205 57 86MB
Portuguese Pages 382 [190] Year 2003
Ismail Xavier
O olhar e a cena \1elodrama, Hof6,wood, Cinema Novo, Nelson R odrigues
Cosac & Naify
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cmematecabrasileua
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N/11 1 , '1 111 1 1Vii•1, , 1111 1 I
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l 111IPl111 11 ,1111n1ni 1e 11111 :1 in 1 ·ri r tação dos filmes apoiada na análise de como intera-
µ; ·rais que marcou o cinema brasileiro entre os anos 50 e os anos 90. As
µ; ·111 a
estões discutidas nas duas primeiras partes do livro repercutem nesta 111 1 •r eira pela observação do confronto entre os filmes que adotam os pa-
'S I ruLUra
dramática, o teor da cena e o lugar do espectador. Desta-
·o I rês pó lo · de atenção. Em primeiro lugar, há a questão do olhar e da cena no cinema produ-
cl rões consagrados da indústria cultural (seja Hollywood ou a novela da
zido em Hollywood, posto aqui em confronto com as suas matrizes tea-
'l' V) e os inseridos no contexto do cinema moderno de autor. Renovam-se
trais, notadamente o melodrama do século
desse cinema, o de sua formação e o de seu apogeu, representados por dois
,1í as tensões entre o realismo, o melodrama e as formas mais irônicas de .i pro priação dos gêneros tradicionais, pois o cinema, no diálogo com a
mestres em situações opostas: D. W. Griffith, a encarnação plena do melo-
o bra do dramaturgo, privilegiou os romances-folhetim, as tragédias cario-
drama, e Alfred Hitchcock, a figura da ironia e da autoconsciência radical
1,,1s
da representação. Focalizo também experiências mais recentes que, embo-
XIX.
Privilegio dois momentos
~ as crônicas, afastando-se das peças mais enigmáticas em que se faz
ra mais complexas do que o cinema de Griffith, revelam a continuidade dos
11 i. 1is nítida a distância em face desses pólos mais convencionais da repreu-11,ação. Em meu percurso, a ênfase recai sobre a relação entre o Cinema
códigos e dos valores que marcaram o sistema clássico desde sua formação.
N ,vo e Nelson Rodrigues, um bom laboratório para analisar um exemplo
Em segundo lugar, há a questão dos gêneros dramáticos tal como se
d,1 r ,tação entre olhar, cena e sociedade, em que se debatem diferentes
manifesta em exemplos paradigmáticos, de grande eficácia junto ao
pi 1Ií1i •as da representação que nos dizem muito sobre o processo cultural
público, extraídos do cinema e da televisão brasileiros. Focalizo um cine-
l,1,11.;il •iro entre 1960 e 2000.
1
ma político que incorpora fórmulas da indústria cultural, como é o caso de Hector Babenco, e uma teleficção voltada para a representação da his-
11 AI Ci\N E DO DISPOS ITIVO
tória recente, como o fizeram as minisséries de Gilberto Braga. Esses são 11111 0 r I :; rva Eric Bentley, o jogo da representação define uma equação 111 1,n a p h qual, dentro de certa moldura, A encarna B para o olhar de e
dois exemplos de rep resentação da experiência social que, ressalvada a
t
sua inserção no cinema de "grande público" ou na televisão, colocam o
11 1
problema da relação entre o realismo e as fórmulas do melodrama, seja quando estas se manifestam em uma agonia marcada por conflitos irreconciliáveis (Babenco ), seja quando elas conformam a comédia romântica como espaço de conciliação (Braga). Em terceiro lugar, há o conjunto de ensaios em que examino o vasto terreno das adaptações da obra de Nelson Rodrigues para o cinema ao longo de quatro décadas. Trata-se da mais significativa experiência dentro do eixo das relações entre cinema e literatura dramática no Brasil, país em que tais relações não demonstram grande densidade quando obser-
11 1, i·siô fora dela). Apresentada desse modo, a equação é simples mas, , , :i ' pção mais ampla, ela dá o tom no contexto contemporâneo, 1 111 11 11 , i, nll di sp : iti vos que articulam o olhar e a cena vão além do teatro, da
(q
111
,·.i , da foto grafia, do cinema, do vídeo e dos modos de composição 1 111111 1 ,1 1i.1. 1-:n v lv m outras formas de relação com o mundo fora de tais 111 1 id •a. , •o rn as interações e os jogos de poder de grande incidência 11111 111 ,., 1 vida o rdinária. A crescente importância da imagem num amplo 1 111 1111 I" ,1 11 11 d , ai ivid ades e relações é parte constitutiva de uma nítida onda
1
ili
,., 11·,il i'l., 1 2.
42
burguesa tradicional. A especificidade de Vertov diante dos franceses é a liga-
(;~o qu e ele es tabelece entre desmascaramento e exposição dos processos efetivos d:1produ ção social, das relações de classe, através da montagem cinematográfica.
43
, 1
analítico da imagem - retomam muito do repertório da vanguarda dos anos 20,
inserindo a caracterização do olhar do cinema numa reflexão mais am-
co, verdade foi poesia, originalidade, experimentação; mentira foi a rotina do comércio, o kitsch industrializado.
pla sobre técnica e cultura. Nessa reflexão, a moldura é outra mas prevalece
Não cabe agora a recapitulação do que foram as diferentes versões
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo, revelador, da foto-
desse conflito vanguarda/ cultura de massa em cada país e época. Não o
grafia e do cinema dentro da cultura européia. A promessa então se reafir-
poderia fazer nem quero, pois meu objetivo é saltar dessa primeira refle-
ma, sem as premissas de "expressividade total" e de retorno à natureza.
xão dos anos 20 para uma mais próxima de nós, gerada no contexto fran-
Com Benjamin, ela assume um contorno histórico mais bem demarcado, é
cês pós-68, reflexão que abandonou a tradição de opor verdade e menti-
formulada por um pensamento mais sensível à contradição e ao caráter das
ra, deslocando a discussão sobre a técnica do cinema.
li
1
1
forças sociais em conflito. Pensamento que nos trouxe uma avaliação da
No grande intervalo que saltamos, a crítica avançou na caracteriza-
questão da arte dentro de uma articulação mais lúcida com a conjuntura
ção do olhar sem corpo e suas implicações, notadamente na avaliação de
política e a própria natureza das apostas em jogo na Europa dos anos 30,
sua estrutura mais comunicativa e sedutora: o cinema clássico, olhar da
polarizada por uma confrontação decisiva entre revolução e reação.
indústria, expressão da ideologia dominante nos meios. Extensão do que
l
chamei "olhar melodramático", o cinema clássico é sua modernização. Faz A CRÍTICA DO OLHAR SEM CORPO
profundidade dramática, amplitude temática, concretizando o ver mais e No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema, o pensamento
melhor do cinema na direção de um ilusionismo mais completo - o cine-
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade ( cinema) e mentira
ma clássico é o olhar sem corpo atuando em sentido pleno, conforme a
(tradição cultural), e deu toda ênfase à cumplicidade entre cinema e natu-
caracterização dos seus poderes apresentada em minha primeira descrição,
reza, solidários enquanto um organismo e sua expressão visual, prontos a
que, de fato, ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular, dominan-
expulsar a simulação desde que a nova técnica fosse salva de sua adultera-
Le no mercado, e não a todo o cinema possível. É nele, mais do que em
ção promovida pelo universo da mercadoria. Por esse caminho, a oposi-
qualquer outra proposta, que vemos realizado o projeto de intensificar ao
ção entre um cinema desejado, objeto do recalque social, e aquele que
xtremo nossa relação com o mundo-objeto, fazer tal mundo parecer autô-
realmente impera (a pedagogia da indústria cultural) orienta-se por uma
nomo, existente em seu próprio direito, não encorajando perguntas na
teleologia: o presente é o momento dos entraves que impedem o desen-
direção do próprio olhar mediador, sua estrutura e comportamento. So-
volvimento na direção correta, capaz de realizar as promessas da nova
mos aí convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural.
técnica; o futuro é o preenchimento dessas promessas que, desde já, as van-
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60, dois grandes pólos
guardas anunciam e preparam. Entre 1920 e 1960, os poderes reais in-
de reflexão conduziram a crítica a essa naturalidade postulada pelo cine-
sistiram em repor o mesmo cinema dominante, o que trouxe em linhas
ma clássico: a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operações da
gerais a reiteração da mesma matriz de contestação. O conflito dominan-
111
ntagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referência
te/ dominado, traduzido em termos de verdade e mentira, refez-se ao
· ntral) e a crítica francesa inspirada na fenomenologia, tendo como foco
longo de eixos diversos. Quando prevaleceu um eixo político, o pólo da
maior André Bazin. 3
verdade (futuro) identificou-se à cultura revolucionária o da mentira
'
(presente), às mistificações da reação. Quando prevaleceu um eixo estéti44
[!
com que ele abandone os excessos maiores do passado, ganhe em sutileza,
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f. Bazin, Cinema: ensaios, trad. Eloisa Ribeiro (São Paulo: Brasiliense, r99r).
45
i 1
1
l
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
di' I '·111 •m con siderações de conteúdo (o tipo de universo ficcional ou do•ntári o) . ublinha a postura do olhar em sua interação com o mundo,
que faço agora, pois sua crítica ao ilusionismo começa com a advertência
r 11111
de que a imagem cinematográfica não deve ser lida como produto de um
1, 11ll o
olhar. Para ele, a suposição de que houve um encontro, uma contigüidade
,111
espacial e temporal, entre câmera e objeto não é o dado central e impres-
rn 11, inu idade, trabalhando as incertezas de uma percepção incompleta,
cindível da leitura da imagem. Sua presença na tela é um fato de natureza
11
plástica que deve ser observado em seu valor simbólico, avaliadas as
l' C,11 s1ruto ra
características de sua composição e sua função no contexto de um discur-
•,t·m cortes, observando uma ação em seu desenrolar, um acontecimentQ
so que é exposição de idéias, não sucessão natural de fatos "captados"
(' 111
mais legítima quanto mais reproduzir as condições de nosso olhar
·o racl no corpo, vivenciando uma duração e uma circunstância em sua
lIra I assada pelo mundo. Daí sua minimização da montagem (instância
pelo olhar. A diferença entre um plano geral e um close-up, por exemplo,
da onividência), sua defesa do plano-seqüência ( olhar único,
seu fluir integral). N uma visão mais atual, prestamos atenção especial ao que aproxima apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
muitas vezes não pode ser entendida como "olhar à distância" versus
e· 11 ã
"olhar de perto" , mesmo quando se focaliza o mesmo objeto, mas como
r is1encial de Bazin: há em_ambos, novamente, a atribuição de um poder
confronto de duas imagens de valores distintos. A diferença é de função,
d • verdade e de um poder d~ mentira encarnados em determinados esti-
valor, não de posição no espaço, pois pode não haver continuidade e
los. Para Eisenstein, há um estilo capaz de dizer o mundo social-his~óri-
· homogeneidade espacial para que se possa falar num "chegar mais perto"
·o, colocando o cinema como potência maior no plano do conhecimento.
- tudo depende do contexto do discurso por imagens. Ao contrário de Eisenstein, os críticos inspirados na fenomenologia
-
1
-~
ara Bazin, o cinema é uma espécie de "terceiro estado da criação" e exis-
1 •
um estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua
duto de um olhar - é essencial que ela seja vista como tal - e a sucessão
vssencial abertura no tempo. Contra esse pano de fundo da tradição teórica, a intervenção de
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogêneo.
J ·an-Louis Baudry, em 1969-70, põe em questão a constante promessa de
À imagem-signo de Eisenstein, eles opõem a imagem-acontecimento; à
u 111 estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque às premissas do cinema em
defesa da descontinuidade, própria do cineasta russo, respondem com
µ; ral, examinando mais a fundo as condições do espectador (seu raciocí-
uma defesa até mais radical do princípio de continuidade já presente na
ni o está municiado para analisar o espectador do filme clássico, mas
narração clássica, fazendo a ela um reparo fundamental: se a imagem em
13audry fala em cinema tout court). 4 O horizonte de seu exame é ressaltar o
movimento nos traz a percepção privilegiada do homem como ser lança-
modo pelo qual a recepção da imagem possui uma estrutura que, a seu ver,
do no mundo, como ser-em-situação, a falsidade do cinema clássico está
solapa o reiterado crédito - de Bazin, Eisenstein, Griffith, Epstein - na
na manipulação implícita em sua montagem, pois o olhar sem corpo e a
revelação da verdade como destinação fundamental do cinema. Ele inver-
endossam e defendem a premissa de que, no cinema, toda imagem é pro-
onividência criam, na tela, um mundo abstrato, de sentido fechado, pre-
rc a tradição e vê na simulação, na produção de efeitos (ilusórios) de
julgado e organizado pelo cinema. Toda montagem é discurso, manipula-
conhecimento, o destino maior da nova arte ( visão que julga confirmada
ção, seja de Eisenstein, de Griffith ou de Buiíuel. Em oposição, um crítico como Bazin solicita um olhar cinematográfico mais afinado ao olho de
4.
O mais importante dos textos de Jean-Louis Baudry dessa época, em torno de
um sujeito circunstanciado, que possui limites, aceita a abertura do
, 970, "Os efeitos ideológicos do aparelho de base", está publicado em Ismail
mundo, convive com ambigüidades. Quando pede realismo, ele não se
Xavier ( org.), A experiência do cinema (Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983).
47
r:1ns ·ndente que descortina o mundo e se vê no centro das coisas, ao
pela permanência do ilusionismo do cinema industrial). Isso se dá por
1
força da própria natureza da técnica cinematográfica, herdeira das ilusões
111 •smo tempo que radicalmente separada delas, a observar o mundo co-
da perspectiva, da persistência retiniana (não vemos os fotogramas, vemos
111 0 1 uro
olhar. Nessa apropriação ilusória da competência ideal do olhar,
o que não ocorre na tela, ou seja, o movimento da imagem, e temos a im-
·:-.1ou, portanto, no centro, mas é o aparato que aí me coloca, pois é dele o
pressão de continuidade), da falsa autenticidade documental da fotografia.
movimento da percepção, monitor da minha fantasia.
Rearticulando elementos já conhecidos, Baudry nos traz uma interpreta-
Para Baudry, uma filosofia idealista que postula um sujeito trans-
ção radical que questiona não estilos particulares de fazer cinema, mas o
. ' nd ente em oposição ao mundo objetivo que se dispõe ao conhecimento
fundamento mesmo de sua objetividade como técnica, essa mesma objeti-
•ncontra aí, na técnica do cinema, sua tradução visível. Toda sua ênfase
vidade que tem sido a sustentação maior das esperanças de verdade. Na
r 'c·ú sobre a produção simultânea da imagem e do sujeito -observador
definem um
oniv idente. A engenharia simuladora do cinema define, com~o efeito-
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusões da técnica e desatento às
suj eito, seu teatro da percepção total cujo protagonista sou eu-espectador
implicações contidas na própria estrutura do olhar da câmera tal como se
id entificado com o olhar da câmera.
nova perspectiva, as diferentes posições teóricas, desde
1920,
Nesses termos, o que dificulta a consolidação de linguagens alterna-
dá para nós na platéia. A técnica tem suas inclinações, seus efeitos ideológicos e, ?esse sentido, é ela mesma que impele o cinema industrial a desen-
i ivas
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcio-
1 111 na ilusão seu sustentáculo e os percalços das vanguardas devem-se a
nal. A força de encantamento desse cinema persiste na história porque o
que sua aposta é reverter a função daquilo que já nasceu para cumprir
dado crucial em jogo não é tanto a imitação do real na tela - a reprodução
outro destino. Digo destino porque a lógica dessa teoria transforma o cine-
integral das aparências-, mas a simulação de um certo tipo de sujeito-do-
ma num órgão que surgiu para cumprir um programa: o de objetivar, na
olhar pelas operações do aparato cinematográfico.
"mais verdadeiras" é esse pecado original inscrito na técnica. Esta
,sfera do visível, estratégias de dominação, especialmente as da classe bur-
Avaliar a potência do olhar sem corpo não é então inventariar as
guesa que presidiu sua origem. Assim, antes de instância liberadora, sub-
imagens que ele oferece; é focalizar o seu movimento próprio, sua forma
versiva, a condição do cinema é preencher uma demanda do próprio "uni-
de mediação, o que implica analisar sua incidência no espectador que
verso carcerário", tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato.
vivencia o poder de clarividência, a percepção total. Na sala escura, iden-
Há uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70; a
tificado com o movimento do olhar da câmera, eu me represento como
formulação aqui exposta é a tradução teórica radical dos impasses da con-
sujeito dessa percepção total, capaz de doar sentido às coisas, sobrevoar as
t
aparências, fazer,a_ síntese do mundo. Minha emoção está com os "fatos"
·tação no cinema. Temos o esgotamento de uma teleologia, a da técni·a redentora "entravada" pela poJítica e a economia, e sua substituição
que o olhar segue, mas a condição desse envolvimento é eu me colocar no
1 or
uma outra, a da técnica como instrumento maior de reposição de um
lugar do aparato, sintonizado com suas operações. Com isso, incorporo
sistema de poder. Em consonância com a tonalidade da reflexão sobre a '
(ilusoriamente) seus poderes e encontro nessa sintonia - solo do entendi-
linguagem, a cultura e a ideologia naquele momento, a teoria do cinema
mento cinematográfico - o maior cenário de simulação de uma onipotên-
mais original e polêmica ressalta o lado sistemático, inelutável, das ilusões
cia imaginária. No cinema, faço uma viagem que confirma minha condi-
' ci os enganos do olhar da câmera. Nesse contexto, a própria prática do
ção de sujeito tal como a desejo. Máquina de efeitos, a realização maior do
inema amplia o espaço para a reflexão teórica voltada para a questão do
cinema seria então esse efeito-sujeito: a simulação de uma consciência
simulacro - a citação, a imagem que alude à imagem, o circuito das refe49
rências a si mesmo, que o cinema leva ao paroxismo, entram para valer na
mos o bastante sobre a natureza do espectador, de modo a prever o cará-
esfera da indústria, constituem sua nova marca. Tal reflexão se faz dentro
ter de sua identificação com o aparato, a qual assume uma dimensão
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
única de adesão à imagem por força do efeito-sujeito. Como conhecedo-
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
res do desejo do espectador, denunciamos o conluio desse desejo com o
contemporânea. A imagem cinematográfica é então observada a partir de
programa da indústria e deduzimos daí as alienações do cinema e da pla-
sua participação em outra rede de relações, em que não há lugar para a
téia. Não tenho condições de endossar a generalidade desse saber a res-
interpretação (esse tomar a imagem como representação de algo exterior
peito do espectador; o aparato atua em determinada direção, mas a expe-
a ela), para o juízo da verdade ou mentira; em que se dissolve a oposição
riência do cinema inclui outras forças e condições que não se ajustam ao
aparência (imagem)/ essência (substância)- nada há por trás das imagens,
programa do sistema. A formulação de Baudry, embora inclua com toda
e las valem como efeitos-de-superfície, imagem remetendo a imagem,
a força a dimensão do desejo do espectador, não deixa de ser outra ver-
fluxo de simulacros.
são das teorias da manipulação global centradas em excesso no aspecto
Faço agora uma incursão que não é propriamente no terreno da
programático da experiência, de modo a confundir o processo que efeti-
nova filosofia e das questões mais amplas do simulacro na produção.
vamente ocorre com a lógica ideal do sistema. Focalizo uma situação
Trata-se de uma análise particular no nível da engenharia da simulação,
l. articular, didática nesse contexto, em que é perfeito o funcionamento do
caracterização de um efeito na qual não é necessário assumir as noções
a parato, em que podemos verificar o mecanismo da simulação em esta-
com a mesma ressonância que elas adquiriram na literatura dos anos 80.
lo, digamos, de laboratório.
Fecho a exposição com a consideração de um novo exemplo que, acredito, esclareça algumas observações feitas até aqui sobre a interação entre
IMU LAÇÃO E PONTO DE VI STA
espectador e imagem, so~re o papel da "moldura do sujeito" na leitura. Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
To da leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o cio sujeito
efeito de uma imagem depende de sua relação com o sujeito em determi-
oi servador, não o da "objetividade" da imagem. A condição cios efeitos
nadas condições. Da situação da testemunha de McCarthy, passei a uma caracterização mais detida do olhar do cinema e examinei dois momen-
da imagem é essa. Em particular, o efeito da simulaçã~ apóia-se numa ·on trução que inclui o ângulo do observador. 5 O simulacro parece o
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexão crí-
111 ' não é a partir de um ponto de vista; o sujeito está aí pressuposto. Por-
tica em torno do que há de engano e revelação nesse olhar. A partir de
1.i n I o,
uma discussão mais geral sobre a simulação do fato - na fotografia, no
1\ ·l.1 çã com o sujeito. Num plano elementar, podemos tomar o cinema
cinema - , chegamos a uma questão mais específica: a simulação do sujei-
'< mo modelo do processo. O que é a filmagem senão a organização do
to na estrutura mesma do olhar cinematográfico. Dentro da discussão
" ,1·o ntecimento" para um ângulo de observação (o que se confunde com
mais geral, o exemplo a· seguir envolve uma situação mais complicada do que a das fotos do tribunal - estaremos no cinema. Como inspiração, terei presentes as'lições de Baudry, sem no entanto incorporar o movimento totalizador de sua crítica ao olhar do cinema. Seu amplo diagnóstico, mobilizando a psicanálise, tem como pressuposto o fato de saber-
o processo de simulação não é o da imagem ~m si, mas o da sua
N •ssa · asserções, apóio-me no artigo de Xavier Audouard, "Le Simulacre", in (Paris: Cercle d' épistémologie de l'Ecole N ormale Supérieu-
f ', ,/, ; ,,,..,. pour l'analyse
11•, 11 . , mai .-jun. 1966). O horizonte de Audouard é o de uma discussão sobre o 1d1 •, ,li s1no I latô ni co; seu terreno é, portanto, distinto, e meu empréstimo não impli1,1 11111,1id •nrifi cação à sua perspectiva de análise.
o da câmera e nenhum outro mais)? O que é a fachada de prédio de estú-
leçida a disponibilidade total de Scottie, a situação-chave de Vertigo dese-
dio senão a duplicação do mesmo princípio da fachada "de rua" que su-
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster, ex-colega de escola que,
gere o que não é justamente quando observada de um certo ângulo e dis-
no reencontro, surpreende-o com o pedido para que siga sua mulher,
tância já pressupostos em sua composição? O que é a ficção do cinema
Madeleine. Elster mostra-se apreensivo com as manifestações de ausên-
clássico senão uma simulação de mundo para o espectador identificado
cia que ela apresenta, com os períodos de comportamento estranho em
com o aparato? Vejamos Vertigo ( Um corpo que cai), o filme de Hitchcock realizado
que ela parece ser outra pessoa, viagens de que retorna sem lembranças.
em 1958. Ele é a trama da simulação por excelência, como já foi observa-
proposto. Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine, pesquisa pela
do pela crítica. Trago um aspecto novo à consideração: o do espelhamen-
cidade, recolhe dados essenciais. Um primeiro quadro se compõe: a figu-
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
ra que dela se apossa em seus transes é Carlota Valdez, mulher que viveu
o próprio princípio da narração do filme. Tal como em outras obras de
:111
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
San Francisco no século x rx e que se suicidou em circunstâncias me-
Hitchcock, o cinema clássico aqui opera com eficiência máxima e, ao
lancólicas. Novamente com Elster, Scottie relata as descobertas. O mari-
mesmo tempo, oferece a metáfora viva para o seu próprio processo. Inte-
do introduz novo dado: Madeleine está em perigo de vida, pois descende
ressado nessa metáfora, acentuo nesta análise a mecânica da simulação, o
d ' Carlota, outras mulheres da linhagem cometeram suicídio e ela tem
funcionamento exterior do aparato, não o que, nas personagens, é desejo
,1•·ora a idade de Carlota ao morrer. Na primeira série de passeios de Madeleine, fase em que se compõe
do estratagema e disposição para a vertigem da imagem. Sigamos passo a passo a narrativa, até o ponto que interessa.
1> p1 adro, tivemos uma ostensiva duplicação: num primeiro plano, Scottie
Vertigem, título original, é a palavra que condensa as idéias-força
11bs rva Madeleine, que não reconhece sua presença (ele está fora do ter-
do filme em sua tematização do olhar e do ponto de vista. A apresentação
1i1ório dela) e se põe disponível ao olhar movimentando-se como numa
de Vertigo, criação de Saul Bass, nos traz a imagem do rosto feminino em
1'
close-up, tratado como máscara enigmática, imóvel. Uma aproximação
, ' ·011 ie que vigia Madeleine. São duas esferas, uma dentro da outra, que
maior e um passeio da câmera examinam essa máscara em seus detalhes
11.10 s tocam. Ela enquadrada pelo ponto de vista dele, ambos enquadra-
até que, isolado, o olho ofereça os sinais de vida.. Os seus movimentos, no
i
·na; num segundo plano, ao longo do mesmo eixo, a câmera observa
lllHpo r nós no lugar da câmera. Madeleine nunca devolve o olhar a Scot-
entanto, não criam uma expressão definida, uma intencionalidade do olhar.
