O Que te Escrevo Continua e Estou Enfeitiçada - Cem Anos de Clarice Lispector [1 ed.] 9786558614401

Este livre reúne diferentes modos (estético, filosófico, psicológico, psicanalítico, metafísico e histórico-cultural) de

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Português Pages [314] Year 2021

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Table of contents :
A via crucis pela qual todos passam: corpo e escrita em Clarice Lispector
O direito ao grito: as vozes entrelaçadas na narração de A hora da estrela
Tempo e espaço em Água viva
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: considerações a partir da Psicanálise
O discurso lírico na sintaxe narrativa de Perto do coração selvagem
Sobre os autores
Sobre o organizador
Índice Remissivo
Suspender imagens, inventar porvires: regimes de sensibilidade na pintura de Clarice Lispector
Delicadeza e sutileza: sobre a leveza do poder da dona da história
A bela e a fera: das ultimidades, um réquiem para Clarice Lispector
A voz mortuária da consciência individual: algumas notas sobre processos de subjetivação reificados em Onde estivestes de noite
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O Que te Escrevo Continua e Estou Enfeitiçada - Cem Anos de Clarice Lispector [1 ed.]
 9786558614401

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Diego Luiz Miiller Fascina (Organizador)

“O que te escrevo continua e estou enfeitiçada”: cem anos de Clarice Lispector

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Comitê Editorial Editora-Chefe: Sandra Heck Editor-Superintendente: Valdemir Paiva Editor-Coordenador: Everson Ciriaco Diagramação e Projeto Gráfico: Rafael Chiarelli Arte da Capa: Paula Zettel Revisão Editorial: Thais Valentim Revisão de Texto: Os autores DOI: 10.31012/ 978-65-5861-440-1

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626 Q3

“O que te escrevo continua e estou enfeitiçada”: cem anos de Clarice Lispector / organização de Diego Luiz Miiller Fascina – 1.ed. - Curitiba: Brazil Publishing, 2021. [recurso eletrônico] Vários colaboradores ISBN 978-65-5861-440-1



1. Lispector, Clarice, 1925-1977 – Crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira – História e crítica. I. Fascina, Diego Luiz Miiller (org.). CDD 801.95 (22.ed) CDU 869.0(81)-3

[1ª edição – Ano 2021]

www.aeditora.com.br

Apresentação O horizonte como extravasamento

Os editores evitavam Clarice Lispector como se fosse praga. A informação é do jornalista Paulo Francis. A escritora que morava em Washington, nos Estados Unidos, desde setembro de 1952, estava sem editor. Fernando Sabino e Otto Lara Resende se desdobravam para encontrar uma editora que divulgasse os inéditos da amiga que, mesmo longe do Brasil, continuava a produzir ficção. Ênio Silveira prometia lançar o que seria mais tarde A maçã no escuro (1961) e Simeão Leal, o livro de contos que seria conhecido como Laços de família (1960). Mas as duas obras não foram publicadas conforme as promessas, a ponto de Clarice solicitar a devolução dos originais, cansada de esperar anos pelas edições. Não vou entrar em pormenores aqui, mas o fato é que, ainda segundo Francis, a ficcionista era apenas conhecida por um grupo de intelectuais e as editoras a restringiam justamente pelo caráter moderno de sua literatura, distante do “realismo socialista”, então em voga. Mas diante da qualidade da literatura que escrevia, ele envia convite para que a escritora publicasse contos na revista Senhor que estava criando com os amigos Nahum Sirotsky, Carlos Scliar e Luiz Lobo e que seria lançada em março de 1959. Convite aceito, Clarice se populariza.

Esse episódio ilustra o drama de Clarice Lispector com as editoras. Mesmo quando ainda não havia tomado posse de seu destino, a menina Clarice já se deparava com recusas de publicação por não pertencer, digamos, às demandas de mercado. Não podemos nos esquecer das histórias que enviava, com a ajuda da irmã Tania, para a seção Diário das Crianças, do jornal Diário de Pernambuco, reiteradas vezes negadas por não apresentarem fatos e sim sensações, como analisou Clarice revendo seu passado. Mas as páginas de jornal guardam não apenas textos jornalísticos da repórter, colunista, entrevistadora e cronista que foi Clarice, mas também a ficção que antecedia a inserção em livros. Em certos momentos quando não encontrava editora, vários de seus contos eram publicados em revistas. Citamos aqui a Senhor, uma das mais importantes e refinadas publicações do Brasil, que circulou na virada entre as décadas de 1950 e 1960, quando o país se modernizava e abrigava uma Clarice que retornava dos Estados Unidos com seus dois filhos, separada do marido e plena de experiências pelos quase 16 anos vividos no exterior acompanhando o marido diplomata. De volta ao Rio de Janeiro em junho de 1959, retoma o jornalismo interrompido aos 23 anos de idade, mas atua com bem menos entusiasmo. Importava para Clarice Lispector a realização de um projeto literário que poucos souberam identificar, principalmente quando lançou A via crucis do corpo em 1974. Álvaro Pacheco, da Artenova, que havia publicado Água viva (1973), atento à modernização a que as editoras deveriam se submeter e ao perfil de mercado, solicitou, em trabalho recorde, a ser escrito em praticamente um final de semana, um livro de contos sobre sexo. A proposta causou perplexidade e recusa imediata, por dois fatores: o caráter de ser uma encomenda e a natureza das histórias. Pacheco convenceu Clarice a escrever. Afinal, ela deveria ter a liberdade de criar. Ela cumpriu a proposta, mas temeu

ser rechaçada pela crítica. O que de fato aconteceu. O livro foi considerado “lixo” e até hoje é o menos estudado e vendido. No entanto, em A via crucis do corpo, fica evidente, pela linguagem próxima aos faits divers e ao texto jornalístico, o aprimoramento da proposta em que forma e conteúdo não se distinguem. Aliás, as expressões “corpo e alma”, “matéria e energia” ou “fundo e forma” nunca tiveram muito sentido para ela pela questão da divisão. Clarice deixou essa questão evidente no texto “Literatura de vanguarda no Brasil”, escrito originalmente para sua participação, em 1963, no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, na Universidade do Texas, em Austin, (Estados Unidos), que sempre relia em eventos para os quais era convidada a falar. E justamente esse ponto — a não divisão entre forma e conteúdo — é o fator de motivação no que poderemos denominar de projeto literário de Clarice Lispector, já identificado pelo crítico Benedito Nunes quando mencionou a existência de um plano metalinguístico da ficção clariciana. Os estudos críticos reunidos em O que te escrevo continua e estou enfeitiçada, organizado por Diego Luiz Miiller Fascina, permitem compreender a trajetória literária de Clarice Lispector em suas especificidades, incluindo o trabalho da colunista de página feminina, cujos textos foram reunidos por mim na obra Correio feminino. No âmbito das comemorações pelo centenário de nascimento de Clarice Lispector, a obra surge como oportunidade para nova revisão e compreensão da ficção da autora. Notamos o cuidado do organizador em reunir artigos que contemplassem obras pontuais, que nos permitem acompanhar a evolução do projeto literário ou do plano metalinguístico clariciano. Dessa forma os artigos versam sobre Perto do coração selvagem (1943), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), Água viva (1973), A hora da estrela (1977), Correio feminino (2006), A bela e a fera (1979), A via crucis do corpo (1974) e Onde estivestes de noite (1974), além do estudo sobre as pinturas que a ficcionista nos legou.

Portanto, este livro que Diego Fascina organizou em momento no qual o legado de Clarice Lispector é revisto, e ao mesmo tempo reverenciado pela mídia, nas diversas comemorações do centenário de nascimento da ficcionista, nos convida ao aprofundamento e ao debate acadêmico. Porque ler Clarice Lispector é sempre uma “surpresa perturbadora” pelo que ela traz de novo e original nesta busca de eliminar os espaços entre forma e conteúdo, o que talvez explique o fato de as editoras não terem se rendido à proposta literária que realizava. Também não era tarefa fácil para os editores e muito menos para a própria Clarice Lispector que declarou em Para não esquecer: “Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda minha palavra tem um coração onde circula sangue.” (1978, p. 16) Ou, como nos revelou o jornalista José Castello, em Inventário das sombras (2006, p. 11), a respeito da obsessão de Clarice Lispector: o vazio. O projeto secreto dela, conta Castello que a entrevistou, era a destruição da literatura, “ela queria chegar a narrativas tão transparentes, tão agudas, que enfim os segredos da palavra se revelassem e a escrita se tornasse apenas luz. Para isso, habitou um mundo em ruínas, o deserto que fica para além das palavras, escolha pela qual pagou um alto preço”. Em O que te escrevo continua e estou enfeitiçada, o leitor terá mais evidente o percurso e a proposta de Clarice Lispector, muitas vezes solitários na literatura brasileira, tendo em vista os versos de Drummond no poema necrológico que fez para ela: “Clarice não foi um lugar-comum, carteira de identidade, retrato”. Contudo, nas entrelinhas, podemos dialogar com Clarice. Ela nos espera lá. Aparecida Maria Nunes Universidade Federal de Alfenas

Sumário

O discurso lírico na sintaxe narrativa de Perto do coração selvagem. . . . . . . . . . . . . . Maiara Cristina Segato

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Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: considerações a partir da Psicanálise . . . . . . . . . . . . Paulo Sérgio Pereira Ricci Gustavo Henrique Dionisio Tempo e espaço em Água viva . . Evely Vânia Libanori Stephanye Beatriz Padovani Barbosa

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O direito ao grito: as vozes entrelaçadas na narração de A hora da estrela. . . . . . . . . . . . . . . 81 Thays Pretti A via crucis pela qual todos passam: corpo e escrita em Clarice Lispector . . . . . . . . . . . . . . . . 102 Mirian Cardoso da Silva Wilma dos Santos Coqueiro

A voz mortuária da consciência individual: algumas notas sobre processos de subjetivação reificados em Onde estivestes de noite. . . . . . . . . . . Rafael Lucas Santos da Silva A bela e a fera: das ultimidades, um réquiem para Clarice Lispector . . . . . . . . . . . . . . . Sandro Adriano da Silva Cleber da Silva Luz Delicadeza e sutileza: sobre a leveza do poder da dona da história . . . . . . . . . . . . . . Jussara Bittencourt de Sá Marina Bonatto Malka

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Suspender imagens, inventar porvires: regimes de sensibilidade na pintura de Clarice Lispector. . . . . . . . . 290 Roberta Stubs Índice Remissivo. . . . . . . . . . . . . 306 Sobre o organizador . . . . . . . . . . . . 309 Sobre os autores. . . . . . . . . . . . . . 310

O discurso lírico na sintaxe narrativa de Perto do coração selvagem

Maiara Cristina Segato

Introdução A narrativa de Clarice Lispector apresenta-se como uma forma inovadora do romance brasileiro, inserindo-se em uma tradição de escritores que, indubitavelmente, contribuíram para a consolidação dos padrões estético-literários, que foram instituídos no Brasil, a partir da primeira metade do século XX. Com importância inestimável para a literatura nacional, em meio a outros grandes escritores de sua época, como Guimarães Rosa, a autora de Perto do coração selvagem singulariza uma técnica de composição, até então, inédita em nosso país, qual seja a adoção de uma concepção diferenciada da tradicional, tanto no domínio formal quanto no de conteúdo. Clarice inaugura a “epifania” da consciência, o mergulho no psiquismo, expressando o indízível por meio da linguagem, relegando, assim, para segundo plano, as circunstâncias exteriores, físicas. Affonso Romano de Sant’Anna afirma, a respeito de Clarice, que “sua literatura não é realista, mas simbólica, na medida em que o texto é o instaurador de seus próprios

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referentes e não se interessa em refletir o mundo exterior de um trabalho mimético” (SANT’ANNA, 1973, p. 184). Importante destacar também a forma em que se apresentam as cenas do romance, ou seja, a descontinuidade, a ruptura do que seria a ordem lógica da narrativa, o que levou a muitos questionamentos por uma grande parte da crítica. No decorrer de toda a sua obra, é possível observar que a linguagem apresenta-se como um aspecto incômodo a ser enfrentado. A autora questiona a dificuldade de expressar, por meio da escrita, o mundo das sensações. Esse processo de busca pela palavra que expresse o verdadeiro sentido das coisas, essa procura por um entendimento sobre o estar e o ser na vida, inicia-se já no primeiro romance, Perto do coração selvagem, no qual a protagonista Joana procura o sentido de sua existência, sendo toda a narrativa em relação à peregrinação do “eu” disperso em si mesmo, como “um esboço aberto a um preenchimento impossível” (ROSENBAUM, 2006, p. 38). A personagem Joana absorve os acontecimentos exteriores e os envolve na intensificação de um conflito interior dramático, levando-a à introspecção. A solidão, a paradoxal busca pela liberdadade, a incomunicabilidade, o desencantamento do mundo e os abismos da existência humana são aspectos que corroem o cerne dos conflitos da protagonista, que, levado ao extremo, racionaliza as emoções. Nesse sentido, adentrar o texto clariceano, em particular Perto do coração selvagem, é descobrir um fluir rítmico, dotado de grande carga poética e lírica. O lirismo poético é o modo de expressão muitas vezes necessário para dar conta dos conteúdos metafísicos e identitários da personagem, o que faz fugir dos padrões narrativos tradicionais Enquanto forma híbrida, o romance incorpora a linguagem da poesia, empregando figuras de linguagem que proporcionam uma expressão sinestésica, metafórica e imagística, impondo ritmo ao seu fluxo narrativo. Ou seja, a concepção de poesia,

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baseada na métrica, na musicalidade e brevidade do poema perde, assim, sua força paradigmática. É mais perceptível a convergência entre os gêneros prosa e poesia, quando temos em mãos um romance introspectivo, visto que essa tentativa de transpor os estados indefinidos da alma, de traduzir o indizível, fomenta a força poética e lírica na ficção. Lançar mão de uma escrita literária que emprega recursos poéticos na prosa é, no caso, tentar explicar o inacabado, o ambíguo, as incertezas humanas diante de uma realidade caótica. Desse modo, o resultado é a problemática dos gêneros, com formas textuais cada vez mais flexíveis. Embora já houvesse experiências poéticas em romances anteriores de outros autores nacionais, a autora surge com uma proposta bastante diferente da que predominava na época, em que o conjunto de obras escritas no Brasil, a partir de 1928, pautava-se na representação da realidade, sob uma temática regionalista, por exemplo, em uma narrativa normalmente linear. Ao romper com o romance regionalista, a autora propõe uma linguagem inovadora para a ficção nacional. O gênero romance deixa seu modelo tradicional para ganhar nova dimensão, problematizando a linguagem e discutindo os próprios limites do gênero. Clarice praticamente extingue essa linha divisória, quando emprega em sua produção literária efusões líricas, evocadas por reflexões sobre a existência humana, pouco explicáveis pelas palavras. Essa singularidade da narrativa clariceana, em particular de Perto do coração selvagem, em relação à sondagem da existência humana, resulta, por fim, em uma manifestação estilística e estrutural muito particular e nova. Partindo desse pressuposto, o nosso estudo incidirá sobre duas perspectivas que, ao nosso ver, são complementares, ou seja, o discurso filosófico/lírico e a sintaxe narrativa. Sendo assim, o procedimento fundamental reside na análise literária do discurso lírico, que perpassa as

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reflexões filosóficas enquanto fator de ruptura da factualidade e da linearidade narrativas. A compreensão do lirismo poético implica considerar a natureza híbrida da prosa poética, o drama metafísico identitário e “filosófico”. O sentido de novidade romanesca, de interesse direto neste estudo, obriga ainda a abordagem de sintaxe narrativa, considerando neste particular, de um lado, as repercussões da “motivação” reflexiva (“inativa”) e sua infusão retórica poética; e, de outro lado, os eventos da diegese “externa”, marcados pelos fatos “físicos”, pelas ações dos personagens. Tendo como eixos o núcleo existencial e a reflexão, o mecanismo ficcional em Perto do coração selvagem se retrai e abre caminho para a linguagem que tenta, em sondagem extrema, encontrar as respostas às indagações de Joana. Nessa busca, os caminhos não são definidos, assim como a personagem também não o é. Portanto, a estrutura do romance acompanha essa inexatidão. Em outras palavras, Joana, assim como as próprias linhas do romance, é marcada pela imprecisão. Logo, o lirismo (selvagem) exacerbado se articula às suas reflexões, formulando uma técnica que permeia todo o livro, no que concerne à mobilidade “interna” em detrimento da externa, das ações físicas.

Mais perto da narrativa selvagem: o filosofismo lírico de Joana O processo de subjetivação lírica em Perto do coração selvagem se inicia já em seu título, altamente polissêmico, que remete ao primitivismo dos sentimentos e das emoções e se estende até o inconsciente. Joana, em muitos momentos, vive em uma espécie de devaneio, como se fosse uma “confusão” do inconsciente que vem à tona, devido à intensidade de seu sentir/pensar. Todo o seu drama “nasce mesmo da contradição,

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do antagonismo de seu mundo próprio, cheio de significados específicos, com os mundos alheios, ou mais vulgares e impenetráveis” (MILLIET, 1944, p. 28-29). Além do título, o discurso da narrativa apresenta caráter lírico, com a finalidade de revelar o individualismo reflexivo, sendo este a matéria prima do lirismo de Clarice. Lúcio Cardoso, ao atentar para algumas questões formais do livro, destacou o traço poético da linguagem empregada por Clarice: “nesta estranha narrativa, onde o romance se esfuma para se converter muitas vezes em uma rica cavalgada de sensações, a poesia brota como uma fonte nova e pura” (CARDOSO, 1944, p. 3). O escritor, na ocasião, chama Clarice de poetisa, afirmando que “temos a impressão de que a história de Joana vai se deter para se transformar num canto, num hino, tal a magia irresistível que envolve o cenário, os sentimentos e as sensações” (CARDOSO, 1944, p. 3). Muito bem notou o crítico ao falar sobre a relação da autora com as palavras, a harmonia precisa entre a expressão e o que é “exprimido”, a partir da linguagem poética, o que nos faz perceber a possibilidade de isolar trechos do romance que carregam poesia de alta qualidade, como o trecho que segue, adaptado à forma poemática: No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas nele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito, imagino já sem lucidez minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade.

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São essas as palavras que me ocorrem. Não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome (LISPECTOR, 1980, p. 74).

Joana, aqui, em estado de reflexão, procura captar toda a gama do mundo interior, no mais profundo de sua psique, nas mais íntimas sensações, na luta por encontrar respostas para os seus “porquês” existenciais, diante da liberdade que há em seu eu e a prisão do mundo exterior que a circunda. Para tanto, esse mergulho em si necessita da poesia para exprimir seu estado de devaneio. Além dessa potencialidade lírico-poética da narrativa, há, em termos de sintaxe narrativa, dois grandes movimentos diegéticos (estruturais): o das atividades físicas, que remete para as ações práticas; e o das atividades “internas”, psicológicas, que remete para as reflexões e sensações. Neste segundo movimento diegético também há, não estranhemos, ação, embora de natureza diferente (não “física”). Ao expor o nervosismo, as angústias e os questionamentos de Joana, expõem-se sistematicamente as reflexões e, consequentemente, a complexidade da personagem pela forte mobilidade de impressões, de sensações (por vezes, movimentos contraditórios). Há, pois, “ações” nas experiências psicológicas, podendo, em muitas vezes, esses dois movimentos (ação física/ação reflexiva) se misturarem, conforme o exemplo a seguir: Otávio respondeu ao seu movimento erguendo por sua vez as sobrancelhas, apertando os lábios, abrindo-os de novo e continuando morto! Ela olhava-o, olhava-o... esperava... Não, não era perigoso. Passou as costas da mão pela testa. Havia ainda o silêncio, o mesmo silêncio. Talvez, quem sabe, tivesse vivido um pouco de sonho misturado com a realidade,

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pensou. Procurou rememorar o dia passado. Nada de importante, senão o bilhete de Otávio avisando que almoçaria fora, como vinha acontecendo quase regularmente, há tempos. Ou o medo fora mais do que uma alucinação? O quarto era agora nítido e frio (LISPECTOR, 1980, p. 143).

A intromissão do movimento reflexivo como que “congela” momentaneamente a movimentação física, em um jogo alternativo que define o modo de ser (estrutural) da narrativa, com a intensificação constante dessa intromissão, ao ponto de, às vezes, suprimir a movimentação física por longos trechos. No romance todo, há esse jogo entre os dois movimentos, o interno (psicológico) e o externo (físico), que auxilia na dramatização da subjetividade, e favorece, ante certas incompreensões, na retórica poética, no lirismo. Em Perto do coração selvagem, as emoções e reflexões são manifestadas por um “eu” que, ao se expressar, rompe as barreiras dos gêneros ao utilizar o discurso lírico, o que torna o fio narrativo rarefeito. Clarice ratifica a intersecção entre as modalidades literárias prosa e poesia por, muitas vezes, possuir uma linguagem estruturalmente poética, “pelo jogo de imagens, pelo metafórico, pelo metafísico, pelo lírico, pelo ritmo emocional, pelo alógico e, sobretudo, pela liberdade expressiva, como se escrevesse sem qualquer esforço de composição” (MOISÉS, 1974, p. 287 apud TOFALINI, 2013, p. 86). A “transfusão do lirismo” provoca algumas distinções entre a prosa poética e a prosa tradicional, uma vez que, na prosa poética, a narrativa se apresenta repleta de fulgurações da psique do narrador-personagem. Assim, temos uma narrativa interiorizada. O termo lirismo pode ser definido como uma “qualidade da obra poética, sobretudo a poesia, marcada pelo subjetivismo sentimental, quanto ao fundo, e, por um máximo de elementos musicais no texto literário, quanto à forma”

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(CAMPOS, 1978, p. 102 apud TOFALINI, 2013, p. 65). Quando notamos, tanto na prosa quanto no poema, uma atmosfera de “beleza”, constituída por conteúdo subjetivo e emotivo, temos aí a poesia. A poesia no decorrer de um texto, além de outros elementos, ocorre por sua “liricização”1. A linguagem lírica é, por excelência, a linguagem da poesia. O teor do lirismo poético não é o mundo objetivo, real, palpável, mas a matéria lírica é o mundo subjetivo. A linguagem da poesia explora o sentido conotativo das palavras, alterando o significado cristalizado dos vocábulos, pois na linguagem poética, as palavras não possuem: um sentido único e inflexível e as frases não encontram equivalentes em nenhum outro idioma, porque o seu poder de comunicação resulta paralelamente de um jogo de ritmos e timbres, no qual as palavras valem quase tanto pelo que significam quanto pela posição que ocupam no texto (CAMPOS, 1978, p. 101 apud TOFALINI, 2013, p. 66).

O romance lírico não ocorre simplesmente pelo entrelaçar do mundo interior com o mundo exterior. Conforme Tofalini (2013, p. 75), para que tenhamos essa modalidade são necessários “diversos recursos da expressão poética”, como ritmo, melodia, linguagem conotativa, entre outros. Não temos do que duvidar, assim, em relação à faixa lírica de Perto do coração selvagem. Esse vínculo lírico também se explicaria pelo contexto da obra: Joana sofre e não consegue entender seu coração. A personagem demonstra ter dificuldades com a vida sentimental, como mostra seu drama matrimonial. Desentende-se com o marido, não é feliz no amor. Ou seja, são coisas do coração e sua expressão é lírica. Contudo, este é apenas o começo de sua complexidade psicoemocional. 1  Termo utilizado em: TOFALINI, L. B. Romance Lírico: O processo de “liricização” do romance de Raul Brandão. Maringá: Eduem, 2013.

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Também as irracionalidades do coração são líricas. Seus descaminhos, suas desorientações, sua rebeldia. O coração indomável de Joana é também deseducado, primitivo, selvagem. Nela, há um coração selvagem que não se consegue domesticar e civilizar: “Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação... Não, não — repetia-se ela —, é preciso não ter medo de criar” (PCS, p. 17-18). A luta travada entre a sensibilidade reprimida e a racionalidade extremada provoca na personagem um desencantamento do mundo, o que a faz repudiar, muitas vezes, o que envolva a sensibilidade, embora paradoxalmente insista em permanecer nessa ambivalência de sensações. Assim, observa-se em Joana uma força pronta a rebentar com violência e que, no entanto, não passa nunca da iminência, é a representação do “lado indômito” de Joana, algo que ela caracteriza como uma força maléfica (“A certeza de que dou para o mal”) (PCS, p. 17): O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade (PCS, p. 17).

Com uma personalidade quase diabólica, Joana opõe-se aos outros personagens do romance, que se tornam opacos, comparados a ela. A personagem constrói um universo particular e não se deixa entregar a uma relação de comunhão com os outros. Ela tem dificuldades para viver de modo espontâneo. Entre sentir e pensar, há sempre uma distância que a reflexão, a racionalização preenche. Podemos perceber o poder negativo,

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selvagem e racional de Joana em uma situação em que acerta um velho com um livro grosso e nada sente, além de satisfação: Ele riu, considerou finda a brincadeira e voltou as costas para a porta. Joana acompanhou-o com o olhar, inclinou-se um pouco para alcançá-lo todo com a vista, mal ele se afastou da mesa. Encarava-o ereta e fria, os olhos abertos, claros. Olhou para a mesa, procurou um instante, pegou um livro pequeno e grosso. No momento em que ele punha a mão no trinco, recebeu-o na nuca, com toda a força. Voltou-se instantaneamente, a mão na cabeça, com os olhos arregalados de dor e de espanto. Joana continuava na mesma posição. Bem, pensava ela, agora já perdeu aquele ar repugnante. Um velho só deveria sofrer. Disse a voz alta e simpática: — Perdoe. Uma pequena lagartixa ali, em cima da porta. — Pequena pausa. — Errei na pontaria. O velho continuou a olhá-la, sem compreender. Depois um vago terror apossou-se dele diante daquele rosto sorridente: — Até logo... Não foi nada... — Meu Deus! — Até logo... Quando a porta fechou-se, ela ficou ainda um tempo com o sorriso no rosto. Alçou os ombros ligeiramente. Foi à janela, o olhar cansado e vazio: — Talvez eu deva ouvir música (PCS, p. 82).

Nesse trecho, a imagem fria começa a ser delineada logo no início da descrição da postura de Joana, “Encarava-o ereta e fria, os olhos abertos, claros” (PCS, p. 82). Essa postura faz referência à serpente prestes a atacar, além do traço de perversidade e dissimulação ao deixar o velho sem entender o que havia acontecido. Sua tendência para o “mal” deve ser entendida, portanto, como uma busca de fugir das sensações “mornas”, do casual e do habitual que preenchem o seu cotidiano, “o mal, mesmo [...] aparece como fonte de vitalidade” (ROSENBAUM, 2006, p. 46).

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Essa liberdade em agir de modo negativo com tamanha naturalidade é, conforme Yudith Rosenbaum (2006), a expressão máxima na busca pela existência, pelo desejo de ser associado a uma constante inquietação: Movidos pelo desejo de ser, fonte profunda de onde brotam os seus desejos mundanos, desnudados em sua existência individual, o que neles transparece e se afirma é uma inquietação insondável. Participando da impulsividade do orgânico e das aspirações de caráter espiritual, essa inquietação que corresponde à necessidade de ser, é mantida e desenvolvida pelo sentimento da existência, no qual todos os outros sentimentos desembocam (NUNES, 1976, p. 121-122).

Assim, Joana reclama por sentimentos fortes, intensos, mas aos quais, ao final, ela não consegue aderir de fato: “[...] a bondade me dá ânsias de vomitar. A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo” (PCS, p. 18). A esse respeito, Nunes (1995, p. 115) afirma que “o mundo de Clarice Lispector é escatológico, sexuado, ritmado por pulsações: mundo nauseante, de odores fortes, crus, podres e sensuais”. A partir dessa descoberta de que “dá para o mal”, Joana está consciente de sua condição no mundo, tem a resposta que precisava: ela não terá garantias, amparo, ajudas, a resposta é que ninguém lhe dará resposta alguma, ela é sozinha. A onipotência da personagem faz com que as relações que mantinha com as pessoas tornem-se cada vez distantes e frias. O não se deixar apegar às pessoas seria, portanto, um caminho rumo à liberdade. A razão e o raciocínio seriam, pois, um recurso para evitar o sofrimento. Joana nega qualquer paliativo para sua dor, para seu desamparo e acaba sem marido, sem amante, sem Deus, sem representações sociais fixas, simplesmente entre-

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gue à própria força de sua imprecisão, buscando em si mesma e em seu “coração selvagem” sua real identidade e sua paradoxal liberdade. Benedito Nunes afirma que quanto mais Joana se observa, mais ela se distancia de seu próprio ser, pois suas reflexões contínuas tiram-lhe a espontaneidade dos sentimentos, perdendo, de certa forma, a fruição pura da vida: […] por um lado, sente-se capaz, “como um animal solto”, de transgredir todos os limites morais; mas, por outro, seus pendores anárquicos, que jamais se concretizam, refluem para a angústia da liberdade, diante dos possíveis abertos à ação. Impetuosa como um instinto e aliciante como um apelo, tal inquietude, violenta, mas impotente, leva Joana a um constante esforço de expressão artística, a um afã de conhecimento e de criação sempre renovável e deficitário, que mais exigente se torna, quanto mais se exerce, e que mais se exerce quanto mais se frustra a expressão em que a individualidade se realizaria (NUNES, 1995, p. 17).

Joana, dominada pelo coração indomável, não se deixa domesticar, não se deixa amordaçar pelas instituições sociais. É um ser dividido entre os impulsos que a estimulam a “mergulhar em águas desconhecidas” ou adequar-se às imposições sociais. A exacerbação de seu drama, calcado no mais extremado racionalismo, configura-se, portanto, em desejo de querer decifrar o mistério da existência, o mistério de sua existência. Parece que a técnica do romance psicológico reside na problematização e na intensificação do processo explicativo. O narrador se torna uma espécie (também) de analista, antecedendo as justificativas para uma atitude ou colocando-as depois do fato. Clarice é obsessiva em relação a isso. A exasperação dessa técnica em Perto do coração selvagem corresponde às explicações das ações internas de Joana, carregadas de subjetividade, de lirismo.

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Assim considerada, esta solução interpretativa resolveria a condição lírica do romance em termos mais complexos, até paradoxais: o local onde mora o amor, o sentimento, coloca-se em posição de rebote, de recusa. A personagem não abre as portas, prefere polemizar. Talvez seja, inclusive, um falso problema, uma armadilha para o leitor. Esse coração deveria localizar-se no cérebro, ser um lugar raciocinante. Duvidar, polemizar, recusar — atividades do pensamento — são atributos da mente, do cérebro. Aquele coração não aderente, inacessível na sua incompreensão, não se mostra apenas coração: racionaliza-se, intriga-se, faz-se praticamente impenetrável. Não é mais apenas o lugar do amor, do sentimento, da emoção. Esses predicados do coração são pensados e, frequentemente, intelectualizados. Percebemos que as expressões do sentimentalismo, da emoção vão bem além das ações e reações decorrentes do envolvimento afetivo ou amoroso de Joana com os homens, não bastasse a forte impressão (no leitor) de que suas explicações (Joana vive tentando explicar) são bastante racionalizadas, em termos mesmo de conflitos existenciais (no bojo do esforço identitário). Desse modo, pouco subsiste de romântico, se é que isso ocorre, nas invocações (poucas) do coração. Estamos diante de uma emotividade estranha, de uma subjetividade polêmica, embora ainda subjetividade. Parece que a noção de amor vivenciada por Joana está desvinculada de afetos, tendo no outro apenas um objeto de satisfação, de dominação, nada mais. A movimentação psicológica, plena de subjetividade, parece resolver-se mais na mente, como se esse lugar puxasse para si, para seus domínios, o coração. Logo, podemos conceber que mais rebelde, mais resistente é o pensamento, onde sistematicamente se agitam as reflexões, que vão muito além das “coisas do coração”. Joana sofre, e esse sofrimento das coisas carregado de subjetividade, de conflito, impregna todo o texto de lirismo. Nesse caso, o pensamento selvagem (indomá-

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vel, insuficiente, incompleto, até pela limitação das palavras) se concretiza, mas não resolve nem finaliza as dúvidas e angústias de quem sente e pensa. Do lirismo “comum”, do coração, chegamos ao lirismo mais amplo (existencial, metafísico, identitário), mais complexo. Complexo porque alimentado também de inconformismo, de revolta. O lirismo selvagem é que específica o lirismo romanesco de Perto do coração selvagem, de modo a intensificar a carga lírica geral, comum. Há um duplo peso lírico. Nos romances líricos, os personagens não apresentam contornos definidos, pois o que mais importa é o seu estado de introspecção, fato que ocorre com a protagonista Joana, que vive em uma atmosfera nebulosa. Assim, a linguagem da personagem busca exprimir em palavras a representação de uma coisa que, muitas vezes, não pode ser representada. Joana busca um dizer que una a palavra e a coisa, mas “as palavras amortalham os sentimentos que elas próprias partejam. O dizer modifica o sentir” (NUNES, 1995, p. 103): É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo (PCS, p. 20-21).

Conforme Nunes (1995, p. 111), há uma ambiguidade na linguagem, uma vez que ela distorce ou neutraliza o desejo de ser que nela se investe. Ou seja, por um lado, a personagem dentro das palavras que as dominam, mas por outro, busca exprimir-se, aderindo às palavras de modo pleno. Presa de curiosidade intelectual e filosófica, sempre à beira de uma revelação, já na infância, a personagem tenta utilizar a palavra como isca: “Sim, eu sei o ar, o ar! Mas não adiantava, não explicava. Esse

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era um de seus segredos. Nunca se permitiria contar, mesmo a papai, que não conseguia pegar a coisa” (PCS, p. 14). A menina Joana analisa, questiona e estranha as palavras, mas passa a dominá-las, transformando os pensamentos em sensações. Em diversos momentos, podemos notar que talvez ela queira lutar contra as suas interrogações, nessa tentativa de desvendar os mistérios do “eu”.

Uma sintaxe narrativa complexa: efeitos das intromissões líricas e filosóficas Vemos na análise estrutural, mais propriamente na sintaxe narrativa, uma possibilidade de demonstrar outro aspecto inovador de Perto do coração selvagem. Nossa intenção é apresentar uma análise de modo a mostrar uma das razões pela qual a ficção de Clarice Lispector difere da narrativa tradicional. Para tanto, utilizamos algumas propostas teóricas estruturalistas, ligadas à noção de sintaxe narrativa. Aqui, levamos em consideração a “trama” vista como uma “construção artística”. Tomachevski (1973), em sua proposta formalista, aponta uma relação de “motivos” que compõem uma “fábula”, definida como um conjunto de acontecimentos ligados entre si, de acordo com a ordem cronológica e causal dos acontecimentos. A saber, os motivos de Tomachevski são denominados, por exemplo, “motivos associados” e “motivos livres”, sendo que “os motivos que não podemos excluir são chamados de motivos associados; os que podemos excluir sem que anulemos a sucessão cronológica e causal dos acontecimentos são os motivos livres” (TOMACHEVSKI, 1973, p. 173). Assim, por motivo associado, Tomachevski entende aquele que não pode ser excluído da narrativa sob pena de lhe arruinar a sequência causal. Se o motivo associado é imprescindível e indescartável,

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o mesmo não se pode dizer do motivo livre, cuja exclusão não compromete a fábula. Em outras palavras, o “motivo” é a unidade temática mínima de uma narrativa. Vários deles formam uma sequência narrativa, como veremos mais adiante também na proposta de Barthes. Barthes, em Análise estrutural da narrativa (1973), traça uma hierarquia entre as “funções” narrativas, classificando-as de acordo com as formas como se inter-relacionam e com a importância que têm na estrutura narrativa. Para o teórico, “uma narrativa não é somente passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível a outro” (BARTHES, 1973, p. 25). Assim, Barthes propõe distinguir na obra narrativa três níveis de descrição: o nível das funções, o nível das ações e o nível da narração. É impossível tratar de um desses níveis sem invocar os outros: “Uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu próprio código” (BARTHES, 1973, p. 28). O nível das “funções”, que tem mais a ver diretamente com a sintaxe narrativa, engloba as “funções cardinais” (núcleos), as “catálises” (de carácter completivo), os “informantes” e os “índices”. Uma narrativa é composta dessas unidades mínimas, e a junção delas — os núcleos — formam uma sequência. Esta lógica nos auxilia na abordagem de Perto do coração selvagem. Conforme Barthes (1973, p. 33-34), para que uma função seja cardinal, “é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história. Enfim, que ela inaugure ou conclua uma incerteza”. Já as catálises “permanecem funcionais, na medida em que entram em correlação com um núcleo, mas sua funcionalidade é atenuada, unilateral, parasita”. Enquanto as funções são, ao mesmo tempo, consecutivas e consequentes, as catálises são apenas consecutivas. A “catálise” preenche os

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espaços entre funções cardinais para instrumentalizá-las. Para Barthes (1973, p. 33), “as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa; entre estes pontos da alternativa, entre estes ‘dispatchers’, as catálises dispõem de zonas de segurança, de repousos, de luxos; estes ‘luxos’ não são, entretanto, inúteis”. Temos, pois, do ponto de vista de funcionalidade de uma narrativa, fatos (narrados) muito importantes e outros nem tanto. O esqueleto fabular de um conto, por exemplo, apresenta-se nas “funções cardinais” ou “núcleos”, que são as unidades temáticas mínimas mais importantes e indispensáveis. Há, sem dúvida, grande variação de predominância de cada elemento temático. Conforme Barthes (1973, p. 32), certas narrativas são fortemente funcionais (assim como os contos populares), e em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances ‘psicológicos’); entre esses dois polos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do gênero.

Os “indícios”, também unidades temáticas mínimas, remetem a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera. Eles têm um caráter de significado, e não de ação. Os “informantes” são imediatamente significantes enquanto que os índices tem significado implícito, implicam sempre uma atividade de deciframento. Os índices são mais verificáveis no nível do discurso e, para Barthes (1973, p. 36), “qualquer que seja sua ‘palidez’ em relação ao resto da história, o ‘informante’ (por exemplo, a idade precisa de uma personagem) serve para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizar a ficção no real: é um operador realista”. Em nossa análise de Perto do coração selvagem consideramos, de forma mais detida, os “núcleos” ou “função cardinal”, a unidade temática mínima mais relacional, mais forte,

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considerando, porém, que a novidade no romance de Clarice pode reverter essa hierarquia. No âmbito das funções, considerando os quatro tipos, tudo significa. Para Barthes (1973, p. 28) “isto não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura”. Funcionar é estabelecer relações entre sequências, por exemplo, ou entre “motivos”. Este é o sentido amplo do termo “função”, inicialmente empregado por Barthes. Assim, considerando a importância de uma ação para o desdobramento da trama, seu funcionamento indispensável na sintaxe narrativa, Barthes (1973) passa a atribuir a essa informação uma função “cardinal”, e o termo que passa a designar um “núcleo” ativo. Um “núcleo”, reforcemos, representará geralmente uma informação temática indispensável. A partir desses conceitos, o autor propõe um método para o estudo da Sintaxe Funcional. Para ele, as “funções cardinais” são a base da tessitura narrativa. E um conjunto coerente de funções constitui uma sequência. Estas, reunidas, constituem, por sua vez, uma “parte”, um capítulo ou uma macrossequência. A Sintaxe Funcional básica de um romance seria a estruturação de funções (núcleos) em sequências interligadas entre si. Em suma, na perspectiva Barthesiana, a análise da sintaxe narrativa supõe, em um crescendo, a seguinte disposição: algumas unidades temáticas mínimas fazem uma sequência. Várias sequências formam uma parte (subcapítulo, capítulo). No plano da sintaxe estrutural, “índices” e “informantes” são, a princípio, unidades temáticas mínimas secundárias. Porém, supomos que em Perto do coração selvagem esses tipos de unidades podem ganhar força, funcionando decisivamente com característica “nuclear”. Nesse sentido, entendemos que o romance opera essa reversão, tornando os “índices” em “funções cardinais”. Todorov (1973) propõe uma definição de narrativa sob três aspectos: as “proposições” ou unidades mínimas de uma narrativa; a “sequência” que se configura como uma unidade

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superior às “proposições”, pois ela se constitui de cinco ou mais proposições; e o texto, sendo o que o leitor encontra empiricamente. Importante ressaltar que, muitas vezes, os teóricos se aproximam em suas formulações. Desse modo, aquilo que Barthes (1973) denomina de “funções”, em sentido amplo, para Todorov (1973) se configura como “proposições”. Aquilo que Tomachevski (1973) denomina “fábula”, Todorov (1973) se refere a texto. Aquilo que Barthes (1973) denomina “funções cardinais”, Tomachevski (1973) designou como motivos “associados” Já os “informantes” e “índices” de Barthes correspondem, grosso modo, aos “motivos livres” de Tomachevski (1973). Em nosso trabalho, como veremos, recorremos, especialmente, aos conceitos postulados por Barthes (1973) para expor a proposta estrutural da narrativa de Clarice Lispector, com alguns ajustes. Nesse sentido, embora o primeiro plano de leitura seja uma análise um pouco abstrata da vida de Joana, é preciso perceber que o romance é construído por uma linguagem confluente com essa narração, isto é, a forma da obra se relaciona com as imprecisões da protagonista. As reações de Joana são marcadas pela imprecisão assim como o próprio romance, com seus capítulos independentes e não lineares que constroem uma história inconclusa, com um final em aberto. Não se quer dizer, todavia, que não haja uma linguagem de “boa carnação” no processo de construção. Devemos ter em mente que como a existência pessoal de Joana fracassa, no sentido de buscar um sentido, uma explicação para tudo, também a narrativa adere esse “fracasso”. Todos os temas de ordem filosófica — liberdade, bem e mal, intuição e pensamento, o cotidiano e as coisas, Deus e a existência humana — que aparecem entrelaçados pela linguagem poética, pelo lirismo podem ser reduzidos a uma problemática nessa trajetória da protagonista, isto é, a problemática do ser e do dizer, o que provoca uma desestrutura na sintaxe narrativa.

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Perto do coração selvagem é composto por dezenove capítulos, separados em primeira e segunda parte. Entretanto, as experiências da infância e da idade adulta não são narradas linearmente, ou seja, não são contínuas, mas sim intercaladas. Por exemplo, depois do primeiro capítulo, “O pai...”, onde pode ser lida a infância da personagem em companhia paterna, vem o segundo capítulo, “O dia de Joana”, no qual podem ser lidas suas reflexões acerca do mal, estando a heroína já adulta e casada. O terceiro capítulo, “...Um dia...”, retorna à infância de Joana e às lembranças do pai para, em seguida, no quarto, em “O passeio de Joana”, ter-se a narração de sua vida adulta novamente. O quinto capítulo, “...A tia...”, narra a morte do pai de Joana e seu encontro com a tia, com quem iria morar e, em seguida, o capítulo “As alegrias de Joana”, retoma a idade adulta. O sétimo capítulo, “...O banho...”, retorna à infância e início da adolescência. Pelo próprio arranjo dos capítulos, é possível dizer que há uma descontinuidade na narração, que é entrecortada por passagens da infância durante a história de sua vida adulta. A infância parece ser um período sem início ou fim, como sugerem os nomes de alguns capítulos, iniciados e finalizados por reticências, marca de que não há um início ou um término determinado. A narração da vida infantil da personagem parece também ligar as experiências adultas e, na descontinuidade da narração, há uma busca da continuidade do que fora vivido. Vejamos esse tipo de arranjo (ou desarranjo) mais de perto, aproveitando já a fundamentação teórica estruturalista. Antes, importante ressaltar que o detalhamento das “funções” (ou “motivos”), no romance, não será empreendido ao nível do esgotamento, ficando a suposição dessa presença que, de fato, foi constatada, mas exposta de forma pouco reduzida. Aqui também a exposição das sequências leva em conta a díade “ativa/reflexiva”, já mencionada, a que reconhece na narrativa, no plano da sintaxe narrativa, o jogo entre movimento

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ativo (representação de ações “físicas”) e movimento reflexivo (representação da mobilidade psicológica). Consideremos, neste trabalho, apenas o capítulo “...O banho...”, já que o mesmo consegue esboçar o que ocorre em todo o livro. Temos aí Joana ainda menina, mas em passagem para a mocidade, conforme explicado no item supracitado. Há nele seis sequências, com ações e paradas reflexivas alternadas. Esses movimentos narrativos, alternam-se, de fato, macro e microestruturalmente, ou seja, entre sequências e dentro de sequências. A primeira sequência, denominamos “o roubo do livro”. Trata-se do episódio do livro roubado por Joana, enquanto fazia compras com a tia. Essa sequência é toda constituída pelo diálogo entre Joana e a tia em torno do fato ocorrido: “— Eu roubei o livro, não é isso? — Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faça, pois ela ainda confessa!” (PCS, p. 51). A segunda sequência, denominamos “a conversa dos tios”. Aqui, os tios travam um diálogo sobre o roubo de Joana e, então, decidem mandá-la a um internato, visto que a tia se surpreende com o comportamento de Joana e reprova sua conduta: “— É uma víbora. É uma víbora fria, Alberto, nela não há amor nem gratidão. Inútil gostar dela, inútil fazer-lhe bem. Eu sinto que essa menina é capaz de matar uma pessoa...” (PCS, p. 53). A partir desse fato, Joana, tida como víbora pela tia, de certo modo, internaliza tal alcunha, passando a delinear um perfil psicológico cada vez mais problemático e questionador, como se realmente desse para o mal, lançando mão de seu lirismo selvagem. A terceira sequência desse capítulo, denominamos “conversa com o professor”. Nesse momento, a narrativa começa a se densificar, sendo interrompida a ordem factual por meio do fluxo de consciência, instaurado pelo discurso lírico por diversos momentos. Nessa sequência, há sete “funções” (ou “motivos”) inseridas, conforme vemos no quadro a seguir,

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as quais denominamos: conversa metafísica entre professor e Joana; o professor estende a mão; a esposa do professor entra; a esposa do professor se retira; a esposa entra novamente; Joana decide ir embora; quadro de confusão de Joana na praia, voltando para casa: “Era a segunda vertigem num só dia! De manhã, ao saltar da cama, e agora... Estou cada vez mais viva, soube vagamente. Começou a correr. Estava subitamente mais livre, com mais raiva de tudo, sentiu se triunfante” (PCS, p. 64). Esta sequência, estruturalmente, mostra-se assim: S1: conversa com o professor F1: conversa metafísica entre professor e Joana (factual) F2: o professor estende a mão (factual) F3: a esposa do professor entra (factual) F4: a esposa do professor se retira (factual) F5: a esposa entra novamente (factual) F6: Joana decide ir embora (factual) F7: quadro de confusão de Joana voltando para casa (intromissão lírica/ filosófica)

Quadro 1 – Sequência 1: 7 Funções cardinais. Fonte: Elaborado pela autora.

A segunda sequência, denominamos “o jantar”, na qual temos poucas referências factuais, pois o estado de introspecção e lirismo de Joana é cada vez mais denso, como podemos notar no fragmento a seguir: A alegria cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo mudava lentamente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma (PCS, p. 65-66).

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Joana, ao chegar da casa do professor, já à noite, encontra os tios jantando e os questiona sobre quando a mandariam para o internato. Essa sequência é constituída por cinco “funções” e, em meio às situações factuais, há várias paradas reflexivas longas. S2: O jantar F1: O tio e a tia à mesa. (factual) F2: “Tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça?”. Questionamentos metafísicos. (intromissão lírica/filosófica) F3: A tia estende-lhe o prato de pão em silêncio. (factual) F4: Reflexões de Joana sobre o momento do jantar. (intromissão lírica/filosófica) F5: Joana conversa com os tios sobre a ida para o internato. (factual)

Quadro 2 – Sequência 2: 5 Funções cardinais. Fonte: Elaborado pela autora.

A terceira sequência, denominamos “o banho”. Esta apresenta-se como o momento de maior tensão do capítulo, o que podemos denominar como evento epifânico, que, como visto no item “Sustos metafísicos e surtos filosóficos”, trata-se de um momento de revelação, de descortinamento interior. No caso de Joana, da descoberta de sua sexualidade durante o banho, já no internato. Pelo seu caráter altamente introspectivo, ela é toda construída pelo discurso lírico, o qual se converte de “informante” a “função cardinal”. Ou seja, uma informação sobre a “atmosfera” da personagem, que seria considerada secundária, passa a ser uma informação relevante, “nuclear”. Notemos o trecho que segue para que entendamos esse processo: S3: O banho F1: O banho de Joana (intromissão lírica/filosófica)

Quadro 3 – Sequência 3: 1 Função cardinal. Fonte: Elaborado pela autora.

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A água cega e surda mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes. A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância [...] (PCS, p. 68).

A quarta sequência, denominamos “Reflexão no orfanato”, pois Joana expressa, por meio de sua introspecção, uma longa reflexão sobre si mesma. Esta, embora constituindo outra sequência, dá continuidade ao processo epifânico da sequência anterior na tentativa não mais da descoberta da sexualidade, mas sim da descoberta do “eu”. Nessa longa sequência, inserem-se seis “funções”, sendo somente três de sinais de ação, que se referem basicamente às coordenadas de espaço: S4: Reflexão no orfanato F1: Mergulho em reflexões sobre si. (intromissão lírica/filosófica) F2: Lembrança de um momento na aula. (factual) F3: Lembrança do momento de andar a cavalo na fazenda do tio. (factual) F4: Reflexões sobre o momento de andar a cavalo. (intromissão lírica/filosófica) F5: Sentada na catedral. (factual) F6: Reflexões na catedral. (intromissão lírica/filosófica)

Quadro 4 – Sequência 4: 6 Funções cardinais. Fonte: Elaborado pela autora.

Podemos notar que o capítulo se organiza especialmente para desenhar o “coração selvagem”, a vida interior de Joana. Há muita reflexão metafísica em detrimento da diegese ativa. A ideia de uma sintaxe narrativa diferente do romance tradicional se deve principalmente por essas intromissões líricas/filosóficas que costumam alterar a linearidade “factual” dos acontecimentos, acabando por converter as paradas reflexivas em ação, por

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sua utilização sistemática. Nesse sentido, à medida que se produz o universo ficcional, pode ocorrer a ruptura da linearidade narrativa por meio dos elementos poéticos, ou seja, a sequência factual é interrompida pela intromissão do discurso lírico, o qual desvia o “assunto” de ação para a reflexão, para a estaticidade. Devido à “liricização”, por conta do narrador introspectivo, há uma desagregação da diegese narrativa tradicional. Contudo, devemos ter em mente que essas narrativas líricas se apresentam rarefeitas e este fato se evidencia se forem tomadas como parâmetro as narrativas tradicionais. Se nas narrativas tradicionais a trama se estrutura de forma linear, a narrativa “liricizada” torna menos visível o fio narrativo, rarefaz o enredo. Isso se confirma se tomarmos como referência os estudos de Goulart (1990), que explicita o fato de que se opormos o caráter dinâmico da narrativa ao estático do modo lírico na produção de determinado enunciado, a estaticidade do segundo implica que a narração seja “[...] adiada, interrompida, entrecortada, ou se sobrepõe à lírica deixando esta visível mais como atitude sem correspondentes textuais de vulto a nível técnico-compositivo” (GOULART, 1990, p. 46). Assim, não só esse capítulo, aqui abordado, mas o romance como um todo vem legitimar essa ideia, com enredo fragmentado, em que se alternam o modo lírico e o narrativo (o movimento sintático de parada e de ação), procurando abolir ou confundir a noção de tempo e de espaço definidos. No capítulo “O banho”, em especial, ocorre o rompimento da sequência temporal física para a instalação de uma temporalidade subjetiva. À Clarice Lispector interessa a narrativa baseada na memória e na emoção, isto é, no fluxo de consciência da personagem, o qual não segue necessariamente uma ordem cronológica regular, segundo o relógio e o calendário. O espaço também está a serviço da introspecção de Joana. Em conformidade com o aspecto lírico, é recriado como uma espécie de símbolo, no caso, figurado pelos elementos ligados à água, le-

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vando a personagem a um encontro profundo com a sua própria existência. Podemos, sim, entender que a personagem está no internato, que está no banheiro, mas também convém admitir que a repercussão desses espaços (um opressivo, o internato; outro libertador, o banheiro) alcançam significação simbólica maior do que a referencialidade imediata, a mobilidade física. A “forma de narrar” de Joana se diferencia também do procedimento normalmente adotado em uma narrativa, quanto a um narrador que se propõe a contar uma história. Joana pouca coisa nos revela sobre sua vida prática. Basicamente, quase tudo o que se abstrai da narrativa é por meio do discurso lírico convertido em sequência factual. Em suma, Joana “narra” indiretamente por um “filtro narrativo”, já que o que conseguimos apreender é o “fluxo” de sua consciência. Assim, o evento narrado é refletido na sua consciência. Em “O banho” não se trata mais de uma narração linear dos acontecimentos. O capítulo, assim como todo o livro, prescinde de qualquer organização externa tradicional, pois toda a organização parte da subjetividade, do interior da personagem Joana. E em termos de eventos, como já foi dito anteriormente, em vez de narrar sequencialmente todos os acontecimentos, focalizam-se apenas alguns, os mais significativos. Joana tem uma ânsia de expressar as mais íntimas impressões e emoções com o intuito de desvendar os mistérios que cercam a vida; daí, o conteúdo altamente lírico/ filosófico. O fluxo de consciência que permeia “O banho” concorre para a rarefação da narrativa (no sentido de conjunto de ações) e para a sua “liricização”. Nesse sentido, a esteira do poético se mostra um caminho adequado para a transmissão de conteúdos tão profundos e subjetivos, bem como nos ajuda a entender a ordem aleatória da disposição de sequências, nos moldes aqui propostos.

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Em termos de sintaxe narrativa geral e, considerando a presença predominante de dois tipos de formulações estruturais, podemos perceber a alternância e a combinação (até como sequências) da intriga actancial, base nas ações “externas” das personagens, e dos movimentos “internos”, não ativos, aqueles voltados para a exposição de ideias, reflexões, traços identitários, de concepções filosóficas. Neste caso, a ação externa não acontece, há uma parada. Nesse sentido, o romance parece mais interessando na mobilidade psicoemocional, frequentemente acionada por razões metafísicas, com certos traços, às vezes, do pessimismo existencialista. A exposição dessa identidade, em conflito consigo e com o mundo, acaba por se situar mais no plano psicoemocional (ação interna) do que no plano das ações práticas. Acrescenta-se ainda que o plano psicoemocional se mostra carregado de intelectualismo. A inserção do fluxo de consciência e de reflexões filosóficas, metafísicas, em meio aos acontecimentos ativos, é responsável pela quebra da organicidade da obra. Nota-se que Joana, por meio do narrador, não demonstra nenhum interesse em narrar acontecimentos, senão em evidenciar sua experiência psíquica. Todo e qualquer evento ocorrido com Joana é narrado em termos de experiência e de reflexão, não se enfatizando, portanto, uma ordem lógica dos acontecimentos.

Considerações finais A narrativa contemporânea mais revolucionária não mais se ocupa da lógica linear do enredo, mas do efeito “provocado” na existência atribulada do personagem e sua repercussão na estrutura da narrativa, como é o caso de Perto do coração selvagem. Podemos perceber que a crise do enredo nesse romance associa-se à crise de identidade, de modo que o foco

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passa a ser também os personagens com suas ações e o próprio discurso narrativo que transcende de seu (in)consciente. Uma vez que uma narrativa nos moldes tradicionais, com estruturas sintáticas bem definidas, expressas por uma linguagem comum, não daria conta dos conteúdos mais profundos da protagonista Joana, Clarice lança mão de recursos próprios da poesia, isto é, opta por uma postura estilística permeada por reflexões instauradas pela linguagem lírico-poética, ratificando a intersecção entre as modalidades literárias prosa e poesia. As intrusões líricas surgem principalmente a partir de uma mobilidade forte do enredo, com a supervalorização do discurso em si, afetando a estrutura textual desde a história até a questão da temporalidade. É visível o embate existente entre o tempo cronológico, ligado à sequência narrativa propriamente dita, e o tempo estático, ligado à reflexão. A fragmentação estrutural se instala por meio dos momentos líricos que desaceleram o andamento narrativo. As “ações internas” (reflexões), consideradas, em termos barthesianos, como “índices” e “informantes”, tornam-se o ponto de partida para o encaminhamento da atitude lírica, enquanto as “ações externas”, as funções cardinais, perdem seu caráter de essencialidade diegética. Há na personagem Joana uma subjetividade estranha, rebelde, diabólica, que refuta as relações afetivas, como uma forma transgressora, que, a qualquer custo, busca pela liberdade, mas, em contrapartida, submete-a em estado de solidão. A vida subjetiva constitui, no mundo de Clarice Lispector, uma possibilidade de transgressão das relações práticas, da organização social, que se fecha em torno da personagem, perpetuando e agravando o seu estado de solidão nessa busca incessante pela liberdade de ser. Assim, o autodilaceramento da escritura de Clarice exterioriza a possibilidade de transgressão que a vida subjetiva comporta. Mas concretizada a transgressão, produzem-se inversões súbitas: da inquietude à quietude

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contemplativa; do ímpeto libertário à renúncia e à abdicação. Desse modo, Clarice dirime as fronteiras entre o poético e o prosaico, pois da convergência das indagações do ser e das contradições existenciais, especialmente nos momentos de maior crise cognitiva, confusão mental ou de revelação (epifania), advém como resposta uma linguagem altamente expressiva, complexa, simbólica e poética, que provoca uma ruptura na sintaxe narrativa (nos moldes tradicionais).

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Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: considerações a partir da Psicanálise

Paulo Sérgio Pereira Ricci Gustavo Henrique Dionisio

A propósito de uma introdução Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres... Esse é o título de um belo romance entre Loreley (Lóri) e Ulisses, escrito em 1969 por Clarice Lispector, escritora modernista que traz no centro de seu trabalho questões que atravessam a existência. O movimento introspectivo de busca de conhecer a si e a realidade traduzido em palavras romanescas tornam sua escrita contraditória, por ser ao mesmo tempo cotidiana, beirando a trivialidade, e extremamente filosófica, densa e, portanto, “clássica”. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres poderia também ser o título de uma análise, quem sabe a narrativa de um sujeito que quer saber mais sobre si, sobre a vida e seus desejos, sobre as inibições com as quais lida, assim como suas limitações e fracassos... Com a suavidade de palavras comuns, acessíveis a qualquer leitor que tenha apreço pela palavra — pá-lavra, fer-

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ramenta que cava e que com a força necessária lavra, prepara o terreno para sua germinação — Clarice abre possibilidades para nos aventurarmos em uma trajetória em torno do conhecimento não-todo, não apenas dos personagens, mas como do si mesmo. Lispector, nessa obra, conquista para o conhecimento da sensibilidade presente entre um encontro de duas pessoas, que poderiam ser qualquer um, em um livro que começa com uma vírgula e termina com dois pontos, rompendo o estilo de escrita tradicional e nos fazendo pensar sobre os momentos da vida, suas passagens, fragmentos, recortes e significados possíveis. O livro retrata a história de amor vivida por Lóri e Ulisses, sendo ela mulher, professora do ensino primário e que conhece Ulisses em um dia comum e em uma situação igualmente comum, ao pegar um taxi. Ele, no caso, é professor de filosofia na universidade. O romance é narrado pela própria protagonista e revela suas descobertas em relação ao conhecimento mediadas pelas construções decorrentes do encontro com Ulisses. A partir desses encontros, que acrescentam questionamentos à sua história, Lóri vai ressignificando sua existência, atribuindo sentido para a vida em uma busca contínua pelo saber de si, do outro e do mundo. Nos propomos nesse texto a realização de uma análise da leitura da obra, sua apreciação e experiência a partir da Psicanálise por entendermos que o caminho de busca pelo conhecimento, evidente a partir do encontro dos personagens, é ao mesmo tempo uma procura pelo si mesmo. Isso consiste no motor e percurso traçado por um sujeito que procura um processo analítico, que ocorre também no cotidiano da vida, porém esse, em um divã, sendo esse movimento bastante bem metaforizado pelo romance. Com relação a tangencialidade entre experiência analítica e arte, Chaves (2018) considera que o interesse pela estética, o

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artístico e o efeito psicológico da obra de arte sobre o expectador se colocava com objeto de interesse da Psicanálise, desde seu fundador, Sigmund Freud (1856-1939). O autor ainda expõe que Freud possuía elevado interesse pela estética, operando um movimento de “partilha” entre arte e ciência. O interesse freudiano em relação as obras literárias, na concepção do autor estava muito acima da realização de uma patografia, ou seja, de buscar a compreensão do funcionamento psíquico do criador, mas se voltou a pensar a produção estética associada ao próprio modelo de constituição da neurose. Isto quer dizer que em uma análise artística o que faz questão é o método, ou seja, a atenção ao detalhe, assemelhando-se a apreciação do sensível que ocorre na experiência estética, e sua significação. Nesse sentido, para Freud a análise de uma obra de arte seguiria o mesmo método e curso da própria constituição do conhecimento psicanalítico e da condução do tratamento. De acordo com Chaves (2018) apesar de Freud ter superado, no tratamento analítico, o método catártico, substituindo-o pela associação livre, no que se refere ao efeito da produção artística, Freud não teria desconsiderado que a obra de arte possui uma função catártica, ou seja, de que a obra de arte possui uma finalidade, a de despertar um efeito psicológico no espectador. É com esse anseio que aceitamos o desafio proposto pelo editor do presente livro. Assim, nosso texto tem o objetivo de demonstrar possíveis efeitos psicológicos provocados em nossa própria percepção a partir da leitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, assim como gerar interrogações, inquietações e convites para a leitura e apreciação do romance, bem como, da experiência analítica.

