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Portuguese Pages [155] Year 1973
Margaret Mead James Baldwin
OS AUTORES:
MARGARET MEAD
Polémico ou inconformista são qualificações que se justificam para os livros desta colecção. Livros discutíveis, portanto. Livros que não foram escritos para agradar a este ou àquele leitor. Que abrem portas. Que fazem pensar e repensar. Livros para quem não possui uma resposta para todas as perguntas, para todas as dúvidas.
Margaret Mead nasceu em Filadélfia em 1901, e estudou no Barnard College e na Universidade de Colúmbia, onde se licenciou em Antropologia. Em 1926 passou a pertencer à direcção do American Museum of Natural History, e começou uma longa série de estudos em düerentes partes do Pacifico. Desde então dedicou-se intensamente ao estudo da evolução cultural do homem. Já tinha estudado a adolescência em Samoa; em 1928-1929 fez estudos sobre a infância· entre os Manus, seguidos por estudos das diferenças entre os homens e as mulheres e o desenvolvimento. infantil noutras tribos da Nova Guiné. Publicou então Sex and Temperament in Three Primitive Societies, em 1936, e Male and Female, em 1949. De 1936 a 1939 fez estudos semelhantes em Bali. A partir de 1939 dedicou os dez anos seguintes aplicando um critério antropológico primeiro aos problemas do tempo de guerra e depois à exploração das culturas contemporâneas. Em 1953 voltou a conviver com os Manus, para registar o dramático progresso do pós-guerra da comunidade que ela tinha estudado em 1928 e descrito em N ew Lives for Old. Em junho de 1969, Margaret Mead foi nomeada curator emeritus de Etnologia do American Museum of Natural History. Tem continuado a ensinar Antropologia na Universidade de Colúmbia e no Departamento de Psiquiatria do Medical College da Universidade de Cincinatti. E também presidente da Secção de Ciências Sociais do Fordham's New Liberal Arts College, em Lincoln Center. Além da presente obra, Publicações Dom Quixote editou já outro livro da autora: O Conflito de Gerações (colecção «Diálogo», n." 11).
MEAD E BALDWIN
JAMES BALDWIN
James Baldwin é. talvez o escritor negro americano mais conhecido · internacionalmente. Filho de um pastor baptista, nasceu a 2· de Agosto de 1924, em Harlém, o conhecido bairro negro de Nova Iorque, aí vivendo até aos 18. anos. Em 1942 abandonou a casa paterna, após concluir estudos secundários. A partir daí começa a partilhar a· sua vida entre vários ofícios e a literatura, colaborando nos jornais The Natión e The New Leader. Durante cinco -anos vive em Greenwich Village, o Saint-Germain-des-Prês nova-iorquino, onde convive com Richard Wright, o mais famoso escritor .negro dessa época,. que o incita a dedicar-se à actividade literát:ia. Em 1948 instala-se em Paris; Este exílio voluntário é-lhe material e moralmente penoso. Muitas vezes, sem recursos mas evitando recorrer a compatriotas seus, James Baldwin passa fome .e sofre os efeitos da solidão. Salva-o o encontro com Norman Mailer e James .Jones. E no decurso da sua .permanência em Paris que publica os seus primeiros livros Go tell. it on the Mountain (1952) e Notes of a Native Bon (1955), acolhidos entusiàsticamente pela crítica american~. Regressa aos Estados Unidos ein 1957. O seu livro The Fi r e N ext Time ( 1963), uma recolha de artigos polémicos, · vai consagrá-lo à escala internacional, sendo traduzido em numerosos países. Entretanto, escreve várias peças de teatro, com destaque para Blues for Mister Charlie ( 1964), encenada por Elia Kasan. Participou activamente no movimento anti-segregacionista ·e na defesa dos direitos cívicos dos negros americanos, fazendo parte da comissão nacional do Congresso para a Igualdade Racial (C. O. R. E.). Tell me how long the Train)s been gone (1968) e No Name in the Btreet (1972) contam-se entre as suas obras mais recentes.
O RACISMO AO VIVO
PUBLICAÇÕES· D. ·QUIXOTE
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FICHA:
©
J. B. Lippincott ,company, 1973.
Titulo original: A Rap on Race. Editor original: J. B. Lippincott Company, Filadélfia e Nova
Iorque, 1971.
NOTA DO AUTOR Tradutor: Hélio Alves. Capa e orientação gráfica: Fernando Felgueiras.
Todos os direitos para Portugal reservados por Publicações Dom Quixote, Rua Luciano Cordeiro, 119- Lisboa
Margaret Mead e James Baldwin encontraram-se pela primeira vez na noite de 25 d'e Agosto de 1910. Para trocar as primeiras imprressões, estiveram juntos aproximadamente uma hora. Na noite seguinte começaram a discussão sobre o racismo e a sociedade. Continuaram depois na manhã seguinte e wirula nessa mesma noite. No total a conversa durou aproximadamente sete horas e meia. Foi gravada, e este livro, O Racismo ao Vivo, é a transcrição dessa gravação.
26 DE AGOSTO 8 HORAS DA NOITE
Baldwin: Toda a gente sabe perfeitamente há quanto
tempo é que os negros cá estão. Toda a gente sabe em que medida é que os negros pertencem já ao povo americano e à vida americana. Nada disto é segredo. Nem sequer se trata de uma questão de ignorância por parte dos brancos. É antes uma questão de medo dos brancos.. M ead: Sim, eu sei. Baldwin: É por isso que tudo se torna tão histérico, tão caótico e tão completamente irremediável. Não se pode chegar lá pela razão. :JP como se todo o corpo estivesse numa ferida enorme, enormíssima, que ninguém se atreve a operar: a fechá-la, a examiná-la,. a cosê-la. Mead: Olhe, uma coisa que me tem interessado, ao ler o seu trabalho, é quando falava da América como caso absolutamente único, e, claro, quando diz que não há «negros» fora da América. Eu sei . exactamente o que quer dizer. Isso é verdade. Mas você nunca fala da África do Sul. Baldwin: Nunca falo da África do Sul porque, em verdade, não sei nada da sociedade sul-africana. Nunca estive na África do Sul. Já estive com 11
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alguns sul-africanos, de alguns dos quais gostei e doutros não. M ead: Mas, sabe, un1a coisa curiosa é que tenho notado nas vozes de sul-africanos brancos, quando dizem «O meu país», as mesmas coisas que noto na sua quando você diz «Sou americano». Baldwin: Mas isso também tem a sua lógica. Embora essa lógica seja perfeitamente hedionda. Mas não me custa compreender isso, pois que, ao fim e ao cabo, os sul-africanos brancos são uma minoria na África do Sul. Mead: E não têm outro lar. Baldwin: Estão lá para baixo,, no cabo do mundo, sem nada em frente deles a não ser o mar. Se- não se trata aqui de se, qu.ando- o holocausto chegar não haverá ninguém que os ajude. Mead: Ê isso. Isolaram-se a eles 1nesmos. Baldwin: Isolaram-se completamente. É uma das coi.. ~as mais trágicas que há no mundo, um dos grupos de pessoas mais trágicos que há no mundo, porque não há esperança para eles. E quando eles \dizem «é o meu país», acho que sei o que eles querem dizer. Querem dizer que nasceram lá; querem dizer que sofreram e morreram pela terra·em muito semelhante aos brancos do Sul. E do mesmo modo tão enganados como estes brancos do Sul, pois que ao pintarem o quarto ficaram num canto sem saída. Estão num continente absolutamente hostil. No seu próprio país encontram-se cercados e esmagados em número pelos negros. E o regime branco sul-africano, que poderá durar talvez dez - no máximo vinte e cinco -
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anos, está àbvian1ente condenado. Todo o 1nodo de viver, todo um modo viver está condenado. O· que significa que algures - era aqui que eu queria chegar - , algures, aconteceu um dia qualquer coisa aos brancos, não sei o que fosse, que lhes ditou o sentido das realidades, que eles agora têm. Tem qualquer coisa a ver ·com o modo como aprendem a religião, seja o que isso for, na realidade. Mas é um assunto muito complexo. Mead: Lembro-me de um rapaz cujo pai casou novamente, casou com uma mulher que tinha um filho quase da mesma idade. Não havia relação de parentesco entre eles, claro; eram meio-irmãos. E então o pai e a mãe, o pai do primeiro rapaz e a mãe do segundo, tiveram um filho. E o primeiro rapaz disse: - Já sinto agora as coisas de um modo diferente. Temos um irmão em comum. Baldwin: Ah, mas isso faz uma diferença muito grande. Mead: E'stá a ver, isto é verdade em certa medida. Porque, que eu saiba- e isto é o máximo que um branco pode dizer nos Estados Unidos-, que eu saiba, não tenho qualquer ascendência negra. Mas você tem qualquer coisa de ascendência branca. Baldwin: Sim, sim. M ead: Portanto temos um irmão em comum. Baldwin: Portanto temos um irmão em comum. Mas não estará a tragédia relacionada em parte com o facto de que a maioria dos brancos renega o seu irmão? M ead: Bem, há duas espécies de tragédia, e eu acho que isso ,é uma das coisas que temos de esclarecer. Existe a tragédia de renegar o seu irmão
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quando existe um laço ancestral que vem desde há, pelo menos, dez mil anos ou talvez de há cem mil anos atrás. Quero eu dizer com isto que a minha relação com alguém da Nova Guiné e a sua relação com alguém da Nova Guiné já é de há milhares de anos, embora sejamos todos seres humanos e pertençamos todos a uma mesma espécie. É este um dos tipos de relação a que se pode chamar de irmão para irmão. O outro tipo de relação deste género é quando as pessoas têm sido tão unidas que se relacionem realmente quando se fala no sentido de relações de sangue. Baldwin: É isso que eu quero dizer no caso do americano negro a quem chamam preto ou negro. M ead: É isto que sucede neste país, está a ver. Mas . neste país a relação é muito estreita. Baldwin: É verdade. Mead: E é de outro tipo. Baldwin: Bom, estou aqui a pensar. Talvez seja uma ideia estranha, mas não consigo meter-me na ' cabeça de, digamos - estamos a falar de generalidades tão horríveis,. a falar de brancos e ne' gros - , mas não consigo meter-me na cabeça de ' um branco, digamos, que sabe muito bem que tem um filho ou uma filha ou um irmão que é legalmente negro. Ele sabe-o - não é nada que ele não saiba - e finge que não é assim. M ead: No Sul não fingiam que não era assim. Baldwin: Toda a gente o sabia. M ead: Olhe, aqui há uns anos aconteceu uma coisa no Sul que me interessou muito. Na Jórgia elegeram a primeira negra - de entre os primeiros candi-
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datos negros em cinquenta anos -para a legislatura do estado. Chama-se Grace Towns Hamilton, descendente do antigo governador do estado, Towns. E o pai dela, George Towns, leccionou na Universidade de. Atlanta. Por isso, quando era mais nova era conhecida pelo nome· de solteiraGrace Towns. Ê muito alta, esguia de membros, com o tipo de estilo de mulher inglesa da classe superior. E no dia em que entrou na legislatura, onde está o retrato do seu antepassado, reuniu os meninos negros que a acompanhavam- isto para eles também foi novidade - e foi colocar-se debaixo do retrato do seu antepassado para tirar uma fotografia. Foi só isso que ela fez. Reclamou-o para si. Ora, nesta ocasião pensei- ouvi contar esta história por alturas em que apareceu aquela frase «negritude é beleza» - por alturas da grande modificação de pensar que se deu nos negros quanto à integração; tudo isto estava a aparecer- e eu então pensei que uma das coisas que se têm de fazer neste país é que todos os negros têm de reclamar os seus ascendentes bran- · cos. Toda a gente tem de reclamar os seus ascendentes e os seus primos. Depois a outra coisa, claro, é que neste país as pessoas adoptaram sempre antepassados com quem não tinham nada a ver. Baldwin: Exactamente. Mead: Claro, felizmente que George Washington não teve filhos. E por isso foi sempre poss.ível desfazermo-nos dos nossos antepassados e ir tirá-los aos outros. Ora, isto faz-me lembrar uma
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conversa que tive há anos com uma amiga minha, chamada Rachel Davis nu· Bois. Alguma vez esteve com ela? Pertence aos Quakers, e fez uma coisa chamada festival comunitário onde um grupo heterogéneo de pessoas se reúne contando coisas que aconteceram e cantando canções. Ela tem muito nível. Bom, estava ela então a contar de corno havia umas pessoas que andavam aborrecidas porque· outros lhes estavam também a usar o nome. Quer dizer, o nome destes era, por exemplo, Smith, e eles então passaram a usar o nome de Sturtevant, ou Livingston, ou qualquer coisa desse género. E eu estava a discordar da atitude dos Sturtevants que não tinham gostado de que os outros passassem a usar o nome deles, e ela virou-se para mim e disse: - Gostavas de ter o Crispus Attuc.ks como teu antepassado? Nessa altura pensei: Porquê? Porque é que tenho de o ter como meu antepassado, não sendo ele meu antepassado? Em verdade, George Washington também não foi antepassado de ninguém; a única coisa que ele foi, foi antepassado mítico. Mas eu não conseguia ver a razão que me obrigasse a fazer do primeiro negro ·morto na Revolução Americana meu antepassado. Isto aconteceu , no meio da luta pela integração, numa altura em que toda a gente estava a dizer aos negros- toda a gente, isto é, os brancos que acreditavam na integração: - Compartilharemos convosco tudo o \ que temos. - E eles julgavam, está a ver, que · essa generosidade era a única coisa necessária.
