, segundo J. Jota de Moraes, seria envolver as novidades musicais “com o luxo do canto e da dança, dos cenários e dos figurinos, a fim de que não se tivesse muito trabalho ao digerir a própria música”. Moraes também lembra que este é o momento dos grandes cantores italianos e alemães (“que tinham suas carruagens puxadas por admiradores”), das orquestras que cada vez mais se ampliavam, chegando-se à experiência de Mahler, que escreve uma sinfonia
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Gonçalves, 1996a:10-6. Ver também Gonçalves, 1996b.
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para mil executantes, e dos “feéricos Ballets Russes de Sergei Diaghilev”. Em suma, Moraes lembra que os primeiros anos do século foram marcados pela “exacerbação extrema dos meios expressivos”, resultando no “colossal” cultivado por Mahler e Strauss.28 É importante observar que o excesso não realiza necessariamente obras monumentais; assim, Diaghilev lida com coreografias ricas e deslumbrantes, sem valer-se de perspectivas unanimistas. Por outro lado, não se concebe a criação da retórica monumental sem o concurso do excesso. Os concertos em praça pública, por exemplo, que segundo Enio Squeff se consolidaram com a nova prática ritualística inaugurada com a Revolução Francesa, recorreram não só a uma retórica monumental mas também a uma estética excessiva em todos os aspectos. Procurava-se promover um estado de mobilização constante, para o qual se valiam principalmente da música instrumental e de imensos corais para serem cantados pelas massas. Isso explica em grande parte o fato de as orquestras sinfônicas se desenvolverem muito durante a revolução, e de se começarem a substituir os instrumentos de corda pelos instrumentos de sopro, que teriam mais massa sonora. Squeff chama a atenção para a importância de Gossec29 nesses acontecimentos, ao compor o Canto do 14 de julho “para ser entoado pela multidão no dia em que a revolução celebrou a primeira Festa da Federação (14 de julho de 1790)”: Serão executadas várias peças musicais. Uma delas é a abertura de uma ópera de Vogler (Georg Joseph, 1749-1814); mas outra, a que fez mais sucesso entre a multidão, calculada em 200 mil pessoas (uma marcha lúgubre em homenagem aos mortos recentes contra os realistas em Nancy) será, de novo, do próprio Gossec – e nada menos que 1.200 instrumentistas de so-
28 Moraes, 1983:16-42. Segundo este autor, expansão e transfiguração são as palavras-
chave para a compreensão da linguagem mahleriana. Essa linguagem teria expandido o conceito de “material temático”. Assim, “em vez dos habituais dois temas contrastantes – base sobre a qual erigia-se, até então, a forma-sonata –, passou a fazer o discurso girar sobre uma verdadeira multidão de pequenos temas e de longas melodias, ao ponto de a exposição de algumas de suas sinfonias apresentarem, antes de desenvolvê-las, oito a 10 idéias fundamentais contrastantes, onde os instrumentos freqüentemente são utilizados como verdadeiros solistas. E, não contente apenas com o instrumental colocado à sua disposição, chegou a incorporar vozes de cantores, de crianças e de grandes coros à sua já enorme massa orquestral” (1983:58-9). 29 François-Joseph Gossec (1734-1829) foi um dos principais compositores da França do século XVIII, cujas sinfonias e peças de câmara lançaram as bases das formas orquestrais do período clássico na França (Encyclopædia Britannica, 1980).
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pro a executarão com várias outras músicas. O efeito deve ter sido tremendo. Além de usar o tantã, um instrumento relativamente raro na música de concerto até ali, e de ter incluído a tuba em algumas de suas peças [...], Gossec praticamente institucionalizará os clarinetes como substitutos dos violinos nas orquestras formadas só com sopros. É possível que esta não seja a única origem das modernas bandas, militares ou não. Mas, sem os cometimentos orquestrais de Gossec, a história das bandas e das modernas orquestras sinfônicas seria provavelmente outra [...] (Squeff, 1989:45).
Quando se toma a estética de Villa-Lobos como exemplo de estética que se realiza pelo excesso, observa-se que um recurso particularmente importante é a diversidade de informações musicais utilizadas, provenientes das mais diferentes tradições – européia, indígena e africana; urbano-cosmopolita e rural-regional. Wisnik (1983:169) observa que o aspecto monumental de sua obra visaria a responder às expectativas do meio social: “a música de Villa-Lobos parece corresponder plenamente à idéia de ‘país novo', segundo a qual os países da América Latina tenderam a ser vistos, até mais ou menos a altura de 1930, pelo ângulo da sua pujança virtual e, pois, da grandeza ainda não realizada”. Esse momento coincide com a difusão das inovações ocorridas na Europa no início do século, em particular a “descoberta” das músicas folclóricas russa (Stravinski) e húngara (Bartók), com seus ritmos irregulares e harmonias inusitadas. Em particular, o primitivismo brutalista do primeiro Stravinski – o da Sagração da primavera (1913) e As bodas (1923)30 – parece singularmente adequado para conotar a idéia de pujança étnica, de virilidade não corrompida pelos refinamentos da civilização. Devidamente diluída e edulcorada por Carl Orff – compositor cuja obra foi aceita e elogiada pelos nazistas como legítima expressão do vigor ariano31 –, essa mescla de primitivismo e grandiosidade deixou marcas no Villa-Lobos que compôs obras como os choros Rasga o coração (Choro nº 10, 1926) e Pica-pau (Choro nº 3, 1925),
30 Sobre As bodas, escreve Eric Salzman na
contracapa da gravação de Pierre Boulez: “A obra foi concebida em 1912 e composta entre 1914 e 1917, porém a presente instrumentação só foi completada em 1923”. 31 A respeito de Carl Orff, o musicólogo britânico Gerald Abraham observa: “O único tipo de modernismo aceitável no Terceiro Reich era o primitivismo ritmicamente hipnótico, totalmente diatônico, das cantatas de Orff Carmina burana (1937) e Catulli carmina (1943), e sua ópera Die Kluge (A mulher esperta, 1943). Ironicamente, as autoridades da pátria do bolchevismo estavam nessa mesma época tentando reprimir este exato tipo de música por ser ‘formalista’ e antiproletária” (Abraham, 1979:840).
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e que promoveu o canto orfeônico nas escolas, regendo “monumentais massas orfeônicas em estádios de futebol” e corais de “até 40 mil escolares, cantando músicas a duas, três e quatro vozes” (Enciclopédia da música brasileira, 1977:795). Algumas composições musicais, como as de Carl Orff e as de Villa-Lobos pós-anos 30, causam realmente impacto, tendo em vista os recursos grandiosos utilizados ao concebê-las e executá-las. Um bom exemplo são as Bachianas brasileiras nº 7, obra que Villa-Lobos compõe para orquestra em 1942 e dedica a Gustavo Capanema. Nos nomes dos quatro movimentos que a constituem, Villa-Lobos faz alusão a gêneros musicais folclóricos de várias partes do Brasil. Ao prelúdio ele dá o nome de “Ponteio”; o segundo movimento, a giga, seria uma “Quadrilha caipira”; o terceiro, a tocata, é um “Desafio”; e o quarto, a fuga, “Conversa”. Porém, trata-se de uma peça cuja concepção e realização têm, na harmonia convencional, no melodismo fácil, na orquestração grandiloqüente, pouco de bachiano, quase nada de brasileiro e muito de romântico tardio. Como observa J. Jota de Moraes (1983:174-5), essa composição é um bom exemplo sonoro das contradições do pensamento musical de Villa-Lobos. Assim, segundo Moraes, apesar de Villa se propor a conciliar a linguagem de Bach com elementos folclóricos brasileiros, ele é levado, na prática, a seguir a tendência neoclássica européia, que buscava recuperar o antigo. Reforço, no entanto, o argumento de que o excesso não remete necessariamente a uma visão totalizadora e a uma estética monumental. Villa-Lobos, como vimos, cria um tipo de elaboração musical muito próximo do ideal da Bildung, transformando o material bruto das fontes populares através de um processo de cultivo, para o qual concorrem não só as técnicas da civilização como também uma concepção de sistema – ou uma aspiração à totalidade – muito própria dessa tradição alemã. Já Stravinski desenvolve, recorrendo ao excesso, um idioma personalíssimo – sem criar uma estética totalizante e monumental –, misturando a tradição romântica russa de Tchaikovski e Rimski-Korsakov com folclore eslavo e classicismo ocidental, Pergolesi e Mozart, tango e ragtime, música circense e música sacra, dodecafonismo e brutalismo rítmico, em diferentes fases de sua longa carreira. Uma boa maneira de distinguir esses dois procedimentos estéticos – o de Villa-Lobos e o de Stravinski – é ver como cada um incorpora o repertório musical preexistente. Se a estética monumental, tal como a desenvolvida por Villa-Lobos a partir dos anos 30, incorpora
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uma gama variada de materiais ao trabalho artístico, ela o faz na maioria das vezes recorrendo à citação: da música indígena, do choro, do sertanejo etc. Mas desenvolve-se, nesse caso, uma atitude reverente para com as fontes incorporadas, o que resulta numa composição solene, em que o material citado atua de modo a conferir suntuosidade e pompa à linguagem musical. Já Stravinski, numa trajetória mais errática do que a de Villa-Lobos, entra pelos anos 10 abandonando uma orientação atada ao romantismo e inaugurando a incorporação dos traços russos através de uma forma áspera e dissonante. Sagração da primavera (1913), por exemplo, assim como As bodas (concebida em 1912) aparecem nesse contexto como peças violentamente experimentais. Nos anos 20, entrando numa fase associada ao neoclassicismo, lida de outra forma com os procedimentos metamusicais. Em Pulcinella (1920), por exemplo, volta-se para o passado clássico ao utilizar material atribuído a Pergolesi (1710-36), porém o faz de modo irreverente, valendo-se de uma instrumentação por vezes francamente humorística, recorrendo alternadamente ao pastiche e à paródia. No campo das artes plásticas, Cândido Portinari se projeta – principalmente a partir de 1932, quando retorna ao Brasil depois de uma longa estada em Paris – com suas criações no estilo monumental, visivelmente influenciado pelos muralistas mexicanos. Em artigo sobre a mostra do pintor de 1934, em São Paulo, Oswald de Andrade referese à nova guinada de Portinari, resultante de seu posicionamento contra a arte neutra, tendendo a uma “monumentalidade escultórica”, à “superação do quadro de cavalete” e ao seu encaminhamento para o afresco (apud Fabris, 1996:34). Lavrador (Preto de enxada, 1934) passa a ser citado por vários críticos como obra paradigmática dessa nova fase de Portinari, em que, movido pelo interesse social, procura dar forma ao homem de carne e osso empregando técnicas e recursos da pintura mural e da escultura, em vez de desenvolver formas abstratas (Fabris, 1996:36). Annateresa Fabris argumenta que essa mudança na trajetória de Portinari corresponde à própria guinada dos modernistas brasileiros nos anos 30, que tendem a substituir a atitude experimental do início do movimento por um gesto de compromisso com as questões políticas e sociais. O tema, portanto, passa a ser enfatizado, sobretudo o de natureza social. Assim, o expressionismo dos primeiros tempos, configurado por uma poética individualista, adapta-se ao momento construtivo tentando expressar o ser social. Utiliza-se então a defor-
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mação como instrumento de crítica, como denúncia da situação dos vencidos, dos injustiçados, dos excluídos (Fabris, 1996:51). Mas tratase de um tipo de estética representativa dos impasses encontrados por vários modernistas brasileiros a partir dos anos 30, que tentam conciliar a experimentação formal com a atitude construtiva. Mário de Andrade, por exemplo, a propósito da mesma mostra, em artigo para o Diário de São Paulo (15-12-1934), afirma que a pintura mural de Portinari reflete o drama do artista contemporâneo, “que não quer abandonar nem os direitos desinteressados da arte pura, nem as intenções interessadas da arte social”. Mestiço (1934) o impressiona mais do que as outras obras, por expressar tanto o homem nas suas relações de trabalho quanto a experimentação puramente formal, na qual o óleo, “sem desmentir a sua natureza, consegue no entanto um peso e uma eternidade de bronze” (Mário de Andrade apud Fabris, 1996:37). Portinari opta portanto por uma estética que lida com duas concepções opostas de temporalidade. Por um lado, mostra seu vínculo com as questões modernistas ao captar o homem de seu tempo, vinculado a um contexto social específico e a uma atividade cotidiana. Por outro, ao empregar técnicas e idéias da arte clássica – historicamente associadas à perspectiva monumental – para desenvolver temas contemporâneos, mostra-se mais empenhado em congelar determinados aspectos da vida do que em captar sua efemeridade, como procedem várias vanguardas de sua época. E também à contramão de algumas vanguardas européias, que se voltam para a descoberta da cidade em todos os seus aspectos, Portinari inicia a nova fase representando o homem rural, principalmente o referenciado à sua biografia, a Brodósqui, sua cidade de origem no interior de São Paulo. Mantém-se fiel a uma atitude modernista que não dispensa, porém, o clássico, tentando desenvolver uma atitude ao mesmo tempo iconoclasta e engajar-se no restabelecimento de uma certa ordem ligada a ideais de perenidade. Ou, como percebe Flexa Ribeiro em crítica visivelmente comprometida com esse ideal de ordem, Portinari ora procede segundo o cacoete moderno, utilizando a deformação, ora opera nos moldes figurativos tradicionais (Fabris, 1996:46). Fabris detecta a preocupação de uma certa tendência artística paulistana com a volta à ordem em artigo de O Estado de S. Paulo, em que se atribui a Portinari a função de inserir a arte brasileira na tendência “clássico-moderna” que passa a vigorar na Europa. Cabe-lhe portanto a responsabilidade de restituir à arte brasileira a razão e o bom gosto
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(Fabris, 1996:42). Fabris também chama a atenção para os valores estéticos fascistas (na acepção de Soffici) defendidos por Fanfulla ao fazer a crítica da mostra de Portinari, ressaltando o viés clássico inerente ao trabalho do pintor, assim como à arte latina em geral, o seu apego ao “domínio do natural” e o seu procedimento fundamentado nos ideais de ordem e harmonia, além de “profundamente nacional”. Fabris acrescenta à sua interpretação do artigo “La mostra di Cândido Portinari”, extraído de Fanfulla: Ser nacional implica buscar uma expressão “clássica à maneira italiana”, na qual o real e o ideal, o objetivo e o subjetivo, o moderno e o tradicional se encontram lado a lado e se fecundam reciprocamente. É a partir desse quadro de referências que se desenha o retrato de Portinari como artista engajado numa expressão intelectual, mas não contemplativa, na qual a vida do espírito se conjuga à vida do corpo, na qual a idéia brota diretamente da sensação (1996:44).
Como vimos, esse tipo de orientação que se ancora no modelo da Bildung recorre ao monumental para dar forma às suas aspirações de continuidade, essência e totalidade. Cabe ao artista, portanto, não apenas captar como também representar uma natureza que se atribui a um indivíduo e/ou coletividade, concebidos como mônadas, como todos homogêneos que dispensam fragmentações. No caso de Villa-Lobos, principalmente a partir dos anos 30, é comum o uso de procedimentos metalingüísticos, como a citação de peças folclóricas. Imbuído, no entanto, de um grande apego à tradição, assim como de um ideal unificador, Villa reverencia os textos musicais que lhe servem de fonte, como se eles detivessem a alma nacional. Portinari, de maneira semelhante a Villa-Lobos, substitui o experimento com formas abstratas, que desenvolvia no início de sua carreira, pela monumentalidade escultórica, mais conformada ao padrão clássico-moderno. E o expressionismo, quando utilizado, coloca-se a serviço do coletivo, e não como expressão da subjetividade, tal como concebido pelos artistas alemães. Portinari e Villa-Lobos reinventam, no entanto, a tradição, seja a referenciada à natureza exuberante, como Villa procede, por exemplo, ao criar a peça musical Floresta do Amazonas (1958), seja a uma cultura localizada num momento histórico determinado, como a referenciada ao passado de Portinari em Brodósqui. E tanto um quanto o outro promovem uma descontinuidade com o período anterior, radi-
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calmente contaminado pelo sopro civilizador. Na fase anterior à eclosão da atitude modernista, as manifestações culturais legadas pelo passado colonial escravocrata, associadas à barbárie e ao primitivismo, eram rejeitadas em nome do branqueamento do país. O que caracteriza o modernismo, mesmo na versão ordenadora do projeto musical brasileiro, é justamente o esforço de superar essa oposição, adotando porém um tom absolutamente elevado e monumental para articular o erudito e o popular.
2 O api to d a fáb r i ca d e teci d os Sou do sereno Poeta muito soturno Vou virar guarda-noturno E você sabe por quê Mas você não sabe Que enquanto você faz pano Faço junto do piano Estes versos pra você Noel Rosa, Três apitos
A estéti ca d a si mpli ci d ad e Poderíamos identificar uma segunda prática ao longo dos anos 20 e 30 no modernismo brasileiro – a que denominaríamos estética da simplicidade – que, ao contrário da experiência totalizante da arte monumental, opera no registro da fragmentação. Trata-se de uma opção pelo simples que não recusa, entretanto, o excesso ou qualquer tipo de transbordamento; a seriedade, quando acolhida, vem sempre matizada com o senso de humor. Enquanto a linguagem elevada e grave do registro monumental conforma a música modernista, como a de Villa-Lobos nos anos 30, ou a pintura social de Portinari, o espírito da simplicidade manifesta-se em obras literárias do movimento, em que se incluem tanto estudos de cunho sociológico quanto textos ficcionais e poéticos. Observa-
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se esse procedimento, no cenário modernista, na obra de Gilberto Freyre dos anos 30 – particularmente Casa-grande & senzala e Sobrados e mocambos –, nos manifestos, poemas e romances de Oswald de Andrade, em parte da obra literária de Mário de Andrade, nos poemas de Manuel Bandeira e outros. Esse espírito pouco afeito a elucubrações totalizantes revela-se também em várias canções populares do período, cujos autores – como Noel Rosa, Lamartine Babo e Ari Barroso (antes da fase ufanista que tem início no final dos anos 30) –, alheios à discussão modernista, atuam num registro mais individual e seguem o ideal de despojamento nos planos lingüístico e musical. Procurei formular o conceito de simplicidade a partir da análise interpretativa de obras – principalmente musicais e literárias – que fogem ao padrão monumental, desenvolvendo formas descomprometidas com perspectivas unificadoras. Apesar desse esforço de configurar modelos que facilitem a compreensão da estética produzida no período, o termo “simplicidade” me foi fornecido pelos próprios atores envolvidos na discussão modernista, notadamente os franceses já citados, vinculados à tendência musical denominada Grupo dos Seis. Retomando a discussão do capítulo anterior, os integrantes desta tendência se inspiram em manifesto de 1918, intitulado Le coq et l'arlequin, de Jean Cocteau. Nesse texto, Cocteau contrapõe a tradição musical francesa, caracterizada segundo ele por um procedimento estético fundado no despojamento, às tradições alemã e russa que têm início principalmente no final do século XVIII, às quais ele atribui práticas musicais excessivas e grandiloqüentes. De acordo com Darius Milhaud, um dos principais integrantes dos Seis, essa linhagem foi inaugurada na França por Gounod no século XIX. No entanto, a partir do final desse século teria se formado uma clivagem na música francesa, representada de um lado por Satie, que seria fiel a Gounod, e de outro por Debussy, que desvirtuaria a vocação francesa da simplicidade, desenvolvendo uma arte subjetivista (impressionista) e desprovida de clareza. Se o processo criativo de Satie, além de parodístico, se colava ao mundo prosaico do dia-a-dia, o de Debussy, ao contrário, mostrava-se preso ao sublime. Adeptos da concisão, da objetividade e, acima de tudo, da simplicidade, Milhaud e seus companheiros se viam, portanto, como herdeiros legítimos do legado de Gounod e Satie. Os músicos modernistas franceses constroem esse ideal de simplicidade a partir de uma leitura singular que fazem de seu país e de seu tempo. Se a modernidade emergente lhes exige renovação estética, essa mudança só pode ser feita se retomarem a tradição. É em seu
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passado clássico, por exemplo, que reencontrariam a objetividade perdida por alguns músicos no final do século XIX, como é o caso, segundo eles, de Debussy. A França responderia, portanto, à provocação moderna de uma maneira muito própria, sem a grandiloqüência dos russos e alemães, mesmo porque a idéia de cultura dos modernistas franceses é mais flexível, sem conotação de síntese. Por outro lado, os novos tempos exigiriam uma atualização dessa linguagem, que deveria conformar-se tanto às situações prosaicas do cotidiano das cidades, com suas feiras e seu ritmo próprio, quanto ao nonsense do extracotidiano circense. Nas práticas rotineiras ou fora delas haveria o espírito popular a ser captado, com suas formas “baixas” – do pregão do jornaleiro ao sussurro da prostituta. É nesse sentido que o termo “simplicidade” remete também à idéia de humildade. Esse tipo de recurso a formas descomprometidas com ideais elevados e totalizantes é identificado por Erich Auerbach a uma atitude que surge no cristianismo medieval, a partir da qual se promovem mudanças nas classificações estilísticas da Antigüidade. Nesse ordenamento dos antigos, os estilos elevado e baixo se distinguiam de acordo com o nível do assunto a ser tratado. Recorria-se ao elevado para tratar de atos heróicos e situações extraordinárias, associados a figuras míticas e aristocráticas, tal como se procede na tragédia; e valia-se do baixo para dar conta dos eventos banais do cotidiano. Santo Agostinho (século V) teria sido o primeiro a embaralhar as separações defendidas por Cícero, deixando de reconhecer o critério segundo o qual o estilo era determinado pelo nível do assunto abordado. Todos os temas cristãos, argumentava Agostinho, são sublimes, razão pela qual se deveria orientar a escolha do estilo por um objetivo prático: ensinar, admoestar ou empolgar. Promove-se então uma ruptura radical com a tradição da retórica, já que, no contexto cristão, as coisas menores se tornam compatíveis com o estilo elevado, assim como os mistérios mais elevados da fé passam a ser explicados pelo estilo baixo, mais acessível a um maior número de pessoas. O termo latino humilis – que vem de humus, solo, e significa literalmente “baixo” – perde portanto a conotação pejorativa que tinha na literatura não-cristã e começa a designar o estilo baixo e a caracterizar a Encarnação e a Paixão de Cristo, atos interpretados como humilhação voluntária, como uma escolha pela existência terrena e pelo sacrifício no meio dos pobres. A própria figura de Cristo evoca tanto Deus quanto o Homem, tanto o sublime quanto o baixo (Auerbach, 1993:30-45). Procuravam-se então nas Sagradas Escrituras passagens que remetessem à idéia de que a Revelação era re-
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servada aos pequeninos e ocultada dos sábios, de que Deus escolheu como apóstolos homens humildes e não homens de posição social e cultural elevada (Auerbach, 1987). São Francisco de Assis (século XII) introduziu na própria vida a conciliação do humilde com o sublime, atualizando radicalmente a figura de Cristo. Abriu mão da postura místico-contemplativa, recorrente na tradição cristã, para exercer uma prática comprometida com o cotidiano e o popular, recorrendo, para tanto, a uma representação por vezes excessiva, tendendo para o grotesco, que acabou se disseminando por toda a ordem franciscana. Assim, segundo Auerbach, o “excesso de força expressiva drástica converteu os irmãos em criadores e, logo também, em objeto de anedotas cênicas, jocosas e, freqüentemente, grosseiras ou obscenas”. Essa atitude dos franciscanos teria em muito influenciado o realismo grosseiro que se alastrou na tardia Idade Média (Auerbach, 1987:125-50), chegando até, mais tarde, a influenciar uma figura como Rabelais. É possível estabelecer uma aproximação entre esse estilo humilde, à maneira franciscana, com os princípios irreverentes que lhe servem de apoio, e alguns escritores modernistas brasileiros que rejeitaram a tradição bacharelesca, subserviente, segundo eles, para com o registro erudito adotado no Império. Essa tomada de posição é explícita, por exemplo, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, publicado por Oswald de Andrade em 1924: O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. [...] A riqueza dos bailes e das frases feitas. [...] Falar difícil. O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportando e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho (1972a:5).
Ao rejeitar a tradição bacharelesca, Oswald imprime, neste manifesto de 1924, um novo rumo à sua crítica, o que o leva a diferenciarse cada vez mais de seus companheiros de movimento, notadamente de Mário de Andrade. A figura do bacharel, por exemplo, é associada ao portador de cultura geral, ou seja, o diletante que se amolda ao ideal da Bildung. Em vez desses “homens que sabiam tudo” e “se deforma-
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ram como borrachas sopradas”, Oswald propõe o homem especializado, que segue a sua vocação: [...] Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de casa tratando de cozinha. A poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem (1972a:6).
Oswald investe também, neste manifesto, contra as práticas eruditas em várias de suas configurações: o gabinetismo, o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais, os sociólogos e os homens de lei, “gordos e dourados como Corpus Juris”. Em seu lugar, propõe o homem que vive, que substitui a citação pela invenção. Em vez dos jurisconsultos, “perdidos como chineses na genealogia das idéias”, apela para o engenheiro, o homem que domina a técnica: O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa (1972a:7-8).
Por essa via, Oswald postula seu ideal de simplicidade, que remete à junção do bárbaro (relacionado à tradição) com o técnico (advindo com a civilização). Em nenhum momento aparece no “Pau-brasil” a perspectiva totalizante do romantismo alemão, com seus homens cultivados e completos. O homem vislumbrado por Oswald, ao contrário, é o homem especializado e provido de ingenuidade: O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito. O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos [...] (1972a:9-10).
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Gilberto Freyre, de maneira mais moderada que Oswald de Andrade, também advoga a causa da simplicidade, valendo-se de uma argumentação crítica com relação à linguagem bacharelesca. Ao analisar o estilo que Gilberto desenvolve em Casa-grande & senzala (1933), Ricardo Benzaquen de Araújo enfatiza o fato de ele compartilhar com os modernistas a recusa “à verbosidade sem peso, sem densidade”, própria da retórica, e adotar uma linguagem coloquial e colada ao cotidiano, afinada com o sermo humilis. O que estaria em jogo, nesse caso, seria um julgamento negativo de Gilberto quanto ao excesso a serviço de ideais totalizantes, como se vê no emprego da retórica pelos padres e bacharéis. Os jesuítas que a introduziram no país, no período da Contra-Reforma, teriam retomado “o elevado estilo clássico da oratória ciceroniana, reabilitando esta tradição latina no intuito de sensibilizar, de comover os infiéis por intermédio da frase ‘redonda’, ornamentada, e conquistá-los para a Igreja”. Gilberto critica a linguagem elevada que se entranhou no discurso bacharelesco, a serviço da “aspiração absolutamente totalizadora que caracteriza essa influência européia”. Criou-se uma situação em que o excesso, ou seja, o “‘brilho' da eloqüência”, aliou-se “ao cinzento e ao negro” trazido pelo processo civilizador, “contra a vivacidade oriental e africana das cores coloniais” (Araújo, 1994:137-43). O procedimento estético que se pauta pela simplicidade – ou pelo estilo humilde – tende a recortar de outra maneira o repertório cultural, selecionando num mesmo movimento tanto as peças que se aproximam do ideal de despojamento quanto as associadas aos elementos africanos e orientais, outrora expurgados pelo processo civilizador. Quando se lida, através do procedimento metalingüístico, com informações culturais que se afastam desse padrão e se aproximam do monumental, ou do sublime, a paródia passa então a ser usual. É comum, por exemplo, entre os músicos que comungam no ideal de simplicidade, a recorrência a textos operísticos com o único intuito de profaná-los e de expor sua suposta vinculação com um passado estético melodramático. As composições românticas também se prestam a esse tipo de apropriação parodística, como no caso mencionado no capítulo anterior, relativo à peça D'Edriophthalma, de Erik Satie, da série Embryons dessechés, em que ele cita, de maneira irreverente, a Marcha fúnebre de Chopin. E o que corresponde, na tradição modernista, ao ideal de despojamento? Justamente aqueles elementos prosaicos da linguagem cotidiana, incompatíveis, em momentos anteriores, com as formas eleva-
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das que se exigiam no trabalho artístico. Davi Arrigucci argumenta que uma das características fundamentais do período modernista “é que a vida de relação, tal como se mostrava no dia-a-dia, se torna matéria literária” (1990:52-3). Essa nova perspectiva que se abre então para a arte contaria desde logo, segundo o autor, com a adesão de Manuel Bandeira, que tematizava o “mais humilde cotidiano”, e de Mário de Andrade, que se propunha, até mesmo em suas cartas – trabalhando a “vasta matéria tirada da vida de relação” –, a alargar o conceito de literatura. Isso significaria uma ruptura com as convenções anteriores, responsáveis por classificações rígidas relativas a temas considerados poéticos e não-poéticos. Arrigucci registra a importância do poeta suíço Blaise Cendrars32 para a definição dos rumos da literatura dos anos 20, no Brasil, na medida em que sua poesia, de caráter jornalístico e prosaico, causa impacto na geração modernista. O autor também estabelece convergências entre as estéticas de Manuel Bandeira e de Oswald de Andrade, mostrando que, à semelhança de Bandeira, que encontrava temas e formas nas páginas jornalísticas, Oswald registrava as descobertas diárias, de maneira fragmentária, “em instantâneos telegráficos do Pau-Brasil, em 1925”. Esse procedimento comum dever-se-ia a uma mesma consciência de redescoberta do país e a uma mesma percepção da poesia nos fatos.33 Arrigucci argumenta que em Cantiga (poema de Estrela da manhã), o procedimento despojado de Bandeira se mostraria próximo da tradição da lírica musical romântica alemã, representada pelos Lieder, em que era usual a transformação de pequenos poemas líricos em canções de câmara. O autor também chama a atenção para o fato de que Bandeira, além de ser amante da música, desenvolvia uma poesia a que se atribui uma musicalidade intrínseca, o que, de certa forma, explicaria o fato de sua poesia ter sido musicada por vários compositores. Por outro lado, foi através da música que Bandeira aproximou-se do elemento popular, o que era uma tendência no modernismo e também marcou o intenso relacionamento do poeta com figuras importantes do
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Ver Benedito Nunes (1979:12), segundo o qual Oswald de Andrade “entrara em contacto com ‘a comunidade vanguardista de Paris’, principalmente por intermédio de Blaise Cendrars, que sobre ele exerceu duradoura influência”. 33 Arrigucci, 1990:53 e 103. Sobre a percepção da poesia nos fatos, ver Andrade, O., 1972a.
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cenário musical, como Mário de Andrade e Jaime Ovalle (Arrigucci, 1990:168 e 173). Uma nova forma, inaugurada por Manuel Bandeira em nosso cenário modernista, refletiria essa aproximação da linguagem poética com a linguagem ordinária: o verso livre, que marcou a ruptura com a dicção elevada do parnasianismo, aparecendo nitidamente como uma volta da poesia ao natural e à simplicidade (Arrigucci, 1990:59). Pois, se a inspiração é, para Bandeira, imprescindível ao trabalho artístico, o poeta, no entanto, segundo sua concepção, poderia inspirar-se nas coisas simples do cotidiano, já que a poesia se encontra em toda parte, “tanto nas coisas elevadas como nas baixas, tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”, embora seja sempre “inesperada” (Arrigucci, 1990:136-7). Quanto a esta questão, Arrigucci argumenta que o paradoxo essencial da forma de Bandeira está na junção que promove entre o sublime e a linguagem simples do cotidiano; assim, a concepção de poesia de Bandeira oscilaria entre idéias opostas. Bandeira juntaria a concepção de Mallarmé de que a poesia “está nas palavras, se faz com palavras”, equiparando-se ao trabalho técnico, com a concepção de poesia “como transe ou súbita inspiração” (Arrigucci, 1990:130-1). Em Poema tirado de uma notícia de jornal, Bandeira, à semelhança de Blaise Cendrars, realiza, de acordo com Arrigucci, uma mescla de diferentes tradições literárias, fundindo o épico com o lírico e acrescentando a essa fusão a objetividade típica do trabalho jornalístico. Assim, ao caráter narrativo do poema, comum à epopéia, soma-se a maneira isenta de contar a história, em conformidade com os modelos da imprensa moderna. E se o eu lírico não se revela de imediato, percebe-se, ao longo da leitura, o profundo envolvimento do sujeito com o tema. Arrigucci resume o procedimento, a que atribui as características do objetivismo lírico (termo cunhado por Sérgio Buarque para definir a obra de Cendrars): “Uma notícia da vida moderna se transforma num MYTHOS trágico, narrado como uma historieta numa estrutura lírica, cuja fonte (a posição do sujeito) permanece oculta” (1990:108-9). Mas o que mais caracteriza o procedimento modernista nesta sua faceta despojada é talvez o tratamento cômico-sério dado aos temas, como faz Bandeira, por exemplo, em suas crônicas publicadas no jornal A Noite, sob o título geral “Bife à moda da casa”, como faz Mário de Andrade em Macunaíma, e como procedem vários escritores brasileiros, contemporâneos ou não de Bandeira (Arrigucci, 1990: 105-8). Esse procedimento cômico-sério, segundo Mikhail Bakhtin, permeia todos os
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gêneros antigos – o poema bucólico, a fábula, a memória literária, o panfleto, a sátira menipéia – predecessores do romance; e, o que é mais importante, o cômico-sério só se configura quando se tem percepção da vida contemporânea, do tempo presente. A idéia de transitoriedade, ligada a esse tipo de sensibilidade histórica, teria sido tema de representação nos gêneros baixos – ou na “cultura criativa do riso das pessoas comuns” –, que desenvolvem uma nova atitude perante a linguagem: “o presente, a vida contemporânea, eu próprio, meus contemporâneos, meu tempo”, “todos esses conceitos foram originariamente objeto de um riso ambivalente, ao mesmo tempo alegre e destrutivo”. Essa atitude, portanto, teria em muito influenciado, tanto no mundo antigo quanto na Idade Média, a formação da linguagem do romance, pois é no riso popular que se encontrariam suas autênticas raízes folclóricas. De acordo com Bakhtin, o espírito romanesco já existiria nos gêneros cômico-sérios não só porque a realidade contemporânea serve como sua matéria, mas também porque, pela primeira vez, o que é representado não se presta a distanciamentos. A distância épica seria então abolida, passando a predominar a perspectiva da realidade contemporânea, mesmo no caso de o passado e o mito virem a ser tematizados. Ao riso, portanto, caberia destruir tanto o épico quanto a separação hierárquica, pois a imagem distanciada não se presta ao cômico. O romance, ao contrário da epopéia, preservaria a singularidade do passado, pois, de acordo com Bakhtin, “toda contemporaneidade grande e séria requer um perfil autêntico do passado, uma outra linguagem autêntica de um outro tempo”. Ele promove uma revolução radical na linguagem artística ao assumir a incompletude do presente, sua incessante continuação rumo ao futuro. E na medida em que o presente se torna a principal referência, o tempo e o mundo perdem sua completude, assim como o modelo temporal do mundo muda radicalmente: “ele torna-se um mundo onde não há primeira palavra (não há palavra ideal) e onde a palavra final ainda não foi falada”, o tempo e o mundo, dessa maneira, tornam-se históricos pela primeira vez na consciência artística e ideológica (Bakhtin, 1987a:20-31).
O r i tmo d i ssolu to Modernistas franceses e brasileiros, comprometidos com a simplicidade ou com a monumentalidade, diferem, portanto, quanto à maneira de lidar com a tradição, erudita ou popular. A leitura que se faz na
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França de uma nova ordem, de um novo tempo, ou da própria idéia de modernidade, parece corresponder à projeção de Max Weber de que o “destino de nosso tempo” levaria os homens “a banirem da vida pública os valores mais supremos e mais sublimes”. Isso explicaria, segundo Weber (1972:51), o fato de ser intimista, e não monumental, a arte que se conformaria ao mundo de hoje. Ora, nada mais revelador desse tipo de opção por uma linguagem artística mais camerística (intimista) e menos sinfônica (monumental) – e sobretudo dessublimadora – do que as experiências musicais dos modernistas franceses pertencentes ao Grupo dos Seis. A dicção profana que se instaura na França permite a manifestação do humor e do prosaico. O registro elevado torna-se alvo de paródias, enquanto os aspectos banais e pouco edificantes da cidade são assumidos, principalmente os associados à vida boêmia dos cafés-concertos, dos bas-fonds, além de outros ruídos urbanos e suburbanos que se fazem ouvir nas feiras, nos circos e demais espaços populares. Sofisticação e despojamento atuam juntos, criando-se uma sonoridade polifônica, flexível e aberta a uma constante atualização. Esse tipo de apego a formas simples e descomprometidas com temas sacralizados configurou-se também nos salões aristocráticos da França do Antigo Regime, onde se valorizava, segundo Marc Fumaroli (1994), um tom de conversação alegre, ágil, vivo e pouco afetado. Conversar era sobretudo a arte de viver em sociedade, de conciliar o bom senso com o brilho da inteligência, com o espírito, sem entretanto carregar a atmosfera com qualquer sombra de gravidade ou elevação. Se exigia a instrução, a conversação dispensava o pedantismo. Tratava-se do exercício de uma diplomacia, com o auxílio da palavra, que compensaria no plano privado as instabilidades e arbitrariedades da vida pública. Entretanto, essa habilidade política não retirava da conversação seu espaço – a sala de visitas ou o jardim de uma morada privada – e seu tempo – o do lazer – próprios, onde se exercitava um jogo entre iguais cujo árbitro era a figura feminina da anfitriã. Esse modelo constituiria a regra, a tradição, e seria rompido por uma situação excepcional advinda com a Revolução Francesa, que fez com que a conversação cedesse lugar à veemência dos oradores. A alusão ao discurso político dos revolucionários enuncia a diferença substancial entre essa arte de falar entre pares, desenvolvida em salões privados, e a arte da eloqüência, geralmente exercitada em assembléias. A eloqüência – poética da vida oficial, cujo alvo é a multidão – requer premeditação, já que visa a atingir um público
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com demandas políticas específicas; faz uso, portanto, da retórica, um gênero comprometido, desde a sua concepção, com as noções de necessidade, eficácia, utilidade e outras correspondentes. Quando associada aos gêneros que se desenvolvem na democracia – o deliberativo, o judiciário e o epidíctico (o elogio dos grandes homens e da virtude), a eloqüência tende ao monumental. A conversação, ao contrário, desenrolando-se na vida privada, com seu viés aristocrático e pouco sujeito às necessidades, é o reino do imprevisível, onde se valorizam a simplicidade, o jogo, o improviso, a clareza, a leveza e a vivacidade. Quando transposta literariamente, em forma de correspondências, de memórias e de vários outros gêneros, a conversação não perde o viço, qualidade que lhe advém do contato constante com um cotidiano de interações ininterruptas, mesmo que restritas aos pares dos salões aristocráticos. Atualiza, em certo sentido, os diálogos de Platão, como o Banquete, e tem seu modelo moderno nos Ensaios de Montaigne, que consistem numa “vasta improvisação”. Assim, preservam, segundo Fumaroli, a espontaneidade, o tom amigável, os meandros imprevistos de uma conversação familiar e socrática não somente com o leitor, que é para Montaigne “meu semelhante, meu irmão”, mas também com esta sociedade excelente de Antigos, filósofos, poetas, heróis, que graças a Montaigne deixam de ser livros e se tornam interlocutores de uma palestra geral e apaixonada (1994:120-41).
Um dos aspectos mais importantes da conversação escrita é, pois, o fato de ela configurar-se como um gênero literário interrompido, que entrelaça a palavra e a escrita, a memória e a atualidade, e que coloca a serviço da política a “diplomacia do espírito”, com seus instrumentos hermenêuticos e críticos (Fumaroli, 1994:120-41). Pode-se vislumbrar algum tipo de correspondência entre essa tradição francesa da simplicidade – na conversação, oral e escrita, e na música – e a poética modernista no Brasil que questiona o discurso empolado dos bacharéis, preso a compromissos oficiais, e propõe uma escrita colada à linguagem que se constrói no cotidiano. Manuel Bandeira, que tende a se orientar por uma certa moderação, conciliando o humilde com o sublime, nos dá um exemplo radical desse procedimento que se fundamenta na simplicidade, excluindo o supérfluo em quaisquer de suas manifestações e impedindo a manifestação do sublime: Arte de amar
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Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma, A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação, Não noutra alma. Só em Deus – ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.34
Este exercício da conversação à francesa, que se desenrola na vida privada e prescinde, de certo modo, dos compromissos da vida pública, também é bom para pensar as condições e o universo próprios dos nossos músicos populares, lançando uma ponte, pavimentada pela simplicidade, entre eles e os literatos modernistas anteriormente mencionados. Em vez dos salões do Antigo Regime, tais músicos freqüentam os redutos boêmios cariocas, que, embora humildes, atualizam através da atitude gauche o alheamento aristocrático com relação à utilidade. Alguns desses músicos – entre os quais Noel Rosa –, desenvolvem uma linguagem ágil e isenta de gravidade, como se libertos das exigências da necessidade – no caso, a burguesa. Adotam uma atitude incorporativa para com os temas e expressões triviais que se criam constantemente no cotidiano da cidade, cada vez mais transformada pelo processo de modernização. Aliás, o cultivo da simplicidade por esses músicos populares que surgem nos anos 20 em muito se deve, certamente, não só à maneira pela qual interpretam as novidades introduzidas por esse processo de modernização, como o rádio, o microfone e as novas técnicas de gravação, entre outras, mas também à proliferação de estilos no Rio de Janeiro. Se o Rio de Janeiro da época é uma extensão da província, não deixa de ser, para alguns segmentos, uma extensão de Paris; ao mesmo tempo, os setores de classe média tendem progressivamente, com o advento do cinema falado e outras tecnologias, a receber forte influência norte-americana. A cidade se complexifica, exatamente porque começa a conviver com diferenças crescentes, o que contribui para o enriquecimento da linguagem. Surgem novas opções, entre as quais se destaca o cultivo de formas mais simples, introduzidas pela
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Bandeira, 1993:288. O livro Belo belo, do qual se extraiu este poema, foi publicado em 1946.