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Aspectos formais do texto, contexto e obra clariciana: considerações possíveis para uma análise crítica literária Clarice Lispector (1920-1977) foi uma escritora ucraniana naturalizada brasileira, que segundo Ataide (2017) se destacou no contexto da literatura nacional no terceiro momento do Modernismo (década de 1940), sendo suas características correlatas a pauta das produções literárias e artísticas do país, a saber, uma produção mais livre e com caráter intimista que tinha como objeto de interesse as questões existenciais. A busca de sentido para a vida é uma marca do estilo de escrita clariceano, sendo uma saída para a elaboração da angústia da existência e conhecimento tanto do mundo exterior quanto interior. Já Barbosa (2014) a considera uma das maiores expoentes de nossa literatura, tendo atravessado diferentes gêneros literários: desde o neorrealismo com as características do “romance de 30”, até sua atenção se voltar e se consolidar para as problemáticas do viver e da existência humanos, o que aqui entendemos estarem mais associados as características da terceira geração modernista. A partir desse último traço é que se tem o atravessamento da obra que nos propomos analisar, sendo seus personagens o resultado de processos de transformações constantes, em uma trama de busca por uma maior consciência de si, do outro e do mundo. É de importante sinalização que as qualidades e enquadramentos da produção literária possuem correlação com os acontecimentos contextuais, ou seja, possuem determinação histórica, política e social. A terceira geração do movimento Modernista brasileiro, que se inaugurou na década de 1940, tendo caminhado até por volta de 1980, tem como marca a análise realística dos processos existenciais, algo presente na obra em que estamos analisando. Nesse sentido, era próprio do contexto que se inaugurava após a finalização dos dois grandes

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conflitos bélicos mundiais — 1ª e 2ª Guerras — esse movimento de indagação dos fenômenos da vida humana, então associado a um voltar-se para si como tentativa de significação do viver. Essa característica é amplamente revelada na escrita de Clarice, sobretudo em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. De acordo com Pereira, Benedito e Ivan (2018), o título da obra transmite a ideia de que aprendizagem e prazer são conceitos desassociados, o que possibilitaria compreender a narrativa como aprendizagem ou como prazer. Este último também estaria relacionado a ideia de que a leitura, e aqui acrescentamos à própria arte da criação, são experiências de aprendizagem assim como de satisfação e de realização. Segundo Alencar (2013), o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres parece uma “colcha de retalhos”, ou seja, uma reescrita de textos anteriormente publicados por Clarice. O autor afirma que a obra foi elaborada a partir do retrabalho de escrita de crônicas publicadas por Lispector no Jornal do Brasil entre os anos de 1967 e 1973, também presentes no livro A descoberta do mundo. Pontuamos ainda que Lispector trabalhou como escritora de textos jornalísticos no Jornal do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Alencar (2013) apresenta que nesses momentos em que escrevia para o jornal, Clarice Lispector produziu uma grande quantidade de crônicas, embora não seja reconhecida como cronista, assim como não atribuiu a si mesma essa característica. Ainda de acordo com Alencar (2003), Clarice possuía como traço marcante o desejo de não enquadrar suas produções em um determinado tipo de gênero, considerando suas elaborações apenas “algo dado”, isto é, atribuía a seus escritos uma “existência em si”, percebendo-os como elementos que “apenas existem”, sem maiores definições. A respeito dessa característica, Freud (2018), em O poeta e o fantasiar, considera que é próprio do poeta — e aqui generalizamos também

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para o escritor — alçar um movimento a fim de alcançar uma dimensão de singularidade sobre si e sobre as questões universais respectivas à humanidade. Pensamos que talvez esse tenha sido um elemento inspirador para Lispector, no sentido de não deixar que seu estilo de escrita caísse em uma modalidade em específico. Em nossa análise, tal característica pode ser verificada justamente em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: Lóri, como se pode ler ali, também traça um caminho para a busca do “ser”, intencionando com isso superar a necessidade de se encaixar em rótulos sociais para amparar sua existência. Destacamos, portanto, que a procura de si é uma característica forte do estilo de escrita de Clarice, podendo ser percebida já no início da narrativa: “supôs que ele queria ensinar-lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu nome é eu’, pois teu nome, dissera ele, é um eu” (LISPECTOR, 2017, p. 13). Nessa direção, Pereira, Benedito e Ivan (2018) sugerem que a criação da personagem é um elemento nodal da construção narrativa, sendo presente em seu estilo desde a publicação de Perto do coração selvagem, ainda em 1943. Os autores expõem que o livro retrata a busca pelo processo de autoconhecimento da personagem principal, por meio do qual ela vai dando passos contínuos e cotidianos em direção à apropriação de si, seus sentimentos, angústias, insatisfações, e prazeres, construindo assim sua própria identidade. Esse processo é realizado, na obra, pela manifestação de uma fala interiorizada em que Lóri coloca palavras na relação com seu mundo interno e externo. Conforme afirmam os autores:

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A relação entre a protagonista e a realidade exterior se apresenta de maneira internalizada. Lóri empreende sua travessia a partir da procura de sua própria identidade, que se constrói pela linguagem em uma fala interiorizada e em uma escrita voltada para o autoconhecimento e com características temáticas e textuais que compõem um jogo narrativo, que constrói seu processo de aprendizagem e mostra como ela interage com o mundo e com a realidade de maneira subjetiva, sendo a busca de identidade um dos principais temas da obra (PEREIRA; BENEDITO; IVAN, 2018, p. 3-4).

Em termos de gênero literário, Pereira, Benedito e Ivan (2018) consideram que a obra se apresenta como um romance moderno estando estruturado em forma de prosa afeta aos temas de expectativas existenciais comuns e, portanto, culturais. Sua forma apresenta-se por meio da paragrafação a partir da qual se dá a narrativa dos fatos. O romance ainda tem como objetivo a exposição de personagens reais, ou seja, a vida cotidiana, comum, retratada de forma contextual embora com densidade e intensidade perceptíveis. Consideramos que o livro carrega esses atributos, ou seja, tanto Lóri quanto Ulisses são pessoas comuns, porém intensos em suas expressões e posições subjetivas. Isto gera no leitor um processo identificatório que o captura tanto na narrativa, que vai se desenrolando no cotidiano, quanto no próprio processo de aprendizagem e prazer propostos desde o título da obra. O romance é a epopeia do mundo abandonado por deus; a psicologia do herói romanesco é a demoníaca; a objetividade do romance, a percepção madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar a realidade, mas de que, sem ele, esta sucumbirá ao nada da inessencialidade. O romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para

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conhecer a si mesma e que busca aventuras para por elas ser provada e encontrar a sua própria essência. A segurança interior do mundo épico exclui a aventura, os heróis da epopeia percorrem uma série de aventuras, mas que vão superá-las, isso nunca é posto em dúvida, os deuses que presidem o mundo têm sempre de triunfar sobre os demônios (PEREIRA; BENEDITO; IVAN, 2018, p. 8-9).

Ainda de acordo com Pereira, Benedito e Ivan (2018), o romance foi elaborado no Brasil um pouco “tarde” quando comparado com a emergência do gênero literário em outros países, sobretudo na Europa. Consideram, assim, que em nosso contexto fora apenas em 1843 que ocorreu o advento do romance, com a publicação de O filho do pescador, sendo que passa a ser efetivamente socializado no ano de 1844, com a edição de A Moreninha por Joaquim Manuel de Macedo. Vejamos: Nesse período, o romance vive uma fase importante, com Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, entre outros, mas há, ainda, aqueles influenciados pelas correntes europeias. É a partir de 1930 que surgem, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Lúcio Cardoso, José Geraldo Vieira, Cornélio Pena, Guimarães Rosa, Adonias Filho, Autran Dourado, Osman Lins, Clarice Lispector e outros (PEREIRA; BENEDITO; IVAN, 2018, p. 12).

Nos chama a atenção o quanto neste romance certas características do sujeito moderno vão sendo refletidas por meio da construção narrativa. Ou seja, o desamparo, que é aspecto nodal da estruturação subjetiva deste sujeito, é narrado por Clarice no encontro de Lóri e Ulisses. E o fato fica particularmente bem delimitado no momento em que o casal, no seu processo de enamoramento, encantamento e busca por aproximação, chega à conclusão de que amar consiste em dar ao outro sua própria solidão.

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Ataide (2017) aponta que a construção dos personagens Loreley e Ulisses se dá por meio de uma trajetória de questionamento de ambos a respeito da realidade. A linguagem possibilita um tensionamento dos fatos e uma ampliação da experiência de conhecer, dados tanto pela capacidade de expressão linguística quanto por sua ausência, ou seja, pelo silêncio, que também passa a ser entendido como elemento expressivo. Podemos percebê-lo na seguinte passagem do romance: O que se passara no pensamento de Lóri naquela madrugada era tão indizível e intransmissível como a voz de um ser humano calado. […] Por mais intransmissível que fossem os humanos, eles sempre tentavam se comunicar através de gestos, de gaguejos, de palavras mal ditas e malditas (LISPECTOR, 2017, p. 35-36).

Ataide (2017) insiste que a questão do silêncio é uma característica significativa no romance que analisamos — assim como em outras obras de Clarice; o silêncio nesse sentido, apresenta-se tanto como causa da narrativa quanto como sua finalidade, ou seja, o alvo para o qual se direciona o falar, no caso do romance, com a escrita da palavra. Clarice escreve: “Ulisses falou: — Bem tranquila, Lóri, vá bem tranquila. Mas cuidado. É melhor não falar, não me dizer. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio” (LISPECTOR, 2017, p. 71). A partir do entendimento de que palavra e silêncio possuem significação própria, consideramos que a escolha do nome dos personagens é também digna de atenção:

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Não há como deixar de notar a sugestão mítica dos dois nomes: Lóri é Loreley, sereia segundo a lenda germânica. Ulisses, herói da Odisseia, de Homero, que viaja e não se deixa seduzir pelo canto das sereias (MA LIN, 2015, p. 21). No romance, há inversão dos dois papéis. É Lóri quem “viaja”, passando pelo processo de aprendizagem guiada por Ulisses, enquanto ele espera que ela esteja pronta para o amor. Lóri atrai e seduz Ulisses como uma sereia, mas também vive essa viagem e também permite que ela espere o ser amado nos momentos de ausência (PEREIRA; BENEDITO; IVAN, 2018, p. 18).

Sobre a estrutura textual, os autores acrescentam que: A narrativa se inicia pelo caos, é nele que Lóri começa seu processo de aprendizagem. A primeira frase se inicia com uma vírgula, indicando uma pausa, mostrando para o leitor que algo aconteceu anteriormente. Não existem parágrafos nesse primeiro “capítulo”, ou ao menos, não existem em uma estrutura tradicional, eles praticamente são contínuos, são muito longos; é como se não houvesse ponto final, o leitor só entende que é um novo parágrafo pelo recuo que a estrutura do texto apresenta. O texto não apresenta uma regularidade da prosa que fecha com um ponto final e inicia com letra maiúscula; a escrita é seguida praticamente um poema em prosa, é altamente poética, características da escrita de Clarice Lispector (PEREIRA; BENEDITO; IVAN, 2018, p. 21).

Nessa direção, Barbosa nos explica que um elemento nodal e estruturante da obra de Clarice Lispector é o rompimento com um padrão tradicional de temporalidade. Ou seja, seus textos não seguem necessariamente a lógica do “início e fim”. Isso poderia ser justificado pelo fato de que suas narrativas evidenciam o caminhar de consciência de suas personagens, o que se passa em suas vidas interiores. Em Uma aprendizagem

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ou o livro dos prazeres isso fica marcadamente explícito logo no primeiro elemento apresentado ao leitor: a vírgula, com a qual o romance se inicia. Assim, Clarice transmite a ideia de que a narrativa, e a vida de suas constituintes, já estão em andamento. Para o autor essa marca de Lispector é entendida como uma “dramatização poética plena construída por uma linguagem puramente metaficcional” (BARBOSA, 2014, p. 97). De modo que o encerramento do livro, com dois pontos, traduziria um término não habitual possibilitando a interpretação de que narrativa e vida são transitórias, sendo o prazer referido apenas ao percurso do viver. Pereira, Benedito e Ivan (2018) defendem que Clarice Lispector trouxe, não sem enorme competência, características como a busca e a intensidade no tensionamento psicológico dos personagens à literatura brasileira. Consideramos que essa característica é marcante em sua obra — o que talvez permita pensar que também revela uma angústia vivida pela autora, que encontra elaboração em uma escrita por meio de processos de simbolização do vivido. Na única entrevista que concedeu a TV, realizada na ocasião por Júlio Lerner em 1977, no programa Panorama, Clarice parece carregar uma densidade, intensidade e contradições próprias. Nessa entrevista, por exemplo, a autora define o ser adulto como “triste e solitário” — traço que podemos perceber fortemente na obra em que nos propomos a analisar.

Aprendizagem ou prazer: o romance como metáfora do experienciável em um processo analítico Nessa seção buscaremos discutir alguns aspectos da teoria psicanalítica que nos foram suscitados a partir da leitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Como proposto na introdução, consideramos que esse também seria um título

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possível para um “processo de análise”. Ora, a experiência clínica demonstra que estar em análise, assim como se analisar, não é operação isenta de contradições ou sofrimentos, embora haja uma liberdade da busca pelo si mesmo. Talvez seja esse o fator que gera implicação de analisantes para com as suas análises, fazendo-os não ceder do desejo de querer saber mais sobre si. No momento em que nos encontramos com o livro de Clarice, tivemos uma apreensão de que esse movimento é retratado capítulo a capítulo nas vivências de Lóri decorrentes de seu encontro com Ulisses. Vejamos. A interrogação da qual partimos é: como Clarice foi capaz, de forma tão sensível e profunda, e ao mesmo tempo cotidiana, de colocar em palavras processos, fenômenos — e inclusive procedimentos do fazer clínico — de modo tão singular e de fácil apreensão? Em nosso entendimento, o trabalho realizado por Lóri, de busca de si a partir do encontro com o outro, revela muito do que acontece de forma muito trabalhosa em uma experiência de análise. Daí a possibilidade de dar um passeio, uma volta com alguns aportes da teoria psicanalítica, pelo processo de aprendizagem de Lóri. Não temos o objetivo de realizar uma apresentação conceitual, mas traduzir, a partir de algumas passagens da obra, como se revelam um pouco do fazer analítico e seus efeitos subjetivos. Esperamos que as metáforas aqui apresentadas possam auxiliar no entendimento da tangencialidade que encontramos entre Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e a experiência clínica em Psicanálise. Em linhas gerais, a Psicanálise pode ser considerada tanto um método científico, ao propor uma teoria geral sobre a constituição subjetiva, quanto uma prática clínica voltada à amplificação da escuta do sujeito a respeito de si mesmo, o que se dá por meio de uma análise do inconsciente. De acordo com Roudinesco (2016) o método freudiano coloca-se como uma possibilidade de elaboração para as an-

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gústias do sujeito moderno, já que com o advento da a Modernidade certos ideais e referenciais que traziam significação à existência caíram. Nesse sentido, nem pensamento mítico, nem religião podem dar conta das desilusões postas ao humano no enfrentamento da vida, devendo o sujeito se responsabilizar por sua própria construção. Freud (1996d), em O mal-estar na Civilização, refere-se por exemplo à busca pela felicidade afirmando que nesse terreno nenhum conselho seria válido; cada pessoa deve por si mesma ir ao encontro de suas elaborações: […] O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado; contudo, não devemos — na verdade, não podemos — abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo (FREUD, 1996d, p. 91).

Em relação às contribuições que seu trabalho clínico trouxe à sociedade podemos destacar o entendimento de que o ‘eu’ não é senhor em sua própria casa, deslocando a concepção de sujeito que vigorava até então (FREUD, 1996e). A partir desse princípio a Psicanálise tem contribuído com a busca de si e com o desvelamento dos processos inconscientes por meio da experiência clínica, o que não é feito sem uma dose de sofrimento e de estranhamento. Nesse sentido, podemos considerar que o “conhece a ti mesmo”, já proposto por Sócrates, ganha com a

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Psicanálise uma autorização para que seja reconhecida e operacionalizada em sua condição de estranhamento. Em Clarice, percebemos com evidência o quanto Lóri aceita e agrega esse elemento do estranho na sua busca de si. Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo (LISPECTOR, 2017, p. 19).

Esse elemento do cotidiano — o olhar-se no espelho e o reconhecimento dele decorrente —, que no livro aparece como uma “vivência”, na experiência clínica não deixa de ser marcadamente percebido pelo sujeito com um tom de surpresa. Tal característica, própria do processo analítico, pode ser igualmente verificado na narrativa clariceana: “Lóri estava fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava” (LISPECTOR, 2017, p. 72). A tomada de consciência proposta a partir dos processos de associação livre da parte dos analisantes, junto às interpretações dela consequentes convenciona-se denominar de insight (FIORINI, 2004). Nesse sentido, a Psicanálise pode ser entendida como um método de tradução dos processos inconscientes em conscientes. Após experimentar na clínica diferenciadas técnicas para o cuidado para com o adoecimento psíquico, passando pela hipnose e método catártico, Freud (1996a) deu voz a seus pacientes, sistematizando o que denominou de associação livre, sendo essa tanto o caminho de decifração do inconsciente, ferramenta de trabalho clínico, assim como um instrumento

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do fazer analítico que gera um deslocamento no saber. Na medicina tradicional o saber localizava-se na figura do médico; na proposta freudiana, contudo, esse saber se desloca para a autonomia do sujeito que se analisa. Do sintoma, que no geral é resultado de um conflito, não se exige uma dissolução, por assim dizer, mas é visto como consequência do sofrimento psíquico representante do sujeito. Freud (1996a) nos deixara o legado de que a Psicanálise, com sua proposta de cura pela fala, objetiva que o sujeito possa ter um aumento do conhecimento consciente de seus processos psíquicos, sendo que o sintoma se desfaz por consequência da capacidade elaborativa provocada pela fala. Em tempos contemporâneos, em que a busca pela felicidade e ‘completo bem estar’ se coloca como pauta de interesses comerciais e midiáticos, a Psicanálise opera como que na contracorrente. O tratamento analítico não promete a felicidade, como sugere Charles Melman (2009), embora tampouco caberia à Psicanálise privá-la a ninguém. No romance de Clarice Lispector, podemos perceber um encontro da busca de si empenhada pela protagonista em seu trabalho elaborativo das angústias provocadas pela existência: “[…] a condição não se cura mas o medo da condição é curável” (LISPECTOR, 2017, p. 20). E mais: “A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que tenhamos uma profunda aproximação da alegria com essa mesma vida” (LISPECTOR, 2017, p. 95). Consideramos que os resultados de um processo de análise poderiam ser metaforizados por meio dessa compreensão tomada por Lóri. Ou seja, a Psicanálise não propõe a eliminação da contradição, do desejo e suas interdições, mas pode oferecer, na implicação do sujeito para com suas questões, ao menos um alívio energético do gasto psíquico com o conflito. Ouçamos Lóri, novamente: “A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se humano” (LISPECTOR, 2017, p. 32).

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Pontuamos ainda que o processo de saber sobre si vai sendo construído ao longo da experiência de análise, sendo acompanhado por dificuldades, movimento que requer muito trabalho psíquico. Nesse sentido, o submeter-se a uma análise pode ser entendido como um ato de coragem, tal como em Clarice: Se não há coragem, que não se entre. Que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não veem na escuridão. Que se espere. Não o fim do silêncio mas o auxílio bendito de um terceiro elemento: a luz da aurora (LISPECTOR, 2017, p. 38-39).

O livro traduz, de forma sensível e com metaforizações ricas, definições possíveis a respeito do que é o viver e o existir, com suas contradições, paixões, tédios e sensibilidades. O que também acontece na experiência com o divã. Parente (2017) nos lembra que o conceito de divã deriva do idioma persa, representando “um conjunto de poemas apresentados em ordem alfabética”. Nas palavras da autora: “O divã é o lugar concedido aos pacientes para expressarem suas palavras, que são proferidas de forma quase poética quando comandadas pelo inconsciente” (PARENTE, 2017, p. 362). Nessa direção, podemos considerar que Freud já tinha essa intencionalidade ao dar uso a esse móvel que recebia seus pacientes para atendimento: provocar uma fala poética derivada do encontro do sujeito com suas próprias questões, sobretudo inconscientes. De acordo com Ataíde (2017) o estilo de escrita de Lispector evidencia o processo de reflexão intrapsicológica da protagonista, que procura saída para suas inquietações. A nosso ver, podemos considerá-las como processos elaborativos diante de conflitos inconscientes, uma vez escritos de maneira

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tão pouco linear. Essa não linearidade, que é também própria do processo de análise, decorre do fato de que o próprio inconsciente não possui determinação cronológica de tempo. Freud (1996c) sempre considerou que a atemporalidade é um traço determinante dos processos inconscientes. Na experiência de análise, o sujeito ao se deparar com seus conflitos e percebendo que seu sofrimento encontra-se regulado pela dialética do encontro temporal entre passado, presente e futuro, precisará tomar a decisão constante de sustentar o desejo de saber sobre si, ainda que isto tenha um custo psíquico elevado, por ser de difícil realização. Mesma tarefa é enfrentada por Lóri, como se pode constatar: — Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma. Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso queria evitar o principal. De repente porém notou que se não dissesse o final, nada teria dito. E falou: — Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece. Sim, tudo se esclarecia e ela surgia de dentro de si mesma quase com esplendor (LISPECTOR, 2017, p. 53).

A esse maior obstáculo, que se coloca ao sujeito frente ao desvelamento de seus elementos e conflitos do inconsciente, e em relação a construção de suas próprias definições, podemos colocar em referência o conceito de resistência (FREUD, 1996b). A resistência seria entendida como força contrária frente ao desejo de saber, mas também ao abandono da posição de sofrimento causada pelo sintoma. Se de um lado o sintoma traz ao sujeito uma suposta resolução da conflitiva inconsciente, por

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outro traz sofrimento e angústia. De todo modo, o abandono dessa formação não é fácil ao sujeito, pois, apesar do sofrimento, “isso fala” de uma posição conhecida e, portanto, confortável. Quando lemos o livro de Clarice pela primeira vez, uma das passagens que mais nos chama a atenção pela propriedade de definição do fenômeno da angústia é: Sabia que por enquanto doía muito e que depois ainda doeria mais pois sofreria a falta d’Aquele que, mesmo se não existisse, ela amava porque era uma célula dele. E talvez viesse a se salvar: porque a angústia era a incapacidade de enfim sentir a dor. Pensou: eu nunca tive a minha dor. Por falta de grandeza, sofrera suportavelmente tudo o que nela havia a sofrer. Mas agora sozinha, amando um Deus que não existia mais, talvez tocasse enfim na dor que era dela. Angústia também era o medo de sentir enfim a dor (LISPECTOR, 2017, p. 66-67, grifo nosso).

Quando analisada em termos psicanalíticos, verificamos que o conceito freudiano encontra aí uma boa metaforização, uma vez que de fato em Freud (1996b) a angústia é sistematizada como uma expectativa que não encontra objeto, tendo em sua qualidade o atributo da falta. Ou seja, quando Clarice expõe, a partir de Lóri, que a angústia é a incapacidade de enfim sentir a dor, retrata um atravessamento necessário, e que a experiência analítica tem como proposta, de nominar, colocar em palavras o que faz questão para os pacientes, mesmo que suponham não saber, gerando angústia. E assim a angústia, ao ser transformada em narrativa, pode ser considerada sofrimento, deixando de fazer pressão para o sistema psicológico (DUNKER, 2015). O curioso do processo de análise é que existe até determinado momento uma expectativa fantasiosa de que algo ou alguém — no geral o psicanalista — venha a dar respostas ao sujeito, o que precisa ser desconstruído e superado pelos ana-

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lisantes, de modo que eles próprios sejam os autores de suas vidas. É fato, no entanto, que a figura do analista possui papel e importância nessa sustentação do não-saber do analisante para que ele venha a suportar suas próprias interrogações, superar suas resistências, para então dar os passos necessários em seu processo de construção subjetiva e de elaboração da angústia. Há uma passagem no livro em que podemos visualizar essa sustentação da angústia, realizada quando Ulisses presta um auxílio emocional a Lóri: — Que é que eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro. Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse com voz calma e apaziguante: — Aguente (LISPECTOR, 2017, p. 115).

Diferentemente do que dito por Ulisses — “aguente” —, em um processo de análise isso seria sustentado pela própria figura do analista, que inclusive suporta os silêncios a fim de colocar o sujeito em movimento. Na obra, Clarice assim representa esse movimento: Não. Ninguém lhe daria. Tinha que ser ela própria a procurar ter. Inquieta, andava de um lado para outro do apartamento, sem lugar onde quisesse se sentar. Seu anjo da guarda a abandonara. Era ela mesma que tinha que ser sua própria guardiã. E tinha agora a responsabilidade de ser ela mesma. Nesse mundo de escolhas, ela parecia ter escolhido (LISPECTOR, 2017, p. 75, grifo nosso).

É inegável que a experiência analítica, por provocar o encontro do sujeito com sua própria falta, provoca uma dose de sofrimento. Porém, ao permitir que esse sofrimento seja

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narrado, gera um aumento de potência criativa. É apenas por meio do reconhecimento do desamparo e da falta que o sujeito pode desejar e, assim criar suas possíveis formas de satisfação na realidade. A constituição da Psicanálise, desde sua origem, possui relação com a problemática do desamparo vivenciada pelo sujeito moderno. Freud (1996d) defendeu que o desamparo é estruturante e constitutivo do ser humano, tendo a civilização construído alternativas para lidar com esse sentimento, sendo a religião uma dessas apostas ilusórias presentes na história da humanidade. Na concepção freudiana, as elaborações artísticas e as produções culturais e científicas também seriam formas de lidar com o desamparo. Por fim, o aprender a amar também é concebido pelo autor como uma estratégia de elaboração para o desamparo. Lóri, em sua descoberta de si, foi capaz de confrontar-se com seu desamparo em seu processo de aprendizagem: Naquela hora da noite conhecia esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo apenas o desamparo de estar viva. A vida era tão forte que se amparava no próprio desamparo. De estar viva — sentiu ela — teria de agora em diante, que fazer o seu motivo e tema. Com curiosidade meiga, envolvida pelo cheiro de jasmim, atenta à fome de existir, e atenta à própria atenção, parecia estar comendo delicadamente viva o que era muito seu. A fome de viver, meu Deus. Até que ponto ela ia na miséria da necessidade: trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estava viva (LISPECTOR, 2017, p. 143).

A partir das vivências decorrentes do encontro entre Lóri e Ulisses podemos visualizar em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres as significações que os personagens vão atribuindo como enfrentamento do desamparo e solidão, próprios do viver. A experiência de leitura, portanto, nos permite traçar

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um paralelo entre o movimento de tomada de conhecimento e consciência de si, do outro e da realidade, metaforizando assim o percurso trilhado por um sujeito que se submete ao exercício de se analisar.

Considerações finais “Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte que eu” (LISPECTOR, 2017, s.p.). Destaquemos dessa nota um primeiro elemento: o medo apresentado pela autora diante da liberdade que sua produção solicitou. Na prática psicanalítica podemos perceber que o movimento de escrita do inconsciente decorrente da fala e de tomada de consciência de suas questões e conflitos psíquicos gera o mesmo tensionamento a quem se propõe realizá-lo, uma vez que na medida em que o sujeito toma conhecimento sobre algo de si, não é mais possível voltar atrás; a partir daí, a liberdade exige uma implicação subjetiva, o que pode ser fator preditivo de medo. O segundo elemento que merece destaque é a inusitada percepção da autora em ser mais forte do que supunha. Também podemos considerar que o trabalho analítico caminha em igual premissa. Desde Freud (1996d) podemos considerar uma perspectiva “progressista” manifesta na aposta da prática analítica; ou seja, a Psicanálise, ao propor sua intervenção no sentido de gerar uma implicação do sujeito para com seus conflitos, sentimentos, desejos, e ambivalências, buscava, ao menos na intenção de seu elaborador, que a vida pudesse prevalecer à destrutividade. Em uma perspectiva de movimentar o sujeito, a clínica psicanalítica, apesar de não buscar prioritariamente a diminuição da angústia e/ou do sofrimento, o faz por consequência. Ao

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possibilitar a nominação do mal estar, a análise constrói narrativas que por possuírem a capacidade de compartilhamento na relação analisante-analista geram um processo de significação que conduz à perlaboração possível de conflitos psíquicos e do sentimento de desamparo. Na concepção freudiana, a perspectiva psicanalítica poderia ser compreendida sob os termos da transformação do sofrimento neurótico em sofrimento comum. Em Clarice, esse movimento aparece da seguinte forma: Lóri tinha a intuição de que, passadas as primeiras perturbações da festa íntima que haveria, ela teria enfim a experiência do mundo. Bem sabia, experimentaria enfim em pleno a dor do mundo. E a sua própria dor de criatura mortal, a dor que aprendera a não sentir. Mas também seria por vezes tomada de um êxtase de prazer puro e legítimo que ela mal podia adivinhar. Aliás já estava adivinhando porque se sentiu sorrindo e também sentiu uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais. Ser-se o que se é, era grande demais e incontrolável. Lóri tinha uma espécie de receio de ir longe demais. Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la Deus sabe onde. Ela se guardava. Por que e para quê? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medo de sua capacidade, pequena ou grande. Talvez se contivesse por medo de não saber os limites de uma pessoa (LISPECTOR, 2017, p. 129).

Por fim, consideramos que o título da obra, assim como sua narrativa e proposta traduz talentosamente a experiência e o trabalho subjetivo provocados em decorrência de uma análise. O aceite do convite do editor para que pudéssemos realizar esse trabalho também encontraram no título do livro analisado sua motivação, configurando assim, tanto uma aprendizagem, quanto um prazer. Resta-nos a realização do convite para

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aqueles que desejam saber mais sobre literatura, a leitura do romance clariceano, e para aqueles que desejam saber mais sobre si, o atravessamento e vivência de uma experiência de análise pessoal.

Referências ALENCAR, D. R. O percurso da criação: análise de uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 2013. 54 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras Português) –Universidade de Brasília, Brasília, 2013. ATAIDE, L. B. Ser e linguagem: estudos sobre uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector. Revista Entrelinhas, Rio Grande do Sul, v. 11, n. 1, jan./jun. 2017. BARBOSA, A. M. A poética do silêncio e a aprendizagem do ser em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector. 2014. 108 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014. CHAVES, E. O paradigma estético de Freud. In: FREUD, S. Obras incompletas de Sigmund Freud: arte, literatura e os artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 7-39. DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015. FIORINI, H. J. Teoria e técnica de psicoterapias. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 4. FREUD, S. Conferências introdutórias sobre Psicanálise (Parte III). In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 16. FREUD, S. O Inconsciente. In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996c. v. 14. FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. v. 21. FREUD, S. O poeta e o fantasiar. In: FREUD, S. Obras incompletas de Sigmund Freud: arte, Literatura e os Artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 53-66.

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FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da Psicanálise. In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. v. 17. LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. MELMAN, C. Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC Editora, 2009. PARENTE, A. M. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017. PEREIRA, C. O.; BENEDITO, L. F.; IVAN, M. E. S. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: uma leitura para Clarice. Revista Eletrônica de Letras, Franca, v. 11, n. 11, jan./dez. 2018. ROUDINESCO, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

Tempo e espaço em Água viva

Evely Vânia Libanori Stephanye Beatriz Padovani Barbosa Água viva é texto que expõe o trabalho do sujeito da enunciação e põe em evidência os mecanismos da construção textual. Ao assumir a própria escritura do texto, a narradora realiza uma intensa meditação sobre os elementos fundamentais da obra literária: o tempo e o espaço. Este estudo se propõe a estudar os procedimentos estéticos adotados pela narradora no momento em que pensa os elementos do espaço e a passagem do tempo. Nossa interpretação, portanto, não separa espaço e tempo porque, no texto, eles se interpenetram. O texto é o lugar onde o tempo e o espaço se fazem no momento mesmo da escritura. Concentramos, assim, a interpretação da obra a partir dos dados oferecidos pelo próprio texto, procurando dele partir e a ele nos prender, para que a leitura resulte da especificidade da narrativa. O tempo é pensando em sua fluidez, sempre caminhando para a morte. A narradora se ressente da impossibilidade de deter o tempo e vê a escrita como um meio, não de prender a passagem temporal, mas de imortalizar com palavras, a cena e o sentimento. O tempo linear é substituído por um tempo relativo, interior, que só pode ser estimado psicologicamente, por

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meio da sucessão de estados de consciência. Nesta obra, as linhas horizontais de presente, passado e futuro se confundem, surgindo um tempo psicológico, onde a personagem se lança à procura do sentido de seu estar no mundo. O espaço é aquele recuperado pela mente da personagem. Existe o cenário físico, à medida que os elementos do mundo externo se relacionam com sentimentos e emoções. O mundo exterior, ao mesmo tempo que fornece os elementos para o processo de revelação ontológica, é ultrapassado e cede lugar a um espaço interior profundo, de dimensões infinitas. O espaço, despojado por completo de qualidades duradouras e inalteráveis, é subjetivamente integrado na narrativa. Dessa forma, o único mundo possível é obra da consciência do eu. A obra nasce de uma investigação vital. A escrita é a possibilidade de criação de um outro universo. A palavra faz a fábula, a palavra explica a emoção. A personagem pensa a sua identidade e considera que a escrita pode colocar ordem na vida que existe dentro de si, em sua consciência e mente. A escritura é possibilidade de exposição de si, exposição que ora leva a um entendimento sobre si, ora, não: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (LISPECTOR, 1980, p. 22). A escritura passa a ser a vida. Água viva é, pois, um projeto poético-vital que possibilita eternizar a situação e o tempo. A verdade que o texto inaugura surge como a única possível, porque distante do banal mundo rotineiro, que impede ao humano perceber a complexidade do eu diante dos mistérios da vida. Por exemplo, a personagem pensa o início e o desenvolvimento da vida humana com o quadro de uma gruta pré-histórica e que abrigara todo tipo de vida. A volta há, aproximadamente, 15 mil anos no tempo faz com que ela veja sua identidade segundo a ideia do “ser-com”, de Martin

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Heidegger, e o “ser-com” é pensado em relação a ratos, insetos, baratas. A saída do mundo externo organizado é a entrada em um espaço-tempo mítico da origem da vida: E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza — grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora, com suas névoas, lembrança ou saudade: espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de mortes e nascimentos, pareceriam bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado de sonho quando pinto uma gruta ou te escrevo sobre ela — de fora dela vem o tropel de dezenas de cavalos soltos a patearem, com cascos secos as trevas e do atrito dos cascos o júbilo se libera em centelhas: eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecerá (LISPECTOR, 1980, p. 15).

As grutas escuras são o “mergulho na terra”, ou seja, a entrada em sua própria identidade existencial por meio da evocação mental de um tempo mítico onde a vida humana se desenvolveu junto com insetos como aranhas, escorpiões e baratas. Trata-se de um cenário escuro, visto e experimentado por dentro. Nesse momento, a personagem se sente parte do espaço que cria. Dentro da gruta, entre aranhas, escorpiões e baratas, ela declara: “E tudo isso sou eu”. Ela ouve, fora da

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caverna, o tropel de cavalos livres. A frase final da descrição da gruta muda o foco do tempo passado para o tempo futuro milenar, tempo que apagará a existência da gruta e apagará a existência da personagem: “eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecerá”. A mente da personagem transita entre 15 mil anos no passado e 15 mil anos no futuro, e a projeção para o futuro é a constatação certa e sempre da morte. Leve mais ou menos tempo, todas as existências serão apagadas. A da mulher e a da gruta. A mulher tenta, com a escritura, descobrir o que é no momento mesmo em que escreve. A escrita é a forma de criar o tempo presente e se lançar ao futuro, tendo em vista que “O que falo é puro presente e este livro é uma linha reta no espaço” (LISPECTOR, 1980, p. 18). O livro se torna a linha reta no espaço, sendo ele sempre o presente. Nesse caso, tempo e espaço se interpenetram e se se tornam indissolúveis, resultando no que Mikhail Bakhtin designou cronotopo (1988, p. 211): “À interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa ‘tempo-espaço’)”. A mulher sente a fusão de espaço e tempo: “só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim” (LISPECTOR, 1980, p. 10). O meio físico, os índices temporais cruzam-se e adquirem importância à medida que colaboram para revelar a complexidade do eu diante do universo: “Meu esforço: trazer agora o futuro para já. Movo-me dentro de meus instintos fundos que se cumprem às cegas. Sinto então que estou nas proximidades de fontes, lagoas e cachoeiras, todas de águas abundantes. E eu livre” (LISPECTOR, 1980, p. 30). A água, aqui, é representante da sensação de tempo e provocadora de sentimentos de leveza. Evoca o fluxo ininterrupto do tempo que carrega o ser humano para o mistério final da

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morte. Perto das “águas abundantes” a mulher quer encontrar um tempo que ainda não exerceu sua ação destruidora sobre as coisas, onde tudo está por se tornar. Ao declarar-se “livre”, não há limites temporais ou espaciais que impeçam a busca do vago, do indefinido que pode trazer a liberdade: “E eu livre”. A narradora faz referência ao possível leitor chamando-o “você” e o convida para viver, com ela, a experiência de nascer em mundo novo, o mundo do texto. Após descrever o parto de uma gata, a narradora pensa a relação com o “você”: “Estou dando a você a liberdade. Antes rompo o saco de água. Depois corto o cordão umbilical. E você está vivo por conta própria” (LISPECTOR, 1980, p. 35). Dar ao leitor a “liberdade” significa tornar possível o seu rompimento com a crosta do mundo exterior para renascer em um universo livre e autêntico. O parto é, pois, o instrumento com o qual a personagem mais claramente, conscientiza o seu leitor da necessidade de anulação do tempo cronológico e dos limites da vida cotidiana, para que também ele possa entrar em contato vivo com a formação de um mundo. No reino da Arte, o tempo não é mais do que a duração de uma percepção e o espaço revela o contínuo processo de transformação a que todas as coisas estão sujeitas, quando não são mais concebidas como algo estático e perene. No domínio da Arte, espaço físico e tempo cronológico transformam-se em ritmo poético, resgatados, idealmente, de sua materialidade bruta e mensurável. Na tentativa de dizer “quem é”, o instante presente é pensamento obsessivo: “Desenrolo-me apenas no atual. Falo hoje — não ontem nem amanhã — mas hoje e neste próprio instante perecível” (LISPECTOR, 1980, p. 25). O desejo de se encontrar no tempo presente explica-se, em termos existencialistas, pela necessidade de o ser humano desfazer-se da solidificação e da objetivação que as ações passadas conferem ao indivíduo.

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O passado implica a cristalização do eu, que em nada colabora para a compreensão de sua autenticidade e verdade profunda. Quando o ser humano ainda não tem consciência de sua situação de ser lançado no mundo, o passado pode significar um ponto de referência para suas ações. Voltando ao passado para consultá-lo, a pessoa avalia erros e acertos, e baseia suas escolhas e normas de conduta em experiências já adquiridas e em valores que a vida em sociedade já julgou. No entanto, quando o ser humano ousa perguntar “quem sou?”, percebe que seus passos anteriores, uma vez que se nortearam por princípios exteriores a ele, não fornecem nenhuma explicação para aquilo que ele é. Por isso, a imprescindibilidade de se proceder à despersonalização e à dessocialização e procurar o absoluto das coisas, no instante mesmo em que o ser é tomado pelo espanto de existir. O tempo presente representa para a personagem o momento da dúvida, do não saber, já que todos os valores pré-concebidos foram abandonados junto com o seu passado. Renunciando ao passado, não há nada para ser retomado, como também não há nenhuma história a ser contada; tudo se insere em um “agora” em que a narradora tenta se descobrir e conhecer o mundo: “Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa” (LISPECTOR, 1980, p. 9). Encontrar o “é da coisa” significa encontrar a sua essência, conhecer a modalidade íntima, aquilo que se esconde por detrás de sua aparência. Tal revelação da essência do mundo poderia lhe trazer a compreensão do próprio eu. À medida que a personagem pensa a existência das coisas, percebe a si própria como percebendo-a; por isso, se ela atingisse o absoluto das coisas, atingiria o seu próprio absoluto. Além disso, em seu projeto de conseguir a plenitude, a morte se revela como a maior inquietação da personagem, angustiada com a sua condição finita e com sua condenação ao

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não ser: “Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde” (LISPECTOR, 1980, p. 95). No sentido de negar a morte, a narradora pretende, na experiência do presente, conter o fluxo do tempo vivendo apenas o momento: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já” (LISPECTOR, 1980, p. 9). O “instante-já” equivale a um átimo de tempo em que o eu poderia, subitamente, conhecer a vida plena e escapar à sua condição finita. Em Água viva, o presente não poderia ser expresso na sucessão do tempo linear, pois é o instante que reúne, simultaneamente, todos os momentos. Escrever, para a narradora, é negar a sucessão temporal para destacar o “nervo vivo e fremente do hoje” (LISPECTOR, 1980, p. 72). Eis porque se desdobra, ante os olhos do leitor, a imprevisibilidade das relações constitutivas do sentido textual. As imagens captadas são rápidas e fugazes, apreendidas por emoções intensas: Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim. Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça (LISPECTOR, 1980, p. 17).

No tempo presente, a mulher se identifica com a própria origem da vida, com um tempo primeiro (“tento misturar palavras para que o tempo se faça”), indicando que o seu nascimento, no reino da Arte, está vinculado à instauração da realidade no seu estágio originário, puramente energético. A imagem sinestésica (“milhares de reflexos do sol na água”) sugere à sensibilidade imaginativa do leitor o dinamismo das sensações experimentadas pelo eu. Em cada instante, vive-se a verticalidade das alturas, ao se contemplar “o silêncio do disco do sol” (LISPECTOR, 1980,

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p. 42), “o infinito que tem cor de ar” (LISPECTOR, 1980, p. 84), “a parte divina das borboletas” (LISPECTOR, 1980, p. 94). A verticalização do tempo é o recurso utilizado pela narradora para buscar, nos horizontes do além, a transcendência espaçotemporal: “O ar não tem lugar nem época. O ar é o não lugar onde tudo vai existir” (LISPECTOR, 1980, p. 38). Todo o texto é marcado por um tempo volátil e a personagem tenta captar o instante apaziguador do seu tormento vital. Como não existem apegos a causas externas, o instante tem a fugacidade dos fogos de artifício, é luz que, passageira, espalha-se em várias direções: “Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício ele espocam mudos no espaço” (LISPECTOR, 1980, p. 9). Dessa luz que se dispersa, advém a associação com a fotografia: “Fotografo cada instante” (LISPECTOR, 1980, p. 14). À semelhança de uma fotografia, que corta o movimento em um instante e o eterniza, a intenção é fixar o tempo estaticamente: “Vai começar: vou pegar o presente em cada frase que morre” (LISPECTOR, 1980, p. 85). Contudo, o instante é fugidio como “os trilhos fugitivos que se veem da janela do trem” (LISPECTOR, 1980, p. 74). O absoluto do “instante-já” não pode ser captado, expondo ao ser a sua palpitação e transitoriedade no tempo e no espaço: “o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já” (LISPECTOR, 1980, p. 9-10). O eu sabe que algo está por vir, algo que se pode apenas intuir, mas não compreender: “Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado” (LISPECTOR, 1980, p. 57). É, pois, impossível encontrar a permanência temporal. A experiência do instante permanece na memória e pode ser relembrada: “coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob formas outras e diferentes” (LISPECTOR, 1980, p. 53). A impossibilidade de apreender o absoluto e a constatação do escoamento incessante do tempo

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marcam o reconhecimento de uma trágica simultaneidade temporal: “Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro” (LISPECTOR, 1980, p. 22) Ao perceber que jamais conseguirá a fixação do tempo, a personagem quer desfrutar intensamente as sensações vivenciadas no presente, incitando o leitor para viver com ela as mesmas sensações: “Agora é um instante. Você sente? eu sinto” (LISPECTOR, 1980, p. 47). Para “sentir” a força indescritível de um momento, o leitor deve estar familiarizado a um tipo de leitura onde o tempo não é só a mensuração do desenrolar de fatos interligados, mas exerce, sobretudo, função primordial na busca do sentido da vida. Em Água viva, existe a expectativa de que o tempo da escritura se identifique com o tempo da leitura para que também o leitor indague sobre o incessante fluir temporal, a fim de penetrar no tempo e lugar da escrita: “Esse instante é. Você que me lê é” (LISPECTOR, 1980, p. 36). Quando a narradora diz que o leitor é, ou seja, que ele se faz no momento exato da leitura, conscientiza-o de sua responsabilidade em viver a descoberta de si e do mundo no tempo psicológico, onde as sensações passadas, presentes e futuras se mesclam. Este leitor é, pois, um coautor. Ao inserir-se na constelação textual, sentirá a obra como um estímulo para o gosto, para a imaginação e para a inteligência. Segundo Umberto Eco (1971, p. 280) não é outra a função da grande arte: “a grande arte é sempre imprevista, não quer agradar e consolar, quer colocar problemas, renovar a nossa percepção e o nosso modo de compreender as coisas”. Na transitoriedade do “instante-já”, tanto o eu lírico quanto o leitor conhecem apenas uma parte fragmentada de seu ser. Entretanto, outros estratos jazem latentes, esperando um tempo futuro em que sejam penetrados. Assim, uma sensação dará margem a outra, que desembocará em uma terceira, que contém em si o germe de uma quarta. Disso resulta, para o leitor,

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a multiplicidade dos efeitos comunicativos e, para o eu lírico, a impossibilidade de alcançar a permanência temporal. O ritmo incessante da vida instaura, em Água viva, um tempo circular, do qual o ser humano não poderá jamais fugir. A consciência de que o passado e o futuro não fornecem elementos para a compreensão da origem da vida e nem do absurdo da morte intensifica na narradora o desejo de encontrar, no tempo presente, a essência da vida, aquilo que ela é. Daí a reiterada deliberação em encontrar o “é da coisa” (LISPECTOR, 1980, p. 9). O fluxo de instante escoa sem parar e o presente vira passado, assim como o futuro se torna presente e passado, denunciando a impotência do ser para se atingir a essência. Este tempo circular é refletido no próprio processo de construção textual. O discurso enunciativo de Água viva não termina, mas se prolonga infinitamente, como evidencia a frase última da obra: “O que escrevo continua e estou enfeitiçada” (LISPECTOR, 1980, p. 95). Enquanto símbolo da circularidade, a temporalidade registrada no texto nos remete à experiência do eu como expansão do enovelado que tem, na cosmovisão mítica, relação com o Uroboros, serpente cósmica que morde a própria cauda, simbolizando o que não tem princípio nem fim. Tudo depende de o leitor soltar mais e mais a linha do novelo, desdobrando a teia constitutiva de inúmeras relações significativas. Ao final, descobrirá, maravilhado, que a ponta última se une à primeira, o que convida a novos desdobramentos. À tentativa frustrada de não poder reter o absoluto temporal, acrescenta-se, ainda, a impossibilidade de a personagem comunicar a sua angústia vital por meio da palavra. O eu lírico desejaria, com a linguagem, uma potencialidade criadora ex nihilo, só comparável ao poder genesíaco de Deus. O seu “sopro de vida” (LISPECTOR, 1980, p. 65), como alusão ao sopro que Deus deu para criar o ser humano, não consegue expressar toda a sua complexidade interior e o alcance de suas

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emoções. Ao encontrar-se existindo, em permanente diálogo consigo mesma e com o leitor, o surgimento da palavra revela à personagem a descontinuidade entre a percepção do instante e o seu registro na linguagem: “Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar” (LISPECTOR, 1980, p. 16). A constatação de que a palavra não permite revelar a amplitude de suas emoções faz com que a narradora se utilize do silêncio como meio de expressar os aspectos mais sutis da experiência subjetiva: Nestes dois segmentos — “ouve meu silêncio” / “Lê a energia que está no meu silêncio” — parece haver um paradoxo, mas é a expressão de um pensamento dialético. Ouvir e ler o silêncio significa que não há como dizer e não há como ouvir aquilo que está sendo experimentado pela narradora. O que liga leitor e narradora é a energia, uma sensação experimentação igualmente por ambos. Assim, pode-se considerar que a instauração do silêncio e a possibilidade de percepção poética do mesmo são consequências da prioridade existencial dada à palavra artística. Nestas condições específicas de produção discursiva, o silêncio deixa, enfim, de ser impossibilidade de comunicação, para traduzir apenas a impossibilidade de expressão verbal. Palavra e silêncio exprimem ritmos e compassos de estados psicológicos e afetivos que a palavra por si só não evidenciaria. O silêncio não tem forma, não se encorpa na língua-escrita, nem na língua-falada. É “expresso” pela intuição recriadora da língua-lida (“lê”) ou da língua-ouvida (“ouve”). Ainda que se trate de uma mensagem silenciosa enviada pelo eu, caberá ao leitor ou ao ouvinte a compreensão desta mensagem. Enfim, o sujeito da recepção é que atribui carga semântica ao silêncio, a fim de ler/escutar o inconsciente com a sua pujante energia. A compreensão daquilo que se diz por meio da supressão da palavra, ou seja, por meio do silêncio, só é possível quando o leitor se dispõe a intensificar sua

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capacidade de sensibilização, penetrando mais profundamente no universo lírico da narradora. Só desta forma é possível sentir as mesmas vibrações experimentadas por ela. Estabelece-se, assim, uma comunicação sem palavras, onde a intelecção dá lugar às emoções: “Quem for capaz de raciocinar — o que é terrivelmente difícil — que me acompanhe” (LISPECTOR, 1980, p. 33). Também os animais merecem referência especial no espaço reinventado pela personagem. O leitor perceberá toda uma exaltação da zoologia presente nas páginas da obra: insetos (aranha, escorpião, barata, pirilampo, abelha, vespa, mosca, grilo, pulga, piolho, percevejo, formiga, borboleta), répteis (serpente, cobra, tartaruga), moluscos (ostra, lesma), mamíferos herbívoros e carnívoros (cavalo, esquilo, veado, elefante, ovelha, cabra, morcego, tigre, pantera, gato, cão, lobo), roedores (rato, ratazana). Dominam, também, no espaço textual, os pássaros e passarinhos, raramente identificados: águia, coruja, cisne. É comum, em arte, o ser solitário humanizar os animais para fazer deles um ouvinte, um companheiro. A personagem adota outro método: “Não humanizo bicho porque é ofensa — há que respeitar-lhe a natureza — eu é que me animalizo” (LISPECTOR, 1980, p. 50). À descoberta de um mundo impermeável ao outro, solitário, segue-se a constatação de nele habitarem seres que ignoram a razão de viver e que não possuem a divisão entre exterior e interior. Os animais são vistos pelo eu como criaturas que exercem plena e autenticamente suas possibilidades de existência e, por isso, estão situados em um estado definitivo, inalcançável pelo ser humano: “Pareço ter certo horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios instintos embora livres e indomáveis. Animal nunca substitui uma coisa por outra” (LISPECTOR, 1980, p. 49-50). Os animais são o símbolo de uma realidade sensível e primordial. Representam a existência primitiva que as relações humanas mantêm represadas: “Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca

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e língua. E um cavalo solto de uma força livre” (LISPECTOR, 1980, p. 39). Enquanto a narradora se vê limitada pelas circunstâncias externas, o animal cavalo é pura energia indômita, é completo e total, porque ausente de qualquer duplicação (“E um cavalo solto de uma força livre”). Dentre os animais, o representante maior da plenitude existencial é o cavalo. Todas as vezes em que a personagem se refere a ele (páginas 15, 39, 49, 51, 72), atribui-lhe predicados como “livre”, “solto”. Tais predicados evidenciam a ausência de qualquer duplicação que possa limitar a natureza autêntica do animal. A exaltação da vida instintiva e plena, só realizada nos animais, prende-se à necessidade de o eu conter o fluxo incessante do tempo. Viver apenas o presente, sem ligação com o passado ou o futuro tornaria o ser humano semelhante ao animal, que não tem noção de sucessão e, nesse sentido, de tempo. Só quando algo se fez passado, quando está apto a entrar em contraposição com outro fato temporal é que a pessoa percebe o tempo. Não sendo mais complexo que um animal, vivendo só o momento presente, o ser humano poderia alcançar a felicidade: “Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta” (LISPECTOR, 1980, p. 49). Para a narradora, experimentar a matéria vital dos animais, equivaleria a liberar o ser das suas limitações e provar a vida plena: “Não ter nascido bicho é a minha secreta nostalgia” (LISPECTOR, 1980, p. 53). Sendo impossível ao ser humano compartilhar a dimensão ontológica dos seres que se movem instintiva e autenticamente, o eu só pode admirar a existência deles: “Todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matéria-prima — it — e formaram-se então os bichos” (LISPECTOR, 1980, p. 56). A energia pulsional dos animais é a constatação dolorosa da eterna descontinuidade da vida humana. Benedito Nunes (1969, p. 131)

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assim se refere à presença constante dos animais na obra de Clarice Lispector: Os animais gozam, no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade incondicionada, espontânea, originária, que nada —  nem a domesticação degradante de uns, nem a aparência frágil e indefesa de outros — seria capaz de anular. Se o reino que eles formam está firmemente assentado na própria Natureza, é porque se acham integrados ao ser universal de que não se separaram e de que guardam a essência primitiva, ancestral e inumana.

Diferentemente dos animais, que estão ligados à Natureza ancestral, o ser humano tem um destino a fazer. Ainda que este destino compreenda a impossível tarefa de atingir o absoluto, deve-se ir até o fim: “Caminho até o limite do meu sonho grande” (LISPECTOR, 1980, p. 29). E, no sentido de compreender a própria essência, de desvendar o próprio destino e de expor a própria dor, a personagem vai ao encontro do mundo, transfigura a realidade e transita livremente no espaço e no tempo distantes do espaço exterior e do tempo mensurável. Contudo, mesmo inventando a sua própria verdade, como meio de fugir às concepções pré-estabelecidas para lhes impor o gesto livre, a própria escolha, a personagem sente que jamais poderá acercar-se de um absoluto espaçotemporal: “viver é incômodo. Não se pode andar nu de corpo nem de espírito” (LISPECTOR, 1980, p. 96). O ser humano não pode desnudar-se completamente, ou seja, não pode atingir o seu eu, a sua essência, porque está limitado pelas circunstâncias exteriores e está sempre separado do outro. Todas as tentativas de explicar a vida e as coisas vão dando forças para a narradora refletir, suportar-se. A escritura do texto, enquanto tradução do desejo de união com todas as coisas para encontro do absoluto, lhe traz à consciência a

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impossibilidade desta missão. A personagem decide, então, interromper seu texto: “Vou parar porque é sábado” (LISPECTOR, 1980, p. 96). Nada resta ao criador fazer: tudo foi arduamente tentado, mas a conquista da plenitude existencial se mostrou sempre inatingível. Tudo que resta é a constatação da irremediável solidão humana, dada a impossibilidade de o ser humano ser um eu no outro. A lição final é a constatação de um mundo indelevelmente marcado pela incomunicabilidade de ser para ser: “Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar” (LISPECTOR, 1980, p. 97). A narradora desprende-se, então, da mão de seu leitor. A comunicação profunda, segundo o ideal de reciprocidade das consciências é humanamente impossível, mas para constatar e admitir a incomunicabilidade e a solidão foi preciso abrir-se ao diálogo. Diálogo que só poderá ser estabelecido com um leitor disposto a encontrar, na palavra, a transcendência de significação para experimentar a dor humana e gozar os efeitos estéticos organizados pela autora. Só assim, Água viva se converte em um texto sensível e inteligente, que estabelece, na própria organização discursiva, a presença de um leitor que participe da criação de espaços e tempos, por meio da linguagem, assumindo, inclusive, todos os riscos inerentes a tal atividade. Água viva é, assim, a fonte secreta onde autora e leitor, tal como Narciso, têm a revelação de seus duplos. Ambos devem, diante de tal revelação, mergulhar as mãos na direção de suas próprias imagens, falar às suas próprias vozes. O mergulho nas águas vivas é, pois, o início de uma viagem ininterrupta e incerta na busca pelo tempo e espaço absolutos. O texto de águas vivas causa agitação interna, narradora e leitor procuram saída, a explicação do sentido de se estar aqui e agora. Mas nada existe nestas águas que possa livrar o ser humano dos perigos de existir.

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Referências BAKHTIN, Mikhail. Questões de estética e de literatura. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988. ECO, Umberto. Obra aberta. 2. ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1971. LISPECTOR, Clarice. Água viva. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1978. NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quiron, 1973.

O direito ao grito: as vozes entrelaçadas na narração de A hora da estrela

Thays Pretti Todo texto é político, segundo Eagleton (1994). Já para Sartre (1989), cada leitor interpreta o texto a partir de seus preconceitos e valores. Clarice Lispector, mais simplesmente e sobre seus próprios textos, disse apenas que “ou toca, ou não toca”, e nenhuma dessas possibilidades é diferente quando se trata de A Hora da Estrela, obra de 1977 que enfoca a personagem Macabéa, uma datilógrafa alagoana vivendo no Rio de Janeiro. De certa forma refletindo essas multiplicidades que o texto literário encerra, Clarice compõe sua narrativa em três níveis, em um “regime de transação constante” (NUNES, 1989, p. 64). O primeiro corresponde à história de Macabéa; o segundo à narração de Rodrigo S.M., narrador-personagem que funciona como uma espécie de alter ego de Clarice Lispector e assume a missão de dar voz à nordestina; e o terceiro engloba os dois anteriores e investiga a relação entre ficção e realidade. No primeiro nível, somos apresentados à Macabéa, uma nordestina de 19 anos, órfã e criada pela tia, que migra para a cidade do Rio de Janeiro, trabalha como datilógrafa e divide um quarto de pensão com mais quatro moças. Sua

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vida é repleta de perdas e fracassos, dentre os quais: não é boa em datilografia — ou seja, na única coisa que lhe dá certa dignidade —, arruma um namorado (frequentemente bastante grosseiro com ela) e logo o perde para Glória, uma colega. É a mesmíssima Glória quem recomenda a Macabéa que consulte uma cartomante, para consolar a colega. Depois de ouvir da cartomante sobre o futuro luminoso que a aguardava, sai da consulta e morre atropelada. No segundo nível da narrativa, exterior ao primeiro, temos o escritor Rodrigo S.M., o narrador-personagem que se propõe a escrever a história da nordestina cujo “sentimento de perdição” ele teria pegado “no ar de relance” “numa rua do Rio de Janeiro” (AHE, p. 12)1. Para além da história em si, sua preocupação está em como contar essa história, como vemos em: [...] Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo. História exterior e explícita, sim, mas que contém segredos — a começar por um dos títulos, “Quanto ao futuro”, que é precedido por um ponto final e seguido de outro ponto final. Não se trata de um capricho meu — no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado. (Mal e mal vislumbro o final que, se minha pobreza permitir, quero que seja grandioso) (AHE, p. 13).

No terceiro nível da narrativa, temos uma força — o autor/a própria C.L, de acordo com A Dedicatória do Autor (na verdade Clarice Lispector) — que garante a coesão dos dois níveis anteriores e acrescenta uma camada de significado, por colocar 1  Todas as citações de A Hora da Estrela vêm de uma mesma edição de 1998, referenciada ao final do capítulo. No decorrer do texto, para efeito de registro, usaremos apenas a sigla AHE, seguida do número da página.

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à mostra a estrutura da criação literária, o livro enquanto corpo dissecado, estrutura feita de escolhas intencionais por parte da autora para transmitir um algo — o qual precisamos alcançar no decorrer da leitura. [...] Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso (AHE, p. 10).

Também faz parte desse nível os treze títulos dados ao romance, pistas de possibilidades de interpretação apresentadas em parte por Rodrigo S.M. e em parte por essa voz que está para além da narrativa. Os títulos são encabeçados pelo nome da autora, de modo a novamente inscrevê-la como ponto de coesão de todo o romance e inscrever, muito mais do que em qualquer outro texto de Lispector, sua presença e reflexão. Por mais que Moser (2011, p. 633) aproxime A Hora da Estrela do judaísmo ao rememorar a história dos macabeus e de Judas Macabeu, um grande herói da história judaica, há uma imagem cristã/católica que poderia ser suscitada por essa tríade estrutural. É a imagem da Santíssima Trindade: o pai (Rodrigo S.M., o escritor), o(a) filho(a) (Macabéa, a personagem) e o Espírito Santo (a imponderável mão da autora, ou dessa instância narrativa que ela cria e projeta sobre o livro para estruturá-lo e mantê-lo coeso). Nesse sentido, não é de se estranhar que Macabéa-Cristo precise morrer ao final da história. Porém, isso não acontece com o objetivo de livrar a humanidade de seus pecados, mas de lhe dar um soco no estômago (AHE, p. 88). A partir dessa compreensão (da “cristandade” de Macabéa), não deixa de ser curioso notar também que a obra carrega, desde o título principal e assim como algumas outras obras de Clarice Lispector, a encenação de finais ou dissoluções (sacri-

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fícios?) — final de vida, de obra. Seguindo livros como A Paixão Segundo G.H. e A Via Crucis do Corpo, cujos títulos também são marcados com o signo do irremediável. A Hora da Estrela, apesar de definitiva, está para além. Apesar de terminar com a morte da personagem, seu título de certo modo remete a algo que está após o fim, em uma espécie de assunção ou redenção2 (trágica) — o que mais uma vez ganha um sentido especial quando consideramos nossa Santíssima Trindade Narrativa. Sobre essa carga que o título carrega, Arêas (2005, p. 74) afirma que: A Hora da Estrela significa o final de uma trajetória. Narrativa do limiar, escrita à beira da morte, configura-se como o salto mortal de Clarice, até pelo título articulando-se ao percurso sinalizado antiteticamente por A Paixão Segundo G.H. e A Via Crucis do Corpo.