Portanto, nesses termos eu tinha alguns antepassados brancos de primeira para compartilhar consigo. Não precisava de mais nada. Baldwin: Sim, sim. M ead: E eu não sentia necessidade de que você compartiihasse comigo os seus antepassados negros. Mas agora sabemos que isso é preciso. Nessa altura não sabíamos. Isto foi, acho eu, há uns vinte e cinco anos, quando ela me disse isto. E a chave para o problema da integração;. Nessa altura falava eu de três coisas que se tinham de fazer:, apr~ciar as diferenças culturais, respeitar as diferenças políticas e religiosas e igÍlorar a cor da pele. Fundamentalmente, ignorar a cor da pele. ' Baldwin: Ignorar a cor da pele. Não há dúvida de que ' ' isso parecia mesmo a verdade autêntica. , ·, · M ead: Sim, mas agora já ~ã~ é. Está a ver, isto não e~a realmente verdade. Estava. totalmente errado porque ... Baldwin: Porque não se pode ignorar a cor da pele. Mead: Não se pode ignorar a cor da pele. Ê real. Quando eu dizia para ignorarmos a cor da pele ... e eu tinha tanto orgulho nisso- sabe, sentíamo-nos tão orgulhosos ·quando nos esquecíamos dela. Baldwin: Evidentemente. Mead: Isto mesmo quando estávamos em Washington durante a guerra e, não se esqueça, quando se podia arranjar sarilhos e causar complicações a alguém nos restaurantes. De qualquer maneira, lembro-me de que uma vez estava a ver se reunia um grupo e tínhamos ·marcado o encontro para o edifício da Câmara de Comércio, porque, nesse dia,
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não consegui arranjar uma sala na Academia das Ciências. De repente, veio-me à ideia: Meu Deus! Uma das pes·soas que vinha de Nova Iorque era um negro e eu não sabia a opinião da Câmara de Comércio sobre este assunto nem lhes ia agora perguntar. Por isso telefonei a um padre católico que trabalhava· com o meu grupo e pedi-lhe que viesse completamente paramentado. Depois telefonei a um membro branco do mesmo grupo de Nova Iorque e pedi-lhe:- Podiam vir juntos? E nunca descobrimos o que pensou a Câmara de Comércio. Mas eu senti muito orgulho por me não ter lembrado. Baldwin: Por ter pensado no assunto? Mead: Não,. sentia-me orgulhosa por me não ter lem. brado inicialmente. Nem sequer me tinha passado pela ideia. Baldwin: Pois é, claro. É isso que eu quero dizer quando digo ... quando ouço dizer «ignorem a cor da pele». ·Bem, a mim levou-me muito tempo para conseguir isso, e talvez nunca chegasse a consegui-lo se não tivesse saído da América. Sei que nunca chegaria a consegui-lo se não tivesse saído da América. Foi uma grande revelação para mim quando finalmente me encontrei em França, entre toda a espécie de gente diferente - quer dizer, pelo menos diferente sob o meu ponto de vista e diferente da que eu tinha encontrado na América. E, um dia, notei que alguém me perguntou por um amigo meu que, de facto, quando pensei nisso, é possivelmente da Ãfrica do Norte, mas na realidade não me conseguia lembrar se era branco ou negro.
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Simplesmente, isto nunca me ocorrera. A questão nunca me entrara no espírito. Nunca me estivera no espírito. Passei realmente uns maus bocados. De repente senti-me como se estivesse perdido. Durante os anos da minha. formação, o único quadro de. ~~ferências que eu conhecera fora negro e branco. Sabe, toda a gente sabia sempre quem 'era branco e quem era negro. Mas de repente perdi-o; de repente esse quadro de referências tinha desaparecido. E de um modo estranho- e não sei como é que isto possa fazer sentido - porque, que eu soubesse, que eu saiba até esta hora, uma vez que isso nos acontece,. esse quadro nunca mais volta. Mead: Eu é que tive de fazer isso voltar. Baldwin: Bom, eu .. voltei para casa. Mead: Bom, eu por mim tive de passar de partidária exclusivamente da integração para o significado do poder negro. Baldwin: Também já tive de fazer Isso,. Por razões muito diferentes, talvez, ou provàvelmente pelas mesmas. M_~~- não_Ip.~ _vªi ... infltiepciar_ na op~nião que tenho das outras p~~so~-· Está a ver, eu .sei que a minha situação não é a mesma em que eu estava quando Martin Luther King era viv~ . e quando estávamos a tentar, quando. estávamos com a esperança de causar qualquer coisa como , uma revolução na consciência . americana, que é, ao fim e ao cabo, po~ onde se tem cl~ ç9meçar de qualquer modo. Claro que isso agora já lá. vai. Já lá vai porque a República nunca teve a coragem, ou a capacidade, o11 o que quer que fosse
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que era necessário, p::t,ra apreender a natureza do ·sonho de Martin. Deixe-me pôr isto nestes teré uma simplificação demasiada, mas a senhora sabe o que eu quero dizer. 1J1ead: Sei. Baldwin: Portanto estamos noutra situação. Estamos numa situação muito perigosa e complexa, porque parte de ... Olhe, a sua história da descendente do governador da Jórgia é pertinente e comovedora, mas a razão por que a maioria dos negros não fariam Ísso é por terem sido humilhados durante tanto -- tempo pelas simulações dos brancos. E a enorme quantidade de energia, por exemplo, a que nós chamamos, em certo sentido erradamente, o «movimento do poder negro», é uma reacção absoluta, uma reacção de fúria autêntica, porque está agora a crescer uma geração - já está crescida- que não é igual à minha. Esta geração sabe. Já viu com os seus próprios olhos e ouviu com os seus ouvidos: a natureza das mentiras que os brancos disseram aos negros durante gerações inteiras. E ela percebe as razões dessas mentiras. Quer entendam ou não autênticamente qual 'é a situação e o que devia ser o futuro, não é isto que está em causa; de momento não faz diferença nenhuma. O que eles. estão a fazer é a repudiar completamente a teologia, como eu lhe chamo, que tem afligido e destruído - na realidade, destruído literalmente- os negros deste . país há tanto tempo. E ao que esta geração está a reagir, o que ela está a dizer, é que sabe muito
mos;
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bem que vocês, os br_-ancos, os brancos americanos, tê·m vindo sempre a tenta~· assassiná-l~s. Não meramente por os queimaram pelo fog~·: ou por os castrarem, ou por os dependurarem de uma árvore, mas por. os assassinarem .no espírit(), no c.QI'ação. Ensinando a uma criança negra que não vale nada,, que não poderá nunca contribuir com n?-da para a civilização, está-se-lhe a e~sin~~ 0 modo de odiar o pai, a mãe e os irmão~. Todos os da minha geração viram os efeitos catastrófic~s que isso teve. E o que os rapazes :negros est~o agora a fazer, por mais excessivo que seja, esta certo. Recusam todo esse quadro de referências e dizem à República: esta é a tua conta, é ' esta a tua conta sangrenta escrita com o meu · sangue, e vais ter de a pagar. Mead: Mas não pensa também que _não é somente a desilusão desta geração mais jovem, que eu compreendo perfeitamente, mas que é, outrossim uma . . . ' pos1çao inteligente a que assumiram? Não acha que a posição integracionista era unilateral? Baldwin: Sim, era. Mead: E, claro, era compartilhada tanto por negros con:o por brancos. Era o que, em certo sentido, muitos negros pensavam que queriam como indivíduos. Pensavam que era isto que queriam e então tiveram de aprender que era unilateral. ' Baldtwin: Foi. M ead: Foi o que disse Fanon quando escreveu Pele N_egra, Máscaras Brancas. Mas o que ele quer dizer,. que aquilo que oferecem ao negro como se
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fosse civiUzação é a civilização branca, refere-se mais à civilização francesa do que à americana. Baldwin: E mais exacto. Mead: E muito mais exacto. Mas, seja como for, a oferta- como, em substância, eu lhe chamaria-, a oferta feita pelos brancos bem intencionados é: «Se vocês forem como nós ... » Baldwin: «Podereis entrar nos nossos clubes e vir a nossas casas ... » Mead: «E nós fingiremos que sois exactamente como nós.» Baldwin: Pois. M ead: O que,. claro, significa que vos negaremos. Baldwin: Exactamente. Mead: Negaremos o vosso cabelo, negaremos a vossa pele, negaremos os vossos olhos. Nós negamo-vos. Negamo-vos quando vos. aceitamos; negamos as maneiras pelas quais vós não sois exactamente como nós, ignorando-as. Baldwin: Sim. M ead: E o que o poder negro anda a dizer é: primeiro quero aceitar-me a mim mesmo, e aos meus pais, e quero saborear a aparência da minha mãe e do llleu pai, e então daí ... Baldwin: Então veremos. Mead: Então olharemos em volta. Então veremos. Você gosta do aspecto dos seus pais, e - quer dizer, se agora estivesse a falar comigo- ... Baldwin: Pois, pois. M ead: Gosto do aspecto dos meus pais - a maior parte das vezes. Quando já estava a viver na Nova Guiné há demasiado tempo~ ou há uns tem-
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pos consideráveis, voltava cá e não gostava de ver os bebés tão grandes e tão pálidos. O resto das pessoas. não me incomodava, mas dos bebés assim tão brancos é que eu não gostava, habituada como estava a pegar naqueles bebezinhos todos, magros e ca.Stanhos, e que era:m. tão lindos, e os nossos bebés pareciam-me demasiado gordos e grandes. Pareciam-me baleias, e a coisa a modos que não me agradava. E não gosto nada do as-· pecto que os brancos têm nos trópicos, pois ficam tão queimados do sol e gastos. Baldwin: Ressequidos. M ead: Não foram feitos para os trópicos. Os negros que lá estão têm um aspecto magnífico, e os brancos têm um aspecto enrugado e queimado, ou então pálido como a morte. Baldwin: Bom, o sol está a dar cabo deles. M aed: Está a dar cabo deles. Sabe, não é nada bom para eles. Se fico muito tempo ao sol, nos trópicos, pareço uma beterraba cozida. Mas toda a gente deste mundo deveria ter a oportunidade de poder orgulhar-se do aspecto dos próprios pais. Baldwin: Sim, sem isso estão perdidos. Mead: O aspecto é importante. Agora, quando se dizia ignoremos a cor da pele ... Está a ver, agora vamos ignorá-la. Tivemos aquele longo período de tempo durante o qual a Fundação Rosenwald dava bolsas no Sul para jovens negros. Fui a uma reunião em Chicago,, durante a segunda guerrra mundial, quando a Fundação Rosenwald convocou todas as pessoas deste país interessadas no assunto da raça. Estavam lá Mary Bethune e W. E.