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moda ou mesmo provenientes de novas configurações sociais, como os segmentos boêmios do lumpesinato, que aderem sem pejo ao vocabulário “baixo” que se cria nos botequins e outros redutos do gênero. Pelo que se depreende dos estudos sobre música popular, um bom número de compositores cariocas teria aceitado essa provocação moderna, mostrando-se, através da linguagem musical que passaram a desenvolver, ágeis para captar os novos estilos de vida desenvolvidos no Rio de Janeiro e para lidar com os meios de comunicação que surgiram no período. Atentos às transformações e às realidades já estruturadas, mostraram-se flexíveis para experimentar formas diferentes, compatíveis com uma consciência voltada para o presente e para os seus valores transitórios, mutáveis. Assim, as narrativas históricas enfatizam um corte, no final dos anos 20, com o padrão cultural que vigorava desde o início do século, visualizando um momento de transição de um registro mais atado à sensibilidade rural para uma estética de conformação aos padrões urbanos que se delineavam. Um dos instrumentos mais importantes para a realização dessas mudanças teria sido certamente o rádio, que passou a veicular a música que a população negra começara a desenvolver, a partir dos anos 20, nos morros do Rio de Janeiro, pouco consumida até então por outros segmentos da cidade.35 Sérgio Cabral argumenta que o surgimento em 1928 da primeira revista especializada em música, a Phono-Arte, idealizada por Cruz Cordeiro, um dos primeiros colunistas de discos do país, é bastante representativo das mudanças ocorridas no campo da música popular nesse período, assim descritas: [...] as gravadoras haviam trocado o antigo processo mecânico de gravação de disco pelo processo elétrico; as estações de rádio adquiriram mais potência e o aparelho receptor passou a ser um sinal de status da classe média; três dias antes de ser fundada a revista, nascia no bairro do Estácio de Sá a primeira escola de samba, a Deixa Falar; uma nova geração de compositores e cantores (Mário Reis, Noel Rosa, Almirante, Carmen Miranda, Ismael Silva, Ari Barroso e outros) surgia naquela fase; nasciam novas gravadoras e novas estações de rádio e, pela primeira vez, era gravado um samba com instrumentos de bateria de blocos e escolas de sam-
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Ver Basbaum, 1982.
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ba, o Na Pavuna, de Candoca da Anunciação (Homero Dornelas) e Almirante (1979:140-1).
Na Pavuna, samba criado por Homero Dornelas e Almirante em 1930, é realmente citado por vários pesquisadores de música popular como composição inaugural desses novos tempos, no que toca tanto à letra quanto ao ritmo. Sérgio Cabral (1979:63-4) é um dos autores que ressaltam a originalidade desse samba estranho para a época, por trazer pela primeira vez de maneira explícita em seu acompanhamento os sons dos batuques dos negros e por explorar em seus versos um tema que depois se tornou corrente no Rio de Janeiro: o bairrismo. De acordo com relato de Almirante, a composição realizou o projeto de se criar um tipo de acompanhamento para o samba que ele e seu grupo já vinham idealizando havia algum tempo, recorrendo-se a pandeiros, tamborins, cuícas, ganzás, surdos e outros instrumentos utilizados pelas escolas de samba (apud Cabral, 1990:64). E Sérgio Cabral afirma que, apesar do estranhamento provocado pelo samba de Almirante e Dornelas, a música não apenas alcançou grande repercussão popular como criou um estilo que foi assimilado por vários compositores. Na Pavuna, além disso, teria criado um mercado de empregos para ritmistas, pois foi a partir deste samba que se passou a adotar, nos arranjos orquestrais, instrumentos de percussão, o que levou as gravadoras a absorver os profissionais emergentes. Assim, teria aparecido uma nova categoria de ritmistas profissionais, como João da Baiana, Tio Faustino, Alcebíades Barcelos (Bide), Armando Marçal, Bucy Moreira, Raul Marques, Ministro da Cuíca e outros (Cabral, 1990:69-70). Foi exatamente nessa época, como mostra Roberto Moura (1988:30-1), que o samba desenvolveu uma linguagem própria, notadamente carioca, e diferenciou-se de formas maxixadas ou influenciadas pelo tango. E, segundo ele, essa nova forma harmonizou-se com a estrutura organizacional e com a representação das escolas de samba que surgiram no final dos anos 20. Com relação ao samba desenvolvido no Estácio, João Máximo e Carlos Didier afirmam que se ele coexistiu com o da Cidade Nova, dele diferiu rítmica, melódica e poeticamente. E acrescentam: As dessemelhanças rítmicas talvez se devam a ter sido ele criado a partir dos refrões cantados nos improvisos de partido alto e rodas de batucada, herdando destes uma pulsação por si só já diferente da dos sambas de Si-
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nhô, nos quais ainda se encontram vestígios não só do maxixe, mas também do lundu. [...] Se na Cidade Nova as festas são animadas por músicos treinados [...], no Estácio de Sá, salvo por um ou outro violão ou cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro. Ou acompanhamento ainda mais rudimentar [...]. Quanto à parte poética, o sambista do Estácio de Sá canta em suas letras, da maneira mais simples, a vida dos morros e das casas de cômodos, das populações pobres, dos malandros e de outros indivíduos à margem da sociedade (1990:118-9).
Tentando tornar mais claras essas considerações estéticas, é possível alinhavar algumas características do samba que, nos anos 20, se desenvolve nos morros do Rio de Janeiro. O samba praticado pela geração anterior de Donga e Sinhô, embora originado da síncope afro-lusitana, sofre bastante a influência do maxixe, principalmente por conta de sua execução por músicos de orquestras das gravadoras e do teatro musicado, bastante familiarizados com aquele ritmo. A pulsação do samba de Donga em muito se orienta, portanto, pela coreografia de uma dança de salão em que o ritmo e o andamento advêm do tango, da havaneira e da polca, a despeito de suas raízes africanas.36 Nos morros, desenvolve-se, de forma diferente, um samba cuja pulsação tenta se adaptar aos movimentos coreográficos dos ranchos e das escolas de samba que então se constituem, obedecendo às evoluções de passistas individualizados. Chamou-me a atenção o fato de que tanto os historiadores quanto os próprios atores envolvidos no processo de produção musical do período enfatizam o corte que se verifica, no final dos anos 20, com as transformações produzidas no samba. Um dos pontos analisados por uns e outros refere-se a um gesto inaugural dos sambistas do Estácio, no sentido de criar, no plano musical, um tipo de percussão comprometida com os elementos – negros – da cultura popular associados ao “primitivo”. Assim, as narrativas reforçam o fenômeno de que esta nova modalidade de samba incorpora um elemento negro que não mais se associa a um estilo de vida pequeno-burguês, como o das comunidades baianas da Cidade Nova e adjacências. Um novo recorte teria sido feito, através do qual os sons começariam a se originar de redutos ligados à boemia, ao carnaval e sobretudo ao cotidiano das populações faveladas. E o repertório “urbano” que passaria a ser apreciado e divulgado pela mídia teria sido sobretudo o do lúmpen, pro-
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Tinhorão, 1974; e Enciclopédia da música brasileira, 1977.
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duzido em meio à pobreza e a rituais considerados no mínimo primitivos, que de início recorriam muito ao improviso. Essa nova condição do músico popular contrastaria com a da geração anterior de sambistas e chorões, como Donga, Sinhô e Pixinguinha, que, de acordo com vários relatos – como os de Lúcio Rangel (1965) e Almirante (1963) –, freqüentavam os saraus da baiana “respeitável” conhecida como Tia Ciata, à rua Visconde de Itaúna, nº 117. Lúcio Rangel, por exemplo, faz menção ao fato de Sinhô, pianista do Clube Flor do Abacate, no Catete, ser “amigo de políticos e escritores importantes, íntimo de José do Patrocínio Filho e de Olegário Mariano”. Rangel (1965:243) também se reporta aos “versos algo rebuscados” e pernósticos de Sinhô, o que talvez seja um reflexo de sua condição de aspirante a um status superior. Esse comentário de Lúcio Rangel a propósito de Sinhô exige, no entanto, um reparo, pois Sinhô não produziu apenas versos rebuscados. Se ele criou imagens excessivamente floreadas, como, por exemplo, “o beijo puro/ da catedral do amor”, que aparece em Jura, samba de 1928, ele exibe, por outro lado, em Ora, vejam só, samba de 1927, uma sensibilidade afinada com a dos músicos do morro que desenvolvem a poética da malandragem: Ora, vejam só A mulher que eu arranjei Ela me faz carinhos Até demais, chorando Ela me pede meu benzinho Deixa a malandragem Se és capaz A malandragem Eu não posso deixar Juro por Deus E por Nossa Senhora É mais certo Ela me abandonar Meu Deus do Céu Em maldita hora.
Mário Reis interpreta este samba de maneira bastante compatível com o espírito humilde desta composição de Sinhô, que, tal como no modelo franciscano, se constrói utilizando uma linguagem coloquial e descomprometida com ideais elevados, não prescindindo, portanto, de uma certa dose de grotesco. O arranjo, alegre e sofisticado, conta, além
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do violão e dos instrumentos tradicionais de percussão, com oboé, flauta e saxofone. Os dois exemplos citados sugerem que Sinhô, vivendo sem dúvida um momento de transição na música popular, acaba experimentando um e outro registro: um mais colado ao sublime, recorrendo a um palavreado difícil, e outro, à maneira da geração mais nova de sambistas, afinado com o humilde. Mas, reparos à parte, o fato é que essas duas gerações de sambistas costumam ser distinguidas tanto em função da estética quanto do estilo de vida que desenvolvem. André Gardel, por exemplo, descreve a geração mais antiga, que se reúne na Cidade Nova, como uma espécie de “aristocracia da ralé”: Na zona da Cidade Nova, para onde se dirigem os negros baianos, mais organizados em torno do candomblé e festividades diversas – ranchos, sociedades recreativas, pagodes etc. – saídos da zona do cais do porto pela então rua do Sabão, atual Buenos Aires [...] sendo uma espécie de aristocracia da ralé, em contato com a classe média, ocorrem as festas das “tias baianas” das quais a mais famosa é Tia Ciata. A perseguição e proibição da polícia a estas festas primitivas e desordeiras faz com que surja um tipo de relacionamento com o poder, por parte dessa aristocracia, velho nosso conhecido: “a dialética da malandragem”. Por meio de “formas de sobrevivência, conveniência, devoção e diversão” os baianos criam sua unidade aberta a interferências culturais diversas, plasmando uma identidade. A casa de Tia Ciata era a capital da “Pequena África”, espaço freqüentado também por figurões e gente bem relacionada. Seu marido chega a ter um emprego em posto privilegiado no baixo escalão no gabinete do chefe da polícia, em troca da retirada de um encosto do presidente Venceslau Brás por Tia Ciata [...] (Gardel, 1996:83).
Os sambistas do morro – como os do Estácio –, por sua vez, tematizavam em suas obras vivências boêmias e desenvolviam um vínculo com o universo da malandragem ainda mais forte do que o dos músicos da Cidade Nova. Para tanto adotavam um tom humilde que muitas vezes se realizava com a linguagem chula com que representavam seu cotidiano, ou então, ao estilo de Manuel Bandeira, conciliavam o baixo com o sublime. Bandeira, como vimos, ao lado de Jaime Ovalle e outros escritores modernistas, compartilhava com alguns músicos populares certos redutos da vida noturna do Rio de Janeiro. Monica Pimenta Velloso (1996:29) afirma, quanto a esta questão, que esses escritores cariocas tendiam a pensar tanto a cidade quanto o país através de suas ruas. Assim, o que antes era ocul-
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tado pela República modernizadora – como o submundo, a marginalidade, a boemia e as ruas –, passa a ser valorizado como “espaço pleno de significado”. Configura-se portanto uma situação em que os sambistas, tal como Bandeira, muitas vezes são sujeitos a “alumbramentos”, enquanto Bandeira, tal como os sambistas, assume uma perspectiva existencial em sua poesia, como se vê em Gesso, poema de O ritmo dissoluto:37 Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova – O gesso muito branco, as linhas muito puras – Mal sugeria imagem de vida (Embora a figura chorasse). Há muitos anos tenho-a comigo. O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja. Os meus olhos, de tanto a olharem, Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico. Um dia mão estúpida Inadvertidamente a derrubou e partiu. Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a figurinha que chorava. E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina... Hoje este gessozinho comercial É tocante e vive, e me fez agora refletir Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
A própria imagem do gesso, tal como a do barro, sugere a transitividade, a contemporaneidade, escapando à representação essencialista da estátua de bronze, ou mármore, que, evocando conceitos ou acontecimentos heróicos universais e atemporais, remete à idéia de imobilidade, de impassibilidade. O “gessozinho comercial” da estátua doméstica de Bandeira evoca a possibilidade de vida, na medida em que sua porosidade permite sua impregnação pela “humanidade irônica de tísico” do poeta, assim como não se mostra imune à contaminação do tempo, que, “com suas feridas”, escurece “ainda mais o sujo mordente das pátinas”. Em Não sei dançar, de Libertinagem (1930), Bandeira assume o aqui e agora da terça-feira gorda de Carnaval, mos-
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Bandeira, 1993:193-4. O ritmo dissoluto foi publicado em 1924, em Poesias, junto com A cinza das horas e Carnaval.
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trando-se familiarizado com o “salão de sangues misturados” que “parece o Brasil”: Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... Abaixo Amiel! E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff. Sim, já perdi pai, mãe, irmãos. Perdi a saúde também. É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band. Uns tomam éter, outros cocaína. Eu tomo alegria! Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda. Mistura muito excelente de chás... Esta foi açafata... – Não, foi arrumadeira. E está dançando com o ex-prefeito municipal: Tão Brasil! De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil... Há até a fração incipiente amarela Na figura de um japonês. O japonês também dança maxixe: Acugêlê banzai! A filha do usineiro de Campos Olha com repugnância Para a crioula imoral. No entanto o que faz a indecência da outra É dengue nos olhos maravilhosos da moça. E aquele cair de ombros... Mas ela não sabe... Tão Brasil! Ninguém se lembra de política... Nem dos oito mil quilômetros da costa... O algodão do Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa? Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos. A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca. Eu tomo alegria! (Bandeira, 1993:203.)
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Bandeira sublima esse tipo de experiência humilde, povoada por tocadores de jazz-band, por autoridades, por moças da elite e da plebe, associando-a ora à melancolia, ora à alegria. Apesar de moderno, diz-se inspirado, tomado pelo estado poético. Mas trata-se de um alumbramento que advém do corpo, e não da alma, como se vê em Evocação do Recife (1925): [...] Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento [...] (Bandeira, 1966:116.)
Este tipo de sensibilidade aparece com freqüência no samba desenvolvido nos morros do Rio de Janeiro no final dos anos 20, que se concentra na temática da orgia, malandragem ou vadiagem, sugerindo, segundo Decio de Almeida Prado, um universo de “mulheres e pensões baratas, bebidas fortes, homens sem ganha-pão definido”. Almeida Prado vê uma sensibilidade semelhante na marchinha que se desenvolve na mesma época e que, tal como o samba, consagra a cidade, em particular o Rio de Janeiro. De fato, o samba e a marcha se tornaram hegemônicos a partir de 1930, substituindo a modinha e o maxixe, que vigoravam até então. Figuras associadas aos gêneros anteriores, como a “cândida sertaneja”, foram então substituídas por tipos menos ingênuos, como a “mulata do morro” e a “moreninha da praia”. Almeida Prado cita o exemplo de Fita amarela, samba de Noel Rosa, de 1932, que incorpora a própria morte ao espírito carnavalesco: “O choro fúnebre virava assim o chorinho de flauta de milhares de seresteiros, capadócios, vadios e boêmios anônimos” [...] (Prado, 1989/90:18-21). Não há como negar as experimentações realizadas na marchinha, em que letra e melodia, cúmplices na defesa do espírito carnavalesco, comentam-se uma à outra de maneira magistral. Mas sua forma musical simples e suas letras de um ingênuo teor malicioso destoam da sensibilidade gauche dos sambistas. As marchinhas se mostram mais compatíveis com um espírito carnavalesco pequeno-burguês, mais afeito ao prazer regrado, domesticado. Ao contrário do samba, que é produzido nos morros, a marchinha, segundo José Ramos Tinhorão (1974:121), é criada nos anos 20 por compositores da classe média.
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Esses músicos teriam sofrido grande influência das marchas portuguesas aqui difundidas, no início do século, por companhias de teatro musicado, e posteriormente do ragtime norte-americano. De acordo com os pesquisadores, ela aparece no final do século – mais precisamente em 1899, com Ó abre alas, de Chiquinha Gonzaga –, com um ritmo marcado pela observação da dança negra e de uma forma diferente da que se configurou sob a influência portuguesa. Lúcio Rangel (1965) chama a atenção, no entanto, para o ritmo lento e para a melancolia dessa marcha-rancho de Chiquinha Gonzaga, o que a diferencia bastante das alegres e irreverentes marchinhas que surgem no final dos anos 20, definitivamente associadas ao carnaval e a um padrão mais próximo da classe média. Era comum nessa época os compositores de marchinhas e sambas se dedicarem à sátira ou à paródia política, tal como descreve Rangel: Freire Júnior, autor da letra de Ai, Seu Mé, passou momentos de aperto em uma delegacia policial por ter brincado com o presidente Artur Bernardes; Washington Luís foi cantado em Paulista de Macaé e em O Barbado foi-se; Rui Barbosa, em Côco de respeito e Papagaio louro; Getúlio Vargas, em Tenha calma, Gegê, do negro Getúlio Marinho [...] (1965:244).
Os compositores de marchinhas carnavalescas constroem uma identidade bastante diferente da apresentada pelo sambista, constituída basicamente a partir do estranhamento dos padrões associados ao universo pequeno-burguês. Enquanto os músicos do morro criam um espaço alternativo, onde exercitam de maneira radical não apenas a arte da malandragem como a linguagem adequada a ela, os autores de marchinhas destilam o veneno da irreverência, sem pretender, no entanto, abalar as bases do seu próprio mundo. O alvo do desacato é tanto o personagem político, que, quando afrontado pelo senso de humor fino e moderado do fazedor de marchinhas, tende até a tirar proveito da brincadeira, utilizando-a para construir uma persona mais popular, quanto as figuras banais do cotidiano do compositor, como a “velhinha” cantada por Lamartine Babo em 1934: Não mostres a vovó minha conta da pensão Deixa a velhinha viver na ilusão Não vás dizer a ela que um mil-réis vale um tostão Deixa a velhinha viver na ilusão.
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Estribilho Respeita a idade dela Está quase no fim. Castigo anda a cavalo Mas viaja em Zeppelin. [...]
Bide, integrante da primeira geração de músicos do Estácio, adapta-se bem ao perfil de sambista conformado nos meios boêmios. A malandragem, sua música de estréia, gravada por Francisco Alves em 1927, já denota uma sensibilidade pouco compatível com o modelo bem-comportado dos “almofadinhas”: A malandragem eu vou deixar Eu não quero saber da orgia Mulher do meu bem-querer Esta vida não tem mais valia Mulher igual para a gente é uma beleza Não se olha a cara dela Porque isso é uma defesa Arranjei uma mulher Que me dá toda vantagem Vou virar almofadinha Ou tentar a malandragem [...] Esses otários que só sabem É dar palpite Quando chega o carnaval A mulher lhe dá o suíte Você diz que é malandro Malandro você não é Malandro é Seu Abóbora Que manobra com as mulhé
Esta composição de Bide é bastante representativa do momento de transição do samba maxixado para o novo tipo, marcado pelos batuques. Quando se ouve a gravação de época, percebe-se, no entanto, que A malandragem foi criada num registro ainda muito preso ao desenvolvido por Donga em Pelo telefone e por outros sambistas da primeira geração. A letra – carregada de gírias e construída sem
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maiores preocupações com coerência – e a música não apresentam nenhuma sofisticação, nem tampouco trazem marcas de uma autoria individual, assemelhando-se às criações coletivas que caracterizavam os sambas produzidos no terreiro da Tia Ciata. Francisco Alves, ao interpretar esse samba, parece se dar conta de que a composição pede um registro mais coloquial, diferente do tom grave que costuma adotar em suas diluições do bel canto. O arranjo, no entanto, tal como o dos sambas-maxixados, é tosco, semelhante ao das bandas de coretos do interior. Na ficha técnica do disco, informa-se, por exemplo, que a ausência, nesta faixa, “de um acompanhamento mais adequado ao samba, como pandeiro, violão etc.”, deve-se à precariedade da tecnologia da época, o que demandava “a utilização de uma orquestra (incluindo sopros, como a tuba, aqui empregada para marcar o ritmo)”.38 Claudia Matos, em sua análise da temática da malandragem no Rio de Janeiro (1982:13-4), aborda a questão de maneira cuidadosa, evitando, por exemplo, interpretar a figura do malandro de maneira muito colada ao contexto social. Assim, segundo ela, se o malandro tem ligação com seu personagem homônimo da vida social, não se confunde inteiramente com ele. A autora se propõe concentrar a atenção no texto malandro, apesar de admitir as relações íntimas entre esse tipo de texto e o contexto social e político, o que a faz examinar as condições históricas em que se produziu o fenômeno da malandragem. A partir dessas reflexões iniciais, Matos (1982:39-43) afirma que no final dos anos 20 não só o personagem propriamente dito do malandro surge na música popular como esta própria noção de malandragem associa-se à de sambista, principalmente o referenciado à nova geração do Estácio. Esses sambistas do Estácio, juntamente com os de outros morros – todos descendentes de escravos –, teriam sido os primeiros a assumir, com orgulho, a denominação “malandros”. Esse tipo de postura, além da temática intimamente ligada à boemia, tornava-os alvo de críticas dos sambistas pertencentes à geração anterior. De fato, quase todos os pesquisadores de música popular reconhecem a precedência do Estácio quanto à criação da escola de
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Ver História da música popular brasileira: Bide, Marçal & Paulo da Portela. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
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samba e do ritmo que a acompanha, assim como quanto à iniciação da prática da malandragem. Roberto Moura afirma que os mangueirenses sempre trataram os sambistas do Estácio como mestres, procurando-os para vários tipos de aconselhamento musical. O próprio termo “escola”, que foi cunhado pelo bloco carnavalesco Deixa Falar, do Estácio, configurando a primeira experiência de escola de samba, revela que seus componentes tinham veleidades de “respeitabilidade” e de “ascensão social através do samba” (Moura, 1988:30). De acordo com Tinhorão, o Estácio seria “o maior celeiro de sambistas de fins da década de 20 até o início da II Guerra Mundial”, ressaltando a importância da geração pioneira representada principalmente pelos irmãos Alcebíades (Bide) e Rubem Barcelos, por Ismael Silva, Nílton Bastos, Baiaco e Brancura. Uma das circunstâncias que confeririam ao bairro condições propícias para abrigar compositores populares seria a existência, nas proximidades, da zona de prostituição do Mangue. Os “bambas da zona” se reuniriam nos bares fronteiros do largo do Estácio, exercendo uma espécie de atividade empresarial que explorava o jogo e a prostituição e que lhes permitia, entre um expediente e outro, se dedicarem à vida boêmia e à composição de músicas carnavalescas (Tinhorão, 1982a:1-2). O Estácio teve portanto precedência não só no desenvolvimento de um samba mais apropriado aos ranchos carnavalescos como também na constituição de uma boemia musical que extraía sua matéria deste tipo de vivência cotidiana em que se cultivava e se cultuava o prazer (MPB Pesquisa, 1982d:3). Além do Café Apolo e do Bar Pavão, constantemente citados como redutos boêmios do Estácio, Bide, em seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som, refere-se também a uma sinuca da praça Tiradentes, bastante freqüentada por ele e outros sambistas, assim como descreve a maneira improvisada de se fazer os sambas nos botequins, onde as melodias saíam “de cabeça”. Depreende-se de seu relato que o sambista, nesse universo, era um dublê de compositor e “valente”, apto para a prática de capoeira e habituado ao porte de armas. Ismael Silva, cujo compromisso sempre foi com o samba e o carteado, é outra figura que – “simpática e sorridente, terno branco imaculado, camisa de colarinho impecavelmente engomado” (Tinhorão, 1982a:1-2) –, compõe com bastante força essa atmosfera marcada pelo desregramento e avessa a um tipo de ordem pequeno-burguesa. Ismael é também citado como precursor do samba que se desenvolve nos morros, atribuindo-se às suas invenções melódicas o
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estabelecimento de outros parâmetros para este gênero musical. O compositor teve várias composições gravadas pela dupla Francisco Alves-Mário Reis entre o final dos anos 20 e o início dos 30, e mais tarde fez várias parcerias com Noel Rosa (MPB Pesquisa, 1982c). Tanto Ismael quanto Bide desenvolveram, desde o início de suas carreiras, a temática da malandragem. Ismael Silva utiliza esse tema ao escrever a letra de Se você jurar, de 1931, em parceria com Francisco Alves e Nilton Bastos. E cumpria às escolas de samba recém-instituídas – e ao samba que nelas se desenvolvia – aglutinar compositores provenientes de redutos diferentes. Assim é o caso dos sambistas Bide, Armando Marçal e Paulo da Portela, tal como relata Sérgio Cabral: “Bide no Estácio, onde nasceu a primeira escola de samba, a Deixa Falar; Marçal na Leopoldina, de onde saiu a Escola de Samba Recreio de Ramos; Paulo da Portela em Oswaldo Cruz, de onde surgiu a Escola de Samba da Portela”. E complementa: “Todos compondo a mesma música e lançando-se como instrumentistas de percussão, tendo Bide ainda a seu crédito a invenção do surdo e da marcação”. Bide e Marçal, em parceria e individualmente, gravaram mais de 100 músicas, cujos intérpretes foram cantores bastante reconhecidos na época, como Francisco Alves, Mário Alves, Carmen Miranda e outros. Mas a produção da dupla que realmente se celebrizou foi o samba Agora é cinza, gravado originariamente por Mário Reis em 1933 (Cabral, 1982:2). Atribui-se também comportamento boêmio a Cartola (Angenor de Oliveira), da Mangueira, assim como sempre se traça seu perfil de malandro – inscrito, aliás, no próprio apelido do compositor, já que o chapéu compunha o traje completo que o malandro gostava de usar. Relatando sua trajetória na Mangueira, Cartola diz que no início (final dos anos 20) havia no morro dois tipos de blocos: os de “sujo”, aos quais ele pertencia, e os familiares, aos quais o acesso lhe era interditado. Segundo ele, seu grupo fazia o carnaval “à vontade”, saindo “pra qualquer negócio, a fim de briga”, o que provocava o desprezo das moças de família (Moura, 1988:23). Roberto Moura descreve esse aspecto marginal de Cartola e de outros “bambas” do morro: [...] gente inquieta e aventureira que nos anos 20 circulava pela Cidade Nova e Saúde; puxava samba no Morro da Favela e Gamboa; arranjava biscate no Catumbi e Morro da Providência; agitava em São Carlos e pelo Estácio. Perto da praça Onze, ele [Cartola] conheceu um ponto famoso de
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batuqueiros e sambistas junto à balança de pesagem de mercadorias [...] – lugar onde se arranjava uma grana descarregando caminhões, e que à noite reunia os bambas do local. As casas dos rancheiros, das grandes tias baianas, como a casa famosa da Tia Ciata, na Visconde de Itaúna, era mais pra gente “de origem”, aparentada. Para a gente sem eira nem beira das favelas era mais fácil chegar às reuniões do Bar do Apolo, onde se encontravam Ismael Silva, Bide, Francelino, Brancura, Baiaco, Tibério, o grande Rubem Barcelos, gente que estava fazendo um samba novo, que não era mais coisa de rancho, nem mesmo parecido com o samba amaxixado que Sinhô lançara [...] (1988:29).
Claudia Matos observa que as trajetórias de vida de alguns desses músicos citados, pertencentes aos redutos malandros dos morros do Rio de Janeiro, são bastante reveladoras desse tipo de comportamento desregrado e colado à sua imagem romântica. Por exemplo, Nilton Bastos (parceiro de Ismael Silva) e Rubem Barcelos (irmão de Bide), morreram muito jovens, por conta de uma tuberculose; o primeiro aos 32 anos e o segundo aos 23. Baiaco, em 1935, morreu com uma úlcera estomacal; Brancura, no mesmo ano, morreu enlouquecido; e Mano Edgar foi assassinado em pleno Natal de 1931 durante um jogo de cartas. Enquanto estes sambistas cumpriram um destino trágico, os músicos da geração anterior, como Donga, Pixinguinha e João da Bahiana, adotaram um estilo de vida mais comportado e chegaram até a velhice (Matos, 1982:44). Os músicos do morro representaram, portanto, de maneira exemplar, um estilo de vida marcado pelo imponderável em diversos planos, quer se trate da vida amorosa, do café da manhã regado a cachaça, ou até mesmo da sobrevivência à custa dos mais diversos expedientes – do pequeno biscate diário à composição musical produzida em mesa de bar e ali mesmo negociada, por uns poucos trocados. A dramatização desse tipo de experiência pelos sambistas em muito coincide com a imagem que projeta o Rio de Janeiro, nos anos 20, como a cidade do carnaval e da preguiça. Constrói-se esse tipo de representação num momento de franca competição cultural entre Rio e São Paulo, em que a capital federal aparece como o lugar por excelência do lazer, em contraposição a São Paulo, que se orientaria pelo ideal de seriedade e pela valorização do trabalho. Monica Pimenta Velloso mostra que, embora com um teor diferente, preso a certo tipo de determinismo geográfico, essa imagem do Rio de Janeiro já é esboçada por Euclides da Cunha, que atribui ao “habitante do litoral” a tendência a consumir tudo o que é importado, das idéias às
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modas. A partir de 1920, entretanto, principalmente através das crônicas e charges publicadas pelo Correio Paulistano, a cidade do Rio de Janeiro é qualificada historicamente, e não apenas por suas características climáticas e metropolitanas. Este jornal paulista passa então a denunciar “a promiscuidade das praias do Rio, a futilidade dos hábitos cariocas, o aspecto anárquico da economia, a violência e a amoralidade do carnaval” (Velloso, 1993). Menotti del Picchia se destaca nas páginas do Correio Paulistano, salientando a capacidade de São Paulo de reunir “energias aparentemente contraditórias”, como a ação e a criação, e de ser “simultaneamente Hércules e Apolo”, ou, em outras palavras, um “titã com miolos de Minerva” (apud Velloso, 1993). Mas retomemos a questão do estilo desenvolvido por essa segunda geração de sambistas, pois há ainda outro ponto a ser considerado. Trata-se do fato de que, apesar da linguagem “baixa” que assumem – coerente com suas atitudes na maioria das vezes irreverentes –, a criação desse tipo de concepção musical propiciou os contatos entre a cidade e os morros, que, a partir dos anos 20, se tornaram os principais redutos do samba batucado. Os compositores do Estácio e da Mangueira, por exemplo, foram ampliando cada vez mais seus contatos com músicos das classes média e alta da cidade. Noel Rosa, ao que consta, teria sido um dos primeiros músicos desse segmento branco e de classe média a subir os morros, como os da Mangueira e do Estácio, e conviver com os sambistas desses redutos. Para me livrar do mal, samba que Noel fez em parceria com Ismael Silva em 1932, é representativo desse tipo de encontro. O compositor do Estácio teria apresentado a Noel a primeira parte do samba, que Noel concluiria “em tom menor e num andamento mais cadenciado” (Moura et alii, 1988:132). Mas os sambistas do morro relatam que, pelo menos no início, eles se submeteram ao poder econômico e ao status de compositores e intérpretes divulgados no rádio e em discos, como Francisco Alves e Mário Reis, negociando com eles a parceria de suas músicas. É bastante citado, por exemplo, o fato de Bide ter vendido a Francisco Alves, em 1927, a parceria do samba A malandragem, tornando-se, a partir desta transação comercial, um dos primeiros compositores de escola a gravar samba em disco (Valença, 1982a). De qualquer maneira, segundo os relatos da maioria dos historiadores, foi a partir dos anos 20 que o samba produzido nos morros começou a ser valorizado como mercadoria e a ser consumido por segmentos das classes alta e média da cidade.
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Com a criação dos desfiles carnavalescos, por exemplo, os sambistas descem do morro para a avenida. O samba passa a contar com um público cada vez mais heterogêneo, que o consome não só através dos espetáculos dos desfiles, como também através dos novos meios de comunicação de massa, como o rádio, a indústria fonográfica tecnicamente aperfeiçoada e o cinema. Claudia Matos lembra que o filme musical de Humberto Mauro, de 1933, Voz do carnaval, inaugura “o ciclo carnavalesco da indústria cinematográfica brasileira”, que chega ao seu apogeu com o musical Alô, alô, carnaval, de 1936.39 O carnaval, a propósito, permite a aproximação do “elevado” com o “baixo”, principalmente a partir do final da década de 20. Em 1929, por exemplo, sob a promoção da revista O Cruzeiro, vários músicos eruditos – como Luciano Gallet e Lorenzo Fernandez – e escritores da Academia Brasileira de Letras – Adelmar Tavares, Humberto de Campos e Olegário Mariano – se reúnem para premiar as melhores canções para o carnaval do ano seguinte (Valença, 1981). O evento conta com a participação de Jaime Ovalle, que atua como secretário (Cabral, 1990). A partir dos anos 30 o próprio Estado interveio nas festividades carnavalescas e nas manifestações musicais populares em geral; o carnaval se oficializou, por exemplo, em 1933, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro se encarregou de uma série de promoções (Matos, 1982). A partir de 1932, Pedro Ernesto, então prefeito, concedeu subvenções aos blocos, sociedades e escolas de samba, como a Deixa Falar, que se apresentou no desfile promovido pelo Jornal do Brasil com o enredo “A primavera e a Revolução de Outubro”, numa alusão nítida aos acontecimentos políticos de 1930. Segundo Sérgio Cabral (1979:57-8), começava assim um “namoro” entre Vargas e o carnaval carioca. Cabral refere-se também ao fato de cantores populares, como Mário Reis e os integrantes do Bando da Lua, terem freqüentado, à época, as recepções promovidas por Vargas no Palácio Guanabara. Roberto Moura afirma que também nesse momento começaram a se interessar pelos desfiles carnavalescos representantes do mundo intelectual como Nássara e Orestes Barbosa, que divulgavam o evento através do jornal Mundo Sportivo. Em 1932, este jornal se encarregou de compor uma comissão julgadora para o desfile, cujos convidados
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Ver Matos, 1982:34-45.
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foram o casal Eugênia e Álvaro Moreira, Orestes Barbosa, Raimundo Magalhães Jr. e outros (Moura, 1988). E é justamente na década de 30, com a ascensão de Vargas ao poder, que o samba se transforma em símbolo nacional. Hermano Vianna (1994:9-20) argumenta que, nessa década, o Brasil passa a encontrar no Rio de Janeiro os ingredientes para a construção de sua identidade, entre os quais o samba se destaca por seu valor emblemático. É curioso observar que os ideólogos da “unidade nacional” tomam como emblema justamente um gênero musical que, por sua natureza carnavalesca, pouco tem em comum com as linguagens musicais sisudas que se prestam a rituais totalizantes, como, por exemplo, a tradição do hinário, ou mesmo a do samba-exaltação, que, como veremos mais adiante, inaugura-se no final dos anos 30 com a monumental Aquarela do Brasil, de Ari Barroso. Retomando o argumento de Vianna, ele mostra que, nos anos 30, recorre-se ao mito da “descoberta” do samba, como se, de certa forma, o morro contivesse o samba em essência, “esperando que os outros brasileiros fossem escutá-lo para, como que numa súbita iluminação, ter reveladas suas mais profundas raízes” (1994:217-8). Não só o samba, como também o Brasil, passam a ostentar uma natureza carnavalesca. E o que torna o fenômeno mais curioso é o fato de se tomar como símbolo nacional justamente uma estética que se pauta pela simplicidade, levando-se em conta, naturalmente, as configurações muito particulares que assume essa estética em nossa música popular. Porque se trata de uma simplicidade que se realiza ao estilo franciscano, conciliando o humilde com o excessivo. Nada é mais excessivo, por exemplo, que as orquestrações dos sambas e das marchinhas carnavalescas dos anos 30, com sua profusão de metais. Os compositores carnavalescos recorrem à linguagem comum para o extravasamento do humor, seja através do procedimento satírico, seja do parodístico. Só no final da década é que o samba deixa de ser valorizado em sua “naturalidade”, pois o gênero começa a sofrer uma série de retoques, responsáveis em grande medida pelo surgimento do samba-cívico, ou samba-exaltação. Essa nova modalidade de samba projeta-se com muita força, num viés mais sinfônico e monumental, a partir de Aquarela do Brasil, que Ari Barroso compõe em 1939. Mas a análise da monumentalidade no samba será desenvolvida no próximo capítulo.
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E o meu d esper tad or é o gu ar d a-ci vi l É provável que Noel, entre os compositores de sua geração, seja o mais arredio aos procedimentos estéticos que se pautam pelo excesso ou por uma atitude de reverência para o que se desvie de seus dois únicos cultos: Vila Isabel e as mulheres, principalmente as notívagas. Demonstra contenção na forma de desenvolver suas composições – que por si sós pedem arranjos mais simples, com o concurso de poucos instrumentos – e na maneira intimista de interpretálas. Noel não deixa de ser um introdutor da performance do “banquinho e violão”, com a qual os músicos da bossa nova, muitas décadas depois, vão se mostrar bastante à vontade. Mas apesar de sua locução afinada com um certo estilo de sofisticação urbana, Noel mostrase eclético na escolha de seus intérpretes. Marília Baptista teria sido uma de suas intérpretes preferidas. Fina (de origem aristocrática), com um estilo leve e caracterizado pela discrição, Marília contrasta visivelmente com Aracy de Almeida, outra intérprete muito apreciada por Noel que, suburbana, pobre e mulata, desenvolve um estilo mais popular: [...] Esta [Marília] tem voz de timbre suave, pouco extensa, mas que aprenderá a usar com adequação. A voz de Aracy é anasalada, mas consistente, com certo acento triste que lhe dá cor muito própria. Não aprenderá nada: nasceu sabendo. Marília tem ouvido privilegiado (e graças a ele ainda será melhor compositora do que cantora). O ouvido de Aracy é duro. Sua memória musical, fraca. Tem dificuldade para aprender músicas de harmonizações complicadas. Marília domina a técnica, Aracy é artista intuitiva [...] (Máximo & Didier, 1990:322).
Noel assume também uma atitude eclética ao entregar suas composições a Mário Reis e a Francisco Alves, que fazem um curioso contraste: Mário tende ao distanciamento irônico e sofisticado, Chico a uma adaptação bastante vulgarizada do operismo. Mas Noel, segundo consta, não se mostraria tão flexível ao lidar com outros casos, rejeitando, por exemplo, o tipo de mudança que Carmen Miranda promovia no samba, tornando-o diferente do executado no Estácio. Mais habituada às marchas, Carmen tenderia a imprimir ao samba seu estilo pessoal, de uma maneira talvez excessivamente estilizada para os critérios de Noel (Máximo & Didier, 1990). Tenho um novo amor, samba de Noel e Cartola (1933), teria sido gravado por Carmen “sem calor, aos arranques”, e com alterações na letra original que remetem ao universo lúmpen fre-
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qüentado por Cartola e Noel (Máximo & Didier, 1990). Vejamos a primeira versão dos compositores: Tenho um novo amor Tenho um novo amor Que vive pensando em mim Não quer me ver sujo nem rasgado Gosta que eu ande assim bem trajado.
As modificações que Carmen introduz na letra atenderiam, segundo Máximo e Didier (1990), ao gosto de uma platéia menos tolerante com esse tipo de imaginário boêmio e excessivamente popular. A composição torna-se assim mais bem-comportada: Tenho um novo amor Tenho um novo amor Que vive pensando em mim Não quer me ver triste nem zangada Gosta que eu ande assim engraçada.
