O Trabalhador: Domínio e Figura

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O TRABALHADOR. Domínio e Figura. por Ernst Jünger

Introdução, tradução e notas de Alexandre Franco de Sá

Título Original: Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt Tradução feita a partir de: [Ernst JÜNGER. Werke. Vol.8, Essays II. Estugarda, Ernst Klett Verlag, 1981.]

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INTRODUÇÃO À EDIÇÃO PORTUGUESA DE DER ARBEITER. UMA CONFRONTAÇÃO COM ERNST JÜNGER

«É falso dizer que a história não é previsível. Inúmeras vezes ela foi profetizada. [...] Certamente que só cabe antecipar a estrutura geral do futuro.» José Ortega y Gasset. La rebelión de las masas; pp.99-100

1. Um livro polémico: entre a civilização e a guerra. Publicado em 1932, na véspera da conquista do poder na Alemanha pelos nacionais-socialistas, O Trabalhador é uma obra abordável em dois planos distintos. Num primeiro plano, mais superficial, aparece como uma obra intimamente marcada pela sua situação histórica, animada pela tentativa de participação do seu autor nos acontecimentos que então se desenvolviam. É possível ler O Trabalhador como um testemunho da intervenção política e social de Ernst Jünger na Alemanha de Weimar, vinculado à área política que Armin Mohler tornou conhecida como a “revolução conservadora”. Depois de várias vezes ferido em combate e de condecorado por bravura com a Pour le mérite, Ernst Jünger tornarase sobretudo conhecido pela publicação, em 1920, dos seus diários de guerra, sob o título Em tempestades de aço. As suas relações com os

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círculos nacionalistas são, nessa época, abundantes, sobretudo com os nacionais-bolchevistas de Ernst Niekisch. A publicação de O Trabalhador em 1932, precedida de A Mobilização Total em 1930, aparecia assim, à primeira vista, como a tentativa de intensificar a sua participação política no contexto da República de Weimar — numa Alemanha subjugada pelas potências beligerantes vencedoras, mergulhada numa inflação imparável, humilhada e revoltada contra os excessos do Tratado de Versailles e as exigências das reparações, espartilhada entre a ameaça bolchevista, temida pelo exemplo sangrento da revolução russa de 1917, e a esperança de um renascimento alemão pela via de movimentos mobilizadores e tempestivos, cujo carácter novo, viril e mesmo violento era suficientemente indeterminado para poder trazer em si, não apenas a superação do declínio alemão, mas também a derrota de uma burguesia liberal acomodada, próxima da França nos seus apelos retóricos à liberdade, à razão, à paz e aos direitos humanos. Em O Trabalhador, Jünger não esconde o seu desejo de intervenção, afirmando que os alemães «podem afirmar com orgulho terem sido maus burgueses»1, que «o vestuário burguês faz uma figura infeliz particularmente no alemão»2, que o espectáculo indigno do liberalismo burguês «pode bem realizar-se na Alemanha, mas de modo nenhum dentro da realidade alemã»3 e que a sua derrota «significa o mesmo que uma nova ascensão da Alemanha»4. Contudo, O Trabalhador é muito mais que um escrito de intervenção. Num segundo e menos imediato plano de análise, ele consiste num ensaio filosófico, no qual ocorre uma confrontação poderosa — uma confrontação pensante — com a história da humanidade ocidental em geral, e com a era histórica a que o Ocidente chegou em particular, na qual se tenta tornar inteligíveis os seus 1

Ernst JÜNGER. “Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt” in Sämtliche Werke. Essays II. Estugarda, Klett-Cotta, 1981; p.17. 2 Idem, p.128. 3 Idem, p.28. 4 Idem, p.31.

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fenómenos fundamentais e compreender a necessidade do seu desenvolvimento. Entre estes fenómenos, um há que, pela sua natureza, assume um significado maximamente relevante. Trata-se da Guerra Mundial de 1914-1918. O século XX começa com a primeira guerra à qual é dado um alcance planetário. E é este fenómeno que o marca com um

carácter

essencialmente

paradoxal.

Ele

despoja-o

da

sua

inteligibilidade imediata e exige, consequentemente, um pensar que se confronte com a estranheza deste mesmo carácter. Por outras palavras, o fenómeno da guerra surge para Jünger, não apenas como uma experiência ocasional dolorosa, como a vivência marcante de uma geração, mas como um acontecimento que destoa do sentido e da coerência do movimento histórico tal como foi considerado em geral pelo século XIX e que, nessa medida, na medida em que manifesta algo de novo e surpreendente, exige uma confrontação pensante com esse mesmo movimento. O carácter paradoxal do século XX torna-se claro, se este for confrontado com o século que o antecede. O século XX nascente tinha sido considerado como o século em que as características do século XIX atingiriam um plano supremo de desenvolvimento. Ao começar a escrever O Declínio do Ocidente em 1912, Oswald Spengler apresentava explicitamente o século XIX, com as suas instituições liberais, com os seus direitos do homem individual, com a sua técnica, com o seu socialismo, como o introdutor da morte da cultural fáustica ocidental, ou seja, como o introdutor do momento em que esta cultura se desvitalizava, atingindo o estado da “civilização”. A civilização, «compreendida como a consequência lógico-orgânica, como a completude e a saída de uma cultura», ou seja, como o seu «destino incontornável»5, surgira no Ocidente no século XIX: «A passagem da cultura para a civilização cumpre-se na antiguidade no século IV, no Ocidente no século XIX»6. O 5

Oswald SPENGLER. Der Untergang Verlagsbuchhandlung, 1923; p.42. 6 Idem, p.43.

des

Abendlandes

I.

Munique,

Beck’sche

5

século XX que se iniciava podia então ser visto por Spengler como a completude da desvitalização ocidental iniciada no século XIX, sobretudo através de dois fenómenos fundamentais. Por um lado, o homem tornava-se massa, reunido em aglomerações urbanas, em metrópoles cuja organização as constitui como aparelhos que o reduzem a uma mera função: «A metrópole significa o cosmopolitismo no lugar da “pátria”, o frio sentido dos factos no lugar da veneração pelo tradicional e pelo idoso, a irreligião científica como fossilização da precedente religião do coração, a “sociedade” no lugar do Estado, os direitos naturais em vez dos direitos adquiridos. [...] À metrópole não pertence um povo, mas uma massa»7. Por outro, o mundo tornava-se numa grandeza, já não puramente representável como o objecto do conhecimento moderno, já não como uma barreira resistente a ultrapassar, mas como um património tecnicamente mobilizável. Ele é agora um armazém de recursos e instrumentos, acessível à sua utilização e mesmo violação pela pura vontade do homem: «O sonhador antigo “contemplava” como a divindade de Aristóteles, o sonhador árabe procura como alquimista o meio mágico, a pedra dos sábios, com a qual trazia à sua posse os tesouros da natureza, o sonhador ocidental quer dirigir o mundo segundo a sua vontade»8. As

análises

de

Spengler

marcaram

decisivamente

a

autointerpretação do século XX ocidental. E marcaram-na numa dupla perspectiva: por um lado, influenciaram o modo como o século XX, no seu começo, se interpretou a si mesmo; por outro, influenciaram a própria realidade interpretada, realidade essa que foi constituída por um incontornável sentimento de declínio. Um tal sentimento alimentava-se sobretudo de um ambiente de esgotamento, de “fim da história”: diante de um mundo definitivamente conquistado pela técnica, a vida tornara-se confortável, tranquila, pacificada e, neste sentido, despojada da 7

Idem, p.45. Oswald SPENGLER. Der Untergang Verlagsbuchhandlung, 1922; p.627. 8

des

Abendlandes

II.

Munique,

Beck’sche

6

virilidade, da luta e da violência que a constituem na sua mais íntima essência. Numa palavra, a vida ocidental estava agora desvitalizada, dominada por um tédio que, como escrevia Baudelaire, «num simples bocejo engoliria o mundo»9. O Ocidente, nas palavras de Spengler, civilizara-se, envelhecera, ganhara o aspecto do saeculum senescens com que outrora S. Agostinho caracterizara a civilização romana. A massificação do homem ocidental assinalada por Spengler, a par do aparecimento das grandes aglomerações urbanas, foi exaustivamente explorada para a compreensão do declínio ocidental. José Ortega y Gasset assinala como a marca característica do tempo a “rebelião das massas”, ou seja, a identificação do homem como igual a todos os outros homens, a inexistência de minorias cuja excelência esteja incumbida de guiar — como diz Ortega y Gasset, de “mandar” — a grande massa dos homens. Evitando a identificação do conceito de massa com o proletariado marxista, Ortega y Gasset esclarece: «A massa é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas. Não se entenda, pois, por massas só, nem principalmente, as “massas operárias”»10; «Diante de uma só pessoa podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele que não se valoriza a si mesmo — para o bem e para o mal — por razões especiais, mas que se sente “como toda a gente” e que, no entanto, não se angustia, que se sente bem ao sentir-se idêntico aos demais»11. No ano de 1927, com a publicação de Ser e Tempo, Martin Heidegger

contribuía

decisivamente,

sem

o

mencionar,

para

o

esclarecimento do conceito de massa. A massa, à qual Heidegger chamava aqui o “toda a gente” (das Man), era a possibilidade pela qual a existência humana (Dasein)12 se furtava à inquietação da angústia, se tranquilizava numa existência quotidiana determinada como inautêntica. 9

Charles BAUDELAIRE. As flores do mal. Trad. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa, Assírio & Alvim, 1992; pp.46-47. 10 José ORTEGA Y GASSET. La Rebelión de las Masas. Madrid, Revista de Occidente, 1958; p.52. 11 Idem, p.54. 12 Traduzimos aqui Dasein por existência, sem entrar na problemática heideggeriana da sua tradução.

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O homem, considerado no seu modo de ser enquanto existência, era, à partida e quase sempre, os “outros”, “a gente”: «“Os outros”, que são assim mencionados para se esconder a essencial pertença própria a eles, são aqueles que, à partida e quase sempre, no ser-uns-com-osoutros quotidiano, “existem”»13; «Na utilização dos meios de transporte públicos, no emprego dos orgãos de informação (jornal), qualquer um é como o outro. Este ser-uns-com-os-outros dissolve completamente a existência própria no modo de ser “dos outros”, de tal modo que os outros ainda desaparecem mais na sua diferença e expressividade. Nesta ausência de notoriedade e de perceptibilidade, a gente desdobra a sua autêntica ditadura. Apreciamos e divertimo-nos, como a gente aprecia; lemos, vemos e julgamos sobre a literatura e a arte, como a gente vê e julga; mas também nos retiramos da “grande multidão”, como a gente se retira; achamos “revoltante” aquilo que a gente acha revoltante»14. Sendo “a gente”, o homem ocidental liberta-se da exigência de ser “ele mesmo”, na angústia que tal implica, ganhando uma existência média e tranquila. A desistência de “ser autêntico”, de “ser si-mesmo”, é o sacrifício exigido por esta tranquilidade. Se Heidegger deu à análise do “toda a gente” um carácter ontológico, o carácter de uma fenomenologia do modo de ser do ente que constitui a existência, esta análise não deixou de ser explicitamente apropriada para a caracterização daquilo a que Spengler chamaria o homem civilizado ocidental. No mesmo ano em que Ernst Jünger publica O Trabalhador, em 1932, Karl Jaspers publica A Situação espiritual do Tempo. Nessa obra, a análise heideggeriana do “toda a gente” é utilizada para a caracterização do homem ocidental massificado. Ameaçado por um aparelho que tudo abrange e mobiliza, funcionalizado até ao ponto da «angústia diante do fim daquilo pelo que vale a pena viver»15, o homem ocidental torna-se massa — e, «quando 13

Martin HEIDEGGER. Sein und Zeit. Tübingen, Max Nimeyer, 1986; p.126. Idem, pp.126-127. 15 Karl JASPERS. Die geistige Situation der Zeit. Berlim, Walter de Gruyter, 1979; p.55. 14

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existe como massa, já não é ele mesmo»16 — e tranquiliza-se através da sua massificação: «Na ordem existencial, encontram-se festivais para esquecer e para tranquilizar. As organizações criam uma consciência de pertença. O aparelho promete seguranças. Os médicos não falam da morte aos doentes ou aos que se crêem doentes»17. Também Ernst Jünger insiste no carácter tranquilizador da massificação do homem. Na era

da

civilização,

na

era

burguesa,

com

a

massificação

e

funcionalização do homem, parece conquistar-se definitivamente a segurança. O homem tornado igual a todos os outros de acordo com uma razão desvitalizada, métrica e abstracta, o homem despojado do seu enraizamento numa história ou num povo, num estado ou numa corporação, é um homem cuja existência se defende contra a entrada no seu seio da própria vida. É assim que Jünger escreve que o burguês está «remetido à defesa», desejoso de «impermeabilizar hermeticamente o espaço vital»18. O burguês deve ser concebido «como o homem que reconhece a segurança como um valor supremo»19; e «as grandes cidades aparecem, em torno da viragem do século, como os baluartes ideais da segurança»20. A conquista técnica do mundo surge relacionada com a massificação do homem através do seu carácter tranquilizador. O homem ocidental é, no século XIX, como Ortega y Gasset lhe chama, um “senhorzinho satisfeito”, entediado numa vida de absoluta segurança, de total tranquilidade: «A civilização do século XIX é de índole tal que permite ao homem médio instalar-se num mundo de abundância, do qual percebe só a superabundância de meios, mas não as angústias. Encontra-se rodeado de instrumentos prodigiosos, de medicamentos benéficos, de Estados providência, de direitos cómodos. Ignora, pelo contrário, o difícil que é inventar esses medicamentos e instrumentos, e 16

Idem, p.36. Idem, p.57. 18 Ernst JÜNGER. Op. Cit., p.52. 19 Idem, p.54. 20 Idem, p.53. 17

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assegurar para o futuro a sua produção. [...] Este desequilíbrio falsifica-o, vicia-o na sua raiz de ser vivente, fazendo-o perder contacto com a substância mesma da vida, que é absoluto perigo, radical problematismo. A forma mais contraditória da vida humana que pode aparecer na vida humana é o “senhorzinho satisfeito”»21. A técnica fecha o homem num mundo seguro, impermeável ao irromper da violência da própria vida. As conquistas técnicas, associadas às instituições políticas liberais, articulam-se assim justamente para domesticar os conflitos, excluindo a possibilidade de lutas de natureza existencial, onde se decida a própria vida, ou seja, evitando o irromper da guerra e o desmoronamento da segurança que a guerra significaria. A conquista técnica do mundo consegue unir todos os homens e todas as nações na constituição de um mundo

tranquilizado, assegurando

o

bem-estar do “senhorzinho

satisfeito” e afastando qualquer ameaça de perigo. É assim que Carl Schmitt, padrinho de um dos filhos de Ernst Jünger, num texto de 1929 intitulado A Era das Neutralizações e das Despolitizações, insiste neste desejo de segurança, neste desejo de evitar a guerra, como o motor da própria

conquista

técnica

do

mundo

e,

consequentemente,

da

massificação do homem: «Aqui parecem poder unir-se rapidamente todos os povos e nações, todas as classes e confissões, todas as idades humanas e todos os sexos, pois todos se servem com a mesma evidência das vantagens e comodidades do conforto técnico»22. E é ao considerarmos este desejo de segurança do homem ocidental que o carácter paradoxal da emergência do século XX se torna manifesto. Se a massificação do homem e o desenvolvimento da técnica se justificava em função da criação de um mundo familiar e seguro, entediante e despojado de aventura, livre das inquietações e do perigo, se a civilização ocidental de Spengler se caracterizava, na sua fatal desvitalização, pela sua absoluta segurança e tranquilidade, como é 21

José ORTEGA Y GASSET. Op. Cit., pp.154-155. Carl SCHMITT. “Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen” in Der Begiff des Politischen. Berlim, Duncker & Humblot, 1996; p.90. 22

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possível que o século que a deveria cumprir definitivamente fosse saudado no seu aparecimento pelo metralhar das armas da primeira guerra planetária? A perplexidade diante deste acontecimento obrigou, à partida, à revisão das conexões demasiado apressadas e optimistas entre técnica e segurança, herdeiras ainda de um iluminismo ingénuo, crente no progresso e na bondade natural do homem. Carl Schmitt, no texto já mencionado, sublinha o carácter meramente instrumental da técnica. Longe de corresponder a um estado de “paz perpétua”, de racionalidade e de tranquilidade, a técnica é «culturalmente neutra»23: «Qualquer tipo de cultura, qualquer povo e qualquer religião, qualquer guerra e qualquer paz pode-se servir da técnica como arma»24. Jünger, por seu lado, admitindo que «a técnica aparece no espaço burguês como um orgão do progresso»25, contesta também esta apropriação da técnica pelo iluminismo como indevida: «É incontestável que é uma locomotiva que pode mover uma companhia de soldados em vez de um vagão restaurante, que é um motor que pode mover um tanque em vez de um carro de luxo — ou seja, que o aumento do tráfego não apenas junta mais depressa os europeus bons, mas também os maus»26. A técnica pode então aparecer com um aspecto diferente daquele que a apresentava como um instrumento da progressiva emancipação e segurança do homem. É sobretudo Ortega y Gasset quem critica a visão de Spengler da passagem da cultura à civilização como «demasiado optimista»27. Para Ortega y Gasset, a civilização ocidental desenvolvera um tipo de homem que, longe de ser civilizado e emancipado, se encontrava diante de um mundo dominado pela técnica como um bárbaro. Num mundo conquistado tecnicamente, os produtos e as conquistas da técnica tornaram-se naturais. E o homem está diante deles não como dominador, 23

Idem, p.91. Idem, p.90. 25 Ernst JÜNGER. Op. Cit., p.166. 26 Idem, p.167. 27 José ORTEGA Y GASSET. Op. Cit., p.132. 24

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mas como dominado e fascinado por eles. O homem “civilizado” de Spengler é afinal, como o homem primitivo, um bárbaro, tão dependente da técnica como o primitivo o era da natureza, distinguindo-se esta apenas por não poder assegurar o estado de bem-estar e de conforto que aquela promete: «O homem-massa crê que a civilização em que nasceu e que usa é tão espontânea e primigénia como a natureza, e ipso facto converte-se em primitivo»28. Mas como compreender, no culminar de uma era de civilização, a emergência da barbárie? Melhor: como compreender a coincidência do total domínio do mundo pelo homem, através da técnica, com a submissão deste mesmo homem às forças da técnica que dele brotaram? Como é possível que a era da total mobilização do mundo pelo homem — saudada no século XIX como a era da segurança e da afirmação do homem na sua liberdade e individualidade — culmine no envolvimento do homem na própria mobilização, na descoberta do homem como aquele que supremamente está mobilizado? É no horizonte destas interrogações que O Trabalhador, recolhendo os escombros da civilização e saudando a emergência da guerra, encontra a sua génese.

2. Um mundo configurado pelo trabalhador. No século XIX, a civilização estabelecera uma visão do homem, da sociedade e do mundo que parecia consagrar-se como definitiva. O homem aparece aqui como um indivíduo marcado, na sua essência, por uma liberdade fundamental. Ser homem é, à partida, não pertencer ao conjunto das coisas determinadas pela lei da natureza, estar livre de determinações naturais. E a sociedade, por seu lado, é apenas a garantia de que a liberdade essencial do homem não seja fonte de 28

Idem, p.141.

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conflitos: ela é formada pelo acordo de todos os homens quanto à limitação da sua liberdade inicial. Por outras palavras, a sociedade não pode deixar de ser o resultado de um contrato entre homens essencialmente livres. Por fim, o mundo, entendido como a totalidade dos objectos dispostos diante da liberdade humana como coisas naturais, sujeitas à lei da natureza, não é senão, para o sujeito livre que o homem é, o seu objecto. Tal objecto dispõe-se diante do homem, à partida, como uma resistência, como uma barreira cuja superação exige esforço. A este esforço exigido pela superação das barreiras naturais, ao processo pelo qual a natureza se vai tornando cada vez menos hostil e mais dócil, cada vez menos selvagem e mais dominada, àquilo a que Marx chamou a “humanização da natureza”, chama-se trabalho. E este trabalho transforma, não apenas a natureza, mas o próprio homem. Quanto mais a natureza é dominada, tanto mais o homem se torna dominador. Quanto menor é a resistência que esta oferece, tanto menor é o trabalho que se exige na sua dominação. É a esta dominação do mundo que se chama técnica. Deste modo, quanto mais desenvolvida for a técnica, quanto maior for o domínio do mundo, tanto menor será a necessidade de o homem trabalhar. A técnica adquire assim, à luz da civilização, o seu significado emancipador: dominar tecnicamente o mundo significa então, para o homem, libertar-se progressivamente da necessidade

do

trabalho

e,

nessa

medida,

conquistar-se

progressivamente como indivíduo senhor de si, da sua vida e do seu tempo. O fenómeno da guerra obriga, no entanto, a uma meditação mais profunda sobre a essência da técnica. Se a essência da técnica consistisse na emancipação do homem, esta não poderia progredir no sentido de uma “mobilização total”, tal como Jünger a assinala já em 1930. No seu ensaio A Mobilização Total, afirma que «o sonho da

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liberdade desaparece como sob as asas férreas de uma tenaz»29. A emergência da guerra no final da civilização prova que a essência da técnica se encontra não na emancipação do homem, mas na dominação do mundo. E, nesta total dominação do mundo, nesta “mobilização total”, o próprio homem é ele mesmo mobilizado. Mas quem é o sujeito desta mobilização, sujeito este para quem o próprio homem surge como um objecto de mobilização? A resposta de Jünger é inevitável: trata-se de uma vontade que já não é humana, de uma vontade de constante aumento do poder desta mesma vontade até à conquista de uma mobilização total do mundo. Por outras palavras: trata-se daquilo que Nietzsche assinalou como a vontade de poder. Esta vontade de poder manifesta-se como a necessidade de querer uma crescente dominação do mundo. E se ao esforço de dominação do mundo se chama trabalho, a vontade de poder não pode deixar de ganhar forma como vontade de trabalho. O homem não é então, como o caracterizara a civilização, um ente destinado a uma progressiva liberdade. Melhor dizendo: a mobilização total implica a transformação do próprio conceito de liberdade. Jünger pode então falar de uma outra liberdade, cuja essência não está na sua emancipação e libertação de leis e determinações, mas na aceitação do seu vínculo à necessidade da vontade de poder. Esta consiste na mais íntima verdade do ser do homem, no elemento mais nuclear da sua vida humana, no seu mais incontornável destino. O trabalho descobre-se então como coincidente com a própria vida humana em geral, na sua concomitante grandeza e pequenez, tristeza e orgulho — «tristeza pela fugacidade de todos os esforços; orgulho pela vontade que, apesar disso, sempre de novo nos seus símbolos procura expressar que pertence ao imperecível»30. É justamente enquanto expressão desta vontade imperecível que o trabalho se identifica com a própria vida: «O 29

Ernst JÜNGER. “Die totale Mobilmachung” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; p.145. 30 Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.67.

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trabalho é o ritmo do punho, dos pensamentos, do coração, a vida de dia e de noite, a ciência, o amor, a arte, a fé, o culto, a guerra; o trabalho é a oscilação do átomo e a força que move as estrelas e os sistemas solares»31. Na era burguesa da civilização, a realidade essencial da vontade de poder parece não estar presente. Com esta ausência, o homem ganha segurança, conquista-se como indivíduo, detentor de uma liberdade abstracta, desvinculado de laços que o aprisionem. Deste modo, a era burguesa consiste necessariamente na atribuição ao trabalho e à técnica de um carácter que não é o seu. O trabalho aparece aqui «como mau»32, como o tributo doloroso a pagar à vida pela subsistência individual, como um mal necessário de cujo peso o homem, tanto quanto possível, se deseja ir progressivamente livrando. E a técnica pode aparecer, como vimos, como a progressiva emancipação do homem face à necessidade do trabalho. A atribuição marxista do estatuto de trabalhador exclusivamente a uma classe, assim como a tentativa de ligar o movimento dos trabalhadores à reivindicação dos direitos e das liberdades burguesas, são assim encaradas por Jünger como «a parte da herança burguesa» de um trabalhador que ainda «se afasta visivelmente de si»33. Contudo, toda a história é, enquanto história, expressão da vontade de poder que constitui a essência humana e, nessa medida, expressão do trabalho enquanto manifestação da relação entre a vontade e o mundo. Assim, a recusa do elementar ou da vida pela era burguesa da civilização, longe de ser uma ausência de presença, é apenas uma presença pela ausência, ou seja, um modo particular de presença. É certo que o burguês quase moveu o elementar e o vital para fora da vida humana, «quase conseguiu persuadir o coração aventuroso de que o que é perigoso não está de todo presente e de que uma lei 31

Idem, p.72. Idem, p.71. 33 Idem, p.31. 32

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económica governa o mundo e a sua história»34. Mas é também certo que «o elementar está sempre presente», que «embora a sua exclusão possa alcançar um grau elevado, são postas a este processo determinadas fronteiras, pois o elementar não apenas pertence ao mundo exterior, mas também está atribuído à existência de cada singular como um dom que não se pode perder»35: «As fontes do elementar são de dois tipos. Por um lado, estão no mundo, que é sempre perigoso, tal como o mar esconde em si o perigo também durante a mais profunda calmaria. Por outro, estão no coração humano, que anseia por jogos e aventuras, por ódio e amor, por triunfos e quedas, que se sente tão necessitado do perigo como da segurança»36. Assim, a uma história constituída pela recusa do elementar, correspondendo a uma vã tentativa humana de combater e eliminar o perigo próprio da vida, segue-se necessariamente uma história em que tal tentativa é percebida na sua impossibilidade, e em que o elementar e a vida ganham uma expressão explícita. Se o trabalho é a expressão necessária da vontade de poder, a figura histórica em que a vontade de poder encontra expressão explícita não pode deixar de ser a ordenação do mundo segundo a figura do trabalhador, ou seja, a descoberta, sobreposto a todos os aspectos especiais da vida, de um “carácter total do trabalho”. A passagem da civilização para a guerra marca então, para Jünger, a emergência de uma era em que a essência humana adquire explicitamente os seus mais duros e rigorosos contornos, através da relação entre a vontade de poder e o trabalho. Por um lado, a vontade humana não é aqui um arbítrio livre, solto de um vínculo imediato a leis naturais que a determinem, mas a pura vontade de crescimento da vontade e, com ela, a necessidade de querer um crescente aumento do desempenho da vontade na sua dominação do mundo. Por outro, o trabalho surge como a manifestação da vontade que se reconhece como 34

Idem, p.59. Idem, p.56. 36 Idem, pp.56-57. 35

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vontade de poder, ou seja, como o exercício de uma cada vez mais poderosa mobilização do mundo. A técnica, por seu lado, não é aqui um «meio neutral»37, não aparece como um mero instrumento adequado a qualquer força que o domine, mas justamente como «a mobilização do mundo pela figura do trabalhador»38. E quem é o homem que assume, na sua essência, a vontade de poder e o trabalho em que se expressa a sua necessidade? Quem é o homem configurado como trabalhador? Este homem é o herói anónimo de um “realismo heróico”, que se dispõe ao sacrifício da sua individualidade num mundo totalmente mobilizado. Este homem não é senão expressão da figura do trabalhador, onde o próprio corpo se submete corajosamente à dor de uma vontade pronta a mobilizá-lo como objecto: este «homem consegue tratar o espaço pelo qual tem parte na dor, isto é, o corpo, como objecto»39. Este homem é, não um indivíduo, mas um tipo. Ele não é senão a expressão provisória da vontade de poder que mobiliza o mundo do trabalho, a ocasional manifestação de uma figura típica.

3. O Trabalhador e a “questão dos nossos dias”: o barco e a floresta. A determinação do homem como trabalhador, ou seja, como figura típica, não pode hoje deixar de ser questionada. E não o pode no problema fundamental que levanta: o problema da liberdade. A liberdade não é, no meio dos problemas com que a natureza humana se depara, um problema entre outros. Ela é a marca mais própria e fundamental do ser humano, de tal forma que o homem pôde ser caracterizado no seu ser, à partida, pela sua não determinação, pela 37

Idem, p.170. Idem, p.165. 39 Ernst JÜNGER. “Über den Schmerz” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; p.164. 38

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sua liberdade diante de quaisquer vínculos. A própria história humana pôde ser vista como um percurso de progressiva conquista pelo homem de si mesmo, coincidente com a progressiva entrada na esfera da liberdade humana das múltiplas dimensões em que um homem encontra a sua identidade. Desde a reivindicação da liberdade de escolha da religião, a história pôde-se configurar como um progressivo alargamento da liberdade de escolha do homem: a escolha dos seus dirigentes políticos, a escolha dos seus costumes, a escolha da sua moral, a escolha da sua nacionalidade, a escolha da sua sexualidade, a escolha do seu aspecto físico. Diante desta visão da história como um percurso progressivo para a liberdade, como abordar O Trabalhador de Jünger? Se o homem configurado como trabalhador não é senão a expressão singular de uma vontade de poder, poder-se-á dizer que este homem típico é livre? Se o homem, enquanto figura típica, é apenas a expressão singular de uma vontade de poder, essa vontade, na liberdade que a constitui, não é o arbítrio

subjectivo

de

uma

ausência

de

determinações,

mas

exclusivamente a necessidade de querer um cada vez maior poder da própria vontade. Por outras palavras, não é o homem que detém a vontade de poder, não é o arbítrio humano que dispõe do poder da vontade, mas passa-se justamente o contrário: é o próprio homem a ser possuído pela vontade de poder. A liberdade humana, considerada como o exercício da vontade, é o exercício do sacrifício de um arbítrio, de uma liberdade desvinculada, ao vínculo incontornável de uma necessidade. Ela não é senão «a expressão particular do necessário»40. Daí que Jünger possa escrever que «com a sua figura, o homem descobre ao mesmo tempo a sua determinação, o seu destino, e é esta descoberta que o torna capaz do sacrifício que ganha no sacrifício de sangue a sua

40

Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.64.

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expressão mais significativa»41, e que «a mais profunda felicidade do homem consiste em ser sacrificado»42. Jünger caracteriza o trabalhador «por ser capaz, a partir do fundo do seu ser, de uma liberdade totalmente diferente da liberdade burguesa»43. E esta liberdade consiste na submissão a uma vontade superior à vontade individual. Tal vontade superior, na sua supraindividualidade,



na

vontade

de

um

Estado

pode

encontrar

acolhimento. O trabalhador é então um tipo cuja vontade não é senão serviço, não é senão a expressão singular da vontade de um Estado. E este Estado aparece então também ele como um servo da vontade de poder, como um “Estado de trabalho”. Depois de uma primeira fase de destruição do Estado da era liberal, com as suas restrições de intervenção, com as garantias individuais e com a sua diferenciação de classes e estados, fase essa que culminou na Grande Guerra, o Estado entra então, por mão da era do trabalhador, numa fase em que é comparável «não a um navio de passageiros ou a um navio social, mas antes a um navio de guerra»44, na medida em que «se assinala através da concepção e da execução de grandes planos»45. E, em O Trabalhador, Jünger não hesita em caracterizar os Estados totalitários — no ano de 1932, a Rússia bolchevista e a Itália fascista46 — como mais adequados à concepção e execução destes mesmos planos, ou seja, à total conquista técnica enquanto Mobilização Total. Diante desta visão da liberdade, não se poderá escapar a duas perguntas incontornáveis. Em primeiro lugar, dever-se-á perguntar se uma tal visão não é hoje meramente anacrónica, situando O Trabalhador como uma obra datada, expressão sobretudo do contexto vivido pela Europa aquando da emergência dos totalitarismos dos anos 20 e 30. 41

Idem, p.42. Idem, p.78. 43 Idem, p.23. 44 Idem, p.213. 45 Idem, p.203. 46 Cf. Idem, p.304. 42

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Como se pode entender esta identificação entre liberdade e serviço, presente em O Trabalhador? Ela é a mera expressão da pertença da obra a uma situação hoje definitivamente ultrapassada? Ou, pelo contrário, ela é mais profunda, residindo em algum fundamento ainda hoje em vigor? Em segundo lugar, não se poderá deixar de perguntar pela atitude necessária face a esta identificação. A primeira questão é essencialmente teórica, procurando, no fundo, compreender o motor que está na base do movimento histórico de passagem para a era do carácter total do trabalho. A segunda questão, pelo contrário, é essencialmente prática, procurando abordar o modo como agir face à visão jüngeriana do advento de uma era do trabalhador. A primeira pergunta interroga-se sobre o fundamento da redução da liberdade humana ao serviço de uma vontade supra-individual. A esta redução da liberdade ao serviço corresponde a redução da vontade à vontade de poder, a redução do singular ao tipo, a redução do homem a servidor do Estado, a redução do mundo a uma grandeza mobilizável pela técnica, a redução do múltiplo à unidade de uma construção orgânica determinada pela figura do trabalhador. E como base comum deste movimento pode ser assinalada a própria redução. A liberdade só pode ser compreendida como serviço num mundo reduzido ao completamente acessível; num horizonte em que o transcendente se reduz a fantasias, sentimentos e projecções, em que o homem se reduz à sua função, em que o mistério do ser se reduz ao nada. E é nesta redução ao nada que Jünger reconhece a essência do niilismo. É assim que, por ocasião do sexagésimo aniversário de Heidegger, num escrito intitulado Sobre a Linha, escreve: «O mundo niilista é, segundo a sua essência, um mundo reduzido e que se reduz ainda mais, tal como corresponde necessariamente ao movimento até ao ponto zero. O sentimento fundamental nele dominante é o da redução e o de ser reduzido»47. 47

Ernst JÜNGER. “Über die Linie” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; p.265.

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Torna-se assim visível a essência que se esconde no advento da era do trabalhador, com a sua redução do homem ao tipo, do mundo à construção orgânica mobilizável e da liberdade ao serviço — tal essência consiste no niilismo. E com esta clarificação torna-se também perceptível a actualidade da obra de Jünger. Vivemos hoje num mundo novamente pacificado, sucessor da catástrofe da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Por um lado, o mundo parece ter regressado a uma “era burguesa”, na qual os direitos humanos, a liberdade e a racionalidade, se erguem sobre os escombros dos Estados totalitários. Por outro, sob uma retórica burguesa, liberal e humanista, é a impetuosidade de uma vontade de poder, traduzida num cada vez maior domínio técnico do mundo, que a cada passo se impõe como objecto da mais rigorosa planificação. E estes dois aspectos, longe de serem contraditórios entre si, são apenas as duas faces de um mesmo percurso niilista. Não são as guerras destruidoras, a violência visível dos massacres, a repressão patente da censura, o Estado totalitário e policial, o que na era niilista do trabalhador é essencial. Deste modo, a redução da liberdade ao serviço não se pode esgotar no mero fenómeno da explícita absorção pelo Estado da vida privada, ou da violação por um Estado totalitário das mais ínfimas liberdades individuais. Assim, apesar dos resultados da Segunda Guerra Mundial, poder-se-á dizer que não estamos hoje fora do percurso niilista da era do trabalhador. E não o estamos porque a sua essência consiste na redução constante, na aproximação crescente de um “meridiano zero” cuja linha se depara no caminho do homem como um desafio incontornável. As análises de Jünger possuem até, em larga medida, um carácter profético: homogeneizado pela técnica, o mundo é hoje cada vez mais uma construção orgânica, em que tudo é interdependente, em que nada pode ser único ou separado; e, uniformizado por uma imprensa e por uma publicidade usadas tecnicamente, o homem é hoje mais do que nunca uma figura típica,

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caracterizada por pensamentos e opiniões, por gostos e sentimentos típicos. É no horizonte desta aproximação que a segunda pergunta surge como inevitável: diante do niilismo, diante da redução do homem à figura típica do trabalhador, que fazer? No contexto alemão de 1932, Jünger não pode deixar de ver na participação da Mobilização Total, na participação da figura do trabalhador, o único destino possível. Em O Trabalhador, a liberdade humana não é senão serviço: «Tomar parte aqui e servir, tal é a tarefa que é esperada de nós»48. Em Sobre a dor, ensaio que foi publicado quatro anos após o Trabalhador, Jünger fala ainda do serviço, da assunção da vontade do Estado pela vontade individual, como a mais alta, talvez até como a única efectiva forma de liberdade. Trata-se da liberdade de, assumindo o destino marcado pela vontade de poder, reduzir-se a um objecto por ela mobilizado: «a estas massas restou apenas ainda uma liberdade, a liberdade da concordância [...] Mas isto não significa outra coisa do que a transformação das massas de uma grandeza moral num objecto»49. Tal atitude corresponde à que Jünger, em O Trabalhador, descreve como o “realismo heróico”. Mas esta atitude, que corresponde a ver sem valorizar50, e a aceitar a sua participação com júbilo — como os «voluntários que saudaram com júbilo a grande guerra e que saúdam tudo quanto dela se seguiu e seguirá»51 —, não pode deixar de se mostrar insustentável. Ver o niilismo e participar do niilismo é já, à partida, tomar consciência do niilismo enquanto tal e, pelo menos nessa medida, rebelar-se contra ele. Só a cegueira possibilita ao homem reduzir-se a uma peça na engrenagem do barco veloz em que o Estado — já não o “nosso Estado”, mas o “Estado mundial” — se tornou. Daí que a visão exigida pelo realismo heróico conduza não apenas à participação, mas, nessa 48

Ernst JÜNGER. “Der Arbeiter”, p.311. Ernst JÜNGER. “Über den Schmerz” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; p.178. 50 Cf. Ernst JÜNGER. Der Arbeiter, p.140. 51 Idem, p.41. 49

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participação, à rebeldia. A descrição da vida social e estatal como um barco, como já acontece em O Trabalhador, exige, pelo menos, a consciência de que se está embarcado. E esta tomada de consciência arrasta consigo uma atitude diferente da cega e jubilosa participação. Assim, noutro texto, Jünger pode escrever: «O indivíduo já não está na sociedade como uma árvore no bosque, assemelha-se, ao invés, ao passageiro numa embarcação, que se move rapidamente e que se pode chamar “Titanic” ou também Leviatã. Desde que faça bom tempo e a paisagem seja agradável, ele mal se aperceberá do decréscimo de liberdade em que caiu. Sobrevém, pelo contrário, um optimismo, uma consciência de poder, provocada pela velocidade. O que se há-de transformar, quando aparecem ilhas vulcânicas e icebergues»52. E é diante desta consciência de que se está embarcado, seja na atmosfera guerreira de um couraçado, seja no ambiente luxuoso de um Titanic, que «a liberdade» surge como aquele que «é hoje o grande tema»53. Tal tema pergunta «se a liberdade ainda é possível»54 e, consequentemente: «o que fazer nesta situação?»55. E é a própria consciência de que se está embarcado que possibilita a resposta à pergunta: se o homem está hoje reduzido ao trabalhador, se a sua liberdade está hoje reduzida ao serviço, a resistência a esta redução não pode deixar de ser a outra face, o complemento indestrutível e insuperável do “carácter total do trabalho”. Oposta à figura do trabalhador, mas pertencente a esta, surge então a figura do resistente; oposto ao movimento do barco, mas dentro deste mesmo movimento, surge o passo da floresta, a solidez intemporal de quem, mesmo embarcado, contra tudo e todos, mantém o acesso à terra firme. É certo que «uma grande maioria não quer a liberdade»56; mas também o é que 52

Ernst JÜNGER. “Der Waldgang” in Essays I. vol. V. Estugarda, Ernst Klett Verlag, s.d.; pp.319-320 (citamos a trad. portuguesa de Maria Filomena Molder: O Passo da Floresta. Lisboa, Cotovia, 1995; pp.34-35). 53 Idem, p.366 (trad. port., p.79). 54 Ernst JÜNGER. “Über die Linie”, p.281. 55 Idem, p.271. 56 Ernst JÜNGER. Der Waldgang, p.375 (trad. port: p.88).

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«é preciso ser livre, para chegar a ser livre»57, que «é preciso que o homem que está no barco tome por medida aquele que está na floresta»58. É no passo da floresta, onde se «mantém uma relação com a liberdade», que «vive a vontade originária da resistência»59. E é para esta resistência da liberdade, para esta afirmação do homem na sua dignidade essencial de resistente, que a consciência do “carácter total do trabalho”, a descrição por Jünger da figura do trabalhador na era do niilismo, conduz. É como corolário das análises de O Trabalhador que poderiam aparecer as palavras de Jünger em Sobre a Linha: «Um homem basta como testemunha de que a liberdade ainda não desapareceu»60. Alexandre Franco de Sá Junho de 2000

57

Idem, p.375 (trad. port: p.88). Idem, p.357 (trad. port.: p.70). 59 Idem, p.366 (trad. port.: p.79). 60 Ernst JÜNGER. “Über die Linie”, p.283. 58

24

Prefácio à edição das Obras Completas A obra sobre o trabalhador apareceu no Outono de 1932, num tempo

em

que



não

subsistia

qualquer

dúvida

quanto

à

insustentabilidade do antigo e à adveniência de novas forças. Ela apresentou e apresenta a tentativa de conquistar um ponto a partir do qual os acontecimentos, na sua multiplicidade e oposição, não apenas se devam conceber, mas também, embora perigosamente, se devam saudar. O aparecimento deste livro pouco antes de uma das grandes viragens não é acidental; e não faltaram vozes que lhe atribuíram uma influência sobre ela. Como é natural, tal nem sempre foi referido como um reconhecimento, e, infelizmente, também não posso concordar com isso ⎯ em primeiro lugar, porque não sobrevalorizo a influência dos livros sobre a acção; e, depois, porque este apareceu demasiado pouco tempo antes dos acontecimentos. Se os grandes intervenientes se tivessem orientado segundo os princípios aqui desenvolvidos, ter-se-iam abstido de muita coisa que não era precisa, e que era até sem sentido, e teriam feito o necessário, provavelmente mesmo sem a violência das armas. Em vez disso, introduziram uma engrenagem cujo significado se escondia onde menos suspeitavam: na continuação da dissolução do Estado-Nação e das ordens que lhe estão ligadas. A partir deste aspecto explica-se aquilo que foi dito sobre o “burguês”61. 61

N. do T.: O termo burguês traduz o termo alemão Bürger. Convém, no entanto, notar que a palavra alemã Bürger tem um significado abrangente, do qual Jünger maximamente se apropria. O “burguês” de Jünger não é, como se poderia à partida pensar, o representante de uma classe ou uma categoria económica, mas o representante de uma era histórica, marcada pela concepção do homem como cidadão (palavra que é também uma tradução possível para o termo Bürger), como indivíduo determinado por uma racionalidade abstracta e igualitária.

25

O que tinha acontecido noutras partes do planeta e tinha custado a vida a milhões não devia ser descurado, e tanto menos quanto não bastavam os meios tradicionais. Diante disso, permanece uma questão académica saber se ainda devia dominar em geral a dupla tarefa tanto de um aligeiramento grosseiro da bagagem para a preservação da substância nuclear como também de uma aceleração da marcha para além do progresso, ou se, na perspectiva da preparação, primeiro de 1848, depois de 1918, tinha sido perdido algo irrecuperável. Tal diz respeito à diferença da democracia alemã em relação à democracia mundial e não toca no problema. Que aqui eram suspeitadas e sondadas não apenas grandezas nacionais, políticas, geográficas e etnológicas, mas as vanguardas de um novo

poder

terreno,

podia

ser

entretanto

atestado

mais

pormenorizadamente. Tal foi já então também reconhecido por alguns leitores, embora, em todos os tempos, o episódico e o acidental, o primeiro plano político e polémico de um problema, tenha preso mais fortemente a atenção do que o seu núcleo substancial. Contudo, este actua sobre a duração, mesmo se em roupagens que mudam constantemente. Assim, enquanto as potências históricas, e mesmo onde elas construíram impérios, se esgotam, vemos, ao mesmo tempo, à escala mundial e para além dela, crescer algo maior, do qual, à partida, apenas captamos a potência dinâmica. Tal é um sinal de que o ganho do livro se encontra noutro lugar que não no que dentro das contendas se supõe. A cegueira parcial pertence, no entanto, ao plano. Inabalável, saindo do caos sempre mais actuante, permanece apenas a figura do trabalhador. Desde há muito ⎯ autenticamente, desde a impressão da primeira edição ⎯ ocupam-me planos para a revisão do livro sobre o trabalhador. Eles estão mais ou menos realizados, e variam desde uma

26

edição “revista” e “profundamente revista” até uma segunda ou nova versão. Se, apesar disso, se assumiu nas Obras Completas o texto intacto da terceira edição (1942), isso foi sobretudo por razões de documentação. Muito do que então actuava de um modo surpreendente ou também provocatório entrou hoje na experiência quotidiana. Ao mesmo tempo, passou aquilo que exigia réplica. É também precisamente por isso que, mais facilmente do que então, se deixa subordinar a situação de partida e, nela, o episódico ao núcleo imutável do livro: a concepção da figura. Em todo o caso, também os princípios, no decorrer dos anos, se estendem em considerações mais ou menos abrangentes. Algumas delas encontram-se nos volumes de ensaios desta edição, outras estão aqui compiladas em apêndice62. Wilflingen, 16 de Novembro de 1963

62

N. do T.: O volume 8 das Obras Completas de Ernst Jünger contém, para além de Der Arbeiter, o ensaio Maxima – Minima, publicado pela primeira vez em 1964, composto de anotações à obra Der Arbeiter e de excertos de correspondência sobre ela.

27

Prefácio à primeira edição O plano deste livro consiste em tornar visível, além das teorias, além das facções políticas, além dos preconceitos, a figura do trabalhador como uma grandeza actuante, que já entrou na história poderosamente e determina imperativamente as formas de um mundo modificado. Na medida em que aqui se trata menos de novos pensamentos ou de um novo sistema do que de uma nova realidade, tudo recai na intensidade da descrição, que pressupõe olhos aos quais seja dada a visão completa e imparcial. Se bem que esta intenção fundamental se sedimentou em cada frase, o material exibido está de um modo tal que corresponde à visão de conjunto, necessariamente limitada, e à experiência particular do singular. Se apenas se conseguiu tornar visível uma barbatana do Leviatã, tanto mais facilmente avança o leitor para descobertas próprias, quando é atribuído à figura do trabalhador não um elemento de pobreza, mas um elemento de plenitude. Tenta-se

apoiar

esta

importante

colaboração

através

da

metodologia da conferência, que se esforça por proceder de acordo com as regras do exercício militar, para o qual uma matéria diversificada serve como ocasião para o treino de uma e da mesma intervenção. Importante é, não as ocasiões, mas a segurança instintiva da intervenção. Berlim, 14 de Julho de 1932

28

I PARTE

29

A ERA DO TERCEIRO ESTADO COMO UMA ERA DO DOMÍNIO APARENTE

1. O domínio do terceiro estado nunca conseguiu tocar, na Alemanha, aquele núcleo mais íntimo que determina a riqueza, o poder e a plenitude de uma vida. Olhando para mais de um século de história alemã, podemos admitir com orgulho que fomos maus burgueses. Não era para o nosso perfil63 que estava talhado o fato, que doravante é destruído até aos últimos fios e sob cujos farrapos aparece já uma natureza mais selvagem e mais inocente que aquela cujos sons sentimentais já cedo fizeram estremecer o pano atrás do qual o tempo escondia o grande espectáculo da democracia. Não, o alemão não era nenhum bom burguês, e era-o menos onde era mais forte. Por todo o lado onde mais profunda e ousadamente se pensou, onde mais vivamente se sentiu, onde mais inexoravelmente se combateu, é inconfundível a revolta contra os valores que a grande declaração de independência da razão ergueu sobre o seu escudo. Mas nunca

como

aqui

estiveram

mais

sós

os

portadores

daquela

responsabilidade imediata que se caracteriza como génio, nunca como aqui estiveram mais ameaçados na sua obra e actuar, e nunca o puro desdobramento do herói foi mais pobremente nutrido. As raízes tinham de ser plantadas profundamente através de um solo árido para atingir as

63

N. do T.: O termo que traduzimos por perfil é Figur, reservando o termo figura para a tradução de Gestalt. Se a Gestalt é a figura, no sentido da forma que se imprime como cunho num fenómeno, a Figur é apenas o aspecto mais superficial, o perfil, de um determinado fenómeno.

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fontes nas quais está instalada a unidade mágica de sangue e de espírito que torna a palavra irresistível. Também difícil era, para a vontade, alcançar aquela outra unidade de poder e direito que ergue a peculiaridade, diante do estranho, à dignidade de lei. Daí que este espaço de tempo fosse superabundante em grandes corações cuja última insurreição consistiu em pôr termo ao próprio bater, superabundante em espíritos elevados para os quais parecia bem vinda a calma do mundo das sombras. Ele foi rico em políticos aos quais se negavam as fontes do tempo, e que tinham de criar a partir do passado para serem activos para o futuro; rico em batalhas nas quais o sangue se pôs à prova em outras vitórias e derrotas diferentes do espírito. Sucedeu assim que todas as posições que o alemão, neste tempo, conseguiu possuir não satisfazem, mas lembram nos seus pontos decisivos aquele estandarte de combate cujo sentido consiste na ordem de marcha de exércitos ainda longínquos. Esta discrepância pode-se comprovar por todo o lado, em cada coisa; o seu fundamento está em que o alemão não sabia fazer qualquer uso daquela liberdade que lhe foi ordenada com todas as artes da espada e da persuasão e que experimentava o seu estabelecimento na proclamação dos direitos humanos universais: esta liberdade era para ele um instrumento que não possuía qualquer relação aos seus orgãos mais íntimos. Assim, era fácil adivinhar, onde se começou a falar esta linguagem na Alemanha, que se tratava apenas de más traduções, e a desconfiança de um mundo no qual estava o berço da civilidade burguesa era tanto mais legítima quanto sempre de novo uma linguagem originária procurou fazer-se ouvir, sobre cujo perigoso e diferente significado não era possível qualquer dúvida. Conservava-se a suspeita de que aqui não foram levadas a sério valorizações tão caras e valiosas; suspeitava-se atrás da sua máscara uma força incalculável e indomável, uma força que farejava o seu último refúgio numa relação originária que lhe era própria ⎯ e suspeitou-se correctamente.

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Pois nesta terra é irrealizável um conceito de liberdade que se deixe aplicar a qualquer grandeza que lhe seja submetida, como uma medida fixa e em si mesma carente de conteúdo. Em vez disso, aqui foi válido desde sempre o seguinte: que a medida da liberdade de que uma força dispõe corresponde exactamente à medida do vínculo que lhe está reservado, e que no alcance da vontade libertada se manifesta o alcance da responsabilidade que confere a esta vontade a sua legitimação e validade. Tal expressa-se deste modo: que nada consegue entrar na nossa realidade, ou seja, na nossa história, no seu significado supremo, de acordo com o seu destino, senão aquilo que leva o cunho desta responsabilidade. Não é preciso falar-se sobre este cunho, pois como ele é imediatamente concedido, também há sinais nele gravados que uma obediência sempre pronta consegue imediatamente ler. É assim: que a nossa liberdade, em todo o lado, se manifesta mais poderosamente onde é transportada pela consciência de que ela é um feudo. Esta consciência sedimentou-se em todas aquelas máximas inesquecíveis com as quais a velha nobreza da nação cobriu o escudo do povo; governa o pensar e o sentimento, a acção e a obra, a arte do Estado e a religião. Daí que o mundo seja sempre abalado nas suas fundações quando o alemão reconhece aquilo que a liberdade é, ou seja, quando ele reconhece aquilo que é o necessário. Aqui nada se deixa desviar, e mesmo que o mundo acabasse a ordem tem de ser executada, se o apelo for ouvido. Avaliar-se-á sempre demasiado estreitamente uma propriedade que, mais do que todas as outras, se reserva para a caracterização do alemão — a ordem — se não se conseguir reconhecer nela o reflexo robusto da liberdade. A obediência é a arte de escutar, e a ordem é o estar preparado para a palavra, o estar preparado para o comando que, como o raio de um relâmpago, vai do cume às raízes. Cada um e cada

32

coisa está na ordem feudal e o guia64 é reconhecido em ele ser o primeiro servo, o primeiro soldado, o primeiro trabalhador. Daí que tanto a liberdade como a ordem se relacionem não com a sociedade, mas com o Estado, e que o modelo de cada organização seja a organização militar e não o contrato social. Daí que o estado do nosso mais extremo vigor seja atingido quando não persiste nenhuma dúvida sobre o comando e o séquito. Deve-se reconhecer o seguinte: que domínio e serviço são um e o mesmo. A era do terceiro estado nunca reconheceu o admirável poder desta unidade, pois os prazeres demasiado fáceis e demasiado humanos pareciam-lhe desejáveis. Daí que todos os pontos que, nesta era, o alemão conseguiu atingir tivessem sido não obstante atingidos: o movimento encontrou-se em todas as áreas num elemento estranho e não natural. O fundo real como que só com escafandros podia ser pisado; o trabalho decisivo realizou-se num espaço mortal. Honra a estes caídos que a tremenda solidão do amor ou do conhecimento despedaçou, ou que o aço deitou por terra sobre as ardentes colinas do combate! Mas não há regresso. Quem hoje na Alemanha está ávido de um novo domínio, esse volta o olhar para onde vê no trabalho uma nova consciência da liberdade e da responsabilidade.

64

N. do T.: O termo alemão traduzido por guia é Führer. Tendo em conta a sua determinação como aquele que conduz ou que guia, assim como a impossibilidade da sua redução a um simples chefe, pareceu-nos a tradução mais adequada.

33

O TRABALHADOR NO REFLEXO DO MUNDO BURGUÊS

2. Procuremos antes de mais esta consciência onde ela opera mais impetuosamente, mas procuremo-la com amor, com vontade de indicar aquilo que permanece! Voltemo-nos então para o trabalhador65, o qual já cedo se referiu a uma inexorável oposição a todas as valorizações burguesas e retirou do sentimento desta oposição a força para os seus movimentos. Estamos

suficientemente

afastados

dos

inícios

destes

movimentos para podermos ser justos para com eles. Não se pode escolher o banco da escola no qual se forma o carácter, porque a escola é determinada pelos pais, mas chega o dia em que se sente ter ultrapassado a idade e se reconhece a vocação autêntica. Deve-se pensar nisto quando se investiga os meios do trabalhador na sua força de combate, e deve-se bem ter em conta que eles surgiram no combate e que no combate cada posição é ocupada sob a influência do opositor. Seria assim demasiado fácil reprovar ao trabalhador que a sua substância66, como um metal que ainda não se fundiu em pureza, seja 65

A palavra “trabalhador” é aqui, como outras palavras, empregue como conceito orgânico, isto é, ela sofre modificações no decorrer da consideração que devem ser vistas retrospectivamente. 66 N. do T.: A palavra que aqui se traduz e traduzirá por substância é Bestand. Tal palavra, que significa aquilo que permanece, aquilo em que algo consiste (besteht), é usada frequentemente por Jünger para a significação do fundo, do núcleo imutável que pode manifestar-se fenomenicamente em formas variadas. Pensamos que substância é, neste sentido, o termo mais adequado para a sua tradução.

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penetrada por valorizações burguesas, e que a sua linguagem, a qual pertence indubitavelmente ao século XX, seja rica em conceitos que são formados pelos questionamentos do século XIX. Pois, quando começou a falar pela primeira vez, ele estava destinado ao uso destes conceitos para se fazer compreensível, e a delimitação das suas reivindicações foi determinada pelas reivindicações do opositor. Assim, cresceu lentamente e sob pressão contra o tecto burguês, para finalmente o rebentar, e não é de admirar que leve as marcas deste crescimento. Não é apenas a resistência que deixa estas marcas, mas também a alimentação. Vimos que, por boas razões, na Alemanha o terceiro estado não era capaz de chegar a um domínio público e reconhecido. Assim, coube ao trabalhador a admirável tarefa suplementar de recuperar este domínio, e é um acto muito significativo que ele, à partida, tenha tido de levar ao domínio o estranho que estava misturado com os seus esforços, para assim experimentar que ele não lhe era próprio. Como foi dito, tais são as marcas da alimentação, e a separação do que não é proveitoso elimina-las-á. Mas também como poderia ser de outra forma, se os primeiros professores do trabalhador eram de proveniência burguesa e se a instalação dos sistemas nos quais a jovem força foi colocada correspondia a modelos burgueses! Explica-se assim que a recordação do matrimónio sangrento da burguesia com o poder, a recordação da Revolução Francesa, tenha sido a

fonte

da

qual

se

alimentaram

e

orientaram

as

primeiras

movimentações. Mas há tão poucas repetições do processo histórico quanto transmissões do seu conteúdo vivo. Deu-se assim que, na Alemanha, por todo o lado onde se julgava realizar trabalho revolucionário, se teatralizava a revolução, e que as autênticas transformações se cumpriam sem serem vistas, seja em quartos tranquilos, seja ocultamente sob as cortinas ardentes da batalha.

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Mas o que era realmente novo não precisava que se acentuasse que se encontra em revolta, e a sua suprema periculosidade funda-se no facto de que está presente.

3. Daí que de uma débil colocação do olhar brote, em primeiro lugar, a identificação do trabalho67 com um quarto estado. Só a um espírito habituado a imagens mecânicas é que o processo da sequência do domínio se pode apresentar de tal modo que, como o ponteiro do relógio lança as suas sombras sobre as horas, um estado depois de outro dirija o quadro do poder, enquanto por baixo já uma nova classe cresce até à consciência. Foi antes só a burguesia que se sentiu como estado neste sentido particular; ela desligou esta palavra, que é de muito antiga e boa proveniência, das correlações que cresceram com ela, despiu-a do seu sentido e fez dela nada mais que uma máscara do interesse. Daí que haja um ponto de vista burguês sob o qual o trabalho é interpretado como um estado, e que a esta interpretação subjaza uma astúcia inconsciente que procura encaixar as novas reivindicações num quadro velho que deve possibilitar o prosseguimento da discussão. Pois onde o burguês pode discutir, onde pode negociar, é aí que está em segurança. No entanto, a rebelião do trabalho não será uma segunda e descorada infusão, preparada segundo receitas envelhecidas. Não é na sequência temporal do domínio, na oposição entre o velho e o novo, que 67

N. do T.: O termo trabalho é, ao longo desta tradução, usado geralmente para traduzir a palavra Arbeit. Contudo, ele traduz aqui o termo Arbeitertum, o qual poderia ser traduzido, noutro contexto, como a classe operária ou classe dos trabalhadores, oposta à burguesia (Bürgertum). Contudo, Jünger procura explicitamente libertar os termos Arbeit, Arbeiter e Arbeitertum do seu cunho marxista, pelo que preferimos traduzir Arbeitertum pelo termo mais abrangente de “o trabalho”: lembremo-nos de que entre trabalho (Arbeitertum) e burguesia (Bürgertum) existe, como diz Jünger, não uma oposição dialéctica, mas «uma diferença de plano» (§3); ou que, como adiante esclarece, o trabalho está, em relação à burguesia, «não numa relação de oposição, mas de alteridade» (§4).

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repousa a diferença essencial existente entre o burguês e o trabalhador. Que os interesses que se tornaram fracos são dissolvidos por interesses mais jovens e mais brutais, é tão evidente que se pode deixar a sua consideração. Em vez disso, o que suscita a maior atenção é o facto de entre o burguês e o trabalhador haver, não apenas uma diferença na idade, mas sobretudo uma diferença de plano. Nomeadamente, o trabalhador está numa relação com potências elementares de cuja mera presença o burguês nunca sequer suspeita. Como será exposto, ligado com isto está que o trabalhador, a partir do fundo do seu ser, seja capaz de uma liberdade totalmente diferente da liberdade burguesa, e que as reivindicações que ele tem ao estar preparado sejam muito mais abrangentes, muito mais significativas, muito mais temíveis que as de um estado.

4. Em segundo lugar, cada frente pode ser considerada apenas como uma frente provisória, apenas como uma frente dos primeiros combates nos postos avançados, que traz o trabalhador a uma posição de combate que se limita ao ataque contra a sociedade. Pois também esta palavra experimentou na era burguesa a sua queda de valor; ela obteve um significado particular cujo sentido é a negação do Estado enquanto supremo meio de poder. Aquilo que subjaz a este desejo, no seu íntimo, é a necessidade de segurança e, deste modo, a tentativa de repudiar o que é perigoso e de impermeabilizar o espaço vital de tal modo que se evite que ele irrompa. É certo que o que é perigoso está sempre presente, e que triunfa mesmo sobre as mais subtis astúcias com que se o ilude; de facto, entra vezes sem conta nestas astúcias para com elas se mascarar,

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e isso dá à civilidade o seu duplo rosto ⎯ são demasiado conhecidas as estreitas ligações existentes entre a irmandade e o cadafalso, entre os direitos humanos e as batalhas mortíferas. Mas seria erróneo assumir que o burguês alguma vez, mesmo no seu melhor tempo, tenha evocado o que era perigoso com as próprias forças; tudo isto se assemelha antes a um terrível riso de escárnio da natureza sobre a sua subordinação à moral, a um júbilo furioso do sangue sobre o espírito, quando estiver acabado o prelúdio dos belos discursos. Daí que seja negada qualquer relação entre a sociedade e o elementar, e isto com um dispêndio de meios que permanecerá incompreensível a quem não adivinhar aqui o mais secreto ideal como o pai dos pensamentos. Esta negação realiza-se de tal modo que remete o elementar para o reino do erro, dos sonhos ou de uma vontade necessariamente má, de tal modo que o põe como sendo de significado igual ao próprio sem sentido. A reprovação de estupidez e de imoralidade é aqui a decisiva e, como a sociedade se determina através de ambos os supremos conceitos da razão e da moral, esta reprovação apresenta o meio através do qual se bane o opositor do espaço da sociedade, ou seja, do espaço da humanidade e, assim, do espaço da lei. A esta diferenciação corresponde um processo que sempre de novo se observou com espanto: que a sociedade, como um mote, tenha declarado abolida a pena de morte precisamente durante os pontos mais sangrentos da guerra civil, e que tenha oferecido as suas melhores ideias sobre a carência de ética e de sentido da guerra sempre que os campos de batalha se cobriam de cadáveres. No entanto, significaria sobrestimar o burguês, se se quisesse supor uma intenção atrás desta dialéctica sumamente estranha, pois em mais nenhuma zona ele se leva mais a sério do que nas zonas racional e moral; ele é mesmo, nos seus fenómenos mais significativos, a unidade do racional com o próprio moral.

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O elementar impõe-se-lhe antes a partir de uma esfera totalmente diferente da esfera da sua autêntica robustez, e é com terror que reconhece aquele ponto em que a negociação está terminada. Eternamente deleitar-se-ia nas suas belas denúncias, cujos pilares fundamentais são a virtude e a justiça, se a plebe não lhe trouxesse, no instante certo, o inesperado presente da sua força, mais poderosa mas sem figura, que se alimenta das forças originárias do pântano. Eternamente saberia manter em suspenso o equilíbrio das potências, como uma obra de arte que existe por causa de si mesma, se de vez em quando não se manifestasse, para além dele, o guerreiro, que ele consente contra vontade e estando constantemente preparado para negociar. Mas ele recusa a responsabilidade, pois reconhece a sua liberdade no universalmente moral, e não no modo e na peculiaridade. Não se pode referir para isso melhor exemplo do que ele aniquilar o agente e o autor de um atentado que pela primeira vez lhe arromba as portas do domínio, como se a sua tarefa estivesse terminada. A reclusão das paixões é o certificado com o qual abandona os despojos das revoluções, e o enforcamento dos carrascos é a peça satírica que encerra a tragédia da rebelião. Do mesmo modo, recusa a mais elevada fundamentação da guerra, o ataque, porque muito bem sente que esta não lhe é adequada, e onde, mesmo que seja pela mais manifesta utilidade própria, chamou pela ajuda dos soldados, ou se vestiu ele mesmo como soldado, nunca renunciará ao juramento de que tal acontece para defesa, se possível para a defesa da humanidade. O burguês só conhece a guerra de defesa, isto é, não conhece em geral a guerra, já porque está excluído, segundo a sua essência, de todos os elementos bélicos. No entanto, por outro lado, é incapaz de evitar a sua penetração nas suas ordens, porque todas as valorizações que tem para lhes contrapor são de uma dignidade menor.

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Entra aqui o jogo engenhoso dos seus conceitos, e a sua política, até mesmo o próprio universo, é para ele um espelho no qual quer continuar a ver constantemente confirmada a sua virtude. Seria instrutivo observá-lo naquele infatigável trabalho de acabamento que tão longamente sabe aplanar o cunho duro e necessário da palavra até que transpareça uma moralidade universalmente vinculativa ⎯ seja que ele queira reconhecer na conquista de uma colónia a sua penetração pacífica, na separação de uma província o direito de autodeterminação do povo ou na pilhagem do derrotado uma reparação. Mas é suficiente conhecer os métodos para adivinhar que a concepção deste vocabulário começou com a identificação do Estado e da sociedade. Mas quem quer que tenha concebido isto conceberá também o grande perigo, o grande roubo de reivindicações, que se esconde no facto de se ter indicado ao trabalhador a sociedade como o supremo objectivo do ataque. As ordens de ataque decisivas apresentam ainda todas as características de uma era na qual de certo era tão evidente que um poder que desperta se tivesse de reconhecer como estado, como era evidente que a realização da conquista do poder se tivesse de caracterizar como uma mudança do contrato social. Deve-se então reparar no seguinte: que esta sociedade não é uma forma em si, mas apenas uma das formas fundamentais da representação burguesa. Tal mostra-se no facto de não haver na política burguesa nenhuma grandeza que não seja concebida como sociedade. É sociedade toda a população do globo terrestre que se apresenta ao conceito como a imagem ideal de uma humanidade, cuja fragmentação em Estados, nações ou raças, no fundo, não repousa senão num erro de pensamento. Este erro de pensamento, no entanto, é corrigido no curso do tempo através de contratos, através do iluminismo, através da civilidade ou, simplesmente, através do progresso dos meios de transporte.

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É sociedade o Estado cuja essência se esbate no mesmo grau em que a sociedade o subordina às suas medidas. Este ataque tem lugar através do conceito de liberdade burguesa, cuja tarefa é a transmutação de todos os vínculos responsáveis em relações contratuais até à rescisão. Na mais estreita relação com a sociedade está, finalmente, o singular, aquele perfil admirável e abstracto do homem, a mais valiosa descoberta da sensibilidade burguesa e, ao mesmo tempo, o objecto inesgotável da sua imaginação artística. Como a humanidade é o cosmos desta representação, assim é o homem o seu átomo. Contudo, na prática, o singular não se vê contraposto à humanidade, mas à massa, ao seu reflexo exacto neste mundo sumamente esquisito, sumamente imaginário. Pois a massa e o singular são um, e é desta unidade que se dá a assombrosa dupla imagem da mais variada e confusa anarquia e da ordem social austera da democracia, dupla imagem essa que foi o espectáculo de um século. Mas pertence às características de um novo tempo que nele a sociedade burguesa, independentemente de ela apresentar o seu conceito de liberdade na massa ou no indivíduo, esteja condenada à morte. O primeiro passo consiste em já não se pensar e sentir nestas formas, o segundo em já não se estar nelas activo. Tal não significa menos que o ataque a tudo o que torna a vida valiosa para o burguês. Daí que para ele seja uma questão vital que o trabalhador se conceba como o futuro suporte da sociedade. Pois se apenas isto pertencer à substância dogmática, a forma fundamental da visão burguesa é salva e, deste modo, é assegurada a mais subtil possibilidade do seu domínio. Assim, não é de admirar que em todas as prescrições que o espírito burguês prescreveu ao trabalhador a partir das suas cátedras e águas-furtadas, a sociedade é colocada, não no seu aparecimento, mas, muito mais eficazmente, nos seus princípios. A sociedade renova-se

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através de aparentes ataques a si mesma; o seu carácter indeterminado, ou antes a sua ausência de carácter, traz consigo que ela também ainda consiga abarcar em si a sua mais intensa auto-negação. Os seus meios são duplos: ou remete a negação para o seu pólo individualmente anarquista, e encorpora-o na sua substância ao submetê-la ao seu conceito de liberdade; ou prende-a ao pólo aparentemente oposto da massa em si, e transforma-a aí, através da contagem, através da votação, através da negociação ou da discussão, num acto democrático. A sua disposição feminina trai-se em ela não procurar colocar a partir de si qualquer oposição, mas procurar assumi-la em si. Sempre onde se lhe depara uma reivindicação caracterizada como decisiva, a sua mais subtil corrupção consiste em a explicar como uma manifestação do seu conceito de liberdade, e em a legitimar deste modo diante do fórum da sua lei fundamental, isto é, em torná-la inócua. Isto deu à palavra radical o seu insuportável mau sabor burguês, e, diga-se de passagem, isto torna aquele radicalismo em si num negócio lucrativo, do qual retirou o seu único alimento, uma atrás da outra, uma geração de políticos e uma geração de artistas. O último recurso da estupidez, da insolência e da incapacidade sem esperança é o de passar pela intrujice, na medida em que se adorna com as plumas de uma disposição que não é nada senão radical. Há muito tempo, já há demasiado tempo que o alemão habita junto deste espectáculo indigno. A sua única desculpa é a sua crença de que em cada forma está incluído necessariamente um conteúdo, e o único consolo o de que este espectáculo pode bem realizar-se na Alemanha, mas de modo nenhum dentro da realidade alemã. Pois tudo isto recai no reino do esquecimento ⎯ não daquele esquecimento que se assemelha à hera que cobre as ruínas e os túmulos dos caídos, mas de um outro terrível esquecimento que manifesta a mentira e o que nunca foi, na medida em que os pulveriza sem deixar marcas nem frutos.

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Deve ser deixada para uma investigação suplementar particular, descobrir até que ponto o pensar burguês conseguiu introduzir ludibriosamente a imagem da sociedade, sob a miragem da sua autonegação, nos primeiros esforços do trabalhador. Descobrir-se-á aqui a liberdade do trabalhador como uma nova cópia do padrão burguês de liberdade, no qual doravante o destino é indicado muito abertamente como uma relação contratual até à rescisão e o mais elevado triunfo da vida como uma alteração deste contrato. Reconhecer-se-á aqui o trabalhador como o imediato sucessor do singular racional-virtuoso e como o objecto de uma segunda sensibilidade, que não é em nada diferente

da

primeira

senão

numa

indigência

maior.