A estudiosa defende que o livro significa e representa o final de uma trajetória, tanto quando analisado em si mesmo, quanto ao se observar a produção de Clarice Lispector em sua totalidade. Desse modo, Spinelli (2008, p. 23) chega mesmo a arriscar que é inevitável que o termo trajetória se confunda, portanto, com a noção de projeto literário. Estaríamos diante de uma literatura que, quando vista no seu conjunto, constitui um telos para onde as inquietações da escritora se dirigem? Se Vilma Arêas estiver certa, faz-se inevitável relacionar A Hora da Estrela com os outros textos de Clarice Lispector, ora porque haveria neles traços comuns com aquela que é considerada a sua obra-prima, ora porque seria possível identificar o rumo da sua literatura. 2  Ainda que essa seja uma das interpretações mais comuns do título dessa obra de Clarice, exploraremos outro olhar em nossa análise, a partir dos pressupostos levantados a respeito do personagem Rodrigo S.M.

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Assim, sendo o último romance que a escritora publicou em vida, há em torno dele certa aura de mistério e testamento — que muitas vezes leva a esse constante diálogo entre A Hora da Estrela e o restante da obra, seja para ressignificar esta, seja para explicar aquele. Nesse sentido, vale ainda dizer que o romance foi considerado por muitos críticos (cf. JUNQUEIRA, 2005, p. 100, por exemplo), como a obra-prima da autora, entre outros fatores, por sua capacidade de traduzir a organização social e cultural da modernidade brasileira. Também Moser (2011, p. 632-633), em sua biografia de Clarice Lispector, afirma que, ao reunir judaísmo e brasilidade, o Nordeste da infância da autora ao Rio de Janeiro de sua vida adulta, “‘social’ e abstrato, trágico e cômico, [...] questões religiosas e de linguagem com a força narrativa de seus melhores contos, A Hora da Estrela é um monumento digno da ‘genialidade insuportável’ de sua autora”. Mas, como se dá a relação de A Hora da Estrela com o restante da obra de Lispector e a relação entre as três instâncias existentes dentro do livro? É o que discutiremos na sequência.

O social e o literário Uma forma de pensar a relação entre A Hora da Estrela e o restante da produção de Lispector é a partir do caráter social que a autora insere neste livro — o qual, repetimos, pode ressignificar toda a obra da autora. Apesar de costumeiramente apontada como distante de temas sociais, Arêas (2005, p. 42) defende que Clarice sempre revelou preocupações políticas e sociais em sua escrita, especialmente devido à sua preocupação “pela limitação do meio intelectual e pela urgência da luta contra a ditadura, a censura sofrida dentro e fora da literatura” (ARÊAS, 2005, p. 42). A teórica ainda relembra o fato de Lispector ter participado de passeatas e de ter

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encerrado algumas crônicas com o que chamou de “apelos e posicionamentos ansiosos” (ARÊAS, 2005, p. 42). Para concluir esse raciocínio, aponta ainda que Clarice denuncia “os ‘seiscentos mil mendigos’ como os verdadeiros habitantes do Rio de Janeiro e horroriza-se com a truculência da polícia ao assassinar Mineirinho — questões infelizmente absolutamente contemporâneas” (ARÊAS, 2005, p. 42). Isso considerado, a presença de um intelectual culto — mas com certos preconceitos, como veremos — narrando a história de Macabéa em A Hora da Estrela é digna de nota. Mais do que isso, o fato de Clarice não deixar esse intelectual falar sozinho, mantendo-se sempre à espreita, controlando a narrativa, talvez venha justamente de ela não acreditar que esse intelectual consiga falar sozinho de forma adequada nesse momento. Nessa atuação, Rodrigo S.M. e essa instância narrativa superior por vezes são bem definidas e diferenciadas, mas, outras vezes, imiscuem-se, deixando o leitor em dúvida sobre quem estaria falando naquele momento. Os limites ora se borram, ora clareiam, assim como os limites entre realidade e ficção e os limites entre o que Rodrigo S.M. viu (de relance) e o que inventou sobre Macabéa. Os próprios limites entre o que é a narrativa e o que é reflexão sobre a composição de uma narrativa são igualmente borrados e nos levam a cogitar se as duas coisas não seriam apenas variações de um mesmo movimento. Saber quem é quem na narrativa é relevante? Talvez não, mas a instauração da dúvida certamente é um recurso estético que nos diz muito — poderíamos, por exemplo, palpitar que Clarice, manifesta nessa instância narrativa superior, talvez se sinta em parte descolada e em parte irmanada desse/a esse grupo dos intelectuais de classe média, cuja fala nem sempre se reverte em ação real na direção dos grupos e cujo comportamento muitas vezes reproduz preconceitos sem que percebam.

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Outra obra à qual podemos remeter nesse sentido é A Paixão Segundo G.H., em que, após a dispensa de sua empregada, uma mulher decide fazer uma faxina, iniciando pelo quarto que era usado por aquela, ambiente que julgou que seria o mais sujo — sendo frustrada ao encontrar o quarto completamente limpo e de aparência asséptica. Ora, não é isso já uma crítica social a uma burguesia/classe média que depõe suas próprias perspectivas e preconceitos sobre uma classe inferior à sua? Será que a barata posteriormente encontrada no cômodo não é muito mais uma representação da forma como a classe social dessa patroa compreende a classe da empregada — tendo assim que aprender a lidar com ela e, metaforicamente, “engoli-la” para, por fim, compreendê-la? Ou, ainda, uma representação do preconceito de classe, o qual, como uma barata que invade a brancura asséptica do quarto, repentinamente invade a autoimagem da classe média, que sempre se compreendeu como “gente de bem”? São perguntas que podemos fazer ao ler o texto. A ponto, entretanto, é que Clarice parece nunca se restringir apenas ao campo social: sua prosa vai mais fundo e além, tem desdobramentos psicológicos ou, ainda, explora os meandros do próprio fazer literários ou fazer artístico. O social nunca é apenas o social. Há sempre uma multiplicidade de estruturas atuando e é a essas estruturas que Clarice tende a chamar a atenção. Trilhando por esse caminho analítico, é quase óbvia a necessidade de considerar que a narrativa de A Hora da Estrela não é tão ingênua e direta como pode parecer a princípio. Sim, a obra pode ser interpretada como uma crítica social desde suas análises mais superficiais. Entretanto, cumpre que nos detenhamos um pouco mais sobre a figura do narrador-personagem Rodrigo S.M., uma vez que é ele quem assume o controle da narrativa, para pensarmos nas nuances que ele traz à obra.

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A questão narrativa Em uma dissertação sobre A Hora da Estrela, Spinelli (2008, p. 31) chama atenção ao fato de que não é o caso de dizer que Macabéa seja aquela que conhecemos pela leitura do romance, mas, sim, aquela que Rodrigo S.M. nos faz conhecer. Nesse caso, o narrador/personagem de A Hora da Estrela apresenta-nos mais do que uma história. Ele revela-nos os limites de um olhar sobre o mundo, que não consegue, ainda que nos apresente a biografia de Macabéa, alinhavar o ser-social à subjetividade; o mundo à psique.

Tais limites são em grande parte os limites do próprio narrador — um homem que, apesar de não se identificar com nenhuma classe social3, parece-nos que observa Macabéa de cima. Se ele realmente não for um indivíduo economicamente encaixado na classe média4, a figura dele no mínimo corresponde à de um intelectual5 (DALCASTAGNÉ, 2000), que, talvez um pouco arrogantemente, assume entre suas mãos a tarefa

3  “Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim” (AHE, p. 19). Essa definição cifrada de sua classe parece localizá-lo como alguém que poderia ser economicamente localizado em algum lugar entre as classes média e alta, mas que, devido a seus posicionamentos (intelectuais? Ideológicos? Morais?), acaba sendo ligeiramente marginalizado. 4  Não colocá-lo pelo menos na classe média pode ser impreciso, uma vez que ele assume ser “um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz [dele] de algum modo um desonesto” (AHE, p. 18-19). 5  Por mais que ele negue essa definição ao afirmar “Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo” (AHE, p. 16), sua forma de abordar a personagem e seu próprio processo criativo dentro do livro sugerem o contrário. Entre outras coisas, temos, no mínimo, a indicação de que Rodrigo S.M. sabe inglês e francês — línguas que diz ter aprendido de ouvido, assim como teria aprendido a escrever “de ouvido”, o que sugere contato com livros/narrativas.

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de dar vida e voz a uma nordestina que ele não consegue realmente alcançar6. Clarice Lispector sabe dessa incapacidade de Rodrigo S.M. e, ao transformá-lo em personagem7, faz com que seu discurso seja ainda mais passível de exame do que seria o discurso de um narrador onisciente “neutro” — exame esse que é feito tanto pela instância superior representada pelo “autor (na verdade Clarice Lispector)” quanto pelo leitor. Assim, perscruta também todo o fazer literário, a investigação criativa, a capacidade de um escritor escrever sobre aquilo que seja outro em relação a ele mesmo. Ao explorar o fazer literário, Clarice acaba colocando muitas questões em jogo. Em um primeiro plano, o que chama a atenção é o foco dado por Rodrigo S.M. a esse processo — um engajamento que chega a ser físico. Ele diz que, para construir tal personagem que ele tem nas mãos (Macabéa), precisa se domar, alimentar-se frugalmente, abster-se de sexo, futebol e leitura (AHE, p. 22-23). Essa afirmação de Rodrigo S.M. representa bem o envolvimento do artista — aqui mais especificamente o escritor — na produção de uma obra. Para criar algo que seja outro, o escritor precisa, em primeiro lugar, sair de si. Deixar de lado aquilo que o identifica enquanto indivíduo para se abrir a outras possibilidades de contato com a vida. Nesse imiscuir entre Clarice/instância narrativa superior e Rodrigo S.M., podemos considerar esse engajamento físico do narrador ao criar Macabéa como um possível engajamento da 6  Seria esse talvez um reflexo da dificuldade da Clarice adulta, já no Rio de Janeiro e em classe mais alta, falar sobre as percepções de uma Clarice ainda criança, mais pobre e morando no Nordeste? 7  Sobre o caráter ficcional de Rodrigo S.M., chega a ser engraçado quando ele afirma que “essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu” (AHE, p. 19). Sendo ambos, Rodrigo e Macabéa, personagens, é inevitável ler essa frase com um sorriso discreto pela ironia inserida aí por Clarice Lispector.

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própria autora e, mais do que isso, como uma espécie de tratado sobre a criação literária, sobre o que é criar um personagem e um universo que esteja para além de si. Por outro lado, não podemos deixar de considerar que Rodrigo S.M. talvez não consiga captar de todo a personagem que julga observar e, consequentemente, a sociedade que “produz” tal personagem e a tem como base (no sentido de estar na base de uma pirâmide social). Ou seja, para além de certa alienação8 de Macabéa9 apresentada na obra, Rodrigo S.M., ao responsabilizá-la pela condição em que vive e pelos acontecimentos que decorrem disso, revela sua própria alienação. Ele desconsidera como a sociedade funciona enquanto estrutura, bem como desconsidera forças tais quais os preconceitos social, regional e intelectual. Nesse sentido, por mais que Rodrigo S.M. afirme que “para falar da moça [ele tem] que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão [...]. Além de vestir-[se] com roupa velha rasgada” (AHE, p. 20) — o que indicaria uma tentativa de sair do próprio lugar, essa movimentação se dá a partir da ideia que ele faz do que seja a nordestina, uma vez que uma parte dos comportamentos que ele afirma assumir para conseguir chegar mais perto do que seria sua personagem são resultantes mais de seus preconceitos do que da realidade. À parte isso, ele mantém certa prepotência — e machismo — em sua postura ao acreditar que somente um

8  Compreendemos alienação com Marx (1991) em seu sentido mais amplo/múltiplo e com Adorno e Horkheimer (2006) em seu sentido mais específico, de alienação via indústria cultural, que é uma das coisas que percebemos, reforçando o que Arêas (2005) já apontou, que ocorre com a personagem Macabéa. 9  “A Hora da Estrela pode ser lido como um verdadeiro tratado da alienação, didaticamente discutida em suas origens e efeitos” (ARÊAS, 2005, p. 129).

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homem poderia contar aquela história, já que “escritora mulher pode lacrimejar piegas”10 (AHE, p. 14). A partir dessa compreensão, poderíamos talvez dizer que Rodrigo S.M. de certa forma reifica e fetichiza11 Macabéa ao mesmo tempo — ainda que isso pareça ser uma impossibilidade conceitual, uma vez que um processo se define como o oposto do outro. Explicamos: Rodrigo, inserido culturalmente em uma sociedade cujas bases/estruturas guardam diversos preconceitos, objetifica/reifica Macabéa, entendendo-a como disponível para seu olhar e discurso, ou seja, um objeto — que não fala por si, que não constrói sua própria consciência, que é apenas parte da massa. Ao mesmo tempo, Rodrigo assume o objetivo de trazer Macabéa ao centro de sua análise, mostrando a humanidade que existe nela, em suma, subjetificando-a. Entretanto, ao apresentá-la sem se despir de seus preconceitos, Rodrigo acaba observando-a ainda enquanto objeto: um outro estranho, um não-eu menor do que o eu que fala e analisa. Ele continua sendo o verdadeiro sujeito da narrativa. Isso se nota desde o começo da narração, quando o próprio Rodrigo diz: “a história [...] vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles” (AHE, p. 13), o que é apontado por Sá (2004, p. 49) ao afirmar que:

10  Vale lembrar aqui que essa fala é colocada na boca do narrador Rodrigo S.M. por Clarice Lispector — uma escritora mulher —, que é quem, em última instância, conta a história de fato. Essa contradição entre o plano externo e o plano interno do livro acabam por evidenciar ainda mais o viés questionável do discurso de Rodrigo S.M. 11  Reificar corresponde a dar novo significado ao objeto observado, transformando-o em coisa. No marxismo (LUKÁCS, 2003), é o que acontece com o trabalhador no sistema capitalista, que se torna mera engrenagem na maquinaria social. Tal conceito de certa forma opõe-se ao de fetichismo, ou seja, se o fetichismo é dar vida autônoma às coisas, reificar é justamente tratar a vida autônoma/humana enquanto coisa, subtrair a vida do que é propriamente humano.

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por mais que se tenha dito o contrário, o foco principal do romance A Hora da Estrela de Clarice Lispector não é a história da nordestina Macabéa, e sim a de seu criador, Rodrigo S.M. Ou melhor: não se trata propriamente da história de Rodrigo, mas de sua aventura de tentar criar uma personagem, a nordestina Macabéa.

Essa duplicidade de alguma forma dialoga também com a interpretação que Winter e Motta (2006, p. 1125) dão para o sobrenome S.M. de Rodrigo. Segundo os autores, S.M. é uma cifra para sadomasoquismo, o que combinaria com a personalidade do personagem, uma vez que: Rodrigo S.M. demonstra, por todo o texto, ter traços sádicos ao querer o sofrimento da personagem que ele mesmo, enquanto autor, criou. Demonstra, também, ter características masoquistas ao sofrer pela personagem e desejar sua própria dor (WINTER; MOTTA, 2006, p. 1125).12

O que queremos deixar claro aqui é que há uma relação bastante ambígua entre Rodrigo S.M. e sua personagem Macabéa. Como ele ocupa grandes partes do livro com reflexões sobre sua tentativa de falar sobre a personagem, ele nunca dá realmente a voz a ela, mantendo sempre o controle da narrativa em suas mãos. Nesse sentido, diz ainda que não tem piedade de sua personagem principal, a nordestina, mas que se sente no 12  Como já sugerimos anteriormente, Macabéa também poderia ser compreendida como encenando uma Paixão em A Hora da Estrela. Nesse sentido, Rodrigo S.M. muitas vezes parece buscar sua própria redenção a partir do sofrimento de Macabéa: comiserar-se de Macabéa seria uma forma de se salvar. Dividido entre divino e humano, Rodrigo S.M. entregaria sua filha/criação, Macabéa, ao mundo para que ela expiasse o mal da humanidade — da qual, ao fim, ele mesmo é representante. A morte e “assunção” de Macabéa são também são uma espécie de redenção de Rodrigo, que pode então se considerar “bom” e livre de pecado: ele sofreu pela condição da moça. Agora, é um homem de bem (e se livrou dela em sua história — matando-a — para que ela não continuasse o perturbando).

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dever/obrigação de contar essa história (AHE, p. 13). Assim, ainda que por vezes ele se compadeça da personagem e questione a humanidade e a sociedade, Rodrigo nunca deixa realmente sua posição de “superioridade”. Complementarmente, ele de certo modo se isenta de corresponsabilidade pela estrutura social que mantém milhares de Macabéas restritas a um determinado universo de possibilidades e expectativas. Sá (2004, p. 49-50) tem uma interpretação que vai nesse mesmo sentido ao afirmar que, para inventar Macabéa, Rodrigo se vale do pouco que sabe sobre a realidade dos migrantes nordestinos, um conhecimento marcado, diga-se de passagem, pelos mais grosseiros preconceitos. São esses preconceitos, mais do que a dura realidade vivida pelos migrantes, que formam a polpa e o alvo do romance de Clarice. Macabéa é, por exemplo, descrita como suja [...]; feia [...]; e insignificante [...]. Apesar de ser datilógrafa, mal sabe ler, e escreve as palavras como pronuncia [...]. Não tem consciência de si mesma [...]; é crédula [...]; e completamente passiva [...]. Não é tanto o caráter negativo dessas descrições que as torna preconceituosas, mas o fato de que Rodrigo as imagina a partir de uma mera impressão visual, daquilo que ele julga ser o “olhar de perdição de uma moça nordestina” que passa na rua. A sujeira, a feiúra (sic), a insignificância, o semi-analfabetismo (sic), a incapacidade de pensar e de se pensar convertem-se assim em causa ou consequência do “olhar de perdição” da moça que inspirou a personagem Macabéa, ao mesmo tempo em que definem a identidade desta. Além disso, Rodrigo frequentemente se refere a Macabéa como “a nordestina”, estendendo os atributos de sua protagonista a todas as mulheres provenientes dessa região do Brasil, ou pelo menos às pobres e migrantes [...].

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Rodrigo também tenta validar seu direito de falar sobre Macabéa dizendo: “sem falar que eu em menino me criei no Nordeste” (AHE, p. 12), em uma tentativa de indicar uma espécie de conhecimento de causa em sua interpretação da expressão da nordestina captada de relance e embrião da narrativa de Macabéa13. Em sua prepotência, Rodrigo S.M. chega mesmo a dizer que Macabéa — repetimos: a personagem que ele inventa — “deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia” (AHE, p. 15) em vez de migrar para o Rio14. Ora, é ele mesmo que a coloca na situação que agora lhe inspira compaixão. Se ele afirma que sua personagem, colocada naquela situação por ele, não deveria estar ali, talvez seja porque ele acredita que os indivíduos os quais ela representa — nordestinas, por exemplo — não deveriam migrar para os grandes centros em busca de melhores condições de vida, o que é no mínimo presunçoso da parte dele. Assim, por mais que Rodrigo S.M. afirme sua disposição em se despir de si para conseguir captar mais profundamente a personagem de Macabéa, ao pinçarmos estruturalmente a obra encontramos uma Macabéa imobilizada por forças maiores que ela. Ela anseia por se libertar, por ir além, sendo sempre coagida. Lembremos aqui: tudo na narrativa dela, na condição e dificuldades que ela enfrenta, é criado por Rodrigo S.M. Consequentemente, Clarice, ou melhor, essa instância narrativa mais externa à narração de Rodrigo S.M., ao organizar a história com esse formato (um escritor se debatendo na 13  Ao mesmo tempo em que aproxima Rodrigo S.M. da própria Clarice, que em menina, se criou no Nordeste. 14  Há outra afirmação de Rodrigo S.M., logo na sequência da reflexão, que merece atenção. Diz ele que quer “essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?’ cairia estatelada e em cheio no chão” (AHE, p. 15). Mas não caímos todos nós estatelados diante dessa pergunta? O que faz com que Rodrigo S.M. acredite ser mais capaz do que Macabéa de responder a essa questão?

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criação de uma personagem muito distante de si, que o teria impactado de alguma forma) está falando sobre criação literária, criatividade, mas também falando sobre controle e coerção. Ou seja, em certo sentido, a estrutura do livro reflete a estrutura de nossa sociedade, em que um homem branco de classe média assume a palavra no lugar do indivíduo pertencente a uma minoria — no caso representada por uma mulher nordestina, pobre e semianalfabeta — e fala por ela, pressupondo sempre que ela não terá capacidade de falar por si. Vale explorar aqui o quanto Macabéa incomoda Rodrigo S.M.: ele manifesta seu incômodo em relação à personagem diversas vezes no decorrer na obra, seja com indignação por ela não reagir à vida que ela leva, seja por Macabéa revelar aspectos da vida de Rodrigo S.M. que ele não quer ver ou aceitar. Podemos ver isso, por exemplo, quando ele afirma: Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente (AHE, p. 26).

Ao mesmo tempo, e já aproveitando a citação anterior, há outro ponto que chama a atenção. Rodrigo S.M. em alguns momentos parece perder o controle (que aparentemente deseja exercer) sobre Macabéa, como se ela — enfim! — tivesse vida própria. Essa é uma tensão constante na narrativa, por vezes abertamente apresentada, como quando Rodrigo diz “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência” (AHE, p. 30) ou quando ele questiona alguns detalhes que ele, como criador, é que poderia saber, como em “Não sei se estava tuberculosa, acho que não” (AHE, p. 31).

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Só que ele não quer deixá-la deixa livre, e até sua morte é não só controlada (na medida das possibilidades do autor) como ansiada: “Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama dormir” (AHE, p. 81). Ao mesmo tempo, é curioso refletir sobre esses aspectos da relação de Macabéa e Rodrigo S.M. também por outro viés, pois eles remetem diretamente à questão da criação literária, ou seja, do quanto o artista tem ou não tem controle sobre aquilo que é criado por ele, e do quanto ele consegue ou não consegue acessar a fundo um personagem que é um não eu. Em relação à primeira reflexão, fica claro que a ideia que esse romance defende é a de que o artista tem apenas um controle parcial sobre aquilo que cria, mesmo no caso de um autor bastante controlador, como Rodrigo S.M. Enquanto ele não tinha colocado a narrativa em movimento, ele defendia com mais convicção a afirmação de conhecer a fundo a personagem e saber falar sobre ela, mesmo tendo-a visto apenas de relance. Essa convicção vai se perdendo no decorrer do romance, com uma presença cada vez maior de questionamentos de Rodrigo S.M. e outras confissões sobre o quanto ele não conseguia alcançar um aspecto ou outro da personagem. Além disso, ao final da história, surge o desejo do narrador (ou Clarice/instância narrativa superior) de reverter a história até o ponto anterior à morte de Macabéa para tentar seguir por outro rumo. Isso, porém, é uma impossibilidade, pois certas coisas são irremediáveis — mesmo na ficção15. A segunda reflexão acaba surgindo como um braço dessa primeira — a prepotência de Rodrigo S.M. fez com que ele acre15  “Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada — mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder” (AHE, p. 80).

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ditasse que, ainda que extremamente diferente de Macabéa, ele conseguiria dar voz e corpo a ela. Além do já mencionado problema de ele a ver a partir de suas muito particulares lentes, ou seja, mediada pelos preconceitos dele em relação a mulheres, nordestinos e pessoas pobres, o intuito de dar voz e corpo a Macabéa também é frustrado pelo fato de a nordestina, mesmo simples e confusamente construída por ele, escapar entre seus dedos (como talvez todo bom personagem escape das mãos do ficcionista). Muito disso talvez venha da percepção de Rodrigo de que a nordestina Macabéa só poderia se tornar uma “estrela” quando trazida aos holofotes pelo olhar de Rodrigo — não sendo ela significativa em si mesma. E, talvez, seja justamente por esse mesmo motivo que ela lhe escapa. Por não assumir sua missão considerando a importância que Macabéa tinha independentemente de Rodrigo S.M. — mesmo sendo uma personagem ficcional —, ele constantemente a perdia. É como se, ao não olhá-la por meio das lentes certas, ele não dominasse o vocabulário e o universo de significados adequado à existência dela. Clarice Lispector, ao trazer esse conflito para sua obra, não fala apenas da sociedade que produz Macabéas, uma sociedade dividida em classes sociais muito desiguais, com pessoas sem acesso à educação e cultura etc. Fala também do quanto essa sociedade permite a existência de uma classe de Rodrigo S.M., bem intencionados e quase amáveis, mas que não compreendem ou não aceitam sua incapacidade de sair de si e, também por isso, perdem-se nos caminhos de sua própria arte/de seu próprio discurso, muitas vezes reproduzindo visões que condenam. É, em última instância, uma grande discussão sobre arte e humanidade que Clarice conduz magistralmente como a mão invisível que direciona o enredo de A Hora da Estrela. Sua preo-

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cupação social, como sempre, soma-se a outra: a preocupação com os processos de criação artística. Juntas e imbricadas, essas duas preocupações vão ainda mais fundo, ao discutir o aspecto social na criação artística, ou seja, o quanto aquele influencia nesta. Nessa toada, para encerrar nosso pequeno percurso pela obra, acredito que valha a pena trazer uma última reflexão. Em determinado momento da narrativa, uma voz diz que “(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo)” (AHE, p. 35). Não se sabe se isso é um pensamento de Rodrigo S.M. ou daquela instância superior a ele (Clarice?), visto que a frase aparece entre parênteses, em um parágrafo composto apenas por ela, e desconectada do restante da narrativa. Porém, ela parece remeter diretamente a um poema de 1976 de Raymond Carver (2017), cuja tradução transcrevemos: Seu Cachorro Morre é atropelado por uma van. você o encontra na beira da estrada e o enterra. você fica triste por isso. você fica triste por si mesmo, mas também pela sua filha, porque era o bichinho dela e ela o amava tanto. ela costumava sussurrar para ele e o deixava dormir com ela na cama. você escreve um poema sobre isso e diz que é um poema para sua filha, sobre o cachorro que foi atropelado por uma van e como você cuidou de tudo, como o levou para o bosque e o enterrou fundo, fundo, e o poema fica tão bom que você quase se alegra porque o cachorrinho foi atropelado, senão você nunca teria escrito aquele bom poema.

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então você se senta para escrever um poema sobre escrever um poema sobre a morte do cachorro mas enquanto você está escrevendo você escuta uma mulher gritar o seu nome, seu primeiro nome, as duas sílabas, e o seu coração para. depois de um minuto, você volta a escrever. ela grita outra vez. você se pergunta quanto tempo isso pode durar.

Assim como esse eu-lírico escreve um poema sobre o cachorro que morre, e um poema sobre ter escrito um poema sobre o cachorro que morre, A Hora da Estrela, apesar de afirmar que “mais vale um cachorro vivo”, não é só um romance sobre uma nordestina que morre, mas um romance sobre escrever um romance sobre uma nordestina que morre. Seria então o sadomasoquismo e o conflito interno de Rodrigo S.M. o sadomasoquismo e conflito de todo artista e, em última instância, da arte? A essa, poderíamos certamente acrescentar questões como: o que valeria mais, a beleza ou a vida, a beleza ou a humanidade? A beleza é vida? A beleza humaniza? A arte nos ensina a lidar com a morte? A arte nos mostra a beleza dos ciclos? São perguntas continuamente feitas e respondidas das mais diversas formas, mas, de modo geral, sem resposta. Ainda assim, em A Hora da Estrela, elas são constantemente respondidas, ao mesmo tempo, com sim e não. Esse sim e não é reafirmado com o fato de, apesar de haver tal frase na narrativa (“mais vale um cachorro vivo”), a opção de Clarice/Rodrigo S.M. é por matar Macabéa — também atropelada, como o cachorro do poema. E Macabéa, após sua indigna morte, também vira literatura, poesia — vira estrela, em suma. Mais vale um cachorro vivo? O questionamento se mantém no ar ao fim do livro e, de certezas, o que há é nada.

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Nós, que também não temos respostas e apenas refletimos e aprendemos com cada contato com a literatura, também nada afirmaremos. Apenas aproveitaremos o poema, a reflexão, e um dos títulos de A Hora de Estrela para fazer uma saída discreta pela porta dos fundos, e deixar a você, leitor ou leitora, a busca pelas respostas que não temos.

Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006 ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Schwarcz, 2005. CARVER, Raymond. Esta vida: poemas escolhidos. São Paulo: Editora 34, 2017. DALCASTAGNÈ, Regina. Contas a prestar: O intelectual e a massa em “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, [s. l.], v. 26, n. 51, p. 83-98, 2000. Disponível em: http://www.jstor. org/stable/4531094. Acesso em: 1 ago. 2020. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994. JUNQUEIRA, Ivan. Prosa estrelar. In: JUNQUEIRA, Ivan. Ensaios escolhidos: da prosa de ficção, do ensaísmo e da crítica literária. São Paulo: A Girafa/ Universidade de Guarulhos, 2005. p. 99-101. v. 2. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1991. MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988. MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2011. NUNES, Benedito. Reflexões sobre o moderno romance brasileiro. In: FILHO, Domício Proença. O livro do seminário: ensaios. São Paulo: L. R. Editores Ltda., 1989. p. 43-69.

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A via crucis pela qual todos passam: corpo e escrita em Clarice Lispector

Mirian Cardoso da Silva Wilma dos Santos Coqueiro

A literatura de autoria feminina Por séculos, a literatura de autoria feminina ficou relegada à marginalidade devido ao fato de que às mulheres faltavam condições básicas para que pudessem desenvolver a intelectualidade e, assim, escrever obras que, de fato, fossem reconhecidas. Com efeito, para se abordar a literatura de autoria feminina, é necessário avaliar as implicações da formação e manutenção do cânone no decorrer dos séculos e o impacto produzido na escrita feminina. Com origem na palavra grega kanon, cujo significado é “vara de medir”, para Sylvia Paixão (1997), na formação do cânone brasileiro, que se inicia no período romântico, época em que se consolidava a ideia de nacionalidade devido à conquista da independência política, é evidente a ausência de mulheres e negros, assim como de outros segmentos menos favorecidos socialmente. Harold Bloom, ao apresentar um conceito artístico elitista, afirma que a função da arte, incluindo a literatura, é pro-

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porcionar prazer estético. A literatura canônica — representada por homens brancos e europeus — é aquela que deve ser lida e reverenciada, mesmo que não se atenha às questões político-sociais de seu tempo. Isto é, para Bloom é o valor estético que traz a originalidade à obra, uma vez que “toda originalidade forte torna-se canônica” (BLOOM, 2001, p. 33). Nesse sentido, o autor, ao enfatizar que “o cânone ocidental, seja lá o que for, não é um programa de salvação nacional” (BLOOM, 2001, p. 36), determina que a imortalidade das obras literárias não está ligada à representação das lutas de classes, uma vez que a função do cânone não é agir no sentido de humanização, como nos propõe Antônio Candido (2011) ao abordar a importância da literatura social, mas sim “ordenar as leituras de uma vida”, levando-nos a ler “os melhores” em termos de realização estética: Shakespeare, Homero, Dante, Tolstói, entre outros. O crítico estadunidense ainda discute a questão da permanência das obras literárias ao argumentar que as obras canônicas são “aquelas que sobreviveram a uma imensa luta nas relações sociais, mas essas relações muito pouco têm a ver com a luta de classes” (BLOOM, 2002, p. 44). Para o crítico Roberto Reis, “a cultura, com efeito, é um conjunto de sistemas simbólicos, de códigos que de uma forma ou de outra, prescrevem ou limitam a conduta humana” (REIS, 1990, p. 66). Nesse sentido, essa formação sexista e eurocêntrica do cânone desvela as relações de poder inerentes à sua formação, fazendo com que algumas obras fossem legitimadas, recebendo o estatuto de “alta literatura”, em detrimento de outras. Desse modo, a literatura produzida por mulheres, negros, homossexuais e escritores de países periféricos foram mantidas à margem da cultura hegemônica. Portanto, questionar o processo de canonização das obras é colocar em xeque os mecanismos de poder a ele subjacentes. Nesse sentido, o autor enfatiza que não basta apenas repensar ou revisar o cânone, pois a sua

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própria existência é problemática uma vez que a canonização de umas obras em detrimentos de outras “reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade” (REIS, 1990, p. 77). Em consonância com essa afirmação de Reis, o que figurará como obra canônica e, portanto, reverenciada, são indivíduos dotados de poder, no caso homens e pertencentes a uma elite social e cultural. A professora Lúcia Zolin, complementa: Historicamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar conjunto de obras primas representativas de determinada cultura local, foi sempre constituído pelo homem ocidental, branco, de classe média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos das mulheres, das etnias não brancas, das chamadas minorias sexuais, dos segmentos sociais menos favorecidos etc. Para a mulher inserir nesse universo, foram precisos uma ruptura e o anúncio de uma alteridade em relação a essa visão de mundo centrada no logocentrismo e no falocentrismo (ZOLIN, 2019, p. 319).

Essa postura elitista e tradicional referente à classificação e à recepção de obras literárias persistiu, até meados do século XX, apesar dos esforços de mulheres que, contra todas as imposições, insistiam em publicar suas obras, como, entre outras, as brasileiras Júlia Lopes de Almeida e Maria Firmina dos Reis, ambas no século XIX, muitas vezes com o uso de pseudônimos que mascaravam sua autoria. Para a crítica canadense Linda Hutcheon (1991), o que caracteriza as produções contemporâneas, denominadas por ela de pós-modernas, é a perda da noção de centro, o que ocorre a partir dos questionamentos das denominadas literaturas marginais, emergente nos anos de 1960. Questioná-las promove a ruptura com valores considerados ultrapassados, em uma contundente crítica ao denominado falo-etno-eurocentrismo. De acordo com a autora, “o circo com vários picadeiros passa a ser

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a metáfora pluralizada e paradoxal para um mundo descentralizado onde só existe a ex-centricidade” (HUTCHEON, 1991, p. 88). Em perspectiva similar, também a escritora e crítica literária brasileira Helena Parente Cunha aponta essa década de mudanças radicais como determinante para a emergência de “personagens femininas que começam a avaliar a extensão e as consequências da sua condição de inferioridade e ensaiam as primeiras denúncias” (CUNHA, 1999, p. 153). Ainda de acordo com Cunha, a revolta cultural ocorrida na década de 1960 investiu contra a autoridade do falo-etno-euro-centrismo e “desmantelou a base de todas as certezas e de todos os padrões de julgamento mantidos pelas ideologias vigentes” (CUNHA, 1999, p. 153). No Brasil, esses movimentos libertários chegam em uma época de intensa repressão promovida pela ditadura militar e incentivavam à rebeldia tanto política (organização das guerrilhas) quanto artística: “sob os auspícios do rock’n’roll, dos anticoncepcionais e do movimento hippie, uma mudança radical se abateu sobre os jovens brasileiros de norte a sul, estendendo-se a indivíduos de todas as idades” (CUNHA, 1999, p. 154). No que se refere à escrita literária de mulheres, segundo Zolin (2019), essa começa a ganhar visibilidade nos anos 1930, com escritoras como Cecília Meireles e Rachel de Queiroz, as quais, por conquistarem o reconhecimento internacional por suas produções, abrem espaço nas editoras para que outras mulheres pudessem publicar suas obras.

O papel precursor de Clarice Lispector na literatura de autoria feminina Clarice Lispector surge no cenário literário na década de 1940 com Perto do Coração Selvagem (1943), obra que causa um grande impacto na crítica literária devido ao seu caráter

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introspectivo e, portanto, destoa dos aclamados romances regionalistas, que tornaram célebres escritores como o alagoano Graciliano Ramos, o baiano Jorge Amado e a cearense Rachel de Queiroz, os dois últimos laureados com o Prêmio Camões e eleitos imortais pela Academia Brasileira de Letras. Segundo Rosembaum (2002, p. 20), Lispector, com essa obra, de fato “desestabiliza as referências romanescas instituídas, tais como o descritivismo de cenários e tipos humanos e o viés determinista e fatalista ainda impregnante”. Entre os grandes críticos da época, Antonio Candido foi o primeiro a perceber o aspecto revolucionário da obra e o talento promissor da jovem escritora de 23 anos. No artigo “No raiar de Clarice Lispector”, publicado logo após o surgimento do romance, além de admitir o choque causado pela leitura da obra da jovem escritora, o crítico reconhece a raridade do romance nas letras brasileiras, assim como a intensidade e a originalidade da sua escrita, que a seu ver, já configurava como “uma nobre realização”. Para Candido, este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espirito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente (CANDIDO, 2011, p. 127).

Zolin (2019), por sua vez, afirma que Perto do Coração Selvagem abre uma tradição na ficção de autoria feminina brasileira e marca “um momento de ruptura com a reduplicação de valores patriarcais” (p. 324). Isso caracterizava a prosa de autoria feminina do século XIX, como de Júlia Lopes de Almeida e Maria Firmina dos Reis, entre outras. Já Cunha (1999), ao abordar o boom da literatura de autoria feminina nos anos 70 e

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80 do século passado, aponta a importância da obra clariciana para a emergência da voz feminina em um momento de contestação ao patriarcado. Na sua avaliação, Clarice Lispector é um dos nomes mais representativos “da ficção brasileira feminina” e “inaugurou o processo de renovação, tendo publicado vários livros até sua morte, em 1977. Seu discurso introspectivo abre espaço para a reflexão filosófica e para vertiginosas incursões no mundo interior das personagens” (CUNHA, 1999, p. 153). Após publicar mais dois romances na década de 40, O Lustre (1946) e A Cidade Sitiada (1949), há um hiato criador no decorrer da década de 50, quando, casada e mãe, acompanhava o marido diplomata por vários países do mundo. A década de 60 marca o amadurecimento de sua produção e a consolidação das questões formais e existenciais características de seu estilo, em obras primas como a coletânea de contos Laços de família (1960) e romances como A maçã no escuro (1961) e A Paixão Segundo G.H. (1964). À crítica receptiva e elogiosa de Benedito Nunes (1966), que viu na obra da autora afinidades com a filosofia existencialista e destacou as principais contribuições formais de seu estilo como, entre outras, a narrativa descontínua e o uso do monólogo interior e do fluxo da consciência, somam-se as leituras advindas da crítica feminista que, paralelamente à criação literária feminina, alcançaria seu boom nas décadas seguintes. Para a professora e crítica literária Bela Jozef (1999, p. 173), a trajetória literária de Clarice é marcada por uma produção complexa, rica e densa. Ademais, “com sua arte experimental incrementou o processo de desconstrução da narrativa tradicional e redimensionou o espaço na ficção”. A crítica salienta ainda que,

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Curiosa e sensível, personalidade fascinante, Clarice frequentou abismos e raízes. Chega entre o Modernismo e a Modernidade, para revolucionar o dizer da literatura brasileira, abrindo novos rumos, dentro de uma linha intimista marcada por intensa força interior e uma voz inconfundível, com a força de todos os mistérios, tentando todas as respostas (JOZEF, 1999, p. 173-174).

Entre as obras publicadas na década de 60, a coletânea Laços de família, publicada logo após o divórcio da autora e sua volta ao Brasil, com suas narrativas densas protagonizadas por personagens femininas vivendo a experiência de um cotidiano burguês em crise — é considerada emblemática para a crítica feminista. Segundo Zolin (2019, p. 324), essa obra cujo valor estético é indiscutível, é composta de “narrativas que questionam, por meio de discurso irônico, o modelo patriarcal em que a mulher fica reduzida ao que o espaço privado pode-lhe proporcionar”. Ou seja, é uma obra em que transparece a conscientização desencadeada pelo movimento feminista em curso, ao desvelar a repressão feminina nas práticas sociais. Não obstante, Zolin adverte que o fato de fazer críticas contundentes ao patriarcado não significa que a obra da autora, até mesmo pelo alto teor artístico que alcançou, empreenda uma “defesa panfletária dos direitos da mulher”. Na década de 1970, Clarice continuava vivendo no Brasil e, divorciada e com filhos para sustentar, passava por dificuldades financeiras. Isso a leva aceitar um pedido do seu editor, o poeta Álvaro Pacheco, da editora Artenova, e escrever uma nova obra por encomenda, surgindo disso a coletânea de contos intitulada A via crucis do corpo, em 1974. A coletânea foi considerada um fracasso literário pelos críticos da época, acostumados a obras densas e complexas da autora, como as já citadas, e ainda Água viva, publicada no ano anterior e que se caracteriza como uma das mais radicais experiências for-

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mais vistas na Literatura Brasileira até então. De fato, causava espanto que a escritora, enquadrada como ícone da filosofia existencialista, ousasse, com tanta naturalidade, abordar temas considerados tabus na época, tais como: a prostituição feminina, o estupro, a homoafetividade, o travestismo sexual e a busca de realização sexual feminina na terceira idade, além de representar a solidão e o desamparo na velhice em contos com alto teor erótico. Por isso, foi considerada, por muitos, como uma “obra menor”, já que ela incorporava conscientemente o estilo Kitsch e dissolvia a fronteira entre as consideradas “alta literatura” e “baixa literatura”. Consciente do impacto que causaria em seus críticos e leitores, a escritora recorre ao prefácio da coletânea, do qual reproduzimos alguns trechos, para explicar as condições de produção e, de certo modo, defender sua independência como uma autora que não era obrigada a seguir a pureza de gêneros ou estilo: O poeta Álvaro Pacheco, meu editor da Artenova, me encomendou três história que realmente aconteceram [...] Comecei no sábado. No domingo de manhã as três histórias estavam prontas [...] Eu mesma espantada. Todas as histórias desse livro são contendentes. E quem mais sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não aconteceram comigo, com minha família e com meus amigos. Como é que sei? Sabendo. Artistas sabem das coisas. Quero apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso. Vão me jogar pedras. Pouco importa. Não sou de brincadeiras, sou mulher séria. Além do mais se tratava de um desafio. Hoje é dia 12 de maio, Dia das Mães. Não fazia sentido escrever nesse dia histórias que eu não queria que meus filhos lessem porque eu teria vergonha. Então disse ao meu editor: só publico

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sob pseudônimo. Até já tinha escolhido um nome bastante simpático. Mas ele não aceitou. Disse que eu deveria ter liberdade de escrever o que quisesse. Sucumbi. Que podia fazer? senão ser vítima de mim mesma. Só peço a Deus que ninguém me encomende mais nada. Porque, ao que parece, sou capaz revoltadamente obedecer, eu a inliberta. Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há a hora para tudo. Há também a hora para o lixo. Este livro é um pouco triste porque eu descobri, como criança boba, que esse é um mundo cão [...] (LISPECTOR, 1998, p. 11-12, grifo nosso).

No entanto, a obra “malvista” pela crítica tradicional é bem recepcionada pela crítica feminista que destaca o modo como os contos refletem sobre o universo feminino, por meio da introspecção psicológica e do fluxo da consciência das personagens. Entre as críticas que se debruçaram sobre a obra, Vilma Arêas, no ensaio “Clarice Lispector: Com a ponta dos dedos”, publicado em 2005, realiza um estudo em que destaca alguns pontos fortes da obra. Por exemplo, ela aponta que após a publicação de A via crucis do corpo, a crítica literária, que oscilou do horror causado pela obra em avaliações negativas como “lixo” e/ou “obra pornográfica”, seguiu-se uma espécie de indiferença para com essa obra, uma vez que “a melhor crítica simplesmente omitia esse livro de Clarice” (ARÊAS, 2005, p. 14). Com o passar do tempo, parece ter ocorrido uma proposta de divisão da obra da autora em duas escalas de valor, entre as produções, que vão desde Perto do coração selvagem (1943) a A paixão segundo G.H. (1964), como obras nobres, criadas “com entranhas”, e a sua publicação considerada “menor”, feita “com as pontas dos dedos”, que englobaria além de A via crucis do corpo, também Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de 1969. Com efeito, Vilma Arêas defende a tese de que essa obra malvista apresenta uma relação profunda com a considerada

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“literatura maior” da autora. Na concepção da autora, “o procedimento, por si mesmo fraturado, apresenta seu resultado como um produto ao mesmo tempo vanguardista e regressivo, que é um dos entraves para a compreensão dessa obra” (p. 15). Para comprovar tal afirmação, Arêas (2005) evidencia que as histórias desse livro, assim como na coletânea Laços de família (1960), giram “ao redor da organização familiar”. Arêas (2005) enfatiza ainda que, apesar dos inconvenientes de ser uma coletânea feita com pressa e por encomenda, a obra se configura como “um sopro revificador”. Além disso, acrescenta: “A autora demonstra perícia diante do banal, segundo a longa tradição farsesca, e diante da situação considerada constrangedora de ter que escrever sobre assuntos sexuais femininos, ‘que realmente aconteceram’” (ARÊAS, 2005, p. 53, grifo da autora). Outra obra crítica que busca lançar luz sobre a coletânea é “Clarice Lispector e a encenação da escritura em A via crucis do corpo”, que resultou da tese de doutorado de Nilse Maria de Azeredo Regueira, defendida na Unesp, e publicada em 2006. Com uma proposta inovadora de estudo acerca da obra clariciana, assentada em farto material coletado, inclusive correspondências pessoais da autora, Reguera parte do pressuposto de que é necessário reavaliar a interpretação dessa obra por conta da sua construção ambivalente, que pode ser interpretada quando a obra é lida sob a perspectiva da encenação e do fingimento. Com efeito, para ela a leitura autobiográfica da obra, que se sustenta no projeto de criação por encomenda e por razões puramente financeiras, não se sustenta. Nesse sentido, ela aponta como argumento para essa afirmação o fato de que “haveria, portanto, elementos de estruturação que seriam imanentes ao texto e caracterizáveis como ‘tipicamente claricianos’, muitas vezes relacionados a uma recepção já cristalizada” (REGUERA, 2006, p. 82). Com efeito, “ao legitimar, no mercado, A via crucis do corpo ‘um livro erótico escrito por

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Clarice Lispector’, institui-se, num primeiro momento, uma relação entre produto a ser vendido, passível de formatação e de estruturação pelos meios de divulgação, e o nome Clarice Lispector” (REGUERA, 2006, p. 89). Dessa forma, Reguera (2006) descredita a ideia de que Clarice teria se rendido às exigências do mercado para produzir a tão polêmica obra. Na sua análise, a crítica demonstra que, por meio do processo de simulação de dissimulação da linguagem, a autora se coloca criticamente perante os editores que encomendaram a obra, uma vez que o realce a um nome canonizável como o de Clarice Lispector, para a publicidade de uma coletânea de contos eróticos, é potencializado “pela perspectiva capitalista de um produto a ser vendido” (REGUERA, 2006, p. 89). A tese de Reguera (2006) se funda, sobretudo, na asserção de que a trama da obra é marcada pela encenação da figura do/a escritor/a, dos narradores e personagens que se comportam como atores do espetáculo escritural. Nesse sentido, nos contos que compõem a obra, os narradores, as personagens, assim como as figuras do escritor — que aparece ficcionalizado em meio a dados referentes à vida pessoal de Clarice Lispector — e do leitor são, como foi afirmado, “atores e/ou personagens que atuam e representam no espetáculo escritural no qual se apresentam/ escrevem” (REGUERA, 2006, p. 108).

Assim, os trabalhos de críticas como Vilma Arêas (2005) e Nilse Regueira (2006) são fundamentais no sentido de lançar luzes sobre uma obra incompreendida por grande parte da crítica e reconhecer o seu valor estético-literário e as marcas do estilo clariciano que perpassam outras obras da autora. O título da obra estabelece um diálogo com o tema religioso da via crucis, também denominada via sacra, que se

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refere ao trajeto percorrido por Jesus Cristo, carregando uma cruz, do Pretório ao Calvário, onde foi crucificado no ano 33 d.C. da era cristã. Dessa forma, remete ao sagrado que dialoga com o “corpo”, que simboliza o profano, com suas exigências eróticas e primitivas. Com efeito, os treze contos da coletânea, com seus personagens geralmente de classe social baixa (travestis, prostitutas, marginais, mendigos etc.), abordam, pela primeira vez na obra da autora, o sexo de forma direta e brutal, como apontou Arêas (2005). Em relação à escrita dos contos, no prefácio intitulado “Explicação”, já comentado anteriormente, a escritora demarca o tempo e o espaço de produção dos contos. O telefonema do editor foi em uma sexta-feira, dia 10 de maio de 1974. A escrita dos contos começa no sábado, dia 11, sendo que no domingo de manhã, Dia das Mães, já havia três histórias escritas: “Mis Algrave”, “O corpo”, “Via Crucis”. Nesse “mesmo domingo maldito”, foram criadas mais duas histórias, com contornos bastante biográficos: “O homem que apareceu” e “Por enquanto”. Já “Danúbio azul”, “A língua do ‘p’” e “Praça Mauá” foram produzidas na segunda-feira, dia da “libertação dos escravos”. Por fim a autora explica que “Ruído dos passos” foi escrito dias depois numa fazenda. Neste trabalho, que se alicerça sobretudo na crítica feminista, procuraremos analisar os contos a partir de três vieses que consideramos relevantes na nossa leitura sobre os contos: as representações do corpo, a sexualidade na terceira idade e os tons autobiográficos na coletânea.

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“Escrivã que sou por fatalidade”: crônicas do cotidiano de uma escritora Muitos são os trabalhos acadêmicos contemporâneos que se debruçam sobre o estudo das denominadas escritas de si — gênero literário típico da modernidade, que se caracteriza por uma narrativa em primeira pessoa que se identifica explicitamente como o autor biográfico, contudo passa por situações que podem ser ficcionais. Entre essas narrativas confessionais, podemos citar a autobiografia e a autoficção. Enquanto na autobiografia, o autor busca fazer um relato de sua vida, na autoficção as obras apresentam passagens da vida misturadas a situações ficcionais, mantendo, comumente, os verdadeiros nomes do autor, do narrador e dos personagens. Ainda em relação ao termo autoficção, usado para classificar muitas narrativas contemporâneas como, entre outras, O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza, e A chave da casa (2007), de Tatiana Salem Levy, esse foi cunhado pelo escritor Serge Doubrovsky, em 1997, em referência ao seu romance Fils. Nesse gênero, que mescla a autobiografia e a ficção, segundo Phillippe Lejeune (2008, p. 29), em O pacto autobiográfico, caberia “todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razões para suspeitar, a partir das semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la”. Em relação à obra de Clarice Lispector, existem alguns estudos que buscam identificar traços da biografia da autora em crônicas, contos e romances. Entre esses, podemos citar dois artigos que abordam as possíveis coincidências entre a autora e seus personagens e situações no romance Um sopro de vida, publicado de forma póstuma, após a morte da autora, em 1978. Os artigos “A representação autoral em Clarice Lispector”, de autoria de Katiuce Lopes Justino (2005) e “Um olhar auto-

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ficcional em Um sopro de vida de Clarice Lispector”, de autoria de Caroline de Almeida Delgado e Analice de Oliveira Martins (2014), contemplam reflexões acerca da presença empírica da autora no romance, assim como a relação de cumplicidade que se estabelece com seus leitores. Em relação a alguns contos da coletânea, corpus desse estudo, como “O homem que apareceu”, “Por enquanto”, “Dia após dia” e “Antes da ponte Rio-Niterói” comparece, indubitavelmente, a condição do/a escritor/a como personagem narradora. Em relação aos três primeiros, Vilma Arêas (2005) classifica-os como crônicas “escritas ao correr da pena” em que o/a “artista habita um cotidiano político com suas contradições” (p. 60-61). Também Reguera (2006, p. 125), ao referir-se a esses mesmos contos, evidencia que neles “os narradores-personagens, que parecem se colocar na posição de uma escritora, são comumente relacionados à Clarice Lispector”. Reguera (2006), no entanto, adverte que, devido à construção escritural, marcada pela encenação e pelo jogo intertextual e intratextual que “oferece as personagens e os assuntos” (REGUERA, 2006, p. 125), é perigoso associar à escritora real à escritora-personagem ficcionalizada em tais contos. A crítica argumenta que, portanto, “a relação direta entre ficção e realidade, de modo que aquela seja o espelho dessa, é uma ‘armadilha’ que o texto de Lispector estabelece para os leitores menos atentos e influenciados por leituras cristalizadas da sua produção” (REGUERA, 2006, p. 125). Não obstante, nesse tópico, procuraremos mostrar de forma breve, como esses contos apresentam traços autobiográficos1 relacionados à figura da escritora, o seu fazer artístico e o processo de criação literária, assim como o diálogo que eles estabelecem entre si. Assim como Rosembaum (2002), 1  Não é nosso objetivo, no presente trabalho, definir ou problematizar, em relação aos gêneros mencionados que integram à escrita de si, como se classificaria os “traços” identificados nos contos autobiográficos em análise.

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acreditamos que, mesmo procurando preservar sua intimidade, no decorrer de sua trajetória literária, tanto nas crônicas e nos contos como nos romances, transparecem vestígios de uma “identidade inquieta e turbulenta, inadaptável às expectativas sociais, obsessiva na captura de si mesma e do outro, desmascarando, sob o verniz do cotidiano, um mundo de desejos e fantasias inconfessáveis” (ROSENBAUM, 2002, p. 10). Dessa forma, é possível conhecê-la por meio das situações descritas nos seus contos, dos questionamentos existenciais e dos inúmeros aforismos presentes em sua obra. Como apontado por Reguera (2006), há um jogo intertextual e intratextual entre os contos, sendo que há recorrência de situações e personagens neles. O prefácio “Explicação”, nesse sentido, poderia ser lido também como um texto ficcional, no qual é marcada a enunciação dos contos, assim como é feito a inserção espacial e temporal, como apontamos anteriormente. A despeito de alguns pontos já apontados, algumas passagens desse prefácio estão interligadas diretamente à análise que nos propomos nesse tópico. Além de indicar as circunstâncias temporais e espaciais da escrita dos textos, a autora dá indícios de aspectos autobiográficos a serem incorporados na escrita das histórias, quando explicita que o editor “me encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos eu tinha, faltava a imaginação” (LISPECTOR, 1998, p. 11, grifo nosso). Mais adiante, ela continua: “Fiquei chocada com a realidade” (LISPECTOR, 1998, p. 11, grifo nosso). E acrescenta: “Inútil dizer que não aconteceu comigo, com minha família e com meus amigos. Como é que sei? Sabendo. Artistas sabem das coisas” (LISPECTOR, 1998, p. 11, grifo nosso). O que se observa, sobretudo pelos termos grifados, é que a autora nos propõe um jogo entre a captação da realidade (fatos, realidade) e a sua capacidade criadora de ficção (imaginação).

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No conto “O homem que apareceu”, segundo indicações do prefácio do próprio conto, foi escrito no Dia das Mães em 12 de maio, de 1974. Quanto ao tempo da narrativa, essa se passa um dia antes, no sábado à tarde, conforme nos situa a autora: “Era sábado de tarde, por volta das seis horas. Quase sete” (LISPECTOR, 1998, p. 35). A voz narrativa é de uma mulher que se coloca como escritora. Com efeito, o conto aborda o encontro da narradora-personagem com um antigo amigo poeta em um botequim, cujo dono é o seu Manoel, onde a narradora fora comprar Coca-Cola e cigarros. Após o personagem, que estava bêbado, dizer-lhe seu nome, Claudio Brito, a personagem-narradora lembra que estudaram língua inglesa juntos há muitos anos, e o convida para ir ao seu apartamento, onde eles têm uma conversa dolorosa sobre literatura — ela é descrita como uma autora de sucesso e ele um poeta fracassado —, família e os percalços da vida. Ao ouvir do seu interlocutor “a você só importa a literatura” (LISPECTOR, 1998, p. 37), a narradora refuta: “Pois você está enganado. Filhos, família, amigos, vem em primeiro lugar” (LISPECTOR, 1998, p. 37). Essa afirmação condiz com autodefinições da autora em entrevistas, como nessa fala transcrita por sua amiga e confidente, Olga Borelli: “Levo uma vida muito corriqueira. Crio meus filhos. Cuido da casa. Gosto de ver meus amigos. O resto é mito” (BORELLI, 1952, p. 453). O conto é permeado por discussões existenciais acerca do sucesso, do fracasso e da morte à qual estamos todos fadados. Após o amigo chorar ao contar-lhe que havia estado na terrível Guerra do Vietnã (1955-1975) e ter lido um emocionante poema para a narradora, ela busca consolá-lo: “nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira” (LISPECTOR, 1998, p. 38). Após dar de presente ao amigo um livro de história infantil que havia escrito para os filhos — outro elemento biográfico da vida da

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autora — eles se despedem, deixando a personagem-narradora devastada devido à impotência diante do intenso sofrimento de um amigo: “Como é que posso ser mãe para esse homem? Pergunto-me e não há resposta. Não há resposta para nada” (LISPECTOR, 1998, p. 40). No conto seguinte, o título “Por enquanto”, reiterado no segundo parágrafo pela expressão “enquanto se vive”, já remete à provisoriedade e à fragilidade da existência. Também, como é enunciado no próprio conto, foi escrito no dia 12, Dia das Mães, ao final da tarde, conforme é descrito: “Trabalhei o dia inteiro, são dez para as seis” (LISPECTOR, 1998, p. 45). Também nesse conto, temos a mesma voz narrativa do conto anterior e, assim como nos outros, a autora refere-se ao modo como produz seus contos, com a máquina no colo, atendendo ao telefone, chamando a empregada, como nos descreve Rosembaum (2002). As descrições relativas à essa condição de escritora assim como ao trabalho exaustivo na escrita da obra sob encomenda, estão presentes em todo o conto: “O telefone não toca. Estou sozinha” (LISPECTOR, 1998, p. 45); “Voltei à máquina enquanto ela esquentava a comida” (p. 46); “Depois eu como, e depois volto à máquina. Até já” (p. 46). Aqui há uma referência ao modo como essa obra da autora acabou sendo vista pela crítica quando ela se refere à escrita da obra “com a ponta dos dedos” que doem de tanto bater à máquina: “É pela ponta dos dedos que se recebem os fluídos” (p. 46). Como a data em que é escrito e que também transcorre os fatos narrados é o dia das mães, há o relato do encontro no almoço com um dos filhos, pois o outro estava no exterior. Além da crítica à exploração comercial das datas comemorativas, a narradora menciona o encontro, o vinho compartilhado e a conversa, assim como a felicidade do tempo passado juntos: “Eu tinha pedido para ele não sucumbir à imposição do comércio que explora o dia das mães. Ele fez o que eu pedi: não me

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deu nada. Ou melhor me deu tudo: a sua presença” (LISPECTOR, 1998, p. 45). Mais adiante, há a confissão da falta que sente dos seus filhos: “Estou com saudade. Saudade de meus filhos, carne de minha carne” (LISPECTOR, 1998, p. 47). Devido ao fato de estar sozinha em um domingo — Dia das Mães — dando a entender que o filho não permanecera com ela muito tempo, resta-lhe apenas a companhia da empregada, a quem tem “vontade de beijar seu rosto preto e liso” (LISPECTOR, 1998, p. 47). Nesse sentido, um dos temas principais desse conto é a solidão que a atinge irremediavelmente, como podemos observar nos seguintes fragmentos: Estou sozinha. Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono, o telefone toca e ninguém atende. Ou dizem está dormindo (LISPECTOR, 1998, p. 45, grifo nosso). Que faço? telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu sei [...] Como acordo quem está dormindo? como chamo quem eu quero chamar? o que fazer? Nada: porque é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia inteiro LISPECTOR, 1998, p. 46, grifo nosso). Faltam três minutos para a sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha (LISPECTOR, 1998, p. 47, grifo nosso).