111 •, nin ·uém devolve o olhar à câmera (regra do filme clássico). Mas é
Preparam apenas o cenário para um movimento em espiral, na profundi-
,1 1,, bígua essa passividade, pois é o movimento dela que dirige o olhar
dade. Mergulho na interioridade, cujo fundo inatingível está sempre em
tl1•I •, '
recesso. Aproximação e recuo, atração e fuga - a ambigüidade do movimento da espiral figura a experiência matriz de todo o filme cujo eixo é o
·i
ação de ambos que dirige o nosso olhar, sempre na esteira do
l1 11•11il o de observação de Scottie, com quem partilhamos a ignorância, a 1 111
io.' iclade, a descoberta.
percurso de Scottie, profissional do olhar, detetive, personificação da
/\ 1 ó · a segunda conversa com Els ter, o tema do suicídio engendra
vertigem. Logo na primeira seqüência define-se a questão desse protago-
11 111.1 l'llptu ra nesse esquema de perfeita simetria. Madeleine/Carlota
nista: numa perseguição pelos telhados de São Francisco, a vertigem de
1111.1 .· · ,i-1s águas da baía de San Francisco; Scottie a resgata. Permanece-
Scottie o faz responsável pela morte de um guarda que cai no vazio ao
1111 l' p11 ro o lh ar; ele passa ao plano da intervenção e do diálogo. Com os
tentar ajudá-lo. Sentimento de culpa, aposentadoria compulsória. Estabe-
il, 11 ·, j11111 os, ra nha certa concretude o que, em Scottie, é já sonho român53
tico, tonalidade de experiência ironicamente mimetizada pela textura cio
elos no quarto, ficamos ao lado de Judy, nova baliza, e temos a revelação
filme , projetada nos espaços, no som, configurando um desfile de clichês
imediata, sem delongas, que não espera o final: Judy é Madeleine.
do melodrama. Encarnando a figura híbrida de detetive, apaixonado e
Sozinha no quarto, hesitante, nervosa, precisando decidir se foge ou
terapeuta, Scottie permeia cada encontro de inquirições, procura devas-
assume o risco do reencontro com nova identidade, Judy/Madeleine re-
sar o imaginário de Madeleine/Carlota, decifrar a esfinge, provocar a
capitula a trama urdida por Elster. Para livrar-se de sua mulher, ele con-
catarse reveladora, curar a mulher por quem está apaixonado ..Nada nos
tratou Judy para simular Madeleine. Ou seja, assumir essa identidade
coloca adiante dele na investigação.
para alguém colocado no ponto de vista de Scottie. Elster sabia dos pro-
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Mis-
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
são Católica perto de São Francisco, procurando explorar um sonho dela
de Scottie a testemunha ideal, pois era esperado que nunca chegasse ao
que ele julga revelador, sinal de que a solução do enigma está próxima e,
topo para ver Madeleine ser atirada por ele, Elster, quando Judy, com o
com esta, a salvação, superada a pulsão de morte que a domina. Lá che-
mesmo traje e aparência, chegasse, certamente sozinha, ao alto da torre.
gando, tudo se precipita quando Madeleine abandona suas recapitulações
Pensando ser sujeito ativo na cura de Madeleine/Carlota, Scottie tentou
e insiste em caminhar sozinha em direção à igreja, procurando livrar-se
resgatá-la e apaixonou-se por um simulacro, por uma imagem construída
de Scottie, que não consegue enfim retê-la e percebe, em pânico, a torre
para seu ponto de vista. O dispositivo montado estava todo apoiado nas
alta do sino. A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
posições recíprocas de observador e imagem, dueto que deu corpo à fic-
dirigir à capela e à torre, seguida de Scottie que, como suspeitamos,
ção consagrada a posteriori pela sistemática do tribunal (num estratagema
jamais chegará ao topo da escada, retido pela vertigem - e somos retidos
bem mais complexo, Judy/Madeleine ocupa o lugar da falsa evidência
com ele. Ouve-se o grito. Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o
apresentada à testemunha no meu primeiro exemplo). O diagnóstico do
corpo que cai.
suicídio que absolve Scottie é a consumação do crime perfeito. A posição
O ex-detetive vive a reiteração da culpa, a humilhação pública de um
de Elster - aquele que sabe - corresponde à posição do dispositivo narra-
julgamento em que é absolvido porém psicologicamente massacrado; Els-
dor da história no cinema clássico (ele permanece à sombra e orquestra as
ter despede-se olimpicamente, não sem antes também absolvê-lo. Scottie
imagens). Portanto, no enredo que coloca em cena, Vertigo espelha o pró-
entra em colapso, é internado. Quando retorna às ruas de San Francisco,
prio mecanismo desse cinema que, via de regra, constrói-se segundo a
destila sua fixação no passado, volta aos mesmos lugares, quer encontrar
lógica do crime perfeito: define o meu ponto de vista, dá corpo ao simu-
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhança. Um
lacro, é monitor de meu desejo, tal como o dispositivo Elster-Judy-Made-
dia, depara com Judy (Kim Novak, novamente), diferente nas maneiras,
leine-Carlota em relação a Scottie.
no cabelo; distante em termos de classe. Em tudo o mais a réplica de
O filme de Hitchcock vai adian~e, não se reduz à exposição desse
Madeleine. Ele a segue, bate à porta do seu quarto de hotel, explica seus
mecanismo. Este se encontra inserido num tecido de relações que envol-
motivos, convida-a para jantar. Ela d confia, dá provas de sua identidade
vem não só a identidade e o desejo de Scottie, mas também a identidade
(sou Judy, não o conheço), tenta ar jeição, ma · finalmente aceita. Satisfei-
e o desejo de Judy/Madeleine (a simulação não foi apenas para ele, a
to, ele diz a hora do encontro e retira-se. Pela primeira vez em todo o filme
paixão não foi apenas dele). Uma leitura mais completa de Vertigo exi-
não o acompanhamos, nos separamos de seu ponto de vista. De repente,
giria a consideração detalhada do movimento derradeiro da trama. Re-
não é mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar. Reti-
velado, para nós, o estratagema do crime, as questões permanecem na
í4
55
esfera das duas personagens, agora entregues à resolução de todo o dispositivo de
identidade/simulação/vertigem. 6
Tomei Vertigo como um laboratório no qual, sob controle, exibe-se
Permanecendo, porém, nas
uma engenharia da simulação: aquela acionada pelo olhar do filme clássi-
considerações sobre o aparato do olhar, que é meu objetivo central aqui,
co, a qual alia a força de sedução da cena à invisibilidade do aparato. Para
afasto-me do filme, não sem antes fazer breve referência ao que, na parte
íin alizar, gostaria de ir além dessa referência mais imediata ao aparato do
final de Vertigo, devolve-nos à questão da leitura da imagem no cinema.
cinema clássico, pois a análise aqui feita permite uma inversão nos meca-
No reencontro das personagens, Scottie, impelido por sua fixação
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metáfo-
na imagem do passado, insiste em fazer de Judy, nos mínimos detalhes, a
ra da sociedade como "universo carcerário" e se desdobram em imagens
réplica fiel de Madeleine. Ao observar sua metamorfose, redefinimos
do "aprisionamento pelo olhar". Diante dos aparatos de comunicação que
nossa relação com a cena antiga: a imagem de Kim Novak era Judy, que
nos cercam, é comum a caracterização de uma competência de controle,
era Madeleine, às vezes Carlota; Judy possuída por Madeleine (a posses-
de ordenamento, cristalizada no olhar vigilante, onipresente, que se volta
são, transferência, se refaz agora); Madeleine (Judy) falando de sentimen-
o tempo todo para nós. Considerando as tecnologias do olhar, podemos,
tos que eram de Judy (Madeleine), numa duplicação de palavras, expres-
ntretanto, destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
sões, gestos que não permite definir os contornos que separam, uma da
a ação de um olhar que, em vez de estar voltado para mim, olha por mim,
outra, essas quatro presenças. Refiro-me a Kim Novak porque todo o
oferece-me pontos de vista, coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
estratagema do filme conta com os falsetes, fragilidades de seu desempe-
a ironia de Vertigo: Scottie é o olhar vigilante, profissional, mas o proces-
nho, para o bom efeito. A construção das identidades em abismo embara-
so de controle atua em sentido inverso - é o dispositivo que define seu
lha a enunciação dos gestos: como dizer quem "expressa" o quê quando a
ponto de vista). Cercado de imagens, vejo-me inscrito pela media numa
ação dramática requer um fingir fingimento num processo em cascata?
segunda natureza, num processo que implica um cotejo de pontos de vista
Vertigo ilustra, nesse aspecto, o quanto a leitura do rosto está atrelada à
muito peculiar, que me afasta, por exemplo, do enfrentamento próprio da
moldura que possuo e não à exclusiva expressividade da imagem. Tudo
relação pessoal, intersubjetiva. Esta se constitui pela devolução do olhar
nas palavr~s e gestos de Judy /Madeleine ganha um sentido novo a partir
nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado: o olho que vejo
de cada deslocamento do ponto de vista. O que não significa apenas uma
é olho porque me vê, não porque o vejo. Diante do aparato construtor de
questão de espaço e informação, mas inclui, de modo decisivo, uma dis-
imagens, minha interação é de outra ordem: envolve um olho que não
posição particular do observador, que completa a ação invisível do apara-
vejo e não me vê, que é olho porque substitui o meu, porque me conduz
. to (no caso, para a consumação dos efeitos desejados, era preciso que o espectador da cena fosse Scottie, com seu perfil e seu passado).
le bom grado ao seu lugar para eu enxergar mais ... ou talvez menos. Dado inalienável de minha experiência, o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista. Enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos desse olhar. Observar com ele o mundo mas
6. Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade/ simulação/ vertigem e, em particular, sua resolução trágica ao final do filme, ver Robin Wood, Hitchcock's Films (Nova York: Castle Books, 1969), no qual a moldura é a psicanálise; e Nelson Brissac Peixoto, Cenário em ruínas (São Paulo: Brasiliense,
·olocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação om o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, íora do campo, torna visível.
1987), cujo texto pressupõe uma reflexão sobre o mundo dos efeitos-de-superfície,_ o vazio, a dissolução da origem, o simulacro.
56
57
lugar do crime a noção clássica de representação e a teoria do espetáculo, de Grijfith a Hitchcock
' ertas afinidades entre o cinema e o teatro permitem trabalhar ,uma noção ·l ássica da representação válida nos dois domínios, e tomá-la como base para comparar duas teorias a respeito do papel social do espetáculo formuladas em dois momentos do cinema clássico americano: o da formação, cuja figura central é D. W. Griffith, e o do apogeu, cuja figura-chave é Alfred Hitchcock. No que diz respeito às relações entre o cinema e o teatro, meu objetivo é destacar continuidades, não rupturas. Muito já se falou sobre as diferenças entre as duas formas de espetáculo, visando marcar especificidades. Estas existem, mas devo aqui explorar os pontos de intersecção, pois o cinema narrativo quase sempre traz o teatro dentro de si, atualiza gêneros dramáticos, envolve mise-en-scene. A própria experiência de grandes diretores consagra o que há de comum entre palco e tela. De Griffith e Eisenstein a Fassbinder e Bergman, passando por Welles e Visconti, é enorme o elenco de_ artistas que atuaram nos dois campos, de modo a atestar em seu cinema a incidência de seu teatro e vice-versa . A história nos tem oferecido inúmeros exemplos de um intercâmbio que não deixou de ser motivo de incômodo para uma parcela da crítica cinematográfica. Em particular, no início do século xx, por força de um interesse em consagrar o cinema como esfera autônoma no sistema das artes, a tônica dos cinéfilos foi a defesa das virtudes da nova arte muda contra os vícios da cena teatral entendida, de maneira redutora, como mundo da palavra. Numa combinação de argumentos técnicos e morais, em particular o elogio à verdade dos gestos e às revelações do rosto em close-up no cinema, montou-se um
59
esquema teleológico que perdurou por décadas. Segundo tal esquema, a
cm tais pontos extremos de sua trajetória, obras reflexivas que, trabalhan-
nova arte viria coroar um movimento evolutivo em direção a formas mais
do a representação dentro da representação, lidaram com as mesmas con-
"completas" e mais "sinceras" de representação, mostrando-se mais apare-
1radições
\
que mobilizaram filósofos e moralistas em torno do estatuto da
lhada para os desafios da vida moderna. O que está implícito nesse ra-
ena teatral, e seus derivados modernos, na sociedade. É célebre a polêmi-
ciocínio é a idéia do cinema e do teatro como blocos homogêneos de
a que envolveu Rousseau e os enciclopedistas em torno do papel benéfico.
expressão, nitidamente separados pela técnica, n;fo se atentando para o fato
o u corruptor do teatro; são também conhecidos os reiterados debates, pre-
decisivo de que são os estilos, as formas de conceber o espetáculo, seja no
sentes ainda hoje, sobre o efeito das imitações, sobre a representação da
palco, seja nas telas, que definem a relação do trabalho com o teor da expe-
violência e do sexo, no palco, na tela, no vídeo. Nesse sentido, coloco em
riência social e com o seu tempo. Dentro de um certo recorte, é a inscrição
pauta um problema afeto à representação em sentido amplo, esse que per-
de uma peça ou de um filme em determinado movimento estético que cons-
in ite
titui o fator mais relevante da análise, para além das diferenças de suporte
naturalista para o cinema clássico, baliza de minhas considerações.
falar em continuidade quando passamos de um certo tipo de teatro
técnico. Um cinema expressionista exibe critérios de composição que o teatro e a pintura expressionistas ensinam e afasta-se dos princípios natu-
/\ l1EPRESENTAÇÃO
ralistas de representação tanto quanto as obras que o inspiram; o teatro e o cinema enquanto espetáculos populares não se discutem nos mesmos ter-
No artigo "Diderot, Brecht, Eisenstein", 1 Roland Barthes nos lembra da
mos que o teatro e o cinema dirigidos a um público erudito e burguês mais
r ·lação existente entre teatro e geometria, pois o teatro é uma prática que
restrito. Em síntese, não posso tomar Cinema e Teatro no singular para
~11põe um "lugar calculado" do qual se observam as coisas. A condição
encaminhar uma discussão conseqüente de suas relações. Devo fazer de-
pa ra que haja "representação" é o olhar de um sujeito (autor, leitor, es-
marcações, atento ao gênero (de teatro e de cinema) e atento à história.
P ctador ou voyeur) que mira numa certa direção e corta uma superfície
Como observei, vou ocupar-me aqui do cinema clássico, esse que se
d · modo a formar com esta um cone do qual o seu olho ( ou seu "espírito",
forma no período 1908- 19, estabiliza-se nos anos 20 e mantém-se como o
·o rno diz Barthes) é o vértice. Ou seja, temos o lugar da ação, o recorte,
estilo de narração privilegiado pela indústria cinematográfica até o final
o suj eito que observa e a admissão de que algo separa observador e
dos anos 50. Tal cinema atualiza uma forma particular de espetáculo com
ob~ervado, condição para a delimitação dos contornos da cena. A repre-
certas regras de representação, trazendo uma concepção peculiar de sua
ti
função na sociedade. É a articulação entre as normas do espetáculo e a fun-
.' iÇío ao espaço de quem a observa. Essa é uma noção clássica que vale
·ntação sempre se dá dentro de limites, tem seu espaço próprio, em opo-
ção social a ele atribuída que me interessa destacar, e meu percurso envolve
p:1ra a prática teatral dentro de certo período e estende-se ao mundo da
a comparação entre as formas pelas quais, em dois momentos da tradição
1
·la, pelo menos no caso do cinema que me interessa aqui.
clássica, Griffith e Hitchcock afirmaram sua teoria do espetáculo por meio
To'm ando o sentido da "representação" tal como o sugere Barthes, a
de seus filmes. Veremos como, tanto em 1909 como em 1954, uma preocu-
o po ição cena-espectador oferece o eixo que permite ressaltar uma con-
pação com a ética das imagens se expressa no próprio movimento da re-
1i nu i
lade cuja caracterização envolve um conjunto de elementos que
presentação, quando o 'cineasta, ao montar um dispositivo que inscreve a cena dentro da cena, atribui ao espetáculo (teatro e cinema, igualmente) uma determinada função que o legitima. Ou seja, o cinema clássico traz,. 60
,. ,: ,s' artigo de Roland Barthes está no livro
O óbvio e o obtuso, trad. Lea Novaes
i,1 f, Janeiro: Nova Fronteira, [1982] 1990).
61
atestam muito bem a inscrição do cinema numa tradição bem definida de
Uma ocasião significativa em que essas perguntas foram feitas de
espetáculo, pelo menos como este é entendido a partir do barroco e, de
modo a solicitar um movimento em direção ao ilusionismo foi o século
forma mais específica, desde os postulados do drama sério burguês que
xvm, quando na França uma prática teatral que não explorava muito bem
Diderot elaborou no século
Não se trata de recapitular, passo a
essa via aberta pelo espaço do "palco italiano" foi criticada por Diderot.
passo, um percurso de séculos, mas apenas evocar certos momentos da
Espectador insatisfeito, ele recusa o teatro que fazia da apresentação da
história do espetáculo que, sem dúvida, são retomados pelo cinema nar-
tragédia francesa clássica um desfile de atores estáticos empenhados em
XVIII.
rativo no momento em que esse se instaura no início do século xx.
declamações a seu ver enfadonhas, porque apoiadas exclusivamente no
Por volta de 1530 se configura na Itália uma ordem espacial do
efeito da palavra. O filósofo da ilustração rejeita um teatro entendido como
esp-etáculo definida pelo que depois ficou consagrado como "palco ita-
recitação de poesia, por mais nobre que esta seja, e solicita a elaboração de
liano": platéia toda de um lado, ação teatral do outro, ambos encarando-
um jogo cênico que, dando ênfase à expressão dos sentimentos trazida pelo
se em oposição frontal, separados por uma fronteira nítida na qual
gesto e pela fisionomia, crie a ilusão da realidade das emoções sugeridas
"fosso" e cortina materializam a diferença de estatuto dos espaços, o da
pelos atores, faça palpável aqui e agora o conjunto de situações vividas
representação e o da realidade. Tal fronteira emoldura o espetáculo, fun-
1 elas
personagens. Diderot quer ação no palco, reprodução eficaz da vida
ciona como uma janela que se abre para o mundo imaginário da cena que
·m todas as dimensões, especialmente aquelas que se dão para o olhar. O
se desenrola suspensa numa plataforma, à disposição do olhar do espec-
1catro é um tableau em movimento e a ação que acompanhamos no palco
tador que, embora cheio de empatia, permanece ciente do "hiato" que os
leve envolver-nos pela sua capacidade de tornar presentes, ao alcance dos
separa. Uma concepção da pintura que se consolida a partir da Renasci-
se ntidos, os lances do mundo imaginário da peça. A teoria e a prática do
mento, notadamente no que diz respeito ao efeito-janela e à questão do
que ele denominou drama sério burguês, distinto da tragédia, implicam,
profundidade, bem como alguns postulados do ilusionismo barroco dei-
·ntre outras mudanças, a apresentação dos sentimentos tais como se fossem
xam claramente sua marca nesse arranjo espacial do espetáculo teatral.2
vividos naturalmente, um ir além da apresentação convencional, indireta,
Esse arranjo reforça a idéia de que há um microcosmo a se observar
el as paixões, método que vê como próprio do sistema de representações ao
através da moldura separadora, o que gera uma aproximação mais decisi-
gosto do aristocrata do Antigo Regime. Tal como em outras dimensões da
va entre a posição do espectador de teatro e a do observador de um
·xperiência, a cultura burguesa reivindica aqui a natureza contra a con-
quadro (no cinema, em movimento). Uma integração extraordinária de
v nção, não teme o sentimentalismo e chega ao lacrimoso em sua concep-
.,, arquitetura e cenografia dá ao espaço cênico tal estatuto e enseja um tipo
6, e idealiza sua postura no mundo, fazendo do baixo QI uma vantagem
certeza do filho. Simétrica inversão, tal encontro especial não vem aqui
,•li ·:1. O sentimentalismo cerimonioso das seqüências finais quer, com cer-
para manchar a pureza da donzela, mas se coloca como o gesto purifica-
1,•za, dirimir qualquer dúvida em torno da adesão a Forrest. Ressalta sua
dor, ato abençoado da moça poluída pelo mundo, criação de vida que con-
dignidade e a de quem lhe delega o mandato paterno, que o confirma como
trasta com as formas de Jeanny cómerciar com a morte. Trata-se da con-
1•111 singular de uma corrente subterrânea de continuidade dos valores da
cepção de Forrest filho que Forrest pai, como Joseph, só vai descobrir
l,1111 íli a como substrato nacional. Tudo se fecha numa chave elegíaca que
quando a heroína vê a morte já bem perto. No meio tempo, entre o ato
1il .1sta as gracinhas de um "olhar de cima" dirigido ao herói que foi sem
sexual e o reencontro, Jeanny usufruiu da modernização e, sem enfrentar
tl (1vicl a o núcleo, porém raramente o alvo maior, da ironia com que o filme
120
0
121
tratou o poder político e a rebeldia, reservando ao provincjano recluso, com
il ,• 11111 sa l era mais, de um ver além da figura que está com a palavra. Mas
ares de mônacla, a condição de reserva moral da nação.
11 ,111 (.•
Ao longo cio filme há oscilações de tom, mas o tratamento das cena
·1'q uem exclusivamente narra; o relato não se faz a rigor a partir do
1•11 po n1
de vista, como poderia ocorrer num romance narrado em pri-
tende a apequenar os envolvidos, exceto Forrest e o núcleo cios que lhe são
11 li' i r.i
p ·ssoa, situação em que teríamos a voz do próprio herói como única
íntimos e solidários. A incompreensão que ele exibe das situações vividas,
1, 11 11 · s11 g stiva de qualquer efeito. No filme, a banda de imagem desenvol-
a forma mecânica com que obedece a ordens e assume tarefas, a estupidez
1•
com que responde a perguntas, suas citações da filosofia materna, tudo isso
li ,, 1p :la a voz da personagem e produz os efeitos que resultam cio con-
não afeta seu prestígio. No outro pólo estão as agitações de uma história
l1111110 ntre a palavra e a cena, esta dizendo sempre mais e expondo os
política na qual a glória é efêmera, presidentes são reiteradamente baleados
11111 iIcs da intelecção de Forrest. 1 Com esse método, a miopia do narra-
e projetos de mudança desenham-se como modas passageiras ou insensatez
i!, 1, J.'o rrest escancara-se e, ao mesmo tempo, compõe um álibi eficiente
de radicais, não encontrando sujeitos dignos da tarefa . Muita gente proj eta
p,11 .1 o se ntimentalismo que, afinal , não é só seu, trazendo o espectador
seus próprios delírios na palavra, no silêncio ou na açào de Forrest.
1•
·om relativa independência - há como que uma outra mediação que
°
l',11 ,1 rna i perto cio seu cérebro acanhado que termina por receber adesões
Contra si mesmas, as personagens históricas, os movimentos sociais
1'''111 ·si-il o franco e direto. Esse duplo canal de enunciados é um traço
e as lutas políticas incorporam-se ao trajeto enquanto estereótipos, frases
11111dr rn o do filme que, tal como as citações, engendra uma forma mais
chapadas, clichês de comportamento. Em contraponto, Forrest, protegido
111 1,il de compor a fábula que repõe os termos da estética providencial
pela Providência, se sai bem, sistematicamente. Guerra, esportes, mundo
1111ri~111 a. Está lá a voz over do protagonista, a lembrar os avanços da nar-
da mídia e negócios são espaços de uma ligeireza cômica em que a esfera
1,11 1v:1 moderna na articulação de palavra-e-imagem, construção de cote-
pública nivela-se por baixo. Parentesco, afetos e amizades são dados de um
i"' irt)ll icos para deleite da platéia. Mas não estão lá as implicações mais
drama sentimental que reafirma o valor da personagem e dos seus eleitos.
l111 1d.is do método que, a partir do film e noir e especialmente de Welles,
No plano prático da vida, a vitória de Forrest é o ápice de um inverossímil
111,11' ·ou um cinema que assumiu para valer os desafios do contexto moder-
desejado pela fábula. O filme quer contrapor-se à tônica dominante do
111 , ,, .1 in stabilidade da experiência urbana, sem as âncoras aqui mobiliza-
cinismo e das constatações pirotécnicas do poder da violência, quer ironi-
il ,1•,, !•:feitos complicadores e toques de ironia tornam Forrest Gump mais
zar os super-heróis da g unfighter society, condecorando um corredor que
111 11•rtssante que os melodramas canônicos, mas não impedem que nele se
levou um tiro na bunda; mas sabe serem ineficazes suas inversões, a menos
111 111'i µ; ure, a sério, a sacralização de um núcleo estável de domesticidade e
que mobilize princípios construtivos modernos, crie uma sensação de inte-
1, ,d · ao sentimentalismo (não propriamente aos sentimentos).
ligência enquanto sugere a força maior dessa combin ação de bons senti-
) castelo da pureza assume aqui feição radical; o herói atravessa o
mentos e estupidez. Decisão crucial, evita reafirmar seus valores por meio
1111 111do sem mácula, assume múltiplos papéis sem se contaminar, pois sua
da autoridade de um narrador externo que intervém e avança sentidos
1s valores dignos de louvor são encarnados em gente transparente e de
lha na zona sul do Rio de Janeiro como caixa de um clube noturno. Seu
h1ia índole, e os valores a serem rejeitados encarnam-se em gente de natu-
ex-marido é um músico medíocre, mas "um bom sujeito". Apesar de con-
1·t·za perversa, o que se reconhece pela cisão entre aparência e essência,
fuso e de pouca valia na educação de Marcos, ele é um amigo da casa,
1
mantendo em bons termos sua relação com a ex-mulher e com o filho. D
\º, trazem valores de produção e um estilo de fatura bem a gosto do que
opera apenas na,zona norte; tem contatos internacionais, casas espalha-
1 •
das pela cidade e assume ares sofisticados. A criação do estilo "filme policial de padrão internacional" marca a escolha dos ambientes e dos
11,11uralismo que marcou a segunda onda. Ao contrário da safra 19 s0 , ,•sses dois filmes empenham-se mais no cultivo do bom gosto na esfera do
tipos, dissolvendo uma premissa da peça, concentrada em um mundc >
,l,·.,ign, com roteiros mais elaborados e melhores desempenhos dos atores,
mais acanhado. Na composição do mito do Boca de Ouro, Avanci11i
,·m o açodamento de então n a lida com o erotismo. Todos os textos de
.i
via mais comercial do "cinema da retomada", agora no entanto sem 0
explicita na tela seus dois pontos extremos: nascimento e morte. Sfío
p.trl ida
cenas-chave na construção da ironia barroca dirigida à personagem, poi:1
11
são curtos, fonte de exercícios em torno de uma fórmula, e vale aí
contrapõem situações grotescas ao sonho de grandeza e à ambição eles
prazer da composição visual, o contraste entre a cor esmaecida e a cor ,.iturada, o vermelho-sangue no clímax da ação dramática. Há um desfi-
medida. Logo no início do filme, o destino de morte no "lixão", com
l11t t rno das personagens que estão a recordar ou expor seu mundo inte-
lica" de Patrício contra Herculano, que, ao contrário da armação d('
1i, 11· em outra forma de atualização visível (em oposição à simples hipoti-
Amado Ribeiro contra Arandir, não se insere no campo profissional do
posc). Define-se aí, na figuração do processo psicológico, talvez o palco
interesse e do comércio da notícia, é pura figura do ressentimento. O
qtll'
111,tis decisivo do drama, mesmo no caso de algumas tragédias cariocas, e
não exclui, no caso do jornalista e de sua empreitada lucrativa, a exibiç~o
11.io só em Vestido de noiva ou Valsa n. 6. O momento zero em que se dá o
de um estilo cafajeste e de um teatrinho sádico diante das mulheres q11 ('
11•1rno ao passado define um ajuste de contas com feridas que o aconte-
projetam o perfil dele na esfera do rancor, tornando-o a versão extrem~1
' 1111ento novo faz vir à tona (ou ao palco). Voltando a Vestido de noiva,
da de uma ambígua (reveladora) homofobia que passa a cercar Arandir pria do cinema. É sintomático que, dentro ele uma moldura geral de 21
Jabor opta por diminuir o papel de Patrício nà história, visto que sua atenção st•
concentra na oposição direta entre Herculano e Serginho, principalmente no fim , t i que está de acordo com sua ênfase no declínio do pai; o lado bíblico do complô du irmão contra o irmão e a função de Patrício como condutor da traina atenuam-se. Na l
peça, ele é a figura do ressentimento bem-sucedida na vingança, um anti-Peixoto.