Numa

correspondência exacta, descobrir-se-á aliás o trabalho68 como a reprodução da imagem ideal de uma humanidade em cuja simples utopia já está contida a negação do Estado e dos seus fundamentos. É isto e nada senão isto que significa a reivindicação que se esconde atrás de palavras como “internacional”, “social” e “democrático” ⎯ ou antes, que se escondeu, pois, mesmo para quem perceba de adivinhas, não ficará nada senão o espanto de que se acredite poder abalar o mundo burguês precisamente através das exigências nas quais ele próprio se confirmava o mais nitidamente possível. Mas chama-se suplementar a esta investigação porque a confirmação se realizou já no mundo visível. Pois, de facto, o burguês conseguiu assegurar-se, com a ajuda do trabalhador, um grau de poder dispor das coisas como não lhe esteve destinado em todo o século XIX. E, de novo, abre-se uma plenitude de imagens simbólicas, se se recorda do instante em que deste modo, na Alemanha, a sociedade chegou ao domínio. Deve-se abstrair aqui do facto de que este instante coincidiu com o instante em que o Estado se encontrava no maior e mais terrível perigo e em que o guerreiro alemão combatia o inimigo. Pois o 68

N. do T.: O termo alemão traduzido aqui por trabalho é Arbeiterschaft, que alude ao carácter próprio do trabalho.

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burguês, então, não conseguiu implantar aquela medida ínfima em força elementar que, sob estas circunstâncias, exigia um novo ataque aparente sobre si mesmo, isto é, sobre um regime aburguesado no seu núcleo desde há muito. Não foi dele que foram disparados aqueles poucos disparos de que se precisava para tornar visível o fim de uma parte da história alemã, e a sua actividade não consistiu em reconhecê-la, mas na sua utilização. Desde há bastante tempo que ele esteve à espera de poder começar as negociações, e as suas negociações alcançaram aquilo que não tinha sido alcançável ao mais extremo esforço de todo um mundo. Mas aqui a fala tem de se impor uma paragem e recusar ocuparse com os pormenores daquela imensa tragicomédia que começou com os conselhos de trabalhadores e de soldados cujos membros se distinguiam por nunca terem trabalhado nem combatido, nos quais aliás o conceito burguês de liberdade se manifestava como a fome de sossego e de pão; tragicomédia essa que então se continuava através do acto simbólico da entrega das armas e dos navios, que ousava não apenas debater sobre uma culpa alemã contra a imagem ideal da humanidade, mas também reconhecê-la, que com uma impudícia inconcebível tentava erguer os mais poeirentos conceitos do liberalismo à dignidade de uma ordem alemã, e na qual, de um modo completamente inequívoco, se manifestava doravante o triunfo da sociedade sobre o Estado como uma progressiva e combinada alta traição, e traição de lesa-pátria, do comum e demasiado comum à substância alemã. Aqui cessa qualquer discussão, pois aqui impõe-se aquele silêncio que dá um pressentimento do silêncio mortal. Aqui, a juventude alemã contemplou o burguês no seu último e no seu menos disfarçado aparecimento, e foi aqui que ela, nas suas melhores encorporações, quer de soldado, quer de trabalhador, se declarou logo por uma rebelião em que se chegou à expressão segundo a qual, neste espaço, é infinitamente mais desejável ser criminoso que burguês.

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Deve-se diferenciar a partir daqui, por importante que seja, entre o trabalhador como um poder emergente no qual repousa o destino da terra e os trajos com que o burguês veste este poder, com base no que este o serve como marionete no seu jogo artificial. Esta diferença é uma diferença entre a ascensão e o declínio69. E esta é a nossa fé: que a ascensão do trabalhador significa o mesmo que uma nova ascensão da Alemanha. Na medida em que o trabalhador trouxe ao domínio a sua parte da herança burguesa, ele afastou-se visivelmente, ao mesmo tempo, de si, semelhante a uma boneca cheia de palha seca em que se mexe há mais de um século. Já não pode escapar ao seu olhar que a nova sociedade é um segundo decalque, e mais barato, da velha. Eternamente se faria assim uma cópia a seguir à outra, eternamente se alimentaria o curso da máquina através da invenção de novas oposições, se o trabalhador não concebesse que ele não está numa relação de oposição a esta sociedade, mas de alteridade. Ele só se manifestará como o verdadeiro inimigo mortal da sociedade quando recusar pensar, sentir e ser nas suas formas. Mas tal acontece quando reconhecer que tem sido até agora, nas suas reivindicações, demasiado modesto, e que o burguês o ensinou a desejar apenas aquilo que precisamente ao burguês parece desejável. Mas a vida esconde algo mais e algo diferente do que aquilo que o burguês compreende como bens, e a mais elevada reivindicação que o trabalhador consegue fazer não consiste em ser o portador de uma nova sociedade, mas o portador de um novo Estado. Só neste instante é que ele declara o combate de vida ou de morte. Então, do singular, que no fundo não é mais que um empregado, surge um guerreiro, da massa surge o exército, e a colocação de uma 69

N. do T.: As palavras aqui traduzidas por ascensão e declínio são respectivamente Aufgang e Untergang, palavras que se mantêm relacionadas como movimentos de sentido contrário, e que, por exemplo, Martin Heidegger utiliza para traduzir os conceitos gregos de geração e corrupção.

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nova ordem de comando surge no lugar da alteração do contrato social. Isto afasta o trabalhador da esfera das negociações, da compaixão, da literatura, e ergue-o à esfera da acção, transforma os seus vínculos jurídicos em militares ⎯ isto é, ele possuirá guias, em vez de defensores, e a sua existência tornar-se-á medida, em vez de precisar de interpretação. Pois o que são os seus programas até agora senão os comentários a um texto originário que ainda não está escrito?

5. Finalmente, e em terceiro lugar, deve-se destruir a lenda da qualidade fundamental do trabalhador como uma qualidade económica. Em tudo o que foi pensado e dito sobre isso, trai-se a tentativa da aritmética de transformar o destino numa grandeza que se deixa resolver com meios de cálculo. Esta tentativa deve ser seguida até aos tempos em que se descobriu no Taiti e na Ile de France o arquétipo do homem racional-virtuoso e, deste modo, feliz, tempos em que o espírito se começou a ocupar com os mistérios perigosos do direito do trigo e em que a matemática pertencia àqueles jogos subtis com os quais a aristocracia se divertia na véspera da sua decadência. Foi aqui criado o modelo que experimentava a sua interpretação inequivocamente económica, na medida em que a reivindicação de liberdade do singular e da massa se fundamentava como uma reivindicação

económica

dentro

de

um

mundo

económico.

A

confrontação, suscitada por esta reivindicação, entre as escolas materialista e idealista forma uma das partes do infinito diálogo burguês; ela

é

uma

segunda

infusão

daquela

primeira

discussão

dos

enciclopedistas sob os telhados de Paris. De novo são representados os

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velhos perfis, e nada é mudado senão o esquema que se lhes contrapõe e que doravante se tornou num puro esquema económico. Levaria demasiado longe acompanhar como a discussão se alimenta através da distribuição variada dos antigos sinais e como se anima através da sua troca; importante é apenas que se veja como é que abrange numa ordem unitária a luta das opiniões e os seus portadores. A imagem ideal racional-virtuosa do mundo coincide aqui com uma utopia económica do mundo, e são reivindicações económicas as reivindicações a que qualquer questionamento se refere. O inelutável está em que dentro deste mundo de exploradores e explorados não é possível qualquer grandeza sobre a qual não se decida a partir de uma instância suprema do económico. Há aqui dois tipos de homem, dois tipos de arte, dois tipos de moral ⎯ mas quão pouca sagacidade há em reconhecer que é uma e a mesma fonte que os alimenta. É também a um e ao mesmo progresso que os portadores do combate económico remetem a sua justificação ⎯ eles encontram-se na reivindicação fundamental de serem os portadores da prosperidade, e acreditam poder abalar a posição do opositor na mesma precisa medida em que conseguem a refutação desta reivindicação. Mas basta ⎯ qualquer participação nesta discussão inclui em si a sua continuação. Aquilo que tem de ser visto é a presença de uma ditadura do pensar económico em si, cujo âmbito abrange e limita nas suas medidas qualquer ditadura possível. Pois dentro deste mundo não é realizável nenhum movimento que não remexesse de novo o turvo lodo dos interesses, e não há aqui nenhuma posição a partir da qual possa resultar a ruptura. Pois é a economia em si, a interpretação económica do mundo, que constrói o ponto central deste cosmos, e é ela que dá a cada uma das suas partes a sua gravitação. Seja qual for a parte que se consiga pôr na posse do poder de dispor das coisas, ela será sempre dependente da economia como supremo poder de dispor das coisas.

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O mistério que aqui se esconde é de uma natureza simples: consiste em, por um lado, a economia não ser nenhum poder que tenha de entregar a liberdade, e em, por outro lado, um sentido económico não conseguir chegar aos elementos da liberdade ⎯ e, no entanto, precisase dos olhos de uma nova estirpe para que este mistério possa ser adivinhado. Aqui torna-se talvez precisa uma nota pela qual deve ser impedida a possibilidade de uma confusão: a negação do mundo económico como um mundo que determina a vida, ou seja, como um poder de destino, é uma contestação de dignidade, mas não de existência. Pois não se trata do aumento no deserto do bando daqueles pregadores aos quais parece alcançável um outro espaço apenas através das portas das traseiras. Para o poder real não há nenhum acesso que não seja questionado. Idealismo ou materialismo ⎯ esta é uma oposição de espíritos imundos cuja força de representação não cresceu nem da ideia nem da matéria. A dureza do mundo só é domesticada pela dureza, não por prestidigitações. Compreendamo-nos

bem:

não

se

trata

de

neutralidade

económica, não se trata de o espírito se afastar de todos os combates económicos, mas, pelo contrário, de ser dada a estes combates a suprema intensidade. Contudo, isto não acontece na medida em que a economia determina as regras do combate, mas na medida em que uma lei superior de combate também impera sobre a economia. Por esta razão é tão importante para o trabalhador que ele recuse qualquer explicação que procure interpretar o seu aparecimento como um aparecimento económico, mesmo como um testemunho de processos económicos, isto é, no fundo, como um tipo de produto industrial, e que veja a proveniência burguesa destas explicações. Nenhuma medida pode talhar mais eficazmente estes vínculos fatais do que a declaração de independência do trabalhador relativamente ao

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mundo económico. Tal não significa como que a renúncia a este mundo, mas a sua subordinação a uma reivindicação de domínio de um tipo mais abrangente. Significa que não é a liberdade económica e que não é o poder económico que são o eixo da rebelião, mas o poder em geral. Na medida em que o burguês projectou os seus próprios objectivos nos do trabalhador, ele limitou, ao mesmo tempo, o objectivo do ataque a um objectivo de ataque burguês. Mas hoje suspeitamos a possibilidade de um mundo mais rico, mais profundo e mais frutífero. Para realizá-lo não basta um combate de libertação, cuja consciência se alimenta do facto da exploração. Tudo depende antes de o trabalhador reconhecer a sua supremacia e de se criar, a partir dela, os padrões próprios do seu domínio futuro. Tal robustecerá o ímpeto dos seus meios ⎯ da tentativa de debilitar o opositor através da rescisão surge a sua submissão através da conquista. Tais já não são os meios do empregado, cuja felicidade suprema consiste em poder ditar o seu contrato de emprego, e que, no entanto, nunca se consegue elevar acima da mais íntima lógica deste contrato; já não são os meios do enganado e do deserdado, que vê em cada nível que alcança uma nova perspectiva de engano. Não são esses os meios do rebaixado e ultrajado, mas antes os meios do autêntico senhor deste mundo, os meios do guerreiro que dispõe das riquezas de províncias e de grandes cidades, e que dispõe tanto mais seguramente delas quanto mais as souber desprezar.

6. Olhemos para trás: foi o século XIX que interpretou o trabalhador como o representante de um novo estado, como o portador de uma nova sociedade e como um orgão da economia.

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Esta interpretação indica ao trabalhador uma posição aparente dentro da qual a ordem burguesa é assegurada nos seus princípios decisivos. Consequentemente, qualquer ataque a partir desta posição pode apenas ser um ataque aparente que conduz a uma cunhagem mais intensa das valorizações burguesas. Qualquer movimento realiza-se teoricamente no quadro de uma envelhecida utopia da sociedade e da humanidade; na prática, volta a trazer ao domínio o perfil do hábil encarregado de negócios, cuja arte consiste em negociar e em mediar. Tal é fácil de verificar quando se testa os resultados dos movimentos de trabalhadores. Aquilo que, para além disso, já se torna visível na alteração do poder político é o mais profundamente possível indesejado, retira-se à arte burguesa da interpretação e contradiz inteiramente todas as predições no sentido da utopia da sociedade humanitária. As representações para debaixo de cujo encanto se procurou trazer o trabalhador não bastam, no entanto, para a solução das grandes tarefas de uma nova era. Por mais subtilmente que se façam os cálculos, cujo resultado não devia ser senão a felicidade, permanece contudo sempre um resto que se furta a qualquer dissolução e que se torna assinalável na substância humana como renúncia ou como desespero crescente. Se se quiser ousar uma nova investida, tal pode acontecer apenas na direcção de novos objectivos. Tal pressupõe uma outra frente, aliados de outro tipo. Pressupõe que o trabalhador se conceba numa outra forma e que se expresse nos seus movimentos já não um reflexo da consciência burguesa, mas uma auto-consciência que lhe seja própria. Levanta-se assim a questão de saber se na figura do trabalhador não se esconde mais do que até agora se julgou adivinhar.

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A FIGURA COMO UM TODO QUE ABRANGE MAIS DO QUE A SOMA DAS SUAS PARTES

7. Para a resposta à questão que foi posta é de pressupor aquilo que deve ser concebido como figura. Este esclarecimento de modo nenhum pertence a notas marginais, por muito pouco espaço que aqui lhe possa ser dedicado. Se, no que se segue, se falar, à partida, de figuras como de uma pluralidade, tal acontece por causa de uma falta provisória de hierarquia, que é remediada no decorrer da investigação. Não é a lei da causa e efeito que decide sobre a hierarquia no reino da figura, mas uma lei de outro tipo, a lei da estampa e do cunho; e veremos que, na época em que entramos, o cunho do espaço, do tempo e do homem deve ser reconduzido a uma única figura, a figura do trabalhador. Independentemente desta ordem, chame-se provisoriamente figura às grandezas tal como se oferecem a um olhar que concebe que o mundo se organiza segundo uma lei mais decisiva do que a lei da causa e efeito, sem contudo ver a unidade sob a qual se cumpre esta organização. 8. Na figura assenta o todo que abrange mais do que a soma das suas partes e que é inalcançável para uma era anatómica. É característico de um tempo que se avizinha que se continue a ver, a sentir e a agir nele sob o encanto das figuras. É o grau em que se lhe

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torna visível a influência das figuras que decide sobre a dignidade de um espírito, sobre o valor de um olhar. Já estão presentes os primeiros esforços significativos; eles não devem ser descurados nem na arte, nem na ciência, nem na fé. Também na política tudo depende de que se traga à luta figuras, e não conceitos, ideias ou meros fenómenos. Desde o instante em que a vivência se dê em figuras, tudo se torna figura. A figura não é então nenhuma nova grandeza que se deveria descobrir nas já conhecidas, mas, através de uma nova orientação do olhar, o mundo aparece como um palco de figuras e das suas relações. Tal não se apresenta, para indicar um erro característico do tempo de passagem, como se o singular desaparecesse e apenas tivesse de retirar o seu sentido de corporações, de comunidades ou de ideias enquanto unidades sobrepostas. Também no singular se representa a figura, cada unha, cada átomo nele é figura. E a ciência do nosso tempo não começou já, aliás, a ver os átomos já não como as partes mais pequenas, mas como figuras? Uma parte é certamente tão pouco uma figura quanto uma soma de partes pode dar uma figura. Deve-se ter isto em conta quando se quiser empregar a palavra “homem” num sentido que se movimenta além dos modos de falar. O homem possui figura na medida em que é concebido como o singular concreto e captável. Mas tal não vale para o homem puro e simples, o qual é apenas um dos padrões do entendimento e pode significar tudo ou nada, mas em nenhum caso algo determinado. O mesmo vale para as figuras mais abrangentes às quais o singular pertence. A pertença não pode ser calculada nem através da multiplicação nem através da divisão ⎯ muitos homens ainda não dão qualquer figura, e nenhuma fragmentação da figura reconduz ao singular. Pois a figura é o todo que contém mais do que a soma das suas partes. Um homem é mais do que a soma dos átomos, dos membros, orgãos e líquidos de que é composto, um casamento é mais do que o homem e a

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mulher, uma família mais do que o homem, a mulher e a criança. Uma amizade é mais do que dois homens e um povo é mais do que aquilo que pode ser expresso através do resultado de um recenseamento ou através de uma soma de votações políticas. No século XIX, habituou-se-se a remeter para o reino dos sonhos qualquer espírito que se procurasse referir a este mais, a esta totalidade70, como se eles tivessem lugar num mundo mais bonito, mas não na realidade. Mas não pode haver dúvida de que é precisamente a valorização contrária que é dada, e de que também no político qualquer espírito de menor dignidade é aquele a quem falta o olhar para este mais. Ele pode desempenhar um papel na história do espírito, na história da economia, na história das ideias — mas a história é algo mais; ela é figura, tanto quanto tem por conteúdo o destino das figuras. Certamente



e

esta

interpolação

poderá

indicar

mais

intensamente aquilo que deve ser concebido como figura — certamente a maior parte dos adversários dos lógicos e matemáticos da vida movimentava-se num plano que não estava em nenhuma diferença de dignidade em relação àquele que eles combatiam. Pois não há nenhuma diferença em alguém se referir a uma alma separada ou a uma ideia separada em vez de a um homem separado. A alma e a ideia, neste sentido, nem são figura, nem há entre elas e o corpo ou a matéria uma oposição convincente. A isso parece contradizer a experiência da morte, na qual, para a representação que nos é transmitida, a alma deixa o casulo do corpo e, assim, a parte imperecível do homem deixa a parte perecível. É, no entanto, um erro, uma doutrina estranha, que o homem moribundo deixe o seu corpo — a sua figura entra antes numa nova ordem que é incompatível com qualquer comparação espacial, temporal ou causal. Deste saber brotou a intuição dos nossos antepassados segundo a qual

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o guerreiro, no momento da morte, era conduzido ao Walhalla71 — não era como alma que era lá acolhido, mas numa corporeidade resplandecente de que o corpo vivo72 do herói na batalha era uma elevada alegoria. É muito importante que continuemos a avançar para uma completa consciência do facto de que o cadáver não é como que o corpo sem alma. Entre o corpo no segundo da morte e o cadáver no segundo que se lhe segue não há a mínima relação; isso indica que o corpo abrange mais do que a soma dos seus membros, enquanto o cadáver é igual à soma das suas partes anatómicas. É um erro que a alma deixe atrás de si, como uma chama, pó e cinza. Da mais elevada relevância, no entanto, é o facto de a figura não estar submetida aos elementos do fogo e da terra e, por conseguinte, de o homem, enquanto figura, pertencer à eternidade. Na sua figura, independentemente de qualquer valorização apenas moral, de qualquer redenção e de qualquer “esforço ansioso”, repousa o seu merecimento inato, imutável e imperecível, a sua existência suprema e a sua mais profunda comprovação. Quanto mais nos dedicarmos ao movimento, tanto mais intimamente temos de estar convictos de que atrás dele se esconde um ser em repouso e de que qualquer aumento de velocidade é apenas a tradução de uma linguagem originária imperecível. A partir desta consciência, dá-se uma nova relação ao homem, um amor mais quente e uma inclemência mais terrível. Dá-se a possibilidade de uma anarquia mais jovial que, ao mesmo tempo,

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Uma informação mais aproximada sobre a palavra total, a qual desempenhará ainda um papel no que se seguirá, é conferida pelo escrito A mobilização total (Berlim, 1930). 71

N. do T.: O Walhalla é, na mitologia escandinava e germânica, o palácio situado em Asgard, o reino dos deuses, com quinhentas e quarenta portas e um tecto constituído por escudos. Era para lá que as valquírias encaminhavam os guerreiros mortos em combate, onde permaneciam a combater durante o dia e a banquetear-se durante a noite com Odin ou Wotan, o Rei dos deuses. 72

N. do T.: Jünger faz aqui entrar a distinção alemã entre um corpo enquanto mera unidade material (Körper) e um corpo enquanto “corpo vivo”, corpo animado por uma vida, pela Leben

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coincida com a ordem mais rigorosa

— um espectáculo, como é já

indicado nas grandes batalhas e nas cidades gigantescas, cuja imagem está no começo do nosso século. Neste sentido, o motor não é o dominador, mas o símbolo do nosso tempo, a imagem simbólica de um poder para o qual a explosão e a precisão não são quaisquer opostos. Ele é o instrumento ousado de uma espécie humana que consegue com entusiasmo romper no ar e que vê neste acto ainda uma comprovação da ordem. A partir desta atitude, que não é realizável nem para o idealismo nem para o materialismo, mas que tem de ser referida como um realismo heróico, dá-se aquela medida mais extrema da força de ataque de que estamos precisados. Os seus portadores são da espécie daqueles voluntários que saudaram com júbilo a grande guerra e que saúdam tudo quanto dela se seguiu e seguirá. Como se disse, também o singular possui figura, e o direito à vida mais imponente e inalienável, que partilha com as pedras, as plantas, os animais e as estrelas, é o seu direito à figura. Como figura, o singular abrange mais do que a soma das suas forças e faculdades; é mais profundo do que consegue adivinhar nos seus mais profundos pensamentos, e mais poderoso do que o que pode expressar na sua acção mais poderosa. Assim, transporta em si o padrão, e a mais elevada arte da vida, na medida em que vive como singular, consiste em se tomar a si mesmo como padrão. Isso constitui o orgulho e o luto de uma vida. Todos os grandes instantes da vida, os sonhos ardentes da juventude, a embriaguês do amor, o fogo da batalha, coincidem com uma consciência mais profunda da figura, e a recordação é o regresso mágico da figura que toca o coração e o persuade da imperecibilidade destes instantes. O mais amargo desespero de uma vida está em não se ter preenchido, em não estar à altura de si mesma. O singular assemelha-se aqui ao filho pródigo que, no estrangeiro, desperdiça ociosamente a sua parte da (Leib). Para manter essa diferença, optou-se por traduzir aqui Körper por corpo e Leib por

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herança, por maior ou mais pequena que tenha sido — e, no entanto, não pode haver dúvida quanto à sua reaceitação na pátria. Pois a parte inalienável da herança do singular é que pertence à eternidade, e, nos seus instantes mais elevados e indubitáveis, ele está completamente consciente disso. É sua tarefa expressar isso no tempo. Neste sentido, a sua vida torna-se numa alegoria da figura. Mas, além disso, o singular está inserido numa grande hierarquia de figuras — potências que não se pode sequer representar de um modo suficientemente real, corpóreo e necessário. Diante delas, o próprio singular torna-se numa alegoria, num representante, e o ímpeto, a riqueza, o sentido da sua vida depende da medida em que é envolvido na ordem e na luta das figuras. As figuras genuínas reconhecem-se em lhes poder ser dedicada a soma de todas as forças, em lhes poder ser atribuída a mais elevada veneração, em se lhes poder contrapor o mais extremo ódio. Como elas escondem em si o todo, reclamam o todo. Sucede assim que, com a sua figura, o homem descobre ao mesmo tempo a sua determinação, o seu destino, e é esta descoberta que o torna capaz do sacrifício que ganha no sacrifício de sangue a sua expressão mais significativa.

9. A era burguesa não conseguiu ver o trabalhador numa hierarquia determinada pela figura, porque não lhe estava dada uma relação genuína ao mundo das figuras. Aqui tudo se derreteu em ideias, conceitos ou simples fenómenos, e os dois pólos deste espaço fluído eram a razão e a sensibilidade. Na última diluição, a Europa, o mundo ainda hoje está inundado deste líquido, deste descorado verniz de um espírito que se tornou senhor de si mesmo. corpo vivo.

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Mas sabemos que esta Europa, que este mundo, na Alemanha, apenas possuem a dignidade de uma província cuja administração não tem sido a tarefa dos melhores corações, nem sequer das melhores cabeças. Já cedo neste século se viu o alemão em rebelião contra este mundo, e representado pelo soldado da frente alemão enquanto portador de uma figura genuína. Tal foi, ao mesmo tempo, o começo da revolução alemã, que já no século XIX foi anunciada por elevados espíritos e que só pode ser concebida como uma revolução da figura. Se esta rebelião, no entanto, foi apenas um prelúdio, a razão está em ela, na sua completa extensão, ainda ter carecido da figura, da qual já era uma alegoria cada soldado que, só e desconhecido, caía dia e noite em todas as fronteiras do império. Pois, em primeiro lugar, o comando73 estava

demasiado

saturado, demasiado persuadido dos valores de um mundo que reconhecia unanimemente na Alemanha o seu mais perigoso adversário; e era de justiça que este comando fosse derrotado e eliminado, enquanto o soldado da frente alemão se mostrava não apenas como invencível, mas também como imortal. Cada um destes caídos está hoje mais vivo que então, e isso vem de eles, enquanto figura, pertencerem à eternidade. O burguês, porém, não pertence às figuras; por isso, o tempo devora-o, mesmo que se ornamente com a coroa do príncipe ou com a púrpura do comandante. Mas, por outro lado, vimos que a rebelião do trabalhador foi preparada na escola do pensar burguês. Assim, ela não podia coincidir com a rebelião alemã, e tal mostra-se em a capitulação diante da Europa, a capitulação diante do mundo se ter realizado, por um lado, através de uma classe superior burguesa de velho estilo e, por outro lado, através dos porta-vozes também burgueses de uma assim chamada revolução, ou seja, no fundo, através dos representantes de uma e da mesma espécie humana.

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Contudo, na Alemanha, nenhuma rebelião que se dirija contra a Alemanha pode possuir a dignidade de uma nova ordem. Ela já está votada ao fracasso porque vai contra uma legalidade da qual nenhum alemão se pode retirar sem se furtar a si mesmo às mais misteriosas raízes da sua força. Daí que entre nós só possam combater pela liberdade aquelas potências que, ao mesmo tempo, são as portadoras da responsabilidade alemã. Mas como pôde o burguês confiar esta responsabilidade ao trabalhador, se ele mesmo não participava dela? Do mesmo modo que, na medida em que governava, era incapaz de pôr irresistivelmente em acção a força elementar do povo, não estava à altura, na medida em que desejava o governo, de pôr em movimento revolucionariamente esta força elementar. Daí que procurasse envolvê-la na sua traição contra o destino. Esta traição é insignificante na sua propriedade de alta traição, na qual tem de ser reconhecida como um processo de autoaniquilamento da ordem burguesa. Mas é, ao mesmo tempo, traição à pátria, na medida em que o burguês procurava implicar a figura do império no seu autoaniquilamento. Como não lhe é dada a arte de morrer, procurava adiar o momento da sua morte, custasse o que custasse. A culpa de guerra do burguês está em que ele nem era capaz de conduzir realmente a guerra, isto é, no sentido de uma Mobilização Total, nem de a perder — ou seja, de ver em declínio a sua mais elevada liberdade. O que diferencia o burguês do soldado da frente é que o burguês também na guerra procurava entrever qualquer oportunidade para a negociação, enquanto a guerra significava para o soldado um espaço no qual se tratava se morrer, isto é, de viver de tal modo que a figura do império fosse confirmada — daquele império que, mesmo que nos levem o corpo, tem de permanecer connosco.

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N. do T.: A palavra que aqui traduzimos por comando é Führung, a “condução”, que aqui tem o sentido de uma referência à “classe dirigente”.

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Há duas espécies humanas, das quais se reconhece uma preparada para negociar a qualquer preço, a outra preparada para combater a qualquer preço. A arte de educação do burguês em relação ao trabalhador consistiu em tê-lo educado para parceiro de negociação. O sentido que se esconde atrás disso, e que consiste no desejo de prolongar a duração da vida da sociedade burguesa a qualquer preço, poderia permanecer escondido tanto tempo quanto esta sociedade possuía no equilíbrio das potências um retrato extra-político. A sua tendência orientada contra o Estado teve de se manifestar no mesmo instante em que entre estas potências aparecia uma outra relação que não a da negociação. No entanto, a última vitória da Europa ajudou o burguês a, mais uma vez, possibilitar um daqueles espaços artificiais vistos a partir dos quais a figura e o destino são de significado igual ao sem sentido. É o mistério da derrota alemã, que a continuidade de um tal espaço, a continuidade da Europa, fosse o mais silencioso ideal do burguês. Manifestava-se aqui doravante também muito claramente o papel indigno que destinara ao trabalhador, na medida em que soube passarlhe, na política interna, com grande habilidade, a consciência de um domínio cujas reivindicações tinham de se salientar, relativamente a uma relação de culpa na política externa, cada vez mais como uma mudança sem fundo. A extensão do protesto é, ao mesmo tempo, a última extensão de vida da sociedade burguesa, e também até aqui se expressa a sua existência aparente, a qual procura apoiar-se nos há muito usados capitais do século XIX. Mas tal é o espaço que o trabalhador não tem de combater, pois deparará sempre nele com nada mais do que negociações e concessões, mas que só precisa de sacudir de si com desprezo. É o espaço cuja fronteira externa brota da impotência e cuja ordem interna brota da traição. Foi assim que a Alemanha se tornou uma colónia da Europa, uma colónia do mundo.

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Contudo, o acto através do qual o trabalhador consegue sacudir este espaço consiste precisamente em ele se reconhecer como figura e dentro de uma hierarquia de figuras. Aqui se fundamenta a mais profunda justificação para o combate pelo Estado, a qual doravante não se tem de referir a uma nova interpretação do contrato, mas a um encargo imediato, a um destino.

10. A visão de figuras é um acto revolucionário na medida em que reconhece um ser na plenitude completa e unitária da sua vida. A grande supremacia deste acontecimento é que ele se realiza para além tanto das valorizações morais e estéticas como também das valorizações científicas. Neste âmbito, à partida, não se trata de saber se algo é bom ou mau, belo ou feio, falso ou certo, mas de saber a que figura pertence. Com isso, a circunscrição da responsabilidade estendese de um modo tal que é completamente incompatível com tudo aquilo que o século XIX compreendeu como justiça: é a legitimação ou a culpa do singular, que ele pertença a esta ou àquela figura. No mesmo instante em que tal é conhecido e reconhecido, desmorona-se a aparelhagem gigantescamente complicada que uma vida que se tornou muito artificial instalou para a sua protecção, porque aquela atitude que, no começo da nossa investigação, caracterizámos como uma inocência selvagem já não precisa dela. Tal é a revisão da vida pelo ser, e quem conhece novas, maiores possibilidades da vida, saúda esta revisão na medida e na desmedida da sua inexorabilidade. Um dos meios para a preparação de uma vida nova e mais ousada consiste no aniquilamento das valorizações do espírito separado, do espírito que se tornou senhor de si mesmo, na destruição do trabalho de educação que a era burguesa realizou no homem. Para que tal

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aconteça a partir do fundamento, e não como que no modo de uma reacção que quer atrasar o mundo cento e cinquenta anos, é preciso ter passado por esta escola. Trata-se agora da educação de uma espécie humana que possui a certeza desesperada de que as reivindicações da justiça abstracta, da investigação livre, da consciência moral artificial se puseram à prova diante de uma instância mais elevada do que a que pode ser percebida, em geral, dentro de um mundo da liberdade burguesa. Se, à partida, isso acontece no pensar, é porque o opositor se deve procurar no campo da sua robustez. A melhor resposta à alta traição do espírito contra a vida é a alta traição do espírito contra o “espírito”; e pertence aos grandes e cruéis prazeres do nosso tempo participar neste trabalho de explosão.

11. Uma consideração do trabalhador adequada à figura poderia ligar-se aos dois fenómenos a partir dos quais o pensar burguês já ganhou o conceito de trabalhador — à comunidade e ao singular —, cujo denominador comum consistia na representação que o século XIX possuía do homem. Estes dois fenómenos mudam o seu significado quando uma nova imagem do homem é posta neles em acção. Seria assim profícuo seguir como o singular, sob aspectos heróicos, aparece, por um lado, como o soldado desconhecido que é aniquilado nos campos de batalha do trabalho, e como, por outro lado, precisamente por isso, surge como o senhor e ordenador do mundo, como tipo74 que comanda na posse de uma omnipotência até agora só 74

N. do T.: Por tipo traduzimos aqui o termo Typus, central em Jünger. O tipo expressa, em Jünger, o modo pelo qual a unidade singular aparece determinada numa era configurada pela figura do trabalhador. Este singular é, já não um indivíduo, tal como uma era burguesa o entendeu, mas a expressão de um tipo, de uma figura típica que ultrapassa a sua individualidade.

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obscuramente suspeitada. Ambos os lados pertencem à figura do trabalhador, e é isso que as une o mais profundamente possível onde se medem uma à outra no combate mortal. Do mesmo modo, a comunidade aparece, em primeiro lugar, como sofredora, na medida em que é a portadora de uma obra diante de cujo ímpeto mesmo a mais elevada pirâmide se assemelha à ponta de um alfinete; e, no entanto, por outro lado, aparece como a unidade significativa cujo sentido é completamente dependente do perseverar ou não perseverar precisamente desta obra. Daí que bem se cuide entre nós de discutir de que espécie deve ser a ordem na qual a obra tem de ser servida e governada, enquanto a própria necessidade desta obra pertence ao destino e, assim, está além dos questionamentos. Tal expressa-se, entre outras coisas, em que mesmo dentro dos movimentos de trabalhadores até agora nunca teve lugar uma negação do trabalho como facto fundamental. Que mesmo onde tais movimentos, crescidos na escola do pensar burguês, já conquistaram o poder a consequência imediata tenha sido um trabalho aumentado, não diminuído, tal é um fenómeno que tem de encher o espírito de atenção e confiança. Tal assenta, como ainda deve ser exposto, por um lado, em que já o nome “trabalhador” nada pode indicar senão uma atitude que reconhece o seu encargo, e daí a sua liberdade, no trabalho. Mas, por outro, manifesta-se aqui muito claramente que o móbil essencial não é a submissão, mas um novo sentimento de responsabilidade, e que os reais movimentos de trabalhadores não são para ser concebidos, como fez o burguês, independentemente de os ter afirmado ou negado, como movimentos

de

escravos,

mas

como

movimentos

de

senhores

encapotados. Quem quer que seja que o tiver reconhecido, reconhece também a necessidade de uma atitude que o torne digno do uso do título de trabalhador. Não se deve então estar ligado à comunidade e ao singular, embora ambos também sejam para conceber de acordo com a figura.

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Muda-se então o conteúdo destas palavras, e veremos quanto o singular e a comunidade são diferentes, dentro do mundo do trabalho, do indivíduo e da massa do século XIX. O nosso tempo esgotou-se nesta contraposição

de

um

modo

muito

semelhante

àquelas

outras

contraposições de ideia e matéria, sangue e espírito, poder e direito a partir

das

quais

se

dão

apenas

interpretações

perspectivistas,

contraposição essa através da qual é iluminada esta ou aquela reivindicação de participação. Trata-se muito mais de procurar a figura do trabalhador num plano a partir do qual quer o singular quer as comunidades

devem

ser

concebidas

como

alegorias,

como

representantes. Representantes do trabalhador, neste sentido, são tanto as supremas sublimações do singular, tais como foram suspeitadas já antes no super-homem75, como também aquelas comunidades que vivem como formigas no encanto da obra, a partir das quais a reivindicação da peculiaridade é considerada como uma manifestação inadequada da esfera privada. Ambas estas atitudes de vida se desenvolveram na escola da democracia; de ambas se pode dizer que passaram por ela e que doravante, a partir de duas orientações aparentemente opostas, participam no aniquilamento das velhas valorizações. Mas ambas são, como foi dito, alegorias da figura do trabalhador, e a sua íntima unidade mostra-se na medida em que a vontade da ditadura total se reconhece no espelho de uma nova ordem enquanto vontade de Mobilização Total. Mas qualquer ordem, seja ela como for, assemelha-se à rede graduada que é estendida sobre um mapa e que só ganha significado através da paisagem com a qual se relaciona — assemelha-se aos nomes das dinastias que mudam, dos quais o espírito não precisa de se lembrar enquanto é abalado pelos seus monumentos. Assim, também a figura do trabalhador repousa mais profunda e estavelmente no ser do que todas as alegorias e ordens através das 75

E isso através do medium do indivíduo burguês.

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quais ela se confirma, mais profundamente do que constituições e obras, do que homens e as suas comunidades, que são como as feições em mudança de um rosto cujo carácter fundamental permanece inalterável.

12. Visto na plenitude do seu ser, e na violência de um cunho que apenas começou, a figura do trabalhador aparece em si rica em contradições e tensões, e, no entanto, de uma espantosa unidade e completude em relação ao destino. Ela ser-nos-á assim manifesta, de vez em quando, em instantes em que nenhum fim e nenhuma intenção perturbe a meditação — como poder subjacente e pré-formado. É assim que, por vezes, quando de repente a tempestade dos martelos e das rodas que nos rodeia se silencia, a tranquilidade que se esconde atrás da desmedida do movimento parece contrariar-nos quase corporalmente, e é bom o costume que no nosso tempo, para honrar os mortos ou para gravar na consciência um instante de significado histórico, declara suspenso o trabalho por um intervalo de minutos, como por um comando supremo. Pois este movimento é uma alegoria da força mais íntima, no sentido em que o significado misterioso de um animal se manifesta o mais claramente possível no seu movimento. Mas o espanto sobre a sua suspensão é, no fundo, o espanto sobre o ouvido julgar perceber, por um instante, as fontes mais profundas que alimentam o curso temporal do movimento, e isso eleva este acto a uma dignidade de culto. O que distingue as grandes escolas do progresso é faltar-lhes a relação às forças originárias e a sua dinâmica ser fundada no curso temporal do movimento. Tal é a razão pela qual as suas conclusões, sendo em si persuasoras, estão não obstante condenadas, como por uma matemática diabólica, a desembocar no niilismo. Experimentámos

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isto nós mesmos ma medida em que tomámos parte no progresso e assumimos, como a grande tarefa de uma estirpe que vivia há muito numa paisagem originária, voltar a produzir o vínculo imediato com a realidade. A relação do progresso com a realidade é de uma natureza derivada. Aquilo que é visto é a projecção da realidade na periferia do fenómeno; tal pode-se mostrar em todos os grandes sistemas do progresso e vale também para a sua relação ao trabalhador. E, no entanto, do mesmo modo que o iluminismo é mais profundo que o iluminismo, também o progresso não está sem pano de fundo. Também ele conheceu aqueles instantes de que precisamente se falou. Há uma embriaguês do conhecimento que é mais do que de origem lógica, e há um orgulho nas proezas técnicas, no começo do domínio ilimitado sobre o espaço, que possui uma suspeita da mais misteriosa vontade de poder, para a qual tudo isto é apenas um armamento para combates e rebeliões insuspeitados, e precisamente por isso tão valioso e necessitado de um cuidado ainda mais afectuoso do que o que um guerreiro dedica às suas armas. Daí que para nós esteja fora de questão aquela atitude que procura contrapor ao progresso os meios inferiores da ironia romântica e que é a característica segura de uma vida enfraquecida no seu núcleo. A nossa tarefa não é ser o adversário do tempo, mas a sua última cartada, cuja entrada em acção deve ser concebida tanto na sua extensão como na sua profundidade. O pormenor que tão vincadamente os nossos pais iluminaram muda o seu significado quando é visto numa imagem maior. O prolongamento de um caminho que parecia conduzir à comodidade e à segurança entra doravante na zona daquilo que é perigoso. Neste sentido, o trabalhador, para além do pormenor que o progresso lhe assinalou, aparece como o portador da substância heróica fundamental que determina uma nova vida.

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Mas é onde sentimos a obrar esta substância que estamos perto do trabalhador, e nós somos trabalhadores, na medida em que ela pertence à nossa parte da herança. Tudo aquilo que sentimos no nosso tempo como admirável, e que ainda nos fará aparecer, nas lendas dos séculos mais longínquos, como uma estirpe de feiticeiros poderosos, pertence a esta substância, pertence à figura do trabalhador. É ela que opera na nossa paisagem, a qual só não sentimos como infinitamente estranha porque nascemos nela; o seu sangue é o combustível que impulsiona as rodas e fumega nos seus eixos. Na consideração deste movimento, apesar de tudo monótono, que lembra um campo cheio de mosteiros tibetanos, na consideração da ordem rigorosa destes sacrifícios, que se assemelha aos esboços geométricos das pirâmides, sacrifícios tais como ainda não exigiu nenhuma Inquisição nem nenhum Moloch76, e cujo número se multiplica a cada passo com uma segurança mortal — como poderia aqui um olhar que realmente quer ver furtar-se à visão de que atrás do véu da causa e efeito, que se agita sob os combates do dia, operam o destino e a veneração?

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N. do T.: Ligado a Baal, adorado pela tribo dos amonitas e moabitas, Moloch é um deus de carácter malévolo, que exigia sacrifícios humanos.

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O IRROMPER DE POTÊNCIAS ELEMENTARES NO ESPAÇO BURGUÊS

13. Foi até agora pressuposto que é próprio do trabalhador uma nova relação ao elementar, à liberdade e ao poder. O desejo do burguês de impermeabilizar hermeticamente o espaço

vital

contra

o

irromper

do

elementar

é

a

expressão,

particularmente bem sucedida, de um remoto desejo de segurança, que se pode acompanhar por todo o lado na história da natureza e do espírito, e mesmo em qualquer vida singular. Neste sentido, esconde-se atrás do aparecimento do burguês uma possibilidade eterna que qualquer era, qualquer homem encontrará em si — de modo semelhante a para qualquer era, para qualquer homem estão disponíveis as eternas formas do ataque e da defesa, apesar de não ser um acaso qual destas formas é empregue na decisão. O burguês vê-se, desde o início, remetido à defesa, e entre os muros de um burgo e os de uma cidade expressa-se a diferença entre um último e um único abrigo. Aqui é também indicado porque é que a advocacia desempenha desde o início, na política burguesa, um papel particular e, do mesmo modo, porque é que, em guerras entre democracias nacionais, se discute sobre quem é o atacado. A esquerda é a mão da defesa. Nunca o burguês se sentirá impelido a procurar o destino, de livre vontade, no combate e no perigo, pois o elementar repousa além do seu

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círculo, é o irracional e, deste modo, o pura e simplesmente imoral. Assim, procurará sempre afastar-se dele, independentemente de ele lhe aparecer como poder e paixão ou nos elementos originários do fogo, água, terra e ar. Sob este ponto de vista, as grandes cidades aparecem, em torno da viragem do século, como os baluartes ideais da segurança, como o puro e simples triunfo do muro que, desde há mais de um século, se retirou das muralhas envelhecidas e que, como pedra, como asfalto, como vidro, abarca a vida numa ordem faviforme e penetrou na sua mais íntima ordem. Cada vitória da técnica é aqui uma vitória do conforto, e a entrada dos elementos é determinada pela economia. Contudo, o extraordinário da era burguesa está menos no desejo de segurança do que no carácter exclusivo que é próprio destes esforços. Está em o elementar aparecer aqui como o sem sentido e, deste modo, o muro divisório da ordem burguesa se apresentar, ao mesmo tempo, como o muro divisório da razão. Assim, o burguês afastase de outros fenómenos, do crente, do guerreiro, do artista, do marinheiro, do caçador, do criminoso e, como foi afirmado, também do trabalhador. Talvez já se torne clara, nesta passagem, a razão da aversão que o burguês sente diante destes e de outros fenómenos que, já nas suas roupas, trazem para as cidades como que o odor do que é perigoso. É a aversão diante do ataque, não contra a razão, mas contra o culto da razão que se dá através da mera presença destas atitudes de vida. Uma

das

jogadas

do

pensar

burguês

desemboca

em

desmascarar o ataque ao culto da razão como ataque à razão e, assim, em liquidá-lo como irracional. Deve-se sustentar contra ela que só dentro do mundo burguês existe uma congruência destes dois ataques, pois como há uma concepção burguesa de trabalhador, assim há também uma razão especificamente burguesa, que se distingue precisamente por

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ser incompatível com o elementar. Esta característica, porém, de modo nenhum ocorre nas atitudes de vida referidas. Assim, a batalha é para o guerreiro um acontecimento que se cumpre numa ordem superior; o conflito trágico é para o poeta um estado no qual o sentido da vida pode ser captado de um modo particularmente claro; e uma cidade em chamas ou desertificada por um tremor de terra é para o criminoso um campo de actividade acrescida. Do mesmo modo, o homem crente participa num círculo mais alargado da vida com sentido. O destino, através da infelicidade e do perigo, assim como através do milagre, inclui-o imediatamente numa ordem regente mais poderosa, e o sentido desta intervenção é reconhecido na tragédia. Os deuses gostam de se manifestar nos elementos, em estrelas resplandecentes, no trovão e no relâmpago, na sarça ardente que a chama não consome. Zeus treme de prazer no trono supremo, enquanto o globo terrestre ecoa sob a batalha dos deuses e dos homens, porque vê aqui violentamente confirmado todo o alcance do seu poder. São dadas ao homem relações maiores e menores ao elementar, e há vários planos nos quais tanto a segurança como o perigo são abarcados por uma e a mesma ordem. O burguês, pelo contrário, deve ser concebido como o homem que reconhece a segurança como um valor supremo e que determina a condução da sua vida de acordo com isso. O poder supremo pelo qual vê esta segurança assegurada é a razão. Quanto mais perto se encontrar do seu centro, tanto mais se dissolvem as escuras sombras nas quais se esconde o que é perigoso, que às vezes, em tempos durante os quais quase nem uma nuvenzinha parece perturbar o céu, se perde nas grandes distâncias. No entanto, o perigo está sempre presente; ele procura eternamente, como um elemento, romper as barreiras com as quais a ordem se rodeia e, segundo as leis de uma secreta mas incorruptível

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matemática, torna-se mais ameaçador e mais mortal numa medida proporcional à ordem tê-lo compreendido separado de si. Pois o perigo não apenas quer ter parte em qualquer ordem, mas é também a mãe daquela segurança suprema da qual o burguês nunca pode tornar-se participante. Pelo contrário, o estado ideal de segurança que o progresso deseja alcançar consiste no domínio mundial da razão burguesa, que não apenas deve diminuir as fontes do que é perigoso, mas, por fim, também as deve secar. O acto em que tal acontece é precisamente o acto segundo o qual o que é perigoso, no brilho da razão, se manifesta como o sem sentido e, deste modo, se perde da sua reivindicação de realidade. Trata-se, neste mundo, de ver o que é perigoso como o sem sentido, e este é superado no mesmo instante em que, no espelho da razão, aparece como erro. Tal pode-se indicar, em pormenor, em todo o lado dentro da ordem espiritual e fáctica do mundo burguês. Manifesta-se, em visão de conjunto, no desejo de ver o Estado — que assenta na hierarquia — como sociedade, cujo princípio fundamental é a igualdade e que se fundou através de um acto da razão. Manifesta-se na montagem abrangente de um sistema de segurança através do qual não apenas o risco da política externa e interna, mas também, em igual medida, o da vida privada deve ser disperso, e, assim, submetido à razão — em esforços em que se procura resolver o destino através do cálculo de probabilidades. Manifesta-se, além disso, nos numerosos e muito embrulhados esforços para reconhecer a vida da alma como um curso de causa e efeito e, deste modo, para transportá-la de um estado incalculável para um estado calculável, ou seja, para incluí-la no círculo de domínio da consciência. Todos os questionamentos dentro deste espaço, sejam de uma natureza artística, científica ou política, remetem para que o conflito seja evitável. Se ele, apesar disso, surge, como não se pode ignorar diante

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dos factos permanentes da guerra ou do crime, trata-se de apontá-lo como um erro cuja repetição se deve evitar através da educação ou através do iluminismo. Estes erros surgem apenas porque ainda não chegaram a um conhecimento universal os factores daquele grande cálculo cujo resultado será o povoamento do globo terrestre com uma humanidade unida, tão fundamentalmente boa como fundamentalmente racional e, consequentemente, também fundamentalmente segura. A crença na força persuasora destas visões é uma das razões pelas quais o iluminismo tende a sobrevalorizar as forças que lhe são dadas.

14. Já vimos que o elementar está sempre presente. Embora a sua exclusão possa alcançar um grau elevado, são postas a este processo determinadas fronteiras, pois o elementar não apenas pertence ao mundo exterior, mas também está atribuído à existência de cada singular como um dom que não se pode perder. O homem vive de modo elementar, tanto na medida em que é um ser natural como também na medida em que é um ser daimoníaco77. Nenhum silogismo da razão pode substituir o bater do coração ou a actividade dos rins, e não há grandeza, mesmo que seja a própria razão, que não se subordine, de tempos a tempos, às pequenas ou orgulhosas paixões da vida. As fontes do elementar são de dois tipos. Por um lado, estão no mundo, que é sempre perigoso, tal como o mar esconde em si o perigo também durante a mais profunda calmaria. Por outro, estão no coração humano, que anseia por jogos e aventuras, por ódio e amor, por triunfos 77

N. do T.: Na tradução de dämonisches Wesen, preferimos traduzir por ser daimoníano em vez de ser demoníaco, na medida em que Jünger se refere à concepção grega do homem como um daimon, como um ente hierarquicamente situado num ponto intermédio entre os mortais e os imortais.

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e quedas, que se sente tão necessitado do perigo como da segurança, e para quem um estado fundamentalmente seguro aparece, com razão, como um estado incompleto. Uma escala para o alcance do domínio das valorizações burguesas é então até que ponto de afastamento parece retroceder o elementar — parece, pois veremos ainda como ele se sabe esconder no centro do mundo burguês sob máscaras inofensivas. Antes de mais, deve-se verificar que ele aparece diante do defensor nato numa estranha posição defensiva — na do romantismo. Aparece no homem como a atitude romântica e no mundo como o espaço romântico. Ao espaço romântico não está dado um centro próprio; consiste apenas na projecção. Ele está na sombra do mundo burguês, cuja fonte de luz não apenas determina a sua extensão, mas que também, por todo o lado e sempre, a consegue dissolver com facilidade. Tal expressa-se em o espaço romântico nunca aparecer como presente, ou seja, em o afastamento dever ser referenciado como a sua característica essencial — no entanto, um afastamento cuja escala é ganha no presente. Proximidade e distância, claridade e escuridão, dia e noite, sonho e realidade são os pontos de orientação do ponto romântico. No seu afastamento do presente temporal, a situação do espaço romântico aparece como passado, e como um passado colorido pelo sentimento reactivo (ressentiment) contra o estado vigente no momento. O afastamento do presente espacial apresenta-se como a fuga de um espaço completamente seguro e penetrado pela consciência, e daí que o número das paisagens românticas se dissolva numa relação proporcional com a marcha triunfal da técnica enquanto mais agudo meio da consciência. Ainda ontem elas talvez estivessem “longe, na Turquia”, ou na Espanha e na Grécia; ainda hoje, na zona de floresta virgem em torno do equador ou nas calotes polares; mas amanhã, as últimas manchas brancas deste mapa admirável da saudade humana terão desaparecido.

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Para nós, trata-se de saber que o admirável, naquele sentido que tão amorosamente sabe evocar o soar dos sinos medievais e o perfume de flores exóticas, pertence às evasivas do que foi submetido. O romântico tenta introduzir as valorizações de uma vida elementar, de cuja validade suspeita sem participar dela, e daí vem que o engano ou a desilusão não pode ficar de fora. Reconhece a incompletude do mundo burguês, ao qual, no entanto, não sabe contrapor nenhum outro meio senão a fuga. No entanto, quem for realmente vocacionado está, em cada hora e em cada lugar, no espaço elementar. Foi assim que vivenciámos o espectáculo de o triunfo do mundo burguês se expressar no desejo de criar parques de protecção natural em que o último resto do que é perigoso ou do que é extraordinário fosse conservado como curiosidade. Não há grande diferença entre a conservação dos últimos búfalos em Yellowstone-Park78 e a alimentação daquela classe de homens de todas as cores cuja tarefa consiste na ocupação com outros mundos. Do mesmo modo que o espaço romântico aparece no afastamento, com todas as características da miragem, assim a atitude romântica aparece como protesto. Mas há tempos em que qualquer relação do homem com o elementar surge como vocação romântica na qual já está prefigurado o ponto de ruptura. Depende do acaso se esta ruptura se torna visível como queda na distância, na embriaguês, na loucura, na miséria ou na morte. Tudo isto são formas de fuga em que o singular, depois de ter percorrido a circunvalação do mundo espiritual e corporal em busca de uma saída, depõe as armas. Por vezes, esta deposição das armas tem lugar na forma de um ataque, tal como se dispara às cegas de um navio a afundar-se, ainda uma vez, a um costado. Voltámos a aprender a reconhecer o valor dos sentinelas que caíram nos postos perdidos. Há muitas tragédias a que se liga um

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grande nome, e há outras, anónimas, através das quais são atingidas pelo irromper de gases venenosos, e roubadas ao ar da vida, inteiras camadas de gente. O burguês quase conseguiu persuadir o coração aventuroso de que o que é perigoso não está de todo presente e de que uma lei económica governa o mundo e a sua história. Aos jovens que deixam a casa dos pais de noite e no meio da névoa, diz o seu sentimento que nos temos de afastar até muito longe na busca do perigo, por mar até à América, para a legião estrangeira nas terras onde cresce a pimenta. Tornam-se assim possíveis fenómenos que quase não ousam falar a sua linguagem própria e superior, seja ela a do poeta que a si mesmo se compara ao albatroz, cujas poderosas asas, feitas para a tempestade, apenas são, num ambiente estranho e sem vento, um objecto de maçadora curiosidade, seja a do guerreiro nato que aparece como mandrião, pois a vida dos merceeiros enche-o de repugnância.

15. O rebentar da guerra mundial põe um largo e definitivo ponto final neste tempo. No júbilo dos voluntários que o saúdam está mais que a redenção de corações aos quais se manifesta, durante a noite, uma vida nova, mais perigosa. Esconde-se nele, ao mesmo tempo, o protesto revolucionário

contra

as

velhas

valorizações

cuja

validade

inexoravelmente passou. Corre a partir daqui um matiz novo, elementar, na corrente dos pensamentos, sentimentos e factos. Tornou-se desnecessário ocupar-se ainda com uma transmutação dos valores — é suficiente ver o novo e participar.

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N. do T.: Inaugurado em 1872, o Yellowstone National Park é a maior e mais antiga reserva natural dos Estados Unidos da América.

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A partir deste instante modifica-se também, de um modo muito estranho, a aparente congruência do espaço elementar com o espaço romântico. O protesto da camada activa, no mais profundo sentido, que age voluntariamente onde tudo o mais parece como que afectado pelo rebentar de uma catástrofe natural, refere-se certamente, à partida, na sua superficialidade ideal, ainda ao espaço romântico. No entanto, distingue-se do protesto romântico ao orientar-se, ao mesmo tempo, para um presente, para um indubitável aqui e agora. Assim, logo se torna claro que as fontes de força alimentadas pela distância ou pelo passado, como as da fantasia aventurosa ou as de um patriotismo convencional, se tornaram insuficientes. A realidade do combate exige outras reservas, e é uma diferença de dois mundos a que se manifesta entre o entusiasmo de uma tropa que vai para o campo e as suas acções no campo cheio de crateras de uma batalha de materiais. É por isso que também é impossível considerar este processo ainda a partir de uma qualquer perspectiva romântica. Para de algum modo poder participar dele, tem de se tomar parte de uma nova independência. O seu aparecimento exige o conhecimento de um outro pró e contra, diferente do que o que está contido nas categorias do século XIX. Manifesta-se aqui também muito claramente o alcance da permissão do protesto romântico. Está condenado ao niilismo, na medida em que existia como fuga, na medida em que existia como a contradição de um mundo a afundar-se e, deste modo, numa dependência incondicional dele. Mas na medida em que no meio dele se escondia uma parte da herança genuína e heróica, na medida em que no meio dele se escondia amor, ele chega, através do espaço romântico, à esfera do poder. Está aqui o mistério a partir do qual uma e a mesma geração pôde alcançar desfechos aparentemente contraditórios, ser despedaçada na guerra ou, através da grande proximidade da morte, do fogo e do sangue, tornar-se participante de uma saúde até agora nunca sentida. A

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guerra mundial não foi disputada apenas entre dois grupos de nações, mas também entre duas eras, e, neste sentido, há na nossa terra tanto vencedores como vencidos. Ao passo do protesto romântico para a acção, cuja característica já não é a fuga mas o ataque, corresponde a transformação do espaço romântico no espaço elementar. Este processo cumpre-se na medida em que o que é perigoso, que estava banido nas fronteiras mais afastadas, parece refluir em grande velocidade para os centros. Assim, é mais do que um acaso que o motivo para a guerra mundial se dê em torno da Europa, numa atmosfera de penumbra política. Em todas as tensões deste tempo, ficam fora as zonas tempestuosas que criam os primeiros relâmpagos. Mas doravante inflamam-se as áreas seguras da própria ordem, como pólvora para disparar que ficou muito tempo seca, e o desconhecido, o extraordinário, o que é perigoso não apenas se torna o habitual — torna-se também o permanente. Depois do armistício que só aparentemente terminou o conflito, mas na verdade cerca e mina todas as fronteiras da Europa com inteiros sistemas de novos conflitos, fica um estado em que a catástrofe aparece como o a priori de um pensar modificado. Correlativamente a este processo, o conceito de ordem torna-se doravante, no próprio velho sentido, um conceito romântico. O burguês vive de qualquer modo num bom velho tempo antes da guerra, e aparece como o homem que procura retirar-se de uma realidade completamente perigosa através da fuga para a segurança tornada utópica79. Prossegue os seus velhos esforços — como, numa inflação, ainda se usa durante um período de tempo a moeda habitual —, mas as suas valorizações perderam o seu curso; e, atrás de slogans como “tranquilidade e ordem”, “comunidade do povo”, “pacifismo”, “paz económica”, “entendimento”, em 79

Não é por acaso que hoje a segurança é exigida precisamente pelos chamados Estados vencedores, particularmente pela França enquanto poder burguês par excellence. A característica do real vencedor consiste, pelo contrário, em poder dispensar a segurança, isto é, em poder guardar protecção porque se a possui em abundância.

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suma, atrás do último apelo à razão do século XIX não se pode deixar de reconhecer uma atitude mais fraca — pertencem ao vocabulário da restauração burguesa, cujas constituições se assemelham aos tratados de paz ao serem estendidos como um véu fino e provisório sobre o prosseguimento intensificado dos armamentos. O que é perigoso, que apareceu sob o sinal do passado e da distância, domina agora o presente. Parece ter irrompido nele vindo de tempos primordiais e da amplidão dos espaços, como que sob o aspecto de um astro ameaçador cujo regresso dos abismos cósmicos se realizasse nos caminhos de uma legalidade desconhecida. Nem o espírito do progresso nem os esforços febris de uma camada dirigente, tremendo no seu íntimo diante da decisão, conseguiram evitar a entrada do combate, o qual, onde foi realmente travado, continua e continuará a aparecer, sem se reparar no aumento e aperfeiçoamento dos meios, como um combate do homem contra o homem. São estas as formas de um tempo originário que se julga ainda vivo apenas na recordação ou nas grandes florestas da América do Sul. Da terra despedaçada pelo fogo e embebida em sangue surgem espíritos que não se deixam encantar com o silêncio dos canhões; em vez disso, influenciam de um modo estranho todas as valorizações existentes e dão-lhes um sentido modificado. Tivessem uns reconhecido isto como uma recaída numa barbárie moderna, tivessem-no outros saudado como um banho de aço — o mais importante é ver que um afluente novo e ainda indomado de forças elementares se apoderou do nosso mundo. Sob a segurança enganadora da ordem envelhecida, que é apenas possível enquanto ainda existir o cansaço, estas forças estão demasiado próximas, são demasiado destruidoras, de tal modo que o simples olhar as poderia abarcar. A sua forma é a da anarquia, que, nos anos de uma assim chamada paz, surge nos bandos ardentes como um vulcão à superfície.

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Quem aqui ainda acreditar que este processo se deixa domar através de ordens de velho estilo pertence à raça dos vencidos, que está condenada ao aniquilamento. Dá-se antes a necessidade de novas ordens em que esteja incluído o extraordinário — de ordens que não estejam calculadas para a exclusão do que é perigoso, mas criadas por um novo casamento da vida com o perigo. Todos os sinais apontam para esta necessidade, e não pode deixar de ser reconhecido que, dentro de tais ordens, é ao trabalhador que está atribuída a posição decisiva.

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DENTRO DO MUNDO DO TRABALHO, A REIVINDICAÇÃO DA LIBERDADE SURGE COMO REIVINDICAÇÃO DE TRABALHO

16. Na grande proximidade da morte, do sangue e da terra, o espírito assume traços mais duros e cores mais vivas. A existência, em todas as suas camadas, está mais intensamente ameaçada, até àquele tipo de fome, quase caído no esquecimento, diante do qual falha qualquer regulamentação económica e que põe a vida diante da escolha entre o declínio e a conquista. Uma atitude que queira estar à altura destas decisões tem de, dentro de uma destruição cujo alcance ainda não se pode prever, alcançar aquele ponto a partir do qual a liberdade pode ser sentida. Às características da liberdade pertence a certeza de ter parte nos mais íntimos germes do tempo — uma certeza que dá asas admiráveis aos actos e aos pensamentos e na qual a liberdade do agente se reconhece como a expressão particular do necessário. Este reconhecimento, em que destino e liberdade se encontram como no fio da navalha, é o sinal de que a vida ainda está em jogo e de que se concebe como portadora de poder e responsabilidade históricos. Onde esta visão estiver presente, o irromper do elementar apresenta-se como um daqueles declínios em que se esconde uma passagem80. Quanto mais profunda e impiedosamente as chamas destroem a substância do passado, tanto mais movimentado, ligeiro e 80

N. do T.: É impossível manter a relação entre as duas palavras alemãs traduzidas por declínio e passagem: respectivamente Untergang e Übergang. O sentido é o de que há um declínio, um “caminho descendente” (Unter-gang), que se constitui como um “caminho de passagem” (Über-gang), dirigido para algo novo.

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sem contemplações será o novo ataque. A anarquia é aqui uma pedra de toque do indestrutível que, com luxúria, se experimenta dentro do aniquilamento — assemelha-se à confusão das noites cheias de sonhos, a partir das quais o espírito se eleva com novas forças para novas ordens. Mas que o regresso das inquebrantáveis paixões e dos impulsos fortes e imediatos se realize numa paisagem da mais intensa consciência, e que assim se torne possível um insuspeitado e ainda por experimentar aumento dos meios e das potências de vida de ambos os lados, tal é o que dá precisamente a este século o seu rosto mais próprio. Pela primeira vez de um modo claro, surge esta imagem — da qual um espírito profético procurava dar uma representação nas figuras da renascença — no soldado real e invencível da grande guerra, que, nos seus instantes decisivos, nos quais se lutou pelo novo rosto da terra, é concebido em igual medida como um ser do mundo originário e como o portador da mais fria e cruel consciência. Separam-se aqui as linhas da paixão e da matemática. Do mesmo modo que só agora, tarde e apenas através da força do poeta, pode ser mostrado que o acontecimento era pleno de sentido, no meio de um fogo infernal alimentado por instrumentos de precisão, além de todos os questionamentos e independentemente deles, é muito difícil reconhecer a referência essencial do trabalhador ao mundo do trabalho, do qual esta ígnea paisagem é a imagem simbólica guerreira. Não faltam de certo esforços para interpretar este mundo, mas não é nem de um tipo particular de dialéctica nem de interesse que se pode esperar esta interpretação. Todos estes esforços referem-se a um ser que também ainda abarca as suas asas mais externas. No entanto, é um espectáculo avassalador ver que intensidade de entendimento, que medida de fé, que soma de sacrifícios se consomem em combates parciais — um espectáculo que só aparece suportável sob o pressuposto de que qualquer destes ataques possui o seu papel dentro da operação

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conjunta. E cada golpe, por mais às cegas que seja dado, assemelha-se realmente a um golpe de cinzel que grava mais intensamente, a partir do indeterminado, um qualquer dos traços deste tempo anteriormente formados. A medida de carência e de perigo, a destruição dos antigos vínculos, a abstracção, a especialização e o ritmo de cada actividade desligam cada vez mais intensamente umas das outras as posições singulares e alimentam no homem o sentimento de estar perdido numa densa floresta impenetrável de opiniões, acontecimentos e interesses. Aquilo que aqui aparece como sistemas, profecias e exigências de fé assemelha-se ao relampejar de projectores, em que se dividem fugazmente luz e sombras e que, logo depois, deixa atrás de si uma insegurança maior, trevas mais profundas. Tudo isto são novos tipos de divisões a que a consciência submete o ser e através das quais, no fundo, pouco é mudado. Às vivências espantosas pertence a familiaridade com os assim chamados espíritos condutores do tempo, e com a elevada medida em direcção e legalidade que o tempo, apesar destes espíritos, possui. Pois, apesar de tudo, na base desta confusão está um denominador comum cuja essência é certamente muito diferente daquilo que uma simples vontade de entendimento sonha. A fé no sentido deste nosso mundo não é apenas uma necessidade que na sua linha não precisa de enfraquecer a posição de combate, seja ela qual for, mas, pelo contrário, é a necessidade que reivindica para si as reais forças do tempo — é também a característica de qualquer atitude que ainda possua um futuro. Que certamente a segurança, no meio de um aparente estado puramente dinâmico, no qual não se pode reconhecer nenhum eixo, é mais difícil de alcançar do que antes, tal é verdade e é, numa era humana de presunção enganadora e de poses de força, digno de louvor. A liberdade não pode ser sentida nos pontos de padecimento, mas nos da actividade, da mudança activa do mundo. Mesmo que os

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portadores da força real possam estar divididos — cada um deles tem, às vezes, de perseguir a certeza de que, para além das relações empíricas, para além dos interesses, está ligado o mais profundamente possível ao seu espaço e ao seu tempo. Esta participação, esta estranha e dolorosa felicidade de uma existência se tornar participante na duração de instantes, é o sinal de que ela não apenas pertence à matéria da natureza, mas também à da história — de que ela reconhece a sua tarefa. Esta pertença à obra, de certo, toca tão duramente nas fronteiras, tão duramente nas margens em que a força criadora corre para a articulação espacio-temporal, que só se pode torná-la intuível em imagens a grande distância.

17. Assim, talvez em nenhuma parte mais claramente do que na contemplação de ruínas, que nos são deixadas como testemunhos de unidades de vida que se afundaram, o espírito seja tocado pelo significado da obra. Não é apenas a destruição cujo triunfo desperta a pergunta pelo indestrutível — pelo secreto conteúdo destas oficinas há muito abandonadas, cujo significado, como muito bem sentimos, não pode, no entanto, perder-se. De algum modo, o ruído daqueles tempos parece, vindo de uma grande distância, penetrar no silêncio que circunda os seus símbolos despedaçados, tal como o sussurro do mar se mantém nas conchas dos búzios que as vagas deitaram fora. É um ruído que sabemos muito bem perceber, precisamente nós cuja pá escava em busca dos restos de cidades das quais até os nomes entraram no esquecimento. Estas pedras, que estão escondidas sob a hera ou sob a areia do deserto, não são apenas um monumento do poder dos poderosos, mas também do trabalho anónimo, do mais pequeno gesto, que aqui se

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realizou. Em cada uma delas entrou o alarido de pedreiras esquecidas, os perigos de rotas terrestres e marítimas desaparecidas, a turba das cidades portuárias, os planos dos mestres de obra e o peso do trabalho forçado, o espírito, o sangue e o suor de raças que há muito passaram. São uma imagem simbólica da unidade de vida mais profunda, que o dia só raramente manifesta. É por isso que qualquer espírito que possua uma relação à história se sente atraído por estas cidades diante das quais se cruzam estranhamente a tristeza e o orgulho: a tristeza pela fugacidade de todos os esforços; o orgulho pela vontade que, apesar disso, sempre de novo nos seus símbolos procura expressar que pertence ao imperecível. Mas esta vontade também vive em nós e na nossa actividade.

18. Procuremos o retrato da vontade, que, nas fronteiras do tempo, como que aparece diluído e purificado dos jogos e contra-jogos das intenções, também nas fronteiras do espaço. As grandes cidades em que vivemos existem, na nossa representação, com justiça como os focos de todos os opostos que são pensáveis. Dois arruamentos podem ser distanciados um do outro como o Pólo Norte e o Pólo Sul. A frieza das relações entre singulares, entre os transeuntes, é extraordinária. Há aqui o lucro, o divertimento, o tráfego, o combate pelo poder económico e político. Cada edifício está construído por uma decisão determinada e para um fim determinado. Os estilos intercalaram-se de diversos modos uns com os outros; os velhos lugares de culto estão circundados por estações e armazéns, nos subúrbios ainda há quintas dispersas aqui e ali pela rede de fábricas, locais de desporto e bairros residenciais.

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Bem, este todo deixa-se abordar de diversos modos, sempre de acordo com os meios e com os questionamentos pelos quais isso acontece. É sem dúvida um local de produção, também de consumo, de exploração, de relações sociais, de ordem, de crime ou ainda do que mais se quiser. Cada

uma

das

ciências

singulares,

ligadas

entre

si

funcionalmente, consegue colocar os seus conceitos como denominador sob este mecanismo, e surgem diariamente novas ciências, sempre de acordo com aquilo que é preciso. Para o sociólogo, o todo é sociológico; para o biólogo, biológico; para o economista, económico em cada pormenor, desde os sistemas do pensar até à moeda de um centavo. Este absolutismo é o privilégio incontestável da intuição conceptual — sendo pressuposto que os conceitos são formados puramente em si, isto é, segundo as leis da lógica. Independentemente disto, numa tal cidade vivem milhões de homens que conseguem julgar a sua situação menos através da intuição abstracta do que através da intuição imediata — de correlativa variedade são os enunciados sobre o para quê da sua existência. Finalmente, também se dão aqui não apenas muitos e quaisquer princípios para a penetração artística, mas todos estes contributos para a comédia humana podem acontecer, por seu lado, segundo as diferentes receitas das escolas idealista, romântica ou materialista. Mas basta — as infinitas possibilidades de diferenciação são demasiado conhecidas. Na medida em que uma força sabe renunciar a elas, anuncia o alcance das suas reivindicações. Representemo-nos então esta cidade a uma distância maior do que a que conseguimos alcançar até agora com os nossos meios — de um modo semelhante a como se ela fosse observada por telescópio da superfície da Lua. A uma tão grande distância, fundem-se umas nas outras as diferenças dos objectivos e dos fins. A participação do observador torna-se, de algum modo, ao mesmo tempo mais fria e mais

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ardente, mas em todo o caso diferente da relação que o singular possui lá em baixo, como parte do todo. Aquilo que talvez seja visto é a imagem de uma estrutura particular, da qual se deve adivinhar, a partir de variados sinais, que se alimenta dos sucos de uma grande vida. O pensamento da sua diferenciação está aqui tão afastado como geralmente está afastado do singular ver-se microscopicamente, isto é, ver-se como uma soma de células. A um olhar que esteja separado por uma distância cósmica dos jogos e contra-jogos dos movimentos, não pode escapar que aqui uma unidade criou o seu retrato espacial. Este modo de observação diferencia-se dos esforços para conceber a unidade da vida na sua mais superficial possibilidade, nomeadamente como adição, ao captar a forma criadora, a obra, que se dá apesar de todas as oposições ou com a sua ajuda.