Se a irreverência de Noel remete a seu estilo gauche, descomprometido com os aspectos oficiais da vida burguesa, pode-se, por outro lado, atribuir sua estética simples, desprovida de ornatos, à sua interpretação muito pessoal das modificações que se promovem na cidade. Noel recorta desse repertório renovado que se apresenta no Rio de Janeiro as peças constituídas no submundo da prostituição, do jogo, da trapaça e do ócio em geral, contrapondo-o ao mundo cada vez mais racionalizado do trabalho. Dito de outro modo, pode-se afirmar que Noel desenvolve um tipo de sensibilidade que remete ao “baixo”, pois ele dialoga com o ambiente boêmio dos morros para a construção da estética da simplicidade. E a despeito da sofisticação de sua linguagem, compatível com o modelo coloquial sugerido pelos modernistas, Noel tende a se embriagar tanto com as novidades introduzidas pela vida urbana quanto com os aspectos provincianos da vida suburbana, o que provoca o seguinte comentário de Decio de Almeida Prado: Noel Rosa também cantou [...] os amores frustrados (Último desejo), como não deixou de celebrar a graça suburbana (Feitiço da Vila) do bairro em que nasceu. Mas, se era capaz de voltar-se para dentro de si mesmo à bus-
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ca de inspiração, nunca perdia de vista, com olhar enternecido ou irônico, a cidade do Rio de Janeiro, evocando seja a operária que teima em preferir os apitos (Três apitos) da fábrica em que trabalha aos apelos amorosos da buzina do carro do compositor, seja o homenzinho exigente [...] instalado na mesinha de um bar vagabundo (Conversa de botequim) como se estivesse no comando de um grande escritório comercial [...] (1989/ 90:21).
Noel, de fato, trabalhou a música popular de maneira diferente do que se fazia antes, abrindo um leque de alternativas mais amplo que incluía as novidades discursivas introduzidas na vida urbana. O compositor começou a ensaiar os novos passos a partir do samba Com que roupa? (1929). Este samba já tematizava aspectos do estilo de vida carioca através da letra, que incorporava a linguagem cotidiana de certos segmentos da cidade, assim como mostrava, através do ritmo e de uma maneira mais intimista de cantar, com um acompanhamento sustentado apenas por bandolim e violões, um tom que parecia mais adequado ao imaginário urbano que então se delineava. Noel, nessa música, foge ao rebuscamento provinciano, embora a maneira com que ele se expressa denote familiaridade com um registro citadino muito particular, associado a um mundo povoado por pessoas que destoam do estilo de vida pequeno-burguês, como o “cabra trapaceiro” fugindo da figura do “urubu”. Essa sensibilidade de Noel para captar as interlocuções urbanas é ressaltada por João Máximo e Carlos Didier, que contrapõem, por exemplo, a experiência de Almirante com o Bando de Tangarás – que “ainda pensam nos cocos e nas emboladas” – à de Noel – que “vai subir muitas vezes o morro, beber em sua fonte, experimentar parcerias com seus compositores, aprender com eles”. Máximo e Didier (1990:196) comentam que Noel foi amigo de Cartola, da Mangueira, e de outros compositores, como Canuto, do Salgueiro, e Bide e Ismael Silva, do Estácio, fazendo várias parcerias com eles. Luiz Tatit também analisa esse aspecto da estética de Noel, cujas músicas passavam a impressão de naturalidade, como se ele não despendesse o menor esforço ao criá-las. Esse procedimento, segundo Tatit (1996:35), imprimia um “caráter coloquial urbano” nas composições de Noel e as diferenciava do “semi-eruditismo e da nostalgia bucólica da canção sertaneja”. Noel não se limitou a tematizar a vida urbana; procurou também conformar a linguagem musical à modernização emergente. O que se restringiu à tematização foi o samba que se configurou na segunda década do século: Pelo telefone, por exemplo, primeira composição regis-
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trada como samba, em 1916, de Donga e outros autores, apresentava uma letra em que motivos regionais (contidos no estribilho) convivem com uma linguagem típica da cidade do Rio de Janeiro, como a usada pela burocracia policial para a intervenção nos ambientes de jogatina (Almirante, 1963:19-20). Mas este primeiro samba, com um ritmo muito mais próximo do maxixe do que daquele que se convencionou reconhecer como samba alguns anos depois, tem uma letra ainda bastante mesclada de temas regionais e urbanos. Pelo telefone apropriou-se de motivos populares nordestinos de uma composição anterior de Catulo da Paixão Cearense, Ignácio Rapôso e Paulino do Sacramento, O marroeiro (Almirante, 1963). Noel veio também romper com o diletantismo do artista de classe média, assumindo, ao profissionalizar-se, a condição de músico popular. Até então, como relata Almirante, não havia lugar para o músico popular entre os segmentos das classes média e alta devido às discriminações ao ofício, considerado desclassificado e associado a negros e marginais. Essas interdições levariam o músico popular a adotar uma postura dissimulada, como é o caso de Braguinha, que, sendo de família tradicional, e temendo assim “arrastar seu nome para o campo ainda malvisto da música popular”, acabou adotando o pseudônimo de João de Barro (Almirante, 1963). Walnice Nogueira Galvão ressalta a importância de Noel Rosa para que o samba saia de seu confinamento nos morros e nos redutos negros, ganhe respeitabilidade e penetre nas casas da Zona Norte. Mas se Noel assumiu a especialização, atuando de acordo com um registro mais individualista, não adotou o estilo de vida burguês. É assim que Galvão analisa o lugar ocupado por ele naquele mundo que então se delineava, como um observador da modernização da cidade, de seus deserdados, seus joões-ninguém, mas colocando-se de fora, “pelas fímbrias da sociedade, sem qualquer intenção de nela se integrar”. Tal recusa não resulta, no entanto, na absorção do perfil do malandro – “aquele de lenço no pescoço e navalha na mão, antes lúmpen que operário” –, “assim como não se enquadra na pasmaceira virtuosa de sua própria classe”. A autora conclui que “Noel Rosa é, em sua biografia e sua obra”, uma “figura exemplar”: “Boêmio, antes de mais nada, é pequeno-burguês branco de Vila Isabel” (Galvão, 1982:8). Noel atuou, portanto, não só como cronista da modernidade, mas também como um seu protagonista típico: o artista especializado, que assumiu sua vocação de músico popular. Coerente com esse pa-
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pel, o compositor rapidamente se adaptou ao trabalho no rádio, como contra-regra, cantor e posteriormente em programa humorístico e em revistas radiofônicas, nas quais parodiava composições populares e operísticas. Mas a adesão à mídia não lhe apagou o perfil de boêmio, alheio aos valores de sua própria classe e a quaisquer preocupações de cunho construtivo. Tudo indica que Noel constrói sua identidade artística a partir de modelos fornecidos pela tradição romântica, em que se configura o culto do artista como gênio. Ele se afasta do ideal de vocação weberiano, muito próximo, segundo Harvey Goldman, de uma discussão literária que tem seu início com Flaubert. O escritor francês defendia a idéia de que o artista deveria dedicar a vida a seu ofício, praticando assim uma verdadeira religião ascética da arte. Flaubert seria então o primeiro a praticar a arte de escrever como vocação burguesa sistemática. Thomas Mann daria continuidade a essa tradição inaugurada por Flaubert, assumindo uma identidade burguesa e pautando sua arte pela idéia de vocação. Mann procuraria soluções para o problema da identidade do artista através da criação de Tonio Kroeger, que representa um filho desviante da classe burguesa que reencontra sua vocação em moldes burgueses, deslocando-a do campo da competição econômica para o campo da arte. Esse tipo de perspectiva então incorporada à postura do artista justifica-se pelo argumento de que não há arte que possa viver sem contato íntimo com a vida (no caso, a burguesa, mas no sentido de homem do burgo, que se opõe ao estilo do campo). Ao contrário, portanto, de muitos de seus contemporâneos que negam a atitude burguesa e incorrem no niilismo, Tonio Kroeger ama a vida burguesa, acreditando que este amor é a fonte de sua capacidade de servir à vida. Mas as exigências da vocação o separam do estilo de vida das pessoas que vivem sem autoconsciência e sem necessidade de compreender. Cabe portanto à vocação – uma modalidade burguesa com relação à arte – fazer uma intermediação entre este estilo de vida das pessoas que não se orientam pela consciência estética e a vida artística. Em Tonio Kroeger, a vocação se assemelha à redenção cristã, pois é preciso morrer para a vida para renascer para a arte; trata-se de uma postura tão ascética e culpada com relação ao trabalho quanto a dos protestantes. Tonio Kroeger vive o dilema do artista que não pode se comunicar com as pessoas comuns, não conscientes, e que evita, da mesma forma, o convívio com as pessoas que lhe são semelhantes. Sua aspiração é a vida “em sua banalidade sedutora”, e não o extraordinário e o demoníaco da tradição romântica (Goldman, 1989).
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Ora, as várias narrativas da vida de Noel Rosa ressaltam justamente sua busca do extraordinário, do demoníaco, assim como sua aversão pelos valores e ambientes de classe média. João Máximo e Carlos Didier (1990:276), por exemplo, comparam a vivência de Noel com a dos outros integrantes do Bando de Tangarás: enquanto estes últimos assumiam o modelo bem-comportado e, coerentemente com ele, preferiam as mulheres “vespertinas” – moças de família –, Noel freqüentava com assiduidade os bordéis da Lapa e só se sentia à vontade com as mulheres “noturnas”, o que deixou explícito em várias de suas composições, como Dama do cabaré. Filosofia, samba que Noel compôs com André Filho em 1933, exibe esse tipo de sensibilidade do compositor: O mundo me condena E ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome Deixando de saber Se eu vou morrer de sede Ou se eu vou morrer de fome Mas a filosofia Hoje me auxilia A viver indiferente, assim Nessa prontidão sem fim Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim. [...]
Se Noel desenvolveu uma linguagem impregnada e estruturada pelos elementos do mundo burguês com que se deparou na sua experiência, ao mesmo tempo se contrapôs a ele, tanto na vida – colocando-se de fora –, quanto na arte – fazendo uso da ironia e da paródia. O orvalho vem caindo (samba de 1933, em parceria com Kid Pepe) é criado através de um procedimento bem-humorado, em que a figura do sem-teto substitui os objetos familiares à vivência burguesa pelos elementos que povoam as noites cariocas: a cama “é uma folha de jornal”, o cortinado “é o vasto céu de anil” e o despertador “é o guarda-civil”. A atmosfera urbana então emergente no Rio de Janeiro, com os novos segmentos de classe média, de mendigos e de operários, foi captada por Noel à maneira baudelairiana, através de movimentos de introversão. Três apitos, composição de 1931, é reveladora desse tipo de sensibilidade, na medida em que o mundo representado na canção – no qual o trabalho se contrapõe à arte, a máquina, ao piano – correspon-
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de à relação que o poeta estabelece com o mundo. Enquanto os poetas modernistas, como Oswald de Andrade, se vêem como participantes e cantores da modernidade,40 o poeta de Três apitos, embora inserido nesse mundo moderno, se exclui do universo do trabalho fabril que o caracteriza: se a operária “faz pano”, ele faz versos. Para ele, o mundo só interessa enquanto espaço para a sua vida interior e sentimental. A fábrica apita para chamar as operárias às máquinas, mas o poeta toca a buzina do seu carro para chamar a operária para junto de si. Na condição de ser “do sereno”, uma espécie de guarda-noturno, o poeta se opõe ao diurno mundo do trabalho, assim como às galerias luminosas que banalizam as noites, fazendo jus à observação de Oswald de Andrade de que o contrário do burguês, ao invés do proletário, seria o boêmio (apud Vasconcellos, 1977). Simplicidade, humor e contemporaneidade, nessa linha de raciocínio, andam de mãos dadas. Chega-se a esta conclusão quando se analisa a estética de Noel Rosa, percebendo-se sua faceta modernista – ainda que opere numa pauta mais individualista, ou seja, não vinculada a um projeto coletivo – e os pontos de convergência – quanto à conciliação que promove entre arte e vida e quanto ao aspecto da inovação formal – que podemos estabelecer entre o compositor e Oswald de Andrade. Pois também para Noel “a poesia existe nos fatos” (Andrade, 1972a:5-12), principalmente nos que ocorrem em seu cotidiano boêmio. A sensibilidade de Noel mostra-se em consonância com as atualizações românticas empreendidas pelos escritores modernistas, que sofreram, entre outras influências, a de Blaise Cendrars, com quem mantiveram um contato estreito. Em 1913, ao publicar La prose du Transsibérien, Cendrars proclama a vinculação da arte com a vida em manifesto:41 Não sou poeta. Sou um libertino. Não tenho qualquer método de trabalho. Tenho um sexo. [...] E se escrevo, será talvez por necessidade, por higiene, como se come, como se respira, como se canta. [...]
40 Quanto a esta questão, ver Nunes (1979:29), que analisa, por exemplo, a influência de Blaise Cendrars sobre Oswald de Andrade, através da síntese que promove entre o primitivo (“a imprevisibilidade, o irracional”), e o moderno (“a previsão que ordena, a razão que organiza, a ‘prática culta da vida’, cujo regime a civilização técnico-industrial impunha”). 41 Blaise Cendrars publica este manifesto no periódico de vanguarda berlinense Der Sturm, em setembro de 1913. Ver Perloff, 1993:42.
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A literatura faz parte da vida. Não é qualquer coisa “à parte”. Não escrevo por ofício. Viver não é um ofício. [...] Fiz os meus mais belos poemas nas grandes cidades, no meio de 5 milhões de homens – ou a 5 mil léguas sob os mares, em companhia de Júlio Verne, para não esquecer os mais belos jogos da minha infância. A vida inteira não é mais que um poema, um movimento. [...] Amo as lendas, os dialetos, os erros de gramática, os romances policiais, a carne das meninas, o sol, a Torre Eiffel, os apaches, os bons negros, e esse astucioso europeu que zomba da modernidade. Aonde vou? Não tenho idéia, pois entro até nos museus. [...]
Não deixa de ser paradoxal, no entanto, o fato de Noel conciliar aquela atitude gauche com a imersão radical no mercado emergente propiciado pelo desenvolvimento do rádio e das novas técnicas de gravação. Tanto na estética quanto na vida, Noel é irreverente para com os valores burgueses, embora se mostre receptivo para com os estímulos do dia-a-dia, para com os embates trazidos pelo seu tempo, correspondendo assim ao próprio espírito do início do modernismo. Klaxon (1922), já no seu primeiro número, anuncia a vida presente em manifesto: Klaxon sabe que a vida existe. E, aconselhado por Pascal, visa o presente. Klaxon não se preocupará de ser novo, mas de ser atual. Essa é a grande lei da novidade.
Noel assume a contemporaneidade, embora essa orientação não o leve a aceitar radicalmente, tal como as vanguardas italianas, o espírito anti-sublime do mundo industrial. Mas permite-lhe, pelo menos, lidar com algumas concepções materialistas desse universo, principalmente com a idéia de que a obra de arte, longe de ser autônoma, é investida de valor de troca como qualquer mercadoria.42 Já comentei anteriormente que os modernistas brasileiros, em virtude de um prognóstico próprio de nossa inserção na modernidade, fazem restrições não só ao mercado capitalista como à especialização do artista. Representativa dessa atitude extremamente cautelosa para com o novo perfil de público que se delineia – referenciado à “massa” – é a objeção modernista à música popular divulgada pela mídia. Talvez se
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Ver Fabris, 1994:99.
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possa então dizer que os músicos populares, ao aceitarem essa diretriz do mercado, se mostram mais afinados com o espírito futurista que os eruditos, apesar da forma extremamente radical com que os artistas italianos expõem suas idéias sobre o valor da arte. Em “Pesos, medidas e preços do gênio artístico – manifesto futurista”, de 1914, por exemplo, Corradini e Settimelli declaram: 1. A arte é uma secreção cerebral exatamente mensurável; 2. É necessário pesar o pensamento e vendê-lo como uma mercadoria qualquer [...] (apud Bernardini, 1980:139).
Noel se mostra atento em captar não apenas as questões, mas também a forma adequada ao momento histórico em que vive, concebendo o despojamento como a linguagem adequada ao seu tempo. Esse procedimento se vê nas letras de suas canções, nas quais o lirismo, sempre mesclado com a ironia, se mostra desprovido de qualquer excesso, de qualquer tipo de idealização. Tal como Baudelaire, que revela em seus poemas uma consciência aguçada do presente, Noel desenvolve uma estética compatível com a concepção da beleza no transitório, na vida que corre no dia-a-dia.43 E tal como Manuel Bandeira, cuja subjetividade poética se estilhaça em cacos jornalísticos ou rotineiros do cotidiano, Noel, através do estilo simples que desenvolve, constrói um eu lírico fragmentado, não suscetível de completude. Suas musas são palpáveis, fáceis de localizar: podem estar em algum ponto de Vila Isabel – em casa ou na fábrica – ou mesmo num cabaré da Lapa. Claudia Matos compara, por exemplo, o lirismo de Noel com o lirismo derramado de outros compositores seus contemporâneos, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Lupicínio Rodrigues. Segundo a autora, os poetas de cabeceira de Cartola teriam sido Olavo Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias. Matos (1982:46) complementa: Este detalhe vem confirmar algo nitidamente observável nas letras dos sambas não apenas de Cartola, mas de todos aqueles que versaram da musa lírico-amorosa naqueles anos: a influência de um discurso literário, branco, burguês, que se faz notar no rebuscamento das metáforas como nas colorações idealizantes [...] que marcam sua visão de mundo.
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Ver Calinescu, 1987.
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Noel é despojado também quando interpreta. Sua voz fraca e seu estilo descontraído contrastam com os dós de peito dos grandes cantores de rádio da época, como Francisco Alves e Vicente Celestino. Tal estilo interpretativo, por sua vez, recorre a um acompanhamento adequado. Os instrumentos orquestrais em profusão, característicos dos arranjos da época, cedem lugar a instrumentos de corda mais camerísticos, como o bandolim e o violão (Máximo & Didier, 1990:156). Tinhorão afirma que o grande trunfo de Noel foi o de ter sabido, na convivência com músicos, conciliar os extremos. Assim, partilhava, em seu cotidiano boêmio, da companhia de compositores semi-analfabetos, como Ismael Silva, Canuto e Antenor Gargalhada, com os quais compunha sambas batucados. Mas também convivia com músicos sofisticados, como Romualdo Peixoto (Nonô) e Osvaldo Gogliano (Vadico), o que lhe permitia aprimorar suas composições e “adiantar-se ao gosto médio do seu tempo”. Tinhorão também atenta para a correção prosódica das composições de Noel. Segundo ele, Noel promoveu a integração definitiva dos versos à música, procedimento que o levou a produzir “pequenas obras-primas da linguagem coloquial”, como o samba Pra que mentir, composto em 1935 em parceria com Vadico (Tinhorão, 1982b:1-2). Quanto a essa questão, é interessante observar que, se Noel se tornou bastante conhecido como letrista – ou até mesmo como poeta, segundo alguns críticos –, jamais se descuidou da parte musical de suas canções, que “se adequava perfeitamente ao espírito dos versos”. Assim, ela é “brejeira”, por exemplo, em Com que roupa? e é “lenta e melancólica” em Último desejo e em outras composições. Mas sem dúvida Noel também se destacou como letrista. De acordo com os organizadores de MPB Pesquisa, “Noel foi um poeta inovador”: “rompeu com as convenções poéticas, renovou o vocabulário, encontrou rimas surpreendentes, trouxe novos temas, permanecendo como um dos maiores letristas da música popular brasileira”.44 Charles Perrone chama a atenção para o fato de que, embora Noel não tivesse contato com o mundo literário, se discute a qualidade literária de suas letras. Perrone (1988:18) cita a análise de Afonso Romano de Sant'Anna, segundo a qual a “dosada linguagem coloquial” dos sambas de Noel corresponderia, em alguns aspectos, ao primeiro modernismo. E é exatamente por isso, aliás, que quando lida com uma estética que recorre ao excesso, como no caso do repertório operístico, Noel o
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Ver “A vida, esse triunfo difícil”, 1982:5.
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faz parodiando. O barbeiro de Niterói, de 1935, exemplifica essa postura: a revista radiofônica, elaborada para o programa humorístico Clube da Esquina, da Rádio Clube do Brasil, é uma paródia da ópera O barbeiro de Sevilha, de Rossini. O sucesso de O barbeiro de Niterói o teria animado a criar outras revistas radiofônicas, como Ladrão de galinha (1935) e A noiva do condutor (1936). João Máximo e Carlos Didier lembram que o procedimento parodístico é recorrente em Noel e citam alguns exemplos, como Com que roupa?, composição que parte de uma brincadeira com o Hino Nacional, e outras composições escritas sobre algumas melodias, como Cheek to cheek, Diga-me esta noite, Gigolette etc.45
É fu tu r i smo, men i n a Lamartine Babo apresenta algumas semelhanças com Noel Rosa quanto à sensibilidade para captar a vida presente da cidade e as linguagens dos diversos segmentos sociais; também de maneira parecida com Noel, Lamartine não dispensa o humor, principalmente na criação de marchinhas carnavalescas. Representativa da acuidade do compositor para captar os modismos que assolam o Rio de Janeiro é a marcha Os calças largas (em parceria com Francisco Gonçalves de Oliveira), de 1926, que satiriza a “moda das calças de boca larga e paletós curtos e cintados, lançada na Inglaterra pelo príncipe de Gales, [...] e logo adotada no Brasil pelos almofadinhas da avenida Central”. Esta marchinha foi muito cantada no carnaval do ano seguinte e se tornou tão popular que inspirou título de revista montada por Freire Júnior em 1927 no Teatro Carlos Gomes (Valença, 1981:46). Além de compositor versátil, aventurando-se em diferentes gêneros, como valsas, operetas, músicas juninas, sambas, tangos, foxes e outros, Lamartine costuma ser citado como um divisor de águas do carnaval brasileiro, exibindo, com suas marchinhas, um perfil paradigmático de folião. De acordo com relatos de músicos desta geração de 20 e 30, como Braguinha, os meses que antecediam o carnaval, no início da década de 30, eram de expectativa com relação às próximas criações de Lamartine Babo (Valença, 1981). E citam-se, além de O teu cabelo não
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Ver “A vida, esse triunfo difícil”, 1982:5; Enciclopédia da música brasileira, 1977; e Máximo & Didier, 1990:375.
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nega, marchas carnavalescas de Lamartine que tiveram grande popularidade no período, como Linda morena, ao som da qual o compositor, no carnaval de 1933, teria sido carregado por foliões cariocas em um longo percurso pela cidade. Outra marcha citada é História do Brasil, a qual, interpretada por Almirante e com acompanhamento dos Diabos do Céu, foi gravada em disco no final de 1933 e lançada para o carnaval de 1934. O sucesso desta marchinha foi comprovado pela encenação da revista Foi seu Cabral, que, montada em 1934 no Teatro João Caetano, usava como título um verso da composição de Lamartine. Em 1935, propagaram-se por todos os cantos da cidade as marchas Grau dez, de Lamartine Babo e Ari Barroso, e Rasguei a minha fantasia, de Lamartine (Valença, 1981:115-21). Em 1939, quando publicou Lamartiníadas, Lamartine, tal como Noel, mostrou-se afinado com o espírito humorístico e irreverente do modernismo, como se vê em Língua... com batatas..., em que ele tematiza, de maneira jocosa, a reforma ortográfica da época e seus efeitos sobre as palavras, que perdem sua aura: Mais uma vez lá venho eu, senhores, gritar contra a fonética mal... dita. Falem de mim, ou não, os inventores dessa mania de atrasar a escrita... Uma escrita atrasada traz perigos, sérios perigos, fáceis de prever, A Língua Pátria vai sofrer castigos com os efes e os erres do sofrer. Quanto doutor, de óculos azuis, solenes, na escrita antiga abria o dicionário Só para ver a quantidade de enes cabíveis na palavra aniversário!... [...] Foi só por isso que a Reforma veio, porque, afinal, pouco trabalho dá... É ela própria quem nos mostra em cheio, que a fantasia está no P e H... Fantasma sem o P e sem o H nem papão chega a ser; foge tremendo... Perde-se a fantasia de um rajá, e fica o verbo haver letras devendo...
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Sei que perco o latim nessas tolices ao lhes fazer aqui certas perguntas: – Não é tão belo o nome próprio Ulisses, Letras a gancho... consoantes juntas? [...] (apud Valença, 1981:153-4.)
Ao reportar-se ao universo das palavras escritas com dois enes e com ph, dos doutores “de óculos azuis, solenes” e dos falantes do latim, Lamartine, bem à maneira de Oswald de Andrade no “Manifesto da poesia pau-brasil”, investe contra a solenidade vazia da forma bacharelesca. Mas Lamartine foi mais longe com a irreverência, chegando a parodiar a própria estética modernista. Que pequena levada! (s.d.), por exemplo, foi concebida por ele e por José Francisco de Freitas como um “foxtrote passo Marinetti”. E a marcha A-Bsurdo, de 1931, que compôs em parceria com Noel Rosa, é toda ela uma brincadeira com a suposta incompreensibilidade da poesia futurista, como se qualificava toda e qualquer poesia não-acadêmica na época: Nasci na praia do Vizinho oitenta e seis Vai fazer um mês Vai fazer um mês A minha tia me emprestou cinco mil-réis Pra comprar pastéis Pra comprar pastéis Coro É futurismo, menina É futurismo, menina Pois não é marcha Nem aqui nem lá na China Depois mudei-me para a praia do Caju Para descansar Para descansar No cemitério toda gente pra viver Tem que falecer Tem que falecer Seu Dromedário é um poeta de juízo É uma coisa louca É uma coisa louca Pois só faz versos
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quando a lua vem saindo Lá do céu da boca Lá do céu da boca
Se Noel Rosa operava basicamente com sambas e marchas, Lamartine foi mais eclético; além de se aventurar nos mais diversos gêneros de composição popular – da valsa romântica à irreverente marchinha carnavalesca –, Lalá (como era conhecido por seus contemporâneos) não se furtou a outras experiências. Além das obras humorísticas que o notabilizaram, Lamartine produziu obras de extremo lirismo, como a valsa Eu sonhei que tu estavas tão linda, de 1941, e os sambas-canções Serra da Boa Esperança, de 1937, e No Rancho Fundo, que compôs com Ari Barroso em 1931. Enquanto Lamartine trabalhava suas composições líricas de maneira dramática, Noel Rosa, como vimos, confundia os gêneros musicais ao conferir tanto aos sambas quanto às marchinhas carnavalescas um tom ao mesmo tempo lírico e irônico, como se o humor não fosse incompatível com a ternura, ou mesmo com o sofrimento. Ao desenvolver, porém, uma estética muito definida pelo intimismo, Noel constitui uma exceção num período caracterizado pela multiplicidade de estilos na música popular. Mas sem dúvida o humor marca tanto a obra quanto a persona de Lamartine Babo, que se autoparodiava no cotidiano, brincando com a própria magreza ou com a própria feiúra e, no carnaval, compondo diferentes tipos. Assim, a partir de 1922, como relata seu biógrafo, Lamartine passou a integrar o bloco Foi Ela Que Me Deixou, no qual sempre se fantasiava de viúva. E em 1924 tornou-se membro do bloco Tatu Subiu no Pau, organizado por Eduardo Souto. Mas o lado clown de Lamartine não se limitou ao carnaval, como relata Nestor de Holanda no Diário de Notícias: Lamartine senta à mesa do bar e mostra melodias aos amigos, imitando qualquer conjunto instrumental: puxa o trombone do canto direito da boca, o saxofone do canto esquerdo, o pistom do meio, o violino sai pelo nariz, belisca o pescoço e faz “pizzicatos”, aperta uma narina e imita surdina e, castigando a mesa, pratos, copos e talheres, é melhor que qualquer equipe de ritmistas (apud Valença, 1981:35).
Lamartine notabilizou-se por sua facilidade de inventar piadas e trocadilhos, o que o levou a trabalhar, ainda nos anos 20, como co-
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laborador da revista D. Quixote – voltada para a sátira de costumes46 – e como compositor de teatro de revista (MPB Pesquisa, 1982a:3-6). Zuza Homem de Mello (1982:2) ressalta o talento de Lamartine para absorver temas e expressões de época, “aplicando interjeições, aportuguesando ditos estrangeiros, parodiando, descrevendo e filosofando”, assim como sua vocação para captar o aspecto “baderneiro” do brasileiro, o que o levava a “avacalhar” com tudo. A imagem alegre de Lalá – cantando Linda morena – foi propagada pelo filme A voz do carnaval, de 1933, dirigido por Ademar Gonzaga e Humberto Mauro. Carmen Miranda participou do filme interpretando Moleque indigesto, marchinha de Lamartine que fez muito sucesso no carnaval daquele ano.47 Diga-se de passagem que, ao representar o clown no cotidiano, incorporando-o à sua persona, Lamartine evoca os bufões e os bobos medievais, que, como descritos por Bakhtin, não restringem seu desempenho ao momento carnavalesco ou ao espaço teatral. Encarnando uma forma de vida que os situava na fronteira entre a arte e a vida, fugiam portanto às definições de “excêntricos” e “estúpidos”, ou mesmo à configuração específica de “atores cômicos” (Bakhtin, 1987b). Esse gosto pelo gênero humorístico o levou desde cedo a compor operetas, como Cibele, de 1920, e outras que foram produzidas logo depois, como Viva o amor e Lola. Em 1934, parodiando o estilo operístico, compôs a marchinha Ride palhaço. Lamartine não se continha nem mesmo quando trabalhava com versões de músicas estrangeiras. Conseguiu se comportar ao traduzir Night and day, de Cole Porter, mas na maioria das vezes esse trabalho foi mero pretexto para dar vazão ao seu extraordinário senso de humor, pois chegava, em alguns casos, a alterar completamente o sentido original da letra. O tango Yira, Yira, por exemplo, foi transformado por ele em A família Orangotango (MPB Pesquisa, 1982a:3-6). Se a faceta mais conhecida de Lalá é a do folião, não se pode dizer que ele seja figura noturna, gauche. Ao contrário de Noel, Lamar-
46 Em estudo sobre o modernismo no Rio de Janeiro, Monica Pimenta Velloso (1996) faz uma análise aprofundada da revista D. Quixote. 47 Valença, 1981. Lamartine reapareceu no cinema em 1935 (em Alô, alô, Brasil, filme de João de Barro, Alberto Ribeiro e Wallace Downey) e em 1936 (em Alô, alô, carnaval, de João de Barro e Alberto Ribeiro, produzido por Wallace Downey), também ao lado de vários cantores, como Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda e Almirante, que interpretaram suas composições (Valença, 1981).
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tine mostra um humor ingênuo, uma alegria mais mediada pelo lirismo do que propriamente por uma sensibilidade irônica. Pequeno-burguês autêntico, não dá mostras de estar mal com a vida. Luiz Tatit observa, a propósito, as dicções opostas dos dois compositores, pois Noel, segundo ele, “programa seus segmentos em função das figuras”, enquanto Lamartine o faz “em função dos temas”. Por figura Tatit refere-se ao recurso pelo qual “o cancionista projeta-se na obra, vinculando o conteúdo do texto ao momento de sua execução”, aproximando a canção do discurso oral, exacerbando o “vínculo simbiótico entre o texto e a melodia” (Tatit, 1996:21) – por exemplo, utilizando subidas e descidas na melodia em pontos estrategicamente importantes da letra, de modo que esta seja ouvida como um discurso falado do cantor dirigido ao ouvinte, no aqui e agora da execução. Esse recurso, característico da obra de Noel, é menos comum em Lamartine, que trabalha com temas – isto é, motivos previamente dados, tanto no sentido musical de uma estrutura melódica repetida no decorrer da canção quanto no de um motivo cultural, como a mulata, o torcedor de futebol etc. Assim, Noel “encontra os seus motivos a partir da fala, do relato, da experiência”, enquanto Lamartine parte “dos motivos musicais já devidamente estruturados” (Tatit, 1996:63). Torna-se mais fácil entender, através dessa diferenciação entre os dois compositores, o fato de Lamartine, ao contrário de Noel em suas criações líricas, ser menos confessional em suas composições. Seus tipos são idealizados, como a morena de Linda morena (1933) e a mulata de O teu cabelo não nega (1932), ou representam personagens em voga no momento, como em Seu Voronoff (1928, em parceria com João Rossi) ou em Saias curtas (1927, em parceria com Lírio Panicali), que tematiza as melindrosas. Seu Voronoff, por exemplo, a partir da própria classificação do gênero como “marcha-enxerto”, satiriza as experiências, muito divulgadas à época pela imprensa, que Sergei Voronoff – médico russo radicado em Paris – realizava com glândulas de animais, enxertando-as em seres humanos para fins de rejuvenescimento (Valença, 1993). Uma sensibilidade parecida com a de Noel se vê em Assis Valente, cuja faceta marcante, segundo Ary Vasconcelos (1982:1), é a do “observador crítico – às vezes mesmo sarcástico – de costumes e acontecimentos”. Essa sensibilidade crítica confere muita densidade ao que faz, mesmo quando retrata situações burlescas do cotidiano ou – o que é muito comum em sua obra – quando atua na pauta da exaltação do prazer. Assim, em Alegria, samba de 1937, feito em parceria com Durval Maia, ele incorpora o Dioniso que se esforça “pra deixar de padecer”:
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[...] Alegria Pra cantar a batucada As morenas vão sambar Quem samba tem alegria Minha gente Era triste, amargurada Inventou a batucada Pra deixar de padecer Salve o prazer, salve o prazer [...]
Em Boas-festas (marcha de 1933), o que parece de início ser uma marcha evocativa do espírito natalino toma um caminho inusitado, amargo, em que a tradicional singeleza das canções de Natal cede lugar a uma crítica mordaz ao que seria uma má distribuição da felicidade: [...] Eu pensei que todo mundo Fosse filho de Papai Noel Bem assim felicidade Eu pensei que fosse uma Brincadeira de papel Já faz tempo que pedi Mas o meu Papai Noel não vem Com certeza já morreu Ou então felicidade É brinquedo que não tem [...]
Assis Valente não se preocupa, no entanto, com a inovação formal. Boas-festas é gravada por Carlos Galhardo numa interpretação lamurienta, trágica, que não dá vazão à ironia contida na letra e se mostra inapropriada ao próprio espírito humorístico inerente ao gênero marcha. Mas nem tudo é amargo na estética deste compositor. Quando recorre a um humor mais irreverente, é capaz de captar certos aspectos lúdicos do imaginário popular, como em E o mundo não se acabou (samba-choro de 1938) e em Camisa listrada (samba-choro de 1937), onde Assis Valente já antecipa a temática da inversão carnavalesca desenvolvida por Ari Barroso dois anos depois com Camisa amarela (conforme veremos mais adiante):
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Vestiu uma camisa listrada E saiu por aí Em vez de tomar chá com torrada Ele tomou Parati Levava um canivete no cinto E um pandeiro na mão E sorria quando o povo dizia Sossega leão, sossega leão Tirou o seu anel de doutor Pra não dar o que falar Saiu dizendo Eu quero mamar Mamãe eu quero mamar [Bis] Levava um canivete no cinto [...] Levou meu saco de água quente Pra fazer chupeta Tirou minha cortina de veludo Pra fazer uma saia Abriu meu guarda-roupa E apanhou minha combinação E até do cabo de vassoura Ele fez um estandarte para o seu cordão [...]
Se Ari Barroso, em Camisa amarela, tematiza um folião dos redutos populares, Assis Valente, neste samba-choro, retrata a inversão promovida pelo “doutor” no carnaval, trocando o tradicional chá com torrada pela cachaça, a identidade masculina pela feminina e assim por diante. E num procedimento semelhante ao de Ari Barroso no samba mencionado, Assis Valente recorre, para a construção de Camisa listrada, à citação da marchinha carnavalesca Mamãe eu quero, gravada no mesmo ano e de autoria de Vicente Paiva e Jararaca. A exaltação do prazer e do burlesco chega a ser programática em Minha embaixada chegou (samba de 1935): Minha embaixada chegou Deixa meu povo passar Meu povo pede licença Pra na batucada desacatar
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Vem vadiar no meu cordão Cai na folia meu amor Vem esquecer tua tristeza Mentindo a natureza Sorrindo a tua dor [...]
Mesmo as composições de Assis Valente de cunho mais patriótico, como Brasil pandeiro (samba de 1940), dão à brasilidade um tratamento humorístico bastante diferenciado do tom grandiloqüente com que se costuma tratar os temas cívicos: Chegou a hora dessa gente bronzeada Mostrar seu valor Eu fui à Penha E pedi À padroeira para me ajudar Salve o morro do Vintém Pendura a saia Eu quero ver Eu quero ver o Tio Sam Tocar pandeiro Para o mundo sambar [...]
Baiano radicado no Rio desde 1927, de origem obscura e com uma trajetória de vida marcada pela boemia e um tanto folhetinesca, Assis Valente teria se projetado nos meios musicais através de Carmen Miranda, que gravou em 1933 sua composição Etc., um samba-exaltação em homenagem à Bahia. Sua carreira teria começado a entrar em declínio a partir de 1939, com a ida de Carmen Miranda – sua maior divulgadora – para os Estados Unidos. Segundo consta, a cantora teria se recusado a gravar Brasil pandeiro – samba que o compositor preparou para sua nova fase na América do Norte –, temendo talvez a irreverência da letra. Dando continuidade aos aspectos folhetinescos de sua trajetória, atira-se em 1941 do morro do Corcovado, cometendo sua primeira tentativa de suicídio.48
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Assis Valente morre em 1958 depois da terceira tentativa de suicídio (MPB Pesquisa, 1982b:6).
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Quanto ao seu aspecto gauche, Assis Valente mostra-se próximo de Noel Rosa, embora lhe faltasse a cor branca e a origem pequenoburguesa do compositor de Vila Isabel. Por outro lado, enquanto Assis Valente manifesta revolta em seus sambas por não encontrar a “felicidade” que tanto busca, Noel – muito mais cético – nunca demonstrou tê-la procurado. Em Elogio da raça (marcha de 1933), por exemplo, Assis Valente denuncia o preconceito racial e exalta a negritude; em Boas-festas, faz-se paladino da causa da “criança pobre e infeliz” (Vasconcelos, 1982:1). Noel, pelo contrário, só é exaltativo com relação a Vila Isabel, embora o faça galhofeiramente, sem o menor compromisso com a seriedade. É como se Assis Valente assumisse a atitude gauche a contragosto, enquanto Noel o fizesse por opção.
Com su sten i d os e b emói s/ d esen h ad os n a mi n h a voz Talvez também se faça necessário mencionar Mário Reis, cujo desempenho específico como cantor assegura-lhe um lugar equivalente ao de Noel; de fato, ambos se destacam no cenário da música popular por levarem às últimas conseqüências a utilização de procedimentos simples. Dublê de artista e grã-fino49 – chegando a abandonar a carreira de cantor em 1936 para ocupar o cargo de chefe de gabinete do prefeito Olímpio de Melo –, Mário Reis marca decisivamente o cenário musical com o tom intimista que confere às canções.50 Os parcos recursos vocais – a despeito de uma enorme afinação e da maneira sincopada de cantar – não o impediram de criar um estilo de interpretação distanciado, irônico e bem-humorado. Iniciando seu aprendizado na música popular como aluno de violão de Carlos Lentine e depois de Donga e Sinhô, no final dos anos 20, Mário já em 1928 grava seu primeiro disco com duas composições de Sinhô: O que vale a nota sem o carinho da mulher e Carinhos de vovô. Tárik de Souza (1994) descreve a entrada de Mário Reis na vida artística “sacudindo os alicerces do bel canto num cenário dominado por gargantas poderosas como as de Vicente Celestino, Gastão Formenti, Augusto Calheiros ou Francisco Alves”. Esse primeiro disco do cantor foi bem recebido por Cruz Cordei-
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Segundo Tárik de Souza (1994), Mário Reis era “filho do sócio de uma loja de ferragens e descendente da família que controlava a tecelagem Bangu”. 50 Cabral, 1979. Sérgio Cabral lembra que João Gilberto, quando surgiu no cenário musical, foi saudado como “um novo Mário Reis”.
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ro, o crítico musical da Phono-Arte, que ressaltou a originalidade de sua interpretação: “O artista realiza uma espécie de canto sincopado muito expressivo e que, se à primeira vista nos impressiona mal, pouco depois agrada-nos imensamente” (apud Cabral, 1979:109). Esse tipo de estranhamento provocado por Mário Reis em muito se deve também ao fato de ele – um “rapaz fino” – gravar as músicas de Donga, de quem foi aluno, num estilo diferente, mais colado à forma como os sambistas dos morros cantavam.51 A partir desse primeiro sucesso, Mário Reis gravou muitos discos, lançando músicas de vários compositores, como Sinhô, Caninha, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Brancura, Donga, Nilton Bastos etc. (Cabral, 1979). Sérgio Cabral (1979) argumenta que Mário Reis foi o primeiro intérprete a tirar partido do sistema de gravação elétrica que surge no período. Se ao tempo das gravações mecânicas exigia-se do cantor voz forte o suficiente para aparecer, agora podia-se explorar um registro vocal menos possante e diferente do operístico. Mas é importante observar que a criação de um estilo distanciado do bel canto não esgota a criatividade de Mário Reis, que se notabilizou por conferir um tom de conversa às suas interpretações, como se falasse em vez de cantar. O musicólogo Mozart de Araújo chega a dizer que Mário Reis, na verdade, apenas teria dado continuidade ao estilo interpretativo criado por Sinhô. Este músico, já bem antes do aparecimento de Mário Reis, teria se notabilizado pelo emprego de células melódicas curtas em suas composições, como é o caso do samba Jura, cujo tema principal consiste em apenas duas notas. Segundo Mozart de Araújo (1994:91), a partir de Sinhô “o samba cantado a pleno pulmão não teve mais vez”, assim como a ele se deve a expressão “dizer um samba”. A própria descoberta de Mário Reis como intérprete é creditada a Sinhô, que, como vimos, foi seu instrutor musical. É difícil, portanto, entender a grande ligação profissional de Mário Reis com um intérprete que, na verdade, era o seu oposto: Francisco Alves. Se Mário Reis conferia sempre humor e ironia às suas interpretações, Chico recorria a um tom lacrimoso, mesmo nos casos de sambas e marchas que exigiam uma leitura alegre ou mais distanciada. Ao contrário de Mário Reis, Chico Alves exibia uma voz potente. E se a postura de dândi compunha a persona de Mário Reis, Chico
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Ver Moura, 1988:58.