220
\ .il o rização do efeito impactante da imagem ( cena visível), tal teatro 111,lt)ifeste sua " cinetropia" nas instâncias em que se trata - para o protag1111ista que enseja tal recuo no tempo - de uma reapresentação, de uma 1111.,gem mediada, embora sua fluência na sucessão aparente autonomia
221
(e nos convença disso enquanto a seguimos). É nessa autonomia aparen-
Parte III
te da cena - talvez metáfora para um senso interno de potência individual da personagem, enquanto sua ação, em verdade, faz mover um mecan ismo implacável - que se apóia a intensidade do efeito dramático. O caminho das tragédias cariocas não é o de explorar a dimensão épica desse procedimento (chamar a atenção para o narrador), pois seu diálogo mais peculiar, no aspecto da armação das peripécias, é com os dispositivos do melodrama, apanágio do ressentimento e de sua teatralização em cenários não raro sadomasoquistas. Tais dispositivos, no entanto, são deslocados e submetidos a um outro ponto de vista, não tanto por moldura ou comentário externo à engrenagem, mas pelo que, dentro dessa, se expressa no estilo das falas e dos gestos. O teor de melodrama contido nos excessos e no lado kitsch das personagens se compensa, então, pelo descompasso entre o teor da cena - que segue a tônica de trazer tudo à superfície, própria do gênero - e a ironia implicada em sua forma, velocidade, enunciação verbal. A personagem reivindica crédito, expõe sua verdade, mas a peça não endossa, sem mais, sua peroração. E os filmes foram tanto melhores quanto melhor trabalharam e, às vezes, radicalizaram esse procedimento; no caso, valendo-se dos recursos especiais do olhar que o cinema tem ao compor a cena.
222
li ~I
/\
O CINEMA NOVO LE NELSON RODRIGUES
K
Boca de Ouro o mito, a mídia, a cena doméstica e a cidade
O teatro e o cinema modernos no Brasil são experiências que só se adensaram nos anos 60. São duas formas de expressão que estiveram ausentes das manifestações mais incisivas do Modernismo brasileiro nos anos 20 e 30 (as peças de Oswald de Andrade só foram encenadas muito depois). No cinema, afora o exemplo de Limite [1931], de Mário Peixoto, foi preciso esperar o Çinema Novo para encontrar os influxos de uma estética moderna. Quanto ao espetáculo teatral, o momento hoje mais celebrado como inaugural de sua modernidade foi o ano de 1943, quando o grupo carioca Os Comediantes encenou a peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. No entanto, um processo mais consolidado de encenações e textos brasileiros modernos, com diálogo entre autores e encenadores, e polêmicas, só ocorreu de fato quando nos aproximamos de t960. Nos anos 50, a consolidação do gênero "grande teatro", atestado pe]a presença do
TBc,
entre outras companhias,
criou condições para laboratórios dramáticos dos quais emergiram novas propostas de atualização da cena brasileira, como a dos jovens do Arena e do Oficina, numa transformação do teatro que poderia ser vista, grosso
modo, como paralela ao processo que preparou o Cinema Novo. Mas seria uma ilusão supor que tenha havido um diálogo forte e continuado entre esses dois terrenos, o qual foi mais tímido do que seria de esperar. 1 Há
1.
A peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam hlack-tie, encenada pelo Tea-
tro de Arena em 1958, é considerada um marco do teatro brasileiro. Essa ·peça, em versão atualizada pelo próprio Guamieri, chegaria ao cinema somente em t980, em filme dirigido por Leon Hirszman.
·. >
exemplos, como O grande momento [1958], de Roberto Santos, comédia rea-
iria aclimatar o legad0, de Brecht ao contexto do cinema brasileiro que
lista que traz a incorporação dos atores e das preocupações do Teatro de
trabalhou em combinação com outros influxos, como nos filmes de Glau-
Arena, a partir dos pressupostos comuns de uma cultura nacional-popular
ber Rocha, Joaquim Pedro e Leon Hfrszman. Politicamente conservador
de esquerda. A partir de 1961, atores, cineastas, escritores e encenadores
Nelson Rodrigues, já ent~o o nome mais consagrado da dramaturgia bra-'
uniram-se nos chamados Centros Populares de Cultura (CPC), ligados à mi-
sileira, viu seu teatro chegar ao cinema naquele mesmo ano, com Boca de
litância política universitária, dando frutos como o filme Cinco veres fàvcLa
Ouro, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. O cineasta de esquerda, iden-
[1962], de que participaram jovens cinemanovistas.
tificado com o neo-realismo, filma um drama no qual há uma passagem em
No entanto, observada a conjuntura de início dos anos 60, verifica-se um jogo de contrapesos surpreendente: de um lado, há a presença comum
11
0
que clara ironia é endereçada ao movimento italiano, e faz das tensões entre seu ponto de vista e o do dramaturgo um fator de enriquecimento.
de movimentos renovadores no cinema e no teatro; de outro, embora a
Essa inversão de expectativas quanto à direção em que se deu o diá-
atmosfera ideológico-política aproximasse esses campos, a dramaturgia
logo entre cinema e teatro repete-se em r964-65. Anselmo Duarte adapta
brasileira, em termos estéticos, pouco influiu no Cinema Novo, não só
Vereda da salvação, peça de Jorge Andrade que poderia ter sido objeto de
porque ele se afastou da experiência do
por força de sua opção pelo
uma criação de G lauber Rocha, uma vez que focaliza o messianismo
cinema de autor, mas também por escolhas dos cineastas ditadas por cir-
popular e a questão das comunidades pobres do campo. Por seu lado, o
cunstâncias e não atreladas a um conteúdo programático de pedagogi.1
Cinema Novo filma, novamente, Nelson Rodrigues. Leon Hirszman rea-
CPC
política. Claro que uma nova cultura teatral, feita de um diálogo mais efe-
1
liza A falecida, outra produção de imagens fortes originadas das mesmas
tivo com a cena moderna, de Brecht a Artaud,-se fez presente no cinema,
1
mas autores como Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho não chegaram
tensões ideológicas entre cineasta e escritor, agora vividas de uma forma ainda mais incisiva. 2
então às telas. Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, foi filmado em 1963,
No longo prazo, a aproximação entre cinema e teatro reservaria
mas por um diretor de teatro, Flávio Rangel, que não pertencia aos gru-
11ma crescente hegemonia a Nelson Rodrigues, adaptado por cineastas de
pos que agitavam o mundo do cinema. Orfeu da Conceição, peça de Vini-
todas as tendências, enquanto Jorge Andrade e Dias Gomes, por exem-
cius de Moraes, tornou-se um filme francês dirigido-por Marcel Camus
plo, não voltariam ao cinema. 3 Dentro desse quadro, vale a pena deter-se
em 1958, visto equivocadamente no mundo inteiro como se fosse expres-
na observação de Boca de Ouro, primeiro afo das relações entre o Cinema
são genuína de um ethos nacional.
Novo e o dramaturgo, filme cujo valor pode ser mais bem reconhecido
Dentro desses descompassos, 1962 trouxe um movimento cruzado
hoje, quando temos uma história das adaptações de Nelson Rodrigues e
dos mais significativos. Dias Gomes, um dramaturgo de esquerda, chega
'>:tbemos o parco resultado que tiveram, na maioria dos casos. Ao mesmo
ao cinema pelas mãos de Anselmo Duarte, cineasta ligado à tradição da
lt·mpo, as inúmeras encenações de peças do autor incluem um espetáculo
Vera Cruz e pouco afeito às preocupações políticas dos jovens. A experiência, nos termos desejados pelo diretor de cinema, tem enorme êxito, e o filme O pagador de promessas ganha a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Na época, foi identificado pelos europeus como exemplo do Cinem;1 Novo embora fosse mais afinado ao cinema clássico e distante do ideário )
do cinema moderno, tal como expresso na "estética da fome", proposta gue 226
' . Para uma análise em detalhe, ver cap. 9, infra. 1· Nos anos 70, ambos seriam mobilizados pela TV, e Dias Gomes, em particular,
t«•l'i,1 papel importante no elenco de dramaturgos que aclimataram o projeto do tea1"º nacional-popular para os termos da telenovela, na qual conseguiram, com p, t•c;o que se sabe, uma relação mais orgânica com o público.
0
como o Boca de Ouro do Teatro Oficina, de 1999, em que se exacerba a
afeitos ao gênero policial clássico, e a força do diálogo reque r uma decu-
dimensão mítica da peça, numa encenação que se emoldura como uma
pagem mais precisa do que a encontrada em seus filmes anteriores. Boca
liturgia, de modo a estimular um olhar retrospectivo que, por suas dife-
de Ouro marca o encontro entre um herdeiro do neo-realismo, o movi-
renças, repõe ó interesse nas soluções encontradas, segundo o clima da
mento italiano tão decisivo na formação do cinema moderno, com a clra-
época, no filme de N e~son Pereira. Esse produto teve atenção menor na
maturgia de Nelson Rodrigues. A relação é tensa, pois Nelson intensifica
história do Cinema Novo e cabe agora reavaliá-lo. Primeiro, porque ques-
as peripécias, exacerba as situações-limite, afastando-se da representação
tiona o clichê da ausência de filmes urbanos na fase de emergência do
do cotidiano no ritmo da vida comum, daquela consagração do instante
movimento. Segundo, porque tem ressonâncias claras em outras expe-
qualquer solicitada por Cezare Zavattini, o principal roteirista e ideólogo
riências da década. Como já observei em Alegorias do subdesenvolvimento
do neo-realismo. Inversões e golpes de teatro marcam um senso dramáti-
(1993), Boca de Ouro, peça 'e filme, foram uma inspiração decisiva para
co mais afinado àquele que Hollywood tratou de adaptar para si, desde o
Rogério Sganzerla em O bandido da lur_ vermelha [1968], no qual são evi-
transplante bem-sucedido do melodrama no início do século xx. E a essa
dentes as citações de Nelson Rodrigues, ao lado da presença de Oswald
convergência de sensibilidade entre Nelson Rodrigues e a tradição da
de Andrade e de Glauber Rocha. Se observarmos a relação com o kitsch,
indústria vem somar-se sua postura avessa aos pressupostos humanistas
tão central na paródia do tropicalismo em 1967-68, vale lembrar a presença, já na peça, de uma visão irânica - atraída pela vivacidade mas com
do neo-realismo, identificados com uma visão do popular que ele ironiza exatamente em Boca de Ouro.
fundo crítico - dirigida à grossura do bicheiro e à retórica dos jornais,
Num certo momento do segundo ato da peça, Maria Luiza, o este-
que encontrará terreno fértil no cinema e no teatro brasileiros· pós-Terra
reótipo da grã-fina da zona sul, faz uma visita ao endereço suburbano do
em transe [1967] e pós-O rei da vela, encenada em 1967.
Boca de Ouro, procurando estreitar sua relação com o famoso bicheiro; dessa vez, leva duas amigas à cata de donativos para instituições de carida-
O HERÓI GROTESCO E SUA TRAGÉDIA
de e deslumbradas com a excursão a Madureira. Olhando para o protagonista, ela diz às amigas: "O Boca não é meio neo-realista?", e uma delas
A peça Boca de Ouro foi escrita em 1958. E Nelson Pereira dos Santos, em
responde: "O De Sica ia adorar o Boca". As observações trazem uma di-
1962, foi convidado a dirigir o filme, resultado da iniciativa de Jece Vala-
mensão cult e frívola que inscreve a figura
dão, produtor e ator principal, que já trabalhara com o cineasta na década
no referencial estético do então ".cinema
anterior. O ator já tinha boa experiência interpretando personagens trucu-
de arte" e desloca o que é, de fato, expec-
lentas da zona norte - como o malandro violento de Rio 4 0 graus [1955) -
tativa de encontro com uma sensualidade
e apresentava-se como possuidor do rosto e do estilo ideais para repre-
mais "selvagem". Aqui, toda uma expe-
sentar tipos ousados e ambiciosos, como o protagonista de Os cafajest e.,·
riência cultural de contato entre classes
[1962], de Ruy Guerra, e o bicheiro de Nelson Rodrigues. O cineasra
apresenta-se em versão degradada, e o
pôde retomar o universo do subúrbio carioca, agora explorado em out n 1
envolvimento com a questão social de tipo
tom, mantendo o fundo social mas com maior complexidade na trama r
humanista e democrático, característico do
nas motivações psicológicas das personagens, dado o texto teatral cl1·
pós-guerra em diferentes países, amesqui-
apoio. Nelson Pereira combina seu tom realista com dispositivos rn:1i :i
nha-se. O ar sonso de Maria Luiza e a aura
228
\
229
que procura criar com a adesão a práticas esotéricas (que tanto impressio-
Guardadas as diferenças, tanto o filme de gângster quanto a peça
nam o Boca) projetam sobre o neo-realismo um halo de inconseqüência,
inspiram-se em dispositivos muitas vezes trabalhados num tipo de roteiro
reduzindo-o a um item de consumo conspícuo dos ricos, de mesmo teor
trágico acionado pela ambição desmedida do herói. Mas estão ambos
que o turismo sexual na zona norte. Há um olhar entrecruzado em que o
igualmente marcados por um jogo de motivações mais recente, de cunho
imaginário do bicheiro e o da grã-fina convergem, selando a atração mú-
naturalista, em que os traços decisivos da personalidade do protagonista
tua. Como veremos, ela é uma personagem-chave da peça, mas por ora
estão associados aos dados adversos de sua origem social, acrescidos a par-
vale essa cena como cristalização de uma polaridade entre os mundos do
ticularidade humilhante do Boca, nascido num banheiro de gafieira. Há,
dramaturgo e do cineasta, desafio para Nelson Pereira, que não descartou
obviamente, muita coisa que afasta a peça do naturalismo, a começar pela
seu viés realista ao filmar a peça e manteve a fala de Maria Luiza tal e qual ,
forma mais irreverente, diante do convencional, com que Nelson Rodri-
devolvendo de bom humor a provocação.
gues trabalha os excessos da personagem-títu lo. Enquanto Scarface é o
1
Esse lance anedótico remete a minha pequena crônica do quadro
nome público cunhado pelo traço adquirido por um fer imento não deseja-
ideológico de início dos anos 60, quando os valores de um Cinema Novo
do, embora típico ao seu mundo de violência, Boca de Ouro é o nome
emergente criavam arestas com o teatro de Nelson Rodrigues, principal-
assumido a partir de uma escolha deliberada, de um gesto aparentemente
mente quando lido num registro mítico, o que nesse caso se liga à atualiza-
absurdo do protagonista no momento em que chega ao topo, hora de luxo
ção de esquemas que remetem à tradição do filme de gângster. Basta lem-
e capricho. Há aí um simbolismo que retoma o código da tradição religio-
brar Scarface [1933], de Howard Hawks, que acentuou uma dimensão
sa, pelo qual a hierarquia dos seres se exprime na fisionomia (ou a subs-
trágica no percurso de ascensão e queda do chefe de quadrilha urbano, rei-
tância moral se traduz nas aparências), o mesmo que o naturalismo resi-
terando o recurso a passagens sinalizadoras da idéia de destino e vocação,
dualmente incorpora. Nelson Rodrigues faz valer esse código mas vai
e compondo uma trama na qual o homem poderoso se deixa destruir por
além da medida. A nota distintiva do herói é excessiva e já quase paródica,
um ponto fraco localizado na esfera da vida privada, não na natureza dos
e o código, embora presente, traz um toque expressionista que desestabili-
seus negócios. A paixão e o ciúme pela irmã, no caso de Scarface, trazem
za a tônica de transparência do melodrama. Para complicar, Boca de Ouro
ao centro o drama familiar como agente do destino, o que, em outros ter-
define-se na peça quase sempre como figura refletida no espelho dos
mos, também acontecerá com Boca de Ouro, fixado na imagem da figura
outros, uma personagem em segundo grau que, por isso mesmo, diz tanto
materna. Na cena hollywoodiana, o dispositivo familiar insere-se num
sobre seu contexto quanto sobre si mesma, pois tudo se contamina e a
esquema melodramático cujo desenlace faz prevalecer a "justiça poética"
transforma numa projeção, num fantasma, tanto quanto num fato em seu
na qual se pune a figura transgressora da lei. Em Boca de Ouro, o esquema
próprio direito. Sua única ação direta e incontestável diante do leitor da
não se reduz a tal maniqueísmo, mas estará pautado igualmente pelo tom de
peça é a que se passa na cadeira do dentista, quando o cuidar de si e o exer-
parábola moral, não faltando a mesma tônica de intervenção do destino
cício da vaidade desdobram-se no comando inusitado - "o senhor vai
pela sexualidade, terreno do qual deriva o ponto cego do herói, sua "falha
arrancar todos os dentes, porque eu quero uma dentadura de ouro". Ao
trágica". A morte chega pelas mãos da falsa piedosa, cujo toque perverso
ordenar a cirurgia radical, celebra sua potência numa situação que, nor-
logo se sugere pela sua presença em cena, de modo a tornar aceitável a
malmente, é de sentimento de castração, decadência. Ele se antecipa ao
revelação final do seu crime que surpreende e deleita os jornalistas à cata
tempo. Se antes superou os limites de classe, agora quer resolver tudo de
de sensações na cobertura da morte do bicheiro.
vez. A dentadura de ouro é a prótese afirmadora de um sonho infantil,
230
231
incorporação grotesca do brilho que escapa da degeneração orgânica, feti-
página policial e a atenção social a qualquer dos seus movimentos - afin al,
che que seu mau gosto julga distintivo, uma ostentação a marcar no rosto
é uma "personalidade" - acabam por oferecer-lhe um espaço de consagra-
a vitória social sobre o estigma do pobre banguela, imagem típica da misé-
ção no qual mesmo a condenação o promove e representa a vitória da peri-
ria brasileira, e também a estampar na boca a grande aposta na superação
feria no espaço da mídia. Ele é, portanto, o herói que se teme mas que se
de limites, pois o metal nobre tem a ver com as coisas eternas, com a auto-
admira, e do qual se espera favores, figura de uma intimidade que muda o
glorificação que o embriaga. Estará feliz, mais tarde, quando Maria Luiza
sem.ido de sua violência, pois tudo nele é familiar. E a ativação de seu ima-
o comparar a um deus asteca, e múltiplas vezes vai completar a receita do
ginário, isso nos diz a peça, é anterior à intervenção da mídia, pois resulta
mito referindo-se ao caixão de ouro que o aguarda como urna definitiva.
de um jogo de poder concreto na relação pessoa a pessoa. Cabe então seguir
Sua tragédia estará cristalizada, acima de tudo, nessas duas perdas no
texto e filme para analisar a relação entre o protagonista e sua vizinhança,
momento da morte inesperada, que lhe sonega a ocasião da pompa: dentes
não apenas a partir das paixões do jogo do bicho, mas também a partir do
de ouro arrancados, caixão tosco de madeira.4
que sua figura representa no circuito da sexualidade, ponto de tensão entre
1
Condensada nessa arcada emblemática que resume o percurso de
seu estilo de vida e as convenções da família. Junto com a mitologia singu-
ascensão e queda do herói, a parábola moral do Boca de Ouro ganha
lar do Boca de Ouro, há um drama doméstico no centro da cena.
conotações específicas conforme o tratamento que se dá ao motivo da derrota em meio à ambição desmedida. Pode-se privilegiar a articulação
PÓ LOS TEMÁTICOS : MITO, MÍDIA E MORAL DA FAMÍLIA
desse motivo com um conjunto de determinações sociais e históricas, ou compreendê-lo como atualização de um paradigma da "condição huma-
Quanto ao protagonista e sua história, a peça insiste na sua origem humil-
na", universal e a-histórica. Nesse sentido, o que me interessa analisar é a
de, na fixação na figura materna desconhecida, na vontade de poder
perspectiva original definida por Nelson Pereira na articulação entre o
como compensação e na vingança do ressentido contra todos. Radicaliza,
drama individual do protagonista, que, em geral, concentra os comentá-
inclusive, a esterilidade de tal empreitada, voltada para a imagem e a
rios da crítica, e a posição privilegiada de mediador que ele ocupa no con-
pompa da morte, com uma sintomática recusa da procriação, que não
fronto da esfera privada com a esfera pública.
assume nem mesmo numa vida conjugal burguesa que poderia ajudar nos
Figura do manda-chuva autoritário e paternalista, o Boca constrói seu
negócios e na sua assimilação pela sociedade. Quanto a sua relação com
carisma apoiado na oferta de gratificação material (o dinheiro ganho no
homens e mulheres, vale a ênfase no poder inquestionável diante da fra-
jogo, ou o bem conseguido no favor) ou imaginária (o teatro composto por
queza dos que o confrontam, dado essencial na sua relação com os mari-
sua figura, e em torno dela, gratifica um contingente de "pequenos ho-
dos medíocres que o drama trará ao primeiro plano.
mens" a destilar suas vidas amargas num cotidiano sem encanto). Seu nome
A peça organiza-se em torno da visita do repórter à casa de dona
significa dinheiro e sensação, paixões e interesses de alto risco. A crônica da
Guiomar, ex-amante do bicheiro. Antes disso, temos apenas a cena de abertura, que nos traz a determinação do Boca de Ouro diante do dentista
4. Hélio Pellegrino, no artigo "Boca de Ouro", in Nelson Rodrigues, Teatro completo
(Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993), pp. 217-19, e depois Carmine Martuscello, em
t·
a irrupção do fato que deslancha a narrativa: a chegada da notícia de sua
O teatro de Nelson Rodrigues: uma leitura psicanalítica (São Paulo: Siciliano, 1993),
111o rte a uma redação de jornal, momento de agitação em que o chefe des-
acentuam a figura do caixão de ouro como volta redimida, idealizada, ao útero mater-
pacha Caveirinha, o repórter, para extrair de dona Guiomar alguma re-
no manchado pela fama. Nelson Pereira dará ênfase à dimensão social do simbolismo.
vt: lação sensacional sobre o bicheiro. Instala-se o paradigma da busca
232
2 33
encarnado no jornalista, tal como em
uma visão da vida social como entrelaçamento de relatos que não apenas a
Cidadão Kane [1941], de Orson \Velles.
comentam mas a instituem, de forma a tornar as identidades um "discu rso
Prevalece a mesma idéia de mergulhar na
dos outros" . E o próprio Boca ironicamente afirma "eu sou o que os jo rn ais
v.ida privada da figura pública, procurar
dizem", assim como, para nós, ele será o que Guigui disser, nas três versões.
na intimidade o segredo capaz de renovar
No entanto, a estrutura da peça nos sugere o quanto, embora haja circula-
o interesse do leitor. O repórter, no filme
ção pública, a matriz do mito está na vida privada, no espaço da intimidade
de Welles, vai procurar Susan Alexander,
no qual se criam as carências (vazios) que requerem o manto da fabu lação,
ex-mulher de Kane, e não tem sucesso
no qual se manifesta uma disposição a criar ficções e, se a ocasião se apre-
em sua primeira tentativa de entrevistá-
sentar, fazer-se vedete como Guigui ao receber o jornalista.
la. Aqui, Caveirinha tem mais sorte, pois,
O repórter pede para que ela lhe conte um crime, desses sensacio-
ao contrário de Susan, Guigui ( esse é seu apelido) não está consumida
nais, e ela responde com um episódio que nada tem a ver com as operações
pela solidão e pelo álcool. Resolveu sua questão voltando para o marido
do jogo do bicho, as façanhas do herói ou a briga entre quadrilhas. Põe em
com quem vivera antes elo caso com o bicheiro, retorno feito possível
cena um casalzinho sem importância, Celeste e Leleco, que se envolve
mais pelas fraquezas dele elo que por qualquer gesto nobre. Assim, a
com o Boca num lance de triangulação amorosa sem maiores_paixões, com
questão do Boca de Ouro não está fechada na vida do casal e, como vere-
toques de crônica de bairro, às vezes até de comédia de costume, mas vio-
mos, Guigui tem mais motivos para falar do falecido do que o lance de
lento e melodramático no desenlace. Esse é o teor do jlashback que com-
vaidade diante da atenção pública de repente recebida. Sua fala vai reunir
põe o corpo maior da peça, embora haja outras vozes, como a da imprensa
os dois registros - o público e o privado - no desdobramento em três
retórica e superlativa, e tudo se emoldure com as duas cenas emblemáticas
atos, cada qual trazendo uma versão diferente para um único episódio
localizadas nas pontas, exteriores aos relatos de Guigui: a já comentada
que ela decide narrar. O jornalista, como arremedo de terapeuta, anteci-
abertura, quando se produz a dentadura de ouro, única apresentação dire-
pa aqui os esquemas dos manipuladores de talk-slwws da televisão de
ta do protagonista; e a cena final do necrotério, efetivo lugar das revela-
hoje, orquestrando os momentos catárticos de Guigui e as confissões do
ções espetaculares, ponto de arremate da ironia do dramaturgo dirigida às
casal. Mas o sentido da experiência não se reduz ao efeito imediato da fala
ambições do bicheiro e às manipulações da imprensa.
de Guigui como espetáculo voltado para a escuta da mídia.