19. Sabemos certamente que não é dado ao homem observar o seu tempo com os olhos de um arqueólogo a quem o seu sentido secreto se manifestasse como que na visão de uma máquina eléctrica ou de uma máquina de tiro rápido. Nem sequer somos astrónomos aos quais o nosso espaço se apresente como forma de uma geometria que torna imediatamente inequívocas as forças e contra-forças de um sistema de coordenadas escondido. A atitude do singular é antes dificultada por ele mesmo ser contrário, isto é, por ele mesmo se encontrar na posição mais avançada do combate e do trabalho. Manter-se dentro desta posição e, no entanto, não se esgotar nela; ser não apenas material, mas, ao mesmo tempo, portador do destino; conceber a vida não apenas como campo do necessário, mas, ao mesmo tempo, da liberdade — tal é uma capacidade

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que já foi caracterizada como o realismo heróico. Esta faculdade, este real luxo de uma estirpe ameaçada pelo extraordinário, está na base de um estranho espectáculo no qual o nosso tempo nos deixa participar: que no meio de um espaço cheio de hostilidade anárquica comece a crescer uma camada dirigente unida. Na medida em que o singular se sente pertencente ao mundo do trabalho, a sua concepção heróica da realidade manifesta-se em ele conceber-se como representante da figura do trabalhador. Indicámos esta figura como o mais íntimo portador, como a substância nuclear simultaneamente activa e passiva deste nosso mundo, completamente diferente de qualquer possibilidade de outro tipo. Da secreta vontade de representar esta substância explica-se a manifesta congruência das ideologias em uso, tal como o combate moderno pelo poder as desenvolveu em variados matizes. Assim, quase não há movimento que pudesse

renunciar

à

reivindicação

de

ser

um

movimento

de

trabalhadores, não há nenhum programa no qual a palavra “social” não possa ser descoberta nas primeiras frases. Tem de ser visto que aqui, para além daquela mistura de economia, compaixão e submissão, para além dos sentimentos reflectidos dos deserdados, começa a anunciar-se uma vontade de poder cada vez mais clara, ou antes que há muito está presente uma nova realidade que, no combate, aspira à sua expressão inequívoca em todas as áreas da vida. A diversidade das formulações com que a vontade ensaia é insignificante diante do facto de que só há uma forma na qual em geral se pode querer. Aos ardilosos caçadores de votos, aos merceeiros da liberdade, aos palhaços do poder, que só conseguem conceber o sentido como fim e a unidade como número, perturba uma obscura suspeita daquela nova grandeza como a qual a liberdade tem de surgir no meio do mundo do trabalho. Mas como estão completamente dependentes do esquema moral de uma cristandade corrompida, em que o próprio trabalho

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aparece como mau e que traduz a fuga bíblica na relação material entre exploradores e explorados, mostram-se como incapazes de ver a liberdade de outro modo que não como um negativo, como a redenção de quaisquer males que sejam. Mas nada é mais elucidativo do que, dentro de um mundo no qual o nome do trabalhador possui o significado de uma marca de dignidade e o trabalho é concebido como a sua mais íntima necessidade, a liberdade se apresentar como expressão precisamente desta necessidade, ou, por outras palavras, do que qualquer reivindicação de liberdade aparecer como uma reivindicação de trabalho. Só quando vem à luz a reivindicação de liberdade nesta acepção se pode falar de um domínio, de uma era do trabalhador. Pois não se trata de uma nova camada política ou social tomar o poder, mas de uma nova humanidade, igual a todas as grandes figuras históricas, encher com pleno sentido o espaço do poder. Daí que tenhamos recusado ver no trabalhador o representante de um novo estado, de uma nova sociedade, de uma nova economia, pois ele ou é nada ou é mais, ou seja, ele é o representante de uma figura peculiar, que age segundo leis próprias, que segue uma vocação própria e que participa de uma liberdade particular. Do mesmo modo que a vida cavaleiresca se manifestava em qualquer pormenor da atitude de vida se basear no sentido cavaleiresco, assim a vida do trabalhador é ou autónoma, expressão de si mesma e, assim, domínio, ou não é nada senão um desejo de participação em direitos poeirentos, na fruição, tornada insípida, de um tempo que passou. Para poder conceber isso, tem de se ser capaz de uma outra concepção do trabalho diferente da até agora. Tem de se saber que, numa era do trabalhador, se esta usa com justiça o seu nome e não como todos os partidos hodiernos se caracterizam como partidos de trabalhadores, nada pode haver que não seja concebido como trabalho. O trabalho é o ritmo do punho, dos pensamentos, do coração, a vida de

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dia e de noite, a ciência, o amor, a arte, a fé, o culto, a guerra; o trabalho é a oscilação do átomo e a força que move as estrelas e os sistemas solares. Mas tais reivindicações, e muitas outras sobre as quais ainda se falará, em particular a reivindicação de dar um sentido, são a característica de uma camada de senhores em crescimento. O questionamento de ontem era: como ganha o trabalhador participação na economia, na riqueza, na arte, na formação, na grande cidade, na ciência? Mas amanhã será: como têm de parecer todas estas coisas no espaço de poder do trabalhador, e que significado lhes será atribuído? Assim qualquer reivindicação de liberdade só é possível, dentro do mundo do trabalho, enquanto aparecer como reivindicação de trabalho. Tal significa que a medida da liberdade do singular corresponde exactamente à medida na qual ele é trabalhador. Ser trabalhador, ser representante de uma grande figura que entra na história, significa: tomar parte numa nova humanidade, destinada ao domínio pelo destino. É então possível que esta consciência de uma nova liberdade, a consciência de estar no lugar decisivo, possa ser sentida tanto no espaço do pensar como atrás de máquinas sibilantes e na turba de cidades mecânicas? Não apenas possuímos sinais de que isso é possível, mas também acreditamos que isso é o pressuposto de qualquer intervenção real e que é precisamente aqui que está o ponto decisivo de mudanças com as quais jamais um redentor se permitiu sonhar. No mesmo instante em que o homem se descobre como senhor, como portador de uma nova liberdade, seja isso em que situação for, as suas relações tornam-se outras desde a raiz. Quando isto for concebido, muitas coisas que ainda hoje são desejáveis aparecerão como nada. É de prever que, num mundo do trabalho puro, os pesos do singular não diminuirão, mas até crescerão — mas, ao mesmo tempo, forças completamente diferentes ficarão livres para vencê-los. Uma nova consciência de liberdade coloca novas relações hierárquicas, e aqui

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esconde-se uma felicidade mais profunda, uma felicidade mais equipada para a renúncia, se se deve em geral falar de felicidade.

20. Onde, no meio das mais extremas privações, cresce o sentimento para as grandes tarefas da vida — e este sentimento, do qual procurámos dar algumas imagens, está em crescimento —, preparam-se coisas extraordinárias. Este cultivo rigoroso de uma estirpe que se forma no deserto de um mundo completamente racionalizado e moralizado sugere a comparação com o desenvolvimento do prussianismo. Deve-se dizer que o conceito prussiano de dever, no seu carácter inteligível, se deixa abrigar completamente no mundo do trabalho, mas que a medida das reivindicações

que

aqui

são

feitas

ainda

é

de

um

alcance

significativamente maior. Não é por acaso que a filosofia prussiana pode ser apontada em todo o lado onde no mundo se podem observar novos esforços. No conceito prussiano de dever cumpre-se a domesticação do elementar, tal como nos entrou na memória no ritmo das marchas, na condenação à morte do herdeiro da coroa, nas batalhas grandiosas que tinham de ser ganhas com uma nobreza amansada e com mercenários adestrados. No entanto, o único herdeiro possível do prussianismo, o trabalho81, não exclui o elementar, mas inclui-o; passou pela escola da anarquia, pela destruição dos antigos vínculos e, por isso, tem de executar a sua reivindicação de liberdade num novo tempo, num novo espaço e através de uma nova aristocracia.

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N. do T.: O termo traduzido aqui por trabalho é Arbeitertum. O trabalho (Arbeitertum), oposto à burguesia (Bürgertum), é então herdeiro do prussianismo (Preußertum).

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A peculiaridade e o alcance deste processo estão dependentes da relação do trabalhador ao poder.

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O PODER COMO REPRESENTAÇÃO DA FIGURA DO TRABALHADOR

21. A prova da validade universal da vontade de poder está dada anteriormente — num trabalho que também soube minar até os mais profundos caminhos de uma moral de velho estilo e defraudar ainda qualquer uma das suas astúcias. Este trabalho tem dois rostos, na medida em que, por um lado, pertence a um tempo que ainda dá valor à descoberta de verdades universais e que, por outro lado, para além disso, reconhece a própria verdade como uma expressão da vontade de poder. Cumpre-se aqui a explosão decisiva; mas como seria possível à vida viver mais do que um instante fugaz neste ar mais forte e mais puro, mas ao mesmo tempo mortal, de um espaço pan-anarquista, deter-se diante deste mar “de forças em si mesmas tempestuosas e a crescer”, sem, logo depois, se lançar na mais dura rebentação como portadora de uma muito determinada vontade de poder, que possui um modo próprio e objectivos próprios? Nada é mais apropriado para favorecer uma moral guerreira da mais elevada dignidade do que o aspecto violento de um mundo que se encontra numa revolta ininterrupta. Mas agora ergue-se a pergunta pela legitimação, por uma referência ao poder particular e necessária, mas de modo nenhum conforme à vontade, referência essa que também se pode assinalar como encargo.

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É precisamente esta legitimação que deixa aparecer um ser já não com um poder puramente elementar, mas como poder histórico. A medida de legitimação decide sobre a medida de domínio que pode ser alcançada pela vontade de poder. Chamamos domínio a um estado no qual o espaço de poder ilimitado é referido a um ponto a partir do qual aparece como espaço do direito. A pura vontade de poder, pelo contrário, possui tão pouca legitimação como a vontade de fé — não é a plenitude, mas um sentimento de falta que se expressa em ambas estas atitudes, nas quais o romantismo se despedaçou em si mesmo.

22. Há tão pouco um poder abstracto como há uma liberdade abstracta. O poder é um sinal da existência, e, correlativamente, também não há quaisquer meios de poder em si, mas os meios obtêm o seu significado através do ser que deles se serve. Na era do domínio aparente burguês, ou já não se pode ou ainda não se pode falar de poder. A desintegração do Estado absoluto pelos princípios

universais

aparece

como

um

acto

grandioso

de

enfraquecimento e desvalorização de um mundo formado. Visto por uma perspectiva modificada, esta terraplanagem de todas as fronteiras apresenta-se, no entanto, como um acto da Mobilização Total, como a preparação do domínio de grandezas novas e diferentes, cuja emergência não se fará notar. Na história das descobertas geográficas e cosmográficas, naquelas invenções cujo mais secreto sentido se manifesta como uma furiosa vontade de omnipotência, omnipresença e omnisciência, uma furiosa vontade da mais ousada eritis-sicut-Deus, o espírito como que se precipitou para além de si, para acumular um material que aguarda pela

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ordem e por uma poderosa penetração. Surgiu assim um caos de factos, meios de poder e possibilidades de movimentos que está pronto como instrumentário para um domínio de grande estilo. A autêntica razão do sofrimento do mundo, que cresceu muito, que se tornou muito universal, está em um tal domínio ainda não estar realizado e em vivermos, por isso, num mundo em que os meios aparecem como mais significativos que o homem. No entanto, todas as confrontações, todos os combates que observámos no seio dos povos e entre povos, assemelham-se a tarefas como cujo resultado é esperado uma nova e mais decisiva espécie de poder. A última fase, ainda não encerrada, do decurso do velho mundo consiste em cada uma das suas forças se procurar armar com reivindicações imperialistas. Tais reivindicações são hoje feitas não apenas por nações e por cultos, mas também por formações espirituais, económicas e técnicas de tipo muito diferenciado. Deve-se observar de novo aqui como a era do liberalismo criou os pressupostos para estes esforços de um tipo completamente novo. De uma instrução formal que coloca certos valores como universalmente válidos aproveitaram-se forças muito diferenciadas e, em parte, muito estranhas ao liberalismo — formou-se aqui um medium que dá à linguagem um grande alcance. Esta metódica moderna não se pode nem sobrevalorizar nem subvalorizar: é correctamente avaliada quando se vê nela uma nova táctica, cujas formas só ganham objectivo e conteúdo através do poder que delas se serve. O eterno erro da insuficiência consiste em ela cuidar de levar a sério estas formas em si. Daí que a palavra da tomada do poder pertença às frases atrás das quais se esconde de preferência a incapacidade de uma vida enfraquecida. Nada é mais apropriado a manifestar esta incapacidade do que um estado que a leva à posse dos meios de poder. Onde se dá um estado de puro movimento, de insatisfação demasiado fácil, emerge sempre o poder como o objectivo de todos os

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objectivos, como a panaceia dos mercadores de ópio políticos. No entanto, o poder não é, tão pouco como o é a liberdade, uma grandeza que pode ser captada em qualquer lugar no espaço vazio, ou com a qual qualquer nada consegue pôr-se em relação de qualquer maneira. Ele está antes numa ligação inseparável com uma unidade de vida sólida e determinada, com um ser indubitável — é precisamente a expressão de um tal ser que aparece como poder e sem a qual a condução das insígnias não possui nenhum significado. Neste sentido, num real movimento de trabalhadores, o poder substancial que está dentro dele é muito mais importante do que o combate por um poder abstracto, cuja posse ou não posse é tão inessencial como uma liberdade abstracta. Que o trabalhador assume realmente uma posição decisiva, tal pode-se concluir de hoje qualquer grandeza que possua vontade de poder se procurar colocar numa relação com ele. Assim, há partidos de trabalhadores, movimentos de trabalhadores, governos de trabalhadores de variados tipos. Mais do que uma vez se vivenciou, no nosso tempo, que

o

trabalhador

“conquistou

o

Estado”.

Este

espectáculo

é

insignificante se, como o seu resultado, vier à luz uma fortificação da ordem

burguesa

e

uma

última

infusão

dos

princípios

liberais.

Experiências deste tipo, por um lado, apontam para que aquilo que hoje se compreende como poder estatal não possua qualquer carácter existencial; mas, por outro lado, deve-se concluir delas que o trabalhador ainda não se concebeu na sua alteridade. No entanto, é precisamente esta alteridade, este ser peculiar do trabalhador que assinalámos como a sua figura, que é muito mais significativa do que aquela forma do poder que em geral não deve ser querida. Este ser é poder num sentido completamente diferente, é o capital original que se introduz no Estado como no mundo e que cunha as suas próprias organizações, os seus próprios conceitos.

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O poder dentro do mundo do trabalho não pode, por isso, ser outra coisa do que representação da figura do trabalhador. Está aqui a legitimação de uma vontade de poder particular e de um novo tipo. Reconhece-se esta vontade em ela ser a senhora dos seus meios e armas de ataque, e em ela não possuir nenhuma relação a eles que seja derivada, mas uma relação substancial. Tais armas não precisam de ser novas; uma força original mostra-se antes precisamente em descobrir no que é conhecido reservas insuspeitadas. Um poder legitimado pela figura do trabalhador, na medida em que aparece como linguagem, tem de deparar com o trabalhador como com uma camada completamente diferente do que como pode ser captado através das categorias do século XIX. Ele tem de deparar com aquela humanidade que concebe a sua reivindicação de liberdade como reivindicação de trabalho e que possui já sentido para uma nova linguagem de comando. Já a mera presença de uma tal espécie humana, já o mero emprego de uma tal linguagem, é mais ameaçador para o Estado liberal do que o inteiro jogo do aparato social, que nunca eliminará o liberalismo até porque pertence às suas invenções. Qualquer atitude à qual esteja dada uma relação real ao poder também se deixa reconhecer em ela conceber o homem não como o objectivo, mas como um meio, como o portador tanto do poder como da liberdade. O homem desdobra a sua suprema força, desdobra o domínio por todo o lado onde está ao serviço. O mistério da linguagem de comando genuína é que ela não faz promessas, mas põe exigências. A mais profunda felicidade do homem consiste em ser sacrificado; e a suprema arte do comando, em indicar objectivos que sejam dignos do sacrifício. A existência de uma nova humanidade é um capital que ainda não foi reivindicado. Esta humanidade é a mais intensa arma de ataque, o meio de poder supremo que está à disposição da figura do trabalhador.

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O manejo seguro, a aplicação precisa deste meio de poder é uma inconfundível característica de estar em obra uma nova arte estatal, uma nova estratégia.

23. Do mesmo modo, os meios de destruição através dos quais a figura do trabalhador se circunda com uma zona de aniquilamento possuem a dignidade de armas de ataque, sem eles mesmos estarem submetidos ao seu efeito. Pertencem aqui os sistemas de um pensar dinâmico, orientados contra as áreas de uma fé enfraquecida, nas quais se tornou impotente a espada do Estado, se apagou o fogo da Inquisição. Qualquer instinto genuíno pode ser reconhecido em ele conceber que não se pode tratar aqui, no fundo, nem de novos conhecimentos nem de uma nova conformidade a fins, mas que é a pergunta de um novo domínio que, em todas as áreas da vida, está em jogo. Esta pergunta já está decidida em sentido negativo, de tal modo que os limites ao verdadeiro poder estão fechados a todas as forças excepto uma única. Deve-se bem diferenciar entre uma zona na qual se é objecto ou sujeito de destruição, e uma outra na qual se é superior à destruição. Deve-se observar aqui que é precisamente a aparente validade universal de um estado de força que está à altura dela que joga com meios de poder particularmente perigosos. Este jogo pertence àqueles nos quais aparentemente pode ganhar qualquer jogador participante, mas na realidade só o banco. Tem de se saber isto, quando se quiser apreciar estados concretos do pensar dinâmico, como a técnica, na sua dignidade de poder. Também a técnica é aparentemente uma área universalmente válida, neutra, que dá entrada a qualquer força que seja. Visto

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formalmente, não há diferenças se um homem privado, com vontade de lucro, adquirir uma fábrica de máquinas, se uma cabana ou um palácio forem equipados com ligação eléctrica, se uma encíclica papal se servir da rádio ou se um povo de cor produzir teares mecânicos e lançar couraçados à água. No entanto, aquilo que se esconde atrás destas alterações, sobre cujo ritmo nos cansámos de espantar, são questões completamente diferentes das da praxis ou do conforto. Falar do percurso de vitória da técnica é um resto da terminologia do iluminismo. Pode passar, se se vê os cadáveres que este percurso deixa atrás de si no seu caminho. Não há uma técnica em si, como não há uma razão em si; cada vida tem a técnica que lhe é adequada, que lhe é inata. A recepção de uma técnica estranha é um acto de submissão, cujas consequências são tanto mais perigosas quanto este se cumpre, à partida, no espírito. Aqui, a perda tem necessariamente de ser maior do que o ganho. A técnica de máquinas deve ser concebida como o símbolo de uma figura particular, a do trabalhador — se alguém se servir das suas formas faz o mesmo que se assumisse o ritual de um culto estranho. Explica-se também a partir daqui que por todo o lado onde a técnica deparou com o resto dos três velhos, dos três “eternos” estados, ainda conservados sob o tecto burguês, fosse particularmente decidida a resistência contra a penetração das suas formas. Cavaleiros, sacerdotes e camponeses bem adivinhavam que aqui havia mais a perder do que o burguês em geral podia suspeitar — daí que não seja pouco atractivo seguir o seu combate, que frequentemente toca o tragicómico. Mas o capricho daquele general de artilharia, que queria saber disparada a salva de honra sobre o seu túmulo não por canos estriados mas pelas velhas espingardas carregadas pela boca, tinha o seu bom sentido. O soldado real só de má vontade empunha os novos meios de guerra que a técnica lhe põe à disposição. Nos exércitos modernos, armados com os últimos meios técnicos, já não esgrima uma classe guerreira pertencente

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a um estado que se serve destes meios técnicos, mas estes exércitos são a expressão guerreira que a figura do trabalhador se concede. De modo semelhante, nenhum sacerdote cristão podia duvidar de que numa chama eterna que se substitui por uma lâmpada eléctrica não se deve ver uma questão sacral, mas uma questão técnica. Mas se, como vimos, não há de todo questões puramente técnicas, está fora de questão que aqui estejam em jogo sinais estranhos. Daí que o estado sacerdotal possua um instinto ainda mais profundo onde identifica o reino da técnica com o reino de Satã do que onde põe o microfone junto do corpo de Cristo. Do mesmo modo, já não se pode falar em geral de um estado campesino onde o camponês se serve da máquina. A indolência deste estado, frequentemente pintada de um modo supersticioso, sobre a qual muitas vezes se lamentaram os químicos agrários, os mecânicos e os economistas políticos do século XIX, não brota de uma falta de sentido económico, mas do daltonismo inato para um modo muito determinado de economia. Chegou-se assim a que frequentemente as quintas e plantações nas áreas coloniais sejam exploradas com máquinas às quais ainda está fechado o campo que faz fronteira com a fábrica que produz estas máquinas. O camponês que, em vez de com cavalos, começa a trabalhar com forças de cavalos a vapor, já não pertence a nenhum estado. Ele é trabalhador sob condições particulares, e actua na destruição da ordem dos estados tanto como os seus antepassados que imediatamente se entregaram à indústria. O novo questionamento ao qual se vê submetido consiste para ele, não menos do que para o trabalhador industrial, em representar a figura do trabalhador ou em desaparecer. Encontramos aqui novamente confirmado que por trabalhador não se deve compreender nem um estado, no velho sentido, nem uma classe, no sentido da dialéctica revolucionária do século XIX. Pelo contrário, as reivindicações do trabalhador ultrapassam todas as

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reivindicações dos estados. Em particular, nunca se chegará a resultados claros se pura e simplesmente se identificar o trabalhador com a classe dos trabalhadores industriais. Isso é, em vez de ver a figura, satisfazer-se com um dos seus fenómenos — a consequência tem de ser um olhar turvo para as reais relações de poder. A verdade é que se viu no trabalhador industrial uma gente particularmente endurecida, através de cuja existência se tornou sobretudo clara a impossibilidade de prosseguir a vida nas velhas formas. Pô-la no sentido de uma política de classes de velho estilo não significa então outra coisa do que, onde se trata de decisões últimas, esgotar-se em resultados parciais. Estas decisões pressupõem uma relação mais fria e mais ousada ao poder, a qual passou pelos sentimentos reflexos dos subjugados e pelo amor às coisas envelhecidas, e os superou.

24. O globo terrestre está coberto pelos escombros de imagens despedaçadas. Participamos no espectáculo de um declínio que só se pode comparar com catástrofes geológicas. Seria perder tempo, tomar parte no pessimismo dos destruídos ou no optimismo superficial dos destruidores. Num espaço esvaziado de qualquer domínio real até aos últimos limites, a vontade de poder está atomizada. No entanto, a era das massas e das máquinas apresenta a forja gigantesca de um império em crescimento, a partir do qual qualquer declínio aparece como querido, como preparação. A aparente validade universal de todos os estados cria um medium ilusório que empurra invisivelmente para o chão os subjugados e os torna, onde eles julgam escolher ou mesmo enganar, nos objectos de uma vontade ainda impessoal. Os meios de poder, que facilmente, tão facilmente, estão à disposição de qualquer força, tornam todos os pesos,

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com uma segurança diabólica, mais opressores, e pelo menos em relação à validade universal do sofrimento não pode haver dúvida. No entanto, o sítio em que não se pega pela lâmina e a partir do qual a dominação destes meios é possível não é universalmente acessível. Esta dominação é muito diferente do mero uso. É a característica do domínio, da vontade de poder legitimada. A realização deste domínio é da maior importância para todo o mundo, apesar de só num ponto poder ser bem sucedida. Só a partir de um tal ponto se podem resolver aquelas questões de segundo plano, que hoje aparecem ao homem como as mais importantes precisamente porque nelas a falta de domínio vem à luz com os sintomas do sofrimento. A regulamentação das funções da economia e da técnica mundiais, a produção e distribuição dos bens, a limitação e partilha das tarefas nacionais pertencem aqui. Compreende-se

que

uma

nova

ordem

mundial,

como

consequência do domínio mundial, não se dê como um presente do céu ou como produto de uma razão utópica, mas que passa pelo caminho do trabalho de uma cadeia de guerras e de guerras civis. O armamento extraordinário que em todos os espaços e em todas as áreas da vida se pode observar mostra que o homem está disposto a realizar este trabalho. É isto que enche de esperança a quem quer que ame, no mais íntimo, o homem. É de sintomático valor que hoje se procure dar o sinal da revolução no combate pelo poder dentro dos Estados, e o sinal da revolução mundial nos confrontos dos Estados entre si, na medida em que se se coloca em referência ao trabalhador. Tem de se evidenciar quais das múltiplas manifestações da vontade de poder que se sentem chamadas possui legitimação. O atestado desta legitimação consiste na dominação das coisas que se tornaram desmedidas — na domesticação do movimento absoluto que só se pode realizar através de uma nova humanidade.

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A nossa crença é que uma tal humanidade já está presente.

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A RELAÇÃO DA FIGURA AO MÚLTIPLO

25. Até agora, no decurso da exposição, tratou-se de veicular uma suspeita do modo como uma figura se começa a assinalar na substância humana. Há ainda a dizer algumas palavras sobre o sentido a partir do qual uma tal tarefa se concebe como necessária e a cujas fronteiras se tem de limitar. Este sentido, em primeiro lugar, não pode ser procurado no prosseguimento de um interesse particular. Não se trata então de acrescentar às múltiplas representações que o trabalhador até agora encontrou, e que ainda encontrará, mais uma representação que erga, segundo o modelo habitual, a reivindicação de verdade e de um carácter decisivo particulares, para retirar para si uma parte das forças de fé e de vontade que hoje por todo o lado estão livres. Tem antes de se saber que uma tal figura está além da dialéctica, apesar de alimentar a dialéctica a partir da sua substância e de a abastecer com conteúdos. Ela é, no sentido mais significativo, um ser, e isso expressa-se em relação ao singular de tal modo que ele ou é trabalhador ou não é ele — completamente insignificante é, pelo contrário, a mera reivindicação de sê-lo. Esta é a questão de uma legitimação que escapa tanto à vontade como também ao conhecimento, para não falar de indicações sociais ou económicas. Mas do mesmo modo que não se pode chegar a representar uma qualquer facção política como instância decisiva, também não se pode

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compreender atrás da palavra “trabalhador” uma circunscrição do todo, da comunidade, do bem-estar do povo, da ideia, do orgânico, ou como ainda se possam chamar aquelas grandezas com as quais o espírito julga alcançar, sobretudo na Alemanha, os seus triunfos quietistas sobre a realidade. Tal é um vocabulário dos mestres vidreiros, do qual se pode fazer uso se as coisas estiverem em ordem. Contudo, uma nova imagem do mundo não se mostra por as oposições se desvanecerem, mas por elas se tornarem mais implacáveis e por cada âmbito, mesmo o âmbito mais longínquo, ganhar um carácter político. Que atrás da plenitude dos confrontos se esconda o esboço de uma figura emergente — isso não se deve reconhecer em os parceiros se unirem, mas em os seus objectivos se tornarem muito semelhantes, de tal modo que cada vez mais inequivocamente só há uma orientação na qual em geral se pode querer. Tal não significa, para quem quer que não se saiba satisfazer com a pura observação, nenhuma dissolução do conflito, mas uma intensificação. Torna-se mais estreito o espaço no qual se se tem de afirmar. Daí que não se seja superior às facções partidárias na medida em que se se retira delas, mas na medida em que se as utiliza. Uma força real não aplica a vantagem de que dispõe a contornar as oposições, mas a passar através delas. Não se reconhece em descansar ao Sol no sentimento da supremacia, a partir do alto observatório de um todo ilusório, mas em esforçar-se por procurar o todo no combate e em voltar a emergir a partir das facções partidárias, nas quais qualquer mínima capacidade se consome e decai. Na vantagem, na desmesura, trai-se a referência à figura, uma referência que, vista temporalmente, é sentida como relação ao futuro. É esta vantagem que aparece, aquém da zona de combate, como íntima certeza e, no seu diâmetro, como domínio. Está aqui também, dentro dos Estados e dentro dos Impérios, a raiz da justiça que apenas pode ser exercida por forças que sejam mais do que partido, mais do que

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nação, mais do que grandezas particularizadas e delimitadas — ou seja, por forças às quais está dado um encargo. Daí que se tenha de tornar claro de onde é que se se recebe o seu encargo.

26. Em segundo lugar, em relação à figura, é preciso libertar-se do pensamento do desenvolvimento, o qual penetra completamente a nossa era em nada menos do que o seu modo de observação psicológico e moral. Uma figura é, e nenhum desenvolvimento a acrescenta ou diminui. A história do desenvolvimento não é por isso história da figura, mas, no máximo, o seu comentário dinâmico. O desenvolvimento conhece o início e o fim, o nascimento e a morte, dos quais a figura está privada. Do mesmo modo que a figura do homem era antes do nascimento e será depois da morte, uma figura histórica é, no mais profundo, independente do tempo e das mudanças das quais parece brotar. Os seus recursos são maiores, a sua fecundidade é imediata. A história não produz quaisquer figuras, mas muda-se com a figura. Ela é a tradição que a si mesma se dá um poder vencedor. É assim que as famílias romanas retrocediam a sua origem até aos semideuses, e é assim também que se terá de escrever sobre a figura do trabalhador a partir de uma nova história. Tem de ser feita esta verificação na medida em que hoje qualquer interpretação do nosso tempo se impregna com sentimentos optimistas ou

pessimistas,

respectivamente

se

tiver

um

determinado

desenvolvimento por concluído ou ainda no melhor caminho. Em oposição a isto, assinalámos como a atitude de uma nova estirpe o realismo heróico, o qual conhece tão bem o trabalho do ataque

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como o dos postos perdidos, mas para o qual é de um significado inferior se faz melhor ou pior tempo. Há coisas que são mais importantes e mais próximas do que o início e o fim, a vida e a morte. Ao real empenho é sempre alcançável o que é mais elevado; sejam referidos como exemplo os mortos da Guerra Mundial, cujo significado não é minimamente diminuído por terem caído precisamente neste e em nenhum outro tempo. Eles caíram tanto para o futuro como caíram no sentido da tradição. Tal é uma diferença que, no instante da mudança através da morte, se dilui num significado superior. É neste sentido que a juventude se tem de educar. A indicação de uma figura nada pode prometer; pode, no máximo, dar um símbolo de que a vida hoje, como antes, possui dignidade, e de que ela, para aquele que a sabe viver, pode bem valer a pena. Tal pressupõe certamente uma peculiar consciência da dignidade, nem herdada nem adquirida, que é possível precisamente à vida muito simples e que tem de ser reconhecida como a característica de uma nova aristocracia.

27. Resulta daqui, em terceiro lugar, que a questão do valor não seja a decisiva. Do mesmo modo que a figura se deve procurar além da vontade e além do desenvolvimento, ela também está além dos valores: não possui qualquer qualidade. A morfologia comparada, tal como hoje se pratica, não permite por isso qualquer prognóstico válido. Ela é antes um assunto de museu, uma ocupação para coleccionadores, românticos e apreciadores de grande estilo. A multiplicidade de tempos passados e de espaços longínquos impõe-se como uma orquestra variada e sedutora, com a qual uma vida enfraquecida nada consegue orquestrar senão a própria

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fraqueza. A insuficiência não é, contudo, mais suficiente por se criticar a si mesma escondida numa pele de leão. Esta atitude é semelhante à daquele general que envelheceu com a táctica linear, o qual não reconhece a sua derrota porque foi alcançada contra as regras da arte. Mas não há quaisquer regras da arte neste sentido. É uma nova era que decide aquilo que deve valer como arte, como medida. Aquilo que distingue duas eras não é o maior ou menor valor, mas pura e simplesmente a alteridade. Daí que discutir aqui a questão do valor quer dizer querer introduzir regras de jogo que não estão no lugar. Saber pintar imagens só pode valer como medida para um qualquer tempo quando isso é ainda um objectivo ambicionado para uma capacidade insuficiente: aí vive-se de um crédito patente. Mais importante é procurar os lugares em que o nosso tempo nos dá crédito. Vivemos num estado em que muito dificilmente se pode dizer aquilo que em geral é digno de valor, se, pelo contrário, não se quiser ficar contente com puros modos de falar — num estado em que, em primeiro lugar, se tem de aprender a ver. Isso vem de uma hierarquia não ser imediatamente rendida por outra, mas de a marcha conduzir a trajectos nos quais os valores estão na penumbra e as ruínas parecem mais significativas do que o fugaz alojamento que cada manhã é abandonado. Tem-se de ultrapassar aqui um ponto a partir do qual o nada aparece como mais desejável do que qualquer coisa em que habite ainda a mais pequena possibilidade de dúvida. Deparar-se-á aqui com uma sociedade de almas primitivas, com uma raça originária, que ainda não surgiu como sujeito de uma tarefa histórica e, por isso, está livre para novos encargos. Só a partir daqui se dá um novo e mais decisivo sistema de relações. Não há aqui nenhum tipo de moeda que seja aceite por confiança e fé. As velhas moedas são lançadas fora ou guarnecidas com um novo cunho — no que pode ser deixado em suspenso se o metal em

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que elas são cunhadas possui ou não um valor absoluto. Os valores são postos em relação à figura não qualitativa, mas criadora. Daí que sejam relativos, certamente no sentido de uma unilateralidade guerreira a partir da qual é contestada qualquer objecção de outro tipo. Assim, não apenas é possível, mas também provável, que o nosso estado seja já visto e avaliado nas anteriores visões dos monges cristãos — como a chegada do Anticristo. Um tal juízo tanto pode ser válido como pode ser visto, a partir de uma perspectiva modificada, como não vinculativo ou como matéria de valorização própria. O mistério que se esconde atrás desta contradição não pertence ao tema: não pertence às questões da mais elevada arte da guerra, mas às da teologia. Estas delimitações permitem conceber que uma figura não possa ser descrita no sentido habitual. O nosso olhar está aquém do prisma que quebra o raio colorido em luzes variadas. Vemos a limalha, mas não vemos o campo magnético cuja realidade determina a sua ordem. Surgem assim novos homens e, com eles, muda-se a cena, tal como se movimenta uma encantadora encenação. A eterna luta começa e outras questões começam a circular, e outras coisas aparecem como desejáveis. Tudo já lá estava desde sempre e, de um modo decisivo, tudo é novo. O que é admirável é suspeitar quão mais profundo é o homem do que o seu fenómeno, que ele nos oferece — quão mais subtil do que as intenções que ele presume seguir, quão mais significativo do que os mais ousados sistemas, através dos quais consegue dar testemunho de si. Se conseguimos, na descrição de algumas alterações que temos como significativas na substância humana, onde se fala da figura, deixar aberto um lugar vazio, uma janela que só pode ser enquadrada através da linguagem e que tem de ser preenchida pelo leitor através de uma outra actividade que não a de ler, damos por cumprida esta parte preparatória da nossa tarefa.

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II PARTE

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DO TRABALHO COMO MODO DE VIDA

28. O processo em que se expressa, numa humanidade particular, uma nova figura, a figura do trabalhador, apresenta-se, em relação à dominação do mundo, como a emergência de um novo princípio, o qual pode ser assinalado como trabalho. É através deste princípio que são determinadas as únicas formas de confronto possíveis no nosso tempo; ele suporta a plataforma sobre a qual exclusivamente se pode com sentido confrontar, se se pensar em geral em confrontar. Está aqui o arsenal dos meios e dos métodos em cuja manipulação superior se reconhece os representantes de um poder emergente. O estudo deste modo de vida em transformação persuadirá quem quer que queira em geral admitir que o mundo está numa mudança decisiva, numa mudança que traz em si o seu próprio sentido e a sua própria legalidade, de que o trabalhador deve ser concebido como o sujeito desta mudança. Do mesmo modo que uma consideração profícua, para chegar a resultados não contraditórios nos pormenores, tem de captar o trabalhador como o portador de uma nova humanidade, de um modo completamente independente de qualquer valorização, também o próprio trabalho, à partida, tem de se lhe apresentar como um novo modo de viver, cujo objecto aparece como o globo terrestre e que só ganha valor e diferença no contacto com a sua multiplicidade. O significado de um novo princípio neste sentido não se deve procurar em elevar a vida a um nível mais elevado. Está antes na alteridade, na alteridade que pura e simplesmente pressiona. Assim, o

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emprego da pólvora provoca uma imagem modificada da guerra, da qual, no entanto, não se pode dizer que seja superior em dignidade à imagem da arte da guerra cavaleiresca. Contudo, a partir deste instante, é um absurdo ir para o campo sem canhões. É reconhecido um novo princípio em ele não se poder medir com velhas categorias e em não poder furtarse ao seu emprego, independentemente de se ser sujeito ou objecto deste emprego. Segue-se daqui que para ver a palavra “trabalho” no seu significado modificado se tem de dispor de novos olhos. Esta palavra não tem nada a ver com um sentido moral, tal como se expressa na expressão do suor do rosto. É muito bem possível desenvolver uma moral do trabalho; neste caso são aplicados conceitos de trabalho a conceitos morais, mas não o contrário. O trabalho também não é aquele trabalho sans phrase, tal como aparece nos sistemas do século XIX como a medida fundamental de um mundo económico. Que as valorizações económicas se estendem muito longe, e que se estendem mesmo aparentemente de um modo absoluto, explica-se por o trabalho também se poder interpretar economicamente, mas não por significar a mesma coisa que a economia. Pelo contrário, ele ergue-se violentamente para além de todo o económico, sobre o qual consegue decidir de um modo não simples, mas complexo, e de cujo âmbito só se podem obter resultados parciais. Finalmente, o trabalho não é nenhuma actividade técnica. É incontestável que é precisamente esta nossa técnica que transmite os meios decisivos; contudo, não são eles que mudam o rosto do mundo, mas a vontade peculiar que está atrás deles e sem a qual eles não são mais do que brinquedos. Através da técnica, nada é poupado, nada é simplificado e nada é resolvido — ela é o conjunto de instrumentos, a projecção de um modo de vida particular para a qual trabalho é a expressão mais simples. Assim, um trabalhador levado para uma ilha solitária permaneceria tanto um trabalhador como Robinson permaneceu

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um burguês. Não poderia combinar dois pensamentos, guardar um sentimento, considerar uma coisa do seu ambiente, sem que nisso se espelhasse esta sua propriedade particular. O trabalho não é então uma actividade pura e simples, mas a expressão de um ser particular que procura realizar o seu espaço, o seu tempo, a sua legalidade. Daí que não conheça qualquer oposição fora de si mesmo; assemelha-se ao fogo que, consumindo e alterando tudo o que é inflamável, só pode ser combatido através do seu próprio princípio, através de um contra-fogo. O espaço do trabalho é ilimitado, tal como o dia de trabalho abrange vinte e quatro horas. O contrário do trabalho não é o repouso ou o ócio, mas, sob este ponto de vista, não há nenhum estado que não seja concebido como trabalho. Como exemplo prático disso, pode-se referir o modo em que já hoje é produzido o restabelecimento do homem. Ou ele traz um carácter de trabalho muito manifesto, como o desporto, ou apresenta, como o divertimento, a festividade técnica, a estadia no campo, um contrapeso ligeiramente colorido dentro do trabalho, mas de nenhum modo o contrário do trabalho. A isto se liga a crescente carência de sentido dos Domingos e feriados de estilo antigo — daquele calendário que cada vez menos corresponde a um ritmo de vida modificado. É inconfundível que esta traço total também está vivo nos sistemas da ciência. Se considerarmos o modo em que a física mobiliza a matéria, em que a zoologia procura adivinhar a energia potencial da vida sob os seus esforços proteiformes, em que a própria psicologia se esforça por ver o sono ou o sonho como acções, torna-se claro que aqui não está em obra o conhecimento puro e simples, mas um pensar específico. Em tais sistemas mostram-se já sistemas do trabalhador, e é um carácter de trabalho que determina a sua imagem do mundo. Certamente, tem de se mudar o ponto de vista para o reconhecer realmente; não se pode olhar para a perspectiva do progresso, mas a

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partir de onde esta perspectiva perde o seu interesse — e o perde porque uma identidade particular de trabalho e ser consegue garantir uma nova segurança, uma nova estabilidade. Aqui, os sistemas mudam efectivamente o seu sentido. Na mesma medida em que o seu carácter de conhecimento perde em significado, influencia-os um carácter de poder peculiar. Tal assemelhase ao facto através do qual um ramo da técnica aparentemente pacífico, como a perfumaria, se descobre um dia como produtor de meios de guerra química e se vê reivindicado como tal. Um pensar puramente dinâmico, que em si, como qualquer estado puramente dinâmico, não pode significar outra coisa que dissolução, torna-se positivo, torna-se numa arma, por estar relacionado a um ser, por estar relacionado à figura do trabalhador. Assim considerado, o trabalhador está num ponto ao qual a destruição já não é aplicável. Tal vale tanto para o mundo como política como para o mundo como ciência. O que aqui se torna assinalável como a falta de uma oposição essencial, de um oposto, aparece ali como uma nova imparcialidade, como um novo serviço da ratio ao ser, o qual rompe a zona do conhecimento puro e das suas garantias, ou seja, da dúvida, e, deste modo, coloca a possibilidade de uma fé. Tem de se estar onde a destruição não deve ser tida como conclusão, mas como antecipação. Tem de se ver que o futuro consegue penetrar no passado e no presente. O trabalho, o qual pode ser tomado como modo de vida em relação ao homem, e como princípio em relação à sua eficácia, aparece como estilo em relação às formas. Estes três significados fundem-se uns nos outros de modo variado, mas, no entanto, remetem para a mesma raiz. Certamente que a mudança de estilo se torna visível mais tarde do que a do homem e dos seus esforços. Tal explica-se por a consciência ser o seu pressuposto ou, para o expressar de outro modo, por a cunhagem ser o último acto através do qual se faz notada uma moeda.

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Assim, para referir exemplos, um funcionário, um soldado, um agricultor ou uma comunidade, um povo, uma nação podem já estar num campo de forças completamente alterado sem estarem disso conscientes. Diante destes representantes do trabalhador, que já o são sem o saberem, estão outros que crêem ser trabalhadores sem que possam ser referidos já como tal — fenómenos como os que a velha terminologia procura captar com o conceito de trabalhador sem consciência de classe. Já vimos, no entanto, que não basta uma consciência de classe neste sentido, mas que esta, do mesmo modo que pertence aos resultados do pensar burguês, também apenas consegue efectuar uma extensão e uma diluição do estado burguês. Trata-se, por isso, de muito mais do que de consciência de classe, porque o domínio que está em questão tem um carácter total que só através de uma grande envergadura, mas não através de uma oposição, através de uma última consequência, pode chegar a apresentar-se dentro do velho mundo. Quem desejar um domínio das forças realmente produtivas tem também de ser capaz de representar-se a produção real como uma grande e abrangente fecundidade que vai até ao todo. Pois não se trata de esquematizar o mundo, de o moldar sob quaisquer reivindicações especiais, mas de o digerir. Enquanto espíritos monótonos estiverem a trabalhar, o futuro não pode aparecer sob mais nenhum aspecto senão sob o que é prosaico. Por muito que certamente se tenha de reconhecer o princípio fundamental como simples e livre de valores, tem também de se ver que a possibilidade da configuração é infinita. Que o novo estilo enquanto sedimentação de uma consciência modificada ainda não seja reconhecível, mas apenas se possa suspeitar, tal deve-se a o passado já não ser real e a o que é vindouro ainda não ser visível. Daí que seja desculpável o erro que sustenta a uniformização do velho mundo como a característica decisiva do nosso estado. No entanto, este modo de uniformização pertence ao reino da decomposição — é a uniformidade da morte que reveste o mundo. Preguiçosa, a

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corrente alterada corre, ainda durante um período de tempo, entre as margens habituais, de modo semelhante a como, ainda durante algum tempo, se construiu caminhos de ferro como diligências, automóveis como carroças, fábricas no estilo de igrejas góticas, ou a como na Alemanha, ainda quinze anos depois da guerra mundial, se se abrigou no abrigo do estado anterior à guerra. Mas são novas tensões, novos mistérios, que a corrente esconde em si, e para os quais se tem de robustecer os olhos. A destruição cai como a geada sobre o mundo em declínio, cheio de lamentos de que os bons tempos passaram. Estes lamentos são tão infinitos como o próprio tempo; é a linguagem da antiguidade que neles se expressa. Mas também por muito que a configuração se possa alterar e os seus representantes possam mudar, é, no entanto, impossível que a soma, a potência da força vital, se torne menor. Qualquer espaço abandonado é preenchido por novas forças. Para mais uma vez referir a pólvora, estão conservados suficientes documentos nos quais é lamentada a destruição das praças fortes, das sedes de uma vida orgulhosa e independente. Mas eis que aparecem os filhos da nobreza nos exércitos dos reis; são outras as coisas pelas quais se combate, em outras batalhas de outros homens. Aquilo que permanece é a vida elementar e os seus motivos, mas altera-se sempre a linguagem em que ela é transposta, altera-se sempre a distribuição dos papéis em que o grande jogo se repete. Os heróis, os crentes e os amantes não morrem; são descobertos de novo em cada época, e, neste sentido, o mito erguese em qualquer tempo. O estado em que nos encontramos é semelhante a um intervalo em que a cortina caiu e se realiza a confusa mudança do pessoal e dos apetrechos. Se o estilo, o tornar-se visível das novas linhas, pode ser tomado como a conclusão, como a cunhagem de mudanças precedentes, então, ao mesmo tempo, ele coloca o começo do combate pelo domínio do mundo objectivo. Este domínio, segundo a sua essência, está

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certamente já realizado, mas, para sair do seu carácter anónimo, precisa como que de uma linguagem na qual se possa negociar, na qual a ordem de comando se possa formular e possa ser perceptível aos súbditos. Precisa do cenário que torna visível quais as coisas que são desejáveis e com que meios as pode confrontar. As mudanças aniquiladoras das formações naturais e espirituais em toda a superfície terrestre devem ser tomadas como os preparativos de um tal cenário. As massas e os indivíduos, as estirpes, as raças, os povos, as nações, as paisagens, assim como as pessoas, as profissões, as instituições, os sistemas e os Estados estão em igual medida expostos a um ataque que, à partida, aparece como a completa aniquilação da sua legalidade. Este estado é preenchido ideologicamente por debates entre os defensores de valorizações destinadas ao declínio e as cabeças ocas para as quais o próprio verniz niilista se representa como valor. Aquilo que nele é exclusivamente digno de nota é a preparação de uma nova unidade do local, do tempo e da pessoa, de uma unidade dramática cuja chegada pode ser suspeitada atrás dos destroços da cultura e sob a máscara mortal da civilização.

29. No entanto, quão longínquo está o estado em que nos encontramos daquela unidade que consegue garantir uma nova segurança e hierarquia de vida. Não há aqui nenhuma unidade visível fora a da mudança rápida. A observação tem de se acomodar a este facto se não se lembrar de se satisfazer com a segurança enganadora de ilhas artificiais. Certamente, não há aqui falta de sistemas, de princípios, de autoridades, de professores e de mundividências — mas o que neles é suspeito é que

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se tornaram demasiado fáceis. O seu número cresce na mesma medida em que a fraqueza se sente carente de uma segurança duvidosa. Isto é um espectáculo de charlatães que prometem mais do que pode ser suportado, e de pacientes aos quais a saúde artificial dos sanatórios aparece como desejável. Finalmente, teme-se o ferro ao qual, no entanto, não se escapa. Temos de ver que nascemos numa paisagem de gelo e de fogo. O passado está feito de tal modo que não se pode estar preso a ele, e o vindouro de tal modo que não se pode instalar-se nele. Esta paisagem pressupõe como atitude uma superabundância de cepticismo guerreiro. Não se pode ser encontrado nas partes da frente que devem ser defendidas, mas naquelas onde se ataca. Tem de se compreender, para chamar a si as reservas, que elas são invisíveis e estão escondidas de um modo mais seguro do que em sepulturas blindadas. Não há bandeiras para além das que se levam sobre o corpo. É possível possuir uma fé sem dogma, um mundo sem deuses, um saber sem máximas e uma pátria que não pode ser ocupada por nenhum poder do mundo? São questões nas quais o singular tem de testar o grau do seu armamento. De soldados desconhecidos não há falta; mais importante é o reino desconhecido, sobre cuja existência não é preciso nenhum acordo. Só assim aparece o palco deste tempo na sua correcta iluminação: como um campo de batalha, mais tenso e rico de decisões do que qualquer outro, para aquele que o sabe apreciar. O secreto centro de atracção que concede aos movimentos o seu valor é a vitória, cuja figura representa os esforços e sacrifícios também das partes derrotadas. Só que aqui não está em casa ninguém que não se lembre de fazer a guerra. Só assim, a partir da consciência de uma atitude guerreira, é possível atribuir às coisas que nos rodeiam o valor que lhes é devido. É um valor como o que é próprio dos pontos e sistemas de um campo de batalha: um valor táctico. Ou seja, que no curso do movimento há coisas

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de uma seriedade mortal que, no entanto, se tornam insignificantes quando o movimento passou por elas, de modo semelhante a como, no campo de batalha, uma aldeia abandonada, uma parte de floresta devastada aparece como o símbolo táctico da vontade estratégica e, enquanto tal, é digna do supremo esforço. É neste sentido que se deve ver o nosso mundo, se não se pensar em resignar: completamente em movimento e, no entanto, ansiando pelo que é fixo; deserto e, no entanto, não sem sinais ígneos pelos quais a mais íntima vontade se vê confirmada. Aquilo que pode ser visto não é a ordem definitiva, mas a mudança da ausência de ordem debaixo da qual se pode adivinhar uma grande lei. É a troca de posição que diariamente exige a tomada de um novo ponto, enquanto a parte da Terra que está por descobrir ainda permanece no escuro. No entanto, sabemos que ela está presente, que ela é real, e esta certeza expressa-se em participarmos no combate. Assim, realizamos certamente mais do que suspeitamos, e aquilo que nos recompensa é a transparência com a qual este mais ilumina por vezes a nossa actividade. Se aqui, depois de termos falado do homem, falamos da sua actividade, e se a tomamos a sério, tal só pode acontecer no sentido desta transparência. Sabemos qual a figura cujo contorno se começa deste modo a desenhar.

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O DECLÍNIO DA MASSA E DO INDIVÍDUO

30. Para Aasvero82, que no ano de 1933 começa de novo a sua caminhada, a sociedade humana e a sua actividade oferecem um aspecto estranho. Ele deixou-a num tempo em que a democracia, depois de várias tempestades e oscilações, se começava a instalar na Europa, e reencontra-a numa constituição em que o domínio desta democracia se tornou tão indubitável, tão evidente, que pode prescindir do seu predicado dialéctico, o liberalismo — se ainda não na sua solene fraseologia, pelo menos na realidade. A consequência deste estado é uma espantosa e perigosa igualdade na substância humana — perigosa porque se perderam as garantias da velha organização. Que visão se oferece a uma consciência apátrida que se vê atirada para o centro de uma das nossas grandes cidades e, como em sonhos, tenta adivinhar a legalidade dos acontecimentos? É a visão de um movimento crescente que se cumpre com rigor impessoal. Este movimento é ameaçador e uniforme; empurra filas de massas mecânicas umas atrás das outras, cuja simétrica maré se regula através de sinais auditivos e visuais. É uma ordem meticulosa que imprime, nesta engrenagem em movimento e rotação que lembra o percurso de um relógio ou de um moinho, o selo da consciência, do trabalho preciso e

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N. do T.: Aasvero é a imagem do judeu errante.

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conforme ao entendimento; no entanto, o todo aparece, ao mesmo tempo, como que lúdico, no sentido de um automático passar o tempo. Esta impressão cresce em certas horas em que o movimento atinge o grau de uma orgia que anestesia e esgota os sentidos. Escaparia talvez à percepção que pesos são aqui ultrapassados, se ele não chamasse a atenção, através de sons sibilantes e ululantes nos quais se expressa imediatamente uma implacável ameaça de morte, para o grau de forças mecânicas que aqui estão em obra. Realmente, o tráfego desenvolveu-se no sentido de uma espécie de Moloch, que, ano sim, ano não, devora uma soma de vítimas que só se podem comparar às da guerra. Estas vítimas caem numa zona moralmente neutra; o modo em que são percebidos é de natureza estatística. No entanto, o tipo de movimento de que aqui se fala domina não apenas o ritmo dos cérebros artificiais, frios e ardentes, que o homem fez para si e nos quais fosforiza o brilho de luzes geladas. Ele é perceptível até onde o olhar alcança, e o olhar, neste tempo, alcança longe. Também não é só do tráfego — a superação mecânica da distância que anseia alcançar a velocidade da bala — que o movimento se apoderou, mas de qualquer actividade pura e simples. Ele pode observar-se nos campos onde se semeia e se colhe, nas covas das quais se arranca o minério e o carvão, e nas barragens diante das quais estanca a água dos rios e dos lagos. Trabalha, em milhares de variações, na mais pequena mesa de trabalho como nos grandes bairros da produção. Não falta nem nos laboratórios de ciência, nem nos escritórios de negócios, nem em qualquer edifício de propriedade privada ou pública. Não há ainda nenhum local tão afastado, seja ele o de um barco a afundar-se no oceano nocturno ou o de uma expedição que entrou no gelo polar, em que não martele, produza ou dê os seus sinais. Está tanto onde se age e pensa como onde se combate e onde se se diverte. Há aqui locais tão maravilhosos quanto angustiantes em que a vida se reproduz através de fitas em movimento, enquanto ressoa a linguagem e a música de vozes

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artificiais. Há campos de batalha como paisagens lunares em que reina uma troca abstracta de fogo e movimento. Este movimento só pode ser visto realmente com os olhos de um estrangeiro porque abrange tão completamente a consciência dos que nele nasceram como o meio do ar que se respira, e porque é tão simples como maravilhoso. Daí que seja extremamente difícil, e mesmo impossível, descrevê-lo, tal como é impossível descrever o timbre de uma língua ou o ruído de um animal. Apesar disso, é suficiente tê-lo visto uma vez onde quer que seja para o voltar a reconhecer em qualquer lado. Nele se anuncia a linguagem do trabalho, uma linguagem tão primitiva quanto abrangente, que anseia traduzir-se em tudo aquilo que pode ser pensado, sentido e querido. A pergunta pela essência desta linguagem, que surgirá no observador, sugere a resposta de que esta essência se deve procurar completamente no mecânico. No entanto, na mesma medida em que o material da observação se acumula, impõe-se o reconhecimento de que neste espaço se desvanece a velha distinção entre forças mecânicas e orgânicas83. Todas as fronteiras se encontram aqui estranhamente esbatidas, e seria ocioso querer ponderar se é a vida que sente o ímpeto para se manifestar mecanicamente, ou se são potências particulares, com um revestimento mecânico, cujo encanto se começa a espalhar sobre a substância vital. Ambas as coisas se podem em si desenvolver coerentemente, com a diferença de que a vida aparece naquela como activa, inventiva, construtiva, e nesta como passiva e afastada do seu autêntico âmbito. Contudo, querer raciocinar aqui é apenas sujeitar a eternamente indecidível pergunta pela liberdade da vontade a uma troca de campo. Venha o irromper de que regiões vier, e tenha-se de o confrontar como se tiver — da sua realidade incontornável não pode

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haver dúvida. Tal torna-se claro em todo o seu alcance se se olhar para o papel do próprio homem neste espectáculo — independentemente de se o reconhecer como o seu actor ou como o seu autor.

31. Certamente — e isso é estranho numa era em que ele surge en masse — há um esforço particular para ver em geral o homem. É uma experiência que sempre de novo enche de espanto o caminhante no meio desta paisagem inaudita, concebida ainda no início do seu desenvolvimento: que ele a pode atravessar dias inteiros sem que uma pessoa particular, um rosto humano particular tenha permanecido retido na sua lembrança. É certo que está fora de questão que o singular já não apareça, como na era do absolutismo do príncipe, numa completa plasticidade à frente do seu pano de fundo natural, arquitectónico e social. Mais significativo é, no entanto, que também o reflexo desta plasticidade — que, por meio do conceito da liberdade burguesa, passou para o indivíduo — se comece a dissolver e que por todo o lado onde é reivindicado comece a roçar o ridículo. Assim, o fato burguês, e sobretudo o fato de cerimónia burguês, começa de algum modo a tornarse ridículo — do mesmo modo que o exercício dos direitos burgueses, particularmente do direito de voto, e que as personalidades e associações através das quais este direito se representa. Assim, o singular já não se consegue revestir com a dignidade da pessoa, tão pouco como ele aparece como indivíduo ou como a massa aparece como soma, como um conjunto contável de indivíduos. Onde quer que se a possa encontrar é inconfundível que uma outra estrutura começa a entrar nela. Ela oferece-se à percepção em séries, em 83

Como se torna particularmente claro na observação das mais pequenas e das maiores

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entrelaçados, em correntes e faixas de rostos que se sucedem de um modo fulminante, também em colónias como que de formigas cujo movimento para a frente já não está entregue ao acaso, mas a uma disciplina automática. Também em locais onde não é o dever, o negócio, a profissão, mas a política, o divertimento, o espectáculo que dá a ocasião para a formação das massas, esta mudança não se pode ignorar. Já não se se associa, mas marcha-se. Já não se pertence a uma associação ou a um partido, mas a um movimento ou a um séquito. Independentemente de o próprio tempo limitar a diferença entre os singulares a uma medida muito pequena, tem-se ainda uma predilecção particular pelo uniforme, pelo ritmo dos sentimentos, dos pensamentos e dos movimentos. Assim, já não pode suscitar admiração no observador que aqui tenha desaparecido quase qualquer vestígio de uma organização de estados. Aquilo que ainda se manteve da representação dos estados tem lugar em ilhas artificiais84. Na vida pública, os gestos, a linguagem, o traje dos estados suscita admiração, no caso de não se desculparem através de ocasiões cujo sentido se pode assinalar como atavismo festivo. Os locais em que a Igreja hoje procura as suas decisões não estão onde o seu representante aparece de hábito, mas com o traje de plenipotenciário político85. Do mesmo modo, a guerra não é feita onde se vê o soldado com o adorno das insígnias do estado cavaleiresco, mas onde serve imperceptivelmente os volantes e as alavancas das suas máquinas de combate, onde põe uma máscara e, com invólucros de protecção, atravessa zonas gaseadas, ou onde, no zumbido dos telefones e no matraquear dos transmissores de notícias, se dobra sobre os seus mapas.

formações, como as células e os planetas. 84 Um exemplo para o conceito de ilha artificial: a Igreja à Memória do Imperador Guilherme, em Berlim. 85 Na emergência da ordem dos jesuítas e do exército prussiano, na sequência da reforma, apontam-se já, valorizados naturalmente a partir da figura do trabalhador, princípios de trabalho.

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Do mesmo modo que já só se pode descobrir vestígios de uma organização de estados, e da correspondente plenitude das pessoas que os representam, pode-se observar que a diferenciação dos indivíduos segundo as classes, castas ou mesmo segundo profissões se tornou, pelo menos, difícil. Onde quer que se procure ordenar e classificar de acordo com classes, ética, social ou politicamente, não se está nos postos decisivos da frente — está-se a movimentar numa província do século XIX que o liberalismo, numa actividade de décadas, por meio do direito de voto universal, do dever militar universal, da formação universal, da mobilidade das propriedades fundiárias e de outros princípios, nivelou até um grau que deixa aparecer como uma brincadeira qualquer esforço posterior nesta direcção e com estes meios. Mas aquilo que talvez não possa ser visto com esta nitidez é a maneira na qual a diferença das profissões também se começa a desgastar. À primeira vista, pelo contrário, o observador não se pode furtar à impressão de uma multiplicidade extraordinária. Contudo, há uma grande diferença entre o modo de atribuição da actividade através das velhas corporações86, e o modo em que o trabalho hoje se especializa. Naquela, o trabalho é uma grandeza estável e divisível; nesta, uma função que se põe totalmente em relação. Daí que aqui não apenas surja como trabalho muitas coisas de que antes quase não se podia sonhar, como o jogar futebol, mas que também um carácter total do trabalho influencie cada vez mais poderosamente as áreas especializadas. Mas o carácter total do trabalho é o modo no qual a figura do trabalhador começa a penetrar o mundo. Sucede então que, enquanto aumenta o crescimento e a dispersão de áreas singulares e, deste modo, de profissões, de modos e possibilidades de actividade, esta actividade, ao mesmo tempo, se uniformiza e, em cada uma das suas nuances, como que expressa o mesmo movimento originário. Surge então a imagem de um estranho

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esforço que se deixa observar através de milhares de pormenores. Dá-se uma identidade assombrosa dos acontecimentos que, de novo, só se pode captar no seu alcance completo através do olho de um estrangeiro. Esta agitação é semelhante às imagens em mutação de uma lanterna mágica que uma constante fonte de luz ilumina. Como é que Aasvero pode diferenciar se está presente numa recepção num atelier fotográfico ou numa investigação numa clínica para doenças internas, se cruza um campo de batalha ou um terreno industrial; e em que medida se deve considerar como funcionário o homem que impele os milhões de coisas que entram num banco ou num serviço de cheques postais para uma máquina de carimbos, e como trabalhador aquele outro que repete o mesmo movimento numa máquina perfuradora de uma fábrica de metal? E sob que pontos de vista se diferenciam a si mesmos os que assim actuam? Relacionado com isto está que o conceito de desempenho pessoal se começa a modificar de um modo incisivo. O fundamento autêntico deste fenómeno deve ser procurado em o centro de gravidade da actividade se deslocar do carácter individual do trabalho para o carácter total do trabalho87. Na mesma medida, torna-se mais inessencial a que fenómeno pessoal, a que nome se prende o trabalho. Tal não vale apenas para o acto autêntico, mas para qualquer tipo de actividade em geral. Deve-se aqui referir o aparecimento do soldado sem nome, do qual se tem de saber que pertence ao mundo das figuras, mas não a um mundo da paixão individual. No entanto, não há apenas o soldado desconhecido, há também o Chefe do Estado-Maior desconhecido. Para onde quer que o olhar se dirija, recai sobre um trabalho que é realizado neste sentido anónimo. Tal 86

N. T.: A palavra traduzida aqui por corporações é Gilden, a qual se refere às corporações ou aos grémios medievais alemães. 87 Daí que fracassem aquelas medidas através das quais a consciência de trabalho individual, dentro da fábrica, deve ser fortalecida. A necessidade de um trabalho manual estereotipado não pode ser justificado em nenhum plano em que o prazer ou o não prazer do indivíduo desempenhe um papel.

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vale também para áreas com as quais o esforço individual parece estar numa relação particular e às quais se refere com predilecção — para a actividade construtiva. Assim, não apenas a verdadeira origem das mais importantes invenções científicas e técnicas está frequentemente no escuro, mas também se multiplica a duplicidade da autoria de um modo que ameaça o sentido do direito de patente. Este estado é semelhante a um entrelaçado em que qualquer nova malha é fiada através de um grande número de fios. É certo que são mencionados muitos nomes, mas esta menção

possui

algo

acidental.

Assemelha-se

ao

acender-se

momentâneo de um elo de ligação cujos pressupostos estão no escuro. Há um prognóstico das descobertas que dão à intervenção individual feliz um carácter secundário: materiais de química orgânica, nunca ainda vistos e, no entanto, conhecidos até às suas propriedades, estrelas que estão calculadas mas ainda não estão descobertas por nenhum telescópio. Seria, diga-se de passagem, uma tentativa superficial, transferir o crédito que aqui o singular parece ter perdido para forças colectivas, tais como

institutos

científicos,

laboratórios

técnicos

ou

companhias

industrias; mais facilmente se poderia tê-lo como uma dívida que é reembolsada aos inventores do rebanho, da vela ou da espada. No entanto, mais importante é ver que o carácter total do trabalho rompe tanto as fronteiras colectivas como as individuais e que é a esta fonte que se relaciona qualquer conteúdo produtivo do nosso tempo. Melhor ainda se deixa adivinhar até que grau do processo de dissolução do indivíduo já se avançou a partir do modo em que a relação entre os sexos se começa a alterar. Levanta-se aqui a questão de saber se uma tal mudança é então em geral possível. Certamente não no sentido em que esta relação pertence às relações elementares, às relações originárias, tal como o combate. No entanto, pode-se aqui observar a mesma troca que dá à guerra, na era do trabalhador, um rosto

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completamente distinto do que na era burguesa — um rosto que, ao mesmo tempo, traz traços de uma maior sobriedade como de uma mais forte força elementar. É neste sentido que se pode dizer que com a descoberta do indivíduo se ligava a descoberta de um novo amor, ao qual, apesar de alcançar as profundezas, está dada uma duração. As cores ardentes da Nova Heloísa88 empalideceram, como as cores ingénuas com que é retratado o despertar de Paul e Virginie nas suas florestas virgens, e já nenhum chinês pinta “num copo, com uma mão minuciosa, Werther e Lotte”. Também isto se tornou nos bons velhos tempos, e este conhecimento apresenta-se ao homem, como qualquer conhecimento deste tipo, como um processo de empobrecimento. Quando Aasvero abandona as grandes cidades para caminhar pela paisagem, torna-se a testemunha de um novo regresso à natureza. Encontra os cursos dos rios, os lagos, as florestas, as costas do mar e as encostas nevadas dos montes colonizados por estirpes cuja ocupação lembra a vida dos índios, dos insulares dos mares do sul ou dos esquimós. Esta já não é aquela natureza que se gozava nas pequenas fazendas e casas de caça, a mil passos de Trianon89, nem também aquele “céu mais azul” de Itália, daquela Florença em que o indivíduo burguês parasitava os corpos e os membros da renascença. Deve ser antes caracterizada como um modo particular do novo sansculottism90, como um fenómeno que é consequência necessária da democracia, tal como já encontrou a sua anterior expressão nas Folhas de Erva91. Também aqui está formada uma epiderme niilista — higiene, cultos solares superficiais, desporto, cultura do corpo, numa palavra: um 88

N. T.: Jünger refere-se ao livro de Rousseau Joulie ou la nouvelle Hélouise, de 1761. N. do T.: O Grand e Petit Trianon são villas, situadas nos jardins do Palácio Real de Versailles. 90 N. do T.: O termo sansculottism refere-se aos movimentos das camadas mais miseráveis na França revolucionária. 91 N. do T.: Jünger refere-se às poesias de Walt Whitman, no livro intitulado Leaves of Grass, publicado em 1855. 89

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ethos de esterilidade que não merece consideração, tal como é em geral característico para este tempo um estranho equívoco entre a sucessão rigorosa dos factos e as fundamentações morais e ideológicas que os acompanham. Seja como for, torna-se claro que aqui já não se pode falar de relações entre indivíduos. As características a que é dado valor modificaram-se; elas determinam-se por aquela natureza mais simples e mais estúpida que remete para aqui começar a estar viva uma vontade de formação da raça — uma vontade de educar um tipo determinado, cujo equipamento é mais unido e proporcionado às tarefas dentro de uma ordem que o carácter total do trabalho determina. Relacionado com isto está que as possibilidades da vida em geral diminuam numa medida crescente, no interesse de uma única possibilidade que, por assim dizer, consome todas as outras e corre para o estado de uma ordem de aço. Este futuro cria a raça de que precisa, e basta espreitar as crianças nos seus jogos para saber que se podem esperar delas estranhas coisas. Pode não se dar relevância à vontade de infecundidade se se lembrar de procurar a vida onde ela é o mais forte possível — quem duvidaria então do destino daquilo que aqui perece? Tal é um dos modos em que o indivíduo morre, e talvez o menos colorido; a sua fundamentação é de natureza individual, a sua prática digna de louvor. No entanto, aquilo que, sob o deserto dos debates jurídicos e médicos, ainda não pode ser suspeitado no seu completo alcance é a possibilidade de novas e temíveis intromissões do Estado na esfera privada, as quais estão iminentes sob a máscara da solicitude higiénica e social. Um desenvolvimento que parecia prometer, ainda na viragem do século, uma nova Sodoma e Gomorra, um mais extremo refinamento das fibras nervosas, começa então a tomar uma mudança tão surpreendente como muitos outros. A Paris deste tempo, com a sua exportação de roupas, comédias, romances morais e sociais tornou-se, de algum modo,

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província; aqui, o burguês viajante procura divertir-se, tal como em Florença se procura formar. Do mesmo modo, o boémio, com os seus jornais e cafés, com a sua veia artística dos pensamentos e dos sentimentos tornou-se num perfil provinciano; ele adoece com a sociedade burguesa, de cuja substância é completamente dependente seja qual for a posição da sua negação que possa detectar. Ainda no primeiro terço do século XX, vemo-lo a obrar com meios de subtileza microscópica; na descrição de processos de doença e decomposição, de aberrações e de oníricas paisagens fantasmagóricas, realiza um processo que se pode assinalar como aniquilação através do polimento. Também na profissão paralela dele derivada, na crítica da sociedade, alcançou um grau absurdo de consequência; vê-se com espanto posto em movimento o velho e usado aparelho para assegurar a cabeça, a existência individual de um qualquer assassino que mata para roubar ou para violar, enquanto povos inteiros estão em solo vulcânico e a vida que surge se estraga em centenas de milhares de sementes. Aquilo que neste contexto há a dizer sobre a arte e a política exige exposições particulares. Esta incursão deve, à partida, ser suficiente para indicar aquilo que aqui deve ser compreendido como a dissolução do indivíduo. Um caminho informativo através de um qualquer dos nossos campos de observação comprovará e abastecerá o que foi dito com um qualquer material. O modo como o indivíduo morre tem muitos matizes — desde os tons variados em que a linguagem do poeta, o pincel do pintor esgota as últimas possibilidades à beira da ausência de sentido, até ao cinzento da nua e quotidiana vida de miséria, da morte económica, tal como a inflação, um curso monetário anónimo e demoníaco, uma guilhotina invisível da existência económica a preparou para incontáveis vítimas desconhecidas.

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Manifesta-se aqui a intervenção da verdadeira revolução, da revolução que está de acordo com o ser, a qual encontra tanto o que é mais visível como o que é mais escondido e diante da qual qualquer tipo de dialéctica revolucionária aparece como insípida. 32. O palco em cujas fronteiras o declínio do indivíduo se cumpre é a existência do singular. É uma questão de segunda ordem a de saber se aqui a morte do indivíduo coincide com a morte do singular, tal como acontece através do suicídio ou através do aniquilamento, ou se o singular sobrevive a esta perda e ganha ligações a novas fontes de força. Este processo, que hoje se pode apontar como experiência também na mais pequena existência, oferece-se com clareza particular no modo como a guerra formou o destino do singular. Lembre-se aqui o famoso ataque dos regimentos de voluntários de guerra em Langemarck92. Este acontecimento, que possui um significado menos guerreiro do que histórico-espiritual, está em relação à questão acerca de que atitude de elevada dignidade é em geral possível no nosso tempo e no nosso espaço. Vemos aqui desmoronar-se um ataque clássico, independentemente da força da vontade de poder que anima os indivíduos, e dos valores morais e espirituais pelos quais ela é marcada. A vontade livre, a formação, o entusiasmo e a embriaguês do desprezo pela morte não são suficientes para superar a gravitação dos poucos cem metros em que governa o encanto da morte mecânica. Dá-se

assim

a

imagem

peculiar,

verdadeiramente

fantasmagórica, de um morrer no espaço da ideia pura, de um declínio em que, como num pesadelo, nem o esforço absoluto da vontade consegue impulsionar uma resistência demoníaca.