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B. Du Bois. Tinham lá cabeças extraordinárias e diversidades de carácter de todos os tipos. Mas todos os jovens tinham o aspecto dos homens da camisa Arrow, a-do-colarinho-indeformável. Pareciam-se mais com os homens da camisa Arrow do que os próprios, que figuram no anúncio, se parecem com um grupo normal de brancos. Tinham sido escolhidos simplesmente por terem um aspecto exterior desse tipo. Pus-me a olhar para aquilo e disse cá para comigo: como nós estamos a esteriotipar os negros jovens de valor! De certo modo, pegámos no nosso padrão ideal e escolhemos os jovens negros que se pareçam o máximo possível com esse ideal, dando-lhes as oportunidades; são eles ·que apanham as bolsas. E, é evidente, isto estava também a ser feito adentro da própria família negra. Toda a gente cooperava para estabelecer esta imagem. Baldwin: Mas esses homens de camisa Arrow, a indeformável, como lhes chamou, os homens do anúncio da camisa Arrow, a indeformável, de repente encontraram-se face a sérios problemas psicológicos, porque não eram, servisse-lhes ou não o uniforme, aquilo realmente por que os tomavam, ou aquilo que esperavam ou fingiam ser. Não o eram. E depois da reunião foram para casa ou ... Mead: Nunca havia a certeza de para onde iam. Baldwin: Para falar verdade,, entravam naquilo que para os brancos seria uma espécie de êxtase. Fosse como fosse, acabavam por voitar à sua situação autêntica, mesmo que fizessem os possíveis por
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lhe escapar, e descobriam então que estavam alienados das pessoas que os tinham produzido. E não só alienados em termos de terem alguma coisa em comum, ou em termos da roupa que usavam, ou qualquer coisa desse género, mas em termos muito mais sérios. Tinham perdido o quadro de referências. Se eu, por exemplo, não posso ir para casa embebedar-me com o meu irmão, ou não posso estar por lá sentado com as minhas irmãs e os meus irmãos sem fazer coisa nenhuma - daquele género, fritar um frango ou comer um bocado de melancia ou ouvir qualquer coisa de música-, se não posso estar com pessoas que · me conhecem suficientemente bem para me corrigirem, que não estejam intimidadas por o que quer que seja que o mundo pensa de mim, se não se podem encontrar as pessoas que nos conhecem bem para que isso suceda, e . as pessoas que nos amam o suficiente para que isso suceda, então depressa estaremos perdidos . e transformamo-nos numa espécie de caldeirão ambulante. Esses homens do anúncio da camisa Arrow, a indeformável, sãg_ muito,, muito perigosos, porque em realidade essas pessoas odeiam os brancos muito mais do que qualquer carregador. o carregador odeia de um modo bastante abstracto. Mas alguém que pense que está a tentar ser com~ nós, e que todas as suas acções são em relação a nós, e que no fundo sabe que nós o desprezamos, é sério candidato para o manicómio)___ e é lá que muitos deles acabam, sabe? '/
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Mead: Bem, o que eu penso é que uns tantos deles,
que têm de usar agora penteados à americana, candidatam-se· a grandes sarilhos. Baldwin: Isso é esquizofrenia, sabe? Me.ad: Ai, então é que São mesmo candidatos a grandes sarilhos. Baldwin: Bem, já tenho idade suficiente para conhecer uma quantidade enorme de pessoas que passaram a maior parte da vida a tentar fazer de brancos. Nem sequer me falavam. Olhavam de cima para . toda a gente. Um bom fixador para o cabelo, música da moda e Ray Charles -deste género. Julgavam que estavam bem «seguros», e então houve alguém que lhes mudou as luzes do tráfego. Como aquele famoso cantor de cabelo à branco, e que era na verdade uma espécie de modelo de todos os cantores populares que jamais se viram na América. De repente o cabelo fê-lo parecer suspeito, e os amigos já olhavam para · eie com outros olhos, o que fez com que ele tivesse de lavar o cabelo,. deixá-lo ser outra vez carapinha, e que mudasse de aspecto de um dia para o outro. Conseguiu fazê-lo. Agora é um homem de negócios duro e esperto. Mas uma quantidade de outras pessoas ficaram simplesmente sem saber que fazer no meio da rua quando as luzes do tráfego mudaram. Uma data delas foi varrida para fora do palco da história, como se poderá dizer, e nunca mais se ouviu falar delas. :É estranho, mas é terrível. Explica tão bem o que tem sido desde sempre a autêntica finalidade desta República, qual foi o preço autêntico
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que um negro teve de pagar só para conseguir aqui viver, sabe? E n11nca ninguém conseguiu registar esse preço, excepto na música e em lugares estranhos, em que ninguém pensa, como sejam as igrejas . negras. Se se tentar realmente dividir o sermão de um negro e compreender na totalidade o que ele diz, é a modos que aterrorizante. Mas a grande maioria da Repúb'lica conseguiu, não s.e sabe bem como, continuar a cantar como a Doris Day, ao sol e à chuva, e nunca ouviu falar nisso. E. agora o que sucede é que, pelo menos neste momento da nossa história, os negros já não se importam com o que pensam os brancos. Eu, por mim,. já não me importo, para lhe dizer a verdade, se os brancos me ouvem ou não. Não me faz diferença absolutamente nenhuma. Se me ouvem, tanto melhor; se me não ouvem, tanto pior. Para eles. M ead: Posso realmente compreender isso, de um certo modo. Quando estou na Nova Guiné, quando estou a viver numa aldeia em relação total com todos os seus habitantes, são eles as pessoaS que me interessam e mais ninguém. Não estou já particularmente consciente da minha condição de branca, nem que sou antropóloga de longa data, pois que há muitas mais coisas em relação às quais devemos estar conscientes. Houve um ano em que tivemos uma casa de onde se podia ver até às margens do rio. Ãs vezes vinha um barco pelo rio acima, parava e saía gente. Em toda a minha volta havia gente da Nova Guiné: as mães com os bebés ao colo 27
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grupos inteiros de pessoas. E então saíam brancos daquele barcQ. Via que eram brancos antes de ver quem eram autênticamente, porque usam roupas diferentes e são maiores e por aí adiante. Do barco saíam então os brancos desconhecidos e a mim pareciam-me destes bonecos que há, de papel. Não me pareciam como se fossem gente autêntica. E à medida que vinham mais perto, e eu conseguia ver quem eles eram, reconhecendo-os ou não, tornavam-se indivíduos. E era então que as pessoas à minha roda se transformavam em bonecos de papel. Está a ver, a diferença era tão grande que não se podia olhar para os dois mundos ao mesmo tempo. Por isso um deles tornava-se irreal, bidimensional,, sem relevos. Baldwin: isso deve ser uma coisa muitíssimo estranha. Olhe, estou muito curioso por saber que tempo passou na Nova Guiné. M ead: Bom, duma vez estive lá três anos. Bal~n: Estou muito curioso por saber aquilo que aprendeu a esse respeito. Tenho o pressentimento de que há qualquer coisa nisso, qualquer coisa que a senhora sabe. Mead: As coisas que aprendi na Nova Guiné, ao fim · e ao cabo, aprendi-as tarde e a más horas. Arrendi sobre o racismo quando ainda era criança. Baldwin: Gomo é que aprendeu isso? M ead: Vivi numa quinta que tinha servido de escala para o caminho-de-ferro subterrâneo ( 1 ) • (1) Expressão que designa, no tempo da escravatura, um movimento de libertação e apoio aos negros que fugiam para o Norte. (N. do T.)
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Baldwin: Então era no Norte. Mead: Era no Norte, no condado de Bucks, na Pen-
silvânia. Os meus antepassados são todos do Norte, sem excepção, e o meu avô combateu pelo Norte na Guerra Civil. O meu pai comprou uma quinta que tinha servido de ponto de paragem para o caminho-de-ferro subterrâneo. Esta história era considerada como apanágio do melhor comportamento romântico do Norte. E nas vizinhanças havia dois negros velhos- nessa altura, em 1912, ainda lhes chamávamos pretos - que tinham sido escravos mas que fugiram, se esconderam, e continuaram depois a viver no mesmo sítio. Um deles tinha uma mulher mais nova - ele devia ter 70 anos, creio eu,. quando eu era criança, mas como eu estava a dizer, ele tinha uma mulher mais nova do que ele- muito gorda, muito negra. Ela tinha um filho mestiço, e isso, pelo que me foi dito pela minha mãe- que acreditava em dizer sempre a verdade às crianças, e dizê-la de modo a não deixar qualquer dúvida -, por ter sido desflorada por um branco. Está a · ver, a imagem que eu tinha era precisamente o reverso da que muitas americanas têm, porque a maior parte das mulheres brancas, quando pensam num homem que faça isso, vem-lhes à ideia um negro. Isto é uma das coisas importantes que é preciso ter sempre na memória. Baldwin: Isto é muito engraçado. Continue. Mead: Mas eu agora só via o reverso, e a imagem que eu tinha de uma· violação era a de uma negra a ser desflorada por um branco. Foi um carni29
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ceiro, e isso era uma das coisas em que eu sempre pensava: era uma personagem brutal. Por isso, sempre que sonhava com desflorações, sonhava com esta negra a ser desflorada por um branco. E a nossa mãe insistia para que a tratássemos por Senhora Dona- isto em 1912. E sempre que ela me aparecia num sonho, sabia logo de que é que eu estava a sonhar. Isto é o reverso exacto da experiência americana habitual. Baldwin: Sem dúvida. A mitologia habitual americana é inteiramente diferente. Tenho a impressão de que isto explica muito da sua maneira de ser. Mead: Provàvelmente, embora eu não seja completamente Hvre. Sabe, não acho que nenhum americano- nenhum americano branco- seja livre de . ter uma atitude especial para com os negros americanos. E a mesma coisa quando você diz que não há negros fora da América. Nós somos muitas vezes simpáticos para outros povos de pele escura. Tratamos muito bem os príncipes africa'nos ou hindus. Quando eu prossegui ... A minha primeira viagem de estudo foi à Samoa. Bem, claro que os Polinésios s.ão um povo que toda a gente acha belo. Se os olhamos de perto verificamos que realmente não são o povo mais belo do mundo por qualquer padrão absoluto. Todavia, toda a gente pensa que eles são belos. Os Chineses pensam assim, os Negros pensam assim, toda a gente pensa assim. E agora descobri a : razão: durante talvez dois ou três milhares de anos nunca viram mais ninguém senão eles mesmos e eles pensam que são belos e andam tão im-
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pressionados consigo próprios que todas as outras pessoas pensam que eles são belos. Se uma pessoa pensa que é bela, essa pessoa movimenta-se como uma pessoa bela. Baldwin: Sim, de certo modo, isso é verdade. Mead: Diziam: ela é a .rapariga mais bonita da aldeia; ou então: ela é a mais feia. Evidentemente que faziam graduações. E foram eles o primeiro. povo no meio do qual fui trabalhar. Dormi nas camas deles e fui pescar com eles e dancei com eles. Eu era muito mais pequena do que eles e por isso podia trabalhar com as adolescentes e fazer de conta que tinha 14 anos quando, na realidade, tinha 23. Mas então recordo-me de como fiquei surpreendida quando, mesmo antes de partir da ilha, regressei à aldeia onde estivera no princípio, e, claro está,, nesta altura já falava a língua fluentemente. Uma das raparigas disse-me:- Nós observámos-te quando chegaste. Observámos-te e vimos o que tu fazias. Uma vez ofereci-me para te emprestar um pente e tu pegaste nele. Nós observámos. - Mas eu, pela minha parte não tinha notado nada. Depois fui para a Nova Guiné. Sabe, estes são seus primos, embora muito afastados; em grande parte são seus, mas, todavia, também são meus, de há milhares de séculos atrás. Têm a pele negra e um cabelo magnífico, que se pode pentear todo para cima e depois fazer escadinhas nele. E num dos povos que estudei, os Araspesh, havia só um dos adolescentes, que eu conhecia muito bem, que se
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parecia só mais um bocadinho com um negro americano. Só mais um bocadinho, só mais um pequeno toque, mas eu tinha sempre uma leve consciência disso, sabe. Eu andava-lhes com os bebés ao colo, tratava-os quando estavam doentes, e viajava muito pelos arredores. Todavia, com este rapaz, e só com ele, notava em mim um pouco de acanhamento. Era só isto, mas era realmente acanhamento. Baldwin: Mas o facto é que existia. Sim, sei o que quer dizer. Mead: E continuava a existir. Baldwin: Sim. Mead: Apesar dos tais reversos. Criei-me com uma opinião positiva sobre as pessoas que não tivessem preconceitos de raça. A minha avó dava-me lições sobre como a mãe de Deus era judia. Por isso, na minha vida fora de casa, escolhia as crianças judias, gostava muito delas, e tinha muitos amigos que eram judeus. A minha educação foi muito positiva, e por isso estava preparada para trabalhar para a integração a qualquer nível possível. Baldwin: Mas sobre aquilo de que eu estou curioso: A senhora disse que nenhum americano branco pode deixar de ter urna atitude especial? yead: E nenhum americano negro. Baldwin: Pronto, e nenhum americano negro. Mas antes de irmos para aí, diga-me, com base na sua própria experiência, o que . acha que é esta atitude especial que os americanos brancos têm para com os negros? É composta de quê?