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encarnava a própria figura do “grosso” e deselegante, tanto nas maneiras quanto na forma de se vestir. Em depoimento a Sérgio Cabral, Mário Reis conta que mesmo depois de ganhar dinheiro com a vida musical, Chico Alves “continuava a fazer seus ternos no alfaiate da rua Maxwell”: “Ombro torto, calça malfeita, uma coisa horrorosa” (Cabral, 1979:110). Um contraste também importante entre os dois intérpretes refere-se à opção estética. Mário Reis sempre se mostrou muito criterioso na escolha dos gêneros – tendendo à marcha e ao samba – e das composições, ao passo que não se nota o mesmo procedimento em Francisco Alves, que se aventurava nos mais diversos gêneros, da alegre marchinha carnavalesca aos tangos e operetas (Cabral, 1979). Ninguém mais apropriado que Chico Alves, portanto, para gravar Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, uma composição que se notabilizou por combinar registros díspares: o monumental e o edificante, o excessivo e o carnavalesco.52 Talvez nenhum cantor tenha se mostrado mais afinado com a coloquialidade modernista que Mário Reis. Pode-se dizer que ele foi a contrapartida dos poetas do movimento no terreno da interpretação popular. Se não se concebe uma declamação de um poema de Oswald de Andrade, também se torna difícil conceber uma interpretação plangente de um samba de Noel. Assim como os poetas modernistas procuraram a linguagem adequada ao tempo presente, destituída do ranço bacharelesco, Mário Reis imprimiu à interpretação uma simplicidade até então nunca vista. Seu estilo coloquial, como argumenta Tárik de Souza, aproximava suas gravações “do idioma do samba das ruas e dos morros, geralmente pasteurizado na adaptação dos estúdios”. Tárik de Souza (1994:1) o vê também “como um antecipador das modernidades da bossa nova, na divisão de síncopas e no fraseado enxuto capaz de realçar o teor das letras”. Várias das composições interpretadas por Mário Reis cujas letras apresentam um teor dramático ganhariam outro tom – mais passional – nas vozes de outros cantores. Assim é o caso, por exemplo, de sua gravação de Você me maltrata, de Xavier de Souza, Arlindo Marques Jr. e Roberto Roberti, em que, a despeito de uma letra que tematiza desencontros amorosos, Mário não só faz uma interpretação distanciada como também introduz uma entonação de riso, de brin-
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Francisco Alves gravou Aquarela do Brasil na Odeon, em 18-8-1939 (Cabral, s.d.).
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cadeira, como se no fundo não levasse a sério os “maltratos” que a musa lhe dirige. No mais das vezes, porém, o cantor opta por marchinhas e sambas bem-humorados condizentes com seu estilo. Além disso, não se descuida dos arranjos, muitos dos quais elaborados por Radamés Gnattali ou por Pixinguinha. Nas marchas que interpreta, por exemplo, há sempre uma profusão de sopros e metais – para não falar das famosas introduções – que lhes conferem um clima carnavalesco. Esse tipo de sensibilidade caracterizada por um humor alegre e pouco corrosivo aproximou bastante Mário Reis de Lamartine Babo, tornando-o um dos principais intérpretes das marchinhas e outros gêneros carnavalescos deste compositor. Em 1939, por exemplo, os dois se tornam as maiores estrelas de um espetáculo beneficente denominado Joujoux & balangandãs, realizado no Teatro Municipal e organizado por Darcy Vargas, então primeira-dama. Lamartine criou várias músicas para o evento. Uma delas – a marcha Joujoux & balangandãs – foi interpretada por Mário Reis e Mariah. E Lamartine criou um samba – Voltei a cantar –, especialmente para registrar a volta de Mário Reis aos palcos, dos quais tinha se afastado desde 1936: Voltei a cantar Porque senti saudade Do tempo em que eu Andava na cidade Com sustenidos e bemóis Desenhados na minha voz E a saudade rola, rola Como um disco de vitrola Começo a recordar Cantando em tom maior E acabo no tom menor Oh! Meu Samba Velho amigo Novamente estou contigo Tua vida me transtorna Bom filho à casa torna De ti nunca me esqueci
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Esta composição, embora alegre, denota delicadeza e um sentimento de amizade muito forte, recebendo portanto uma interpretação lírica e comovida de Mário Reis. Fez-se um arranjo primoroso para a gravação desse samba, utilizando-se de metais, percussão e piano; na introdução e no final da música, lança-se mão de recursos que criam um clima apoteótico. Nota-se, principalmente na segunda estrofe, um diálogo intenso entre música e letra. O verso “com sustenidos e bemóis” prepara o ouvinte para o acidente melódico que se segue no verso seguinte; assim, a variação harmônica incide na palavra “voz” do segundo verso. Da mesma forma que a voz do intérprete é evocada, há também a referência ao “disco de vitrola”, o meio físico que a armazena e reproduz. Na terceira estrofe, o comentário da letra relativo ao “tom maior” e ao “tom menor” é uma descrição literal do percurso harmônico da peça até aquele ponto.
O poéti co e o pr osai co Seria possível, então, registrar pelo menos duas maneiras pelas quais a simplicidade se manifesta em nosso contexto modernista. Vinculada à proposta literária do movimento, ela se estrutura através de certos princípios básicos de composição que correspondem a um projeto compartilhado por vários escritores, embora eles apresentem diferenças entre si tanto de fundo quanto de forma. O universo da música popular, por sua vez, desenvolve a simplicidade de outra maneira, isenta de programas e à mercê da criatividade individual. Com relação à simplicidade em sua configuração literária, convém observar que a existência de um projeto, no campo literário, não leva seus ideólogos a tentações totalizantes, como se dá com a música. A imagem da colagem, em sua acepção pictórica e escultural, talvez seja a mais apropriada para nos ajudar a entender como operam alguns escritores do movimento, como Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Tal como aparece, por exemplo, em 1912, nos trabalhos de Picasso (Natureza-morta com palha de cadeira) e Braque (Prato de frutas), e logo depois em várias pinturas e esculturas futuristas, a colagem pressupõe, como procedimento básico, a recorrência a certas tradições originais, cujos elementos são deslocados, sem perder, porém, sua alteridade. Ao se promover, no entanto, a transferência de sintagmas de um contexto para outro, o texto original – ou o mundo imitado – é ques-
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tionado, assim como se dá uma descontinuidade lingüística. Marjorie Perloff (1993:103-4) descreve o processo: A colagem também subverte todas as relações convencionais de figurafundo, pois aqui nada é figura ou fundo; mais exatamente, a colagem justapõe itens “verdadeiros” – páginas de jornal, ilustrações coloridas de maçãs e peras tiradas de um livro de figuras, as letras “URNAL” (de JOURNAL) com a metade do U cortado, detalhes de granulados de madeira ou de papel pintados – a fim de criar uma superfície pictorial curiosamente enigmática. Pois cada elemento na colagem tem uma função dual: referese a uma realidade externa, ainda que o seu impulso composicional seja o de socavar a própria referencialidade que parece afirmar.
Não só se quebra, através da colagem, a linearidade ou a unidade do referente anterior, como também se lida com um repertório variado de objetos vulgares, como “uma canção barata”, “um verdadeiro selo postal”, “um pedaço de jornal” etc.53 Marjorie Perloff diz que embora a colagem seja por definição um conceito visual ou espacial, foi prontamente assimilada por poetas e músicos. Assim, o Zang Tumb Tuuum de Marinetti teria aberto caminho para os Calligrammes de Apollinaire, o Kora in hell de William Carlos Williams ou The waste land de T. S. Eliot, poema que também teria resultado, de certa forma, das experiências feitas por Ezra Pound, “o grande mestre da forma de colagem em inglês” (Perloff, 1993:139). Nota-se essa predisposição para fragmentar, típica do processo de colagem, em Oswald de Andrade. Oswald, de maneira singular dentro do modernismo literário brasileiro, tende a criticar radicalmente uma prática recorrente nas nossas manifestações culturais, vinculada à tradição do excesso, ou à do sublime. Se Oswald se exime de promover uma ruptura com todas as peças do repertório cultural, assumindo, por exemplo, os elementos populares “marginalizados pelo idealismo doutoresco da intelligentsia nacional no século XIX” (Nunes, 1979:33), ele assume, porém, bem mais do que seus companheiros de movimento, uma certa vocação moderna para simplificar a linguagem, para trabalhá-la de forma mais enxuta.54 Mas mesmo quando nega o obsoleto
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Guilhaume Apollinaire apud Perloff, 1993:108. Segundo Benedito Nunes (1979:11), Oswald, com “a sua impaciência teórica, com a sua particular avidez do novo e da novidade [...] foi, dos nossos modernistas, aquele que mais intimamente comungou do espírito inquieto das vanguardas européias”. 54
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ou o excessivo em nome do despojamento, Oswald não propõe um procedimento purificador nos moldes puritanos, e sim através da “mais alegre das destruições”.55 No poema Amor, por exemplo, expõe de maneira concisa a vocação peculiar do Brasil de conciliar o sentimento com a graça, com o espírito, desenvolvendo assim um lirismo carnavalizado: amor humor (Andrade, O., 1966:141)
De maneira semelhante, Oswald expõe, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, sua visão ao mesmo tempo sintética e abrangente das potencialidades nacionais, que conciliam o primitivo e o moderno, o bárbaro e o tecnicizado: Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações. Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil (Andrade, 1972a:9).
Mas é particularmente importante para o argumento que desenvolvo o fato de Oswald de Andrade proceder como no processo de colagem, recolhendo peças do repertório cultural com o propósito de dispô-las em consonância com uma síntese coerente – “O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança” (Andrade, 1972a:5) –, porém não-totalizante. Este método, tão recorrente na poética de Oswald, é fácil de ser exemplificado em sua obra, como se pode notar com o poema Música de manivela, do livro Pau-brasil, de 1925: Sente-se diante da vitrola E esqueça-se das vicissitudes da vida Da dura labuta de todos os dias
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Mário de Andrade apud Nunes, 1979:8.
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Não deve ninguém que se preze Descuidar dos prazeres da alma Discos a todos os preços (Andrade, 1972b:61-2.)
Neste poema, Oswald justapõe, num processo de colagem, dois discursos antagônicos: um sentencioso, de um romantismo diluído, que exalta a espiritualidade da música e seu poder de se contrapor ao prosaísmo do dia-a-dia, e outro pragmático, vinculado à lógica da publicidade, que se choca violentamente com o anterior. Haroldo de Campos, a propósito, observa na obra de Oswald de Andrade, particularmente no “Manifesto da poesia pau-brasil”, um “movimento pendular destruição/construção”. O aspecto destrutivo da poética de Oswald, ou “dessacralizante”, é bem representado pelos poemas-paródia, em que ele investe contra as obras das nossas tradições romântica e parnasiana, como se vê em meus oito anos, publicado em Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, de 1927, paródia do poema homônimo de Casimiro de Abreu: Oh que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida Das horas De minha infância Que os anos não trazem mais Naquele quintal de terra Da Rua de Santo Antônio Debaixo da bananeira Sem nenhum laranjais Eu tinha doces visões Da cocaína da infância Nos banhos de astro-rei Do quintal de minha ânsia A cidade progredia Em roda de minha casa Que os anos não trazem mais Debaixo da bananeira Sem nenhum laranjais (Andrade, 1972b:100-1.)
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Já o aspecto construtivo de Oswald, segundo Haroldo de Campos, dever-se-ia à maneira de o poeta recorrer ao ready-made lingüístico, tal como Marcel Duchamp aplicou o termo, no início da década de 10, a objetos deslocados de seu contexto original e expostos como obra de arte, como o porta-garrafa (1912), a roda de bicicleta (1913) e o urinol batizado de Fonte (1917): “a frase pré-moldada do repertório coloquial ou da prateleira literária, dos rituais quotidianos, dos anúncios, da cultura codificada em almanaques”. Campos (1972:xxxi) também considera a possibilidade de o ready-made conter em si elementos contraditórios de destruição e de construção; assim, ao mesmo tempo em que é utilizado para promover a desordem, é acionado também para a reinvenção de uma nova ordem. Manuel Bandeira, apesar de não rejeitar, como Oswald, a tradição do sublime, conciliando-a com o humilde, também recorre a um princípio de estruturação poética semelhante ao da colagem. Através de um procedimento incorporativo, Bandeira recorre a materiais de proveniência diversa; podem vir de rimas de “fundos de gaveta”, de sugestões fornecidas por situações cotidianas ou extracotidianas, e de textos eruditos ou triviais, clássicos ou modernos. Se os textos recolhidos pertencem a tradições rejeitadas pelos modernistas brasileiros, como a parnasiana, eles se prestam à paródia; se, pelo contrário, sua atemporalidade é valorizada, na acepção mesma da idéia de clássico, são meramente citados. E ocorre também ao poeta operar de maneira mais ampla, utilizando-se da intertextualidade, como em Balada das três mulheres do sabonete Araxá, em que a citação de Shakespeare coexiste com a do anúncio comercial.56 Diferentemente dos escritores modernistas, que lidam com a simplicidade de maneira conceitual, apelando para o “primitivo” e o “moderno”, no caso de Oswald, ou para o “humilde” e o “sublime”, como se vê na estruturação poética de Bandeira, os músicos populares do período analisado trabalham ao sabor das contingências. Um e outro tipo de artista prezam de igual modo as informações acumuladas, o domínio das tradições, tanto textuais quanto vividas, mas lavram o material de maneira diversa. Lévi-Strauss, em O pensamento selvagem, levanta algumas questões sobre a arte que são bastante su-
56 Ver Arrigucci,
1990. O poema é de 1931, do livro Estrela da manhã, impresso em 1936 com tiragem de apenas 47 exemplares para subscritores (Bandeira, 1993).
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gestivas para a análise deste ponto. Ele argumenta que a arte se coloca “a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico”, já que o artista tem algo em comum ao mesmo tempo com o cientista e com o bricoleur. O cientista (ou “engenheiro”), na acepção de Lévi-Strauss, caracteriza-se pelo fato de recorrer a um projeto que define, desde o início, as matérias-primas e os instrumentos a serem utilizados. O bricoleur, ao contrário, dispensa planos preconcebidos; assim, o conjunto de meios que utiliza se define apenas por sua instrumentalidade (Lévi-Strauss, 1989:32-3). Dito de outro modo, o bricoleur tende a recolher materiais de maneira aleatória, partindo apenas do princípio de que teriam alguma utilidade. Se tem condições de realizar os mais diferentes tipos de trabalho, ele conta, no entanto, com um universo instrumental fechado, recorrendo, segundo Lévi-Strauss (1989:33), a um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores.
Ao fazer uso de meios artesanais, o artista atuaria, portanto, à maneira do bricoleur; ao elaborar “um objeto material que é também um objeto de conhecimento”, ele procederia também como o cientista (Lévi-Strauss, 1989:32-8). A questão se torna mais complexa quando Lévi-Strauss estabelece uma classificação que compreende a arte erudita, a aplicada e a primitiva, todas elas se definindo em função “do confronto entre a estrutura e o acidente, em buscar o diálogo, seja com o modelo [arte erudita], seja com a matéria [arte primitiva], seja com o usuário [arte aplicada]”. Porém o mais instigante nesta análise é o fato de Lévi-Strauss referir-se à probabilidade de a colagem, nascida “num momento em que o artesanato expirava”, ser “apenas uma transposição do bricolage para o terreno dos fins contemplativos” (1989:46). A colagem realiza, nesta acepção de Lévi-Strauss, uma trajetória que é peculiar a um certo tipo de “arte moderna”, ou “modernista”, deslocandose com desenvoltura pelos domínios das artes erudita e primitiva. LéviStrauss, pois, mostra-se sensível ao modo pelo qual o modernismo – com o advento da colagem (que necessariamente privilegia o diálogo tanto com o material quanto com o modelo) – ocasiona uma dissolu-
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ção das fronteiras rígidas entre aquelas classificações tradicionais mencionadas. Essa análise de Lévi-Strauss das formas artísticas pode auxiliar na abordagem do modus operandi do músico popular brasileiro dos anos 20 e 30, que, embora opere numa pauta diferente da utilizada pelo artista modernista, tende também a modificar a hierarquia estética normalmente estabelecida. Em seu trabalho, ele não se limita a dialogar com o modelo, como na concepção clássica de arte, nem com a matéria, como se dá com a arte primitiva, nem tampouco com o usuário, como na arte aplicada. Levanto então a hipótese de que o músico popular do universo pesquisado busca uma interlocução mais polifônica, desenvolvendo portanto a simplicidade de maneira original. Diferentemente da colagem modernista, que envolve um controle – inclusive do repertório a ser selecionado –, a composição popular resulta de um trabalho até certo ponto desordenado, relativamente descontrolado, em certos aspectos monstruoso, incorporando dicções e estilos bem diversos, que muitas vezes sequer se pautam pela simplicidade. Por exemplo, por conta da estratégia narrativa, Noel Rosa foi apresentado neste capítulo como uma figura paradigmática da simplicidade. Deixei, porém, de explorar outros aspectos de sua estética, marcadamente polifônicos, que refletem o contato de Noel com um número muito maior de influências e de pressões. Mas este argumento será retomado no próximo capítulo. Não se pode deixar de observar que normalmente se exige dos músicos populares requisitos diferentes – até mesmo opostos – dos que se exigem dos eruditos. Espera-se destes últimos uma devoção abnegada ao seu ofício, através de muita disciplina e preparação. Dos populares, ao contrário, espera-se, como argumenta Luiz Tatit, que mostrem um “dom inato”, um “talento antiacadêmico” e uma “habilidade descompromissada com qualquer atividade regular”. Naturalidade, espontaneidade e instantaneidade são portanto “valores preciosos ao cancionista”, pois ele cria um texto musical muito colado à vida (Tatit, 1996:17-20). O projeto com o qual os músicos eruditos se comprometem levaos a adotar uma perspectiva estilística mais uniforme e a contar com um público também homogêneo, que se confunde, em certo sentido, com partidários de uma seita. O compositor modernista, nesse caso, é comparável ao autor de teatro de corte francês do período clássico, preso a um só patrono e a uma linguagem nobre que lhe é exigida por
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seu público aristocrático. Já a posição do músico popular, no contexto abordado por esta pesquisa, é equiparável à de Shakespeare na época elisabetana, que contava com um público mais diferenciado e não se encontrava vinculado a um produtor específico. Shakespeare, não por acaso, incorporava a seu texto expressões coloquiais bem próximas das faladas pelo povo que o assistia.57 Luiz Tatit associa a figura do cancionista à do malabarista, criando assim uma metáfora que remete à própria natureza do ofício do músico popular. Tatit descreve um artista que é ao mesmo tempo equilibrista e improvisador, pois se dele se exige “equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia”, isso tem que ser feito aparentemente sem esforço, com “habilidade, manha e improviso” (Tatit, 1996:9). Esse aspecto merece ser enfatizado, pois evoca a condição do músico popular do Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, atuando num universo complexificado, em que o mercado, e não o mecenas, é que dita as regras. Em vez de contar com ouvintes seletos, sua legitimidade cultural é conferida por um público heterogêneo e sujeito a modas e a mudanças de opinião. O músico popular se vê, portanto, em condições de atuar com maior flexibilidade que o erudito, não só comprometido com sua plataforma político-cultural como também com a permanência de sua posição de produtor de cultura “erudita”, ou “legítima”, para usar a expressão de Pierre Bourdieu (1968:128). Tatit (1996:14) levanta outra questão que considero particularmente importante. Apesar de afirmar que, em se tratando de canção popular, a maneira de dizer é mais importante do que o que é dito, ele mostra que, diferentemente da canção erudita, em que prevalece uma forte preocupação com a sonoridade, convertendo-se a voz em instrumento musical, a canção popular, pelo menos a brasileira, não se descuida da inteligibilidade. Dito de outro modo: na canção popular se dá mais atenção à prosódia do que na erudita. Refiro-me aqui ao significado não-musical de prosódia, que indica, segundo o Aurélio, “pronúncia regular das palavras, com a devida acentuação”. Isso decorre do compromisso do compositor popular com os temas em voga no momento, as personalidades em destaque, e com a própria forma concreta da língua falada de seu tempo; pois é justamente na medida em que capta essas realidades e as expressa na forma da canção que ele se valida enquanto cancionista.
57
Ver Bourdieu, 1968.
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Outro problema que se coloca é o da recepção diferente dos domínios erudito e popular. Não pretendo enfatizar essa questão na minha análise, mas não se pode deixar de levar em conta que os artistas eruditos – tanto músicos quanto poetas –, numa atuação semelhante à dos movimentos vanguardistas em geral, têm ouvintes e leitores seletos, que constituem uma espécie de aristocracia intelectual. Renato Poggioli compara, por exemplo, a atitude vanguardista – do criador e do público – com a do hierofante e do neófito gregos, que se colocavam numa posição privilegiada como detentores de um conhecimento raro e oculto, e se opunham ao mundo do profano e dos não-iniciados, onde imperaria uma ignorância generalizada. Os vanguardistas contemporâneos atualizariam essa relação criando uma tensão antagonística não mais entre conhecimento e ignorância, mas entre a “cultura do rebanho” e a “cultura dos isolados”, entre “aqueles que desdenham” e “aqueles que prezam” um valor desconhecido anteriormente. Cria-se aí uma situação paradoxal, na medida em que esse tipo de atitude vanguardista só é possível historicamente nas sociedades democráticas, as únicas em condições de admitir uma arte de exceção, que se proclama antidemocrática e antiburguesa. Como cultura minoritária, atenta aos valores qualitativos, a vanguarda combate a cultura majoritária que floresceu na sociedade moderna como “cultura de massa” (Poggioli, 1968:92-102). Já os músicos populares, em virtude do tipo de comunicação direta que desenvolvem, assim como de sua predisposição para entrar sem ressalvas no mercado e para utilizar as novas técnicas de informação, contam com um público amplo e heterogêneo. Se resolvem questionar – sem programas coletivos, mas a partir de sua subjetividade lírica, ou mesmo jocosa – a civilização representada pela cultura de massa, eles o fazem, contraditoriamente, utilizando os próprios canais gerados por esta civilização e beneficiando-se do pluralismo estilístico engendrado por ela. Essa maneira de operar dos músicos populares evoca as interpretações de Mikhail Bakhtin da cultura popular que se desenvolve na Idade Média e no Renascimento. Ao contrário, por exemplo, da estética monumental, que (como vimos no capítulo anterior) tende a reforçar a cultura oficial e a adotar um tom sério, o riso popular que se manifestava nos períodos medieval e renascentista, principalmente nas festas carnavalescas, punha-se justamente a questionar as autoridades religiosas e feudais, com a ajuda de diversos atores e figurantes, como os bufões, os gigantes, os anões, os monstros e os palhaços de diversas estirpes. A praça pública era o locus por excelência do de-
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senvolvimento de uma gestualidade e de um vocabulário que aboliam as formas convencionais, vinculadas às hierarquias constituídas. Esse tipo de contexto, segundo Bakhtin, teria propiciado a criação de linguagens carnavalizadas, em que se destaca a obra literária de Rabelais. Bakhtin mostra-se crítico, no entanto, para com o procedimento corrente de modernizar grosseiramente o riso popular medieval, associando-o ao espírito da literatura cômica moderna, ou mesmo a um tipo de humor negativo vinculado a essa forma de escrita. Este tipo de interpretação, segundo ele, incorreria no erro de ignorar uma das principais características da comicidade antiga, que é a de inteirar-se completamente com o mundo, ao invés de vê-lo de maneira distanciada e negativa, como fazem muitos dos autores modernos. Assim, o humor popular é dotado de uma ambivalência constitutiva, pois adota-se a atitude de rir de um mundo no qual se está envolvido (Bakhtin, 1987a). Mas, ao adotar uma postura de certa forma inaugural de valorizar a cultura cômica popular da Idade Média, Bakhtin (1987a) critica a concepção estreita dos pré-românticos e românticos, como Herder, que excluíam o humor popular e outras manifestações da praça pública. E ao desenvolver essa crítica do romantismo, Bakhtin ao mesmo tempo questiona o sistema de valores que releva a poética e propõe que se considere uma prosaica em duas acepções: a de uma teoria da literatura que privilegia a prosa em detrimento da poesia e a de uma forma de pensamento que toma como pressuposto a importância do cotidiano, do comum. Bakhtin atribui uma postura excludente com relação à prosaica particularmente ao formalismo russo, que tenderia a tratar o artístico como sinônimo de “poético”, a prosa como sinônimo de “discurso não-literário”, o discurso não-literário como “prático” e “habitual”, e a linguagem prática como “homogênea”, “não-criativa” e “automatizada”. Assim, os formalistas incorreriam no erro de desvalorizar o próprio cotidiano, pois se a linguagem que nele se desenvolve é automatizada é porque lhe faltaria vitalidade. Ao afirmar, portanto, que é no cotidiano que se dá a criação, Bakhtin parte de um pressuposto contrário ao dos formalistas. Ao invés da atitude dos formalistas e futuristas, que valorizavam o romantismo boêmio e “a bofetada no rosto do gosto do público”, Bakhtin incentiva o artista a se inteirar com o cotidiano, com a riqueza do mundo comum (Morson & Emerson, 1990:15-23). Esta discussão é relevante para o tema que desenvolvo, pois a prosaica proposta por Bakhtin, cuja premissa inicial é a desconfiança na idéia de sistema, fornece subsídios para contrapor a cultura que se
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desenvolve na praça pública ao ideal de cultura proposto pela tradição alemã da Bildung. A crença em sistemas, segundo Bakhtin, supõe a imagem de uma grande hierarquia que mantém todos os elementos inter-relacionados e que confere sentido à aparente desordem da vida cotidiana. Essa perspectiva tende a ser monológica, privilegiando a idéia de que tudo se relaciona a um todo único, cujo significado pode ser decifrado desde que se conheça o código. Assim, o mundo cultural apresentaria forças centrípetas (oficiais) e centrífugas (não-oficiais); aquelas tenderiam a impor a ordem num mundo essencialmente caótico e heterogêneo, enquanto estas se encarregariam constantemente de perturbar a ordem, de maneira proposital ou não. Mas são justamente os acontecimentos da vida cotidiana os responsáveis pela heteroglossia, isto é, as perturbações e alterações constantes do dia-a-dia que, na medida em que vão se somando com o tempo, ameaçam a integridade do idioma. Assim, o que configura tanto a linguagem quanto a cultura são as alterações não-sistemáticas. Se os totalitários semióticos pressupõem que a desordem demanda explicação, os defensores da prosaica partem do pressuposto contrário: o que necessita ser explicado é a integridade (Morson & Emerson, 1990:28-32). Bakhtin afirma, pois, que o mundo não é apenas caótico, mas também “aberto, inovador, cheio de surpresas, potencialidades e liberdade”. E é a partir dessa concepção de mundo que o diálogo faz sentido. Não se trata de uma interlocução, como se interpreta tradicionalmente, entre duas mônadas. Esse tipo de explicação tende a encarar os eventos como prisioneiros de um conjunto de regras; assim, partindo do mundo da teoria para chegar ao mundo dos eventos, perde-se a historicidade do evento. Bakhtin rebate, portanto, esse tipo de explicação essencialista, mostrando que as entidades sociais e psicológicas são de natureza processual. Quando se trata de entidades individuais e sociais, a existência não se separa da comunicação, pois, neste sentido, ser significa comunicar. De maneira semelhante, não se poderia tratar o indivíduo, ou a entidade social, como mônadas, pois tanto um quanto o outro se apresentam como entidades indefinidas e caóticas; o eu não é auto-suficiente, mas depende de interações. O diálogo envolve, pois, uma redefinição constante dos interlocutores, não permitindo que se emita uma palavra final (Morson & Emerson, 1990:36-52). Não foi, portanto, por acaso que Bakhtin se interessou pelos festejos medievais, pois neles percebeu o desenvolvimento de uma linguagem expressiva da percepção carnavalesca do mundo. Dispensando
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idéias de acabamento, de imutabilidade e de eternidade, esta visão se manifestaria através de formas de expressão “dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas”. Desviando-se também do ideal de perfeição, tais formas carnavalescas tenderiam a representar o avesso através de diversas formas de profanações, constituindo-se como uma espécie de “segunda vida” que se constrói no mundo popular e configurando-se como paródia da vida ordinária. Mas Bakhtin (1987b:9-10) lembra que esse tipo de procedimento carnavalesco em muito se diferencia da paródia moderna, que se caracteriza pelo negativismo e pelo formalismo; a paródia carnavalesca tende a ressuscitar e a renovar, não se contentando com a negação pura e simples. A simplicidade que se manifesta em nosso contexto modernista, em sua versão popular, apresenta portanto pontos de contato com a sensibilidade carnavalesca medieval analisada por Bakhtin; de maneira semelhante, remete também à noção do estilo humilde franciscano, analisada por Auerbach. Quando os músicos populares lidam com o humilde, eles tendem, à sua maneira, a promover uma degradação do sublime, embora não o façam de modo tão radical como no realismo grosseiro da Idade Média. Mas talvez nossos compositores compartilhem com esses autores medievais a recusa a promover a oposição entre corpo e alma – ou entre céu e terra –, tal como na tradição cristã, em que sempre se valoriza o primeiro termo e se rebaixa o segundo. Neste sentido conferido por Bakhtin, o termo “rebaixar” perde o teor depreciativo conferido pelo cristianismo medieval, passando a significar uma “comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor” (Bakhtin, 1987b:19). Se esse ideal de despojamento popular tem em comum com o erudito – isto é, com alguns escritores modernistas – a recusa aos esquemas totalizadores, dele se afasta, no entanto, com relação às suas premissas básicas. É impossível, como vimos, operar no registro popular sem fazer uso da vivacidade, do espírito lúdico e de uma boa dose de improviso. No plano erudito, o ideal de simplicidade refere-se basicamente à busca de uma linguagem mais concisa e objetiva, a despeito de suas atualizações locais. Na música francesa modernista, como a do Grupo dos Seis, a simplicidade remete radicalmente à objetividade; aqui, na experiência literária do período, a simplicidade se concilia com um lirismo subjetivista, que, ainda que se pretenda moderno, não deixa de ser romântico. Mas também esse intimismo tende a pre-
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servá-la, na maioria das vezes, de tentações totalizantes. Os poetas que, a exemplo de Manuel Bandeira, abraçam a simplicidade não se colocam, em sua poética, como porta-vozes da nação, mas de redutos ligados à sua experiência, como a Lapa e outros espaços boêmios que, quando retratados, denotam familiaridade e não estranhamento. Esse tipo de atitude em muito se assemelha à dos artistas franceses do final do século, como Baudelaire e Toulouse-Lautrec, que de certa forma tomam contato com questões “modernas” através do basfond.58 A simplicidade, em sua acepção musical francesa, também se pauta pela concisão; no Brasil ela se harmoniza, no plano literário, com o excesso. Mas tal como na França, aqui também se valoriza o popular sem grandes transfigurações. Os manifestos de Oswald de Andrade são bastante representativos dessa tendência. Ao invés de adotar a perspectiva essencialista e grave assumida pelo projeto musical nacionalista, Oswald insurge-se, no “Manifesto antropófago” (1928), contra todas as catequizações e todos os sistemas: Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses (Andrade, 1972a:16).
E ao contrário da vertente romântico-iluminista alemã, que valoriza a tradição enquanto depositária de uma natureza coletiva cristalizada, Oswald rebela-se contra a “Memória, fonte do costume”, em nome da “experiência pessoal renovada” (1972a:18).
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Ver Velloso, 1996.
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3 A ci d ad e fr agmen tad a Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago”
A per er equ i ce melód i ca d i fíci l Conforme observei no capítulo anterior, alguns músicos populares, como Noel Rosa e Lamartine Babo, atualizaram sua forma musical em função das expressões criadas no dia-a-dia, no mundo diurno do trabalho ou no noturno dos bares; ou então apreenderam as gírias trazidas pelos meios de comunicação de massa, como o cinema falado e o rádio, e pela moda. Registram-se também o surgimento de performances afinadas com um ideal de familiaridade com códigos pretensamente urbanos, como no exemplo do Bando de Tangarás. Seus componentes, preocupados em estabelecer uma certa uniformidade na apresentação – tal como se fazia, por exemplo, na linha dos jazz-bands –, trocaram as roupas típicas nordestinas usadas à época do Flor do Tempo pelo terno escuro (Almirante, 1963:83). Convém observar, quanto ao Tangarás, que esse conjunto teve uma trajetória curiosa: se, por um lado, seus integrantes se dedicaram a perpetuar a estética sertaneja em vigor desde o início do século (como veremos mais adiante), por outro, fizeram verdadeiro exercício vanguardista em 1929, ao utilizarem os instrumentos de percussão das escolas de samba na gravação de Na Pavuna, do compositor Homero Dornellas.
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De fato, a trajetória desse conjunto é reveladora das mudanças operadas não só na música popular do período, como também na própria condição do músico branco, de classe média ou alta que, como no caso de Noel Rosa, tende a abandonar a postura do diletante e assumir a especialização. Constituído originariamente numa versão rural, como o Flor do Tempo, e integrado por alunos do Colégio Batista, na Tijuca – Braguinha, Henrique Brito, Álvaro Miranda Ribeiro, Erasmo Vollmer, Edmundo e Alfredo Vidal –, aos poucos o conjunto foi incorporando novos membros, como Almirante e o próprio Noel Rosa, e se profissionalizou de vez com a formação do Bando de Tangarás. Braguinha e Noel se projetaram mais como compositores; Almirante teve uma carreira diversificada, como intérprete, locutor e apresentador de programas de rádio (Cabral, 1990). Os Oito Batutas, conjunto formado em 1919 que contava com a participação de Donga e Pixinguinha, antecipou esse processo vivenciado pelo Tangarás, promovendo uma urbanização não só no ritmo como também no figurino. Em foto reproduzida por Carlos Calado (1990:236-7), com data provável de 1927, quando Os Batutas – com o nome já modificado, pois não eram mais oito os seus integrantes – fizeram uma turnê a Buenos Aires, nota-se que os integrantes se vestiam de maneira idêntica: “terno escuro, camisa branca e gravata xadrez”. A representação de informalidade e uma certa afetação compatível com o registro citadino dos anos 20 são exibidas nessa foto. O tema da “urbanização” dos registros populares sempre evoca a figura de Lamartine Babo. Um dos episódios mais citados na historiografia musical é o relacionado à marcha O teu cabelo não nega, que, interpretada por Carmen Miranda em 1932, com acompanhamento de vários músicos, como Gastão Formenti, Almirante, Pixinguinha e Donga, entre outros, tornou-se um grande sucesso carnavalesco (Valença, 1981). Segundo consta, a música brejeira que chegou ao Rio de Janeiro – de autoria dos irmãos Valença, de Pernambuco – adquiriu ares citadinos quando passou pelas mãos de Lamartine. Vejamos uma das versões da história: A marcha também ficou famosa pela disputa de direitos autorais que gerou. Tratava-se, inicialmente, de música dos irmãos Valença, de Pernambuco, que a enviaram à Victor com o título Mulata. A linguagem dos versos era muito regional; em vista disso, a gravadora pediu a Lamartine que adaptasse a composição ao gosto carioca. E ele mudou radicalmente o original: alterou o ritmo, modificou a letra e acrescentou uma introdução que ficou famosa. A marchinha, finalmente, foi gravada como “motivo do
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Norte com arranjos de Lamartine Babo” e editada como de sua exclusiva autoria. Os Valença levaram a questão à Justiça, que lhes deu ganho de causa, e passaram à (legítima) condição de parceiros de Lamartine Babo.59
Noel Rosa, por seu lado, parece se orientar por um entendimento muito particular do estilo de vida carioca. É como se ele vislumbrasse, a partir da modernidade emergente, a necessidade de uma linguagem musical mais simples e desprovida de ornamentos. Assim, a modernidade é associada a despojamento. Mas trata-se de um despojamento que, embora desenvolva formas intimistas, próximas de um padrão que se entende como sofisticado, se compromete com as linguagens “baixas” que proliferam na cidade. O pendor pelo requintado não exclui, portanto, uma certa inclinação para o rudimentar. Se Noel radicaliza na utilização de procedimentos estéticos mais simples, não deixa, porém, de abrir possibilidades para a configuração do excesso, proveniente, na maioria das vezes, de registros mais humildes. Entende-se, assim, o fato de a voz rascante e plebéia de Aracy de Almeida se alternar com a voz suave e aristocrática de Marília Baptista na interpretação dos sambas de Noel. Apesar dos exemplos citados de padronização de performances e figurinos, além da criação de linguagens musicais condizentes com a babel que se configura no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, seria apressado afirmar que um gosto urbano se teria tornado hegemônico no período, substituindo inteiramente, por exemplo, um tipo de sensibilidade provinciana e afeita ao rural. Também seria difícil imaginar que uma linguagem “moderna” prevaleceria completamente sobre formas “antigas”, ou que o sublime cederia de vez terreno para uma interlocução inteiramente voltada para o coloquial. Seria mais correto dizer que a introdução de novidades teve muito mais o efeito de ampliar o mercado, de torná-lo mais complexo, do que propriamente de promover substituições, ou de recortar rigorosamente o repertório musical de acordo com padrões previamente estabelecidos. Também se pode argumentar que a música popular passa a operar com um registro mais polifônico, abrindo cada vez mais espaço para a emergência do ambíguo, assim
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MPB Pesquisa, 1982a:5. O teu cabelo não nega gerou outra questão controvertida com relação à autoria: se a célebre introdução incorporada à música é do próprio Lamartine ou de Pixinguinha. Alguns, como Sérgio Cabral (s.d.), a atribuem a Pixinguinha; outros, como Suetônio Soares Valença (1981), acham mais provável que o autor seja o próprio Lamartine.