--
Sintético e ágil, econômico na definição de seus espaços, o texto da
Temos, portanto, três pólos temáticos: o mito, o teatro da mídia e a
peça reúne aquele conjunto "mínimo" que localiza os pólos fundamentais
cena familiar, os quais se alimentam reciprocamente, e a matéria de que se
da mitologia: o jornal, a casa de Guigui, a casa de Celeste, a mansão do
faz essa costura é a mesma q1Je oferece o critério formal para a divisão em
Boca e o necrotério. No filme, há uma expansão do terreno das ações pela
três atos: a narrativa, seu prazer, seu fascínio, suas funções na vida social e
inclusão do mundo da rua e dos espaços públicos da cidade que, embora
na particularidade de um percurso de vida. Há o mito, o jornal, as ressonân-
assumida como o lugar do mito, revela no filme novos pontos de fuga,
cias da esfera pública, mas a teia do imaginário começa em cada casa. Daí
saídas laterais, criando, ao final, um campo de visão em que o pano de
porque uma assimetria no tratamento elos dois terrenos, pois, embora s(·
fundo recua para introduzir uma teia mais diversificada de caminhos.
ocupe em chave satírica do comportamento dos jornalistas, a peça concentra-se no drama do casal e na vida privada do Boca. Seu dispositivo acentua
2
34
O ESPAÇO REALISTA NO FILME DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS
criança. Na peça, isso pode ser lido como delírio de Celeste, que procura um selo de intimidade com o protagonista. No filme, a sugestão ele que
A opção realista do cineasta não se dá apenas no aspecto " cor local",
Celeste pode ser a menina-testemunha torna veraz um fato que está no
autenticidade dos ambientes, um certo estilo do olhar dirigido ao espaço
campo da lenda, consolida uma leitura realista da carreira "criminosa" do
e à figura humana. Ela se confirma mais do que tudo na forma como a
bicheiro. Dado que é reforçado na forma como Nelson Pereira constrói a
narração trabalhou os acréscimos frente ao texto, notadamente na abertu-
cena do consultório, incluindo um capanga armado que ameaça o dentista
ra e no desenlace do filme.
quando este recusa-se à tarefa (na peça, o doutor resiste de maneira proto-
A abertura traz, a título de prólogo, a evocação de um passado mais
colar e logo aceita o dinheiro, sem a pressão de capangas, partilhando da
remoto do que o focalizado no drama, procurando dar concretude a uma
risada do Boca de Ouro no fechamento da cena). O cineasta não aceita
possível,biografia do Boca de Ouro. Sua carreira mostra-se em lances pal-
esse toque de demonização (a gargalhada) do profissional, qu e dá um tom
páveis, por meio de uma sucessão de flashes que explicitam o estilo de ação
mais sinistro ao ritual que batiza o herói.
do protagonista quando jovem anônimo, dentro de situações-clichê bem
No filme, há uma opção pelo regime diurno da experiência, o que
demarcadas, estilo que lhe permitiu ascender ao topo da hierarquia da
afasta possíveis sombras exploradas numa chave expressionista, que sem
contravenção: falta de escrúpulo, ousadia, disposição de matar friamente
dúvida o texto comporta em seu registro noturno e em sua constelação de
em função de interesses. Desfilam em imagens as armações de uma carrei-
projeções que embaralham subjetivo e objetivo.
ra padrão de bandido, em verdade próxima do modelo de ascensão do
Vemos o repórter tocar a campainha da casa de Guigui como um
Scarface, tudo pontuado pelos créditos do filme e apoiado numa trilha
detalhe a mais numa manhã rotineira, até mesmo precedido pela visita de
musical associada ao gênero policial. Os congelamentos de imagem desta-
uma outra mulher inventada por Nelson Pereira. Faz-se fofoca, ouve-se o
cam, em primeiro lugar, a estrela do filme - Jece Valadão - , que expõe o
rádio. Na casa de Guigui, o tom de crônica compõe um ambiente típico de
início da carreira do Boca: a experiência da prisão, sua promoção gradual
classe média baixa, com a família em pleno café da manhã, a mulher a pro-
no esquema, a postura de comando no assai.to a uma banca rival e numa
ver, o marido a se arrumar, as crianças a andar de um lado para o outro, os
emboscada noturna, os contatos com o patrão, o flerte com a mulher deste
vizinhos a observar curiosos, a visita a incomodar. E essa atenção à vizi-
e o crime decisivo, nunca mencionado na peça: em plena rua, sem avi so
nhança amplia-se entre a primeira e a segunda versões do relato de Gui-
prévio, mata o chefe a facadas. A apresentação direta da ação delineia uni -
gui. Na primeira, ela conta o episódio escolhido sem saber que o Boca está
percurso que perde qualquer ambigüidade e define de pronto um caráter.
morto ( Caveirinha recebeu instruções expressas na redação para não reve-
O herói ganha contornos mais definidos, embora as lendas que o cercam
1ar
continuem a ter seu lugar. A cena do dentista só virá depois do prólogo,
momento em que entra em crise e arrepende-se de ter falado mal do
quando esse já nos tiver dito muitas coisas que terão seu efeito em nossa
bicheiro. Depois de uma cena de choro que vira comédia familiar, Guigui
leitura das ações do herói adiante no filme. Por exemplo, não só há a cena
insiste em telefonar para a redação do jornal (ação inventada, que não
do assassinato do chefe na calada da noite, como também a câmera most r:i
1·011sta da peça) para retificar o relato e produzir a segunda versão, agora
o ato sendo presenciado por uma garota que observa de uma janela, aLraÍ·
11,10
da pelo ruído. Tal detalhe muda o sentido da fala de Celeste mais adiante,
dos moradores do bairro superinteressados no conteúdo de sua fala. Esse
quando disser ao Boca de Ouro que o viu matando alguém quando ela em
1111cresse popular enseja uma imagem excepcional quando Guigui termina
a notícia), e só é informada da morte do ex-amante no fim do relato,
mais em casa mas numa mercearia, empunhando o telefone, cercada
2 37
o segundo flashback e voltamos ao espaço da mercea-
uma máscara mais grotesca, de uma dose mais venenosa de malícia, e os
ria: em primeiro plano, vemos um pacote de açúcar
lances mais baixos reservam-se a Celeste e Leleco, os protagonistas da his-
furado, que alguém segura tão absorto no relato que
tória narrada ao jornalista, pois estão mais ancorados na esfera do irnagi-
não percebe seu conteúdo escoando-se, como se fosse
nário e de suas polarizações. Dado que o ressentimento de Guigui é notó-
uma ampulheta a marcar a passagem do tempo, a imo-
rio, é preciso dar-lhe uma conotação mais suave, compondo um rosto que
bilidade de todos diante do fascínio da narrativa, o
se coaduna com a proposta do filme em seu final, quando será necessária
prazer e o preço da curiosidade.
essa imagem mais inocente, de ressentimento mas também de abertura para
O contexto social e a cena pública cheia de observadores ganham
o outro (a mesma que o jornalista explora).
notável ampliação na seqüência final em frente do Instituto Médico Legal
Nos relatos, apesar da explícita mediação da ex-amante na composi-
(IML): aqui, toda a cidade se vê sugerida na multidão de extras e no com-
ção da imagem do Boca de Ouro, há a]go já conhecido desd e a cena de
portamento da câmera ao narrar a agitação causada pelo cadáver do Boca
abertura em sua forma de comandar a conversa e manipular a situação. As
de Ouro. Em geral, o espaço cênico do filme reforça a idéia de uma conti-
mudanças no enredo de uma versão para outra não atingem, por exemplo,
nuidade entre o universo elo bicheiro e os assuntos familiares, cotidianos,
um fato de referência na composição de sua identidade, como o ressenti-
traço que se afirma inclusive na composição do ambiente de sua própria
mento expresso de forma violenta, colérica, quando há menção à pia da
casa, que, com pequenas alterações de cenário entre uma versão e outra,
gafieira. Os temas da vaidade e do auto-endeusamento, trabalhados no
permanece sempre um espaço verossímil observado por uma câmera cola-
texto a partir da matriz da idolatria e da "alienação pagã", ganham no
da à movimentação das personagens, sem in.serts para destacar objetos,
filme uma ênfase de tipo psicológico, acentuada pelo perfil dandy de
sugerir mistérios: o mundo de Boca de Ouro é no seu interior tão legível
malandro, bem colocado por Jece Valadão. Não se dá ênfase às metáforas
quanto o mundo externo. Neste, a liberdade maior de movimentos da
que relacionam o Boca de Ouro com a questão do orgulho luciferino, da
câmera pelos espaços abertos favorece uma dimensão documental. Há,
reivindicação arrogante do direito ao crime, do fetiche do ouro. A ironia
portanto, a continuidade de um mundo legível de olhares, intenções, dese-
fi nal da peça, o cadáver desdentado, recebe uma leitura que acentua o
jos, dentro de uma evolução material e psicológica que destaca as varia-
eixo das diferenças sociais estampadas na boca. Antes que os repórteres
ções da subjetividade de Guigui. Sua figura, interpretada por Odete Lara,
falem nos dentes, o filme introduz uma ação paralela: na confusão de-
compõe-se de modo a tornar notórias (e, portanto, cômicas) suas inten-
fronte o necrotério, ganha destaque a figura de um homem pobre que
t
ções e emoções, evidenciando fraquezas, limitações de inteligência e uma
parece mais agitado do que os demais; num dado momento, quando o cai-
ingênua vaidade que a torna sempre vulnerável aos melodramas que a
xão aparece nas mãos dos burocratas, ele evita o cerco, corre e faz ques-
enredam, com o marido, com as crianças, com o Boca de Ouro. O filme a
tão de abri-lo, constatando diretamente a ausência dos dentes de ouro,
torna simpática, mesmo quando é condenável a direção do gesto, resultan-
fato que anuncia publicamente. Agitado com essa redução ao denomina-
do numa observação que, de um lado, evita o olhar superior ( a narração
dor comum, diz aos gritos "este homem não tem nenhum dente ... é como
não a olha de cima) e, de outro, cria uma imagem mais cândida das figuras
eu, ó", enquanto mostra a própria boca desdentada.
do povo, que se pode questionar pela falta de jeito, mas que revela muito
A tendência a reforçar os aspectos da história que têm clara referên-
bem a opção de Nelson Pereira por um humanismo preocupado em nos
cia socioeconômica preside não apenas as inserções de novos fatos e per-
fazer solidários ao casal, apesar de tudo. Agenor e Guigui são poupados de
sonagens, incidindo na composição de certos lugares pela filmagem para
2 39
dar força à contextualização visual desejada e articular a variação dos
lhante, sem dúvida, para ele, que poderia ter vivido algo parecido ao que
espaços à evolução da experiência de Guigui na sucessão dos relatos. Se o
vemos Leleco enfrentar nos relatos. De qualquer modo, é fato que foj
teatro de Nelson Rodrigues facilita sua tradução em filme pela velocidade,
levado a "engolir" a força maior do rival e a traição da mulher que se
pelos flashbacks e paralelismos, a síntese dramática e as frases curtas, nesse
espelha agora no episódio que ela narra três vezes. Afora esse espelha-
caso a passagem ao cinema só tem a ganhar com o papel central conferido,
mento, cujos detalhes vou ana1isar, há uma articulação bem precisa entre
na peça, à questão do foco do olhar, ao uso da variedade de pontos de vista
as versões, indicadora de um motivo mais fundo, psicológico, que enca-
para narrar o mesmo episódio, operação já referida ao esquema em três
minha o depoimento em certa direção, de modo que o deslocamento ope-
versões utilizado em Rashomon [1950], de Akira Kurosawa. 5 Em Boca de
rado da primeira à terceira não resulta apenas dos humores de Guigui
Ouro, as diferentes versões partem da mesma pessoa, que, em função de
durante a conversa, embora esses tenham efeito evidente.
motivos deixados claros, altera seu relato a cada repetição. Não há uma
No plano imediato, no primeiro dosflashbacks vale o despeito pelo
dimen~ão jurídica no cotejo entre as versões, e não se trata de fechar ques-
Boca de Ouro (afinal, foi "chutada" por ele). Depois, vale a dor da notí-
tão sobre qual é a verdadeira. Sem dúvida, Guigui não é uma narradora
cia da morte do herói e o ressentimento dirigido ao marido Agenor (feliz
confiável, e a análise dos três relatos faz mais sentido enquanto sintoma da
com a novidade). Na última versão, vale o clima de reconciliação com o
relação atual entre ela e sua fala. A leitura deve, no entanto, ir além dos
marido (manipulada pelo jornalista esperto). Assim, Boca é vilão na pri-
motivos imediatos usualmente comentados, e meu objetivo agora é mos-
meira versão, depois herói virtuoso e, finalmente, um assassino de mulhe-
trar que há uma lógica interna na evolução dessa fala. Tal lógica, já suge-
res. E a imagem do casal também varia: uma forma de simbolicamente
rida na peça, reforça-se no filme porque a moldura criada por Nelson
Cuiomar falar das disposições mais fundas dela própria diante da situação
Pereira vai articular o núcleo central das três narrativas com as alterações
vivida no triângulo com Agenor e o bicheiro, pautadas por culpa e ressen-
que introduziu na abertura e no desenlace.
1i mento,
'
'
e também pela exasperação diante de um marido que aceitou a
:4ituação humilhante, retrabalhada aqui simbolicamente na cadeia de ações l' reações que vem selar, três vezes, a morte de seu representante, Leleco.
O JOGO DE ESPELHOS NA NARRAÇÃO INTERNA: AS PROJEÇÕES DE GUIGUI
Na primeira versão, há o desejo de Boca de Ouro, a inocência de
1
l
A escolha do episódio a narrar não é casual. Por meio dela cria-se um dis-
cio
poder divino de vida e de morte. O filme trabalha mais a questão da vai -
:a.: afigura inevitável - a câmera permanece fora do quarto e vemos Celes-
dade (está cercado de espelhos) e vem confirmar o diagnóstico moral dl'
rc sentadinha de frente para nós, emoldurada pela porta aberta. A segunda
2 44
Boca de Ouro, na primeira versão, sentando na cama à espera do que
2
45
l .11iza
e elide o problema, devendo-se esperar o terceiro ato para ver o
lt id 1eiro atravessar a barreira de classe. Já está implicada, na peça, essa
i 111po::;ição de Maria Luiza ao passarmos de uma versão a outra, como se l1011vesse em Guigui uma dificuldade para reconhecer tal movimento. No /'iln1 e, duas ocorrências, digamos assim, colaboram para que
O
gradualis-
1110 se configure com mais força. O cinema traz um aceno a Maria Luiza já 1 1,1
ocorrência se dá quando Maria Luiza, em vez de sair conforme ordena n
1•ntre outras imagens, mostra a chegada do bicheiro à casa. O jardim da'
Boca, dirige-se ao quarto oferecida, e a observamos exatamente do me:-:
!'ren te está ocupado por gente que se acotovela, na expectativa de uma
mo ponto, com a mesma composição anterior que destaca o batente d:1
,t1l'11ção e de um auxílio. Lá estão as três grã-finas que vieram para colher
porta emoldurando a figura enjaulada. Há agora um movimento de ap ru ximação da câmera que permite ver, sobre a mesinha da sala que vai sai11-
donativos, e o movimento de câmera mostra Maria Luiza, de passagem, no 111eio do pessoal. É uma presença fugaz, um flash que não tem continuida-
do lentamente de quadro, uma estatueta em estilo "fim de século" que tra·,.
cl v, pois a grã-fina não existe no primeiro relato de Guigui - enquanto
o clichê da mulher sensual, do corpo lânguido que se oferece. Sela-se aq11 i
iTna prevista no texto- e só o filme lhe dá existência antecipada, de modo
a idéia da passagem da inocência suburbana de Celeste-Guigui para
11
,, µ;crar uma conexão com a segunda versão na qual ela ganhará espaço no
toque sedutor da femme fatale (visível na estátua, que contém a verdad1·
11•xto da peça e no interior da casa. Na terceira versão, não temos a cena do
de Maria Luiza, e não sua postura recatada ao sentar na cama). É clara :1
J,1rdim, mas é sintomática a forma como o bicheiro chega nó hall ao pé da
substituição pela qual Maria Luiza (o anjo da morte) ocupa o lugar q111·
1
era de Celeste, ou seja, de Guigui, aqui identificada com a moça suburb.1
l1ostilidade maior na manifestação de ciúme; agora, a ansiedade do Boca
na. É dessa imagem de Maria Luiza sentada na cama que saltamos para .1
1 1
seqüência no necrotério. O papel central da grã-fina no jogo de projeções da ex-amante
.1111ante, que deixa clara a diferença entre sua postura diante de Celeste d 11
Boca - a Guigui que perdeu o lugar - encontra, portanto, sugestões q11 1•
·scada e é recebido por Guigui. Antes, o assunto era Celeste, e não havia
11 c se prepara para receber Maria Luiza desperta a raiva incontida na
("ela é como eu") e diante da mulher ela zona sul. Essa identificação explí1·i1 a com Celeste confirma o jogo de espelhos e dá início
à versão na qual
vêm da forma (como a repetição do enquadramento) e confirmações
gio, o dado desagradável: a presença de
gressivo deslocamento ocorrido na forma da presença de Maria Luiz:1.
Maria Luiza no interior da casa como
É preciso um tempo para que Guigui possa reconhecer o foco da ques1ü11
passo decisivo para sua própria expulsão.
e compor diante de si a figura plena da rival sentada no que era antes sr ,1
Há aqui um esquema de retorno do repri-
trono. Na peça, a grã-fina entra em cena na segunda versão, quando 1r;1•1,
mido, um processo de atualização do que,
as amigas e, na conversa de curiosa, irrita o bicheiro, que reage com a dr::
sem a mediação da história de Celeste
qualificação das endinheiradas por meio do concurso de seios, em troca d.i
Guigui não poderia trazer à tona. O que
jóia. Pela vitória de Celeste (Guigui) - obviamente manipulada pelo Boc.1
está então em pauta nos jlashbac!cs não é
- a ala feminina de Madureira mostra sua resistência ao assalto de Mari .i
somente a imagem do Boca de Ouro, de
'
•
primeira versão. Nelson Pereira sai para os exteriores com a câmera e
'
1 47
resto afetada por um esquema de diferenças elementar diante de tudo o
A palavra paradoxo ressoa enquanto olhamos os rostos impassívcis, como
mais; diferenças que, além disso, têm um motivo direto e estiveram até
se a questão para o cineasta não fosse tanto a derrota do Boca de Ouro cm
aqui associadas pela crítica aos humores de Guigui. O mais fundo desse
circunstâncias grotescas, mas a relação entre o tecido dessa mitologia e
processo é a catarse de Guigui, o enfrentamento de sua condição de res-
essas fisionomias de gente pobre que permanecem opacas ao serem vistas
sentida. Como observei, o relato não é a revelação da verdade do passado;
em close-up, deixando menos a idéia de um certo saber implicado nesse
é a revelação do processo atual. O que Nelson Pereira faz é transformar tal catarse, cujas conseqüên-
olhar da câmera e mais um convite a uma indagação sobre o que o locutor
cias permanecem indefinidas ao final da peça, em um rito de passagem
som-imagem, esses olhares documentais em plena rua, que só o cinema
efetivo que será confirmado quando o casal rejeitar o assédio de Caveiri-
permite, preparam a oposição final que resume a perspectiva do filme:
nha e se afastar do espaço em que a multidão leva adiante seu culto ao bi-
com o
cheiro. O filme constrói a seqüência final seguindo os diálogos que envol-
Caveirinha desistindo da perseguição ao casal, para quem lança um último
vem os homens da imprensa e a locução do radialista que procura projetar
nlhar de decepção; no contracampo, a cidade revela o horizonte de uma
"grande evento" no terreno mítico, dramatizar, apelar para exemplos
agitação urbana que segue seu curso, e vemos o casal afastando-se do
lendários, santos e vilões, não importa. Boca é o Al Capone, o Dom Qui-
drama do bicheiro para misturar-se à população, talvez em busca de seu
xote do jogo do bicho, o Drácula de Madureira. O sentido do kitsch aqui se
próprio caminho: a vida continua fora do círculo do Boca.
0
denomina de "povo carioca formidável". Esse tom indagativo na relação
IML
ao fundo e ainda trazendo o mundo atrelado ao Boca, vemos
exacerba e a paródia ao discurso da mídia projeta sobre o mito a sombr:1
Na peça, a forma da variação entre a primeira e a terceira versões
da desqualificação. O locutor comenta as reações de um povo incrível e
sugere o mesmo processo psicológico implicado no espelhamento. Enfim,
criativo que toma a notícia do cadáver desdentado e a transforma em
j:'1 está lá o gradiente de culpa e expiação formado pela sucessão dos rela-
piada, e o cineasta introduz a figura do popular, já citada, a mostrar sua
ros de Guigui, que encaminham sua catarse. Mas a superação do ressenti-
própria banguela, fazendo o bicheiro, nesse plano simbólico da dentadura ,
111 .casal
certos detalhes, como visto. Aparentemente simples, a composição forn 1.tl de Nelson Pereira encaminha muito bem sua interpretação da peça.
llo~a- re~elava, já na peça, outras faces do drama, principalmente a crítica ,l1 ng1da a fraqueza moral que' atrela as pessoas simples à figura carismátiNelson Pereira incorpora a perspectiva multifacetada da peça mas
~
dr~ra hierarquia dos termos. Procura apoio no processo psicológico de , '111gm e o formaliza em detalhe para encaminhar o que não está na e a ,,, se· ·b·1·d d d p ç ' a possz 11 a e e mudança, a válvula de saída diante do jogo de , c·pett:oes, provavelmente inspirada na recusa de uma condição humana
, !ª:
O RESSENTIMENTO DO BOCA DE OURO E O .OE GUIGUI : DUAS MEDIDAS
Uma leitura distinta da peça poderia explorar de forma mais rad ic:: il
à parábola moral do ressentimento e da ambição desmedida -
\ 1v1da em chave trágica pelo protagonista. A condenação da vaidade do
1 ,1.
seu fio de esperança, mas fundamentalmente pelo cuidado e acerto v111
u1dutavel e na afirmação, em filigrana, daquilo que a experiência dasper·1 ,nagens tem de contingência histórica. 11
supremacia do mosaico de pontos de vista e a mediação dos narraclc 111111
li
llatureza mesma da danação das personagens; e descartou a ironia radical
nham condição de sair da engrenagem e superar as mazelas que marc~, No filme, Nelson Pereira leva a cena da reconciliação na mesni.,
que 1mp 1-
volvida na ênfase à circularidade e à prisão no circuito do desejo c~mo
t l'
ram sua inserção no círculo do Boca de Ouro.
,
Nelson Pereira descartou, em primeiro lugar, a leitura mítica en-
experiência do casal com o repórter, uma vez que o tratamento dado :, Guigui e a Agenor não nos anima a dar-lhes crédito, a imaginar que
. . aquz um final totalmente distinto.
1 .irra
No confronto entre paradigma universal e condição histórica mutá1·1, a questão do ressentimento, que é um dado central na peça, sofre um
1
significativo deslocamento, visto que a opção de privilegiar o meio-tom
cara grotesca do protagonista. A chave é o mito e o que se pode dell' l'a 1.vr,
da crônica afasta as polarizações com ressonâncias metafísicas, ou mesmo
por meio da psicanálise, como expressão de verdades humanas. O tcx1o ele
a postulação de um sentimento que defina, no singular, a natureza huma-
Pellegrino, cujas poucas páginas se concentram no protagonista, é um
na. Se há a dimensão do trágico encarnada no herói que perde o privilé-
comentário sobre a dimensão trágica do Boca que o cineasta endossaria,
gio e despenca na ordem das coisas, tal dimensão justapõe-se a um mundo
com a ressalva de que a forma como ele focaliza as figuras simples deslo-
mais flexível que não dá espaço para a idéia de sacrifício do herói. Sua morte, para a coletividade, é uma contingência e não uma vocação. Em
ca os dados estruturais e ilumina o outro pólo da situação, pois a oposição é clara. De um lado, Maria Luiza coloca-se como o complemento do Boca
consonância, o percurso dos que estão por baixo não se vê mais fadado à
de Ouro no gesto ousado e grotesco, lance radical de crime e apropriação
repetição, como assinala o final, muito próprio dos anos 60, que busca seu
do fetiche, dentro da lógica que o pólo trágico da peça potencializa. De
encaixe no movimento da peça, valendo-se do que desde o início o filme
outro, Guigui é a mulher que faz avançar o pólo prosaico, das neuroses
expôs visualmente (no rosto e nos gestos) a propósito da subjetividade de
domesticadas e das contingências cotidianas, figura a quem Nelson Perei-
Guigui. Em seu rosto, a corrosão do ressentimento parece não ter feito
ra privilegia no desenlace para justamente trazer o universo da vida comum para o centro.
seu trabalho a fundo, e ela confirma tal reserva de boa vontade quando, ajudada pelas circunstâncias, torna-se capaz de relativizar o mito do Boca, mesmo que dentro de limites.