O conto “Dia após dia” aparece como uma espécie de continuação de “O homem que apareceu”. Diferentemente dos dois anteriores, esse, conforme explícito no primeiro período do conto, é escrito no dia seguinte: “hoje é dia 13 de maio. É dia da libertação dos escravos. Segunda-feira” (LISPECTOR, 1998, p. 49). No prefácio, esse conto é referido com o título de “Danúbio Azul”, referência à valsa vienense, que se tornou bastante popular no Brasil, do austríaco Joahann Strauss, ouvida pela

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narradora-protagonista na manhã daquele dia e que fez com que ela ficasse “radiante”. Também nesse conto temos uma narradora escritora, certamente reconhecida, pois há referências ao cotidiano de escritora e às conferências proferidas por ela em universidades. Nesse dia, novamente ela vai ao botequim do seu Manoel, dessa vez para trocar as pilhas do rádio. Ao perguntar ao dono do bar, se ele se lembra do cantor que tocara gaita no dia anterior e informar que ele é um escritor, o senhor lamenta: “Lembro sim. É uma tristeza. É neurose de guerra. Ele bebe em toda parte” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Nessa história, talvez por ser dia de feira-livre, há referência à situação financeira delicada em vários momentos como, entre outros, “com a compra das flores e a troca de pilhas, estou sem um cruzeiro em casa” (LISPECTOR, 1998, p. 45) e, ao final, a contraposição entre a beleza da arte e a discrepância com as intempéries da vida: “E preciso de dinheiro. Mas que o ‘Danúbio Azul’ é lindo, é mesmo” (LISPECTOR, 1998, p. 53). De todos os contos é nesse que aparece, de forma mais explícita e inequívoca, o contexto de produção da coletânea A via crucis do corpo, assim como uma discussão mais pungente de questões relacionadas ao fazer literário. A narradora-protagonista relata que, ao voltar do bar, uma pessoa lhe telefonou, aconselhando-a a repensar a publicação da obra que estava sendo escrita naqueles últimos três dias. Ao ser interpelada por palavras como “pense bem antes de escrever um livro pornográfico, pense se isso vai acrescentar alguma coisa à sua obra”, a narradora-protagonista retruca que já havia falado com o filho acerca da obra e do primeiro conto da coletânea “Miss Algrave” e que o filho tinha sentenciado: “está bem”. Essa passagem remete a preocupação da autora na “Explicação” do livro, quando sugere ao editor o uso de um pseudônimo masculino para a publicação, uma vez que não queria escrever um livro do qual

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teria vergonha se os filhos lessem. Ao informar à pessoa do telefonema que o filho aprovara a obra, ela está enfatizando a opinião que realmente lhe importa. Conforme apontado, há um questionamento acerca da possível recepção da obra, quando ela reflete: “se este livro for publicado com mala suerte estou perdida. Mas a gente está perdida de qualquer jeito. Não há escapatória. Todos nós sofremos de neurose de guerra” (LISPECTOR, 1998, p. 50). Mais adiante, transparece um questionamento acerca da mitificação da figura do escritor e do papel da literatura, quando ela simplesmente conclui que a vida tem questões mais urgentes para serem pensadas: “Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? que se dane, tenho mais o que pensar” (LISPECTOR, 1998, p. 50). Essa discussão acerca do papel da arte e das conveniências literárias, diante de tantas coisas que a cercam, remete à afirmação de Olga Borelli, que desmitifica essa aura de mito criado em torno da artista ainda viva, ao defini-la como “uma dona-de-casa que escrevia romances e contos” (1952, p. 14). Embora Clarice tenha demonstrado, sobretudo nas primeiras publicações, preocupação com a crítica literária em relação às suas obras, à essa altura parece que o cotidiano e suas exigências materiais se impõem de forma determinante, ao ponto de ela afirmar no conto “O homem que apareceu” que a família e os amigos, assim como “qualquer gato, qualquer cachorro vale[m] mais que literatura” (LISPECTOR, 1998, p. 50). Já no conto “Antes da ponte Rio-Niterói”, ela admite não saber o que foi feito com os personagens, cujos fragmentos de suas trajetórias são narrados de forma descontinua e confusa, pois “a cada passo a narrativa é propositadamente torcida” (ARÊAS, 2005, p. 59). Assim, suas palavras acerca do enfaro

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causado pela história são expressas da seguinte forma: “o que dizer dessa história que se passou quanto a ponte Rio-Niterói não passava de um sonho? Também não sei, dou-a de presente a quem quiser, pois estou enjoada dela. Demais até. Às vezes me dá enjoo de gente” (LISPECTOR, 1998, p. 60). Nesse último conto, ao contar a história de dois triângulos amorosos, sobretudo o caso trágico de um rapaz, que rejeitara sem remorsos a noiva cujas pernas haviam sido amputadas e teria pouco tempo de vida, acaba por se envolver com uma outra mulher, quando a pobre moça ainda vivia. Após a morte da noiva, o rapaz acaba sendo vítima dos ciúmes da amante que, enquanto ele dormia, despejara água fervente em seus ouvidos, deixando-o surdo após um grande período no hospital, “em que ficou entre a vida e a morte, em luta feroz com aquela” (LISPECTOR, 1998, p. 58). Após um ano e pouco na cadeia, a mulher, chamada Leontina, saiu e foi viver com o rapaz “surdo para sempre, logo ele que não perdoara defeito físico” (LISPECTOR, 1998, p. 58). Além do caráter fabular da história e de suas nuances irônicas, à qual a narradora nega-se a dar um final, admitindo o fastio causado pelos fatos e personagens e entregando-a de presente ao leitor, esse conto apresenta discussões metalinguísticas sobre o ato de escrever, que a narradora admite ser confuso, como da matéria literária: “Mas estou me confundido toda ou é o caso que é tão enrolado que se eu puder vou desenrolar. As realidades são inventadas. Peço desculpa porque além de contar os fatos também adivinho e o que adivinho aqui escrevo, escrivã que sou por fatalidade. Eu adivinho a realidade” (LISPECTOR, 1998, p. 57). Além de ser marcado por estribilhos — “Como é que sei? Sabendo” (LISPECTOR, 1998, p. 57) —, destacam-se, assim como em outros contos, as perguntas ao leitor: “O que fazer com essa história que se passou quando a estrada Rio-Niterói não passava de um sonho?” (LISPECTOR, 1998, p. 57). Ao final, a

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narradora-personagem reitera o poder da criação do artista, em relação aos textos escritos: “Como é que sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com adivinhação imaginadora. Eu sei, e pronto” (LISPECTOR, 1998, p. 59). Os contos analisados apresentam uma faceta recorrentemente apontada em outras obras da autora, que é a afinidade com a filosofia existencialista, como bem analisou o crítico literário Benedito Nunes (1986). Ao identificar temáticas na obra da autora que podem ser classificadas como existencialistas, o estudioso ressalta: “qualquer que seja a posição filosófica da autora, o certo é que a concepção-de-mundo de Clarice tem marcante afinidade com a filosofia da existência” (NUNES, 1986, p. 94). Também Olga Borellli (1981) aborda esse vínculo na obra clariciana. Embora, segundo ela, haja a improbabilidade em encontrar uma definição acerca das crenças religiosas da autora, é visível um “itinerário espiritual” que percorre suas obras. Para a confidente da escritora, “sem vinculação explícita, dava a impressão de sempre se achar em estado de questionamento: Deus, morte, matéria, espírito, eram objetos de interrogação, de perplexidade, que nem em conversas ela deixava de expressar” (BORELLI, 1981, p. 18). De fato, nos quatro contos, cuja narradora é uma escritora, além de vestígios do seu cotidiano — dividido entre encontros e telefonemas com amigos, almoço com o filho e horas seguidas de escrita literária, regada a café, Coca-Cola e muitos cigarros fumados —, emergem reflexões inquietantes acerca da condição humana e sua finitude. De acordo com Jozef (1999), na obra clariciana, há um mistério que se instala “em torno das relações insólitas do cotidiano”. E acrescenta: “Em Clarice, a percepção do mundo apresenta-se em constante perplexidade e espanto, como no momento de uma revelação súbita em que ‘a verdade’ é desvelada para trazer os objetos à consciência” (JOZEF, 1999, p. 173).

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Nesse sentido, uma reflexão que perpassa todos os contos é acerca da morte e seu oposto: a vida. De acordo com o filósofo alemão Martin Heidegger, um dos grandes nomes da filosofia do século XX, cuja obra Ser e Tempo, publicada nos conturbados anos 20 do século passado, apresenta certa proximidade com a psicologia, configurando-se como um tratado sobre o Existencialismo, o ser humano deve “a cada vez, assumir sua própria morte” (HEIDEGGER, 2002, p. 20). Essa afirmação denota que a vida sem a angústia da morte é possível, mas não é autêntica. Essa angústia em relação à morte é perceptível desde o primeiro conto analisado, quando, em uma conversa com o amigo Claudio, a narradora-protagonista se desespera com o sentimento de fracasso do amigo e a menção que ele faz a um possível suicídio, ela expressa “todos somos fracassados, todos vamos morrer um dia” (LISPECTOR, 1998, p. 38). E mais adiante, consciente de que a morte está indissoluvelmente ligada à vida, com seu quinhão de dores e alegrias, acrescenta: “Porque é dever da gente viver. E viver pode ser bom. Acredite” (LISPECTOR, 1998, p. 39). Ao final do conto, ela reflete que não há repostas para os grandes conflitos da vida e conclui: “Fui me deitar. Eu tinha morrido” (LISPECTOR, 1998, p. 40). O segundo conto, já pelo título “Por enquanto” e sua complementação logo nas primeiras linhas “Enquanto se vive” (LISPECTOR, 1998, p. 45), já aponta, de forma enfática, para a finitude humana e a necessidade de valorizar o momento vivido, como na referência ao melhor presente que o filho poderia lhe dar: seu tempo. Nesse sentido, a consciência do quão a vida pode ser efêmera, leva-nos a busca de um sentido para a vida e condiciona nossas escolhas em direção a algo verdadeiramente autêntico. Conforme analisado antes, é um dos contos que mais se refere à solidão e à saudade dos filhos. Sentindo-se culpada por não ter ido no enterro do pai de uma

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conhecida que havia lhe ligado, em pleno dia das mães, ela justifica essa escolha: “a morte hoje seria demais para mim” (LISPECTOR, 1998, p. 46). As palavras que encerram o conto remetem a essa consciência existencialista do ser humano como “um ser para a morte”: “A gente morre às vezes” (LISPECTOR, 1998, p. 47), mas também apontam para a busca de uma vida prazerosa, conforme expresso anteriormente: “Vou convidar o Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga sua viola. Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos” (LISPECTOR, 1998, p. 47). No conto seguinte, cuja história se passa um dia depois, e também com um título bastante sugestivo acerca da passagem do tempo — “Dia após dia” — ao ouvir uma valsa que a deixa feliz — Danúbio Azul, de Joahann Strauss — a narradora resolve comprar flores em homenagem ao homem falecido do dia anterior, cujo enterro decidira não ir. Mais uma vez, há uma reiteração da inevitabilidade da morte em “como eu tenho repetido à exaustão, um dia se morre” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Ou seja: aqui reflete-se, uma vez mais, a concepção existencialista de que a morte, inerente à própria condição humana fadada ao perecimento, é um grande dilema a ser vivido de forma individual. Por isso, o ato da “angústia da escolha”, conforme estudos de Jean Paul Sartre (1997), o grande filósofo existencialista do pós-guerra, leva-a à decisão libertária: “Minha obra que se dane” (LISPECTOR, 1998, p. 50). Desse modo, a consciência da morte, avassaladora pelas incertezas e angústias que nos causam, também parece agregar valor à vida humana, quando a narradora-protagonista constata: “Estou feliz, apesar da morte do homem bom, apesar do Claudio Brito, apesar do telefonema sobre a minha desgraçada obra literária. Vou tomar café de novo” (LISPECTOR, 1998, p. 52). Ao final, há uma celebração da vida, quando conclui o conto: “Viva eu! que ainda estou viva. E agora acabei” (LISPECTOR, 1998, p. 53).

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No conto “Antes da ponte Rio-Niterói”, por sua vez, ao contar uma história trágica, na qual a morte se sobressai como o grande tema que perpassa os fatos contados, a narradora relata, com um tom comovente e perplexo, a morte precoce da jovem Jandira, abandonada pelo noivo, após ter as pernas amputadas: Daí a três meses morreu, linda, de cabelos soltos, inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não. Não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei. Quem sabe se não é escura. Quem sabe se é um deslumbramento. A morte, quero dizer (LISPECTOR, 1998, p. 58).

O que essa passagem evidencia é que a morte de outra pessoa nos causa tristeza e desconforto, porque nos lembra da nossa própria condição de mortal. Configura-se, assim, como uma experiência aterradora que nos traz angústias e perplexidade diante desse grande mistério, mas também a possibilidade de redesenhar nossa vida de forma mais feliz. Com efeito, “a dor do existir consiste em ver a morte avassalar a existência do não-eu, percebendo que não consigo ensaiar o meu morrer, com a morte do outro, já que é uma das experiências únicas e intransferíveis” (TUI, 2009, p. 3). Desse modo, a obra da autora que, ao contrário do que é comum à maioria dos mortais em não assimilar a morte como algo natural e buscar esquivar de uma reflexão mais profunda sobre o tema, busca trazer a temática como algo inerente à condição humana e passível de reflexão objetiva e racional. Se a constatação do nosso aniquilamento traz, sem dúvida, muito sofrimento, as tessituras existenciais sobre a morte nos contos analisados apontam para uma oportunidade de conhecimento e amadurecimento. E também de possibilidade de usufruir a vida com mais paixão: “A escura, escura morte. Eu não quero

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morrer” (LISPECTOR, 1998, p. 59). Retomando Heidegger (2002), nesse sentido, a morte torna-se, então, o limite do ser e, paradoxalmente, sua completude, uma vez que por meio dela a presença se concretiza, ou seja, o momento em que o homem defronta com o próprio ser.

As representações do corpo em sua via crucis O corpo aparece de diferentes formas em todos os contos que compõem a coletânea em análise e atinge tonalidades entre o profano, o erótico, o sensual, o tédio, o prazer, a solidão e o social, este último compreende os tabus e os fatores externos que contextualizam esses corpos. Como aponta Maurice Merleau-Ponty (1994, p. 122): “o corpo é o veículo do ser no mundo [...] tenho consciência de meu corpo através do mundo [...] tenho consciência do mundo por meio de meu corpo”. Desse modo, o sujeito é capaz de compreender e perceber o mundo por meio do próprio corpo, ao mesmo tempo em que é por meio dele que se insere no mundo como um ser pensante. Se o corpo é o que nos faz “ser” no mundo exterior, então somente a partir do momento que tomamos consciência de que somos dotados dessa capacidade receptiva, isto é, tornamo-nos conscientes de nós mesmos, é que somos capazes de vivenciar nossas próprias escolhas e entender melhor qual a função que o nosso corpo tem no todo, que é a sociedade. O exterior, formado pela ética, moral, cultura e sociedade, constroem grande parte daquilo que o sujeito é em seu interior, ao passo que muito do que o indivíduo é, em sua particularidade, também se reflete no exterior. Nisso, a dinâmica entre o corpo versus mundo é bastante dialética, como afirma Merleau-Ponty:

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[O] enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que mira todas as coisas, também pode olhar-se, e reconhecer então naquilo que vê o ‘outro lado’ do seu poder vidente. Ele se vê vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo [...] um si, portanto, que se compreende no meio das coisas, que tem um verso e um reverso, um passado e um futuro (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 20).

Esse verso e reverso é significativo para compreendermos alguns personagens dos contos de Clarice. Por exemplo o primeiro conto, “Mis Algrave”, que narra a história da pudica Ruth Algrave, uma mulher que considera a maioria das ações do corpo um pecado: comer carne, tomar banho nua, ver televisão. Atrelado a esse sentimento pecaminoso elevado ao extremo, a personagem também lidava com outros aspectos da vida: o tédio da rotina e a solidão da abstinência: “às sete horas voltou para casa. Nada tinha a fazer. Então tricotou um suéter para o inverno [...]. Suspirou muito porque era difícil viver só. A solidão a esmagava” (LISPECTOR, 1998, p. 15). Mas não só o tédio e a solidão são marcantes na existência da personagem, como também o reflexo disso no próprio corpo. Nela, uma virgem de aparência e corpo bonitos, “nunca ninguém havia tocado nos seus seios” (LISPECTOR, 1998, p. 14). Afirmações como essa refletem alguma frustração e culpa, já que o prazer considerava pecado ao mesmo tempo em que parece sentir a frustração de não o tê-lo. Essa dualidade vivenciada no interior da personagem é resgatada por ela por meio de lembranças, por exemplo de seu primo Jack, com quem “brincava de marido e mulher [...] na cama grande da vovó”, e a personagem chega à conclusão de que “Se era culpada, ele também o era” (LISPECTOR, 1998, p. 13). É interessante o uso da conjunção subordinativa condicional “se”, revelando esse anseio, inicialmente não exteriorizado, de não sentir culpa por ter desejos.

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O corpo, no conto, é uma ausência física e uma presença semântica, pois tudo que despertasse o corpo físico é constantemente repreendido pela protagonista. Então, embora ele não seja tocado e sentido por ela, ainda sim o corpo, representando o pecado, era uma constante na existência da personagem. Nisso, aos poucos a narrativa revela o “verso e reverso”, isto é, a interioridade da protagonista, por meio de ações comuns do dia, observe: [...] permitiu-se comer camarão: estava tão bom que até parecia pecado. [...] sentou-se na grama. Levara uma Bíblia para ler. Mas — que Deus a perdoasse — o sol estava tão guerrilheiro, tão bom, tão quente, que não leu nada, ficou só sentada no chão sem coragem de se deitar. Procurou não olhar os casais que se beijavam e se acariciavam sem a menor vergonha. [...] Então visitou Mr. Cabot [...] Miss Algrave sentia-se muito feliz, embora... Bem, embora. [...] Na televisão de Mrs. Cabot vira um homem beijando uma mulher na boca. E isso sem falar no perigo da transmissão de micróbios. [...] Mas ninguém a tocaria jamais, pensou. Ficava curtindo a solidão (LISPECTOR, 1998, p. 14-16, grifo nosso).

Confirmamos, nesses excertos que a negação da sexualidade, tanto alheia quanto a própria, na verdade ocultam um desejo constantemente inibido. Esse desejo se expõe quando o corpo físico se presentifica durante o encontro da protagonista com um “eu” (LISPECTOR, 1998, p. 16), uma entidade invisível chamada Ixtlan. A experiência sexual revela à personagem o gozo: “como era bom, meu Deus. Tinha vontade de mais, mais e mais” (LISPECTOR, 1998, p. 17). Nesse primeiro conto, segundo Fábio Marques (2013), Lispector constrói uma narrativa sobre o erotismo entre o desejo carnal da personagem, o lado munda-

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no, e o divino, representado pela divindade. O sexo entre eles se transforma em um ritual sagrado, em que o divino penetra a alma e o corpo de Algrave e “Ela constrói esse novo sexo místico. No caso da alma humana feminina, trata-se de um gozo e uma dor ao mesmo tempo” (MARQUES, 2013, s.p.). Nesse conto, o corpo é o veículo do pecado e do desejo, e aborda a experiência do prazer exterior enquanto um caminho para a transformação interior. Desse modo, “a experiência interior procura o êxtase, sem a exclusão do corpo e termina por afirmá-lo como lugar receptáculo do gozo” (MARQUES, 2013, s.p.). Para a protagonista, o contato físico descortinou sua existência para além daquilo que considerava “certo” e mostrou a ela que “ser mulher era uma coisa soberba” (LISPECTOR, 1998, p. 19). Dessa maneira, Lispector discute a sexualidade feminina reprimida, que tenta negar aquilo que é natural do corpo, e mostra a impossibilidade de manter essa repressão, e traz para a cena um processo de libertação sexual. Portanto, o corpo pode abrir ou se fechar para o que lhe é exterior, e pode, inclusive, tornar-se um esconderijo para a própria existência, tudo porque é um corpo movente, no qual atua desejos e intenções. No conto “O corpo”, Lispector o discute enquanto uma presença física real. Inicialmente se trata de um triângulo amoroso estável entre Xavier, descrito como um touro, e Carmem e Beatriz, mas a relação é desestabilizada quando elas descobrem uma terceira mulher, uma prostituta, e aos poucos se afastam de Xavier. Novamente o tédio do cotidiano aparece no conto e, ao lado da decepção, leva as duas refletirem sobre transcender a morte e decidirem antecipar ao que todos estamos fadados, executando Xavier e o enterrando no jardim. O modo de vida dos três é construído por meio de exageros em relação ao sexo e à comida, e tanto o corpo quanto os modos dos personagens são levados ao quase grotesco: “Beatriz, com suas banhas, escolhia biquini e um sutiã mínimo

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para os enormes seios que tinha” (LISPECTOR, 1998, p. 26). Enquanto o corpo de Xavier é truculento, muito forte como um touro e possuidor de um apetite voraz, comia “sozinho um frango inteiro” (LISPECTOR, 1998, p. 21). A comida é relacionada no conto ao sexo, e para ambos o personagem tinha um apetite insaciável e “comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca aberta” (LISPECTOR, 1998, p. 23). Outro ponto interessante é que a narrativa tenta naturalizar questões que causam estranheza para a sociedade. Começando com a bigamia em uma sociedade que a condena e é totalmente monogâmica: “todo mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres” (LISPECTOR, 1998, p. 21) e mesmo assim “às seis horas da tarde os três foram para a igreja” (LISPECTOR, 1998, p. 21). A narrativa parece sugerir que isso não incomodava ninguém, o que naturaliza um costume pouco usual. Essa naturalidade parece contínua na narrativa, como quando elas decidem matar Xavier: [...] foram à cozinha. Os dois facões eram amolados, de fino aço polido. Teriam forças? Teriam, sim. Foram armadas. [...] então conseguiram distinguir o corpo adormecido de Xavier. O rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício. [...] e, no escuro da noite — carregaram o corpo pelo jardim afora. [...] enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. Beatriz chorava. [...] depois entraram em casa, fizeram de novo café, e revigoraram-se um pouco (LISPECTOR, 1998, p. 26).

As expectativas do leitor continuam sendo rompidas por uma narrativa cômica e irônica, pois em vez do corpo morto e enterrado no jardim incomodar as moradoras da casa, elas decidem tomar um café e plantar “rosas naquela terra fértil” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Durante o período de espera do

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crescimento das flores, o sentimento de tristeza é vivenciado por ambas, mas quando “o pé de rosas parecia ter pegado”, sentiram que tudo estava resolvido, “e assim ficaria encerrado o problema” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Essa naturalidade culmina no fim do conto, com a descoberta do corpo pela polícia e sua sugestão para que as mulheres se mudem, já que “o melhor é fingir que nada aconteceu senão vai dar muito barulho” (LISPECTOR, 1998, p. 28). Ao leitor resta um vazio, não há nenhuma moral ou catarse, apenas um corpo masculino morto e dois corpos femininos vivos, cujos adjetivos que os caracterizam os transformam em formas caricaturais. Tudo isso leva o leitor a achar cômico um acontecimento trágico. Da mesma forma em que há naturalidade no conto “O corpo” ao tratar questões fora do padrão aceito em nossa sociedade, “Via crucis” também encena personagens que aceitam o estranho com muita naturalidade. O corpo, no conto, é utilizado para uma paródia, isto é, uma carnavalização, com o episódio bíblico no qual a virgem Maria engravida e dela nasce Jesus. Ao colocar em cena Maria das Dores, casada e virgem que se descobre grávida, o conto trabalha com o absurdo e causa estranheza no leitor. Esse absurdo toma proporções maiores conforme a narrativa se desenvolve, porque a personagem acredita ser santa diante da gravidez imaculada, nomeia a criança de Jesus e decide viajar para o interior de Minas Gerais, onde poderia dar à luz em um estábulo. Corrobora para a estranheza do enredo a aceitação passional do Marido ao receber a notícia, ele demonstra ser meio “sonso” e até “impotente”, e acolhe o absurdo como uma benção divina e assume para si as vestimentas de uma túnica e um cajado e a profissão de carpinteiro: “Então eu sou São José? [...] São José então ficava com os olhos molhados de lágrimas” (LISPECTOR, 1998, p. 30). Novamente a comida aparece como um excesso e, assim como Xavier, Maria das dores começa a comer demais e a

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engordar, mas ela remete ao pecado da gula: “Maria das Dores engordara brutalmente e tinha desejos estranhos [...] Um dia Maria das Dores empanturrou-se demais — vomitou muito e chorou. E pensou: começou a via crucis do meu sagrado filho” (LISPECTOR, 1998, p. 31). Segundo Arêas (2005), o recurso da paródia faz o sublime, presente no discurso bíblico, transformar-se em um rebaixamento grotesco e transformando “o sagrado pela evidência do absurdo, assim como é destruída a excepcionalidade de Jesus, ‘essa criança’ afinal igual a todos os homens” (ARÊAS, 2005, p. 65). Nestes dois contos, “O corpo” e “Via crucis”, vemos presente a comicidade e o grotesco pela ótica do absurdo, e o efeito resultante é a estranheza ao lado da naturalidade traduzidos por meio de personagens caricaturais. Outra constante é a ironia que, para Beth Brait (1996), é um recurso textual que manifesta um ponto de vista, promovendo indiretamente, de certa forma, uma argumentação e valendo-se da percepção do leitor para que o significado se concretize. Por exemplo, em “Via crucis” o irônico aparece nessa naturalidade em que as pessoas aceitam a notícia da gravidez da virgem casada, sem questionarem: “A uma amiga mais íntima Maria das Dores contou a história abismante. A amiga também se assustou: — Maria das Dores, mas que destino privilegiado você tem!” (LISPECTOR, 1998, p. 30). O discurso irônico e a paródia com o divino levam-nos a refletir sobre a impossibilidade do “ser santo”, já que nossa humanidade nos faz, inegavelmente, atravessar e enfrentar inúmeras dificuldades: “Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam” (LISPECTOR, 1998, p. 33). Em “Ele me bebeu”, o corpo é discutido por Clarice sob questões performáticas. Primeiro, porque ela coloca em pauta a questão identitária construída a partir daquilo que apresentamos externamente ao mundo; segundo, porque a protago-

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nista Aurélia Nascimento vivencia uma transformação física e interna. O enredo trata dessa mulher, considerada bonita, que é sempre maquiada por seu amigo Serjoca, um homossexual. Ambos conhecem um homem chamado Affonso Carvalho, o qual inicialmente mostra interesse por Aurélia, mas no decorrer do conto muda o foco para Serjoca. Essa transição do interesse, que há no olhar do outro sobre o corpo, causa indignação na personagem feminina e desconforto ao perceber que sua identidade era construída em base no que mostrava, fisicamente, às pessoas e por meio da maquiagem do amigo. O corpo, portanto, é um veículo dependente dos auxílios disponíveis na indústria da beleza, certamente influenciado pelos padrões vendidos socialmente por essa mesma indústria. Isso é evidenciado na narrativa quando o narrador afirma que ela era bonita e, maquilada ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. [...] Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus membros eram lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos (LISPECTOR, 1998, p. 41).

A identidade na qual a personagem se ampara e reconhece é ligada à aparência e personificada no amigo maquiador, responsável por suas transformações. Não só isso, como também ele representa a parte social e cultural, pois juntos participam da vida noturna da cidade, contexto marcado pelo jogo performático das aparências. Por isso, é significante para a protagonista o momento em que há o rompimento entre sua identidade baseada na aparência com o desejo do outro, no caso o de Affonso por Serjoca. Em Affonso Carvalho, podemos observar a questão da identidade móvel e múltipla discutida por Stuart Hall (2011), que vê o surgimento de novas identidades como parte integrante

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das mudanças sociais e culturais que ocorrem no mundo. O personagem em questão é representativo da performance da masculinidade que atraiu Aurélia e da identidade de gênero. Ele atua nos estereótipos masculinos exigidos socialmente, contrapondo-se à Serjoca, que é assumidamente homossexual, mas revelando seu interesse por homens no final do conto: “Affonso fala mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Essa mudança de interesse desloca a identidade com a qual a personagem se reconhecia e desestabiliza sua existência. Isso se evidencia no seguinte trecho: “A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena. [...] Serjoca tinha anulado o seu rosto. [...] Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir” (LISPECTOR, 1998, p. 4344). Não ser mais o objeto de desejo desse outro descontrói sua noção de identidade e desperta-lhe a necessidade de se olhar, novamente, e descobrir a mulher escondida por trás da maquiagem: “foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Nesse conto, o corpo, como discute Merleau-Ponty (1994), está entre a noção de sujeito e de objeto, mesmo que um não seja sinônimo do outro, ambos não se separaram dentro do contexto social. É por meio do corpo que o sujeito se representa no mundo, seja expressando sua identidade e essência ou mascarando e mostrando uma versão diferente ao mundo. São duas coisas que podem ser vistas tanto em sua externalidade quanto sentidas na interioridade por aquele que vivencia essas identidades possíveis, como é o caso da protagonista de “Ele me bebeu”. Aurélia Nascimento, portanto, passa por um conflito que gera uma transformação, já que, no final do conto, reconhece um rosto humano, triste, delicado e (re)descobre sua identidade, “ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Desse modo,

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é possível entendermos que a consciência do sujeito primeiro se manifesta como consciência de seu corpo, de si próprio enquanto uma existência física. “Praça Mauá”, por sua vez, é um conto que encena o corpo travestido e discute representações sociais. A história aborda Luísa, uma mulher casada que trabalha a noite como dançarina de um cabaré chamado “Erótica”, o “nome de guerra” dela era Carla. Com ela trabalha um travesti chamado Celsinho, descrito pelo narrador como “um homem que não era homem”, que também tem um nome de guerra: Moleirão. O personagem se dedica à filha de catorze anos quando não está trabalhando, e é considerado “uma verdadeira mãe. Dormia pouco para cuidar da menina. A esta não faltava nada: tinha tudo do bom e do melhor” (LISPECTOR, 1998, p. 63). Luísa, por sua vez, não tinha filhos, mas tinha um gato siamês de quem não cuidava direito, vive fazendo compras ou dançando no cabaré. Nesse contexto, o narrador revela um esforço em mostrar um contraste entre as duas figuras: Celsinho, um travesti, cumpria o papel social feminino materno, enquanto Luísa, uma mulher, mal conseguia cuidar de um gato. Ou seja, “um homem que não era homem” e uma mulher que, socialmente, também não era uma mulher, fazendo referência aos papeis sociais aos quais a mulher é submetida. Essa questão é aprofundada quando, em uma noite estavam os dois amigos conversando quando Carla foi chamada para dançar para um homem que Celsinho cobiçava. Este é descrito como vingativo e que “roeu-se de inveja” a ponto de dizer à Carla que ela não era “uma mulher de verdade [...] nem ao menos sabe estalar um ovo!” (LISPECTOR, 1998, p. 64). A partir disso, podemos observar como o corpo é uma construção social e a ele é atribuído funções e características, não só as físicas, como observamos no conto anterior, mas também as de comportamento e as identidades pessoais. Cel-

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sinho recebe todas as características e adjetivos que cabem socialmente ao papel de mulher: vocação para maternidade, genioso, vingativo, invejo, uma megera. Enquanto Luísa diverge do que é esperado pela sociedade: dorme o dia inteiro, não tem vocação para maternidade e nem para ser dona de casa, quase não vê seu marido porque quando ele chega, ela sai para trabalhar. Lispector, desse modo, discute os padrões sociais, desconstruindo a identidade feminina firmada nos padrões, ao escrever uma personagem que não se submete ao marido. Ainda mais, pelo discurso do personagem ao ofender “Carla que virou Luísa. Branca, perplexa” (LISPECTOR, 1998, p. 64), o narrador mostra como, de fato, a questão de gênero é uma construção social. Celsinho dialoga com o discurso tradicional e assume esses valores como parte de sua identidade, o que se confirma no desejo de que a filha tivesse um “futuro brilhante”, o que para ele representava um “casamento com homem de fortuna, filhos, joias” (LISPECTOR, 1998, p. 63), ele reproduz, portanto, os ideais do sistema patriarcalista. Enquanto Carla, ao ouvir a “ofensa”, desloca sua identidade para o da Luísa, pois “Tinha sido atingida na sua feminilidade mais íntima” (LISPECTOR, 1998, p. 64). O final do conto mostra a personagem sozinha em uma rua e sintetiza que “Celsinho era mais mulher que ela” (LISPECTOR, 1998, p. 65). Com efeito, isso mostra que a identidade pessoal e social só é pensada pelo indivíduo quando se encontra em uma crise, deslocando aquilo que o sujeito conhece e instaurando nele a incerteza. Além dessas questões emblemáticas, Lispector ainda toca em um assunto muito importante: a violência sexual. O conto “A língua do P” aborda a história de Cidinha, uma professora de inglês que entra em um trem com destino ao Rio de Janeiro, e nele há somente uma senhora dormindo em um canto, até que em uma estação entram dois homens e se sentam a sua frente. Frente a isso, a personagem é descrita em sua

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condição de fragilidade aos olhos da sociedade, ou seja, Cidinha, que é o sujeito feminino subalterno no contexto patriarcal, preocupa-se primeiro com a virgindade do seu corpo: “Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?” (LISPECTOR, 1991, p. 88). Essa autopreservação instintiva é o resultado do corpo disciplinado de que fala Michel Foucault (2004, p. 126), pois para ele “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”. Desse modo, ao olharmos o comportamento e o pensamento da personagem feminina de “A língua do P”, vemos que ela reflete o controle social da sexualidade. Sabemos que sempre foi acrescentada uma importância muito grande para a preservação da virgindade e isso definia o que era ser uma mulher de honra e digna de respeito. E isso, lido pelo viés de Foucault (2004), é um exemplo de um corpo social que, ao longo do tempo, foi construído intencionalmente, por “fórmulas gerais de dominação” (2004, p. 126), com objetivos e finalidades específicas e em função de alguém (nesse caso, do homem). No conto, a protagonista percebe que, em certo momento, os dois homens começam a conversar em uma “língua” diferente e ela reconhece como a língua do “P”, pois a usava em brincadeiras quando era criança. É, graças a isso, que ela descobre a intenção deles: estuprá-la no túnel e, se havendo resistência, seria morta. Diante do risco, uma solução rápida foi concebida e posta em prática pela personagem: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda. Então levantou a saia, fez trejeitos sensuais — nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida ela era de si mesma — abriu os

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botões do decote, deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados. […] está doida, queriam dizer. E ela a se requebrar que nem sambista no morro (LISPECTOR, 1998, p. 69, grifo nosso).

É importante nos atentarmos para o fato de que ela faz isso principalmente para proteger a sua virgindade, como podemos observar no trecho em itálico. Contudo, este também revela uma crítica ao corpo social disciplinado, pois se fosse uma prostituta, não seria virgem e, nesse caso, era uma “vagabunda” e não seria currada.2 É interessante a ironia presente nesse ponto, pois Lispector brinca com o contraste entre a pureza e a indecência, revelando que a primeira era alvo de uma violência estrema e a segunda não, e isso se deve aos padrões sociais construídos para os corpos femininos. Assim, a protagonista encontra uma saída por meio de uma transformação de moça virgem (e pudica) em uma prostituta (conhecedora dos prazeres e de sua sexualidade), o que se define como uma performance. Conforme Judith Butler (1998), autora da teoria da performatividade aplicada ao conceito de gênero, do mesmo jeito que ocorre com as identidades do sujeito, o corpo também é formatado de acordo com o discurso: “são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 1998, p. 194). No conto, isso pode ser observado no corpo de Cidinha professora, que é substituído aos poucos pelo corpo da Cidinha prostituta: “Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar. Então os homens começaram a rir dela. Achavam graça na doideira de Cidinha. Está desesperada” (LISPECTOR, 1998, p. 69). Portanto, o ato performático é intensi2  Currada é um termo utilizado para se referir à mulher que sofre estupro por mais de um homem.

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ficado pela protagonista ao ver a reação de estranhamento dos homens, e ela “tão desconhecida [...] de si mesma” (LISPECTOR, 1998, p. 69), deixa surgir outras identidades. Essa dramatização a salva, pois quando o bilheteiro do trem vê tal situação, avisa o maquinista que a expulsa: Cidinha não sabia como se explicar ao polícia. A língua do “p” não tinha explicação. Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-na dos piores nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda se arrastando no chão (LISPECTOR, 1998, p. 90).

Ela é humilhada pelos outros personagens, incluindo os homens que planejavam seu estupro, e por uma mulher que a julgou com o olhar e subiu no trem, a qual, por ironia, acabaria tonando-se a vítima do destino cruel do qual escapara a protagonista. Vivenciando as ofensas e a reclusão na cadeia, a protagonista passa por um novo processo e volta a assumir a identidade da Cidinha professora: “Tinha lavado a cara, não era mais prostituta” (LISPECTOR, 1998, p. 70). Porém, o episódio do corpo performático permite que ela perceba sua identidade ressignificada, deixando-a preocupada um fato em particular: “quando os dois haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma descarada. Epe sopupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa” (LISPECTOR, 1998, p. 70). Desse modo, o conto nos possibilita perceber o desenvolvimento das identidades assumidas pelo sujeito de acordo com o que o contexto exige dele e a importância da performance na construção (e reconstrução) da identidade da personagem. Por fim, o penúltimo conto da coletânea, “Melhor do que arder”, fala sobre o sacrifício carnal, a religião, o desejo sexual e sociedade patriarcal. O conto narra a história de Clara, uma mulher que fora encarcerada pelos pais em um convento. Con-

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tudo, com o passar do tempo, ela começa a sentir um desejo sexual que nem mesmo a mortificação do corpo era capaz de abrandar. Logo no início do conto, é possível observar a presença forte da religião: “Entrara no convento por imposição da família: queriam vê-la no seio de Deus. Obedeceu” (LISPECTOR, 1998, p. 71). Isso constrói as bases da personagem que se mostra, ao longo do conto, uma mulher respeitável pela sociedade patriarcalista. Devido a impossibilidade de sacrificar o desejo carnal, a vida da protagonista se transforma em uma tortura sexual: “não podia mais ver o corpo nu do Cristo” (LISPECTOR, 1998, p. 72). A presença do desejo sexual é, assim, intensamente sentida pela protagonista a ponto de o padre afirmar: “É melhor não casar. Mas é melhor casar do que arder” (LISPECTOR, 1998, p. 72). Esse trecho é interessante porque perpassa duplo sentido: primeiro, “melhor casar do que arder” pode significar que sexo sem casamento levaria a alma para o inferno, onde arderia eternamente, segundo os preceitos cristãos. Segundo, também pode significar que é melhor se casar para fazer sexo do que viver mortificada pelo desejo insaciado. Ambas leituras têm por base a religião e os conceitos patriarcalistas de casamento, e isso se comprova no comportamento da protagonista. Para ela, sair do convento significava buscar a felicidade, e esta era representada na busca por satisfação sexual, que aconteceria no casamento: “Ela mesma fazia os seus vestidinhos de pano barato [...] os vestidos de manga comprida, sem decote, abaixo do joelho. E nada acontecia. Rezava muito para que alguma coisa boa lhe acontecesse. Em forma de homem” (LISPECTOR, 1998, p. 72). Vemos que o sonho da personagem está enraizado nos modelos de felicidade patriarcalista, em que a mulher encontraria satisfação por meio do casamento. E também como a personagem é descrita — vestimenta sem decote, abaixo do joelho e rezando constantemen-

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te — evidencia que ela tem os preceitos religiosos como base dessa procura de satisfação. Essas características transformam Clara em uma mulher de respeito, que se preserva e se casa: “casaram-se na igreja e no civil. [...] tiveram quatro filhos, todos homens, todos cabeludos” (LISPECTOR, 1998, p. 72). Nesse conto, observamos o corpo feminino em função do outro. Primeiro, obedeceu a família que a obrigou entrar em um convento; depois, desperta pelo desejo sexual, viu-se obrigada a tentar mortificar sua carne para que tais desejos fossem apagados, o que descobriu não ser possível. A seguir, decidida a sair do convento, seu corpo não pode simplesmente realizar o desejo carnal, antes precisava achar um homem e se casar. Todas as escolhas do corpo feminino perpassaram a religião e a família, ambas construções patriarcalistas fortemente enraizadas na sociedade. Desse modo, o conto discute a desarmonia entre o sujeito e os padrões sociais e religiosos, encenando uma personagem insatisfeita e infeliz. A partir da leitura que realizamos desses contos, podemos observar o porquê de A via crucis do corpo ser considerada uma coletânea de contos eróticos. Ao colocar representações constantes do corpo e suas vicissitudes, e a desmesurada sexualidade, sobretudo feminina de forma natural, livre e despudorada, Lispector discute questões tabus e marginalizadas pela sociedade patriarcalista da época. Daí se subtende o porquê da recepção negativa da obra nos anos de 1970, quando o país ainda vivia sobre a repressão de uma ditadura militar, o que atrasou as mudanças promovidas pelo movimento feminista em solo brasileiro. Ainda considerando o corpo enquanto temática, a seguir analisaremos os contos “Ruídos dos passos” e “Mas vai chover”, nos quais Lispector trata de um tema tabu ainda hoje na sociedade: a sexualidade feminina na velhice.

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“Mudos fogos de artifício”: as implicações da sexualidade na velhice Alda Motta, em “Envelhecimento e sentimento do corpo” (2002), aborda o fato de que as denominadas “idades” são inventadas pela modernidade capitalista. Com efeito, o que hoje se denomina “terceira idade” — que corresponde a um novo período entre a idade adulta e a velhice — é uma denominação bastante recente, a partir da década de 60, e surge como uma forma de negação da velhice. Esse segmento social, bastante heterogêneo em temos de idade/geração, gênero e classe social, é marcado por vivências e experiências diferenciadas, cujos corpos, inscritos em uma cultura de produção capitalista, apresentam enormes desvantagens em relação aos corpos jovens, que são capazes de se reproduzir e produzir riquezas materiais. De acordo com Motta (2002, p. 37), em relação às pessoas envelhecidas, “a sensação é de encontrar neles corpos classificatoriamente naturais, ao mesmo tempo simbolicamente descorporificados e mudos”. Além disso, parece que estão fadados a uma situação de não-lugar, uma vez que persiste “este lugar impossível que a modernidade ocidental criou para a terceira idade [...] [onde] a individualidade deixa de existir” (BIRMAN, 1995 apud MOTTA, 2002, p. 38). A autora destaca que há um “determinismo bioideológico” imposto aos mais velhos que os transforma em “resíduos da natureza”, em uma extensão terminal e descartável, cujas trajetórias se findam com a morte. Mesmo que a sociedade capitalista, ao criar formas de circulação de capital no segmento da terceira idade, por meio de, entre outras, viagens e atividades de lazer destinados aos que dispõem de uma situação financeira confortável, se a atuação do indivíduo não corresponder ao esperado de sua classificação bioetária, há punição à essa infração.

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Motta evidencia ainda que a velhice afeta de modo diferencial homens e mulheres. Ao contrário dos homens que ainda se preocupam com o desempenho sexual e tentam “(re) produzir ‘tempestades’ afetivo-sexuais”, às mulheres são cobrados seriedade, recato e abdicação da vida sexual. A autora enfatiza que, geralmente, “as mulheres silenciam ou ‘congelam’ ciosamente (ou cansadas, pelo muito que foram manipuladas em sua trajetória de vida) a sexualidade” (MOTTA, 2002, p. 47). Nesse sentido, é relevante lembrar que a construção histórico-cultural do corpo feminino e da concepção de feminilidade foi erigida por um discurso masculino hegemônico com o intento de silenciar e oprimir as mulheres. Com efeito, ao se verem interditada em sua voz nos círculos intelectuais, as mulheres acabam por serem representadas nesses cenários “como objetos de saber, como construções de um conhecimento não exercido por elas” (MENEZES, 2002, p. 13). Desse modo, pode-se observar que “a razão patriarcal é uma razão totalizante, que enclausura a mulher numa teia de sentido, impedindo que escutemos sua própria fala no decorrer de toda a história da humanidade. É só desse modo que ela se mantém” (MENEZES, 2002, p. 14). Com efeito, os contos citados da coletânea clariciana trazem reflexões relevantes acerca das desvantagens da velhice feminina associadas a uma representação simbólica da identidade pessoal à imagem do corpo. Embora os dois contos tragam mulheres com idades diferentes — Cândida Raposo, de “Ruídos de Passos”, com 81 anos, e Maria Angélica, de “Mas vai chover”, 60 anos — os conflitos são parecidos, pois ambas são dominadas por intensos desejos sexuais e suas implicações, em uma idade em que as mulheres não são consideradas desejáveis e, portanto, sem probabilidades de encontrar satisfação sexual e/ou amorosa. É interessante observar que, em ambos os contos, além da semelhança dos nomes que remetem a uma

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imagem feminina pura, cândida e angelical, ambas pertencem a uma classe média/alta, são independentes financeiramente e aparentemente cultas e inteligentes. Vítimas da solidão e do desamparo, em uma sociedade patriarcal, cuja dominação masculina impõe uma violência simbólica, “suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas” (BOURDIEU, 2005, p. 4), as suas trajetórias comprovam que a emancipação financeira não propiciou às mulheres ainda a tão desejada independência psicológica e emocional. O primeiro conto, em uma página e meia, é narrado o dilema de Cândida Raposo — viúva e proprietária de uma fazenda, que “fora linda na juventude” — que, atormentada por desejos sexuais que não cessavam, apesar de serem considerados inadequados a sua idade, decide procurar um ginecologista. “Essa senhora que tinha a vertigem de viver” (LISPECTOR, 1998, p. 55), extremamente constrangida, “envergonhada, de cabeça baixa”, questiona o médico quando os desejos findariam, ao que o médico lamenta ao dizer que os desejos corporais eram inerentes à condição humana e persistiam até a morte. Ao, atônita, repetir ao médico a sua idade de 81 anos, a resposta dele é lacônica: “É a vida, senhora Raposo” (LISPECTOR, 1998, p. 55). O diálogo continua e a próxima indagação da personagem é emblemática da condição feminina e remete à explicação da autora no prefácio quando afirma que ficou chocada com a realidade e que este “é um mundo cão”. Ao questionar “a vida era isso, então? essa falta de vergonha” (LISPECTOR, 1998, p. 56), a personagem denuncia as contingências da vida e a tirania do desejo sexual feminino — “um mal sem remédio”, segundo palavras do médico — em uma etapa da vida em que as mulheres são consideradas seres descartáveis: “E o que é que eu faço? ninguém me quer mais...” (LISPECTOR, 1998, p. 56). Ao sugerir ao médico que poderia pagar algum garoto de programa, o que é perfeitamente comum

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e aceitável entre os homens de quaisquer idades e que seria possível devido a sua condição financeira, a resposta do médico denuncia o julgamento moral imposto às mulheres daquela época, meados dos anos 70, e vigentes ainda hoje. De fato, ele a desencoraja pedindo que ela se lembrasse da sua idade. A última solução que ela menciona ao médico que é se ela se “arranjasse sozinha”, ou seja, masturbasse-se, recebe, enfim, sua anuência: “É, disse o médico. Pode ser o remédio” (LISPECTOR, 1998, p. 56). Ao final, antes de ouvir, enfim, “os ruídos de passos da morte”, que colocaria fim a essa vida atormentada e reprimida, ela “deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifício. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. [...] Até a benção da morte” (LISPECTOR, 1998, p. 56). Já Maria Angélica tem uma trajetória um pouco diferente, mas igualmente desditosa. Com 21 anos mais nova do que a infeliz Cândida, a protagonista também viúva e que vivia em um “bem decorado apartamento”, um dia abre a porta para receber remédios encomendados na farmácia e “deparou-se com um jovem forte, alto, de grande beleza”, que para ela, na sua idade, representava “a força, a juventude, o sexo há muito abandonado” (LISPECTOR, 1998, p. 75). O atendente Alexandre, de 19 anos, assustou-se com o convite ousado da proprietária para entrar no apartamento e tomar café com bolo. Maria Angélica, que “estava fascinada” pelo rapaz, surpreende-o ao dar-lhe uma gorjeta enorme e desproporcional a que ele comumente recebia. Com sua “vozinha cantante e com trejeitos de mocinha romântica”, pede-lhe que volte mais tarde com uma vitamina que encomendaria na farmácia. Quando ele volta uma hora depois, encontra-a vestida com um quimono transparente e é levado por ela ao seu quarto. Ao confessar que está apaixonada e convidá-lo a ir para a cama com ela e ser prontamente rejeitada por ele, ela lhe promete um carro,

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deixando explícito que lhe pagaria, de forma generosa, pelos favores sexuais a serem prestados. A forma como é descrita a cena, inclusive pelo posicionamento avaliador do/a narrador/a, mostra que Maria Angélica estava consciente de que comprava o garoto com bens materiais, construindo uma relação baseada em trocas de favores: “o que se passou em seguida foi horrível. Não é necessário saber. Maria Angélica — oh, meu Deus, tenha piedade de mim, me perdoe por ter que escrever isto! — Maria Angélica dava gritinhos na hora do amor. E Alexandre tendo que suportar com nojo, com revolta” (LISPECTOR, 1998, p. 77). Ao tornarem-se amantes, Maria Angélica torna-se alvo da zombaria das amigas e criadas. Ele logo abandona o emprego e ela passa a lhe sustentar em todos os seus caprichos em um hotel de luxo, onde “tomava café na cama”. Apesar de dependente financeiramente de Maria Angélica, ele assume a postura de dominador e impõe, com tirania, suas vontades a ela em troca de satisfazer-lhe aquilo que ele julga como “sem-vergonhices” dela. Cada vez mais sem limites, ele exige que ela financie uma viagem dele para fora do Rio de Janeiro com uma garota que conhecera. E, por fim, no ápice das exigências, reclama um milhão de cruzeiros, o que a leva, finalmente, a triste constatação que o amante se tornou caro demais até mesmo para suas posses. Com efeito, Coqueiro e Fascina (2013, p. 158) argumentam que “apesar de Maria Angélica subverter a identidade feminina regulada pela ideologia patriarcal, apresentando características de mulher decidida que luta e realiza suas vontades e anseios, ela torna-se, pela idade avançada e pela própria condição feminina, vítima do rapaz”. No decorrer do conto, percebe-se que Maria Angélica, além de buscar aplacar as exigências sexuais do corpo e a avassaladora solidão, ela, como mulher apaixonada e condicionada pelos “trejeitos de mocinha romântica”, busca também demonstrações de afeto e companheirismo como no dia do seu

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aniversário de 61 anos em que, desolada e abandonada por ele em data tão importante, “ficou sozinha diante do bolo de aniversário” (LISPECTOR, 1998, p. 78). Em relação a isso, Coqueiro e Fascina evidenciam que “o grande mérito do conto de Clarice está justamente em expor de forma tão pungente uma face da velhice não muito comum em obras literárias ao enfatizar os apelos eróticos do corpo e a busca do direito ao gozo sexual” (2013, p. 159). Ao final, após ser destratada por ele e enxovalhada com nomes como “velha desgraçada”, “porca” e “vagabunda”, Maria Angélica “parecia uma ferida de guerra” (LISPECTOR, 1998, p. 78). O modo como Maria Angélica é vilipendiada pelo amante reflete, na concepção de Menezes, um ideal feminino criado historicamente, no qual as mulheres circunscritas ao corpo, “tornam-se escravas de uma natureza a qual os homens desejam dominar” (MENEZES, 2002, p. 14). Portanto, pode-se observar que nessa obra, Clarice aprofunda, de uma forma mais direta e crua, algumas representações acerca do universo feminino e suas limitações, que já aparecem na coletânea Laços de família, publicada em 1960, em contos como “Amor”, “A imitação da rosa” e “Feliz aniversário”. Assim, ao perscrutar vivências diversas da sexualidade feminina, como as referente às (im)possibilidades de viver o amor e a sexualidade plena, em um período outonal da vida, como é o caso de Cândida e Maria Angélica, Clarice expõe os desejos e as frustrações relativos à corporeidade feminina, transformando-os em uma linguagem que denuncia a opressão feminina. Nesse sentido, Vilma Arêas (2005, p. 62) evidencia que nesses contos, “que tratam de mulheres idosas perseguidas pelo desejo sexual não há saída à vista, o movimento é o do labirinto circular descrito pelo corpo”. A representação dessas mulheres na esfera literária, com efeito, leva a um processo de ressignificação do corpo e seus desejos

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inatos. Com isso, a autora transforma esses corpos femininos em “expressões, traduzindo um dever. O corpo é sua escrita” (MENEZES, 2002, p. 14).

Considerações finais De maneira geral, A via crucis do corpo é um verdadeiro passeio pelas ruelas ocultas da sociedade por abordar temas dos mais variados. Lispector constrói personagens femininas, travestis, gays, idosas, escritoras, dançarina de cabaré, bêbados, entre outros, e fala sobre família tradicional, misticismo, religião, sexo, masturbação, morte, tédio, solidão, violência e outras questões que contornam o cotidiano de pessoas comuns. A obra é considerada, como já reiteramos, uma coletânea de contos eróticos, contudo, é um erotismo dolorido, sofrido, permeado por ardorosas questões sociais e pessoais. O corpo, a sexualidade e a sua pungente escrita comparecem aqui para denunciar realidades baseadas em corpos suprimidos pela tradição e desejos oprimidos pela sociedade. Isso se comprova nos momentos que a autora explicita o ato sexual, pois ele é repleto de um apelo do ridículo ou de desculpas, como podemos observar no conto “Mais vai chover”, no qual o/a narrador/a pede desculpas ao leitor antes de narrar o orgasmo da personagem feminina idosa. A obra se mostra extremamente reflexiva em relação às temáticas abordadas por Clarice e, considerando o contexto em que foi publicada, revela diversas ações e atitudes comuns como resultante de construções sociais, com diversos personagens caricaturais e conflitos, por meio de uma abordagem crua e irônica.

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A voz mortuária da consciência individual: algumas notas sobre processos de subjetivação reificados em Onde estivestes de noite

Rafael Lucas Santos da Silva “— Onde estivestes de noite que de manhã regressais com o ultra-mundo nas veias, entre flores abissais? — Estivemos no mais longe que a letra pode alcançar: lendo o livro de Clarice, mistério e chave do ar” (Drummond de Andrade, 1974). “No interior da sociedade coisificada nada tem chance de sobreviver que por sua vez não seja coisificado” (Theodor Adorno, 1968).

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Vai, Clarice! Ser misteriosa na vida Clarice Lispector (1920-1977) continua a ser uma presença misteriosa. A poética clariceana desconcerta o leitor, na mesma medida em que o fascina, — produz uma junção de fascinação e incompreensibilidade, no próprio sentido em que o poeta e ensaísta Eliot observava que a arte “pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida” (ELIOT apud FRIEDRICH, 1978, p. 15). Essa fascinação, sem imediata compreensão, propiciou que a palavra “mistério” se fixasse em torno do nome de Clarice Lispector e sua criação artística. Em 1944, Candido (1977) ao elaborar sua apreciação crítica acerca do romance de estreia de Clarice, argumentou que o cenário da literatura brasileira ganhava a força de um novo ritmo, “uma tentativa impressionante de levar nossa língua a um pensamento cheio de mistério” (CANDIDO, 1977, p. 127). Quando faleceu, em 1977, devido a complicações de um câncer no ovário, o Jornal do Brasil publicou um poema-necrológico assinado por Drummond de Andrade, no qual o amigo1 versejava que a autora de O Lustre “veio de um mistério, partiu para outro”: Ficamos sem saber a essência do mistério. [...] Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar sua razão de ser, e retratar o homem. [...] Clarice não foi um lugar-comum, carteira de identidade, retrato. [...] Não podíamos reter Clarice em nosso chão salpicado de compromissos. Os papéis, 1  A respeito da relação de amizade entre Drummond e Clarice, cf. CÉZAR NOLASCO, E. Amizades gauches. Revista Cerrados, [s. l.], v. 17, n. 26, p. 235-244, 2009.

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os cumprimentos falavam em agora em edições, possíveis coquetéis à beira do abismo. Levitando acima do abismo Clarice riscava um sulco rubro e cinza no ar e fascinava-nos (DRUMMOND, 2006, p. 71-72).

Vê-se que a escrita de Clarice não é concebida como mero consolo cotidiano, alívio da maceração na “[...] pequena hora noturna de compensação” de que o próprio poeta já havia exposto em a Rosa do Povo, daquela hora em que se “destilam ópios de emergência” (DRUMMOND, 2012a). Clarice não é “lugar-comum”, — de fato, Sá (1979) assinala que, nas “operações estilísticas” da escritora, “a metáfora estranhada, oposta aos lugares-comuns, constitui um momento privilegiado na escritura” (SÁ, 1979, p. 112); por isso nos fascina, mesmo ainda que nós estivermos “salpicado[s] de compromissos” que impeçam de nos atentar às suas palavras que bolem “no fundo mais fundo”. Desse modo, enfim, ao enfatizar a força do fascínio exercido nos leitores, Drummond endossa o lado espectral misterioso da escritora. Essa presença misteriosa é ressaltada pelas principais biografias, sendo inclusive erigida como uma figura mítica por Gotlib (2009) e Moser (2011). Conforme assinala Gotlib (2009), a autora de Laços de Família contribuiu, mesmo que indiretamente, para essa condição: “ao isolar-se voluntariamente, [Clarice] cercava-se de uma aura de mistério, permanecendo intocável e favorecendo, quem sabe, certas mitificações: belíssima, sobretudo na mocidade; [...] sedutoramente atraente; antissocial, esquisita, complicada, difícil, mística, bruxa” (GOTLIB, 2009, p. 52, grifo nosso)2. 2  Contudo, a palavra mistério, diante a recepção da obra da escritora, não conota algo que não seja repartido. Pelo contrário. Nunes (1989) declara que Clarice deixou de ser uma literatura seletiva para ganhar popularidade a partir do decênio de 1970. O nome Clarice Lispector possui, de fato, uma abrangente ressonância de popularidade cujo ano de 2012 assinalou um interessante marco. Nesse ano, segundo

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Em vista de a expressividade estética elaborar uma inteligibilidade que não se confunde com clareza, Campos (1999) declara que na poética clariceana “as tessituras da linguagem constroem uma espécie de pathos violentamente dissonante em relação ao que está na moda, na comunicação, na mídia, no discursivismo reinante” (CAMPOS, 1999, p. 193). “Não é confortável o que te escrevo”, afirma a narradora-personagem de A paixão segundo G.H. (LISPECTOR, 1998b, p. 16). A linguagem dissonante assinalada por Campos (1999) ratifica o argumento de Sá (1979), segundo o qual Clarice afastou-se dos ditames do mercado editorial ao priorizar uma escrita não “digerível”3: daí, o caráter hermético que torna o texto “quase ilegível”. As “operações estilísticas” são procedidas como dispositivo literário de negação da fluidez comunicativa da linguagem, conforme pensava Joana, personagem do romance de estreia de Clarice: “A palavra estala entre meus dentes em estilhaços” (LISPECTOR, 1998c, p. 88, grifo nosso).

uma análise quantitativa do site de cultura digital You PIX, Clarice se tornou a autora mais difundida na internet, em especial no Twitter. A pesquisa, noticiada também no Yahoo e no blog do jornal O Estado de São Paulo, demonstrou que, no espaço dos (então) 140 caracteres, ocorria postagens diárias, na marca de 3.500, de frases de autoria de Clarice. Em 2009, Gonçalves Filho já havia tocado nesse aspecto ao tecer comentários em relação à recente tradução da biografia de Clarice elaborada por Moser: “Para quem tem 1 milhão de entradas no Google e 150 comunidades no Orkut associadas ao seu nome, Clarice Lispector (1920-1977) até parece uma escritora popular, dessas que os viajantes devoram nos aviões para passar o tempo. No entanto, sua escrita enigmática desafia ensaístas à procura de significados ocultos nas palavras criadas por esta mulher” (FILHO, 2009, p. 16). Dessa forma apresentada, parece haver aí um aspecto contraditório; uma “escritora popular”, de grande popularidade nas mídias digitais, com uma “escrita enigmática”. 3  Em conformidade com a autora, “radicalmente [...] ela [Clarice] se insurge contra a linearidade discursiva, em um momento literário em que a ficção, salvo raros exemplos, estava amarrada à noção de causa e efeito. Torna-se por isso quase ilegível, aparta-se do público consumidor, rompe a noção de texto passivo, não preenche as necessidades do mercado. Não é produto digerível” (SÁ, 1979, p. 112, grifo nosso).

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Os estilhaços da linguagem na poética clariceana, resultado direto de um “confronto decisivo entre realidade e expressão” (NUNES, 2009, p. 132), desconcerta os leitores retirando-os de suas ebúlicas indiferenças. Ler Clarice, seja no romance, conto ou crônica, não é mero divertimento, pois seu trabalho artístico promove um encurtamento da distância estética, — expressão esta que Adorno (2003) utiliza para se referir aos trabalhos artísticos que “destrói no leitor a tranquilidade contemplativa diante da coisa lida” (ADORNO, 2003, p. 61). Recorrendo novamente ao poeta e amigo, podemos indicar que ler Clarice é “lutar com as palavras”, “algumas, tão fortes/como o javali”; luta que às vezes parece “sem fruto”, que nos “dobra os músculos”. O empenho desse embate, para compreender as palavras de Clarice, abre diversas trilhas. É preciso abrir espaços aos questionamentos, produzir sentidos, por isso: “palavra, palavra / (digo exasperado), / se me desafias / aceito o combate” (DRUMMOND, 2012b, p. 23-25).

A emergência de sentidos, ou — Clarice, a escritora que nos lê Desde que Adonias Filho, em 31 de dezembro de 1943, emitiu sua apreciação sobre Perto do Coração Selvagem, romance de uma jovem moça de 23 anos chamada Clarice Lispector, rios de tinta começaram a correr4. Nesse primeiro momento, Nunes (1989) assinala que a autora “era conhecida apenas por críticos e escritores”, sendo que, “a partir de 1959, com o aparecimento do livro de contos

4  Conforme pesquisa de Edite dos Santos (1999), o parecer de Adonias Filho é o marco zero da recepção de Clarice Lispector.