92

N. do T.: Langemarck é uma vila belga onde decorreu um dos mais sangrentos episódios da Primeira Guerra Mundial.

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O obstáculo que aqui ordena a paragem também ao bater do mais ousado coração não é o homem numa actividade qualitativamente superior — é o emergir de um novo e temível princípio que aparece como negação. O abandono em que se cumpre aqui o destino trágico do indivíduo é a imagem simbólica do abandono do homem num novo mundo, não investigado, cuja lei de aço é sentida como carente de sentido. Este acontecimento só é novo com base na sua superfície guerreira; nele repete-se em segundos um processo de aniquilação que já ao longo de um século se podia observar no indivíduo significativo — nos portadores daqueles orgãos mais subtis que já anteriormente sucumbiam ao sopro de um ar em que a consciência universal ainda sentia o sentimento de boa saúde. Anunciava-se aqui a extinção de uma espécie humana particular, no ataque aos seus postos avançados. Mas os sentimentos do coração e os sistemas do espírito são refutáveis, enquanto um objecto é irrefutável — e um tal objecto é a metralhadora. Aquilo que subjaz, no seu núcleo, ao acontecimento de Langemarck é a entrada de uma oposição cósmica que constantemente se repete quando a ordem mundial está abalada, e que se expressa aqui nos símbolos de uma era técnica. É a oposição entre fogo solar e telúrico, que aparece aqui como chama espiritual e ali como terrena, como luz ou como fogo — um intercâmbio de juramentos entre os “cantores nas colinas sacrificiais” e as forjas que têm ao serviço as forças dos metais, do ouro e do ferro. Os portadores da ideia — que, afastada dos arquétipos, se tornou numa imagem mais bonita — são deitados ao chão pela matéria, pela mãe das coisas. Mas é este contacto que, segundo a lei mítica, os dota de novas forças. Aquilo que morre, aquilo que cai, é o indivíduo enquanto representante de uma ordem enfraquecida e destinada ao declínio. O singular tem de passar através desta morte, independentemente de o seu percurso visível à vista ser ou

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não acabado através dele, e é uma bela visão quando não se desvia dele, mas deseja procurá-lo no ataque.

33. Voltemo-nos então para a diferença significativa que existe entre este escol tardio da juventude burguesa e aquele tipo de combatentes que foi formado pela própria guerra e que no decurso das suas últimas grandes batalhas se pode observar numa cunhagem cada vez mais intensa. Deparamos aqui, nos centros de força escondidos a partir dos quais se realiza a dominação da zona de morte, com uma humanidade que se desenvolveu em exigências novas e peculiares. Nesta paisagem, na qual só muito dificilmente o singular se pode descobrir, o fogo ocupou tudo aquilo que não possui carácter objectivo. Nos seus acontecimentos manifesta-se um máximo de acção num mínimo de porquê e para quê. Qualquer tentativa de ainda a harmonizar com uma esfera individual, matizada de romantismo ou idealismo, desemboca imediatamente no sem sentido. A relação à morte modificou-se; a sua mais extrema proximidade prescinde de qualquer sentimento que ainda possa ser interpretado como carácter solene. O singular é atingido pelo aniquilamento em instantes preciosos nos quais está submetido a um máximo de exigências vitais e espirituais. A sua força de combate não é de nenhum valor individual, mas de um valor funcional; já não se cai, mas fica-se fora de uso93. Também aqui se pode observar como o carácter total do trabalho, que neste caso aparece na sua propriedade de carácter total do combate, se expressa num sem número de modos especiais de combater. No tabuleiro de xadrez da guerra apareceu um grande número 93

N. do T.: Nesta expressão, os verbos traduzidos por cair e por ficar fora de uso, respectivamente fallen e ausfallen, têm uma relação possibilitada pela identidade do radical cuja conservação é impossível em português.

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de novos perfis, enquanto se simplificou o modo de jogar. A medida da eticidade do combate, cuja lei fundamental permanece a mesma para todos os tempos — matar o inimigo —, começa cada vez mais inequivocamente a ser idêntica à medida na qual o carácter total do trabalho pode ser realizado. Tal vale tanto para o campo de efeitos dos Estados combatentes como para o dos singulares que combatem. Tornaram-se aqui história imagens de uma suprema disciplina do coração e dos nervos, as quais se podem pôr, como iguais, ao lado das melhores tradições — provas de uma frieza extrema, austera e como que metálica, a partir das quais a consciência heróica sabe tratar o corpo como puro instrumento e arrancar-lhe, para além das fronteiras do instinto de auto-conservação, ainda uma série de desempenhos complicados. No turbilhão em chamas dos aviões abatidos, nos compartimentos estanques dos submarinos afundados no fundo do mar, tem ainda lugar um trabalho que autenticamente está já além do círculo da vida, de que não há registo e que se pode caracterizar, em sentido eminente, como travail pour le Roi de Prusse. Deve-se reparar particularmente em que estes portadores de uma nova força de combate só se tornam visíveis nas partes mais tardias da guerra, e em que a sua alteridade emerge na mesma medida em que se decompõe a massa dos exércitos formados segundo os princípios do século XIX. Também se os encontra sobretudo onde a peculiaridade da sua era já se expressa com particular clareza no emprego dos meios: nas esquadrilhas terrestres e aéreas, nas tropas de assalto em que a infantaria, em desagregação e desmoralizada pelas máquinas, ganha uma nova alma, e nas partes da frota que se endureceram no hábito do ataque. Também se modificou o rosto que olha o observador sob o elmo de aço ou o capacete de protecção. Como se pode observar numa reunião ou numa fotografia de grupo, na escala das suas apresentações, perdeu em variedade e, com isso, em individualidade, enquanto ganhou

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em intensidade e determinação da cunhagem singular. Tornou-se metálico, como que galvanizado na sua superfície, a ossatura mostra-se claramente, os traços são poucos e intensos. O olhar é calmo e fixo, treinado na consideração de objectos que se têm de captar em estados de alta velocidade. Este é o rosto de uma raça que se começa a desenvolver sob as peculiares exigências de uma nova paisagem e que o singular não representa como pessoa ou como indivíduo, mas como tipo. Pode-se reconhecer a influência desta paisagem com a mesma segurança com que se pode reconhecer a influência das regiões naturais, florestas virgens, montes ou costas. As características individuais retrocedem cada vez mais para trás do carácter de uma legalidade sobreposta, para trás de uma tarefa completamente determinada. Assim, por exemplo, por volta do fim da guerra, torna-se cada vez mais difícil diferenciar o oficial, porque a totalidade do processo de trabalho esbate as diferenças de classes e de estado. Por um lado, a actividade do combate cria dentro da tropa uma espécie unida de capatazes experimentados; por outro, multiplicam-se as importantes funções cuja atribuição torna indispensável um escol de novo tipo. Assim, a aviação, e em particular a aviação de combate,

não é nenhuma

ocupação que seja conforme ao estado, mas uma ocupação que é conforme à raça. O número dos singulares que numa nação são capazes de tão elevados desempenhos é tão limitado que a pura aptidão tem de bastar como legitimação. Nos métodos psicotécnicos vemos uma tentativa de captar este facto com meios científicos. Esta mudança não apenas se pode observar no âmbito do trabalho concreto de combate; ela irrompe também nas áreas de um comando mais elevado. Assim, há inteligências que são especialmente aptas para a execução de quadros de combate muito determinados, como o combate defensivo de grande estilo, e que já não estão activas

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no fundo das unidades do exército próprio, mas surgem em funções estrategicamente onde quer que, na extensão da frente, se comece a desenvolver a imagem abstracta de um tal processo de batalhas. São desempenhos de aptidões quase sempre desconhecidas, cujo valor típico ultrapassa, em larga medida, o valor individual. Mas também abstraindo de tais fenómenos puramente militares, torna-se cada vez mais difícil determinar em que lugares é realizado um trabalho de guerra decisivo. Tal expressa-se particularmente em no curso da própria guerra aparecerem surpreendentemente novos géneros de armas e de procedimentos de combate, o que de novo pode ser tido como sinal do facto sobreposto de que a frente de guerra e a frente de trabalho são idênticas. Há tantas frentes de guerra quanto frentes de trabalho; daí que se multiplique o número dos especialistas na mesma medida em que a sua actividade começa a tornar-se mais inequívoca, isto é, expressão do carácter total do trabalho. Também isto contribui para a inequivocidade do tipo através do qual a espécie humana decisiva se manifesta. Mesmo que através destas mudanças a substância humana, no seu conjunto, não possa permanecer intocada, o número dos representantes activos do processo de trabalho, como já indicámos, é limitado. Vemos aqui surgir um tipo de guarda, uma nova espinha dorsal das organizações combatentes — um escol que também se pode caracterizar como ordem. O tipo cunha-se numa clareza particular nos focos em que se concentra o sentido do acontecer. Vemos aqui já mais claramente porque é que o esboço de uma nova relação ao elementar, à liberdade e ao poder era necessário como esboço de afirmação de um ser determinado segundo a raça, segundo a vontade e segundo a capacidade. Os princípios do século XIX, particularmente a formação universal e o dever militar universal, não são suficientes para realizar a mobilização nos seus últimos e mais duros graus. Tornaram-se numa plataforma sobre a qual se começa a erguer um nível diferente.

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34. Voltemo-nos, no entanto, para as grandes cidades, nas quais o processo decisivo não se observa menos claramente. Certamente que o temos de procurar onde já aparece visivelmente. Já notámos que o singular desaparece dentro do processo no seu conjunto; vê-lo requer um grande esforço. A razão disso não é apenas que ele só en masse se possa observar. Em vez disso, a massa, neste sentido, desaparece das cidades, tal como desapareceu dos campos de batalha onde apareceu com as guerra revolucionárias. Ao processo de dissolução a que o indivíduo singular está submetido não se pode furtar também o conjunto dos indivíduos, na medida em que aparece como massa. A velha massa, tal como se corporizava na multidão dos Domingos e feriados, na sociedade, nas assembleias políticas como factor de voto e de adesão ou na revolta das ruas, a massa tal como se juntou diante da Bastilha, cujo peso de impacto brutal, em cem batalhas, foi lançado no prato da balança, cujo júbilo ainda abalava as metrópoles no rebentar da última guerra e cujo exército cinzento, na desmobilização, se perdeu por todos os cantos como um fermento de decomposição: a massa pertence ao passado, tanto quanto quem quer que ainda se lhe refira como a uma grandeza decisiva. Do mesmo modo que ela, quando procurava furar as barreiras ardentes das frentes de combate do século XX, na sua propriedade de massa, recebia uma lição mortal com um pequeno dispêndio de forças, foram-lhe preparados desde aí alguns Tannenberg94 a que não se liga nem lugar nem nome. Os movimentos da massa, por todo o lado onde lhe é contraposta uma atitude realmente decidida, perderam o seu irresistível encanto —

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de modo semelhante a como dois ou três velhos guerreiros, atrás de uma metralhadora intacta, também não se perturbam pela informação de um batalhão inteiro estar a avançar. A massa já não é hoje capaz de atacar; já não é sequer capaz de se defender. Este facto torna-se palpável em muitos fenómenos, como é o caso das assembleias, na forma como são convocadas no nosso tempo pelos partidos. Tais assembleias foram anteriormente vigiadas pela polícia; hoje até se pode dizer que a polícia assume o papel de protectora. Esta relação torna-se mais clara onde a massa começa a separar orgãos próprios de autoprotecção, tais como foram formados, depois da guerra, como esquadrilhas de protecção95, como protecção dos espaços públicos ou sob outras designações. Dez milhares precisam de algumas centenas para a sua protecção, e descobrir-se-á que nestas poucas centenas se expressa uma espécie humana completamente diferente do que a representada pelo indivíduo que se reúne como massa. Juntamente com isto, surge o facto mais abrangente de o papel dos partidos de velho estilo, na sua propriedade e tarefa de grandezas formadoras de massas, estar no essencial acabado. Quem hoje ainda se ocupa com a formação de tais grandezas, lida com desvios políticos. Aqui os indivíduos são amontoados como areia numa colina que também se desfaz como areia. Estes fenómenos assentam particularmente em a massa não se transformar na mesma medida do que se pode observar em âmbitos singulares, como o da organização policial, nos quais, pelo menos, o carácter especializado do trabalho já se desenvolveu mais claramente. Esta transformação, ou antes, a substituição da massa por grandezas de um novo tipo, cumprir-se-á seja como for, do mesmo modo como, no 94

N. do T.: Em Agosto de 1914, em Tannenberg, o exército alemão esmagou as tropas do exército russo, as quais eram muito superiores em número. 95 N. do T. A expressão esquadrilhas de protecção traduz aqui as Schutzstaffeln, mais conhecidas pela sigla SS.

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primeiro terço do século XX, já se cumpriu em relação às representações físico-químicas da matéria. A existência da massa está ameaçada na mesma medida em que o conceito de segurança burguesa se tornou enganador. O tráfego, o cuidado das mais elementares carências, como fogo, água e luz, um sistema de crédito desenvolvido e muitas outras coisas das quais ainda se falará assemelham-se a finas cordas, a veias a descoberto, com as quais o corpo amorfo da massa está ligado à morte e à vida. Este estado incita necessariamente à intervenção monopolista, capitalista, sindicalista ou também criminosa, a qual ameaça os milhões da população, através de todos os graus de carência, até ao terror do pânico. Nenhuma decisão da massa determina o aumento anónimo dos preços, a protecção da moeda, o modo de pagamento de tributos, o misterioso magnetismo da corrente de ouro. Ao mais elevado aumento do alcance das armas, que já ameaça numa questão de horas metrópoles indefesas, corresponde uma técnica da subversão política que já não procura lançar as massas na rua, mas apoderar-se, com tropas de assalto decididas, dos pontos que constituem o coração e o cérebro das cidades que têm o governo. A ele corresponde também o equipamento da polícia com meios cujo efeito consegue pulverizar dentro de segundos qualquer massa insubordinada. O grande crime político já não é dirigido contra os representantes pessoais ou individuais do Estado, contra ministros, príncipes ou representantes dos estados, mas contra pontes de comboio, antenas de rádio ou depósitos industriais. Atrás dos métodos individuais dos anarquistas sociais, por um lado, e, por outro lado, do terror de massas, anunciam-se novas escolas do acto político violento. Mas tudo isto, o detalhe através do qual o espaço vital da massa do século XIX é diminuído, torna-se visível de um modo puramente fisionómico num passeio de observação por um qualquer quarteirão de uma grande cidade — no que novamente se tem de tornar claro que

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também esta “nossa” cidade, cujo crescimento foi certamente formado através destas massas, pertence aos fenómenos da passagem. Tudo isto se pode então observar na falta de atenção com que o transeunte é posto de lado como uma espécie em extinção pelos meios de transporte, assim como na velocidade assombrosa com que qualquer tipo de sociedade, como a dos espectadores de teatro, se dispersa na agitação das ruas. As imagens de cidades inteiras estão cobertas por um sentimento de decomposição, tal como já se anunciava no romance naturalista, através de um optimismo superficial, e tal como então se torna mais claro e mais desesperado numa série de estilos fugazes em declínio, como um amarelecimento colorido, um esgotamento, uma deformação explosiva ou uma objectividade esquelética. Nas ermas paisagens de Manchester do Leste, nos xadrezes poeirentos da City, nas vivendas dos arredores do Oeste, nas casernas dos proletários do Norte e nos pequenos quarteirões burgueses do Sul, é um e o mesmo acontecimento que se espelha em vários matizes. Esta indústria, este negócio, esta sociedade estão votados ao declínio, cujo bafo brota de todas as fendas e articulações do conjunto desagregado. Aqui o olhar encontra novamente a paisagem das batalhas de materiais com todas as características de um clima mortal. É certo que os salvadores estão a obrar, e que a velha luta entre as escolas individualista e socialista, isto é, o grande diálogo do século XIX consigo mesmo, se reacendeu num novo plano, mas isso nada muda no velho ditado segundo o qual não há remédio contra a morte. Não é então dentro desta massa que procuramos o singular. Encontramos aqui apenas o indivíduo em declínio, cujos sofrimentos se sepultaram em dez milhares de rostos e cuja visão enche o observador com um sentimento de carência de sentido, de fraqueza. Vê-se os movimentos tornarem-se mais débeis, tal como numa vasilha cheia de infusões em que caiu uma gota de ácido clorídrico.

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Se este processo se realiza sem rumor ou de um modo catastrófico, é uma diferença na forma, mas não na substância.

35. São antes contextos de outro tipo dentro dos quais se começa a anunciar o novo tipo, a espécie do século XX. Vemo-lo emergir dentro de formações aparentemente muito diferenciadas que se podem assinalar, muito em geral, como construções orgânicas. Estas formações, de um modo que ainda não é claro, elevamse acima do nível do século XIX, do qual, no entanto, se devem diferenciar completamente. A sua característica comum consiste em nelas o carácter especializado do trabalho ser a maneira na qual a figura do trabalhador se expressa de um modo organizador — na qual ela ordena e diferencia a substância vital. No curso da investigação, abordámos já algumas de tais construções orgânicas nas quais o mesmo poder metafísico, a mesma figura que, enquanto técnica, mobiliza a matéria, começa doravante a submeter também as unidades orgânicas. Considerámos então o escol que ganha influência no processo de combate, através do caminho monótono das batalhas de materiais, os novos tipos de forças que quebram os aparelhos partidários, ou as comunidades de camaradagem no seu operar, que é tão diferente dos encontros da velha sociedade como uma plateia de teatro de 1860 é diferente das filas de espectadores de um cinema ou de um ringue de desporto. Que as forças que provocam tais agrupamentos se tornaram diferentes, tal anuncia-se já de muitos modos numa mudança dos nomes. “Desfile” em vez de “reunião”, “séquito” em vez de “partido”, “campo” em vez de “congresso” — expressa-se assim que a decisão voluntária de uma série de indivíduos já não é considerada como o

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pressuposto implícito do encontro. Este pressuposto desperta antes já o insignificante ou o ridículo, tal como se torna claro em palavras como “união”, “reunião” e outras. A uma construção orgânica não se pertence através da decisão da vontade individual, ou seja, através do exercício de um acto da liberdade burguesa, mas através de um entrelaçamento fáctico que o carácter especializado do trabalho determina. Assim, para escolher um exemplo banal, é tão fácil entrar num partido ou sair dele como é difícil sair de associações do tipo daquelas a que se pertence enquanto receptor da corrente eléctrica. É

esta

mesma

diferença

entre

uma

participação

pela

mundividência e uma participação substancial que provoca que um sindicato possa ascender à dignidade de uma construção orgânica, enquanto isso é impossível ao partido que lhe está intimamente ligado. O mesmo vale para os novos tipos de organizações políticas de combate, cuja oposição aos partidos que nelas procurem criar orgãos muito em breve se tornará visível. Um meio simples para verificar em geral até que ponto se é ocupado ainda pelo mundo do século XIX consiste em investigar quais das relações em que nos encontramos são e quais não são rescindíveis. Um dos esforços do século XIX, correspondendo à concepção fundamental segundo a qual a sociedade surgiu através do contrato, desemboca na mudança de qualquer relação possível numa relação contratual rescindível. Assim, atingiu-se consequentemente um dos ideais deste mundo quando o próprio indivíduo pode por si mesmo rescindir o seu carácter da sua estirpe, ou seja, quando o pode determinar ou mudar através de uma simples inscrição no registo dos estados. Daí que a greve e o despedimento, a aplicação explosiva da rescisão enquanto meio supremo no combate económico, pertençam ao procedimento da sociedade do século XIX tão evidentemente como são

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inadequados ao rigoroso mundo do trabalho do século XX. O sentido secreto de qualquer combate económico do nosso tempo desemboca em elevar a economia, também na sua totalidade, à dignidade de uma construção orgânica, como a qual é furtada à iniciativa tanto do indivíduo isolado como também do indivíduo que emerge en masse. Mas tal só pode acontecer se a espécie humana, que não se pode de todo conceber noutras formas que não nestas, se extinguiu ou estiver constrangida a extinguir-se.

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A RENDIÇÃO DO INDIVÍDUO BURGUÊS PELO TIPO DO TRABALHADOR

36. Se agora captarmos com o olhar o tipo, o pioneiro nascido de uma nova paisagem, tal como se nos depara dentro de uma configuração de novo tipo, isso tem de acontecer sob a renúncia a qualquer modo de valorização que esteja fora do campo de visão. O único modo de valorização que aqui está em questão deve ser procurado dentro do próprio tipo, e isso de um modo vertical, no sentido de uma hierarquia própria, e não de um modo horizontal, em comparação com quaisquer fenómenos de um outro espaço ou de um outro tempo. Já indicámos que é incontestável um processo de empobrecimento. Ele repousa no facto fundamental de a vida se consumir a si mesma, tal como acontece dentro da crisálida em que a imago consome a lagarta. Trata-se de conquistar um ponto de observação a partir do qual os locais de perda possam ser vistos como a massa rochosa que se perdeu durante a formação de uma estátua de pedra. Chegámos a uma parte em que a história do desenvolvimento se torna impotente, se não for empreendida com sinais invertidos; isto é, empreendida a partir de uma perspectiva a partir da qual a figura, enquanto ser não submetido ao tempo, determina o desenvolvimento da vida em devir. Mas aqui descobrimos uma mudança que a cada passo ganha em inequivocidade. Esta inequivocidade expressa-se também no tipo, no qual a mudança se começa a anunciar, e a primeira impressão que suscita é a

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de um certo vazio e uniformidade. É esta mesma uniformidade que torna muito difícil a diferenciação individual dentro de uma substância de raças estranhas, animais ou humanas. Aquilo que à partida se mostra, de um modo puramente fisionómico, é a rigidez do rosto, como uma máscara, que é tanto adquirida como acentuada e aumentada através de meios exteriores, como a ausência de barba, o penteado e um chapéu justo. Que neste carácter de máscara, que desperta nos homens uma impressão metálica, nas mulheres uma impressão cosmética, venha à luz um processo muito incisivo, pode-se concluir já de ele mesmo conseguir polir as formas através das quais o carácter dos sexos se torna fisionomicamente visível. Não é por acaso, diga-se de passagem, o papel que desde há pouco a máscara recomeça a desempenhar na vida quotidiana. Ela aparece de modos variados em locais onde irrompe o carácter especializado do trabalho, seja como máscara de gás, com a qual se procura equipar populações inteiras, seja como máscara de rosto para o desporto e para altas velocidades, tal como a possui qualquer automobilista, seja como máscara de protecção no trabalho num espaço ameaçado por radiações, explosões ou difusão de narcóticos. É de supor que caiba ainda à máscara tarefas inteiramente diferentes daquelas que se pode hoje suspeitar — no contexto de um desenvolvimento dentro do qual a fotografia adquire a dignidade de uma arma política de ataque. Este carácter de máscara não se pode apenas estudar na fisionomia do singular, mas em todo o seu perfil. Assim, pode-se observar que é dedicada grande atenção ao exercício do corpo, um exercício completamente determinado e planeado, o training. Nos últimos anos multiplicaram-se as ocasiões através das quais o olhar se habitua à visão de corpos mais nus, cultivados de um modo muito uniforme. A direcção deste processo torna-se mais clara na mudança que se realiza em relação ao vestuário. O traje burguês, que se manteve da mesma forma por cento e cinquenta anos e que, no seu significado, pode

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ser tomado como a reminiscência informal das velhas fardas dos estados, começa a tornar-se de algum modo absurdo em qualquer dos seus pormenores. Que nunca se tomou este traje inteiramente a sério, isto é, que nunca se lhe concedeu a dignidade de uma farda, resulta de se procurar evitá-lo em todo o lado onde ainda se pôde manter uma consciência do estado no sentido antigo, ou seja, onde se combateu, onde se exerceu um cargo administrativo, onde se pregou ou onde se julgou. No entanto, uma tal representação tinha de estar numa oposição necessária à consciência dominante da liberdade burguesa. Daí também que na segunda metade do século XIX se torne impossível abrir um jornal satírico sem que se se depare com as apresentações da toga, do hábito, da sotaina ou do casaco de pele de arminho, cuja intenção desemboca na prova de que os portadores destas fardas não são pertencentes ao reino humano, mas a um qualquer reino de animais ou de marionetes. Não se pode ir ao encontro de tais ataques da ironia se se abandonou os meios do patíbulo ou do fogo. Daí que a farda se comece cada vez mais a restringir ao campo do uso interno ou da ocasião extraordinária; evita a vida pública que ganha influência de dia para dia, sob a influência dos meios de transporte, da liberdade de imprensa, da fotografia. Por volta do fim do século, é exercido o acto decisivo da inscrição, por um funcionário do estado em vestuário burguês, das partes da vida elementar no registo público; anuncia-se aqui uma vitória que o Estado-Nação alcançou sobre a Igreja, com a aplicação de meios liberais. Nos parlamentos continentais do século XIX é desconhecida uma toga parlamentar particular; o vestuário burguês segue unido da ala direita à ala esquerda. Para as grandes sessões no Verão de 1914, uma parte dos deputados aparece de uniforme; depois da guerra, emergem facções inteiras em fardas particulares de uma uniformidade militar. Também os ministros não se destacam particularmente, se se quiser

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abstrair de excepções tais como o uniforme de general que está à disposição do Presidente do Conselho de Ministros prussiano. A fuga da representação torna-se universal e assume formas estranhas. Onde se se expõe à vida pública, gosta-se de o fazer discretamente ou em partes da esfera privada e íntima. Evita-se mostrar uma outra qualidade que não a de indivíduo. Mostra-se à massa como se come e bebe, e o que se faz no desporto ou nas casas de campo; surgem aquelas imagens em que o ministro aparece em fato de banho, o monarca constitucional em traje de rua e num ambiente ligeiro de conversa. No começo do século, a decadência no modo como as massas se vestem corresponde à decadência da fisionomia individual. Talvez não haja nenhum outro tempo em que se se encontra tão mal e absurdamente vestido como agora. Esta visão desperta a impressão de que é como se a substância de imensas feiras da ladra se espalhasse sobre as ruas e as praças numa enorme variedade, e aí fosse nivelada com uma dignidade grotesca. Já se sentiu isto de muitos modos antes da guerra e, como se pode observar dentro do movimento juvenil alemão, já se tentou alterá-lo. Esta tentativa, no entanto, por causa da atitude romântico-individualista que lhe estava subjacente, estava condenada ao fracasso. Diga-se de passagem, o vestuário burguês faz uma figura infeliz particularmente no alemão. Daqui se explica que se o “reconheça” no estrangeiro com uma segurança infalível. A razão deste muito notório fenómeno está em que, no mais íntimo, lhe falta qualquer relação à liberdade individual e, deste modo, à sociedade burguesa. Tal expressase também na atitude. Daí que onde se o encontra no papel do viajante por divertimento ou do viajante em comitiva, ele desperta a impressão de um peculiar embaraço e de uma particular desarticulação: falta-lhe urbanidade. No entanto, estas coisas mudam-se por todo o lado onde se nos depara o singular já dentro das construções orgânicas, ou seja, em

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contacto imediato com o carácter especializado do trabalho. Temos aqui de trazer de novo à memória que este carácter do trabalho nada tem a ver com a profissão ou com a actividade operante, no sentido antigo, mas que possui o significado de um novo estilo, de um novo modo no qual a vida em geral aparece. Neste sentido, o vestuário burguês tornou-se civil, o qual já não se encontra em geral onde o estilo de trabalho começa a romper, isto é, onde hoje uma coisa é tratada com seriedade real. Já se pode falar aí de uma farda típica de trabalho, de uma farda que possui o carácter de um uniforme na medida em que o carácter do trabalho e o carácter do combate são idênticos. Talvez em nenhum lugar se possa observar isto melhor do que na mudança que se realiza em relação ao próprio uniforme, na mudança cujo primeiro sinal se anuncia em as cores variadas da farda se reduzirem aos matizes monótonos da paisagem do combate. Este é um dos símbolos em que a dissolução do estado guerreiro se torna visível, e ele aparece, como todos os símbolos do nosso tempo, sob a máscara de uma legalidade absoluta. O desenvolvimento desemboca em o uniforme do soldado aparecer cada vez mais inequivocamente como um caso especial do uniforme de trabalho. Falta aqui também a diferença entre o uniforme de guerra e de paz ou de parada. A parada é a imagem simbólica da suprema preparação para a guerra e, enquanto tal, expõe os últimos e mais eficazes meios do tempo. A farda de trabalho não é uma farda de estado, tão pouco como o próprio trabalhador deve ser tomado como o representante de um estado. Muito menos se pode considerá-la como uma característica de classe, ou seja, como a farda do proletariado. O proletariado, neste sentido, é a massa de estilo antigo, tal como a sua fisionomia individual é a do burguês sem colarinho. Representa um conceito económicohumanitário muito vago, mas não uma construção orgânica, ou seja, um

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símbolo da figura — do mesmo modo que o proletário deve ser tomado como indivíduo sofredor, mas não como tipo. Enquanto o vestuário burguês se desenvolveu com base nas velhas fardas dos estados, a farda de trabalho ou o uniforme de trabalho indicam um carácter em si autónomo e completamente diferente; elas pertencem às marcas exteriores de uma revolução sans phrase. A sua tarefa não é a de realçar a individualidade, mas a de acentuar o tipo — daí também que apareçam por todo o lado onde se formam novas equipas, seja na área do combate, do desporto, da camaradagem ou da política. Do mesmo modo, tornam-se visíveis nas muitas ocasiões onde se pode falar de uma equipagem96, ou seja, onde o homem pode ser visto numa estreita união — numa união centáurica — com os seus meios técnicos. É manifesto que se multiplicam as ocasiões em que se torna exigível uma farda especial. Mas o que talvez ainda não seja tão manifesto é o facto de que, debaixo da soma destas ocasiões, se esconde o carácter total do trabalho. Surge

assim

que

as

massas

apareçam

aos

Domingos

particularmente mal vestidas — em todo o caso, pior do que as equipas desportivas ou os corredores de automóveis para cujos desafios afluem, mas pior também do que a maioria dos singulares que a compõem na sua actividade quotidiana. Tal relaciona-se, por um lado, com o Domingo ser um símbolo de certas ordens de culto em decadência, e, por outro, com o conceito de quarto confortável do qual o homem se separa de má vontade. Um tal quarto confortável é também a individualidade; fica-selhe agarrado, procura-se expressá-lo, apesar de se reduzirem e desvalorizarem as ocasiões em que se pode fazer uso dele. A partir daqui explica-se também a grande fraqueza e insegurança da atitude ideológica que hoje se pode observar no singular, em oposição ao 96

N. do T.: A palavra traduzida como equipagem é Besatzung: expressa o conjunto das tropas que ocupam (besitzen) território inimigo, mas também a guarnição que se une na defesa de algo ou a equipagem de homens que em conjunto fazem funcionar determinados meios técnicos. A tradução por equipagem pareceu-nos, no contexto, devida à sua abrangência, a mais conveniente.

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significado e ao carácter consequente dos contextos objectivos em que está incluído. Este desequilíbrio, esta perda, no entanto, torna-se-á imperceptível na mesma medida em que o carácter total do trabalho aumentará as suas reivindicações aos singulares. Sabemos que esta reivindicação dirige-se ao todo. À representação de uma imagem total do mundo, tal como começa a emergir atrás das máscaras racionais e técnicas, pertence também uma unidade bem articulada da farda em que surge então um sentido completamente novo. Limitemo-nos, por agora, ao presente. Observámos que a farda, assim como o hábito em geral, seja em conjunto com a formação de novas equipas, seja em ligação com o emprego de meios técnicos, se torna mais primitiva — mais primitiva num sentido que se pode tomar como uma característica relativa à raça. A caça e a pesca, a estadia sob determinados climas, a lida com animais, em particular com cavalos, geram uma uniformidade semelhante. Esta uniformidade é uma das marcas do aumento dos contextos objectivos pelos quais o singular é reivindicado. A soma destes contextos objectivos está concebida em crescimento; já roçámos alguns, e tocaremos outros quando se falar mais de perto das construções orgânicas.

37. Partimos da impressão de máscara que a visão do tipo desperta e que também é sublinhada pela farda. Algumas considerações sobre a atitude e a gestualidade poderão completar o esboço desta primeira impressão. Na concepção de homem e de grupos humanos, tal como se pode estudar na pintura dos últimos cem anos, trai-se um progressivo ataque à determinação do contorno. A relação dos homens uns com os outros, tal como a escola romântica nos colocou diante dos olhos em

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partes de ruas, praças, parques ou espaços fechados, está ainda animada por uma harmonia tardia, por uma segurança fugaz, na qual ressoa o grande modelo e que corresponde à sociedade da restauração. Só a partir desta atmosfera são concebíveis aqueles escândalos que se podiam ligar ao emergir dos primeiros retratos impressionistas nos salões e que são para nós hoje completamente incompreensíveis. Encontramos aqui o homem, seja singularmente ou em grupos, numa atitude estranhamente relaxada e descontextualizada, que, de modo variado, ainda precisa da penumbra para se desculpar. Assim, os jardins no brilho dos lampiões, os boulevards na luz artificial dos primeiros candelabros a gás, as paisagens na névoa, no crepúsculo ou no brilho reluzente do Sol são amados como motivos. Este processo de decomposição intensifica-se de década em década até atingir, numa série de espantosas e em parte brilhantes ramificações, as fronteiras do niilismo; corre em paralelo com a morte do indivíduo e a eliminação da massa como meio político. Quase já não se pode falar aqui de escolas artísticas, mas antes de uma série de estações clínicas através das quais é registada e mantida qualquer convulsão que um organismo em declínio traz à luz. A sedimentação desta inexorabilidade com que uma música colorida acompanha o declínio e o sofrimento do indivíduo não apresenta, no entanto, a única fonte óptica que está à disposição da observação. Não é nenhuma coincidência casual que, ao mesmo tempo da incisão indicada, o olhar frio e desapaixonado do olho artificial comece a incidir sobre homens e coisas, e há uma relação muito elucidativa entre aquilo que o olho do pintor consegue reter e aquilo que o consegue a lente fotográfica. Deve-se aqui mencionar um facto de que só brevemente, com espanto, se tomou conhecimento: que os primeiros retratos fotográficos são muito superiores aos hodiernos quanto ao carácter individual. Em muitas destas imagens anuncia-se a atmosfera de pinturas, de um modo

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que esbate as fronteiras entre arte e técnica. Procurou-se explicar isto através de diferenças de procedimento, através de diferenças como as que existem entre trabalho manual e trabalho mecânico: e também isto está certo. Mas o resultado sobreposto é o de que o raio de luz, nesse tempo, encontrava ainda um carácter individual de uma densidade muito maior do que é hoje possível. Este carácter, que se reflecte a si mesmo nos mais pequenos objectos de uso que permaneceram conservados, dá também àquelas imagens a sua dignidade particular. A queda da fisionomia individual e social, tal como a trata a pintura, também se pode então acompanhar na fotografia; conduz a um plano em que a observação de vitrinas, tal como as expõem os fotógrafos nos subúrbios, se torna numa vivência fantasmagórica. Mas, ao mesmo tempo, pode-se observar um aumento na precisão dos meios, que seria impensável se o seu sentido se devesse limitar à fixação do insignificante. Também não é este de modo nenhum o caso. Descobrimos antes que a vida começa a mostrar partes que são particularmente apropriadas para a lente, e isso de um modo completamente diferente do que para o lápis de desenho. Isso vale sobretudo onde a vida entra na construção orgânica e, assim, também para o tipo, que aparece com e nestas construções. O sentido da fotografia muda-se para o tipo, e, deste modo, também se muda aquilo que se compreende por um “bom rosto”. A direcção desta mudança apresenta-se também aqui como um progredir da ambiguidade para a inequivocidade. O raio de luz procura qualidades diferentes,

nomeadamente

intensidade,

determinação

e

carácter

objectivo. Pode-se indicar os inícios nos quais a arte se procura orientar nesta lei óptica, e se procura equipar a partir daqui com meios de um novo tipo. Contudo, nunca se pode esquecer de que aqui não se trata de causa e efeito, mas de simultaneidade. Não há nenhuma lei puramente

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mecânica; estas mudanças na substância mecânica e orgânica estão reunidas pelo espaço sobreposto a partir do qual se determina a causalidade dos acontecimentos singulares. Assim, não há nenhum homem mecânico; há máquinas e homens — mas há certamente uma união profunda entre a simultaneidade dos novos meios e de uma nova humanidade. Para captar esta união, tem de se esforçar por ver através das máscaras do tempo, feitas de aço e humanas, para adivinhar a figura, a metafísica, que as movimenta. Assim, e só assim, a partir do espaço de um supremo carácter unitário, se pode tomar a relação existente entre uma espécie humana particular e os meios peculiares que estão à sua disposição. Por todo o lado onde aqui é sentida uma dissonância, o erro deve ser procurado no local do observador, mas não no ser.

38. Na fotografia, surge ainda mais claramente o facto de que aqui se realiza uma representação do tipo, não do indivíduo. No declínio do espectáculo clássico, cujas últimas e lamentáveis fases ainda vivemos, pode-se reconhecer um processo que já está decidido por volta do fim do século XVIII. Pois nele não se reflecte o declínio do indivíduo, mas da pessoa em que se expressa o mundo dos estados. Ao teatro não pertence apenas a peça, não pertence apenas o espectador; pertence-lhe o ar vital, que sopra das estradas e praças, das côrtes e das casas, e faz estremecer as chamas das velas nos lustres. Pertence-lhe o príncipe absoluto cujo presente visível forma o ponto central que garante a unidade interna do processo. Mas tudo isto, esta harmonia para nós totalmente irrepresentável, que se nos depara por vezes como o eco de uma música maravilhosa, torna-se mera reminiscência desde o instante em que o desejo do

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homem se orienta dos princípios absolutos para os princípios universais. O facto de a peça clássica ter perdido a relação à vida real anuncia-se em um novo círculo de espectadores a procurar para se edificar. Talvez nada torne esta perda de unidade mais clara do que o limite que se ergue entre o palco e o espaço do espectador; já há muito que desapareceram aquelas poltronas através das quais uma parte da plateia se estende até ao palco. No entanto, este limite invisível que transforma o palco em tribuna não apenas separa o espectador do actor, mas também separa o actor da peça. A decadência do teatro manifesta-se em o grande actor aparecer com a derrocada do mundo dos estados, e em começar a fazer um nome, como se pode observar em Londres, Paris e Berlim. Contudo, este grande actor não é nada senão o indivíduo burguês, cuja emergência pulveriza a legalidade da peça clássica também sobre o palco. Na vitória da concepção sobre as regras do jogo e os caracteres tradicionais repete-se a vitória do indivíduo sobre a pessoa. O teatro de côrte da monarquia constitucional decai numa ocasião cultural, numa instituição moral, num significado de museu. A vida pública que cada vez mais inequivocamente corporaliza não é a de um público privilegiado, mas a de um público que paga e a de uma crítica que é paga. Assim, de modo nenhum está apto a esquivar-se à sanção dos ataques sucessivos da anarquia vital, do chamado drama burguês e da discussão social. Em todo o caso, permanece uma aparência de unidade exterior, enquanto no palco popular da democracia burguesa o teatro se desmorona numa série de elementos autónomos e em combate. Encontramo-lo aqui como instrumento da formação universal, como empreendimento, como associação, como assunto de partidos, numa palavra, como expressão de todos os esforços que são peculiares à sociedade burguesa. Este teatro é certamente tão pouco teatro como esta sociedade é sociedade em sentido real. A ruptura decisiva, como se

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disse, surge cedo; tornou-se histórica nos grandes escândalos teatrais em que a velha sociedade expressou que já não se sentia a si mesma como unidade. Para poder ver nos cinemas, tal como se começam a desenvolver no nosso tempo, não uma continuação desta degradação num plano modificado, mas a expressão de um princípio que é pura e simplesmente de outro tipo, tem de ser claro que também aqui o carácter técnico, a aparelhagem, não é o decisivo. Tal resulta já de este carácter técnico também ter entrado no teatro, tal como se torna visível no palco giratório, nas representações em série e em outros fenómenos. O ponto de vista da qualidade através do qual o teatro se procura consolidar está, por isso, errado. Primeiro que tudo, tem de se saber que hoje atrás da reivindicação de qualidade estão escondidas duas valorizações muito diferentes. A qualidade individual é muito diferente daquela que o tipo reconhece. Na última fase do mundo burguês, entende-se por qualidade o carácter individual, e particularmente o carácter individual, o modelo único, de uma mercadoria. Assim, o quadro de um velho mestre ou o objecto que se compra na loja de antiguidades tem qualidade num sentido completamente diferente do que era em geral representável no tempo do seu nascimento. O facto da publicidade, cuja tecnicidade é posta em movimento de um e mesmo modo para uma marca de cigarros como para a festa do centenário de um clássico, trai muito claramente até que ponto qualidade e valor comercial se tornaram idênticos. A qualidade, neste sentido, é uma subespécie da publicidade através da qual o carácter individual é apresentado à massa como uma necessidade. Mas como o tipo já não sente esta necessidade, este processo torna-se, em relação a ele, numa pura ficção. Assim, um homem que guia um determinado carro nunca se imagina seriamente estar na posse de um meio talhado para a sua individualidade. Pelo contrário, desconfiaria, e com razão, de um carro que só existisse num modelo único. O que implicitamente pressupõe como qualidade é antes o

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tipo, a marca, o modelo bem construído. A qualidade individual possui para ele, em vez disso, o estatuto de uma curiosidade ou de um assunto de museu. A mesma ficção é aplicada onde o teatro, em oposição ao cinema, reivindica para si qualidade, ou seja, neste caso, superioridade artística. O conceito de representação única surge aqui como a promessa de uma vivência única. Mas esta vivência única pertence às questões individuais de primeira importância. Era desconhecida antes da descoberta do indivíduo burguês, pois o absoluto e o único excluem-se necessariamente, e perde o seu significado num mundo em que o carácter total do trabalho começa a abrir caminho. A vivência única é a vivência do romance burguês, o qual é o romance de uma sociedade de Robinsons. O intermediário da vivência única no teatro é o actor na sua propriedade de indivíduo burguês; daí que também a crítica teatral se tenha transformado cada vez mais inequivocamente numa crítica de actores. Correspondem a isso as fatais definições a que o século XIX submeteu a arte, como um “pedaço de natureza, visto por um temperamento” ou um “dia de julgamento sobre o próprio eu” e coisas semelhantes — definições cuja característica comum está na elevada dignidade que é apontada à vivência individual. As controvérsias deste tipo sobre a qualidade são conduzidas sobre eixos que se tornaram imaginários. Para comparar entre o teatro e o cinema, a arte, como meio de comparação, não está dada de nenhum modo, e isso sobretudo num tempo em que ou já não se pode ou ainda não se pode falar de arte. A questão decisiva de que se trata e de que ainda hoje não se está de todo consciente é antes esta: através de qual destes dois meios o tipo se representa com uma maior intensidade. Só quando se conceber isto, só quando se conceber que aqui não se trata de diferenças de dignidade, mas de alteridade, estar-se-á apto para ver as coisas com o necessário desprendimento. Conceber-se-á a diferença que se apresenta no público de um teatro e de um cinema situado

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imediatamente ao lado, embora a soma dos singulares seja talvez a mesma em ambos os casos. Conceber-se-á porque é que se procura adivinhar no actor a individualidade, a concepção, enquanto esta individualidade, no actor de cinema, não pertence de todo aos pressupostos. Há uma diferença entre a máscara do carácter e o carácter de máscara de todo um tempo. O actor de cinema está subordinado a uma outra lei, na medida em que a sua tarefa assenta na representação do tipo. Daí que não se exija dele a unicidade, mas a inequivocidade. Não se espera que expresse a harmonia infinita, mas o ritmo preciso de uma vida. Cabe-lhe por isso representar a legalidade dentro de um espaço determinado e muito objectivo, cujas regras entraram na carne e no sangue até do último espectador. Talvez em nenhum lado se torne mais claro o quanto assim é do que onde o filme parece tratar o tema oposto, ou seja, a subordinação do homem a este espaço. Assim, o nosso tempo produziu um modo particular do grotesco, cuja comédia está em o homem aparecer como o joguete de objectos técnicos. São construídas casas altas só para que alguém se precipite delas, o sentido do tráfego é que se seja atropelado, o dos motores é que se expluda com eles. Esta comédia surge às custas do indivíduo que não domina as regras fundamentais de um espaço muito preciso e a gestualidade que lhes é natural; e o contraste que expressa assenta precisamente em estas regras serem completamente evidentes para o espectador. É então o tipo que se diverte à custa do indivíduo. Tem aqui lugar, no fundo, uma redescoberta do riso como característica

de

uma

inimizade

terrível

e

primitiva,

e

estas

representações no meio dos centros da civilização, no meio de espaços seguros, quentes e bem iluminados, são comparáveis a episódios de batalhas em que se abate com metralhadoras tribos armadas com arcos e flechas.

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O carácter inofensivo, a boa consciência, o desprendimento de todos os participantes são, em larga medida, características da revolução sans phrase. Este tipo de comédia, de destruição através do riso, pertence ao tempo da passagem. O seu efeito começa já hoje a empalidecer, e, quando dentro de cinquenta anos se desenterrar dos arquivos um tal filme, ele não será compreensível, tão pouco como hoje uma apresentação da Mère coupable97 ainda consegue voltar a despertar os sentimentos do indivíduo que se torna consciente de si mesmo. O facto de que aqui se trata do reflexo de um espaço de outro tipo resulta também da verificação de que a transposição de uma peça clássica para o teatro burguês pode ser tomada como uma repetição num meio mais fraco, enquanto na transposição para o cinema não permanece conservado sequer um vestígio do antigo corpo. No filme em que a peça clássica aparece como motivo, ela é muito menos aparentada com o seu modelo do que com o noticiário político ou com as cenas de caça em África que estão simultaneamente em cena. Mas isso é a característica de uma reivindicação de totalidade. Seja qual for a parte da história, seja qual for a paisagem geográfica, seja qual for o sector social que possa servir como tema, é a uma e à mesma questão que neste tema se procura responder. Daqui se explica que os meios com os quais se trabalha são, em larga medida, sincrónicos, uniformes e inequívocos — numa palavra, que são meios típicos. Tal é particularmente ilustrado através das características exteriores. O cinema não conhece nenhumas representações únicas e, em sentido autêntico, também não conhece nenhuma estreia; um filme passa ao mesmo tempo em todos os quarteirões da cidade e deixa-se repetir sem problemas, com uma precisão matemática que se estende aos segundos e aos milímetros. O público não é nenhum público particular,

nenhuma

comunidade

estética;

antes

apresenta

completamente a vida pública, que também se pode encontrar em 97

N. do T.: Título da peça de Beaumarchais, a qual encerra a trilogia composta pelo Barbeiro

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qualquer outro ponto do espaço vital. É também de notar que a influência da crítica diminui; é substituída pelo anúncio, ou seja, pelo publicidade. Do actor é exigida, como se disse, não a representação do indivíduo, mas do tipo. Tal pressupõe uma grande inequivocidade de mímica e gestualidade — uma inequivocidade que só ganhou intensidade há pouco, com a introdução da voz artificial, e que ainda aumentará através de outros meios.

39. Queremos aqui recordar mais uma vez que a nossa tarefa consiste em ver, não na valorização. Mas onde virmos, a objecção de que aqui talvez se trate de uma fruição completamente abstrusa é tão secundária como aquela outra de que o homem em armadura talvez tivesse mais valor do que o homem com a espingarda. A vida passa sobre tais objecções tidas como inadmissíveis, e a tarefa do realismo heróico é a de confirmar-se apesar disso e precisamente por isso. Não se trata para nós, como já foi dito noutros lugares, do velho ou do novo, também não se trata de meios ou de instrumentos. Trata-se antes de uma nova linguagem que, de repente, é falada, e o homem responde ou permanece mudo — e isso decide sobre a sua realidade. Este outro é a grande surpresa que mantém a vida em prontidão, o triunfo ou a morte. Emerge em pontos e irradia um círculo de aniquilação que se supera ou ao qual se sucumbe. O bater dos teares de Manchester, o matraquear das metralhadoras de Langemarck — são sinais, palavras e frases de uma prosa que quer ser interpretada e dominada por nós. Desiste-se quando se pensa em não ouvir isso, quando se pensa em liquidar isso como sem sentido. Trata-se de se

de Sevilha e As Bodas de Fígaro; a primeira representação teve lugar a 26 de Junho de 1792.

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adivinhar a lei secreta, mítica hoje e para todos os tempos, e de se servir dela como arma. Trata-se de ter em seu poder a linguagem. Se aqui nos compreendermos, já não é precisa mais nenhuma palavra. Também nos compreendemos em a observação do homem, a forma suprema de caça, prometer precisamente no nosso tempo uma presa particular. A crítica, a dúvida incondicionada, o trabalho infatigável da consciência amadureceram um estado que permite a observação imperturbada do crítico, o qual está demasiado ocupado para ver o que é simples. Achar-se-á que os homens não são significativos onde se têm como tal — não onde são problemáticos, mas onde não o são. Para servir Aasvero, não se o conduzirá para as bibliotecas onde se amontoa livro sobre livro — ou se se o conduzir para lá, será só para lhe mostrar como os livros estão ligados, que títulos se ama e como o público está vestido. Será preferível conduzi-lo para estradas e praças, para casas e côrtes, para aeroportos e metropolitanos — para onde o homem vive, combate ou se diverte, numa palavra, para onde está no trabalho. O gesto com que o singular abre e sobrevoa o seu jornal é mais elucidativo do que todos os artigos de fundo do mundo, e nada é mais instrutivo do que estar um quarto de hora num cruzamento de ruas. O que seria então mais simples ou também mais entediante que o automatismo do tráfego — mas não é isto também um sinal, uma imagem para o quanto hoje o homem se começa a movimentar sob comandos silenciosos e invisíveis? O espaço vital ganha em inequivocidade, em evidência; ao mesmo tempo, cresce a ingenuidade, a inocência com que se se movimenta neste espaço. Mas aqui esconde-se a chave para um outro mundo. Levanta-se agora a questão de saber se atrás das máscaras do tempo nada mais há para procurar senão a morte do indivíduo que enrijece a fisionomia e que, no fundo, significa mais e algo mais doloroso do que apenas o corte que separa dois séculos. Pois este corte significa,

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ao mesmo tempo, a última volatilização da alma antiga, cuja dissolução começou já cedo, com a conclusão de estados universais e antes da emergência da pessoa absoluta.

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A DIFERENÇA ENTRE AS HIERARQUIAS DO TIPO E DO INDIVÍDUO

40. Considerámos as características exteriores do tipo em exemplos cujo número se deixa multiplicar de um modo qualquer. O processo comum que está subjacente a estas características consiste no desaparecimento da individualidade, o qual é sentido como perda nas variadas situações da passagem. Pode-se acompanhar esta perda desde as supremas formas de sacrifício até às do definhar vegetativo, da morte burguesa. O representante eminente do indivíduo, o génio, é em primeiro lugar apanhado pela atmosfera de declínio. O ataque da morte às massas, que se cumprirá ainda ininterruptamente e num tempo indeterminado, seja ele invisível ou visível e catastrófico, conclui o processo. Quando se reconhecer isso, já não vale a pena ocupar-se com os pormenores. Tem, no entanto, de ser claro que esta definição do tipo possui um carácter negativo. Quando se retira o indivíduo do indivíduo, é o nada que fica. Esta demonstração foi empreendida vezes sem conta no nosso tempo, prática e teoricamente, e com um grande gasto de meios. Podese trancar as actas, quando se alcançou este ponto — pressupondo-se que ainda se pensa fixar-se no conceito de desenvolvimento, que pertence aos conceitos nucleares da mundividência do século XIX. É o curso de um desenvolvimento ilimitado, o movimento indefinido da razão

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sobreposta à natureza, que confirma a vivência única do indivíduo e lhe dá perspectivas. Mas nada nos obriga a fixarmo-nos nos dicionários dos quais estes conceitos são retirados. A conclusão do desenvolvimento do indivíduo, isto é, a sua morte, é uma característica do tipo apenas na medida em que pertence aos seus pressupostos incondicionais. Só a completa dilaceração, o tornar-se sem sentido das velhas articulações, torna possível que surja a realidade de um outro campo de forças. A característica muito mais importante e a liberdade autêntica do tipo consiste precisamente em ele pertencer a um tal campo de forças. Este campo é dominado pela figura do trabalhador. Mas onde surgem figuras, retira-se, como qualquer conceito, também o conceito de desenvolvimento. A figura não exclui o desenvolvimento, mas inclui-o, como uma projecção no plano causal — do mesmo modo que aparece como um novo centro de historiografia. A força essencial do tipo está em ele se referir a um outro presente, a um outro espaço, a uma outra lei, como cujo ponto central é dada a figura — numa palavra, em ele falar uma outra linguagem. Mas onde é falada uma outra linguagem, está encerrado o debate e começa a acção. Começa a revolução, como cujo mais forte meio se pode considerar a pura existência, o mero estar presente. Esta existência está em si acabada, é senhora da enciclopédia dos seus conceitos; não se submete, em relação à hierarquia, a nenhuma comparação, mas contém em si mesma os meios que são exigíveis para a verificação desta ordem. Se assim é, então as marcas de uma hierarquia peculiar têm de estar já assentes na primeira emergência do tipo. Assim, aquilo que faz aparecer como muito difícil, à primeira vista, a verificação de uma nova hierarquia, é o facto de um nivelamento abrangente a que a substância humana se mostra submetida. Esta terraplanagem parece já começar com a marcha triunfal dos princípios

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universais, com a exigência da igualdade de tudo aquilo que tem um rosto humano. Só que se mostra, num olhar mais intenso, que esta igualdade possui as suas fronteiras. Tal como o conceito de desenvolvimento forma o pano de fundo natural, assim o conceito de liberdade burguesa forma o pano de fundo jurídico através do qual o indivíduo se vê confirmado na posse da sua vivência única. Mas aqui cessa a partição. O indivíduo é, como já diz o seu nome, a molécula inatacável da ordem do mundo, cujas articulações ele determina através de ambos os pólos — que lhe são dados pelo direito natural — do racional e do costume. Esta dignidade não apenas lhe é confirmada através das primeiras frases de todas as constituições do século XIX, mas também através das grandes palavras com as quais o espírito saúda a sua primeira emergência, desde a “lei moral em mim” até à “suprema felicidade das crianças da terra”, que é vista na consciência da “personalidade”. Só assim, enquanto culto do indivíduo, se pode conceber também o enorme efeito que a fisionomia por volta do fim do século XVIII desencadeou. É a descoberta do indivíduo ético, que coincide temporalmente com a descoberta do indivíduo natural e, deste modo, racional no Taiti. À mesma tensão pertencem também as palavras “genial” e “sentimental”. Este culto produz então um estado em que não apenas a história da cultura e a história da guerra são vistas como resultado da vontade individual, sob a particular primazia da Renascença e da Revolução Francesa — mas em que são também, em parte, substituídas pela biografia do indivíduo histórico e artificial. Surgem assim inteiros sistemas de biografias, nos quais a existência do indivíduo significativo é lavada e desfiada até ao dia e à hora. O material é inesgotável, pois é de novo a concepção individual que o pode, de um modo qualquer, iluminar. O tema é sempre o mesmo; trata do desenvolvimento e da vivência única. A mesma medida é levada também para o indivíduo económico, que está no ponto central da observação

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económica, seja como o portador da produção, seja como orgão da iniciativa no meio de um desenvolvimento progressivo que doravante aparece como a lei de bronze económica da concurrência. Para conceber que neste espaço a igualdade teórica se possa muito bem unir com uma hierarquia prática, tem de se saber que o indivíduo se deixa considerar aqui, à vontade, como a regra ou como a excepção. A descoberta do homem que enebriou os espíritos é uma descoberta com limitações; ela só se relaciona ao homem na sua propriedade específica enquanto indivíduo. Na medida em que o singular, enquanto tal, emerge, pode permitir-se muito; dispõe de privilégios maiores do que o que em outros tempos, mais rigorosos, foi possível. Assim, um conceito de propriedade determinado concede ao indivíduo económico um grande poder de dispor, o qual não é responsável nem pela comunidade, nem pelo passado e pelo futuro. Um fornecedor de armamento pode produzir meios de guerra para qualquer poder. Uma nova invenção é uma parte da existência individual; cabe, consequentemente, a quem oferece mais. Uma das primeiras medidas que se encontraram na Alemanha depois da vitória definitiva do indivíduo consistiu não na nacionalização da grande propriedade fundiária, mas na supressão do fideicomisso e do morgado, isto é, na transferência da propriedade da estirpe para o indivíduo. Do mesmo modo, notar-se-á uma muito particular e peculiar excitação por todo o lado onde o indivíduo significativo, como o indivíduo artístico, chega ao contacto com o processo criminal. Teoricamente, qualquer cidadão é igual diante da lei, mas, na prática, há o desejo de ver qualquer caso como caso de excepção, ou seja, como uma vivência única. A demonstração da individualidade é, no mínimo, um atenuante; daí que o parecer médico, e também nos últimos tempos o psicológico, do mesmo modo que, em certos casos, a indicação social, se insira cada vez mais fortemente na jurisprudência.

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Correlativamente, para o portador da individualidade proclamada, como a literária, o processo transfigura-se numa espécie de publicidade, num fórum a partir do qual o singular acusa a sociedade. Já foi focada a avaliação da existência individual, tal como se expressa no combate exasperado em torno da pena de morte e está num estranho desequilíbrio em relação ao número das mortes dos nascituros. Tudo isto comprova o facto de que se possui dignidade, neste espaço, na mesma medida em que se dispõe da individualidade. É evidente que aqui, como em todo o lado, há regras de combate: a individualidade é precisamente a arma que se começa a empregar, e este facto encontrou talvez a sua mais precisa conversão no dito que se tornou famoso acerca do caminho livre para quem for apto. Mas quem aqui é o apto não precisa de nenhuma interpretação.

41. A partir deste espaço, o facto de o tipo já não tomar parte neste tipo de hierarquia só pode ser interpretado como uma característica de ausência de valor. O objectivo da actividade educativa que transformou o burguês em trabalhador não consistia em nada mais do que torná-lo portador desta hierarquia específica — do que fazê-lo participar decisivamente deste prosseguimento da velha discussão. Mostra-se, no entanto, no nosso tempo que um tal prosseguimento já não é de todo possível. Daí que possa valer a pena trazer para mais próximo da vista esta aparente ausência de valor, para ver se talvez não esteja já nela contida a indicação de uma hierarquia de um tipo completamente diferente. É de supor que se comece com a relação do homem ao número, pois a reprovação de ausência de valor reveste-se de preferência na fórmula de o singular se ter tornado cifra.

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A mudança que aqui teve lugar deixa-se expressar o melhor possível em no século XIX o singular aparecer como variável, e a massa como constante, enquanto no século XX, pelo contrário, o singular aparece como constante, mas se pode observar nas formações em que emerge uma grande mutabilidade. Tal liga-se a que as exigências feitas à energia potencial da vida aumentem ininterruptamente — mas isso pressupõe um mínimo de resistência no singular. A massa é, segundo a sua essência, desprovida de figura; daí que seja suficiente a igualdade puramente teórica dos indivíduos que são as suas pedras de construção. A construção orgânica do século XX, pelo contrário, é uma formação de tipo cristalino; daí que exija do tipo que nela emerge, numa medida completamente diferente, estrutura. Isso traz consigo que a vida do singular ganhe em inequivocidade, em matemática. Daí que já não continue a ser espantoso que o número, e mesmo a cifra precisa, comece a desempenhar um papel crescente na vida; isto está em relação com o carácter de máscara do tipo, do qual já se falou. Como contrapartida do irromper revolucionário da fisionomia, por volta do fim do século XVIII, pode-se aqui mencionar o renascimento da astrologia,

à

primeira

vista

enigmático,

de

que

nos

tornámos

testemunhas. Esta preferência tem tão pouco a ver com a astrologia clássica como a quiromancia com a moderna dactiloscopia. Vem antes ao encontro de uma inclinação do tipo que se refere a constelações precisas. Onde se fundem as diferenças individuais, aumenta o significado da natividade. Correlativamente, mudam-se também os meios para a verificação da identidade. O indivíduo, para verificar a identidade do próprio eu, refere-se a valores através dos quais se diferencia — ou seja, refere-se à sua individualidade. O tipo, pelo contrário, mostra-se num esforço para procurar marcas que estejam situadas fora da existência singular. Deparamos assim com uma caractereologia matemática e “científica”, com uma investigação da raça, que se estende até à medição e à

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contagem dos glóbulos sanguíneos. Ao desejo espacial de uniformidade corresponde, no temporal, a preferência pelo ritmo, em particular também pela repetição — ela conduz aos esforços para ver inteiras imagens do mundo como repetições, segundo uma lei rítmica, de um e do mesmo processo fundamental. Não é menos elucidativo que a representação do infinito se comece a modificar. Vem à luz uma tendência que procura captar de acordo com uma cifra tanto o infinitamente pequeno como o infinitamente grande, o átomo e o cosmos, o “céu estrelado sobre mim”. É o mesmo caso com as partes infinitamente pequenas; surge uma particular arte de medir os processos vibratórios em que, não sem razão, o cristal desempenha um papel. Finalmente, a parte infinitamente pequena perde também, no desenvolvimento, o seu carácter indeterminado; a variação, a partir de cuja infinita concorrência individual se desdobram as espécies, torna-se mutação, a qual se torna visível, repentina e decisivamente, como uma grandeza determinada. Todos estes processos só se podem interpretar se se adivinhar, atrás deles, o domínio da figura que põe ao seu serviço o sentido do tipo, ou seja, do trabalhador. A figura não se pode captar através do conceito universal e espiritual da infinitude, mas através do conceito particular e orgânico da totalidade. A completude traz consigo que aqui a cifra apareça numa dignidade completamente diferente, ou seja, numa referência imediata à metafísica. Concebe-se que no mesmo instante a física se tenha de alterar, que tenha de ganhar um carácter mágico? Não menos significativa é a maneira em que a cifra aparece na vida quotidiana. Tal pode-se observar nos ataques, tão subtis como obstinados, através dos quais ela procura substituir o nome das pessoas. Pertence a isto já a ordenação alfabética dos catálogos e registos não numéricos, através da qual se encontra um esclarecimento sobre o singular. A ordenação alfabética atribui um valor de cifra às letras; e há uma grande diferença na sequência dos nomes, tal como ela se pode

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estudar numa velha lista de patentes militares ou numa moderna lista de telefones. Do mesmo modo que se acumulam as ocasiões em que o singular aparece de máscara, multiplicam-se os casos em que o seu nome surge em estreito contacto com a cifra. Tal é o caso nas variadas ocasiões, que diariamente se multiplicam, em que se pode falar de uma ligação. O serviço de energia, de tráfego, de informação aparece como um campo em cujo sistema de coordenadas o singular se pode assinalar como um ponto determinado — “ele é talhado”, como quando se coloca o disco de números de um telefone automático. O valor funcional de tais meios cresce com o número dos participantes — contudo, este número nunca aparece como medida no velho sentido, mas constantemente como uma grandeza que, em cada instante, se pode precisar de acordo com a cifra. Também o velho conceito de firma se mostra submetido a esta transformação; já não é o nome do titular que transmite a garantia essencial; daí que também seja empregue, como na publicidade, já não como meio individual, mas como meio típico. Correlativamente, multiplicam-se os casos em que os nomes das firmas surgem através do emprego abstracto do alfabeto, ou seja, da junção de umas letras iniciais quaisquer. Em particular, é na estatística que emerge o desejo de dar a cada relação uma expressão de acordo com a cifra. Aqui, a cifra aparece no papel do conceito que, de qualquer ponto de vista, penetra de modo variado uma e a mesma substância. A partir deste desejo, desenvolveuse um tipo de argumentação lógica em que é atribuído à cifra valor de prova. Mais importante é a metódica em que o singular é iluminado não se limitar a vê-lo como parte de uma soma, mas esforçar-se por implicálo numa totalidade de fenómenos. Tal torna-se talvez claro na diferença que existe entre, por um lado, um recenseamento ou uma contagem de boletins de voto e, por outro, os resultados em pontos de um exame psicotécnico ou de uma tabela de desempenhos técnicos.

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De sublinhar é também ainda o recorde enquanto a valorização, de acordo com a cifra, de desempenhos humanos ou técnicos. Ele é o símbolo de uma vontade de um ininterrupto registo da energia potencial. Do mesmo modo que espacialmente há o desejo de poder alcançar o singular, em qualquer tempo e em qualquer ponto, há dinamicamente o desejo de ser constantemente informado sobre as mais extremas fronteiras da capacidade de desempenho.

42. É claro que a vivência única e individual, neste espaço que se tornou muito preciso e muito construtivo, com os seus relógios e aparelhos de medição, se substitui pela vivência inequívoca e típica. O desconhecido, o misterioso, o mágico, a multiplicidade desta vida está na sua totalidade fechada, e participa-se neste mundo na medida em que se está nele implicado, mas não na medida em que se lhe está contraposto. A bipolaridade do mundo e do singular constitui a felicidade e o sofrimento do indivíduo. O tipo, pelo contrário, dispõe cada vez menos dos meios para se separar criticamente do seu espaço, cuja visão, a um olhar estranho, tem de aparecer como um conto terrível ou maravilhoso. Este processo, esta fusão manifesta-se no crescimento dos contextos objectivos pelos quais o singular é reivindicado. Daí também que as descobertas, neste espaço, já não apareçam como maravilhosas, que elas pertençam a um estilo de vida evidente. A nova descoberta do mundo através de voos audaciosos, que acontece nos nossos dias, não é o resultados de desempenhos individuais, mas de desempenhos típicos que hoje aparecem como recorde e amanhã se tornaram num hábito diário. Do mesmo modo, a descoberta de uma nova paisagem, como a de uma cidade ou de um campo de batalha, pertence às vivências típicas. Daí também que o relatório significativo já não seja o

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relatório individual e único, mas o que é confirmado pelo tipo. O muito lamentado declínio da literatura não significa outra coisa senão que um questionamento literário envelhecido perdeu a sua dignidade. Hoje, sem qualquer dúvida, um guia dos caminhos de ferro possui um significado maior do que o último desfiar da vivência única pelo romance burguês. Quem procurar erguer esta vivência a ponto central de uma paisagem de trabalho ou de combate, torna-se ridículo. As coisas não estão aqui de tal modo que o novo espaço é desapropriado para uma captação literária, mas antes de tal modo que qualquer questionamento individual tem de resvalar nele. Esta captação é uma tarefa que, na sua legalidade peculiar, ainda só está para descobrir. Só quando for este o caso se pode voltar a falar em geral de livros e de leitores. Pertence, além disso, a este contexto que o morrer se tenha tornado mais simples. Pode-se fazer esta observação em todo o lado onde se vê o tipo a obrar. As incontáveis vítimas que a viagem aérea exige não são capazes de influenciar o processo no mínimo que seja. Certamente que o mesmo se pode afirmar também da viagem marítima: navigare necesse est. Só que há uma diferença entre o declínio pela violência da natureza e o conceito de acidente, tal como se desenvolveu no nosso espaço. Se se quiser falar em ambos os casos de destino, o destino aparece num como a intervenção de potências incalculáveis, e no outro numa estreita relação ao mundo da cifra. Tal dá-lhe um particular traço de seca necessidade. No que toca ao sentimento, pode-se verificar isso, seja em si mesmo ou em outros, onde a proximidade da morte aparece em conjunto com altas velocidades. Esta velocidade cria uma espécie de austera embriaguês, e um bando de corredores, dos quais cada singular se senta ao volante como uma boneca, dá uma impressão de estranha mistura de precisão e de perigo que é peculiar aos movimentos aumentados do tipo.

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Ainda mais intensamente surge esta relação onde o homem dispõe activamente da vida e da morte. O tipo mostra-se ocupado na construção de armas que lhe são particularmente características. O tipo de armas e o seu emprego modificam-se segundo são dirigidos contra a pessoa, contra o indivíduo ou contra o tipo. Onde a pessoa surge em combate, o confronto, independentemente de se defrontarem singulares ou corpos de exércitos fechados, é guiado segundo as regras do duelo. A este estado corresponde que se procure encontrar o opositor através de armas manuais. Mesmo o velho artilheiro, o mestre de artilharia, é ainda, de algum modo, um artesão. O indivíduo surge en masse; ele tem de ser atingido por meios que tenham um efeito massivo. Daí que, ao mesmo tempo com a sua entrada no espaço de combate, apareça a “grande bateria” e, mais tarde, com a industrialização, a metralhadora. Para o tipo, pelo contrário, o campo de batalha é o caso especial de um espaço total; daí que se represente no combate através de meios aos quais é peculiar um carácter total. Assim, emerge o conceito de zona de aniquilamento, o qual é feito através do aço, do gás, do fogo ou de outros meios, e também através da actuação política ou económica. Nestas zonas, já não há qualquer diferença de facto entre combatentes e não combatentes. Daí que já na última guerra a discussão do direito internacional sobre locais abertos e fortificados, navios de guerra e comerciais, bloqueio e liberdade dos mares, tenha assumido um carácter puramente propagandístico. Na guerra total, qualquer cidade, qualquer fábrica é um local fortificado, qualquer navio comercial é um navio de guerra, qualquer meio de subsistência é contrabando, qualquer medida activa ou passiva tem um sentido guerreiro. Que o tipo, pelo contrário, seja encontrado como singular, como soldado, é de significado secundário — ele é encontrado no ataque ao campo das forças em que está implicado. Mas tal é a característica de uma crueldade muito aumentada, de uma crueldade muito abstracta.

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O acto de morte mais abrangente que hoje se pode observar dirige-se contra os que não nasceram. É de prever que este fenómeno, que, em relação ao indivíduo, possui o sentido de uma maior garantia da condução da vida do singular, desempenhará no tipo o papel de um meio de política de povoamento. Do mesmo modo, pode-se adivinhar sem dificuldade a redescoberta da muito velha ciência da política de despovoamento. Pertencem já aqui os famosos “vingt millions de trop”, um aperçu que entretanto ganhou visibilidade através do surto populacional, um meio através do qual se se começa a desembaraçar, por via administrativa, de camadas sociais e nacionais.