Se proponho uma leitura do filme pautada no processo psicológico de Guigui como um esboço de superação do ressentimento, o faço sancio-
A condição de ressentimento "existencial" encarna-se, de forma
nado por essa opção de Nelson Pereira de focalizar, no grande drama, a
radical, no Boca de Ouro, desdobrando-se na figura do "furor destruti -
personagem menor, a que permanece na medida comum dos mortais. Mas
vo", tal como observou Hélio Pellegrino, que nos ofereceu a melhor inter-
a questão não está apenas aí, no que o filme acresce, pois o que ocorre no
pretação do protagonista nessa dimensão. Ele ressalta a dimensão mític.i
relato-memória-imaginação de Guigui, nessa veia psicológica, está mais
do Boca em seu desejo alquímico de transmutação do excremento (é assim
enraizado no próprio universo de Nelson Rodrigues do que parece. Tem
que ele se vê, despejado no mundo) em ouro (sua ambição), e explora os
paralelos consagrados em outros percursos, como no processo de Alaíde
sentidos de sua revanche contra o mundo, vendo a falha maior da perso
em Vestido de noiva. Nessa peça, definidos os três planos - o do real, 0 da
nagem exatamente no ressentimento, "paixão existencial" que o impede dr
memória e o da alucinação-, é neste último que se encenam os dados mais
se aceitar e se amar: "na sua fragilidade, na argila perecível e corruptível que ele também é, para além de qualquer ressentimento. Nesse instanll',
fundos da psicologia da personagem que agoniza na mesa de cirurgia, após o atropelamento que dá início a tudo. Lá está o mesmo movimento de
sem o saber, eis que encontra a pedra filosofal que o transfigura e lhe abn·
recalque pelo qual uma figura decisiva dentro da experiência da protago-
7
as portas da luz que não se apaga". A partir da psicanálise, a leitura de Pellegrino faz um movimento de·
nista (a figura do trauma, da rivalidade, do seu medo de derrota) preserva, de início, um véu que cobre sua identidade. E depois, gradativamente, vai
interpretação de tipo existencial cristão, que vincula o valor da peça ao st·11 alcance universal apoiado na construção dos simbolismos que permitem .,
como a figura da irmã trazida à tona para expor a ferida maior de que deri-
ela dar o grande salto, a começar pelo teor das figurações contidas na 111 ,1:
va o colapso de Alaíde (que, ao contrário de Guigui, não tem uma segun-
7. Cf. Hélio Pellegrino, op. cic., pp.
da chance). Os termos da guerra sem fim são os mesmos: a competição feminina em torno de um único homem, o ressentimento bem típico cios
219-20.
definindo seu contorno até a revelação plena, ao final do processo, no caso
1
mecanismos do desejo mimético que governa tais disputas, de peça a peça (lembremos O heijo no asfalto, com a competição das irmãs pela figura de Arandir). Se o Boca de Ouro exprime de forma mais direta a questão da
')
A falecida e o realismo a contrapelo
de Leon Hirszman
idolatria, esta não está de todo ausente em outros mecanismos obsessionais de tais mulheres presas a uma fantasia que transforma homens comuns, sem carisma, em seres cultuados. A particularidade do Boca como figurafetiche é deslocar o processo, pois a competição que deflagra não se dá no contexto do casamento, no interior da família, no caldo de cultura dos desejos incestuosos, no qual o "ou eu ou ela" não tem cenário de reconciliação possível. Ele é o masculino fora da família, condição para sua potência
ZULMIRA, ANTES DE MADALENA
maior. É o sedutor que chama a si as obsessões e que, ameaçando o casal do exterior, deixa uma fresta pela qual Nelson Pereira "salva" Guigui como
Para compensar o nascimento na pia de gafieira e co rrigir o qu e o inco-
representante de um senso popular da zona norte, sem que possamos dizer
moda como "mancha de origem", o Boca de Ouro sonha com a glória do
que haja qualquer atenção especial à dimensão ética do drama familiar;
caixão de ouro e planeja seu enterro como coroamento da grande vingan-
somente a vontade do cineasta de, entre mito, gente comum e mídia, deixar
ça sobre a sociedade. A acumulação de riqueza coloca-se então a serviço
claro o que mais lhe interessa.
do fetiche centrado na caveira dourada e na pompa de sua preservação: a
Selminha ele O beijo no asfà!to e dona Guiomar de Boca de Ouro (pe-
vida trabalhando para a morte. Para afrontar a prima Glorinha, compen-
ça) dissolvem-se no movimento que leva ao desenlace, pois o centro cio
sar sua pouca importância diante dos vizinhos e vingar-se da vida e do
drama está em outro lugar; Nelson Pereira não quis reservar a mesma
marido, Zulmira planeja seu próprio enterro como quem tece os cordéis
sorte à personagem interpretada por Odete Lara, forma de sugerir que ~1
de um grande crime, providenciando com diligência todas as encomendas
vocação ao desastre talvez não seja a norma da humanidade.
t·
deixando tudo preparado, desde os detalhes pomposos do ritual até a
fcmna de financiá-lo, tarefa difícil no espaço de pobreza em que se move. Provê, inclusive, o acontecimento central: sua própria morte. Ao Boca de ( >u ro e a Zulmira, o destino reserva o grande logro de um miserável 1•11terro à vis,ta de todos, não lhes dando a chance dessa derradeira revandie em que tanto se empenharam. 1
1. 1~m referência ao Boca de Ouro, Carmine Martuscello, em O teatro de Nelson Nr1rlrigues: uma leitura psicanalítica (São Paulo: Siciliano, 1993), ressalta o anelo de
1111s1algia uterina, de culto à figura materna, implicado nesse investimento na urna l1111t•rária, numa observação que não exclui esse dado de revanche programada,
11,.,._ antes se articula a ele, confirmando sua feição regressiva. Sobre Boca de Ouro, , 1'1'
ca p. 8, supra.
2
55
O que mata o bicheiro é o que se mostra de imediato como prcp111,
cm Cinco veres favela [1962], produção do CPC. Ao contrário, sua tônica foi
tecer da trama, recusa o sexo e o marido, restando-lhe uma certa vol11p l:1
a do estudo, em profundidade, de certas personagens em cenários de crise
de antecipação, quando investe nesse prazer de dar a ver, embora apc11. 1r1
e dissolução, como em A falecida. Se o movimento da protagonista é aqui
quando inerte e frio, o corpo que esconde agora em vida. Alimentada p, 11
sempre descendente, nada é muito distinto do que se pode ver num con-
esse imaginário, ela encaminha a própria morte com requinte, sob o 0 111.11
junto de filmes brasileiros desencantados, feitos no período 1965-70, em
impotente do marido e fora da vista de Pimentel, o secreto ex-am:1111 1•
que há nítido empenho em entender melhor a mentalidade daquelas ca-
milionário, a quem ela não deixa de reservar uma surpresa: a ele cabcr;í •1
madas da população das quais se esperava outro comportamento na crise
papel de financiar a pompa do enterro. Ao marido Tuninho caberá rcr,·
política então vivida. Ao mesmo tempo, esse tipo de movimento descen-
ber o dinheiro sem perguntas e pagar a funerária.
dente corresponde a forças presentes na obra de Hirszman que superam a
1
1
1 1
do Cinema Novo e o percurso desse cineasta, revela sua dimensão adversá-
Nem tudo, entretanto, funciona como previsto. Embora Tuni11l11 1
conjuntura dos anos 60. O que vemos em A falecida não está alheio ao
decida cumprir o prometido no leito de morte, o encontro com Pime1111•l
clima de outros filmes, notadamente São Bernardo [ 1972), adaptação de
põe tudo a perder. O milionário recebe aquele que se apresenta co1111 1
Graciliano Ramos que guarda suas afinidades com a adaptação de Nelson
primo de Zulmira e, de início, mostra-se disposto a colaborar, não ci l:1111 1
Rodrigues. Embora distintas na formação e no contexto social, há traços
da quantia que deverá desembolsar. No entanto, durante a conversa, 11I
comuns de inquietude tolhida nas duas mulheres, Zulmira e Madalena. E
mentel revela, envaidecido, seu af]àir com Zulmira, deixando o marid11
é sugestivo comparar o tratamento dado a essas personagens interrogadas
humilhado ( teria ela previsto essa hipótese?). Na base da chantagem, ·1·11
por Hirszman com insistência, em planos longos, na procura de imagens
ninho extrai do milionário a enorme soma determinada pela falecid a. l•:111
capazes de sugerir a força escondida na imobilidade, a energia de uma
seguida, dá o troco à mulher, encomendando o mais barato dos entc n·o•1
expansão contida que, na inversão própria dos ressentidos ou melancóli-
e vai para o Maracanã. Enquanto o caixão miserável de Zuimira é
cos, desdobra-se num caminho de morte. São projetos de abandono do
c a1'l't'
gado pelos vizinhos, Tuninho vive seu momento catártico no es1{id111
mundo que amadurecem, ganham configuração definida e espelham-se na
lotado vendo o clássico Vasco e Fluminense, solitário na multidão.
determinação com que essas mulheres conduzem as longas cenas de des-
Diante da desgraça ,do casal protagonista de A falecida [1965J, ::1•11
pedida, observadas de perto e com paciência por uma câmera que continua
cotidiano besta, sua falta de perspectiva, seu isolamento, observadon·•,
a interrogá-las mesmo quando estão lá de corpo estendido, inertes. Cada
apressados do Cinema Novo e da cultura militante saída dos Centros Pop11
qual a seu modo, elas encontram na morte anunciada a contundente res-
lares de Cultura dos anos 60 perguntaram-se como, afinal, Leon Hirszni.111
posta à cegueira do marido, alcançando um efeito devastador sobre Tuni-
fez a ponte entre seu projeto de cinema político e o compromisso de fil n i. 11
nho e Paulo Honório, condenados a conhecer suas mulheres tarde demais.
a peça de Nelson Rodrigues, logo após o golpe militar de 1964. Di lil'I I
l~sse paralelismo - e outras semelhanças no ritmo, na exploração do rosto
transformar o final da história em recado de esperança, em profissão d
olho na imediatez da experiência da morte; de outro, o fato inexorável de que esse encontro no leito de morte não anula a violência do esquema da vingança de que Tuninho só terá consciência retrospectiva. De qualquer modo, a cena se configura como um momento de reconhecimento mútuo de marido e mulher, que até aqui tinham se postado como células entretidas em seus próprios assuntos. Posto entre parênteses, o contexto da trama - tendência que o estilo de Hirszman favorece -, a partilha desse momento estabelece um lastro de identidade no casal reforçado pela solidão aí implicada. Lá estão a tuberculosa e o desempre-' gado, abraçados na cama a assumir essa passagem na privacidade absoluta, administrada sem testemunhas, sem médico, sem padre, sem parentes, sem apefos a Deus e sem busca de socorro nos vizinhos. Apenas o amparo dos corpos e o diálogo; apenas a determinação de Zulmira e a reação
·I
anêmica do marido que, solidário na dor, embarca, também pela fraque-
O DESEJO MIMÉTICO E A VINGANÇA DE ZULMIRA
za, no roteiro de que será a vítima principal. Seu percurso de "queda no real" começa nesse momento decisivo em que observa o rosto da mulher
O eixo da questão religiosa de Zulmira é a sexualidade, esfera cenLral da
com insistência, após fechar os olhos de uma Zulmira que deixou deres-
culpa que potencializa a programação da morte e põe a personagem sob
pirar e enrijeceu a expressão. A configuração da cena atesta uma reserva
o domínio de um ascetismo que, na verdade, corresponde ~1 internaliza-
de dignidade no precário, curiosamente afirmada por meio de uma busca
ção do "olhar da norma" , encarnado na prima G lorinha. Como em O
de gravidade que põe em cena o que permanece em off na peça. Torna-se
beijo no asfalto, por exemplo, e seguindo uma regra derivada do mel o-
aqui mais nítida a aposta do cineasta nos aspectos minimamente formado-
drama, o olhar, aqui como instância da lei moral, não do desejo, mostra
res da experiência-limite que esse marido medíocre enfrenta, alguém que,
sua força, embora Leon Hirszman trabalhe de forma convencional esse
ao contrário de outros maridos do universo de Nelson Rodrigues, terá a
olhar da censura na cena do flagrante, quando Glorinha cruza com os
chance, dessa vez, de um desdobramento, de um terceiro ato da peça no
amantes de braços dados. Ao longo do filme, o cineasta está mais con-
qual lhe caberá a última resposta, após tomar consciência de um passado
centrado na composição de outro olhar que, dentro da tônica já expos-
humilhante e de um presente que se mostra outra coisa diferente do que
ta, busca uma "terceira via" , afastada dos modos de olhar que definem
tinha imaginado.4 Tuninho fechou os olhos de Zulmira como que enunciando sua morte
os pólos da obsessão de Zulmira, capturada no círculo de culpa ( diante
para uma platéia ainda a se perguntar pelo desfecho da agonia. Olhou de
olhar do outro como desejo). Esse olhar procurado pela câmera é justa-
frente, com insistência, o cadáver, confirmando um senso de identidade
mente aquele que se faz ausente na experiência da protagonista, cujo
que o desenrolar da cena havia sugerido e a alternância final dos rostos ·
estratagema de vingança é, de certo modo, a realimentação do círculo
veio selar. Resta verificar se esse senso novo, e talvez conquistado, é capa,.
que a aprisiona.
J
do olhar do outro como juízo moral) e prazer exibicionista ( diante do
de ultrapassar o rasgo sentimental gerado na iminência do fato, notada-
Zulmira negou seu momento pleno de vida com Pimentel, quando o
mente após as revelações de Pimentel. Para chegar ao centro de A faledda
olhar de Glorinha fez o amor perder a graça e, com ele, a vida. A cena
é preciso analisar as duas vinganças: a da mulher e a do marido.,:.
traumática potencializou a antiga rivalidade, vinda da infância, e ela elevou a prima à condição de modelo absoluto. Aprisionada nesse modelo,
4. Desses outros maridos, há toda a linhagem de Char1es Bovary que, no mundo
rodriguiano, encontra sua expressão maior no Herculano de Toda nuder será casu;r,, da, destinatário de revelações post-mortem sem direito a resposta. Sobre Herculano, ver cap.
10,
infra.
transformou a construção da morte no seu prazer maior desde que esta se pusesse como vingança imposta a todos. Ostentar o corpo, ostentar riquezà, porém sob a condição da morte. A protagonista de A falecida está aprisionada no esquema, aqui fatal, do desejo mimético, tal como propõe
11 1
René Girard em sua análise dos enredos romanescos.5 Fixada no modelo
tentado algo na direção de Glorinha? Fez-se de curioso numa área antes
eleito, ela faz do suposto desejo da outra o seu próprio desejo: a glória
sem intei.:esse para ele? Essas são indagações que o filme resolveu co rtar
ascética, a volúpia na castidade. E seu calvário, produzido pelos sentimen-
pela raiz, mudando a fonte da informação e seu contexto: na ida ao médi-
tos de inveja e admiração, ódio e idolatria, escravidão ao modelo, tece bem
co, a mãe de Zulmira, na conversa do bonde, conta-lhe a história da ope-
a trama do desejo mimético quando a figura do modelo, sendo interna ao
ração e da perda do seio. Fica descartado o "golpe de teatro" maior dessa
mundo da personagem, é posta pela própria vítima num terreno inacessí-
revelação que, na peça, compõe o final do primeiro ato. É como se hou-
vel, no qual permanece indiferente, olímpica. É notável, considerado esse
vesse também aí, nesse deslocamento, um gesto de preservar Tunin ho e,
esquema, o gesto de Zulmira quando propõe a Tuninho, que reclama da
de modo geral, diminuir a função dramática da fofoca no espaço social
abstinência sexual, um movimento de sedução para o lado de Glorinha.
das personagens. Novamente, forma de desamesquinhá-las.
Mais do que um desafio ou um simples "chega pra lá", essa proposta pre-
Ressalvada essa diferença entre peça e filme, a conseqí.iência prática
tende, diante da indiferença da rival, diminuir a distância que a separa,
é que o novo saber de Zulmira, ao mesmo tempo qu e fa:t. deslanchar a
imaginariamente, da prima. Não se trata de uma rivalidade gerada pelo
outra via (a que sela o compromisso entre vaidade, exibicionismo e obe-
desejo do mesmo homem, mas de uma competição pela maior perfeição na
diência ao modelo), "mancha" Glorinha, compensa a implacável distân-
via ascética, corrida na qual Glorinha sofreria decisiva derrota caso o ardil
cia no eixo espiritual do ascetismo diminuindo os trunfos da prima no
funcionasse. Mais do que tudo, seria uma devolução do olhar; fazer a outra
eixo mundano da vaidade, instância em que Zulmira, pela morte progra-
viver um falso segredo de que ela, em verdade, deteria a chave. Na peça, a configuração dos atos dispõe que tal caminho de vingan-
mada, marcará sua superioridade ( quando esta puder ser assumida sem prejudicar o outro eixo da rivalidade).
ça, por meio da sedução da prima por Tuninho, fracasse (dado anunciado
O projeto de vingança endereçado a Glorinha não exclui a agressão
no fim do primeiro ato) antes que a fabricação da morte se ponha em
a Tuninho, nem o papel que a rejeição dele e os problemas da vida do
marcha (no segundo ato). Mas o que há ,de sugestivo nessa disposição
casal assumiram na recusa que Zulmira passou a ter da vida. Foi ele
insere-se num jogo mais complicado pelo fato de ser o próprio Tuninho
quem, no início da relação, "lavou as mãos" e evidenciou restrições que
quem traz a revelação sobre a falta de um seio na prima, revelação de que
foram tomadas por Zulmira como ofensa grave, sempre recolocada a
se pode indagar o motivo e a fonte. Se tal segredo era ilusório e virara
cada relação sexual sem graça do casal. Tal ofensa, no entanto, encontrou
tema de fofoca do bairro ou da família, por que não seria do conhecimento
sua vingança no relacionamento com Pimentel, experiência de reconci-
de Zulmira? Como teria Tuninho, supondo-se que diz a verdade, obtido
liação de Zulmira com seu próprio corpo que só lhe foi sonegada, subi-
tal informação (à falecida não interessa pôr isso em questão)? Teria ele
tamente, pelo impacto do olhar da prima. Nesse torneio reforça-se de novo a idéia de que a questão central de Zulmira permanece sua relação
5. René Girard, emMensonge romantique etvérité romanesque (Paris: Bernard Grasset, 1961), afirma a condição ilusória de um sujeito de desejo que concebe sc11
fantasmática com esse olhar-juízo moral. A interdição gerada pela prima repõe o poder de Tuninho, marido protegido pelas convenções sociais
investimento no objeto como um dado autôriomo, atestado de soberania. Girard
que a peça, na cena que o filme suprimiu, denuncia no comportamento
insiste na condição triangular, social, pela qual o desejo passaria sempre pcl:i
da própria família dela, com seus comentários sobre os deveres da espo-
mediação de um modelo, esse outro que designa o objeto de desejo e se põe con1t 1
sa nó casamento. No que toca a esse poder do marido, A falecida conduz
alvo de uma imitação ambivalente, misto de admiração e rivalidade.
as coisas com a discrição que a própria fraqueza de Tuninho impõe, sem
2 73
.
,
explorar fantasmagorias góticas presentes, por exemplo, em Toda nudez será castigada e no romance-folhetim Meu destino é pecar, quando há o
paradigma da mulher aprisionada num casamento em que o marido ou sua família têm o poder de submetê-la a uma engrenagem terrível e às vezes mortífera, expressiva ele uma misoginia que se estampa com clareza na produção hollywoodiana do mesmo gênero. Aqui há, sem dúvida, a submissão ao vínculo conjugal insatisfatório, no qual a mulher convive
embaralhando os termos de sua posição de classe, confundindo vitó ria e
com uma figu ra medíocre. Se a moral não lhe dá saída (a não ser a clan-
derrota. Zulmira, ao se vingar de todos, distribui os papéis confo rme o sta-
destin a), novamente a morte ganha valor, pois é a condição que permite
tus de cada um dentro da série: humilhar a fraqueza do marid o, cobrar caro,
a exposição integral de sua verdade, revelação de que seu poder de sedu-
como nunca fizera, a felicidade partilhada com o amante e dar resposta sar-
ção alcançou alguém bem mais rico e poderoso do que Tuninho, um
cástica à sedução barata de Timbira. Sua vitória, sabemos, é efêmera, ima-
Pimentel que, em tudo, é o oposto da impotência de seu marido. A figu -
ginária. O projeto de Zulmira, minado nn base, falha caba lmente, e o
ra do homem rico, por seu lado, estará no final reduzida à tarefa de
"valor de exposição" planejado para a cena do enterro inverte-se. Q uando
financiar a empreitada da pompa fúnebre também sem direito a resposLa.
a prima, no filme, aparece na janela, é para observar o quadro precário, não
Cobrança tardia de uma Zulmira que, nesse particular, assume o lugar
o triunfo de Zulmira. Nesse aspecto tão central, a vingança não se consuma.
daquela que merece o "investimento maior e a exibição pública", o que,
No entanto, uma vez já morta, seria ela afetada por isso? Zulmira
conforme as circunstâncias, talvez lhe permita ainda atingir aquela ouLra
morre sem testemunhar o resultado de seu estratagema; seu desenlace é 0
rival que ficou fora do alcance durante a relação clandestina e não per-
mergulho pleno na viagem escolhida, pois o destino poupa-lhe o momento
deu suas prerrogativas: a esposa oficial de Pimentel.
de ajuste de contas com a realidade. Esta-desaba, ela morta, sobre o marido
No requinte do esquema, o projeto que movimenta a trama, em sem:
medíocre, como no romance de Flaubert, uma das referências da peça.ó
vários ângulos, define sua veia totalizadora como agressão, não escapando nem a figura média de um Timbira, o último dos homens menores, pobres,
A VINGANÇA DE TUNINHO E SEU MOMENTO DE VERDADE
sem poder, com quem se deparou na vida. A aspiração vingativa, Zulmi r:1 a traduz em providências reais que culminam numa programação q1w ·
Zulmira viva, a alienação de Tuninho é, no fundo, mais radical do que a
investe de erotismo todo o seu contato com a funerária. Na sua vingant;.1
dela. Por isso mesmo, ele não terá comando sobre a catástrofe que abala de
imaginária, a funerária é um elo fundamen tal na consumação do desejo r ,
vez seu pequeno mundo, assumindo uma dimensão patética, pouco trágica,
no plano prático, oferece a ocasião de mais um embate com os homens nH· diante o flerte com Timbira, que, numa certa tipologia masculina, ocup:111
6. Madame Bovary e o bovarismo como paradigma do ressentimento são dados cen-
ponto médio entre Tuninho e Pimentel. Se um porta os signos de derrot :i,
trais na exposição que Girard faz de sua noção de "desejo mimético" . Nesse sentido, o
pobreza, castração, e o outro os signos de vitória, riqueza, onipotênci;1, 1 1
traço "bovarista" de Zulmira estaria, mais do que tudo, em sua inserção dentro de tal
malandro da funerária representa uma solução de compromisso de q11t·111 ,
paradigma do desejo (aqui, alimentado por um modelo que sanciona a via ascética), e
mais próximo do pólo. da castração, cultiva a imagem da onipo tênci:1 1\ movendo-se no território da pobreza, sublima pequenos ganhos episócli rn•1,
nao yropriamente em uma ou outra semelhança de percurso entre ela e a Emma de 1•laubert. Vale dizer, a formulação de Girarei permite talvez especificar melhor a ques-
1,10 do bovarismo em A falecida, já apontada por Sábato Magaldi, entre outros autores.
2 75
dado O acanhamento de sua figura de homem solitário que não conhece sua condição. Seu mal-estar manifesta-se logo na primeira cena em que aparece, quando fala da aposta que, se tivesse dinheiro, faria contra todo o estádio do Maracanã em favor do Vasco. Há a ostentação de uma fidelidade apaixonada ao clube, mas também, pelo tom da fala e pelo teor da fantasia, sinais de um ressentimento que contamina de vingança o grande gesto, inversão imaginária de sua impotência e irrelevância no mundo. Na primeira cena, a aposta é promessa abstrata, desafio imaginário lançado a todos num arroubo de entusiasmo que acaba ironicamente cortado pela prosaica dor de barriga. Simetricamente, no fim da peça, Tuninho leva consigo um dinheiro que nunca teve, e pode então cumprir a promessa inusitada. A aposta, num primeiro impulso, parece em vias de consumar-se. No entanto, uma vez que joga o dinheiro para o alto como quem se livra de um problema, o desafio lançado termina por cumprir um papel simbólico, catártico, no seu percurso. Em sua feição exterior, é um espasmo de heroísmo anunciado aos berros no estádio, mas sem visar efeito prático nenhum . junto à multidão que o cerca (isso ganha maior definição no filme em fun ção da filmagem in loco, que dissolveu o ator Ivan Cândido em pleno estádio lotado). Enquanto gesto-chave, ao contrário do que ocorre no início, não vem simplesmente dar expressão a seu fanatismo, que erige o futebol em absoluto e o faz juiz de sua felicidade ou desgraça. O trauma da morLc de Zulmira e a humilhação diante de Pimentel cortaram a possibilidade dl' ele dar vazão plena a seu surto vascaíno e, no instante decisivo, o unive rso das ilusões de torcedor se vê suplantado pela realidade, por demais contun dente, do viúvo que está prestes a confirmar uma condição precária cl v gigolô tardio. Ressoam nesse final outros enredos.
com Ritinha, Tuninho acaba jogando o dinheiro para o alto num gesto em que se livra, digamos assim, do material que simboliza sua perm anência no círculo do casamento falido. Dada a configuração da cena final, talvez ele possa deixar para trás essa condição de viúvo ressentido a tirar vantagem daquilo que o humilha; e talvez possamos pensar que algo mais se vislumbrl em sua experiência para além de um a degradante continuidade da vingança. Como colocado pela peça, e reafirmado pelo filme, é a questão moral que prev:alece e alimenta o drama, definindo os termos do discurso sobre a precariedade de Tuninho e suas possibilidades de superação. Mas há em Leon I-Iirszman um interesse na discussão das questões sociais ( divisão de classes, o mundo do trabalho, o desemprego), e ele tem diante de si uma situação em que os problemas de consciência e de mobilização política pautam-se por uma ~otória ausência no mundo das personagens. Pode-se dizer que sua forma radical de desenhar a solidão do casal quer acentuar essa ausê~cia como um dos traços que ajuda a qualificar .o espaço rarefeito em que as personagens se movem, pois sua solidão se faz muito do que, fora deles, fo~nece o quadro da atomização. E Tuninho, em quem se pode encontrar um impulso de convívio, não chega a encontrar no futebol o universo de partilha de experiências com força suficiente para retirá-lo do vazio, para além do espasmo periódico dos estádios. No entanto, não há, nessa história, relações ou vivências capazes de especificar a natureza negativa de uma sociedade que abriga tais experiências como condição estrutural, sempre recolocada. Desde a abertura, a atenção se volta para a dimensão mais pessoal, ética, de um
Tal como Edgard, o protagonista de Bonitinha mas ordinária, Tu ni nho chega à última cena com uma soma de dinheiro cuja aceitação
rn1
recusa funciona como uma definição do caráter. Edgard segura o cheq, w que o patrão corrupto - o dr. Werneck - lhe ofereceu para provar q1 11• "todos têm seu preço" e que o discurso ético do pobre funcionário 11:,n resistirá à tentação do dinheiro. Tuninho leva no bolso o que
acaba queimando o cheque e dispondo-se a iniciar uma vida de pobre
conscµ; 11 i 11
extorquir de Pimentel como primeira prestação. Como Edga rcl , q11
320
são de Manchete. Pois Glauber nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sem-teto no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda". Ver Nelson Rodrigues, O reacionário - Memórias e confissões (Rio de Janeiro: Record, 1977), PP· 37-38.