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Laços de família, conquistou o público universitário” (NUNES, 1989, p. 63). Particularmente a partir da década de 19705, a escritora começa a ocupar um lugar no centro da cena literária do processo cultural brasileiro, suscitando uma recepção crítica diversificada e numerosa, que supera mais de 3600 trabalhos — entre livros, capítulos de livros, teses, dissertações, artigos etc.6 Sua ficção é um bosque, de caminhos que se cruzam e se bifurcam, em que nós, leitores de Clarice, nos surpreendemos e somos provocados em cada reentrância. Desse modo, a escolha por determinada linha teórica pelo leitor contribui para a consolidação de uma referência para o texto. Isso porque a obra literária não deve ser vista como uma configuração que pode ser decodificada ou conhecida na sua essência, mas como uma configuração existente em função de determinada perspectiva teórica e por ela legitimada7. 5  Após a publicação de Cidade sitiada, em 1949, Clarice Lispector só volta a publicar outro romance doze anos depois. Durante esse hiato, a escritora viaja ao redor do mundo, acompanhando Maury Gurgel Valente, seu marido diplomata. Nessas circunstâncias é que teve a oportunidade de conhecer outros escritores e escritoras, por exemplo a poeta inglesa Elizabeth Bishop. Moser (2009) aponta que tais viagens fazem que Clarice Lispector fique “dolorosamente esquecida” aqui no Brasil. A maçã no escuro (1961) marcou o retorno para o cenário literário brasileiro. Segundo Moser (2009) “foi no início dos anos 60 que uma escritora obscura e de reputação difícil se tornou uma instituição nacional” (MOSER, 2009, p. 423). As próximas publicações na década de 60, no que se refere a romances, são A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). 6  A consulta foi feita pelo nome “Clarice Lispector” no acervo digital do Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Uma importante seleção e organização da fortuna crítica da autora também pode ser encontrada no site Templo Cultural Delfos, em que consta 500 trabalhos, resultado da pesquisa de Elfi Kürten Fenske. Disponível no link: http://www. elfikurten.com.br/2015/05/clarice-lispector-fortuna-critica.html. E também no link: https://claricelispectorims.com.br, o qual consiste em uma plataforma do Instituto Moreira Salles (IMS) destinado aos pesquisadores de Clarice. 7  Tal menção a esse aspecto, ainda que sucinta, é importante para depreender que a literatura não é uma categoria imutável. Isto implica que os juízos de valor e peculiaridades hermenêuticas em que se baseia as interpretações também são

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Devido a heterogeneidade constitutiva dos Estudos Literários , compreende-se que não há sentido oculto último imobilizando uma verdade do texto. Consequentemente, a questão do mistério que nos referimos anteriormente não pode ser apreendido como um significado oculto nos textos de Clarice que ainda precisam ser decifrados. Ao concordarmos com Silvina Lopes (1994), percebemos que a própria “institucionalização do literário” demanda a pluralidade a fim de se evitar doses de arbitrariedade. Em conformidade com a autora, a coexistência de perspectivas heterogêneas evita o desagradável farisaísmo, pois a não admissão de um horizonte de variação de interpretações 8

[...] resulta em grande parte desta recusa de pôr em evidência a institucionalização do literário. Admitindo-se que a verdade do texto reside no texto em si, sendo apenas necessário extraí-la, evita-se problematizar o pressuposto que preside a tal atividade, o de que a literatura é por excelência e naturalmente um lugar da verdade. É o que se verifica a partir da concepção romântica histórica e socialmente localizados. Sobre isso, Eagleton (2006, p. 16) argumentou que “podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria ‘literatura’ é objetiva. [...] Qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida [...] pode ser abandonada como uma quimera”. 8  A heterogeneidade constitutiva dos Estudos Literários é a sua mais ostensiva qualidade, contemplando distintas abordagens teórico-críticas. “De fato, no âmbito das ciências humanas, o estruturalismo representou o último movimento que, por algum tempo, pretendeu impor-se como teoria hegemônica, unificadora de métodos diferentes”, explica Castro Rocha (1998, p. 9). E isto fica sobremaneira inequívoco ao levarmos em consideração compêndios como o de Jean-Yves Tadié (1992), o organizado por Thomas Bonnici e Lúcia Osana Zolin (2009), ou ainda reflexões mais sintéticas como a de Terry Eagleton (2006) e a de Jonathan Culler (1999), que permitem observar a profusão de abordagens: Formalismo Russo, New Criticism, Fenomenologia, Estruturalismo, Pós-estruturalismo, Desconstrução, Psicanalítica, Feminista, Marxista, Novo Historicismo ou Materialismo Cultural, Pós-colonialismo, Discurso de Minorias, Queer Theory, Hermenêutica, Estética da Recepção, Crítica genética etc.

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da crítica (enquanto percurso para a perfeição de uma origem, o Absoluto), segundo a qual só a poesia pode criticar a poesia [...] assegurando assim uma autoridade primeira em nome da qual se exerce circularmente a crítica [...]. É o que se verifica igualmente quando se estabelecem regras de acesso ao sentido do texto identificado com a intenção do autor ou da obra. Ou ainda, quando se funda uma ciência concebida como ciência das formas literárias, colocando cada texto particular em relação com um conjunto de regras ditas do seu engendramento (LOPES, 1994, p. 415).

Uma concepção semelhante pode ser encontrada em argumentos de Eagleton (2006), a partir dos quais podemos conceber que a “institucionalização do literário” exposta por Lopes (1994) equivaler-se-ia ao processo de deselitização que, segundo o crítico britânico, ocorreu a partir dos anos 1960. “O que há de verdadeiramente elitista nos estudos literários é a ideia de que as obras só podem ser apreciadas por aqueles que possuem um tipo específico de formação cultural”, explica Eagleton (2006, p. VIII). A profusão de abordagens teórico-críticas implica um “impulso democrático”, no sentido em que visa a “libertar as obras literárias da força repressora de uma sensibilidade civilizada, e abri-las a um tipo de análise do qual, pelo menos em princípio, todos pudessem participar” (EAGLETON, 2006, p. VIII)9. Desse ponto de vista, as diferentes interpretações que compõem a fortuna crítica10 acerca da poética clariceana não 9  A respeito da suspeição dos gestos hermenêuticos, tomo a liberdade de indicar: ROCHA, Janine Resende. Limites do sentido: hermenêutica literária e o papel do leitor na contemporaneidade. 2009. 142 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2009. 10  Alguns trabalhos são importantes por fazerem uma reconstituição histórica e analítica da fortuna crítica da escritora, conforme os já citados, Santos (1999), Bailey (2007), Abdala e Campedelli (1988) e Sá (1979). Além desses, pode-se também ver: MARTING, Diane. Clarice Lispector: A Bio-Bibliography. Wesport/Connecticut.

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devem ser apreendidas como uma sucessão de erratas, isto é, de interpretações que se sobrepõem com a intenção de corrigir equívocos traçados nas interpretações anteriores, mas, isso sim, como leituras igualmente válidas, que sinalizam a possibilidade de o texto literário ser lido de maneiras diferentes11. E assim sendo, indaga-se quais obras podem ser destacadas (e por que?) dentro da fortuna crítica da autora de Onde estivestes de noite. Como se percebe, questão que leva longe. Passo a passo. Retornemos à sensação de desnorteamento manifestada pelos críticos devido ao impacto produzido pela estreia de Clarice. Sobre seu surgimento do cenário literário, Candido (1988) observou que “seu primeiro livro foi um choque” devido a construção artística que “se desprendia das suas matrizes mais contingentes como o regionalismo, a obsessão imediata com os ‘problemas’ sociais e pessoais, para entrar numa fase de consciência estética generalizada” (CANDIDO, 1988, p. XIX)12. Até a década de 1950, predominava a “crítica de rodapé”13 em que se realizava mediações culturais de obras literárias reLondon: Greenwood Press, 1993; RUSSOTTO, Márgara. Clarice y el polvillo critico: una memória de lecturas. In: SCHMIDT, Rita Terezinha (Org.). A ficção de Clarice: nas fronteiras do (im)possível. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2003. p. 72-84. 11  Como se percebe, esse aspecto é complexo e leva longe, visto que defender essa concepção do “campo não-hermenêutico” também não implica deixar de apontar equívocos e falhas em interpretações. 12  Sobre esse período da literatura brasileira, Bosi (2006) assinala que “entre 1930 e 1940/550, grosso modo, o panorama literário apresentava, em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaísmo social e o aprofundamento da lírica moderna no seu ritmo oscilante entre o fechamento e a abertura do eu à sociedade e à natureza” (BOSI, 2006, p. 386). 13  Para uma interessante abordagem sociológica e compilado bibliográfico acerca da crítica de rodapé, especialmente como exercida em São Paulo, cf.: SERRANO, Pedro Bueno de Melo: A crítica bandeirante (1920-1950). 2016. 146 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

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cém-publicadas em jornais ainda sem especializações teóricas bem definidas14. Assim, o primeiro passo foi o de, principalmente, a comentar o estilo narrativo da autora, indicando-o como diferente de tudo aquilo com que a literatura brasileira estava acostumada então. A consequência foi “isolá-la como se, demiurgo de si mesma, pairasse isolada sobre nosso ambiente literário, totalmente desconectada das experiências anteriormente feitas no campo da prosa em nossa sempre criticável tradição literária” (BUENO, 2001, p. 250)15. A primeira disciplina de Teoria da Literatura no país só foi criada em 1951, sendo de fato estabelecida na década seguinte, coincidindo com a voga da corrente estruturalista. Por isso, há um privilegio da construção artística da linguagem de Clarice, visto que o Estruturalismo buscou, inicialmente, “aplicar à literatura os métodos e interpretações do fundador da linguística estrutural moderna, Ferdinand de Saussure” (EAGLETON, 2006, p. 145). Desse momento, legitimou-se as análises das coletâneas de contos Laços de Família e A Legião Estrangeira operadas por Affonso Romano de Sant’anna, que integram a obra Análise 14  O espaço do rodapé era bastante valorizado, conforme ilustra o depoimento de Antonio Candido: “A tarefa do ‘crítico titular’ consistia em fornecer semanalmente, sobre livros do momento, um comentário que ocupava toda a parte inferior de uma das páginas internas, o ‘rodapé’ (antigamente ‘folhetim’), subordinado a uma rubrica geral invariável, que dava nome à secção e vinha impressa acima do título de cada artigo” (CANDIDO apud ROCHA, 2011, p. 12). 15  O artigo de Luís Bueno foi elaborado como contraponto ao ensaio “A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança”, de Silviano Santiago, no qual o crítico e romancista enfatiza a visão de Clarice como a grande exceção no sistema literário brasileiro, “um rio que inaugura o seu próprio curso” (SANTIAGO, 2004, p. 232). Bueno argumenta que “a legitimação de Clarice Lispector enquanto estreante promissora aconteceu porque já havia, no ambiente literário brasileiro, lugar para ela” (BUENO, 2001, p. 251). Contrário ao posicionamento de Santiago (2004), Bueno (2001) aprofunda o debate colocando em xeque a visão errônea sobre o romance de 30, que reduz ao romance social neonaturalista — no qual o regionalismo localista triunfava.

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estrutural de romances brasileiro publicada em 1973. Revisitando esse período da fortuna crítica da escritora, Chiappini (1996) assinalou que “os comentaristas” de fato estavam “influenciados pela linguística”, de modo que muitos “caíram num formalismo estreito, reduzindo tudo à linguagem, e ela própria, a uma espécie de forma vazia de conteúdo, contexto e história” (CHIAPPINI, 1996, p. 60)16. No mesmo ano de 1973, também surge a obra Leitura de Clarice Lispector de Benedito Nunes, aprofundamento de trabalhos do fim da década de 1960, vindos a consolidar a vertente da crítica vinculada a filosofia existencialista. Esses trabalhos de Nunes tomam a forma final em O drama da linguagem — uma leitura de Clarice Lispector, publicado em 198917. 16  Interessante observar que, a nosso ver, a própria corrente não permitia superar o vezo de insularização da obra artística. Até o decênio de 1920, Berrio e Fernández (1999) apontam que o estudo da literatura era realizado, sobretudo, de forma que “atendesse aos princípios caducos de uma retórica empobrecida, ou então orientava-se para um historicismo que tratava as obras artísticas como documentos históricos” (BERRIO; FERNÁNDEZ, 1999, p. 83). Em 1915, surge o Círculo Linguístico de Moscou e, em 1916, a sociedade Opojaz, cujos trabalhos concentravam-se na análise imanente das estruturas linguísticas das obras literárias, investigando “as propriedades fonoacústicas e rítmicas do enunciado poético” (BERRIO; FERNÁNDEZ, 1999, p. 84). Tais trabalhos ficaram conhecidos como formalismo russo e influenciou bastante o ambiente intelectual francês, juntamente aos estudos linguísticos de Saussure, o que possibilitou o surgimento de novos estudos literários, que ficaram conhecidos como Estruturalismo. A crítica estruturalista enfoca a estrutura verbal do texto, cujas exegeses progressivamente estabeleceram “um repúdio obstinado de todo vínculo significativo entre texto e contexto” (MERQUIOR, 1990, p. 428). Em síntese, isso derivaria do fato de que, para o estruturalismo, “a obra não se refere a um objeto, nem é expressão de um sujeito individual; ambos são eliminados, e o que resta, pendendo no ar entre eles, é um sistema de regras. Esse sistema possui existência autônoma, e não se inclinará às intenções individuais” (EAGLETON, 2006, p. 169). 17  Consideramos que permanece dele uma das principais sínteses da temática da poética clariceana: “Auto-conhecimento (sic) e expressão, existência e liberdade, contemplação e ação, linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relações intersubjetivas, humanidade e animalidade, tais são os pontos de referência do horizonte de pensamento que se descortina na ficção de Clarice Lispector, como

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Contudo, havia ficado de lado, conforme assinala Chiappini (1996), a condição feminina “como mediação importante para a temática existencial em Clarice” (CHIAPPINI, 1996, p. 61). A esse respeito, a autora argumenta que “a crítica de Clarice passou muito tempo se preocupando com o que havia de existencialismo na sua ficção, sem enxergar a evidente particularidade através da qual ela indagava sobre a existência humana: a condição feminina” (CHIAPPINI, 1996, p. 60). Ainda em conformidade com Chiappini (1996), a recepção crítica da autora tomaria novo rumo, a partir da década de 1980, ao se atentar à condição feminina “como mediação importante para a temática existencial” (CHIAPPINI, 1996, p. 63). Uma das principais precursoras é Solange Ribeiro de Oliveira, com o livro A barata e a crisálida (1985), com o qual analisa o romance A paixão segundo G.H., cuja data de publicação coincide com a própria ascensão da crítica feminista nas universidades brasileiras18. Em Nem musa, nem medusa, Helena (1997) advogou ser impossível “não ler o tema da emergência do feminino em Lispector” (HELENA, 1997, p. 27), com a finalidade de investigar como “questiona noções herdadas de gender, sujeito, escrita e história” (HELENA, 1997, p. 23), uma vez que Clarice, ao longo de seu trabalho artístico, concebia “a figuração do feminino como mote insistente para investigar não só a singular emergência da mulher na sociedade, marcada por enorme repressão, mas

a dianóia (sic) intrínseca de uma obra na qual é relevante a presença de um intuito cognoscitivo, espécie de Eros filosófico que a anima” (NUNES, 1995, p. 100). 18  Em síntese esclarecedora, Zolin (2009) pontua que “Se nos Estados Unidos e na Europa, o início dos estudos ligados à mulher e sua representação na literatura datam dos anos 1970, no Brasil, até recentemente, o tema não era considerado objeto legítimo de pesquisa. Segundo o Boletim do GT Mulher e Literatura da Anpoll (2000), a consolidação de trabalhos dessa natureza nas instituições acadêmicas brasileiras data de meados dos anos 1980, quando grupos de pesquisadores(as) passaram a se reunir para desenvolver estudos, apresentar resultados de pesquisas e discutir textos teóricos relativos ao tema” (ZOLIN, 2009, p. 201).

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principalmente para recolocar a questão da mulher e a da inscrição do sujeito na história” (HELENA, 1997, p. 27). Diante do resumo exposto, pode-se verificar que a fortuna crítica da autora de A procura de uma dignidade inicialmente se consolidou em três linhas de análise: i) a singularidade de seu estilo narrativo e da construção formal, ii) o caráter filosófico existencial e iii) a representação da condição feminina em sua obra, — sendo as últimas décadas marcadas por um adensamento, e diversificação dos enfoques teórico-metodológicos, das leituras de Clarice no âmbito acadêmico, de maneira que Bailey (2007) expõe que, “graças ao quadro hermenêutico que a crítica lispectoriana vem compondo, a ficção de Lispector desdobra-se em níveis de significados que se manifestam na preocupação com o social, com as estruturas de poder, as relações de gênero e a relação do sujeito com sua realidade interior e exterior” (BAILEY, 2007, p. 16). Nas páginas seguintes, recorre-se a esse adensamento do quadro hermenêutico para expor e comentar os contos que integram a coletânea Onde estivestes de noite, acentuando os procedimentos artísticos das relações sociais, visto que concordamos com Eagleton (2006) que para desafiar “os pressupostos do sistema de poder” (EAGLETON, 2006, p. 269) é importante que a abordagem teórico-crítica “ressoe problemáticas mais amplas”. Em outras palavras, endossamos o argumento do crítico britânico de que [...] a crítica só foi significativa quando se envolveu com questões que ultrapassavam o literário — quando, por uma razão histórica qualquer, o “literário” foi subitamente trazido ao primeiro plano como instrumento das preocupações vitais profundamente enraizadas na vida intelectual, cultural e política geral de uma época (EAGLETON, 1991, p. 99).

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Uma contista das banalidades Em 2015, Benjamin Moser publicou uma coletânea de contos completos de Clarice Lispector, que entrou na lista dos 100 melhores feita pelo suplemento literário do New York Times, elevando “Clarice Lispector à categoria de gênio escondido do século 20” (NINA, 2016, s/p). Na introdução da coletânea, o biógrafo de Clarice e responsável pela organização afirma ter recolhido um total de 85 contos da autora, que refletem a sua própria trajetória artística: “desde o primeiro conto, publicado aos dezenove anos, até o último, encontrado em fragmentos após sua morte, acompanhamos uma vida inteira de experimentação artística através de uma ampla variedade de estilos e experiências. [...] Este livro oferece uma visão de ambas: um retrato inesquecível, na e através da sua arte, dessa grande figura, em toda a sua trágica majestade” (MOSER, 2016, p. 11). Muitas vezes o conto19 não é considerado com a mesma primazia do romance. Por exemplo, podemos pensar que o Prêmio Nobel é atribuído, em grande medida, em valor dos romances. Apenas 19  No que se refere ao vocábulo, Moisés (2006, p. 31) esclarece que “a palavra ‘conto’ corresponde ao francês conte e ao espanhol cuento. Em inglês, concorrem short story, para as narrativas de caráter literário, e tale, para os contos populares ou folclóricos. Em alemão, tem-se Novelle e Erzãhlung, no sentido de short story, e Mãrchen, de tale. Em italiano: ruwell e racconto”. Ainda em conformidade com o autor, “o conto remonta aos primórdios da própria arte literária. Alguns exemplares podem ser localizados centenas ou milhares de anos antes do nascimento de Cristo” (MOISÉS, 2006, p. 32). Desse período, alguns exemplos são sintetizados por Gotlib (2000, p. 5): “Para alguns, os contos egípcios — Os contos dos mágicos — são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4.000 anos antes de Cristo. Enumerar as fases da evolução do conto seria percorrer a nossa própria história, a história de nossa cultura, detectando os momentos da escrita que a representam. O da estória de Caim e Abel, da Bíblia, por exemplo. Ou os textos literários do mundo clássico greco-latino: as várias estórias que existem na Ilíada e na Odisseia, de Homero. E chegam os contos do Oriente: a Pantchatantra (VI a.C.), em sânscrito, ganha tradução árabe (VII d.C.) e inglesa (XVI d.C.); e as Mil e uma noites circulam da Pérsia (século X) para o Egito (século XII) e para toda a Europa (século XVIII)”.

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uma escritora foi laureada, Alice Munro (1931-), cuja carreira foi dedicada exclusivamente ao gênero conto; inclusive, a escritora aproveitou a oportunidade para declarar que sua expectativa era que a atribuição do Prêmio trouxesse mais leitores para os contos: “porque é muitas vezes desmerecido como algo que as pessoas fazem antes de escrever o primeiro romance. E eu gostaria que chegasse ao primeiro plano, sem condicionantes, de maneira que não precise haver um romance” (MUNRO, 2013, tradução nossa, s.p.). De acordo com Aguiar e Silva (2007), há o consenso de se considerar o gênero romance como “a mais importante e a mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos” (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 671). O que pode ser um engodo, como apontaria Machado de Assis (1994) ao dizer que “é gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade” (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 806). Impulsionado pela publicação diária em periódicos20, o gênero conto instala-se na literatura brasileira em meados do século XIX, tendo Machado de Assis como seu primeiro representante, ao explorar as possibilidades artísticas dessa forma literária. Em Instinto de nacionalidade, Machado de Assis (1994) protestava contra o desprestígio que o gênero tinha e que, por isso, poucos escritores se lançavam na produção dessas narrativas curtas: No gênero dos contos, à maneira de Henri Murger, ou a de Trueba, ou à de Ch. Dickens, que tão diversos entre si, tem havido tentativas mais ou menos felizes, porém raras, [...] é gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os 20  Conforme esclarece Walnice Galvão, o conto possui um vínculo estreito com a “indústria cultural”, no sentido em que está relacionado “à extensão do capitalismo ao campo da cultura, com o surgimento da imprensa periódica mantida por anúncios” (GALVÃO, 1983 apud MEDEIROS, 1995, p. 28).

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escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 806).

Assim, o autor de Teoria do medalhão argumentava para não confundir a pequena extensão da narrativa com a qualidade, concluindo que “há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances” (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 806). O fato de estar vinculado à “imprensa periódica mantida por anúncios”, a estrutura do conto se consolidou como uma narrativa curta, “para ser lida de uma assentada [...], pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que pareça com totalidade é imediatamente destruído” (POE, 1999, p. 103). Resulta daí alguns esquematismos que se consolidaram “nas últimas décadas do século XIX, com o advento do Realismo, [quando] o conto literário entrou a ser cultivado amplamente, iniciando um processo de requintamento formal que não cessou até os nossos dias” (MOISÉS, 2006, p. 31). Em conformidade com o autor, a brevidade tornou “o conto, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação” (MOISÉS, 2006, p. 92)21. 21  Didaticamente, Moisés (2006, p. 86) propõe uma divisão quantitativa de palavras, parágrafos e/ou páginas para delimitar a extensão do conto: “[...] a novela conteria de cem a duzentas páginas, ou mais de vinte mil palavras, ou seja, para ele qualquer que seja a narrativa menor do que isso pode ser considerada conto”. Cortázar (2013) também faz menção a isso com um exemplo empírico: “Assinala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no papel, e, portanto, no tempo de leitura, sem outros limites que o esgotamento da matéria romanceada; por sua vez, o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite físico, de tal modo que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouveille, gênero cavaleiro entre o conto e o romance propriamente dito” (CORTÁZAR, 2013, p. 151). Obviamente, a identificação da estrutura não implica na preposição de uma essencialidade quanto à qualidade da narrativa: “Assim, podemos concentrar-nos nessa estrutura

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A “narrativa unívoca” é característica dos contos de Clarice Lispector, cuja “célula dramática” focaliza o conflito pela perspectiva dos personagens cujo cotidiano é caracterizado como uma “realidade inerme”, sendo concebidos pelo sujeito narrador “como seres afogados na banalidade” (SÁ, 1979, p. 40). Foram publicadas pela autora cinco coletâneas de contos: Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964), Felicidade Clandestina (1971), Onde estiveste de noite (1974) e A via crucis do corpo (1974). Em relação aos romances, os contos sempre foram relegados a um segundo plano, de modo que, a despeito de suas popularidades, não foram explorados pela crítica na sua devida envergadura. Dentro da fortuna crítica, ademais, as análises da produção contística privilegiam sobretudo as três primeiras coletâneas, cujos contos, segundo Nunes (1995), concentram-se em um só episódio seguindo “o mesmo eixo mimético dos romances, assente na consciência individual como limiar originário do relacionamento entre o sujeito narrador e a realidade” (NUNES, 1995, p. 83). Conforme Roncador (2002), os romances receberam muito mais atenção, de modo que “os críticos tendem a negligenciar em particular algumas coletâneas de contos e crônicas publicadas em meados dos anos 70 como Onde estivestes de noite (1974) [...]” (RONCADOR, 2002, p. 12).

que se não é imutável, nem por isso pode ser considerada sem fronteiras, ainda que instáveis. É evidente que a determinação desses limites flutuantes pressupõe a abstração das mudanças periféricas, visto não comprometer o núcleo da estrutura do conto. Localizá-los não significa, pois, restrição da faculdade criadora nem da liberdade crítica: nem os autores, nem os críticos deverão sentir-se coagidos diante da teoria do conto que se pode extrair do confronto entre as narrativas de várias épocas, tendências etc. Não estamos ante um código dogmático, implacável, a partir do qual se julgassem todas as narrativas do gênero, mas da verificação de um estado de coisas que vem durando o suficiente para autorizar um pouco mais do que simples dúvidas, ou afirmações gratuitas, a seu respeito” (MOISÉS, 2006, p. 81).

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Publicado em 1974, Onde estivestes essa noite pertence aos “anos de chumbo” da década de 1970, que se constituiu como “o mais duro período da mais duradoura das ditaduras nacionais” (GASPARI, 2002). Nesse período, houve uma ascensão “do gênero no Brasil: o chamado boom do conto nos anos 70”, assinala Dalcastagnè (2001, p. 3). Em conformidade com a autora, “a literatura, nos anos 70, também serviu como um escoadouro político”, de modo que, devido a Ditadura Civil-Militar, [...] a tendência mais forte do conto nos anos 70 era justamente a de um “realismo social”, que buscava expor as mazelas do regime e de séculos de exploração e abandono do povo. Fosse através de uma linguagem mais direta, fosse a partir da construção de alegorias ou da utilização do fantástico, se estava falando do Brasil daqueles dias, da sua miséria, das suas injustiças, da dor de sua gente (DALCASTAGNÈ, 2001, p. 5).

Como é sabido, a poética clariceana não possui em seus contos, nem obviamente nos romances, esse “realismo social” apontado por Dalcastagnè (2001) como típico do gênero na década de 197022. A objetividade está fora do eixo central das 22  Sobre A paixão segundo G.H., Abdala e Campedelli (1988) consideram que a própria operação estilística pode ser apreendida como um embate contra o autoritarismo instalado pela Ditadura: “A paixão segundo G.H. foi publicado no mesmo ano da Revolução de 64, que pôs fim a intensos movimentos reivindicatórios das classes desfavorecidas no Brasil. Sem querer estabelecer uma correlação simplista entre a mensagem do romance e a ebulição social da época também não podemos deixar de notar a sua convergência. Mesmo porque os semitons políticos dificilmente escapariam, ainda que a nível subliminar, ao leitor sofisticado implícito na estrutura da obra. Podemos estabelecer algumas correspondências ao nível da práxis. Se a sociedade brasileira se esbatia politicamente na força coercitiva do Estado e seus lugares-comuns tradicionalistas, a escritora lutava também contra esses estereótipos que se materializavam em linguagem. Era contra a palavra petrificada que ela lutava. Sua atitude, embora num plano de superfície não fosse política, correspondia, na verdade, a um modelo de comportamento que ultrapassava sua individualidade e, dessa forma, ligava-se a uma práxis social mais abrangente.

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narrativas que compõem Onde estiveste de noite, apresentam um “realismo” não-descritivo, que antes adivinha e sugere, do que representa e transcreve uma realidade exterior. Sobretudo no que se refere ao trabalho artístico realizado nos romances, pode-se verificar o fenômeno da “desrealização”, com o qual se recusa “a função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível” (ROSENFELD, 1996, p. 76), cujos procedimentos permitiram os estudiosos aproximarem Clarice de autores como Marcel Proust (1871-1922), Virginia Woolf (1882-1941), James Joyce (1882-1941). De acordo com Rosenfeld (1996), esses escritores expressam que “a visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso comum é incorporada à forma total da obra. É só assim que essa visão torna realmente válida em termo estéticos” (ROSENFELD, 1996, p. 81). Nem por isso, todavia, a poética clariceana é ausente de questões sociais. (Sem querer forçar a tinta, semelhante a Machado de Assis, diversas vezes Clarice foi acusada de alienada em relação aos movimentos históricos concretos). Chiappini (1996) argumenta ser possível identificar em seus textos “os efeitos sobre os indivíduos da implantação do capitalismo selvagem, que ganha impulso a ferro e fogo pela ditadura militar e fundada sobre a exploração do corpo e do espírito da maior parte dos homens e mulheres do País” (CHIAPPINI, 1996, p. 63). Enquanto Chiappini (1996) propõe que a “pobreza e a violência” são um “fio temático-estilístico” que pode ser encontrado em todos os trabalhos dos anos 1960 e 1970, Roncador (2002) considera o “tema da pobreza, da desigualdade social e Caminha igualmente juntas a aventura da enunciação, que procurava sua plenitude entrevista nas palavras, e a aventura da criação literária, ela também emparedada, a se estabelecer por sobre as brechas do sistema cultural estabelecido” (ABDALA; CAMPEDELLI, 1988, p. 202).

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suas consequências” só surge na década de 1970, sendo praticamente não trabalhado anteriormente: Alguns textos desse período, como A hora da estrela, e o conto póstumo “A bela e a fera, ou a ferida grande demais”, estão centrados no encontro do narrador ou um personagem com uma situação de miséria e injustiça social. Além disso, Clarice se apresenta frequentemente como alguém que escreve sob o efeito de uma visão traumática da pobreza ou de algum outro fato social cruel. Nessas narrativas sobre a pobreza, Clarice (ou, em alguns casos, um narrador fictício) fala de sua própria visão traumática da pobreza extrema. Mas escrever sobre esse tema (e, acima de tudo, sob seu efeito) implica na literatura de Clarice a violação de certas normas literárias. De acordo com a autora, permanecer preso às regras de boas maneiras na literatura é, para o escritor confrontado com o mundo dos pobres, menos um fracasso estético que uma falta moral (RONCADOR, 2002, p. 26).

Vê-se que, em plano de fundo, existe a concordância entre Chiapinni (1996) e Roncador (2002) da presença de temáticas sociais em Clarice. A discordância delas revela-se, na realidade, no que diz respeito a metodologia da leitura crítica. Vale lembrar que a maioria dos trabalhos da fortuna crítica que buscam realizar interpretações relacionadas a aspectos sociais, frequentemente escolhem como objeto o romance A hora da estrela. Concordamos com Chiapinni (1996) que “confinar a temática social” a obra como A hora da estrela é uma “limitação crítica”. O que está em jogo é, pois, apreender o processo histórico-social já internalizado na obra literária, de modo que é necessário reconhecer que a voga impressionante de Clarice Lispector, como escritora lida e querida, ocorreu sem levar em conta a história social brasileira, como se não fosse preciso interessar-se pelos meandros do contexto cultural brasileiro

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para reconhecer a maestria da autora de O Lustre. A partir da lição dialética legada por Candido, sabemos que a estrutura estética das narrativas ficcionais está intimamente relacionada com o contexto histórico-social, de modo que, “justamente pelo fato de manter relações com a realidade social, a literatura incorpora as suas contradições à estrutura do significado das obras” (CANDIDO, 2006, p. 202, grifo nosso).

“Clarice devora-se a si mesma” A coletânea Onde estivestes de noite é composta por dezessete narrativas: “A procura de uma dignidade”, “A partida do trem”, “Seco estudo de cavalos”, “Onde estivestes de noite”, “O relatório da coisa”, “O manifesto da cidade”, “As maniganças de dona Frozina”, “É para lá que eu vou”, “O morto no mar da Urca”, “Silêncio”, “Esvaziamento”, “Uma tarde plena”, “Um caso complicado”, “Tanta mansidão”, “As águas do mar”, “Tempestade de almas” e “Vida ao natural”. Em 1974, Clarice completou 54 anos de idade. Conforme seu biógrafo, estava “fisicamente frágil” e abatida por uma “tristeza pelo envelhecimento”; inclusive, acredita que essa condição interferiria na sua produção artística fazendo “sua linguagem refletir uma nova modéstia”, de modo que a coletânea “Onde estivestes de noite não tem nada da rebeldia de Perto do coração selvagem, do rebuscamento de A cidade sitiada, das heroicas alegorias de A maça no escuro ou da glória mística de G.H.” (MOSER, 2011, p. 238). Consideramos equivocado esse juízo operado pelo biógrafo. Segundo Benjamin (2011), a crítica não logra êxito se uma determinada obra é vista por meio de comparações com obras anteriores, ainda por cima tendo como critério obras de outro gênero:

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A crítica, bem como os critérios terminológicos, pedras de toque de uma doutrina filosófica das ideias para a arte, não se constituem segundo o critério exterior da comparação, mas de uma forma imanente, através de uma evolução da linguagem formal da obra, que extrai dela um conteúdo sacrificando os seus efeitos. A isto vem acrescentar-se o fato de precisamente as obras mais notáveis — desde que nelas o gênero não se manifeste pela primeira vez ou, por assim dizer, de forma ideal — se situarem fora dos limites do gênero. Uma obra importante, ou funda o gênero ou se destaca dele, e nas mais perfeitas encontram-se as duas coisas (BENJAMIN, 2011, p. 32).

De fato, concordamos que a coletânea em questão se diferencia em aspectos formais de obras anteriores; seus romances são notáveis, contudo, consideramos equivocado buscar neles critérios para julgamento de obras posteriores, ou ainda, como faz Moser (2011), os motivos por um ângulo biográfico-psicológica, ainda porque muitos dos textos não são inéditos (alguns publicados originalmente na década anterior). Clarice utilizava com frequência o procedimento de transcrição (e o uso) dos mesmos textos inseridos em diferentes contextos. Mais especificamente, muitas das suas “crônicas” veiculadas pelo Jornal Brasil (entre 1967 e 1973), que por sua vez estão publicadas na coletânea A Descoberta do Mundo, traziam trechos que seriam — ou haviam sido — publicados em contos e romances23. 23  Sobre esse procedimento, cf. ALVAREZ, Adriana Camacho. Sob o disfarce da crônica: o delineamento de um projeto estético em Clarice Lispector. 2013. 185 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013; SOUZA, Thais Torres de. Clarice Lispector, uma plagiadora de si mesma: republicação nas crônicas do Jornal do Brasil (1967-1973). 2008. 145 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; e ainda, NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo: Annablume, 2001.

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Constata-se, pois, que “A volta ao natural. Trecho” (DM, 04/05/68), “Ritual. Trecho” (DM, 27/07/68), “Noite na montanha” (DM, 24/07/1968), “Brain Storm” (DM, 22/11/69), “Futuro improvável” (DM, 21/01/1970), “Os grandes amigos” (DM, 10/03/73) e “Um caso para Nelson Rodrigues” (DM, 03/02/73), após sua publicação em jornal, passaram a fazer parte da coletânea Onde estivestes de noite (1974) sob novos títulos e leves alterações. O que demonstra que “Clarice devora-se a si mesma” (GOTLIB, 2009, p. 247). E também que esse procedimento implica em uma diferença de estilo. Embora as primeiras recepções críticas tenham proferido que a temática se resumia a velhice e a morte (SANTOS, 1999), a coletânea é bastante heterogênea, tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto em relação a forma. Ao longo das dezessete narrativas, deparamo-nos com uma mulher de 70 anos que quer ir à uma conferência mas se perde no estádio do Maracanã, temos o registro de fluxo de consciência de duas mulheres durante uma viagem de trem, um ensaio em fragmentos sobre o cavalo, o caráter místico da peregrinação de personagens em busca de uma orgia noturna, faz um “relatório” sobre um relógio, impressões sobre a cidade, apresenta a simplicidade de uma mulher chamada Frozina, dois amigos que se distanciam porque o que tinham a dizer um para o outro se esgotara, um médico que tratava a filha do sujeito que é amante de sua mulher, uma mulher que se surpreende com um saguim no ônibus, reflexões sobre como é o silêncio de cima de uma montanha, um momento erótico em frente a lareira, a dificuldade de se cultivar a alegria, uma mulher que se banha no mar às seis horas da manhã, e outra mulher que prova um vestido amarelo na costureira, — indicando diversas camadas de vivências reificadas, como sinais de perda de interesse pela vida, sentimento de culpa, embotamento afetivo, que acentuam a incompatibilidade dramática entre indivíduo e sociedade.

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Muitas das narrativas representam a impossibilidade dos sujeitos em terem experiências com significados, por estarem esmagados pela reificação social, a ponto de “pensar sem convicção” e compreenderem “assustados: eu não sei pensar”, cuja implicação é o enfraquecimento da subjetividade que impele cada um à mera adaptação ao existente. Além de serem fragmentados e não apresentarem exatamente uma estrutura linear, pode-se observar que os contos negam também a estrutura da narrativa tradicional em que o protagonista acumula experiências e desenvolve-se como ser humano, terminando a história de uma forma construtivamente mais preparado para as vicissitudes da vida. De fato, Lúcia Helena (1997), argumenta que nas construções da narrativa costuma-se acentuar o conflito dos personagens com os papéis sociais que lhes são reservados: “Lispector, registra, assim, nos lampejos de sua criação arguta, a luta de homens e mulheres colhidos pela falta de correspondência entre a consciência e o sentido, entre os nossos projetos e o mundo” (HELENA, 1997, p. 37). Assim, em grande parte das narrativas de Onde estivestes de noite nos deparamos com o fato de que a “confiança no mundo” (LISPECTOR, 1999, p. 35) é colocada em suspeição, cuja implicação é o desaparecimento da “certeza ingênua da posição divina do indivíduo, a certeza do homem de poder constituir a partir de uma consciência que agora se lhe afigura epidérmica e superficial” (ROSENFELD, 1996, p. 86). Em “A procura de uma dignidade”, a personagem se perde no estádio do Maracanã e percorre desesperadamente “corredores sombrios”, sem conseguir encontrar a saída. Esse “caminhar pelo labirinto” materializa a sua própria experiência de vida, fazendo-a considerar que estava “presa a um destino” onde não “haveria porta de saída”, “como se estivesse dentro de um elevador enguiçado entre um andar e outro” (LISPECTOR, 1999, p. 10). Esse aspecto é ressaltado em “A partida do trem”,

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em que a velocidade do trem materializa a viagem sem volta dessa experiência de vida danificada, contrastando as ilusões e desilusões de uma jovem moça, de 37 anos de idade, e de uma senhora, com 77. Nesses contos, que abrem a coletânea, a distância entre narrador e personagem é “abolida”, para conceber o desencadeamento das ações interiorizada na consciência das personagens com a própria construção do discurso narrativo, cujos procedimentos “retiram a atitude contemplativa”: Quando em Proust o comentário está de tal modo entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece, então isso quer dizer que o narrador ataca um elemento fundamental na sua relação com o leitor: a distância estética. Esta era inamovível no romance tradicional. Agora ela varia como as posições da câmara no cinema: ora o leitor é deixado fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa das máquinas (ADORNO, 2003, p. 61).

Os argumentos de Adorno, de seu célebre ensaio Posição do narrador no romance contemporâneo, possibilita compreender vários traços das narrativas que compõem a coletânea em questão, como “Onde estivestes de noite”, “O relatório da coisa”, “É para lá que eu vou” e “Tempestades de almas” que são as narrativas mais herméticas. Em “O morto no mar da Urca”, apreende-se mais facilmente o narrador consciente tanto de sua precariedade como da ilusão de uma realidade clara. A personagem, no momento em que está na costureira para fazer ajustes em seu vestido, descobre que uma pessoa faleceu na praia da Urca, sem conseguir compreender esse fato de modo articulado. Deriva daí uma tentativa de narrar nos moldes do realismo formal, que falha peremptoriamente, pois não se torna possível conciliar a morte com a “alegria” de um novo vestido, de modo que a

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personagem fica “atônita no meu vestido lindo” (LISPECTOR, 1999, p. 73). Essa lassidão tingida de assombro, de uma personagem que estava fazendo ajustes em seu vestido para ir a uma festa, faz que a situação seja atribuída ao acaso, a uma simples contingência, a qual, por sua vez, pode ser apreendida como mais um argumento para encobrir o nexo histórico das relações sociais, afinal, [...] a natureza não produz, de um lado, possuidores de dinheiro ou de mercadorias, e, do outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Esta relação não tem sua origem na natureza, nem é mesmo uma relação social que fosse comum a todos os períodos históricos. Ela é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior (MARX, 2013, p. 189).

A opacidade e reificação das relações sociais ocultam o processo histórico-social. As naturalizações também ficam bem evidentes em “Vida ao natural”. Nessa narrativa em que se descreve um momento de erotismo em frente a lareira, a personagem em seus pensamentos tem a pressuposição de uma diferença natural entre a mulher e o homem. “Vida ao natural” é a última narrativa de Onde estivestes de noite, o que, consequentemente, parece-nos implicar que toda a coletânea acentua que na dinâmica do sujeito em suas relações tende a tornar-se fixa, automática e passiva. No ano de 1974, Clarice confessou: “eu descobri, como uma criança boba, que este é um mundo-cão” (LISPECTOR, 1998a, p. 12). Precisamos nos perguntar se a coletânea em questão, publicada exatamente em 1974, não é o sobre os fetiches que nos fazem suportar tanta “brutalidade”, violência, exploração, a morte e o desespero.

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A vivência perplexa dos ultraconhecidos versos que Drummond escreveria em “No meio do caminho”, de Alguma Poesia (1930): No meio do caminho tinha uma pedra/Tinha uma pedra no meio do caminho” nos fazem pensar que a dicção de Onde estivestes de noite expressa um sujeito caminhando por uma estrada onde há muitas pedras, corredores sombrios, labirintos e fantasmagorias, e quase nenhuma esperança.

Reificações e vidas desperdiçadas — seres precários, petrificados como matéria opaca (Notas — necessariamente apressadas — sobre um ponto cego da crítica) O intento agora é apresentar algumas sugestões e ideias situadas no que Chiappini (1996, 2012) identificou como pontos cegos da crítica. Em vista da quantidade de narrativas enfeixadas na coletânea, não será possível desdobrar muitas explicações de enredo para não estendermos ainda mais este capítulo. Os leitores saberão facilmente encontrar seu próprio caminho, seus contos prediletos. Assim, apenas de forma telegráfica, apresentamos alguns fios temático-estilísticos por meio dos quais traços culturais pudessem ser compreendidos no quadro da totalidade do processo histórico-social24. A minha hipótese é que seja possível puxar um fio cuja particularidade seja os efeitos da modernização em um processo de danificação da subjetividade, que bem compreendido revelará, a nosso ver, “o triste trânsito de uma 24  Afinal, conforme argumentado por Adorno (2003, p. 67), “o pensar sobre a obra de arte está autorizado e comprometido a perguntar concretamente pelo teor social, a não se satisfazer com o vago sentimento de algo universal e abrangente. Esse tipo de determinação pelo pensamento não é uma reflexão externa e alheia à arte, mas antes uma exigência de qualquer configuração linguística”.

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realidade patriarcal para o mundo burguês da mercadoria, dominado por uma nova forma de encanto, só que, desta vez, um engano destrutivo e mortal: o fetiche da mercadoria” (RONCARI, 2007, p. 293). O fetichismo descaracteriza-se ao humano para trocá-lo como coisa, simultaneamente reduzindo-o a algo inerte, pois não possui vida própria. “Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão” (LISPECTOR, 1999, p. 21), é como se sente Dona Maria Rita, de “A partida de trem”. Cabe lembrar que o embrulho não é o mesmo que o objeto, e que pode estar vazio por dentro, privado de substancia. Aqui, o embrulho se situa também como bens simbólicos que perpetuam a hierarquização social, não à toa a personagem se chama Dona Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo e possui fixação em suas joias: Dona Maria Rita olhou de novo para o próprio anel de brilhantes e pérola no seu dedo, alisou o camafeu de ouro: “Sou velha, mas sou rica, mais rica que todos aqui no vagão. Sou rica, sou rica.” Espiou o relógio, mais para ver a grossa placa de ouro do que para ver as horas. “Sou muito rica, não sou uma velha qualquer.” (LISPECTOR, 1999, p. 23).

Anel e relógio surgem como artefatos de dominação simbólica, bem como objetos de identificação idealizada. As joias de Maria Rita lembram-nos do “lenço”, “relógio”, “chaveiro”, “gravata” e “cinto” etc. contidos nos versos do poema “Eu, etiqueta”, de Drummond: [...] negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. [...]

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saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente. (DRUMMOND, 2015, 53-54)

Em ações dominadas pelos imperativos da mercadoria, nos deparamos com a vampirização da subjetividade. Em “Um caso complicado” a mercadoria mescla-se o caráter patriarcal brasileiro, — já não é mais preciso a máscara de integridade e seriedade na vida oficial, familiar e pública, basta as mercadorias: “elegâncias adulterinas do marido que usava relógio de ouro e anel que era joia, alfinete de gravata de brilhante, negociante abastado, como se diz, pois, as gentes respeitam e cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, está certo?” (LISPECTOR, 1999, p. 84-85). O respeito diante dos artefatos simbólicos sobrepuja a necessidade da falsa moralidade, de modo que “todos sabiam” acerca do adultério do “negociante abastado”. Esse mesmo negociante tinha uma filha, Jandira, de dezessete anos, que estava noiva; por sua vez, Jandira também era traída pelo noivo: “O noivo que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com esta continuou pouco ligando” (LISPECTOR, 1999, p. 84). Jandira foi abandonada por Bastos devido uma doença, que provocou nela “gangrena na perna e tiveram que amputá-la. [...] Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não viu que era patética, pois

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bem, o noivo teve coragem de simplesmente desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria” (LISPESCTOR, 1999, p. 83). Em “Vida ao natural”, temos a representação de um momento erótico heteronormativo em frente a uma lareira, em um dia “que, além do frio, chovia nas árvores” (LISPECTOR, 1999, p. 94). Trata-se de uma descrição de um erotismo entre sujeitos que possuem distintas identidades de gênero, dentro da lógica binária de feminino-masculino que alicerça a matriz heterossexual em nossa sociedade. Ao longo do discurso narrativo, fica evidente a (de) marcação de papeis de gênero, naturalizando-os: Ele, o homem, [...] atiça o fogo na lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. [...] pois ela nem se lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra a sua missão. O mais que ela faz é às vezes instigá-lo: “aquela acha”, diz-lhe, “aquela ainda não pegou”. E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha, homem seu que é, e já está atiçando a acha. Não a comando seu, que é a mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem (LISPECTOR, 1999, p. 94).

Esse é um trecho muito semelhante ao que pode ser encontrado em O livro dos prazeres. Nesse romance, diversos exemplos em que há as performatividades de gênero atuando profunda e intrinsecamente na materialização do sexo no corpo do sujeito, atualizando-se nas configurações discursivas25. 25  Como é o caso, por exemplo, desse diálogo entre Loreley e Ulisses: “— Eu, por motivos ignorados, desde rapazola tinha um dom: o de acordar alguma coisa nas mulheres. Com você esse dom de atrair os homens não lhe causa nenhuma impressão? [...]. Não precisa responder, sorriu ele. Assim como o seu dom de atração age em mim.... Você sabe, disse com simplicidade, que nós dois somos atraentes como homem e mulher” (LISPECTOR, 2011, p. 95).

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Assim, por trás do perfeito (frio, chuva e lareira) heteroerotismo presente em “Vida ao natural”, subjazem perspectivas sexistas dos personagens, como indica a noção de “missão” do homem, “dever de nascimento” ou “mulher de um homem”. Essa noção de “cumprir uma missão” figura o aspecto de um sujeito autônomo, consciente e senhor de suas ações. O seu papel agora é o de ser o portador de uma missão e de possuir a força, o poder e a proteção necessários para realizá-la. A necessidade dessa performance já está internalizada pela personagem mulher, uma vez que a narrativa está em discurso indireto, fundindo a perspectiva do narrador e da personagem. Em seguida, as ações remontam a expectativa masculinista de que as mulheres devem performar uma recusa perante as investidas heteroeróticas masculinas ou as fáceis oportunidades de intimidade sexual: A outra mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão dele, sabe que quer, e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter. [...]. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja (LISPECTOR, 1999, p. 94).

Essa cena, em que ela quer, mas não “pega a mão livre do homem”, pode ser apreendida, pois, como uma performatividade de mulheres “respeitáveis”, que surge de um ideal regulatório sexista que relega as mulheres à passividade. Inclusive, acreditamos ser possível apreender a enunciação desse conto equivalente ao “universo cor-de-rosa [das] páginas de Tereza Quadros” (NUNES, 2006, p. 163). Sob o pseudônimo de Tereza Quadros, Clarice Lispector produziu, em 1952, colunas na seção feminina do jornal Comício. Na coluna Gestos, palavras, atitudes, temos a ordem convencionada do resguardo da feminilidade:

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Muitas de vocês, leitoras, hão de conhecer esse tipo feminino, infelizmente hoje não tão raro quanto seria de desejar: a mulher de gestos exagerados, palavras livres e atitudes deselegantes. Interpretando mal a independência da mulher moderna, ela fuma como um homem, em público, cruza as pernas com uma desenvoltura chocante, solta gargalhadas escandalosas, bebe com exagero, usa gíria de mau gosto, palavreado grosseiro quando não se desmoraliza repetindo palavrões. Há vezes em que isso as torna centro de curiosidade masculina. Curiosidade, eu digo. Os homens provocam-na, divertem-se com as suas maneiras deslavadas, e depois saem comentando a sua “masculinidade”. Exatamente, minhas amigas! Nenhum homem pode considerar feminina a mulher que os iguala em tudo ou quase tudo, seu sentimento para com ela é muito pouco lisonjeiro. A transformação causada pelos tempos, pela instrução, pela vida moderna, está mais na mentalidade, na cultura, nas ideias, em si, que nas exteriorizações ridículas de um feminismo caolho. A mulher continua mulher, motivo de encantamento e inspiração para o homem, ideal de pureza e doçura para o filho, e deve proceder sempre como tal. Os homens adoram a mulher bem feminina. É só não confundir futilidade, denguice e falta de personalidade com feminilidade. Cabe a ela refrear o exagero, cuidar da harmonia e delicadeza nos gestos, nas palavras, nas atitudes. Nunca me canso de repetir que, mais importante que a beleza, que a cultura, que um guarda-roupa elegante, para a mulher ser atraente, é ser MULHER (LISPECTOR, 2006, p. 30, grifo nosso).

A colunista aconselha a suas leitoras um modo de ser MULHER, em letras maiúsculas, como se houvesse uma essência/natureza feminina (“motivo de encantamento e inspiração

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para o homem, ideal de pureza e doçura para o filho” etc.) a ser resguardada “da independência da mulher moderna”26. Ao sentenciar que “os homens adoram a mulher bem feminina”, para legitimar os conselhos, subjaz a noção de que a mulher necessita do homem para ser feliz, revelando o imaginário das páginas femininas como extensão de uma sociedade socialmente hierarquizada e historicamente patriarcal. Aparecida Maria Nunes (2006), responsável por organizar e publicar em livros os textos de Clarice assinados sob pseudônimos como Tereza Quadros e Helen Palmer, ou ainda como Ilka Soares, argumenta que essas colunas redigidas não estavam, obviamente, consonantes ao feminismo, contentando-se em reproduzir o padrão discursivo da época27. 26  Vale lembrar as críticas de Beauvoir (1967) ao imaginário das colunas femininas dos jornais: “Os jornais femininos ensinam abundantemente à dona de casa a arte de conservar sua atração sexual embora lavando a louça, a permanecer elegante durante a gravidez, a conciliar o coquetismo com a maternidade e a economia; mas aquela que se sujeitasse a seguir atentamente esses conselhos logo se veria atormentada e desfigurada pelas preocupações; é-lhe muito difícil permanecer desejável quando tem as mãos inchadas e o corpo deformado pelas maternidade; [...] Não é de espantar que a mulher que se debate em meio a essas contradições viva muitas vezes seus dias em estado de nervosismo e azedume; ela perde sempre, no que quer que aposte, e seus ganhos são precários, não se inscrevem em nenhum êxito seguro. Nunca é por seu próprio trabalho que se pode salvar; esse trabalho ocupa-a, mas não constitui uma justificação: esta assenta em liberdades alheias. A mulher encerrada no lar não pode fundar ela própria sua existência; não tem os meios de se afirmar em sua singularidade e esta, por conseguinte, não lhe é reconhecida” (BEAUVOIR, 1967, p. 294). 27  Em conformidade com a autora, “Ao escolher temas que despertassem a atenção de sua leitora e ao propor ensiná-la a viver, Tereza Quadros não forçava, todavia, mudanças de comportamento radicais. A vida prática da mulher atualizada, que começava a ser adotada como padrão nos anos 1950, mediante avanços tecnológicos da indústria, não se sobrepunha, contudo, ao estereótipo da mulher elegante, bonita e prendada, adjetivos que caracterizavam a natureza feminina e compunham os aspectos do que considerava feminilidade. Por isso, a fala de especialista e o tom didático e íntimo empregado por Tereza Quadros para divulgar receitas do saber viver, eram recursos que apenas satisfaziam aos parâmetros estabelecidos pelo status quo” (NUNES, 2006, p. 147-148).

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Em “A procura de uma dignidade”, “A partida do trem”, “O morto do mar da Urca”, “Esvaziamento” e “Uma tarde plena” nos deparamos com discursos narrativos representando o quanto a sociedade se tornou refratária à experiência devido à intensidade e extensão do processo de reificação. Tal aspecto já foi identificado nas obras, e compreendidas como “as relações práticas parecem consolidar e agravar, no mundo de Clarice Lispector, uma alienação sem remédio enraizada na própria existência individual” (NUNES, 1995, p. 101). A compreensão dessa “alienação sem remédio nas relações práticas” pode ser aprofundada ao se levar, então, o problema do fetichismo da mercadoria e da reificação, pinçando questões do tédio e da indústria cultural. Conforme o título sugestivo de “Esvaziamento”, temos o esvaziamento de experiências comunicáveis. Nessa narrativa nos deparamos com dois amigos que sofrem uma ruptura no relacionamento, a partir do momento em que se encontravam e nada tinham a dizer um para o outro: Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. [...] encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. [...] Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. [...] eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo (LISPECTOR, 1999, p. 78).

A “pobreza” e o “vazio” de experiência deságua em uma vida danificada. Primeiramente, há a questão da linguagem, embora o discurso narrativo aponte que o problema foi o “assunto”. Assim, o conto nos leva a refletir sobre a questão de que “as palavras se convertem de veículos substanciais do significado

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em signos destituídos de qualidade”, de modo que “o tipo de experiência que personalizava as palavras ligando-as às pessoas que as pronunciavam foi esvaziado” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 135). Uma curiosidade interessante é o momento em que os amigos “chegam a ler livros apenas para poder falar deles” (LISPECTOR, 1999, p. 77), mas de nada adiantou, os livros não resultavam em “assuntos” interessantes. O que nos lembra que “a cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei de troca que não é mais trocada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 134). O conto “Uma tarde plena” se assemelha com o famoso “Amor”. Em vez de um cego mascando chicletes, em “Uma tarde plena” existe a construção de uma personagem que se depara com um saguim no ônibus, tendo sua rotina quebrada. Aqui a personagem não é nomeada, e o fato dela ser escolhida, conforme o narrador, é porque sentou do lado do rapaz dono do saguim. Esse animal é uma espécie de macaco pequeno, que devido ser um animal silvestre há poucas criações domésticas, de modo que sua presença no ônibus é inesperada, todos “se espantavam” (LISPECTOR, 1999, p. 81). O movimento do conto acompanha o processo de reconhecimento do saguim pela mulher, apontando diferentes gradações de percepção na “observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa” (LISPECTOR, 1999, p. 80). O saguim possibilita, assim, uma quebra nos comportamentos normatizados das pessoas, tão habituadas ao transporte, e inclusive permite que se estabeleça uma atmosfera mais pessoal. Acontece, porém, um acidente, interrompendo essa atmosfera e fazendo que os passageiros do ônibus tenham que descer. Para mulher isso foi uma lástima, pois sua vida era o “tempo das vacas magras”, em que nada acontecia: “sendo os dias que correm tão cheios de notícias nos jornais e com tão poucas ela”, e o que acontecia com ela, era situações que “não

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eram comunicáveis” (LISPECTOR, 1999, p. 81-82). No desfecho, o narrador assinala que “essa mulher era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem consigo própria” (LISPECTOR, 1999, p. 82). “Silenciosa” equivale a “vazio”, “esvaziado” igual ao conto “Esvaziamento”. Agamben (2005) é categórico ao declarar que: [...] todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo (AGAMBEN, 2005, p. 21).

Essa incapacidade de fazer e transmitir experiência contribui para o processo de reificação se instalar nos aspectos mais particulares da vida, que se torna cada vez mais fragmentada e danificada pelos mecanismos de dominação presentes na sociedade. Essa impossibilidade de se transferir experiência fica marcado de forma explícita em “A partida do trem”, e de forma implícita em “A procura de uma dignidade”. Em uma viagem de trem, sentam-se lado a lado uma jovem e uma idosa, de modo que se espera que esta em algum momento aconselhe aquela, devido a jovem estar desiludia com um relacionamento amoroso. Afinal, como é pontuado pelo filósofo, “sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens” (BENJAMIN, 1985a, p. 114). No entanto, nem sequer há uma conversa estabelecida entre elas. Ao contrário do que se espera, a “velha não pode comunicar-se” (LISPECTOR, 1999, p. 19), “sempre fora um pouco vazia” (LISPECTOR, 1999, p. 24)28. A pergunta que surge, é: quais os 28  Acentua-se também a questão da velhice no conto. Na esteira da noção benjaminiana de experiência, Gagnebin (1985) esclarece que, “enquanto no passado

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motivos de causa de tamanho embrutecimento e esvaziamento desses personagens que temos visto? Esse aspecto surge em “Tanta mansidão”, como questionamento da dificuldade de sentir “uma simples e tranquila alegria”, posto que se estamos habituados com “a angústia e a dor” (LISPECTOR, 1999, p. 87)29. Uma espécie de resposta está em “Tempestade de Almas”, em que se declara “ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia” (LISPECTOR, 1999, p. 91), e se aponta que falta “tempo de viver”, de modo que “no futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia”, porque no “futuro a tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem” (LISPECTOR, 1999, p. 92). Sob o mundo administrado e seus ardis reificadores, processos de tecnificação, houve esse profundo embrutecimento do humano, tornando-nos “vulneráveis. Vulnerável para o amor” (LISPECTOR, 1999, p. 34). Esse caráter da vida intima é posto em face da moderna cultura urbana, isto é, a complexificação urbana das grandes metrópoles. Em “O Manifesto da Cidade” (que, aliás, nos parece ser uma intertextualidade com o poema “A flor e a náusea”, de Drummond), expressa-se o alvoroço de pessoas e objetos dos grandes centros urbanos: Alguma coisa se endureceu na seta de aço que indica o rumo de — Outra Cidade. [...]. A cidade traçada. Com que engenhosidade. Pedreiros, carpinteiros, engenheiros, santeiros, artesãos — estes contaram com a morte. Estou vendo cada vez mais claro: esta é a casa, a minha, a ponte, o rio, a Penitenciária, os blocos quadrados de edifícios, a escadaria deserta o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil” (GAGNEBIN, 1985, p. 10.) 29  Sobre esse aspecto, particularmente gosto muito de como é exposto na crônica “Primavera ao corre da máquina”: “E que eu não esqueça, nessa minha fina luta travada, que o mais difícil de se entender é a alegria. Que eu não esqueça que a subida mais escarpada, e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria” (LISPECTOR, 1984, p. 123).

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de mim, a pedra. [...] Se esta foi uma palavra ecoando no chão duro, qual é o teu sentido? Como é cavo este coração no peito da cidade. Procuro, procuro. Casa, calçadas, degraus, monumento, poste, tua indústria. Da mais alta muralha — olho. Procuro. Da mais alta muralha não recebo nenhum sinal. Daqui não vejo, pois tua clareza é impenetrável (LISPECTOR, 1999, p. 65).

Esse “Manifesto” busca lidar com a experiência urbana, os limites do mundo burguês e sua falta de perspectivas, de modo que é como se o “chão duro” e a “escadaria deserta em mim” expressassem a experiência da desilusão como única forma da verdade. Esse aspecto “impenetrável” é materializado, em “A procura da dignidade”, nos labirintos e corredores sombrios dos quais a personagem Sra. Jorge B. Xavier desesperadamente busca escapar. Quando estava indo para uma conferência, pois a Sra. Xavier “se esforçava a não perder nada de cultural” (LISPECTOR, 1999, p. 9), acabou se perdendo “pelos subterrâneos do Estádio do Maracanã” (LISPECTOR, 1999, p. 9). Assim, o estádio se torna “uma encarnação do puro objeto-obstáculo, o “X” imperscrutável do Destino Cego que sempre, em uma bizarra mistura de acaso e necessidade inexorável, intervém para destruir a realização dos planos e intenções do sujeito, garantindo que, de um modo ou de outro, as coisas sempre deem errado” (ZIZEK, 2013, p. 450). Que planos são esses? No desenrolar do discurso narrativo, descobrimos que “pouco lhe importava a cultura”30 (LISPECTOR, 1999, p. 13), o que logo se revelará como um desajuste da subjetividade. Conforme o filósofo esloveno, 30  Talvez essa dinâmica de pouco lhe importar a cultura mesmo quando se faz esforço para participar de eventos culturais se relacione com o fato de que “a cultura converteu-se totalmente numa mercadoria, difundida como uma informação, sem penetrar nos indivíduos dela informados” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 162).