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como para a conformação de estéticas que, de tão excessivas, beiram o monstruoso. Vejamos algumas maneiras pelas quais esse tipo de ambigüidade se manifesta. É certo, por exemplo, que o samba e a marcha tenderam a consagrar a cidade, ou alguns de seus redutos, assim como incorporaram em sua linguagem temas associados à modernização ou ao cotidiano das grandes cidades. Mas foram divulgados pela mídia junto com outros gêneros – emergentes ou não – de formato rural, ou sertanejo, como é o caso do estilo roceiro da região Centro-Sul denominado “moda de viola”, que apareceu nos anos 30 e teve bastante repercussão. Esse estilo, na verdade, já é prenunciado desde que a toada Tristeza do Jeca, composta por Angelino de Oliveira em 1926, alcança grande repercussão na cidade e introduz a forma de apresentação das duplas caipiras. José Ramos Tinhorão (1974:196-7) lembra a importância de Cornélio Pires para o sucesso desse empreendimento, pois o poeta e estudioso da vida rural é responsável pela vinda a São Paulo das primeiras duplas caipiras e pela produção de discos do gênero. Registra-se também na música popular desse período a coexistência de linguagens “baixas” e “elevadas”, ora de maneira alternada – como, por exemplo, um samba simples e conciso de Noel seguido, numa programação de rádio, de uma composição piegas de Cartola –, ora no interior da própria canção, através de uma atitude conciliatória para com padrões musicais distintos. As possibilidades são muitas, o que permite uma série de cruzamentos, ou configurações. Uma das maneiras, por exemplo, de os músicos populares se pautarem pelo registro do sublime é recorrer a uma dicção provinciana, pouco afeita à incorporação das linguagens modernizadas da metrópole. Promove-se, nesse caso, a própria sublimação dos elementos não corrompidos pelo processo civilizador que se desenrola nas grandes cidades. De certa forma, quando desenvolvem esse estilo ruralizado, eles se mostram afinados com a estética musical do modernismo, muito embora os populares já esboçassem esse gesto negador da vida urbana desde o início do século. De acordo com a historiografia sobre o assunto, os músicos populares teriam encontrado, a partir desse momento, um campo propício para o desenvolvimento de temas folclóricos, a começar pelas reformas feitas por Catulo da Paixão Cearense na modinha, adaptando-a “ao gosto pelo exótico nacional” (Tinhorão, 1974:185-6). Tinhorão lembra, porém, que essa atitude incorporativa dos gêneros musicais rurais de caráter folclórico, assumida pelos compositores urbanos, remonta ao século XIX, quando o público do teatro de revista começou a se in-
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teressar pelos temas do campo. E destaca Chiquinha Gonzaga como a primeira figura dos meios musicais a promover uma “estilização consciente” de um gênero de música rural. Tinhorão enfatiza a importância, “como ponto de partida para o interesse dos cariocas pelos exotismos rurais”, da Exposição Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, realizada no Rio de Janeiro em 1908, com seus “estandes com produtos típicos de todos os estados brasileiros”. Menciona também a embolada Cabocla de Caxangá, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, que alcançou grande popularidade em 1914. Neste mesmo ano, Pernambuco formou um conjunto com vários músicos, como Donga, Pixinguinha e Caninha, que adotou o nome de Grupo de Caxangá. Fantasiados de nordestinos, seus integrantes saíam no carnaval tocando em ritmo de choro não só toadas sertanejas, como Cabocla de Caxangá, mas também gêneros urbanos compostos pelo grupo. Tinhorão (1974:192-4) enfatiza o sucesso carnavalesco de Cabocla de Caxangá e da toada Luar do sertão (arranjo de João Pernambuco sobre motivo popular, com letra de Catulo), chamando a atenção para o fato de que esse fenômeno em muito teria contribuído para o surgimento, a partir de 1915, da voga da canção sertaneja. Tinhorão refere-se também à experiência teatral carioca do início do século, em que se destacou Eduardo das Neves, incluindo em seu repertório tanto as modinhas e os lundus, gêneros típicos do final do século, quanto os gêneros regionalistas então em moda, como desafios sertanejos, cateretês, canções sertanejas etc. E registra a criação, por Monteiro Lobato, da figura do Jeca Tatu, que se tornou conhecida a partir de 1919 como uma caricatura do homem rural. Almirante, ao abordar esse tema, comenta a onda regionalista que teria assolado o país a partir de 1912, com reflexo na música tocada nos centros urbanos, principalmente o Rio de Janeiro – como as canções da dupla João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense, e posteriormente do compositor Marcelo Tupinambá (pseudônimo de Fernando Lobo). Relata que Ernesto Nazaré, impressionado com a estética sertaneja de Tupinambá, compôs dois tangos brasileiros em homenagem ao compositor: Tupinambá (1916) e Matuto (1917). Os efeitos dessa onda regionalista seriam sentidos igualmente no teatro, no carnaval – que aderiu aos temas nordestinos, desde o ritmo às roupas típicas – e na produção de obras de pesquisa folclórica que datam da virada e do início do século, como Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero (1987), Festas e tradições populares, de Mello Moraes Filho (1901), Cancioneiro do
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Norte, de Rodrigues de Carvalho (1903), Folclore pernambucano, de Pereira de Mello (1908), Os nossos brinquedos e Cantigas das crianças e do povo, de Alexina de Magalhães Pinto (1909 e 1911) e O Norte (impressões de viagem), de Osório Duque-Estrada (1909). Almirante cita as conferências proferidas por Afonso Arinos, em 1915, sobre temas folclóricos, chegando a promover, em dezembro desse mesmo ano, sob o patrocínio da Sociedade de Cultura Artística, no Teatro Municipal de São Paulo, a apresentação de autos e danças dramáticas tradicionais. O autor também menciona as pesquisas folclóricas promovidas por VillaLobos, que passou a viajar pelo Nordeste, e por João Pernambuco, que, financiado por Arnaldo Guinle, andou por vários lugares à cata de material (Almirante, 1963). Esse gosto pelo sertanejo teria continuidade na década de 20, dando o tom para a maioria dos conjuntos musicais que se constituíram no período, como Os Oito Batutas, o Flor do Tempo e o Bando de Tangarás. Os Oito Batutas apresentavam um repertório constituído de maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês etc. e se notabilizaram por suas apresentações musicais na sala de espera do Cine Palais. A repercussão foi tanta que chegou a influenciar a formação de outros conjuntos musicais do mesmo gênero, como os Turunas Pernambucanos, que tinham como integrantes Jararaca e Ratinho.60 A mesma inspiração regionalista (de formato rural) acompanharia o Flor do Tempo – sugerida até pelos apelidos com conotação sertaneja dos integrantes do conjunto, como Zé Bodão, Belarmino dos Cabritos, Bartulino, Juca Pega Boi etc. – e o Bando de Tangarás. É importante lembrar que ambos os conjuntos contaram com a participação de Almirante, que sempre declarou sua preferência por cocos e emboladas (Cabral, 1990:45). Consta que o grupo sertanejo pernambucano Turunas da Mauricéia despertou interesse no Rio de Janeiro durante todo o ano de 1927. E de acordo com Almirante, a substituição, a partir de 1927/28, da moda americanista ou “inglesista” de chás dançantes pelas músicas regionais deveu-se em grande parte à iniciativa do Correio da Manhã,
60 Segundo Almirante (1963:30), os
Turunas Pernambucanos (originários de Pernambuco, como indica o próprio nome do grupo) vieram para o Rio em abril de 1922, “exibindo-se também no Cine Palais”. “Eram anunciados como ‘músicos do Norte', ‘caboclos brasileiros', ‘cantigas do sertão', ‘emboladas e desafios'.” Aos poucos, outros componentes se uniram aos Turunas, como João Pernambuco.
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que promoveu o concurso “O que é nosso”, que teve grande repercussão. O autor complementa: “Os violões plangiam pelos salões mais elegantes do Rio e vozes rústicas enchiam de encantamento as mais exigentes platéias” (Almirante, 1963:41). Decio de Almeida Prado diz que por volta de 1930 celebrava-se ainda a “beleza intocada” e a “pureza de costumes não poluída pela civilização das plagas sertanejas”, através tanto de toadas cujas letras se construíam a partir do trinômio choça-roça-palhoça, quanto de canções criadas num registro entre o erudito e o popular por músicos como Joubert de Carvalho e Heckel Tavares, que formavam parcerias com escritores de teatro e poetas, como Luís Peixoto, Joracy Camargo, Paschoal Carlos Magno e Olegário Mariano. O autor também argumenta que mesmo as marchinhas carnavalescas do período apresentavam um ranço muito forte de um mundo rural que nunca deixou de rondar a cidade. Seus textos preservariam, portanto, vestígios de cantos folclóricos, recorrendo sempre à tematização de animais familiares, como a barata, o boi e outros. Almeida Prado (1989/90:18-20) conclui então seu artigo dizendo que o universo musical do período 1900-30, preso a uma sensibilidade típica do século XIX, assim como às suas raízes rurais e folclóricas, não corresponderia mais ao de um país prestes a se industrializar. O próprio Noel Rosa, que se notabilizou por uma temática e por um intimismo mais associados à sensibilidade urbana, começou sua carreira musical compondo uma embolada (Minha viola, de 1929) e participando do Bando de Tangarás, cujo repertório abrangia vários gêneros regionais. Almirante, ao comentar esta incursão de Noel pelo universo das canções sertanejas, afirma que o “filósofo do samba” demorou a se interessar pelos motivos e ritmos cariocas. Ainda no final dos anos 20 e início dos 30, Noel compôs três canções no gênero sertanejo – Festa no céu (1929), Mardade da cabocla e Sinhá Ritinha (ambas de 1931) (Almirante, 1963:69, 71-3). E Lamartine Babo, que se destacou pelo ecletismo, foi responsável por um verdadeiro ciclo junino, a começar por No rancho fundo, que fez em parceria com Ari Barroso em 1931 (Valença, 1981). Além de outras composições do gênero, Lamartine Babo criou duas cantigas juninas que se tornaram muito conhecidas: Chegou a hora da fogueira (1933) e Isto é lá com Santo Antônio (1934), num momento em que produzia uma série de canções de formato mais urbano (Hungria, 1969). Assis Valente foi outro músico expressivo da época que, além de outras temáticas, dedicou-se também às composições juninas, como
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Cai, cai, balão (1933), Acorda, São João (1934), Mais um balão e Olhando o céu todo enfeitado (ambas de 1935). Seria possível interpretar a preservação dos gêneros de feitio mais rural como um desvio da tendência reinante na música popular de tematizar o urbano, atribuindo então ao compositor que ainda reluta em abandonar a província uma certa insensibilidade para captar os signos modernizantes do imaginário carioca. Mas uma segunda reflexão me leva a sugerir que a própria existência de um mercado no Rio de Janeiro para esse gênero musical demonstra que as fantasias de modernização não excluiriam outros registros, como se poderia supor. Aliás, a pressuposição de que a partir de um certo momento da história do Rio de Janeiro um tipo de linguagem urbana necessariamente se tornaria hegemônico me parece uma atitude reificadora dessas próprias projeções de uma modernidade emergente. Mesmo porque o processo de urbanização do mundo ocidental, principalmente após as revoluções econômicas do século XVIII, não tendeu a promover uma homogeneidade no plano cultural; pelo contrário, criou condições para o aparecimento de diferenças acentuadas nos costumes e mentalidades. Gilberto Velho (1995:229) argumenta que se a grande cidade não inaugura a heterogeneidade, ela se apresenta, associada ao capitalismo e à Revolução Industrial, como “locus paradigmático da diferenciação de domínios e papéis sociais”. Velho aprofunda essa discussão lembrando que, se por um lado não há como negar que o processo universal de expansão do capitalismo tende a estabelecer certos direcionamentos, particularmente o referenciado à racionalização da vida, por outro, este mesmo processo permite que os indivíduos ganhem flexibilidade para o deslocamento entre domínios e papéis. Esse tipo de “mobilidade de identidade”, que o autor denomina metamorfose, teria o poder de relativizar “racionalidades específicas em trajetórias e contextos localizados” (Velho, 1995:229-30). Não se nota, por exemplo, um empenho, por parte dos músicos populares, em criar uma estética padronizada, que remetesse à idéia de um estilo carioca. A tendência predominante na música popular é, ao contrário, para fragmentar, suburbanizar, atribuindo-se – como é o caso de vários compositores populares – identidades bem definidas a certas localidades, como a Pavuna, o bairro de Vila Isabel, o morro do Estácio e assim por diante. Feitiço da Vila, samba que Noel compõe com Vadico em 1934, é representativo do espírito bairrista que move os compositores no período. Esse samba dá início a uma polêmica musical entre Noel e Wilson Batista, no momento em que Wilson, através do samba Conversa fiada, cita ironicamente Feitiço da Vila:
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É conversa fiada Dizerem que o samba Na Vila tem feitiço. Eu fui ver para crer E não vi nada disso. A Vila é tranqüila Porém eu vos digo: cuidado! Antes de irem dormir, Dêem duas voltas no cadeado. Eu fui na Vila ver o arvoredo se mexer E conhecer o berço dos folgados A lua nessa noite demorou tanto Me assassinaram um samba Veio daí o meu pranto.
Noel aceita a provocação e responde a Wilson Batista com o samba Palpite infeliz, de 1936: Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz Que sempre souberam muito bem Que a Vila não quer abafar ninguém. Só quer mostrar que faz samba também. [...]
A marcha Cidade maravilhosa, composta por André Filho em 1934, registra mais a exceção do que a regra. E ironicamente o “poeta da Vila” compõe em 1936 Cidade mulher, marcha exaltativa do Rio de Janeiro que lhe é encomendada para o filme do mesmo título, de Carmen Santos (Máximo & Didier, 1990): Cidade de amor e ventura Que tem mais doçura Que uma ilusão Cidade mais bela que o sorriso Maior que o paraíso Maior que a tentação Cidade que ninguém resiste Na beleza triste
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De um samba-canção Cidade de flores sem abrolhos Que encantando nossos olhos Prende o nosso coração Cidade notável Inimitável Maior e mais bela que outra qualquer Cidade sensível, Irresistível, Cidade do amor, cidade mulher! Cidade de sonho e grandeza Que guarda riqueza Na terra e no mar Cidade do céu sempre azulado Teu sol é namorado Das noites de luar Cidade padrão de beleza Foi a natureza Quem te protegeu Cidade de amores sem pecado Foi juntinho ao Corcovado Que Jesus Cristo nasceu
Tenta-se também na música popular, através de vários arranjos, preservar os aspectos interioranos na metrópole, como é o caso da música junina, ou das próprias músicas carnavalescas, como a Marchinha do grande galo, que Lamartine Babo compôs em parceria com Paulo Barbosa em 1936. Se o gênero marcha ganhou configuração no Rio de Janeiro dos anos 20 e 30 e passou a ser consumido principalmente por uma classe média ávida por novidades, a Marchinha do grande galo leva a crer que as fantasias de modernização, por parte desses segmentos, conviviam com uma certa nostalgia do campo. Esta marcha não apresenta nenhuma sofisticação – quer na letra, quer na melodia –, e seu famoso refrão cai inteiramente no gosto do público: Có, có, có, có, có, có, ró! Có, có, có, có, có, có, ró! O galo tem saudade da galinha carijó!
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A marchinha Cantores do rádio, que Lamartine fez em parceria com João de Barro e Alberto Ribeiro em 1936, tematiza, ao contrário, o novo mundo criado para o artista popular com o advento do rádio. Mas, a despeito da abordagem de um Rio de Janeiro transformado pelos meios de comunicação de massa, a linguagem da música, apesar de uma alegria contagiante, não adota um tom dessacralizado. O que notamos é que os compositores poetizam a mídia, conferindo aura e subjetividade a um mundo pretensamente objetivado: Nós somos os cantores do rádio Levamos a vida a cantar De noite embalamos teu sono De manhã nós vamos te acordar Nós somos os cantores do rádio Nossas canções cruzando o espaço azul Vão reunindo num grande abraço Corações de norte a sul Canto Pelos espaços afora Vou semeando cantigas Dando alegria a quem chora Bum bum bum bum bum bum Bum bum bum bum Canto Pois sei que a minha canção Vai dissipar a tristeza Que mora no teu coração Canto Para viver mais contente Pois a ventura dos outros É a alegria da gente Bum bum bum bum bum bum Bum bum bum bum Canto E sou feliz só assim Agora peço que cantes Um pouquinho para mim
A idéia de radiodifusão é aqui representada pela imagem de “canções cruzando o espaço azul” – imagem de vôo ressaltada pela linha ascendente da melodia, com prolongamento da sílaba tônica de “azul”. Em
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seguida, o “nós” da primeira estrofe (cantada em coro) é substituído pelo sujeito singular de “canto” (estrofe cantada por solista), que reforça a relação individual (e sentimentalizada) entre seu canto e o ouvinte singularizado: entre “minha canção” e “teu coração”. Reforçando essa relação, a parte do solista termina com um convite para que o ouvinte cante “um pouquinho para mim”, verso que introduz a repetição da estrofe inicial, em que o sujeito plural de “Nós somos...” inclui o próprio ouvinte, a cantarolar junto com o rádio. Como acontece em outros casos exemplares da nossa canção popular, há uma interação estreita de música e letra, tornando impossível conceber o texto inserido em outra melodia ou outro ritmo. Os momentos mais líricos fazem a coincidência entre um e outro elemento da composição parecer perfeita, o que também se dá com a parte mais carnavalesca, muito bem representada pelo “bum bum bum bum”. A música exige um cuidado e uma sensibilidade muito especiais por parte dos intérpretes, porque o tom alegre não pode dispensar a delicadeza, a ternura. Os sambas e as marchinhas carnavalescas não obedecem, portanto, a um critério fixo, orientando-se tanto pelo grotesco quanto pelo romântico. Pierrô apaixonado, por exemplo, marcha de 1936 de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, assim como Rasguei a minha fantasia, marcha de Lamartine Babo (1935), caracterizam-se pelo lirismo e por uma certa melancolia, fugindo do padrão cômico do gênero (Rangel, 1965). E se o samba e a marcha se mostram afinados com as linguagens desenvolvidas no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, isso não significa necessariamente um corte com sensibilidades passadistas. Cartola, por exemplo, ao contrário dos demais sambistas de morro que se atinham à poética da malandragem, tendia a desenvolver em suas letras – pelo menos no início de sua carreira – uma vertente de lirismo identificada com a linguagem rebuscada dos nossos poetas românticos do século XIX. Divina dama, composição de 1933, exibe, por exemplo, este tipo de registro: Tudo acabado E o baile encerrado Atordoado fiquei Eu dancei com você Divina dama Com o coração queimado em chama [...]
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A linguagem excessiva de Divina dama, a propósito, é perfeitamente adequada à interpretação impostada que lhe foi dada por Francisco Alves, assim como o arranjo orquestral da Odeon, bastante convencional, que deu pouca ênfase ao ritmo que se entende como samba. Esse tipo de composição – e a forma como é apresentada ao público – atesta a distância que separa a linguagem musical de Cartola da coloquialidade do dia-a-dia. Quanto a esta questão, Claudia Matos observa que Cartola se deixou influenciar pelo “veio lírico-amoroso [que] tem como principais temas o Amor e a Mulher, vistos numa perspectiva idealizante e fatalista, no mais das vezes com expressão pessimista e lamuriosa”.61 Luiz Tatit (1996:32) argumenta que a rejeição de alguns músicos populares à linguagem do seu cotidiano deve-se ao fato de aspirarem a um estilo poético erudito, que lhes conferiria uma certa sofisticação. Pouco informados, no entanto, acerca dos rumos da arte erudita da época, recorrem a um classicismo ultrapassado e mal assimilado, resultando numa “linguagem empolada e [em] melodias que lembram árias européias do século XIX, ainda que simplificadas e reduzidas no tamanho”. Essa tendência ao semi-eruditismo, segundo Tatit, remonta ao início do século, tendo como principais representantes Catulo da Paixão Cearense e Cândido das Neves, o que é visível nas letras das canções destes compositores: [...] Prossegue embora em flóreas sendas sempre ovante De glórias cheia no teu sólio triunfante Que antes que a morte vibre em ti Funéreo golpe seu... (Talento e formosura).62
André Gardel (1996:75-6) analisa esse tipo de estética desenvolvida por Catulo:
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Matos, 1982:46. É curioso o fato de as canções mais despojadas de Cartola, como Tive, sim (1968), ou Acontece (1978) – apesar da recaída piegas percebida no verso “Acontece que meu coração ficou frio/ E o nosso ninho de amor está vazio” –, serem composições mais recentes, criadas no final da vida do compositor. 62 Catulo da Paixão Cearense e Cândido das Neves apud Tatit, 1996:32.
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Líder do movimento sertanista na música, o “Vítor Hugo do sertão”, o “Lamartine das serenatas”, epítetos que ele mesmo se dá, Catulo da Paixão, poetastro modinheiro semiparnasiano, é, na verdade, o ícone máximo da postura paternalista europeizante da elite brasileira diante da arte popular e interiorana. Em meio à voga nacionalista de resgate de canções folclóricas do Norte e Nordeste, que leva inclusive Donga, Pixinguinha e Caninha, em início de carreira, cariocas negros e mestiços da gema, a participarem do Grupo do Caxangá, junto com sertanejos como João Pernambuco, enchendo as ruas de cateretês, emboladas, toadas, no fundo apenas mais alguns elementos a comporem o todo híbrido das novas canções cariocas que surgem no período, Catulo vem a ser o popular aceito pelas elites nas salas de concerto e casas de políticos e gente famosa, que ambicionavam ver de perto o pitoresco regional com puros olhos europeus, “emprestando ao Brasil pobre do campo um lirismo que o compensaria do atraso”.
Tatit inclui nessa tendência semi-erudita parte da obra de Orestes Barbosa – como Chão de estrelas –, de Lupicínio Rodrigues, Cartola, Nélson Cavaquinho e outros compositores. O autor (1996:33) recorre à análise de Beatriz Borges sobre o tema: Atrás de um preciosismo, no entanto, é que a maioria dessas produções segue, procurando se afastar o máximo possível da linguagem comum, diária, coloquial. Atrás de palavras raras – pois é da escolha vocabular refinada que depende a originalidade das letras e a capacidade de causar emoção –, atrás de palavras literárias, que exercem o mesmo fascínio que despertam no seu autor, este, zeloso, prefere uma forma mais rica, mais refinada para falar de seus mais refinados sentimentos, que em nada podem se ligar à banalidade e à falta de brilho de sua existência.
Tatit (1996:33-4) refere-se também a Sinhô, que, mesmo “coloquial por excelência”, teria criado composições comprometidas com a gramática, como Jura, em que promete à amada um “beijo puro na catedral do amor”. De fato, a produção de Sinhô é associada a um registro muito mais renovador do que retrógrado. Suas composições, inclusive as sentimentais, primavam pela irreverência. E, em dois casos pelo menos, suas sátiras políticas lhe renderam aborrecimentos. Fala, meu louro, samba de 1919 inspirado num incidente com Rui Barbosa, teria provocado um conflito na Faculdade de Direito da Bahia. A letra comenta de maneira sarcástica o uso da retórica e da linguagem bacharelesca por Rui Barbosa, como se vê no refrão:
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Papagaio louro Do bico dourado Tu que falavas tanto Qual a razão que vives calado
Em 1921, Sinhô criticava a atuação política de Artur Bernardes com a marcha Fala baixo, o que lhe teria causado problemas com a polícia. Em 1927, na Noite Luso-Brasileira, foi coroado “rei do samba” (Mariz, 1985). Em Ora, vejam só, samba de 1927, ele já se antecipava aos compositores dos morros, tematizando a malandragem: A malandragem Eu não posso deixar Juro por Deus E por Nossa Senhora É mais certo Ela me abandonar Meu Deus do Céu Que maldita hora. [...]
Mas, a despeito de sua postura inaugural na música popular, Sinhô não deixa de criar uma identidade contraditória, o que é muito bem captado por Manuel Bandeira, que destaca em crônica sobre o enterro do compositor, em 1930, seu perfil de mediador entre os artistas da “sociedade fina e culta” e as “camadas profundas da ralé urbana”. Bandeira (1965:454) aprofunda a descrição de Sinhô, chamando a atenção para o seu lado afetado, cabotino e ao mesmo tempo fascinante: “O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda”. André Gardel (1996:77) mostra como Sinhô chegou até mesmo a usar em várias composições a dicção sertaneja em voga no momento, como em Disse me disse: Capineiro marvado Não capina capina aí O capinzal é de meu bem Onde canta o juriti
Às vezes recorre-se ao empolamento para a constituição da própria persona, como é o caso de Paulo da Portela, compositor bissexto que costuma ser retratado como uma figura que teria exercido nos anos
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20 e 30 grande liderança não só na Portela como nas escolas de samba em geral. Ele é sempre descrito como um organizador da folia, ou como uma espécie de moralizador, “tentando tirar as escolas da marginalidade”, para não serem vistas como “antros de malandros e desordeiros”. Dando continuidade a essa missão, encarregou-se de fazer a mediação entre o morro e a cidade: segundo Sérgio Cabral (1982:2), Paulo da Portela foi o sambista “mais entrevistado pelos jornais, por ser uma espécie de relações públicas das manifestações artísticas das áreas mais pobres do Rio de Janeiro”. A função “civilizadora” de que se incumbiu acabou conferindo-lhe um perfil de dândi, como se recortasse, entre os modelos disponíveis, aquele que mais se aproximava de um padrão citadino de elegância. E embora ele procurasse se diferenciar do malandro, recorreu a um estereótipo semelhante ao utilizado por este, ao copiar o “terno branco impecável” do figurino burguês (Matos, 1982:56-7). Claudia Matos, ao distinguir o malandro do proletário – sua antítese por excelência nos redutos populares –, analisa a condição caricatural e parodística do malandro com relação ao burguês: E por ser uma paródia, seu modo de se apresentar inclui aspectos de exagero e deformação tão evidentes que o próprio trajar elegante é um dos elementos pelos quais a polícia o identifica como malandro [...]. Sua imagem visual se caracteriza pois por uma preocupação estética (“gosto de andar na moda”), mas ao mesmo tempo pela ambivalência, pela impressão de fantasia ou disfarce que transmite. Tal impressão advém da contigüidade de signos de uma modernidade pequeno-burguesa com signos de outra ordem, relativos à condição negra e proletária [...], à postura marginal em relação à sociedade bem comportada [...] e finalmente à manutenção de uma tradição étnica e social (1982:56-7).
Em sua atitude reverente para com a linguagem “civilizada”, Paulo da Portela acaba desenvolvendo, mesmo sem intenção, esse tipo de representação caricatural do burguês, ao fazer uso de discursos rebuscados e empolados, como o que pronuncia para o jornal A Pátria, em janeiro de 1935: Todas as minhas conquistas, eu digo, sem pejo de errar, devo-as à imprensa, esse poder inconfundível que honra e dignifica a nossa nacionalidade. Porque só os imbecis se levantam contra aqueles que, até com risco da própria vida, não recuam quando na defesa da causa justa (apud Cabral, 1982:2).
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Ernesto Nazaré, na condição de “pianeiro”, talvez seja o melhor exemplo de semi-eruditismo na forma musical. Tornou-se conhecido por suas apresentações de piano na sala de espera do Cine Odeon, a partir de 1917, e algum tempo depois na casa comercial Carlos Gomes, onde executava ao piano partituras solicitadas pelos fregueses.63 Uma das características curiosas do compositor é exatamente seu trânsito quase ininterrupto pelos domínios delimitados para o erudito e o popular, embora tenha certamente configurado um estilo como compositor popular. Mas a familiaridade que adquiriu com os mais variados repertórios europeus – das ingênuas valsas de Strauss às peças românticas de Chopin – e nacionais – como o choro, a seresta carioca, o maxixe e outros – contribuiu bastante para o tipo de engenhosidade exibida pelo compositor, ao deformar os ritmos originais e abrasileirá-los. É assim, por exemplo, que ele confere uma forma menos diluída ao tango, interpretando-o como “tango brasileiro”. Outro procedimento importante de Nazaré consiste em transpor para o piano a flauta, o violão, o cavaquinho, o oficleide e o bombardino, usados nas interpretações do repertório popular carioca. O musicólogo Mozart de Araújo (1994:169) afirma que Nazaré não criou ritmos nacionais; o que ele fez de novo foi “a apresentação pianística da rítmica do tango”. Essas incursões de Nazaré pelo território da música erudita contribuem para a popularização do piano, justamente num momento em que a classe média começa a se tornar expressiva (Valença, 1989/90). Mário de Andrade, em artigo de 1926, mostra-se perceptivo aos melindres desse compositor de música fácil que aspira à “pererequice melódica difícil”. Na avaliação de Mário, Nazaré geralmente consegue operar no registro difícil a que se propõe, o que diferencia sua obra de outras composições populares: “É mais artística do que a gente imagina pelo destino que teve, e deveria estar no repertório dos nossos recitalistas” (Andrade, 1963). E Nazaré, segundo Mário, ao criar uma obra de caráter instrumental e antivocal, distancia-se dos músicos populares, na medida em que estes concebem a música em função da poesia e da dança. Complementando a análise de Mário de Andrade, Mozart de Araújo ressalta o aspecto anticoreográfico das músicas de Nazaré, atento ao fato de que, embora a obra desse compositor se componha de peças dançantes, ele não foi um autor de músicas para dançar. Araújo
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Ver Enciclopédia da música brasileira , 1977.
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diz que Nazaré se coloca numa posição intermediária entre o erudito e o popular. Se ele não foi um “autor de rua”, tampouco foi um “autor de concerto”, já que seus recursos musicais não eram suficientes para tanto. As incursões do compositor pelos domínios do erudito teriam rendido “peças de circunstância, de valor secundário, sem maior significação dentro do padrão geral que imprimiu à sua obra”. Nazaré teria optado por ser “um bom músico popular”, em vez de “um medíocre músico erudito”. Araújo (1994:154-9) não deixa de mencionar, no entanto, o fato de que Darius Milhaud, em sua passagem pelo Rio, em 1917, ouviu Nazaré executando suas composições no cinema Odeon e elogiou seu talento.
À mer en cór i a lu z d a lu a Configura-se, portanto, na música popular do período analisado – anos 20 e 30 – um tipo de democracia musical que tende a refletir uma percepção de cidade, ou de país, de certa forma semelhante à de alguns escritores modernistas. Tudo indica que os compositores populares se mostram mais sensíveis – ou mais receptivos – que os eruditos para captar os signos modernizantes da cidade. Mas, em vez de adotar um procedimento excludente, criando fórmulas padronizadas de composição de acordo com determinado registro citadino, esses músicos, cada um à sua maneira, acionam um leque variado de opções, abrindo espaço tanto para as novidades quanto para os repertórios associados ao passado. Assim, torna-se mais fácil entender a coexistência, numa determinada composição, de procedimentos formais em tese incompatíveis entre si. Como vimos, é comum, nas músicas de Cartola, as letras de teor melodramático não se adequarem ao espírito inovador da melodia, ou do ritmo; ou então, como nas marchinhas carnavalescas de Lamartine, motivos rurais, contidos na letra, invadirem um tipo de forma musical associada à cidade. Em estudo sobre a diversidade cultural no Rio de Janeiro dos anos 20, André Gardel (1996:45) afirma: As estruturas comunitárias propiciam ao Rio de Janeiro um contato entre o espírito provinciano e o primitivo, ambos envoltos na alma moderna que a condição de capital federal impõe. Não há o abandono da província em nome de um imaginário distante, indígena, como em São Paulo, para a consecução do bárbaro tecnizado emergente da grande metrópole da vertente da modernização radical. A cultura popular urbana carioca em sua ambiência celebrativa possui o elemento negro, as
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culturas negras afro-baianas e locais, com sua rica tradição folclórica de ritmo e dança aberta a toda sorte de misturas, tanto intercomunitárias quanto com as modas despejadas na cidade vindas de fora, o que produz sínteses culturais específicas, gerando uma brasilidade carioca na qual a diversidade é costurada pela unidade negra, primitiva mas de abertura moderna e cosmopolita.
E se grande parte dos compositores, ao adotar este procedimento, foi movida pelo apego a uma linguagem poética – pretensamente elevada – há muito arraigada no senso comum, alguns, como Ari Barroso, se orientaram pelo espírito nacionalista, principalmente quando começou a desenvolver, a partir dos anos 30, um tipo de música que se tornou conhecido como samba-exaltação, ou samba-cívico. Ao fazer uso desse estilo, Ari, de certa maneira, criou um tipo de concepção musical compatível com a do modernismo, ou com o tipo de estética nacionalista de cunho monumental que Villa-Lobos desenvolveu principalmente a partir dos anos 30. De fato, desde que se converteu ao ideal de brasilidade, Ari procurou se aproximar dos músicos eruditos que desenvolviam o projeto musical modernista, engajando-se nas campanhas de canto orfeônico concebidas por Villa-Lobos (Tatit, 1996). Nos anos 20 e 30, Ari alternava composições líricas, intimistas, com marchinhas carnavalescas. A partir do final da década de 30, começou a se dedicar à composição de músicas de exaltação regionalista, como Na Baixa do Sapateiro (1938), Aquarela do Brasil (1939) e Terra seca (1943), elaborando-as num registro próximo ao do hino (Grunewald, 1965). Aquarela do Brasil, com seu tom encomiástico e grandiloqüente, aproxima-se do espírito da epopéia. Tal como Os Lusíadas, por exemplo, ao evocar a “Terra de Nosso Senhor”, a letra da canção remete à idéia de povo eleito; e, seguindo a linha do relato épico, alude ao passado, embora não tematize, como faz a epopéia, feitos de antepassados: [...] Ah! Abre a cortina do passado Tira a mãe preta do cerrado Bota o rei-congo no congado Brasil, pra mim Deixa cantar de novo O trovador À merencória luz da lua
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Toda canção do meu amor Quero ver essa dona caminhando Pelos salões arrastando O seu vestido rendado [...]
Outro procedimento épico que se nota em Aquarela do Brasil é a construção dos personagens sem o concurso do tempo. O “mulato inzoneiro” e a “morena sestrosa”, convertidos em tipos nacionais, são figuras congeladas num eterno presente, estereotipadas e sem densidade. Processo semelhante se vê na construção da Odisséia. Erich Auerbach chama a atenção para o fato de que os heróis homéricos, ao contrário das figuras do Velho Testamento – “mais plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sua própria história vital e mais cunhadas na sua individualidade” –, não apresentam desenvolvimento na construção de suas identidades ou de suas trajetórias de vida. Esse tipo de construção a-histórica faz com que os personagens aparentem uma idade prefixada e que se recorra a uma narrativa em que o desfile dos fenômenos se dá no primeiro plano, isto é, “sempre em pleno presente espacial e temporal”. E complementa: “falei [...] do estilo homérico como de ‘primeiro plano' porque, apesar de muitos saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente único e puro, sem perspectiva” (Auerbach, 1987:5-14). Tárik de Souza (1982) observa que a estética de Aquarela do Brasil combina com o espírito do nacional-socialismo de Hitler que inspirava o Estado Novo de Vargas. E Sérgio Cabral (1979:59) alude a uma espécie de “namoro” de Vargas com o governo alemão, ao se referir ao episódio de janeiro de 1936, em que a edição do programa oficial Hora do Brasil “foi transmitida diretamente para a Alemanha, apresentando sambas da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira”. Tárik de Souza lembra que, em 1931, Ari Barroso já havia começado a tematizar a Bahia de maneira exaltativa; a partir de 1934, esse tema se torna recorrente. O crítico musical mostra-se perceptivo à sensibilidade ufanista de Ari, devotando-se desde jovem à produção de hinos: Ubaenses gloriosos, Meu pampa lindo, Hino do Colégio Cataguases e Hino do Colégio Pedro II (Souza, 1982). Já se percebe também nas cartas que Ari, quando jovem, escreve para Ivone,64 sua namorada, o tom bachareles-
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Ver Cabral, s.d.
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co de seu discurso, provavelmente influenciado por sua formação em direito. Ari utiliza esse tipo de linguagem triunfalista em depoimento para o Diário de Notícias (outubro de 1958), em que descreve seu estado de espírito ao conceber Aquarela do Brasil. Segundo ele, sentado ao piano de sua casa, em 1939, teria sido “acometido não só de inspiração mas também de um sentimento patriótico inarredável”. E complementa: Senti, então, iluminar-me uma idéia: a de libertar o samba das tragédias da vida, do sensualismo das paixões incompreendidas, do cenário sensual já tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra, “gigante pela própria natureza”. Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes, aliás. Foi um clangor de emoções. [...] De dentro de minh'alma, extravasara um samba que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso.65
O estilo monumental de Aquarela do Brasil não se restringe à letra. A música, tal como o arranjo que a acompanha, corrobora o clima solene que lhe empresta o texto. Embora o ritmo sincopado seduza o ouvinte para a dança e o componente excessivo da parte musical remeta também ao universo carnavalesco, há um prolongado suspense harmônico – incomum no samba e na música popular em geral – que começa à altura do verso “Deixa cantar de novo o trovador” e só retorna à tônica muitos compassos (ou cinco versos) depois, em “O seu vestido rendado”. Assim, ao contrário de Noel Rosa, que inaugura procedimentos simples, desde a composição à interpretação, Ari instaura a grandiosidade, tanto na obra quanto no significado que lhe confere. Vasco Mariz (1985:91) afirma que Ari “imprimiu novo impulso à orquestração da música popular, ampliando-a com alentados conjuntos, em contraste com a singeleza tímida de Noel Rosa”. E retoma a comparação entre os músicos: “Sinhô, Noel e Pixinguinha foram cantores de determinados bairros cariocas e de estados de espírito da boemia do Rio de Janeiro; Caymmi trouxe-nos a melancolia das toadas praianas do Norte, mas só Ari Barroso fez cantar o Brasil inteiro em uníssono, de
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peito estufado por ser bem brasileiro, deste Brasil ‘do mulato inzoneiro'”. Claudia Matos chama a atenção para o fato de que Aquarela do Brasil acaba se tornando um modelo para o samba-exaltação. E desenvolve: “Em termos musicais, o samba-exaltação caracterizava-se pela imponência dos arranjos orquestrais, enquanto o samba, até então, normalmente se fazia acompanhar de um simples regional” (1982:52). Esse aspecto cívico da obra de Ari levanta outra questão: a correspondência entre vida e obra em Ari e Noel. A música de Noel reflete sua trajetória circular – nada heróica – pelos diversos bares de Vila Isabel, da Lapa, dos morros e do subúrbio do Rio de Janeiro, à procura do prosaico que marca o cotidiano. Já a estilização promovida no samba por Ari, tornando-o “sinfonicoso”, a par de letras com teor cívico, corresponde a uma vida devotada às questões públicas, como as atividades políticas junto à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, para a qual elegeu-se vereador pela União Democrática Nacional. Apesar de mineiro de Ubá, Ari é figura marcante no cenário musical do Rio de Janeiro a partir dos anos 20. Sua trajetória profissional, bastante eclética, é sem dúvida marcada por sua personalidade inquieta, contraditória, ou, como descreve Mariúza, sua filha, “ao mesmo tempo carismática, marcante e controvertida” (Cabral, s.d.:97). Começa sua carreira, por exemplo, nos anos 20, como pianista de jazz, ao mesmo tempo em que estuda direito. Chega a assumir por pouco tempo (15 dias) o cargo de juiz municipal e retorna à vida artística, caracterizada por grande diversidade: pianista, regente de orquestra, compositor (inclusive de músicas para peças teatrais) e escritor de espetáculos de teatro de revista. Ingressa definitivamente no rádio a partir de 1932, tornando-se uma figura inovadora nesse veículo, lançando programa de calouros, escrevendo crônicas e quadros humorísticos para Horas do Outro Mundo, programa em que divide o microfone com Renato Murce, e mais tarde assumindo a função de locutor esportivo. Em 1935, inicia suas atividades de jornalista, escrevendo uma seção diária no Correio da Noite sob o título “Falando a todo mundo”, ocupando-se principalmente em comentar o rádio e a música popular. A diversidade da atuação de Ari Barroso por volta de 1936 é relatada por Sérgio Cabral: Na Rádio Cruzeiro do Sul transmitia jogos de futebol, apresentava um programa esportivo diário, participava de programas humorísticos, conduzia o Calouros em Desfile, escrevia quadros para os radioatores e, de vez em quando, sentava-se ao piano para tocar uma música ou para acompanhar um cantor. Não abandonava o teatro e não largava o Fla-
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mengo, freqüentando o clube e participando da política interna, em encontros no Café Rio Branco. Na música popular, estava sempre em contato com os colegas compositores e com os cantores, seja nos estúdios das emissoras de rádio e das gravadoras, seja nos bares da boemia carioca, com destaque para o Casa Nice, que a posteridade guardou com o nome de Café Nice.66
Quanto à sua sensibilidade como compositor, Ari, tal como Lamartine, se revela múltiplo, criando desde marchinhas carnavalescas bem-humoradas até sambas exaltativos e exuberantes no feitio de Aquarela do Brasil. Quando decide ser simples, é quase imbatível, o que é demonstrado por algumas de suas composições, como Camisa amarela, de 1939. Este samba tematiza com lirismo e humor situações do cotidiano boêmio da cidade e, ao mesmo tempo em que trabalha com uma linguagem bastante coloquial, exibe sofisticação na forma. A letra merece transcrição: Encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela Convidei-o a voltar pra casa em minha companhia Exibiu-me um sorriso de ironia E desapareceu no turbilhão da galeria Não estava nada bom o meu pedaço Na verdade estava bem mamado, bem chumbado, atravessado Foi por aí cambaleando, se acabando num cordão, de reco-reco na mão Mais tarde o encontrei num café zurrapa do largo da Lapa Folião de raça bebendo o quinto copo de cachaça Isso não é chalaça
66 Sérgio Cabral (s.d.:165, 197) também informa que, nos anos 40, Ari Barroso cria a fi-
gura de repórter de campo e a função de comentarista de futebol.
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Voltou às 7 horas da manhã, mas só na quarta-feira cantando a Jardineira, oi, a Jardineira Me pediu, ainda zonzo, um copo d'água com bicarbonato O meu pedaço estava ruim de fato pois caiu na cama e não tirou nem o sapato Roncou uma semana, despertou de mau humor quis brigar comigo, que perigo, mas não ligo Meu pedaço me domina, me fascina Ele é o tal, por isso não levo a mal Pegou a camisa, a camisa amarela botou fogo nela Gosto dele assim acabou a brincadeira e ele é só pra mim Meu Senhor do Bonfim
A música de Camisa amarela, com transições harmônicas complexas e uma linha melódica elaborada, se adapta plenamente à temática. Além da prosódia perfeita – o acento da melodia coincide sempre com o da letra –, a linha melódica é marcadamente ascendente sempre que os versos reproduzem os refrãos carnavalescos (“A Jardineira” e “A Florisbela”) cantados pelo folião que é o protagonista. Camisa amarela capta, por um ponto de vista feminino, uma maneira carioca de falar e um ethos específico de um tipo de boemia da cidade. Observe-se, por exemplo, que a voz feminina da letra é totalmente isenta de juízos de valor; ela se limita a descrever a situação por um prisma ao mesmo tempo irônico e amoroso. Ari também não se furtou a experimentar a paródia. Em 1935, por exemplo, compôs a marcha carnavalesca Cavalhada franciscana, numa nítida alusão ao melodrama operístico Cavalleria rusticana, de Pietro Mascagni: [...] Este estribilho Original Ouvi lá no Municipal [...]