43. É iniludível que, neste espaço, as reivindicações que são feitas aos

singulares

aumentam

numa

medida

que

até

agora

era

completamente irrepresentável. Às relações que aqui emergem já não se pertence com a possibilidade de rescisão, mas através de uma implicação existencial. No mesmo grau em que se dissolve a individualidade, reduz-se a resistência que o singular consegue contrapor à sua mobilização. Com cada vez menos efeitos, extingue-se o protesto que surge da esfera privada. Queira o singular ou não o queira — ele torna-se responsável até à última pelos contextos objectivos em que está implicado. As leis da guerra valem também para a economia e para qualquer outro âmbito: já não há qualquer diferença entre combatentes e não combatentes. Podem-se reunir bibliotecas inteiras em que ressoa, em milhares de variações, o lamento do homem que se vê repentinamente atacado a partir de zonas invisíveis e se vê despojado, em cada perspectiva, do seu sentido e dos seus bens. Este é o grande, o único

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tema da literatura do declínio dos nossos dias, mas já mais nenhum tempo está na disposição de se ocupar com isso. Este tipo de implicação não conhece quaisquer excepções. Encontra a criança no berço, mesmo no corpo da mãe, tão seguramente como o monge na cela ou como o negro que, na floresta virgem tropical, rasga a casca da árvore da borracha. É, portanto, total, e diferencia-se da implicação teórica nos direitos humanos universais por ser completamente prática e irrecusável. Podia-se decidir ser ou não ser cidadão; esta liberdade de decisão, no entanto, já não está dada em relação ao trabalhador. Com isto já está circunscrito o mais abrangente nível de uma hierarquia diferente; consiste na pertença inevitável ao tipo, a qual é de acordo com o ser, numa formação, numa impressão da figura que se realiza sob a pressão de uma legalidade de aço. Este tipo de implicação pressupõe outras propriedades, outras virtudes do homem. Pressupõe que o homem não apareça isolado, mas precisamente implicado. Contudo, assim a liberdade já não significa uma medida cujo padrão é formado através da existência individual do singular, mas consiste no grau em que se expressa, na existência deste singular, a totalidade do mundo em que ele está implicado. Está aqui dada a identidade da liberdade e da fidelidade — de uma fidelidade que pressupõe que os velhos vínculos sejam desmantelados até ao último vestígio. Os lamentos sobre a perda destes vínculos são hoje tão numerosos como aqueles sobre a perda da individualidade. Mas o tipo de modo nenhum é destituído de vínculos; subordinase aos vínculos peculiares e mais rigorosos do seu mundo, dentro dos quais não pode ser tolerada nenhuma articulação diferente. A vivência do tipo não é, como se disse, única, mas inequívoca; ligado a isto está que o singular não é insubstituível, mas completamente substituível, e isso numa medida que é igual às exigências de qualquer boa tradição. O tipo está remetido, de um modo completamente diferente, às virtudes da ordem e da subordinação, e a desordem de todas as relações vitais que

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caracteriza a nossa época de passagem explica-se a partir de as valorizações

do

indivíduo

ainda

não

estarem

dissolvidas

inequivocamente, ainda não estarem dissolvidas como estilo, pelas valorizações diferentes do tipo. Que a ditadura, em qualquer forma, se encontra cada vez mais necessariamente, é apenas uma imagem simbólica desta carência. Mas a ditadura é uma forma de passagem. O tipo não conhece nenhuma ditadura, porque liberdade e fidelidade são para ele idênticas. A este nível, que é o mais abrangente, a esta base da pirâmide, pertence qualquer singular sem excepção, de modo semelhante a como qualquer singular dentro de um exército ser tratado como soldado, independentemente de ocupar o posto de general, oficial ou praça. Este nível é formado pelo tipo, na medida em que pode ser tomado como expressão de uma espécie, no autêntico significado da palavra. No entanto, sobre esta substância, em que se corporaliza não um direito universal, mas uma obrigação total, começa já uma outra espécie activa a desenhar-se, na qual a raça autêntica se cunha de um modo mais intenso. Deve-se aqui repetir que raça, dentro da paisagem do trabalho, nada tem a ver com os conceitos raciais biológicos. A figura do trabalhador mobiliza a substância no seu conjunto, sem qualquer diferença. Se consegue precisamente em determinadas regiões gerar formas maiores, e as mais elevadas formas, isso nada altera na sua independência. Assim, para referir um exemplo que deve aliás ser entendido com cuidado, pode ser correcto que o cobre conduza melhor do que qualquer outro metal. Mas isso nada altera em a electricidade ser independente do cobre. É então muito possível que o “ocidental” possa vivenciar surpresas. No espaço do trabalho nenhuma outra coisa decide senão o desempenho através da qual se expresse a totalidade deste espaço. Isto é poder, e isto põe o ponto de referência num sistema cuja situação se pode muito bem e muito significativamente alterar. Este

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desempenho é incontestável na medida em que é corporalizado através de símbolos objectivos, fácticos. Pertence à virtude do tipo que ele reconheça tais símbolos, onde quer que possam aparecer. Mas regressemos à espécie activa, ao portador do segundo nível desta hierarquia. Esta espécie pode-se encontrar por todo o lado onde o carácter especial do trabalho se torna claro. O que a distingue é ela não possuir apenas uma formação passiva, mas também uma direcção. Dentro

das

profissões

e

das

terras,

pode-se

reconhece-la,

independentemente da especificidade da sua actividade, em já poder ser tratada inequivocamente como trabalhador. Isto explica-se por já estar em relação à metafísica, em relação à conformidade desta actividade com a figura. Tem-se hoje por vezes já a sorte de entrar no círculo de tais existências, em torno das quais, como em torno de pontos, a nova ordem se

cristaliza.

Manifesta-se

aqui,

independentemente

das

velhas

diferenciações, uma elevada medida de ímpeto e de força irradiante que torna muito claro que, neste espaço, o trabalho é de uma dignidade cultual. Também se encontra aqui já rostos distintos, que permitem reconhecer que o carácter de máscara é capaz de um aumento — de um aumento que se pode assinalar como expressão heráldica. Esta palavra aponta para o tipo ser muito bem pensável como o ponto central de uma nova arte — de uma arte para a qual as regras do século XIX, particularmente as da psicologia, se tornaram inválidas. Formam-se também já as ordens peculiares, as construções orgânicas particulares, em que o tipo activo se une para ter efeitos. Tocálas-emos de mais perto numa outra ocasião; seja aqui apenas indicado que elas se podem assinalar como ordens. O soldado anónimo corporaliza um dos primeiros exemplos de representantes do tipo activo — um exemplo em que aliás também a dignidade cultual do trabalho já se expressa muito claramente. A guerra mundial, na medida em que pertence ao século XX, não apresenta uma

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soma de guerras nacionais. Ela deve ser antes considerada como um processo de uma obra mais abrangente, em que a nação aparece no papel de grandeza de trabalho. O esforço nacional desemboca numa nova imagem, nomeadamente na construção orgânica do mundo. Chega-se assim a que o herói deste processo, o soldado anónimo, apareça como o portador de um máximo de virtudes activas, de coragem, de prontidão e de espírito de sacrifício. A sua virtude está em ser substituível e em atrás de cada caído já estar, nas reservas, aquele que o vai render. A sua medida é a do desempenho objectivo, do desempenho sem palavreado; daí que seja, em sentido eminente, um portador da revolução sans phrase. Em consequência disso, todos os outros pontos de vista, mesmo a frente em que se combate e se morre, passam para segundo plano. Visto a partir daqui, há de facto uma profunda irmandade entre os inimigos, uma irmandade que permanecerá eternamente fechada ao pensar humanitário. Enquanto na guerra mundial, tal como em geral no nosso mundo, os níveis passivo e activo do tipo já se tornaram claramente visíveis, a entrada do último e supremo representante no espaço de trabalho visível ainda não foi bem sucedida. Ligado a isto está que a guerra mundial não conseguiu produzir quaisquer decisões definitivas — qualquer ordem intocável que garanta a segurança. Enquanto, no nível mais baixo da hierarquia, a figura do trabalhador toma o singular e o subordina como uma vontade cega, como uma função planetária, ela coloca-o, num segundo nível, como portador do carácter especializado do trabalho, numa multiplicidade de construções planificadas. No entanto, no terceiro e supremo nível, aparece o singular, na medida em que está imediatamente em relação ao carácter total do trabalho. Só com a entrada destes fenómenos se torna possível a arte do Estado e o domínio no mais elevado estilo, isto é, o domínio mundial. Este domínio já começa a abrir caminho parcialmente através da eficácia

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da espécie activa, a qual, de muitos modos, quebra as fronteiras das velhas articulações. No entanto, o tipo activo não é capaz de ultrapassar as fronteiras que lhe são traçadas pelo carácter especializado do trabalho; seja como economista, como técnico, como soldado, como nacionalista, precisa da integração, do comando que cria imediatamente a partir das fontes da dádiva de sentido. Só no representante de tal poder é que se separam, como no pico da pirâmide, as variadas oposições cujo jogo e contra-jogo cria a iluminação em mudança, a penumbra que é peculiar à nossa época. Tais oposições são o velho e o novo, o poder e o direito, o sangue e o espírito, a guerra e a política, a ciência da natureza e do espírito, a técnica e a arte, o saber e a religião, o mundo orgânico e mecânico. Todas elas conseguiram ser abrangidas no espaço total; a sua unidade torna-se manifesta numa humanidade que nasceu além das velhas dúvidas. A hierarquia dentro do século XIX foi então apresentada pela medida em que se possuía individualidade. No século XX, a dignidade é decidida através do alcance em que se representa o carácter do trabalho. Indicámos que aqui está escondida uma nivelação — uma nivelação mais intensa do que desde há séculos se podia observar. Não nos podemos deixar enganar pelo nivelamento abrangente ao qual homens e coisas estão hoje submetidos. Este nivelamento não significa outra coisa senão a realização do nível mais baixo, da base do mundo do trabalho. Daí vem que hoje o processo vital apareça, numa medida excessiva, como passivo, como sofrimento. No entanto, quanto mais progredir a destruição, a transformação, mais determinadamente se poderá reconhecer a possibilidade de uma nova edificação, a possibilidade da construção orgânica.

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A TÉCNICA COMO MOBILIZAÇÃO DO MUNDO PELA FIGURA DO TRABALHADOR

44. Os enunciados que o contemporâneo consegue fazer sobre a técnica dão um pobre rendimento. É particularmente manifesto que o próprio técnico não consiga gravar a sua determinação numa imagem que capte a vida na globalidade das suas dimensões. A razão está em o técnico representar o carácter especializado do trabalho, mas em não lhe ser dada nenhuma referência imediata ao carácter total do trabalho. Onde faltar esta referência, com toda a excelência dos desempenhos singulares, não se pode falar de uma ordem vinculativa e em si mesma não contraditória. A carência de totalidade

manifesta-se

na

emergência

de

uma

especialização

desenfreada que procura erguer os seus questionamentos particulares ao

plano

decisivo.

No

entanto,

mesmo

que

o

mundo

fosse

completamente construído até ao mais ínfimo pormenor, não seria decidida uma única das questões significativas. Para possuir uma relação real à técnica, tem de se ser algo mais do que técnico. O erro que não deixa acertar o cálculo, por todo o lado onde se procura pôr em relação a vida e a técnica, é um e o mesmo — independentemente de se chegar a conclusões que rejeitem ou que concordem. Este erro fundamental está em pôr-se o homem numa relação imediata à técnica — seja se se o reconhece como o criador ou como a vítima desta técnica. O homem aparece aqui ou como um aprendiz de feiticeiro, que evoca forças de cujos efeitos não está à altura,

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ou como o criador de um progresso ininterrupto que corre ao encontro de paraísos artificiais. No entanto, chega-se a juízos completamente diferentes quando se reconhece que o homem não está ligado imediatamente, mas mediatamente, com a técnica. A técnica é a maneira em que a figura do trabalhador mobiliza o mundo. A medida em que o homem está decididamente em relação com ela, a medida em que não é destruído, mas estimulado, por ela, depende do grau em que representa a figura do trabalhador. A técnica, neste sentido, é o domínio da linguagem que é válida no espaço do trabalho. Esta linguagem não é menos significativa, não é menos profunda, do que qualquer outra, pois possui não apenas gramática mas também metafísica. Neste contexto, a máquina desempenha um papel tão secundário como o homem; apenas é um dos orgãos através dos quais esta linguagem é falada. Se a técnica deve ser então concebida como a maneira em que a figura do trabalhador mobiliza o mundo, tem, em primeiro lugar, de ser provado que ela, numa relação particular, é adequada ao representante desta figura, ou seja, ao trabalhador, e está à sua disposição; mas, por outro lado, qualquer representante dos vínculos que estão fora do espaço do trabalho, ou seja, o burguês, o cristão, o nacionalista, não estará implicado nesta relação. Pelo contrário, o ataque aberto ou secreto a tais vínculos tem de estar incluído na técnica. Ambas as coisas são, de facto, o caso, e esforçar-nos-emos por confirmá-lo com recurso a alguns exemplos. A obscuridade, em particular a obscuridade romântica, que dá cor à maioria das manifestações sobre a técnica surge da carência de pontos de vista fixos. Perde-se logo que se reconhece a figura do trabalhador como centro em repouso de tão variado processo. Esta figura tanto estimula a Mobilização Total como destrói tudo o que se contrapõe a esta mobilização. Daí que, atrás dos processos superficiais da mudança técnica, se tenha de apontar tanto

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uma destruição abrangente como uma construção do mundo de outro tipo, às quais é dada uma direcção muito determinada.

45. Regressemos mais uma vez, para ilustrar isto, à guerra. Na nossa consideração das forças actuantes em Langemarck, poderia surgir a representação de que aqui, no essencial, se trata de um processo que se joga entre nações. No entanto, tal é verdade apenas na medida em que as nações combatentes apresentam as grandezas do trabalho através das quais este processo é conduzido. No ponto central do confronto não está a diferença das nações, mas a diferença de duas eras, das quais uma era que surge devora uma que declina. É através disto que é determinada a autêntica profundidade, o carácter revolucionário desta paisagem. Os sacrifícios que são trazidos e exigidos mantêm um maior significado por recaírem num quadro que não consegue nem pode ser visível à consciência, mas que já é bem sentido no mais íntimo sentimento, tal como se pode provar a partir de muitos testemunhos. A imagem metafísica, ou seja, a imagem desta guerra segundo a figura, aponta para outras frentes que não as que a consciência dos participantes consegue suspeitar. Se se a considerar como um processo técnico, ou seja, como um processo muito profundo, notar-se-á que a intervenção desta técnica quebra mais do que a resistência desta ou daquela nação. A troca de tiros que tem lugar em tantas e tão diferenciadas frentes soma-se numa única e decisiva frente. Se no ponto central do processo, ou seja, naquele lugar a partir do qual sai a soma da destruição, mas que não está submetido ele mesmo à destruição, reconhecemos a figura do trabalhador, abre-se-nos um carácter muito unitário, muito lógico, do aniquilamento.

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Explica-se assim, à partida, o facto de em cada uma das terras participantes haver tanto vencedores como vencidos. O número dos que foram quebrados por este ataque decisivo à existência individual é imensamente grande, olhe-se para onde se olhar. Nisto deparar-se-á também, por todo o lado, com uma espécie de homem que se sente reforçada por esta intervenção e que se refere a ela como à fonte ígnea de um novo sentimento vital. Sem dúvida que este acontecimento, cujo verdadeiro alcance ainda não se pode medir, ultrapassa em significado não apenas a Revolução Francesa, mas até a Reforma Alemã. Do seu núcleo autêntico segue-se uma fila de confrontos secundários que aceleram todos os questionamentos históricos e espirituais e cujo fim ainda não se pode prever. Não ter participado aqui significa uma perda que já hoje é bem sentida pela juventude das terras neutrais. Aqui teve lugar um corte que separa mais de dois séculos. Agora, se investigarmos singularmente o alcance da destruição, encontraremos que o resultado da lotaria é tão mais favorável quanto mais longe estiver da zona que é peculiar ao tipo. Não pode então admirar que os últimos despojos dos velhos sistemas estatais se tenham desmoronado sob a pressão, como castelos de cartas. Tal surge sobretudo na deficiente força de resistência das formações

monárquicas,

que

caem

quase

em

conjunto,

independentemente de estarem alinhadas na frente dos grupos de Estados subjugados ou dos vencedores. O monarca cai tanto enquanto autocrata como enquanto dinasta que garante a união das terras herdadas que são passadas já desde a Idade Média. Cai tanto enquanto príncipe local, num círculo de efeitos quase puramente dissolvidos em tarefas culturais, como enquanto primeiro bispo ou enquanto pico da monarquia constitucional. Ao mesmo tempo que com as coroas, caem os últimos privilégios dos estados que a aristocracia manteve; ou seja, caem sobretudo, junto

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da sociedade da côrte e da propriedade fundiária protegida através de medidas particulares, os corpos de oficiais no antigo sentido, os quais também na era do dever militar universal ainda se distinguem por todas as características de uma comunidade de estado. O fundamento que possibilitou este acabamento está, como vimos, em o burguês não ser capaz por si mesmo de um desempenho guerreiro, mas estar remetido à representação por uma casta guerreira particular. Tal muda-se na era do trabalhador, à qual está dada uma relação elementar à guerra e que, por isso, consegue representar-se de um modo guerreiro pelos seus meios próprios. A facilidade com que é varrida, ou antes, com que se desmorona em si mesma esta inteira camada, de algum modo ainda presa ao Estado absoluto, oferece um aspecto assombroso. Sem uma resistência digna desse nome, sucumbe ao ataque de uma catástrofe que, no entanto, não se limita a si, mas encontra ainda, ao mesmo tempo, massas burguesas intactas no que toca à relação. De facto, por um curto espaço de tempo, e isso particularmente na Alemanha, parece que é como se, através do acontecimento, tivesse sido lançado no colo precisamente destas massas um triunfo atrasado e definitivo. No entanto, tem de se ver que este acontecimento que, na sua primeira fase, emerge como guerra mundial, aparece, na segunda, como revolução mundial, para talvez então, à vontade, tornar-se a transformar em formas guerreiras. Nesta segunda fase, que trabalha aqui aberta, ali secretamente, salienta-se que a possibilidade da condução de uma vida burguesa se estreita de dia para dia mais desesperadamente. Os fundamentos deste fenómeno oferecem-se em qualquer campo da investigação; pode-se reconhecê-los no penetrar do elementar no espaço vital e na simultânea perda de segurança, na dissolução do indivíduo, no desaparecimento do património ideal e material transmitido ou, pura e simplesmente, numa falta de forças criadoras. O autêntico fundamento é, em todo o caso, o de o novo campo de forças, situado em

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torno da figura do trabalhador, destruir, como todos os vínculos estranhos, também os da burguesia. As consequências desta intervenção suscitam uma paralisação, por vezes quase inexplicável, das funções habituais. A literatura torna-se insípida,

apesar

de

procurar

preparar

ainda

os

mesmos

questionamentos; a economia adoece; os parlamentos tornam-se incapazes de trabalho, mesmo quando não são atacados do exterior. Que a técnica apareça neste tempo como o único poder que não se mostra submetido a estes sintomas, trai muito claramente que ela pertence a um outro e mais decisivo sistema de relações. Neste curto espaço de tempo depois da guerra, os seus símbolos espalharam-se até aos mais afastados cantos do globo terrestre mais depressa do que, há mil anos, a cruz e o sino nas florestas virgens e nos pântanos da Germânia. Onde penetra a linguagem de factos destes símbolos, cai a velha lei da vida; da realidade, regressa-se à esfera romântica — mas é preciso olhos particulares para ver aqui mais do que um processo de puro aniquilamento.

46. Passar-se-ia em revista o campo do aniquilamento de um modo apenas incompleto, se não se reconhecesse também o ataque às potências cultuais. A técnica, isto é, a mobilização do mundo pela figura do trabalhador, é, tal como a destruidora de qualquer fé em geral, também o mais decidido poder anti-cristão que até hoje se manifestou. É-o numa medida que deixa aparecer o que nela é anti-cristão como uma das propriedades que lhe está subordinada — ela nega através da sua mera existência. Há uma grande diferença entre os velhos assaltantes de imagens e incendiários de igrejas e a elevada medida de abstracção a

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partir da qual uma catedral gótica pode ser considerada, por um artilheiro da guerra mundial, como um puro ponto de orientação na zona de combate. Onde emergem os símbolos técnicos, o espaço é esvaziado de todas as forças de outro tipo, do grande e pequeno mundo dos espíritos que nele se estabeleceu. As variadas tentativas da Igreja de falar a linguagem da técnica apresentam apenas um meio para a aceleração do seu declínio, para a possibilitação de um processo abrangente de secularização. As verdadeiras relações de poder, na Alemanha, ainda não vieram à superfície porque o domínio aparente da burguesia as encobre. Aquilo que foi dito da relação do burguês à casta guerreira, vale também para a sua relação às Igrejas — é estranho a estas potências, mas, no entanto, está-lhes remetido, o que é indicado por ele estar numa relação de subvenção a elas. Falta-lhe tanto substância guerreira como cultual, se se quiser abstrair do culto aparente do progresso. O trabalhador, o tipo, pelo contrário, surge da zona da antítese liberal — não se distingue por não ter nenhuma fé, mas por ter uma outra fé. Está-lhe reservada a redescoberta do grande facto de que a vida e o culto são idênticos — de um facto que, abstraindo de alguns estreitos arredores e vales de montanhas, foi perdido pelos homens do nosso espaço. Neste sentido, pode-se ousar afirmar que já hoje, no meio dos círculos de espectadores de um filme ou de uma corrida de automóveis, se pode observar uma piedade mais profunda do que a que ainda se consegue perceber sob os púlpitos e diante dos altares. Se tal acontece já no plano mais básico e mais sombrio, em que o homem é reivindicado pela nova figura de um modo puramente passivo, pode-se bem suspeitar que estão iminentes outros jogos, outros sacrifícios, outras emoções. O papel que a técnica desempenha neste processo pode ser comparado à posse formal do ensino romano-imperial, o qual estava à disposição dos primeiros mensageiros cristãos diante dos duques germânicos. Aponta-

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se um novo princípio através da criação de factos novos, de formas peculiares e eficazes — e estas formas são profundas, porque estão relacionadas existencialmente a este princípio. No essencial, não há diferença entre profundidade e superficialidade. De mencionar é ainda a decomposição da autêntica Igreja popular do século XIX, ou seja, da veneração do progresso, através da guerra



de

mencionar

sobretudo

porque

no

espelho

deste

desmoronamento se torna particularmente visível o duplo rosto da técnica. A técnica aparece no espaço burguês como um orgão do progresso que se movimenta para uma completude racional-virtuosa. Daí que esteja estreitamente vinculada às valorizações do conhecimento, da moral, da humanidade, da economia e do conforto. O lado marcial da sua cabeça de Jano entra mal neste esquema. Mas é incontestável que é uma locomotiva que pode mover uma companhia de soldados em vez de um vagão restaurante, que é um motor que pode mover um tanque em vez de um carro de luxo — ou seja, que o aumento do tráfego não apenas junta mais depressa os europeus bons, mas também os maus. Do mesmo modo, a apresentação artificial de preparados de azoto actua tanto no sentido agrícola como no sentido da técnica de explosivos. Todas estas coisas só se deixam descurar enquanto não se entra em contacto com elas. Como não pode ser negado o emprego no combate de meios do progresso, de meios “civilizadores”, o pensar burguês mostra o desejo de os desculpar. Tal acontece através de a ideologia do progresso sobre o acontecimento guerreiro se inverter, na medida em que a violência das armas aparece como um lamentável caso excepcional, como um meio de domesticação de bárbaros inclinados a não progredir. Estes meios só competem ao carácter humano, só à humanidade, e isso também só para o caso de defesa. O objectivo do seu emprego não é a vitória, mas a libertação dos povos, a sua inclusão naquela comunidade que dispõe

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de uma maior civilidade. Tal é a cobertura moral sob a qual se explora os povos coloniais e que também se estende sobre os chamados tratados de paz. Por todo o lado onde na Alemanha se sentiu de um modo burguês, apressou-se a saborear com prazer estas frases e a participar nas instituições que estão calculadas para a eternização deste estado. As coisas estão de tal modo que a burguesia mundial em todas as terras, e também a Alemanha não é excepção, obteve apenas uma vitória aparente. As suas posições enfraqueceram-se na mesma medida em que, depois da guerra, ela ganhou uma extensão planetária. Salientou-se que o burguês não é capaz do emprego da técnica como um meio de poder adequado à sua existência. O estado que resultou não consiste numa nova ordem do mundo, mas numa outra repartição da exploração. A todas as medidas que reivindicam uma nova ordem, seja à famigerada Sociedade das Nações, seja ao desarmamento, seja ao direito de autodeterminação das nações, seja à criação de Estados limítrofes e pequenos e de corredores, está posta a marca do sem sentido. Elas trazem demasiado claramente o selo do embaraço, de tal modo que isso não poderia escapar mesmo ao espírito dos povos de cor. O domínio destes negociantes, diplomatas, advogados e homens de negócios é um domínio aparente que perde terreno de dia para dia. A sua presença só se pode explicar por a guerra ter acabado com um armistício quase escondido através de frases liberais acaloradas, sob cuja capa continua a arder a mobilização. Multiplicam-se as manchas vermelhas sobre o mapa, e estão iminente explosões através das quais todo este fragor é espalhado no ar. Ele só se tornou possível porque a resistência que a Alemanha desdobrou a partir da mais íntima força do seu povo não foi dirigida por uma camada de guias à disposição dos quais estava uma linguagem de comando elementar. Daí que um dos mais importantes resultados da guerra seja que esta camada de guias, que não estava à altura das valorizações do

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progresso, tenha desaparecido no naufrágio. As suas ténues tentativas para se voltar a estabelecer ligam-se necessariamente com todas as coisas desgastadas e poeirentas do mundo, com o romantismo, o liberalismo, a Igreja, a burguesia. Cada vez mais claramente se começam a separar duas frentes, a frente da restauração e uma outra que está decidida à continuação da guerra, com todos os meios e não apenas com os da guerra. Mas aqui temos de reconhecer onde estão os verdadeiros aliados. Não estão onde se quer a manutenção, mas onde se quer o ataque; e aproximamo-nos de estados em que qualquer conflito que rebenta numa qualquer parte do mundo fortalecerá a nossa posição. A impotência das velhas formações manifestou-se cada vez mais claramente antes da guerra, na guerra e depois da guerra. Contudo, para nós, o melhor armamento está em que quer o singular quer a colectividade se decida à condução de vida do trabalhador. Só então se reconhecerá as reais fontes de força que estão escondidas nos meios do nosso tempo e cujo sentido será revelado não pelo progresso, mas pelo domínio.

47. A guerra é um exemplo de primeiro plano porque manifesta o carácter de poder de está dentro da técnica, excluindo todos os elementos económicos e de progresso. Não se se pode aqui deixar enganar pela desproporção existente entre o gigantesco gasto de meios e os resultados. Já a formulação dos diferentes objectivos de guerra permite reconhecer que em nenhum ponto do mundo estava viva uma vontade proporcionada à dureza destes meios. Mas tem de se saber que o resultado invisível é mais significativo que o visível.

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Este resultado invisível consiste na mobilização do mundo pela figura do trabalhador. A sua primeira característica trai-se na repercussão das armas contra as potências às quais não fora dada a força para a sua utilização produtiva. Contudo, esta característica não é de todo de natureza negativa. Nela anuncia-se a medida de um ataque metafísico, cuja força irresistível está em o próprio atacado, e aparentemente de um modo voluntário, escolher os meios do seu declínio. Tal é o caso não apenas na guerra, mas por todo o lado onde o homem é posto em contacto com o carácter especializado do trabalho. Por todo o lado onde o homem atinge a área da técnica, vê-se posto diante de uma alternativa incontornável. Para ele, trata-se ou de aceitar os meios peculiares e falar a sua linguagem ou de decair. Mas quando se aceita, e isto é muito importante, torna-se não apenas no sujeito de processos técnicos, mas, ao mesmo tempo, no seu objecto. O emprego dos meios arrasta todo um estilo de vida determinado segundo ele, que se estende tanto às grandes como às pequenas coisas da vida. A técnica não é, portanto, de todo um poder neutro, não é nenhum reservatório de meios eficazes ou cómodos a partir do qual qualquer uma das forças sobrevindas consiga criar como entende. Pelo contrário, é precisamente atrás da aparência desta neutralidade que se esconde a lógica misteriosa e tentadora com que a técnica entende mostrar-se aos homens. Esta lógica torna-se cada vez mais clara e irresistível, na mesma medida em que o espaço de trabalho ganha em totalidade. Também na mesma medida, enfraquece-se o instinto dos que são atingidos. Instinto possuía a Igreja, quando queria destruir um saber que via a Terra como um satélite do Sol; instinto possuía o cavaleiro que desprezava as espingardas, o tecelão que quebrava as máquinas, o chinês que proibia a sua importação. Mas todos eles fizeram a sua paz, aquele tipo de paz que trai o vencido. As consequências instalam-se com

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uma cada vez maior aceleração, com uma evidência cada vez mais grosseira. Ainda hoje vemos não apenas grandes partes do povo, mas mesmo povos inteiros num combate contra estas consequências, sobre cujo infeliz desfecho não é possível qualquer dúvida. Quem quereria então negar a sua participação na resistência do campesinato, o qual, no nosso tempo, conduz a esforços desesperados? Mas lute-se aqui, tanto quanto se queira, por leis, por medidas, por direitos de importação, por preços ⎯ a inutilidade deste combate está em que uma liberdade tal como aqui é reivindicada já não é hoje de todo possível. O campo que é explorado com máquinas e que é adubado com o azoto artificial das fábricas, já não é o mesmo campo. Daí que também não seja verdade que a existência do camponês seja intemporal e que as grandes mudanças passem, como o vento e as nuvens, sobre a sua terra. A profundidade da revolução em que estamos englobados mostra-se precisamente por ela mesma despedaçar os estados originários. A famosa diferença entre a cidade e a terra persiste hoje apenas ainda no espaço romântico; é tão inválida como a diferença entre um mundo orgânico e mecânico. A liberdade do camponês não é nenhuma outra que a de qualquer um de nós ⎯ ela está no reconhecimento de que qualquer outro modo de condução de vida que não o do trabalhador está para ele fechado. Tal pode-se comprovar em todos os pormenores, e não apenas nos económicos, e é em torno disto que decorre o combate que, no essencial, já há muito que está decidido. Participamos aqui de um dos últimos ataques contra as relações de estados, que actua ainda mais dolorosamente que a dizimação dos estratos culturais dos estados pela inflação, e que talvez se deva sobretudo comparar ao aniquilamento definitivo da velha casta guerreira pela batalha mecânica. Entretanto, também aqui não há qualquer regresso, e, em vez de criar parques de protecção da natureza, tem de

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se procurar realizar uma ajuda planificada que será tanto mais eficaz quanto mais corresponder ao sentido dos acontecimentos. Trata-se, por isso, de realizar formas de cultivo, de exploração e de povoamento da terra nas quais o carácter total do trabalho se expresse. Tem lugar então, para aquele que se serve dos meios técnicos peculiares, uma perda de liberdade, um enfraquecimento da sua lei da vida, que atinge o que é grande e o que é pequeno. O homem que se deixa fazer uma ligação eléctrica talvez disponha de uma maior comodidade, mas seguramente dispõe de uma menor independência do que aquele que queima a sua candeia. Um Estado de camponeses ou um povo de cor que encomenda máquinas, engenheiros e trabalhadores especializados, entra numa relação de tributo visível ou invisível que rebenta como dinamite os seus vínculos habituais. A “marcha triunfal da técnica” deixa para trás um extenso rasto de símbolos destruídos. O seu resultado inevitável é a anarquia ⎯ uma anarquia que despedaça as unidades de vida nos seus átomos. O lado destruidor deste acontecimento é conhecido. O seu lado positivo está em a própria técnica ser de origem cultual, em ela dispor de símbolos peculiares e em atrás dos seus processos se esconder um combate entre figuras. A sua essência parece de natureza niilista porque o seu ataque se estende à soma das relações e porque nenhum valor lhe consegue fazer resistência. Mas é precisamente este facto que tem de causar perplexidade e que trai que ela, apesar de ela mesma ser sem valor e aparentemente neutra, está ao serviço. A aparente contradição existente entre a prontidão sem escolha para tudo e todos e o seu carácter destruidor dissolve-se quando se a reconhece no seu significado como linguagem. Esta linguagem surge atrás da máscara de um racionalismo rigoroso, o qual consegue decidir inequivocamente, logo à partida, as questões diante das quais está. Ela é aliás primitiva; os seus sinais e símbolos são claros pela sua mera

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existência. Nada parece mais eficaz, mais adequado a fins, mais cómodo do que se servir destes sinais tão compreensíveis, tão lógicos. Certamente muito mais difícil é reconhecer que aqui não se se serve de nenhuma lógica em si, mas de uma lógica muito específica, a qual, na mesma medida em que concede as suas vantagens, apresenta as suas reivindicações peculiares e sabe dissolver todas as resistências que não lhe são adequadas. Este ou aquele poder serve-se da técnica; quer dizer: adequa-se ao carácter de poder que se esconde atrás dos símbolos técnicos. Fala uma nova linguagem; quer dizer: renuncia a todos os outros resultados que não àqueles que já estão contidos no emprego desta linguagem, tal como o resultado na operação aritmética. Esta linguagem é compreensível para qualquer um; quer dizer: que hoje só há um modo de poder que em geral pode ser querido. Mas que se procure submeter as fórmulas técnicas, enquanto puros meios para o fim, a leis da vida que não lhe são adequadas, isso conduz necessariamente a extensos estados de anarquia. Correlativamente, pode-se observar que a anarquia cresce na mesma medida em que a superfície do mundo ganha em inequivocidade e em que se dissolve a diferencialidade das forças. Esta anarquia não é outra coisa que o primeiro nível necessário que conduz a novas hierarquias. Quanto maior for a esfera que a nova linguagem, enquanto meio de entendimento aparentemente neutral, se cria, tanto maior será também o círculo que ela encontrará na sua propriedade autêntica enquanto linguagem de comando. Quanto mais profundamente estiverem minados os velhos vínculos, quanto mais intensamente forem nivelados, quanto mais os átomos estiverem soltos das suas articulações, tanto menos resistência haverá contra uma construção orgânica do mundo. Contudo, em relação à possibilidade de um tal domínio, deu-se no nosso tempo uma situação à qual a história não tem nenhum exemplo para contrapor.

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Na técnica reconhecemos o meio mais eficaz, mais inelutável da revolução total. Sabemos que a esfera da destruição possui um ponto central secreto, a partir do qual se cumpre o processo aparentemente caótico da submissão das velhas potências. Este acto mostra-se na medida em que o submetido, seja voluntária ou involuntariamente, aceita a nova linguagem. Observamos que uma nova humanidade se move no ponto central decisivo. A fase da destruição é rendida por uma ordem real e visível, se chegar ao domínio aquela raça que sabe falar a nova linguagem não no sentido do simples entendimento, do progresso, da utilidade, do conforto, mas enquanto linguagem elementar. Tal será o caso na mesma medida em que o rosto do trabalhador manifestar os seus traços heróicos. Só é possível pôr a técnica ao serviço, realmente e sem contradição, quando se representar a figura do trabalhador nos singulares e nas comunidades que dispõem dela.

48. Se se reconhecer a figura do trabalhador, que se serve do homem activo e passivo como um medium, enquanto ponto central destruidor e mobilizador do processo técnico, então altera-se também o prognóstico que se pode colocar a este processo. Por muito movimentada, explosiva e alterável que, no seu carácter empírico, a técnica se possa apresentar, ela conduz, no entanto, para ordens completamente determinadas, inequívocas e necessárias, as quais estão desde o início nela germinalmente incluídas, enquanto tarefa, enquanto objectivo. Esta relação também se deixa expressar na medida em que se diz que a sua linguagem peculiar se torna compreendida cada vez mais claramente.

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Se

se

reconhecer

isto,

então

perde-se

também

a

sobrevalorização do desenvolvimento que é característico da relação do progresso à técnica. Talvez muito cedo se nos tornará incompreensível o orgulho com que o espírito humano traça as suas perspectivas ilimitadas, e que criou uma literatura própria. Deparamos aqui com um sentimento de marcha que dá asas à atmosfera conjuntural e em cujos vagos objectivos estão espelhados os velhos lemas da razão e da virtude. Trata-se da substituição da religião, e certamente da religião cristã, pelo conhecimento que assume o papel do redentor. Num espaço em que os enigmas do mundo estão solucionados, cabe à técnica a tarefa de libertar o homem da maldição do trabalho e de possibilitar-lhe a ocupação com coisas mais dignas. O progresso emerge aqui como o princípio criador, surgido por geração espontânea, ao qual é dedicado uma veneração particular. É de assinalar que este progresso aparece como um crescimento ininterrupto ⎯ é semelhante a uma esfera que na mesma medida em que ganha em superfície é posta em contacto com novas tarefas. Também aqui se pode verificar aquele conceito de infinitude que embriaga o espírito e que, no entanto, já não é realizável para nós. Na visão da infinitude, da incomensurabilidade do espaço e do tempo, o entendimento atinge o ponto em que se lhe manifesta a limitação própria. A única saída de uma época racionalista é projectar o progresso do conhecimento nesta infinitude ⎯ como uma luz flutuante na imensa corrente. Mas aquilo que o entendimento não vê, é o facto de que esta infinitude, este emergente “o que vem então?”, só é criado por ele mesmo, e de que a sua presença não apresenta outra coisa do que a sua própria inaptidão ⎯ a sua incapacidade para captar grandezas que estão sobrepostas ao conjunto espácio-temporal. Sem o meio que o transporta, o éter do espaço e do tempo, o espírito despenhar-se-ia, e é o seu impulso de autoconservação, o seu medo, que cria esta representação da infinitude. É precisamente por isso que este aspecto da

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infinitude pertence à era do progresso; nem antes o houve, nem será compreensível para as gerações posteriores. Em particular onde as figuras determinam o pensar, não há qualquer obrigação de ver o infinito e o ilimitado como idênticos. Aqui, tem antes de se tornar assinalável o desejo de captar a imagem do mundo como uma totalidade fechada e bem delimitada. Mas, deste modo, cai também a máscara qualitativa que o progresso atribui ao conceito de desenvolvimento. Nenhum desenvolvimento está apto a retirar do ser mais do que nele está contido. O modo do desenvolvimento é antes determinado pelo ser. Tal vale também para a técnica que via o progresso sob a perspectiva de um desenvolvimento ilimitado. O desenvolvimento da técnica não é ilimitado; está concluído no instante em que, enquanto instrumento, ela corresponde às exigências peculiares a que a figura do trabalhador a submete.

49. Assim, na prática, o facto da vida dá-se para nós num espaço provisório, do qual não é característico o desenvolvimento em si, mas um desenvolvimento para estados muito determinados. O nosso mundo técnico não é uma área de possibilidades ilimitadas; pelo contrário, estálhe antes ligado um carácter embrionário que vai ao encontro de uma destinada maturidade. Sucede então que o nosso espaço se assemelha a uma imensa oficina de ferreiro. Não pode escapar aos olhos que aqui nada é criado na perspectiva de uma substância duradoura, tal como podemos apreciar nos edifícios dos antigos, ou também no sentido em que a arte procura gerar uma linguagem de formas válida. Qualquer meio traz antes o carácter provisório da oficina, qualquer meio está destinado a um emprego limitado.

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A este estado corresponde que a nossa paisagem apareça como uma paisagem de passagem. Não há aqui qualquer solidez das formas; todas as formas são ininterruptamente modeladas por uma inquietude dinâmica. Não há qualquer permanência dos meios; nada é permanente senão o aumento da linha de desempenho, que lança hoje para o ferro velho o instrumento ainda ontem inexcedível. Daí que também não haja nenhuma permanência da arquitectura, da condução da vida, da economia ⎯ todas elas dependem de uma permanência dos meios, tal como é peculiar ao machado, ao arco, à vela e ao arado. O singular vive dentro desta paisagem de oficinas, na medida em que lhe é exigido o sacrifício de um trabalho parcial, de cuja fugacidade nem para ele mesmo há qualquer dúvida. A mutabilidade dos meios tem como consequência um investimento ininterrupto de capital e de força de trabalho, que, apesar de se esconder debaixo da máscara económica da concorrência, vai contra todas as leis da economia. Passam assim gerações que não deixam atrás de si nem poupanças nem monumentos, mas apenas um estádio determinado, uma marca da maré da mobilização. Evidentemente que esta relação provisória será confundida com o estado de desarrumação que desde há mais de cem anos pertence às características da paisagem técnica. Esta visão que fere o olhar não é provocada apenas pela destruição da paisagem natural e cultural ⎯ explica-se pelo estado incompleto da própria técnica. Estas cidades, com os seus fios metálicos e os seus fumos, com o seu ruído e o seu pó, com a sua barafunda de formigueiro, com a sua confusão de arquitecturas e de inovações, que lhes dão cada dez anos um novo rosto, são gigantes oficinas de formas ⎯ mas elas mesmas não possuem nenhuma forma. Falta-lhes estilo, se não se quiser assinalar a anarquia como um tipo particular de estilo. De facto, há hoje duas valorizações quando se fala de cidades; menciona-se ou a medida em que são museus ou a medida em que são forjas.

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Deve-se então verificar que o século XX, pelo menos em aspectos parciais, já apresenta um maior asseio e uma maior determinação das linhas condutoras, as quais traem uma clarificação inicial da vontade de configuração técnica. Assim, pode-se notar um afastamento da linha mais mediana, um afastamento das concessões que ainda há pouco tempo se tinha como incontornáveis. Começa-se a adquirir um sentido para as altas temperaturas, para a geometria glacial da luz e para a incandescência do metal sobreaquecido. A paisagem torna-se mais construtiva e mais perigosa, mas fria e mais brilhante; desaparecem dela os últimos restos da comodidade. Há já partes que se podem atravessar como áreas vulcânicas ou mortas paisagens lunares que uma vigilância tão invisível como presente domina. Evita-se as intenções secundárias, como as do gosto; eleva-se os questionamentos técnicos

ao

plano

decisivo,

e

faz-se

bem,

pois

atrás

destes

questionamentos esconde-se mais do que algo técnico. Ao mesmo tempo, os instrumentos ganham em determinação, em inequivocidade ⎯ e pode-se também dizer: em simplicidade. Aproximamse de um estado de perfeição ⎯ se este for alcançado, estará concluído o desenvolvimento. Se se comparar uma série sucessiva de modelos técnicos num daqueles novos museus que, como o Museu Alemão em Munique, se podem assinalar como museus do trabalho, descobrir-se-á que a complexidade não é uma característica dos estados posteriores, mas dos estados iniciais. Para referir um exemplo, é estranho que o voo com planador só tenha sido formado depois do voo com motor. Passa-se com a formação dos meios técnicos algo semelhante a com a formação das raças: a cunhagem não caracteriza o início, mas o objectivo. Não é uma característica da raça que ela possua muitas e complicadas possibilidades, mas possibilidades muito inequívocas e muito simples. Assim, as primeiras máquinas também se assemelham a um material ainda tosco que será polido num curso ininterrupto de trabalho. Por muito que também ganhem em dimensões e funções, elas serão como que

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mergulhadas no meio de uma maior clareza. Na mesma medida, não apenas ganham num plano energético e económico, mas também no plano estético ⎯ numa palavra: ganham em necessidade. No entanto, este processo não se limita apenas à precisão do instrumento singular ⎯ pode-se também percepcioná-lo no conjunto do espaço técnico. Ele torna-se aqui cognoscível como um aumento em unidade, em totalidade técnica. Os meios técnicos penetram nos pontos, à partida, como uma doença; mostram-se como corpos estranhos na substância que os rodeia. As novas invenções irrompem nas mais diversas áreas com a ausência de escolha de um projéctil. Na mesma medida, multiplica-se o número das perturbações, dos questionamentos que se devem solucionar. No entanto, só se pode falar de um espaço técnico quando estes pontos estiverem entrelaçados numa espessa rede de malha. Só então se manifesta que não há nenhum desempenho singular que não esteja em relação com todos os outros. Numa palavra, o carácter total do trabalho perpassa através da soma dos caracteres especializados do trabalho. Este complemento, que reúne formas aparentemente muito afastadas e muito diferentes, lembra a situação de diferentes cotilédones cujo sentido orgânico só retroactivamente se pode ver na sua unidade, ou seja, só se pode ver na sua unidade depois da conclusão do desenvolvimento. Na mesma medida em que o crescimento se aproxima desta conclusão, pode-se observar que o número dos questionamentos já não aumenta, mas diminui. Tal mostra-se, na prática, de modos muito diferenciados. Tornase perceptível na medida em que a construção dos meios se torna mais típica. Surgem assim instrumentos que unem em si um grande número de soluções singulares, as quais como que estão neles fundidas. Na mesma medida em que os meios se tornam mais típicos, ou seja, mais inequívocos e mais calculáveis, determina-se a sua situação e a sua

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dignidade no espaço técnico. Integram-se em sistemas cujos buracos se tornam mais pequenos e cuja clareza cresce. Tal mostra-se na medida em que o próprio desconhecido, o insolucionado se torna calculável ⎯ ou seja, na medida em que se torna possível um plano e um prognóstico das soluções. Dá-se um entrelaçamento e uma assimilação cada vez mais espessos que procuram soldar o arsenal técnico, em toda a especialização, num único instrumento gigante que aparece como símbolo material, ou seja, como um símbolo profundo do carácter total do trabalho. Apenas indicar os numerosos caminhos que conduzem à unidade do espaço técnico, seria ultrapassar o quadro, apesar de se esconder aqui uma plenitude de momentos surpreendentes. Assim, é estranho que a técnica instale forças motrizes cada vez mais precisas sem que por isso a ideia fundamental dos seus meios experimente uma mudança, tal como depois da força de vapor o motor de explosão e a electricidade, cujo círculo de aplicação será aberto de novo, num tempo previsível, por potências dinâmicas supremas. É como que sempre a mesma carroça que é esperada pela nova muda. Ela dirige-se, através dos seus suportes económicos, através da livre concorrência, através dos trustes e dos monopólios de Estado, para a preparação de uma unidade imperial. Além disso, pertence aqui que quanto mais claramente aparecer na sua unidade como “grande instrumento”, tão mais variados serão os modos em que poderá ser dirigida. Na sua penúltima fase, que se torna precisamente visível, aparece como a serva dos grandes planos, independentemente de estes planos se relacionarem com a guerra ou com a paz, com a política ou com a investigação, com o tráfego ou com a economia. Contudo, a sua última tarefa consiste em realizar o domínio em qualquer lugar que seja, para qualquer tempo que seja e em qualquer medida que seja. A nossa tarefa aqui não é então acompanhar a multiplicidade destes caminhos. Todos eles conduzem para um e o mesmo ponto.

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Trata-se antes de que o olhar se habitue a uma diferente imagem de conjunto da técnica. A técnica apareceu à representação, durante muito tempo, como uma pirâmide que está na ponta e que se encontra num crescimento ilimitado, cuja superfície livre aumenta imprevisivelmente. Pelo contrário, temos de nos esforçar por vê-la como uma pirâmide cuja superfície livre se estreita progressivamente e que, num tempo muito previsível, terá alcançado o ponto conclusivo. No entanto, esta ponta ainda invisível já determinou a dimensão do esboço. A técnica contém em si as raízes e as sementes da sua última potência. Explica-se a partir daqui a consequência rigorosa que se esconde atrás da superfície anárquica do seu curso.

50. A mobilização da matéria pela figura do trabalhador, tal como aparece enquanto técnica, tornou-se ainda tão pouco visível no seu último e supremo grau como a mobilização do homem por esta mesma figura, a qual decorre paralela a esta. Este último grau consiste na realização do carácter total do trabalho, que aparece aqui como totalidade do espaço técnico e ali como totalidade do tipo. Estas duas fases remetem uma à outra na sua emergência ⎯ tal torna-se perceptível na medida em que, por um lado, o tipo precisa dos meios que lhe são peculiares para a sua eficácia, mas, por outro lado, nestes meios se esconde uma linguagem que só pode ser falada através do tipo. A convergência nesta unidade expressa-se na dissolução da diferença entre mundo orgânico e mundo mecânico; o seu símbolo é a construção orgânica. Levanta-se então a questão de saber até que ponto se alterarão as formas de vida quando o estado dinâmico-explosivo em que nos encontramos tiver sido rendido por um estado de perfeição. Falamos aqui

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de perfeição e não de completude porque a completude pertence aos atributos da figura, mas não aos dos seus símbolos que só são visíveis ao nosso olhar. Daí que o estado de perfeição possua uma dignidade tão secundária como o estado de desenvolvimento: atrás de ambos está, enquanto grandeza sobreposta e imutável, a figura. Assim, a infância, a juventude e a velhice do homem singular são apenas estados secundários diante da sua figura, a qual nem começa com o nascimento nem é encerrada com a morte. No entanto, a perfeição não significa mais do que um grau em que a difusão da figura toca particularmente o olhar efémero ⎯ e também aqui parece difícil decidir se ela se espelha mais claramente na cara da criança, no actuar do homem ou naquele último triunfo, tal como o que por vezes a máscara da morte abre. Isso não significa outra coisa senão que também para o nosso tempo não estão fechadas as últimas possibilidades que o homem consegue alcançar. Tal é testemunhado por vítimas que têm de ser avaliadas de modo tanto mais elevado quanto foram apresentadas à beira do absurdo. Num tempo em que os valores desaparecem atrás de leis dinâmicas, atrás da pressão do movimento, estas vítimas assemelham-se aos caídos na tempestade, que logo desaparecem da vista e nos quais, no entanto, se esconde uma suprema existência, a garantia da vitória. Este tempo é rico em mártires desconhecidos, possui uma profundidade de sofrimento cujo fundo nenhum olhar ainda viu. A virtude que é adequada a este estado é a do realismo heróico, que não pode ser abalado sequer pela perspectiva da completa aniquilação e da ausência de esperança dos seus esforços. Daí que a perfeição seja hoje uma coisa diferente de para outros tempos ⎯ talvez esteja mais onde menos é aludida. Manifesta-se talvez o melhor possível na arte de lidar com explosivos. Em todo o caso, não está onde se alude à cultura, à arte, à alma ou ao valor. Disto ou já não se fala ou ainda não se fala. A perfeição da técnica não é outra coisa que uma das características para a conclusão da Mobilização Total em que estamos

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compreendidos. Daí que consiga elevar a vida a um nível mais elevado de organização, mas não, como acreditava o progresso, a um nível mais elevado de valor. Nela, mostra-se a rendição de um espaço dinâmico e revolucionário por um espaço estático e supremamente ordenado. Realiza-se então aqui uma passagem da transformação para a constância ⎯ uma passagem que certamente produzirá consequências muito significativas. Para conceber isto, temos de ver como é que o estado de uma mutação ininterrupta, em que estamos implicados, reivindica para si todas as forças e reservas de que a vida dispõe. Vivemos num tempo de grande consumo, como cujo único efeito se pode reconhecer um impulso mais acelerado das rodas. Em última análise, é completamente indiferente se se consegue movimentar com a velocidade de um caracol ou com a de um relâmpago ⎯ pressupondo-se que o movimento ponha exigências constantes, mas não mutáveis. No entanto, o que é peculiar na nossa situação consiste em a pressão do recorde regular os nossos movimentos e em a medida mínima de desempenho que de nós é exigida ganhar ininterruptamente em extensão. Este facto evita completamente que a vida, em qualquer das suas áreas, se consiga solidificar em ordens mais seguras e incontestáveis. A condução da vida é antes semelhante a uma corrida mortal em que se tem de empregar todas as forças para que não se fique à distância. Para um espírito que não nasceu dentro do ritmo do nosso espaço, a este processo prendem-se todas as características do enigmático, e mesmo do louco. Têm aqui lugar, sob a máscara implacável da economia e da concorrência, coisas espantosas. Assim, um cristão tem de chegar ao juízo de que em formas tais como as que a publicidade assumiu neste tempo habita um carácter satânico. As conjuras e as contendas abstractas da luz no centro das cidades lembram a muda e exasperada luta das plantas por terra e espaço. Ao olhar de um oriental, tem de ser visível, de um modo puramente corpóreo

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e doloroso, que qualquer homem, qualquer transeunte na rua, se movimenta com todas as características de um corredor. As mais novas construções, os meios mais eficazes, ficam apenas pouco tempo; são ou demolidos ou reconstruídos. Em consequência disso, não há capital no velho sentido estático; o próprio valor do ouro é duvidoso. Já não há artesanato em que se possa acabar de aprender, em que se possa obter uma mestria concluída; todos nós somos aprendizes. Ao tráfego e à produção liga-se algo sem medida e incalculável ⎯ quanto mais depressa se se consegue movimentar, tanto menos se chega ao objectivo, e o aumento das colheitas e da criação de bens está num estranho contraste com o crescente depauperamento das massas. Também os meios de poder são mutáveis; a guerra nas grandes frentes da civilização apresenta-se como um intercâmbio febril de fórmulas de física, de química e de matemática superior. Os imensos arsenais de aniquilamento não garantem qualquer segurança; talvez já amanhã se tenha descoberto os pés de barro do colosso. Nada é constante senão a mudança, e neste facto despedaçase qualquer esforço que esteja orientado para a posse, para a satisfação ou para a segurança. Bem aventurado aquele que sabe ir por outros e mais ousados caminhos.

51. Se reconhecermos então a figura do trabalhador como a figura determinante e o movimento que magneticamente se impulsiona a si mesmo, se a reconhecermos como o último e verdadeiro concorrente, como o terceiro elemento invisível no meio das incontáveis formas da concorrência, então sabe-se que está dado a estes processos o seu objectivo. Suspeita-se o ponto em que se esconde a justificação de

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vítimas caídas em locais aparentemente muito diferentes e muito distanciados uns dos outros. A perfeição da técnica é um, e apenas um, dos símbolos que confirmam a conclusão. Ela grava-se, como se disse, com a cunhagem de uma raça da mais elevada inequivocidade. O ponto temporal da conclusão do processo técnico está então fixado na medida em que um grau muito determinado de aptidão estiver para ser alcançado. Segundo o pensamento, esta conclusão seria teoricamente possível em qualquer tempo ⎯ teria podido ocorrer tanto há cinquenta anos como pode ocorrer hoje. O corredor da maratona não anuncia uma melhor vitória do que o telégrafo sem fios. Quando a agitação chegar à calma, qualquer instante é adequado para ponto de partida da constância chinesa. Se, por uma qualquer catástrofe natural, todas as terras do mundo até ao Japão se afundassem no mar, o nível da técnica alcançado neste instante manter-se-ia provavelmente, em todos os pormenores, inalterado durante séculos. Os meios de que dispomos não apenas são suficientes para preencher qualquer exigência da vida, mas o que é peculiar na nossa situação consiste precisamente em eles realizarem mais do que deles é esperado. A partir daqui dão-se estados em que se procura oprimir o crescimento de meios, seja através do acordo, seja através do comando. Esta tentativa de conter a violência indiscriminada da corrente pode-se observar por todo o lado onde existem reivindicações de domínio. Assim, os Estados tentam fechar-se, através de protecções aduaneiras, contra uma concorrência sem medida; e onde estruturas monopolistas se apoderaram de certos ramos da indústria não é raro que se faça segredo das invenções. Pertencem aqui também os convénios para se afastar o emprego guerreiro de determinados meios técnicos ⎯ convénios que são quebrados durante as guerras e aos quais é dado um carácter monopolista depois da decisão do vencedor, tal como também aconteceu depois da última guerra em relação ao direito de poder produzir gases venenosos, tanques ou aviões de guerra.

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Deparamos então aqui já, como em algumas outras áreas, com uma vontade de trazer o desenvolvimento técnico para uma maior ou menor conclusão, a fim de criar zonas que estejam retiradas da mudança infatigável. Contudo, estas tentativas estão já condenadas a fracassar porque nenhum domínio total e incontestável está atrás delas. Tal tem as suas boas razões: vimos que a cunhagem do domínio corresponde à cunhagem dos meios. Por um lado, só o espaço técnico total possibilitará um domínio total; por outro lado, só um tal domínio possui um poder real de dispor da técnica. No entanto, provisoriamente, será possível uma regulamentação crescente, mas não uma fixação definitiva dos meios técnicos. O fundamento deste facto deve-se procurar em entre o homem e a técnica não haver nenhuma relação de dependência imediata, mas mediata. A técnica possui o seu curso próprio, que o homem não consegue arbitrariamente encerrar quando o estado dos meios parece bastar-lhe. Todos os exemplos técnicos arrastam a sua solução, e a constância técnica não surgirá mais cedo do que quando se tiver dado esta solução. Um exemplo para a medida em que o espaço técnico ganha em planificação e clareza está no facto de que, pelo menos, as soluções parciais já são muito menos o resultado de achados felizes do que de uma marcha ordenada que alcança este ou aquele marco de caminho num tempo cada vez mais calculável. Há já âmbitos, se bem que não na praxis técnica, mas sim nas ciências singulares que a antecedem, em que se pode observar um máximo de precisão técnica que consegue dar uma representação muito clara das suas últimas possibilidades. Aqui parecem estar por dar ainda apenas poucos passos para alcançar a última configuração que no nosso espaço é possível. E precisamente aqui, como que na observação dos resultados da física atómica, ganhamos um juízo sobre a distância que ainda separa a praxis técnica do óptimo das suas possibilidades.

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52. Se agora quisermos representar-nos um estado que alcance este óptimo, tal não acontece na intenção de multiplicar o número das utopias, das quais no nosso tempo não há qualquer falta. A utopia técnica mostrase através de nela a curiosidade estar orientada para o como, para o modo. Ponha-se em suspenso que meios ainda venham a surgir, que fontes de energia se venham a abrir e como é que se as empregará. Muito

mais

significativo

é

o

facto

da

conclusão

em

geral,

independentemente de que formas ela possa assumir. Pois só então poder-se-á dizer que os meios possuem forma, enquanto hoje são apenas as instrumentações fugazes de linhas de desempenho. Não há nenhuma razão plausível que se oponha à aceitação de que um dia se dará uma constância dos meios. Um tal permanência durante um longo espaço de tempo é antes a regra, enquanto o ritmo febril de mudança em que nos encontramos está sem exemplo histórico. A duração deste tipo de mutabilidade é limitada, seja porque a vontade que lhe está na base quebra, seja porque alcança os seus objectivos. É porque julgamos ver tais objectivos que a consideração da primeira possibilidade é para nós sem significado. Uma constância dos meios, seja de que tipo for, encerra uma permanência da condução da vida de que perdemos qualquer suspeita. Esta permanência não se deve certamente compreender como uma ausência de atritos no sentido racional-humanitário, não como um último triunfo do conforto, mas no sentido de que um pano de fundo seguro e objectivo deixa reconhecer mais nítida e claramente a medida e o nível dos esforços, das vitórias e das derrotas humanas, do que o que é possível no meio de um estado dinâmico-explosivo incalculável. Queremos expressá-lo deste modo: que a conclusão da mobilização do

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mundo pela figura do trabalhador possibilitará uma vida adequada à figura. Uma permanência da condução da vida neste sentido pertence aos pressupostos de qualquer economia planificada. Enquanto capital e força de trabalho, independentemente de quem disponha deles, forem absorvidos pelo processo de mobilização, não se pode falar de economia. A lei económica é aqui coberta por leis que se assemelham às da condução da guerra ⎯ descobrimos modos de concorrência em que ninguém ganha não só nos campos de batalha, mas também na economia. O gasto de meios assemelha-se, do lado da força de trabalho, a um desempenho de guerra; do lado do capital, a uma subscrição de um empréstimo de guerra ⎯ ambos são completamente devorados pelo processo. Vivemos num estado em que nem o trabalho, nem a posse, nem o património se rentabilizam, e em que o ganho diminui na mesma medida em que aumenta a transacção. A degradação do nível de vida do trabalhador, o período cada vez mais curto no qual o património permanece numa só mão, a questionabilidade da posse, particularmente da posse fundiária, e dos meios de produção em mutação disso dão testemunho. A produção furta-se à estabilidade e, deste modo, a qualquer calculabilidade a longo prazo. Qualquer ganho é, por isso, devorado pela necessidade, que se dá sempre novamente, de uma maior aceleração. Uma concorrência desmesurada atinge indiferentemente produtores e consumidores ⎯ como exemplo, refira-se a publicidade, que se desenvolveu para uma espécie de fogo de artifício, que estoira somas enormes, para cuja emergência cada um tem de pagar o seu tributo. Pertence aqui aliás o despertar inevitável de necessidades, de comodidades sem as quais o homem julga já não poder viver, e através das quais é aumentada a medida da sua dependência, das suas obrigações. Estas necessidades, por seu lado, são tão múltiplas como sujeitas a variação ⎯ há cada vez menos coisas que se adquire para o

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tempo de uma vida. O sentido da duração, tal como se incorporou na posse imobiliária, parece estar destinado a desaparecer, senão seria inexplicável como hoje por um carro, que possui poucos anos de vida, se gastam montantes com os quais poderiam ser adquiridos um vinhedo ou uma casa de campo. Com a afluência de mercadorias que cria uma concorrência febril multiplicam-se necessariamente os canais através dos quais o dinheiro é absorvido. A mobilização do dinheiro tem como consequência um sistema de crédito ao qual nem sequer o centavo pode escapar. Surgiram assim estados em que se vive literalmente por prestações, isto é, em que a existência económica se apresenta como a amortização ininterrupta de créditos através do trabalho que é hipotecado à partida. Este processo espelha-se, em dimensões gigantescas, nas dívidas de guerra, atrás de cujos complexos mecanismos financeiros se esconde um embargo da energia potencial, o juro de um saque irrepresentável através da força de trabalho, e vai até à existência privada do singular. De mencionar é ainda o desejo de trazer a posse a formas onde habita uma completude e uma força de resistência cada vez menor. Pertencem aqui a mutação dos restos da posse feudal em posse privada, o modo em que se substitui as reservas individuais e sociais por pagamentos de seguros, e sobretudo os múltiplos ataques que são dirigidos contra o papel do ouro como símbolo do valor. Surgem aqui formas de imposto através das quais é dada à posse uma espécie de carácter de administração. Assim, depois da guerra, soube fazer-se da posse imobiliária uma espécie de cobrador financeiro para programas de construções novas. A estes ataques parciais correspondem ataques gerais aos últimos recantos da segurança económica, na forma de inflações e crises de tipo catastrófico. Este estado retira-se já de qualquer regulamentação económica porque se submete a outras leis que não as económicas. Entrámos numa fase em que as tarefas são maiores que as receitas, e em que se torna

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muito claro que a técnica é tão pouco uma questão económica como o trabalhador pode ser captado por um modo de consideração económico. Talvez, na visão das paisagens vulcânicas da batalha técnica, tenha emergido em alguns dos participantes o pensamento de que tarefas deste tipo são demasiado enormes para se poderem pagar, e também a má situação das potências vencedoras, o estado universal das dívidas de guerra, dá disso uma comprovação. O mesmo pensamento impõe-se na consideração do estado técnico em geral. Por muito e seja como for que também se melhore e multiplique o arsenal técnico: a carestia do pão tem de ser a consequência. Entrámos num processo de mobilização que possui propriedades devoradoras, que queima os homens e os meios — e isso não mudará enquanto o processo estiver em curso. Só depois de se alcançar uma conclusão se pode falar, do mesmo modo que de uma ordem em geral, também de uma economia ordenada, isto é, de uma relação calculável entre tarefas e receitas. Só a constância incondicional dos meios, independentemente de como sejam estes meios, é capaz de reconduzir a concorrência desmesurada e incalculável a uma concorrência natural, tal como se pode observar dentro dos reinos naturais ou dentro dos estados sociais tornados históricos. Também aqui, novamente, se manifesta a unidade do mundo orgânico e mecânico; a técnica torna-se orgão e retrocede como poder autónomo na mesma medida em que ganha em perfeição e, deste modo, em evidência. Só a constância dos meios possibilita também a regulamentação legal da concorrência, tal como acontecia através das ordens das corporações e do comércio, e tal como já hoje é intencionada por uniões e monopólios estatais — certamente sem sucesso, pois precisamente os meios são mutáveis e submetidos a ataques incalculáveis. Numa constância de meios, aquelas despesas tornar-se-ão notadas como poupanças que hoje a necessidade da crescente aceleração engole.

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Além disso, é claro que só então se pode falar de mestria — nomeadamente, quando a arte já não consistir em mudar de aprendizagem, mas em acabar a aprendizagem. Finalmente, ao mesmo tempo com a mutabilidade dos meios desaparece o carácter de oficina do espaço técnico — articulação, duração e calculabilidade das instalações serão as consequências.

53 Tocamos aqui a área da actividade construtiva, na qual a influência de uma constância de meios se torna muito mais clara. Abordámos já o conceito de construção orgânica, que se manifesta, em relação ao tipo, como a estreita fusão, sem contradição, do homem com os instrumentos que estão à disposição dele. Em relação a estes instrumentos mesmos, pode-se falar de construção orgânica quando a técnica alcançar aquele mais elevado grau de evidência tal como o que habita dentro dos membros animais e vegetais. Mesmo no estado técnico embrionário no qual nos encontramos, não se pode descurar o esforço, ligado com a simplicidade audaciosa das linhas, não apenas de uma economicidade acrescida, mas também de uma eficácia. Fazemos a experiência de que o curso deste processo não apenas causa uma maior satisfação ao entendimento, mas também à vista ⎯ e isso causado com aquela ausência de intenção que pertence às características do crescimento orgânico. O máximo de construção pressupõe a conclusão da parte dinâmico-explosiva do processo técnico, que na mesma medida, e de certo apenas em aparência, está em contradição tanto com a forma natural como com a forma histórica. Há, por isso, pormenores na nossa paisagem que permaneceram estranhos ao olhar durante cem anos. A isso pertence, como que em contraste com os meios aéreos, a visão do

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caminho de ferro. A medida em que diminui a diferença entre meios orgânicos e técnicos torna-se aliás captável, de um modo puramente sentimental, e não sem razão, através do grau em que a arte consegue tirar notas deles. Assim, até o romance naturalista só depois de décadas toma conhecimento do facto de que há caminhos de ferro, enquanto não se pode ver nenhuma razão pela qual a epopeia ou mesmo o poema lírico se tivesse de fechar à consideração do voo. É muito bem pensável um tipo de linguagem em que se falasse dos combates de aviação como dos carros de guerra homéricos, com as suas parelhas; e o voo de planador pode ser o objecto de uma ode não mais pequena que aquela em que foi cantada a patinagem sobre o gelo. Está certamente aqui também o pressuposto de uma outra humanidade; aproximamo-nos dela na consideração da relação que se dá do tipo à arte. Que a forma seja sentida, de algum modo, como conhecida, e que o olhar conceba que ela seja necessariamente formada, e não de outro modo, tal é uma característica da entrada na construção orgânica. Nessa medida, os resto dos aquedutos na campagna correspondem ao estado de uma perfeição técnica que ainda não se pode observar entre nós ⎯ independentemente de os nossos dispositivos hodiernos serem ou não mais eficazes. Está assente no carácter de oficina da nossa paisagem que não poderemos ousar construir por mil anos. Chega-se assim a que mesmo às mais violentas construções que o nosso tempo produz falta aquele carácter monumental que é um símbolo da eternidade. Tal deixa-se comprovar em todos os pormenores, até à escolha dos materiais de construção ⎯ para comprovação, é suficiente olhar para um qualquer edifício. A razão deste fenómeno não se deve procurar em a técnica de construção estar em contradição com a arte de construção. A relação está antes em a arte de construção, tal como qualquer tipo de mestria, precisar de uma técnica que em si esteja concluída, e isto tanto em

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relação aos seus meios próprios como em relação ao estado de conjunto em geral. É então impossível construir uma estação à qual já não esteja ligado um qualquer carácter de oficina enquanto o próprio caminho de ferro pertencer aos meios questionáveis. Seria, por isso, um pensamento absurdo, dar fundações a um cais do caminho de ferro que correspondam às da Via Ápia. Numa correspondência contrária, é um absurdo construir hoje igrejas como símbolos do eterno. A um tempo que se satisfaz em copiar os grandes modelos do passado num estilo de caixa de construção, segue-se um outro cuja completa ausência de instinto se trai na tentativa de construir igrejas cristãs com os meios da técnica moderna, ou seja, com meios tipicamente anti-cristãos. Tais são esforços que, por assim dizer, se abatem até aos últimos tijolos. A mais abrangente tentativa deste tipo, a construção da Sagrada Família em Barcelona, produz um monstro romântico, e aquilo que hoje na Alemanha se pode observar em esforços semelhantes é artesanato, isto é, aquela forma particular de impotência que esconde a sua incapacidade atrás da máscara da objectividade. Estes edifícios despertam a impressão de terem sido edificados, desde o início, para fins de secularização. Em particular, o famoso betão armado é um típico material de oficina no qual como que se cumpriu a completa dissolução da pedra de construção em argamassa ⎯ um material que é adequado sobretudo para a construção de trincheiras, mas não de igrejas. Neste contexto, refira-se também a esperança de que a Alemanha experimentará uma geração que possui piedade e veneração dos heróis suficiente para demolir os monumentos de guerra que foram edificados no nosso tempo. Aliás, não vivemos ainda num tempo ao qual está reservado uma generosa revisão de todos os monumentos. Tal traise já pela medida em que a consciência da elevada dignidade e da imensa responsabilidade do culto dos mortos se perdeu. De todos os aspectos que o burguês oferece, o mais horrível consiste no modo como

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se deixa sepultar, e um único passeio num destes cemitérios torna perceptível o provérbio sobre as terras em que não se deseja ser sepultado. Entretanto, a guerra assinala também aqui um ponto de viragem: viu-se novamente, de vez em quando, sepulturas. A incapacidade de construir realmente está então, do mesmo modo que a incapacidade da economia genuína, em harmonia com a mutabilidade dos meios. No entanto, tem de se tornar claro que esta mutabilidade não existe em si, mas que não apresenta senão um sinal de que a técnica ainda não está numa relação indubitável de serviço ⎯ ou, expresso por outras palavras, que o domínio ainda não se realizou. Mas caracterizámos esta realização como a última tarefa que está na base do processo técnico. Se esta tarefa estiver resolvida, também a mutabilidade será rendida pela constância de meios, isto é, os meios revolucionários tornam-se legítimos. A técnica é a mobilização do mundo pela figura do trabalhador; a primeira parte desta mobilização é necessariamente de natureza destrutiva. Depois da conclusão deste processo, a figura do trabalhador surge, em relação à actividade construtiva, como patrão supremo.

Será

então

novamente

possível

construir

num

estilo

monumental ⎯ e isso tanto mais que a capacidade de desempenho puramente quantitativo dos meios que estão à disposição é superior a qualquer escala histórica. O que falta às nossas obras é precisamente figura, é metafísica, é aquela verdadeira grandeza que não se deixa forçar por nenhum esforço, nem pela vontade de poder nem pela vontade de fé. Vivemos num dos estranhos espaços de tempo em que já não há e ainda não há domínio. No entanto, pode-se dizer que o ponto zero já foi ultrapassado. Tal mostra-se em nós termos entrado na segunda parte do processo técnico, no qual a técnica se põe à disposição de planos maiores e mais ousados. É certo que estes planos também ainda são tão mutáveis em si como estão incluídos numa concorrência mais extensa ⎯ ainda estamos

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afastados da entrada na última e decisiva fase. O importante é, no entanto, que o plano não se apresente na consciência humana como a forma decisiva, mas como um meio para o fim. Nele expressa-se um processo que é proporcionado ao carácter de oficina do nosso tempo. Correlativamente, a linguagem arrogante do progresso é rendida por uma nova modéstia ⎯ pela modéstia de uma geração que renunciou à miragem de estar na posse de valores inatacáveis.