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A lacuna entre a experiência subjetiva (dos indivíduos perseguindo seus interesses) e os mecanismos sociais objetivos (que aparecem como um Destino incontrolável e “irracional”) está inscrita na própria noção de capitalismo e, por conta dessa lacuna, há sempre a ameaça de que os planos e as intenções dos indivíduos sejam sabotados, impedidos. É nessa lacuna que devemos situar a violência sistêmica própria do capitalismo (ZIZEK, 2013, p. 452).

Depois quando já está de volta em seu apartamento, sem ter assistido a conferência, acontece dela começar a pensar em Roberto Carlos, que seu “ídolo da televisão”. As poucas interpretações do artigo balizam que ocorre um momento de liberdade da Sra. Xavier, porque o pensar em Roberto Carlos está vinculado à sexualidade. Mas, ao levarmos em conta o fenômeno da indústria cultural, ao qual pertence Roberto Carlos junto a Jovem Guarda, podemos dialetizar a compreensão da cena e propor uma leitura mais profícua. Adorno e Horkheimer (1985) desenvolvem reflexões em Dialético do esclarecimento com as quais assinalam como a cultura, com o avanço do desenvolvimento capitalista, passou a ser regida pelas leis da mercadoria, ocasionando uma completa mercantilização da produção simbólica dos sujeitos e cujo fenômeno é designado pelo termo “indústria cultural”. O movimento da Jovem Guarda, do qual Roberto Carlos está inserido, está no bojo de um conjunto de estratégias publicitárias envolvidas na construção da imagem dos “ídolos”, apoiado na televisão como novo meio de comunicação em ascensão, — o que por sua vez exprime a nova configuração que a cultura de massa adquiria no Brasil31. Não à toa é apontado 31  Para uma apreciação aprofundada do movimento da Jovem Guarda, cf. PINTO, Marcelo Garson. Jovem Guarda: a construção social da juventude na indústria cultural. 2015. 349 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2015.; e OLIVEIRA, Adriana Mattos de. A jovem Guarda e a indústria

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que, para a Sra. Xavier, Roberto Calos era seu “ídolo de televisão. Não perdia um só programa dele” (LISPECTOR, 1999, p. 16). O ídolo provoca desejos, provoca uma “fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão”: A Sra. Jorge B. Xavier era ninguém. Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia. Com sua idade indelevelmente maculada. Sem ao menos um pensamento sublime que lhe servisse de leme e que enobrecesse a sua existência. Então começou a desmanchar o coque dos cabelos e a penteá-los devagar. Estavam precisando de nova tintura, as raízes brancas já apareciam. Então a senhora pensou o seguinte: na minha vida nunca houve um clímax como nas histórias que se leem. O clímax era Roberto Carlos. Meditativa, concluiu que iria morrer secretamente assim como secretamente vivera. Mas também sabia que toda morte é secreta (LISPECTOR, 1999, p. 17).

O surgimento da imagem do cantor Roberto Calos nos parece indicar que a realização dos desejos ocorre conforme os modelos que são expostos pelos produtos da indústria cultural, ou seja, a vontade passa a desejar aquilo que se tornou ditatorialmente objeto de desejo. Daí ser difícil, desse ponto de vista, argumentar que os desejos da Sra. Xavier são legítimos (e, consequentemente, ao cultural: análise da relação entre o movimento Jovem Guarda, a indústria cultural e a recepção de seu público. 2011. 111 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011.

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se deixar levar pela sensualidade está se libertando), afinal, “a existência que a sociedade impõe às pessoas não se identifica com o que as pessoas são ou poderiam ser em si mesmas. [...] Fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções” (ADORNO, 1985, p. 70-71). Interessante observar, também, que a alienação não surge das convenções do papel de mãe e esposa, como ocorre em outros contos de Clarice. Parece haver uma novidade, uma tentativa de formalizar um novo componente do processo histórico-social brasileiro. A Sra. Xavier se sente “ninguém”, “profundamente anônima” (LISPECTOR, 1999, p. 17), resultado de um enfraquecimento do ego devido a reificação operante, que aliada a indústria cultural possui a finalidade de deixar a identidade cega com a cultura administrada e sua racionalidade. O sentimento de ser ninguém ocorre ao se olhar no espelho, indicando que “as mais íntimas reações das pessoas estão tão completamente reificadas para elas próprias que a ideia de algo peculiar a elas só perdura na mais extrema abstração” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138). O “esvaziamento” e “embrutecimento” que pontuamos, podemos aquilatar agora como resultado lógico desse novo processo histórico-social brasileiro, em que a indústria cultural é componente da modernização capitalista ocorrida no decênio de 1970. Ribeiro e Botelho (2005) nos ajuda a compreender como nesse momento ocorre uma articulação entre crescimento econômico e mecanismos repressores: Com o êxito no combate a inflação e a ênfase na aceleração do crescimento, delineia-se a estratégia governamental, a qual, sob o pano de fundo de uma política econômica desenvolvimentista, implanta sofisticados aparelhos ideológicos e repressivos. O governo procura legitimar-se nessa fase, e dada a

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ausência de um suporte político para tanto, utiliza o chamado “milagre econômico” como instrumento ideológico para reforçar o regime. Vivencia-se um momento de superestima dos padrões de racionalidade, de pragmatismo e de eficiência, de onde emerge o tecnocrata como protótipo do realizador de todo um novo trabalho político (RIBEIRO; BOTELHO, 2005, p. 479).

Os mecanismos repressores desses “anos de chumbo” buscam a submissão da subjetividade ao todo social, de modo que encontrou nos avanços da indústria cultural, com sua capacidade difusora das telecomunicações, sua aliada fundamental. Diferentes estudos demonstram como o governo militar utilizou da indústria cultural para difundir valores reificantes, de forma a homogeneizar hábitos e desejos. De forma sintética, Borelli (2005) esclarece que nos anos de 1970, a política econômica permite que “o campo cultural brasileiro assum[a], assim, um projeto de modernidade articulado tanto à produção industrializada quanto ao consumo de bens simbólicos em larga escala, mas nem sempre acessível a todos os segmentos sociais” (BORELLI, 2005, p. 54). Seria, então, possível apreender que as narrativas de Clarice problematizam “[...] o monopólio das mídias e das indústrias culturais [instaurado] no cenário mais geral da cultura brasileira”? (BORELLI, 2005, p. 56). Ao pensarmos em responder positivamente, fica-se claro que todo o mal-estar da Sra. Xavier é efeito de uma violência sistêmico-simbólica a partir da qual a indústria cultural busca “impedir a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente” (ADORNO, 1985, p. 99). Desse modo, a cena final do conto “A procura da dignidade” funciona como testemunha do caráter inumado da indústria cultural, que faz a “Sra. Xavier dobrar-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras” (LISPECTOR, 1999, p. 18).

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A reificação já está tão entranhada nas vísceras do indivíduo, vivendo radicalmente submetido à objetividade social, que esta já toma conta inclusive de seu onírico mundo dos sonhos, conforme nos expressa esteticamente o conto Onde estivestes de noite. Essa narrativa focaliza o trajeto onírico de diferentes personagens em uma “noite de possibilidade excepcional” (LISPECTOR, 1999, p. 43). Aqui, de forma muito interessante, o mundo onírico das imagens se transformam em momento dialético da crítica da modernização capitalista em suas mais variadas dimensões “fantasmagóricas”. Como pontuava o filósofo alemão, “o coletivo que sonha ignora a história. Para ele, os acontecimentos se desenrolam segundo um curso sempre idêntico e sempre novo” (BENJAMIN, 2006, p. 588). No conto Onde estivestes de noite, não há atribuição de nomes próprios aos personagens, sendo nomeados como “judeu pobre”, “escritora falida”, “o milionário”, “Psiu”, “o masturbador”, entre outros, que são, posteriormente, denominados “os malditos”. Todos seguem, em forma de procissão religiosa, um ser andrógino chamado “Ele-Ela” e “Ela-Ele”: O Ele-ela só deixava mostrar o rosto de andrógina. E dele se irradiava tal cego esplendor de doido que os outros fruíam a própria loucura. Ela era o vaticínio e a dissolução e já nascera tatuada. O ar todo cheirava agora a fatal jasmim e era tão forte que alguns vomitavam as próprias entranhas. A Lua estava plena no céu. Quinze mil adolescentes esperavam que espécie de homem e mulher eles iriam ser. Então Ela-ele disse: — Comerei o teu irmão e haverá um eclipse total e o fim do mundo. (LISPECTOR, (1999, p. 51-52).

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Pode-se apreender esse ser andrógino como “uma espécie de anverso positivo da castração: o resto não castrado”, uma vez que, ao ser devir mulher no homem e devir homem na mulher, não está simbolicamente regulado pelo regime da diferença sexual (ZIZEK, 2010, p. 82). Por isso a admiração, já que os sujeitos são todos castrados. Em relação ao ser andrógino, não ser castrado, no caso, realça dialeticamente a dimensão da falta do “hiato entre minha identidade psicológica direta e minha identidade simbólica (a máscara ou título simbólico que uso, definindo o que sou para e dentro do grande Outro)” (ZIZEK, 2010, p. 46). Essa figura Ele-Ela, Ela-Ele, está associada a Noite, fez seu chamado no “sábado”, e desaparece na “manhã preestabelecida”: “Ele-ela há muito sumira no ar. A manhã estava límpida como coisa recém-lavada” (LISPECTOR, 1999, p. 56). Assim que surge a manhã, temos entrecruzamento de “identidades simbólicas” e valências sociofuncionais, como o “açougueiro”, o “padeiro”, o “estudante perfeito”, o “judeu pobre”, o “poderoso” que no café da manhã come “caviar dinamarquês às colheradas”, a “empregada”, o “banqueiro” etc. Essas identidades simbólicas, expressas pelas profissões, parecem caracterizar a “dependência recíproca e multilateral dos indivíduos, de resto indiferentes uns relativamente aos outros, que constitui sua conexão social que se exprime no valor de troca [no dinheiro]” (MARX, 2011, p. 92). Sem dinheiro, o “judeu pobre gritava mudo e ninguém o ouviu, o mundo inteiro não o ouvia” (LISPECTOR, 1999, p. 51). Pensar no “título simbólico” indica que, ao lado das funções de autopreservação e obtenção de poder, o dinheiro carrega consigo semelhanças com fatores sexuais, tratando ambos com hipocrisia e falso moralismo32. 32  Sobre como a questão monetária é tratada na obra freudiana, cf. SILVA, Lillian Nathalie Oliveira da; HENRIQUES, Rogério da Silva Paes. Representações simbólicas do dinheiro na obra freudiana. Cadernos de Psicanálise, Rio de Janeiro, v. 39, n. 37, p. 169-183, dez. 2017.

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Talvez não à toa, no conto “alguns vomitavam as próprias entranhas”, já que a relação da narrativa com o onírico e com o sonho-inconsciente nos lembra que segundo Freud (1986) “no pensamento inconsciente, nos sonhos e nas neuroses — o dinheiro é intimamente relacionado com a sujeira” (FREUD, 1986, p. 151, tradução nossa). Outros personagens estão desejosos de mais poder, mais sucesso: O milionário gritava: quero o poder! poder! quero que até os objetos obedeçam as minhas ordens! E direi: move-te, objeto! e ele por si só se moverá. [...] A jornalista fazendo uma reportagem magnífica da vida crua. Vou ganhar fama internacional como a autora de O exorcista que não li para não me influenciar (LISPECTOR, 1999, p. 49).

Disso poderíamos aquilatar que a mercadoria, no seu valor de troca e de uso, está internalizada no mais íntimo dos personagens, já que a narrativa inicialmente trata das representações inconscientes manifestadas durante o sono. A manhã surge revelando que “faltava petróleo no mundo. E, sem petróleo, faltava comida” (LISPECTOR, 1999, p. 52). A anulação do sujeito em face de poderes econômicos e a submissão à forma mercadoria provoca uma busca de fuga não em mudanças de ordem social, mas nas forças do cosmo. Em As águas do mar, por exemplo, é narrado a procura/ânsia do sujeito por uma completude, a qual se inclina em uma busca por uma integração mística com os cosmos, realizado por meio de um banho de mar. O novo dia que surge “era domingo”, o que não agrada: “cheio de torpor, ainda mal acordado, se disse: mais um domingo de tédio”. O dia de “tempo livre” é visto como entediante, resultado da incapacidade de fazer experiências e também porque as energias físicas e espirituais foram massacradas já no ato de trabalhar durante a semana. No interior do capitalismo tardio, o tédio é correlato de uma vida danificada:

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O tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta [...] é verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade [...] é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido. O próprio bobear não precisa ser obtuso, podendo ser beatificamente desfrutado como dispensa dos autocontroles. [...] Tédio é [...] a expressão de deformações que a constituição global da sociedade produz nas pessoas. A mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e seu atrofiamento. [...] Quem quiser adaptar-se, deve renunciar cada vez mais à fantasia (ADORNO, 1995, p. 76).

O argumento de Adorno (1995) indica o atrofiamento da subjetividade, exatamente o qual consiste na construção dos personagens até aqui analisados. As narrativas são vezos denunciatórios de quem “está cansado de caminhar”, de quem “na verdade já perdera de vista o motivo pelo qual caminhava sem nunca mais parar” (LISPECTOR, 1999, p. 10), igual aos versos de Drummond que sinalizava o sujeito que “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco/onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo”. Diante de tudo o que foi exposto, esperamos ter conseguido demonstrar que a leitura de Onde estiveste de noite proporciona-nos o reconhecimento das consequências das transformações histórico-sociais operadas pelo capitalismo tardio na esfera da vida privada. São narrativas que, a partir de um “realismo” não-descritivo, reconstrói a fragilidade do indivíduo burguês frente ao progresso adquirido. Consistem, assim, em possibilidades de adentrar em um ponto bastante produtivo para apreender processos histórico-sociais do Brasil e os

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desdobramentos das posturas políticas e econômicas oficiais, tendo em vista que “[...] o perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” (BENJAMIN, 1985c, p. 224).

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A bela e a fera: das ultimidades, um réquiem para Clarice Lispector

Sandro Adriano da Silva Cleber da Silva Luz “Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão” (Clarice Lispector, em A legião estrangeira).

Do livro que não valia nada, a maldição Logo nas primeiras páginas de Água viva, a narradora protagonista — alter ego forjado no mergulho da matéria da palavra e do pathos de Clarice — confessa: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998, p. 13, grifo nosso). Na verdade, quando tomada em seu todo, a obra clariceana aponta para um mosaico de gêneros cultivados em complexas condições de hibridização incomum dos elementos estéticos, como o conto, o romance, a novela, a crônica. E é na contística que Clarice inaugura o laboratório ficcional com que agenciará demandas entorno da subjetividade autoral e da reflexão sobre seu gesto

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criador como uma experiência de busca e risco. Tomaremos, nos limites deste trabalho, a concepção de gesto tal como proposta por Galard: “Tudo pode ser signo, do gesto mais furtivo à postura menos estudada. Na própria substância da linguagem tudo faz sentido; tal palavra em lugar de um sinônimo, tal assonância, o timbre da voz, a fluência, o silêncio” (1997, p. 91). Clarice Lispector começa a escrever ainda na infância, quando a família se muda para o Recife. É nesta “fase pernambucana”, como registra Gotlib (1988, p. 162), que Clarice escreve e envia pequenas narrativas ao Diário de Pernambuco, que publicava uma seção de contos infantis às quintas-feiras; os de Clarice, no entanto, nunca foram aceitos, porque fugiam aos moldes de uma literatura infantil, eram mais notações impressivas de um “cotidiano mágico”, como ela mesma se referia (BORELLI, 1981, p. 43), com um acentuado pendor para o devaneio do que propriamente um enredo. Aos nove anos escreve uma peça teatral intitulada Pobre menina rica, mas que mantém guardada. Em 1933 Clarice Lispector torna-se, definitivamente, escritora. Chancelada com aquele “nervo exposto ao mundo”, como a apresentaria Otto Lara Resende (2002, p. 13), plena de perplexidade e em constante estado de interrogação sobre a vida e a palavra: Quando conscientemente, aos treze anos de idade, tomei posse da vontade de escrever — eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino — quanto tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar (LISPECTOR, 1999, p. 286).

Iniciava-se, assim a manipulação incessante e intuitiva de zonas de atrito da linguagem e da experiência em cujos interstícios os estados de angústia e violência diante da fusão entre

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o sujeito e a escrita apontam para a libertação pelo pathos e pela epifania. Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. [...] Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 65).

Essa época deitará rastros memorialísticos em seus contos sobre a infância, reverberará em suas crônicas, e, especialmente, encarnará em personagens como Macabéa, a nordestina “de corpo cariado”, de A hora da estrela. Nessa obra Clarice faz convergir a consciência de busca e encontro de uma linguagem, em que o estilo se transforma ele mesmo em matéria metaficcional, em um fascínio pela realidade que intenta escrutinar por meio de um indício biográfico dissimulado — o narrador, Rodrigo S.M. trata de lembranças de sua infância no Recife; Macabéa passa a infância em Alagoas, como Clarice, que viveu parte da sua nesse estado nordestino; além disso, a origem judaica da autora, permeia sutilmente sua obra (MOSER, 2009). Em depoimento à amiga Olga Borelli (1981), escreve: “é fascinante lembrar-se. De repente o passado é uma coisa que ainda via acontecer [...] Não sei viver, só sei lembrar-me” (BORELLI, 1981, p. 17). E por uma dessas ironias da vida (e da morte), sua última viagem foi a Recife, ao reencontro de suas raízes, “percorreu aí os lugares que viram o iniciar de sua peregrinação, de sua ânsia de liberdade e o desabrochar dos primeiros textos” (BORELLI, 1981, p. 43).

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Datam dos anos de 1940-1941, quando de seu ingresso na atividade jornalística, e trabalhando na Agência Nacional, órgão criado pelo governo Vargas e vinculado ao DIP — Departamento de Imprensa e Propaganda, as primeiras incursões maduras de Clarice Lispector pela contística. Cursando a faculdade de Direito, tendo recém-conquistado a nacionalidade brasileira, Clarice lança Alguns contos, com o apoio de Simeão Leal, pela editora do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura, em 1952, sua primeira publicação no gênero. Os seis contos que enfeixam a obra, “Mistério em São Cristóvão”, “Os laços de família”, “Começos de uma fortuna”, “Amor”, “Uma galinha” e “O jantar”, formam um conjunto estético e temático coeso, alguns deles, como nota Renard Perez, foram produzidos entre 1946 a 1949, quando Clarice morava em Berna, outros posteriormente no Rio de Janeiro. Em 1959, Alguns contos são publicados na revista Senhor, proeminente veículo disseminador de arte, cultura e literatura, no qual transitavam nomes como Drummond, Cabral, Bandeiram entre outros, o que conferia à Clarice uma entrada promissora na cena literária. No ano seguinte, esses e outros contos são reeditados com o título Laços de família, pela Editora Francisco Alves. Tendo publicado em diferentes periódicos, como as revistas Vamos Ler! e Dom Casmurro, o periódico Pan e jornal Folha de Minas, de Belo Horizonte. “O triunfo”1, primeiro conto de sua autoria, veio a ser publicado a 25 de maio de 1940, no periódico Pan; “Eu e Jimmy”, em 10 de outubro de 1940, “Trecho”, que data de 9 de janeiro de 1947, ambos em Vamos ler!, revista pertencente ao jornal A noite; e “Cartas a Hermengardo”, 1  Em nota sobre as primeiras publicações de Clarice Lispector, a amiga e biógrafa, Nádia Battella Gotlib, contesta, com base em uma entrevista de Clarice, concedida ao MIS-RJ, e datada de 20 de outubro de 1976: “Essa informação não coincide com a que nos foi legada pela própria escritora, num dos seus depoimentos, em que aponta um outro periódico como espaço da sua primeira publicação” (Cf. GOTLIB, 2013, p. 174).

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em 30 de agosto de 1941, publicado pela revista Dom Casmurro. Os três contos permaneceram inéditos em livro até a edição da coletânea Outros escritos, organizada por Montero e Manzo (2005); as organizadoras informam que na mesma época Clarice envia um volume contos para um concurso promovido pela editora José Olympio, mas que, por motivos desconhecidos, os contos acabam não chegando à editora e ficam fora da premiação. Com exceção de “Mocinha”, publicado em 1941 e inserido em A legião estrangeira, de 1964, com o título de “Viagem a Petrópolis”, todos os outros contos permaneceriam inéditos em livro até 1979, com a publicação de A bela e a fera (MONTERO; MANZO, 2005, p. 10). É esse o contexto da história literária brasileira que metaboliza, por um lado, o zênite das conquistas do romance de 30 e suas soluções socioideológicas e estéticas de base neonaturalista, nas quais assumiam especial relevo as obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo, José Américo de Almeida, Lúcia Miguel Pereira, o primeiro Jorge Amado; e de outro, o mainstream da prosa intimista ou psicológica e sua vocação à densidade no trato de temas como as dilacerações existenciais em escritores como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, a solução espiritualista na obra da ainda desconhecida Adalgisa Nery ou de José Geraldo Vieira, Ivan Pedro de Martins (que estrearia também nos anos 1940), Aureliano de Figueiredo Pinto (inédito até os anos 1970), o entranhado metafísico e social de Octávio de Faria, e, claro a mineiridade transcendente da obra de Guimarães Rosa, cujas peculiaridades que em outro autor, também mineiro e seu contemporâneo, como Agripa Vasconcelos, poderiam denotar um regionalismo tardio, alcançariam uma figuração que a transcende e universaliza. Como aponta Bueno (2015),

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Toda a história do romance de 30 procura mostrar como, no interior da década, há um movimento contínuo de um estado de dúvida — ainda herdeiro da influência do ceticismo de Anatole France — até outro estado dúvida — este posterior ao grande debate político, expresso numa forte polarização direita-esquerda, e às portas da Grande Guerra que, todos tinham certeza, decidiria a questão. O romance social ou proletário foi quantitativamente dominante na década, mas seu prestígio teve a tendência de diminuir a partir de um momento de auge em 1933. O romance psicológico, seu antagonista, ao contrário foi menos numeroso, mas seu prestígio foi se consolidando com o correr dos anos (BUENO, 2015, p. 15).

Clarice Lispector soube valer-se de um senso de antecipação do estrato psicológico para alçado à prosa, posto que, como analisa Bosi (1975), no balanço que faz da contística das últimas décadas, em Situação e forma do conto brasileiro contemporâneo, [...] a versão existencial que do “mundo” procura dar Clarice Lispector, [...] o espírito paira inquieto sobre as coisas e as pessoas e, sabendo que sentido lhes atribuir, faz da vida uma constante perplexidade. A que não responde o discurso psicológico simples, julgado rotineiro, falseador. Então, é preciso descobrir, se não reinventar, o caminho que vai do eu narrativo aos objetos. Essa pesquisa é o cerne da invenção temática de Clarice, quer fale de desencontros em família, quer fale de crianças ou de animais opacos e encerrados no seu mistério vital (BOSI, 1975, p. 13-14).

Nesse cenário, Clarice Lispector apresenta o primeiro conto de sua autoria, intitulado “O triunfo”, que viria a ser publicado a 25 de maio de 1940, no periódico “Pan”. Trazendo em potência expedientes narratológicos que vão singularizar sua

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prosa, “que envolvem problemas como o tratamento do tempo, a rarefação do epos e a espectralização das personagens”, bem como a “vocação analógica da escritura clariceana” (CAMPOS, 2013, p. 184, 186), o conto narra o drama de Luísa, que, abandonada pelo marido, recurva sobre si mesma, ausculta-se intensa e melancolicamente, na ânsia de entender as razões do fim do relacionamento. No decorrer da narrativa, a protagonista acaba por encontrar uma força interior matizada de ilusão e idealismo, capaz de levá-la a acreditar na volta do marido. O que poderia encerrar um exercício narrativo fruto possivelmente das leituras que “continuavam sendo feitas com voracidade e sem a mínima orientação”, intercalando “romance para mocinhas com Dostoievski e Hermann Hesse” (FERREIRA, 1999, p. 64), explicita a orientação medular da narrativa clariceana: a confluência entre a predileção pelo narrador onisciente, o emprego do sumário, a ambientação reflexa e o tempo subjetivado que potencializam os índices construção da personagem, como se pode observar nos excertos que abrem as primeiras cenas do conto: O relógio bate 9 horas. Uma pancada alta, sonora, seguida de uma badalada suave, um eco. Depois, o silêncio. A clara mancha de sol se estende aos poucos pela relva do jardim. Vem subindo pelo muro vermelho da casa, fazendo brilhar a trepadeira em mil luzes de orvalho. Encontra uma abertura, a janela. Penetra. E apodera-se de repente do aposento, burlando a vigilância da cortina leve. Luísa continua imóvel, estendida sobre os lençóis revoltos, os cabelos espalhados no travesseiro. Um braço cá, outro lá, crucificada pela lassidão. O calor do sol e sua claridade enchem o quarto. [...] Aos poucos o dia vai-lhe entrando pelo corpo. [...] De novo, silêncio. Diverte-se um momento escutando-o. É absoluto, como de morte. [...] De repente seus olhos crescem. Luísa acha-se sentada na cama, com um estremecimento por todo o corpo. Olha com os olhos, com a cabeça, com todos os

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nervos, a outra cama do aposento. Está vazia. [...] Rememora a tarde anterior e a noite, a atormentada e longa noite [...]. Ele foi embora, ontem à tarde. [...] O silêncio da casa estava explicado. [...] E a casa ficara em silêncio. Ela parada no quarto, como se tivesse extraído de seu corpo toda a alma. [...] Mas o silêncio se prolongara infinitamente [...]. Arrastava consigo um vácuo imenso na cabeça e no peito (LISPECTOR, 2016, p. 27, 28, 29).

Dentre outros elementos, decorre sobretudo da insistência à elaboração da imagem do vazio e do silêncio a construção da espacialidade, cuja ambientação potencializa a situação dramática a partir da focalização da personagem, que, “a partir de sua percepção ou ponto de vista, constrói o ambiente” (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 44). Não raro, as relações intrínsecas entre o universo subjetivo e a condições sociais da personagem clariceana, tanto no conto como no romance, serão moldadas, em grande medida, pela projeção do espaço ficcional. Essa chave interpretativa corrobora abordagens feministas que visualizam a subalternidade feminina e sua necessidade (e carência) de expressão da subjetividade, mormente de cunho erótico (ARÊAS, 2005), em um mundo em que se encontra mormente condenada ao silenciamento. Assim, o conto inaugural opera uma metáfora da conquista do território interior, com sua geografia recortada pelas desilusões amorosas, pelos encontros e desencontros com o próprio eu narrado, no palpitar da substância de uma narrativa adolescente, “caótica, intensa, inteiramente fora da realidade da vida” (LISPECTOR, 1977), como confessaria Clarice, na última entrevista, concedida a Júlio Lerner, meses antes de morrer, em fevereiro de 1977. O triunfo não se prende à uma lógica de causalidade para justificar o conflito conjugal que culmina na partida do homem, mas, antes, rarefaz o enredo em função da ênfase a um repertório de “apego a ‘sensações’ ou ‘impressões’,

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ao não acontecimento, para se deter em momentos fisgados dessa linha de continuidade temporal, em recortes fragmentados do real” (GOTLIB, 2013, p. 83). Há, ainda, uma última característica a se pontuar no conto e que constituirá uma das assinaturas estéticas que “mais insistentemente se têm imposto como traço definidor para a compreensão do modo escritural clariceano”, como define Campos (2013, p. 185): a “transfiguração epifânica” (CAMPOS, 2013, p. 185, 186). Por sobejamente conhecido, o conceito de epifania em Clarice Lispector nos desobriga a uma exaustiva explanação; mas convém evocar o clássico trabalho de Olga de Sá (1979), que reconstitui esse conceito-chave na recepção crítica da obra de Clarice, desde o primeiro registro em Sérgio Milliet, ainda nos anos 1950, quando o crítico propunha tratar-se da “revelação informe de uma coisa essencial que de repente se fixa” (SÁ, 1979, p. 45), até as elaborações mais acuradas da crítica dos anos 1970, sobretudo as de Affonso Romano de Sant’Anna (2012), responsáveis por sedimentar a definição que o termo assume na prosa de Clarice Lispector. Na autora, “o sentido de epifania se perfaz em todos os níveis: a revelação é o que autenticamente se narra em seus contos e romances [...], a partir de experiências rotineiras” (SANT’ANNA, 2012, p. 271), como ocorre em O triunfo, ainda que mais tênue e sutilmente, uma forma de preliminar de epifania, como pode inferir no fragmento: A sala de jantar estava às escuras, úmida e abafada. Abre as janelas de uma vez. E a claridade penetra num ímpeto. O ar novo entra rápido, toca em tudo, acena a cortina clara. Parece que até o relógio bate mais vigorosamente. Luísa queda-se ligeiramente surpresa. Há tanto encanto nesse aposento alegre. Nessas coisas de súbito aclaradas e revivescidas (LISPECTOR, 2016, p. 31, grifo da autora).

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É a partir desse momento de súbita “iluminação”, em que a luz do ambiente se transfigura de melancólica a expectante, que se observa também uma transformação no pathos da narrativa: a personagem é afetada subitamente por uma mudança em seu comportamento. Luísa experimenta uma outra percepção da realidade do abandono, por meio de um erotismo difuso e sutil, narrada em imagens sinestésicas no encerramento do conto: Ele tinha ido embora. E as coisas não estavam de todo destituídas de encanto. Tinham vida própria. [...] Preparou o café e tomou-o. E como nada tivesse para fazer e temesse pensar, pegou umas peças de roupa estendidas para a lavagem e foi para o fundo do quintal onde havia um grande tanque. Arregaçou as mangas e as calças do pijama e começou a esfrega-las com sabão. [...] Parou, desfranziu a testa e ficou olhando para a frente. Ela, tão espiritualizada pela companhia daquele homem. [...] Luísa terminou a tarefa. Recendia toda ao cheiro áspero e simples do sabão. [...] Subitamente surgiu-lhe uma ideia. Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim, e a água gelada correu-lhe pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio. Aquele banho improvisado fazia-a rir de prazer. [...] O romance inacabado, a confissão achada. [..] De repente, teve um sorriso, um pensamento. Ele voltaria. Ele voltaria. [...] Um morno raio de sol envolveu-a. Ele voltaria, porque ela era mais forte (LISPECTOR, 2016, p. 32).

Das configurações formais mais simples, focalizando o enredo, a linearidade diegética e a personagem menos densamente construída das primeiras produções à sofisticação deliberada, em que os expedientes narrativos sublinham ainda mais intensivamente o diálogo entre os gêneros, operando-se a dissolução do relato, os contos explicitam a percepção do caráter metaficcional, suas descobertas, impasses e interrogações. Daí que, como toda a literatura de Clarice Lispector, no processo

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de leitura descortina-se sempre uma dupla cosmovisão da obra, a da narrativa e si mesma e a da concepção da tessitura da obra, por apresentar, como ensina Cortázar (1999) uma necessidade de escolher uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto (CORTÁZAR, 1999, p. 351, grifo do autor).

A lição de Cortázar (1999) que reverbera no conto clariceano aponta para “aquela misteriosa propriedade de irradiar algo para além de si mesmo, a ponto de transformar um vulgar episódio doméstico [...] no resumo implacável de determinada condição humana” (CORTÁZAR, 1999, p. 352) que surge de “uma explosão de energia espiritual que ilumine bruscamente algo que chega muito além do pequeno e às vezes miserável episódio que conta” (CORTÁZAR, 1999, p. 352). Além desses aspectos, o conto realiza o “sequestro temporário do leitor” (CORTÁZAR, 1999, p. 357), por meio dos elementos formais e expressivos como a intensidade, que “consiste na eliminação de todas as ideias ou situações intermediárias, de todos os recheios ou frases de transição” (CORTÁZAR, 1999, p. 357), e a tensão, quando “ainda estamos muito longe de saber o que vai ocorrer no conto e, entretanto, não nos podemos subtrair à sua atmosfera” (CORTÁZAR, 1999, p. 357). A bela e a fera é o último e póstumo livro de contos de Clarice Lispector, organizado pelo filho, Paulo Gurgel Valente, responsável pelo espólio da mãe, dois anos depois de sua morte. Segmentado em duas seções, a obra reúne, na primeira parte, os contos História interrompida, Gertrudes pede um conselho,

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Obsessão, O delírio, A fuga e Mais dois bêbedos, escritos entre 1940-1941; e Um dia a menos e A bela e a fera ou A ferida grande demais encerram a segunda parte, derradeiros textos da autora, escritos em seus últimos meses de vida, no ano de 1977, cujos manuscritos, segundo a nota que abre a obra, assinada por Paulo G. Valente, foram ordenados por Olga Borelli, amiga e biógrafa de Clarice Lispector. O título, ainda de acordo com a nota, foi uma escolha editorial do próprio filho (LISPECTOR, 1979, p. 9). Gotlib (2013) lembra que é da época em que Clarice cursava direito o envio de um volume de contos para o concurso da livraria e editora José Olympio, que, segundo informaria a própria autora, “tenho ainda uma cópia comigo, mas o livro não vale nada” (LISPECTOR apud GOTLIB, 2013, p. 176). Mais tarde, ainda segundo Nádia, Clarice entrega a Affonso Romano de Sant’Anna um volume desses primeiros contos, que comenta em entrevista: “Uma vez ela me emprestou uns contos que tinha escrito com quatorze anos, uns inéditos, para eu ler, para saber o que eu achava, se dava para publicar. [...] Alguns pontos lá eram muito curiosos” (SANT’ANNA apud GOTLIB, 2013, p. 176). A crítica acredita que talvez se trate mesmo de A bela e a fera, em que seis contos da fase inaugural são publicados com mais dois últimos, escritos em 1977. O volume, lembra Gotlib (2013), inclui a “nota” assinada por Clarice, em referência a um livro de contos “nunca publicado” e, a partir do que “pode-se afirmar, portanto, que a produção literária de Clarice nasce para o público concomitantemente a uma atividade jornalística” (GOTLIB, 2013, p. 176-177), o que, para a biógrafa, “efetiva-se um intercâmbio de recursos entre tais modos de trabalhar a linguagem — o literário e o jornalístico — que se autocomplementam” (GOTLIB, 2013, p. 176-177). E é a partir do título atribuído ao livro que gostaríamos de traçar nossa incursão de leitura da obra, tomando inicialmente como base a ideia de Genette (2009, p. 70) sobre sua titulolo-

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gia, segundo a qual, as funções da “instância titular”, a saber, “a designação, a indicação do conteúdo e a sedução do público” (p. 73), operam na sutileza da apresentação da obra, comportando a disposição que favorece evidentemente a percepção do livro. Com Genette (2009, p. 73), para quem o título promove “relações simbólicas [...] e sempre depende da complacência hermenêutica do receptor”, consideramos que o título A bela e a fera, em parte homônimo ao conto que encerra a segunda parte da coletânea, estabelece uma relação semântica com a obra, constituindo, assim, em um “título temático” (p. 77). Por título temático, Genette (2009, p. 77), propõe “uma sinédoque generalizadora que será, se quisermos, uma homenagem à importância do tema no “conteúdo” de uma obra” [que] “exige uma análise semântica singular”. Essa natureza de titulação contempla também uma outra característica, segundo Genette (2009, p. 78), qual seja, a de “ordem constitutivamente simbólica, é o tipo metafórico” [...], e, claro, a relação temática pode ser ambígua e aberta à interpretação” (p. 79), na qual pode-se encontrar casos de “encavalamento entre metáfora e metonímia, e nada pode impedir um [...] sentido simbólico” (p. 79). Tomando, assim, que “a própria forma titular pode também ter em vista a ambiguidade, pela presença de uma ou mais palavras de duplo sentido” (GENETTE, 2009, p. 80), lemos no título um binômio em que a primeira seção, “A bela”, remete à primeira seção do livro, comportando os seis primeiros contos; e a segunda parte do título, “A fera”, a segunda parte, com os dois contos concluintes, ambas operando, assim, como metáforas/sinédoques da obra. Dessa forma, a metáfora/ sinédoque da “bela” espraia-se ao conjunto de narradores e personagens da primeira seção, considerando-se que todos os contos apresentam elementos constitutivos comuns, como o foco narrativo ou a personagem protagonista feminina. De outra parte, a metaforicidade da “fera” encaminha os dois úl-

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timos contos, cujo núcleo protagonista também é feminino, à possibilidade de uma leitura ainda mais exofórica: ao tematizar a morte, sobretudo em Um dia a menos, o último conto escrito por Clarice, e o penúltimo, na disposição da obra, A bela e fera pode ser tomado como um livro de sopro elegíaco. Borelli (1981) confirma que Clarice redigia notas que deixava para depois unir e com elas construir sua ficção — muitas dessas notas acumularam-se nos meses que antecederam sua morte, e, por meio delas, “é possível entender o processo criativo da autora pois elas demonstram que a melhor maneira de ler seus livros não é aquela dita “racional”: requer-se, antes, uma empatia natural” (s.p.). Poderíamos nos valer desse expediente, como de resto de uma passagem de Um sopro de vida, em que Angela confessa o modo como gostaria que sua obra fosse lida: “Não ler como um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional” (LISPECTOR, 1999, p. 21), uma vez que a escrita clariceana arrasta consigo a sutileza e nos afastar de caminhos pré-escolhidos, de nos obrigar a também vive a experiência de uma criação quando se pretende apenas escrever sob o peso dessa obra — e o imprevisto pode nos surpreender a cada momento, deixando-nos, inadvertidamente, em vias de perdição. Não sem, todavia, o aval de Clarice, que também afirmou, “perder-se também é caminho”, em algum momento de A cidade sitiada (LISPECTOR, 1998, p. 186). E esse risco torna-se, agora, impossível não ser vivido em cada leitura, em cada interpretação, como um risco em devir. Com Deleuze e Guattari (1976), pensamos que a leitura desses textos inaugurais e finais de Clarice Lispector não são “nunca um exercício erudito em busca dos significados, menos ainda um exercício altamente textual em busca de um significante, mas um uso produtivo da máquina literária” (p. 138, grifo nosso), da qual deriva “uma montagem de máquinas desejantes, exercício esquizoide que retira do texto sua potência revolu-

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cionária” (DELUZE; GUATTARI, 1976, p. 138). Deles podem ser depreendidas algumas linhas de força estética que marcariam o gesto criador clariceano, como uma “escritura menor como marca de singularidade, de deslocamento, de descontinuidade; à procura de uma saída por onde fazer fugir todas as categorias, identidades, diluir as fronteiras, o gênero; enfim, o literário.” (CURI, 2001, p. 37, grifo da autora). Tomado à distância, os contos de A bela e a fera apontam para as algumas constantes da prosa de Clarice Lispector, funcionando como um laboratório ficcional no qual o tom intimista, confessional e subjetivo, a construção da personagem feminina que anseia por uma liberdade e autonomia, o recurso do fluxo de consciência, do monólogo interior, a consciência de busca e encontro de uma linguagem — e seu reverso, uma crítica contundente a sim mesma e ao que vai escrevendo, em um eterno conflito com a palavra em sua densidade poética, aponta também para a revelação — que será cunhada de “epifania” — de um certo medo com relação ao imprevisível, ao ainda não revelado do jogo metaficcional, como o narrador de A hora da estrela confessa: “Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, joias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final” (LISPECTOR, 1999, p. 98). Em alguma medida, o conjunto desses expedientes expressionais que se amalgamam em A bela e a fera podem ser sintetizados em três aspectos fundamentais reconhecidos por Bosi (2013), como sendo “o uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo de consciência, a ruptura com o enredo factual” (p. 452), constituindo a complexidade de sua abstração, cuja exacerbação da interioridade subjetiva conotam-se pelos “fragmentos em que se estilhava a intuição da escritora à unidade da consciência que se esforça por transmitir os momentos da sua iluminação” (BOSI, 2013, p. 453). Também desses aspectos fundantes do ato criador clariceano se ocupou Nunes

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(1995), ao denominá-lo de “narrativa monocêntrica”, em que pesem “o aprofundamento introspectivo, a alternância temporal dos episódios e o caráter inacabado da narrativa” (p. 19), que emolduram as vivências e os acontecimentos exteriores, ainda que escassos e insignificantes, “exprimem o conflito dramático que cinde a personagem, interiormente dividida e em oposição aos outros” (NUNES, 1995, p. 20). Também se podem buscar, mais nitidamente em registros paratextuais de Clarice, outros elementos que apontem de modo mais direto e fora da obra ficcional, para além, portanto, das malhas ficcionais, essa concepção de escritura, para além do gênero — ainda que a autora tenha se manifestado mais recorrentemente sobre o romance: “Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance. [...] Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta. [...] Embora apresentando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá” (LISPECTOR, 1981, p. 103).

Entre agosto de 1967 e dezembro de 1973, envolvida pelo ofício de cronista no Jornal do Brasil e instigada pelas inquietantes interrogações que emergiam da face poliédrica que cada vez mais assumia entre os gêneros, Clarice reflete, anota, indaga, sugere e intui algumas das concepções de escrita literária que delinearão sua obra. Das duzentas e trinta e quatro crônicas, posteriormente uma das confissões mais contundentes em Clarice Lispector sobre o gesto criador ideia do gesto da escrita como “maldição” comparece no fragmento “Ao linotipista”, datado de 4 de fevereiro de 1968, e reiterado em “Escrever”, de 14 de setembro do mesmo ano: “Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. [...] é uma maldição, mas uma maldição que salva. [...] escrever aquilo que eventualmente

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pode ser transformar num conto ou num romance” (LISPECTOR, 1999, p. 134). Na crônica “Temas que morrem”, de 24 de maio de 1969, Clarice trata da escrita como um “impulso puro — mesmo sem tema”, dotada de um mistério; A própria autora, segundo sua confidente Olga Borelli (1981, p. 53), sentia-se totalmente isolada nas letras brasileiras; outra dificuldade está em seus textos recusarem interpretações excludentes, seja a abordagem existencial e metafísica, terreno ao qual desde sempre sua escritura foi identificada, seja a visada social e histórica dos estudos mais recentes. Tal cisão não faz jus ao que teima em ser dialeticamente íntegro. Eu e Jimmy pode ser considerado uma das primeiras narrativas de tom essencialmente feminista de Clarice Lispector, tendo sido publicado em 1940, no jornal Folha de Minas, sem autorização da autora (MONTERO; MANZO, 2005, p. 16). Conto em tom memorialístico, com um narrador homodiegético feminino, representa o conflito gerado pela tensão no interior de uma teoria filosófica e do amor e do erotismo. A protagonista-narradora, uma estudante de direito, no conto nomeada apenas por “Eu”, narra o caso amoroso e toda sua volubilidade por Jimmy, um “rebelde nato”, com quem estuda filosofia, e que concebe o amor como uma condição “natural” da experiência humana: “se duas pessoas gostam nada há a fazer senão amarem-se” (LISPECTOR, 2016, p. 78). Em sua relação amorosa com Jimmy e de sua tese sobre o amor, constatava as diferenças e as relações de poder que marcavam as relações de gênero, nas quais a visão e o discurso masculino se sobrepõem ao feminino, como na referência ao casamento dos próprios pais, em que a mãe se resignou a um papel passivo nos moldes tradicionais: Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres. Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com

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pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos próprios, sobre... liberdade e igualdade das mulheres. O mal foi a coincidência de matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose e borda e canta no piano e faz bolinhos aos sábados, tudo pontualmente e com alegria (LISPECTOR, 2016, p. 78-79).

A linguagem e estrutura empregadas no conto aludem à relação estreita com as representações de gênero de que se ocupa. Marcadamente irônico, o conto põe na berlinda marcas historicamente opacas e sinuosas que caracterizam as relações de gênero, ao apresentar uma narradora não nomeada, aferindo-lhe um estatuto de identificação universal da condição feminina. Ou quando a personagem confessa ao namorado nutrir uma paixão sapiossexual por D., seu examinador, eivada de erotismo: Quando me falava, sua voz torva-se misteriosamente áspera e morna. E eu fazia um esforço enorme para não fechar os olhos e não morrer de alegria. [...] E encantava-me sua voz, falando-me de ideias absolutamente não jimiescas. Tudo isso envolvido de crepúsculo, no jardim silencioso e frio (LISPECTOR, 2016, p. 80).

Apaixonada pelas orientações filosóficas do examinador sobre a dialética hegeliana2, ela a aplica à ideia de amor e erotismo como uma forma de “antítese” contraposta à tese do “amor natural”, previsível, na visão de Jimmy:

2  Para Hegel, a dialética constitui um processo abstrato sobre o conhecimento, partindo de uma ideia base que é chamada de tese, contrariada por outra ideia, chamada de antítese (negação) e chegando a uma conclusão chamada de síntese (unidade e certificação de ambas) que passa a ser uma nova tese, por isso, espiral, algo que não tem fim, mas uma evolução de ideia (ABBAGNANO, 2003, p. 273).

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Respondi-lhe risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos pela boca do meu examinador. Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que Jimmy não entendeu nada, porque Hegel era um ponto do fim do programa e nós nunca chegamos até lá (LISPECTOR, 2016, p. 80).

Após a confissão que culmina em um clima beligerante e melodramático com Jimmy, a narradora partilha o caso à avó, que argumenta com um senso feminista para seu tempo: “os homens costumam construir teorias para si e outras para as mulheres. [...] Minha, querida, os homens são uns animais” (LISPECTOR, 2016, p. 80). No discurso da avó, o jogo de palavras, com um tom irônico, ao inverter as palavras de Jimmy. O epílogo encerra uma fina ironia em duas direções: a primeira, no nível dos valores morais da narrativa, posto que a narradora, “não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana” (LISPECTOR, 2016, p. 80), pretendendo ficar com os dois, ao mesmo tempo; a segunda, como uma das marcas que perseguirão a personagem feminina clariceana, o impasse, que, de regra, abre a possibilidade de uma nova tese: Voltávamos, assim, ao ponto de partida? Não achei que esse foi um argumento, mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não há mesmo nada a fazer senão viver (LISPECTOR, 2016, p. 81).

A construção da narrativa ainda não está marcada pelas rupturas que poderão ser notadas em contos escritos mais tarde; mesmo assim, percebe-se a preocupação da narradora em buscar certa ordenação lógica que dificilmente se sustenta diante da natureza fugidia da matéria narrada, pois como se vê,

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o conto apresenta um final aberto. Além disso, mesmo que en passant, a questão metaficcional é mencionada na forma de uma digressão da narradora para quem “os pensamentos eram difusos e se apresentavam com a incoerência que transmiti agora ao papel” (LISPECTOR, 2016, p. 80). De aproximadamente uma centena de contos criados por Clarice, Cartas a Hermengardo, publicado no periódico Dom Casmurro, em 1941, é o único na forma epistolar. O conto é arquitetado por uma série de cinco cartas escritas e nunca enviadas pela personagem-narradora Idalina a um certo José, a quem ela prefere chamar, sem uma explicação aparente, de Hermengardo, interlocutor imaginário, ausente e idealizado pela protagonista, a partir de seus desejos, devaneios e percepções. As cartas não apresentam algumas marcas temporais do gênero, como a datação, e, excetuando-se um ou outro elemento prosaico, não noticiam eventos, limitando-se à uma longa divagação de cunho filosófico e metaficcional, em estilo expressionista. Na primeira carta, a personagem indicia sua preocupação com o modo de narrar [-se], por meio de uma linguagem que seja capaz de projetar a mulher feita palavra, avento no ato de escrever um terreno de possibilidades, oscilando do inconformismo melancólico à revolta e depois ao desalento, a aceitação do vazio da existência e a espera da morte: “[...]será que outras pessoas sentem o que eu sinto? aposto que não. Estás vendo, amor, como se pode chegar a um de desgraça tal em que se ama a própria ferida” (LISPECTOR, 2016, p. 104). Na segunda carta, a narradora confessa seu estado de ânimo marcado pelo “spleen”, em uma clara alusão ao tema do tedium vitae de Baudelaire, embora recuse a palavra: “Só não vejo que spleen, isto é, essa palavra, pareça com o que sinto. O que eu sinto é o que eu sinto, e acabou-se: está misturado comigo. E como é que eu posso fazer de mim uma palavra?” (LISPECTOR, 2016, p. 105). O tema da melancolia reaparecerá em A paixão segundo

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G.H.: “Porque a coisa nua é tão tediosa. Ah, então era por isso que eu sempre havia tido uma espécie de amor pelo tédio. [...] Mas o tédio — o tédio fora a única forma que eu pudera sentir o atonal” (LISPECTOR, 2009, p. 141). Clarice indicia aqui a desconfiança em torno do sentido abarcável da palavra que marcará sua obra literária e suas reflexões em torno da relação entre o eu e o mundo. Acredita que a palavra, matéria da criação, sempre guarda uma camada de mistério cujo sentido escapa, pela ambiguidade, intuição e da revelação que a impulsiona: “A palavra é o meu domínio sobre o mundo”, escreveria em uma crônica (LISPECTOR, 1999, p. 101); “ a palavra me maravilha” (BORELLI, 1981, p. 35), mas reconhecia “o uso abusivo da palavra” (p. 65), que às vezes confessa procurar conter: “Em mim a criação se processa numa mistura de palavra, ideia. É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada” (BORELLI, 1981, p. 77). A carta seguinte conota um aprofundamento confessional, o pathos gira em torno do apelo metafísico da personagem que parece, aos poucos, sentindo a perda da lucidez, e diante da qual a saída é Deus: Quer dizer que o mal me invadiu e alagou todos os meus caminhos claros. Nem tu, teu nome me salvarão agora. Mas eu tenho confiança Nele e na sua compreensão absoluta. No dia do Juízo Final eu cantarei a canção dos pinheiros de Roma diante de Deus. Sem palavras, e assim eu Lhe levarei o segredo inteiro e puro para receber uma explicação. E Ele me entenderá tanto, que não usará de palavras: cantará outra canção (LISPECTOR, 2016, p. 107).

Inaugural, este é o primeiro texto clariceano em que a figuração do tema Deus se converte em um leitmotiv clariceano; doravante e até às últimas obras, as personagens e narradores de Clarice lançarão interrogações diferentes e complexas acer-

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ca da imagem de Deus, ora questionando sua própria ontologia, como em Um sopro de vida (1999): “Será que Deus sabe que existe?”; ou subvertendo a tradição dogmática: “ainda por cima somos obrigados a amar a Deus” (LISPECTOR, 1999, p. 137); ou, ainda, na união mística: Abençoa-me, Deus: estou te estendendo uma boca arranhada pela febre de uma longa sede [...]. Vem e plenifica-me toda com tua grande luz sossegada, Amém, [...] Não preciso mais pedir, Deus dá. [...] Alguma coisa me tocou no ombro e me chamou e eu não reconheci que era deus e tive medo da grande solidão e do grande silêncio que se abrem na alma quando esta vai recebê-lo” (LISPECTOR, 1999, p. 137).

Esboçando um retrato do lado místico da personalidade real e ficcional da amiga, Olga Borelli entende que a dimensão mística presente em algumas obras de Clarice, “sem qualquer vinculação religiosa explícita, dava a impressão de sempre se achar em estado de questionamento: Deus, morte, matéria, espírito, eram objeto de interrogações, de perplexidades” (BORELLI, 1981, p. 34). Impossível delinear com precisão as crenças religiosas de Lispector, “o que fica é o nítido traçado de seu itinerário espiritual, cujo melhor testemunho é o seu Texto” (BORELLI, 1981, p. 34), como o exemplo da prece que recolhe nos derradeiros dias de Clarice. Nela oscilam o reconhecimento do vazio que leva à contemplação, a resignação diante do reconhecimento da finitude, e, por fim, o êxtase místico: Fiz o que era mais urgente: uma prece. Eu só rezo porque palavras me sustentam. Eu só rezo porque a palavra me maravilha. Quem reza, reza para si próprio chamando-se de outro nome. A chama da vela. O fogo me faz rezar. Tenho secreta adoração pagã de flama vermelha e amarela.

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A vida seria insuportável sem o sonho. É que às vezes não se tem Mesmo mais nada e só restam os brandos e profundos sonhos Que mais parecem uma prece. A realização está no próprio ato De apenas sonhar É preciso ter muita coragem para ir ao fundo da vida. Porque no fundo da vida nada acontece ao homem, ele só contempla. Quando eu fico sem nenhuma palavra no pensamento E sem imagem visual interna — eu chamo isso de meditar. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa. Um mundo de cair em êxtase. Se eu leio isso três vezes em seguida caio em êxtase (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 34-35).

Expressa G.H.: “De um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim. Sei, Ele queria que eu fosse o seu igual, e que a Ele me igualasse por um amor de que eu não era capaz” (LISPECTOR, 2009, p. 126). “Oh Deus, eu me sentia batizada pelo mundo. Eu botara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. [...] Tudo estará em mim se eu não for” (LISPECTOR, 2009, p. 178), como ápice desse encontro final da realidade última da matéria viva com transcendência, alegorizando a eucaristia cristã. E em A hora da estrela, última obra de Clarice, lançada pouco antes de sua morte, Cixous (2017) contempla um texto “escrito com as últimas forças, com o último alento” (p. 131); para a crítica francesa, “há um texto que é como um salmo discreto, uma canção de graças à morte. Este texto se intitula A hora da estrela” (CIXOUS, 2017, p. 132). As duas últimas cartas do conto discorrem sobre a paixão e seu ônus, em um tom que oscila entre o conselho e desalento: “Eu queria te dizer que ter paixões não é viver belamente, mas

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sofrer inutilmente. [...] A paixão destrói porque desassocia. [...] o ‘depois’ da paixão tem gosto de cigarro” (LISPECTOR, 2016, p. 108, 109, 110). A confissão de Idalina deseja aconselhar a José/ Hermengardo a evitar incorrer nas mesmas paixões e sentimentos. Não enviadas, as cartas parecem assumir a condição de um diário íntimo, o destinatário passa à condição de narratário de si mesmo, alter ego de Idalina. Na última carta, a Quinta sinfonia de Beethoven alegoriza o sentimento expresso por Idalina de “salvar-se a si mesmo” pela desistência da posse: Fecha os olhos e os ouvidos [...] para que possas pensar na Quinta sinfonia de Beethoven. Vê, e isto será mais perfeito ainda, se consegues não pensar por palavras, mas criar um estado de sentimento. Vê se podes parar todo o turbilhão e deixar uma clareira para Quinta sinfonia. É tão bela (LISPECTOR, 2016, p. 111).

Nesses contos iniciais, é possível entrever uma certa camada trágica que atravessa o cotidiano banal das personagens, como afirma Sá (1979, p. 40), Clarice os vê “como seres afogados na banalidade”, constituindo-se “símbolos, personificações, índices de mediania e sua verossimilhança deve ser referida a eu-coletivos [...]” (SÁ, 1979, p. 40); em outras palavras, trata-se de personagens difíceis de serem delineados, não se enquadrando na classificação de “tipos” nem psicologicamente densos. Outros elementos que indicariam as características fundamentais do gênero, como o núcleo episódico conflitivo, que marcaria a maturidade da contista (NUNES, 1995, p. 84), comparecem nessa fase ainda de forma embrionária ou experimental, dando mostras, com efeito, da versatilidade dos procedimentos narrativos e seus impasses. Todavia, a potencialização da linguagem, a complexidade da arquitetônica narrativa, a criação de personagens mais densas e o aprimoramento do foco narrativo nos livros seguintes, co-

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meçando por Laços de família, denotando, portanto, as marcas de domínio da forma, não eximem a autora de uma constante indagação sobre gênero, que, no limite, encaminha-se para a negação do próprio gênero, como deixaria registrado: Não sei bem o que é um conto. No entanto, apesar de nebulosamente, sei o que é um anticonto. Nebulosamente. Talvez eu entenda mais o anticonto porque sou antiescritora. Acho que uma pessoa é escritora se escreve quando resolve escrever: quando se propõe um tema ou lhe propõem um enredo. Ou mesmo quando apenas lhe propõem escrever (CLARICE apud BORELLI, 1981, p. 71).

As belas, as feras “Estes são os primeiros e derradeiros contos de Clarice Lispector”, diz Olga Borelli, na orelha da segunda edição de A bela e a fera, publicado pela editora Nova Fronteira, em 1979. Póstumo, trata-se de um livro editado, cujos manuscritos encontram-se no Arquivo Clarice Lispector, da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, RJ. Segundo a transcrição realizada por Benedito Nunes (1988), que consta na edição crítica por ele mesmo coordenada e publicada pela Association Archives de la littérature latino-américaine, os manuscritos compõem-se de vinte laudas de linhas enumeradas da editora Arte Nova, cinco delas rasuradas, em papel jornal; consta autógrafo a tinta azul; uma das laudas em anexo com função de agenda da autora, como se vê no fac-símile:

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Figura 1 – Fac-símile de A bela e a fera. Fonte: Nunes (1988, p. 119).

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O primeiro conto do livro, História interrompida, é memorialístico, narrado in ultimas res, em primeira pessoa, com um foco narrativo feminino e uso da técnica do discurso indireto livre, destacando a predileção ao intimismo e introspecção próprios do monólogo interior e do fluxo de consciência, que se revelarão expedientes constantes em parte considerável da coletânea. Ele era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a entender que seu maior defeito consistia na sua tendência para a destruição. E por isso, dizia, alisando os cabelos negros como quem alisa o pelo macio e quente de um gatinho, por isso é que sua vida se resumia num monte de cacos: uns brilhantes, outros baços, uns alegres, outros como um “pedaço de hora perdida”, sem significação, uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já espedaçados (LISPECTOR, 1979, p. 15).

Ainda que não apresente uma marca temporal concreta — daí a metáfora da interrupção abrupta no título —, o conto explicita tratar-se de uma memória afetiva temporalizada na interpenetração que os dois quadros narrativos apresentam, a partir do fluxo de consciência. O primeiro e mais extenso é o plano da memória propriamente dita, que inicia com o resgate das vivências da personagem-narradora, quando, aos vinte e dois anos — dado reiteradamente marcado pela personagem -, mantém uma relação amorosa com W., um homem mais velho, e em quem ela vê o retrato de um homem que a seduz pela experiência e pelo ar de mistério: “Uma leve suspeita de W... era um artista, vinha-me à mente” (LISPECTOR, 1979, p. 16). A personagem, que “sentia a natureza em todas as fibras” (LISPECTOR, 1979, p. 16), como metaforiza a inquietude do desejo e a premência da pulsão erótica, encena os conflitos de uma espécie de aprendizagem amorosa:

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Voltei-me para dentro, amolecida pela calma daqueles momentos. Queria dizer-lhe: — Parece que essa é a primeira das horas, mas que depois dela nenhuma se seguirá. Mentalmente ouvi-o responder: — Isso é apenas uma tendência sentimental indefinível, misturada à literatura da moda, muito subjetivista. Daí essa confusão de sentimentos, que não tem verdadeiramente um conteúdo próprio, a não ser seu estado psicológico, muito comum em moças solteiras de sua idade... (LISPCTOR, 1979, p. 16).

Apaixonada, ela decide empreender um jogo de sedução que incluiria sensualidade e ataque, como revela o recurso do fluxo de consciência: O fato é que com W.... eu só conseguiria qualquer coisa, pondo-o em estado de “shock”. Eis como. Dir-lhe-ia (com o vestido azul que me fazia muito mais loura), a vox suave e firme, fixando-o nos olhos: — Tenho pensando muito a nosso respeito e resolvi que só nos resta... Não. Simplesmente. — Vamos nos casar? Não, não. Nada de perguntas. — W..., nós vamos nos casar (LISPECTOR, 1979, p. 19).

O diálogo, contudo, não se efetiva, e a narradora constata tratar-se de um a confusão de sentimentos, uma “febre” (LISPECTOR, 1979, p. 20), diante da qual confessa um gesto simbólico: “Peguei numa folha de papel e enchia-a de alto a baixo: Eternidade. Vida. Mundo. Deus. Eternidade. Vida. Mundo. Deus. Eternidade...” (LISPECTOR, 1979, p. 20). O gesto corpóreo de escrever e a reiteração obsessiva de palavras de um conteúdo metafísico, e o estilo interceptante, marcado pela pontuação, recolhem ao conto um sentido de emoção represa e de impo-

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tência diante de um mecanismo da existência que a narradora confessa não dominar: Essas palavras matavam o sentido de muitos de meus sentimentos e deixavam-me fria por umas semanas, tão minúscula eu me descobria. Mas na verdade eu não queria fiar fria: desejava viver o momento até esgotá-lo. Precisa apenas conquistar um rosto menos afogueado. Sentei-me para uma longa costura. A serenidade foi pouco a pouco voltando. E com ela, uma profunda e emocionante certeza de amor (LISPECTOR, 1979, p. 20).