Mead: Primeiro de consciencialização, diria eu. parte . . das coisas que se notam.
É
uma
Baldwin: Da diferença? Maed: Bom, consciência de que há espécies diferentes
de pessoas e que nós temos de nos lembrar disso. Acho que aqui é que bate o ponto. Baldwin: Sim, mas depende de ... M ead: De que temos de nos lembrar disso. Baldwin: A questão é, porque é que temos de nos lembrar disso? Bom, quer dizer, pelo menos para mim. Mead: Ora, seria esta a resposta que eu daria. É .um tipo de vida em que eu tenho vivido que existe tanto lá para trás da experiência ~o. seu povo que já nem pode avivar as suas memorias porque, neste país, já não há pessoas de idade vivas que as possam a viva r. ~ Mas, olhe, estive numa plantaçao na. Nova Guiné onde era responsável por uma equipa de trabalho. Mas veja, eles não eram escravos. Eram trabalhadores livres; eram homens feitos., Tem-se nas m.ãos duzentos homens arrancados a selv_a. Alguns deles haviam. sido canibais. _Gutr~s nao eram canibais; ainda outros tinha~ s1do so;nente óptimos guerreiros fogosos. Mas tl~~a~ said~ ~e um nível técnico de sociedade muitlSSI~O pr~m~ tivo. A Nova Guiné é uma sociedade muito primitiva; não é como a Ãfrica. Há, na verdade, alguns povos da Ãfrica tão primitivos como os povo~ da Nova Guiné mas a Nova Guiné não teve re1nos, nem sombr~ de grandes tradições. Politicamente,
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nunca conseguiram ter mais do que quinhentas pessoas juntas. Ora, quando estive temporàriamente sozinha, tinha de dirigir aquela equipa de traba'lho. Tinha de lhes dar ordens, que não se baseavam em mais nada a não ser na supremacia branca. Era uma mulher branca, solitária. Qualquer um deles me podia ter assassinado, e a minha função era evitar ser assassinada. Se alguma coisa me tivesse acontecido, talvez uns vinte deles fossem mortos. Também estive uma vez sozinha numa aldeia onde não havia nenhum branco a dois dias de caminho. Completamente só, e mais ninguém na aldeia senão mulheres. Todos .os homens tinham saído, e então chegaram à aldeia uns homens de ·fora e vieram ter a minha casa e sentaram-se, porque me queriam vender feijões miseráveis. Ora se eu ficasse com os feijões, que estavam cheios de bicho, estava em perigo, e por isso tive de recusar os feijões com bicho. Disse eu:- Não, os feijões não prestam. Não os compro. - Então eles saíram-me de casa, e depois disso notei que me desaparecera a caixa com fósforos de cima da mesa. Tinha de reaver aquela caixa de fósforos. Se não o fizesse, era como se já estivesse morta. Brancos que deixassem escapar um ladrão eram mortos; tinham-se mostrado fracos. Por isso corri até ao extremo da aldeia. Isto foi uma excelente · demonstração de supremacia branca pura e nada mais. Eu não tinha absoiutamente mais nada. Não :tinha uma arma sequer. Lá fui até ao extremo da aldeia, e eles estavam todos sentados num cír-
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culo, e eu então disse: -Dêem-me cá os fósforos. - E un1 homem meteu a mão no saco e disse: - eu não os roubei. Só peguei neles. - E deu-mos. Nessa altura estávamos todos a salvo. Ora se eu tivesse dado um passo em falso estaria morta a estas horas! a administração teria de mandar uma expedição punitiva e eles estariam mortos também. E este o peso, em certo sentido, que, neste país, o negro e a mulher branca suportaram no tempo das plantações. Se uma mulher branca cometia um erro, ou não se lembrava de quem era todos os segundos da sua vida, toda a gente sofria. Por isso é que nunca nos devemos esquecer de que não podemos virar costas, de que não se pode deixar que nos roubem, de que se deve conservar o sangue-frio. Não há nada mais para nos proteger do que o sangue-frio. Quando estou sozinha fecho as armas a sete chaves. Foi disto que já tivemos no Sul. Já lera os livros todos, mas nunca fora ao Sul até 1942 · e ' quando atravessei a linha Mason-Dixon senti-me como se não estivesse nos Estados Unidos, estava na Nova Guiné. Porque este género de coisa não existe no Norte. Pode aparecer, mas não é uma sensação específica do Norte, a de que se tem de estar atento ao que se faz em cada minuto que corre. Suportei este peso até ao ponto de significar vida ou morte em cada segundo. Pensa-se nos tempos antigos do Sul, e os que sobreviveram foram os mais fortes porque os outros tinhan1 morrido todos nos navios negreiros. 35
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Baldwin: Sim, isso é verdade:
Mead: Portanto e1es eram os mais resistentes, que, numa plantação a vinte milhas de qualquer terra mais próxima, ficavam muitas vezes entregues a uma mulher branca. E ela tinha a vida todos. os dias nas suas mãos, e o mesmo acontecia com os mais fortes de entre os negros. Todos tinham de fazer correr bem as coisas. Baldwin: São relações devastadoras, sabe. M ead: Todas as relações desesperadas são devastadoras. Fiz uma série de conferências sobre racismo na década de 40, mas impunha umas certas regras. As pessoas que quisessem fazer perguntas tinham de se levantar. Para me perguntarem se eu queria que uma filha minha casasse com um negro tinham de se levantar e olhar-me cara a cara. E a minha resposta era: - Sim,. se ela o respeitar e ele a respeitar. Baldwin: E isso. Meàd:- Mas- acrescentava eu- no momento presente, qualquer casamento que se faça na Alem~ nha nazi não presta, porque os homens não respeitam as mulheres, e não acho que nenhum casamento seja bom a não ser quando ambas as partes se respeitam. Baldwin: E isso, não há dúvida. M ead: Ora quando existem terríveis disparidades em questão de poder, ele é a causa de tremendas relações. Baldwin: Sim. Claro, na raiz disto tudo está o poder, não é assim?
Mead: O poder e o ~medo. Baldwin: Que se têm tornado patológicos. Eu tam- ·
bém fui ao Sul muito tarde. Acho que foi em.· 1957 a primeira vez que fui ao Sul. Nunca lá : tinha estado antes. Bom, a verdade é que já tinha... Acho que foi este o meu pri~eiro encontro autêntico com o terror racista do Sul, porque ao crescer em Harlém sabe-se muito bem a razão por que se lá está, e os brancos são uma coisa estranha, afastada, e ao princípio não é verdade que se lhes tenha ódio. Mead: Não se sabe quem eles são, nem se anda perto deles. Baldwin: Não se anda perto deles, mas uma pessoa sente-se ameaçada por eies. Acontece muita coisa em Harlém,. mas Harlém é uma comunidade de cor. Ã minha volta, sabe, toda a gente era de cor. Por isso,, a tal. coisa branca não entrava .. assim completamente. O que deve ter acontecido realmente, estou agora a ver, é que afastei de propósito muita coisa da minha mente simplesmente por pânico autêntico. Porque, é um facto, um miúdo não sabe como encarar essas coisas. Os meus professores eram brancos, na maioria. Não gostava de muitos deles, mas não era por serem brancos que eu não gostava deles. Era só por serem estranhos. O meu professor preferido foi, por acaso, uma senhora negra; depois, mais tarde foi uma professora branca que era comunista. Nessa época todos tinham de ser comunistas realmente, era óbvio, sabe. Se eu tivesse três anos de idade mais, também tinha sido comu-
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nista. Mas ela dava-nos de comer e levava-me ao teatro, e coisas deste género. E ela foi para mim o primeiro ser humano a modos que a sair daquela massa monolítica que é composta pelos senhorios, pelos penhoristas e pelos poHcias que batem na gente. :!-- primeira .chave, a primeira pista de que os brancos eram humanos, foi ela que ma deu. Mas essa chave não durou muito tempo pois que, durante a guerra, comecei a trabalhar para o Exército. Era a primeira vez que trabalhava ao lado de gente do Sul e nunca tinha encontrado, mas mesmo nunca, este tipo de loucura anteriormente. Eu era um rapaz das ruas; criei-me em Harlém. Quando se é pequeno, tem-se de ser rápido, razoàvelmente ágil e de língua afiada, e nunca se deixava outro qualquer levar a melhor, porque se assim acontecesse era a morte. E então lá estive por New Jersey a trabalhar para o Exército com gente da Jórgia, do Alabama, do Mississípi. Falei sempre como tinha falado até então, fazia as coisas como sempre as tinha feito, mas não podia era acreditar no que acontecia a espécie de fúria que se levantava. Uma vez chamei mentiroso a um branco da J órgia. Não tinha intenção nenhuma de o hostilizar. Era só que ... M ead: Era só por julgar que ele era mentiroso. Baldwin: Achei que ele estava a mentir, e disse-lho,. Nunca mais me esquecerei da cara dele. Ficou roxa. Foi essa a primeira vez, devo confessá-lo, que outro ser humano me meteu medo. Vi então a cara dele a transformar-se: primeiro ficou roxa, e depois ficou completamente branca,, enquanto 38
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qualquer coisa lhe acontecia ao olhos. Notei então que estava a olhar a morte de frente. Aquele homem queria matar-me. Se eu estivesse sõzinho, acho que não haveria outro resultado. E eie tinha muito mais anos do que eu. Eu tinha só dezassete; ele tinha cerca de cinquenta. Mas um rapazola de dezassete anos, por ser negro, conseguira transtornar-lhe todo o seu universo, e ele ia matar-me. Foi esse o meu primeiro ensaio. Se houve coisa sobre que eu nunca conseguisse escrever palavra, foi sobre esse ano todo, sobre todo esse tempo. Quando fui para o Sul, já era homem feito. Nessa altura- é engraçado- tive uma reacção dupla. Estava eu em Montgomery, Alabama, e o que me surpreendeu não foi o espírito das pessoas, porque também não era diferente, pois que na altura em que tinha trinta e um anos de idade já tinha desistido de tentar encontrar qualquer sanidade mental na maioria dos americanos brancos. Em essência, sabia que a maioria dos americanos brancos estava encurralada num nível qualquer de infantilis.mo que não permitia que me olhassem como se fosse um ser humano igual a eles. Já não contava com isso,. Mas também não contava com o que encontrei no Su1. O que aconteceu à senhora foi quase a mesma coisa que me aconteceu a mim. A minha sensação é que estava a caminhar numa alcatifa, numa alcatifa que cobria todo o soalho, de parede a parede. Debaixo dela há um sistema complexo de fios, e um 39