54. A perfeição, e consequentemente a constância, dos meios não é criadora de domínio, mas realizadora de domínio. Ainda mais claramente que na área da economia e da construção, pode-se reconhecer isto onde a técnica aparece como a fonte de puros meios de poder ⎯ mais claramente não apenas porque a união entre técnica e domínio se manifesta aqui o mais claramente possível, mas também porque qualquer meio técnico possui uma dignidade guerreira secreta ou aberta. O modo em que estes factos surgem no nosso tempo, e as possibilidades que se começam a mostrar para além deles, encheram os homens de preocupações que são bem justificadas. Mas o que é cuidado sem responsabilidade, sem a vontade de dominação do elemento perigoso que nos rodeia? O aumento assustador dos meios despertou uma confiança ingénua, que se esforça por desviar os olhos dos factos como das imagens de um sonho terrível. A raiz desta confiança assenta naquela fé que tem a técnica como um instrumento do progresso, ou seja, de uma ordem do mundo racional-ética. Ligada a isto está a opinião de que há meios que são tão destrutivos que o espírito humano os encerra como que em frascos de veneno. No entanto, como vimos, a técnica não é de modo nenhum um instrumento do progresso, mas um meio da mobilização do mundo pela

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figura do trabalhador, e enquanto decorrer este processo pode-se dizer com determinação que não se renunciará a nenhuma das suas propriedades devastadoras. Para além disso, também o supremo aumento do esforço técnico não consegue ter um objectivo senão a morte, a qual é igualmente amarga para todos os tempos. A visão de que a técnica como arma provoca uma inimizade mais profunda entre os homens é, por isso, tão errada como a visão correlativa de que ela, onde aparece como comércio, tem por consequência uma consolidação da paz. A sua tarefa é uma tarefa completamente diferente, a de se tornar apropriada para o serviço de um poder que determina na mais elevada instância sobre a guerra e a paz, e assim sobre a eticidade ou a justiça destes estados. Quem reconheceu isto, chega logo ao ponto decisivo do grande confronto sobre a guerra e a paz que se desencadeou no nosso tempo. É secundário como e se o emprego de meios técnicos no combate, como e se o próprio facto da guerra se deixa ou não justificar através da razão ou da moral, e pode-se dizer que todos os burgueses que se ocuparam com estas questões, pelo menos em relação à praxis, escreveram em vão. Seja se se quiser a guerra, seja se se quiser a paz: a questão de que unicamente aqui se trata é a de saber se há um ponto em que o poder e o direito são idênticos ⎯ onde o acento tem de estar completamente em ambas as palavras. Pois só então é possível que sobre a guerra e a paz já não se fale, mas se decida com autoridade. É porque, no estado que alcançámos, qualquer confronto realmente sério ganha um carácter de guerra mundial que este ponto possui um significado planetário. Chegámos igualmente ao contexto que liga esta questão com a perfeição dos meios técnicos, ou seja, neste caso, dos meios de combate ⎯ notese apenas brevemente que em cada um dos dois grandes suportes do Estado do século XIX, tanto na nação como na sociedade, habita a orientação para um tal fórum supremo.

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Em relação à nação, tal manifesta-se no desejo de levar o Estado para além das fronteiras nacionais e de dar-lhe uma dignidade imperial; em relação à sociedade, na preparação de contratos sociais com uma validade planetária. Em ambos os caminhos, dá-se que uma tal regulamentação não está reservada para os princípios do século XIX. Os esforços gigantescos dos Estados-Nação avançam, como resultado, para a anexação questionável de províncias; e onde se podem observar princípios imperiais, trata-se de um imperialismo colonial que precisa da ficção de que há povos que, como a Alemanha, ainda estão precisados de educação. A nação encontra os seus limites em si mesma, e qualquer passo que a conduz para além deles é completamente duvidoso. A aquisição de uma estreita faixa fronteiriça com base no princípio da nacionalidade é muito menos legítima que a de um reino inteiro através do matrimónio, num sistema de forças dinástico. Nas guerras de sucessão trata-se, por isso, apenas de duas interpretações de um direito reconhecido pelos dois parceiros; nas guerras nacionais, de dois tipos de direito em geral. É assim também que as guerras nacionais reconduzem para o estado natural. A razão de todos estes fenómenos está em a representação do século XIX ter formado as nações segundo modelos individuais; elas são indivíduos grandes, remetidos para a “lei moral em si”, e, por isso, sucede que lhes está fechada a possibilidade da formação de reais impérios. Não há nenhum fórum supremo, nem do direito nem do poder, que tanto limite como vincule as suas reivindicações ⎯ esta tarefa está antes atribuída a uma força natural mecânica, a do equilíbrio. Os esforços das nações, orientados para a sua validade para além das suas fronteiras, estão condenados ao fracasso porque através deles é aberto o caminho do puro desdobramento do poder. Que aqui, a cada passo, o chão se torne mais duro e mais difícil, explica-se por o poder ultrapassar a esfera do direito que lhe está atribuído e, com isso, aparecer como violência, e assim, no íntimo, ser sentido como inválido.

215

Os esforços da sociedade, orientados do mesmo modo, perseguem o caminho contrário; procuram estender uma esfera do direito à qual não está atribuída nenhuma esfera de poder. Chega-se assim a grémios como o da Sociedade das Nações ⎯ a grémios cuja vigilância fictícia sobre espaços de direito imensos está numa estranha desproporção em relação ao alcance do seu poder executivo. Esta desproporção produziu no nosso tempo uma série de fenómenos de um novo tipo, que se podem conceber como características

de

daltonismo

humanitário.

Desenvolveu-se

um

procedimento tal como a construção teórica de tais espaços de direito tinha de extrair necessariamente de si, ou seja, o procedimento da sanção adicional por actos de violência através da jurisprudência. Assim, tornou-se possível que hoje sejam conduzidas guerras das quais não se toma nenhum conhecimento, porque o mais forte gosta de as assinalar como reposição da paz ou como acção de policiamento contra bandos de ladrões ⎯ guerras que estão certamente presentes na realidade, mas não na teoria. Existe também a mesma cegueira diante do desarmamento da Alemanha, que é tão compreensível como acto de poder político como infame na fundamentação que é dada a este acto. Esta infâmia só podia ser ultrapassada pela infâmia da burguesia alemã de tomar parte na Sociedade das Nações. Mas basta ⎯ trata-se aqui apenas da prova de que a entrada na identidade do poder e do direito não pode ser alcançada através de um alargamento dos princípios do século XIX. Veremos mais tarde se talvez já se podem observar possibilidades diferentes.

55. Em relação aos meios, e é deles que aqui falamos, surgem esforços de tipo imperial como tentativas de uma administração

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monopolista do aparelho técnico do poder. Deste modo, medidas de desarmamento do tipo indicado são completamente coerentes; coerente é em particular que elas não se refiram apenas ao arsenal concreto, mas que procurem paralisar a energia potencial que o arsenal produz. São ataques que já não são dirigidos ao carácter especial do trabalho, mas ao carácter total do trabalho. Com base nas nossas considerações até agora, não nos custará descobrir a fonte de erros que está incluída nestes esforços. Esta fonte de erros é, em primeiro lugar, de natureza fundamental e, em segundo lugar, de natureza prática. Em primeiro lugar, deve-se notar que a monopolização de meios, e isso mesmo onde surge como puro processo negociado, contradiz a essência do Estado-Nação liberal. O Estado-Nação está remetido para a concorrência,

e

daí

explica-se

que

não

se

tenha

desarmado

completamente a Alemanha, mas se lhe tenha deixado soldados, barcos e canhões na precisa medida em que, pelo menos, se consiga manter de pé a ficção de uma concorrência. O ideal no espaço liberal não é a supremacia patente, mas a supremacia velada e, correlativamente, a escravidão velada; é o concorrente mais fraco ⎯ é o economicamente subordinado que garante o estado universal através da posse de um pequeno jardim, o politicamente mais fraco que o garante através da entrega de um boletim de voto. Isso elucida o interesse completamente desproporcionado que o mundo também assume na construção do mais pequeno couraçado alemão ⎯ são estimulantes de que se precisa. Isso elucida aliás o importante erro no sistema que está em ter-se despojado esta terra de todas as colónias; uma pequena concessão nos mares do Sul, na China ou em África teria garantido muito melhor o estado de coisas, e será muito provavelmente recuperada como um presente dos Dánaos98. 98

N. do T.: Por “presente dos Dánaos” Jünger refere-se ao Cavalo de Tróia, presente no interior do qual os gregos conseguiram veladamente entrar para dentro das muralhas da cidade.

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A isto liga-se também uma das possibilidades paradoxais que o nosso tempo produziu ⎯ a possibilidade de se poder pôr em perigo a posse monopolista dos meios de poder através do desarmamento. Este processo parece-se com os ataques ao padrão-ouro e ao sistema parlamentar através da não participação; já não se acredita nesta forma especial de poder e no seu significado essencial ⎯ abandona-se a partida. Tal é de facto um procedimento que está aberto apenas para potências revolucionárias, e também para estas apenas em instantes muito determinados. Pertence à característica de tais potências que o tempo esteja à sua disposição e que o tempo lhes seja propício. Um canhoneio de Valmy, uma paz de Brest-Litowsk99 significam tanto consolidações do poder histórico constituído, como desviam da energia potencial revolucionária, que só começa a desdobrar os seus autênticos meios atrás do véu de tratados e derrotas. A revolução tem tão pouco uma assinatura válida como possui um passado legítimo. Tocamos aqui um dos pontos nucleares da monopolização da técnica, na medida em que aparece como patente meio de poder. Ele está em que o Estado-Nação liberal não é de todo capaz de uma tal monopolização. A posse do arsenal técnico, nesta esfera, é enganadora, e isso surge porque a técnica, segundo a sua essência, não é um meio atribuído e adequado a nenhuma nação. A técnica é antes o modo em que a figura do trabalhador mobiliza e revoluciona o mundo. Sucede assim que, por um lado, a mobilização da nação põe em movimento mais forças, e forças de outro tipo, do que é sua intenção, enquanto, por outro, a nação desarmada é arrastada necessariamente para aqueles espaços perigosos e incalculáveis em que o equipamento revolucionário se esconde numa armazenagem caótica. Mas hoje há apenas um real espaço revolucionário: ele é determinado pela figura do trabalhador. 99

N. do T.: A Batalha de Valmy, ocorrida a 20 de Setembro de 1792, constitui a primeira grande vitória do exército revolucionário francês frente ao exército prussiano. Em BrestLitowsk, a 3 de Março de 1918, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas negociou, sozinha, um Tratado de Paz com o Império Alemão.

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Consequentemente, dá-se na Alemanha, cuja situação vale aqui só como exemplo, o seguinte estado: o monopólio dos meios de poder, instalado pelas potências vencedoras da guerra mundial, é reconhecido pelos defensores do Estado-Nação liberal, e reconhecido numa medida que deixa aparecer as concessões de poder que lhe foram atribuídas, ou seja, o exército e a polícia, como orgãos executivos no encargo deste monopólio estrangeiro. Tal seria logo visível no caso de uma recusa do tributo ou do armamento de determinadas partes do povo ou da terra, e parece já não ser espantoso depois de vivenciarmos o espectáculo de os chamados criminosos de guerra alemães serem trazidos acorrentados pela polícia alemã ao Supremo Tribunal desta terra. Esta é a melhor imagem para a medida em que o Estado-Nação liberal se tornou para nós estrangeiro, e mesmo já sempre o foi. Prova-se que os meios deste Estado se tornaram completamente insuficientes, e que não se pode esperar nada nem dele nem daquela pequena burguesia chauvinista e nacional-liberal, tal como também apareceu na Alemanha depois da guerra. Há agora coisas que são mais explosivas que dinamite. Do mesmo modo que o reconhecemos como tarefa do singular, pertence hoje às tarefas da nação que ela já não se conceba segundo um modelo individual, mas como representante da figura do trabalhador. Fica para outro lugar, considerar como é que esta passagem se realiza em pormenor. Ela significa o aniquilamento da cobertura de superfície liberal que,

no

fundo,

não

é

mais

que

uma

aceleração

do

seu

autoaniquilamento. Significa, além disso, a mudança do âmbito nacional para um espaço elementar, no qual só é possível uma nova consciência de poder e liberdade, e no qual é falada uma outra linguagem que não a do século XIX ⎯ uma linguagem que já hoje é compreendida em muitos pontos da terra e que, quando ressoar neste espaço, será concebida como um sinal de rebelião.

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Só diante de um tal espaço é que se evidenciará em que medida o monopólio vigente de meios de poder possui ou não legitimidade. Evidenciar-se-á que o arsenal técnico garante ao Estado liberal apenas uma segurança incompleta, como também a saída da guerra mundial já mostrou. Não há nenhumas armas em si, a forma de qualquer arma é determinada tanto por aquele que a dirige, como também pelo objecto, pelo opositor, que tem de encontrar. Uma espada pode trespassar uma armadura, mas fende o ar sem deixar atrás de si qualquer vestígio. A ordem de Frederico foi um meio insuperável contra a resistência linear; no entanto, encontrou nos sansculottes um opositor que renunciava às regras da arte. Tal surge por vezes na história, e é um sinal de que começou uma nova partida em que se joga com outras cartas.

56. Pode-se dizer, fundamentalmente, que a posse dos meios técnicos de poder mostra um pano de fundo traiçoeiro por todo o lado onde é usada por um domínio que não lhe é adequado. O domínio, neste sentido, em que a reivindicação monopolista se transformaria numa regalia, não existe hoje em nenhum ponto do mundo. Onde alguém se armar ⎯ arma-se para um outro objectivo que não está submetido aos esforços do entendimento planificador, mas que subordina a si estes esforços. Na prática, em relação à peculiaridade temporal dos meios, o monopólio das armas é ameaçado pela mutabilidade da técnica, que aparece aqui como mutabilidade dos meios de poder. É

esta

mutabilidade

que

coloca

os

seus

limites

ao

armazenamento de energias formadas. O espírito ainda não dispõe dos meios em que se expressa incontestavelmente o carácter total de combate, e na perspectiva do qual se dará uma relação entre técnica e

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tabu. Quanto mais alto se elevar a especialização do arsenal, tanto mais diminuirá o tempo de uso em que poderá ser levado a um emprego eficaz. O carácter de oficina da paisagem técnica apresenta-se na paisagem de guerra como uma mudança acelerada dos métodos tácticos. Nesta parte, na destruição dos meios de destruição habita um ritmo mais acelerado do que na própria construção dos meios de destruição.

Este facto dá à ampliação do armamento uma nota

especulativa que eleva a responsabilidade, e que aumenta na mesma medida em que a experiência prática repousa. Encontramo-nos hoje na segunda fase do emprego de meios de poder de tipo técnico, depois de na primeira se ter cumprido o aniquilamento dos últimos vestígios da classe guerreira100 como estado. Esta segunda fase assinala-se através da concepção e da execução de grandes planos. Estes planos, bem entendido, não se podem comparar à construção das pirâmides ou das catedrais, mas prende-se-lhes ainda um carácter de oficina. Correlativamente, observámos as reais potências históricas num processo de armamento febril que procura submeter a si a soma de todos os fenómenos da vida, e que procura dar-lhes uma dignidade guerreira. Apesar de todas as diferenças sociais e nacionais das unidades da vida, é a austera uniformidade do processo que espanta, atemoriza e suscita a esperança. Está fundado no carácter de oficina desta segunda fase que ela não corporize nenhum estado definitivo — se tais estados forem em geral possíveis sobre a terra — mas sirva para a preparação de tais estados. Na saudade de paz a que a prontidão dos imensos acampamentos 100

N. do T.: O termo traduzido aqui por classe guerreira é Kriegertum, que se encontra usada no sentido da designação do estado ou grupo social que se ocupa da guerra. No mundo em que se espalha planetariamente o carácter total do trabalho, em que a figura do trabalhador configura o mundo, os estados diferenciados desaparecem: desaparece o trabalho (Arbeitertum) como “classe” oposta à burguesia (Bürgertum), e desaparece a classe guerreira (Kriegertum) como camada social específica que se ocupa da guerra. Mas é bom lembrar que trabalho e classe guerreira desaparecem como estados na medida em que se tornam totais ou, o que aqui é o mesmo, universais: cada homem é aqui, enquanto homem, já determinado como trabalhador, e o trabalhador é já, na medida em que mobiliza o mundo, determinado como guerreiro.

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militares serve de contraponto, esconde-se a reivindicação de uma felicidade que não é realizável. Um estado que deve ser visto como símbolo da Paz Perpétua nunca é garantido através de um contrato social entre Estados, mas apenas através de um Estado de uma dignidade incontestável e imperial, no qual se unam “Imperium et libertas”101. Uma conclusão dos grandes armamentos que cada vez mais pressionam os Estados-Nação de velho estilo para a dignidade de grandezas de trabalho e lhe atribuem tarefas que, no fundo, são adequadas a um espaço maior que o da nação ⎯ uma tal conclusão só é possível se também os meios nos quais o armamento se apoia estiverem em si concluídos. A perfeição dos meios técnicos de poder consiste num estado de temor e de possibilidade de aniquilamento total que seja inexcedível. Com um cuidado justificado, o espírito acompanha o surgir de meios através dos quais estas possibilidades se começam já a mostrar. Já na última guerra houve zonas de aniquilamento cuja visão só se pode descrever através da comparação com catástrofes naturais. No curto intervalo de tempo que nos separa daqueles espaços, o ímpeto das energias que estão à disposição intensificou-se várias vezes. Com isso, aumenta a responsabilidade que está puramente contida na posse e administração de tais energias. É um pensamento romântico, o pensamento de que o seu desencadeamento, o seu emprego no combate de vida ou de morte se pode impedir através de contratos sociais. A premissa deste pensamento é a de que o homem é bom ⎯ contudo, o homem não é bom, mas é bom e mau ao mesmo tempo. Em qualquer cálculo que deve ficar preso à realidade pode-se incluir que não há nada de que o homem não seja capaz. A realidade não é determinada através de prescrições morais; é determinada através de leis. Daí que a questão decisiva que se deve colocar seja: há um ponto a partir do qual 101

N. do T.: Jünger opõe-se aqui explicitamente ao projecto kantiano da Paz Perpétua.

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se pode decidir, com autoridade, se os meios devem ser empregues ou não? Um sinal de que não há um tal ponto é que a guerra mundial não criou nenhuma ordem mundial, e este facto está impresso de um modo suficientemente claro na consciência dos povos. Uma última amplificação dos meios de poder, e a constância destes meios a ela ligada, é naturalmente em si insignificante. A técnica só mantém em geral o seu significado através de ser o modo no qual a figura do trabalhador mobiliza o mundo. Este facto dá-lhe, com efeito, a sua dignidade simbólica, e a constância dos seus meios é um sinal de que a fase revolucionária da mobilização está concluída. O armamento e contra-armamento dos povos é uma medida revolucionária que se cumpre numa substância abrangente, e que pode ser reconhecida, a partir daí, como unitária, apesar de ter de dispersar a forma dos seus portadores. A unidade e, deste modo, a ordem do mundo é a solução que já está contida no questionamento dos conflitos, e esta unidade é demasiado profunda para poder ser alcançada com meios baratos, com convénios e contratos. No entanto, há já hoje um tipo de visão de conjunto que torna possível saudar qualquer grande desdobramento de forças, seja em que ponto for do globo terrestre. Expressa-se aqui o desejo de conceder à nova figura, que já desde há muito se anunciou no sofrimento, uma representação activa. Não se trata de vivermos, mas de em geral tornar possível novamente no mundo a condução de uma vida em grande estilo e em grande escala. Contribui-se para isso quando se intensifica as reivindicações próprias. O domínio, isto é, a superação dos espaços anárquicos através de uma nova ordem, só é hoje possível como representação da figura do trabalhador, a qual reivindica uma validade planetária. Mostram-se muitos caminhos em que pode ser alcançada esta representação. Todos estes caminhos assinalam-se através do carácter revolucionário.

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Revolucionária é a nova humanidade que aparece como tipo; revolucionário é o crescimento constante dos meios que não pode assumir em si, sem contradição, nenhuma das ordens sociais e nacionais tradicionais. Estes meios transformam-se completamente e manifestam o seu sentido velado no instante em que um domínio real, um domínio incontestável, os submete a si. Neste instante, os meios revolucionários tornam-se legítimos.

57. Em resumo, pode-se dizer que o erro fundamental que torna infrutífera qualquer consideração consiste em ver a técnica como um sistema causal fechado em si. Este erro conduz para aquelas fantasias da infinitude em que se trai a limitação do entendimento puro. A ocupação com a técnica só valerá a pena onde se a reconhecer como o símbolo de um poder superior. Já houve vários tipos de técnica, e por todo o lado onde se pode falar de domínio real observámos uma completa execução e um uso natural dos meios que estão à disposição. A ponte de lianas que uma tribo de negros estende sobre uma corrente numa floresta virgem é, no seu espaço, de uma perfeição inexcedível. A tenaz do caranguejo, a tromba do elefante, a concha do mexilhão — nenhum instrumento, seja de que tipo for, os substitui. Também os nossos meios são-nos adequados, não apenas num futuro mais próximo ou mais longínquo, mas em cada instante. Serão instrumentos fiéis de destruição enquanto o espírito tramar a destruição, e construirão quando o espírito estiver decidido para grandes construções. Mas tem de se reconhecer que isto não é nem uma questão de espírito nem uma questão de meios. Estamos numa luta que não pode ser negada de uma forma qualquer, mas que possui os seus objectivos solidamente circunscritos.

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Se nos presentificamos um estado de segurança e de constância da vida, tal como seria teoricamente possível em qualquer instante e tal como qualquer esforço superficial poderia já hoje ter como objectivo, mas tal como ainda não nos está certamente destinado, isso não acontece para multiplicar o número das utopias de que não há falta. Acontece antes porque precisamos de linhas de orientação rigorosas. Os sacrifícios que nos serão exigidos são grandes, quer queiramos quer não; é preciso ainda que afirmemos estes sacrifícios. Entre nós, tornouse viva uma inclinação para desprezar a “razão e a ciência”: isto é um falso regresso à natureza. Não se trata do desprezo, mas da subordinação do entendimento. A técnica e a natureza não são nenhuns opostos ⎯ se forem sentidas deste modo, tal é um sinal de que a vida não está em ordem. O homem que tenta desculpar a sua incapacidade própria através da ausência de alma dos seus meios é semelhante ao mil-pés da fábula, que está condenado à imobilidade porque conta os seus membros. A Terra ainda possui os seus vales longínquos e os seus recifes de várias cores, onde não ressoa nenhum apito de fábricas e nenhuma sirene de navios a vapor; as suas travessas ainda estão abertas aos mandriões românticos. Ainda há ilhas do espírito e do gosto, delimitadas por valorizações experimentadas, ainda há aqueles montes e quebramares da fé, atrás dos quais o homem “pode encalhar em paz”. Conhecemos a terna fruição e a aventura do coração, e conhecemos o soar dos sinos que promete a felicidade. Tais são espaços cujo valor, e mesmo cuja possibilidade é confirmada pela experiência. Mas estamos no meio do experimento; fazemos coisas que não estão fundadas por nenhuma experiência. Filhos, netos e bisnetos do que é sem Deus, aos quais mesmo a dúvida se tornou suspeita, marchamos através de paisagens que ameaçam a vida com temperaturas mais elevadas e mais baixas. Quanto mais os singulares e as massas se cansam, tanto maior se torna a responsabilidade que é apenas dada a poucos. Não há

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nenhuma saída, nenhum andar para o lado e para trás; trata-se antes de aumentar o ímpeto e a velocidade dos processos nos quais estamos compreendidos. Pois é bom suspeitar que atrás dos excessos dinâmicos do tempo está escondido um centro imóvel.

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A ARTE COMO CONFIGURAÇÃO DO MUNDO DO TRABALHO

58. Nas últimas duas gerações, dedicou-se grande atenção à relação que possuímos com os valores. Se se pode confiar no variado e minucioso inventário dos nossos bens que este tempo produziu, a nossa dignidade histórica poderia ser apreciada como muito baixa. A crítica do tempo ganhou em intensidade e maldade, e não se pode afirmar que estejamos educados para a sobrevalorização dos nossos desempenhos. Somos aliás inclinados a conceder à crítica uma dignidade que aparece como merecedora de ser pensada. Também ela possui os seus limites, e não há crítica que consiga destacar-se da imagem de conjunto do seu tempo, e que consiga pronunciar juízos numa instância superior. Onde, apesar disso, tal acontece, deve-se verificar com base em que seguranças, em que escalas se realiza a formação de juízos. Está próximo que se procure conquistar estas escalas através da comparação. De facto, o procedimento é de tal modo empregue que a crítica do tempo procura criar uma base de desempenhos históricos, e abordar a partir daí o presente. Este procedimento parece esclarecedor; no entanto, está ligado ao pressuposto de que há uma sucessiva unidade dos tempos, ou seja, daquele passado determinado com este presente determinado, pois senão também é impensável uma unidade da escala. No entanto, tem de se saber que as valorizações impiedosas a que este tempo é sujeito, e que encontramos confirmadas através de tantos pormenores, são ao mesmo tempo adequadas e inadequadas. Isso assenta em que a repartição unitária do tempo em passado,

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presente e futuro pode bem ser aplicável para o tempo astronómico, mas não para o tempo da vida e do destino. Há um tempo astronómico, mas, ao mesmo tempo, uma multiplicidade de tempos de vida, cujos ritmos balançam junto uns dos outros, como o pêndulo de relógios incontáveis. Assim, também não é um tempo, o tempo, que reivindica o homem, mas uma variedade de tempos. Pode-se explicar deste modo que uma geração seja ao mesmo tempo mais velha e mais nova que a dos pais, ou seja, que pertença a dois tempos diferentes. Depende muito do olhar que se é capaz de lançar sobre o tempo. Está-se nele como num tapete e vê-se que os velhos modelos são estendidos até às bordas. Ou vê-se que o tecido se alia a perfis completamente novos e diferentes. Ambas as coisas são adequadas, e pode assim acontecer que um e o mesmo fenómeno apareça tanto como símbolo do fim como do início. Na esfera da morte, tudo se torna símbolo de morte, e, por seu lado, a morte é o alimento de que a vida se nutre. Se a crítica do tempo verifica o declínio completo e o cobre com símbolos, concedamos-lhe sem contestar esta verificação. No entanto, este juízo só pode reivindicar validade para o tempo a que a própria crítica pertence. A sua tarefa é a descrição do imenso processo de morte de que somos testemunhas. Este morrer refere-se ao mundo burguês e aos valores que ele administrou. Ele passa para além do mundo burguês na medida em que o próprio burguês é apenas herdeiro, e não é senão herdeiro, e que com o seu declínio aparece como consumida uma parte da herança muito antiga. O corte profundo que ameaça a vida no nosso tempo não apenas separa duas gerações, não apenas separa dois séculos, mas anuncia o fim de uniões milenares. Que o presente não seja capaz de ser produtivo no sentido dos velhos símbolos, tal não oferece qualquer questão. Mas é uma questão a de saber se isto é em geral desejável. Os velhos símbolos são a cópia de uma força cuja imagem originária, cuja figura se desvaneceu. Não são senão padrões da dignidade que a vida em geral conseguiu alcançar. No

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entanto, em todos os âmbitos da vida deparamos ainda com um tipo de esforço que se orienta para as cópias não segundo a dignidade, mas segundo a qualidade, sem ter parte na imagem originária. Esta actividade de museu é característica do nosso tempo; as grandes e misteriosas transformações são escondidas por ela como por um véu formal. Através dela, o desempenho é dificultado como por um peso de chumbo, e a máscara de uma liberdade assumida pode cada vez menos iludir que aqui falta o pressuposto de qualquer liberdade, ou seja, falta um vínculo genuíno e originário e, assim, responsabilidade. A crítica, que experimenta aqui a sua completa intensidade, tem apenas um jogo demasiado leve, mas pergunta-se se se pode deter neste jogo. Mais importante que a comparação com as imagens de tempos e espaços que se desvanecem é para nós a questão de saber se não estamos numa relação originária nova e peculiar, cuja realidade ainda não encontrou nenhuma expressão no fenómeno. É a questão de saber se não estamos na posse de uma liberdade cujo uso está ainda para ser aprendido e que, no entanto, já como que está na rua. Termina aqui a crítica, pois são visões de outro tipo aquelas a que nos temos de entregar.

59. Vivemos num mundo que se assemelha, por um lado, completamente a uma oficina, por outro lado, completamente a um museu. A diferença entre as reivindicações que estas duas paisagens colocam é a de que ninguém é obrigado a ver numa oficina mais do que precisamente uma oficina, enquanto na paisagem do museu domina uma atmosfera de edificação que assumiu formas grotescas. Alcançámos uma espécie de fetichismo histórico que está numa relação directa com a falta de força de produção. Daí que seja consolador o pensamento de

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que uma qualquer correspondência secreta acompanha o seguimento da construção de grandiosos meios de destruição com o armazenamento e a conservação dos assim chamados bens culturais. A penetração destes bens, uma penetração que lhes é sensível e que os reproduz, isto é, a empresa da arte, da cultura e da formação, atingiu

um

alcance

que

deixa

aparecer

como

necessário

um

aligeiramento das bagagens, aligeiramento esse que não se pode representar de um modo suficientemente fundo e abrangente. O pior não é que em torno a cada casca abandonada que alguma vez tenha sido transportada

pelo

corpo

do

caracol

se

reuna

um

círculo

de

conhecedores, coleccionadores, curiosos e conservadores. No fundo, tal foi desde sempre o caso, mas numa escala muito mais modesta. Muito mais que pensar dá que a partir desta ocupação se dê um conjunto de valorizações padronizadas, atrás do qual se esconda o falecimento completo. Joga-se aqui com as sombras das coisas e faz-se publicidade ao conceito de uma cultura que é estranha a qualquer força originária. Tal acontece num tempo em que o elementar volta a penetrar poderosamente no espaço vital, e volta a colocar aos homens as suas inequívocas exigências. Há o esforço por extrair novas estirpes de administradores e funcionários culturais e por cultivar um bizarro sentimento pela “verdadeira grandeza” do povo, enquanto o Estado tem de resolver tarefas mais originais e mais penetrantes que antes. Por muito que também se possa andar para trás, dificilmente se deparará com uma mistura tão penosa de banalidade e de ensoberbamento como se tornou habitual nas alocuções oficiais do Estado, com a sua inevitável alusão à cultura alemã. Comparado com isto, aquilo que os nossos pais tinham a dizer sobre o progresso é realmente ouro. Levanta-se a questão de saber como, num tempo em que acontecem e ainda estão diante de nós coisas de importância tão resplandecente, é em geral possível um tal lustro do mais fino idealismo e do mais aberto romantismo. A resposta de que não se sabe fazer nada

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melhor poderia ser ingénua, mas seria adequada. A empresa de museu não apresenta senão um dos últimos oásis da segurança burguesa. Transmite a evasiva aparentemente mais plausível com que se se pode furtar à decisão política. Tal é uma actividade na qual o mundo vê de bom grado os alemães. Quando se observou que em 1919 os “representantes dos trabalhadores”, em Weimar, tinham o seu Fausto nas mochilas, podia-se predizer que o mundo burguês estava salvo por um longo espaço de tempo. O modo insipiente em que, na Alemanha, durante a guerra, foi exercida a propaganda cultural desenvolveu-se, depois da guerra, num sistema formal, e quase não há um selo, quase não há uma nota, em que não se depare com as mesmas coisas. Todas estas coisas suscitaram em nós, de um modo infelizmente muito injusto, a recriminação de serem insinceras. Contudo, não se trata aqui de insinceridade, mas da ausência de instinto burguesa em relação ao valor. Não se trata aqui de uma espécie de ópio pelo qual se dissimule o perigo e se evoque a consciência enganosa de uma ordem. Contudo, tal é um luxo insuportável, num estado em que se trata não de falar de tradição, mas de criar tradição. Vivemos numa parte da história em que tudo depende de uma mobilização imensa e de uma concentração das forças que estão à disposição. Os nossos pais talvez tivessem ainda tempo para se ocupar com os ideais de uma ciência objectiva e de uma arte que subsistisse por causa de si mesma. Nós, pelo contrário, encontramo-nos de um modo completamente inequívoco numa situação em que não é isto ou aquilo que está em questão, mas a totalidade da nossa vida. Tal exige o acto de uma Mobilização Total que tenha de colocar em qualquer fenómeno pessoal e material a pergunta brutal pela necessidade. O Estado, pelo contrário, nestes anos depois da guerra, ocupou-se com coisas que são não apenas supérfluas para uma vida ameaçada, mas nocivas, e desleixou outras que são decisivas para a permanência. A imagem que se tem hoje de fazer do Estado assemelha-

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se não a um navio de passageiros ou a um navio social, mas antes a um navio de guerra, no qual dominam a mais elevada simplicidade e a maior poupança, e no qual cada movimento se realiza com uma segurança instintiva. Aquilo que tem de suscitar atenção ao estrangeiro que visita a Alemanha não são as fachadas conservadas dos tempos passados, não são os discursos durante as festas dos centenários de clássicos e não são aqueles cuidados que formam o tema dos romances e peças de teatro ⎯ são antes as virtudes da pobreza, do trabalho e da bravura que hoje apresentam o sinal visível de uma formação muito mais profunda do que se permitia sonhar o ideal de formação burguês. Não se sabe então que toda a nossa assim chamada cultura não consegue evitar sequer o mais pequeno Estado fronteiriço numa violação territorial ⎯ que, pelo contrário, é imensamente importante que o mundo saiba que na defesa da terra se encontram até crianças, mulheres e idosos; e que, do mesmo modo que o singular renuncia à fruição da sua existência privada, também o governo não hesitaria nenhum instante em vender todos os tesouros artísticos dos museus àqueles que oferecem mais, se esta defesa o exigisse? Tais manifestações da suprema e mais viva forma de tradição pressupõem também o mais elevado sentimento de responsabilidade, um sentimento para o qual é claro que se trata agora não de ser imediatamente responsável pelas imagens, mas pela força originária que cria estas imagens. Tal exige de facto uma verdadeira grandeza de outro tipo. Mas convençamo-nos de uma coisa: se existe entre nós hoje ainda verdadeira grandeza, se em qualquer parte está escondido um poeta, um artista, um crente, ele será reconhecido ao sentir-se aqui responsável e esforçar-se por servir. Não é preciso nenhum dom profético para predizer que não estamos no começo de uma Era Dourada, mas diante de grandes e difíceis transformações. Nenhum optimismo pode iludir que os grandes

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conflitos são em maior número e mais graves do que antes. Trata-se de estar à altura destes conflitos através da criação de ordens que sejam inabaláveis. No entanto, o estado em que nos encontramos é a de uma anarquia escondida atrás da ilusão de valores que se tornaram inválidos. Este estado é necessário, na medida em que garante a decomposição das velhas ordens cuja força de combate se mostrou insuficiente. A mais íntima força do povo, pelo contrário, o solo materno gerador do Estado, conservou-se de um modo inesperado. Já hoje podemos dizer que o esgotamento é superado no essencial ⎯ que possuímos uma juventude que conhece a sua responsabilidade e cujo núcleo era inatacável pela anarquia. É impensável que a Alemanha alguma vez tenha falta de bons homens. Quão agradecida está esta juventude por cada sacrifício que lhe é pedido. Contudo, trata-se de dar a esta matéria da natureza tão voluntariosa e tão preparada uma forma que corresponda à sua essência. Tal é uma tarefa que coloca na força produtiva as mais elevadas e significativas exigências. Mas que espíritos são estes que ainda não sabem que nenhum espírito pode ser mais profundo e sapiente do que um qualquer dos soldados que caíram em qualquer parte em Somme ou na Flandres? Esse é o padrão de que precisamos.

60. Quando

se

reconheceu

aquilo

que

hoje

é

necessário,

nomeadamente a afirmação e o triunfo ou, se tiver de ser, também a preparação

para

o

decisivo

declínio

no

meio

de

um

mundo

completamente perigoso, então sabe-se a que tarefas qualquer tipo de produção, da mais elevada à mais simples, se tem de submeter. De

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resto, quanto mais a vida puder ser conduzida de um modo cínico, espartano, prussiano ou bolchevista, tanto melhor será. O padrão que é dado encontra-se na condução da vida do trabalhador. Não se trata de melhorar esta condução da vida, mas de lhe dar um sentido supremo e decisivo. Do mesmo modo que é uma bela imagem ver os filhos livres do deserto, que trazem farrapos sobre o corpo e cuja única riqueza consiste nos seus cavalos e armas valiosas, assim também seria uma bela imagem ver como o poderoso e caro arsenal da civilização é usado e dirigido por um pessoal que vive na pobreza monacal ou militar. Tal é um espectáculo que dá satisfação aos homens, e que sempre se repete quando há que realizar altos esforços e orientar-se para grandes objectivos. Fenómenos como a ordem dos cavaleiros teutónicos, o exército prussiano, a societas Jesu são modelos, e deve-se reparar que aos soldados, aos sacerdotes, aos sábios e aos artistas é dada uma relação natural à pobreza. Esta relação não apenas é possível, mas até está próxima no meio de uma paisagem de oficinas, em que a figura do trabalhador mobiliza o mundo. Conhece-se muito bem entre nós a felicidade que assenta em estar dentro de organizações cuja técnica está viva na carne e no sangue de cada singular. Estamos diante de uma nova ordem da grande estrutura da vida, na qual está incluída mais do que a cultura, nomeadamente também o pressuposto da cultura. Esta nova ordem exige a integração de todos os âmbitos singulares que um espírito abstracto cada vez mais autonomizou e furtou ao conjunto. Vivemos em estados que apontam para a especialização,

mas

também

não

se

trata

de

eliminar

esta

especialização. Trata-se antes de cada esforço especial ser visto como parte de um esforço total, e de ser concebido o carácter de traição de cada tendência que se procure furtar a este processo. Este esforço total não é outra coisa senão trabalho no mais elevado sentido, isto é, representação da figura do trabalhador. Só quando esta concepção se

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tornou válida, só quando o trabalho se ergueu a uma dignidade metafísica abrangente, e se exprimiu esta relação na realidade estatal, é que se pode falar de uma era do trabalhador. Só sob este pressuposto é que também se pode determinar a dignidade que pode ser concedida à empresa de museu, ou seja, àquela actividade que o burguês no presente classifica como arte. A representação da figura do trabalhador segue necessariamente soluções de uma amplitude planetária e imperial. Não se pode tratar aqui, como em qualquer domínio genuíno, apenas da administração do espaço, mas da administração do tempo. No mesmo instante em que chegamos à consciência da nossa força produtiva peculiar, alimentada por fontes de outro tipo, será também possível uma completa alteração da consideração da história e da dignificação e administração dos desempenhos históricos. Pertence aqui um sentimento de supremacia e a consciência de uma originariedade, tal como falta no burguês, que não possui segurança, mas procura-a, e por isso também não dispõe da segurança do juízo. Esta é a razão pela qual se submete ao demonismo de qualquer fenómeno histórico, sem amparo e sem uma atitude própria, e pela qual tende a dar poder sobre si a qualquer grandeza histórica que observe. Dá-se assim que também possa ser batido com uma citação qualquer. No entanto, tem de se saber que é o vencedor a escrever a história e a determinar a sua árvore genealógica. Na medida em que o trabalhador, como vimos, possui enquanto tipo uma qualidade adequada à raça, pode-se esperar dele aquela inequivocidade da observação que pertence às características da raça e que é o pressuposto de qualquer valorização segura ⎯ em oposição a um hedonismo que se compraz na visão caleidoscópica das culturas. Temos de reconhecer que onde somos mais fortes estamos muito menos precisados de uma crítica do tempo que de uma crítica dos tempos, de uma ordem rigorosa e distanciada do pano de fundo histórico.

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Esta ordem é para todos os tempos o direito natural do que é vivo. A sua realização apresenta-se no nosso tempo como uma das tarefas do carácter especial de trabalho, que tem não de projectar as perspectivas decisivas, mas de executá-las.

61. Um incisão que seja suficientemente profunda para nos livrar dos velhos cordões umbilicais só pode ser feita com a intensidade necessária por uma autoconsciência forte que esteja incorporada numa chefia jovem e sem inibições. Quanto menos educação, no sentido habitual, possuir esta camada, melhor será. Infelizmente, a era da educação universal despojou-nos de uma reserva apreciável de analfabetos ⎯ tal como se pode hoje ouvir com facilidade mil pessoas sensatas raciocinar sobre a Igreja enquanto se procura em vão os velhos rochedos e florestas sagrados. A nossa esperança está na nova relação ao elementar que é dada ao trabalhador. O tempo cuidará que ele reconheça numa medida cada vez maior esta relação e veja nela a fonte autêntica da sua força. Do mesmo modo que ele se tem de guardar de, através da sua participação, trazer um novo alimento aos sistemas políticos do liberalismo, é do seu interesse não tomar parte naquilo que hoje é compreendido por arte. Com efeito, o perigo não parece demasiado grande se se considerar os esforços que se orientam na sua direcção. Eles desembocam, no essencial, nos esforços de uma camada artística particular para transportar as velhas receitas para uma espécie de arte mundividencial, cuja característica consiste na substituição da substância pela disposição. Tal é o escape habitual para a ausência de talento, escape esse que se apoia no muito espalhado preconceito de que uma

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mudança significativa na arte, sobretudo na literatura, tem de experimentar uma anunciação. No entanto, uma tal anunciação, diante de alterações de primeiro plano ⎯ e é diante de uma destas que nos encontramos ⎯, tem tão pouco sentido como diante de uma migração de povos. Pressuporia uma continuidade do meio artístico e, assim, um plano da compreensão que tem de ser negado. Uma tal continuidade está certamente presente apenas onde aparece um novo estado e onde se se movimenta dentro de questionamentos sociais, mas não onde a força elementar se começa a tornar eruptiva. Surgem aqui outros modos de destruição e outras possibilidades de crescimento. Aqui a arte não é meio, mas objecto da mudança. Do mesmo modo que o vencedor escreve a história, isto é, cria o seu mito, ele determina aquilo que deve valer como arte. Mas isto são cuidados que estão reservados para uma parte posterior. Em todo o caso, pode-se prever que não apenas categorias inteiras da produção artística perderão o seu significado, mas que, por outro lado, também esta produção submeterá a si âmbitos dos quais hoje nem sequer se ousa sonhar. Já não se trata aqui de uma troca de estilo, mas do tornar-se visível de uma outra figura. O pessimismo cultural tem razão quanto às possibilidades de um determinado espaço vital estarem esgotadas até aos últimos limites. Este reconhecimento é necessário na medida em que se deve como que objectivar aquilo que passou ⎯ na medida em que se deve separá-lo através de um traço de separação, para lá do qual se pode considerar com frieza. Tal é, como se disse, a tarefa de uma administração, de uma administração que está sob vigilância. Mas aquilo que hoje é fugaz está destinado a outras formas. Para adquirirmos uma representação da possibilidade de tais formas, é preciso lançar um olhar à situação no seu conjunto. De um modo correspondente à rendição sucessiva dos estados universais, através do Estado absoluto e da democracia burguesa, que

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se representa na história através da entrada da pessoa e, depois, do indivíduo, pode-se seguir como a arte se absolutiza e universaliza ⎯ universaliza-se na medida em que existe uma união imediata entre o individual e o universal enquanto medium que lhe é adequado. A produção ganha então em liberdade, sendo pressuposto que se quer reconhecer a liberdade e a autonomia como idênticas. No modo de expressão cristão, isso seriam graus de uma secularização progressiva ⎯ este modo de expressão não é para nós relevante, na medida em que reconhecemos precisamente como a nossa tarefa afastarmo-nos deste estado no seu conjunto, independentemente de onde este estado aparecer como secularizado ou não secularizado. Na medida em que o trabalhador não tem uma fé mais fraca, mas uma outra fé, esta diferença tem apenas aqui um valor de museu. Ela mostra relações de grandeza, mas nenhum grau de parentesco. O burguês está certamente ainda dentro do processo que é concluído por ele; o declínio do indivíduo anuncia, ao mesmo tempo, o último lampejo da alma cristã. É isto que dá a esta conclusão o seu autêntico significado. Contudo, temos de conceber que entre a figura do trabalhador e a alma cristã não pode subsistir uma relação, tão pouco como ela era possível entre esta alma e as imagens dos deuses antigos. A crescente rendição da arte tinha necessariamente de produzir a intuição de que a manifestação artística pertence aos testemunhos essencialmente individuais. Esta concepção alcançou no culto do génio do século XIX o seu auge. A história da arte aparece aqui sobretudo como história da personalidade; a própria obra como documento autobiográfico. Correlativamente, no primeiro plano da consideração surgem géneros artísticos em que o desempenho individual aparece como particularmente elucidativo, e todos estes géneros, independentemente do sentido a que possam falar, são, numa medida correspondente, emergidos num elemento especificamente literário, num modo de

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movimentação espiritual que é mais aparentada ao temperamento que ao carácter. Explica-se daí porque a escultura, que oferece a mais dura resistência ao trabalho do espírito em movimento, tem de passar para segundo plano. Aqui, o evidente, a lógica do material é tão forte que uma fraqueza da substância não se deixa iludir por nenhum meio espiritual, como que de um modo perspectivista, mas se torna logo visível até ao olhar ingénuo com uma clareza incorruptível. Do mesmo modo se passa com a arquitectura, que já quase não cuida de ser contada entre os géneros artísticos, embora em tempos, como nos da construção das catedrais, aparecesse como a rainha e a mãe de todas as restantes artes, e lhes atribuísse a sua posição. A escultura e a arte da construção, no meio de uma sociedade formada a partir de indivíduos, não estão certamente no seu lugar; estão antes, entre as artes plásticas, numa relação tão exacta e íntima ao Estado como o está o drama entre as artes verbais. Na mesma medida em que o indivíduo artístico ganha em soberania, ou seja, em que se torna portador da realidade, diminui com uma segurança matemática o espaço a partir do qual a produtividade se pode desdobrar e experimenta uma comprovação objectiva. Na mesma medida em que o domínio sobre o espaço se desvanece, é necessário que o movimento seja aumentado. Que aceleração na mudança mágica da consciência que se levanta, através dos anéis do inferno e do paraíso até à “rapidez vagarosa” que do céu, através do mundo, conduz ao inferno! Contudo, vivenciámos o embalo do Navio Ébrio que corre para a “luz de uma cadeia de sóis” como para um muro102. Fizemos a experiência de que só a liberdade não basta, e de que o medo é o mistério que a velocidade esconde. Vivenciámos os movimentos de uma arte que se assemelham aos de um urso constrangido a dançar em placas aquecidas ⎯ numa palavra, vivenciámos o declínio do indivíduo e dos seus valores 102

N. do T.: Jünger refere-se à poesia de Rimbaud intitulada Le bateau ivre.

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herdados, não apenas nos campos de batalha, não apenas na política, mas também na arte. A infinitude que parecia estar à disposição do indivíduo é de uma natureza caleidoscópia. Sabemos que a parte da herança está consumida e que se tornou sem sentido não apenas qualquer ligação, mas também qualquer andar para trás. Mas um tal saber é inútil se não se retirar dele as consequências. Em vez de reunir os velhos perfis dos modos mais variados, e necessariamente cada vez mais fracos, numa actividade atomística, trata-se de ver se um outro espaço não esconde forças e recursos de um novo tipo. Nada nos está mais próximo que isto, pois em nenhuma parte ⎯ nem no mundo mecânico nem no orgânico, nem na natureza nem na história ⎯ observamos uma força que se dissipe sem ser rendida. Um tal espaço está de facto presente; é determinado através da figura do trabalhador. Esta figura é de uma dignidade igual a todos os grandes fenómenos ⎯ aquilo que remete o homem para ela é o facto de apenas estar a ponto de entrar na história. Independentemente de dela se poderem esperar testemunhos iguais aos de todos os grandes desempenhos históricos, não há nenhum outro espaço senão o seu ao qual se pode ligar uma esperança. Isso vale, como para todos os desempenhos, também para a arte. A arte é um dos modos em que a figura é concebida como o grande princípio criador. Que isto não seja possível com os meios da obra artística individualista contemporânea, tal não é uma razão para o desespero, mas, pelo contrário, para a atenção.

62. É claro que uma arte que tem de representar a figura do trabalhador deve ser procurada numa unidade estreita com o trabalho. A ocupação e o ócio, a vida mais séria e a vida divertida, o quotidiano e o festivo não podem então aqui ser opostos, ou são pelo menos opostos

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de segundo plano que englobam um sentimento da vida unitário. Tal pressupõe certamente que a palavra “trabalho” seja transportada para uma esfera suprema, na qual não contradiga nem as valorizações do herói nem as do crente. Foi para mostrar que isto é possível, e que o significado do trabalhador ultrapassa assim de longe o de uma grandeza económica ou social, que a nossa investigação foi empreendida. Levanta-se agora a questão de saber como se tem de representar a passagem para desempenhos criadores válidos que estejam à altura de qualquer padrão tradicional. Aqui deve-se responder que o ponto do tempo decisivo ainda não chegou, apesar de já se poderem ver linhas de orientação também prescindindo de profecias. À partida, pode-se verificar que os pressupostos destruidores ⎯ por um lado, através da dissolução do indivíduo e das suas valorizações; por outro, através da irrupção da técnica, tanto no espaço tradicional como no romântico ⎯ estão dados numa medida elevada, e completam ainda diariamente um nivelamento que só pode aparecer como horrível para uma consciência que vê nele o fim. Para além disso, entrámos numa paisagem de oficinas que exige da geração que nela se consome sacrifício e modéstia. Tem então de se reconhecer que nas formas que aqui emergem não habita, nem pode habitar, uma medida sólida e estável, porque ainda se trabalha na criação dos meios e dos instrumentos, não das formas. Estamos em combate e temos de nos ocupar com medidas que se orientam para o domínio, isto é, para a criação de uma hierarquia cujas leis ainda estão por desenvolver. Este estado pressupõe uma acção simples e limitada, durante a qual o valor dos meios corresponde à medida em que estão adaptados ao combate, no mais vasto alcance da palavra. O curso deste processo exige, numa perfeição crescente dos meios, uma fusão cada vez mais estreita das forças orgânicas e mecânicas ⎯ uma fusão que assinalámos como construção orgânica. Esta fusão dá novos contornos à condução da vida do singular, tal como

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determina o tipo de alteração em que os Estados estão compreendidos. Ela está ainda coberta, no estado actual, por resistências que tem de aniquilar, e que são apoiadas por o singular ainda se compreender como indivíduo, e o Estado como Estado-Nação, formado segundo o modelo individual. Contudo, na medida em que o singular é trabalhador e se movimenta dentro de grandezas de trabalho, não se pode falar de uma oposição entre ele e os seus meios. Aqui, os meios revolucionários tornam-se legítimos, e é uma característica da nova ordem que o seu emprego inequívoco seja bem sucedido. Isso pressupõe certamente alterações tanto do homem como dos meios, alterações que já considerámos

pormenorizadamente

e

que

ainda

se

realizam

ininterruptamente. A sua fonte comum é a figura do trabalhador. Um dos sinais para a entrada na construção orgânica é o facto de que, ao mesmo tempo com o desmoronamento da velha ordem, se começa a abrir tanto a necessidade como a possibilidade de planos englobantes. A sua concepção e execução é a marca da fase em que estamos a ponto de entrar. Estes planos ainda estão limitados ao quadro dos velhos Estados-Nação, os quais, no entanto, já se podem considerar como grandezas de trabalho, dentro das quais se trata de criar as sementes para contextos mais alargados. Estes planos ainda se relacionam com o comércio, com a economia, com os meios de produção, com a guerra, ou seja, com coisas que estão articuladas com o armamento. No entanto, dá-se aqui já um passo muito significativo; torna-se manifesta a configuração de uma vontade que procura captar a vida na sua totalidade e trazê-la à forma. As unidades da vida preparamse sob o véu das mais diversas ideologias para um ataque ousado, tão centralizado como abrangente, em cujos quadros pode ser novamente experimentado como fazendo sentido que se tragam e exijam sacrifícios. No curso destas medidas atrás das quais se esconde a figura do trabalhador, medidas essas que, se bem que ainda não de um modo claro, se referem a esta figura, salientar-se-á que o espaço que lhe

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corresponde possui um alcance planetário. Depois de a questão do domínio estar decidida ⎯ e esta decisão prepara-se em múltiplas dimensões e em muitos lugares do mundo ⎯, trata-se do modo em que este espaço se deve configurar. Não sabemos em que caminho empírico se realizará a solução, pois estamos em concorrência ⎯ mas independentemente de como e de através de quem possa ocorrer, ela será uma realização da figura do trabalhador. Neste contexto, aponta-se já a tarefa natural que tem de dominar uma arte que representa a figura do trabalhador. Ela assenta na configuração de um espaço bem delimitado, ou seja, da Terra, no sentido do mesmo poder vital que está vocacionado para a sua dominação. Os planos que no curso deste processo emergirão diferem essencialmente daqueles através dos quais somos reivindicados. Na paisagem de oficinas em que nos encontramos acontece a planificação no quadro de uma Mobilização Total que está orientada para o domínio, enquanto a configuração se refere já a este domínio e é por ele possibilitada. A tarefa da Mobilização Total é a mudança da vida em energia, tal como se manifesta na economia, na técnica e no tráfego, no zumbidos das rodas ou, no campo de batalha, como fogo e movimento. Ela refere-se assim à potência da vida, enquanto a configuração traz o ser à expressão, e se tem de servir então não de uma linguagem de movimento, mas de uma linguagem das formas. É claro que a uma vontade que concebe o globo terrestre como o seu material elementar não podem faltar tarefas. São tarefas em que se tem de mostrar a estreita união que, onde a vida estiver em ordem, existe entre arte e arte estatal. Pois o mesmo poder que a arte estatal representa através do domínio é manifesto pela arte através da configuração. A arte tem de mostrar que a vida, sob aspectos elevados, é concebida como totalidade. Daí que ela não seja nada destacado, nada que possua em si e a partir de si validade, mas que não haja nenhum

243

âmbito da vida que não possa ser considerado como material também da arte. Tal torna-se claro quando se conceber a configuração da paisagem como a tarefa mais abrangente que se apresenta à vontade artística. A configuração da paisagem, e mesmo a configuração planificada da paisagem, pertence aos testemunhos de todos os tempos a que foi dado um domínio indubitável e incontestável. Os mais significativos exemplos são oferecidos pelos grandes cultos sacrais dos deuses e dos mortos, em paisagens consagradas que estão situadas em torno a rios ou montes sagrados. As lendas da Atlântida que nos transmitiram, o Nilo e o Ganges, as muralhas fortificadas tibetanas e as ilhas bem aventuradas do arquipélago trazem-nos à lembrança as medidas da força de configuração de que a vida é capaz. A Cidade do México, antes da sua destruição, assemelhava-se a uma pérola num lago com cujas margens ela estava em ligação através de diques em forma de estrela, que eram interrompidos pelas aldeias. Destas margens surgia, de um modo semelhante a um anfiteatro, uma paisagem maravilhosa de jardim até às fronteiras de gelo. Também maravilhosas eram as paisagens de parque em que os imperadores chineses transformaram províncias inteiras. O último, e quase ainda presente, esforço deste tipo é a referência da paisagem à pessoa absoluta, tal como é mantida nas residências e jardins de recreio dos príncipes. Quando estudamos os relatos de viajantes que puderam contemplar Bagdad, os jardins mouros de Granada, o Tadj-Mahal, os castelos

e lagos da Palermo dos Hohenstaufen ou a paisagem de

parque de Yuen, com os seus cinquenta palácios em completo resplendor de vida, deparamos sempre de novo com aquele sentimento tal como se expressa no vedere Napoli...103 , e tal como preenche nos homens, diante da completude, um prazer quase doloroso. São testemunhos de uma vontade que deseja criar paraísos terrestres. Do 103

N. do T.: Jünger refere-se ao provérbio napolitano que diz: “ver Nápoles e morrer!”.

244

mesmo modo que uma tal vontade está a obrar a partir de uma unidade profunda de todas as forças técnicas, sociais e metafísicas, todos eles são sentidos que ela reivindica de tal modo que mesmo o ar parece conter a sua radiação. Não há aqui nada isolado, nada que se possa considerar em e para si, e nada que fosse demasiado grande ou demasiado pequeno para não estar ao serviço. A quem possuir uma suspeita desta unidade, desta identidade da arte com uma suprema força de vida, que preenche completamente o espaço, não pode escapar o absurdo da nossa empresa de museu, enquanto olhar abstracto de imagens e monumentos.

63. Os grandes testemunhos, as maravilhas do mundo, os sinais de que a Terra é a habitação de seres elevados, são apenas comparáveis segundo a sua dignidade, mas incomparáveis na sua peculiaridade. Tal vale, como para cada era de grande dignidade, também para a do trabalhador. Se se quiser fazer uma representação das mudanças específicas que se devem esperar, deve-se reconhecer à partida que estas mudanças já estão completamente a caminho, embora precisem de uma completa troca de indícios. De facto, a paisagem de oficinas que caracteriza o nosso tempo, e que se cuida comummente de assinalar como paisagem industrial, cobre já muito uniformemente o globo terrestre, com as suas construções e instalações, com as suas cidades e bairros. Já não há nenhuma região que não esteja atada por estradas e carris, por cabos e fios, por linhas aéreas e marítimas. É cada vez mais difícil decidir em que terra; melhor: em que parte da terra surgiram as imagens que as lentes fotográficas fixaram. Não pode haver dúvida de que esta alteração, na sua primeira fase e na sua fase conclusiva, também possui um carácter destrutivo, na

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perspectiva de que ela rebenta a peculiaridade das paisagens naturais e culturais e as mistura com corpos estranhos; e são-nos transmitidas manifestações

suficientes

das

quais

resulta

que

a

consciência

responsável concebeu isto com cuidado, mesmo no começo do processo. Voltamos a encontrar aqui, na imagem da paisagem, o mesmo desenlace que se pode observar, em relação à comunidade humana, nos estados e, mais tarde, nas formas da sociedade burguesa, mas sabemos que destruições deste tipo são demasiado fundas e fundamentadas para que se lhes pudesse ordenar a sua paragem, e que não se pode avançar para novas harmonias sem ter passado por esta destruição. Multiplicam-se assim os sinais de que se começa a amortecer este

primeiro

precisamente

irromper através

revolucionário.

de

uma

Estes

estranha

anos

coexistência

mostram-se tanto

do

desmoronamento como da nova ordem da paisagem técnica. As razões deste acontecimento são de tipo variado. A mais importante é sem dúvida a de que o processo da industrialização e da tecnificação, enquanto o seu primeiro orgão de realização, encontrou o indivíduo burguês, e a de que a sua anterior organização se realizou no meio do conceito de liberdade burguês. Isto tinha também de enterrar na imagem da paisagem aqueles vestígios de anarquia que por todo o lado estão ligados com este conceito de liberdade. O combate indescriminado da concorrência pelas zonas de riqueza natural, e a acumulação de indivíduos nas grandes cidades, numa sociedade atomizada, provocaram, num espaço de tempo inacreditavelmente curto, uma alteração cujo irromper conduz até à poluição da atmosfera e ao envenenamento dos rios. Este acontecimento tinha inevitavelmente de atrair sobre si a visão de que a existência económica isolada, o pensar abstracto em valores e teorias económicos, não consegue, ao limite, manter de pé as hierarquias económicas. Esta visão é ilustrada por um monte de ruínas de instalações em todas as

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terras do mundo, que não torna visível as consequências de uma crise precedente, mas o fim de uma fase histórico-espiritual. Que, no entanto, os grandes processos continuem a correr, é uma prova de que aqui se trata de um acontecimento que ultrapassa o mundo burguês e as suas valorizações. O número das grandes e pequenas catástrofes manifesta claramente que a esfera privada já não está

à

altura

das

tarefas

que

reivindicou

para

si.

Isto

tem

necessariamente de conduzir a medidas que não se podem pôr de acordo com o velho conceito de liberdade, e em que não se pode entrar pormenorizadamente. Deste modo, a garantia de subvenções tem de suscitar ingerências na independência da economia e na condução do combate da concorrência, e assim pertencem às consequências naturais dos

apoios

aos

desempregados

duras

limitações

dos

direitos

fundamentais individuais, tais como a livre circulação e o livre uso da rescisão. De facto, aparentemente por um encadeamento puramente obrigatório,

vivenciamos

um

sequestro,

que

constantemente

se

intensifica, do indivíduo e das suas formas sociais pelo Estado. Mesmo que este sequestro também se realize ainda, à partida, pelo EstadoNação, formado segundo o modelo individual, habitamos próximos de um combate de poder decisivo, cujas consequências não podem ser descuradas. Este progresso da colocação ao serviço de grandes áreas autónomas é aliás tão mais admirável quanto se realiza a partir de uma pura lógica das coisas ⎯ tal como se torna particularmente claro em Estados onde ainda está ao leme uma camada de chefes liberal, intacta quanto às suas relações. Uma semelhante lógica das coisas traz consigo que possam explodir guerras num estado em que todo o mundo é pacifista. Tais são exemplos de uma revolução sans phrase, cuja intervenção substancial, também através de uma rede de cautelas individuais, não perde a garantia do objectivo.

247

Aquilo que para nós, neste contexto e neste lugar, é importante, é o papel de patrão supremo que começa a recair cada vez mais claramente no Estado. Ele pertence aos pressupostos de uma configuração da paisagem num sentido abrangente, que é impensável sem domínio. Observamos já hoje como se esbatem a diferença entre a actividade de construção privada e pública, em muitos lugares e em múltiplas ocasiões. Assim, a construção de habitações, e a questão do estabelecimento, tornaram-se tarefas que dizem respeito ao programa dos Estados. Assim como a colocação da indústria ao serviço da Mobilização Total pressupõe uma repartição autoritária, uma escolha e uma ordenação das instalações e ligações, assim também a protecção e a administração de museu de paisagens naturais e culturais pertencem a medidas que apenas se podem encontrar num quadro mais alargado. As mais variadas necessidades reclamam soluções cada vez mais penetrantes de uma natureza total, das quais apenas o Estado, e, como iremos ver, um Estado de um tipo muito particular, é capaz. Em todo o caso, é de esperar que a imagem de anarquia individual e social, tal como a paisagem de oficinas, na sua primeira fase, oferece — aquela imagem em que a concorrência, o lucro a qualquer preço e o povoamento sem regras das massas cobrem a Terra com a sua lepra —, muito em breve pertencerá à história. Tem de se tornar claro que a fase da concepção e da execução de grandes planos, que a ela sucederá, possui ainda carácter de oficina, e que consegue certamente preparar formas definitivas, mas não as consegue produzir. Contudo, aquilo que se pode esperar dela é uma dominação ousada e segura do elemento construtivo. De facto, pode-se já hoje observar que se realizam aqui importantes mudanças. É-se bem capaz de decidir, na observação de imagens aéreas, onde uma nova vontade, uma vontade diferente, começa a traçar as suas linhas na paisagem. Não pode aqui passar despercebida uma medida mais elevada em frieza, em matemática, em determinação. A este processo

248

corresponde a crescente perfeição dos meios ⎯ é assim claro que a electricidade esteja numa relação mais estreita a ele, ou seja, também ao Estado, do que a força do vapor. Os

quadros

do

Estado-Nação

e

o

emprego

de

meios

essencialmente dinâmicos encerram em si limitações dentro das quais as formas devem ser concebidas como esboços, como andaimes ou esqueletos. Esta limitação é necessária na medida em que as formas estão orientadas para o domínio, ou seja, levam um carácter de armamento, mas não são já expressão do domínio. No entanto, anunciase também já nesta fase que, sob a influência da figura, se realiza não uma mudança parcial, mas total. Tal torna-se manifesto, para referir um exemplo, na observação da construção das cidades, uma das áreas significativas da configuração da paisagem. A dissolução que está a começar das grandes massas do século XIX permite prever que também não está assinalado às suas habitações, às grandes cidades, um crescimento ilimitado na direcção seguida até agora. Anuncia-se antes já um tipo novo de povoamento, em que se expressa um sentimento do espaço em relação ao qual a diferenciação entre cidade e campo perdeu importância, do mesmo modo que para a estratégia moderna e para os seus meios a diferença de terreno se torna menos significativa. Se um historiador futuro devesse investigar este processo, deparar-se-ia

com

uma

plenitude

de

móbeis.

Considerando-se

tecnicamente, dar-se-ia aqui talvez uma maior riqueza dos meios de transporte e de informação; considerando-se segundo a higiene, uma crescente carência de Sol e de ar; segundo a estratégia, a intenção de retirar as instalações centrais e as populações compactadas ao efeito concentrado das armas de longo alcance. Contudo, visto no seu todo, todos estes pormenores são apenas os entrelaçamentos causais de um processo vital abrangente ou, dito na nossa linguagem, são os caracteres especiais de trabalho, cuja articulação “concorda” na medida em que

249

atrás deles se esconde um carácter total de trabalho. Quanto mais a vontade de configuração se refere a este todo, ou seja, quanto mais o tipo aparece como responsável pela sua mais elevada possibilidade, como imediatamente responsável pelo carácter total do trabalho, tanto mais se está a ponto de cunhos mais unitários. Em estreita unidade com isto está a passagem da pura construção para a construção orgânica, da planificação espiritualdinâmica para a forma estável, na qual a figura se manifesta de um modo mais poderoso que em qualquer movimento. A construção orgânica só é possível quando o homem aparecer numa elevada unidade com os seus meios, e quando for corrigida a importuna discrepância que o deixa sentir hoje, por razões que já investigámos, estes meios como meios revolucionários. Só então se resolve a tensão entre natureza e civilização, entre mundo orgânico e mecânico, e só então se pode falar de uma configuração definitiva, tanto de uma configuração peculiar como de uma configuração igual a qualquer padrão histórico. O espaço natural a que se referem o domínio e a figura do trabalhador possui uma dimensão planetária. É o globo terrestre que é concebido como unidade por um sentimento da Terra novo e nascente ⎯ um sentimento da Terra que é suficientemente ousado para grandes construções e suficientemente profundo para abranger as suas tensões orgânicas. O ataque já começou e, apesar de as suas fases revolucionárias ainda estarem em curso, a sua instalação planetária não pode ser aqui descurada. Mundialmente revolucionária é a técnica, enquanto meio pelo qual a figura do trabalhador mobiliza o mundo; mundialmente revolucionário é o tipo, no qual a mesma figura se cria uma raça dominadora. A instalação secreta dos meios, das armas, das ciências tem como objectivo uma dominação espacial de pólo a pólo, e as confrontações entre as grandes unidade vitais aspiram a um carácter de guerra mundial.

250

Não há nenhum espaço, nenhuma vida, que se possa furtar a este processo, que desde há muito traz a marca de uma migração de povos bárbaros, com as múltiplas formas de colonização, povoamento de partes da Terra, desbravamento de desertos e florestas virgens, extermínio de populações indígenas, aniquilamento das leis da vida e dos cultos, destruição secreta e aberta de camadas sociais e nacionais, acção revolucionária e guerreira. Neste espaço, são terríveis os sacrifícios e é grande a responsabilidade. Mas independentemente de quem possa triunfar e de quem possa sucumbir: o declínio e o triunfo anunciam o domínio do trabalhador. Os conflitos são plurívocos, enquanto o questionamento é inequívoco. A violência caótica da revolta contém já a rigorosa medida de uma legitimidade futura. A face do mundo transporta as marcas da revolução; ela está devastada por incêndios e pela luta dos interesses. Desde há muito que já não se conhece a unidade de um domínio que esteja obrigado ao que é mais elevado ⎯ a espada do poder e da justiça que exclusivamente garante a paz das aldeias, o brilho dos palácios e a unidade dos povos. E, no entanto, esta saudade está viva, de algum modo, por todo o lado, tanto nos sonhos dos cosmopolitas como na doutrina do super-homem, tanto na fé na força mágica da economia como na morte para a qual se lança o soldado no campo de batalha. Só a partir de uma tal unidade é que são possíveis configurações e imagens simbólicas em que o sacrifício se preenche e legitima, alegorias do eterno na lei harmónica dos espaços e em monumentos que estejam à altura dos ataques do tempo.

64. A configuração unitária do espaço pertence às características de qualquer império, de qualquer domínio incontestável e indubitável que

251

abranja as fronteiras do mundo conhecido. Tal é uma verificação de natureza dimensional, mas importante na medida em que o olhar tem de ser orientado para o todo. A arte não é nada particular, nada que possa ser apresentado em partes, e que possa ser reproduzido em áreas singulares. Enquanto expressão de um sentimento vital poderoso, assemelha-se à linguagem que se fala sem se estar consciente da sua profundidade. Encontra-se o que é admirável ou em toda a parte ou em parte alguma. É, por outras palavras, uma propriedade da figura. Para o observador que já vê incluídas no nosso tempo as condições de um grande domínio e, assim, a possibilidade da configuração real, levanta-se a pergunta pelos portadores, meios e leis, numa palavra, pela peculiaridade, pela caligrafia em que se reconhece o espírito de uma época. Para um sentir formado no desempenho individual e no seu carácter único, é difícil representar-se o tipo numa zona em que a consciência seja domada pela força criadora. A sua estreita relação ao número, a estreita inequivocidade da sua atitude de vida e das suas instituições, parecem separar o seu mundo para longe daquele mundo musical em que o homem participa da “nobreza mais elevada da natureza”. A formação metálica da sua fisionomia, a sua preferência pelas estruturas matemáticas, a sua falta de diferenciação anímica e, finalmente, a sua saúde correspondem muito pouco às representações que se formaram dos portadores da força criadora. O típico vale como a forma do civilizador, a qual é tão diferente das formas naturais como das da cultura, e isso através da característica da ausência de valor. Tais são valorizações correntes da crítica do tempo dentro de uma relação polar entre massa e individualidade. Vimos, no entanto, que a massa e a individualidade são os dois lados de uma e da mesma medalha, e nenhuma crítica calculará mais desta relação do que aquilo que nela está contido. Em particular, o tipo não é de nenhum modo

252

tocado por estas valorizações, pois onde aparece como comunidade a sua forma não é a da massa, e onde surge como singular a sua forma não é a do indivíduo. A renúncia à individualidade apresenta-se como um processo de empobrecimento apenas ao indivíduo que nele reconhece a morte. Para o tipo, ela significa a chave para um outro mundo que não se submete à crítica através dos padrões tradicionais. Para além disso, é um erro que o típico esteja abaixo do individual em dignidade. Quem quiser comparar, encontra comprovações do contrário, independentemente de aprofundar as paisagens naturais ou as culturais. Sem nos perdermos em pormenores que não têm aqui lugar, podemos verificar que a natureza, onde é configurada, põe um zelo inigualavelmente mais elevado na apresentação e manutenção das formas típicas que na diferenciação dos representantes singulares destas formas. Tudo aquilo que a criatura singular, na sua vida, opera e frui, não lhe surge com base num equipamento individual único, mas na formação típica que lhe é transmitida. Na imensa multiplicidade das formas que animam o mundo, há uma lei rigorosa que procura conservar o duro cunho e a constância inquebrável de cada uma destas formas, e cuja sólida regra é muito mais espantosa que aquelas excepções para as quais ⎯ e, como iremos ver, não sem razão ⎯ a atenção se dirigiu. Não há nada mais regular que as coordenadas dos cristais ou que as relações arquitectónicas daquelas pequenas obras de arte de calcário, de corno ou de seixo das quais o chão do mar é povoado, e não é sem razão que se tenta tornar o diâmetro dos alvéolos das abelhas na medida de referência da unidade de comprimento. Mesmo onde consideramos o homem como fenómeno natural, onde o consideramos como raça, surpreende-nos uma medida elevada em uniformidade, em inevitabilidade, que se trai tanto no seu aspecto exterior como nos seus pensamentos e acções.