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Ari Barroso, também por usar deste procedimento, chega a ter problemas com a censura, que proíbe a divulgação de Garota colossal – marcha de 1935 que compõe em parceria com Nássara – por esta apresentar dois compassos baseados na melodia do Hino Nacional e por sua abertura constituir uma reprodução do Hino à Bandeira (Cabral, s.d.). No rol dos músicos populares que despontaram na virada dos anos 20, ninguém foi mais contraditório que Ari, tanto no plano estético quanto no pessoal. E segundo depoimentos de vários contemporâneos do compositor, ou de pesquisadores de música popular, ninguém foi mais carismático, como demonstra José Lino Grunewald (1965): Fez rádio e, como poucos e raros, dando uma enorme vivacidade ao microfone. Seus programas de calouros marcaram época. Sua participação no esporte, apaixonada, instigante, sacudia os torcedores, irradiando e comentando o futebol, com ardor, com mordacidade. E quando a televisão começou a ocupar a sua faixa própria, lá estava ele: música, esporte, política, humorismo. Entre os nossos compositores – não resta dúvida – pode não ter sido o maior sob um ângulo de visão estritamente inventivo, mas foi, de todos, aquele que teve maior presença, maior personalidade como profissional em situação.
Sérgio Cabral, ao lidar com este aspecto de Ari Barroso, ressalta sua faceta udenista e comenta que ele era “dado a exageros e afirmações radicais”. Se esse perfil do compositor é construído, por um lado, de maneira factual, numa referência explícita a sua carreira política como vereador pela UDN no final dos anos 40, por outro, não se pode negar que o qualificativo “udenista” remete a um significado mais amplo, relativo à própria constituição de sua personalidade cheia de nuanças. Mas, sem dúvida, dentre todos os compositores do período, ninguém se dedicou mais à vida pública. Sabe-se que Ari, além da atividade político-partidária, atuou também na Liga de Futebol do Rio de Janeiro, a partir de 1937, como secretário, e em atividades sindicais, como na reivindicação dos direitos autorais dos compositores na Sbat (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).67
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Quando Ari Barroso e outros músicos populares de sua geração se atêm ao estilo humilde, ganham em flexibilidade, abrindo-se espaço para um sujeito lírico e para um bufão muito próximos da sensibilidade de alguns escritores modernistas, como Manuel Bandeira. Assim, algumas canções de temática amorosa de Ari, como Camisa amarela, dispensam a linguagem empolada utilizada por várias gerações de músicos e poetas, e adotam o tom coloquial proposto e experimentado pelos poetas modernistas. As composições humorísticas de Ari são representativas do procedimento parodístico na música popular. Mas o fato é que a estética de Ari Barroso não se presta a uma definição precisa, e a dificuldade para rotulá-lo não se deve apenas ao seu trânsito pelos diferentes gêneros musicais. Talvez sua sensibilidade múltipla se deva mais ainda às maneiras diferentes com que aborda figuras e motivos populares. Às vezes se orienta pela vida, por suas paixões, ou mesmo pelo contato com a afetividade que brota nos bares e em outros recantos que freqüenta no cotidiano; outras vezes entrega-se a idealizações. Quando opta pela experiência, desenvolve um sujeito lírico muito próximo ao de Noel. Camisa amarela, por exemplo, estrutura-se através das alternâncias entre envolvimento e distanciamento, mostrando uma sensibilidade afeita tanto ao amor quanto à percepção irônica do próprio sentimento. Quando incorre em idealizações, mostra-se próximo de Lamartine. Um e outro lidam com tipos generalizáveis, como a “lourinha” ou a “mulata”, no caso de Lamartine, ou a “baiana” tão decantada por Ari a partir de final dos anos 30. Ao recorrer a estereótipos, ambos se distanciam do procedimento singularizador de Noel Rosa, que tende a retratar personagens ligados à sua vivência cotidiana e a espaços bem demarcados da cidade do Rio de Janeiro. Ao desenvolver o gênero samba-cívico, Ari Barroso revela uma espécie de comprometimento, no plano cultural, com os ideais nacionalistas e unificadores do Estado Novo, que instauram uma atmosfera de gravidade e reverência para com um passado mítico e grandioso, assim como enaltecem o meio natural exuberante. Já os músicos populares que se orientam pela vida cotidiana, com suas paixões, seus reveses e seus imponderáveis, tendem a adotar uma linguagem musical simples e fragmentária. A atitude reverente cede lugar a procedimentos humorísticos que, como vimos, se realizam em forma de sátira, de pastiche ou paródia. Desenvolvem uma percepção carnavalesca do mundo que não se restringe, portanto, aos três dias consagrados ao ritual. Porém seria difícil interpretar algumas obras de Lamartine Babo e Ari Barroso a partir de critérios de alternância entre o sério e o humo-
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rístico, mesmo porque esses compositores embaralham os dois registros. Como observei no capítulo anterior, Lamartine brinca com a tradição do hinário. De maneira semelhante, Lamartine e Ari tematizam, em algumas composições, tipos e motivos idealizados, muito mais compatíveis com a linguagem grave da tradição monumental do que com signos atualizados com a vida contemporânea. Mas ao adotarem esse procedimento, desenvolvem uma forma muito peculiar na música brasileira, abordando elementos típicos da estética monumental de maneira carnavalizada. Talvez o exemplo mais significativo dessa postura seja a marcha Teu cabelo não nega, “urbanizada” por Lamartine em 1932 e desde então associada definitivamente ao carnaval, a começar pela introdução melódica, que se tornou o prefixo carnavalesco por excelência. Em Hino do carnaval brasileiro, de 1939, Lamartine radicaliza esse procedimento, conclamando – e carnavalizando – tipos raciais brasileiros do sexo feminino: Salve a morena! – A cor morena do Brasil fagueiro Salve o pandeiro! Que desce o morro pra fazer a marcação... São são são são... Quinhentas mil morenas! Louras, cor de laranja, cem mil... Salve! Salve! Meu carnaval Brasil! Salve a lourinha! Dos olhos verdes – cor das nossas matas... Salve a mulata! Cor do café – a nossa grande produção... São são são são... Quinhentas mil morenas! Louras, cor de laranja, cem mil... Salve! Salve! Meu carnaval Brasil!
Nesta marcha, Lamartine parodia – mesmo sem fugir ao seu estilo conciliador – o espírito ufanista predominante no período, que cultiva a idéia de um Brasil pujante, cuja riqueza se mede também pela variedade de raças, pela miscigenação e por uma “democracia racial” sem precedentes. Interpretada pela voz vigorosa e ao mesmo tempo
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bem-humorada de Almirante, a marcha é arranjada com todos os instrumentos da banda militar, como tambores e cornetas, numa alusão explícita ao Estado Novo. Além da orquestração excessiva, ouve-se também um coro que se alterna com a voz de Almirante ao cantar o refrão. Lamartine consegue criar um clima inusitado nesta composição, em que o tom militar – que não dispensa uma longa passagem instrumental que se confunde com o próprio hino – convive perfeitamente com a atmosfera carnavalesca. Ari Barroso, num estilo talvez menos carnavalizado que o de Lamartine, consegue também abordar temas e figuras oficializados pelo Estado Novo sem trair sua vocação para a alegria e o lúdico. No batuque que compõe, por exemplo, em 1937, intitulado No tabuleiro da baiana, Ari se mostra bastante familiarizado com o procedimento recorrente, no período, de se utilizar símbolos regionais como emblemas da nação: – No tabuleiro da baiana tem... – Vatapá, oi, caruru Mungunzá, tem umbu Pra Ioiô – Se eu pedir você me dá O seu coração, seu amor de Iaiá? – No coração da baiana tem... – Sedução, ô, canjerê Ilusão, ô, candomblé... – Pra você – Juro por Deus Pelo Senhor do Bonfim Quero você Baianinha, inteirinha pra mim – E depois O que será de nós dois? Seu amor é tão fugaz e enganador! – Tudo já fiz Fui até num canjerê Pra ser feliz Meus trapinhos juntar com você – E depois Vai ser mais uma ilusão No amor quem governa é o coração [...]
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Mas embora trabalhe com emblemas da nacionalidade, Ari constrói a letra apelando para o duplo sentido; assim, ao mesmo tempo em que exalta a Bahia, cria um forte clima de erotismo. Na letra, a relação dos diversos quitutes expostos no tabuleiro da baiana é entremeada com um discurso de sedução, evocando de modo implícito o sentido sexual do verbo “comer” (o qual, aliás, não aparece no texto), os quitutes atuando talvez como metáforas para os diferentes atributos físicos da baiana. Há um diálogo perfeito entre música e letra, melodia e ritmo, reforçando o sentido duplo do texto. Assim, em “Se eu pedir você me dá/ O seu coração, seu amor de Iaiá?”, a pausa entre os versos, separando verbo de objeto, reforça a leitura intransitiva (e erótica) de “dá”, mais uma vez evocando o ausente verbo “comer” em suas duas acepções. O elemento religioso – “Senhor do Bonfim”, “canjerê” – entra como mais um recurso na argumentação sedutora. No final, fica claro que a baiana, embora claramente não convencida da sinceridade dos sentimentos do sedutor – “Vai ser mais uma ilusão” –, termina cedendo assim mesmo, porque “No amor/ Quem governa é o coração”. Ou seja: desde o início não era necessário seduzi-la, pois, ao oferecer seus quitutes, ela já estaria sinalizando sua disponibilidade para o amor; o diálogo de sedução é puro ritual lúdico.
Alô, alô, car n aval É difícil adotar critérios rígidos para analisar a música popular do período modernista, já que ela se pauta tanto pelo humilde quanto pelo sublime, tanto pelo simples quanto pelo excessivo, tanto pelo rural quanto pelo urbano. E mesmo quando algum compositor, como Noel, tende mais que os outros a captar os sinais modernizantes da metrópole, essa apreensão não é isenta de ranços provincianos, tendendo mais a uma sensibilidade suburbana do que propriamente urbana. Relativamente aos valores da época, pode-se dizer que essa sensibilidade bairrista dos compositores citadinos conferia-lhes uma marca bastante diferente da que caracterizava os músicos modernistas, basicamente comprometidos com o projeto nacional. Mário de Andrade, por exemplo, concebia qualquer tipo de atitude particularista como nociva ao ideal de unidade. Elizabeth Travassos (1996:193), a propósito, mostrou a equivalência promovida por Mário entre os indivíduos e as regiões; na acepção de Mário, o “regionalismo cioso de sua diferença” seria “o
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equivalente coletivo do egoísmo individual”. Mário contrapunha portanto o “amor da humanidade” à “egolatria”, que ele via sob a forma do “apego a facções, bairros ou nações”. Essa questão evoca mais uma vez as análises de Bakhtin dos gêneros literários que se desenvolveram na Antigüidade. Os gêneros oficiais, ou sérios, como a epopéia, a tragédia, a história e a retórica clássica, opunham-se aos gêneros cômico-sérios, profundamente envolvidos com o folclore carnavalesco. Se a literatura séria se predispunha a reforçar a tradição e o ideal de unidade e perenidade, o cômico-sério, impregnado de cosmovisão carnavalesca, era dotado de uma força vital e transformadora. Dito de outro modo: enquanto os gêneros sérios se comprometiam com a preservação do passado, baseando-se na lenda, o cômico-sério se colocava a serviço da vida, fundando-se na experiência e na fantasia viva. O cômico-sério só recorria à lenda para dar-lhe um tratamento crítico, parodiando-a na maioria das vezes. E diferentemente da unidade estilística que caracterizava os gêneros sérios, os gêneros carnavalizados se singularizavam pela pluralidade de estilos e pela variedade de vozes, fundindo o sublime com o vulgar, o sério com o cômico, e exibindo uma narrativa politonal (Bakhtin, 1981:92-3). Dentre os gêneros cômico-sérios, o que mais interessa a esta discussão é a sátira menipéia,68 cujas origens remontam ao folclore carnavalesco. Ela teria exercido, segundo Bakhtin, grande influência na literatura cristã antiga e na bizantina, assim como teria se desenvolvido, sob diversas variantes, em épocas posteriores, chegando até a modernidade. Bakhtin ressalta o aspecto protéico desse gênero, o qual lhe dava condições de penetrar em outros gêneros. Essa qualidade polimorfa da sátira menipéia a aproxima da estética musical dos anos 20 e 30, no Brasil, em sua versão popular, que se realiza com a coexistência de várias linguagens – sublime e vulgar, rural e urbana, monumental e simples – e de várias vozes (Bakhtin, 1981). Há ainda um ponto que gostaria de rediscutir, relativo à incorporação, por alguns compositores populares, de padrões fornecidos pela cultura erudita, como o romântico e o parnasiano. Esse procedimento, como vimos, leva-os a ornamentar a linguagem musical com letras difíceis e empoladas e com interpretações plangentes, tanto vocais quanto instrumentais. Esses autores aspiram a um estilo poético
68 A denominação advém de Menipo de Gadare, filósofo do século III que deu forma
clássica a esse tipo de sátira (Bakhtin, 1981).
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erudito e, impossibilitados de se atualizarem sobre os rumos desse tipo de estética, acabam desenvolvendo um arremedo de classicismo fora de época. Este é o caso de Catulo, que exibe esse tipo de sensibilidade desde o início do século; de Cartola, que se mostra influenciado, no início de sua carreira, pela linguagem floreada de Olavo Bilac e de outros poetas parnasianos; de Ari Barroso, que utiliza formas difíceis na confecção da letra de Aquarela do Brasil, e de vários outros músicos. E não seria possível deixar de citar Chão de estrelas, canção composta em 1937 por Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, que leva esse ideal de rebuscamento às últimas conseqüências. Embora se deva tomar uma série de cuidados ao comparar estéticas configuradas em momentos históricos muito remotos com formas de arte desenvolvidas mais recentemente, acredito que se poderia tomar emprestado alguns modelos fornecidos por Bakhtin e utilizá-los um pouco para refletir sobre a sensibilidade exibida por esses compositores populares, a meio caminho entre o popular e uma arte pretensamente erudita. Em sua análise de Rabelais, Bakhtin examina, por exemplo, as diferenças que se esboçaram na Renascença entre os ideais estéticos do realismo grotesco, que se orientavam pelo inacabamento, e os que se formaram a partir da retomada dos princípios da Antigüidade clássica, fundados na idéia de completude, perfeição e acabamento. As imagens que aparecem, por exemplo, na obra de Rabelais são ambivalentes e contraditórias, contrariando a percepção da estética clássica de uma vida cotidiana preestabelecida e completa. Dito de outro modo, as imagens do realismo grotesco são carregadas de historicidade, o que lhe permite trabalhar com elementos tradicionais – como “o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal etc.” – no sentido da incompletude. Assim, do ponto de vista clássico, que lida com a idéia de um “corpo humano perfeito e em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento”, as imagens do realismo grotesco são “monstruosas e horrendas” (Bakhtin, 1987b:22). Retomando a questão da música popular, a análise de Bakhtin nos sugere que a opção dos compositores citados pelo sublime e por formas que se orientam por um ideal clássico de beleza e perfeição revela, num certo sentido, uma recusa à percepção histórica do mundo. Esses artistas fazem portanto um vivo contraste com os autores das marchas e sambas analisados, como Noel, Lamartine e o próprio Ari, que, ao se inteirarem com o mundo, ou com a cidade, assumem em sua es-
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tética a transitoriedade do cotidiano. É a partir dessa perspectiva que combinam o humilde com o “baixo”. O cenário da música popular do período é marcado pela polifonia, com os compositores se aventurando por diversos campos e experimentando diferentes dicções. Essa multiplicidade leva a arranjos orquestrais mais complexos, que tendem para o excesso, com farta utilização de cordas e metais, o que conduz a uma certa padronização: qualquer que seja o gênero musical, a letra, o registro almejado pelo compositor, os arranjos orquestrais pesados têm sempre o efeito de abolir as diferenças. Há uma tendência, a partir do final dos anos 20, de substituir os “regionais” – formações musicais constituídas de poucos músicos e instrumentos – por grandes orquestras. E tende-se a implementar, no plano do acompanhamento musical, um tipo de estética que se caracteriza basicamente pelo excesso. Pode-se dizer que as experiências melódicas e orquestrais da nossa música popular muito se devem aos ritmos norte-americanos que entraram no país a partir do início do século, como o foxtrote, o charleston, o ragtime, o one-step, o black bottom e a valsa americana (Valença, 1989/90). Em estudo sobre a penetração do jazz no Brasil, Carlos Calado (1990) chama a atenção para o fato de que a formação instrumental do jazz-band que aqui se implantou teria sido mais importante do que o gênero musical em si. O modelo viria do jazz New Orleans e dixieland, com seus trompetes ou pistões, clarinetes, trombones, saxofones, violinos, banjos, pianos e seções rítmicas. Almirante (1963:41), ao descrever o período 1923-26, refere-se à intensa modificação no movimento melódico da música popular, ressaltando a influência dos instrumentos do jazzband na nossa orquestração, desde os “trompetes com varas de quase dois metros” a “esquisitos apetrechos”, como panelas, frigideiras, latas, buzinas etc. Hermano Vianna Jr. (1994:167-8) argumenta que esse fascínio pela música norte-americana já teria acometido Os Oito Batutas, que, após viagem a Paris em 1922, encantaram-se pelo jazz, o que motivou Arnaldo Guinle a presentear Pixinguinha com um saxofone. E Mozart de Araújo chega a dizer que o choro “é a orquestra típica brasileira que corresponde ao jazz americano”. E complementa (1994:87): Partindo do “terno” – flauta, violão e cavaquinho – e passando pelos grupos mais numerosos chamados de “pau e corda”, pois que as flautas eram de ébano, não tardaria que alguns instrumentos da banda se incorporassem ao choro, resultando daí as mais diversas formações instrumentais. Na generalidade os choros passaram a ser constituídos de flauta,
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pistom (trompete), trombone, saxofone, clarineta ou bandolim, como solistas; de oficleide, bombardino ou bombardão, na marcação dos baixos e no contracanto; além de instrumentos de “centro” – violão, cavaquinho, bandola – e de percussão – ganzá, pandeiro.
Talvez nenhum outro gênero contribua mais que o choro para a consolidação do excesso na música popular, pois sua riqueza, segundo Araújo (1994:186), consiste “não só na diversidade de formas e gêneros, como na diversidade de ritmos, não apenas na variedade de instrumentos musicais que emprega, como no virtuosismo de sua execução, onde reponta como característica fundamental a capacidade de improvisação”. Da geração de compositores que se projetam no final dos anos 20, duas figuras se mostram bastante familiarizadas com os ritmos norte-americanos: Ari Barroso e Lamartine Babo. Ari sobrevivia no Rio de Janeiro no início da década de 20 tocando nos cinemas Íris e Odeon, fazendo fundo musical de filmes mudos. Começou depois a integrar grandes orquestras, como a Trianon, a American Jazz e a Jazz Band. De acordo com Sérgio Cabral, Ari Barroso e Custódio Mesquita,69 com suas harmonias requintadas, teriam disputado “um lugar que imaginavam existir para um ‘Gershwin brasileiro'”.70 Segundo matéria de O Globo, de 17-2-1974, Ari teria produzido em 1929 – só para a peça teatral Laranja da China, de Luiz Peixoto – seis foxtrotes. Lamartine Babo já estaria compondo foxtrotes desde 1915, quando participou de concurso musical promovido pelo Colégio São Bento, para o qual criou Pandoram utilizando-se somente de três notas (Valença, 1981:28). Mais tarde, por volta de 1928, dedicou dois foxes à candidata brasileira ao concurso de Miss Universo, ambos com o título Miss Brasil. Nos dois casos atuou como letrista.71 Mas sua composição mais conhecida no gênero é Canção para inglês ver, de 1932, qualificada por Zuza Homem de Mello (1982:2) como uma das peças de Lamartine “onde o nonsense atinge um nível jamais alcançado por qualquer outro
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Custódio Mesquita (1910-45) foi compositor, instrumentista, regente e ator. Estudou com Luciano Gallet no Instituto Nacional de Música (Enciclopédia da música brasileira, 1977). 70 Ver Cabral, s.d. 71 Segundo Valença (1981:49), coube a Aristeu Motta a música do fox-canção e a Augusto Vasseur a do fox-marcha.
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compositor brasileiro”. Essa onda norte-americana tem continuidade nos anos 30, bastante impulsionada pelo cinema falado que tem início nessa década, em que se destaca a filmografia produzida nos Estados Unidos.72 Os ritmos norte-americanos contribuem, portanto, para a conformação da estética do excesso em nossa música popular. A influência do jazz-band sobre os músicos brasileiros concorre principalmente para dotar nossos arranjos daquela profusão de sopros e metais característica das orquestrações norte-americanas. Sérgio Cabral (1990:187) relata, a propósito, que em 1933 tenta-se criar o que seria uma espécie de orquestra típica brasileira, com um som tão vigoroso quanto o dos norte-americanos. Essa orquestra chega a fazer uma apresentação na Rádio Clube do Brasil, sob a regência de Pixinguinha: Era uma idéia de Orestes Barbosa, endossada pelo cantor Mário Reis, que se valeu de seus conhecimentos com integrantes do governo Getúlio Vargas para levar dois ministros para assistirem, pessoalmente, à exibição da orquestra. Mas a idéia não foi adiante. Pixinguinha era [...] o nome mais indicado para conduzir aquela orquestra, pois, além dos conhecimentos teóricos de música, tinha uma extraordinária vivência como instrumentista de choro, gênero que pretendeu enriquecer de várias maneiras, inclusive com arranjos audaciosos. Chegou a ser acusado de andar “influenciado pelo ritmo e pela melodia de jazz ”, segundo escreveu Cruz Cordeiro, na revista Phono-Arte, em novembro de 1929, ao comentar a sua gravação de Carinhoso. Mas a influência do jazz apontada pelo crítico não passava de efeitos de instrumentos de sopro que Pixinguinha estava experimentando e que seriam muito usados nos arranjos que faria na Victor, quando passou a fazer as orquestrações da gravadora.
A gravadora Victor Talking Machine of Brazil, instalada no país em novembro de 1929, torna-se desde o início promotora de arranjos inovadores para a música popular. Muda-se a concepção de acompanhamento musical, passando-se a valorizar orquestrações exuberantes, e não mais a simplicidade que vigorava até então. As formações pequenas de instrumentos, que constituíam os “regionais” predominantes até o momento, são substituídas pelo padrão sinfônico, para o qual concorrem os mais diversos tipos de cordas, metais, teclados e percussões. Bastante afinado com esse registro, Pixinguinha é contratado
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Ver Prado, 1989/90.
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nesse mesmo ano pela Victor, passando a orquestrar grande parte dos discos carnavalescos lançados pela gravadora. O tipo de arranjo criado por ele realça o tom carnavalesco das músicas, o que muito contribui para a repercussão popular das composições. Pixinguinha organizou mais tarde (em 1932), também na Victor, a orquestra Diabos do Céu, que acompanhou vários compositores, e atuou também como regente e arranjador na orquestra da Columbia.73 Radamés Gnattali, operando permanentemente no registro do excesso, promoveu, talvez mais ainda que Pixinguinha, uma verdadeira revolução nos arranjos musicais. Também contratado pela Victor, encarregou-se da função de orquestrador permanente da gravadora a partir de 1935. No ano seguinte, assumiu na recém-inaugurada Rádio Nacional – onde atuou durante 30 anos, desenvolvendo tanto a música erudita quanto a popular – inúmeras funções, como as de pianista, recitalista, solista de orquestra, regente, membro de conjunto de câmara, compositor e arranjador.74 Algumas orquestrações de Radamés tornaram-se famosas, como as de 1937 para os choros Carinhoso (com letra de João de Barro) e Rosa, de Pixinguinha, gravados por Orlando Silva, e as de 1938 para as marchas A jardineira, de Benedito Lacerda, e Meu consolo é você, de Nássara e Roberto Martins. Segundo Sérgio Cabral (1990), utilizaram-se no arranjo de Carinhoso violinos, violas e violoncelos. Quanto às duas marchas, consta que Radamés, ao orquestrá-las com três saxofones e flauta, promoveu uma inovação no acompanhamento instrumental de discos carnavalescos. E também como Pixinguinha, Radamés, a convite de João de Barro (Braguinha), então diretor artístico da Columbia, ingressa nesta gravadora em 1938, onde permanece até 1943 realizando várias orquestrações.75 As transformações promovidas por Radamés – um músico de formação erudita76 – na música popular são atestadas por Bide em depoimento para o Museu da Imagem e do Som de 21-3-1968, em que ele
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Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977. Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977:313. 75 Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977:313. 76 A despeito de sua grande incursão pela música popular, Radamés nunca deixou de compor no registro erudito, atividade para a qual se formou ao longo de muitos anos. Assim, atuou nas duas áreas ao mesmo tempo: “como compositor de música clássica e concertista e como instrumentista e arranjador de música popular” (Enciclopédia da música brasileira, 1977). 74
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diz que as primeiras orquestrações da Rádio Nacional, a cargo de Radamés, conferiam “um desenho de ritmo diferente” à batida original do samba. Se esse procedimento já era comum nos estúdios, coube a Radamés, segundo Bide, promover essa alteração no ritmo original de maneira mais criativa. Bide cita como exemplo o arranjo de Radamés para Jura – composição de Sinhô interpretada por Mário Reis e gravada pela Continental em 1928 –, que teria dado “vida ao samba”. Bide qualifica os sambas de Sinhô de “quadrados”, “amaxixados”, muito diferentes do ritmo que se desenvolvia no Estácio. Assim, o que “enfeitava” as músicas de Sinhô eram os arranjos de Radamés. Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virginia Moreira (1984:20) afirmam que Radamés deu uma “outra moldura” aos cantores brasileiros, antes limitados pela extrema simplicidade dos arranjos regionais. O procedimento comum à época seria os instrumentos de sopro desenharem a melodia, enquanto a percussão se limitaria a cadenciar as composições. Luciano Perrone, um dos colaboradores de Radamés, teria sugerido a ele mudar a função dos instrumentos de sopro, fazendo com que os metais se encarregassem da parte rítmica. Uma das criações mais conhecidas de Radamés é a orquestração original de Aquarela do Brasil. Não se limitando ao arranjo, ele se ocupa também da introdução que ajudou a consagrar a música de Ari Barroso. Radamés concebe uma instrumentação exuberante para Aquarela do Brasil; numa determinada entrada do tema, por exemplo, substituem-se os contrabaixos por cinco saxofones (Cabral, 1990:188). Com Aquarela do Brasil, em que se inaugura o procedimento de utilizar instrumentos de sopro no samba, Radamés se compromete de vez com a estética do excesso. Assim, já numa perspectiva nacionalista, Radamés dá continuidade à tradição dos chorões, que, tal como os instrumentistas do jazzband, valorizam as grandes orquestrações. O programa Curiosidades Musicais, de Almirante, transmitido pela Rádio Nacional em 27-11-1939, tematiza a interferência de Radamés na música popular: Hoje, queremos mostrar toda a arte que pode haver num arranjo de samba. O samba, esse ritmo que tem sido injustamente combatido por alguns críticos esnobes que só vêem valor na música estrangeira, é, como gênero musical, tão bom ou melhor do que o fox americano, o tango argentino, a canção napolitana ou a valsa vienense. A questão [...] é que essas músicas dão a impressão de serem melhores, porque são tratadas musicalmente de maneira mais elevada do que a nossa canção popular. Tudo se resume, no entanto, numa questão de roupagem, de apresentação. [...] Radamés Gnattali emprega no samba todos os recursos da técnica mu-
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sical que têm sido os principais fatores da popularidade da música típica de outros países.77
Calado (1990:241) lembra que os jazz-bands brasileiros, seguindo a tendência norte-americana do final dos anos 20, reforçaram-se cada vez mais com numerosos instrumentos de sopro, formando-se grupos de saxofone, trompetes e trombones que acabaram evoluindo para as big bands. Pixinguinha, um dos músicos mais influentes do choro, utiliza bastante o modelo jazzístico para introduzir modificações na música popular brasileira. Tal como Sinhô, Pixinguinha freqüentava a legendária casa da Tia Ciata e incumbia-se de divulgar a música popular entre as elites. Projetou-se principalmente como compositor de choros, instrumentista e orquestrador. A partir de sua experiência como músico da orquestra do Cine Palais, organizou seu próprio grupo – Os Oito Batutas. Este conjunto, segundo Mariza Lira (1965:447-52), teria alterado “velhos hábitos sociais do Rio”, pois passou a ser contratado para animar as festas da alta sociedade. Arnaldo Guinle, por exemplo, é sempre evocado como uma espécie de mecenas quando se fala da trajetória de Pixinguinha, pois, além de promover várias exibições dos Batutas em sua própria casa, ajudou a organizar a excursão do grupo a Paris, em 1922, a partir da qual Pixinguinha se deixou influenciar pelo jazz. A atuação de Pixinguinha como arranjador, de acordo com os relatos historiográficos, teria dado “alma nova” às gravações empreendidas pela Victor a partir de 1931. São bastante representativas as orquestrações de O teu cabelo não nega e Linda morena, de Lamartine Babo. Pixinguinha produziu uma obra bastante numerosa, calculada em torno de 600 peças, em que se destaca sobretudo o samba-choro Carinhoso, de 1928 (Mariz, 1985). A incorporação dos ritmos norte-americanos por músicos brasileiros, como Pixinguinha, foi analisada por Júlio Medaglia (1989/90:71), segundo o qual reagiu-se aqui de maneira positiva “às provocações vivas da cultura musical popular”, apresentando “soluções próprias e originais”: À forte e rica instrumentalidade jazzística, nós reagimos com os nossos endiabrados pianeiros – Nazaré, Carolina Cardozo, Tia Amélia, Chiquinha (esta Scott Joplin de saias) – e demais virtuoses chorões – Pixin-
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Almirante apud Cabral, 1990:187.
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guinha, Benedito Lacerda, Dilermando e tantos outros. E se, naquele país do norte, uma infinidade de intérpretes vocais relatava com melancólico vigor em tom de blues uma realidade social e, com uma inédita e ritmada alegria, um canto religioso afro-americano, nós aqui, em tom de blague e sofisticada crônica de costumes – com Noel, Lamartine, Kid Morengueira e outros –, procurávamos não levar a sério a nós mesmos naquela descontraída nação pré-milagre econômico.
O procedimento incorporativo com relação a diferentes tradições contribui para que se consolide em nossa música popular a tradição do excesso. Mas trata-se de um excesso referenciado ao carnaval, ao humor; o registro monumental, quando utilizado, sofre todas as deformações parodísticas. Nada mais revelador desse tipo de irreverência do que a deformação parodística que a marchinha carnavalesca promove no seu modelo original, a marcha militar (Rangel, 1965). Pode-se utilizar o mesmo argumento com relação aos hinos futebolísticos criados por Lamartine Babo para diversos clubes do Rio de Janeiro. Ao contrário do hino militar – marcial, grave, monumental –, o hino futebolístico de Lamartine, de uma alegria contagiante, lida de maneira lúdica com o próprio espírito competitivo. Lamartine concorre de maneira peculiar para a estética do excesso na música popular, mostrando muito cuidado na criação de introduções, principalmente para as marchinhas carnavalescas. Suetônio Valença (1981:194-5) lembra que a música de carnaval de Lamartine “tinha, sempre e invariavelmente, alguns compassos iniciais de clarinadas e ritmo que traziam a marca registrada de seu talento”. A apresentação de Almirante e Carmen Miranda em Recife, em 1932, descrita pelo Correio da Manhã, é bastante representativa desse espírito humorístico: [...] Pessoalmente, Carmen Miranda não só encanta pela maviosidade da voz, como também pela beleza de sua mímica, irresistivelmente graciosa. E Almirante, que, nos discos, prende pela originalidade das emboladas, no palco, além de prender, faz rir continuamente pelo humor sadio das anedotas. [...] Almirante abriu o programa cantando Cabelo branco. É uma embolada interessantíssima [...]. Seguiram-se Galo garnizé, outra embolada [...] e Sussuarana, uma paródia que foi bisada. Almirante cantou esses números, intercalando-os com anedotas.78
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Correio da Manhã apud Cabral, 1990:85.
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A saudação de Ascenso Ferreira, poeta pernambucano vinculado ao movimento modernista,79 a Carmen Miranda, na abertura desse mesmo evento, é reveladora do fato de que poetas e músicos populares compartilham um ideal de sociedade carnavalizada: Carmen Miranda. Nada de Carmens de toreadores, com pontadas de lanças, castanholas, marradas, punhais... Nidra! Com ela a tragédia foi morta pelo bom humor; a tristeza nativa mudou-se em festa de batuques e bombos, ingonos, maracás... E ela, triunfalmente, empolga a alma da gente, convidando-nos a ser felizes [...] (apud Cabral, 1990:87).
A d i tad or a sor r i d en te d o samb a Não é só no que se refere à questão dos arranjos que fica evidente – através do excesso – a coexistência de vários estilos. A mesma questão reaparece, até com mais força, numa cantora como Carmen Miranda. Ao contrário da performance intimista de Mário Reis, Carmen Miranda surge no cenário dos anos 20 recorrendo ao excesso, construindo uma persona associada à alegria e à vitalidade e desenvolvendo uma forma ruidosa de interpretar. Martha Gil-Montero (1989:63), biógrafa da cantora, mostra como ela, ainda Maria do Carmo, em meados dos anos 20, vai inventando “pacientemente” a figura de Carmen Miranda, assim que ingressa na vida artística. No início, a moda baiana de Carmen Miranda seria ridicularizada; já em 1933 usava “uma roupa ousada que expunha a nudez do estômago”, considerada “vulgar e deselegante”. Mas a incorporação definitiva da Bahia a sua persona só acontece em 1938, quando Carmen interpreta O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi, no filme Banana da terra, produzido pelo americano Wallace Downey. Construindo a imagem da baiana de acordo com a letra da canção de Caymmi, a cantora usa “um torso de seda, brincos de ouro, saia engomada, sandálias enfeitadas, braceletes e balangandãs”. E segundo Gil-Montero (1989:62), a partir daí Carmen não mais abandona a imagem baiana, passando a adotar os trajes, os “gestos sedutores” e a “alegria tropical”.
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Ascenso Ferreira (1895-1965), poeta pernambucano, “integrou-se ao movimento modernista (1922), grupo da Revista do Norte, que lançou Catimbó, em 1927” (Larousse Cultural. São Paulo, Universo, 1988. p. 317).
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Aloysio de Oliveira (1982:72-3) diz que Carmen Miranda manteve a imagem da baiana nos Estados Unidos a partir de 1939. Segundo Aloysio, o espetáculo da cantora naquele país com o Bando da Lua, conjunto do qual ele participava, consagrou-a definitivamente junto ao público norte-americano, ao ponto de Carmen lançar moda: Uma das mais importantes lojas de Nova York, o Sacks Fifth Avenue, dedicou todas as suas vitrines aos lançamentos da moda baseada na baiana Carmen. Os manequins das vitrines tinham o seu rosto e os seus gestos. [...] As sapatarias exibiam os mesmos tipos de sapatos que ela usava, de sola e saltos bem altos, que havia criado para compensar a sua estatura. E as joalherias passaram a criar pulseiras e colares de fantasia à la balangandans. Caymmi nunca poderia ter imaginado que a letra do O que é que a baiana tem viria a ser exposta nas vitrines da 5ª Avenida.
A estética excessiva de Carmen Miranda também é cuidadosamente construída. A cantora não se limita a escolher o repertório, preocupando-se além disso em selecionar os músicos e em opinar sobre o acompanhamento musical. É assim que ela passa a contar, desde o início de suas gravações na Victor, com a orquestra regida por Pixinguinha e com os arranjos exuberantes criados pelo compositor. E a partir de 1934, com a sua primeira turnê a Buenos Aires, Carmen forma uma duradoura parceria com o Bando da Lua, conjunto musical carioca que contava, entre outros integrantes menos conhecidos, com Aloysio de Oliveira. Carmen grava seu primeiro disco em 1929, mas é em 1930, quando interpreta Taí, composição de Joubert de Carvalho, que se torna realmente conhecida. Passa então, segundo Gil-Montero (1989:38), a ser “a mais famosa artista de discos na década de 30”. Em 1932, quando entra em contato com Assis Valente e começa a gravar suas músicas, ela muda de estilo, deixando de lado as marchinhas e dedicando-se mais à interpretação de sambas. Sua voz também é das mais irradiadas no país na década de 30, sobretudo pela Rádio Mayrink Veiga. Já em 1933 César Ladeira, principal locutor da Mayrink, a batiza de Ditadora Sorridente do Samba. Um ano depois, o mesmo locutor a intitula de A Pequena Notável.80 Parece que não é por acaso que César Ladeira vê semelhanças nas represen-
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Ver Gil-Montero, 1989:43.
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tações de Carmen Miranda e de Getúlio Vargas; o presidente, um “pequeno notável” à sua maneira, sem dúvida encarna a figura do “ditador sorridente”. Martha Gil-Montero observa que a vitalidade e a alegria da cantora combinam de maneira perfeita com o “sorriso carismático” de Vargas e que, conscientemente ou não, ela em muito teria contribuído para a propaganda de seu governo. Gil-Montero lembra que Carmen se encontrava em turnê em Buenos Aires quando Vargas, em 1935, visitava o presidente argentino. Esta coincidência teria favorecido a transmissão de um programa propagandístico do Brasil pela Rádio El Mundo de Buenos Aires. E de acordo com o comentário de César Ladeira – locutor oficial da comitiva de Vargas –, “havia dois nomes brasileiríssimos, campeões de popularidade e da simpatia argentina pelo nosso país. Eram Getúlio Vargas e Carmen Miranda” (Gil-Montero, 1989:7780). A interpretação de Carmen Miranda tende à exuberância, ao exagero, com uso de ênfases vocais, gesticulação expressiva e uma profusão de adereços que a colocam na fronteira do grotesco; sob muitos aspectos, sua persona é uma caricatura da mulher, imagem de uma feminilidade levada às raias do absurdo, o que explica sua popularidade como ícone, a partir do início dos anos 70, entre os homossexuais, que a elegem representante máximo da estética camp. De fato, nada mais próximo da sensibilidade camp – cuja essência, segundo Susan Sontag, é o amor pelo antinatural, pelo artifício e pelo exagero – que a estética e a persona de Carmen Miranda. Como nada no estado natural pode ser campy, a maioria dos objetos campy são urbanos. Camp é então uma visão do mundo estilizada, que se manifesta ao assumir o gosto pelo exagero, pelo off, pelo não-autêntico, ou fake. E também é importante observar que, segundo Sontag, o camp é fundamentalmente anti-sério, antitrágico e jocoso.81 Nada poderia ser mais diferente do registro intimista, cool, de Mário Reis; enquanto Carmen articula as palavras com uma superabundância de meneios de toda a espécie, Mário canta como se estivesse falando. No entanto, ambos os intérpretes, cada um a seu modo, desenvolvem uma linguagem carnavalesca e humorística. O excesso, no caso de Carmen, chega ao humor através de um procedimento autoparodístico, como se ela se divertisse com o ato de incorporar extravagâncias à própria imagem; em Mário, a simplicidade
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Sontag, 1983:108.
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e a contenção irônica do dândi acabam tendo efeito semelhante, na medida em que o intérprete dá a impressão de não levar a sério o texto da letra. Não é por acaso, portanto, que Carmen Miranda e Mário Reis fazem dupla em algumas gravações, como em Chegou a hora da fogueira (1933), e em Isto é lá com Santo Antônio (1934), ambas de Lamartine Babo. Também não é sem razão que Carmen se torna a grande estrela dos filmes carnavalescos, nos quais sempre aparece cantando, como Carnaval de 1932 (semidocumentário), A voz do carnaval (1933), Alô, alô Brasil (1935), Estudantes (1935, em que chega a atuar como atriz), Alô, alô carnaval (1936) e Banana da terra (1939). Observa-se que o repertório de Carmen Miranda nos anos 30 apresenta uma certa homogeneidade, uma vez que as composições que interpreta têm sempre um teor humorístico, ou mesmo satírico. É o caso, por exemplo, de várias músicas de Assis Valente gravadas pela cantora, como Minha embaixada chegou, Good-bye, boy, e de composições de outros autores, como Lamartine Babo, Ari Barroso e Josué de Barros. Mas nunca é demais observar, considerando os três intérpretes em questão – Mário Reis, Chico Alves e Carmen Miranda –, que se a introdução do microfone na música popular contribuiu em muito para o desenvolvimento de uma estética mais intimista e menos operística, próxima do ideal de simplicidade, ela não criou um padrão hegemônico. Mário Reis aderiu de imediato à nova maneira de colocar a voz, dando continuidade à tradição inaugurada por Sinhô. Carmen Miranda também não ficou imune à inovação tecnológica. Consta que a cantora teria começado sua carreira imitando Araci Côrtes, famosa vedete do teatro de revistas que, como toda cantora de palco, sem microfone, tinha que usar de todos os recursos vocais para poder ser ouvida pelo público. Com o passar dos anos, porém, e principalmente a partir dos anos 30, Carmen acabou trocando o registro agudo de soprano pelo de mezzo (Gil-Montero, 1989). Mas essa mudança de registro em nenhum momento implicou uma alteração em sua persona e em sua representação performática. Quanto a Chico Alves, o uso do microfone não lhe provocou mudanças substanciais; apenas ampliou-lhe as possibilidades, permitindo-lhe, em determinados momentos, atuar de forma diferente, como nas marchinhas carnavalescas que gravou sozinho ou com Mário Reis. Dentre os intérpretes de sua geração, Chico foi talvez o que mais deu continuidade ao estilo de Vicente Celestino (1894-1968), que chegou a representar papéis de personagens operísticos, como o Radamés de Aída.