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desses fios, se for pisado, fará a casa ir pelos ares. Mead: É isso mesmo. Baldwin: E,. no Sul, toda a gente sabe onde está esse fio, excepto eu. Tenho de atravessar esse tapete também. Mas não sei como é que o vou atravessar, porque cada passo que dê está carregado de perigo. Sempre que abro a boca não tenho razão. As pessoas que me ouvem não me acham com razão. As pessoas não gostam do modo como eu olho para elas. É óbvio que sou mais que um foras. teiro na cidade, sou um inimigo. Cheguei com uma bomba, porque sou um negro da América na ·América. Mead: Está a pôr toda a gente em perigo. Bàldwin: E: não só essa; toda a outra gente, o que causa ainda outro medo. Então é que se fica realmente cmn medo. Quando trabalhei durante uns tempos com Medgar Evers, nunca ousava abrir a ·boca em frente de outras pessoas de roda dele. Se ele estivesse a trabalhar num caso ou a falar com brancos ou negros, não abria a boca porque tinha pronúncia do Norte, e eu não sabia o que isso iria causar nas mentes e nos corações das pessoas com quem ele estava a falar, e que perigo é que isso lhe poderia causar. Em perigo bastante, sabe Deus, já ele estava ( 1 ) . Patologia estranhíssi1J1a es~a. A situação força, mesmo a pessoa estranha, a fazer parte do jogo, Medgar Evers seria depois assassinado por racistas brancos. (N. do T.) ( 1)
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quer queira quer não. Não se pode fugir à patologia dum país onde se tenha nascido. Pode-se resistir-lhe, pode-se reagir contra ela, pode-se fazer o que quer que seja, mas está-se encurralado nela. E o nosso quadro de referências passa a ser o quadro de referências dos brancos,, quaisquer que sejam os esforços que se façam para o encarar de outro modo. Diga-se o que se disser aos nossos filhos, está-se encurralado : o irmão mais escuro ' é desprezado neste casarão dÓ branco. E, nessa altura, 9 grande, o enorme problema, é encontrar um meio de nos libertarmos a nós m~smos, e em primeiro lugar no espírito. Todo e qualquer facto real que nos rodeia é simplesmente mais uma testemunha da nossa degradação. E como é que raio se vai ensinar os filhos a crescer como homens quando eles vêem, dia a dia, o imensamente pouco que os outros respeitam a nossa condição de homens? As crianças sabem muito bem. Eu sabia-o. Quando o meu pai chegava a casa do trabalho, eu nã() sabia, não fazia ideia nenhuma, do que tinha sido o dia de trabalho do meu pai, mas o que· eu sabia era que o meu pai punha o chapéu de coco todas as manhãs, a camisa branca, e o uniforme negro de pregador que lhe dava o Senhor, e lá ia com a pequena lancheira preta na mão para algures na baixa, lá ia para Long Island, onde trabalhava numa fábrica qualquer,, no pior trabalho que se possa imaginar. Durante os anos em que eu o conheci o ordenado dele foi sempre de vinte e sete dóla-
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res e cinquenta cêntimos por semana. E tinha nove filhos. Não lhes podia dar de comer, e, claro está, era absolutamente inevitável que enlouquecesse. Como é que ele podia aguentar? Não se pode deixar um emprego com uma filharada destas para alimentar. A mulher sabe bem o que se passa, e se ela ama o marido as coisas ainda ficam piores, pois que ele sabe o pouco que pode fazer para a protege~. Os filhos estão a crescer, e então começam a desprezá-lo porque não acham que ele proceda como um homem. E a situação em que ele está, porque aconteceu ter nascido nos Estados Unidos da América aí uns dois mil anos cedo de mais . .Mead: Não acho que ainda falte assim tanto. Baldwin: Bom, quer sejam dois mil, ou duzentos, ou vinte, não faz diferença nenhuma se representa a vida de um homem. Soçobramos. Mas o que é crime ou patologia, que vêm a ser o mesmo, é que isto não aconteceu, não tem vindo a acontecer por mero acidente. Não é um facto estranho; não é qualquer coisa como um acto divino. É uma coisa que já foi feita deliberadamente e continua a ser feita deliberadamente. M ead: Olhe, sabe, acho que é tempo agora de parar um pouco e pensar um bocadinho sobre história. Pense um instante o que seria se nunca tivessem inventado os barcos. Baldwin: Sim, que teria acontecido à Inglaterra. Mead: Se nunca tivessem inventado os barcos nunca teríamos o problema que temos hoje. Se toda a 42
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gente tivesse que andar a pé, e porque não podiam ir muito longe a pé durante o tempo de vida, paravam e enamoravam-se das raparigas daquele lugar. E gradualmente ter-se-iam mudado de África para a Europa ficando cada vez mais brancos. Mas isso levaria um mil.har de anos, e na altura em que chegassem à Suécia e ficassem com aqueles olhos azul-pálidos, com aquela pele branca, a fim de que pudessem gozar do sol que houvesse por lá, embora não houvesse muito ora isso levaria milhares de anos, e teria sido imperceptível. Do grupo mais escuro da África até lá para cima, para o povo louro da Escandinávia,. Mas o que aconteceu, está a ver, foi haver barcos. E apanham-se os barcos e vai-s.e pelas costas abaixo e pelos mares fora, pondo lado a lado pessoas cujos contrastes são tão flagrantes. Ora, acho eu, já se falou muito neste país ... Uma das coisas sobre que não tenho bem a certeza é se vale. a pena falar disso aqui - das gerações mas, de certo modo, o senhor e eu pertencemos à mesma geração, a de antes da guerra. Baldwin: Somos é da pré-atómica. M ead: Estas são as coisas em. que nós pensávamos e de que falávamos. E costumava dizer-se ql1.e as crianças não têm qualquer preconceito racial. Ouviam-se baboseiras destas até dar vontade de vomitar. Baldwin: «Para odiar é preciso que no-lo ensinem.» Mead: Era isso que as pessoas diziam, que. o sentimento da raça tem que se aprender. Bem,. a ver43
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dade é que não é assim. É verdade que para odiar é preciso que no-lo ensinem, mas a apreciação e o medo das diferenças existe em toda a parte. Baldwin: É isso mesmo. Mead: E eu vi, e como eu muita gente deste país, que uma criança branca que se habituava a uma cara negra e as mãos negras se punha a gritar quando esse negro tirava a camisa, porque a modos que acreditava que essa cara e essas mãos negras pertenciam a um corpo branco. Mas também vi uma criança negra fazer o mesmo com um branco- gritar de medo- porque, sabe, há uma diferença conspícua entre uma pele negra e uma branca. Na Nova Guiné, as crianças gritam de medo quando vêem brancos pela primeira vez, do mesmo modo que os brancos gritam de medo, porque, o contraste é demasiado grande. Nesta terra o que se fez com os barcos foi viajar distâncias enormes. Podia-se pegar nas pessoas e ·levá-las para longe, e como resultado disto temos estes contrastes tremendos que são um abalo para a alma das pessoas. Eu penso que é preciso que s~ aperceba de uma outra coisa a respeito dos brancos; uma pele branca é uma tentação terri~~l. Baldwin: O que é que quer dizer, exactamente? Mas acho que sei o que é. M ead: Porque parecemos anjos, sabia? Baldwin: Já lá ia chegar. Continue. Mead: Ora veja,, quando aqueles Anglos da Inglaterra foram levados para Roma para serem vendidos como escravos - ou estavam a ser vendidos como escravos no mercado- e chegava um papa e 44
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olhava para estes escravos e dizia: -Como é que lhes chamam? - e alguém dizia Anglos, dizia ele então: - Oh, não, Anglos não, anjos... Ora isso era quando o Cristianismo era uma religião do Mediterrâneo. Mas os anjos eram brancos. Ora os mortos são brancos em toda a parte, porque os ossos são brancos e as pessoas associam os mortos aos esqueletos e aos fantasmas. Então é que há anjos, e que são brancos. Agora vamos i para outro grupo de pessoas que chegam ... Baldwin: E que também são brancos. M ead: Quando as primeiras pessoas chegaram à Austrália, os aborígenes australianos pensaram que eles eram os fantasmas dos seus antepassados que voltavam. Quando Cortês chegou ao México foi homenageado como o deus branco; tanto quanto sabemos nunca nenhum branco lá tinha estado. Isto era um sonho dos mortos. Ora, não é lá muito bom para o carácter das pessoas ... Baldwin: êer identificado com os anjos. Mead: ... parecer-se com os anjos;_ faz com que eles se portem mui to mal. Baldwin: Isso é muito estranho, porque a raiz da coisa está algures por aí, parece-me, e isso é mais profundo, suponho eu, não é?, do que geralmente se gosta de pensar. M ead: É terrível, mas terrivelmente profundo, acho eu. Baldwin: Mais profundo que as igrejas. M ead: Mas, sabe,, também há outra coisa. É isto, é que há uma diferença quando se diz branco ou claro ou brilhante~ Baldwin: Isso. «Claro, brilhante, branco.» 45
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Mead: Ora veja, já vivi num sítio onde não havia
Mead: Ainda é de antes do tribalismo. O que isto é,
fogo, a não ser aquele que se fizesse com dois pauzinhos de madeira numa pederneir~. Num lugar como esse, o fogo é uma coisa que as pessoas guardam muito cuidadosamente. E não há luz nenhuma de noite, a não ser a das parcas cinzas da fogueira, e tem-se muito medo. Não se pode acender uma luz com facilidade; há só um pequeno ponto de luz no escuro e é assim que as pessoas sempre sentiram medo, no escuro. Baldwin: Que também se identifica com quê? Com a morte? M ead: Bom, bem vê, com o perigo. Baldwin: Sim, com o perigo. M ead: Com o perigo. Com um perigo terrível. Os ladrões saem da noite quando não há lua. Os caçadores de cabeças assaltam os campos. Só o fogo afasta os animais selvagens. Quando há lua é maravilhoso; pode-se dançar toda a noite. Mas quando não há lua os ladrões atacam.. O inimigo ataca. Há sempre qualquer coisa que ataca. Nunca se sabe o quê. O que eu acho é que a luz eléctrica agora vai acabar com isso. As nossas crianças não têm medo do escuro, pelo menos as que vivem nas cidades em contacto com a luz eléctrica. Carregam num botão e o mundo fica inundado, e nunca têm que crescer com medo do escuro. Baldwin: Tudo isso é, de um certo modo, muito tristonho. Ainda falta assim tanto para que conquistemos o que é um assunto tribal ...
sabe,. é o sentimento que as pessoas têm sobre o . seu próprio aspecto. Então é que aparece o contraste entre o preto e o branco adentro do mesmo grupo. Na Samoa, havia uma albina, uma rapariguita, e costumavam lá chamar-lhe ·minha irmã. Tinha o1hos cor-de-rosa e uma pele pálida e manchada. Para eles, ela parecia-se comigo. E há uma série de pessoas na Samoa com cabelo castanho dourado. Os pais costumavam deixar crescer o cabelo das filhas para o venderem para chinós. Toda a gente fazia chinós deste cabelo castanho dourado porque pensavam que era muito belo. Isto já acontecia muito antes le lá aparecerem quaisquer brancos. E a qualquer parte que se vá há sempre estes contrastes. Ora, quando o contraste é pequeno, não tem qualquer importância, mas quando é grande há quem se importe... . Baldwin: Mas ninguém sabe autênticamente de onde · vêm eles. Ê por isso que temos .tantos ... Mead: Notei que usou a palavra ... qualquer coisa sobre acções escuras. Baldwin: Ê isso. Ê óbvio que eu estou ... Mead: Está a usar inglês do fino. Baldwin: Bem, realmente estou a trabalhar com a língua inglesa. M·ead: Mas isso também se encontra nas línguas africanas, está a ver. Ê isso que torna tudo tão estranho. Baldwin: Sim, ou então nada estranho* Ê isso que está a dizer.