253

Este tipo de consideração está certamente em contradição com aquela concepção sempre ainda viva que anseia por procurar aquela força configuradora da natureza não nas suas imagens fixas, mas precisamente nas suas oscilações, variações e extravios. É escusado entrar aqui numa discussão, pois esta concepção através da qual se realiza uma submissão das formas a princípios dinâmicos pertence à história do indivíduo: nela manifesta-se o modo no qual o indivíduo se vê confirmado a si e ao seu conceito de liberdade na natureza. Ela corresponde à doutrina da concorrência na economia, do progresso na história e da soberania do indivíduo criador. Na doutrina da selecção natural, a ciência da natureza segue os vestígios da descoberta da relação amorosa individual, através do romance burguês. Tais perspectivas possuem, dentro da hierarquia individualista, a sua irrefutável validade ⎯ no entanto, tornam-se sem significado quando se abandona o seu ponto de vista. Deparamos, nesta submissão das criaturas naturais a um conceito mecânico de desenvolvimento, com a mesma imensa degradação que, no espaço histórico, o homem experimenta através do empréstimo de um conceito de liberdade abstracto. A vida aparece por todo o lado neste sistema como fim e intenção; em parte alguma, como a expressão estável de si mesma. E, no entanto, é suficiente, com aquele amor que o anatomista não conhece, dedicar um único instante a uma qualquer pedra, a um animal ou a uma planta, para conceber que habita em qualquer destas criaturas uma completude que é insuperável. Suspeita-se aqui o fundamento dos poderosos esforços da natureza para conservar as formas nas suas medidas e leis, e na sua aversão a misturas e ausência de regras de qualquer espécie. Quem alguma vez tiver a sorte de deparar com uma das grandes migrações de animais, vivencia uma violenta demostração de vontade de comprovar uma

determinada

imagem

numa

miríade

de

“exemplares”, nos

portadores das características. Encontramos por todo o lado, na

254

natureza, uma relação entre selo e cunho, que está sobreposta à relação entre causa e efeito do mesmo modo que o carácter “astrológico” de um homem é imcomparavelmente mais significativo do que a sua qualidade puramente moral. Esta hierarquia manifesta-se na medida em que causa e efeito só se podem conceber na forma cunhada, enquanto estas formas existem em e para si, independentemente de que explicação se lhes der, de que perspectivas da sua consideração de possa procurar. Sem dúvida que aquela intuição muito acima da qual a vaidade das ciências da natureza acreditava elevar-se, a intuição de que qualquer forma deve a sua origem a um acto particular de criação104 , é muito mais adequada à realidade natural que a teoria mecânica do desenvolvimento, a qual rejeitou durante um século o saber do “desenvolvimento vivo”, saber esse que compreendeu por desenvolvimento a projecção de arquétipos no espaço acessível à percepção.

65. É tão pouco elucidativa a relação à paisagem cultural quanto se pode opor o tipo e as suas leis de formação à paisagem natural. Tem certamente de se ver quanto o conceito de cultura foi influenciado pelas representações do indivíduo; está impregnado do suor do esforço individual, do sentimento da vivência única, do significado da autoria. O desempenho criador acontece na fronteira entre “ideia” e “matéria”; em combates titânicos, arranca ao material as formas e engendra imagens únicas e irreproduzíveis. Realiza-se num espaço particular extraordinário, seja nas regiões mais elevadas do idealismo,

104

Atrás da doutrina das mutações esconde-se, aliás, uma das redescobertas do milagre pela ciência moderna.

255

seja na distância romântica do quotidiano ou nas zonas exclusivas de uma actividade artística abstracta105. Correlativamente, o portador deste desempenho aparece na posse de faculdades únicas, extraordinárias, anormais, frequentemente em sentido clínico, que lhe atribuem uma dignidade imediata. Esta dignidade é aumentada na mesma medida em que a massa ganha significado. A isto liga-se que ambos os pólos do mundo individual, o pólo da massa e o do indivíduo, se correspondam; nada pode acontecer num que também não possua significado para o outro. Quanto mais cresce a massa, tanto mais significativa se torna a fome de um grande singular através de cuja existência a partícula da massa se veja, também na sua existência, confirmada. Esta necessidade conduziu finalmente a um fenómeno estranho de que somos testemunhas: à invenção do génio artístico, ao qual cabe a tarefa, apoiada por meio da publicidade, de desempenhar o papel do singular significativo, tal como acontece na Alemanha segundo os modelos de Postdam ou Weimar. Também a estes mesmos modelos é dedicado um culto particular, cujo sentido se pode assinalar como a colocação da pessoa na perspectiva individual. Explica-se a partir daqui o espantoso sucesso que a literatura biográfica contemporânea encontrou, a qual, no fundo, se ocupa com a prova de que não há quaisquer heróis, mas sempre só homens, isto é, indivíduos. Manifestase aqui a mesma penosa mistura do exagero e da verosimilhança desmedidos, a mesma falta de distância que é peculiar em geral à empresa de museu. Diante disto, deve-se verificar que na real paisagem cultural a vida e a configuração estão demasiado intimamente ligadas para que a posse da força criadora, neste sentido, pudesse ser sentida como única, extraordinária ou admirável. O admirável está aqui em toda a parte, e o

105

Que também pode empreender como que “arte popular”.

256

extraordinário pertence à ordem. Daí que não haja nenhum sentimento cultural no sentido que entre nós se tornou habitual. Do mesmo modo que o sentimento moderno da natureza é uma característica da discrepância que há entre os homens e a natureza, mostra-se no sentimento da cultura o afastamento do homem em relação ao desempenho criador ⎯ um afastamento tal como o que se expressa na distância do visitante do museu em relação aos objectos expostos. Tornou-se-nos muito estranho o pensamento de que há medidas cuja produção acontece sem esforço, porque cada movimento é já expressão e representação da medida ⎯ e, correlativamente, uma formação que extrai as formas do solo como plantas, ou que as deixa unirem-se segundo leis cristalinas. No entanto, nada há mais evidente, mais regular e ⎯ do ponto de vista individual ⎯ mais uniforme que paisagens de túmulos e de templos, nas quais, numa monotonia cerimonial, se repetem proporções simples e constantes,

monumentos,

ordens

arquitectónicas,

ornamentos

e

símbolos, e através das quais a vida se muda com imagens determinadas e inequívocas. Estados deste tipo são de uma unidade e de uma densidade fechadas, das quais talvez seja o poema sagrado que a nós hoje consiga dar a melhor representação. A falta de peculiaridade no sentido individual, que distingue a configuração da paisagem, repete-se no singular. Os rostos das estátuas gregas furtam-se à fisionomia, de modo semelhante a como o drama antigo à motivação psicológica; uma comparação com a escultura gótica esclarece a diferença entre alma e figura. É um outro mundo em que os actores aparecem com máscaras, os deuses com cabeças de animais, e em que pertence às características da força de formação aumentar símbolos numa repetição infinita que lembra os processos naturais, tal como acontece com a folha de acanto, com o falo, com o lingam106, com o escaravelho, com a cobra, com o disco solar, com o buda em repouso.

257

Num tal mundo, o estrangeiro não sente admiração, mas medo, e ainda hoje não se pode estar sem medo diante da visão nocturna da grande pirâmide, ou da visão do solitário templo de Segesta no brilho do Sol siciliano. De um tal mundo, com a densidade fechada de um anel mágico, aproxima-se visivelmente também aquele tipo que a figura do trabalhador representa, e aproxima-se dele tanto mais quanto mais claramente o singular aparece como tipo. Seguramente que as formações de que o tipo surge como portador nada têm de comum com o conceito de cultura que é transmitido; mas habita nelas a unidade incomparável que trai que está aqui mais que a consciência do trabalho. Este fechamento traz consigo que os movimentos se realizem de um modo cada vez mais automático, sob a influência de uma lógica cruel. Além disso, caracterizaos que as mais difíceis de captar sejam precisamente as mudanças essenciais, justamente porque ocorrem de um modo evidente. E, no entanto, o grande combate é travado em torno de e em cada indivíduo; espelha-se em qualquer questionamento que o movimente. O tipo pode então muito bem ser o portador de um desempenho criador. A dignidade pura e simplesmente diferente deste desempenho consiste em não ter nada a ver com valorizações individuais. Na renúncia à individualidade está a chave para espaços cujo conhecimento se perdeu desde há muito. Aborde-se mais uma vez, neste ponto, a possibilidade de um erro que, segundo o exposto até agora, ainda quase não se pode pressupor: não se trata aqui de uma contraposição no domínio dos valores entre o singular e a comunidade, tal como hoje aparece como comunidade do povo, comunidade do obrar ou comunidade de cultura, na dialéctica conservadora, ou como colectivo, na dialéctica social. A contraposição essencial não é o singular ou a comunidade, mas é o tipo ou o indivíduo.

106

N. do T.: O lingam é um símbolo fálico na cultura indu.

258

O tipo representa uma humanidade diferente, em cuja área se altera também a necessária tensão que existe, em todos os tempos, entre o singular e a comunidade. No entanto, a alteração tanto do homem como da sua comunidade é apenas uma expressão do facto subordinado de um mundo em que governam os conceitos universais ser rendido por um mundo da figura. É a partir daqui, e não através da comunidade, que é garantida a unidade da configuração como cujo portador aparece o tipo.

66. O nosso tempo gerou, entre outros pensamentos estranhos, a opinião de que um desempenho original é possível, contanto que os meios específicos deste tempo não a evitassem. Tal é uma espécie particular do regresso à natureza, e é notável que não tenha sido realizada mais frequentemente, pois está aberta ao singular em qualquer segundo, pressupondo-se que renuncie a discuti-la à luz eléctrica ou a anunciá-la mediante a imprensa com máquinas rotativas. Só que quanto mais os santos do deserto convencem através da sua mera existência, tanto menos isto alcançará uma supremacia dolorosa sobre o tempo, que se assemelha à daqueles generais que teriam ganho cada uma das suas batalhas, pressupondo o emprego das espingardas de rastilho. Os meios do tempo não são obstáculos, mas pedras-de-toque da força, e o alcance do domínio é caracterizado pela medida em que é bem sucedido o emprego unitário dos meios. Um tal emprego não se pode esperar de onde ainda existe o sentimento de uma oposição decisiva entre o mundo mecânico e orgânico, na qual se pode ver uma superficialização da velha oposição entre corpo e alma. Este sentimento não é senão uma expressão de fraqueza, de perplexidade diante do mais

259

consequente ataque de uma legalidade diferente, mas de modo nenhum puramente mecânica, que tem necessariamente de ser sentida como sem sentido tanto pelo indivíduo como também pela massa. Nem o indivíduo nem a massa em geral estão capacitados para uma adequada dominação dos meios; este domínio adequa-se antes a uma vida que se representa no tipo e nas suas comunidades. Ele é uma das características de que o homem está à altura das reivindicações do seu espaço e do seu tempo, e realiza-se na construção orgânica, no entrelaçamento estreito e sem contradição da vida com os meios que estão às suas ordens. É incontestável que os meios, por todo o lado onde se trate de desempenhos que trazem um carácter individual e que se tenham de medir com valorizações de museu, negam completamente a sua ajuda. Contudo, dá que pensar que tais desempenhos não se realizem apesar de tudo, pois o homem, depois como antes, dispõe do instrumento de todos os instrumentos, ou seja, da mão. A razão disto está em que os desempenhos deste tipo não são adequados aos estados em que entrámos, e que a mão, como em geral qualquer instrumento, nega o serviço onde estiver colocada numa linha de condução que se tornou sem significado. É esbanjado no nosso tempo um imenso esforço a gerar coisas que não se podem gerar só pelo esforço. Correlativamente, deparamos com a exigência inadmissível de ver já um desempenho no puro esforço, atrás do qual, ao limite, se esconde a vontade de peculiaridade a qualquer preço. Temos de reconhecer, pelo contrário, que hoje há por todo o lado mais peculiaridade que no mundo individual. Além disso, deve-se dizer que tem de ser vigiada de perto uma classe artística que não participa em nenhum dos velhos valores, mas vive à custa deles — pois é destes que aqui se trata. Atrás de um aparentemente inofensivo quixotismo contra os meios esconde-se a vontade de desviar o espírito daquele

260

espaço mais duro e mais puro em que as grandes decisões têm de ser suportadas. Daí que na Alemanha se encontrará esta classe artística, com uma segurança mortal, numa estreita ligação com todas aquelas potências em cujo rosto está escrito um carácter traiçoeiro mais ou menos escondido. Felizmente, depara-se, entre a nossa juventude, com um faro crescente para uniões desta espécie; e começa-se a suspeitar de que, neste espaço, já o emprego do espírito abstracto possui o estatuto de uma actividade de traição à pátria. Um novo modo de zelo dominicano tem o descaramento de se lamentar pelo fim das perseguições aos hereges — mas é preciso apenas ter paciência; tais perseguições estão já em preparação, e nada se lhes oporá ao caminho logo que se tiver reconhecido que connosco o facto da heresia se cumpre na fé no dualismo do mundo e dos seus sistemas. Tal é a heresia geral que ainda se descobrirá nos mais materiais e mais espirituais sistemas inimigos, e em que se reconhece sem excepção todas aquelas forças, muito diferenciadas entre si, cujo mais secreto ideal, animado poderosamente pela saída da guerra mundial, está no declínio do império. A esta suprema discrepância correspondem todas aquelas oposições venenosas de poder e direito, sangue e espírito, ideia e matéria, amor e sexo, homem e natureza, corpo e alma, espada secular e espiritual — oposições que pertencem a uma linguagem que tem de ser reconhecida como língua estrangeira. De tais oposições alimenta-se hoje, depois de terem perdido a sua primeira força de alimento, o infinito diálogo dialéctico que acaba no niilismo, na medida em que tudo se torna pretexto. Estas oposições tornam-se sem significado diante da figura; reconhece-se o pensar educado em ele saber ver os universalia na re. Com efeito, tem de se saber que a entrada no mundo da figura altera completamente a vida, e não apenas as suas partes; e que, na unidade de poder e direito, não se trata de sínteses dialécticas, mas de processos

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da natureza total. O mesmo vale para a relação que existe entre o homem e os seus meios — já no facto de esta relação ser concebida como oposição, como inimizade, trai-se a falta de totalidade. Esta diferenciação valorativa de um mundo mecânico e orgânico é uma das características da existência enfraquecida, que é submetida aos ataques de uma vida que se sente à altura dos seus meios, com aquela segurança ingénua com que o animal se serve dos seus orgãos. Tal é o caso no tipo, isto é, naquela humanidade que representa a figura do trabalhador. Para ele, também são naturais os meios com os quais esta figura revoluciona o mundo; e uma das suas marcas é não estar em oposição a eles. Daí que ele, no seu desempenho, também não seja obstaculizado pela sua presença, independentemente de como sejam obtidos. Este desempenho realiza-se num espaço fechado, que esconde em

si

a

sua

legalidade

própria,

em

que

a

configuração,

independentemente de sob que forma ela possa emergir, não se pode medir com padrões individuais. E se se salientasse como o objectivo desta configuração repartir a superfície da Terra como um favo de abelhas em hexágonos, ou cobri-la com montes de térmitas — um juízo a partir de um outro círculo de vida poderia ter tão pouca influência neste processo, como um animal qualquer é influenciado por aparecer ao olhar humano como belo ou feio. Quanto mais intensamente o tipo se reconhecer na sua propriedade como raça, tanto mais inconfundível será nas suas formações, tanto mais também os meios alteram o seu sentido — ou antes, tanto mais claramente o sentido da sua instalação surge da confusão da paisagem de oficinas. Pode-se

verificar,

provisoriamente,

que

os

meios,

tanto

mobilizadores como destruidores, irromperam em todos os âmbitos da vida, também nas ocupações ancestrais como a lavoura, as viagens na água e na terra, e a guerra. No mesmo papel, ainda discrepante, emergem na alteração da imagem da paisagem, da arquitectura e da

262

preparação de raros e grandiosos jogos cósmicos, cujo verdadeiro sentido só surgirá quando estiver concluído o papel do indivíduo que é incapaz de expressá-lo. Estes meios obrigam a contar com eles pelo mero facto da sua existência, isto é, são de uma suprema dignidade revolucionária, de cujo ataque as formas peculiares tanto da massa como do indivíduo não estão à altura, nem nos campos de batalhas, nem na economia, nem em relação à configuração. Contudo, não se trata apenas de estar à altura deles, mas de se servir deles como os naturais e dados instrumentos da dominação e da configuração do mundo. Esta faculdade é a prova de que a vida está em relação com o único poder que hoje consegue assegurar o domínio, ou seja, com a figura do trabalhador. Talvez se tenha de indicar, mais uma vez, que a dignidade revolucionária dos meios está no seu carácter representativo, mas não no alcance da sua energia dinâmica. Não há nenhuns meios em si, e uma mecânica sem relações pertence aos preconceitos que o pensar abstracto inventou. A simultaneidade de meios determinados com uma determinada humanidade não depende do acaso, mas está incluída nos quadros de uma necessidade sobreposta. A unidade do homem com os seus meios é, por isso, a expressão de uma unidade de uma espécie sobreposta. Para ilustrar esta relação, refira-se, mais uma vez, o papel há pouco mencionado da mão enquanto instrumento dos instrumentos: deve-se prever que onde o homem aparecer como senhor, e numa ligação sem contradições com os seus meios, também a mão reassumirá o serviço que hoje nega. Ela será certamente, neste estado, não o orgão de formações individuais, mas típicas.

67.

263

Não é nosso propósito orientar a nossa posição contra as objecções dos defensores da substância crescente, pelos quais compreendemos aquela espécie de indivíduo que se ocupa em atirar as lembranças do Estado absoluto contra as formas da democracia liberal. Tal é um campo de actividade no qual prosperam senhorialmente os paradoxos, dos quais os melhores já foram feitos há cento e cinquenta anos. O liberalismo mantém há muito uma espécie peculiar de bobos cuja tarefa consiste em dizer-lhe verdades que se tornaram inócuas. Desenvolveu-se um cerimonial particular com o qual o indivíduo moderno, vestido como quase-aristocrata ou como quase-abade, sob um aplauso tornado universal, exibe os golpes mortais sofridos segundo todas as regras da arte. Isto é um jogo no qual as grandezas existenciais se tornaram conceitos ambíguos. E é mais importante o movimento da mão com o qual o revisor do eléctrico se serve da sua campainha. Por isso, se se quiser reconhecer a nossa exposição como a descrição de um estado em que a arte é feita pelas máquinas, e em que o mundo aparece como o palco de uma nova espécie de insecto — então aceitemos este equívoco e utilizemo-lo, depois de termos descrito uma humanidade diferente como o portador, e um emprego diferente dos meios, um emprego orgânico-construtivo, como o ponto mediador das formações típicas, para passar à descrição da legalidade a que estas formações estão submetidas. Deve-se ver, à partida, que a emergência de formações típicas nada tem de comum com aquele estado em que a diferença fictícia entre massa e indivíduo se desgastou em extremo, e em que qualquer produção que o indivíduo consiga levar a cabo, independentemente de em que campo ela possa ocorrer, está numa referência imediata à massa, isto é, aparece como produto fabricado. O produto fabricado nada tem em comum com as formações típicas senão a propriedade da uniformidade, e também este ponto comum é apenas aparente. Há uma grande diferença entre uma

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uniformidade, tal como a que possui o cascalho das bordas do mar, e a inequivocidade de formações de tipo cristalino. É a mesma diferença que há entre o átomo do século XIX e o do século XX — a diferença entre uma grandeza mecânica e uma construção orgânica. O produto fabricado, tal como pode aparecer na esfera económica como mercadoria, na esfera artística como sinal ou linguagem, não é de uma natureza típica, mas de uma natureza universal. A diferença entre os estados tardios do mundo burguês-individual e os do mundo do trabalho está em a formação ser acessível naquele sob a influência de conceitos universais e, correlativamente, de uma mecânica abstracta, e neste como expressão de um contexto total. Daí que a formação típica não conheça o que é em si legal, o que é em si belo ou o que é em si claro. As formações típicas são incompreensíveis, impensáveis e irrealizáveis sem o contexto exacto da figura, em relação com a qual estão numa relação de selo e cunho — enquanto uma atitude humanitária-abstracta se embala na fé de que a sua linguagem seja compreensível para todos os tempos e em todos os espaços. A formação típica pode ser completamente uniforme e numerosa, tal como uniformes e numerosas são as conchas na costa, os escaravelhos nas câmaras mortuárias, as colunas nas cidades com templos. O facto de eles possuírem um carácter representativo, de eles incorporarem a figura, diferencia-os claramente daquela ausência de sentido que é peculiar à massa abstracta. Ocupámo-nos já com a diferença que há entre o número abstracto e a cifra supremamente precisa, supremamente inequívoca, que se pode observar em conjunto com a emergência da construção orgânica. A formação típica pode aliás ser de validade planetária — contudo, tal não assenta de modo nenhum em ela ser transportada por uma sociedade cosmopolita, criada pelos sonhos da razão, mas em ela representar uma figura muito determinada, muito inequívoca, em ela estar ao dispor do ímpeto planetário.

265

Esta validade — como vimos, de facto, sob sinais negativos — já emerge na paisagem de oficinas, a qual se pode considerar como uma paisagem de passagem. Cada força sem excepção vê-se aqui envolvida num processo que a submete às exigências do combate de concorrência e do aumento de velocidade. Correlativamente, as grandes teorias são de tipo dinâmico, e possui-se poder na medida em que se dispõe de energia motora — ao limite, a vontade de poder é já uma legitimação suficiente. Do mesmo modo, os símbolos com os quais se se depara, repetidos de milhões de modos, são expressão de uma linguagem do movimento, como a asa, a onda, a hélice, a roda. Este processo desemboca no puro movimento das partes tornadas autónomas, ou seja, na anarquia, ou então é preso e articulado por potências de tipo estático. Na paisagem planificada, que rende a pura paisagem de oficinas, como cujo portador já não surgem indivíduos ou grandezas que se submetam ao esquema do conceito de liberdade individual, a formação típica irrompe já mais claramente. A um aparecimento mais abrangente do Estado, que tem de dominar tarefas diferentes, corresponde uma humanidade que se começa a cunhar sob características de raça, e que pode ser colocada ao serviço de um modo menos contraditório, mais inequívoco e mais decisivo. A este processo corresponde um estilo diferente, que dá às formações aquele sentido mais simples e mais puro que consegue partilhar a mera existência de um poder sobreposto. Com efeito, tem de se notar que nem aqui, de modo nenhum, se expressa na configuração o domínio completo. O Estado de trabalho é limitado nas suas reivindicações pela presença de estruturas do mesmo tipo. A ameaça da sua existência, e os esforços que tem de contrapor a esta ameaça, são mais significativos que no sistema do Estado-Nação. Tal liga-se a que a figura do trabalhador, que se começa a mostrar no Estado de trabalho, possua um significado planetário, e a que realize a viragem imperial simultaneamente em muitos lugares do mundo. Este estado assinala-se em o domínio da figura ainda não estar realizado, enquanto

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já é visível como objectivo. A concorrência é aqui presa, por um lado, por ordens planificadas, enquanto, por outro lado, passou para unidades de vida mais abrangentes e as coloca sob o seu ritmo. A estrutura económica das instalações, e a estrutura das instalações conforme a um fim técnico, é, através de um carácter de armamento sobreposto, ao mesmo tempo intensificada e submetida a um sentido mais significativo. Este processo gera imagens de uma maior unidade, as quais, no entanto, se furtam necessariamente à plenitude e se podem reconhecer numa linha de conduta rigorosa e ascética. A entrada num mundo de formas seguro e fechado pode então esperar-se apenas quando tiverem caído as grandes decisões em qualquer sentido, e quando os caracteres de armamento, postos no mesmo plano, forem rendidos por um carácter de uma superioridade sobreposta. Temos de nos reabituar ao pensamento de que, dentro de um tal mundo, a forma não é o objectivo do esforço, mas o cunho evidente que é, à partida, peculiar a qualquer esforço. A forma real não é o que é extraordinário, tal como vive nas representações do pensar de museu, que, correlativamente, torna a viragem para a forma, seja na arte, seja na política, dependente da emergência repentina do indivíduo extraordinário. Ela é antes o que é quotidiano, e não pode aparecer isolada nem quando não é peculiar ao apetrecho diário, tal como serve à simples vida para a alimentação e para a economia. Contudo, o meio imutável de perfeição evidente pode ser esperado para aquele nível mais abrangente do tipo, nível esse que experimenta o seu cunho passivo através da figura. Estreitamente relacionado com isto estão a constância das instituições, dos costumes e dos usos, a segurança da economia, a compreensão da linguagem de comando e da ordem de comando, numa palavra, uma vida segundo a lei. Para o segundo e activo nível do tipo, no qual se representa o carácter especial do trabalho, a entrada no mundo fechado das formas

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apresenta-se como a passagem da paisagem planificada para uma paisagem em que se expressa uma segurança mais profunda do que a que o puro armamento consegue dar. É a mesma passagem que conduz do experimento à experiência, isto é, a uma metódica de tipo instintivo. Do mesmo modo que a raça é o resultado de um cunho fechado, o instinto é a propriedade de uma vida que é impelida para o conhecimento inequívoco das suas possibilidades. Neste espaço, é de esperar uma suprema cunhagem da instituição singular, da ciência singular e da actividade singular. Este cunho, esta colocação ao serviço e delimitação daquilo que é um fim em si, só é possível quando se vê no carácter total do trabalho o selo que o realiza. As formações típicas aparecem aqui como um sistema de caracteres afiados, precisos e conformes a fins, através dos quais a figura é espelhada no que está em movimento e no que é múltiplo. Não há nenhum conjunto de partes, nenhum tipo de actividade de inteligência ou de manufactura, que não seja, ao mesmo tempo, limitado e acrescido por estar ao serviço. O tipo é chamado à forma suprema da formação dentro do mundo do trabalho, em cujo actuar o carácter total do trabalho consegue expressar-se imediatamente. À linguagem dos símbolos estáveis, nos quais a pura existência fala à intuição, está reservado dar testemunho de que a figura do trabalhador esconde mais que movimento: de que ela possui um significado cultual. Tais testemunhos crescem em estreita união com a arte do Estado, com a dominação incontestável e indubitável do tempo e do espaço. Só aqui é que o revestimento da Terra ganha aquela última plenitude e aquela riqueza em que a unidade do domínio e da figura se manifesta, e que nenhum propósito consegue criar.

268

A PASSAGEM DA DEMOCRACIA LIBERAL PARA O ESTADO DE TRABALHO

68. Muitas marcas deixam reconhecer que estamos diante dos portões de uma era na qual se pode voltar a falar de domínio real, de ordem e submissão, de comando e obediência. Nenhuma destas marcas fala mais claramente do que a disciplina voluntária à qual a juventude se começa a submeter, o seu desdém pelos prazeres, o seu sentido guerreiro, o despertar do seu sentimento por valorizações viris e incondicionais. Seja em que situações forem que esta juventude se possa procurar — por todo o lado se sentirá a impressão de uma conjura, que se suscitará pelo simples facto da presença e da reunião de uma determinada espécie humana. Por todo o lado se tornam também manifestos a rejeição da tradição burguesa e o apelo ao trabalhador, seja nos programas, seja na condução da vida. Esta conjura dirige-se necessariamente contra o Estado, e isto não de um modo que procure demarcar a liberdade contra o Estado, mas de tal modo que um conceito de liberdade diferente, para o qual o domínio e o serviço têm o mesmo significado, deve ser fundido no Estado como o meio mais importante e mais abrangente da mudança. Não faltam tentativas pelas quais este novo sentido — que é um sinal de que o homem, no fundo, não pode ser estragado por nenhuma educação — deve ser amarrado e submetido aos velhos sistemas da sociedade burguesa. A mais importante destas tentativas consiste em

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conceber cada nova força emergente como parceiro negocial, e em incluí-la num aparelho que trabalhe através de negócios. A medida de resistência que pode ser contraposta a este desejo é uma indicação sobre a capacidade para ordens diferentes. Há potências das quais se pode presumir tão pouca legalidade como de um presente de um vigarista, sem que nos tornemos cúmplices. Tal vale também para a sociedade burguesa que se elevou a beneficiária do Estado. O rosto da democracia tardia, onde a traição e a impotência enterraram os seus sinais,

é

sobejamente

conhecido.

Neste

estado,

florescem

sumptuosamente todas as potências de corrupção, todos os elementos mortos, estranhos e inimigos; a sua eternização a qualquer preço é o seu objectivo secreto. Daí que seja muito importante de que modo se realiza a rendição do domínio aparente burguês pelo domínio do trabalhador e, assim, a troca de duas imagens do Estado completamente diferentes. Quanto mais elementar for o caminho em que acontece esta troca, tanto mais ele tem lugar no campo da autêntica força do trabalhador. Quanto mais o trabalhador renunciar, no seu combate, à utilização dos conceitos, ordens, regras do jogo e constituições inventados pelo burguês, tanto mais estará apto para realizar a sua lei peculiar, e tanto menos se poderá esperar dele tolerância. O primeiro pressuposto de uma construção orgânica do Estado é que sejam queimados todos aqueles esconderijos a partir dos quais, nas horas de maior desgaste, a traição liberta as suas tropas auxiliares, como da barriga do Cavalo de Tróia. Seria erróneo assumir que o combate pelo domínio já tenha entrado nos seus últimos estádios. Pode-se antes predizer com segurança que, depois de se poder observar o burguês como o beneficiário de uma assim chamada revolução, voltar-se-á a encontrá-lo como o escudeiro de uma restauração atrás da qual se esconde o mesmo desejo de segurança.

270

Atrás daquelas marionetes que laminam o lugar comum liberal até à última finura de papel, nas tribunas públicas que já se encontram em demolição, os espíritos mais finos e mais experimentados preparam uma troca de bastidores. Encontrar-se-á, sob novas, surpreendentes e “revolucionárias” formulações, a monarquia legítima e a articulação “orgânica” como os objectivos da política interna, do mesmo modo que se encontrará um entendimento com todas aquelas potências através de cuja existência a permanência da cristandade ou da Europa e, com isso, também do mundo burguês é assegurada. O burguês alcançou um estado de desespero no qual está pronto para aguentar tudo aquilo que até agora tinha sido o objecto inesgotável da sua ironia, contanto que apenas a segurança permaneça garantida. O sucesso de tentativas de restauração deste género só poderiam acelerar o curso da mudança. Criaria um opositor estável e caracterizaria os portadores da responsabilidade de um modo que é muito diferente dos estados anónimos da democracia tardia, nos quais o poder do Estado é atribuído a um obscuro conceito de povo. Contudo, em segundo lugar, seria consciencializada a sua unidade de um modo muito palpável, em todas as situações em que está viva uma nova imagem do Estado, tal como se procura expressar hoje no programa, por um lado, de um nacionalismo revolucionário e, por outro, de um socialismo revolucionário. Certamente que tem aqui de desaparecer tudo aquilo que não esteja à altura de influências românticas ou tradicionalistas, e tem de surgir uma atitude que não se possa convencer com simples palavras. Em pouco tempo, já não haverá mais nenhuma grandeza política que não procure actuar através do apelo ao socialismo e ao nacionalismo107, e tem de ser visto que esta fraseologia está aberta a qualquer um que domine o uso das vinte e duas letras do alfabeto. Este facto dá que pensar; indica que aqui não se trata de princípios que estão para

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“realizar”, mas que se esconde, atrás destes esforços, aquele carácter dinâmico-nivelador que é característico da paisagem de passagem. A liberdade que ambos os princípios do nacionalismo e do socialismo conseguem criar não é de natureza substancial; é um pressuposto, uma grandeza mobilizadora, mas não um objectivo. Esta relação permite suspeitar que aqui o conceito burguês de liberdade está, de algum modo, em jogo, e que se trata de esforços em que tanto o indivíduo como a massa ainda têm uma intervenção decisiva. Como a praxis mostra, tal é efectivamente o caso. A atomização social no interior, e a delimitação nacional do corpo do Estado para o exterior, pertencem à substância evidente de qualquer mundividência liberal; não há nenhum contrato social, ou contrato do Estado, do século XIX, até à Constituição de Weimar ou à Paz de Versailles, em que não estejam num lugar decisivo. Estas coisas pertencem tanto ao nível a partir do qual se trabalha como o facto de que cada um possa ler e escrever; e não há ordem, seja a de uma restauração ou de uma revolução qualquer, que a deixará de utilizar. Contudo, tem de se ver que não se trata aqui de objectivos do Estado, mas de pressupostos da construção do Estado. Dentro do mundo do trabalho, estes princípios são grandezas de trabalho e grandezas de mobilização, cujo efeito é tão mais aniquilador quanto mais a democracia liberal se vir aqui atacada com a sua metódica mais própria. Que neste processo se realiza algo mais e mais importante do que um processo de autoaniquilamento da democracia, mostrou-se através de, nestas palavras, se entrevir um significado novo e diferente, em que se trai o esforço de uma espécie humana vocacionada para o domínio. Estamos num processo através do qual se dá uma direcção aos princípios universais, e no qual a “liberdade de” se transforma numa “liberdade para”.

107

O burguês, que, depois da guerra, não queria de todo ser nacionalista, adoptou entretanto esta palavra, com grande habilidade, no sentido do conceito burguês de liberdade.

272

Neste contexto, o socialismo aparece como o pressuposto de uma articulação autoritária o mais intensa possível, e o nacionalismo como o pressuposto de tarefas de dignidade imperial.

69. O socialismo e o nacionalismo, enquanto princípios universais, são, como se disse, ao mesmo tempo, de uma natureza reparadora e preparatória. Aí, onde o espírito humano a tem por realizada, mostra-se a conclusão de uma era, mas é ao mesmo tempo manifesto que esta conclusão contém em si novas tarefas, novos perigos, novas possibilidades de marcha. Em todos os grandes acontecimentos do nosso tempo, escondem-se tanto os pontos finais de desenvolvimentos como os pontos iniciais de novas ordens. Tal vale também para a guerra mundial, enquanto o mais abrangente e o mais incisivo destes acontecimentos. A guerra mundial, na medida em que pôs um ponto final no século XIX, foi uma confirmação violenta dos princípios actuantes neste século. Ela não deixou atrás de si, no globo terrestre, nenhuma outra forma de Estado senão a da democracia nacional, escondida ou não escondida. Este resultado não podia ter ocorrido de outro modo, já porque a medida em que podiam ser mobilizados os meios da democracia nacional, como os parlamentos, a imprensa liberal, a opinião pública, o ideal da humanidade, era decisiva para o sucesso na guerra. Assim, seja com que mudanças fosse, a Rússia não podia ganhar a guerra, embora, vista segundo a política externa, estivesse do lado das potências vencedoras. Esta terra estava tão pouco na forma e na constituição peculiares que uma tal confrontação exigia, como o estavam a ÁustriaHungria ou a Turquia. Havia aqui tensões diferentes, que prejudicavam

273

uma viragem unida para fora. A França, pelo contrário, encontrava-se num estado saudável de consciência democrática, que talvez se torne maximamente visível no facto de ela mesma, no momento das suas maiores fraquezas exteriores, ter estado à altura de um motim militar muito perigoso. Sob estes pressupostos, parece apenas consequente que, imediatamente em ligação com a confrontação guerreira, uma série de povos, e particularmente de povos submetidos, procurasse tomar posse daquela liberdade de movimentos que é peculiar à democracia nacional. Estas tentativas tornaram, à partida, ainda mais inequívoco o resultado da guerra; a sua forma era a da revolução, beneficiada pela extraordinária fraqueza em que os esforços do combate tinham deixado as velhas ordens. Pode-se tanto considerar estas revoluções como uma prossecução da guerra, como interpretar a guerra como o começo visível de uma grande revolução. É um e o mesmo processo que se realiza na colisão entre os povos, e dentro dos povos, e é um e o mesmo resultado que deixa atrás de si. A guerra gera revoluções, e as relações de força alteradas pelas revoluções arrastam, por seu lado, acções guerreiras. Se o resultado da confrontação dos Estados-Nação possui também um carácter universalmente válido, faltam-lhe, contudo, as características da duração. Que se trata aqui da recuperação de uma ordem, da realização de um ideal que já se tornou autenticamente caduco, resulta já de que falta a esta ordem a segurança estática, e mesmo a segurança passageira do equilíbrio. O estado da democracia nacional é alcançado por todo o lado — no entanto, no caso singular, ele salienta-se logo como um estado de passagem, o qual, como na Rússia, pode acabar em poucas semanas. Mas também onde parece instalado de um modo mais duradouro, evoca mudanças cujo sentido ameaçador se manifesta cada vez mais claramente. Manifesta-se aqui que dentro da democracia nacional está um puro carácter de movimento, ao qual falta a figura e, portanto, uma

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ordem genuína, e surge também à luz do dia, no comportamento dos Estados entre si, aquele elemento anarquista-individualista que é peculiar a todas as formações do liberalismo. Há aqui uma completa falta de grandezas sobrepostas, e a ficção de uma sociedade de Estados não é suficiente para o refreamento dos Estados individuais que cada vez mais intensamente se isolam, pois é disso que aqui se trata. No fundo, esta sociedade de Estados é também apenas um orgão daquelas potências que estão satisfeitas pelas formas da democracia nacional, que já estão por elas saciadas. Levaria demasiado longe descrever a massa nos materiais de conflito que surgiram pela calada através da universalização da forma da democracia nacional. Talvez nada elucide melhor a situação do que o facto de mesmo as potências vencedoras procurarem reprimir as consequências lógicas deste estado com princípios muito diferentes daqueles aos quais se deve agradecer a sua vitória — ou seja, de elas serem forçadas a abandonar o campo autêntico da sua força histórica. Assim, não apenas se deu a possibilidade à Alemanha, através da universalização do princípio nacional, de uma influência crescente naquelas numerosas minorias germânicas que são ainda hoje mantidas pelos ganchos de estruturas estatais envelhecidas, mas também a inclusão da Alemanha-Áustria no Estado Alemão, completamente legal no sentido do direito de autodeterminação dos povos. Em particular para a França, sobressai que a repartição da velha Monarquia Austríaca, consequente no sentido dos princípios fundamentais da Paz de Versailles, foi um erro fatal, e que deu aso à mobilização de forças muito pouco

desejadas.

Correlativamente,

observámos

um

esforço

de

reprodução de um Estado artificial no Danúbio, apoiado por potências que correm contra as tendências do tempo e por todas as potências reaccionárias, isto é, um esforço de separar uma parte da energia alemã. Tal é uma passagem marcante do emprego de princípios universais para a operação táctica, condicionada pelo caso singular.

275

Este erro fatal não está só — os sinais de que a saída do mundo da guerra mundial não conseguia dar nenhum domínio real são de tipo variado. O facto existencial da duração da resistência alemã forçou o mundo a uma série de medidas ambíguas. Assim, a mais extrema universalização dos princípios da democracia nacional, a concessão prática dos direitos humanos universais a quem quer que participasse na grande cruzada da humanidade contra a barbárie, tinha de conduzir necessariamente a que fossem incluídas forças na fruição destes princípios nas quais, à partida, quase não se tinha pensado. Os movimentos, uma vez postos em marcha, não se limitavam ao objectivo em que estavam colocados, mas desdobravam uma autonomia crescente. Pode-se aqui evocar novamente a Rússia, que, através da transformação numa democracia nacional, devia ser mobilizada de um modo mais abrangente, e ser recrutada para um trabalho de guerra mais intenso, mas que se desembaraçou logo dos seus advogados para se ocupar com outras tarefas menos desejadas. Aliás, terá de ser sempre considerada como um dos desempenhos magistrais da diplomacia burguesa ter conseguido incluir com sucesso no jogo dos seus interesses, totalmente diferentes, este império à disposição do qual, para um desdobramento frutuoso e sem obstáculos, estava, no Extremo Oriente, um verdadeiro continente. Do mesmo modo, a universalização dos princípios da democracia nacional tornou familiarizados os povos de cor com meios de emancipação novos e eficazes. Os empréstimos de guerra, em sangue e força de trabalho, que se contraiu nestes povos, são hoje apresentados, e isso sob a reivindicação dos mesmos princípios aos quais então se remeteu. É uma grande diferença se se

depara com príncipes, castas

guerreiras, povos da montanha e bandos de ladrões em rebelião, ou com advogados, membros do parlamento, jornalistas, premiados com o

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Prémio Nobel, educados nas escolas superiores europeias, e com populações nas quais foi desperto um sentido para o lugar comum humanitário e para a justiça abstracta. Também dá muito menos que pensar trocar projécteis nos vales das montanhas da Indochina ou nos desertos egípcios, do que os modos de falar amáveis naqueles congressos, à disposição dos quais está um eco mundial, através de todos os meios da técnica moderna de informação. Aquilo que hoje acontece com os povos de cor dá motivo aos cuidados de que se libertou a Alemanha; e também isto é um serviço com que, sem querer, se carregou o vencedor. O movimento dos povos de cor assumiu formas muito mais desagradáveis do que as que uma cadeia de rebeliões armadas conseguiu provocar. Os métodos da “penetração pacífica” voltam-se, numa direcção contrária, como noviolence. As reivindicações dos que são dominados apoiam-se em princípios reconhecidos e concedidos; não são reivindicações de canibais ou de homens que queimam as viúvas, mas exigências, tais como as que são completamente compreensíveis e correntes para o homem da rua de qualquer grande cidade europeia. A reivindicação do domínio vê-se, por isso, muito menos remetida para os barcos de guerra e para os canhões do que para o caminho negocial. Mas isto significa a perda do domínio num tempo previsível. Neste contexto, pode-se também tocar aquelas novas formações que só surgiram autenticamente através do princípio abstracto do direito de autodeterminação dos povos, e às quais é peculiar uma correlativa autoconsciência que lembra frequentemente um certo carácter de menoridade. De modo semelhante a como seria pensável que, se se redescobrisse o princípio da legitimidade, cada imediato imperial mantivesse atribuído o seu território, também aqui se transformariam em portadores do Estado populações das quais até agora, no máximo, se possui conhecimento através de livros escolares de etnografia, mas não através da história dos Estados. A consequência natural é o avanço de

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correntes puramente elementares no espaço histórico. Esta balcanização de mais áreas, com base nos chamados tratados de paz, não apenas multiplicou significativamente o número dos pontos tempestuosos relativamente ao estado de 1914, mas trouxe-os também a uma proximidade ameaçadora. Ela produziu os métodos de um estilo rebelde, nos quais se mostra que aqui, de modo semelhante à América do Sul, se tornaram livres menos grandezas históricas do que grandezas de história natural. Esta imagem é completada pelo avanço de uma espécie humana pequeno-burguesa, também naquelas posições do Estado em que era determinante, ainda há pouco tempo, uma substância conservadora e, assim, uma certa supremacia sobre as correntes do tempo. Nesta espécie, espelha-se a rápida e frequentemente explosiva mutabilidade do sentimento das massas no temperamento individual. Estão nela muito claramente cunhadas as marcas do seu percurso, da sua educação, que está menos nos sinais das instituições estatais do que das instituições sociais, e assim do partido, da imprensa liberal, do parlamento. Desta proveniência resulta, sobretudo, uma fatal transposição dos métodos da política interna para a política externa, para aquela tendência para se orientar segundo as mundividências e disposições, em vez de segundo fundamentos da razão de Estado. Falta aqui imoralismo, uma diferenciação clara do fim e dos meios — assim, nada se põe contra a operar-se, na Alemanha, uma política para o Ocidente ou para o Oriente, mas põe-se contra o fazê-lo sem a mistura com umas simpatias ou antipatias quaisquer. Os pontos cardeais pertencem às grandezas funcionais, mas não às grandezas principiais da política; e é uma característica da liberdade que se possa considerar a bússola com descontracção. A falta de distância que é peculiar a esta espécie humana provocará ainda algumas surpresas. Atrás da rotina das suas ordens de negócios, esconde-se tanto uma confiança desagradável como a

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possibilidade de decisões raivosas. Ela foi conhecida quando as massas estavam cansadas e muito precisadas de repouso, e serão espantosas as alterações que se passarão com ela quando as mesmas massas estiverem famintas e sedentas de ataque. A medida em que hoje se remete para o entendimento brota de uma consciência obscura da confusão de linguagem, da anarquia que termina uma era individualista. A necessidade de fazer repetir as assinaturas em cada ocasião, e depois de cada oscilação da política interna, é um sinal de que a política burguesa está no fim. É um sinal de que não se fez tratados de paz, mas tratados de armistício, e de que a saída da guerra mundial não deixa atrás de si uma ordem mundial digna de fé e incontestável. Manifesta-se aqui que a decisão não teve um carácter estratégico, mas um carácter táctico, e táctico foi também o modo em que se avaliou a decisão. É neste estado que nos encontramos, e a ele corresponde a linguagem que, no comércio entre as democracias nacionais, se tornou habitual — uma linguagem cujas regras de jogo se tem de conhecer, se bem que, no fundo, já ninguém acredita nelas. Ela deve ser estudada naquela mistura de rotina, cepticismo e cinismo que determina o tom das conferências sobre reparações e desarmamento. Esta é a atmosfera do pântano que só pode ser limpa através de explosões.

70. A viragem perigosa e incalculável para fora que pertence às características do nacionalismo democrático é aumentada no seu efeito pelo trabalho de nivelamento na sociedade, tal como é realizado pelo outro grande princípio em que o liberalismo desemboca, ou seja, pelo socialismo.

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O socialismo gostava de referir-se, pelo menos até há pouco, ao seu carácter internacional; no entanto, este carácter fica pela teoria, tal como mostrou o comportamento muito unitário e completamente não dogmático das massas no irromper da guerra mundial. O curso posterior dos acontecimentos ensina que este comportamento não pode ser visto como um caso de excepção; pelo contrário, repetir-se-á sempre que a opinião pública seja exposta a um estado correspondente. É também esclarecedor, sem mais, que haja potências que podem reivindicar muito mais um carácter internacional de que aquelas massas a quem o socialismo foi indicado, tais como as dinastias, a alta nobreza, o clero ou também o capital. Os nossos avós fizeram muito em proveito próprio através de as guerras de gabinete se terem tornado impossíveis. Eles não possuíam ainda nenhum olhar para o outro lado que é peculiar a tais progressos. Sem dúvida que as guerras de gabinete se assinalavam relativamente às guerras populares através de uma esfera de maior responsabilidade e de menor ódio. A uniformidade na estrutura das massas faz a uniformidade dos interesses, a qual não diminui, mas multiplica as possibilidades de conflito. A guerra encontra um alimento maior quando a decisão popular pertence aos seus pressupostos. Neste sentido, o socialismo executa um trabalho de mobilização que nenhuma ditadura poderia sequer ousar sonhar, e que é particularmente actuante por se realizar com base no acordo universal, com base no accionamento ininterrupto do conceito burguês de liberdade. A medida em que as massas se entregam e se preparam para serem manobradas tem de permanecer incompreensível para quem quer que não adivinhe atrás do automatismo nivelador dos princípios universais uma legalidade de outro tipo. Considerada sob o ponto de vista da pura manejabilidade, seria pensável a seguinte utopia social: O singular é um átomo que recebe a sua orientação através de influências

imediatas.



não



mais

nenhumas

articulações

280

substanciais que o reivindiquem. O que resta destes vínculos está limitado a um carácter de associação, de disposição ou de contrato. A diferença dos partidos é imaginária. Tanto o material humano como os meios de todos os partidos são, segundo a sua essência, homogéneos; e é num e no mesmo resultado que tem de vir a dar qualquer confrontação entre partidos. A sua aparente diferença serve para possibilitar ao singular uma troca das perspectivas e o sentimento de um acordo. O acordo é bem sucedido pela pura participação, ou seja, ao tomar parte nas votações, independentemente de qual o partido que o resultado favorecer. As alternativas não são aqui nenhumas decisões; elas pertencem antes ao modo de trabalho do sistema. A propriedade e a força de trabalho ficam sob protecção; daí que estejam limitadas nos seus movimentos. Às moratórias, subsídios, prorrogações, medidas de apoio e de assistência social, de um lado, correspondem, do outro, a inspecção da posse mobiliária e imobiliária, a limitação da livre circulação de homens e bens, a fiscalização do emprego e da rescisão. A empresa da formação está esquematizada. As escolas e as escolas superiores deixam uma substância formada de um modo muito unitário. A imprensa, os grandes meios de lazer e de informação, o desporto e a técnica continuam esta formação. Há meios através dos quais é transmitido a milhões de olhos, a milhões de ouvidos, numa e mesma hora, um e o mesmo acontecimento. Também aqui se pode ousar criticar a educação, na medida em que consegue gerar uma diferença de opiniões, mas não das substâncias. Tudo aquilo que é opinião é inofensivo; e num tempo em que qualquer um gosta de se assinalar como revolucionário, a liberdade está mais limitada do que nunca para as mudanças reais. Cada movimento revolucionário torna mais inequívoco o rosto do tempo, e, no fundo, é bastante insignificante qual dos parceiros está precisamente a operar. Neste estado, é completamente irrepresentável uma medida de independência tal como a

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que se expressa nas grandes queimas de livros dos déspotas asiáticos. Nenhum dos nossos revolucionários modernos suprime a técnica ou a ciência, nem sequer o cinema ou a mais pequena hélice — e isso tem a sua boa razão. Todas as ordens decisivas de mobilização não têm sucesso de cima para baixo, mas aparecem, de um modo muito mais eficaz, como um

objectivo

revolucionário.

As

mulheres

combatem

pela

sua

participação no processo de produção. A juventude exige o serviço de trabalho e a disciplina militar. A formação das armas e a organização militar pertencem às características de um novo estilo de conjurado de que mesmo os pacifistas participam. O desporto, o caminhar, o exercitar, a formação no estilo das escolas superiores populares são ramos da disciplina revolucionária. A posse de uma máquina, de uma motorizada, de uma câmara fotográfica, de um planador preenche os sonhos de uma geração que está a crescer. O tempo livre e o tempo do trabalho são duas modificações nas quais se é reivindicado por uma e a mesma empresa técnica. O estranho resultado das revoluções modernas consiste em o números das fábricas se multiplicar, e em remeter-se para trabalhar-se mais, melhor e mais barato. Dos teóricos e literatos socialistas desenvolveu-se uma espécie particular, e aliás não menos aborrecida, de funcionários, estatísticos e engenheiros do Estado, e um socialista de 1900 notaria, para seu espanto, que a argumentação decisiva já não opera com as cifras dos salários, mas com as cifras da produção. Há terras em que se pode ser morto por sabotagem da obra, como um soldado que abandona o seu posto, e em que se raciona os meios de subsistência desde há quinze anos, como numa cidade sitiada — e são terras em que o socialismo já foi realizado o mais inequivocamente possível. Diante de tais verificações, cujo número se poderia aumentar à vontade, pode-se só observar que se trata aqui de coisas que teriam tido

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um carácter utópico ainda em 1914, mas que são hoje correntes para qualquer contemporâneo. Para qualquer olhar que tenha penetrado a confusão que surgiu pelo desmoronamento das velhas ordens, tem de ser claro que nesta situação todos os pressupostos do domínio estão dados. Os princípios niveladores do século XIX lavraram o campo que espera a sua semente. 71. Só no estado de uma democracia realizada é que irrompe, na sua completa intensidade, a tendência dissolutora dos princípios motores. Só aqui se torna claro quanto o mundo burguês vivia de sentimentos reflexos e quanto estava remetido para a gesta da defesa. Os princípios deste mundo mudam o seu sentido quando lhes é tirado o opositor. A dissolução alcançou os seus limites quando já não vê diante de si os restos da autoridade, mas por todo o lado a sua própria imagem espelhada. O princípio no qual o nacionalismo pôde experimentar a sua completa supremacia foi o princípio da legitimidade. Tal é uma supremacia como a que se expressa pela primeira vez no poder das massas populares diante dos suíços que defendiam a Bastilha ou Tuileries108, e que se repete em todos os campos de batalha da Europa. Ainda na guerra mundial, estavam condenadas a um grau de mobilização insuficiente todas as potências em que se pode provar uma relação, mesmo afastada, ao legitimismo. Este tipo de supremacia tem necessariamente de se superar no mesmo instante em que a democracia nacional aparece como a única forma, e a forma universal de organização dos povos. Este facto torna-se mais claro na mesma medida em que os esforços se tornam mais 108

N. do T.: O Palácio de Tuileries é o palácio parisiense habitado por Luís XVI e Maria Antonieta, depois de forçados a deixarem Versailles. O palácio foi tomado pela populaça de Paris, em 1792.

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frutíferos e em que a força dos povos se esgota. Dão-se até agora represálias desconhecidas às quais o vencido é submetido. Os efeitos destruidores com que o nacionalismo, na hora do seu nascimento, se dirigiu contra as velhas ordens, dirigem-se doravante contra a nação, e mesmo contra o total alcance da sua existência, de um modo que faz qualquer singular responsável pela sua pertença nacional. De um modo muito semelhante, o princípio do socialismo, que brilha em matizes muito variados, dirige-se contra uma sociedade articulada de um modo determinado, seja esta articulação de uma natureza de estados ou de classes. O chamado Estado de classes está para a articulação de estados numa relação semelhante a como a monarquia constitucional está para a monarquia absoluta. Por todo o lado onde o socialismo ainda possui este opositor, cabe-lhe a vantagem revolucionária de que se serve no emprego dos meios de defesa já experimentados. Ele está tão mais vivo quanto menos o opositor tende a fazer concessões. Assim, é de assinalar que os poucos dons de homens de

Estado

que

a

social

democracia

alemã

produziu

surgiram

precisamente na Prússia, a terra do direito eleitoral por classes. Também onde a confrontação assumiu uma coloração puramente económica é que poderia ser claro o princípio de que o socialismo prospera sobretudo na proximidade de um capitalismo poderoso. Trata-se aqui de dois ramos de um e do mesmo lenho. A imagem altera-se também aqui significativamente quando o opositor desapareceu da sua superfície. Numa sociedade completamente atomizada, que ainda apenas se submete ao princípio de que a massa é igual à soma dos indivíduos que a compõem, o socialismo entra necessariamente também nas posições desocupadas pelo opositor, e assim cabe-lhe, em vez do papel de defensor dos que sofrem, o papel ingrato de seu protector. Entretanto,

vivenciou-se

o

estranho

espectáculo

de

os

representantes do socialismo, reconduzidos a lugares no Estado, terem

284

procurado continuar a repisar o lugar comum social para ligar as vantagens de funcionário do Estado com as de funcionário do partido. No entanto, tal significa tentar o impossível — é uma vantagem estar no poder, e é uma outra vantagem estar submetido. Há uma posição onde se pode dizer aquilo que devia ser, e há uma outra em que até se pode ordenar isso. Foi preciso o estado de uma democracia realizada para reconhecer que esta segunda posição é a menos agradável. De modo semelhante a como o nacionalismo vencedor se vê logo cercado de um círculo de democratas nacionais, que o encontram com a sua metódica própria, o socialismo vencedor encontra-se dentro de uma sociedade em que cada reivindicação é feita sob formulações sociais. Deste modo, gasta-se em pouco tempo o efeito e a vantagem revolucionária dos argumentos sociais. As massas tornam-se apáticas, desconfiadas ou entram num tipo desagradável de movimento que se furta às constituições democráticas. Tem lugar um apressado intercâmbio de homens entre os partidos, particularmente entre os partidos abrangentes. Em terras como na Alemanha, em que permaneciam vínculos muito ramificados, e em parte ainda enraizados, e em que se possui um instinto mais seguro para o comando e para a obediência, em que, além disso, estava presente um bem-estar generalizado no que toca às relações, são mobilizadas forças, através da atomização da sociedade, cuja entrada no espaço político não se podia prever. Entram em movimento camadas que são muito difíceis de determinar, tanto segundo a sua proveniência como segundo a sua composição. Esta é uma mistura humana inteligente, exasperada, explosiva, que se serve, de um modo que lhe é próprio, de uma liberdade de reunião, de expressão e de imprensa sem obstáculos. As diferenças entre reacção e revolução fundem-se aqui de um modo estranho; emergem teorias em que se identifica os conceitos “conservador” e “revolucionário” de um modo desesperado. As penitenciárias enchem-se

285

com uma nova espécie humana, com os oficiais de então, com os proprietários fundiários espoliados, com académicos sem emprego. Também aqui reina a metódica do argumento social que ainda se sabe intensificar mais através de um condimento cínico que o rancor fornece. Chega-se a uma linguagem que opera com palavras como “vontade popular”, “liberdade”, “constituição”, “legalidade” como com punhais envenenados. O esbater-se das fronteiras que foram traçadas entre ordem e anarquia expressa-se, além disso, em também as uniões das organizações existentes, ou formadas de novo, lucrarem com a dissolução dos vínculos reais, na medida em que se vêem na posse de uma autonomia crescente. As organizações não pertencem aos vínculos de tipo substancial; pelo contrário, como experimentámos, no contexto do desmoronamento

dos

vínculos,

as

organizações

nascem

como

cogumelos depois da chuva. O dom da organização é uma característica da movimentação espiritual que divide a realidade por opiniões, disposições, mundividências, fins e interesses. Mas onde, tal como no Estado genuíno, as potências reais e mais que espirituais aparecem cunhadas e instituídas, encontramos a ordem num plano diferente da construção orgânica. Pelo contrário, as organizações que se tornaram autónomas indicam o esforço de ver o Estado como ordenado do mesmo modo, isto é, como uma associação organizada para um fim. Correlativamente, emergem não apenas associações económicas, sindicatos, partidos e outras grandezas como parceiros negociais iguais, mas dá-se também a possibilidade

de

relações

imediatas

ao

estrangeiro

que

sejam

incontroláveis pelo Estado. Tal não é menos um sinal da autoridade repartida e atomizada do que o facto de que também aos próprios orgãos do Estado, como os supremos tribunais, a polícia, o exército, é peculiar uma crescente legalidade própria. Surgem estados em que, por um lado, se torna

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objecto de debates subtis sobre direito público o juramento solene originário da credibilidade humana, como o juramento de bandeira, enquanto, por outro lado, decorre aquela que é talvez a mais profunda tragédia do nosso tempo, que consiste em o resto da velha hierarquia de soldados e funcionários procurar manter de pé o conceito de dever tradicional, no quadro de um Estado tornado imaginário e cheio de compromissos. Finalmente, também os direitos de soberania mais explícitos são privatizados. Junto da polícia, emergem milícias de moradores e organizações

de

autoprotecção.

Enquanto,

do

lado

do

espírito

cosmopolita, se procura canonizar a traição à pátria, o lado sangrento da vida gera uma justiça secreta, que trabalha com boicotes, atentados e tribunais clandestinos. As insígnias da soberania do Estado são substituídas por insígnias de partidos; os dias das eleições, das votações e

das

aberturas

do

parlamento

assemelham-se

ao

ensaio

de

mobilizações para a guerra civil. Os partidos separam exércitos imóveis, entre os quais domina o estado de uma guerra latente nos postos avançados; e, correlativamente, a polícia assume um tipo de armamento e de táctica que se pode conceber como característica de um permanente estado de sítio. Nos cabeçalhos dos jornais entra uma propaganda sangrenta sem obstáculos, da qual não há exemplo na história alemã em geral. No entanto, neste contexto, o que é mais significativo é o facto de que, contrapondo-se também à intervenção na política externa, a defesa privada aparece na mesma medida em que o Estado se mostra incapaz de resistência — uma defesa que aparece tão mais desesperada quanto o próprio Estado não apenas a não legaliza, mas também a declara como fora da lei. Tal como, durante a Fronda109, se combatia pelo rei contra o rei, também aqui se sacrificavam, apesar do Estado, pelo Estado os corpos de fronteira, as associações de voluntários e os sabotadores solitários. Mostra-se precisamente aqui que

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a Alemanha ainda dispõe de uma espécie humana com a qual se pode contar e que está à altura da anarquia. A admirável ressurreição dos velhos mercenários naqueles bandos que, depois de quatro anos, ainda levavam a guerra voluntariamente para Oriente; a defesa da Silésia, o massacre medieval dos separatistas com mocas e machados, o protesto contra as sanções através de explosivos, sangue e outros actos em que se manifesta a infalibilidade e a precisão do mais secreto instinto, são sinais que são deixados como pedras de toque a uma historiografia futura. Finalmente, a repartição da autoridade tem também de conduzir a que as forças elementares, e completamente irresponsáveis num sentido histórico, se sirvam dos meios de organização que sejam peculiares ao século. Neste contexto, vivenciou-se coisas que já não se tinha como possíveis na velha Europa iluminada — incêndios de igrejas e claustros, pogromes110 e combates raciais, assassínio de reféns, bandos de ladrões nas áreas industriais povoadas, guerras de partisans, lutas de contrabandistas na terra e no mar. Só se valoriza correctamente estes fenómenos quando se vê a estreita relação que há entre eles e a realização do conceito burguês de liberdade. Estes acontecimentos apresentam o modo em que a utopia da segurança burguesa se conduz ad absurdum. Um exemplo visível deste contexto oferecem os espantosos resultados que se podem observar sobretudo na América, na sequência das medidas de proibição111 . A tentativa de banir da vida a embriaguês apresenta uma medida de segurança à partida completamente clara, tal como já antes é exigida na literatura sobre a sociedade utópica. Contudo, logo se evidencia que mesmo uma separação do reino elementar inferior 109

N. do T.: A Fronda consistiu numa série de revoltas ocorridas em França durante a menoridade do Rei Luís XIV. 110 N. do T.: Os pogromes tiveram a sua origem na Rússia czarista e designam a organização de massacres em massa, particularmente dirigidos contra os judeus. 111 N. do T.: Jünger refere-se às medidas de proibição do consumo de álcool, em vigor nos Estados Unidos da América entre 1920 e 1933.

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contradiz as tarefas do Estado. São forças que têm de ser domadas, mas cuja existência não pode ser negada. Se isso mesmo assim acontece, o resultado é uma segurança ilusória, um espaço de direito teórico para cujas malhas o atoleiro empurra as suas formações de organização. Qualquer tentativa de limitar a esfera do Estado a uma esfera moral tem de fracassar, pois o Estado não pertence às grandezas morais. As posições que dentro do mundo elementar o Estado desocupa são ocupadas imediatamente por forças diferentes. É assim que foram conhecidos casos de canibalismo na Alemanha, precisamente no espaço de tempo em que o ataque moral contra a pena de morte estava no seu ponto mais alto. O executivo é constante no seu alcance; o que varia são apenas as potências que o reivindicam. Dentro dos estados do socialismo tardio, também não se trata de estados autenticamente estatais; trata-se antes da desagregação do Estado pela sociedade burguesa, que se determina pelas categorias do racional e do moral. Como não se trata aqui de leis originárias, mas de leis do espírito abstracto, cada domínio que se procure apoiar nestas categorias mostra-se como um domínio aparente, em cujo âmbito se manifesta logo o carácter utópico da segurança burguesa. Isto ninguém experimenta melhor que aquelas camadas que requerem protecção. Assim, a participação na desagregação das velhas ordens pertenceu aos erros fatais do judaísmo liberal.

72. O estado de grande perigo que está incluído numa movimentação ilimitada, e que se torna mais ameaçador na mesma medida em que a segurança burguesa se mostra como utópica, exige imperiosamente outras medidas do que as que se podem retirar da substância da democracia liberal.

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É claro que aqui se torna visível, à partida, a saída da restauração, e assim não faltam esforços para a reposição do Estado constituído por estados ou da monarquia constitucional. No entanto, tem de se saber que há vínculos que são demasiado vulneráveis para que, uma vez dilacerados, possam ser repostos. O estado de atomização é incontestável — isto é um mau solo para realizar lembranças dele numa estrutura histórica madura. São exigidas acções de uma brutalidade tal que só se podem executar “em nome do povo”, mas nunca em nome do rei. A dominação das relações só pode acontecer através de forças que penetraram na zona de destruição, e às quais coube nela uma legitimação diferente. Forças deste tipo mostram-se em aplicarem os princípios que encontram num novo e inesperado sentido — em saberem utiliza-los como grandezas de trabalho. Na sua emergência inesperada torna-se perceptível o erro de cálculo que está escondido na construção da sociedade burguesa — um erro de cálculo que equivale a o povo se poder decidir também uma vez contra a democracia. Uma tal decisão — favorecida pelo não funcionamento dos instrumentos do domínio aparente burguês — significa a formulação democrática de um acto antidemocrático, significa a autodissolução das representações aproximadas sobre a legalidade. Quer se reconheça este acto, quer não, na medida em que se procura governar contra a maioria no sentido da tradição democrática: chega-se a um e ao mesmo resultado, no que toca ao que está em causa. Este resultado manifestase como a rendição da democracia liberal ou democracia da sociedade pela democracia do trabalho ou democracia do Estado. No facto desta passagem dissolve-se aquela discrepância que, como vimos, consiste em, por um lado, o tempo impelir para o domínio em todos os seus pormenores, enquanto, por outro lado, se possa falar menos do que antes de um domínio real. Esta rendição, que se realiza aqui com grande brutalidade, ali numa série de passos quase

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imperceptíveis, é já mais significativa do que uma restauração, porque hoje qualquer restauração pensa ligar-se a uma tradição da sociedade, enquanto aqui é retomada a genuína tradição do Estado. Sob este ponto de vista, a democracia de trabalho é mais estreitamente aparentada ao Estado absoluto que à democracia liberal da qual parece brotar. Contudo, é diferente do Estado absoluto na medida em que as suas forças, que estão à disposição, só são mobilizadas e abertas através do efeito de princípios universais. O Estado absoluto cresceu no meio de um mundo de formas muito desenvolvido, e a substância deste mundo continuava a viver nele na forma dos privilégios. A democracia de trabalho depara-se com as ordens destroçadas da massa e do indivíduo, e não encontra nenhuns vínculos genuínos, mas uma plenitude de organizações. Há uma grande diferença entre as forças variadas que confluem no dia da coroação para realizar o juramento de fidelidade, e os trabalhadores colaboradores que um Chefe de Estado moderno vê diante de si na manhã após o plebiscito decisivo ou o golpe de Estado. Trata-se ali de um mundo estável dentro dos seus limites e ordens; aqui, de um mundo dinâmico, em que a autoridade se tem de confirmar com meios elementares. Mas também aqui se trata de uma legalidade histórica, e não de uma rendição fugaz de poderes dentro de um espaço elementar puro, tal como se realiza nas repúblicas sul-americanas. A sempre maior liberdade de poder dispor das coisas, o crescente entrecruzamento do legislativo e executivo, não deixa nenhum espaço aberto dentro do qual sejam possíveis fórmulas como car tel est notre plaisir. Ela é antes limitada por uma tarefa muito determinada: a da construção orgânica do Estado. Esta construção não é uma construção qualquer; ela não consegue nem realizar uma utopia, nem uma pessoa, ou um círculo de pessoas, consegue equipá-la com conteúdos que não lhe sejam adequados. É determinada pela metafísica do mundo do trabalho, e é decisivo em que medida a figura do trabalhador se expressa

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nas forças responsáveis, isto é, em que medida estão em relação ao carácter total do trabalho. Assim, vivencia-se o espectáculo de ditaduras que os povos se impõem a si mesmos, para que o necessário possa ser ordenado — de ditaduras em cujo aparecimento é coado um estilo de trabalho mais rigoroso e mais sóbrio. Nestes fenómenos incorpora-se o ataque do tipo contra as valorizações da massa e do indivíduo — um ataque que se mostra logo dirigido contra os orgãos entrados em declínio do conceito de liberdade burguês, contra os partidos, os parlamentos, a imprensa liberal e a economia livre. Na passagem da democracia liberal para a democracia de trabalho realiza-se a ruptura do trabalho como modo de vida para estilo de vida. Por mais variado que seja o modo em que possam ser coloridos os matizes em que esta passagem se joga — é um e o mesmo sentido, o começo do domínio do trabalhador, que se esconde atrás deles. Objectivamente, não há qualquer diferença em o tipo manifestarse de repente no aparecimento de um guia partidário112, de um ministro, de um general, ou em um partido, uma associação de combatentes, uma comunidade nacional ou social, um exército, um corpo de funcionários começar a constituir-se sob a legalidade diferente da construção orgânica. Também não há nenhuma diferença se a “conquista do poder” se realizar nas barricadas ou na forma de uma austera assunção da ordem dos negócios. Finalmente, é indiferente se a aclamação da massa acontece neste processo sob a representação de uma vitória de mundividências colectivistas, ou se a aclamação do indivíduo vê nela o triunfo da personalidade, do “homem forte”. É antes um sintoma da necessidade deste processo que ele se realize debaixo do próprio acordo daqueles que sofrem.

73. 112

N. do T.: A expressão aqui traduzida por guia partidário é Parteiführer.

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Poder-se-ia estar inclinado a ter a democracia de trabalho como um estado de excepção — como uma daquelas decisivas medidas ordenadoras para as quais estava prevista, na Roma republicana, a instituição particular e delimitada da ditadura. Trata-se aqui, de facto, de um estado de excepção; no entanto, de modo nenhum de um estado de excepção tal que, de qualquer modo, possa novamente desembocar no liberalismo. A rendição da democracia liberal é definitiva; cada passo que se dê para lá das formas nas quais acontece esta rendição só se pode procurar numa intensificação do carácter de trabalho. São tão incisivas as mudanças que, no campo de forças da democracia de trabalho, se processam nos homens e nas coisas, que tem de aparecer como impossível uma reconquista da linha de saída. O processo de destruição aludido merece em si muito menos atenção do que o centro a partir do qual a destruição acontece. Vimos que tanto os sistemas dinâmicos do pensar, como também os venerados efeitos da técnica, devem ser concebidos como armas, das quais a figura do trabalhador se serve para o nivelamento, sem que ela mesma esteja submetida a este nivelamento. Esta relação espelha-se também na composição da humanidade que se encontra na zona de destruição. Salienta-se que estados como os da guerra, do desemprego, do automatismo inicial, através dos quais é estampada na existência do indivíduo que surge isoladamente ou en masse o selo da ausência de sentido, se oferecem ao mesmo tempo ao tipo como fontes de força de uma acção crescente. É de notar aqui que o estado de desemprego não está dado de todo em relação ao tipo, na medida em que o trabalho para ele não pertence ao carácter empírico, mas ao carácter inteligível. No instante em que o tipo se retira do processo de produção surge o carácter total do trabalho, no seu aparecimento numa forma especial modificada, como na

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do armamento. Daí que um grupo de desempregados onde o tipo se representa, e tal como se pode observar num acampamento no bosque, no desporto ou num agrupamento político, se diferencie completamente da imagem tal como se expressa nas massas em greve de estilo antigo. Surge aqui um carácter militante; e o estado de desemprego, visto correctamente, deve ser valorizado como a formação de um exército de reserva. Esconde-se aqui uma outra forma de riqueza, de cuja abertura o pensar burguês é, no entanto, incapaz. Milhões de homens sem ocupação — este puro facto é poder, é um capital elementar, e também se reconhece o trabalhador em só ele possuir a chave para este capital. Não é a irremediável queda das ordens da massa que em si é aqui digna de atenção. Também não é este facto que cria novas ordens; no máximo, dá ocasião para a entrada destas ordens. O passo decisivo na viragem para a democracia de trabalho está antes em já aqui o tipo activo realizar a viragem para o Estado. Deparamos aqui com a entrada de partidos, movimentos e instituições na construção orgânica — numa nova forma de unidade que assinalámos também como ordem e cuja característica consiste em possuir uma relação de culto à figura do trabalhador. Um movimento de participantes na guerra, um partido socialrevolucionário, um exército transforma-se, deste modo, numa nova aristocracia que se coloca na posse dos meios decisivos espirituais e técnicos. A diferença que existe entre tais grandezas e um partido de velho estilo é evidente. Aqui, trata-se de cultivo e de selecção, enquanto o esforço do partido está orientado para a formação das massas. De assinalar para a diferença da construção orgânica é o facto, que por todo o lado retorna, de num instante determinado “se fecharem as listas” e de se repetirem medidas de limpeza, das quais um partido, segundo puramente a sua essência, não é de todo capaz. Tal conduz a uma genuinidade e homogeneidade da substância, da qual, na situação

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histórica em que nos encontramos, só o tipo é capaz, e isso porque só ele dispõe de vínculos que são adequados a esta situação.