321
sentimento de descompasso com os rumos da sociedade. Ocasiã~> p:11·.1 uma releitura crítica do imaginário patriarcal no momento de sua au,v_:1 clr.1• · A naldo Jabor sintonizados num paru cnl :11·: maturgo, N elson Ro d ngues e r o gosto pela dicção apocalíptica.
Na caracterização do percurso de Arnaldo Jabor-cineasta, meu ponto de partida tem sido sua forma de conduzir uma espécie de anatomia da decadência que toma o espaço da família e da vida conjugal como flancos privilegiados de ataque. Sua ironia em relação ao mundo privado procura a ressonância política e coloca-se, desde o início, como capítulo de uma psicologia social empenhada em denunciar um certo estilo de dominação enraizado na formação social brasileira. Creio ter esclarecido a forma como o cineasta, com a mediação de Nelson Rodrigues, conduz a reflexão sobre o declínio da figura paterna, a nova geração dos cínicos e a desagregação de relações humanas em que se apoiou sua visão amarga do processo de modernização administrado pelo regime militar. 1 A força de sua encenação fez de Toda nudez será castigada e O casamento episódios centrais no "processo da família" condu-
zido por alguns cineastas do Cinema Novo nos anos 70. A tônica da tragicomédia definiu o gênero privilegiado na exposição da crise de uma ordem familiar sujeita à ironia porque constituinte de traço nuclear de uma tradição cultivada desde a colônia e retomada como símbolo de identidade nacional pela ideologia do golpe de r964. Antes de avançar, uma observação: há um contexto maior para a operação de Jabor. A "crise da família" e o conflito de gerações fo ram temas centrais na pauta das ciências humanas em muitos países, nos anos 60 e 70,
1.
Minha análise de Toda nuder será castigada e O casamento está reproduzida no
cap. ro, supra.
322
1 1
uma vez que as mudanças no estatuto da juventude e os influxos mais
tura mundial cujo desdobramento ainda é incerto, seja porque o ideário tra-
gerais do desenvolvimento no pós-guerra geraram experiências de libera-
dicional tem rendimento político para o regime. Procuram explorar o terre-
ção sexual e substituições da autoridade familiar por outras formas de con-
no da vida privada pelo que aí existe de matricial em face de um comporta-
trole institucional, dentro da chamada "dessublimação repressiva" própria
mento conservador. Vem daí a vontade de psicologia, um empenho em
à sociedade de consumo. O quadro de questões em torno dessa crise e das novas articulações da família é muito mais amplo do que o terreno restrito
entender os substratos de caráter inconsciente da ordem social, porque a decepção com a realidade política sugere que nem tudo é racionalidade e
em que me desloco. Os movimentos de transformação e de reposição de
expressão de interesses materiais no comportamento político, havendo dis-
estruturas familiares são nuançados, envolvem embaralhamentos e desau-
posições psicológicas contraditórias que os cineastas querem entender,
torizam "leis gerais", bastando lembrar, como referência, as críticas a
sabendo-se parte do universo focalizado. Há nesse movimento uma dose de
apressados diagnósticos de época feitas por Christopher Lasch. 2 Não se
revanche contra um imaginário familiar que foi assumido por eles como
trata, portanto, de trazer o conjunto da questão para minha análise, mas
marca por excelência do público comprador de ingressos, espectadores
apenas de sublinhar o sentido desse processo pelo qual, no Brasil, no
diante dos quais proclamaram seu divórcio, numa postura afinada porém
momento em que se adensam os bolsões urbanos de uma incipiente socie-
algo distinta daquela do teatro de agressão. Há uma dimensão da auto-aná-
dade de consumo, as mesmas forças que promovem o avanço técnico-eco-
lise que, presente no encaminhamento do debate sobre a sociedade, foi um
nômico assumem a tarefa contraditória de defesa da tradição familiar como
gesto decisivo do Cinema Novo, definindo sua força e seu risco nos anos 70,
componente dos "valores cristãos" mobilizados contra a expansão do
uma vez que o ajuste de contas com a tradição não se deu sem um certo
comunismo, conforme a doutrina de segurança balizada pela Guerra Fria.
enredamente nas articulações simbólicas que focalizou, demarcando os
Ao tornar tal tradição alvo do sarcasmo, os filmes não inauguram o "pro-
limites de sua imagem da modernização tal como se configurou no Brasil.
cesso da família" , mas vêm dar-lhe uma feição particular ajustada ao qua-
Em seu movimento em direção à família e ao que chamei de anato-
dro político, expondo o lado cafona e acanhado da empreitada moral do
mia da decadência, o Cinema Novo tomou o atalho oferecido pelas refe-
regime, sublinhando as iniqüidades recobertas pelo esquema de poder.
rências literárias num leque bastante diversificádo. A matriz pode ser
Está presente nesse processo a clássica operação de des7 ascaramento:
Nelson Rodrigues, como é o caso de Jabor, mas pode também ser Dalton
revelar a distância entre ideologia e prática efetiva; a famíli ,tradicional, o
Trevisan, em Guerra conjugal [ r975], de Joaquim Pedro, Lúcio Cardoso,
vigor do patriarca e seus valores evidenciam-se mais como construção sim-
em A casa assassinada [1971], de Saraceni, ou mesmo Graciliano Ramos,
bólica do que como realidade. Mas essa operação é acompanhada da cons-
em São Bernardo (1972], de Leon Hirszman, e Oswald de Andrade, lido
ciência, menos óbvia, da eficácia do simulacro na geração de comportamen-
na chave da " adaptação literária" , em Os condenados [1973], de Zelito
tos políticos e na construção de um princípio de autoridade que, embora
Viana, ou na encampação mais iconoclasta do Cinema Marginal, em Os
tenha bases materiais em outros processos (a formação do capitalismo téc-
monstros do babaloo [1970], de Elyseu Visconti.
nico-burocrático nos anos 70), vale-se da tradição moralista para ganhar
Na observação do trajeto de J abor, examinado o diálogo com Nelson
legitimidade. Os cineastas fazem a comédia tomando a ordem familiar bra-
Rodrigues, resta analisar como o cineasta prossegue o debate em torno da
sileira a sério, seja porque sua crise sinaliza adaptações a uma nova conjun-
figura do pai, dentro desse primado de uma psicologia social que busca uma visão totalizante do país. Na consideração dos desdobramentos e das
2.
Ver Refúgio num mundo sem coração (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1.99t).
contradições dessa psicologia, meu percurso chega ao J abor-cronista, para
ver como aí se combinam Nelson Rodrigues, a matriz cinemanovista e as
dimensão política desse perfil psicológico. O filme queria surpreende r os
citações de pensadores da formação nacional, como Gilberto Freyre e Sér-
conservadores em sua própria casa para buscar verdades pri vadas, pes-
gio Buarque de Holanda. Tais heranças e incorporações, num primeiro
quisar segredos da intimidade que pudesse relacionar ao comportamento
momento, permitem rechear sua idéia de Brasil, formando o lastro que
público. Vinha para expor o lado mais doméstico da marcha em direção
destaca a imaginação de Jabor no jornalismo diário. Mas vêm gerar ten-
ao golpe de Estado que Terra em transe alegorizava, concentrado nas lide-
sões quando o movimento das crônicas leva-o ao engajamento direto nas
ranças políticas e no jogo do poder.
opções que se abrem no Brasil pós-Collor e no processo sucessório. Emer-
Em sua representação do golpe, o filme de Glauber condensa o pro-
ge aí, na crônica, o social-democrata exasperado pela resistência que uma
cesso político na ação de um grupo de agentes que personificam, de um
certa mentalidade-obstáculo, em parte a mesma que ele inventariou nos
lado, uma esquerda atrelada a um esquema populista e, de outro, uma
filmes, oferece às ponderações da Razão, agente nuclear de mudança que
direita oligárquica que conspira e interrompe o processo eleitoral que a
sua psicologia tende a ver como irradiação de foco único.
ameaça. Num teatro que envolve comícios populistas, a traição da burguesia local às forças populares, movimentos da militância de esquerda, inter-
O PROCESSO DA FAMÍLIA
venções do capital multinacional, o destaque maior é dado ao líder da oligarquia, Porfírio Diaz. É ele a figura de referência no percurso de Paulo
1967 é um ponto de inflexão no percurso que me interessa. Ano de Terra
Martins, o jovem intelectual que está no centro do relato e estabelece com
em transe, que valerá aqui uma observação, e do documentário Opinião
o líder conservador uma relação trabalhada, ao longo do filme, em termos
pública, em que Jabor já apresentava um inventário de comportamentos
edipianos ( dependência, rivalidade e libertação). Essa relação dá feição
revelador, focalizando grupos familiares em pequenos apartamentos,
particular à vitória dos conservadores na cena política de Eldorado, país
jovens inseridos no circuito do rock e da moda, setores do funcionalismo
alegórico onde o golpe de Estado desenha-se como reposição da violência
público, gente de televisão e outras peças da chamada "opinião pública".
originária que marcou a empresa colonial dos europeus nos trópicos. Vitó-
A invasão dos espaços domésticos, a atenção à roda de fofocas cotidianas,
ria do trinômio Tradição-Família-Propriedade, o golpe encarna-se em
as confissões que traduzem aspi~ações p~ss~ais ~ais fundi'. ges_tos menos controlados na mira de uma camera bisbilhoteira, tud1 smahzava uma
Porfírio Diaz, que costura a articulação entre suas bases materiais (apoio do capital internacional e cooptação da burguesia local) e o discurso tra-
vivacidade nas pessoas que, conforme já assinalado mais de uma vez pela
dicionalista. Porta-voz da casa-grande, D iaz monopoliza a iniciativa; é o
crítica, escapava à moldura teórica da observação. A montagem, por seu
elo decisivo da cadeia conservadora: o interesse material, representado
lado, ordenava as peças do inventário, destacando o imaginário sentimen-
pelo magnata Fuentes, o burguês modernizador que controla as indústrias
tal da cultura industrializada, as superstições e a histeria de encontros reli-
e as comunicações, tem papel secundário. Foco por excelência do golpe, é
giosos sob o co~ando de milagreiras, o munc;lo de Chacrinha e da novela
a tradição patriarcal, mais do que o estamento militar ou os donos do
de TV. Tudo estruturado em torno da tese - com citação direta de Wright
dinheiro, que se coloca então como o fascismo fascinante a oferecer a
Mills - de que é próprio das classes médias o retraimento, o apego à auto-
fisionomia grotesca para o ataque do Cinema Novo. Os jovens cineastas,
ridade, o afã de segurança, a miopia social, o consumo do kitsch. Tal
focalizando o mundo conservador pós-golpe, identificaram a ordem insta-
inventário, ao apresentar a galeria de pequenos homens capturados em
lada com figuras dessa tradição, em geral exemplares menos potentes e
redes imaginárias, entrincheirados no mundo doméstico, sublinhava a
mais caricatos que serviam de alvo para a sátira anti-autori tária. .
pó
•
Opinião pública, contemporâneo de Terra em transe, já focalizava os
mesmos valores que Diaz mobiliza, deslocamento que o põe co mo fig u rn
seguidores da ordem: os fracos, o rebanho identificado às classes médias,
menor que, flagrada nas mazelas cotidianas, permite sabotar as fundações
os filhos do medo, como afirma o poema de Drummond citado no filme.
do projeto de Diaz. Obviamente, a distância que separa tais figuras de pai
Nos anos 70, as duas adaptações de Nelson Rodrigues expõem mais dire-
em termos de força e envergadura é enorme, mas coaduna-se com essa pas-
tamente a figura do pai à humilhação, confirmando a escolha do alvo da
sagem que estou apontando: mudam os termos da representação - da ale-
crítica em sua relação com a imagem do golpe e com o corpo da tradição
goria nacional solene e dramática à tragicomédia - e muda o tratamento da
saído da alegoria de Glauber. Curiosamente, é o próprio Jabor quem sina-
figura submetida à crítica. Diaz interessa pela potência vitoriosa na vida
liza a passagem do público ao privado como desdobramento da discussão
pública; Herculano, Sabino, e depois Juarez, interessam como balizas de
política do Cinema Novo, permitindo a observação de Herculano, primei-
uma anatomia da vida privada e de certo estilo de malograr na comédia das
ro elo da cadeia Herculano-Sabino-Juarez ( o pai de Tudo bem [1978])
transgressões e culpas do pai de família flagrado em sua precariedade.
como antítese de Diaz, a figura cinemato-
Sabino, em particular, permite que o comentário envolva todo um estilo
gráfica símbolo da tradição vitoriosa em
nacional de vida política: ao contrário de Herculano e seu mundo fechado,
1964. Uma leitura intertextué!l de Toda nude{
o desenlace da comédia do pai de Glorinha apresenta-se como um delírio
permite assinalar um detalhe, uma nota de
messiânico vivido no espaço público e no contato com o "povo".
rodapé, que pontua essa passagem para a
Na seqüência bombástica da confissão de Sabino, assumida a dimen-
anatomia do espaço doméstico pela qual se
são coletiva do evento, a mise-en-scene de Jabor retoma, com ênfase, a tôni-
explora o lado avesso, menos visível, de fi-
ca das totalizações do Cinema Novo, antes mesmo de sua anatomia da
guras associadas à ideologia no poder, agora
decadência chegar a Tudo bem. A moldura geral de O casamento [1975] e
9bservadas fora do espaço político-institu-
sua articulação entre drama doméstico e experiência social, entre o público
cional. Não é um acaso o fato de J abor abrir seu filme com o travelling no
e o privado, extravasam o texto de Nelson Rodrigues para dar nova dimen-
aterro do Flamengo, focalizando Herculano ao volante, com seu ar cafo-
são ao calvário do protagonista. Já destaquei as imagens da enchente que
na, num passeio que refaz o espaço e o movimento da pi;ada triunfal de
emolduram a história, metáfora totalizante do colapso social e alusão ao
Porfírio Diaz, um forte emblema de Terra em transe.
desastre urbano que guarda relações com as atividades empresariais de
1
No filme de Glauber, a composição da liderança maior dos conserva-
Sabino. Há outra moldura, esta dentro do percurso do protagonista, que
dores visa sublinhar um estilo de intervenção na esfera pública, na luta pelo
interessa também destacar, como contraste entre início e fim do filme. Do
poder. Da vida privada de Diaz, temos os sinais de sua solidão a compor a
início, vale lembrar a cena em que Sabino dirige-se de manhã ao trabalho
imagem do defensor intransigente da oligarquia. A inspiração religiosa de
e, do banco de trás do carro, exige maior pressa do motorista enquanto a
sua missão política ata sua militância à obcecada preservação de purezas
multidão que cerca o veículo e observa seu interior permanece como amea-
ameaçadas e exige uma vida em consonância com o ideal ascético. Missio-
ça potencial, cria estranhamentos pelo olhar dirigido à câmera. O engarra-
nário, Diaz é a tradição patriarcal representada no momento da demonstra-
famento de trânsito, o obstáculo, a aflição: nessa situação cotidiana do em-
ção de força. Sua retórica do Bem e do Mal atinge o grotesco mas guard a
presário, o coletivo se faz presente na figura da multidão que significa
uma eficiência sinistra que inibe qualquer movimento em direção à co mé-
simplesmente inércia, resistência ele massa humana à progressão do carro,
dia. Herculano é a versão prosaica, ajustada ao tom de Toda nude{, dos
massa de que Sabino está separado e com a qual pouco se importa, a não
J29
ser como estorvo. Enquanto o empresári9 vive o dia-a-dia pragmático da
O capítulo seguinte da psícologia social de Jabor é Tudo bem, no qual
administração dos negócios, buscando eficiência, sua relação com o outro
se reagrupam os temas já presentes nas tragicomédias, trabalhados no mes-
se dá na tônica da dominação, da ausência de interesse que ultrapasse a fun-
mo estilo. Temas e estilo agora apoiados num roteiro original mais cali-
cionalidade dos corpos. No final, ocorre o contrário. Ao dar o "salto meta-
brado para oferecer a representação do país como um todo. Com a famí-
físico", seu delírio tem resposta "popular", instaura uma liderança: ele é
lia no centro, a articulação entre vícios privados e catástrofes públicas se faz explícita.
seguido por uma pequena multidão, como um beato cercado de seus adoradores e entra em comunhão com o coletivo. Enfim, tem seu momento de
'
glória populista. Desse modo, na cena de sua prisão, são nítidas as resso-
TUDO BEM: A MATRIZ COLONIAL Dó MESMO
nâncias de um clima delirante, exacerbado, que caracteriza os comícios de Terra em transe, tratado agora com menos gravidade mas com a mesma iro-
Nesse filme-síntese deságuam as diferentes inspirações. Na comédia con-
nia. É no momento do mergulho no sonho messiânico que Sabino conse-
jugal, Juarez e Alzira repõem alguns lances do repertório rodriguiano. 3
gue, mesmo que à sua revelia, atualizar um estilo de conduta enraizado na
Na alegoria, é nítido o diálogo com G 1auber e sua postura totalizante: o
formação social, vivendo uma experiência de solidariedade e comunhão.
apartamento da família é um microcosmo da nação, um teatro de populis-
Ou seja, seu teatro de salvação retira-o da pequena esfera para fazer desse
mo, euforia carnavalesca, surto messiânico, migrações, violência, submis-
encontro uma espécie de reposição, em tom menor, da apoteose barroca da
são ao estrangeiro. 4 E novamente J abor justapõe o arcaico e o moderno
ilusão com que G lauber equacionou a vida política brasileira. Apoteose
nos termos da Tropicália: cultura de mercado e folclore rural, ritos indí-
seguida aqui das imagens da enchente, que, não excluídas as alusões bíbli-
genas e natureza tropical, televisão e símbolos patrióticos definem o mundo kitsch da família.
cas, fecham o discurso com promessas de desabrigo e peste, inserindo o fracasso da figura paterna no quadro geral da "miséria brasileira". Como já assinalei, o 't om da mise-en-scene na tragicomédia de Jabor
Prese~te na abertura e nos créditos, a articulação entre vida doméstica e imaginário nacional permanece ao longo do fi1me. Juarez, o chefe de
não permite que se trabalhe o gesto de Sabino como sacrifício redentor. Observado do exterior por um olhar irânico, não é t 1enor seu fracasso apesar da congregação que seu gesto instala. Desse "\,odo, o cotejo entre
3. Há citações de Zulmira, a protagonista de A falecida, na figura de Alzira, a mãe
começo e fim traz à tona esse contraste entre a potência de separação do
em Tudo bem: há a frustração, os rompantes de "vou morrer", a obsessão semelhan-
moderno (Sabino empresário, cidadão produtivo, está só) e a potência de união do arcaico (Sabino encontra seu público na confissão). Em seu tra-
•
te com a figura da loira. O lance é paródico e Fernanda Montenegro, que fez a Zulmira no filme de Leon Hirszman, desenha uma Alzira frustrada, mas francamente cômica, isenta de culpa, que se vinga na obra (reforma da casa), não na morte.
jeto, a eficiência econômica é fator de isolamento; ele se mostra uma ver-
4. Em verdade, juntamente com A idade da terra, filme que Glauber deu por termi-
são acanhada de um princípio de individuação da modernidade. O delírio
nado em 1980, Tu.do bem fecha um ciclo de alegorias nacionais, totalizantes, elabo-
religioso, o sair de si, congrega, afirmando a oposição entre espírito de
radas pelos cineastas do Cinema Novo a partir dos anos 60. O palco da encenação
coletividade e mundo prático. O primeiro rea-
de G lauber expande-se pelo Brasil (Brasília, Salvador, Rio de Janeiro), é abrangen-
liza-se no espaço das ilusões e excessos, da festa
te em seus espaços e figuras; o teatro de Jabor contrai-se no apartamento ele Copa-
em sentido lato, o segundo desfila como um vale-tudo de exploração e violência.
cabana. Mas a identidade de questões e a atenção especial ao tema da decadência atestam que, na diferença de estilo e tonalidade, a ironia amarga de J abor - urbana, cética - tem pontos de encontro com o profetismo evangélico de Glaube r.
família aposentado, é o ponto central de mediação: traz para o apartamento na zona sul do Rio o universo mítico dos elementos formadores da nação de que se vê baluarte. Ex-integralista, expõe seu ideário em reiteradas conversas imaginárias com três companheiros do passado: o integralista fanático, cultivador das "emanações telúricas"; o italianado de São Paulo,
um anseio de agradar a visita ( o estrangeiro rico). Dado o eclipse do marido, Alzira ocupa os vazios, mostra energia, até mesmo quando se queixa da abstinência sexual, do trabalho na ca-
que faz o elogio do progresso e das fábricas de macarrão; e o poeta par-
sa. É incansável em seu exibicionismo coquete, que inclui a encenação sensual do affair do marido com "a loira", adultério
nasiano, que adorna as " reuniões" do grupo com sua retórica. Juntos,
imaginário que ela própria inventa. Esse teatro doméstico arrasta-se até o
evocam vivências de juventude, os bons tempos da lida política, o ufanis-
momento em que Juarez simula, ao telefone, o fim do suposto caso. Pode
mo nacionalista de matizes fascistóides. Enfim, tudo o que contrasta com
então o casal "reconciliado" engajar-se na reforma do apartamento: vida
o presente medíocre de Juarez. Homem fraco, sem autoridade na vida da
nova. Alzira celebra a vitória após "26 anos de luta". Vitória isolada, pois,
família e do prédio, ele é a direita folclórica à vontade no espaço da comé-
do começo ao fim, seu convite ao sexo não tem resultado, nem mesmo
dia, tal como um fascista de Fellini na cena italiana. Seu percurso será de
quando pede a Aparecida, a doméstica nordestina, que benza o apartamen-
crescente amargura, reconhecimento da impotência sexual, paterna e
to, em especial a cama do casal. Soberana, de qualquer modo, na condução
social, mergulho na apatia que encontra compensação cada vez menor nas fantasias e recordações.
da família, sua tônica é a relação populista com as empregadas (a carioca
Burguês mediano, nem rico nem pobre, é o "pequeno homem" que
nos negócios, mas atua sempre como mãe compreensiva, saboreando seu
encarna o declínio da figura paterna já trabalhado em Toda nude{ [1972] e O casamento. Está agora mais velho, mais acanhado. O cultivo dos emble-
papel em longos discursos que elogiam o estilo de vida dos miseráveis, exaltando a bondade do povo, a poesia que há na pobreza.
mas da velha ideologia curupira identifica-o como um velho cheio de
A tensão relevante em Tudo bem não se dá no eixo das gerações ou
manias a quem ninguém adere, nem a mulher nem os filhos. Os jovens, no-
mesmo no das rusgas entre marido e mulher. Desloca-se, portanto, em
vamente, estão associados à decadência, agora expressa em termos radicais.
relação a Toda nudez e a O casamento. A questão aqui é a contenção dos
Ao contrário de Serginho ou Glorinha, os filhos de Juare são figuras debi-
"excessos populares". A reforma gera a gradual invasão do espaço fami-
]óides, anódinas. Sua distância em relação ao pai é apenasf,,o desinteresse de
liar pelas figuras do trabalho, as classes subalternas. Sua função é prepa-
alienados incapazes de qualquer confronto. Com ar de geração perdida, são
rar o cenário para a festa final em homenagem ao americano, ocasião em
pólos da comédia que se vale no filme da experiência de Regina Casé e
que a família, cumprindo seu ritual de classe, vai apagar os sinais dessa
Luiz Fernando Guimarães trazida do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o
presença de povo e trabalho. No processo, desenha-se a tradicional imbri-
Trombone. Absorvidos em si mesmos, não prestam atenção à reforma do
cação de intimidades entre patrões e empregados, tudo dentro da econo-
apartamento: o filho preocupado com sua posição na multinacional em que
mia informal, dos salários precários compensados por cortesias que fazem
trabalha como Relações Públicas; a moça voltada para o consumo, "as
o orgulho da família como gente "legal". Os arremedas de conflito ser-
compras", o possível casamento com o americano, sempre sonsa.
vem para identificar tipos cômicos estáveis que, na sucessão de situações
1
esperta e a nordestina ingênua) e com os pedreiros. É autoritária, eficiente
Nesse mundo medíocre e sem surpresas, o elemento motor é Alzira.
absurdas, trazem seu pequeno mundo para dentro do apartamento, de
Fato que reduz o élan da família aos termos da dona de casa: empreender é
modo a compor o painel social desejado, incluídas as narrações da misé-
construir a boa aparência, encenar um "tudo bem" cosmético associado a
ria na fala dos pedreiros, que enchem os "bons ouvidos" de Alzira. Todos
332
se dão ares de dizer tudo, em família. Além do ·show da dona da casa, há a
de duas formas tradicionais do "excesso popular" que ameaçam o mundo
folação de um pedreiro desabusado em torno de fatos escabrosos ocorri-
da religião disciplinada e do trabalho, o mundo do "somos cristãos" de
dos na região onde mora, com um toque rodriguiano de "grotesco popu-
Juarez. Mais para o final, uma terceira forma desse excesso manifesta-se
lar". E há a história da família "sem teto" do imigrante que conta a vida
para criar o pesadelo maior, pôr em risco a festa. No último dia, um con-
do pai candango de Brasília, mostra fotos, compõe um clima tipo "o
flito entre dois pedreiros em torno de uma banana roubada gera o crime:
sonho acabou" que define a analogia entre a microempreitada do aparta-
há um cadáver no meio da sala que, em poucas horas, será ocupada pelos
mento e a construção da capital do país. A cidade-monumento nacional,
convidados. Criada a aflição, Jabor aproveita o crescendo do drama e lança
como a pequena reforma do apartamento, é preparação para receber
mão do detalhe de montagem para intensificar o efeito: está lá o cadáver
influxos, atestar a modernização. Esforço de transformação da fachada,
estendido no chão e já se antecipa o som da orquestra de Ray Conniff; o
mantidas as estruturas, que envolve o exercício renovado do princípio de
corte seco introduz o passeio de câmera que mergulha na festa. Tudo
exclusão: solicitar o pólo popular como executor da obra para, em segui-
parece normal, mas sabemos o motivo das posições estranhas de Alzira e
da, expulsá-lo ou confiná-lo, a fim de que seus sinais não manchem o
dos filhos ao pisar em pontos especiais não cobertos pelo tapete. Na área
espaço. O ocultamento exige ares democráticos, mas a política de contro-
de serviço, Aparecida vela o cadáver do pedreiro. A justaposição sala de
les diplomáticos nem sempre funciona. Principalmente quando o trans-
visitas/quarto de empregada chega a seu ponto emblemático e se mantém
bordamento, como o de Aparecida, envolve um surto de misticismo e his-
até que a atenção volte-se para o americano. Este fala da Global Village,
teria que se propaga numa desmedida inaceitável.
da comunicação via satélite, e domina a platéia de brasileiros apatetados
A tensão, de início cômica, entre as demarcações da ordem e os
que o segue a cantarolar Around the World como exaltação da técnica e da
excessos populares muda de tom no desastre final, que será preciso ocul-
modernidade. Para fechar o discurso, irrompe a imagem aérea de Foz do
tar. O primeiro lance coletivo ~ o do carnaval comandado pela empregada mais esperta, quando a animação expande-se e transforma o aparta-
Iguaçu, e a cachoeira oferece os termos da catarse: exuberante, porém em queda livre, descendente como em O casamento.5
mento numa passarela de escola de samba, para desespero de Juarez. O
Nesse final, a montagem sela o tema do transbordamento, uma
embalo só se dilui (em realidade, o lugar da catarse se tt~nsfere) quando
constante de Jabor ao longo dos filmes e também das crônicas dos anos
todos se unem para estancar um forte jato de água que \ ai de um cano
90: o fluxo das águas que figura o colapso, do sujeito (retorno do reprimi-
estourado do banheiro. Mais adiante, é a vez de Aparecida transformar-se
do) e da ordem social. Por outro lado, o sangue sob o tapete e o cadáver
em estopim. Criado um clima propício pela evolução das peripécias, ela
na área de serviço sinalizam o recalque da violência na construção do
entra em crise, gritando no quarto fechado; quando abrem a porta, ela sai
cenário da festa, reafirmando o princípio de exclusão como dado central da modernização conservadora.
de olhos esbugalhados, com duas chagas nas palmas das mãos. Atravessa o apartamento, vaga pelas ruas, em transe, e acaba dando origem a uma grande romaria que transforma seu quarto em santuário. Uma multidão entra em cena e acotovela-se nos corredores do prédio, aparecem vendedores ambulantes e Juarez tem de lutar muito para entrar em casa. Na exasperação, toma coragem e expulsa todo mundo, repondo a ordem. Esses dois episódios - carnaval e surto messiânico - marcam a presença 334
5. A queda-d 'água, aqui, além de ponto final que evoca a metáfora totalizante ela
enchente em O ca.samemo, ironiza também o ufanismo do início cio século xx que sobrevive não apenas em Juarez: não por acaso, no meio do filme, ele assiste ao programa de Amaral Neto na TV, série ufanista dedicada à natureza brasileira - o documentário sobre a pororoca embalado pela voz exaltada do repórtet·.