Sutilmente inserida nessa rememoração, a constatação da narradora, que, pelo distanciamento temporal, substitui o olhar inocente da jovem pela maturidade capaz de reconhecer a impossibilidade de se viver no fluxo linear da expectativa: “Só duas ou três vezes na vida experimenta-se tal sensação e as palavras esperança, felicidade, saudade, a ela se ligam, descobri”. Ainda não se trata, aqui, do fenômeno de despertamento moral e estético da epifania, mas não deixa de constituir, por outro lado, de desconcerto íntimo, apenas anuído pelo silêncio que separa, por um espaço gráfico, o penúltimo parágrafo, quando Mira vem confirmar a notícia da morte de W.: “— Clarinha disse que ele se matou! Se matou com um tiro na cabeça... É verdade, é? É mentira, não é?” (LISPECTOR, 1979, p. 21). O intervalo entre estes dois parágrafos, portanto, pode ser lido como metáfora do tempo que possibilita o debruçar-se sobre o implícito que se estrutura sobre “um imaginário que o representa como memorizado”, nas palavras de Achard (2007, p. 13), que, para a personagem-narradora, indica a linguagem já se manifestando como perda e, ao mesmo tempo, devir. O último parágrafo situa a narrativa em um segundo plano, o do presente da enunciação, e enfatiza esse caráter de tornar-se matéria de memória — afetiva e literária:

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E repentinamente a história se partiu. Nem teve ao menos um fim suave. Terminou com a brusquidão e a falta de lógica de uma bofetada em pleno rosto. Estou cansada e tenho um filho. Não lhe dei o nome de W... E não costumo olhar para trás: tenho em mente ainda o castigo que Deus deu à mulher de Loth. E só escrevi “isso” para ver se conseguia achar uma resposta a perguntas que me torturam, de quando em quando, perturbando minha paz: que sentido teve a passagem de W... pelo mundo? que sentido teve a minha dor? qual o fio que esses fatos a... “Eternidade. Vida. Mundo. Deus.”? (LISPECTOR, 1979, p. 21).

Com um final em aberto, buscando uma cumplicidade com o leitor, pelo recurso da interrogação retórica, o conto deixa entrever, por um lado, camadas sociais e psicológicas que marcarão as personagens clariceanas na obra seguinte, Laços de Família como as donas-de-casa da classe média dos anos 1950 e 1960, tendo como ponto de partida a experiência e o estatuto do feminino no contexto de uma sociedade como a brasileira de então, em seu provincianismo moral e sobretudo patriarcal. Por outro, ao articular a dimensão trágica que encerra o suicídio de W. à forma abrupta com que termina o conto, Clarice apresenta um outro aspecto que depurará em sua obra em torno da figurativização da forma em favor da intencionalidade metaficcional, com uma nota que, arriscaríamos dizer, de biografema: as questões metafísicas elaboradas pela personagem podem reverberar, em alguma medida, o tom elegíaco feito por alguém que, como Clarice, tendo perdido o pai dois meses antes de escrever o conto, realiza diante da morte. Gertrudes pede conselho é o segundo conto da reunião, com foco narrativo heterodiegético e onisciência neutra, apresenta uma narrativa sobre a angústia e a vontade de compreensão da natureza do ser, por parte de uma jovem de dezessete anos que busca compreender seu lugar no mundo. Tuda, a

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jovem protagonista, escreve cartas a uma psiquiatra, pedindo que a receba para uma conversa. O intuito da personagem com tais cartas é estabelecer contato com a doutora e pedir que lhe dê emprego em seu consultório. A inquietação da personagem residia em uma natureza interna de refletir sobre todas as coisas no mundo, nas quais estaria inserido, por também pertencer: Ora sentia uma inquietação sem nome, ora uma calma exagerada e repentina. Tinha frequentemente vontade de chorar, e o que em geral se reduzia à vontade apenas, como se a crise se completasse no desejo. Uns dias, cheia de tédio, enervada e triste. Outros, lânguida como uma gata, embriagando-se com os mesmos acontecimentos. Uma folha caindo, um grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta felicidade. E realmente não a suportava, embora não soubesse propriamente em que consistia essa felicidade. Caía num choro abafado, aliviando-se, com a impressão confusa de que se entregava, a não sei quem e não sei de que forma (LISPECTOR, 1999, p. 20).

Assim é que Tuda se constitui ambiguamente: não se sabe o que a move, mas sua busca por entender-se no mundo, causa uma angústia e um desconforto que, ora gera o riso, ora o choro. O vazio, a carência, o desejo de liberdade e amor corroboram a simbolicidade que incide sobre o nome compactado da personagem sugere: Tuda, representação feminina (im) possível e, por isso mesmo eivada de ironia, para a palavra tudo: “Tudo era confuso e só se exprimia bem na palavra ‘liberdade’ [...]” (LISPECTOR, 1979, p. 27). Por um tempo, Tuda se angustia pela falta de respostas das cartas que escreve, mas um dia é surpreendida com uma resposta que lhe convida a comparecer no local em que a doutora atende. A doutora, outra personagem feminina, é uma presença importante na narrativa, uma vez que irá contrapor dois momentos da figuração do feminino no conto: Tuda, a

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jovem, incompreendida; e a psiquiatra, capaz de compreender as inquietações humanas, e, nesse caso, especificamente, as de uma mulher jovem, o que fora um dia, pensando em aspectos biológicos da natureza humana. Clarice representa em Tuda uma personagem feminina que, apesar de jovem, tece profundas reflexões sobre a natureza do ser: “Aos vinte anos seria uma mulher caminhando sobre a planície desconhecida...Uma mulher! O poder oculto dessa palavra. Porque afinal, pensou, ela...ela existia” (LISPECTOR, 1979, p. 121). Nesse sentido, Tuda é uma figura excêntrica, por deparar-se com inquietações tão singulares, se considerada sua pouca idade. No seu interior, inquieta indagações que questionam a eternidade do ser. Os limites da liberdade. Essa, por sua vez, atrelada à felicidade. Sentir-se livre, para a personagem, proporcionaria ser feliz, contudo, suas reflexões levam-na, novamente, ao pensamento de que nem toda liberdade proporciona felicidade, efetivamente, se pensado que ser livre não é, especificamente, tudo poder. Nesse sentido, Tuda é uma jovem que busca o começo da vida: reflete que, se tudo que a natureza cria tem uma função no mundo, precisaria descobrir a sua, e a partir disso começar a viver: “Tenho dezessete anos e já posso começar a viver” (LISPECTOR, 1999, p. 22), pensa, a personagem. Para ela, compreender-se seria o ponto de partida para iniciar uma vida, e atrelado a isso estava a imagem da doutora. A doutora representa, em alguma medida, uma experiência de vida que poderia ter respostas às inúmeras perguntas de Tuda. O ambiente em que a personagem da doutora está inserida, adere sentidos à construção dessa personalidade: “Estava sentada junto à mesa, rodeada de livros e papéis” (LISPECTOR, 1999, p. 23.). Esse espaço com livros, a mesa com papéis e essa posição de quem está do outro lado, corresponde ao que Tuda espera: alguém ou algo que lhe ajude a começar a viver, lhe proporcionando a compreensão de um lugar no mundo.

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Ao se deparar com a figura da doutora, a expectativa que se cria em relação a tal figura é rompida, pois ao longo de uma conversa, Tuda causa certo desconforto à conselheira. Fato que também desencadeia na personagem uma espécie de quebra da imagem de superiora que a doutora lhe passava, antes do contato inicial. Em alguma medida, tal acontecimento desencadeia na doutora o pensamento de que Cada pessoa é um mundo, cada pessoa tem sua própria chave e a dos outros nada resolve; só se olha para o mundo alheio por distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que sobrenada e que não é o vital; o “mal de muitos” é consolo, mas não é solução (LISPECTOR, 1979, p. 32).

Sentindo-se impotente diante da personalidade desafiadora de Tuda, a doutora lhe aconselha tratando da necessidade do tempo da vida em face do processo de maturação e, por consequência, do aprendizado. À Tuda, a doutora afirma que de há muitas coisas que se aprendem sem que ninguém o ensine ou, ainda, de que o descobrir (e o descobrir-se) advém da calma. Essa calma, necessária ao processo de esperar que a vida aconteça, segundo a doutora diz para a personagem, tem sua beleza, ainda que cause sofrimento. As palavras da doutora não geram sentimento de contentamento em Tuda, pois o que ela buscava ali seriam respostas para as tantas perguntas que lhe fizeram chegar até ali, onde estava sentada em frente a alguém que, por ironia, poderia dizer-lhe coisas sobre o mundo e que ela ainda não viveu. Tuda decide ir embora, após recomendação da doutora de que esperasse e retornasse quando fizesse 20 anos, nesse tempo deveria ter calma e esperar. Tal ida até o consultório resultou ao fim uma descoberta para Tuda: não poderia encontrar respostas em uma outra experiência para além da sua própria. Reflete, nesse caminho de

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retorno à casa: “[...] a doutora vivia uma vida própria e — outra revelação — ninguém saía inteiramente para fora de si para ajudar” (LISPECTOR, 1979, p. 37). Nos passos seguintes, a personagem entra em um processo de interiorização, do qual só é trazida novamente ao tempo presente — o caminho de volta para casa — quando se encontra com um rapaz. Além da figura do rapaz, Tuda analisa meninas que passam por ela e olham-na, isso faz com que o embate com sua própria interioridade aconteça sempre com uma figura externa. Nesse sentido, Tuda se compreende, na busca de pertencer-se, no embate com a figura da doutora, principalmente, mas também na observação de outras meninas de sua idade e, ainda, ao final no contato com um homem. Assim, é no embate com figuras externas, que Tuda tem um sentimento de pertencimento ingênuo ao final da narrativa; compreende, porém, que sua descoberta está na condição do processo de seguir, e por isso a metáfora do caminho com a qual o conto é encerrado: “Continuou a andar, apressada, palpitante, feroz de alegria” (LISPECTOR, 1979, p. 39). Em Obsessão, conto mais longo e denso da coleção, Clarice apresenta outra narrativa emoldurado pela memória e pelo traço metaficcional que ocupa sua produção desde as primeiras incursões pelo conto: Agora que já vivi o meu caso, posso rememorá-lo com mais serenidade. Não tentarei fazer-me perdoar. Tentarei não acusar. Aconteceu simplesmente. Não me recordo com nitidez de seu início. Transformei-me independente de minha consciência e quando abri os olhos o veneno circulava irremediavelmente no meu sangue, já antigo no seu poder. É necessário contar um pouco sobre mim, antes do meu contato com Daniel. Apenas assim conhecer-se-á o terreno em que suas sementes foram jogadas (LISPECTOR, 1979, p. 43).

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Após essas digressões, narrativas, que operam como dispositivo metanarrativo, a narradora retoma a ordem do discurso diegético, metaforizando a convergência entre texto e experiência: “Para que narrar pequenos fatos que demonstrem minha progressiva caminhada para a intolerância e para o ódio? Sabe-se bem quanto basta para transformar a atmosfera em que vivem duas pessoas” (LISPECTOR, 1979, p. 77); bem como na tentativa de retomar a vida com um senso de ordenamento: “Mas é necessário começar pelo princípio, pôr um pouco de ordem nesta minha narrativa” (LISPECTOR, 1979, p. 48). A intencionalidade metaficcional também se explicita quando a narradora faz coincidir os desdobramentos do término da relação com o amante ao desfecho do conto: Até novas relações forma invadidas pelo hábito. (Vivi com Daniel perto de dois anos.) Já agora nem mesmo o ódio. Estávamos cansados. Uma vez, após uma semana de chuva que nos aprisionara durante dias junto no quarto, esgotando ao limite os nossos nervos — uma vez deu-se a conclusão (LISPECTOR, 1979, p. 79).

Esse traço de consciência do trabalho narrativo, que seguirá sendo parte da assinatura estética de Clarice Lispector, indicia como o gesto narrativo torna-se tão incontornavelmente importante e, no limite, converte-se na própria condição de factualidade do que foi experienciado, cujo exemplo mais expressivo radicaliza-se em A paixão segundo G.H. Com uma estruturação mais linear, o conto é narrado por Cristina, uma mulher de meia idade e casada, que se debruça sobre as angústias decorrentes de seu caso com Daniel. Os primeiros quadros narrativos dão conta da apresentação clássica da personagem, suas origens, seus desejos, o casamento com Jaime, sua vida aparentemente previsível e pacata:

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“O que te escrevo continua e estou enfeitiçada” cem anos de Clarice Lispector

Aos dezenove anos encontrei Jaime. Casamo-nos e alugamos um apartamento bonito, bem mobiliado. Vivemos seis anos juntos, sem filhos. E eu era feliz. Se alguém me perguntava, eu afirmava, acrescentando não sem um pouco de perplexidade: “E por que não?” [...] Vivia facilmente. Nunca dedicava um pensamento mais forte a qualquer assunto. E, como a poupar-se ainda mais, não acreditava inteiramente nos livros que lia. Eram feitos apenas para distrair, pensava eu (LISPECTOR, 1979, p. 44-45).

Em alguma medida, o fato desse autoconhecimento feminino despertado, para além de uma compreensão do ser, de maneira autocentrada, mas das relações entre o homem e o mundo, estarem sendo apresentados na figura de uma mulher já com mais idade e madura, é simbolizado por dois aspectos, principalmente. Um, pelo título: Obsessão, que metaforicamente sugere o fato de que essa busca é constante, ou seja, que no interior do sujeito, mas especificamente da personagem, essa busca não cessa, por isso uma obsessão que segue com anos de vivência. Outro, pela própria extensão da narrativa, pois, entre todos os contos da obra, esse é o mais longo dos contos, com trinta e três páginas. Em primeiro momento, é apresentado ao leitor a vida da personagem desde sua infância. Nesse momento, narra que seus pais sempre foram superprotetores e que nunca tivera muita liberdade, uma vez que seus pais cuidavam de tudo que fazia, até mesmo das coisas que liam. Ainda jovem, casou-se e foi viver uma vida normal ao que se espera para uma mulher dentro dos padrões de uma família tradicional. Passado algum tempo a personagem adoece e vai passar um tempo em outra cidade, para que descanse e espaireça em outro ambiente, para que retorne quando de sua melhora. Nesse lugar em que está passando a temporada de repouso, a personagem conhece Daniel. Ele é descrito como um homem

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questionador, que desafiava e convidava ao debate outros hóspedes do mesmo local em que a personagem se hospedara. Tal personagem, causava desconforto por dizer coisas que iam para além das convenções sociais e por apresentar reflexões de ordem existencialistas em torno do ser. Então, na mesma medida em que gera desconforto, de início, Daniel começa a despertar o interesse da personagem-narradora, pois, agora, o desconforto começa também a fazer parte dela mesma, interiormente, e ouvir Daniel falar, poderia levá-la a compreensão de coisas que só agora começara a despertar dentro de si. Com o passar do tempo, Daniel desperta uma espécie de obsessão em seu íntimo, um desejo de ordem erótica, mas de uma sede por descobrir-se: Tudo se entrelaçou, confundiu-se dentro de mim e eu não saberia precisar se meu desassossego era o desejo de Daniel ou a ânsia de procurar o novo mundo descoberto. Porque despertei simultaneamente mulher e humana (LISPECTOR, 1979, p. 52).

Daniel parecia possuir uma chave, e apenas ele a possuía, para que ela a entendesse o que a inquietou a partir desse momento. Ela, primeiramente, em um papel de aprendiz. A relação de sedução pela palavra leva Cristina ao conhecimento de um mundo de ideias que ela ignorava: Suas palavras deslizavam sobre mim, sem me penetrar. No entanto, adivinhei, singularmente incomodada, elas escondiam uma harmonia própria que eu não conseguia captar... Tentava não me distrair para nada perder da conversa mágica. [...] E, sobretudo, pela primeira vez eu, até então profundamente adormecida, vislumbrava ideias. [...] aquele olhar lento, pesado de conhecimento, sob as pálpebras grossas haviam me fascinado, acorda-

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do em mim sentimentos obscuros, o desejo doloroso de me aprofundar em não sei quê, para atingir não sei que coisa... (LISPECTOR, 1979, p. 51-69).

Ouvia tudo que Daniel dizia, na tentativa de absorver e compreender a si e o mundo. Essa era sua busca. Precisava de Daniel. Com o adoecimento de sua mãe, a personagem tem que retornar para a casa. Sua despedida de Daniel é bastante dolorosa, pois esperava que Daniel a pedisse que voltasse, mas ele não o faz, embora diga a ela que saiba que o fato acontecerá. A personagem se sente envergonhada diante de tal posicionamento de Daniel, uma vez que essa atitude demonstraria que ele tinha segurança sobre o poder que exercia sobre ela. E esse poder que Daniel exercia anularia todo o aprendizado que a personagem buscava desenvolver com suas reflexões em torno de uma liberdade do ser. Ao retornar para a realidade em que vivia anteriormente, a personagem entra em estado de negação, por não se compreender mais naquele espaço em que esteve, anteriormente, inserida. Daniel também vem sempre a sua mente, e torna-se impossível para ela continuar a manter aquela vida. Decide, então, que retornará a Daniel, abandonando o marido e a vida que ali tivera. Deixa uma carta despedindo-se e foge ao encontro de Daniel. Com o passar do tempo, a personagem vai crescendo no movimento de descobrir-se e, nesse aspecto, Daniel vai deixando de lhe interessar, pois ela nota que, consoante vai compreendendo as limitações da existência humana e a fugacidade da vida, o homem que lhe despertara desconforto por ser, em um primeiro momento, uma inquietação e um símbolo de algo não alcançável, ia aos poucos tornando-se algo comum a ela. Daniel despertara a curiosidade da personagem por demonstrar-se ser alguém livre, escolhera tal posicionamento diante do mundo: ter claras as visões sobre as “obrigações” humanas e decidir seguir o que é socialmente imposto ou não.

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Fato que faz a personagem compará-lo a seu marido, uma vez que esse vivia completamente limitado aos costumes e maneiras impostos socialmente. Assim, como a convivência e com a descoberta, Daniel passou a causar menos interesse na personagem, consequência disso foi que ela se comportava menos como uma discípula que de costume, diante da presença dele. Isso causou entre eles um desconforto, pois Daniel percebera, também, que não exercia mais o poder de antes sob a personagem. Isso, em alguma medida, provoca na protagonista um prazer, pois o desconforto de Daniel diante da ausência de interesse dela, fizera-se sentir pela primeira vez uma espécie de poder sob ele: Servira já o meu tempo de escrava. Talvez continuasse a sê-lo, sem revolta, até o fim da vida. Mas servia a um deus... E Daniel fraquejara, desencantara-se. Precisava de mim! repeti mil vezes depois, com a sensação de ter recebido um belo e enorme presente, grande demais para meus braços e para meu desejo. E o mais estranho é que acompanhava esta impressão uma outra, absurdamente nova e forte. Estava livre, descobri afinal... Como entender-me? Por que de início aquela cega integração? E depois, a quase alegria da libertação? De que matéria sou feita onde se entrelaçam mas não se fundem os elementos e a base de mil outras vidas? Sigo todos os caminhos e nenhum deles é ainda o meu. Fui moldada em tantas estátuas e não me imobilizei... Daí em diante, sem que o deliberasse, descuidei imperceptivelmente de Daniel. E já agora não aceitava seu domínio. Resignava-me apenas (LISPECTOR, 1999, p. 58).

Todavia, a imagem de um homem encantador vai aos poucos cedendo lugar ao que existe de opressor em Daniel, e a relação entre ambos, ainda que não claramente justificada, acomoda-se em um estado de alienação de Cristina:

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Não refletia sobre a situação, mas quando a analisava alguma vez era sempre do mesmo modo: vivo com ele e é tudo. Permanecia junto do poderoso, do que sabia, isso me bastava. Por que não durou sempre aquela morte ideal? Um pouco de clarividência, em certos momentos, advertia-me, de que a paz só poderia ser passageira. Adivinhava que nem sempre me bastaria viver Daniel. E mais afundava na inexistência, concedendo-me tréguas, adiantando o momento em que eu própria buscaria vida, para descobrir sozinha, através de meu próprio sofrimento (LISPECTOR, 1979, p. 75, grifo da autora).

A relação contraditória que Cristina mantém com Daniel é metaforizada em duas imagens caras à Clarice, quais sejam, a cegueira e a estátua: Como entender-me? Por que de início aquela cega integração? E depois, a quase alegria da libertação? De que matéria sou feita onde se entrelaçam mas não se fundem os elementos e a base de mil e outras vidas? Sigo todos os caminhos e nenhum deles ainda é o meu... Fui moldada em tantas estátuas e me imobilizei... (LISPECTOR, 1979, p. 77).

Seu retorno, não significa, entretanto, uma volta à sua vida “confortável”, “medíocre” e “banal” (LISPECTOR, 1979, p. 70), pois não era mais a mesma. Nesse mesmo sentido, sua vida nunca mais seria a mesma. Estaria ciente de suas limitações quanto a um poder ser no mundo, e isso lhe causava certa angústia, mas, acima de tudo, agora sabia também que compreendia mais coisas da vida e, nesse viés, exercia um poder também sobre a figura do marido, que lhe aceitara com certa reserva, não lhe fazendo perguntas e a respeitando com demasiado cuidado, como se lhe fosse preciso muito cuidado, pois já não a mesma de antes. As indagações de Cristina e o que delas resulta de

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angústia sobre a falta de um “caminho”, que pode ser lido como metáfora do destino (feminino, especialmente), reforçam os contornos de tensão que o conto mantém até o final. Retomando-se a lição de Cortázar sobre esse elemento estruturante e relacionando-o ao conteúdo que revela a angústia existencial da personagem, o conto parece encaminhar uma leitura cuja chave aponta para o desejo e a liberdade no interior das relações amorosas, daí, apostamos, o final em aberto: “Quanto a mim, continuo. Já agora sozinha. Para sempre sozinha” (LISPECTOR, 1979, p. 82). Conto de densa atmosfera psicológica e lírica e implicitamente metaficcional, “em que a realidade não fica escondida ou sufocada, porém é elevada para seus planos mais profundos, mais originais, na fronteira entre o que existiu de fato e o que existiu pela imaginação”, como apontaria Hohlfeld (1981, p. 138), O delírio apresenta uma narrativa complexa e fragmentária, tanto no aspecto linguagem, quanto na composição das imagens do espaço, metaforizando o estado febril da protagonista. O enredo, de resto parco, apresenta o drama de um jovem escritor que se vale de seus devaneios como material poético da inspiração, na dicção de um foco narrativo em terceira pessoa que assume seu estilo: Encolhe-se profundamente, como se lá fora chovesse, chovesse, e aqui uns braços silenciosos e mornos atraíssem-no e o transformassem num menino pequeno, pequeno e morto. Morto. Ah, é o delírio... É o delírio. Uma luz muito doce se espalha sobre a Terra como um perfume. A lua dilui-se lentamente e um sol-menino espreguiça os braços translúcidos... Frescos murmúrios de águas puras que se abandonam aos declives. Um par de asas dança na atmosfera rosada. Silêncio, meus amigos. O dia vai nascer (LISPECTOR, 1979, p. 86).

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O narrador onisciente acessa as camadas inconscientes, a metaforizar o trânsito entre a espacialidade exterior e a interioridade subjetiva, em um jogo de cores e sombras e imagens dilatadas, que levam Rodrigues (2020) a se perguntar: “podemos considerar que este conto foi influenciado pelos surrealistas?” (p. 121). Há tanto tempo não se enxerga, nada se concede... É jovem, afinal, é jovem... [...] Continua porém inquieto, numa fadiga prévia pelo que se seguirá. Procura a paisagem, insatisfeito subitamente, sem por quê. O terraço sombreia-se. Onde está o sol? Tudo escureceu, faz frio. Há um momento em que sente a escuridão mesmo dentro de si, um vago desejo de se diluir, de desaparecer. Não deseja pensar, não pode pensar. Sobretudo, nada resolver por enquanto adia, covarde. Ainda está doente (LISPECTOR, 1979, p. 91, 93).

Tristão de Athayde (1978, p. 11) já anotava que Clarice Lispector “se expressa nos dois teclados coexistentes do subconsciente e do supra-consciente (sic)” e que pelos laços do subconsciente ela amarra “todos os homens de todas as nacionalidades, raças, religiões”. Considerando todo o trajeto ficcional da autora, o crítico conclui que “Clarice foi surrealista e supra-realista, sem querer”, uma vez que “não teve intenção de fazer surrealismo.” (ATHAYDE, 1978, p. 11). Em todo caso, já a partir do título metafórico, podemos, no mínimo, considerar como um conto emblemático em termos da organização narrativa, e que, a reboque, com a justaposição entre realidade e fantasia pode aproximá-lo de uma estética intuída do surrealismo, como na ideia de uma “escrita automática”, em um dos últimos parágrafos do conto:

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Ele para, de súbito pensativo. E principalmente se ela soubesse que esforço lhe custava escrever... Quando começava, todas as suas fibras eriçavam-se, irritadas e magníficas. E enquanto não sentia eu elas eram o seu prolongamento, não cessava, esgotando-se até o fim... “A Terra, os braços contraídos de dor...” Sim, sua cabeça já está dolorida, pesada. Mas poderia conter sua luz, para poupar-se? (LISPECTOR, 1979, p. 94).

Em querendo insistir nessa tese, não faltariam registros da própria Clarice que ensejam a reflexão sobre uma possível sincronicidade entre sua obra e o senso de mistério da criação na estética surrealista. No fragmento de crônica intitulado Estado de graça, de 6 de abril de 1969, a autora afirma ser tocada por essa pulsão iluminadora. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente existe. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isso: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe (LISPECTOR, 2020, p. 111).

Essa reflexão de Clarice Lispector data, portanto, de momento em que a escritora já se contava em sua gleba ficcional madura, que incluía Laços de família, A Maçã no Escuro, A Paixão segundo G.H., A Legião Estrangeira, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, portanto, já alcançara “a revelação das infinitas potencialidades obscuras pressentidas no espírito humano” (BORELLI, 1981, p. 72). Aliás, é de A legião estrangeira o conto “O ovo e a galinha”, no qual o crítico José Miguel Wisnik (1989, p. 285) vislumbrará uma “poética sobre o olhar”, como

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“marca sublinhada e apagada de um real que hesita entre a consciência e o inconsciente” (WISNIK, 1989, p. 287). Para Wisnik (1989), há uma aproximação entre o apelo ao visionarismo que traduz uma experiência no texto clariceano e o conceito de “revelação” ou “iluminação profana” de Walter Benjamin: “A realidade se transforma na medida em que se põe em contato com uma outra experiência do tempo, que tem seu modelo na experiência solitária da iluminação profana [...]” (WISNIK, 1989, p. 287). Essa certa manifestação de acaso, que para Breton (2012, p. 221) implicava a exaltação da liberdade em seu sentido mais agônico, em Clarice tem um tem um destino: “Minha liberdade é escrever. [...] Sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar”, como confessaria à amiga (CLARICE apud BORELLI, 1981, p. 44). Entre tantos momentos em que tratou do gesto da escrita como dotada de um instante “epifânico” — termo mormente usado pela crítica para tratar de uma revelação do campo ético na personagem (SÁ, 1979; SANT’ANNA, 2012), em duas crônicas de 1969 Clarice deixa entrever um conteúdo intuitivo que perpassa a experiência sensorial que desembocará na estetização pela palavra: Às vezes vêm frases completas, resultado retardado de pensamentos. São misteriosas essas frases porque, ao virem, não se ligam mais a nenhuma fonte. [...] Bem que tenho visões fugidias antes do adormecer — seria milagre? Mas me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens do inconsciente (LISPECTOR, 2020, p. 132, 208).

Mais rentável que encontrar traços surrealistas em uma obra que descortina os liames entre realidade e imaginação, como a de Clarice Lispector, para quem “Atrás de uma coisa existe sempre outra coisa que tem atrás de si outra coisa que...”

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(LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 56), talvez fosse percorrer um caminho oposto, o que encontrasse nas declarações e em certas nuances do texto clariceano um endosso aos pressupostos da arte e da literatura surrealistas. De todos os contos do livro, A fuga é o que apresenta uma maior economia nos meios narrativos, como a opção pela linearidade diegética. Por outro lado, prevalece uma atmosfera lírica composta pelo uso peculiar do fluxo da consciência: será a primeira vez na prosa de Clarice que um narrador onisciente e uma personagem justapõem um diálogo: Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende uma lâmpada do bom senso. Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom e nunca erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo os macacos se reproduzem com maior rapidez (LISPECTOR, 1979, p. 102).

A simplicidade arquitetônica do enredo é compensada no adensamento psicológico: uma mulher, cujo casamento dura doze anos, ou “doze séculos” (LISPECTOR, 1979, p. 102), como hiperboliza o narrador, em uma clara alusão à infelicidade da personagem e, se quisermos, a um outro rastro protofeminista da autora, experimenta uma sensação de liberdade por algumas horas, quando decide sair de casa com a intenção de não retornar. Iniciada in medias res, a narrativa enforma o ponto nevrálgico da tensão que se projeta metaforicamente entre espaço e tempo diegéticos, coadunando-se, assim, ao impasse gerado pelo conflito moral da personagem:

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Começou a ficar escuro e ela teve medo. A chuva caía sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz das lâmpadas. Passavam pessoas de guarda-chuva, impermeável, muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente. [...] Estava cansada. Pensava sempre: “Mas que é que vai acontecer agora?” Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa? Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. [...] Atravessou o passeio e encostou-se à murada, para olhar o mar. A chuva continuava. Ela tomara o ônibus na Tijuca e saltara na Glória. Já andara para além do Morro da Viúva. [...] Não voltarei para casa. Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e profunda (LISPECTOR, 1979, p. 99, 100, 101).

A dramaticidade da narrativa, em parte pelo recurso da prolepse, articula e modaliza o tempo, entre o passado e o presente, quando a personagem assume a voz: “Eu era uma mulher casada e sou agora uma mulher [...]. Doze anos pesam como quilos de chumbo e os dias se fecham em torno do corpo da gente e apertam cada vez mais. Volto para casa. Não posso ter raiva de mim, porque estou cansada” (LISPECTOR, 1979, p. 102, 104). Como aponta Gotlib (1988, p. 169), há nesse conto duas linhas narrativas em jogo, “a da vida cotidiana, ordinária e a da extraordinária”, que o aproximam de “Amor”, de Laços de família, na medida em que

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[...] paralelamente à clara sequencia linear, com início, meio e fim, o jogo de forças que se estabelece entre estas duas linhas da narração faz-se em relação inversamente proporcional: quanto mais a realidade banal domina, menos aflora a camada da realidade mais profunda. Vale o inverso: quanto mais emergem as experiências de uma intimidade, anteriormente mais pressentida e sugerida, mais abafados ficam os atos da banalidade cotidiana (GOTLIB, 1988, p. 169).

De volta à casa, o estado de risco da experiência, nutrido de suspense e sensação de perigo, cede lugar à resignação, como exercício de verossimilhança diante da condição da mulher na década de 1940, retratada no conto: Entra em casa. [...] Toma um copo de leite quente porque não tem fome. Veste um pijama de flanela azul, de pintinhas brancas, muito macio mesmo. Pede ao marido que apague a luz. Ele beija-a no rosto e diz que o acorde às sete horas em ponto. [...] Fica de olhos abertos durante algum tempo. Depois enxuga as lágrimas com o lençol, fecha os olhos e ajeita-se na cama. Sente o luar cobri-la vagarosamente. Dentro do silêncio da noite, o navio se afasta cada vez mais (LISPECTOR, 1979, p. 104).

O percurso de sedução implica em um se deixar atrair por forças cujos poderes são desconhecidos em sua plenitude, mas ao qual personagem e autora seguem, fascinadas que parecem pela emergência da subversão dos limites e convenções sociais. Mais dois bêbedos é o último conto da primeira parte da coleção e o único com um narrador-protagonista. A grafia anacrônica de “bêbedos” é recuperada do século XIV (CUNHA, 1997, p. 103). Como que saído de uma das melancólicas e cômicas crônicas de João do Rio e como traços de um boemismo

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angustiante que remete a Baudelaire, o narrador, um homem casado que busca amenizar suas frustrações perambula de bar em bar, em busca de um interlocutor para suas divagações: Naquela noite eu já bebera bastante. Andava de bar em bar, até que, excessivamente feliz, temi ultrapassar-me: estava por demais ajustado em mim mesmo. Procurei um meio de me derramar um pouco, antes que transbordasse inteiramente. [...] Andei pelas ruas, pensando: escolherei alguém que nunca tenha imaginado me merecer. Procurei um homem ou uma mulher. Mas ninguém me agradava particularmente. Todos pareciam bastar-se, rodar dentro de seus próprios pensamentos. Ninguém precisava de mim (LISPECTOR, 1979, p. 108, 109).

Como não vislumbrar aqui uma sutil relação de intertextualidade com o poema “Embebedai-vos”, da obra Pequenos poemas em prosa, publicada em 1869, pelo poeta-dandy francês: “É preciso estar-se, sempre, bêbado. Tudo está lá, eis a única questão. Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas” (BAUDELAIRE, 2006, p. 205). Com uma nota clara e vibrante de ironia fina e irreverente, e, ao mesmo tempo, sem um julgamento moral, o conto aborda a dimensão existencial em torno de uma embriaguez metafórica, não como uma fuga à realidade, mas, ao contrário, o exercício de uma lucidez em torno de questões como a morte e a efemeridade da vida: Escute-me, amigo, a lua está no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites

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e apagou-se em seculares madrugadas... [...] Você apareceu um instante e ele é sempre. Não sofre, amigo? Eu... eu por mim não suporto. Dói-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, e eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade... [...] O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. [...] Lá, onde não se tem lágrimas nem pensamentos que exprimam a profundeza da miséria de acabar (LISPECTOR, 1979, p. 113).

A aparente apatia do interlocutor diante da insistência com que o narrador-personagem faz suas elocubrações pode ser lida também como metáfora de uma dupla sedação: enquanto o narrador tenta a todo custo ser ouvido, o outro parece entrar em um estado lisérgico e indiferente: — Ouça, vou dizer mais: eu queria morrer vivo, descendo ao meu próprio túmulo e eu mesmo fechá-lo, com uma pancada seca. E depois enlouquecer de dor na escuridão da terra. Mas não a inconsciência. Ele continuava como palito na boca. Depois foi muito bom porque o vinho estava misturando-se. Peguei também um palito e segurei-o entre os dedos como se fosse fumá-lo. — Eu fazia assim em pequeno. E o prazer era maior do que o atual, quando fumo realmente. — É claro. — É claro coisa alguma... Não estou pedindo aprovação. As palavras vagas, as frases arrastadas sem significado... Tão bom, tão suave... Ou era o sono (LISPECTOR, 1979, p. 114).

O encerramento do conto, de forma abrupta e aberta aponta para mais um momento de experimentalismo o com o gênero: “De repente, ele tirou o palito da boca, os olhos piscan-

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do, os lábios trêmulos como se fosse chorar, disse:” (LISPECTOR, 1979, p. 114). O tema-metáfora da embriaguez como auscultamento da condição existencial retornará em Laços de família, no conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, cuja protagonista, tendo se embriagado em um almoço com o marido, elabora uma confissão que une um estranhamento com um estado de iluminação interior que a faz redescobrir o mundo com toda sua carga de crueza: Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça. Ai que infeliz que sou, minha mãe. Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e, protegida pela posição que alcançara na vida, emborrachar-se ainda mais, contanto que não perdesse o brio. E assim, mais emborrachada ainda, percorria os olhos pelo restaurante, e que desprezo pelas pessoas secas do restaurante, nenhum homem que fosse homem a valer, que fosse triste mesmo. Que desprezo pelas pessoas secas do restaurante, enquanto ela estava grossa e pesada, generosa a mais não poder. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro (LISPECTOR, 2016, p. 140).

A segunda parte de A bela e a fera reúne os dois últimos contos escritos por Clarice Lispector. Eles guardam, portanto, e cada um à sua maneira, o selo elegíaco de sua obra. Diríamos que, quando tomada em seu percurso, a obra clariceana se debruçou, tácita ou explicitamente, por temas essencialmente elegíacos: a morte, a perda e sua impossibilidade de repara-

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ção, em favor de um aprendizado; a brevidade e precariedade da experiência; o exílio — incluindo o existencial -, o amor impossível, infeliz e, no mais das vezes, efêmero; a infância em suas descobertas, tragicidade, e, sobretudo, em sua condição irrecuperável; o pano de fundo de um século marcado por catástrofes históricas; o desenraizamento ontológico e social, e, no limite, a elegia como expressão perda e esvaziamento da linguagem. Há, portanto, um conteúdo elegíaco que nutre os contos que encerram a coletânea, e há um gesto elegíaco editorial na composição do livro, metáfora de um rito, de uma evocação lutuosa, um réquiem para Clarice. Essa “ferida grande demais”, deixa “sua presença definitiva” como uma “semente para todos nós”, para lembrar as palavras finais de Borelli (1981, p. 147), sobre a amiga. Presença epifânica, luminosa, como a que poetou Ferreira Gullar, no poema-obituário Morte de Clarice Lispector, que escreve circunstancialmente dentro de um táxi, após receber a notícia da morte daquela mulher por quem chegou a nutrir uma paixão platônica, no final dos anos 1950: Enquanto te enterravam no cemitério judeu de S. Francisco Xavier (e o clarão de teu olhar soterrado resistindo ainda) o táxi corria comigo à borda da Lagoa na direção de Botafogo E as pedras e as nuvens e as árvores no vento Mostravam alegremente que não dependem de nós (GULLAR, 2015, p. 370).

Um dia a menos é o derradeiro conto de Clarice. Os primeiros parágrafos apresentam, por meio do recurso do fluxo de consciência, uma reflexão lapidar:

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Eu desconfio que a morte vem. Morte? Será que uma vez os tão longos dias terminem? Assim devaneio calma, quieta. Será que a morte é um blefe? Um truque da vida? É perseguição? (LISPECTOR, 1979, p. 119).

É certo que, se a morte foi uma constante na obra clariceana, o foi sobretudo mais intensamente nos últimos romances e contos. Como não ler, por exemplo, o póstumo Um sopro de vida (pulsações), esse verdadeiro poema lírico em que morte e vida já transparecem figurativa e eufemisticamente interpenetradas no título? É como o convite do eu lírico cabralino que convida: “abre a boca um silêncio enorme/e ouve-se a voz de Clarice:/Vamos voltar a falar de morte?” (NETO, 1997, p. 252). E, no conto em questão, narrado em terceira pessoa, a personagem, Margarida Flores, mergulhada em um cotidiano banal e vazio, elabora sutilmente um auscultamento sobre a finitude: E depois? Depois. Depois. Pois então. Assim mesmo. Não é? (LISPECTOR, 1979, p. 120).

Desde os primeiros quadros narrativos, o conto é eivado de signos que remetem à morte, desde os elementos que constituem descrição da espacialidade, passando por índices de construção da personagem até clímax da narrativa, em que a ideia do suicídio intencional é descrita com tensão: Sentou-se, pois, com o robe de chambre mais velho, já que nunca esperava visitas. Mas estar tão mal vestida — roupa ainda da falecida mãe — não lhe agradava. [...] E melhorou ainda mais quando sentou na poltrona recém-forrada de roxo (gosto de Augusta) [...]. Sempre que distraidamente via seu

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nome escrito se lembrava de seu apelido na escola primária: Margarida Flores de Enterro. [...] os quartos caíram num silêncio: como se alguém em alguma parte acabasse de morrer [...]. Depois resolveu ler revistas velhas, há muito tempo que não o fazia. Estavam amontoadas no quarto da mãe, desde a sua morte. [...] Foi então que pensou nos vidros de pílulas contra insônia que haviam pertencido à mãe. [...] Ia tomar duas pílulas para amanhecer rosada. Não tinha nenhuma má intenção. [...] Não notava em si a menor má intenção. Mas ninguém no mundo saberá. E agora para sempre não se saberá julgar se foi por desequilíbrio ou enfim um grande equilíbrio: copo após copo engoliu todas as pílulas dos três grandes vidros. [...] Não era um simples ensaio: na verdade uma estreia. [...] deixou-se cair de través na cama onde a tinha gerado. Era um dia a menos (LISPECTOR, 1999, 119, 120, 124, 129, 130).

Em Futuro improvável, crônica de 28 de fevereiro de 1970, Clarice deixará registrada sua visão sobre o limite e a finitude humanos, com um toque de ironia, mantém uma confissão enviesada sobre o ato de criação literária: Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem

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por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto... (LISPECTOR, 2020, p. 351).

É possível pensar em elos comunicantes entre Um dia a menos e Um sopro de vida, para além da publicação póstuma. Clarice se vê doente antes da conclusão do romance, da mesma forma como insiste em escrever sobre o tema, incluindo o conto. Como de hábito, sobretudo depois dos últimos meses em convalescência, cabe a Olga Borelli datilografar os textos ditados pela amiga, e assim foi até à manhã da morte de Clarice: Um dia a menos já estava escrito, com esse fim em aberto, e Um sopro de vida foi uma “pulsação”, para lembrar o subtítulo da obra, até o último suspiro da autora, coincidindo, portanto, com um último sopro literário, como uma forma de permanência: “Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 24). Daí que até o dia de sua morte, “a 9 de dezembro de 1977, ainda ditava suas ideias, tal a compulsão de escrever” (BORELLI, 1981, p. 61). Moser (2009, p. 515) lembra que que o caráter póstumo do livro, em alguma medida escrito enquanto Clarice fenece lenta e silenciosamente, traduz-se na estética da própria obra, posto que o livro foi “não apenas publicado, mas também, em certa medida, escrito após a morte de Clarice”. Diz Olga Borelli (1981, p. 60): “De constituição forte, a morte só a abateu nos últimos dias quarenta

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e cinco dias anteriores à sua morte. É certo que desanimou, mas também é certo que se manteve lúcida, ávida por penetrar o significado do que ocorria com seu corpo e sua alma”. O conto termina entre uma nota cômica e um ambiguidade de garante seu final em aberto: “Vagamente pensou: se pelo menos Augusta tivesse deixado pronta uma tora de framboesa” (LISPECTOR, 1979, p. 130). De alguma forma, o último conto escrito por Clarice reverbera toda a densidade afetiva que mobilizou a escrita e o imaginário especular de seus últimos depoimentos: “Saber que vou morrer me dá uma dimensão ilimitada: já não serei tridimensional” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 51). Nele, também é possível vislumbrar uma dupla face da obra clariceana, como propôs Rosenbaum (2002, p. 87), na qual “a temática existencial, filosófica ou metafísica e a vertente realista, social, mediada sobretudo (mas não só) pela condição histórica da mulher — é sua característica predominante”. A realidade e a linguagem, assim como o viver e o escrever, caminham inexoravelmente juntas na obra da autora, mesmo que os textos se inclinem ora a um ora a outro polo mais proeminente. A bela e a fera ou a ferida grande demais é ultimo conto da obra parcialmente homônima. Como lembra Gotlib (2013, p. 575), a narrativa apresenta no fio do enredo alguns traços já comuns à contística clariceana, com esquema semelhante ao de “A fuga” e “Amor”, que integrará Laços de família. Em que pese o aspecto episódico, tem-se uma personagem mulher que sai para um passeio, passa por uma experiência epifânica a partir da qual sente despertar uma sensação de liberdade e consciência, e que depois retorna para casa. Em A bela e a fera..., narrado em terceira pessoa e com um foco narrativo de onisciência múltipla, a protagonista, Carla de Souza e Santos, é uma mulher da tradicional elite carioca, esposa de um banqueiro e investidor financeiro, que, em uma tarde, ao sair do salão de beleza do Copacabana Palace Hotel antes do horário

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combinado com seu motorista particular, depara-se com um mendigo, que lhe pede dinheiro para comer. A condição de miserabilidade do homem parece-lhe ainda mais acentuada pela ferida que tem na perna, e que lhe causa estranhamento e repulsa: “’Socorro!!!’ gritou-se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do homem. ‘Socorre-me, Deus’, disse baixinho” (LISPECTOR, 1979, p. 135). Metaforicamente, e em um jogo de sutil ironia, a ferida passa a ser alusiva à subjetividade da personagem: Estava exposta àquele homem. Estava completamente exposta [...] Ela — os outros. Mas, a morte não nos separa, pensou de repente e seu rosto tomou o ar de uma máscara de beleza de gente: sua cara por um momento se endureceu (LISPECTOR, 1979, p. 135).

Após um breve diálogo com o mendigo, a quem oferta como esmola uma nota de quinhentos cruzeiros, o equivalente ao maior valor em cédulas da moeda da época, tem-se na narrativa o momento epifânico: A cabeça dela era cheia de festas, festas, festas. Festejando o quê? Festejando a ferida alheia? [...] O ganha-pão do mendigo era a ferida aberta. [...] Não, a vida não era bonita. [...] Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. De repente — de repente tudo parou. Os ônibus pararam, os carros pararam, os relógios pararam, as pessoas na rua imobilizaram-se — só seu coração batia, e para quê? Viu que não sabia gerir o mundo. Era uma incapaz, com os cabelos negros e unhas compridas e vermelhas. Ela era isso: como uma fotografia colorida fora de foco. [...] A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de maciez que se lhe jogavam no rosto tão bem maquilado (LISPECTOR, 1979, p. 137, 139).

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A epifania, aqui, apresenta-se como um momento de iluminação de sua condição social e existencial, posto que “a figura do mendigo traduz a triste condição social, e traduz também, através dela, a alteridade necessária ao vislumbre de uma triste condição humana pela mulher, ela também ferida no ser” (GOTLIB, 2013, p. 576). Há, portanto, uma ruptura do estado de alienação da personagem que a leva a considerar-se assegura pelo status social que mantém, e que, como sói acontecer nos momentos epifânicos, a revelação põe a nu a fragilidade humana, desmistificando toda aparente estabilidade e noção de beleza: “A beleza pode ser de uma grande ameaça”. A extrema graça se confundiu com uma perplexidade e uma funda melancolia. “A beleza assusta”. [...] Teve vontade de gritar para o mundo: “Eu não sou ruim”. Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria da alma (LISPECTOR, 1979, p. 140, 141).

Em uma imagem tocada de simbolismo, quando a personagem se senta no chão com o mendigo, que também a vê como estranha, imaginando tratar-se de uma como “prostituta” ou “comunista” (LISPECTOR, 1979, p. 144); mas, de sua parte, a identificação com a condição de mendicância do homem assume contornos mais profundos: — Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha... [...] Parecia-lhe difícil despedir-se dele, ele agora “eu” alter ego, ele fazia parte para sempre de sua vida (LISPECTOR, 1979, p. 143, 145).

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O conto encerra com a metáfora: “Ter uma ferida na perna — é uma realidade” (LISPECTOR, 1979, p. 146). Nela, podemos ler a marca de uma matéria, no caso a linguagem, bem como a náusea que ela provoca na personagem um dilaceramento existencial que a aproxima de A paixão segundo G.H. Vale lembrar, a narradora-protagonista sofre “um espetáculo da existência [...]; sente-se impelida a transgredir os limites de sua individualidade para identificar-se, por efeito de uma força mágica e extra-humana, que atrai e repele” (NUNES, 1969, p. 104). Sabemos que esse sentimento inquietante se dá pela presença e desafio que a barata representa; entretanto, já nos primeiros quadros narrativos do romance, G.H. confessa narrar a deflagração de sua interioridade, a especulação sobre a experiência inominável que sofreu na forma de uma espécie de transe, constitui uma perda: Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi (LISPECTOR, 2009, p. 9-10).

A metáfora da perna, portanto, propõe-se como sentido da perda da referencialidade e da estabilidade, desestabiliza e constitui-se como deflagradora do abjeto, do estranho, como imagem de angústia do existir, como um princípio de realidade que produz, concomitante, a aproximação que enjoa e seduz diante Outro, como afirma Nancy (2015, p. 45): Os corpos são estranhos uns aos outros pela estranhice do espírito que os anima. Essa estraneidade constitui também a sua estranheza: os corpos são não apenas estranhos. [...] Um corpo não toca facilmente um outro corpo por saber que essa proximidade ameaça a ambos com a possibilidade de explodirem juntos numa nova chama do desejo do espírito.

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O último parágrafo do conto deixa um sentido lacunar na personagem e no leitor: “De repente pensou: nem me lembrei de perguntar o nome dele” (LISPECTOR, 1979, p. 146). A experiência da redenção da personagem parece subsumida pelo esquecimento sublimado da imagem que provocou seu rebaixamento e humilhação, tal como quando G.H. põe na boca a “massa branca” e a compara a um beijo dado em um leproso: “Mas beijar o leproso não é bondade sequer [...] o benefício maior do santo é para ele mesmo” (LISPECTOR, 2009, p. 57).

À guisa de um entorno conclusivo Dissemos anteriormente que A bela e a fera é um livro elegíaco. Não apenas porque o tema da morte tangencia alguns contos ou porque comparece especialmente em Um dia a menos, uma das narrativas que encerra a obra. Mas é, sobretudo, um livro-elegia à Clarice, ofertado pelo filho, Paulo, e por Olga, a amiga “de papel passado”, cujo testemunho no final de seu Esboço para um futuro retrato dá o tom da significância que a consciência de Clarice mostrava da condição humana, como disse “Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila [...]. O que eu quero é muito áspero e mais difícil: quero o terreno” (LISPECTOR, 2016, p. 390). “Agora, sinto-me mais perto de você. Suficientemente perto. Sua presença é definitiva. Foi um fugaz, triste instante, quando a respiração cessou, quando o coração emudeceu. Mas sua semente é de todos nós” (BORELLI, 1981, p. 7). Poderíamos ouvir nesse breve réquiem à Clarice uma ressonância da lição de Jorge Luis Borges, em “A procura de Averroes”, conto que integra O Aleph. Diz o narrador que o escritor cria sua obra, mas, na verdade, é a obra que cria o escritor,

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posto que toda obra é um símbolo do homem que foi enquanto a escrevia, e que, para escrever a narrativa, o escritor teria sido obrigado a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, teve de escrever essa narrativa, e assim, sucessivamente, infinitamente... (BORGES, 1999, p. 56). “Mesmo porque certas coisas — se não forem dadas — fenecem” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p. 61). Assim, A bela e a fera é uma obra que foi sendo escrita, nos três tempos, o inicial, o derradeiro e o póstumo, como símbolo de uma Clarice em constante devir, que escrevia e se inscrevia como forma de transformar-se em indissociação entre vida, obra e morte, como na constante preocupação ali revelada sobre a dimensão dos limites da escrita e de um livro de primícias e ultimidades.

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Delicadeza e sutileza: sobre a leveza do poder da dona da história

Jussara Bittencourt de Sá Marina Bonatto Malka

Apresentação Este estudo propõe-se evidenciar o toque delicado e sutil utilizado por Clarice Lispector, a partir de suas pseudônimas, revelando o paradoxo da mulher nas décadas de 50 e 60 no Brasil: empoderada a partir do trabalho e do poder de consumo e encarcerada a partir da construção social em torno da figura feminina. O objeto analisado é o livro Correio Feminino (2006), tratando-se de um compilado feito por Maria Aparecida de crônicas jornalísticas dirigidas ao público feminino de Clarice Lispector em jornais cariocas nas décadas de 50 e 60. Observamos que falar sobre a escritura da autora implica em lançarmos o olhar para a existência feminina traduzida pelas palavras, alinhadas. Para tanto, recolhemos nuances de sua vivência, de seu tempo, de sua resistência, enfim, de sua existência, apreendidas na antologia Correio Feminino, como tentativa de esboço de um desenho com traços mais aprofundados pelos cantos e encantos dessa obra.

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Clarice Lispector: laçando algumas linhas em sua biografia Guimarães Rosa então me disse uma coisa que jamais esquecerei: disse que me lia “não para a literatura e sim para a vida” (LISPECTOR, 2006, p. 147).

Literatura é arte e vida/vida na arte. Entendemos que falar sobre a literatura de Clarice Lispector implica em falar sobre sua vida. Assim, inicialmente adentramos pela linha temporal e espacial de sua biografia. Clarice Lispector nasceu em 1920 na cidade de Tchetchelnik na Ucrânia e depois seus pais vieram para o Brasil fugidos da perseguição de judeus durante a Guerra Civil Russa (1918-1920). Com eles, três filhas, entre elas a futura escritora Clarice, encontram no Brasil um refúgio, onde residiam parentes seus, como tios e primos. Sua família morou em algumas cidades do Nordeste — Recife e Maceió — até se mudar para o Rio de Janeiro; ela enfrentou problemas financeiros e principalmente o luto pela perda da mãe de Clarice. Com apenas 20 anos, entre 1940 e 1941, Clarice escreve seus primeiros contos intitulados Eu e Jimmy, Trecho, Cartas a Hemengardo e O triunfo, sendo este o primeiro texto da autora a ter sido publicado em um pequeno periódico da época. O conto Eu e Jimmy se trata de uma sátira ao homem moderno e ao machismo que impera na sociedade: Na verdade, eu apenas procurava uma desculpa para gostar de Jimmy. E para seguir suas ideias. Aos poucos estava me adaptando à sua cabeça alongada. Que podia eu fazer, afinal? Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres (LISPECTOR, 2005, p. 16-17)

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Durante o curso na Faculdade de Direito na Universidade do Brasil (antiga UFRJ), Clarice já adianta temáticas abordadas nas crônicas em textos acadêmicos sobre a mulher no mundo de trabalho. Lá ela conhece seu esposo Maury Gurgel Valente. Poucos anos depois, Clarice publica seu livro de estreia chamado Perto de um coração selvagem (1943), sendo contemplada em 1944 com o prêmio Graça Aranha. Sobre seu primeiro livro, um dos maiores críticos da literatura brasileira, Antonio Candido (2003), leu sua obra com entusiasmo pela inovação e originalidade na escrita: A autora (ao que parece uma jovem estreante) colocou seriamente o problema do estilo e da expressão. [...] Sentiu que existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar novas imagens, novos torneios, associações diferentes das comuns e mais fundamente sentidas (CANDIDO, 2003, p. 128).

Antes de se tornar a escritora célebre de Laços de Família (1960), Paixão segundo G.H. (1964) ou A hora da estrela (1977), foi a colunista por trás de 450 textos de conselhos femininos em jornais escritas entre 1952 e 1961, assinadas por seus pseudônimos Ilka Soares, Teresa Quadros e Helen Palmer, sendo uma faceta da autora que poucos conhecem. Esses textos mostram a versatilidade de Clarice Lispector em escrever para públicos diferentes e, além disso, formar a leitora de suas ficções. Essa leitora é a mulher classe média que vive em ambiente doméstico e que possui suas inquietações. Clarice Lispector tinha muito a perder ao mergulhar na carreira de colunista: primeiro, quando ainda era casada, ficou receosa por escrever “textos menos elaborados para jornais e afetar a imagem de esposa de diplomata” (NUNES, 2006, p. 7); segundo, quando estava separada e resolveu dar um pontapé

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efetivo na carreira de escritora, tinha medo de se limitar à escrita dessas colunas. A utilização de pseudônimos colaborou para a manutenção do anonimato de Clarice Lispector. Seu primeiro texto como colunista de crônica feminina foi em 1952 a convite de Rubem Braga no jornal Comício, sob o pseudônimo chamado Tereza Quadros, com o auxílio de Lothe — senhora alemã que doava à escritora revistas célebres de outros países — para a escolha dos temas dos textos da seção Entre Mulheres. No trecho a seguir dessa seção, é evidenciado o caráter moderno da “mulher esclarecida”: Digo-lhes que “esclarecida” é a mulher que se instrui, que procura acompanhar o ritmo da vida atual, sendo útil dentro de seu campo de ação, fazendo-se respeitar pelo próprio valor, que é companheira do homem e não sua escrava, que é mãe e educadora, e não boneca mimada a criar outros bonecos mimados (LISPECTOR, 2006, p. 18).

Clarice Lispector aproveitou o momento em que ela e o marido aguardavam a transferência do seu posto diplomático para Washington para escrever a coluna. Os seus textos jornalísticos diferenciavam-se de outros por um recurso que a escritora usava em suas ficções: “[...] o gosto pelo interdito, pelas entrelinhas e pelos pequenos detalhes que remetem a significações ouras” (NUNES, 2006, p. 8). Aparentemente inofensivas, suas colunas sobre o que comer, o que vestir e como enfeitar-se instigavam as leitoras a refletirem sobre a sociedade e a tornarem-se leitoras. Quando Tereza problematiza as “futilidades” femininas, já se encontra temas que posteriormente estarão presentes em seus romances e contos. Ainda em 1952, Clarice Lispector e o marido viajam e o Comício deixa de circular. Ela tenta no ano seguinte continuar escrevendo a distância para o jornal a fim de ter suas próprias economias,

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“ressuscitando” Tereza Quadros. Clarice Lispector enviou três crônicas que não foram publicadas. Em 1959, Clarice, retornando ao Brasil, separada de Maury e com dois filhos, Pedro e Paulo, encontrou no antigo trabalho de colunista uma maneira de subsistência. Quando escreveu a coluna “Correio Feminino” no jornal Correio da Manhã de 1959 a 1961, sob o pseudônimo de Helen Palmer, a autora assinou contrato com a Pond’s, limitando e direcionando os conteúdos escritos — sedução e feminilidade — nas colunas a fim de divulgar os produtos da marca, mas de uma maneira subliminar. Concomitantemente, de 1960 a 1961, Clarice Lispector escreve sob o pseudônimo de Ilka Soares na coluna “Só Para Mulheres” no tabloide Diário da Noite. Ela aproveita alguns textos de Tereza Quadros, com suas devidas alterações e atualizações, ressurgindo algumas seções, e outras foram criadas e ficaram célebres, como “Aulinhas de sedução”. O livro Correio Feminino (2006), organizado e prefaciado pela doutora em literatura e jornalista Aparecida Maria Nunes, traz as crônicas jornalísticas de Clarice Lispector publicadas nesses três jornais nos anos de 1952, 1959, 1960 e 1961, além dos contos e crônicas publicados posteriormente na revista paulista Mais, na década de 70. A seleção dos textos foi feita a partir de temáticas recorrentes ao longo das publicações, levando o nome de “Correio Feminino”, uma de suas colunas mais tradicionais no Correio da Manhã. Os textos não estão organizados cronologicamente. A organizadora afirma: “Mesmo sem a assinatura da ficcionista, tais crônicas, além da importância do resgate, ainda são capazes de nos fazer divagar na fantasia pela delicadeza de linguagem com que Clarice, habilmente, vai conduzindo a interlocutora pelos caminhos de sua percepção” (LISPECTOR, 2006, p. 12). Essa delicadeza encontrada na escritura das crônicas jornalísticas de Clarice Lispector é inves-

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tigada nas próximas páginas, usada para conduzir a leitora em conselhos sobre a mulher moderna brasileira. Sutilmente, Clarice Lispector reitera (e indaga) em “Mulheres Esclarecidas”: “Você minha leitora, não limite seu interesse apenas à arte de embelezar-se, de ser elegante, de atrais os olhares masculinos. A futilidade é fraqueza superada pela mulher esclarecida. Você é uma mulher esclarecida, não é mesmo?” (LISPECTOR, 2006, p. 18).

Um pouco de história... Clarice Lispector viveu importantes e emblemáticas décadas do século XX, pois enquanto adolescente no Brasil acontecia a Segunda Guerra Mundial, sendo ela judia e tendo notícias sobre as atrocidades feitas com seus semelhantes nos campos de concentração. Suas crônicas jornalísticas foram escritas entre 1952 e 1961, época atribulada no contexto mundial e brasileiro: na Europa, a Guerra Fria, período histórico de disputas estratégicas entre Estados Unidos e União Soviética, estimulando a Guerra da Coreia e do Vietnã. O mundo se reerguia das Grandes Guerras e muitas vidas foram perdidas. Para dar conta, a mulher que antes vivia em casa cuidando da família teve que trabalhar para suprir o menor número de mão-de-obra masculina. De fato, desde a Segunda Revolução Industrial e a crescente urbanização das cidades, a mulher começou a ocupar alguns espaços que antes eram delimitados aos homens, devido à expansão da industrialização. Foi o pontapé inicial para se repensar sobre o papel da mulher na sociedade. Anteriormente, no início do século XX, a profissão recorrente da mulher era o magistério, por considerá-la mais apta à ocupação por ter sentimentos de vocação e de cuidado a partir do “instinto feminino”, além de conservar o mito de mãe/educa-

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dora perfeita, sendo uma construção social da figura da mulher (KRAUSE; KRAUSE, 2016, p. 4). O público-alvo da profissão eram as mulheres solteiras de famílias com menor poder aquisitivo: “Lecionar era ‘descer’ na escala social, pois o discurso oficial masculino burguês apresentava como mulher ‘elevada’ aquela dedicada aos filhos e sustentada pelo marido. Assim, a mulher que precisava trabalhar descia no conceito social” (KESSAMIGUIEMON, 2002, p. 2). Sendo nessa época de crescente difusão de escolas e de demanda de profissionais na área, incumbia-se o papel de “sacerdócio” aos professores, sendo oferecido um salário pouco atrativo para homens, o que tornava as mulheres uma opção para o emprego. Havia escolas para mulheres e mistas que eram lecionadas por mulheres e escolas para homens que eram lecionadas por homens. O sociólogo Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina (2002), reflete sobre a divisão entre homens e mulheres de trabalho na sociedade: Enfim, as próprias mudanças da condição feminina obedecem sempre à lógica do modelo tradicional entre o masculino e o feminino. Os homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder (sobretudo econômico, sobre a produção), ao passo que as mulheres ficam destinadas (predominantemente) ao espaço privado (doméstico, lugar de produção) em que se perpetua a lógica da economia de bens simbólicos, ou a essas espécies de extensões deste espaço, que são os serviços sociais (sobretudo hospitalares) e educativos, ou ainda aos universos da produção simbólica (áreas literária e artística, jornalismo etc.) (BOURDIEU, 2002, p. 56).