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A representação tropicalista da cantora, com seus turbantes e seus remelexos, invoca a imagem tanto de uma mulher sensual, imprevisível e exuberante, quanto a de uma natureza e uma cultura tingidas pelo excesso. Se Carmen passa a ser identificada, principalmente a partir do final da década de 30, com figuras totalizantes e estereotipadas, como a “mulher brasileira”, ou a “latino-americana”, não é exatamente assim que ela constrói sua imagem nos anos 20 e 30. Em uma cena, por exemplo, do filme Alô, alô carnaval, de Wallace Downey, de 1936, Carmen e Aurora Miranda cantam juntas Cantores do rádio, de Lamartine Babo. A maneira de se trajarem e se apresentarem é uma citação explícita dos filmes de Marlene Dietrich, usando ambas “cintilantes smokings de lamê e cartolas” (Gil-Montero, 1989:57). Sem dúvida, fazem uma adaptação tropical desse estilo cinematográfico alemão dos anos 30. É recorrente a aparição de Marlene Dietrich no cinema entoando canções de cabaré e representando uma mulher sensual, porém masculinizada, quase andrógina. Também não se notam grandes alterações na expressão facial da atriz alemã, que mantém um ar frio e distanciado. Carmen e Aurora brincam com este modelo, como se o uso de roupas masculinas só reforçasse a sua feminilidade. A aparência cool de Marlene Dietrich é substituída por sorrisos rasgados, e o tom melancólico e ao mesmo tempo irônico da chanson é modificado pelo clima carnavalesco e ao mesmo tempo lírico da marchinha de Lamartine. Quando, ainda no Brasil, Carmen recorre ao perfil da baiana para criar sua persona artística, ela o faz exibindo uma performance divertida, atuando muito mais como uma espécie de emissária do desacato e do prazer do que propriamente como significante denso e grave da nacionalidade. O próprio sentido de símbolo nacional, na verdade, evoca uma representação que procura dar forma unitária a uma realidade que tende a ser diferenciada, complexa. Ao contrário, portanto, de uma interpretação de senso comum que vê Carmen Miranda evocando a brasilidade por todos os poros, prefiro entender sua estética como fragmentária. Não me refiro, porém, a uma porção em busca de um todo perdido; tratase de um fragmento que tem vida própria, tal como o que se utiliza no processo de colagem. Carmen, ao lidar com o excesso, parece se dar conta de que o kitsch é uma nova possibilidade de construção estética tropicalista. Ninguém, à época, se mostrou mais familiarizado do que ela com os novos instrumentos introduzidos pela mídia, assim como com a maneira ideal de explorá-los para divulgar a própria imagem. Carmen assumiu radi-
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calmente as regras do jogo, recorrendo aos procedimentos inerentes ao mundo da cultura de massa, como a banalização e a repetição, mas conseguiu fazê-lo de maneira criativa. Criou uma persona alegre e ao mesmo tempo irônica, utilizando imitações e réplicas de um repertório popular associado ao extraordinário, à fantasia e ao extracotidiano. Ao invés de optar por um estilo interpretativo, assumindo um dos pólos de uma pretensa oposição entre Mário Reis e Francisco Alves, ela aceita tanto um quanto outro, devorando-os e recriando-os. À sua maneira – polifônica – e sujeita às contingências do trabalho de intérprete popular, Carmen realiza, num certo sentido, a proposta antropofágica de Oswald de Andrade. Quanto ao poeta, sua inserção no domínio erudito não o impediu de utilizar, num procedimento próximo ao da colagem, elementos kitsch inscritos na nossa própria linguagem, inclusive a oficial. O que os diferencia, além do fato de atuarem em domínios diferentes, é a maneira com que lidam com o componente excessivo da tradição cultural. Carmen, mesmo ironizando, tende a aceitar e a incorporar esse repertório de maneira incondicional, utilizando-o inclusive na construção de sua persona. E Carmen seleciona seus adereços e repertórios sem compromisso com um projeto harmônico, ao contrário de Oswald, que mesmo estabelecendo clivagens dentro do modernismo opera do ponto de vista de membro de um movimento. Mas o fato é que nossos artistas – eruditos e populares – se permitem uma poética própria, menos comprometida com a estrita objetividade e com a precisão extrema que se vêem nos exemplos franceses citados. No caso da conversação, uma concepção de harmonia perfeita orienta a forma francesa, protegendo-a do concurso do excesso em quaisquer de suas manifestações: a obscuridade, o peso, a ênfase, a técnica e a afetação (Fumaroli, 1994). Esse tipo de atitude clássica não vigorou no modernismo literário brasileiro. Manuel Bandeira, sem dúvida, adota um tom humilde, porém compatível com o sublime. Gilberto Freyre, como vimos, embora adote o despojamento da linguagem anglo-saxã, critica neste modelo o excesso de concisão, a esterilidade de um mundo que se pauta pelo preto-ebranco, mostrando uma sensibilidade que rejeita a disciplina puritana. Em História do Brasil, Oswald, num procedimento vanguardista, parodia a carta de Pero Vaz de Caminha, cujo estilo excessivo remete à pujança da nova terra, como se vê em Gandavo:
A cidade fragmen tada
riquezas naturais Muitos metaes pepinos romans e figos De muitas castas Cidras limões e laranjas Uma infinidade Muitas cannas daçucre Infinito algodam Também há muito páo brasil Nestas capitanias (Andrade, O. de, 1966:74).
O próprio clown de Mário de Andrade, motivado no cotidiano circense, remete ao arlequinal excessivo, multicolorido, histérico. No “Prefácio interessantíssimo”, Mário proclama o excesso em manifesto: Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão. [...] (Andrade, M. de, 1966:18).
A interjeição “arlequinal!” que pontua tantos poemas de Paulicéia desvairada aponta para o excesso e a heterogeneidade como valores positivos. São Paulo é uma “cidade arlequinal”, um “traje de losangos” que é ao mesmo tempo “Paris”, “minha Londres de neblinas finas” e “palco de bailados russos”; e o poeta-clown é “um tupi tangendo um alaúde” (Andrade, M. de, 1966:32-46). A cidade é o lugar de todos os lugares, convergência de todos os contrários, e é justamente no que ela tem de desmedido que reside sua beleza. O poeta, longe de ser o artesão que trabalha sua matéria-prima de modo objetivo, é arlequim – misto de palhaço e apaixonado, figura lacrimosa que provoca o riso – a contemplar a abundância do mundo urbano e moderno com um arrebatamento sentimental que, no entanto, não deixa de conter um toque de ironia.
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Sou tímido e espalhafatoso torre traçada por Gaudí Caetano Veloso, Vaca profana
O en gen h ei r o e o b r i coleu r Em análise da música do período modernista, José Miguel Wisnik desenvolve um aspecto que merece ser aprofundado. O autor distingue, na tradição européia do modernismo, dois procedimentos estéticos diferentes: um rigor construtivo, como o de Webern,82 que recorre ao mito do engenheiro – na análise de Jacques Derrida sobre O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, “um sujeito que fosse a origem absoluta do seu próprio discurso e o construísse ‘com todas as peças’” –; e o recurso à bricolagem, tão caro a Stravinski, Villa-Lobos e a outros compositores da época.
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Wisnik (1983) refere-se ao compositor Anton Webern (1883-1945), discípulo de Schönberg e seu continuador na composição atonal. Paul Griffiths refere-se a Webern como um músico obcecado pela concisão: “Sempre o contrário de um compositor prolixo [...], ele se sentia incapaz, em 1911-14, de criar peças de duração muito superior a um minuto”. Comenta Griffiths (1994:47-8): “Sua escala de tempo e sua enigmática quietude – tão diversas do movimento dinâmico presente em quase todas as obras atonais de Schönberg – equivalem às do haicai”.
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Esta classificação de Wisnik nos leva a pensar que o mito do engenheiro não teve lugar na experiência modernista brasileira, pois tanto os músicos quanto os poetas do movimento tenderam a assumir uma postura antropofágica – semelhante à preconizada por Oswald de Andrade (1972a) em manifesto –, ajustando-se então ao perfil do bricoleur delineado por Lévi-Strauss: um tipo de produtor que se define pela maneira incorporativa de realizar suas operações, utilizando sempre os instrumentos já disponíveis, ao contrário do engenheiro, que subordina cada tarefa específica “à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida do seu projeto” (Lévi-Strauss, 1989:33). Tomamos, no entanto, algumas precauções ao lidar com essas categorias levantadas por Wisnik – o bricoleur e o engenheiro – , tratando-as metaforicamente, sem o rigor conceitual com que foram construídas por Lévi-Strauss. As imagens fortes trazidas à baila por Lévi-Strauss, como a do caleidoscópio, nos ajudam a pensar na possibilidade modernista de se atingir a modernidade sem recorrer à tábula rasa, procurandose, ao contrário, criar o “tipo novo” através de arranjos que atualizam repertórios variados, porém finitos, de nossa tradição cultural (Lévi-Strauss, 1989:52). O que mais nos interessa, nessa discussão, é justamente ressaltar o fato de que os músicos e os poetas modernistas, no Brasil, partilhavam uma mesma visão do país – a de um universo inesgotável de informações culturais, tanto arcaicas quanto contemporâneas, tanto regionais quanto universais. A esta imagem de pujança seguia-se, naturalmente, a idéia de tentar incorporar a riqueza cultural ao trabalho artístico. Esse procedimento includente dos modernistas não escapou aos estudiosos da literatura. Silviano Santiago (1987), por exemplo, observou que os modernistas brasileiros pautaram sua prática por um imenso valor conferido a grande parte da tradição, tentando lê-la como novidade. De fato, não há como negar que os nossos modernistas, se rejeitaram a cultura bacharelesca e acadêmica inspirada nos padrões franceses, incorporaram grande parte do repertório cultural brasileiro, como demonstra a viagem a Minas de Oswald, Mário, Tarsila e Cendrars, à procura do passado barroco e primitivo. Santiago (1983:25) ressalta esse aspecto do modernismo, chamando a atenção para o caráter aberto do movimento, na medida em que se predispunha a absorver as mais variadas manifestações artísticas, inclusive as que contestavam os ideais modernizadores da Semana de 22. Eduardo Jardim de Moraes, como vimos, também argumenta que a concepção de ruptura é incompatível com a idéia de modernidade proposta pelo movimento modernista. Ao invés, portanto, de se promoverem descontinuidades com relação ao passado, tenta-se
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atualizar esse passado em prol da brasilidade. A própria categoria raça se constitui no pensamento de Mário de Andrade associada ao processo de tradicionalização, ou seja, se a raça é o conteúdo básico da nacionalidade, é a tradição que lhe confere identidade. Esse projeto de modernização à brasileira lida com uma dimensão homogeneizadora de tempo, o que complexifica o problema. Não se trata, por exemplo, de submeter o presente ao passado, ou vice-versa, mas de constituir uma temporalidade própria que abole a cronologia, diluindo “no eterno presente da vida brasileira as marcas da descontinuidade”. Nesta linha de raciocínio, Mário de Andrade, no Ensaio sobre a música brasileira, confere grande peso ao “populário” musical; por sua dimensão folclórica, esse elemento do repertório cultural em muito contribui para a manutenção da identidade nacional, na medida em que exerce “forte pressão tradicionalizadora”. Em suma, a tradicionalização, como interpreta Moraes (1983:123-34), “é um processo de anulação das distâncias temporais que se manifesta no elemento folclórico”. Talvez Macunaíma seja o caso mais ilustrativo de bricolagem na literatura modernista, embora Gilda de Mello e Souza, em O tupi e o alaúde, associe o procedimento de Mário de Andrade muito mais ao processo criador do músico popular do que à atividade do bricoleur. Contudo, mantendo a acepção figurativa da palavra e a oposição à imagem do engenheiro, podemos utilizar os próprios argumentos da autora para demonstrar a postura incorporativa de Mário de Andrade neste romance-rapsódia. Mello e Souza mostra como Macunaíma se constrói a partir de uma infinidade de textos preexistentes, “elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, européia ou brasileira”. E o mais surpreendente nesta obra de Mário é a interpenetração dos processos literários e musicais. Mello e Souza argumenta, a propósito, que, em vez da utilização tradicional de textos literários, Mário de Andrade recorre às formas básicas da música ocidental, erudita e popular, como o “princípio rapsódico da suíte” e o “princípio da variação”. Ao primeiro princípio corresponderia, por exemplo, o bailado Bumba-meu-boi e ao segundo, o improviso do cantador nordestino. A autora também chama atenção para o fato de que, quando a música erudita se nutre do repertório popular, utiliza o procedimento da variação.83
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Mello e Souza, 1979:10-2. O princípio da variação, segundo a autora, consiste em “repetir uma melodia dada, mudando a cada repetição um ou mais aspectos constitutivos dela, de forma que, apresentando uma fisionomia nova, ela permaneça sempre reconhecível na sua personalidade”.
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Júlio Valadão Diniz (1995:4-5) registra o procedimento inaugural de Mário de Andrade de relacionar a música com a literatura, lembrando que em várias obras ficcionais do autor encontram-se idéias provenientes de sua musicologia. Assim, romances “viram rapsódias (Macunaíma), poemas são transformados em improvisos (Improviso do rapaz morto), modas (Moda dos quatro rapazes), rondós (Rondó do tempo presente), acalantos (Acalanto do seringueiro), cocos (Coco do major), cantigas (Cantiga do aí ), cantadas (As cantadas), canções (Canção), lundus (Lundu do escritor difícil), toadas (Toada do Pai-do-Mato), noturnos (Noturno)”. Diniz lembra que, por volta de 1926, Mário de Andrade teria procurado Pixinguinha à cata de informações para escrever Macunaíma. Com base nos relatos do músico sobre as festas e os rituais religiosos africanos na casa da Tia Ciata, que freqüentava habitualmente, Mário escreveu Macumba, sétima variação de Macunaíma.84 Essa convergência da música e da literatura é também analisada por outro ângulo, como o da proposta poética de Mário esboçada no “Prefácio interessantíssimo”, concebida a partir das atualizações musicais. Assim, tanto a poética romântica quanto a parnasiana são equiparadas a linhas melódicas “de previsibilidade absoluta, construções formais que apontavam para uma tradição monotônica de seus conteúdos”. Seguindo esse raciocínio, Mário diz que, se a música moderna se libertou do regime horizontal da melodia adotando o verticalismo polifônico, também a poesia deveria abandonar “a prática discursiva da sucessividade das palavras e dos versos”, adotando a atitude “de combinação das palavras em versos simultâneos” (Diniz, 1995:14-5). Mas não pretendo apenas reafirmar a incidência de um procedimento mais includente em nossa estética modernista, e sim verificar de que modo nos singularizamos ao adotarmos tal procedimento. Mesmo porque torna-se difícil, ou mesmo impossível, entender esse procedimento em sua configuração brasileira adotando-se uma perspectiva dicotômica, como se tentássemos congelar e reproduzir aqui a vivência dos modernistas europeus. A antiga disputa desses artistas, por exemplo, entre o belo e o útil – redefinida, no cenário modernista, na contraposição entre o procedimento lúdico dos dadaístas, surrealistas e outros, voltados para uma performance escandalosa, e as ações programáticas e mais racionais dos movimentos construtivistas, como as dos adeptos da Bauhaus, comprometidos com a idéia de revolução ou de
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Ver Diniz, 1995.
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reforma (Argan, 1992) – não se reproduziu aqui da mesma forma. No que se refere ao caso brasileiro, não poderíamos partir do pressuposto de que o construtivismo, por definição, incorre na seriedade – ou então na estrita racionalidade –, porque, dadas as peculiaridades históricas locais, o modernismo que aqui se instalou caracterizou-se, no geral, tanto por uma forte disposição construtiva quanto por uma pluralidade de modelos. Silviano Santiago (1977:1-7) observa quanto a Oswald de Andrade, por exemplo, que seu empenho construtivo não lhe apaga o perfil lúdico, porque seu projeto utópico, longe de se mostrar excludente, apropria-se de tudo. Tal como Duchamp, que, ao invés de propor, à maneira futurista, uma queima das obras do Louvre, tenta ver essas obras de maneira diferente – uma Mona Lisa de bigodes e cavanhaque –, Oswald recupera grande parte da tradição para parodiá-la. Davi Arrigucci (1990:57, 103) também argumenta que as soluções dos modernistas brasileiros, extraídas da junção do prosaico com a técnica, embora apresentem um teor irônico, não são tão negativas quanto as européias. Aqui, segundo ele, a busca do prosaico significa muito mais uma atitude de curiosidade para com novos aspectos da vida brasileira do que propriamente uma crítica aos estereótipos da vida moderna. Assim, nossos escritores, ao se mobilizarem pelas idéias tanto de integração nacional quanto de modernização da inteligência, acabam mudando o sentido da técnica que assimilam, atualizando-o em função de um teor construtivo. Com relação especificamente a Manuel Bandeira – cuja poesia analisa em seu livro –, Arrigucci afirma que o achado estético do poeta é também “o achado de um país, pois equivalia a tratar esteticamente uma visão do Brasil”. Equipara, então, a estética de Bandeira à concepção de Oswald do poema pau-brasil: “forma simplificada, de síntese fulgurante, capaz de fixar, através de uma drástica redução alegórica, um retrato da contraditória realidade nacional, apanhada sobretudo na confluência desencontrada de primitivismo e modernismo”. Annateresa Fabris (1990), a propósito da influência futurista no Brasil, analisa as adaptações locais ao movimento italiano. Uma das questões levantadas pela autora, de caráter estético, é a da apropriação pelos modernistas de procedimentos futuristas, como a colagem, a libertação das palavras nos textos literários, a linguagem programática e ao mesmo tempo poética dos manifestos e a performance vanguardista na Semana, destacando-se aí a representação combativa de Oswald de
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Andrade. Além do inegável legado estético, o futurismo, de acordo com Fabris, em muito contribui, em torno de 1921/22, para a articulação de estratégias que conferem visibilidade ao movimento, como as atitudes escandalosas e de antagonismo para com o público. O que é rejeitado explicitamente pelos intelectuais brasileiros é a proposta de tábula rasa, em que a recusa do passado é representada pela destruição de museus e bibliotecas, assim como não se assume aqui a exaltação do militarismo e da guerra. Para os modernistas brasileiros, a memória é um dado bastante significativo, lidando-se aqui com a idéia de um “passado redescoberto, enraizado numa consciência nacional em fase de elaboração”. Quanto à poesia das máquinas vislumbrada por Marinetti, seria mais fácil encontrá-la na teoria oswaldiana do homem natural tecnicizado do que na obra de Mário de Andrade. Em Macunaíma, por exemplo, o universo fabril é tratado negativamente; o romance-rapsódia projeta uma civilização fundada no “ócio criador”. E como observa Massimo Canevacci (1993), a proposta futurista de se edificar uma “civilização das máquinas”, contraposta à idéia de barbárie, é atualizada pelo modernismo nativo através da imagem de um “futurismo multiétnico e multicultural”. Cria-se aqui, portanto, uma imaginação moderna aberta à idéia de repetição histórica e pouco condizente com o ethos revolucionário das vanguardas européias, que dramatizam a idéia de progresso e o pensamento utópico desenvolvidos no Ocidente a partir do século XVIII, com sua conseqüente desvalorização do passado e sua fé no movimento linear e progressivo da história rumo à redenção futura.85 Assim, a palavra “invenção”, tão apropriada, segundo Renato Poggioli (1968:14), para designar a consciência criadora do artista de vanguarda, não poderia ser proferida no contexto de nosso modernismo. No caso brasileiro, a proposta de mudança cultural, em vez de remeter à idéia de se conceber algo inexistente até então, lida com a noção de descobrir algo preexistente. Trata-se de um conceito de modernidade que não descarta, como Nietzsche, o apego à história (concebida como memória), em nome do ato livre referenciado à vida.86 A metáfora mecânica utilizada por Baudelaire – que sentia aversão pelas plantas e fascínio pela cidade e pelas máquinas – também não se aplica ao
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Ver Paz, 1984; Calinescu, 1987. Ver Nietzsche, 1985.
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nosso ideal de modernidade, mais próximo da visão romântica de arte como processo orgânico (Calinescu, 1987). Na tradição do modernismo, o humor muitas vezes se realiza através da paródia, contrariando portanto uma certa tendência vanguardista que só admite a confecção de textos compatíveis com a idéia de uma nova era. A perspectiva crítica de Karl Marx, por exemplo, tal como esboçada no preâmbulo tantas vezes citado de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao condenar a farsa histórica dos acontecimentos de 1848 na França – na medida em que não passariam de uma imitação da Revolução Francesa –, faz ao mesmo tempo uma objeção explícita ao procedimento metaliterário. É como se só a tragédia servisse, pelo menos nesse contexto de dominação burguesa, aos intentos revolucionários, relegando-se à paródia as meras práticas de bufonaria. De maneira semelhante, assim como espera que o homem livre da propriedade privada e da divisão do trabalho crie uma nova representação das relações sociais, Marx exige que o artista, na sociedade que se erige como socialista, crie um texto inteiramente novo, sem o menor vínculo com tradições passadas. Ou, como argumenta Renato Janine Ribeiro (1993:128), a revolução socialista, segundo Marx, deveria buscar “sua poesia no futuro e não mais nos tempos idos”, como teriam feito os revolucionários franceses de 1789, ao se voltarem para a Antigüidade e recorrerem ao neoclassicismo. Pode-se perceber uma correspondência entre o movimento futurista (tanto o italiano quanto o russo), em sua fase inicial e utópica, e o socialismo de meados do século XIX, tal como esboçado por Marx, quanto à percepção de se estar às vésperas de uma nova era. Marjorie Perloff lembra, a propósito da versão italiana do futurismo, suas origens anarco-sindicalistas esquerdistas, seu anticlericalismo, seu antimonarquismo e sua oposição à burguesia liberal. E argumenta: Não foi por coincidência que o manifesto de 1909 de Marinetti foi publicado primeiro na Itália, na revista esquerdista de Ottavio Dinale, La Demolizione. Por outro lado, deve-se notar que o jovem Boccioni, cuja carreira foi abortada pela guerra, era um marxista convicto; que os artistas Carlo Carrà e Luigi Russolo eram anarquistas e Balla, um socialista humanitário [...] (Perloff, 1993:81).
Os futuristas italianos, em nome das “palavras em liberdade”, prescrevem uma fórmula literária compatível com sua visão de moder-
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nidade, caracterizada pela “nova linguagem de telefones, fonógrafos, aeroplanos, cinema, o grande jornal”.87 Antonio Gramsci, em artigo de 1921 para L'Ordine Nuovo, intitulado “Marinetti revoluzionario?”, também afirma o teor revolucionário do movimento italiano: [Os futuristas] perceberam aguda e claramente que a nossa era, a era da grande indústria, da grande cidade proletária e da vida intensa e tumultuosa, precisava de novas formas de arte, filosofia, comportamento e linguagem. Essa idéia agudamente revolucionária e absolutamente marxista lhes veio à mente quando os socialistas não estavam sequer vagamente interessados em tal questão, quando os socialistas certamente não tinham uma idéia precisa em política e economia [...] No seu campo, o da cultura, os futuristas são revolucionários. Nesse campo é provável que se passe um longo tempo antes que as classes trabalhadoras possam lograr qualquer coisa mais criativa do que os futuristas fizeram (apud Perloff, 1993:30).
No “Manifesto técnico da literatura futurista”, de 1912, Marinetti propõe a abolição da velha sintaxe herdada de Homero, do adjetivo, “inconcebível para nossa visão dinâmica”, do advérbio, que “conserva à frase uma enfadonha unidade de tom”, da pontuação, “sem as pausas absurdas das vírgulas e dos pontos”, e de outros procedimentos associados a um mundo em extinção. As “palavras em liberdade” devem também ser proferidas sem a interferência do “eu” lírico, pois “o homem completamente avariado pela biblioteca e pelo museu não oferece mais nenhum interesse” (apud Bernardini, 1980:81-7). Assim, deve-se, segundo Marinetti, Surpreender por meio dos objetos em liberdade e dos motores birrentos a respiração, a sensibilidade e os instintos dos metais, das pedras, da madeira. Substituir a psicologia do homem, já esgotada, com a OBSESSÃO LÍRICA DA MATÉRIA. Cuidado para não emprestar à matéria os sentimentos humanos, mas antes procurar adivinhar seus diferentes impulsos diretores, suas forças de compressão, de dilatação, de coesão e de desagregação, seus bandos de moléculas em quantidade ou seus turbilhões de elétrons (apud Bernardini, 1980:84).
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Perloff, 1993:116.
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Em vez dessa camisa-de-força futurista, os escritores modernistas brasileiros – com a importante exceção de Oswald de Andrade – aderem, quando muito, ao verso livre, adotando uma coloquialidade comprometida com a velha sintaxe, a pontuação, os advérbios e os adjetivos. De maneira semelhante, intervém na escrita um “eu” lírico denso, construído através de uma perspectiva existencial. Luiz Costa Lima mostra-se perceptivo a esse aspecto do modernismo brasileiro, comparando o espírito de boemia dos nossos escritores, sua “irreverência gratuita”, com a postura combativa – ou mesmo “terrorista” – dos dadaístas, “na sua revolta absoluta contra a razão e o discurso”: [...] Suas atitudes seriam antes comparáveis a de adolescentes malcomportados, usufruindo entre júbilo e inconseqüência do vigor da idade. E a freqüência tanto em Bandeira como em Mário dos poemas-de-circunstância, das breves cenas realistas, do lirismo sentimental consumido pelo humor demonstra a diferença da situação a que eles e os demais respondiam. Enquanto para o jovem artista europeu a I Grande Guerra apresentava a face mais cruel de uma realidade que as palavras e os costumes polidos escondiam, o desmascaramento sangrento da euforia burguesa da belle époque e da crença subjacente no infinito progresso da razão e do homem, as modificações infra-estruturais operadas no Brasil do começo do século ainda se mantinham restritas e disfarçadas para que delas ressaltem conflitos dramáticos. [...] Estas situações diferenciadas geram assim não só uma diferença dos seus pontos de partida, como a dessemelhança de suas trajetórias. [...] No Serafim Ponte Grande bem dizia Oswald de Andrade: “a situação revolucionária desta bosta mental sul-americana apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário – era o boêmio” (Costa Lima, 1995:49-50).
Lida-se aqui com uma idéia de transformação cultural que não prescinde de eras passadas, o que leva nossos ideólogos modernistas a recorrer aos textos legados por diferentes tradições, principalmente através do procedimento parodístico. Manuel Bandeira, nesta acepção, é um bricoleur típico, na medida em que desenvolve sua criação artística de maneira bastante livre, usando com desenvoltura os materiais a que tem acesso, quer o texto vinculado à tradição ou ao contexto contemporâneo, quer os meios técnicos introduzidos no rol das novidades. Arrigucci (1990:139) arrola os diversos procedimentos metaliterários adotados por Bandeira, como a imitação, o pastiche, o plágio, a paródia, a tradução, a citação ou a incorporação. Os sapos (do livro de poe-
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mas Carnaval, de 1919), por exemplo, é uma paródia antiparnasiana que se converte em manifesto modernista na Semana de 22. Bem a propósito, Mário de Andrade, em carta a Manuel Bandeira de 6-2-1922, estabelece uma correspondência entre Os sapos e algumas composições de Satie, como Minuete, Aubade e Morceaux en forme de poire.88 Oswald e Mário são também citados como parodistas; Oswald em seus poemas, romances e manifestos (Campos, 1971) e Mário principalmente em Macunaíma (Monegal, 1980). Retomemos aqui a questão levantada por Gilda de Mello e Souza sobre a “carnavalização do nobre” nesse romance-rapsódia de Mário de Andrade. A autora argumenta que Macunaíma é “a carnavalização do herói do romance de cavalaria”, embora ela diferencie o personagem de Mário de Andrade do “cavaleiro andante carnavalizado” por excelência criado por Cervantes. Dom Quixote é construído a partir da hipertrofia das qualidades do cavaleiro. A intenção caricatural do autor não retira, porém, do personagem a coragem, que é seu traço distintivo. Se o ato de coragem torna o personagem ridículo, isto se deve ao anacronismo do gesto, elevado em excesso relativamente à pequenez dos obstáculos. O herói de Mário de Andrade, ao contrário, é covarde; a carnavalização em Macunaíma realiza-se através da atrofia do projeto cavaleiresco, de sua negação parodística. Assim, Macunaíma – “dominado pelo medo” – é “o avesso do Cavaleiro da Triste Figura, representando a carnavalização de uma carnavalização”: [...] o herói brasileiro representa uma personagem bem mais ambígua e contraditória: é um vencido-vencedor, que faz da fraqueza a sua força, do medo a sua arma, da astúcia o seu escudo; que, vivendo num mundo hostil, perseguido, escorraçado, às voltas com a adversidade, acaba sempre driblando o infortúnio (Mello e Souza, 1979:89).
Mello e Souza completa seu raciocínio dizendo que Macunaíma é uma retomada “carnavalizada” do núcleo da Demanda do Santo Graal: [...] a muiraquitã é uma pedra de cor verde, que Ci, a Mãe do Mato, tira do colar e antes de subir para o céu dá ao amante, como lembrança dos dias de plenitude erótica que passaram juntos no Uraricoera; Macunaíma per-
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Ver Andrade, 1967:24.
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de o amuleto logo em seguida e a sua procura, cheia de riscos e peripécias, constitui o núcleo básico do romance. [...] o episódio da muiraquitã representa – como o episódio do Graal no romance cavaleiresco – a busca da identidade perdida, o símbolo da iniciação à vida; no entanto, a narrativa brasileira vira pelo avesso a iniciação viril do romance arturiano, carnavalizando-a e transformando-a no seu oposto, isto é, numa iniciação desfibrada, cheia de recuos e tergiversações (1979:91-2).
Oswald de Andrade, porém, supera os companheiros de movimento tanto na utilização da paródia quanto na atitude irreverente que assume ao lidar com tradições consagradas. Oswald recorre à paródia até para expressar sua opinião crítica em textos jornalísticos, ou mesmo em atitudes performáticas. O conhecido episódio, relatado na primeira parte deste livro, referente ao ataque de Oswald a Carlos Gomes no Correio de São Paulo, às vésperas da Semana de Arte Moderna, é elucidativo de como ele utiliza esse procedimento. Annateresa Fabris (1994:150-1) mostra, com relação a este caso, como Oswald investe ao mesmo tempo – nesse artigo totalmente desprovido de moderação – contra a figura de Carlos Gomes e contra a própria tradição operística, povoada de “tenores cheios de rouge e de tombos finais” e por “sopranos roliças e estranguladas de hipocrisia lírica”. Fabris (1994:122-3) mostra também como foi importante para o desenvolvimento desse tipo de procedimento mais lúdico a opção dos modernistas brasileiros pela vertente florentina do futurismo italiano, representada sobretudo pelas idéias de Papini e Soffici, que se diferenciam do estilo mais ortodoxo de Marinetti. Os florentinos contraporiam aos dogmas de Marinetti, entre outras, categorias como a “espontaneidade”, a “máxima liberdade dentro da mais espontânea originalidade”, a “rebelião contra escolas organizadas em ritos e liturgias literárias”. Assim, por exemplo, a imagem do clown, idealizada por Soffici, tanto poderia se aplicar ao Arlequim, figura recorrente na Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, quanto à própria representação de bufão de Oswald de Andrade. A autora faz ainda referência às influências florentinas – ou, mais propriamente, às idéias que Palazzeschi expõe no manifesto “Contrador” – em Klaxon, revista do início do movimento modernista, que proclama em manifesto: Queremos construir a alegria [...]. Molhados, resfriados, reumatizados por uma tradição de lágrimas artísticas, decidimo-nos. Operação cirúrgica. Extirpação das glândulas lacrimais. [...] (apud Fabris, 1994:198.)
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A paródia – no sentido que lhe empresta Bakhtin, próximo da idéia de carnavalização – remete a um comportamento irreverente, pronto a romper, através do riso, com determinados cânones culturais. Mas a maneira pela qual os modernistas a utilizam é bastante reveladora do estilo próprio que desenvolvem. Habituamo-nos a atribuir os procedimentos metaliterários a autores que, como Borges, se confinam em bibliotecas. Nossos modernistas, porém, cultivam a rua, embora alguns só freqüentem o seu espaço boêmio e se mostrem alheios à vida pública, como Bandeira. Mário de Andrade, por exemplo, dentre os modernistas o mais público, chega a afirmar em carta a Manuel Bandeira (de 1925): E você sabe muito bem que não sou indivíduo de gabinete. [...] sou um sujeito que vive na extensão gostosa da palavra. Nada de gabinete. Homem na rua. [...] Tenho um poder de festas, de convites, amizades, passeios que satisfaço religiosamente. Não dou pra celebridade e eternização do meu nome a mínima importância. [...] Se escrevo é primeiro porque amo os homens (1967:115).
Na crônica “Esquina”, Mário tematiza o que observa de sua janela na rua do Catete; assim também procede Bandeira, que, apesar de afastado da vida pública, manteve, nos inúmeros quartos que habitou, uma janela sempre aberta para o mundo. Arrigucci (1990:62-4) argumenta que, embora a poesia de Bandeira seja bastante marcada por um eu lírico denso, ele não é exatamente um “poeta da vida privada”. Ao contrário, a matéria trabalhada pelo poeta tem mais a ver com o mundo de fora do que com o espaço da interioridade. Seu quarto “é um espaço arejado, onde o mundo penetra enquanto dimensão social e enquanto natureza”. Em ambos os casos – de Mário e de Bandeira –, a casa é invadida pela rua. Isso nos leva de volta ao tema das singularidades do modernismo brasileiro, no qual as experiências de radicalização típicas das vanguardas européias se alternam com projetos construtivos. Assim, procedimentos formais como a paródia, que costumam ser associados a posturas transgressoras ou de ruptura com uma ordem vigente,89 convivem muito mais, em algumas obras literárias do movimento, com o ideal de afirmação – da nação, da cultura brasileira etc. – do que propriamente com um contexto de negação. Fabris (1994) observa que
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Ver Jameson, 1985.
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a negação contundente do “humano, demasiadamente humano”, afirmada no texto futurista de Palazzeschi, é atenuada por Mário de Andrade. O temperamento construtivo de Mário, assim como sua visão das singularidades locais não lhe permitem partir para uma experiência radical de dessublimação. Se Mário compartilha com o artista florentino a idéia da redenção através do riso, não se trata, no entanto, de uma risada sarcástica, inteiramente desprovida de afetividade. Trata-se de um riso que não dispensa a ternura, tal como se vê no exemplo escolhido pelo próprio Mário: o personagem Carlitos, de Chaplin. Nosso clown, portanto, se mostra mais humano. Seria difícil, por exemplo, visualizar uma atualização local das formulações nietzschianas de Valentine de Saint-Point em seu “Manifesto futurista da luxúria”, de 1913, tais como: Paremos de achincalhar o desejo [...], camuflando-o com as vestes piedosas das velhas e estéreis sentimentalidades. Não é a luxúria que desagrega, dissolve e aniquila; são antes as complicações hipnotizadoras da sentimentalidade, os ciúmes artificiais, as palavras que embevecem e enganam, o patético das separações e das fidelidades eternas, as nostalgias literárias: o histrionismo todo do amor. Destruamos os sinistros trapos românticos, margaridas desfolhadas, duetos ao luar, ternuras pesadas, falsos pudores hipócritas. [...] É preciso ser consciente diante da luxúria. É preciso fazer aquilo que um ser refinado e inteligente faz de si mesmo e de sua própria vida; é preciso fazer da luxúria uma obra de arte. Fingir a inconsciência, o arrebatamento, para explicar um gesto de amor é hipocrisia, fraqueza, estultice (apud Bernardini, 1980:97-8).
Este culto à clareza, à objetividade e ao gesto consciente, totalmente isento de “véus sentimentais”, não encontra receptividade no modernismo brasileiro. Tomando o “Prefácio interessantíssimo” como exemplo, Luiz Costa Lima (1995:51) lembra que, neste texto-manifesto, Mário de Andrade assume como diretrizes o elogio do inconsciente, a valorização do papel desempenhado pela subjetividade na deformação necessária à obra de arte e a atribuição de uma posição secundária ao “objetivo”, associado ao belo natural e portanto inadequado à concepção de belo artístico. É a partir dessas premissas que Mário rejeita, no “Prefácio”, o rótulo de “futurista” que lhe foi dado por Oswald:
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Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto (apud Costa Lima, 1995:52).
Tal como Noel Rosa, Mário de Andrade filtra subjetivamente a modernização, o que nos leva a crer na existência de uma tendência comum entre os artistas brasileiros da época – eruditos e populares – a atualizar de maneira muito própria e em grande medida através do “traço psicologizante” as transformações promovidas tanto na vida quanto na linguagem. O ideal de contenção, inerente às propostas vanguardistas européias, só encontra portanto algum sentido na crítica a um tipo de sentimentalismo mórbido que vigorou no século XIX, associado por Mário de Andrade ao cultivo da dor e à idéia do destino trágico do artista, dada a sua natureza doentia. Elizabeth Travassos (1996:37) lembra, a propósito, a influência de Nietzsche sobre os modernistas no tocante à elaboração da crítica ao romantismo. Nietzsche, por exemplo, considera a música de Wagner equívoca, grandiloqüente, uma música “que tira o espírito de seu rigor e alegria”, estimulando a “obscura nostalgia”. Esse tipo de música, segundo ele, “desenerva, amolece, efemina”. Também no Brasil rejeita-se o drama romântico, mas acolhe-se a atitude gauche, compatível com a imagem de clown que Bandeira recolhe de sua vivência boêmia, bastante afinada com a licença poética a que se permitem alguns de seus companheiros de movimento: Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare [...] (Bandeira, 1993:207.)
No campo musical, discute-se a configuração própria do nosso humor, incompatível, segundo Sérgio Milliet (1923:53), com o sorriso à francesa, contido e refinado: Um bailado é uma música sobre a qual caiu um sopro de vida. [...] No palco, as Bodas de Stravinski impressionam tal [como] um trecho religioso. Força, calma, serenidade, que só se encontram numa grande fé ou num profundo ceticismo: resulta ser uma fé às avessas. Já Parade, de Satie, entra em cena com sorriso e com beijos à francesa. As danças do malabarista, do palhaço etc. [...] são duma síntese e sutileza tão civilizadas que o
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gênio ainda selvagem da nossa raça não a apreende. O nosso povo, como o povo russo e em geral todos os povos recém-nascidos, necessita ainda de um sentimento trágico da vida. A alegria fina e pousada, a tristeza medida, o pudor bem-humorado parecem-lhe sentimentos pouco honrados de gente decadente.
Os modernistas brasileiros não rejeitam apenas o lirismo contido do passado parnasiano relativamente recente, comprometido com um gosto clássico pelas formas vernáculas. Recusa-se também aqui o excesso de concisão que caracteriza, segundo Milliet, o modernismo francês. Manuel Bandeira propõe, então, em vez do português castiço do Parnaso, ou do ideal de refinamento francês, [...] Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis [...]90
Embar alh an d o classi fi cações Se os modernistas brasileiros operam todos à maneira do bricoleur, o que os distingue é o uso que fazem da tradição. Como vimos no primeiro capítulo, quando se tem em mente um projeto de totalidade compatível com o ideal da Bildung, como no caso dos músicos ligados ao movimento, recorre-se, principalmente através da citação, aos textos do passado, ou então a um presente mitificado. Assume-se aqui, no entanto, uma atitude que tende a consagrar o legado da tradição, o que faz com que a linguagem musical se torne reverente e grave, realizando-se em grande parte através do monumental. Alguns escritores modernistas, como Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, orientados pela busca de uma síntese que não se confunda com um projeto de totalidade, experimentam a intertextualidade à maneira da colagem. Incorpora-se a tradição, neste caso, sem a austeridade do exemplo anterior, mas de maneira lúdica, utilizando-se basicamente o procedimento parodístico. Uma terceira forma de incorporar a tradição, nesse contexto histórico, é a dos músicos populares. Enquanto realizações musicais modernistas como as de Villa-Lobos tendem, principalmente a partir de
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Bandeira, 1993:207. Poética foi publicado em Libertinagem, em 1930. Os poemas que compõem o livro foram produzidos entre 1924 e 1930.