335
Ao trazer todo o país para dentro do mundo doméstico, Tudo bem
dade patriarcal é compor um diagnóstico que aponta, no presente, o que aí
evidencia, na sua estrutura, o influxo de uma tradição ensaística da socio-
a repete como farsa, o que aí é declínio efetivo da ordem familiar sob a capa
logia brasileira, apresentando uma versão nova da clássica dicotomia feita
de uma atualização cosmética. Nesse sentido, de toda a armação do regime
de casa-grande e senzala, sobrados e mocambos. Introduz um novo par,
burocrático-autoritário e seu projeto de modernização, ataca-se o flanco da
sala de visitas e quarto de empregada, que atualiza e assume a pertinência
direita folclórica, a que acredita na permanência dos valores tradicionais e
de uma síntese social a partir do núcleo familiar. Ao fazê-lo, não se ilude com versões idílicas da convivência entre as classes trazidas por essa
pensa o regime como sua garantia. Ou seja, o pólo Tradição-Família-Pro-
matriz, sendo irônico com as operações de ocultamento aí implicadas.
catural sem potência efetiva (a ordem econômica segue outros caminhos),
Além disso, seu sarcasmo dirigido ao ufanismo - forma matriz do "tudo
mas que ainda é moeda corrente no plano ideológico. 6
priedade (TFP) que é representado em Tudo bem por esse nacionalismo cari-
bem" e da catilinária do "berço esplêndido" - desautoriza a visão pater-
Iniciado em torno de 1970 - ou seja, período da censura, do mora-
nal, o olhar da casa-grande ou da sala de visitas, com sua idealização-anu-
lismo, do auge da repressão - , o "processo da família" de Jabor foi en-
lação do povo exaltado como parte da natureza a domesticar. No entanto,
contrando diferentes versões em que o espaço doméstico figurou relações
o desfile das indisciplinas - crenças, carnaval, cordel, beatismo - retém
de poder e marcou a discussão das raízes da apatia política. Esta foi assu-
um resíduo folclorizante. O filme diverte-se com as aflições dos donos da
mida como traço nacional insistente, inclusive na conjuntura específica
casa, mas a comédia apóia-se demais no estereótipo, acentuando o grotes-
de Tudo bem, que é de gestação da Anistia e do fim do
co, a histeria e a violência como traço geral: mancha encoberta dos donos
observa o Brasil pelo lado das permanências de prazo largo, das experiên-
da casa mas, acima de tudo, marca desinibida dos empregados. Ou seja, o
cias populares de transgressão espasmódica da ordem, comportamento
excesso popular está lá para dizer a verdade do todo. E a ênfase recai no
marcado por respostas pontuais que estariam ligadas à insuficiência de
que, nessa esfera, é confir.mado sobre a "miséria brasileira", sobre a
articulação, pela base, que marcou o processo de abertura e mais tarde
ausência de sujeitos históricos fortes e sobre a ausência de articulação do
resultou no que Fernando Henrique Cardoso chamou de "democracia
social com o político, dado criador dessa falta de saída que se figura no
conservadora" .7 Estão obviamente ausentes os setores mais organizados
fluxo das águas de conotações apocalípticas.
da sociedade, como era comum acontecer no Cinema Novo desde os anos
\
AI-5.
Esse filme
Se, nos anos 70, a sociedade brasileira era obvia\\1ente mais complexa,
60, que mesmo quando foi mais inclusivo em sua alegoria, como em Terra
se a própria configuração desse mundo acanhado define uma casa-grande
em transe, insistiu no peso político de uma tradição histórica formadora
já sem colunas mestras, por que insistir na matriz colonial, na família como
da mentalidade-obstáculo, essa que denota atraso, tende ao delírio, à
núcleo da reflexão sobre o país? Nessa escolha, Jabor condensa a resposta
inconsciência política, à não-solidariedade dos de baixo e à solução vinda
do Cinema Novo ao regime militar: faz questão de negar a modernização como força produtora de uma nova sociabilidade, de uma nova qualidade de vida, efetiva formação de classes sociais. A questão é marcar o lado conservador do modelo brasileiro, assumir a modernização como mudança de
6. É interessante lembrar que, como mostrou o trabalho de Sérgio Botelho do Amaral, "Guerra conjugal": uma batalha de Joaquim Pedro de Andrade (Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, r991), o filme de Joaquim, realizado em r974, tem também a TFP como alvo de referência em muitos de seus lances.
pele, casca que encobre a repetição de formas arcaicas de dominação e con-
7. Ver A construção da democracia - estudos sobre política (São Paulo: Siciliano, r993),
vivência de classes, reposição de uma subserviência a poderes externos sob
particularmente os artigos "A fronda conservadora - o Brasil depois de Geisel" e
a aparência do Brasil Grande. Nessa perspectiva, adotar a matriz da socie-
"Os anos Figueiredo" .
337
de cima ( em Tudo bem, é típica nos pedreiros uma postura de desunião,
pulação mais sofisticada em sua tecnologia. O desfile grotesco da eli te do
inveja, conflitos internos). Assumido o peso da tradição patriarcal, voltada para as relações in-
poder que se delineava no circo populista do grande comício do filme de G lauber retorna nas festas de largo abençoadas por ACM e nas sessões do
formais de mando e para a privatização do espaço público, a compreensão
Congresso, especialmente em passagens da votação do impeachment de Col-
da inconsistência política, da alienação, apóia-se numa forte presença da
lor, tornada espetáculo de
psicanálise, evidente desde Toda nude{ e O casamento. A alegoria totalizan-
"pelo meu chefe Maluf ", "por Santa ... ". O Jabor cronista, já nos anos 90,
te de Tudo bem vem ajustar essa presença à anatomia do estilo de sociabili-
não perdeu a chance de extrair o melhor rendimento dessa convergência.
TV:
"pelos meus filhos", "pela minha família",
dade encravado na tradição colonial. Essa é a síntese que resulta da opção do cinema pelo ajuste de contas com a família como forma de chegar à
A PSICANÁLISE DO ATRA SO
política. Resultam expostas as feridas de um Brasil com vontade de ser moderno, porém mergulhado na reposição do Mesmo em sua forma cari-
Quando Jabor assumiu a crônica de jornal, já em plena desilusão da Nova
cata e, por isso mesmo, desenhado de forma agressiva nos termos da ordem
República, o desfile de corrupção e crime organizado, as chacinas, a lon-
familiar em decomposição. A rigor, sabe-se que tomar o pólo arcaico de
gevidade da crise econômica e o sentimento de questões insolúveis na vida
relações pelo todo é uma deformação só possível a partir da expulsão de
brasileira alimentavam, com nova força, a idéia da iniqüidade como mar-
camadas fundamentais do Brasil moderno - incluídas as classes formadas
ca nacional. O teor rotineiro da barbárie desafiava, como hoje desafia, a
pelo avanço da indústria e dos serviços. Está claro que a alegoria não dá
retórica já melodramática do noticiário e da programação da mídia.
conta do país vigente naquele momento. Chama, porém, a atenção para
Mesmo os redutos mais tradicionais de fantasia e otimismo da
aspectos de uma antropologia brasileira que, muitas vezes desdenhados
vam-se contaminar pelo real à cata de uma solução de compromisso entre
pela militância dos partidos à esquerda, são fundamentais na discussão
o desejo, o devaneio e os dados contundentes do dia-a-dia. A novela em
política. Ou seja, temos aí aquele esforço em captar peculiaridades da vida
horário nobre fazia seus ensaios na direção de uma noção mais adulta de
social que o Cinema Novo reiterou em sua observação do país, sempre
" realismo", seguindo mais de perto a obsessão de Hollywood com o triun-
mais sensível aos resíduos de mentalidade arcaica, de \ociabilidade patriar-
fo da esperteza e da violência no mundo contemporâneo. Abria-se o vídeo
cal, de jogos clientelistas, de populismo. Se essa é uma ~~presentação defor-
para uma consideração "mais a sério" da corrosão dos valores, embora
mada em seu privilégio a um dos pólos, gera, no entanto, uma matriz para
prevalecesse a exploração dos momentos sensacionais em que violência,
pensar o Brasil, capaz de reconhecer os efeitos políticos da convivência de
contravenção e jogos de poder traduziam-se em dramas pessoais, fofocas
temporali~ades, dessa heterogeneidade social em que se acotovelam e se
de família, choros, confissões, arroubos sentimentais, crises de ódio.
acomodam tradição e modernidade. No limite, essa matriz tem oferecido, desde os anos óo, determinadas imagens da vida política que o episódio
Na teatralização da esfera política, ganhou impulso a busca da personagem interessante e houve até uma certa experimentação - como no
Collor recolocou em pauta como versão apoteótica da convivência de
caso da família Collor - quanto ao gênero dramático adequado para qua-
arcaico e moderno, do universo da mídia e do "em família". O delírio à la Diaz do final de Terra em transe retoma no discurso de
lificar a experiência social. A ansiedade em ver tal experiência ganhar sentido, e a recusa em procurá-lo em nexos causais de teor mais estrutu-
posse do presidente eleito em 1989, bem como os dados do carisma, do
ral, dirigiu a conversa para os dados personalizados do processo, incluindo
messianismo político, da massa apatetada, agora embalada por uma mani-
uma dose diária de pitoresco: os dramas do ministro que se expõe quando
338
TV
deixa-
B9
é "flagrado" sem saber pelas câmeras, os depoimentos patéticos das vítimas
cronista procurou inscrever o cotidiano e a política em formas d ramfüicas
de violência ou de desastres, as caretas dos âncoras da
e seu "serviço
produtoras de uma visão original. Isso, em parte, o fez retomar a chave da
personalizado" da informação. A tônica nacional de reiterado malogro fez
tragicomédia presente nos filmes. No limite, porém, em consonância com
da idéia do "trágico'' uma moeda corrente. Fórmula automática, essa idéia
a tônica do tempo, esboçou-se um tom de tragédia mais efetivo naquele
perdeu sua força como dotação de sentido, tornando-se idéia tosca de fata-
ponto em que Jabor procurou recuperar a densidade do termo.
TV
lidade associada ao recalque do discurso sobre interesses concretos.
No seu teatro da sociedade, o cronista ora construiu "interiorida-
De modo geral, o uso de noções correlatas a gêneros dram áticos,
des" , inventou perspectivas (privadas, secretas) que tornassem interes-
privilegiando a gravidade e afastando-se da biague, atualizou um pro toco-
santes as personagens públicas em debate (os irmãos Collor, PC Farias);
lo de reações já desgastado, mas que ganhou interesse em função da esca-
ora compôs seu próprio drama ao narrar incursões reais ou imaginárias
lada da ficcionalização da notícia. A narrativa dramática tornou-se um
pelos focos de pobreza, pelos espaços do poder ou pelos labirintos dos
sucesso, não apenas como exacerbação do mecanismo da fofoca, mas tam-
economistas. Diante dos despossuídos, tematizou a interrogação, o pro-
bém como elaboração de um discurso no qual o cálculo dos efeitos e do
blema de encontrar as palavras, as encenações que pudessem qualificar a
gênero adequado à situação é hiperconsciente. Uma galeria de escroques
desgraça sem o clichê ou a obscenidade, enfrentando a opacidade da
garante matéria farta para os exercícios de psicologia social e a teatraliza-
experiência e a dificuldade do enfoque. D iante dos ricos e de boa parte
ção do cotidiano canaliza-se, excluindo-se as vítimas, para o anti-herói
dos políticos, as excursões imaginárias pintaram o quadro com desenvol-
como figura tipo, não sendo rara a sugestão de que ele "nos" define. Nesse
tura, pois ele já estava à vontade na exposição dessa comédia. Reencon-
movimento, volta à cena o caráter brasileiro, com uma força que a idéia do
trou aí as "relíquias do Brasil" que emperram a modernização - ver a crô-
nacional perdeu em suas outras dimensões. E retorna sem a dominante de
nica da visita ao Congresso Nacional - ou freqüentou festas de sociedade
humor que o caracterizou no passado: Macunaíma sai de pauta, pois o
que ironizou em textos nos quais a estrutura do comício de Terra em tran-
senso comum perdeu a paciência em face da malandragem, fazendo da
se inspirou o desfile de tipos nacionais, sobreviventes e emergentes,
ética o tema central do discurso político.
observados como encarnação dessa mescla de cinismo e convicção exal-
Dentro dessa atmosfera, a crônica de J abor 1?\anhou destaque pela
tada que tem reposto a iniqüidade. Excursões ao passado marcaram o
força de sua construção de personagens inspirada n\)s episódios da vida
quanto ontem e hoje o olhar encontra o mesmo país: estilo personalista de
cineasta. 8 Desde suas
relações e de poder, gosto pelas soluções messiânicas, escrachos populis-
social, transferência para o jornal da experiência do
adaptações de Nelson Rodrigues, a questão de Jabor foi esta: acertar o
tas, autoritarismo das elites.
tom, engendrar o ponto de vista capaz de qualificar, adequadamente, a
Se o Brasil se repete, resta ao cronista retomar a tônica dos filmes,
desmedida das personagens, ajustá-las a um debate em torno da dimensão
enumerar os novos palhaços da "loucura brasileira" ou voltar ao destaque
nacional de suas mazelas e de seu estilo. Na ausência do cinema, que tra-
dos arcaísmos provincianos alheios à cidadania moderna, traços que per-
ria o desdobramento dessa lida com os gêneros, a inquietação quanto às
sistem na Nova República - vide a eleição de Jânio Quadros em 1985, a
formas .do drama desaguou no jornalismo. Atento à agenda nacional, o
estratégia populista de Collor em 1989, os dramas de família na crise do governo, a confusão entre público e privado atualizada nos episódios de
8. Para as crônicas de Arnaldo Jabor escritas durante o pedodo Collor, cf. a cole-
1992. Resta enfim sublinhar a persistência da mentalidade-obstáculo, o
tânea Jabor, A. Os canihais estão na sala de jantar (São Paulo: Siciliano, r993).
peso da tradição e do estilo de sociabilidade já encenados em Tudo 6em.
34 1
Há algo mais, no entanto. A lida com figuras singulares do poder acaba gerando uma nova resolução imaginária - essa que esboça o trágico -, na qual a dicção apocalíptica do cronista, tão freqüente no comentário
guarda como herói trágico, cientista político e a111rop(1lo1•;0 ("t:Ht' t' massa grotesca que dissolve os tons elevados: o
ta toma, arcaicamente, como organismo sem fraturas, ou comunidade. A
Mesmo é a bolha emprestada de Hollywood, massa gelatinosa que con-
partilha desigual do poder e da riqueza, os conflitos de valores e a luta
versa com Collor no palácio, lugar onde sempre esteve como um fantas-
ideológica, embora reconhecidos aqui e ali, não parecem capazes de apon-
ma a fazer da história um romance gótico escrito por presidentes volun-
tar a lógica das ações e os interesses por detrás dos massacres ou da delin-
tariosos às voltas com forças ocultas.
qüência política. Dada sua envergadura, a desmedida sugere algo mais, um
Determinação maior do processo, o Mesmo vale por um postulado de
fator oculto à altura dessa ultrapassagem de limites que não parece apegar-
identidade que não carece de especificação; é uma onipresente zona escura,
se a nenhuma força social identificável no jogo de poder. O tom trágico
inacessível senão pela alegoria. Desgastadas as totalidades recobertas por
exige a configuração de destinos e, na consideração do fator oculto, toda
noções como "espírito", "caráter nacional", Jabor encontra o vocabulário
ênfase recai sobre "nossa" identidade como aquele algo além que explica:
da psicanálise. O uso de expressões como Id nacional sinaliza a preferên-
existe um substrato nacional mais fundo, uma vocação para a desmedida (o
cia, como também o teor uterino do Mesmo, princípio regressivo que assi-
ponto fraco do caráter que aciona as tragédias). País do equívoco, o Brasil
mila a si próprio e dissolve o novo. O ponto decisivo, no entanto, não está
seria o lugar geográfico de "encontros marcados" , onde vale a força dos
aí. Está na lógica de todo o esquema que iguala ordem histórica e universo
atavismos, das vinganças adiadas, da "tradição secular de loucuras", de um
do desejo e da ordem sexual. Sujeitos descentrados movem-se às cegas ilu-
imenso e indefinido rol de pulsões inconscientes (e nacionais) que estariam
didos em suas intenções, impulsionados por determinações opacas, origi-
por trás dessa transformação da experiência-limite em prato cotidiano.
nárias, que os condenam à repetição. O trágico aqui é a batalha de Sísifo
De crônica a crônica, a psicanálise do atraso avança em sua genera-
contra a astúcia da inércia primeva nacional: "toda tentativa de me destruir
lidade e elimina, por assim dizer, seus toques de\1salvação. As figuras do
me coloca de novo no poder" . O Mesmo, como dado matricial (o desejo
inconsciente nacional adensam-se e o Mesmo adq\iire corpo, manifesta-se
nacional de fracasso), deixa de ser um conteúdo. É uma forma que se repõe
como entidade. Ele não é apenas a imobilidade do país que permite, atua-
nos variados conteúdos que diferentes épocas atualizam. Daí porque se
lizando a matriz de Tudo bem, reduzir os industriais aos termos da casa-
minimiza, ao longo das crônicas, a idéia de um valor arcaico - como a
grande e os líderes sindicais do
aos termos da senzala. Nem apenas
família patriarcal, por exemplo - ,que impede que o novo se instale. Como
as formas da "loucura nacional", nas quais os presidentes "não saem, eles
fórmula astuciosa, o Mesmo dissolve a oposição tradicional/moderno
têm alta" . Nem as visíveis encarnações do arcaísmo, a vocação para o fra-
(dois conteúdos manifestos) e define-se como um sistema do equívoco.
casso em que a hiperinflação é um destino que se mescla de interesse alu-
Ativa no passado, ativa ao longo da história, essa forma se faz também
cinado (os especuladores) e de mentalidade messiânica (pensa-se a hiper
presente nessa mentalidade autodepreciativa do Brasil como país inviável,
como o desastre, mas também como a salvação - a mentalidade do país a
ineficiente, que predomina com toda a força a partir dos anos 80, a década
deseja). O Mesmo é o princípio de eterno retorno à matriz (fala-se de his-
perdida. O Mesmo está na versão pós-milagre do sentimento de inferiori-
tória fixa), "pasta essencial de que tudo é feito" , "inércia primeva" que se
dade e de culpa que deságua na vitória de Collor, salto para o equívoco
344
ABC
145
neoliberal que substitui a pasmaceira da Nova República de Sarney. O
ódio, uma geléia de indignação com oportunismo". Lança sobre si o ri sco
Mesmo está no Congresso, no Brasil contemporâneo no qual os arcaísmos,
de ser engolido pela mesma engrenagem do erro permanente, agora reves-
os "sentimentos profundos que estão aí há séculos", vêm encontrar a cum-
tida ele pós-modernismo, risco de contaminar-se pelo desejo do fracasso,
plicidade da constelação dita pós-moderna.
essa relação ambígua com o mundo em que o sujeito, sem ilusões de auto-
A matriz arcaica sublinhada desde Tudo bem vem agora se articular a
nomia, se vê perdido e assume o "desejo insano do caos" . Aqui, o cronis-
um dado da contemporaneidade na configuração do Mesmo. O país vive
ta dos anos 90 se vê às voltas, em verdade, com a mesma vertigem de
novas dimensões, mas essas cristalizam-se na razão cínica que o retrato dos
interrogações que assola as personagens do cineasta dos anos 80, seja o
jovens já anunciava nos filmes dos anos 70. O Brasil de Collor, o mesmo
Paulo de Eu te amo [1981], seja o jovem casal de Eu sei que vou te amar
que está saturado de discussões em torno do pós-moderno, permite uma
[1986], filmes em que Jabor encenou, pela primeira vez, o drama que ator-
nova aproximação que se faz a partir da crise do sujeito, do fim das espe-
menta os cristãos-novos da sociedade permissiva. Enfim, começou lá, na
ranças, do senso de impotência na sociedade do espetáculo, da saturação de
cena entre quatro paredes, o laboratório em que sua imaginação trabalha
imagens que tudo expõem, incluindo o velho teatro dos conservadores. Se
os Narcisos da era do vídeo, expondo o outro lado do impasse nacional.9
o brasileiro, como de resto o mundo, desaprendeu as ilusões revolucioná-
Resta ver como, encenado na vida privada, portanto em seu terreno por
rias, o período Collor põe em crise as convicções democráticas, a ingênua
excelência, o "desejo do fracasso" revela sua origem nos longas-metra-
fé nas virtudes subversivas da abolição da censura. Do equívoco do país
gens, antes que as crônicas o projetem para a ordem social.
das torturas e da repressão encoberta, saltamos para o equívoco do país
Observo agora a psicanálise do atraso em sua matriz contemporâ-
intoxicado de escândalos, afogado na série de CPis, na reiteração cotidiana
nea, momento em que o cinema de J abor faz a passagem das questões da
da indigência política. A imaginação do cronista aproxima a exposição
família patriarcal (matriz colonial, fator endógeno da mesmice) para as
excessiva aos podres da sociedade à saturação do voyeur superexposto à
questões da neurose moderna (fator exógeno).
pornografia. E a lógica adotada - ordem social/ordem sexual - leva ao mesmo diagnóstico: se a intoxicação pelas imagens de sexo explícito e a
A MATRIZ CONTEMPORÂNEA DO MESMO
banalização da nudez geram a falta de apetite sex\~al, a pornografia política gera a apatia social. Restaria um cidadão assolallo pela inércia, pulsão de
Em seus filmes dos anos 80, J abor deu andamento ao teatro das crises con-
morte, metamorfose contemporânea do Mesmo.
jugais e da desordem amorosa iniciado nas adaptações de Nelson Rodri-
Os dados da tecnologia atual inserem-se no processo mas não mu-
gues. Alterou, no entanto, seus termos. A cada filme, os protagonistas
dam sua lógica nem a vocação nacional: a modernização, tal como se dá,
mudam de geração. O purgatório doméstico não mais se define como
acelera a emergência de novas matérias aptas a atualizar o desejo do fra-
oposição entre desejo e norma tradicional; o mundo dos pais e o debate da
casso, determinação maior do impasse atual que impulsiona os iludidos
família saem do centro do drama e o labirinto da nova subjetividade vem
pela high-tech, os surfistas na crista da onda, os intelectuais-disneylândia. Nesse ponto, o cronista, ciente de sua inserção no teatro que descreve,
9. Aqui, Jabor aproxima-se da formulação de Joaquim Pedro em Macunaíma
olha-se no espelho e desconfia de sua própria démarclze, na qual o zelo pela
[1969]. A sociedade de consumo vem constituir o vale-tudo e aquela demanda de
verdade é também prazer do voyeur. Observa que o jornalista é implacável
infantilização e hedonismo a que se ajusta muito bem a "nossa" matriz arcaica, ou o "caráter nacional" entendido então nos termos da malandragem.
e critica o país inteiro, mas "a partir de uma vaga pasta de moralismo e de
347
definir o espaço dos desencontros. O que as personagens mais jovens
Medo semelhante assombra a moça de Eu sei que vou te amar. Não é
ganham em fluência perdem em direção, afogadas num jogo de esconde-
outro o sentido de sua fala posta em destaque no prólogo que antecipa a
esconde, sucessão interminável de pequenos teatrinhos embalados por
questão que permaneceu em pauta durante toda a conversa com o ex-
amor-próprio, feridas abertas, impulsos de vingança, disputas de poder,
marido.
evocações de um passado mais pleno de que têm medo. Confusos, procla-
De um filme a outro temos duas versões do mesmo paradigma.
mam aquele anseio melodramático de tudo dizer e expressar, mas palavra
Dois encontros semelhantes, no ponto de partida, na gangorra de afetos e
e gesto há muito abandonaram o terreno da transparência. Resta a vivên-
agressões, na forma do desenlace. Homem e mulher encontram-se num
cia de conflitos insolúveis.
espaço confinado, lugar de uma terapia a dois, na aparência alheia a um
Eu te amo e Eu sei que vou te amar marcam a passagem da ironia
quadro social que, em verdade, é sempre reposto, pelas evocações da con-
endereçada à decadência da família - que era a tônica até Tudo bem - para
versa, pela composição do ambiente cuja colagem de arcaico e moderno
a encenação de uma crise de identidade e de sentimentos que se assume
alegoriza a interminável transição brasileira.
como "doença da modernidade", essa doença catalisada pelo esvaziamen-
Em Eu sei que vou te amar, o nexo entre o Brasil e a crise das perso-
to da ordem patriarcal, do qual emergem as figuras libertas e ansiosas
nagens é sugerido mais de leve, sem a moldura escatológica de Eu te amo,
que, entre outras, Christopher Lasch teorizou. No cinema de Jabor, tais
tão explicitadora. O anteparo de ironia adensa-se, e o que se diz sobre o
figuras entram em cena para atualizar em nova chave o drama de aparta-
país, o povo, o mundo não parece matéria a ser levada a sério, pois afirma-
mento da zona sul: são agora as ovelhas desgarradas da crise brasileira.
ria relações de sentido estáveis que o filme, de fato, não se permite. Ao .