74. A pura presença de tais vínculos, através dos quais é garantido o funcionamento da democracia de trabalho, apresenta um facto que também não pode permanecer sem uma influência formadora na substância humana no seu conjunto, e isto tanto mais quanto o efeito decisivo já não se realizar através da formação da opinião ou da maioria, mas através da acção. Também aqui se pode observar que a era do liberalismo criou os pressupostos para tais acções. O tipo assinala-se através de conseguir avaliar estes pressupostos no sentido de uma pura tecnicidade. No entanto, temos aqui de nos recordar novamente da verificação que encontrámos na consideração da técnica: da verificação de que só o tipo está chamado a uma tal valorização, porque só ele possui uma referência metafísica à técnica, uma referência de acordo com a figura. Isso explica o facto, que hoje se pode observar frequentemente, de que uma e a mesma medida fracassa para a inteligência burguesa, enquanto não apresenta para o tipo a mais pequena dificuldade. É então absolutamente necessário libertar-se de preconceitos maquiavélicos, quando se encontra a verificação de que o tipo reconhece a opinião pública como uma questão técnica. O procedimento que se retira deste reconhecimento, no nosso espaço, não compete a uma grandeza qualquer, compete apenas ao tipo, para o qual cada instrumento tem de aparecer como instrumento de trabalho, isto é, como utensílio de um sentimento de vida muito determinado. Daí que não seja apenas uma mudança de modo, mas também de plano, quando através dele a opinião pública é transformada de orgão do conceito burguês de

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liberdade em pura grandeza de trabalho. É um aparecimento especial do facto superior, a técnica ser o modo em que a figura do trabalhador mobiliza o mundo. Também aqui se pode reconhecer a mudança do procedimento destrutivo para o procedimento positivo, no instante em que o domínio se torna visível. Pode-se aqui mencionar a transformação dos parlamentos de orgãos do conceito burguês de liberdade e de institutos de formação de opinião em grandezas de trabalho, que, segundo o seu sentido, têm um significado idêntico à transformação dos orgãos sociais em orgãos do Estado. Pode-se mencionar a dominação da técnica do plebiscito, que se realiza num espaço em que foi atribuído um carácter muito inequívoco não apenas ao conceito de povo, mas também às alternativas que estão em questão. Pode-se, além disso, mencionar a substituição da discussão social pela argumentação técnica, que corresponde à substituição de empregados sociais por funcionários do Estado. A este contexto pertence também a drenagem daquele pântano da livre opinião em que a imprensa liberal se transformou. Também aqui se pode reconhecer que a tecnicidade é muito mais digna de atenção do que o indivíduo que, dentro desta tecnicidade, produz a sua opinião. Quanto mais nítida é a máquina que caça esta opinião através do seu curso de trabalho, e quanto mais significativa é a precisão e a velocidade com que um qualquer pasquim partidário chega aos seus leitores, do que todas as diferenças partidárias em que se possa pensar! Isto é um poder, um poder do qual o indivíduo burguês não sabe fazer nenhum uso e do qual, por falta de legitimação, se serve como um perpetuum mobile da livre opinião. Começa-se finalmente a ver que aqui está a trabalhar uma humanidade muito homogénea, e que o processo do combate de opinião tem de ser reconhecido como um espectáculo em que o indivíduo burguês representa papéis secundários. Todas esta gente é radical, isto é, entediante, e o seu modo de alimentação comum consiste, sem

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diferenciação, na cunhagem de factos às opiniões. O seu estilo comum pode-se definir como um inocente júbilo sobre um qualquer ponto de vista, uma qualquer perspectiva que só a ela seja peculiar — ou seja, como o sentimento da vivência única na sua forma mais barata. Aquilo que foi dito do teatro vale também para os jornais; torna-se cada vez mais difícil manter separados os seus elementos, seja o texto e os anúncios, seja a crítica e as notícias, seja a parte política e o folhetim. Tudo é aqui, ao mesmo tempo, na mais elevada medida, individual, e está destinado, na mais elevada medida, ao uso da massa. A independência para a qual a imprensa apela é de uma e da mesma natureza, onde quer que se possa deparar com este apelo. Consiste na independência do indivíduo burguês diante do Estado. Falar da imprensa enquanto novo grande poder pertence ao modo de falar do século XIX; e, correlativamente, emergem aqueles grandes assuntos em que o jornalista sabe empurrar com sucesso o Estado para diante dos limites da razão e da virtude, ou seja, neste caso, da verdade e da justiça. Também aqui encontramos o ataque enviado pela defesa, e o Estado aparente liberal submete-se a este ataque tão seguramente quanto este se realiza diante do fórum dos seus princípios fundamentais. A imagem não estaria completa se, ao mesmo tempo, não se visse a relação que existe entre a livre opinião e o interesse. São conhecidas as relações entre este tipo de independência e o suborno que, nas suas consequências últimas, conduzem à subvenção espiritual e material pelo estrangeiro. O ataque contra a independência da imprensa é uma forma especial do ataque contra o indivíduo burguês. Daí que não possa ser conduzido por partidos, mas apenas por uma humanidade para a qual se perdeu o gozo deste tipo de independência. Tem de ser claro, no entanto, que a censura pertence aos meios insuficientes, que ela até consegue provocar um refinamento e uma maldade crescente do estilo individualista. No entanto, o tipo dispõe de meios mais abrangentes do

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que aqueles com os quais o Estado absoluto procurou pôr-se em guarda, quando o seu tempo chegou. Muito mais do que o facto de ele se conseguir colocar em posse dos grandes meios de informação, reverte em favor dele que o estilo da expressão individual da opinião começa a tornar-se entediante e insípido. Se se abrir uma qualquer colecção dos jornais de 1830, é espantosa a medida incomparavelmente mais elevada de substância que está dentro da expressão diária; vive nestes artigos ainda algo do artesanato antigo. Elucidativa, neste contexto, é, por um lado, a decadência do artigo de fundo e da crítica, e, por outro lado, o interesse crescente por todas as colunas em que, como na parte do desporto, a diferença das opiniões individuais desempenha um papel muito mais pequeno — do mesmo modo, pela reportagem fotográfica. Este interesse vem já ao encontro do emprego de meios tais como os que são particularmente peculiares ao tipo. Deve-se esperar o emprego de uma linguagem precisa, inequívoca, de um estilo fáctico e matemático, tal como é adequado ao século XX. O jornalista aparece neste espaço como um portador de um carácter especial do trabalho, cujas tarefas o carácter total do trabalho, e, assim, o Estado enquanto seu representante, determina e delimita. Os símbolos dentro deste espaço inequívoco são de uma natureza objectiva, e a opinião pública nele já não é a opinião de uma massa que se compõe de indivíduos, mas o sentimento vital de um mundo muito fechado, muito uniforme. Aquilo que aqui cativa é muito menos o ponto de vista do observador do que o da própria coisa ou do próprio acontecimento, e correlativamente exige-se do relatório que através dele seja mediado o sentimento da presença temporal e espacial imediata. A consciência moral jornalística relaciona-se aqui com um máximo de exactidão descritiva; através de uma precisão do estilo em que se expressa, mostrou-se que atrás da reivindicação de realizar um trabalho espiritual se esconde mais do que um modo de falar. O

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processo decisivo, como se disse, está também em o indivíduo burguês ser rendido pelo tipo. Do mesmo modo que era completamente indiferente se o indivíduo, no seu exemplar singular, se comportava de um modo conservador ou revolucionário, está na pura emergência do tipo uma confirmação do mundo do trabalho, independentemente de em que âmbito se realize esta emergência. Esta emergência coincide com um estado particular dos meios técnicos que só a ele é adequado. Só para o tipo é que servir-se destes meios possui o sentido de um acto de domínio. Tal como o jornalista se transforma de indivíduo burguês em tipo, assim se transforma a imprensa de orgão da livre opinião em orgão de um mundo de trabalho inequívoco e rigoroso. Tal mostra-se já no modo alterado em que hoje se lê jornais. O jornal já não tem nenhum círculo de leitores no sentido antigo, e para a mudança do seu público vale o mesmo que foi dito sobre o público do teatro e do cinema. Também o ler já não pode ser colocado em uníssono com o conceito de ócio; ele emerge antes com as características do carácter especial do trabalho. Tal torna-se muito claro onde se tem oportunidade de observar o leitor, ou seja, sobretudo nos meios de transporte em cuja pura utilização já se realiza um acto de trabalho. Verificar-se-á nesta observação uma atmosfera ao mesmo tempo desperta e instintiva, à qual é adequada um serviço de informação da mais elevada precisão e velocidade. Quer-se aqui sentir a impressão de que o mundo se transforma, enquanto se lê, mas, ao mesmo tempo, esta transformação é constante no sentido da monótona troca dos variados sinais pelos quais se passa fugazmente. São notícias dentro de um espaço em que o acontecer se assinala através de uma presença da qual cada átomo é encontrado com a velocidade de uma corrente eléctrica. É elucidativo que aqui todo o individual tenha de ser experimentado, numa medida crescente, como sem sentido. Do mesmo modo, deve-se assumir que se funde a multiplicidade dos orgãos, pelo

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menos na medida em que assenta na diferença entre partidos ou entre cidade e campo. Também se deve, pelo menos, indicar ainda aqui que a capacidade de absorção intelectual da espécie passiva que coloca a autêntica camada dos leitores aproxima-se com grande velocidade de uma constituição que nega sem esperança qualquer efeito da inteligência liberal. Todos os questionamentos culturais, psicológicos e sociais entediam esta espécie extraordinariamente, do mesmo modo que esta já não percebe de todo o refinamento dos meios artísticos em geral. Quanto mais penetrante e fidedignamente o entendimento desta espécie captar mesmo os mais finos pormenores técnicos, entendimento que começa a despontar muito unitariamente a partir de todas as camadas da velha sociedade e que se nos depara cada dia mais frequentemente, tanto mais indiferente ele é relativamente a qualquer modo de conversação que torne a vida valiosa para o indivíduo. É uma modificação do entendimento que corresponde à paisagem modificada, dentro da qual o ideal de formação burguês ainda apenas consegue reclamar um interminável aumento do sofrimento. Daí que, por vezes, poder-se-ia sentir quase compaixão por aquelas inteligências para as quais a produção da vivência única se torna cada vez mais nítida, se se pensar que um tal desempenho, neste espaço, é percebido na melhor das hipóteses como uma espécie de solo de saxofone sentimental. Todas estas relações surgem já muito mais claramente em relação aos meios de informação típicos que podem ser referidos completamente como meios do século XX, ou seja, em relação à rádio e ao filme. Nada há de mais divertido que as tentativas de certos fantoches para submeter os meios destinados a tarefas tão inequívocas, concretas e pura e simplesmente diferentes, aos padrões de um conceito liberal de cultura — estes fenómenos que se têm por críticos de cultura não são senão cosméticos da civilização. Já numa observação superficial é claro que não se trata aqui de orgãos da livre opinião, no velho sentido. Tudo

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aquilo que é aqui simples opinião mostra-se, pelo contrário, como inessencial na mais elevada medida. Daí que estes meios sejam tão inadequados para desempenhar um papel enquanto instrumentos partidários, como

são

incapazes

de

atribuir ao

indivíduo

uma

ressonância. O medium em que o indivíduo consegue actuar é já destruído pelo facto da voz artificial e da fixação através do raio de luz. Aqui só consegue actuar o tipo, pois só ele possui uma relação à metafísica destes meio. Se aqui é bem sucedida, numa medida crescente, uma valorização da tecnicidade pura, menciona-se com isso, no fundo, a medida em que já se alcançou a dominação de uma linguagem diferente. O juízo sobre se um filme é “bom” ou “mau” não sucede com base em pressupostos nem morais nem relativos à mundividência ou à disposição. Em vez disso, só é aqui valorizado, independentemente de se tratar de uma aventura de amor, de um caso criminal ou de propaganda bolchevista, em que medida se alcançou a mestria dos meios típicos. Contudo, esta mestria é legitimação revolucionária — isto é, representação da figura do trabalhador através daqueles meios com que esta figura mobiliza o mundo. Trata-se aqui de orgãos que uma vontade diferente começa a criar. Neste espaço, os átomos não estão armazenados naquela anarquia latente que é o pressuposto da livre opinião e que, finalmente, conduziu para estados em que o efeito desta opinião se supera a si mesmo, porque a desconfiança geral se tornou maior que a capacidade de absorção. Habituou-se-se a tomar cada notícia já sob o pressuposto do desmentido que se lhe seguirá. Alcançámos uma inflação de livre opinião, em que a opinião se desvaloriza mais rapidamente do que pode ser impressa. A armazenagem dos átomos assume antes aquela inequivocidade que governa no campo de forças electro-magnético. O espaço é de uma unidade fechada, e há um instinto mais aguçado para as coisas que se quer saber e para aquelas que não se quer saber.

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Além disso, seria erróneo assumir que aqui se trata apenas de uma intensificação da centralização, no sentido em que a pessoa absoluta se soube tornar-se ponto intermédio. No espaço total não há um ponto intermédio, uma residência, seja agora a do príncipe ou a da opinião pública, neste sentido: tão pouco quanto nele é ainda de importância a diferença entre cidade e campo. Em vez disso, cada ponto possui aqui, ao mesmo tempo, o significado potencial de um ponto intermédio. Tem qualquer coisa de angustiante e recorda a muda incandescência dos sinais de luzes, quando, de repente, uma qualquer parte deste espaço, seja uma província ameaçada, um grande processo, um acontecimento desportivo, uma catástrofe natural ou a cabina de um avião transoceânico, se torna no centro da percepção e, assim, também do efeito, e quando se fecha em torno dele um denso anel de olhos e ouvidos artificiais. O processo possui aqui algo muito objectivo, muito necessário, e os seus movimentos assemelham-se aos que o investigador constata através do telescópio ou através do microscópio. Daí que não seja sem razão que passou um terror pelo mundo, quando no ano de 1932 se experimentou que através do emissor manchuriano estava instalado um serviço imediato no campo de batalha. Também na observação do documentário semanal político, tal como pertence às tarefas da reportagem cinematográfica, se torna claro como aqui se começa a desenvolver um outro tipo de entendimento, um outro tipo de leituras. Um lançamento de um barco, um acidente de minas, uma corrida de veículos motorizados, uma conferência diplomática, uma festa de crianças, o subir e descer dos impactos das granadas numa parte deserta da Terra, a mudança de vozes de júbilo, de alegria, de ira, de desespero — tudo isto é agarrado e espelhado por meio de uma precisão inexorável, e apresenta um perfil que torna visível a totalidade das relações humanas num plano modificado. É inquestionável que aqui a opinião pública tem de aparecer como uma grandeza inteiramente modificada. São precisamente as

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áreas decisivas que são sancionadas pela opinião pública numa medida que já não as torna visíveis para a livre opinião enquanto objectos. As mudanças que ocorrem na paisagem criam a ilusão de que à disposição da vista está apenas uma janela, apenas uma única parte. Também aqui não se pode descurar que, por um lado, ainda hoje o indivíduo se procura servir dos meios num sentido que não é adequado à sua essência, e que, por outro lado, a sua crescente perfeição manifesta esta essência de um modo cada vez mais claro. Não se trata aqui de meios de fruição — e mesmo onde existe esta aparência, devese reparar que a fruição, a organização dos grandes jogos, se começa a evidenciar cada vez mais intensamente como uma tarefa pública, ou seja, como uma função do carácter total do trabalho. O sentido do processo decisivo deve ser reconhecido como a mudança dos instrumentos da sociedade em instrumentos de Estado, a qual serve a espécie activa como portadora do Estado. Num espaço muito fechado, muito calculável, em que cresce a simultaneidade, a inequivocidade e a objectividade da vivência, aparece tanto a opinião pública enquanto grandeza modificada como a humanidade decisiva que já não possui nenhuma relação à livre opinião porque é assinalada através de marcas rácicas. A sua actividade, como foi dito, tem também de se delinear na substância humana no seu conjunto. Deve-se já hoje suspeitar que aqui se realiza um tipo de cunhagem que a livre opinião nunca foi capaz de provocar, uma cunhagem que se estende até à expressão do rosto e ao tom da voz.

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A RENDIÇÃO DOS CONTRATOS SOCIAIS PELO PLANO DE TRABALHO

75. Aquilo que foi dito sobre a censura como um meio insuficiente, vale para o procedimento do tipo em geral. O tipo não se sobrepõe à ordem da democracia liberal, da qual surge, porque “conquista o poder”, mas porque dispõe de um novo estilo, ou seja, porque representa poder. A partir deste fundamento, a democracia de trabalho também não se pode confundir com uma ditadura onde se renunciou ao emprego de meios plebiscitários. Qualquer poder é pensável como portador de uma potência puramente ditatorial, enquanto a democracia de trabalho só pode ser realizada através do tipo. O tipo também não pode chegar a umas medidas quaisquer — ele pode tão pouco restaurar uma monarquia, como instituir uma pura economia agrária ou apoiar-se num domínio militar ligado a uma classe. A grande força impulsiva que está à disposição dele é delimitada pelos meios e pelas tarefas do mundo do trabalho. Se se traçar uma comparação entre a entrada do burguês e a do trabalhador no espaço histórico, em ambos os casos depara-se com a legitimação dos meios de destruição cujo efeito preparou e possibilitou esta entrada. Para o burguês, estes meios consistem nos jogos do espírito abstracto que opera com os conceitos de razão e de virtude. Embora esta linguagem fosse falada nas cortes dos príncipes e nos salões da aristocracia não menos que nos cafés, é só o burguês que, sem se destruir, a sabe ter à mão, e que a eleva a linguagem da lei, na medida em que a torna fundamento dos seus contratos sociais.

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Seria

erróneo

assumir

que

os

meios

de

destruição

correspondentes, para o trabalhador, são para procurar nas grandes teorias sociais e económicas. Em vez disso, já expusemos que nelas só se pode ver uma continuação do trabalho da razão burguesa. Estas teorias devem-se comparar muito menos à nova descoberta do homem no século XVIII do que ao racionalismo aristocrático, através do qual a camada contra a qual esta descoberta se orienta se decompõe, ao mesmo tempo, a partir de si mesma. Esta autodecomposição da velha sociedade resulta tanto em proveito do burguês como, mais tarde, a decomposição da sociedade burguesa em proveito do trabalhador. Se se quiser ver aqui também uma arma, tal é admissível segundo o princípio de que tudo aquilo que consegue danificar o opositor é vantajoso. O procedimento aplicado não passa certamente da zona de destruição para a do domínio. Os princípios que estão na sua base, como o da igualdade ou da repartição, são apenas de um tipo nivelador; eles referem-se à substância da sociedade que está dada. Os meios revolucionários que o trabalhador legitima são mais significativos que os meios abstractos-espirituais; são de tipo objectivo. A tarefa do trabalhador consiste na legitimação dos meios técnicos através dos quais o mundo foi mobilizado, isto é, foi deslocado para o estado de um movimento ilimitado. A pura presença destes meios está numa oposição crescente ao conceito burguês de liberdade e às formas de vida que lhe são adequadas; ela exige a domesticação através de uma força à altura da sua linguagem. Estamos aqui a lidar com uma daquelas grandes revoluções de materiais que coincidem com a emergência de raças à disposição das quais está a magia de novos meios, como o bronze, o ferro, o cavalo, a vela. Do mesmo modo que o cavalo só ganha o seu significado através do cavaleiro, o ferro através do ferreiro, o barco através daquele “peito protegido três vezes de metal”, assim também o

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sentido, a metafísica do instrumentário técnico, só surge quando a raça do trabalhador aparece como a grandeza que lhe está atribuída. À diferença dos meios aplicados corresponde a diferença na instalação e na tomada de posse do mundo conquistado. Para o burguês,

este

processo

realiza-se

na

construção

espiritual

de

constituições em que a mesma razão que destruiu a velha sociedade aparece como fundamento e medida fundamental de uma nova sociedade. Para o trabalhador, a tarefa correspondente aparece como a construção orgânica de massas e energias que entraram num movimento ilimitado, construção orgânica essa que o processo de decomposição da sociedade burguesa deixou atrás de si. O quadro em que a liberdade de agir está incluída já não é aqui a constituição burguesa, mas o plano de trabalho. Do mesmo modo que o burguês, à partida, encontra o Estado absoluto como campo de actividade, assim os primeiros movimentos do trabalhador realizam-se dentro das fronteiras da democracia nacional, cujos meios devem ser arrancados a ambos os portadores da sociedade burguesa, ou seja, ao indivíduo e à massa. Naquilo que diz respeito às relações com que se depara uma humanidade decidida à execução de grandes planos, elas estão favoráveis, na medida em que a dissolução, pelo conceito burguês de liberdade, de todos os vínculos criados produziu um estado de terraplanagem que permite traçar transversalmente os novos esboços através das velhas ordens. A dissolução dos antigos valores gerou uma situação em que a intervenção ousada encontra um mínimo de resistência. Por todo o lado onde o mundo sofre, ele atingiu uma constituição em que a faca do médico é sentida como o único meio possível. O plano, tal como emerge dentro da democracia de trabalho, ou seja, dentro de um estado de passagem, mostra-se através das características do acabamento, da flexibilidade e do armamento. Estas características comprovam, do mesmo modo que a palavra “plano” em si,

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que aqui não se pode tratar de medidas definitivas. A paisagem planificada diferencia-se, no entanto, da pura paisagem de oficinas por possuir objectivos solidamente demarcados. Falta-lhe o aspecto de um desenvolvimento sem limites, e falta-lhe também aquele carácter do perpetuum mobile político que constantemente se ergue de novo através do contrapeso da oposição. Uma oposição deste tipo possui aqui tão pouco sentido como pode fomentar os movimentos de um navio de guerra. Nos movimentos políticos do século XIX repete-se continuamente, legitimada pela constituição, a revolução da razão. Dentro da paisagem planificada, este tipo de movimento para diante através do rotativismo apresenta-se como desperdício. A marcha ocorre aqui numa série de etapas que devem ser alcançadas em tempos calculados pelo Estado Maior. Do mesmo modo que os meios que o trabalhador legitima trazem não o carácter de uma disposição, mas um carácter objectivo, assim as tarefas que se dão dentro do plano devem-se reconhecer em elas se deverem precisar de acordo com cifras. Estas tarefas surgem já não da discussão de opiniões, mas do projecto que foi projectado. A unidade de um trabalho que não pertence nem à massa nem ao indivíduo é, através do plano, trazida à intuição de um modo tal que o seu resultado pode ser lido como as horas. É assim tão controlável se algo projectado foi alcançado, como é incontrolável se um advogado também honra verdadeiramente os lugares comuns liberais com que conquistou a opinião pública. 76. O plano está concluído na medida em que o trabalhador, enquanto o campo de actividade que é dado, encontra as estruturas estatais do século XIX, ou seja, a democracia nacional e o império colonial.

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Dentro da sociedade de Estados, formada segundo conceitos liberais, o fenómeno novo da democracia de trabalho desempenha um papel semelhante à construção orgânica do tipo dentro da democracia liberal. Do mesmo modo que o tipo está, à partida, inclinado a formar um Estado no Estado, a democracia de trabalho procura furtar-se às regras do jogo válidas no espaço da política liberal, como as do comércio livre, das decisões de maioria das conferências, das determinações cambiais internacionais que se baseiam em padrões de valor envelhecidos, da argumentação humanitária e, naturalmente, também da herança, deixada pela democracia liberal, em contratos e obrigações. A partir destes esforços dá-se um estado de isolamento que não apenas parece contradizer o princípio de que a figura do trabalhador possui uma validade planetária, mas que também pode ser concebida como um retrocesso diante das formas de comércio habituais entre as democracia liberais. De facto, na passagem de uma fronteira qualquer, Aasvero teria recordado mais as medidas do Estado absoluto que as da democracia liberal. Assim, a vigilância rigorosa dos homens, dos bens, das notícias e dos meios de pagamento recorda a praxis do sistema mercantil ou o procedimento com os passaportes, tais como antes da guerra mundial se podia encontrar apenas na Rússia czarista. É claro que todos estes bloqueios à importação e à imigração, assim como o desejo de se tornar independente dos meios de pagamento internacionais, não se podem associar às leis do pensar liberal. Muito mais digno de nota é, no entanto, o facto de que esta tendência crescente para a autarcia está também em contradição com a instalação dos meios de que o trabalhador dispõe. Esta contradição dissolve-se quando se reconhece que o aparente retrocesso que aqui se realiza tem de ser julgado como aquele modo de retroceder que precede um arranque. Explicam-se assim medidas que não são em si adequadas ao carácter de trabalho, tais

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como o incremento artificial de certos ramos do comércio, da indústria e da agricultura, a construção não económica de frotas aéreas e de navios de grande tonelagem, a produção de bens cuja produção é mais custosa que a compra, e a exportação de outros nas formas envelhecidas da concorrência, contraditórias com a essência do plano. Estas tentativas de realizar uma atitude de vida total em âmbitos delimitados conduzem a uma espécie de economia de fortaleza, cuja visão não é menos admirável que a dos numerosos exércitos que estão fixos, em territórios pequenos e que estejam muito perto uns dos outros, tal como se ofereceu ao viajante do século XVIII. Do mesmo modo que então se podia encontrar por todo o lado uma residência, uma paisagem de parque e uma guarnição forte, encontrar-se-á hoje que nenhum Estado quer renunciar a nenhuma das marcas especiais do carácter total do trabalho. E do mesmo modo que então se ultrapassava a medida das próprias forças, para imitar os grandes modelos, também hoje é este o caso. Aviões, aeronaves, navios com turbinas a vapor, barragens, cidades mecânicas, exércitos motorizados, arenas gigantescas formam a representação do domínio do trabalhador, e o convite para a visita destas instalações corresponde ao convite para a ópera italiana, que o estrangeiro recebia como a distinção de um príncipe absoluto. Deve-se intrometer aqui a nota de que o trabalhador se mostra superior ao conforto que oferece ao seu visitante de um modo que ainda há pouco tempo não era representável, isto é, no espaço do pensar burguês. É uma supremacia mais ou menos como a que o aviador com a Pour le mérite113 possui relativamente ao passageiro da cabina de luxo114 . Há talvez aqui também oportunidade para uma palavra sobre a questão da propriedade privada, que dentro de uma investigação sobre o trabalhador é muito menos digna de tratamento do que, de acordo com o 113

N. do T.: A Pour le mérite era a mais alta distinção por bravura militar do Estado prussiano. Ernst Jünger foi o último alemão vivo a possuí-la, devido à sua conduta na Primeira Guerra Mundial. 114 Cujo bilhete de avião o Estado subvenciona.

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estádio hodierno da ideologia, possa parecer. Pertence às características do estilo de pensar liberal que tanto os ataques à propriedade como as suas justificações se realizem com base num fundamento ético. No mundo do trabalho, no entanto, não se trata de saber se o facto da propriedade é ético ou não ético, mas apenas de se ele pode ser acolhido no plano de trabalho. A propriedade não é aqui nenhuma questão moral, mas uma questão de trabalho, e pode ser possível que seja encaixada numa paisagem planificada, como um bosque ou o curso de um rio numa paisagem de parque. Muito mais importante que a aproximação a qualquer preço a uma dogmática da teoria social é o modo em que o Estado coloca e abarca a propriedade como um facto subordinado. É uma das características da revolução sans phrase que, particularmente em relação à posse doméstica e fundiária, o sentimento de propriedade permaneça mantido, embora o estado em que a propriedade está inserida, no seu conjunto, se tenha modificado fundamentalmente. A medida em que o domínio do trabalhador foi alcançado não se pode reconhecer em “já não haver mais nenhuma propriedade”, mas em também a propriedade se manifestar como um dos caracteres especiais do trabalho. Este é o supremo modo de retirá-la à iniciativa liberal. A valorização da propriedade acontece aqui de acordo com a medida em que esta consegue contribuir para a realização da Mobilização Total. Que é particularmente importante que o singular esteja em situação de obter os meios de transporte e de informação, é evidente. É um dos modos com base nos quais ele se liga “voluntariamente” à rede de trabalho. Além disso, nove décimos de todas as coisas de que o homem moderno dispõe tornam-se logo sem valor, quando se as abstrai da presença do Estado. Isto vale sobretudo para o crescente número de coisas que estão remetidas para uma ligação. Manifesta-se aqui particularmente uma estreita relação ao Estado, e a uma nova economia de Estado, que é peculiar à electricidade. Um velho

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mercenário que tenha participado no saque de Roma admirar-se-ia do pouco que há nas nossas grandes cidades para pilhar. O acabamento da paisagem planificada gera uma série de modelos de Estado que, apesar de serem diferenciados segundo a sua proveniência histórica e a sua situação espacial particular, podem ser reconhecidos como aparentados nas suas marcas essenciais. O número destas unidades não é um qualquer; é limitado por factores determinados. Não menos importante que a vantagem das fronteiras geográficas, como a insularidade, é o dispor de fontes de riqueza natural, como o minério, o carvão, o petróleo e os recursos hidráulicos. Mas o que decide é sobretudo a prova de saber se a raça activa, na qual se representa a figura do trabalhador, está cunhada de um modo suficientemente forte. Esta prova desemboca no mundo dos factos; é assim reconhecida na capacidade de grandes viagens por mar ou pelo ar, de produção de meios de produção, do mais elevado armamento. Pertence também aqui a capacidade do mais intenso equipamento óptico, de tornar visível o muito distante e o muito escondido, da diferenciação dos sons e das cores, da ponderação e medição de pesos atómicos e das velocidades da luz — são âmbitos em que se começa a tornar mais claro um carácter de tabu peculiar da técnica. Não são precisos os dedos de uma mão para contar os Estados que estão preparados para a grande construção de navios, a qual pertence aos símbolos mais convincentes da capacidade de formar um Estado, ou os Estados à disposição dos quais estão, a qualquer hora, aqueles cem mil homens que são os senhores e os mestres dos meios técnicos e em que se corporiza a força de combate mais elevada que a Terra já viu até agora. Observar-se-á cada vez mais claramente que a mera presença da democracia de trabalho, e a pressão para se adequar às formas da Mobilização

Total,

traz

consigo,

para

os

Estados,

encargos

desproporcionados de segunda e terceira ordens. De facto, vemos

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desaparecer sem esperança as ilhas não apenas de uma satisfação determinada, mas também de uma liberdade e cultura115 que, de algum modo, ainda estão em ligação com o mundo da pessoa, e há hoje muitos locais na Europa através dos quais se recorda a visão dos palácios venezianos. Aqui, a capacidade de uma completude real da paisagem planificada é tão dificultada como, durante a guerra mundial, o era a manutenção da neutralidade. Não obstante, também aqui há trabalhos planificados de nível em que, ao mesmo tempo, se poderá reconhecer um certo carácter de neutralidade — refira-se, como um dos mais significativos exemplos do nosso tempo, a drenagem do Zuidersee116. A mesma limitação vale para paisagens em que se reconheceu a necessidade da “apropriação da técnica mecânica”, sem que nelas o tipo activo já estivesse presente com uma força suficiente. O sentido do processo revolucionário que aqui decorre é o de uma submissão voluntária à figura do trabalhador. Que aqui não é ultrapassado o nível passivo, mostra-se concretamente pela pressão de não apenas importar os grandes meios, mas o tipo activo que vigia a sua utilização. O exame decisivo da medida de autarcia real que um poder consegue alcançar está reservado à guerra; aqui torna-se muito rapidamente visível a diferença que existe entre a Mobilização Total e uma mera tecnificação. No entanto, como já foi assinalado, a possibilidade de surpresas não está aqui excluída. Em geral, é preciso proteger-se contra ver este processo no espelho de valorizações que respeitam puramente ao Estado-Nação. É porque o espaço que está atribuído à figura do trabalhador possui um alcance planetário que é digno de louvor que mais áreas deste espaço se tornem condutoras, onde quer que tal possa acontecer.

115

Do mesmo modo, também do literato, político e professor burgueses, nos seus exemplares mais distantes. 116 N. do T.: No ano da publicação de Der Arbeiter, em 1932, o Zuidersee, o Lago de Issel, na Holanda, foi separado do mar, transformando-se em cinco anos num lago de água doce que permitiu a irrigação agrícola das regiões vizinhas.

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O ataque que, dentro das nações, é dirigido contra as classes e os estados, contra as massas e indivíduos, é dirigido também contra as próprias nações, na medida em que estão formadas segundo modelos individuais, “burgueses”, “franceses”. O encerramento do tipo fortaleza que o plano concede ao espaço com que se depara, e mesmo o aumento do próprio nacionalismo, deve-se conceber como uma medida de concentração cuja energia incrementa as carências da nação. Daí que também a representação de uma société des nations, enquanto organização mundial sobreposta, pertença à imagem da sociedade do século XIX. Um ordenamento e subordinação das paisagens planificadas está antes reservada para um plano do Estado de dignidade imperial.

77. A exigência de flexibilidade que, além disso, é feita ao plano é acrescentada na sua necessidade pela decadência da ordem liberal. Esta decadência, que, vista a partir do ponto de vista burguês, se apresenta como perda da segurança e como impossibilidade de manter o velho conceito de liberdade, gerou estados que são muito mais ameaçadores que os de uma crise a ultrapassar. A guerra mundial que pôs o ponto final nesta ordem deixou outras relações, sobretudo na Alemanha, como a Guerra dos Trinta Anos, depois da qual os esforços se orientaram para o cultivo de novas forças de trabalho e para o novo povoamento de regiões mais afastadas. A era da livre circulação e da utilização sem reservas da prosperidade amontoou, numa repartição muito inorgânica, massas humanas que, em cada mudança da situação, são submetidas pela sua propriedade de massa a ameaças particulares. Qualquer movimento propaga-se aqui sem resistência, e a crise assume demasiado facilmente o rosto de uma

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catástrofe. Nesta direcção vai a mutabilidade dos meios que torna incerto qualquer cálculo a longo prazo, seja na medida em que transforma muito rapidamente as relações dentro das terras, ou na medida em que confunde entre si as relações económicas e políticas das terras. Diante destes fenómenos, nada há mais desamparado e mais impotente que a massa de velho estilo, que é encontrada por eles como por um projéctil invisível e, agitação após agitação, cai na armadilha. A crença de que tais estados caem sobre a paisagem, como uma zona de baixa pressão, é ilusória. A velha ordem carece de força de resistência, e não se encontra nela o homem de outro modo senão como sofredor. As massas e as constituições que se concederam são demasiado inábeis para poderem desencadear movimentos de uma velocidade e de uma segurança como os que são exigíveis numa situação perigosa. A massa já não é a grandeza que faz o bom e o mau tempo, mas ela própria está, sobretudo, exposta à intempérie. Daí que a linguagem da agitação, com as suas tempestades artificiais, seja sem significado; tem de ceder a uma linguagem de comando, tal como se pode ouvir dos comandos da proa dos navios. Tal pressupõe que a massa seja trazida a um estado no interior do qual habita a flexibilidade funcional para a execução de tais movimentos — ou seja, que seja transformada numa construção orgânica. Para as medidas que são aqui exigíveis, os meios magníficos fornecem, por um lado, o peso que está à disposição da autoridade real, isto é, da representação legítima da figura do trabalhador; por outro lado, e isto é de longe mais importante, eles são, através da nova representação do homem, apoiados pela felicidade, que já não é vista no desdobramento da existência individual. Esta diminuição da resistência interna, ou seja, no fundo, da liberdade burguesa, através da cristalização da situação atomística, desencadeará forças das quais não se tem ainda hoje nenhuma correcta representação.

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Do mesmo modo que aqui é ganha energia pela eliminação de resistências, é uma pedra de toque decisiva saber se a mutabilidade dos meios pode ser transformada de uma ameaça em nova fonte de força. Tal pode-se reconhecer em esta mutabilidade não conseguir obstaculizar o plano que é superior, mas em ele, pelo contrário, ser capaz de a guiar e de a incluir organicamente em si. Vimos como, dentro da pura paisagem de oficinas, o homem estava submetido a esta mutabilidade dos meios até um grau que possibilitava teorias que o faziam aparecer a ele mesmo como uma espécie de produto industrial. Pelo contrário, já a paisagem de guerra oferece uma imagem de maior acabamento e de uma capacidade de desempenho que é acelerada pela carência. Aqui, na observação do cultivo febril de máquinas de combate ou da substituição artificial de materiais indispensáveis, que acontece com a mesma pressa com que nas fábricas vulcânicas foi forjado para Aquiles um novo armamento117 , torna-se visível em que medida a vontade técnica pode aparecer como a expressão especial da vontade de uma raça superior. Ao estado que a guerra deixou é peculiar uma estranha oposição entre a situação do homem e os meios de que dispõe. Habituou-se-se a ver, em fenómenos como o desemprego, a carência de habitação, a quebra da indústria e da economia, uma espécie de acontecimento natural. Estes fenómenos, no entanto, não são senão sintomas da decadência da ordem liberal. Provavelmente, sentir-se-á logo como um preconceito espantoso que mesmo em continentes ainda muito parcamente povoados, como na Austrália, se possa falar em geral de desemprego; isso lembra os descobridores espanhóis da América, que, no meio da abundância, passavam fome quando os navios de abastecimento vindos da metrópole se atrasavam. Para o plano de trabalho, o trabalho é o elemento que lhe está naturalmente atribuído; 117

N. do T.: Na Ilíada de Homero, Aquiles decide-se a reentrar no combate contra os troianos depois de Heitor ter morto Pátroclo, e de ter arrebatado ao cadáver deste as armas de Aquiles, que Pátroclo envergara durante o ataque. Para tal, Hefesto necessitara de forjar à pressa novas armas para o herói grego.

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pode haver tão pouco falta dele como pode haver falta de água no Oceano. Daí que também o homem não seja supérfluo, mas o mais elevado e mais valioso capital. Tal assinalar-se-á, como se poderia introduzir neste lugar, também em relação à cifra dos nascimentos. Que esta cifra não pode ser identificada sem mais com estados de “civilização”, é mostrado, por um lado, pelo facto de tribos sul-americanas a porem em relação com a grandeza dos desbastes das florestas, enquanto, por outro lado, numa paisagem tão cunhada como a chinesa118, não se pode observar qualquer redução das populações gigantescas. A fonte de riqueza natural é o homem, e nenhum plano de Estado que não consiga captar esta fonte pode estar completo. À substituição da constituição pelo plano de trabalho corresponde um tipo de humanidade que já não se limita em conceder ao homem direitos constitucionais, mas sabe mudar a sua vida de um modo autoritário. Deve-se aqui mencionar particularmente a substituição positiva de medidas de proibição puramente jurídicas pelo cuidado ao qual o Estado está obrigado, sobretudo relativamente às crianças nascidas fora do casamento. Em oposição àquelas fantasias da selecção e da melhoria da raça, que já desempenham um papel nas mais antigas utopias do Estado, é aqui possível uma espécie de cultivo que corresponda ao princípio de que a raça não é senão a última e inequívoca cunhagem da figura. Nenhuma grandeza está mais vocacionada para ela que o Estado — enquanto a mais abrangente representação da figura. A educação de uma espécie humana determinada, cheia de amor e pensada até ao pormenor, em povoamentos particulares, dentro de 118

Na China, vivencia-se já muitas experiências que ainda estão à nossa frente — a configuração harmónica das cidades de milhões e de paisagens inteiras, a suprema utilização da construção agrícola e do jardim, a manufactura típica e de elevado valor, a intensidade e a ausência de buracos da pequena economia. Existem aqui analogias com as formações cunhadas e fechadas dentro das quais habita a possibilidade de uma longa duração. Explica-se assim a relação do rococó com o que é chinês, e é provável e de esperar que também entre nós seja indicada, a uma sinologia empreendida sob aspectos particulares, um espaço maior do que até agora.

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paisagens de mar e de montanha, ou de amplas faixas de floresta, apresenta para a sua vontade de formação uma tarefa suprema. Está aqui a possibilidade de criar, a partir do fundo, uma tribo de funcionários, oficiais, capitães e outros detentores de funções que tenha todas as características de uma ordem, de tal modo que não possa ser pensada de um modo mais unitário e formado. É também este, e não a transplantação de grandes cidades, o caminho mais seguro em que se pode

cultivar

uma

reserva

fidedigna

de

colonos

e

das

suas

companheiras, por princípio dentro ou fora da terra. Recorde-se aqui o papel particular dos cadetes nos velhos exércitos, dos quais o filho do emigrante francês não possuía nenhuma formação diferente da do fidalgo brandenburguês; do mesmo modo, os sinais pelos quais a influência das escolas confessionais já se pode ler nos traços do rosto; além disso, aquelas guardas orientais dentro das quais ninguém possuía conhecimento do pai e da mãe. O princípio de que a família é o fundamento do Estado pertence àqueles princípios que, por causa da sua idade, nunca mais se pôs à prova — no entanto, é suficiente viver algum tempo numa paisagem siciliana, para ver que o vínculo do clã consegue absorver completamente o vínculo estatal. As marchas e as operações, através das quais se realiza a entrada em acção dos homens e dos meios, trazem o selo do trabalho como estilo de vida. Diferenciam-se completamente das afluências desregradas aos distritos do ouro da Califórnia ou das correntes de massa dentro da antiga paisagem industrial ou colonial. Assim, ao processo de povoamento e de transplante, tal como se pode observar na ocupação sionista da Palestina, na abertura dos modernos distritos siberianos ou na criação de grandes áreas de recreio e de desporto, prende-se, desde o início, o carácter do cálculo construtivo. Em oposição à duração da preparação dos dispositivos, as próprias estruturas crescem como por golpes mágicos.

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É tanto o crescente alcance das instalações como o nivelamento dos velhos vínculos que impelem, por si mesmos, a uma concentração e mobilidade da iniciativa cada vez mais fortes. Há cada vez menos medidas — seja a construção de uma única casa — que possam ser pensadas isoladamente. Áreas em que o ponto de vista da rentabilidade tem de retroceder, como a aviação, estão diante de outras que, como a rádio e a electrificação, incidem imediatamente no político — de tal modo que são cada vez menos apropriadas como empreendimentos para sociedades de acções, tais como as que desempenharam um grande papel na construção do caminho de ferro. Preparam-se aqui ataques substanciais ao conceito liberal de propriedade que são muito superiores aos dialécticos. A construção de habitações e de cidades, a questão da energia e do trânsito, a alimentação e os jogos, todos eles incluídos na grande ordem da configuração da paisagem, colocam, por um lado, exigências tão urgentes e tão em mudança, e estão, por outro lado, tão variadamente entrelaçados uns nos outros, que a necessidade de uma regulamentação unitária e planificada se dá por si mesma. No entanto, só sob a influência do Estado é que a dependência funcional destas áreas especiais em relação ao carácter total do trabalho surge claramente. Esta influência não se pode limitar a uma legislação, através da qual a liberdade dos agentes seja delimitada uma contra a outra. Em vez disso, torna precisas acções cujo ímpeto pode alcançar a veemência de ofensivas. Relativamente à relação entre a iniciativa estatal e a iniciativa privada,

dominam

dentro

das

paisagens

planificadas

singulares

concepções de tipo muito variado. Enquanto nas primeiras medidas em que se pode falar de um plano de trabalho neste sentido particular, como no programa alemão de fornecimento de armas e munições de 1916, a iniciativa privada ainda desempenha um grande papel, no primeiro plano quinquenal russo, quase já não há sequer um trabalhador que possa determinar a escolha ou a rescisão do seu local de trabalho por medida

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própria. A execução incompleta e a dissolução da lei do dever de serviço de trabalho constituíram aliás um dos fundamentos da derrota alemã; esta lei afundou-se por o conceito burguês de liberdade ainda estar demasiado vivo. No entanto, onde um radicalismo abstracto e a submissão incondicional da vida à teoria são desconhecidos, pode-se predizer que a quebra completa da iniciativa privada teria exigido uma despesa que nenhum sucesso pode compensar. Em vez disso, vale aqui o mesmo que foi indicado em relação à propriedade privada. A iniciativa privada torna-se inofensiva no mesmo instante em que lhe é assinalada a dignidade de um carácter especial de trabalho — isto é, em que está sob vigilância dentro de um processo mais abrangente. Este procedimento assemelha-se ao de uma silvicultura que dentro da sua cerca também conhece espécies em que o crescimento permanece entregue a si mesmo. Também estas espécies pertencem naturalmente à ordem — sendo pressuposto que por ordem se consegue conceber mais do que um novo tipo de pedantismo de empregados e funcionários ou que uma burocracia instruída que trate com ficheiros. A possibilidade da mobilização dá-se a partir do facto de o Estado representar o carácter total do trabalho — um facto através do qual é dado a qualquer tipo de iniciativa e de propriedade a característica mais ou menos clara de um feudo. De facto, comporta-se-se já hoje, em muitos casos, de tal modo que o proprietário, como o proprietário doméstico, deve ser reconhecido como aquele que é economicamente mais fraco. Do mesmo modo, para se fazer uma imagem desta dependência, tem de se reparar na diferença ainda pouco investigada que existe entre os meios de produção de um nível supremo e de um nível mais baixo — não é decisivo quem dispõe

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da máquina eléctrica ou do automóvel119, mas quem dispõe dos sistemas de barragens e de auto-estradas. Finalmente, é ainda de referir que a movimentação exigível dentro da paisagem planificada pode alcançar um grau que se refere, de algum modo, à anarquia. Estão aqui em vantagem dons dos quais tanto a ousadia dos velhos pioneiros coloniais como também a capacidade de trabalhar com meios provisórios passou para a experiência instintiva. Esta capacidade encontra-se raramente no alemão anterior à guerra, que está demasiado habituado ao solo cultivado e ao bastão dos capatazes instruídos e dos oficiais subalternos, ou seja, de inteligências realizadoras. Está aqui o segredo da velocidade brutal e inesperada com que a América, depois da declaração de guerra, triturou, a partir de solo, exércitos e meios de combate, e está também aqui a explicação de o engenheiro americano se ter mostrado logo como particularmente apto dentro

da

economia

planificada

russa,

enquanto

transformação

gigantesca de um solo natural virgem.

78. Que o plano se apresente como uma medida de armamento, tal surge já da verificação de que o poder tem de ser reconhecido no nosso espaço como representação da figura do trabalhador. Quanto mais inequivocamente esta representação for bem sucedida, tanto mais abrangentemente serão também de pôr em jogo as mais ocultas reservas da vida. O ímpeto deste pôr em jogo aumenta através das características, peculiares à paisagem planificada, da flexibilidade e do acabamento. Entre todas as mudanças que devem ser realizadas no espaço de trabalho, a mudança para o armamento é a 119

Aliás, tem hoje luxo aquele que não está remetido à posse de um automóvel, de um rádio, de um telefone. Este é o tipo de luxo que dentro de uma democracia de trabalho se tornará cada vez menos consentido.

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mais significativa. Tal explica-se a partir de o mais secreto sentido do tipo e dos seus meios estar dirigido para o domínio. Não há aqui nenhum meio, por especial que seja, que não seja, ao mesmo tempo, meio de poder, isto é, expressão do carácter total do trabalho. Esta relação ressalta no esforço de guerra de se apoderar de todas as áreas, também daquelas que aparentemente lhe estão mais distantes. De modo semelhante à diferença entre cidade e campo, tornase aqui menos importante a diferença entre a frente e a pátria, entre o exército e a população, entre a indústria e a indústria de armamento. A guerra, enquanto elemento originário, descobre aqui um novo espaço — descobre a dimensão particular da totalidade que é atribuída aos movimentos do trabalhador. Os perigos que este processo esconde em si são conhecidos. É escusado gastar palavras sobre a tentativa de se preservar através de meios liberais, ou seja, através do apelo aos homens racionais-virtuosos. Para os enfrentar com eficácia, são exigíveis novas ordens. O grau em que já está penetrada pela consciência a possibilidade de tais ordens, deixa-se observar no esquema que determina a condução da negociação da conferência de desarmamento120 . O entendimento realiza-se aqui em três planos de dificuldade crescente. Reina a unanimidade relativamente à afirmação da paz, para a qual estão reservados os discursos de inauguração e de encerramento. Num segundo plano, ocorre a discussão sobre o modo e o alcance dos meios de poder pessoais e maquinais abertamente destinados à guerra. Deve-se aqui diferenciar entre as possibilidades do desarmamento total e do desarmamento parcial, mais ou menos abrangente, que se pode referir tanto à qualidade como à quantidade dos meios. A tarefa da condução da negociação consiste aqui, para o parceiro singular, na obtenção de uma relação o mais favorável possível relativamente ao 120

N. do T.: Jünger refere-se à conferência sobre o desarmamento que decorreu em Genebra no mesmo ano da publicação de Der Arbeiter, em 1932, sob os auspícios da Sociedade das Nações.

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abastecimento da energia formada. A escolha do ponto de vista e da dialéctica aplicada depende de se esta relação favorável deve ser alcançada o mais seguramente possível através do aumento ou da diminuição, ou seja, através do rearmamento ou do desarmamento. Deve-se ter agora em atenção que se trata aqui da discussão sobre os meios de poder aos quais são peculiares as características do carácter especial do trabalho. Daí que seja erróneo acreditar que o chamado desarmamento total consiga de algum modo restringir o perigo de guerra. É antes inteiramente possível que aumente este perigo, na medida em que as energias que são cortadas do balanço do carácter especial do trabalho não desaparecem sem vestígio, mas afluem ao carácter total do trabalho como uma potência suprema e criadora. Encontramos

aqui

a

explicação

do

facto

de

a

exigência

de

desarmamento total ter sido levantada precisamente pelas potências no interior das quais já há uma relação avançada com a Mobilização Total, ou seja, com a mobilização do trabalho. Daí que, no ano de 1932, o ponto de vista da Rússia ou da Itália121 tenha tido necessariamente de se diferenciar do da França, enquanto potência na qual o conceito burguês de liberdade ainda está sobretudo vivo. O debate atinge pontos de uma inexcedível maldade, quando uma potência de trabalho precisa as suas exigência de desarmamento em formulações humanitárias a um Estado liberal, no qual a opinião pública ainda é uma grandeza. Aqui, o confronto toca a última e a mais concreta camada do poder que possui uma referência imediata à grandeza a legitimar, à metafísica, ou seja, à figura do trabalhador — e é isto que eleva este confronto a um espectáculo maximamente tenso, maximamente peculiar, quando o olhar penetra os seus invólucros retóricos e aritméticos. Confirma-se aqui, no espaço de um novo mundo, o facto imutável de as intenções e as forças fundamentais da vida se terem furtado a qualquer 121

N. do T.: É de notar que aqui Jünger assinala explicitamente os regimes concretos que se ligam privilegiadamente ao “carácter total do trabalho”: o regime fascista italiano e o regime soviético russo.

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zona dentro da qual apenas possa ser vista a possibilidade de um entendimento. Na prática, tal expressa-se na dificuldade de encontrar padrões pelos quais possa ser tocado o carácter total do trabalho. Podese assim “entender-se” tanto em relação à proscrição da guerra de gás como também em relação ao armazenamento de gases venenosos, mas não em relação ao estado da química ou à investigação de laboratório que é realizada em espécies de pinheiros ou em ratinhos brancos. Podese desmantelar o exército, mas não o facto de a vontade de formação de ordens de tipo militar atingir populações inteiras — e talvez tão mais seguramente quanto mais fortemente for cortado o armamento especial de guerra. Estes fenómenos, que se deixam ilustrar de um modo qualquer, podem ser concebidos como a consequência da relação modificada ao poder. No século XIX, como vimos, possuía-se poder na medida em que se possuía uma referência à individualidade e, assim, à dimensão do universal que é atribuída à individualidade. Daí que a realização do conceito burguês de liberdade, ou seja, a libertação do indivíduo face aos vínculos do Estado absoluto, tenha precedido qualquer medida eficaz de armamento, qualquer organização do exército — um acto sem o qual são impensáveis os exércitos de massas do dever militar universal. No século XX, pelo contrário, possui-se poder na medida em que se representa a figura do trabalhador e, assim, se ganha acesso à dimensão do total que está atribuída a esta figura. A esta diferença corresponde uma diferença de armamentos; e, de facto, pode-se observar aqui uma afluência de energias que trai a presença de um espaço de tipo novo. Este espaço era desconhecido para o século XIX, pois não é o indivíduo que possui a chave para ele, mas apenas o tipo ou o trabalhador. Daí que se tivesse o sistema do dever militar universal como um aumento inexcedível do carácter militar. Os movimentos que este sistema possibilita, no entanto, relacionam-se com os da Mobilização Total, tal como os movimentos que estão num plano se relacionam com

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os que são possíveis no espaço. Este tipo de mobilização capta não apenas a plenitude das reservas humanas e materiais num conjunto unitário, mas mostra-se também através da mutabilidade, através da flexibilidade do pôr em jogo dos homens e dos meios. Neste espaço, o exército de guerra e o arsenal de guerra surgem como as cunhagens especiais de um carácter de poder sobreposto; do mesmo modo, o serviço militar aparece como o caso especial de uma relação de serviço de um tipo mais abrangente. Do mesmo modo que o ataque já não procura alcançar as frentes no sentido antigo, mas, com meios variados e não apenas especificamente guerreiros, as profundezas do espaço com as suas instalações e populações, as contramedidas já não se apoiam apenas no exército, mas na articulação planificada da energia no seu conjunto. Daí que sejam possíveis casos em que o exército é sacrificado para que seja ganho tempo para a Mobilização Total. A mobilização pelo dever militar universal é então rendida pela Mobilização Total ou Mobilização de Trabalho. Mostra-se assim, como sucessor do dever militar universal, um dever de serviço de trabalho abrangente, que se estende já não apenas aos homens capazes de pegar em armas, mas à população no seu conjunto e aos seus meios, e em cuja realização vemos operar as grandes potências históricas. O significado deste tipo de dever de serviço corresponde ao significado das diferentes reorganizações do exército através das quais o século XIX é conduzido. A sua realização só pode ser bem sucedida na medida em que existe referência à figura do trabalhador; é o dote do trabalhador para o Estado. As medidas práticas alcançaram em muitos lugares o estádio do experimento, que aqui é atacado por forças voluntárias, ali já pelo próprio Estado, enquanto em outros lugares a carência aparece como uma mestra intransigente. As dificuldades que se devem superar estão menos na coisa que na penetração das ordens em que o conceito liberal de liberdade se abateu. Assim, não pode suscitar admiração que a

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resistência que é encontrada se sirva tanto de formulações individualistas como também de formulações sociais — ou seja, de um e do mesmo esquema fundamental que se tornou insignificante. Em todo o caso, a introdução do dever de serviço de trabalho já não pertence ao reino das utopias. Isto salienta-se, como em muitos factos, também na mudança que se começa a mostrar em relação à manobra. A grande manobra já não aparece, neste espaço, apenas como um exercício militar de guerra, mas como uma combinação dos caracteres especiais de trabalho no quadro de um plano em que estão envolvidas, em igual medida, reservas “civis” e militares. Deve-se aqui mencionar a colocação da indústria, da economia, da alimentação, do comércio, da administração, da ciência, da opinião pública como uma questão técnica — numa palavra: de qualquer meio especial da vida moderna num espaço fechado e elástico, dentro do qual se manifesta o carácter de poder comum a estas áreas. Observamos, enquanto manobra parcial, aqueles alarmes aéreos e de gás aos quais, em diferentes terras, já se submete o pessoal de fábricas industriais ou também inteiros bairros e povoações. À ameaça de extensas zonas pelos meios de aniquilação total corresponde a advertência pelos meios de informação total, tal como acontece através da rádio e de grandes instalações de altifalantes. Parece aqui possível, num espaço modificado, o regresso da imagem medieval de uma população “sair das casas”, tal como a vida em geral se começa a afastar muito depressa dos espaços abstractos, e começa a gerar situações muito concretas, muito imediatas. O serviço de trabalho — quer se estenda periodicamente por todas as idades da vida, quer compreenda, numa secção temporal, como num ano de serviço de trabalho, os dois níveis da formação para o trabalho: o inqualificado (passivo) e o especializado (activo) — possui uma dignidade tanto prática como simbólica.

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Corresponde à legalidade válida no espaço total que possa surgir como desempenho económico, na medida em que também a economia pertence aos meios especiais de poder. Nas suas tarefas mais significativas, para cuja solução põe em acção inteiros exércitos de trabalho, torna visível a unidade de um trabalho que não pertence nem à massa nem ao indivíduo. É assim a mais clara expressão da nova relação do tipo e das suas formações ao Estado. Redescobrir-se-á aqui, numa medida crescente, o papel que estava atribuído ao dever de serviço militar universal relativamente à educação, à penetração e disciplina unitária, numa palavra, à cunhagem da população de acordo com a sua raça. É uma escola em que se deve tornar visível para o homem o trabalho como estilo de vida, o trabalho como poder. Diante disso, as questões económicas surgem apenas em segundo plano. Por último, também se deve esperar que tenha sido expulsa uma arrogância tola que levou a ver no trabalho manual um estado digno de compaixão. Esta arrogância é a consequência natural de um conceito abstracto do trabalho, puramente económico; a ela corresponde a infeliz figura daquele que é “formado”, que nunca teve a sorte de ter estado ao serviço numa qualquer área desde o início. Qualquer tarefa manual, mesmo limpar os estábulos dos cavalos, possui dignidade na medida em que não é sentida como trabalho abstracto, mas é desempenhada dentro de uma ordem grande e com sentido.

79. É então de contar por largo tempo com um estado em que os Estados-Nação e os Impérios nacionais de velho estilo estejam ocupados em chegar àquela nova constituição que se expressa na construção orgânica da paisagem planificada.

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Já a palavra plano indica que se trata aqui de uma paisagem modificada — a este facto corresponde a mutabilidade dos meios e a cunhagem de uma nova raça que observámos nos seus pormenores. Do mesmo modo, não se prende às três características do plano — o acabamento, a flexibilidade e o armamento — nenhum carácter definitivo, mas um carácter de concentração e de marcha. Por causa do perigo que está dentro deste estado suportámos já algumas provas — provas ainda vivas entre nós, em que o sentido suicida e traidor das tentativa de executar uma política liberal de avestruz se tornou visível de um modo suficientemente claro. Uma das perspectivas mais desagradáveis consiste sem dúvida na possibilidade da violentação de povos pequenos e fracos, enraizados no seu velho solo natural, por potências de segunda ordem, que se servem de meios superiores sem conhecer a responsabilidade que está incluída no seu emprego. Tanto mais é de esperar que se salientem potências às quais esteja dada a capacidade de formações imperiais genuínas, dentro das quais possa ser assegurada protecção e se possa falar de um tribunal mundial, cuja triste farsa a Sociedade das Nações hoje representa. Por outro lado, não se pode descurar que este estado, que obriga a estar pronto, contém em si também certas garantias. É assim que o acabamento das paisagens planificadas gera um desejo particular de evitar o conflito internacional: não é com gosto que se é perturbado na marcha. O enredo guerreiro apresenta-se, neste medium, como a pressão para uma entrega indesejada de energia já formada, que é retirada ao processo de um desdobramento mais abrangente do poder. Além disso, parece completamente possível que a difusão dos grandes campos de força consiga formar uma espécie particular de “guerras sem pólvora” — certamente que não no sentido de representações de algum modo

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sublimadas, mas no sentido de a gravitação do carácter total do trabalho tornar supérfluo o emprego de meios de combate especiais. Explicam-se neste contexto as modernas descobertas de comunidades de interesses, de espaços geopolíticos e de possibilidades federativas, em que se pode ver um ataque à articulação do EstadoNação e uma tentativa de preparação construtiva de espaços imperiais. Atrás destas possibilidades esconde-se um facto de uma espécie muito mais poderosa e abrangente: o facto de, partindo do nível supremo, ou seja, da figura do trabalhador, as paisagens planificadas singulares aparecerem como áreas especiais em que se realiza um e o mesmo processo fundamental, independentemente do seu acabamento. O objectivo em que se encontram os esforços consiste no domínio planetário enquanto símbolo supremo da nova figura. Só aqui é que repousa o padrão de uma segurança sobreposta que abrange todas as etapas de trabalho, guerreiras e pacíficas.

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CONCLUSÃO

80. A entrada no espaço imperial é precedida de uma provação e de um endurecimento das paisagens planificadas, que ainda hoje não se podem representar. Desencadeamos aqui coisas espantosas. Para além da democracia de trabalho, em que o conteúdo do mundo nosso conhecido é transvazado e reelaborado, mostram-se os esboços de ordens do Estado que estão fora das possibilidades de comparação. Pode-se, no entanto, prever que aqui já não se falará nem de trabalho nem de democracia no sentido que nos é habitual. A descoberta do trabalho enquanto elemento de plenitude e liberdade está ainda iminente; do mesmo modo, muda-se o sentido da palavra democracia, quando o solo mãe do povo aparecer como portador de uma nova raça. Vemos que os povos estão a trabalhar, e saudamos este trabalho onde quer que seja desempenhado. O combate autêntico vale como a descoberta de um novo mundo desconhecido — como uma descoberta mais aniquiladora e, consequentemente, mais rica que a descoberta da América. Não é senão com emoção que se pode observar o homem, tal como está ocupado, no meio de zonas caóticas, a forjar armas e corações, e tal como sabe renunciar à saída da felicidade. Tomar parte aqui e servir: tal é a tarefa que é esperada de nós.

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SINOPSE

Primeira Parte 1. A era do terceiro estado foi uma época do domínio aparente. 2. O esforço de perpetuar esta era expressa-se na transferência do modelo burguês para os movimentos do trabalhador. 3. Correlativamente, o trabalhador é visto como o portador de uma classe particular ou de um estado particular, 4. como o portador de uma “nova” sociedade 5. e como o portador de um mundo em que economia e destino significam o mesmo. 6. A tentativa de procurar o trabalhador num plano mais elevado e abrangente do que aquele que o burguês em geral consegue representar 7. só pode ser ousada quando se adivinha, atrás do seu aparecimento, uma grande figura, autónoma e independente, que se submete a uma legalidade própria e diferente. 8. Como figura assinalamos uma realidade suprema, dadora de sentido. Os fenómenos são significativos como símbolos, representantes e cunhos desta realidade. A figura é uma totalidade que abrange mais que a soma das suas partes. A este mais chamamos totalidade. 9. Ao pensar burguês não está dada uma relação à totalidade. Consequentemente, também só foi capaz de ver o trabalhador

como

fenómeno

ou

como

conceito



como

uma

abstracção122 do homem. O acto autenticamente “revolucionário” do trabalhador, pelo contrário, consiste em reivindicar a totalidade, na medida em que se concebe como o representante de uma figura 122

Possui-se uma relação concreta ao homem quando se sente a morte do seu amigo ou do seu inimigo fulano mais profundamente que a notícia de que, numa inundação do Hoang-Ho, se afogaram 10.000 homens. A história da humanidade abstracta, pelo contrário, começa com considerações do tipo: se é menos ético matar um inimigo concreto em Paris ou um mandarim desconhecido na China, ao premir um botão.

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sobreposta. 10. O “ver” de figuras123 possibilita a revisão de um mundo do espírito que se tornou senhor de si mesmo através de um ser unitário. 11. Tanto a dignidade do singular como também das comunidades depende da medida em que neles se representa a figura. Uma contraposição da massa e do singular, ou da iniciativa “colectiva” e “pessoal”, relativamente ao valor, é insignificante. 12. Do mesmo modo, enquanto ser em repouso, a figura é mais significativa do que qualquer movimento através do qual dê testemunho de si. A observação do movimento enquanto valor, enquanto “progresso”, pertence à era burguesa. 13. O trabalhador mostra-se através de uma nova relação ao elementar. Daí que disponha de reservas mais poderosas do que o burguês, que conhece a segurança como um valor supremo e se serve da sua razão abstracta como meio que deve assegurar esta segurança. 14. O protesto romântico não é outra coisa senão uma vã tentativa de fuga do espaço burguês. 15. O trabalhador substitui o protesto romântico pela acção no espaço elementar, no qual doravante se manifesta muito claramente a insuficiência da segurança burguesa. 16. O trabalhador mostra-se, além disso, através de uma nova relação à liberdade. A liberdade só pode ser sentida quando se possui parte numa vida unitária e com sentido, 17. como se nos torna claro, temporalmente, na recordação de grandes potências históricas 18. ou, espacialmente, para além do jogo e contra-jogo dos meros interesses. 19. O espaço de 123

O grau em que foi bem sucedida a captação de conceitos orgânicos como “figura”, “tipo”, “construção orgânica”, “total”, pode-se testar na medida em que, com estes conceitos, se pode proceder segundo a lei do selo e do cunho. O modo de emprego não é então plano, mas “vertical”. Assim, qualquer grandeza dentro da hierarquia “tem” figura e é, ao mesmo tempo, expressão da figura. Neste contexto, dá-se também uma elucidação particular da identidade de poder e representação. Reconhece-se aliás o conceito orgânico em conseguir desdobrar uma vida própria, ou seja, em conseguir “crescer”. Todos estes conceitos existem notabene para conceber. Não é deles que se trata. Eles podem sem mais ser esquecidos ou postos de lado, depois de, enquanto grandezas de trabalho, terem sido utilizados para a captação de uma determinada realidade que existe apesar e para além de qualquer conceito. Esta realidade é também completamente para distinguir da sua descrição; o leitor tem de ver através da descrição como através de um sistema óptico.

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trabalho é igual a todos os grandes espaços históricos; nele surge a reivindicação de liberdade enquanto reivindicação de trabalho. A liberdade é aqui uma grandeza existencial; isto é, dispõe-se da liberdade na mesma medida em que se é responsável pela figura do trabalhador. 20. O sentimento crescente por este tipo de responsabilidade anuncia realizações extraordinárias. 21. O trabalhador mostra-se finalmente através de uma nova relação ao poder. O poder não aparece aqui como uma grandeza “flutuante”, 22. mas aparece legitimado através da figura do trabalhador, ou seja, é representação desta figura. A legitimação mostra-se ao conseguir colocar ao serviço uma nova humanidade 23. e novos meios. 24. O pôr em acção destes meios, que só estão à disposição do trabalhador, é facilitado através de extensos estados de anarquia que uma “validade universal” deixou atrás de si. 25. Deve-se reparar particularmente que a figura está sobreposta aos questionamentos dialécticos, 26. relativos ao desenvolvimento 27. e ao valor, e não pode ser captada por eles. Segunda Parte 28. O princípio que está atribuído ao trabalhador, ou a linguagem do trabalhador, não é de uma natureza universal-espiritual, mas de uma natureza objectiva. É o trabalho como modo de vida que começa a formar um estilo particular. 29. A observação deste modo de viver particular é importante na medida em que se realiza num medium que muda muito. 30. Já numa observação fugaz do espaço de trabalho impõe-se entretanto a imagem de uma legalidade diferente. 31. Esta legalidade inclui em si um ataque à existência do indivíduo, 32. ataque que já se tornou muito claro nos campos de batalha modernos. 33. Tornou-se aqui também visível, pela primeira vez, uma nova espécie humana que deve ser assinalada como tipo. 34. O ataque contra o indivíduo estende-se também à massa, enquanto forma social em que o

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indivíduo se concebe. 35. Do mesmo modo que o tipo ou o trabalhador surge no lugar do indivíduo burguês, a massa é substituída pela construção orgânica. 36. O tipo cunha-se, nas suas características exteriores, como a fisionomia, o vestuário, 37. a atitude 38. e o gesto, 39. numa inequivocidade crescente, que deve ser à partida vista, mas não avaliada. 40. O burguês possui dignidade na mesma medida em que possui individualidade. 41. O tipo, que já não reivindica esta diferenciação, 42. e que não é caracterizado pela vivência única, mas pela vivência inequívoca, 43. possui dignidade na medida em que é corporizada através dele a figura do trabalhador. 44. Chamamos técnica ao modo em que a figura do trabalhador mobiliza o mundo. 45. Ela inclui em si o ataque contra os sistemas históricos 46. e contra as potências de culto 47. como um meio aparentemente neutro que, no entanto, sem contradição, está à disposição apenas do trabalhador. 48. A técnica não é o instrumento de um progresso ilimitado, 49. mas conduz para um estado completamente determinado e inequívoco 50. que se mostra através de uma crescente constância e perfeição dos meios, que corre em paralelo com a formação de uma nova raça, 51. mas que não pode ser alcançado arbitrariamente. 52. Vivemos antes ainda num mundo em grande mudança, 53. que, no entanto, se começa a destacar do carácter explosivo-dinâmico da paisagem de oficinas anterior, através de uma elevada planificação e calculabilidade dos processos. 54. Também onde a técnica transmite os manifestos meios de poder, 55. só é possível uma conclusão do armamento 56. quando o trabalhador o retirar à pura concorrência e iniciativa dos Estados-Nação, e quando estabilizar e legitimar os meios revolucionários e em movimento. 57. Isto só é possível quando se servir dos meios que só a ele estão atribuídos não num sentido liberal, mas no sentido de uma raça superior. 58. A actividade de museu 59. é a característica de uma força vital enfraquecida 60. e uma das evasivas diante de uma realidade

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completamente perigosa. 61. O trabalhador já não possui mais nenhuma referência a uma empresa cultural que tem o seu ponto culminante no culto do génio. 62. A configuração do mundo do trabalho, como cujo supremo objectivo se salientará a grande configuração do espaço, exige padrões diferentes. 63. São padrões não individuais, mas típicos, aos quais o domínio do trabalhador proporcionará validade, 64. e em relação aos quais se deverá descobrir variadas analogias tanto na paisagem natural 65. como também nas grandes paisagens culturais. 66. O mundo técnico não está em oposição a esta configuração, mas é colocado ao serviço, sem contradição, por ela, 67. como se mostrará, de um modo cada vez mais claro, no contexto da perfeição dos meios e da cunhagem de uma nova raça. 68. O nacionalismo e o socialismo devem ser reconhecidos como princípios que são peculiares ao século XIX. 69. As ordens da democracia nacional arrastam estados de anarquia mundial, na mesma medida em que ganham em validade universal. 70. Do mesmo modo, o socialismo é incapaz de realizar ordens válidas. 71. Ambos os princípios estremecem em si mesmos, na medida em que qualquer poder que seja se serve das suas regras de jogo. 72. A entrada do domínio do trabalhador mostra-se na rendição da democracia liberal ou social pela democracia de trabalho ou democracia do Estado. 73. Esta rendição acontece através do tipo activo que se serve das formas da construção orgânica, em particular da ordem. 74. O tipo dispõe da opinião pública porque a domina no sentido de uma tecnicidade superior. 75. No lugar das constituições burguesas, surge o plano de trabalho, no qual se podem colocar as exigências do 76. acabamento, 77. flexibilidade 78. e armamento. 79. Estas características são características de passagem, com a ajuda das quais é preparado o domínio planetário da figura do trabalhador dentro da multiplicidade dos espaços históricos. 80. Nos esforços dos povos que estão ocupados com a transformação das

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democracias nacionais em Estados de trabalho mostra-se já a participação futura neste domínio.