Em território brasileiro não foi muito diferente disso: na virada do século XIX para o XX: a principal profissão da mulher também era o magistério e, com o passar das décadas, a forte industrialização e a crescente urbanização das cidades

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abriram novas perspectivas de trabalho para ela. Além disso, a mulher equilibrou as tarefas de casa com a rotina do trabalho, tornando-se alvo do mercado consumidor brasileiro. Devido ao novo poder aquisitivo, o público feminino era envolvido por revistas de compras a procura de novos produtos. Agora ela também era consumidora, sendo seu poder aquisitivo não mais dependente do homem/marido, além de destinar parte de seu salário para o orçamento familiar. Durante o processo de escrita, como Helen Palmer na coluna “Correio Feminino” no tabloide Correio da Manhã na década de 50, foi assinado um contrato com a Pond’s para divulgação, limitando os temas abordados nas colunas ao consumo de produtos de beleza, atribuindo a felicidade à beleza. Mesmo a mulher tendo sua independência financeira e ocupando todos os espaços na década de 60, ela ainda precisava comprovar que não queria acabar com a família e nem desestruturar a sociedade, e sim se libertar da organização social imposta que a aprisionava e a desvalorizava (AZAMBUJA, 2003, p. 87). Com isso, a figura feminina se manteve associada à manutenção do lar, ligada aos filhos e ao marido. Os anunciantes direcionam a esse público alvo, além dos produtos estéticos para se manter bela, feminina e desejável, os produtos de limpeza, utensílios de cozinha, máquina de lavar roupa, panelas etc., serviam para manter a casa limpa e para tornar mais prático esses afazeres. Ou seja: “No início da década de 60, a mulher se vê deslumbrada com os variados produtos e eletrodomésticos que são lançados no mercado. Ela agora precisa consumir e adotar uma atitude, digamos, ‘mais moderna’” (LISPECTOR, 2006, p. 10). As propagandas dos produtos estampavam mulheres bonitas e felizes cuidando da casa. Até hoje, a maioria das propagandas de produtos de limpeza trazem a imagem da mulher que toma conta dos afazeres domésticos.

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Os padrões de beleza nessa época eram ditados pelas estrelas de Hollywood e contribuíam para consolidar a americanização dos costumes no Brasil. O fato de a política norte-americana financiar a ditadura militar no Brasil na época fez com que a mulher brasileira fosse moldada pela imposição estadunidense. A indústria de eletrodomésticos que despontou na década de 60 no Brasil refletiu o American Way of Life na classe média brasileira, e mais especificamente para a mulher, a possibilidade de equilibrar as demandas de limpeza e manutenção da casa ao trabalho: Esses produtos são simbólicos no que diz respeito a esse novo tempo que exige das mulheres a conciliação da vida do trabalho doméstico com sua inclusão no mundo público: o tempo se comprime e com a ajuda desses produtos, as mulheres se reafirmam como modernas donas de casa, que estão em dia com os afazeres domésticos e com o trabalho fora do lar (PECINI, 2010, p. 4).

Assim como a personagem da canção “Ela e sua janela” (1966) de Chico Buarque, aos poucos a mulher sai da janela, espaço onde contempla o mundo exterior aguardando o seu companheiro e vendo a vida passar, depois vai para a varanda e por último vai para a rua, finalmente “Viver duma vez / A vida”. Essa é a mulher dos anos 60: a que está em ascensão profissional, ocupando espaços que anteriormente eram destinados apenas aos homens, mas também é aquela que sente culpa em abandonar sua dedicação exclusiva ao lar. É a partir do olhar do patriarcado que a mulher se molda na sociedade. A casa é espaço de poder da mulher — versatilidade da “mulher polvo” em equilibrar os afazeres domésticos e o trabalho. Poder porque é o lugar onde ela todas as decisões, sendo a dona “da” casa. O polvo possui vários tentáculos, e a analogia da mulher com tentáculos é que ela é multitarefas, possui diversas

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atribuições ao mesmo tempo: trabalhar, cuidar dos filhos, limpar a casa, cozinhar, além de ser bonita, ser magra etc. Como é ressaltado nas crônicas de Lispector, a mulher deve enfrentar a dupla jornada de trabalho sem perder a feminilidade: “Sejam eficientes, trabalhadoras, objetivas, mas não se permitam que isso afete a sua feminilidade” (LISPECTOR, 2006, p. 19). Caso a mulher seja embrutecida e masculinizada pelo trabalho, não será mais desejada pelo homem. Essa “mulher polvo” da segunda metade do século XX influencia nas decisões da família, principalmente porque agora contribui para as finanças da casa. Mesmo no século XXI, ainda é exigido que a mulher seja multitarefas, além da manutenção da diferença salarial e de ocupação de cargos de chefia em relação aos homens; contudo, está aberta a discussão sobre o lugar da mulher na sociedade, há estudos sobre feminicídio, sororidade etc., o que fortalece o progresso da equidade entre homens e mulheres. Atualmente, estamos mais próximas de outra personagem de Chico, personagem da canção “Essa Moça tá Diferente” (1970): “Essa moça é a tal da janela/Que eu me cansei de cantar/E agora está só na dela/Botando só pra quebrar”. Por outro lado, o Brasil é um país subdesenvolvido em que na maioria das vezes essa decisão da mulher trabalhar não é apenas por emancipação, e sim por necessidade. De acordo com o jornal Estado de Minas1, em 2020 quase metade dos lares brasileiros são sustentados por mulheres, sendo monoparentais, no caso a mulher possui o papel de total responsabilidade financeira e parental da família. Enquanto Clarice Lispector escrevia suas crônicas para mulheres de classe média serem independentes, discretas e inteligentes, a escritora Carolina 1  BARBOSA, Marina. Quase metade dos brasileiros são sustentados por mulheres. Estado de Minas, Belo Horizonte, 16 de fevereiro de 2020. Economia. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/02/16/internas_economia,1122167/quase-metade-dos-lares-brasileiros-sao-sustentados-por-mulheres. shtml. Acesso em: 19 jun. 2020.

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Maria de Jesus escrevia seu diário na favela do Canindé em São Paulo, relatando o peso e a dificuldade de sustentar uma família com três filhos sendo catadora. Carolina em seu best-seller Quarto de Despejo (1960) relata a sua fome, o seu medo de violência contra seus filhos e o seu ódio em relação ao ambiente de marginalização social da periferia, sendo um livro de memórias da pobreza do Brasil. Ou seja, Carolina não era o público de Clarice Lispector, e sim a classe média/alta carioca. Por outro lado, Clarice foi leitora de Carolina, ela estava presente em sua sessão de autógrafos e tiraram uma foto juntas, elogiando a escritora por “escrever a verdade”. Ademais, a cidade em que Clarice Lispector vivia e publicava suas crônicas é uma das cidades em que a desigualdade social é mais visível e estarrecedora: na zona sul do Rio de Janeiro, os bairros mais luxuosos e clássicos como Copacabana, Ipanema e Leblon são permeados pelos morros onde a qualidade de vida da população é precária devido à falta de saneamento básico, à criminalidade e à alta densidade demográfica. Carolina vivia em outra grande cidade brasileira, São Paulo, em que a favela do Canindé foi retirada para fazer a Marginal Tietê, uma via expressa de importância para a cidade. Muitas das conquistas em benefício das mulheres podem ser atribuídas ao movimento feminista no Brasil. Ele teve seu pontapé inicial com a fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, organização que fez campanha pelo voto das mulheres, sendo um direito conquistado a partir de um abaixo assinado feito pela Federação e aprovado o projeto de lei em 1922. Foi em 1962 que a pílula anticoncepcional começou a ser comercializada no Brasil, dando as mulheres o poder tomar decisões sobre seu próprio corpo. Além disso, a década de 60 para o Brasil foi de resistência à ditadura civil militar, onde grupos de feministas se juntavam para manifestarem contra os militares e eram vistas como “moralmente perigosas”

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e no ano de 1979 foi lançado o Movimento Feminino pela Anistia, por Terezinha Zerbini. Após a redemocratização, o feminismo no Brasil efervesce a luta pelos direitos das mulheres, ampliando os temas em pauta: violência, sexualidade, direito ao trabalho, casamento, racismo etc. Em 1984, foi criado o Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM), resultando na Constituição de 1988 sendo uma das que mais garante direitos para a mulher no mundo. A partir da década de 90, foram criadas ONGs focadas em medidas protetoras para as mulheres, sendo em 2006 a maior conquista para a segurança da mulher: a Lei Maria da Penha, contra a violência feminina doméstica. A história da mulher no Brasil é de desigualdade ao homem, tanto em relação aos estudos quanto ao mundo do trabalho. À mulher sempre foram destinados os serviços referentes aos cuidados da casa e dos filhos, e a partir do século passado ela equilibrou essas tarefas com o trabalho fora de casa. Além disso, as reivindicações por direitos básicos, como o de votar e de estar segura dentro de sua própria casa foram alcançados, a procura de uma igualdade entre homens e mulheres.

Mulheres na escola e na literatura Assim como Clarice Lispector, outras mulheres produziram literatura no Brasil no século XX, mesmo encontrando barreiras na publicação e lutando pelo seu lugar dentro da literatura. Por um bom tempo, a educação no Brasil foi exclusiva para homens: em 1827, foi criada a primeira legislação no Brasil autorizando as escolas públicas femininas (SOUZA; PEDRO, 2012, p. 81). Algumas mulheres da classe média tiveram acesso à educação formal pois estudavam com professores particulares contratados pelos pais, sendo uma educação voltada à organização do lar e à preparação ao matrimônio, além de

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ensinarem atrativos aos homens para o casamento (aprender francês, tocar piano etc.). As mulheres aprendiam também a ler e a contar, utilizando esse saber para auxiliar na educação dos filhos. Ou seja, havia uma distinção de acesso à escolaridade tanto por gênero quanto por classe. A mulher era vista como objeto do homem, tendo como principal objetivo o matrimônio e a reprodução, de acordo com Pierre Bourdieu em A Dominação Masculina (2002): O princípio da inferioridade e da exclusão da mulher, que o sistema mítico-ritual ratifica e amplia, a ponto de fazer dele o princípio de divisão de todo o universo, não é mais que a dissimetria fundamental, a do sujeito e do objeto, a do agente e do instrumento, instaurada entre o homem e a mulher no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado matrimonial, que estão na base de toda a ordem social: as mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens (BOURDIEU, 2002, p. 27).

Já os homens da classe média no Brasil durante o século XIX, além do acesso à educação formal, eram encaminhados às cidades grandes para se formarem nas faculdades de Medicina e Direito, ou até mesmo estudarem em Coimbra ou na França. Depois, com seu diploma, seguiam na vida pública, no mundo econômico, na política ou na literatura. Boa parte dos autores românticos brasileiros possui diploma de ensino superior adquirido na Europa. O ambiente universitário, tanto no Brasil quanto no exterior, era o lugar de boemia e de reflexão literária, que foi privado inicialmente às mulheres.

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Devido à escassez da escolaridade feminina no século anterior, a produção literária no Brasil não foge do padrão do cânone masculino, branco e classe média, como Monteiro Lobato (1882-1948), Oswald de Andrade (1890-1954) e Graciliano Ramos (1892-1953), e mesmo os nossos escritores negros são branqueados em propagandas — Machado de Assis (1839-1908) na campanha publicitária do banco Caixa Econômica Federal em 2011. Anterior à abolição da escravidão, havia escolas informais para negros pelo país, evidenciando esse racismo pela segregação; Machado de Assis, por exemplo, foi alfabetizado informalmente em casa. Posterior a ela, os negros tiveram que enfrentar novos desafios, como a busca por uma moradia e por um emprego, que fizeram que eles continuassem afastados da escola. Então concluímos que o letramento brasileiro possui uma terceira distinção, a de cor, por causa da escravidão que assolou o Brasil Colônia e parte do Brasil Independente por mais de três séculos, além do extermínio português a diversas tribos indígenas desde o início da colonização portuguesa no Brasil. Por isso, a literatura escrita por mulheres ficou à margem, por ser produzida por uma minoria subalterna em relação à literatura canônica, escrita por homens. As escritoras Clarice Lispector (1920-1977), Rachel de Queiróz (1910-2003), Cecília Meireles (1901-1964), Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Cora Coralina (1889-1985), Ana Miranda (1951-), Ana Maria Machado (1941-), Adélia Prado (1935-), Lara de Lemos (1923-2010), Lya Luft (1938-), entre outras, foram as protagonistas na literatura brasileira escrita por mulheres do século XX, produzindo em diversos gêneros literários, como romance, poesia, diário e outros.

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As crônicas do Correio Feminino de Clarice Lispector Os textos escritos por Clarice Lispector, por meio de pseudônimos publicados em jornais, possuem um fim didático, alguns até mesmo recebem o nome de “aulinhas”. É perceptível o papel da mulher professora, mantendo assim a construção social da figura feminina que possui a vocação de ensinar. Além disso, não é qualquer tipo de aprendizado: como no século XIX, as mulheres eram ensinadas a serem boas esposas. Da mesma maneira, as alunas da professora das pseudônimas de Clarice Lispector são as mulheres cariocas de classe média das décadas de 1950 e 1960 que aprendem sobre feminilidade e como preservá-la diante da inserção ao mundo do trabalho. Essas conclusões são tiradas em uma primeira leitura rasa das crônicas, pois os textos são mais complexos que isso: eles camuflam um impulso à modernidade e ao empoderamento feminino. As temáticas das crônicas são bastante diversas, todas em relação ao mundo feminino, ao “ser” mulher: como atrair um homem, como manter ele apaixonado por você, como ser bonita, como se perfumar, como ter a postura correta, como ser discreta etc. Esses atributos são necessários para a manutenção da figura feminina na sociedade, coberta de pudor e moral, atribuídas às donas de casa e às mães. Para Pierre Bourdieu (2005, p. 36), a moral feminina se impõe pela disciplina relativa a todas as partes do corpo, por meio de um processo de imposição que inclui as roupas e os penteados; por isso, Clarice dá dicas de beleza as mulheres, para que elas se encaixem nessa exigência de padrão da “mulher perfeita” na sociedade patriarcal. Considerando que se trata do meio do século passado, é de se esperar que esses assuntos estivessem em voga, como dito anteriormente, na década de 60 no Brasil a mulher tinha a responsabilidade pelos afazeres da casa, mantendo o estigma

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da que zela pelo lar, pelo marido e pelos filhos. Algumas crônicas contém o estereótipo sobre a personalidade feminina: A mulher, pelo seu temperamento mais afetivo e predisposto ao perdão, esquece com facilidade as más palavras surgidas numa discussão. Com o homem não acontece o mesmo. Conheço alguns que tiveram seus casamentos arrasados por uma palavra ou uma frase impensada de sua mulher (LISPECTOR, 2006, p. 79).

Essas conclusões partem de um imaginário lugar comum da figura feminina, sendo os mesmos argumentos para classificá-la na profissão do magistério: a afetividade e a capacidade de perdoar são características da mulher provenientes da possibilidade da maternidade. Por exemplo, na crônica “A leitura”, em que afirma que não é de grande interesse para mulheres a leitura de livros de economia, de política ou biografias, e sim os livros que orientam sobre a educação dos filhos e como tratar o marido. Depois, aconselha a leitura de livros infantis, para auxiliar na aquisição de vocabulário das crianças e na redução de tempo das mesmas gasto olhando televisão (LISPECTOR, 2006, p. 38). Essas afirmações vão contra a possibilidade de a mulher ocupar diversos espaços e se interessar por assuntos que sejam considerados “masculinos”. Por outro lado, as colunas também trazem assuntos que libertam a mulher por meio do trabalho e da inteligência, além do autocuidado — como emancipador e não opressor, visando o bem-estar feminino — e da importância de ser feliz. Preocupada com a autoestima feminina, a narradora ressalta a importância do autocuidado e de se sentir bonita: “A boa aparência faz com que a pessoa se sinta mais feliz e com um sentimento de segurança que muito ajudará na vida” (LISPECTOR, 2006, p. 19). O trabalho “[...] é necessário não somente como justifi-

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cativa para a vida em sociedade como para a saúde, a alegria e a juventude” (LISPECTOR, 2006, p. 54). Também o clichê de que o homem que governa a casa e toma todas as decisões é desmentido, revelando que a mulher não é passiva e submissa: “À primeira vista, parece que o homem manda, mas é sempre a mulher quem decide” (LISPECTOR, 2006, p. 85). Com a mulher ocupando novos espaços e conquistando sua independência financeira, ela também possui o poder de decisão dentro de sua própria casa. Clarice Lispector evidencia “Hoje, frequentando Universidades, libertando-se dos falsos tabus que faziam da mulher um ser inferior e eternamente submisso, o problema casamento passou a ser encarado de forma muito mais acertada e serena. Se uma jovem não encontra o seu ideal, não casa, pronto” (LISPECTOR, 2006, p. 79). Nessa crônica sobre casamento, a autora desvela os preconceitos sobre a inferioridade e submissão da mulher que não são mais aceitos, pois agora ela estuda e não é mais refém do casamento como sua única inserção social. A relação da mulher com o trabalho e com a inteligência adquirida a partir da leitura revela o papel da autora como porta-voz de uma sociedade em que aos poucos se reelabora o papel da mulher: “[...] Lispector inaugura uma etapa importante para as mulheres, se notarmos que há sensíveis mudanças nessa nova construção identitária de gênero frente a papéis assumidos por mulheres em gerações anteriores” (COUTO; PECINI, 2010, p. 7). Os conselhos dos pseudônimos de Clarice Lispector evidenciam a mudança gradual do status da mulher brasileira de dona de casa à trabalhadora e responsável pelos afazeres domésticos. Logo, não é uma alteração abrupta, pois a mulher ainda mantém os deveres da casa exclusivamente para ela (ou para a empregada, dependendo da condição financeira da família), deixando-a cansada da dupla jornada de trabalho. É nesse momento que as crônicas recorrem ao pensamento de

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Simone de Beauvoir, escritora, filósofa e feminista francesa. A crônica “Mulheres cansadas” é basicamente apenas um trecho de Beauvoir sobre o mal-estar e o cansaço da figura feminina, sendo a autora francesa “a que mais estudou os problemas da mulher” (LISPECTOR, 2006, p. 59). Nesse texto de 1960, Ilka Soares concorda com o argumento de que a maioria das doenças que assola a mulher é de origem psíquica, e não fruto do trabalho. Todas as tarefas que são responsabilidade da figura feminina, além das contradições do ambiente em que vivem, são males que as afligem, as sobrecarregam. O trabalho em si, pelo contrário, ajuda a obter o equilíbrio físico. Já na crônica “Gestos, palavras, atitudes” evidencia a relação de receio com o movimento feminista, pois Clarice Lispector acreditava que ele fazia a mulher se aproximar de características masculinas, como falar palavrões, soltar gargalhadas, cruzar as pernas sem desenvoltura, fumar “como homem” etc. “A transformação causada pelos tempos, pela instrução, pela vida moderna, está mais na mentalidade, na cultura, nas ideias em si, que nas exteriorizações ridículas de um feminismo caolho” (LISPECTOR, 2006, p. 30). Ou seja, há uma distorção do feminismo — sendo ele caolho — que apenas embrutece as mulheres. Para a narradora, a mulher pode continuar sendo feminina e delicada estando a par do seu tempo, sem confundir feminilidade com “futilidade, denguice e falta de personalidade” (LISPECTOR, 2006, p. 30). Estes traços são característicos da mulher e é por causa deles que ela causa encantamento ao mundo masculino. Na crônica “Qualidades para tornar a mulher mais sedutora”, é bastante evidente esse argumento de rejeição à masculinização da mulher que foi trazida com sua emancipação em tempos modernos (LISPECTOR, 2006, p. 100). Ela reitera e ratifica esse pensamento em uma crônica publicada no mesmo ano, chamada “Para as que trabalham fora...”, que as mulheres

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se tornam masculinas por causa do trabalho: “Quando conversam, já não sorriem, as frases são objetivas, geladas, e nenhuma acolhida cordial aproxima-a do seu interlocutor” (LISPECTOR, 2006, p. 19). O temor de ser pouco atraente aos homens por se assemelhar a eles, imitando os seus defeitos, como a agressividade e o hábito de tomar atitudes pouco distintas em público, faz com ele perca o interesse e procura uma nova companheira. Uma leitura seria que as qualidades masculinas estão em chave negativa, podendo-se considerar que Clarice Lispector não quer que as mulheres sejam semelhantes aos homens porque ser homem é ruim, a masculinização é nociva. Socialmente, é favorável ser homem devido aos privilégios — principalmente se for branco —; contudo, a descrição masculina feita pela jornalista evidencia, na maioria das crônicas, que as características atribuídas aos homens de frieza, agressividade, desapego etc. são indesejáveis às mulheres. O que identifica a mulher é a sua feminilidade, que pode ser ameaçada em partes pela emancipação feminina. Contudo, a narradora não é contra a mulher ocupar os mesmos espaços que o homem, muito pelo contrário, e sim se tornar igual a ele por estar no mesmo lugar. Para os pseudônimos de Clarice Lispector, os homens e as mulheres possuem características pré-definidas devido ao seu gênero. Se “ser mulher”, ou seja, possuir qualidades femininas como a delicadeza e a amabilidade, é inerente ao gênero feminino, por que a professora Clarice Lispector precisaria ensinar? Logo, isso significa que os traços identitários da figura feminina são passíveis de serem aprendidos. É cabível a frase de Simone de Beauvoir presente no segundo tomo de O Segundo Sexo (1967) “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (BEAUVOIR,

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1967, p. 9). Evidenciando que as consideradas características femininas são na verdade uma construção social, culturalmente criadas para distinguir homens e mulheres, além de dar poder aos homens. Alguns dos conselhos de Clarice Lispector reforçam essas construções sociais, afirmando que algumas características são mais aconselháveis para as mulheres, como a elegância, a beleza, a discrição, a sensatez etc. Logo, há um paradoxo nas crônicas: Clarice Lispector exalta tanto a mulher emancipada e esclarecida como a mulher esposa e conservadora, isto é, a narradora demonstra que a mulher não precisa ser um ou outro, ela pode ser os dois tipos de mulher simultaneamente, oscilando entre eles. Em sua dissertação “Identidades femininas múltiplas nas crônicas de Clarice Lispector”, Pajolla (2010) elabora sobre a ambivalência da leitora de Clarice: “Já não se sente confortável nos papéis que lhe foram reservados há séculos, mas não tem certeza de que deseja abandoná-los. Alterna desejo e culpa. Seu mundo de certezas ruiu. Essa mulher é uma dúvida ambulante” (PAJOLLA, 2010, p. 74). Prova disso é o argumento do tripé elegância, inteligência e beleza, pois a escritora acredita que é fundamental para a mulher moderna fazer leituras para se manter informada, tornando-se inteligente. Aliás, em diversas crônicas, as pseudônimas abordam tanto referências atuais (como Marylin Monroe e Robert Palmer) como referências canônicas (como Ilíada e Odisseia, Plutarco, Napoleão etc.), servindo para educar intelectualmente a amiga leitora. A máxima da “mulher esclarecida” sintetiza um pouco o tripé: “A mulher esclarecida sabe disso. Ela estuda, ela lê, ela é moderna e interessante sem perder seus atributos de mulher, de esposa e de mãe” (LISPECTOR, 2006, p. 18). O fator beleza pode ser adquirido nas aulinhas de Clarice Lispector: “Com o estado de felicidade íntima, a mocidade volta, a beleza reaparece. Seja feliz, se quer ser bonita!” (LISPECTOR, 2006, p. 24). A felicidade, para autora, é intrínseca à beleza; a

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beleza não serve apenas para encontrar um marido, e sim para ter autoestima e se sentir bem consigo mesma. A linguagem em tom de conselho, de proximidade com a amiga leitora, possui um efeito de dissuasão. Ela se dirige à segunda pessoa, muitas vezes chama a leitora de “amiga”, simulando uma proximidade, às vezes fazendo perguntas retóricas, próxima a uma conversa: “Chamar a atenção não é finalidade de uma mulher elegante e inteligente. Mas sim ser atraente e agradar aos homens. Estou certa?” (LISPECTOR, 2006, p. 17). Ela sabe que sua leitora assídua, que segue seus conselhos, é influenciada por ela e concordaria com sua afirmação. O uso de verbos no imperativo evidencia o tom de ordem, de conselho: “Seja discreta, e veja como os que a cercam tomarão a iniciativa de colocá-la em lugar de destaque, desde que você possua qualidades para isso” (LISPECTOR, 2006, p. 17). Pode-se também depreender que a linguagem das crônicas é direta, informal e pouco criativa, comparada a que a mesma autora usa em seus contos e romances, adequando-se a uma linguagem recorrente na tipologia textual jornal, que possui a proposta de atingir a grande parte da população. A principal característica da linguagem das crônicas é a delicadeza da escritura na forma de conduzir a leitora ao caminho da modernidade feminina. José Marques de Melo (1994) elabora sobre a intenção da coluna jornalística: “Aparentemente a coluna tem um caráter informativo, registrando apenas o que está ocorrendo na sociedade. Mas, na prática, é uma seção que emite juízos de valor, com sutileza ou de modo ostensivo” (MELO, 1994, p. 138). Em diversas crônicas, Clarice Lispector, revestida de algum pseudônimo, afirma para a sua leitora que é pela delicadeza e discrição que a mulher não só conquista o homem como o seu espaço na sociedade. A linguagem que é usada na escrita reflete esse ideal a ser atingido.

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Além da linguagem intimista e da delicadeza, há outro traço que pode ser identificado nas crônicas. Em um de seus textos, Clarice Lispector afirma que a mulher gasta muito tempo e dinheiro para a beleza: “Tudo para o quê? Para conseguir a beleza pela beleza propriamente dita? Não, é claro. Para agradar e seduzir os homens, para se casarem com eles” (LISPECTOR, 2006, p. 70). Essa afirmação pode ser considerada sutil, com toque de ironia, pois em outras crônicas anteriores é afirmado que o importante para a mulher é se sentir feliz, e para se sentir feliz precisa estar se sentindo bonita. Liberta-se do paradigma de que a mulher deve ser bonita para os outros — leia-se o homem —, e sim para si mesma, causando uma sensação de bem-estar com si própria. Em meio a essas ambiguidades expostas nas crônicas de Clarice Lispector, esta é a mulher da classe média dos anos 60: aquela que transita e oscila entre o que se considera antiquado e machista e o que se considera moderno e libertário. Ela se liberta no e pelo trabalho, mas ainda está presa pela construção social da mulher, pela sociedade que coloca regras e pré-define a maneira de viver da mulher e de seu corpo. O papel das crônicas de Clarice Lispector é justamente fazer refletir e aconselhar a mulher sobre os novos paradigmas sociais: a mulher estuda, a mulher trabalha, a mulher pode não casar etc. A decisão dos caminhos a serem seguidos é somente dela. A moça já não está mais na janela, como diria poeticamente a letra de Chico. Uma maneira de atingir suas leitoras — e alunas — é a partir de uma escrita envolvente, próxima e sutil, em um tom de conversa e informalidade. Clarice Lispector elabora com maestria sua linguagem que é delicada como a própria leitora discreta e elegante, sendo seu reflexo e a maneira mais fácil de atingi-la.

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Referências AZAMBUJA, Cristina Spengler. O papel social da mulher brasileira nas décadas de 30 a 60, retratada através das propagandas veiculadas na revista O Cruzeiro. Gestão e Desenvolvimento, Novo Hamburgo, v. 3, n. 1, 2006. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. t. 2. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. COUTO, Caroline Peres; PECINI, Arthur Custódio. A “mulher moderna” em busca de sua “essência”: análise das técnicas e ensinamentos sobre corpo e emoção nas colunas de jornais escritas por Clarice Lispector. Habitus, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 50-67, jul. 2010. KESSAMIGUIEMON, Vera. A educação da mulher e a produção literária feminina na transição entre os séculos XIX e XX. Teias, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, jan./jun. 2002. LISPECTOR, Clarice. Correio feminino. Organização de Maria Aparecida Nunes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. LISPECTOR, Clarice. Outros escritos. Organização de Teresa Montero e Lícia Manzo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. MELO, José Marques. A opinião no Jornalismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista feminina. In: LISPECTOR, Clarice. Correio feminino. Organização de Maria Aparecida Nunes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. PAJOLLA, Alessandra Dalva de Souza. Identidades femininas múltiplas em crônicas de Clarice Lispector. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2010. PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n. 36, jun. 2010. SIMPÓSIO LINGUAGENS E IDENTIDADES DA/NA AMAZÔNIA SUL/OCIDENTAL, 10., 2016, Rio Branco. Anais [...]. Rio Branco: Universidade Federal do Acre, 2016. SOUSA, Beatriz Alves de; PEDRO, Joana Maria. Trajetória das mulheres brasileiras na carreira das letras: ensaio bibliográfico a partir de autores contemporâneos. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 25, n. 1, jan./jun. 2012.

Suspender imagens, inventar porvires: regimes de sensibilidade na pintura de Clarice Lispector

Roberta Stubs Em 1928 Virginia Wolf escreveu o ensaio Um teto todo seu. Convidada para falar sobre mulheres e ficção, a escritora percorreu uma linha do tempo a perceber que às mulheres não era concedido o lugar de grandiosidade e “genialidade” tão frequentemente dado aos homens escritores. Notou também que, por muito tempo, eram os homens que escreviam sobre as mulheres e também para as mulheres, aspecto que julgo inquietante pois diz do modo como nós mulheres, e me coloco aqui como artista e pesquisadora mulher, somos subjetivadas pela ótica masculina. No decorrer desse provocativo texto, Wolf segue localizando inúmeros fatores que interferem diretamente na relação entre mulheres e literatura. Aspectos que englobam a dificuldade ou o não acesso aos estudos que muitas mulheres tiveram; a falta de incentivo para que as mulheres se reconheçam como grandes artistas; a falta de condições materiais e subjetivas para que as mulheres escrevam, sejam reconhecidas e também se reconheçam como escritoras capazes, entre outras. Na base dessas questões, temos uma sociedade patriarcal

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e machista que coloca a mulher em posição de subalternidade, como outro do homem. Essa posição de sujeito, a outra do homem para citar Simone de Beauvoir (1980), tem implicações severas na experiência das mulheres, no modo como elas/nós, vivemos e inventamos o mundo. Afeta diretamente nossos processos de criação e capacidade imaginativa. Wolf defende então a necessidade de que as mulheres tenham um teto todo seu para que possam criar, escrever e existir de maneira mais autônoma e livre. Ela afirma que essa é uma conclusão de ordem material, mas sabemos juntas que há nessa afirmação uma dimensão intangível e fundamental. Um teto todo seu também diz de uma condição subjetiva, uma morada em si que se faça em rebeldia às regras que nos ditam e tentam nos definir. Ouço Wolf (2014, p. 155) dizer “breve e prosaicamente que é muito mais importante ser você mesma do que qualquer outra coisa”. Sermos nós mesmas, um exercício diário de escrita de si, um convite para a dor e delicia de nos descobrirmos e nos inventarmos na prosa dos dias. Será que Clarice Lispector leu esse ensaio? Imagino que sim, mas independentemente dessa certeza, podemos dizer que a geração de escritoras a qual Lispector faz parte, deriva e foi tocada por tudo que Wolf disse neste texto e em outros livros. Uma legião de mulheres escreve quando Lispector ou Wolf escreve. Mulheres pouco valorizadas em seu tempo, mulheres que ousam fazer da escrita um teto, mulheres que se atrevem a ser artistas e que sabem, mesmo as vezes com dúvidas, que a disputa entre os gêneros não diminui o que elas são e podem ser. Muitas dessas mulheres constituem Clarice: múltipla, intensa, enigmática, escritora, jornalista, pintora... Começar um texto sobre Clarice Lispector retomando Virginia Wolf pode parecer estranho, porem me interessa explorar a dimensão subjetiva de se ter um teto todo seu para

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escrever, pintar e criar. Para além do sentido material, ter um teto, uma casa, um quarto, um espaço denotam também uma condição “interna” que garanta uma certa segurança para se acreditar artista. Possibilita construir um território subjetivo que nos dê condições de apostar em nosso trabalho, de investir em nossa produção artística traçando desvios e rompendo com essas forças reativas que nos constituem historicamente como menos capazes. Há nesse movimento, um ímpeto que faz transbordar a subjetividade para fora de si. Um fora entendido enquanto absoluto, uma alteridade infinita que ultrapassa qualquer tipo de dicotomia. Assumo aqui a perspectiva de que o fora do sujeito é a dobra mais interessante da subjetividade (DELEIZE, 2008), (DELEUZE; GUATTARI, 2000, 1997), pois é esta que esgarça a subjetividade para além do individual, despersonalizando o eu ao imprimir neste uma carga de alteridade. Eu-somos no lugar de eu-sou. É como um eu-somos que vejo Clarice Lispector, uma artista e escritora que extrai de sua própria experiência um fora que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. Um fora que diz do mundo, do outro, e de todas as experiências possíveis e impossíveis de serem vividas, sentidas e compartilhadas. Vale pontuar que é somente assumindo uma certa autonomia em relação aos nossos próprios territórios existenciais que a dobra do fora se faz presente. Um autogoverno no sentido de dobrarmos singularmente as forças que tentam nos segregar. Falamos então de um modo inventivo de se viver, uma estética da existência mais afeita aos devires e ao “novo” que à reprodução de padrões e estereótipos. Clarice dizia das forças do mundo, mesmo quando escrevia sobre algo ligado à superfície dos dias. Ao mergulhar na “interioridade” da experiência de suas protagonistas e personagens, nadamos em um mar de sensações que nos singularizam no composto e nos lançam também em devires outros.

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Com Deleuze (2008), entendemos que fazer literatura não se limita a impor uma forma de expressão a uma matéria vivida, trata-se de encontrar uma zona de vizinhança com a experiência do outro, de fazer a vida passar entre palavras sem que esta se feche em uma única posição de sujeito. Há de se flertar com uma certa potência do impessoal entendida aqui como uma singularidade em seu mais alto grau. Impessoal posto que a experiência narrada no texto de Clarice se encontra viva e pulsátil. Pode ser minha, sua ou de outrem, podendo sempre ser atualizada no encontro com o outro. Me interessa muito pensar o espaço que há entre texto e leitor. Um espaço para o encontro, para que algo aconteça, gere aberturas e cave intensidades naquele que lê. Todo um mundo pode emergir desse encontro, todo um teto para os devires que possam nos atravessar. O mesmo ocorre no espaçamento que há entre a imagem e o texto. É nessa extensão indefinida que nos aventuramos quando lançamos vistas para a Clarice pintora, uma das muitas faces dessa mulher multifacetada. Me pergunto sobre os possíveis encontros e desencontros entre a palavra e a imagem? Já de aviso, deixo claro que não iremos nos perder nessa fixação tão comum de buscar nas imagens significados e correlatos de verdade. Nosso interesse é pensar o que pode uma imagem. O que ela nos permite falar, pensar, imaginar? Quais aberturas instaura naquele que olha, no sujeito que acolhe as imagens na retina? O mesmo dizemos das palavras quando literárias. Não o que elas significam, mas de que modo elas nos tocam e nos afetam? É para a potência do fora que iremos nos voltar. O fora da imagem, o fora do texto, o fora do sujeito. Este lugar de pura abertura no qual processos de tradução, transcriação e interpretações múltiplas podem acontecer. Emmanuel Alloa (2015, p. 16), afirma que as imagens são suspensas, “o que elas dão a ver está suspenso [...] o que aparece em imagem resiste à

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generalização, mas excede sempre, no seu aparecer a um espectador”. O autor segue dizendo que, enquanto suspensas, “as imagens requerem uma outra forma de pensar que suspenderia suas certezas e aceitaria se expor às dimensões de não saber que implica toda experiência imaginal” (ibidem). Olhar para as imagens pela ótica da suspensão das certezas e verdades é apostar na experiência imaginativa que ela pode gerar. Expostos ao não saber, lançamo-nos em uma aventura sensível que mobiliza afetos e sensações passíveis de ressignificar o mundo e inaugurar linhas singulares de subjetivação. Essas que lançam os sujeitos para além do artefato individual, entendido aqui como uma espécie de minimundo que tente a engolfar a subjetividade em capturas identitárias, narcísicas e individualistas. As imagens, portanto, assim como a experiência literária procedem por abertura entre aquele que vê ou lê e aquilo que é visto ou lido. Entre esses dois lugares, todo um campo de experiência possível, um vasto espaço a ser percorrido e ocupado pela nossa capacidade de imaginar e criar mundos. Entre imagem-palavra-sujeito, um plano de suspensão também da ordem do estranhamento, posto que abala todo o regime de verdade que rege nossa relação com o mundo. Muito comumente Clarice revela em seus textos um estranhamento com a superfície dos dias, faz isso suspendendo palavras e sentidos, a meu ver, uma estratégia para nos deixar livres e nos lançar na aventura de buscar e inventar nossos próprios nexos e percepções. Uma forma de nos ligar ao mundo por outras vias. No conto Amor, ela escreve sobre o quanto a falta de sentido deixava as pessoas momentaneamente tão livres a ponto de não saber para onde ir. Ana, a protagonista, ao perceber uma ausência de lei se agarra ao banco da frente, teme cair do bonde e treme ao perceber que a lei pode não reger também sua vida. Se agarrar ao banco é uma tentativa de apreender o real, porém, essa realidade já desmoronou um

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pouquinho, não é mais a mesma, assim como Ana também já é outra. Sujeito e mundo suspensos pela palavra e pela imagem de pensamento que do texto nasce. No campo das artes visuais, esse apego ao real se materializa em uma busca de imitar a realidade, seja por meio da pintura ou da escultura. Por séculos foi este o regime de visualidade que predominou nas artes visuais, pelo menos no Ocidente. Vou tomar como exemplo a arte renascentista que ditou e por vezes ainda dita padrões estéticos e juízos de gosto para o que seria ou não considerado arte. Foi no renascimento europeu que a ideia de arte como área de conhecimento específico se consolidou. Escritos e tratados sobre arte e artistas datam desse período. Um “bom” artista era aquele que conseguia transpor para seu trabalho a realidade da maneira mais precisa possível. Uma “boa” pintura, por exemplo, era aquela que conseguia criar uma ilusão de realidade, sendo a tela uma espécie de janela para o mundo: corpos anatômicos, paisagens totalmente decifráveis e linhas retas e lineares predominavam nesse período. Até meados do século XIX uma das maiores funções da arte era representar a realidade da maneira mais verossímil possível, criando uma ilusão da realidade. Uma importante questão pode ser pensada a partir dessa tendência: por séculos consumimos como real não a realidade propriamente, mas sua representação. Criou-se, portanto, uma fissura entre a realidade e a experiência do real, entre subjetividade e mundo. Dessa fissura, vemos emergir um desejo artístico de se expressar mais livremente, dando vazão a singularidade do olhar do artista, como no movimento romântico, e a modos de expressão menos apegado ao estatuto da realidade. A arte então se liberta da busca da ilusão da realidade. Uma grande e nova aventura se inicia, ao romper com a arte clássica e seu naturalismo, os artistas passam a explorar outras linguagens, mais abstratas, mais subjetivas e/ou conceituais. Esse desejo

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de ruptura e descoberta é a alma do modernismo na arte, sua busca, sua realização. As várias correntes artísticas desse período se desligam, de certa forma, do mundo para explorar suas próprias questões e limites, momento que Arthur Danto (2006) denomina de arte pela arte. Daí a existência de tantos manifestos, e movimentos: cubismo, fauvismo, dadaísmo, expressionismo, proclamando o que era e devia ser a arte. Pois bem, onde entra a Clarice pintora nessa história toda? Tem-se conhecimento de cerca de 20 pinturas realizadas pela artista entre os anos de 1960 a 1975, a maior parte pintadas com técnica mista sobre madeira. Longe de encerrar nossa análise em interpretações definitivas, é possível dizer que essas pinturas são, proeminentemente, abstratas e, tal como sinalizamos no parágrafo anterior, denota um distanciamento do real e uma imersão em um substrato subjetivo no qual as cores e texturas dominam o regime de visibilidade. Uma força háptica pode ser extraída de suas pinturas, destronando nosso desejo de acessar a imagem pelo crivo da realidade e dando vazão ao plano das intensidades. Além e aquém da interpretação, temos nesse tipo de pintura um regime de forças que mobilizam sensações e capturam nosso olhar que passeia na superfície plana da imagem a imaginar e buscar sentidos possíveis. Na esteira de Deleuze e Guattari (2012), podemos afirmar que no espaço háptico não é a forma ou a representação que predominam, trata-se de um campo de conexões regidas por afetos e intensidades. Falamos, pois, de um “terreno de conexões proliferantes e devires infindáveis nos quais a identidade é sempre uma multiplicidade [...]” (KAUSTUV, 2002, p. 99).

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Figura 1 – Pintura de Clarice Lispector (1973). Fonte: Acervo Instituto Moreira Salles.2

Complementando a ideia de espaço háptico, recorremos ao crítico de arte Clement Greenberg (2014), que afirma que nas pinturas abstratas o espaço pictórico perde seu “interior” e se torna inteiramente “exterior”. Essa colocação aparentemente enigmática remete à tradição da pintura renascentista que, por meio de técnicas como a perspectiva, conseguia inserir o espectador “dentro” do quadro na medida em que criava uma ilusão de realidade na qual o mesmo poderia se projetar enquanto realidade possível. A queda dessa ilusão se materializa na arte abstrata quando ela elimina a profundidade da imagem, a hierarquia entre os elementos e planos visuais 2  LISPECTOR, C. [Sem título]. 1973. Pintura, técnica mista sobre madeira, 30,7 x 56 cm. Acervo Instituto Moreira Salles. Coleção Clarice Lispector.

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e abole a referência direta ao real. Ao abrir mão de recursos ilusionistas, a pintura se torna uma superfície plana não mais passível de acolher as tentativas do espectador de escapar para dentro da imagem. Em termos de recepção retiniana da imagem, o autor afirma: O olho tem dificuldade em localizar a ênfase central e é compelido a tratar mais diretamente o todo da superfície como um único campo indiferenciado de interesse, e este, por sua vez, nos compele a sentir e julgar a pintura mais imediatamente em termos de sua unidade geral (GREENBERG, 2014, p. 163).

Se olharmos para a pintura de Clarice pela ótica da teoria greenbergniana, é possível notar que não há hierarquia visual na imagem. Vemos pinceladas aparentemente aleatórias que não se atrevem a se fechar em formas definitivas. Muitas são as direções que nosso olhar pode tomar ao passear as vistas sobre a imagem. Blocos de cores roubam nossa atenção que logo se dissipa na textura das tintas e na gestualidade da pincelada predominantemente vertical, porém entrecortada por atravessamentos horizontais. Nosso olhar não descansa por muito tempo nos elementos da imagem enquanto unidades individuais. Mesmo pousando provisoriamente nossa atenção nas cores e nas texturas, notamos a predominância de um todo aberto a infindáveis lances de fruição visual.

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Figura 2 – Luta Sangrenta pela paz (1975). Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa.3

Aberta, a abstração pode ser entendida como uma forma de suspender a imagem, dando vazão à potência que habita o espaço que há entre o que vemos e o que nos olha. Mitchell (2015, p. 182) afirma que as pinturas abstratas são imagens que não querem ser imagens, desejam ser liberadas de seu destino de ser imagem. Como não-imagens ou quase-imagens ou outra-imagem, a pintura abstrata é dotada dessa capacidade de suspender a si mesma e àquele que olha. Sua abertura nos lança no território do fora, pondo por terra nossas expectativas de interpretação, e nos desafiando a experienciar a imagem por meio de outras camadas de sensações. Ao ativar diferentes 3  LISPECTOR, C. [Luta sangrenta pela paz]. 1975. Técnica mista sobre madeira, 30 x 40 cm. Fundação Casa de Rui Barbosa. Coleção Clarice Lispector.

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canais sensíveis, invoca uma subjetividade que ultrapassa o individual posto que não há sujeito no nexo ensimesmado do termo, mas devires e linhas intensivas de subjetivação, mais afeitos à alteridade que à individualidade. Na pintura Caos/Metamorfose/Sem sentido, somos capturadas por pinceladas inacabadas e linhas parcialmente preenchidas por tons de rosa, vermelho e um certo azul. Tais linhas envolvem nossa retina e nos seduz a percorrer a imagem, nos incitando a preencher seus vazios com o que há de nossa imaginação. Os veios visíveis da madeira confundem nosso olhar, que se perde em uma incerteza entre a aparência das coisas e a realidade dos meios. Acho interessante que nessa pintura o esboço é parte do todo, não precisa ser apagado ou coberto por pinceladas. Como parte constituinte da imagem, é uma marca visível do processo de criação da pintura. Processo que evidencia o elemento de metamorfose, já presente no título da pintura, que envolve todo ato criativo. Metamorfose de ideias, de materialidade, de sentidos, tons e texturas que constituem todo trabalho artístico. Um modo de operar processual e aberto aos devires que atravessam, bifurcam e transformam tanto as coisas que estamos a criar quanto a nós mesmo e, por extensão, àqueles que se deixam tocar pela imagem.

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Figura 3 – Caos/Metamorfose/Sem sentido (1975). Fonte: Fundação casa de Rui Barbosa.4

Tanto em seu texto como em sua pintura, um devir-outro se instala e nos puxa para estratos existenciais fora de nós. Em Água Viva, Clarice escreve querer a experiência de uma falta de construção. Um inacabamento que nos remete a aventura do vir a ser. Uma incompletude que não diz de uma falta, mas da potência infinita de fazer-se outro. “E doidamente me apodero dos desvão de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca” (LISPECTOR, 1998, p. 18). Pelas vias da abstração ou da suspensão, Clarice não inventa ou reproduz formas, mas tenta “captar forças” (DELEUZE, 2007), esse plano de intensidades que nos faz surfar nas 4  LISPECTOR, C. [Caos/Metamorfose/Sem sentido]. 1975. Técnica misto sobre madeira, 30 x 40 cm. Fundação casa de Rui Barbosa. Coleção Clarice Lispector.

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linhas do fora (DELEUZE; GUATTARI, 2014). O fora é o mundo, é o outro, é o que ainda podemos inventar. Diz de um plano de virtualidades, de possibilidades e impossibilidades passíveis de serem atualizados ou inventadas como campo de experiência. Ser antes, quase e nunca ao mesmo tempo. Uma abertura a um vir a ser que diz também de um corpo-subjetividade inventivo e sensível às forças da vida, capaz de se deixar tocar e transformar pelas mesmas. Na ausência de um sentido único e definido, uma abertura para o sentir. Como espaços hápticos, as pinturas de Clarice não descrevem uma realidade visível. Seu gesto pictórico não organiza nosso olhar em formas pré-concebidas, mas pede por outros modos de se relacionar com a imagem. Para Jacques Rancière (2010, p. 80), as imagens são operadores de intensidades capazes de redistribuir nossas capacidades sensoriais. Nessa perspectiva, é sobre o regime do sensível que as imagens e a arte podem atuar, cavando outras relações de intensidade com o mundo. Mais do que formatar nosso olhar e subjetividade, trata-se de criar dissensos, de desarranjar os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação. A potência da imagem se dá nessa capacidade de ser vetor para a construção de novas relações entre a aparência e a realidade, mudando também nossa percepção dos acontecimentos sensíveis (RANCIÈRE, 2012, p. 64). Seja por meio da imagem ou da palavra literária, Clarice opera vários deslocamentos entre a realidade dos dias, seus modos de enunciação e o plano sensível que ela torna aparente. De certo modo, ela abre a palavra à outras intensidades, fazendo vibrar novas sequencias de signos e sensações. É muito comum suas protagonistas serem atravessadas por algum evento cotidiano e ordinário que as desestabilizam completamente. Todo um regime de sensibilidade insurge de uma cena aparentemente banal, como um cego mascando chiclete ou o

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pequeno assassinato da formiga. A autora suspende nossos sentidos, cavando na realidade outras profundidades. Feito isso, um outro mundo se abre, os dissensos ficam aparentes, uma certa gagueira se instala na medida em que nasce uma outra língua, para um novo povo, um povo que falta (DELEUZE; PARNET, 1998). Escrever por um povo que falta, nos diria Deleuze, um povo ainda a ser criado e inventado. Um povo porvir em um mundo porvir. Um modo de existir que vire do avesso o anestesiamento do corpo, que não se submeta à escassez do presente, mas que se reinvente sob bases ética-estéticas-políticas que enriqueçam nossas relações. Aquele mesmo/outro povo que Wolf invocou ao endereçar seu ensaio para mulheres que ainda não existiam, quer dizer, existiam, mas eram poucas, ou somente pouco conhecidas. Wolf clamava por mulheres ricas em experiências, cujos horizontes de vida ultrapassassem a paisagem que se via no limite do espaço privado de suas janelas e de sua subordinação às regras de um mundo fortemente patriarcal. Já no final de seu ensaio, Wolf pede para que as mulheres escrevam sobre todos os temas e assuntos, por mais triviais ou vastos que sejam. Ela deseja que as mulheres porvir tenham condições de “viajar e vagar, para contemplar o futuro ou o passado do mundo, para sonhar com livros, tardar em esquinas de ruas e deixar que a linha de pensamento mergulhe fundo na correnteza” (WOLF, 2014, p. 153). Clarice é essa mulher. Não tinha o horizonte como limite, mas como extravasamento. Dona de um território subjetivo que ultrapassa o sujeito e faz transbordar aquele que se depara com seu trabalho. Hábil em suspender a ordem dos dias, em cavar abismos sensíveis e provocar dobras singulares de subjetivação. Ela opera por amplitudes, seja por meio do texto ou da imagem. Ao fazer isso, Clarice inventa outros modos de ser, um devir-mulher, um devir-artista, um devir-animal, um povo por-

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vir. Um vir a ser constante. Uma espiral infinita que nos liga às existências mínimas do mundo pelos afetos e intensidades que ampliam e inventam a vida sob outro umbral de sensibilidade.

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RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. ROY, Kaustuv. Gradientes de Intesidade: o espaço háptico deleuziano e os três “erres” do currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, 2002. WOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

Índice Remissivo

A ANTONIO CANDIDO 106, 161, 269 B BENEDITO NUNES 7, 22, 77, 107, 123, 162, 228 C CONSCIÊNCIA 11, 31, 35, 36, 37, 44, 50, 54, 61, 66, 70, 74, 78, 91, 93, 100, 107, 110, 123, 124, 125, 127, 136, 152, 160, 168, 174, 175, 176, 206, 218, 230, 231, 237, 238, 247, 248, 254, 258, 262 CONTO 27, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 124, 125, 126, 128, 129, 130, 131, 132, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 145, 147, 148, 149, 151, 156, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 182, 185, 186, 187, 193, 194, 196, 200, 201, 204, 207, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 216, 217, 220, 221, 223, 226, 228, 230, 231, 233, 234, 237, 238, 244, 245, 246, 249, 250, 251, 252, 253, 254, 255, 257, 258, 261, 262, 263, 264, 268, 294 CRÍTICA 4, 7, 12, 39, 44, 87, 100, 104, 105, 107, 108, 110, 111, 112, 113, 115, 118, 121, 139, 153, 157, 159, 160, 162, 163, 164, 168, 171, 172, 173, 178, 194, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 212, 215, 218, 226, 228, 247, 264, 310 CRÔNICA 156, 173, 188, 204, 220, 224, 246, 256, 270, 282, 283, 284 D DRAMA 6, 14, 18, 22, 40, 162, 167, 199, 202, 210, 244, 265 E ESPAÇO 34, 35, 65, 66, 67, 68, 69, 72, 76, 78, 79, 105, 107, 108, 113, 119, 155, 161, 207, 211, 232, 235, 241, 244, 248, 273, 275, 287, 292, 293, 294, 296, 297, 299, 303, 305 EXISTENCIALISMO 163 F FEMINISMO 150, 183, 184, 278, 284

I IDENTIDADE 8, 22, 37, 46, 47, 66, 67, 93, 114, 116, 134, 135, 137, 139, 140, 144, 147, 153, 179, 192, 195, 296 L LINGUAGEM 7, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 24, 29, 38, 39, 40, 47, 49, 51, 63, 74, 75, 79, 85, 112, 148, 155, 156, 161, 162, 169, 172, 173, 185, 202, 205, 206, 215, 218, 221, 223, 227, 232, 244, 254, 258, 261, 265, 271, 287, 288 M MULHER 42, 54, 68, 69, 71, 87, 91, 95, 99, 104, 108, 109, 117, 122, 128, 129, 130, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 144, 147, 155, 163, 164, 174, 177, 180, 181, 182, 183, 184, 186, 187, 194, 195, 200, 223, 233, 235, 238, 239, 240, 248, 249, 250, 251, 254, 258, 260, 267, 269, 270, 272, 273, 274, 275, 276, 278, 279, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 291, 293, 303 N NARRADOR 17, 22, 28, 35, 36, 37, 81, 82, 87, 88, 89, 91, 96, 114, 134, 136, 137, 147, 149, 168, 171, 176, 182, 186, 187, 198, 199, 206, 210, 218, 220, 245, 248, 250, 251, 252, 262 P PINTURA 290, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301 R ROMANCE 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 22, 23, 28, 29, 30, 34, 35, 37, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 55, 63, 83, 85, 88, 92, 93, 96, 99, 100, 106, 114, 115, 153, 155, 156, 157, 161, 163, 165, 166, 167, 169, 171, 176, 181, 198, 202, 204, 208, 209, 210, 211, 213, 219, 220, 257, 261, 264, 280 S SER 6, 7, 12, 15, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 29, 30, 33, 38, 39, 41, 42, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 82, 83, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 103, 105, 110, 111, 112, 114, 116, 118, 120, 122, 123, 124, 125, 127, 130, 132, 133, 135, 137, 138, 139, 140, 142, 146, 148, 151, 153, 154, 157, 158, 159, 160, 163, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 175, 177, 178, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 188, 190, 191, 192, 194, 195, 197, 205, 207, 209, 216, 217, 218, 220, 221, 222, 227, 231, 232, 233, 235, 239, 240, 241, 243, 244, 246, 252, 253, 259, 260, 263, 272, 276, 277, 279, 280, 281, 282, 283, 285, 286, 287, 288, 291, 293, 294, 295, 296, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 310 SOCIAL 38, 44, 85, 87, 88, 90, 91, 93, 98, 103, 104, 113, 127, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 143, 160, 161, 164, 169, 170, 171, 172, 175, 177, 178, 179, 190, 192, 193, 194, 195, 196, 208, 209, 220, 254, 258, 260, 267, 273, 274, 277, 279, 281, 283, 286, 288, 289 SUBJETIVIDADE 17, 22, 23, 36, 38, 88, 175, 178, 180, 189, 193, 197, 204, 211, 259, 292, 294, 295, 300, 302, 312

T TEMPO 8, 20, 21, 26, 35, 38, 41, 42, 52, 57, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 77, 78, 79, 91, 93, 94, 95, 96, 99, 103, 110, 111, 113, 117, 118, 119, 122, 124, 125, 127, 128, 130, 138, 141, 143, 150, 155, 158, 163, 167, 180, 186, 188, 196, 202, 210, 222, 232, 234, 236, 237, 239, 240, 241, 242, 245, 247, 248, 249, 250, 251, 256, 267, 275, 276, 278, 282, 284, 288, 290, 291, 298, 302

Sobre o organizador

Diego Luiz Miiller Fascina Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. Fez Pós-Doutorado em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina e atualmente faz Pós-Doutorado em Psicanálise pela Universidade Estadual Paulista. É pesquisador líder do grupo de pesquisa Estudos Literários, da UniCesumar, e participa do grupo Lacanianismo, Literatura e Cultura, da UEM. É autor de Clarice Lispector: uma leitura materialista lacaniana, obra publicada pela Brazil Publishing.

Sobre os autores

Cleber da Silva Luz Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (PLE — UEM). Licenciado em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar — Campus de Campo Mourão). Evely Vânia Libanori Professora da Graduação e Pós-Graduação em Letras na Universidade Estadual de Maringá. É líder do Gaia (Grupo de Pesquisa sobre Identidade Animal), cadastrado no CNPq e reconhecido pelo estudo das relações entre o ser humano por meio da poética, da ética, do direito animal. Orienta projetos de iniciação científica, dissertações, teses que se relacionem com os temas de pesquisa, que focam a humanidade e a animalidade na literatura e na nossa cultura. Gustavo Henrique Dionísio Professor no Departamento de Psicologia Clínica da Unesp-Assis, Mestre e Doutor em Psicologia Social da Arte pelo Instituto de Psicologia da USP, com Pós-Doutorado em Estética pela Fac. de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; é autor de O antídoto do mal: crítica de arte e loucura na modernidade brasileira (Fiocruz), Pede-se abrir os olhos: psicanálise e reflexão estética hoje (Annablume) e organizador de Políticas públicas e clínica crítica (Cultura acadêmica Unesp). Jussara Bittencourt de Sá Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc). Foi professora titular da Universidade do Sul de Santa Catarina, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, Coordenadora do Curso de Letras. Atua na área de Projetos Educacionais e Culturais, desenvolvendo e orientando pesquisas na área de Linguagem, Estética e Processos Cultu-

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rais, com ênfase na literatura, música e teatro brasileiro. Publicou as obras: Cazuza no vídeo o Tempo Não Para (2006), A Nação em cena: Brasil, Teatro, Século XIX (2010). Maiara Cristina Segato Possui Graduação em Letras, com habilitação em Língua portuguesa e Língua Inglesa, bem como em suas respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Paraná-Campus de Campo Mourão (Unespar); Mestrado em Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura e historicidade, pela Universidade estadual de Maringá (UEM). Doutoranda em letras, na linha de pesquisa Linguagem literária e interfaces sociais: Estudos comparados, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Membro do Grupo de pesquisa Diálogos Literários (Unespar). Membro do Grupo de estudo e pesquisa em educação, diversidade e cultura — Gepedic (Unespar).  Marina Bonatto Malka Possui Graduação em Letras licenciatura em língua portuguesa e língua francesa e suas literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2015/1), especialização em Literatura Brasileira na UFRGS (2018/1) e em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica (2020/1) na UFRGS. É mestra em Estudos de Literatura pela UFRGS (2108/1). Atualmente é doutoranda na linha de pesquisa: Literatura, Sociedade e História da Literatura na UFRGS. Mirian Cardoso da Silva  Doutoranda e Mestra em Letras, área de concentração Estudos Literários, na Universidade Estadual de Maringá — UEM. Fez especialização em Estudos Literários na Unespar/Campus de Campo Mourão. Atualmente participa do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura — Gepedic (Unespar) e do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (UNB) e Literatura de Autoria Feminina Brasileira — Lafeb (UEM). Possui pesquisas científicas publicadas sobre literatura de autoria feminina, estudo de gênero, representações identitárias e personagens femininas. Paulo Sérgio Pereira Ricci É graduado em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-PR. Atualmente é doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp-Assis), e professor de Psicologia da Unicesumar. Atua nas áreas de fundamentos da Psicanálise e desenvolvimento humano.

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Roberta Stubs Artista, pesquisadora e professora. Doutora em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista e docente de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá. Inserindo a questão da experiência no lugar da representação, sua pesquisa envolve processos fotográficos e de vídeo, filosofia da diferença, feminismos e corpo. Coordenadora do Dobra, grupo de pesquisa em arte, subjetividade, educação e diferença.5 Rafael Lucas Santos da Silva Doutorando e Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Desenvolve pesquisa sobre o pensamento de Slavoj Zizek e suas aplicações aos Estudos Literários. Possui Graduação em Letras Português/Espanhol e Respectivas Literaturas na Universidade Estadual do Oeste do Paraná — Unioeste, Campus de Foz do Iguaçu. Sandro Adriano da Silva Professor de Teoria Literária e Literatura brasileira na Universidade Estadual do Paraná (Unespar — Campus de Campo Mourão). Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGLit-Ufsc). Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (PLE — UEM). Licenciado em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste — Campus de Cascavel). Stephanye Beatriz Padovani Barbosa Graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Maringá. Desenvolveu projeto de iniciação científica em que estudou a alteridade humana por meio do contato com o animal. Participou também do projeto de extensão Graduação da Letras na Web e do Programa de Residência Pedagógica. Em sua carreira profissional, já lecionou para Ensino Fundamental e Médio. Thays Pretti Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá — UEM e autora de Efêmeras e A Mulher que Ri, livros de crônicas e contos, respectivamente. Atua como revisora e consultora de textos literários e acadêmicos e atualmente é gerente de Livro, Leitura e Literatura na Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Maringá-PR.

5  Para saber mais, acesse: www.robertastubs.com. Acesso em: 11 maio 2021.

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Wilma dos Santos Coqueiro Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Paraná/Campus de Campo Mourão. Mestra em Letras pela Universidade Estadual de Londrina e Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. Atua como professora na área de Literaturas de Língua Portuguesa e Prática de Ensino de Literatura na Universidade Estadual do Paraná/Campus de Campo Mourão. Integra como pesquisadora o Grupo de Pesquisa Diálogos Literários e o Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura — Gepedic, ambos da Unespar, e o Grupo de Pesquisa Lafeb, da UEM. É coordenadora do Núcleo de Educação em Relações de Gênero (NERG), que compõe o Centro de Educação em Direitos Humanos (Cedh), da Unespar — Campus de Campo Mourão.