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M ead: Bem, o que eu estou a dizer é que é compreen-
sível que esta associação do branco com o bem, e os fantasmas, e estas coisas todas ... E- agora também há outras pessoas: Alvin ... Baldwin: Poussaint, o psiquiatra negro. M ead: Ele dá grande importância à associação entre o preto e o lixo. Baldwin: Sim, também conheço outro psiquiatra com a mesma opinião. Mead: Mas eu não acho que isso tenha assim uma importância tão grande. A meu ver, onde bate o ponto, é a claridade contra a escuridão e contra o medo da escuridão. A minha filhinha disse-me uma vez: - O que é o medo,. o que é que quer dizer. ter medo? - Ela nunca reconhecera que alguma coisa lhe tivesse feito medo e então peguei-lhe na mão e coloquei-a à entrada de um quarto completamente escuro. - Olha lá para dentro disse eu. - Ê isto que as pessoas querem dizer quando dizem que têm medo. - Ê por isso que penso que devemos ter em consideração que os brancos - os Europeus, e isto é tudo os Europeus - quero eu dizer, tal como a conclusão a que chegou no seu livro, que todos os europeus têm uma tentação mortal de possuir o sentido de uma superioridade biológica. Baldwin: O que a senhora está a dizer parece-me querer sugerir que uma das razões para o enigma da supremacia branca é que, de repente, há um impulso universal qualquer para a identificar com a luz e o fogo. Não é um facto meramente histórico ...
Mead: Percepção universal. Baldwin: Pois. Não é meramente uma aberração his-
tórica ou teológica, digamos assim, mas surge-nos como algo de profundo na natureza de todas as pessoas. Mead: De todas as ·pessoas. Baldwin: Essa perspectiva é estranha e assustadora, não é, de um certo modo? M ead: gstá a ver, eu acho que isso pode ser eliminado, já que não é preciso ter medo do escuro. Baldwin: Evidentemente, mas. há ainda tantas outras coisas de que ter .medo. Mead: Sim, mas, de qualquer modo, se a claridade for uma coisa que toda a gente possa ter desde a altura em que nascer ... Baldwin: Mas ainda há-de faltar muito tempo até à altura em que a claridade seja uma coisa que -· toda a gente possa ter desde a altura em que nascer. Mead: Tudo se dirige para aí.. Muita gente tem electricidade, ou está relacionada com as luzes eléctricas. No passado ninguém conhecia a existência de uma coisa como a imediata inundação do mundo pela claridade através da luz. Um molho de folhas de coqueiro a arder não alumia nada. Ê que, sabe, constitui só um ponto. Não há ... Baldwin: Não ilumina. Mead: Não há iluminação. Baldwin: Os brancos,, em certa medida, são uma espécie de um caso trágico. Mead: Sim, mas, você está a ver, há iá uma parte que é também sua. Evidentemente que numa
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,., a,rnbos os grupos sofrem, os situação de opressao·rnidos. Os oprimidos sofrem opressores e ~s opr~rorizados, são aviltados, são fisicamente: sao ate sores sofrem moralmente. pobres. }/las os opreS do de sofrer pior. Baldwin: O que é um JllO gar algo dentro de si mes,. e l1e M ead: Porque t em qu oisas sobre que lhe gostav a mos. Agora uma da,$e~guntas . . . Levei um amigo de fazer algumas P ·s a ver a representação que meu que :nve em pe-~egros, de Genet. Ele tinha cá foi feita de Os que fora feito no Museu visto o espectáculo tado por africanos, jovens do Homem, represel1 os suponho eu -, e ele disafricanos - antropóloggr~ção do ódio. se-me ter sido uma sa Bal4win: Ai ~im? do a fizeram cá, a maior parte Mead: Sabe, e que quall lhaçada. Viu a representa" t'ICa pa foi uma auten çã.o? . , . :N0 Teatro St. Marks. Baldw.tn: VI-a ca, sim. . tudo fosse uma palhaçada. 10 M ead: Era como se aqlll dade. . . . , ver Baldwtn: S1m, Isso e rdade, o ódio que eles mosd' ave . Mead: E, para Izer ·s pobrezinho que se podia travam era do Jtla~esmo! arranjar. Mas era. cho que Os Negros, de Jean Baldwin: Ê verdade. :F}ll a.Jllodo, uma peça assustadora. Genet é, de um certo intimida. De certa maneira, 1109 Ê uma peça que dução da peça em Nova lar0 estive metido na P~ 0 encenador e muita gente que, porque conhecHLe ainda lá fui uma vezes dude entre os actores que eu notei é que muitos rante os ensaios. que estavam a representar dos actores negros
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ficavam.. . ou todos os actores negros tinham ... como é que hei-de explicar?-- não é que estivessem envergonhados, mas havia qualquer coisa no tom usado por Genet ... Mead: Que estava certo para eles. Baldwin: Havia qualquer· coisa de impiedoso no tom da peça e nas percepções da peça. Na ·verdade é uma peça muito negra, muito mais negra do que qualquer outra que um americano pudesse conceber ou escrever. Mead: Não há dúvida. Baldwin: No modo como ele a estruturou, ninguém consegue escapar. E tão-somente um círculo obscuro que vai continuar sempre a andar à roda, sempre e ainda sempre eternamente, segundo Genet. Não se trata aqui de concordar ou não com isto. M ead: Mas é isso que constitui a peça. Baldwin: E para a representar tem que se chegar a um nível dentro de nós mesmos., a que muita gente, realmente, não consegue chegar. E a razão, acho eu, que explica a peça ter estado sempre à beira de ser uma palhaçada é que os actores, ao representá-Ia, e mesmo inconscientemente, e talvez também o encenador, mesmo inconscientemente, tinham de proteger-se contra esta visão autênticamente de horror na qual, ao fim e ao cabo, toda a gente está irremediàvelmente condenad~. Sabe, não há nenhuma personagem daquela peça que valha nada. Toda elas são monstros e horrores totais. E tem-se uma suspeita terrível de que talvez Genet tenha razão; o que é certo
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é que há muito pouco no decorrer da história humana que demonstre que ela a não tem. Mas isso faz desvanecer toda a questão da cor, e talvez muito saudàvelmente, acho eu. M ead: Não estou lá muito certa no que respeita ao ódio a esse nível. Acha que, hoje, ·aqueles mesmos actores conseguiriam enfrentar semelhante ódio? Inclino-me a ... Baldwin: Acho que não. Mas não tenho a certeza de que o problema que a peça foca seja o ódio. Acho que é antes a história. M ead: ... pensar que haja actores diferentes a representá-la. Aconteceu qualquer coisa. Isto é, outra vez, mais a respeito do Sul do que do Norte. Sobre o que se faz neste país com respeito a tentar compreender o contraste entre os dois, evidentemente... Acho que tudo se torna mais fácil se tomarmos o Sul como uma outra nação. É uma cultura comp1etamente diferente, embora ambas façam parte da nossa consciência nacional. T·odo o habitante do Norte tem em si também o Sul. E, claro está,. todo o habitante do Sul tem o Norte dentro dele, o calcanhar do vencedor, e as coisas que ele faz no Sul e por aí adiante. Ora, até cerca de trinta anos atrás era verdade que não havia no Sul nenhum negro que não tivesse recebido qualquer atenção dos brancos. Poucos ou nenhuns médicos negros. haveria, ou professores negros, ou dentistas negros, ou enfermeiras negras diplomadas; :Huey Long conseguiu que as enfermeiras negras fossem admitidas nos hospitais, ao fazer discursos sobre como as enfer-
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meiras brancas tratavam os negros quando eles precisavam. Quase por toda a .parte - a não ser que vivessem em sítios muito ~fastados das áreas rurais- os negros eram tratados nos seus ferimentos pelos brancos. Baldwin: E vice-vers.a,. Mead: Não é bem vice-versa, porque havia aquelas áreas onde viviam os brancos pobres e onde não vivia nenhum negro. Estes brancos pobres foram apanhados entre dois fogos. porque os negros· desprezavam-nos, o mesmo acontecendo com os outros brancos. O facto é que não tinham vida nenhuma. E em 1942 comecei eu então a dizer: - Temos que andar depressa, enquanto houver ainda gente que ... Baldwin: Se lembre disto. Das atenções. Mead: . . . que se lembre disto, e que tiveram atenções uns para com os outros. Baldwin: Isso já não existe. Já não existe mesmo. M ead: É isso, está a ver. Foi isto que aconteceu. Em instituições do género do Institutó Hampton, com -·· os seus estudantes negros da classe média- alguns bem ricos -, há .muitos, creio eu, que,. em toda a sua vida, não receberam qualquer atenção dum branco. Baldwin: O facto é que nem sequer alguma vez chegaram a conhecer qualquer branco pessoalmente. Mead: Nunca os viam e isso assustava-os. Quando chegam cá fora, ao mundo branco, é possível que os odeiem, pois que estão a odiar alguém que não conhecem, e é muito fácil odiar um desconhecido. 53
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Mas é difícil odiar-se aquilo que está perto de nós, e era isto o Sul há trinta anos. Baldwin: Até há trinta anos. Mead: Até começar a haver um grupo bem instruído de médicos negros, advogados negros ... Baldwin: Até à segunda guerra mundial, que alterou a economia. Modificou as relações entre toda a gente e transformou a tal coisa patriarcal, que é aquilo de que essencialmente estamos a falar, numa coisa obsoleta. Tornou-se obsoleta quase de um dia para o outro. M ead: E o estilo em que aqueles actores representaram Os Negros foi no velho estilo das relações negro-branco. Baldwin: Não sei o que sucederia se se fizesse agora aquela peça. Há um sentimentalismo desgraçado que envolve toda a questão da cor na América. E uma coisa desgraçada. E Os Negros não é, de maneira nenhuma, para sentimentalismos. Contudo, toda a gente da América, incluindo os negros, ficou sempre até certo ponto- ou, se não sempre,, muitas vezes -cega por uma espécie de esperança que é simplesmente sentimentalista, na medida em que se não refere à realidade. Até o riiõvimento para os direitos civis estava manchado com uma espécie de sentimenta:lismo que, às vezes, quase me punha maluco. Tinha grande admiração por aquela rapaziada. Achava que toda a gente estava possuída de uma devoção e de uma fé tremendas. Contudo, nós somos um país muito sentimental. A consciência americana é sentimental de um modo exactamente tão mau como quando se
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fala da consciência alemã, o que quer dizer que ambas nunca vêem nada com clareza. Isto aplica-se também aos negros. Eu acho que agora está é a acontecer outra coisa. Acho que agora, com Os Negros, pode ser que. . . a representação se possa dirigir para uma espécie de sentimentalismo do ódio. Mead: Mas continuaria a ser sentimental. Baldwin: Mas continuaria a ser sentimental. Mead: Sabe, eu coloco o seu género de escrever ao lado de Louise Bogan ou de Will Gibson. Acontece que ambos são irlandeses que, quando crianças, tinham uma língua viva a rodeá-los e que, depois de penetrarem ne1a, encheram-se de li~eratura inglesa vinda de nenhures. Os pais de Louise Bogan mal sabiam as letras, e ela costumava contar que, aos dezasseis anos, entrava na Biblioteca Pública de Boston e tirava Keats da prateleira. Baldwin: Isso foi quase a mesma coisa que eu fiz. Mead: Primeiro havia a vivacidade de uma língua à volta. Acho que isso é necessário. Mas também não tinha havido ainda qualquer corrupção causada por algo de · baixo nível ou por qualquer coisa de semelhante, na realidade. Baldwin: Essa é a verdade verdadinha. Nunca pensei nisso dessa maneira até muitísimo mais tarde. Mas mesmo no princípio eu estava rodeado por aquelas pessoas na igreja e por toda aquela música e toda aquela imagética fantástica. Claro que quando se é criança não se reage do mesmo modo, mas a coisa existe em nós.