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1930, a trabalhar o repertório folclórico (principalmente o sertanejo, ou o rural) e a operar no registro do sublime, a música popular adota outros critérios. Em vez de se pautar pelo corte rural/urbano, opta por um estilo polifônico (no sentido bakhtiniano do termo) que inclui ambos os repertórios, abrindo espaço tanto para a tradição quanto para as novidades introduzidas pelo processo de urbanização. A postura dos músicos populares, tal como a dos eruditos, é incorporativa, mostrando-se também muito mais predisposta a preservar do que propriamente a romper com o legado estético. Assim, mesmo que se promovam determinados recortes na tradição cultural, privilegiando-se representações mais condizentes com o mundo moderno, o lugar tradicionalmente reservado ao sublime costuma ser assegurado, embora, na maioria das vezes, até para dar conta das inovações, ele se combine com o humilde. Os eruditos e os populares são incorporativos – e estes últimos tendem ao procedimento polifônico –, mas os dois tipos de músicos assumem atitudes diferentes ao lidar com a tradição. Os músicos modernistas, vinculados a um projeto construtivo e, portanto, a uma plataforma coletiva, reverenciam o legado estético como depositário dos traços nacionais. Os artistas populares, ao contrário, mesmo quando fazem incursões no sublime, produzem lamentações do mais puro individualismo. Quando operam com o humilde – na maioria das vezes conciliando-o com o sublime –, desenvolvem uma atitude semelhante à dos nossos escritores modernistas, como Manuel Bandeira. E tanto os escritores quanto os compositores populares se mostram próximos, no tocante a certos aspectos, da sensibilidade modernista francesa, com relação à maneira de perceberem e representarem uma nova realidade que vêem como descontínua e em constante transformação. No campo musical, os compositores franceses assumem abertamente as inovações – sofisticadas ou vulgares – trazidas pela vida urbana, eximindose do esforço de transfigurá-las excessivamente. Nos demais planos da produção estética, os artistas e intelectuais franceses promovem a reclassificação de determinados valores culturais construídos em torno das contraposições entre o “ocidental” e o “não-ocidental” e entre a “alta” e a “baixa” cultura, recorrendo a justaposições e a fragmentações de ordens tradicionalmente estáveis. James Clifford argumenta que esse tipo de atitude – que denomina “surrealismo etnográfico” – assumida tanto pelos artistas inicialmente ligados a André Breton quanto pelo primeiro núcleo de etnógrafos, constituído basicamente por Paul Rivet, Lucien Lévy-Bruhl e
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Marcel Mauss, pôs-se a questionar as classificações tradicionais como uma realidade “a ser subvertida, parodiada e transgredida”. Assim, da mesma forma que se passou a atribuir cultura a todas as sociedades existentes, conferiu-se valor artístico a objetos não-ocidentais até então vistos como exóticos, arcaicos e primitivos. Mas o mais relevante para o assunto em questão é a análise de Clifford de que uma das características da atitude surrealista é a tendência a representar o mundo de maneira condizente com a percepção da realidade pós-I Guerra – estilhaçada, desestabilizada, descontínua. Se a realidade se encontra fracionada, uma forma estética que se ativesse à continuidade e ao esboço de configurações totalizantes não seria condizente com sua representação. A forma que então se exige não só é fragmentária, como também dá conta de uma nova provocação advinda da vida urbana emergente: a transformação do familiar em estranho. A etnografia e o surrealismo se desenvolveram, portanto, de forma muito aproximada na França dos anos 20 e 30. Os surrealistas, tal como os etnógrafos, se interessavam pelos mundos exóticos, nos quais incluíam uma “certa Paris”. Mas, segundo Clifford (1988:117-21), a atitude dos surrealistas teria invertido o procedimento dos etnógrafos; assim, em vez de tentarem tornar o não-familiar compreensível, tentaram tornar o familiar estranho. Talvez então se possa dizer que os limites impostos pela classificação erudito/popular se tornam mais tênues no caso da literatura, já que os textos poéticos e ficcionais de alguns escritores modernistas tendem a assumir os registros associados à “baixa cultura”. Blaise Cendrars, por exemplo, um dos inspiradores do modernismo literário no Brasil, ao defender a equação entre arte e vida, propõe ao mesmo tempo um acordo entre a arte “elevada” e a “popular”, dando assim continuidade à tradição de certa forma inaugurada na poesia por Rimbaud: Eu gostava de pinturas idiotas, painéis de portas, cenários de palco, telas de saltimbancos, letreiros, gravuras populares, literatura fora de moda, latim de Igreja, livros eróticos com má ortografia, romances de nossas avós, contos de fadas, pequenos livros de infância, velhas óperas, refrões tolos, ritmos ingênuos (apud Perloff, 1993:43).
A poesia modernista e a música popular do período acabam embaralhando – através das novas formas que passam a desenvolver – a distinção entre homem natural e homem cultural promovida pelo modernismo musical, configurada na supremacia do erudito sobre o po-
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pular. Mas esse tipo de consideração tende a ser problemático, na medida em que não se pode deixar de distinguir – no que diz respeito não só à literatura modernista, mas também à literatura em geral – os planos da autoria e da recepção. Assim, mesmo que o texto se realize através dos mais simples procedimentos formais, como o verso livre no caso de Cendrars, ele desconsidera o gosto do leitor tradicional, habituado aos torneios de linguagem e de versificação em suas acepções parnasianas ou bacharelescas. E há quem argumente, como Silviano Santiago, que a escrita modernista apresenta-se obscura para o leitor comum, pelo fato de se orientar pelo emprego da elipse e pelo abandono de qualquer excesso na utilização de palavras. Assim, tanto o poema quanto a prosa modernista se incompatibilizariam, desde o início, com a inclinação do público para uma escrita mais convencional. Obra de fruição difícil, a estética modernista obriga então o leitor a aprimorar-se. O trocadilho de Oswald de Andrade – “A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico” – vem bem a propósito para ilustrar este aspecto da discussão (Santiago, 1983:27). Calinescu (1987) localiza um dos paradoxos da modernidade nesse tipo de desencontro entre o escritor – liberto da tradição – e o público – aprisionado aos velhos hábitos. Por um lado, constata-se que o público não está preparado para consumir o que realmente precisaria e, por outro, não se espera do artista que tente agradar este público, mas que assuma uma postura combativa em prol da transformação da obra de arte. Atribui-se o despreparo do público à influência do academicismo e a seu apego às tradições passadas, o que o impediria de tomar consciência do presente; caberia portanto ao escritor, mesmo correndo o risco de chocar o leitor, lutar pela instauração generalizada da consciência histórica e pela eliminação do efeito inibidor do hábito sobre a imaginação. Dataria desse momento a analogia militar do papel do artista, que é a origem do termo vanguarda. Outra questão diferencia músicos populares e poetas: os primeiros operam com os meios de comunicação de massa, assumindo radicalmente o mercado e as novidades introduzidas no setor. Luiz Tatit (1996:62) lembra que a canção de carnaval se apresenta no Brasil como utilitária, já que é feita sob encomenda e moldada segundo padrões comerciais. Na virada dos anos 20 e início dos 30 os compositores já a concebiam como um produto de consumo imediato. Na falta de um conhecimento musical mais rigoroso, esses músicos, em contrapartida, desenvolveram até as últimas conseqüências a “habilidade do cancionista”. Os poetas, apresentando um comportamento típico das van-
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guardas em geral, lidam com um público reduzido e seleto, tendo várias de suas publicações de teor programático uma natureza nãocomercial. Vale para a comparação da poesia erudita com a música popular a oposição que Poggioli assinala entre o periódico de vanguarda e o popular. Tal como a canção popular, o periódico comercial se abstém de guiar a opinião pública, visando apenas a satisfazer as paixões da multidão. E como argumenta Poggioli, embora as manifestações da arte moderna sejam mais identificadas com a idéia de “movimento”, algumas, devido a atitudes de enclausuramento tomadas por seus membros, acabam mais próximas do conceito clássico de “escola”. Assim, constituem-se grupos fechados que se autodenominam “círculos”,“chapelles” ou “cenáculos”, visando, com tais nomenclaturas, a distinguir sua natureza aristocrática e solitária, assim como seus espaços específicos, como os ateliês populares, os cabarés e os cafés da vanguarda boêmia. Mas a despeito dessa atitude elitista, que se realiza contraditoriamente em locais associados ao espírito democrático, há uma diferença muito grande entre esses cenáculos e os salões artísticos do Antigo Regime. Lugar de encontro por excelência de artistas e cortesãos, esses salões não passariam, segundo Poggioli (1968), de uma versão mundana do espírito de escola. De qualquer maneira, convém enfatizar que se o modernismo brasileiro não se posiciona de maneira tão radicalmente iconoclasta quanto as vanguardas européias, ele assume, no entanto, através de sua própria perspectiva de renovação formal, a atitude vanguardista de antagonismo com relação ao público. Por outro lado, um ponto que reforça sem dúvida a distinção entre as músicas erudita e popular do período – e possibilita a aproximação das composições populares com a literatura modernista – é a questão das novas dramatizações do urbano empreendidas por músicos populares e poetas, a desenvolver formas que captam as experiências fragmentadas do dia-a-dia, as interlocuções interrompidas e a linguagem dessublimada. Trata-se de um tipo de atitude estética muito próxima à do romancista, e que utiliza a linguagem do cotidiano, o discurso familiar e as formas profanadoras – ao contrário da epopéia, por exemplo, que adquire um “ar oficial” ao idealizar o passado em gêneros elevados (Bakhtin, 1987a:20). E tanto a poesia quanto a canção popular, quando elaboradas no registro parodístico, atualizam de maneira crítica o texto da tradição que lhes serve de fonte.91
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Ver Bakhtin, 1981.
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Porém, a despeito dessas diferenças de posições entre devoradores e devorados, da falta de popularidade dos primeiros e da popularidade dos últimos, escritores e músicos populares compartilham não só da postura experimental, mas da sensibilidade boêmia, da valorização da experiência, do risco, desenvolvendo uma atitude que rompe com a distinção clássica entre arte e vida. Rejeita-se a regularidade e tenta-se proceder em conformidade com a percepção da imprevisibilidade da vida contemporânea, sujeita ao acaso e desprendida de roteiros lineares, previamente traçados.92 Poggioli (1968) analisa o caso do artista moderno, em que é comum o abandono do estilo de vida marcado pela ambiência familiar para a inserção no meio artístico. Ao invés de uma identidade construída através da herança racial, ou de classe, opta-se por uma condição desclassificada, que muitas vezes se realiza plenamente na boemia. Recorre-se ao universo da libertinagem como a uma espécie de limbo social, onde seria comum a inversão de normas de conduta, tendendo portanto o artista a um comportamento classificado como excêntrico. Na contramão do modernismo musical, tendente a compartilhar valores e linguagens com outros movimentos que recuperam e cultuam o passado em nome da construção do futuro, os músicos populares do período, desvinculados de projetos coletivos, atuam com maior flexibilidade. Ao adotarem dicções mais despojadas, descomprometidas com programas de ação, mostram-se munidos de valores dionisíacos e de um espírito afirmativo da contemporaneidade e do transitório só encontrável nos cotidianos diferenciados por uma pluralidade de experiências. Essa variedade de experiências nas sociedades complexas modernas corresponde, segundo Reginaldo Gonçalves (1996a:2-3), às variações discursivas. Nesse tipo de sociedade, os gêneros de discurso associados aos grupos dominantes tendem a centrar-se na espiritualidade, na imaterialidade, na hierarquia e na etiqueta, enquanto os gêneros associados aos grupos não-dominantes centram-se no corpo, na materialidade, na irreverência e no riso. O universo coberto por esta pesquisa, referenciado à música popular do Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, é o da criação de uma coloquialidade, nos domínios públicos e privados, cujos elementos constitutivos também são dados pela tradição. Os discursos proferidos nesse cotidiano urbano não se constroem, portanto, apenas através de práticas modernizantes e excludentes para
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Ver Seigel, 1992:356.
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com a província. Configura-se um tipo de artista que capta as nuanças – assim como as linguagens – do nosso processo singular de modernização, em que fantasias rurais, ou associadas a outros modelos tradicionais, também povoam a cidade, convivendo com o deslumbramento provocado pelo cinema falado, pelo rádio, pelas calças largas dos “almofadinhas” da avenida Central. Pouco afeito a representar a atitude blasée puritana, esse artista mostra-se bastante sensível ao excesso de estímulos com que se depara na sua experiência, tanto familiares quanto estranhos, tanto racionais quanto afetivos, tanto tímidos quanto espalhafatosos. O apego ao excessivamente familiar não lhe tira, porém, a disposição para experimentar. O músico popular realiza, assim, mais que qualquer outro artista, essa vocação para empreender mudanças formais sem se incompatibilizar com o público. Tampouco busca elevar-lhe o gosto; pelo contrário, desenvolve, de maneira errática e descompromissada, uma relação carinhosa com ele. Quanto ao modernismo musical brasileiro, seu compromisso com a linguagem culta acaba condenando-o a um novo tipo de cristalização. Não se trata mais de eternizar o passado clássico-romântico, mas de congelar um presente idealizado, ou uma certa tradição revalorizada. Cria-se uma hierarquia representada simbolicamente por uma espécie de Apolo, ou “músico missionário”, que tenta de certa maneira pacificar – ou domesticar – a arte dionisíaca dos redutos boêmios da música popular.
O n oi r e o solar Tanto os modernistas brasileiros quanto os músicos populares procedem, ainda que por caminhos muito diferentes, quase opostos, à maneira do bricoleur: recorrem à citação, à paródia, ao pastiche e a várias outras formas que lhes permitem incorporar a tradição, mesmo que seja – como no caso do parodista – para negá-la. O mito do engenheiro, por sua vez, não corresponde aos ideais dos escritores e músicos que buscam a modernidade através de processos adaptativos, contornando os acidentes legados pela tradição e incorporandoos ao seu projeto, em vez de removê-los. Associado à figura do demiurgo, o engenheiro, ao contrário de quem lida com a incorporação dos resíduos deixados pelo tempo, se não projeta um futuro inteiramente renovado – pois há sempre algo da tradição a ser incorporado –, promove, pelo menos, através de um plano de ação
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objetivo e racional, descontinuidades entre passado e presente. O mito do engenheiro faz mais sentido no país a partir dos anos 40, com as representações artísticas desenvolvidas sobretudo na música e na poesia. O grupo Música Viva, que se constitui em 1938 sob a liderança de Hans Joachim Koellreutter e que, em manifesto de 1944, se autodefine como um “núcleo de estudos e de renovação musical”, é representativo dessa nova concepção estética. Procedente da Alemanha nazista, de onde sai em 1937 por questões políticas, após rápida passagem pela Suíça, Koellreutter chega ao Rio de Janeiro, onde forma um círculo de músicos e introduz os princípios estéticos do dodecafonismo. Apesar de seu grupo levar em conta a realidade política e cultural brasileira dos anos 40 ao formular seu projeto musical, Koellreutter mantém algumas idéias básicas que tem em comum com os músicos dodecafônicos europeus, como a ruptura com a tradição romântica, a independência da música em relação ao ideal de beleza e a valorização de uma atitude universalista – “a música nova deveria expressar nossa época, mesmo que não refletisse coisas específicas de uma nacionalidade” (Wolff, 1986:113-24). A postura dodecafônica remete ao mito do engenheiro: em vez de aproveitar de modo quase indiscriminado todas as informações de que dispõe, como faz um Stravinski ou um Villa-Lobos, Schönberg delimita seu material de trabalho por meio de um rigoroso processo de exclusão. A própria lógica do sistema dodecafônico visa a dificultar ao máximo o estabelecimento de um centro tonal e a fugir de um melodismo fácil; mesmo as soluções harmônicas permitidas pelas regras do novo sistema – e que são devidamente aproveitadas por Alban Berg, seu discípulo menos rigoroso – devem ser evitadas se puderem ser erroneamente lidas pelo ouvinte como tonais.93 E é justamente nos anos 40 – mais precisamente em 1945 – que João Cabral inaugura seu estilo maduro com a publicação de seu segundo livro, O engenheiro: O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre.
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Ver Abraham, 1979:834-5.
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(Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro.) A água, o vento, a claridade, de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças simples. (Mello Neto, 1994:196.)
Como um músico dodecafônico, Cabral delimita rigorosamente seus materiais, definidos em função de seu projeto estético – a rejeição da subjetividade romântica: a redondilha maior e a rima toante, por serem pouco musicais, e as imagens duras, cortantes e desérticas. Tais recursos são os mais apropriados a seus fins, tendo em vista a expressão tradicional do sentimento em termos de musicalidade, suavidade e umidade. Luiz Costa Lima (1995:208) explica que O engenheiro inaugura uma nova fase na obra poética de Cabral, porque entram no livro “duas configurações poemáticas opostas”: À primeira chamaremos de configuração de tipo lunar, noturno, fundada na tradição simbolista, nutrida pelo surrealismo, embora desde já nem simbolista nem surrealista. À segunda chamaremos de tipo concreto-solar, através da qual será levada a cabo a reformulação da tradição mallarmaica, agora arrancada das névoas simbolistas.
Ao analisar o poema, Costa Lima chama a atenção não só para os objetos que constituem o sonho do engenheiro – “superfícies, tênis, um copo d'água, o lápis, o esquadro, o papel, o desenho, o projeto, o número” – como também para a “igualdade semântica de que surgem os intrumentos”, pois são “todos substantivos concretos, sem nenhuma alusividade” (1995:212-3). Bastante significativo para o tema que analiso é o poema Os primos, obra paradigmática, segundo Costa Lima, da estética “concreto-solar” de Cabral: Meus primos todos em pedra, na praça comum, na rua de nome indígena.
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No gesso branco, os antigos dias, os futuros mortos. Nas mãos caiadas, as impressões digitais particulares, os gestos familiares. Os movimentos plantados em alicerces, os olhos bulindo de vida presa. Meus primos todos em mármore branco: o funcionário, o atleta, o desenhista, o cardíaco, os bacharéis anuais, nos olhando nos olhos cumprimentando nossas duras estátuas. Entre nossas pedras (uma ave que voa, um raio de sol) um amor mineral, a simpatia, a amizade de pedra a pedra entre nossos mármores recíprocos. (Mello Neto, 1994:70-1.)
A imagem do gesso, tal como a interpreta Luiz Costa Lima, não evoca, por certo, a aceitação romântica da morte; tampouco remete à idéia de congelamento da vida, de decadência de estado. O que Cabral pretende é alcançar a subjetividade, “convertê-la em um objeto paralelo ao pictórico, da música cobiçando não sua fluidez, mas o corte rítmico” (Costa Lima, 1995:220-1). Poderia acrescentar a esta análise o argumento de que os primos representados pelas estátuas de mármore branco não se prestariam ao culto essencialista da perspectiva monumental. Em vez de antepassados heróicos, são os futuros mortos, figuras de impressões digitais particulares, de gestos familiares, aos quais a estatuária de mármore não retira a transitoriedade da condição humana, a idéia do pó original e final. Essa postura, que valoriza a economia e se opõe radicalmente à idéia de excesso, ganha força no cenário cultural do país a partir dos
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anos 50, principalmente com a poesia concreta e a bossa nova. Com relação à poesia concreta, Luiz Costa Lima mostra que esta dá continuidade à poética de Cabral, principalmente ao promover, tal como a obra do poeta pernambucano, a desmistificação do lirismo. O projeto construtivo do período, no qual se insere a produção concretista, tem como uma de suas postulações básicas a instauração da objetividade como procedimento estético. Essa perspectiva objetivista pressupõe, num primeiro momento, uma visão positiva do mundo contemporâneo, o que envolve, apesar de algumas contradições, a aceitação da cultura de massas. Em texto de 1956, Haroldo de Campos declara: a poesia concreta é a linguagem adequada à mente criativa contemporânea permite a comunicação em seu grau + rápido prefigura para o poema uma reintegração na vida cotidiana semelhante à que o Bauhaus propiciou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial (jornais, cartazes, cinema etc.) quer como objeto de pura fruição (funcionamento da arquitetura, p. ex.), com o campo de possibilidades análogo ao do objeto plástico substitui o mágico, o místico e o maudit pelo útil 94
Em outro artigo, datado de 1957, Haroldo afirma: Jules Monnerot descreve o poeta como “um mágico sem esperança”. A poesia concreta elimina o mágico e devolve a esperança. Desaparece o “poeta maldito”, a poesia “estado-místico”. O poema passa a ser um objeto “útil”, consumível, como um objeto plástico. A poesia concreta responde a um certo tipo de forma mentis contemporânea: aquele que impõe os cartazes, os slogans, as manchetes, as dicções contidas no anedotário particular etc. O que faz urgente uma comunicação rápida de objetos culturais. A figura romântica, persistente no sectarismo surrealista do poeta “inspirado”, é substituída pela do poeta factivo, trabalhando rigorosamente sua obra, como um operário um muro.95
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Campos, Campos & Pignatari, 1975:48. Campos, Campos & Pignatari, 1975:52.
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Ancorados nessa perspectiva positiva, os concretos encontram interlocutores que comungam na mesma visão de arte, e isso principalmente entre os artistas plásticos e arquitetos, e não propriamente no meio literário. Ronaldo Brito (1985) afirma, por exemplo, que é comum às tendências concretistas e neoconcretistas nas artes plásticas a visão de arte como instrumento de construção da sociedade. Esse estranhamento entre o concretismo e as propostas vigentes no meio literário dever-se-ia, segundo os concretos, à forte presença, no período, da “geração de 45”, que reagiria contra o clima libertário do modernismo e tenderia a retomar formas antigas. É comum aos artistas construtivos uma avaliação um tanto restritiva das experiências vanguardistas da virada do século. Por mais que admirem os procedimentos radicais de ruptura com a arte canônica adotados pelos surrealistas, futuristas e dadaístas, fazem objeções às suas propostas estéticas. No caso dos futuristas, admiram o gesto, mas discordam da forma, por causa da falta de “organização construtiva” que resulta de sua “cinemática descritiva”, seu “freneticismo subjetivista” e seu “ultra-romantismo hipostasiado na máquina”; no caso dos dadaístas, por sua postura niilista; e no dos surrealistas, por seu irracionalismo, seu “automatismo psíquico”, seu “caos poético individualista e indisciplinado, que não conduz a qualquer tipo de estrutura e permite [...] uma espécie de comunismo do gênio”.96 Os maiores antagonistas, portanto, são os cultores da subjetividade, em qualquer forma que se expresse, e os artistas que se contentam com a rebeldia, sem maiores compromissos com a pesquisa de uma forma adequada ao mundo contemporâneo. E essa forma, segundo os concretistas, seria uma poesia mais visual e menos discursiva, na medida em que fazem uma leitura do espírito contemporâneo como “antidiscursivo e objetivo por excelência”. Os procedimentos rejeitados são associados a uma produção do tipo artesanal, anacrônica demais para dar conta da complexidade de um mundo em constante transformação, o que leva os concretistas a postular uma produção industrial. O Bauhaus, por exemplo, se converteria no melhor exemplo de atualidade e positividade, pois teria realizado, segundo Pignatari, o encontro do útil com o belo.97
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Campos, Campos & Pignatari, 1975:97-100. Campos, Campos & Pignatari, 1975:99, 109.
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A valorização do momento presente pelos concretistas não pressupõe simplesmente uma visão evolutiva das formas artísticas; pelo contrário, o paideuma que constroem incorpora também uma perspectiva sincrônica. Em outras palavras, os poetas que compõem a sua genealogia são valorizados pelo que cada um representou em termos de inovação em seu tempo específico. Assim, por exemplo, Mallarmé e Pound se igualam aos concretistas na tentativa de falar a linguagem de sua própria época, o que requer sempre, de cada um deles, uma boa dose de criatividade e um espírito combativo contra os tenazes cultores do passado. É nesta acepção que Haroldo de Campos diz que “a tradição viva é moderna”.98 O paideuma concretista se desenha, portanto, nesse período de gestação de uma nova proposta estética, a partir de Pound, com suas produções e seus ensaios críticos, de Fenollosa e sua recuperação do ideograma chinês, de Apollinaire e seus caligramas, de Cummings etc. Entre os brasileiros, valorizam-se alguns representantes da tradição modernista – como o Mário de Andrade de Macunaíma e Oswald de Andrade, por sua poética antimetafórica e suas formulações estéticas – e João Cabral, que teria proferido o “primeiro ataque lúcido contra o jargão lírico e a peste metafórico-liriferante que assola a poesia nacional e mundial”.99 Coerentes com sua perspectiva sincrônica de avaliação do passado, os concretistas não promovem uma ruptura com toda a tradição literária, como se sua proposta significasse uma edificação totalmente nova a partir de um ponto zero. Rompem, na verdade, com certas tradições, como a retórico-discursiva, representada, por exemplo, pela literatura ornamental do início do século, que funcionaria, segundo Haroldo de Campos (1966), como um “jargão de casta”, e a subjetivista, configurada pelo lirismo romântico. E se o modernismo, principalmente o de Oswald, é bastante valorizado, os concretistas não relegam ao esquecimento procedimentos anteriores, como os associados ao barroco mineiro. Assim, reafirmam a análise de Lúcio Costa segundo a qual a arquitetura de Niemeyer se compara à arte barroca do Aleijadinho.100 Em suma, a tradição literária, para os concretistas, é constituída exclusivamente de um conjunto de obras que dialogam entre si. Al-
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Campos, Campos & Pignatari, 1975:150. Campos, Campos & Pignatari, 1975:65. 100 Campos, Campos & Pignatari, 1975. 99
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guns aspectos sociológicos – como a tematização de determinados elementos sociais, a formação de um gosto e a existência de um público – não fazem parte da literatura, que é concebida em termos exclusivamente estéticos. O que importa é a presença de determinados elementos de forma e de atitude perante a obra de arte – uma postura inaugural, construtiva, objetivista, não-expressionista. As obras que apresentam esses elementos, independentemente da época em que tenham sido produzidas, são vistas como inventivas e atuais. A postura construtivista implica uma integração estética com o mundo. Mas se o mundo em princípio é aceito, parte-se do pressuposto de que ele não se encontra concluído; pelo contrário, o que se delineia é um mundo – singular, projetado e almejado – em construção. Sociologias à parte, a vanguarda concretista acredita na existência de um modelo de sociedade – o industrial – que se tornou predominante e seguiu sua marcha inexorável desde a I Guerra Mundial. Ana Maria Belluzo (1990:27) estabelece uma correspondência entre essa espécie de surto construtivo na América Latina, nesse período, de viés racional e utilitário, e o projeto social da Bauhaus: Participam das esperanças no desenvolvimento industrial brasileiro e antecipam-se a ele, despendendo recursos para a modernização da sociedade. A clara divisão entre projeto e obra, as operações seriadas, a cor plana, a economia dos elementos de produção do quadro e do objeto, os estudos da forma e da contraforma, a concepção da obra múltipla não escondem a elaboração da estética industrial.
Augusto de Campos (1968:167-8) enfatiza a característica revolucionária da década de 50, em que se configura, junto com a sensibilidade vanguardista, a valorização da racionalidade. Campos cita vários fenômenos que marcam a época, como a experiência do “após-Bomba” e as seguintes revoluções sucessivas: o be-bop, o LP, a TV, os sputiniks, o XX Congresso e a desestalinização, a Revolução Cubana, Brasília, a poesia concreta, a música eletrônica e a bossa nova. A bossa nova, de fato, ao introduzir um registro musical intimista – mais para ouvir do que para dançar – semelhante ao do be-bop, harmoniza-se com esse ideal de racionalidade. Essa nova forma desenvolvida pelo jazz nos anos 40 amplia o território harmônico e as escalas tradicionais, introduz acordes dissonantes e se apresenta como uma experiência musical marcadamente inovadora, em muitos proce-
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dimentos semelhante à música erudita de vanguarda, como o impressionismo de Debussy e Ravel e o atonalismo de Schönberg em sua fase pré-dodecafônica, como se observa em Pierrot lunaire. Tal como no be-bop, a bossa nova opta por um procedimento mais despojado, fugindo do histrionismo que marcou o repertório popular, notadamente nas décadas de 40 e 50, e envereda por uma linha mais contida e funcional. Ao desenvolver esse tipo de estética, a bossa nova converge com outras manifestações dos anos 50, como a arquitetura de Niemeyer e a poesia concreta. Relativamente ao padrão anterior da música popular, que prima pelo excesso, o da bossa nova remete a uma idéia de assepsia. Uma assepsia que condiz com o surgimento de um novo tipo de público, atento às harmonias mais requintadas do jazz. Joaquim Aguiar analisa o fenômeno da substituição de costureiras, operárias, trambiqueiros e marginais, vinculados à música popular de períodos anteriores, pelos “jovens de formação musical e acadêmica” da bossa nova: Logo, o bom uísque derrama a ardida cachaça. Assim como a vida “racionalizada” dos apartamentos impõe-se ao barraco e ao “rancho-fundo”, o bas-fond da Cinelândia, com suas melodias grandiloqüentes sobre amores descabelados, é trocado pela boate cara, pela voz educada e pelo brando e contido amor [...] (1989/90:65).
A bossa nova insurge-se contra toda uma tradição associada ao excesso: os arranjos grandiosos de violinos e de metais inaugurados por Radamés e Pixinguinha, o estilo operístico de Francisco Alves, o ufanismo de Aquarela do Brasil e as dores-de-cotovelo derramadas que datam dos anos 20 e atravessam os anos 40 e 50, principalmente no samba-canção. De fato, no período anterior ao surgimento da bossa nova predominavam o samba-canção e o bolero, gêneros veiculados pelo rádio e cultuados nos night clubs. As composições de Antônio Maria, interpretadas por Nora Ney e Dolores Duran, criavam uma “atmosfera noir”,que matizava o conteúdo dramático das letras com uma pitada de sofisticação. E figuras como Antônio Maria, por exemplo, profundamente envolvidas naquele ambiente noturno impregnado ao mesmo tempo por tiradas inteligentes e dores-de-cotovelo, vivenciavam o teor das canções.101
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Ver Castro, 1991.
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Retomando a questão das descontinuidades promovidas pela bossa nova, é importante esclarecer que, ao me referir ao estilo conciso e racional inaugurado por esta tendência musical, atenho-me basicamente à linha assumida por João Gilberto, o principal expoente dessa forma estética. Pois foi ele realmente que, à maneira de um demiurgo, deu forma à bossa nova, mesmo porque este tipo de criação musical não resultou de um projeto compartilhado por vários músicos. Dito em outras palavras, a bossa nova não constituiu um movimento, mas foi obra de um autor individual. Se tudo indica, por exemplo, que João Gilberto captou o gosto emergente pelo jazz camerístico, não há dúvida, por outro lado, de que a nova forma musical da bossa nova em muito se deveu à obsessão deste músico por um ritmo e uma harmonia inteiramente novos, compatíveis com sua interpretação dos tempos modernos (Castro, 1991). Assim, João Gilberto incorporou repertórios tradicionais, recriando, rítmica e harmonicamente, sambas de diversos autores através da fusão com o jazz. Por outro lado, ele rompeu com os gêneros associados ao excesso em várias de suas manifestações na música popular, como o sentimentalismo dos boleros e dos samba-canções, as interpretações operísticas, ao estilo de Dalva de Oliveira, e os arranjos que recorriam a orquestrações. Poder-se-ia argumentar que, ao enfatizar a atuação de João Gilberto na bossa nova, eu estaria negligenciando a contribuição de Tom Jobim e de outros músicos para essa estética. A figura de Tom é de fato indissociável do momento primordial da constituição da nova tendência musical, porque é ele que, em parceria com Newton Mendonça, compõe as duas músicas que anunciam as novidades musicais: Desafinado (1958) e Samba de uma nota só (1960). Augusto de Campos (1968:139-40), a propósito, destaca o procedimento isomórfico dessas composições inaugurais da bossa nova, em que letra e música se comentam. Os elementos de transgressão da bossa nova se encontram presentes em Desafinado: no momento exato em que se pronuncia a sílaba tônica da palavra “desafino”, ocorre, no plano da música, uma nota inesperada, que representa uma transgressão aos padrões melódicos da música popular convencional. No entanto, pelo que se depreende do relato de Ruy Castro (1991), João Gilberto teria conseguido impor seu estilo intimista seduzindo a dupla Tom Jobim-Newton Mendonça para a realização do seu projeto musical. Refletindo sobre essa informação fornecida por Ruy Castro, acho que faz bastante sentido a idéia de Tom Jobim – muito mais propenso a melodias exuberantes, dando continuidade à tradição inaugurada por Radamés Gnattali – ter
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sido de certa forma “domesticado” por João Gilberto para operar num registro mais conciso e racional. Basta acompanhar a trajetória de Tom para ver que esse argumento tem razão de ser, pois logo após o período inicial da bossa nova o compositor parece romper seus grilhões com um projeto fechado, voltando a compor no estilo sinfônico e retomando sua vocação para o excesso. A narrativa de Ruy Castro sobre a produção do LP Canção do amor demais (1958), considerado um marco da bossa nova, é bastante reveladora das sensibilidades diferentes de João Gilberto e Tom Jobim. Na prática, o disco resultou de uma superprodução, pois demandou muito trabalho para sua concepção e realização, assim como contou com uma equipe de artistas já consagrados, como João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Elizete Cardoso, além de instrumentistas importantes, que se encarregaram do acompanhamento. As diferenças entre os músicos se fizeram sentir desde o início. Foi a partir dessa gravação, por exemplo, que João Gilberto apresentou em algumas faixas a sua nova batida ao violão, produzindo um tipo de ritmo que, diferentemente do samba convencional, permitia ao músico maior liberdade para experimentações harmônicas. No entanto, enquanto João Gilberto buscava novas linguagens, os demais integrantes do grupo se orientavam por um estilo mais convencional (pelo menos na visão de João Gilberto). De acordo com Ruy Castro, João Gilberto não gostava “da gravidade com que a Divina [Elizete] tratava as músicas, como se fossem peças de algum repertório sacro – talvez porque as letras fossem de um poeta importante, Vinícius de Moraes”. João insistia para que Elizete cantasse de maneira mais descontraída (no que não foi ouvido). De modo semelhante, João Gilberto não apreciava a letra de Vinícius para Serenata do adeus, que considerava de mau gosto (Castro, 1991:177): Ah, mulher, estrela a refulgir Parte, mas antes de partir Rasga o meu coração Crava as garras no meu peito em dor E esvai em sangue todo o amor Toda a desilusão.
De qualquer maneira, nesse disco é que foi lançada Chega de saudade, composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes que mais tarde se tornaria famosa, principalmente quando passou a ser interpretada por João Gilberto. Mas esse gosto de João Gilberto pela concisão
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explica em grande parte o interesse demonstrado por Augusto de Campos – poeta da tradição concreta – pela bossa nova, pois tanto os músicos dessa tendência quanto os concretos desenvolveram aversão à prolixidade. Em 1968, por exemplo, Campos organizou uma coletânea de artigos sobre música popular que tematizava a bossa nova, a vertente de rock brasileiro conhecida como iê-iê-iê e o tropicalismo, e publicou-a sob o nome Balanço da bossa. Nesses artigos – vários de sua autoria –, Campos atribuiu um procedimento moderno à bossa nova, pelo rompimento com formas tradicionais como o “exibicionismo operístico”, valorizando portanto o intimismo que caracteriza as interpretações de João Gilberto e de Nara Leão. Quando os músicos e poetas ligados à tendência, como Vinícius de Moraes, criavam uma estética mais convencional, deixavam de interessar aos concretos. Mas o que talvez seja mais relevante na análise que Augusto de Campos faz da bossa nova é o fato de ele atribuir a João Gilberto e a outros músicos – por devorarem um produto estrangeiro como o jazz e misturá-lo com o samba – um procedimento antropofágico, tal como proposto por Oswald de Andrade. Campos (1968:48) desenvolveu a esse respeito uma teoria muito comentada na época: A expansão dos movimentos internacionais se processa usualmente dos países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos, o que significa que estes, o mais das vezes, são receptores de uma cultura de importação. Mas o processo pode ser revertido, na medida em que os países menos desenvolvidos consigam, antropofagicamente – como diria Oswald de Andrade – deglutir a superior tecnologia dos supradesenvolvidos e devolver-lhes novos produtos acabados, condimentados por sua própria e diferente cultura. Foi isso o que sucedeu, por exemplo, com o futebol brasileiro [...], com a poesia concreta e com a bossa nova, que, a partir da redução drástica e da racionalização de técnicas estrangeiras, desenvolveram novas tecnologias e criaram realizações autônomas, exportáveis e exportadas para todo o mundo.
Augusto de Campos percebe, portanto, convergências entre a poesia concreta e a bossa nova, principalmente pelo fato de ambas as estéticas lidarem com a concisão, com a objetividade e com a racionalidade. Tanto uma quanto a outra promovem uma ruptura com tradições anteriores associadas ao excesso. No caso da poesia concreta, como observamos, repudia-se tanto o excesso romântico quanto o que se manifesta em qualquer forma verbalizada. Em se tratando da bossa nova, o que é rejeitado tem a ver com a diluição do operismo na música popular, com
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o seu sentimentalismo piegas; de igual modo, não mais se concebe a criação de arranjos musicais com violinos plangentes ao fundo. Só a partir da década de 60 se retomou, com a tropicália, uma perspectiva mais includente, que não só recorreu ao excesso mas também resgatou a monumentalidade do limbo a que fora confinada pelas gerações dos anos 40 e 50. Os baianos inauguraram, com a tropicália, uma nova relação com a diferença, assumindo uma postura afirmativa e comprometendo-se de modo indiferenciado com todos os aspectos captáveis do universo brasileiro, como o brega e o cool, o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular, o rural e o urbano e assim por diante. Paradoxalmente, a atitude tropicalista é híbrida quanto a seus procedimentos básicos: ao mesmo tempo que rompe com o conceito de forma fechada – não existe uma fórmula de canção tropicalista, tal como uma fórmula de canção bossa nova ou de samba-enredo – retoma, justamente em decorrência de sua postura includente, os próprios elementos dessas formas fechadas, promovendo uma continuidade entre iê-iê-iê e marchinha, rock e baião. Se a bossa nova reduzia tudo a um estilo único, centralizador e altamente homogêneo, a tropicália, ao contrário, incorporava sem escrúpulos os repertórios mais diversos, conservando elementos originais seus, da temática ao ritmo. Duas tradições antagônicas foram portanto incorporadas num mesmo movimento: a do despojamento, vinculada à bossa nova, e a do histrionismo do repertório popular tradicional. Em outras palavras, o tropicalismo rompeu com os projetos de ruptura típicos das décadas anteriores, inaugurando uma postura eclética e diferente da obsessão pelo novo até então hegemônica. Assim, ao invés de promover descontinuidades com a bossa nova, o tropicalismo proclamou em Saudosismo, canção-manifesto de Caetano de 1969, a retomada da linha dissonante inaugurada por João Gilberto: Chega de saudade a realidade é que aprendemos com João pra sempre a ser desafinados
Mas, em vez de se pautar, como a bossa nova, por princípios fechados de composição e de interpretação, o tropicalismo adotou uma atitude eclética, abrindo um leque variado de opções. Junto com a bossa nova, incorporou também os repertórios por ela desprezados em nome de uma concepção de sofisticação e de bom gosto musical. Nara Leão, a musa do intimismo bossa-novista, aparece modificada no LP
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Tropicália, pois não só interpreta um bolero – Lindonéia, de Caetano Veloso – como se permite pela primeira vez participar de uma gravação que foge ao registro camerístico, com um arranjo em que abundam os violinos. Lindonéia é a própria caricatura do sentimental, observando-se o procedimento parodístico através da polaridade que se manifesta na composição: o bolero de letra sofisticada e de arranjo e estribilho bregas recebe um tratamento cool com a interpretação de Nara Leão. Assim, ao contrário do estilo definido da bossa nova, a tropicália optou por um não-ter-estilo. Em Tropicália – LP-manifesto do movimento –, o registro intimista da voz de Nara Leão, a musa da bossa nova, convive com o repertório brega de Vicente Celestino. Os baianos foram ainda mais fundo nessa atitude ao se apresentarem na Buzina do Chacrinha, programa de televisão que despertava o mais profundo desprezo nos artistas e intelectuais engajados e bem-pensantes. Já a incorporação do nacional e do estrangeiro aparece nitidamente na estruturação da estética tropicalista, com a junção dos ritmos brasileiros ao rock. A guitarra elétrica passou então a ter um significado simbólico nesse contexto. Não foi sem razão que as primeiras obras tropicalistas foram rejeitadas pela esquerda nacionalista, que só admitia o uso de instrumentos considerados brasileiros, ou “genuinamente nacionais”. Em algumas faixas de Tropicália, esse tipo de junção nacional & estrangeiro é manifesto num estribilho como “Ê bumba-iê-iê-boi” (de Geléia geral) e num título como Batmacumba. Os tropicalistas tensionaram o campo cultural ao transitarem com desenvoltura pelos domínios do erudito e do popular. Ao incorporarem elementos de música concreta, utilizarem compassos irregulares e musicarem textos em verso livre, Caetano e Gil mostraram-se próximos de músicos eruditos contemporâneos como Rogério Duprat e Júlio Medaglia. Em entrevista que me foi concedida em março de 1986, Augusto de Campos fez o seguinte comentário sobre Caetano Veloso: A riqueza do trabalho dele [Caetano Veloso] é justamente que ele, situando-se problematicamente nesse contexto [da música popular], não se contenta em simplesmente cumprir as regras do jogo. Ele sempre envenenou esse código com elementos infratores de outros códigos [...]. Então ele tensionou esse arco da música popular tão longe que, muitas vezes [...] chega a pontos-limites de aproximação com procedimentos que seriam dessa área erudita, tanto na música como na poesia.
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Parece lícito, pois, afirmar que a tropicália retoma o que há de mais característico na estética modernista brasileira – a inclusividade do bricoleur – após o período curto e relativamente atípico em que foi dominante a atitude excludente do engenheiro. No período coberto por esta pesquisa, que tem início nos anos 20, o excesso aparece quase como uma vocação do país, realizando-se tanto pela vertente do sublime quanto pela do humilde. Tudo leva a crer que a configuração do “engenheiro” representou pouco mais que um interregno.
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