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Mead: Mesmo muito lá dentro. Baldwin: Quando era miúdo costumava dizer à minha
Mead: Bem, o assunto ... Baldwin: E A Cabana do Pa-i Tomás também signifi-
mãe:- Quando escrever vou fazer isto ou aquilo. Vou ser um grande escritor e vou-te comprar isto e aquilo. -E: ela então dizia-me, muito calma e muito seca: - Isso parece mesmo verdade. -Este género seco de ·falar, que caracteriza tanto o modo de se expressar dos negros na América, é a minha chave para uma certa coisa, só que nessa altura ainda não o sabi~. Foi então que comecei a ler. Li tudo em que pudesse pôr a mão, romances policiais, Terra Bendita, tudo. Na altura em que tinha treze anos conseguira libertar-me de Harlém pela leitura. Em Harlém havia duas bibliotecas, e na altura em que eu tinha treze anos já tinha lido os livros todos de ambas as bibliotecas, e tinha um cartão para uma biblioteca da baixa, da Rua Quarenta e Dois, que é o sítio onde encontrei um polícia branco pela primeira vez. Mas isso é outra his·tória. Mas isso tem muita coisa a ver com ... aquilo que eu tinha a fazer nessa altura era juntar as duas coisas: as possibilidades que os livros sugeriam e as impossibilidades da vida que me cercava. Claro que, nessa altura, tinha eu entrado em choque, sem sequer saber, com as noções de ... daquilo a que nós chamaremos a língua principal e dos factos da vida,. tal e qual como e'la, a vida, me estava a ser apresentada. Dickens tinha grande significado para mim, por exemplo, porque em :I)ic'kens havia uma raiva que havia também em mim.
cava muito para mim porque havia nela uma raiva que de um modo ou de outro existia também em mim. Havia coisas que eu reconhecia sem saber que as reconhecia, não sei se me compreende. Ma,is tarde, quando fui para ParJê e rr1e e_p.con~ trei a mim mesmo, tive que pensar nisto outra vez desde o princípio. Fui para. Paris porque em parte cheguei à conclusão de que não podia viver na América seguindo as directrizes pelas quais tinha vivido até aí, e até inconscientemente porque.. . Eu era muito novo, e as concepções das pessoas por quem eu estava rodeado, e que eram agora os brancos, eram tão fatalmente diferentes que eu andava realmente aflito. Havia o perigo de eu pensar que nem sequer existia, porque um negro, um rapazito negro, desconhecido, e sem ter onde cair morto, a andar como eu andava e a pensar como eu pensava, era, sem dúvida nenhuma, um psicopata perigoso.. É óbvio que nós temos que dizer o que pensamos e não há maneira de o escondermos. As pessoas olham-nos com grandes interrogações e grande hostilidade, e eu então enchi-me de medo porque já estava a ver que não conseguia funcionar num mundo assim, mesmo até numa língua destas, e fui-me embora. Mas comecei a pensar em francês. Comecei a compreender a língua inglesa melhor do que já a tinha compreendido antes; comecei a compreender a língua inglesa de onde eu tinha saído, a 1íngua qu~ produziu Ray Charles ou Bessie Smith, ou
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que produziu todos os poetas que me produziram a mim,. Começou aqui uma espécie de reconciliação que não podia ter acontecido se eu não tivesse saído do domicílio da língua inglesa. É um tipo de odisseia muito estranho, mas acho que, de um certo modo, explica muito da literatura negra americana. Só para discussão, há duas espécies de poetas: o tipo do poeta respeitável, representado por Countee Cullen, que, em essência,. usou um idioma emprestado e fez coisas muito interessantes com ele, mas coisas de interesse muito diminuto, e uma poetisa como Gwendolyn Brooks, que vai buscar autênticamente a língua que se usa nas ruas. Ela conhece Shakespeare e Blake e Milton e consegue fazer aliterações maravilhosas a par de saborosas ironias e percepções, porque vive dentro de ambas . as línguas. De certo modo ela está a criar - e é isso que se faz se se é escritor- num certo sentido, re-criar a língua. Mas só se pode re-criá-la a partir da fala humana, e é por isso que, até certo ponto, os poetas negros estão a transcrever, pela primeira vez na história do mundo, a experiência do povo negro para aquilo que essencialmente tem sido sempre uma língua branca. Esta é uma das maiores contribuições inconscientes que a América nos tem dado, pois que, na verdade, o modo de falar dos Americanos está tremendamente influenciado e marcado pelas suas relações com os negros. Fez dela uma língua completamente nova que não existe, por exemplo, na Inglaterra, ou onde quer 58
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que se fale o inglês. E os negros de todas as . outras partes do mundo- comecei a notar isso quando estive em Londres e em África - os negros que chegam das colónias, estão a começar a não se sentir bem no Ocidente, assim como que contrafeitos. Mead: Aprenderam quer francês quer inglês ·como língua estrangeira académica, e para eles não tinha o mesmo significado. Baldwin: Mas é que era isso mesmo. E ainda para mais estavam noutra situação: tinham nascido numa circunstância em que toda a gente que eles viam era negra, excepto, talvez, o governador-geral. Por isso, era muito mais difícil para um negro, nascido com a cidadania britânica, conseguir saber onde realmente estava, ou onde é que estava realmente o poder. Não foi senão ao chegar a Londres, na maioria dos casos, que ele descobriu que não era livre - essa 1iberdade que tinha servido de mito na ilha ou na colónia, porque os ingleses, e os franceses também, tiveram ~ boa ideia de arranjar todo o género de coisas destas. · Mas quando chegou a Londres descobriu então - e é esse momento tão difícil de passarque não era inglês, que Londres era a sua única metrópole, mas que ninguém o queira lá. Na língua inglesa não havia futuro para ele,. mas no passado também não havia futuro, pois que, desde que se parta, já se não pode regressar. Há um certo aspecto em que se pode dizer que eu nunca saí de Harlém. Mas também há outro aspecto em que de certeza não poderei lá
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regressar, mesmo que seja só por já não existir a Harlém em que eu nasci. E. embora essa ruptura tenha qualquer coisa a ver com a raça, também tem qualquer coisa a ver com a natureza ou qualidade ou especialidade- não sei que palavra empregar aqui - da experiência humana. Porque no meu caso, como no caso do rapaz que chega a Londres, há uma alternativa em que, ou se aceita incondicionalmente a dá.diva~ da língua, a dádiva da cultura, da cultura dominante, na certeza d~. se. ter de trair a mãe, o pai, os irmãos, ou então se vira costas a tudo isso regressando para junto da mãe, do pai e dos irmãos, transformado num inútil. Porque, como eu já disse, não se pode regressar. E a única outra coisa que se pode fazer , é t~ntar extrair aquilo que se precisa da própria cultura, arrastar connosco aquilo de que se precisa tirado do lugar de onde vimos. É então que se deve prestar grande atenção tanto às pessoas acima de nós como às que estão ao nosso lado, as quais, com efeito, estão por baixo de nós- por baixo porque, culturalmente, teriam aspecto de não estarem tão bem preparadas. Vive-se numa espécie de mundo irreal até se principiar a destrinçar tudo isto, e um processo mais longo do que se possa imaginar porque muita rapaziada que eu vejo agora em Londres faz-me lembrar como eu era, digamos, aos catorze anos. Lembra-se, parecia-me com o Malcolm X quando andava a alisar o cabelo e nas suas borgas, lá por Detroit a aprender, como eie pensava, os truques dos brancos. Mas, é evidente que quando
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se anda a aprender truques, o aspecto que se tem é de quem anda a aprender truques. A roupa não nos serve, o cabelo não anda bem,. ainda nem sequer é nosso. E. o negro americano é provàvelmente a única pessoa que jamais fez uma viagem dessas. M ead: O inglês é a língua materna. Baldwin: E nasceu no Ocidente. M ead: Sim, nascido no Ocidente, e esta é a sua língua materna. Baldwin: Mas Nova Iorque não é a minha metrópole. É a cidade em que nasci. É a minha cidade. A cidade pertence tanto a mim como a qualquer outra pessoa no país. Londres também pertence aos negros, que pagaram tanto por ela, sabe Deus quanto, como qualquer outro inglês brancQ. Mead: Mas eles não nasceram lá. Baldwin: Não nasceram lá. É uma relação completamente diferente, e vai levar muito, muito tempo, até que saia qualquer coisa deia. Está a acontecer a mesma coisa em França essencialmente. Está a acontecer por todo o mundo ocidental. Não seria assim tão sinistro, sob tantos aspectos, se o mundo ocidental fosse mais luminoso ou o oriental mais atraente. Mead: Mas sabe, quero voltar a· falar sobre a República da Ãfrica do Sul, porque os sul-africanos. são os únicos brancos que pertencem ao continente africano. E é que pertencem mesmo. Foram expulsos da França depois do massacre de S. Bartolomeu; ficaram sem lar. Foram para a Holanda e aprenderam holandês,. mas os Holandeses tratavam-nos
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de uma maneira abominável, e por isso o holandês também não era a língua materna deles. Andaram de terra em terrra. Foram para a África, que era uma região quase vazia. Havia lá muitíssimo pouca gente, quer negros quer brancos, só uns poucos de povos nómadas. A maioria dos negros foi para lá mais tarde. Foi então que os brancos lutaram por esta região, e pensaram então que tinham um país. É isto que eu ouço na voz. - e não é nas pessoas que falam Afrikaans; é nos sul-africanos de língua inglesa quando ouço as palavras «O meu país». Isto também se ouve nas vozes dos novos povos que se preocupam com a situação do país onde vivem. Baldwin: Que andam preocupados com o modo como lhes tratam o país e com o que as pessoas pensam dele. Mead: E eles estão num continente que toda a gente pensa como pertença dos negros, do mesmo modo que se pensa que a Europa pertence aos brancos. Baldwin: Compreendo-os muito bem, acho eu. Mas, claro, é inaceitável. O regime é inaceitável. Mead: Oh, o regime é terrível. Baldwin: É possível que venham a ser as vítimas mais espectaculares da doutrina da supremacia branca que o mundo jamais viu, porque é óbvio que não conseguem libertar-se dela. M ead: Não têm para onde ir; puseram fogo a todos os barcos. Quando saíram da Comunidade Britânica eram como aquelas pessoas que acreditam que está para vir a segunda vinda de Cristo. Essas pessoas dão as roupas e o dinheiro que possuem e vão
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para o telhado embrulhadas em lençóis, e não há dúvida nenhuma de que o que elas esperam vai acontecer. Tem que acontecer, porque não há sítio nenhum para onde ir. Baldwin: Mas nunca mais acontece. Nem agora nem nunca. M ead: É então que é preciso pensar comparativamente em to-das estas situações por esse mundo fora; é preciso pensar em todos aqueles grupos diferentes nas Caraíbas - como eles são diferentes. e o que trazem para o país - depois é preciso olhar para a antiga Guiana Inglesa - onde os negros tinham melhor situáção que os hindus. Baldwin: Sim, há situações idênticas em algumas das nações africanas, pelo menos na costa ocidental onde os da Libéria ... Mead: Estão a ser maltratados. Baldwin: Ou a ser postos fora. Mead: A serem postos fora e tratados de uma maneira terrível. Baldwin: E custa muito. Uma pessoa tem que libertar o seu próprio ego de qualquer tipo de sentimentalismo. É preciso tentar compreender realmente o que está a acontecer neste século. O maior sentimentalismo que tanto negros como brancos partilham durante anos é a noção de que os negros são, de certo modo, diferentes dos brancos. Em . algumas coisas somos diferentes mas, infelizmente, há uma coisa na qual ninguém é diferente, ou seja, o nível da sua maldade. Também aí se pode dizer que todos os homens são irmãos. As nossas. ideias a respeito dos seres humanos têm de ser tão Iúci63
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das quanto possível, porque nós somos ainda a nossa própria e única esperança. M ead: Acho até que há diferenças de maldade em diversas culturas. Por exemplo, quando os Ingleses se zangam, ficam cada vez mais frios, cada vez mais frios. Ora quando os Americanos se zangam, negros ou brancos, não é frios que eles ficam ... Baldwin: Aquecem, é o que é. M ead: Aquecem e gritam, e aí está uma autêntica diferença. Quando os Irlandeses se zangam é porque estão apaixonados. Era esta uma das coisas que . costumava observar com a minha filha quando vivíamos na mesma casa com uma família cuja esposa era irlandesa. Ela tratava a minha filha de um modo extraordinário, mas não a amava tanto como amava o próprio filho. Por isso, a minha filha estava a começar a aprender que a raiva e o amor eram o mesmo, coisa que ela nunca deveria aprender, pois que, ao fim e ao cabo, nem era irlandesa. Como Kipling diz naquele poema: «Pois que onde haja irlandeses, há amor e há luta, e quando nenhum destes existir já não é a Irlanda! Já não é a Irlanda!» Há portanto uma diferença, mesmo na raiva, e a raiva pode então 1evar à crueldade entre um grupo e outro. Outra coisa sobre que eu agora lhe quereria falar era o papel que desempenha o tacto. Parece-me que o americano vulgar da classe média é extraordinàriamente inibido no que respeita a tocar noutras pessoas.
Baldwin: Para dizer a verdade,, ele está é gelado. M ead: Está gelado. Talvez cumprimente apertando a
mão. Baldwin: Mesmo isso é feito com muito nervosismo.
Me:ad: Não é coisa que ele goste realmente. No que respeita à experiência que eu tenho de trabalhar com negros, o que eu noto é que tenho que lhes tocar, ou eles a mim, se é que queremos fazer alguma coisa. Baldwin: Oh, sem dúvida. Mead: Sinto que, se não lhes toco, não consegui de modo nenhum comunicar- com eles. Podia ficar sentada do outro lado da sala a fazer discursos eternamente, mas um só toque torna tudo diferente, só um. Baldwin: Não sei a razão diss~·. Lembro-me de uma vez em África, quando eu observava o modo como as mulheres levavam os bebés; levavam-nos embrulhados num pano, às costas. Alguém disse que é isso quase a chave para a psicologia do africano, porque, quando o bebé precisa de_ qualquer coisa a única coisa que tem a fazer é bater à porta. Jl;l ead: E não é coisa que se veja, está a ver? Baldwin: Ê uma coisa sentida e só se pode reagir aos seus movimentos. Ê uma coisa tão subtil, não é? E não é nada típica da vida do Ocidente; é típica da vida que eu vivi. Todos nós crescemos em cima uns dos. outros, às bofetadas ou aos beijos, ou o que quer que fosse. Mas sempre nos tocávamos e, por isso, todos nós tocávamos em todas as pessoas.
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Todavia, esta é uma das inibições terríveis dos negros da classe média. Vai-se a festa dada por um negro da classe média, uma festa bastante elegante, fina- são festas detestáveis- e toda a gente se porta de um modo mais rígido do que qualquer inglês ou americano branco, porque, como eu já disse, andam a aprender truques. Então, cerca das duas da manhã, há sempre um que se vai abaixo, se é que se consegue estar até tão tarde, e não tarda muito que acabem todos na cozinha. Está a ver, depois de os mais empertigados terem ido embora, os donos da casa vão à cozinha, trazem uma galinha, e então nós tiramos os sapatos e voltamos aos nossos modos selvagens, e é então que nos divertimos,. só por estarmos na companhia uns dos outros e por sermos nós próprios. Mead: Bom, uma das coisas importantes, parece-me a mim, uma das coisas importantes neste país, é quando um negro toca um branco livremente. É isto o que tem acontecido. Você pode ter a impressão que tudo tem vindo de mal a pior. Mas eu ando por aí como pessoa branca. Do mesmo modo a minha irmã, e ela diz a mesma coisa. Ela já foi professora em Harlém, foi professora em muitas partes de Nova Iorque. Hoje em dia, quando, às vezes, se sente mal das pernas e anda de bengala- há um negro que vem, lhe pega no braço e a ajuda a atravessar a rua. Baldwin: Isso na América foi sempre verdade. Mead: Não é bem assim. A iniciativa do toque nunca podia ser tomada muito à vontade. Havia sempre
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uma linha que, ao atravessar-se, podia ser perigoso. Mas eu acho que tem grande importância que os negros se sintam livres para tocarem os brancos, porque se eles não conseguem tocar nas pessoas não se sentem humanos. Baldwin: q facto de ·não se tocar numa pessoa é um modo de a rejeitarmos. E é também um modo de ser rejeitado. Recordo-me, quando era muito mais novo,. quando andava no liceu e também estava no púlpito, que passava por grandes traumatis.mos. Tinha aí os meus catorze anos, e a minha mãe tinha-me ensinado que no metro me devia sempre levantar para dar o lugar às senhoras. Mas alguns dos pregadores diziam-me que eu nunca me devia levantar para dar o lugar a uma branca. Isto causou por uns tempos grande conflito dentro de mim, porque se eu me levantasse por causa de uma branca poderia parecer um acto de servilismo. Resolvi este problema fàcilmente nunca me sentando ao viajar no metro. Mas era tr-aumatizante porque tinha que pensar no assunto, e pensar bem nele e chegar à conclusão · se. a cor de uma mulher era mais importante do que o facto de ela ser mulher. É uma coisa que passa, mas eu acho que toda a pessoa de cor deve ter passado por esta espécie de guerra privada, especialmente sendo homem. Ser negro. Negro.. Negro. Este é outro aspecto de tudo isto sobre o qual ninguém ainda se debruçou! O que significa, já muita gente o sugeriu, mas autênticamente apreendido nunca o foi. E uma situação muito complexa esta de um rapaz negro 67
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que se desenvolve até ser homem e que, de repente, se encontra a viver neste país. A sua sexualidade está ameaçada desde o momento em que abre os olhos para o mundo. E a única pessoa que, na verdade, sabe qualquer coisa sobre isso,. que o sabe bem no íntimo, é também a figura mais perigosa da sua vida - a mãe. O pai, na maioria dos casos, quase que não tem quaisquer relações com o filho. Mas também não é uma coisa que dependa muito dele, pois que a sua própria existência está ameaçada, e todos os dias se encontra com facas, em parte também para alimentar o filho. Recai portanto sobre a mãe a responsabilidade de dar à criança, ao seu filho, uma espécie qualquer de dignidade interior que o proteja de uma coisa contra a qual ele não pode realmente ser prote, gido, a não ser que, no seu interior, ele possua algo que sirva para lhe fazer face. Na minha própria experiência também fiz alguns passes de lado e algumas escapadelas, mas também houve muito ataque frontal que tive que fazer. Uma parte do grande dilema era, em primeiro lugar, como é que se havia de tratar uma negra. No processo do meu crescimento havia grande ambivalência no facto de se ser negro, e não se sabia nada de nós mesmos, mas também não éramos nós que tínhamos culpa. As escolas onde eu andara, os livros que lera e as pessoas que eu conhecia também não sabiam nada de si próprios, e para me descobrir a mim mesmo tive que fazer umas tantas coisas difíceis. Mas que relações se podiam ter com uma rapariga negra
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que já de a_ntemão se sabia que não podíamos proteger, a nao ser que já se estivesse preparado para p~ssar a vida como "'~gtp_regado d9ê:_eorreios, ou a ~ao ser que se estivesse preparado para fazer n_~~9_C!~tas para as quais eu, temperamentalmente não servia? . ' ~ mesmo assim a coisa não -podia resultar. ~ nao .resultava. Bastava olhar à roda para ver Isso. VIa então o preço que alguns negros pagav~m_,_ que alguns negros notáveis tinham pago. ~ Eram homens extraordinários e mui to difíceis difíceis m~smo, embora não comigo, porque gosta~ v.am de mim. Mas eles estavam muitíssimo condiCIOnados. Ninguém, de mente sadia, lhes ia dizer qualquer coisa que não lhes caísse bem, em qualquer terça-feira, a não ser que quisesse morrer. Depois há o grande problema das mulheres brancas. Vêm ter connosco, a maior parte delas como se nós fôssemos o símbo~Q __ exótic()- bom' vêm realmente ter connosco como s~~--~ó~--fôssemo~ um s!mbolo extraorrdinário do falo. Mead: Como se vocês não fossem mais -nada senão um símbolo fálico. -, · Baldwin: Como se não fôssemos mais nada senão um falo ambulante. M ead: Não se fala de cabeça. Baldwin: Não, não há cabeça, não há braços, não há nad~, só um ... e, claro, por uns momentos pode-se ser Isso. Mas acaba-se - bem, na verdade 0 acto do amor transformou-se num acto de assassínio no qual também se está a cometer suicídio. No
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meu caso, o que eu fiz foi abandonar a cena do crime completamente. Fui para outro país, cerca de cinco minutos antes de ter sido levado para o hospital dos loucos. Cheguei a França, e foi então que me saiu tudo cá para fora. Comecei por dar cabo de alguns bares, por bater em pessoas. Passei um ano em Paris a tentar dar cabo da cidade. Glaro que também dei cabo de mim, e acabei na prisão. Levou-me um ano - quer dizer, a ir para a prisão. Mesmo na altura em que as coisas estavam a acontecer eu tinha plena consciência disso, mas não conseguia parar. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, tudo aquilo tinha que me sair cá para fora. E, finalmente,. quando eu estava com. pletamente ao nível do chão, e a modos que humilhado comigo mesmo, porque sabia que me tinha portado muito mal, a coisa acabou. Acabou qualquer coisa. A armadilha, se se nasce numa situação destas, a natureza da armadilha, mesmo que se não saiba, é aquiescente:. Ensinaram-nos que somos inferiores e por isso actuamos como se fôssemos inferiores. E acreditamos nisso, ao nível difícil a que se tem de chegar. E, claro, tudo o que se fizer para provarmos que não somos inferiores só faz com que prove realmente que o somos. São \ como um boomerang. Mead: Sim se se está atento. Baldwin: O jogo decorre de acordo com as regras que foram feitas por outra pessoa qualquer, e não se consegue vencer a não ser que se compreendam
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as regras e se abandone esse tal jogo que, ao fim e ao cabo, não vale a pena jogar. M ead: Sabe, julguei que valeria a pena pensar um pouco sobre o paralelismo existente entre a raça e o sexo e onde esse paralelismo existe e onde não existe. Costumava rir-me um bocado com o Ralph · Bunche porque havia partes do Cosmós Club onde ele não podia ir, e havia outras onde eu não podia ir. Havia diferenças, mas. ambas as nossas exclusões tinham por base certos preconceitos. Ora o que o Movimento de Libertação da Mulher tem dito ultimamente, claro, é que as mulheres ·aceitaram uma versão sobre si mesmas feita pelos homens. E quando se fala de escrever, em que língua é que se vai escrever? Robert Browning escreveu: «Ensina-me,. ensina, Amor! Obediente falarei a tua língua, Amor. Pensarei pelo teu pensar.» A vida toda de Elisabeth Barrett Browning foi só representar a imagem que ele tinha feito dela. E também há Olive Schr~iner, ou Emily Dickinson, embaraçadas com imagens que não são realmente femininas, e não as conseguem manusear muito bem, pois tiveram pràticamente que se ~separar das ... Baldwin: . . . suas próprias vidas. M ead: E tiveram de trabalhar para arranjar novas imagens, pois que não havia nenhumas para elas na literatura. Baldwin: É isso a mesma coisa que os negros têm de fazer.
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Mead: E é aí que se baseia um tipo de relações, em
que se aceita, em que se usa, uma língua que não foi escrita, que não foi feita, para nós. Baldwin: Que não _foi escrita a pensar em nó~, e a única coisa que há a fazer é simplesmente forçar a língua a prestar-nos atenção a fim de que .exis. { tamos ne1a, e não há outra saída senão existir nela. Mesmo se conseguíssemos aprender Swahili, continuamos a precisar da língua inglesa para fazer todas as coisas que ainda têm de ser feitas neste século aterrorizante. A coisa da raça-sex