Em Eu te amo, é explícita a correlação entre a desordem amorosa de
longo do percurso, os tons da mise-en-scene e a perspectiva do teatro con-
Paulo, empresário falido, marido abandonado, e a consciência nacional do
jugal alteram-se na mesma proporção da instabilidade radical das perso-
"fim do milagre" . A seqüência inicial do filme, em seu esquema escatoló-
nagens. O encontro combinado após meses de separação atesta mútua
gico, antecipa as imagens do cronista: o locutor do telejornal anuncia a
carência, mas também um anseio de fazer valer pontos de vista, transferir
descoberta de uma grande massa informe, malcheirosa, debaixo da mesa
culpas. No debate, ninguém cede de fato e o jogo de provocações prolon-
da Presidência do Congresso, a "grande cag1Pª nacional". Em seguida, o
ga-se indefinidamente. A par da anatomia da crise, inventário das ofensas,
protagonista fala ao telefone de sua falência~como cliente da corrupção
a evocação dos "bons temp·o s" é contraditória. O casal faz um ritual de
oficial, maldiz o castelo de cartas do milagre de Delfim e se diz em busca
identidade que, embora massageie os egos, reafirma o lado carcerário da
de palpabilidade, afã de concreto: "O Brasil não existe, somos medíocres,
relação plena: o amor é uma doença, uma gosma; une mas é de natureza
covardes". Está aí refeito o roteiro de auto-agressão das figuras culpadas
antidemocrática. Entre autonomia e entrega sem limites, o movimento é
de Nelson Rodrigues. Mas Paulo vai além: assiste, no vídeo, à cena da
circular, há saídas pela tangente. Nas cegueiras estratégicas, infantis,
separação. E ouve novamente sua ex-mulher brandir a verdade maior: seu
reconhece-se a mesma constante: a atração pelo fracasso, o medo da
desejo do fracasso, levado à morbidez. Essa é a moldura de um percurso
união, é o estratagema que condena os apaixonados ao dilaceramento.
em que seguimos seu namoro com Maria ( ou Mônica), feito de pequenas
Dado explícito nas fig·uras de Paulo e Maria de Eu te amo, tal estra-
encenações para criar imagem, ele e ela vivendo duplos de si mesmos, rei-
tagema é a linha de resistência que pontua o drama do casal de Eu sei que
terando a mentira embalada pelo medo da entrega. Como se envolver, se
vou te amar. A tônica é, em ambos os filmes, a falação desenfreada, as lon-
não há garantias, se tudo é efêmero?
gas confissões que evoluem na direção reveladora do Duplo, essa figura
349
que cristaliza o "caminho do Mal" na vida dos protagonistas. Tal caminho
sombra valorizador do lado feriei 1c
tem a sua versão feminina - a moça em Eu sei que vou te amar, tanto quan-
de corpos e objetos, pelo qual o ci ne-
to a Maria de Eu te amo, assumindo o paradigma da prostituta - e a sua
asta dispõe-se a enfrentar, na franja
versão masculina - o jovem ex-marido, tanto quanto Paulo em Eu te amo,
arriscada da incorporação, o regi me
assumindo a relação com o travesti. 1º
da visualidade por ora vitorioso: o
O duplo, esse Outro que é fantasia ou prática clandestina, no passado se apresentava como uma função: era estável seu papel de sustentação
do discurso publicitário. Nessa tônica, os dois filmes dos
da norma antiga, do casamento tradicional. No esvaziamento da norma,
anos 80 já sinalizam algo que irá rcLOrnar com força nas crônicas: o medo
ele propõe-se como dado inelutável da identidade sexual, condição de
do olhar ingénuo, o afã de encenaç~o ela in1cligência (já levado ao paroxis-
dilaceramento interno na liberdade aparente. Vivência de uma opacidade
mo em Eu sei que vou te amar). Esse movimento alimenta o culto do para-
radical, a crise de identidade direciona a viagem para o terreno da tagare-
doxo, dos jogos de duplo sentido, desse visível que é efeito de superfície,
lice, essa ansiedade de narração de si mesmo e de recuperação do poder
plasticitlade. A afirmação direta e o sentimento claro, a visão natural das
pela palavra que dá o tom nos dois filmes.
coisas, colocam-se como ilusões perdidas. E o movimento autocentrado
Movimento correlato, Eu te am,o inaugura a composição de uma
das personagens cria o descompasso que persiste nas reviravoltas bem cal-
nova visualidade no percurso do Cinema Novo, exercício de um olhar
culadas, e só se resolve quando, inevitável um desenlace, a comédia impri-
voltado para um mundo que se dobra sobre si mesmo. No cenário fecha-
me um tom paródico, de artifício deliberado, ao encontro final - mais cha-
do e narcísico em seus espelhamentos, a ostentação de tecnologias da
pado em Eu te amo, mais elaborado em Eu sei que vou te amar. Nos dois
imagem, de efeitos de luz e texturas, sempre remete a outras imagens. É a
filmes, o final feliz implica um salto para outro espaço, a cena ao ar livre
reposição ad nauseum de fi~ras da sedução que se sobrepõem ao fluxo de
substituindo o confinamento, promessa de abertura que se revela figura de
palavras para compor o teatro de extroversão das personagens, miragem
linguagem, citação de final feliz que é versão encabulada de um romantis-
do " eu profundo" . Visualidade, portanto, distante daquela indagação
mo de fundo que se toma por ingênuo, utopia a que cineasta e personagens
aberta, que incorpora o acidente e a surpres~, típica à fenomenologia dos
se vêem ainda apegados - não por acaso o amor é uma gosma - mas pro-
cinemas novos dos anos 60-70, empenbados~numa pedagogia da percep-
curam d~saprender. Do amor, fala-se de sua permanência, mas na tônica de
ção, no movimento que procura "surpreender o mundo em ato", como se
uma instabilidade irremediável neste mundo de mercadorias em que a crise
dizia. Saturada de um inventário cuja potência afigurou-se, com a moder-
do sujeito e o ar saturado de imagens e modelos embaralham os papéis,
nização, de efeitos ilusórios, a busca do valor-documento na imagem des-
potencializam o lado trágico do desejo.
loca-se para o reconhecimento da imagem-mercadoria, para o domínio
Instala-se no percurso de J abor a dramatização das duplicidades, di-
técnico de um aparato que se assume como peça de um mundo de artifí-
gamos imperativas, esse "quem sou eu?" irresolúvel já formulado obsessi-
cios, teatro irremediável. Resta, portanto, o mergulho no jogo de luz e
vamente por Jorginho, personagem da mídia em O bandido da Íu{ vermelha
[1968], de Sganzerla. Interrogação que, também lá, comprometia, no paraPara a noção do travesti como o que "viaja na identidade", ver a crônica de
lelismo entre personagens e contexto social, o conjunto da nação. Saímos
Jabor "O travesti não quer ser mulher" , no Iivro Os canibais estão na sala de jantar
do processo da família e mergulhamos nesse processo que combina sufoco
(São Paulo: Siciliano, 1993).
afetivo e fluência sexual na grande cidade, exasperação do " espírito de per-
10.
35 1
li
1
formance,, . Nessa tônica, as personagens de Jabor permi tem-se os encan-
pelas simulações de tragédia do cronista que, de resto, frustraram -s •.
tos de quem tem cacife para o consumo em níveis internacionais, figuras
Aqui, o dado visível do contemporâneo é a atomização, o senso de isola-
modernas no cenário e na roupa, envoltas num design de revista e enreda-
mento, a ruptura de um pacto suposto com a comunidade. No drama ele
das na literatice. De Tudo bem a Eu sei que vou te amar, a lapidar sucessão
Paulo e Maria ou no do jovem casal, o povo é o O utro distante, no qual
das gerações encarnada nos protagonistas faz desaparecer aquele olhar
está a vida concreta, a dor palpável, o problema relevante; mas essa esfe-
exterior que emoldurava a crise dos pais e observava seu melodrama. O
ra não faz senão servir de contraponto ilustrativo aos impasses discutidos
conflito agora envolve questões mais afetas ao pólo moderno do país, tem
pelos amantes entre quatro paredes. No pouco que se fala desse Outro, é
mais a ver com cineasta e espectadores, gerando um espaço de identifica-
clara sua distância de um ideal de sujeito histórico presente no início dos
ção não mais tão ameno quanto aquele em que o ponto comum era o riso
anos 60 e já questionado desde Terra em transe.
dirigido às figuras cafonas e arcaicas. Mais jovens, os protagonistas, embo-
É nítido, nesse particular, o movimento gradual de desqualificação.
'I
ra mantenham aquela compulsão a confessar, a fazer o mea culpa já obser-
Se nas alegorias de Glauber a distância em relação ao ideal não impede
1
vado nos pais em declínio, colocam-se mais à vontade na auto-ironia. Con-
que o povo permaneça sempre como força a convocar, dado de projeção
seguem uma vivência, digamos, mais carnavalesca de suas angústias,
futura, em J abor o desencanto com o oprimido é irremediável, reforçan-
assumindo as oscilações de humor, os fracassos, no tom mais filosófico do
do uma visão à la Nelson Rodrigues, com ênfase na experiência bruta,
clown. No seu teatro ainda há lugar para a histeria, mas essa é vivida em
nas desgraças individuais em série. A presença do povo em Eu te amo se
melhor estilo, mais elegante no domínio dos conceitos capazes de falar do
dá nessa franja da ação passional e do crime insólito,jàit divers, drama de
impasse, menos convicta no entanto em sua possibilidade de superar o cli-
sangue em que o marido corta a cabeça da mulher e sai com ela na mão
chê. Desde cedo, essas novas personagens respiraram a psicanálise, e a ciência já deslocou a religião como baliza da vida moral. O desconforto,
pela rua desesperado, em franco contraste com a civilidade anêmica do Paulo abandonado e humilhado.
que inclui nos jovens do último filme a nostalgia das interdições do pai,
Nesse afastamento gradativo, Glauber encarna o espaço da nostalgia
ganha outras formas de expressão. Liga-se agora à constelação contempo-
de Jahor, emblema das utopias "desaprendidas" , dos sonhos frustrados de
rânea que, a par do que se possa afirmar como diapnóstico da vida social,
união entre intelectual e povo, das esperanças e projetos que o Brasil abor-
traz um saber atual sobre sujeitos e afetos que J abof não demora a incorpo-
tou. O autor de O beijo no asfalto define o espaço de um reconhecimento:
rar na composição das cenas da vida privada. Essas, enquanto exercício
o da conjuntura presente como confirmação do olhar do moralista que
dramático, preparam sua própria expansão, concretizada no momento em
nivela humanidade e vício, do descrédito radical no coletivo de quem
que Jabor se torna jornalista e passa a focalizar as cenas da vida pública, o
observou o "pequeno homem" de outro ângulo, não vendo nele o sujeito
teatro político. O gosto pela psicanálise extrapola a valfdade dos paradig-
histórico suposto pelas esquerdas, mas as contradições de caráter, a pleto-
mas para outros terrenos, e o que se dramatizou, em primeiro lugar, como
ra de experiências malogradas. A alegoria do Mesmo - o Id nacional, o
paradigma da vida amorosa - o desejo do fracasso - será erigido depois em
desejo de fracasso - é uma totalização que muito deve a esse pessimismo
traço nacional e, mais do que isso, em sua força estruturante, modeladora
sistemático, à visão grotesca do popular. Visão que, em Jabor, é dilacera-
da experiência em escala histórica.
da, pois o cineasta sofre de uma compensação iluminista e sabe o quanto,
1
Na alegoria do Mesmo, o substrato subterrâneo de unidade nacional
em função de sua miopia política, Nelson Rodrigues viu grandeza onde
não requer o sentimento de comunidade, em outros momentos exigido
menos devia: no cultivo conservador da tradição nacional, nas figuras e
352
valores mais notórios do autoritarismo do "homem cordial" (no sentido
cura, a chance oferecida pela história de superar as marés impulsi v:,s, o
de Sérgio Buarque) e, em especial, no chefe do terrorismo de Estado de
domínio do id, a barbárie. A queda de Collor e a prisão de
1970. Ou seja, naquilo que Jabor considera, em suas crônicas, como a ar-
si sós, não assumiram a dimensão catártica desejada. Pelo menos, rüio s;io
quifigura do Mesmo, personagem e regime de lugar garantido na galeria
visíveis seus efeitos terapêuticos mais fundos. Novas polaridades, proces-
do erro permanente, raiz maior da crise atual (afinal, não foram os "idio-
sos decisórios como eleições, algo que mobilize a nação será a pedra de
tas" de 1968 que criaram a dívida externa, o modelo de concentração de
toque capaz de atestar ou não o novo patamar civilizatório. Antes mesmo
renda, a deterioração da vida social e política). Entre os ideais das passeatas dos anos 60 e Nelson Rodrigues, o ci-
de consultas populares, a polêmica em torno do ministro Fernando Hen-
neasta-cronista procura conduzir a autocrítica referida aos dogmatismos
a nova oposição para caracterizar a crise: estamos ou não preparados para
da juventude sem comprometê-la com a visão conservadora da queda das
sair da "inércia primeva" em direção ao reino da Razão?
PC
Farias, pm
rique traz o clima para o teste. E a presença do equilibrista permite cunhar
utopias como um bem absoluto. Isso, no Brasil de Collor e Itamar, signifi-
A té aqui, o strip-tease moral dos donos do poder, espelho da nação,
ca recusar o Mesmo em sua última versão: o conluio de oligarquia e voga
era o ponto de decolagem da terapia. Supostos parteiros da superação do
neoliberal que ganhou plena expressão na razão cínica e nas jovens ambi-
Mesmo, tais figuras exigiam um olhar clínico que as tornasse personagens
ções de 1990. No entanto, como fazê- lo, se o Mesmo parece força motriz
interessantes, tarefa exercida pela psicanálise do atraso, que exagerou em
inelutável, presente no arcaico e no ultramoderno? Como fazê-lo na
meras caras de pau os traços de uma tragédia iluminadora. O desdobra-
ausência de um "sujeito histórico transformador" , nessa constelação anti-
mento efetivo da crise reafirmou a continuidade dos percursos medianos,
humanista de crise dos paradigmas? Uma vez postulado um princípio de
dos acertos de cúpula, das renúncias oportunistas, da morosidade dos
regressão que se põe acima das classes e das determinações sociais, mon-
inquéritos. A idéia totalizante de um organismo nacional em crise, pre-
tada a armadilha entre a insistência dos arcaísmos e uma precoce "doença
missa da psicanálise proposta, requeria um mecanismo endógeno de su-
da modernidade", como sair do círculo, completar a terapia?
peração do Mesmo, um espírito de comunidade e um herói disposto ao
No circo das'atrações nacionais, o cronista vislumbra no alto a figura da salvação: entra em cena o equilibrista.
t
OE COMO ATRELAR O MESMO À RAZÃO (OU O CONTRÁRIO)
sacrifício, mas a hipótese trágica projetou grandeza e a psicologia viu loucura onde só havia mesquinhez e cálculo ( este muito bem percebido por Jabor no empresário Pedro Collor, no momento das denúncias). Valeu de novo o princípio de coerência da tragicomédia, das personagens grotescas, tal como nos filmes, pequenas demais para sustentar dialéticas trans-
A noção de Id nacional explicita-se no título da crônica "Monstros do Id
formadoras. Era preciso criar um novo cenário para a hipótese mítica
nacional amam o caos" (Folha de S.Paulo, 15 de junho de 1993), cujo cená-
desse momento especial de ruptura, e o empenho de Jabor na defesa de
rio é o Congresso, assumido como grande circo onde, solitário, o ministro
Fernando Henrique vem oferecê-lo. Sua coluna define uma perspectiva
da Fazenda tenta equilibrar-se na corda bamba enquanto todos os porta-
de intervenção mais nítida e, por isso mesmo, mais vulnerável. Afinal, ao
vozes do Mesmo - o elenco é enorme e admirável - torcem pela sua
contrário da condição indefinida das figuras populares da salvação no
queda. A condição desse artista solitário não é a do isolamento gerado pela
alegorismo que Glauber sustentou até A idade da terra [1980), o de Jabor
delinqüência radical (Collor): contra rudo e contra todos, contra o etlws
tem de ajustar-se a uma conjuntura política específica, à defesa de um
nacional ele encarna a Razão. No vácuo da crise, surge a perspectiva da
candidato à Presidência. Nessa tarefa, o cronista assume com mais fre-
'
354
355
qüência o tom argumentativo do comentarista político, buscando menos
da criação artística (caso elo tropicalismo). Evoca-se a metáfora cligtsriv:1
as encenações de grande efeito que marcaram seu sucesso no período
da antropofagia oswaldiana, com uma diferença notável: não se Lrat a niais
Collor. Mas a postura de ficcionista persiste e, com ela, o gosto pela ale-
de falar da contribuição milionária de todos os erros, das vantagens estra tégicas do atraso, ironias da malandragem que deslocam porém preservam
goria de fundo pedagógico. O que repõe, em outra chave, a busca pela o abandono da matriz psicológica. Se a tradição da qual vieram Collor e
o primado do nacional. Na fórmula de Jabor, trata-se, ao contrário, de superar esse primado para ter a chance de um primeiro acerto.
Farias confirmou sua distância diante da hipótese do sacrifício herói-
Colocando os avanços em termos das sobras positivas do processo
co, era recomendável a mudança de gênero: J abor põe em cena o suspen-
comandado de fora, não desejado - "o que fizemos com o que fizeram ,, . . conosco -, o cronista retoma, no mesmo movimento, o tema da desmon-
tonalidade certa de representação do teatro político, o que será feito sem PC
se, com possível final feliz, na alegoria do circo. Faz da Razão a nova per-
sonagem, e ressalta sua proeza onde ela não era esperada. O Mesmo, enquanto disposição inconsciente ao fracasso, era um
brasileira, o mito da contracultura dos anos 70, talvez o mito de um socia-
princípio explicativo, mecanismo totalizante que não oferecia saída. Daí
lismo inventado no Brasil. A desmontagem sugere a faxina teórica gera-
porque exige a passagem para outro princípio abstrato - a Razão univer-
dora de novas disponibilidades, condição para a modernização conse-
sal que permite conceber novo dinamismo no interior da psicologia.
qüente, domesticação do Id nacional. Saem de pauta a questão colonial e
Enquanto oposição ao Mesmo, a Razão, ao contrário do caráter endógeno
seus avatares modernos, ponto de articulação dos diferentes nacionalis-
do "princípio do erro permanente", afirma sua alteridade como fator exó-
mos, o que implica descartar a dimensão predatória e toda a violência
geno que os novos tempos vêm impor. Exige o abandono da idéia organi-
imperial contida na polaridade civilização/barbárie. O dilema contempo-
cista do nacional como núcleo irredutível infenso à temporalidade. Requer
râneo se faria, sim, da reedição de tal polaridade, reedição em que a luci-
nova articulação entre interno e externo, apta a descartar a idéia, presente
dez mandaria saltar para o lado oposto ao da tradição que liga Oswald de
em Tudo bem e em outros filmes do Cinema Novo, de que a modernização
Andrade, G lauber Rocha e outros que observaram as abstrações do ilumi-
reflexa é mera mudança de fachada, reforma cosmética que refaz a crosta
nismo como ideologia racionalizadora da dominação. Pondo de lado o
de um Id imutável. Para acolher a hipótese da Rajão salvadora, é preciso
compromisso dessa polaridade com os processos que estão na raiz do que
observar que a modernização, embora contraditóf a, envolve uma produ-
ele chama de inércia primeva, Jabor canaliza a abordagem da formação
ção conseqüente de forças novas na sociedade. Admitir que, em contrapo-
colonial brasileira para a questão do "iberismo", 11 essa forma do Mesmo
sição ao desejo do fracasso e às manobras do Mesmo, mudanças estruturais vão se processando no país por força dos influxos externos. Significa,
que Sérgio Buarque equacionou e que a ciência social atrelou a um estilo ' populista de liderança, a todas as formas de clientelismo que ora apupam
indo além, montar a dialética da "invasão que vira invenção", tornando
o equilibrista. O que não impede, no entanto, que essas formas sejam con-
sem efeito a idéia de história fixa, abrindo espaço para uma nova persona-
vocadas para a aliança pela Razão, certa de seu poder condutor, num pro-
gem, ou um novo princípio regulador, fora do domínio da "inércia prime-
cesso que reitera o mesmo princípio de solução pelo alto bem enraizado na
va" ou da hegemonia da razão cínica que proclama o fim da história. O que
tradição política brasileira. Seria a vez, na atualização do princípio, das
antes só se notava como episódios da reposição do Mesmo passa, a partir
operações do intelecto em oposição à via carismática mais afeta ao Id
tagem das ilusões históricas: entre elas, o mito de uma peculiar Revolução
da nova premissa, a articular-se com o elogio ao avanço econômico expresso na formação da nova classe operária do ABC, com o elogio a lances
11.
Ver "Brasil vice à beira do destino pastelão" . Fo!ILa de S.Pardo, 29 mar. 1994.
15'/
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nacional. Minimizados os outros fatores da vida social e do jogo do poder,
·d o erro permanente, que podem "melar" os projeto:; da esqu erda moder-
a oposição entre figuras referidas às esferas da psique marca o eixo de rup-
na de Genoíno e Mercadante e, no limi te, sabo1ar a1é um l .ula prcsidc1Hr,11/0, 15 mar. •99•1·
como acontece com essa tradição, o cronista apresenta, numa primeira
fase, aquele movimento misto de dissabor e orgulho em seu senso de iden-
certa forma de integração na nova ordem intern acional. fü:11nido:; 11:1 v il
tificação com o nacional como comunidade imaginada. Assumido que
comum do irracionalismo, merecem desqualificação a priori, n~o pOl'q111•
uma certa mentalidade permeia o social, mais forte do que outras determi-
expressão de interesses concretos, mas porque visceral e nacio nalm c11tc
nações, sua psicologia produz um dinamismo que, apesar do militante mea
dogmáticos, aquém de um patamar de maturidade exigido pelo mund o
culpa dirigido ao próprio cronista e seus leitores, desliza para o organicis-
técnico da nova fase do capitalismo. Este se impõe como totalidade, diga-
mo, que, em última análise, apresenta um toque de fatalismo conservador,
mos como Natureza; exige adaptação, um dobrar-se ao princípio de reali-
a par do que ilumina em aspectos importantes do processo, como observei
dade que a Razão, reduzida à condição de Pai tecno-instrumental, ensina.
1
desde a leitura dos filmes. O "nós brasileiros" do cronista, o desejo de fra-
Na passagem das alegorias de desqualificação do Pai arcaico para
casso, o erro permanente e a culpa universal repõem aquele tipo de diag-
essa de elogio do Pai moderno, a psicologia social de J abor, sem dúvida,
nóstico em que, exceto pelos agentes notórios da vida pública, as instân-
desliza depressa demais no jogo de difícil encaixe entre as totalidades - o
cias do poder menos óbvias, quase sempre as de aparência mais civilizada,
Mesmo, o Id nacional, a Razão. Há problemas de articulação entre a psica-
permanecem à vontade, administrando à sombra seus interesses, em meio
nálise do atraso, o mito iluminista e as angústias do Eu impotente na cena
às desqualificações do político, do pobre ou do brasileiro "em geral".
contemporânea. Não surpreende, no entanto, o fato de tais questões não
Com explícito alinhamento à esquerda, pela biografia, pelo cinema e
prejudicarem o impacto da crônica, pois seu interesse no debate político
pelo empenho da crônica atual, Jabor vive o drama desse toque fatalista,
depende mais de cada efeito imediato, sua aposta maior. Enquanto série
dessa atenção especial que sempre deu ao fundo do poço, temeroso da
discreta, os textos de circunstância são como a novela: não lhes é decisiva a
irigenuidade. Seu ceticismo quanto à viabilidade de uma saída em que as
coerência; os bons capítulos, compensando os maus, garantem o vínculo
classes dominadas teriam papel decisivo como foco da mudança - estariam
com o leitor. Existe até um rendimento dramático nessa oscilação de erros
por demais contaminadas pela mentalidade-obstáculo - gerou, em 1992, o
e acertos, dadas as dificuldades do jogo assumido pelo cronista diante do
equacionamento da crise como pedagogia, lição subversiva no plano das mentalidades, esperança de maturação do
seznacional na vertigem supos-
processo que, embora lhe creditemos ordem e sentido, apresenta-se no diaa-dia c9mo indeterminação e enigma. O essencial é que, no movimento do
tamente criada pela radicalização do malog1'~. Collor era a mescla perfeita
cineasta ao cronista, pode ver-se condensado o esgotamento de uma con-
de impulsos arcaicos e razão cínica moderna, e permitiria um duplo exor-
cepção, em verdade de raízes antigas, da identidade nacional: essa passa de
cismo. Mas em sua queda não desempen hou o papel com a pompa e o sen-
princípio, explicativo com potência infinita de reposição (a psique como
timento trágico requeridos. Na voragem do Mesmo e à beira do abismo, o
fundamento maior da história) à condição de contingência superável
mito iluminista coloca-se como último recurso de superação, entendida a
(mesmo que em seu lugar coloquem-se outros princípios abstratos).
Razão como habilidade no jogo de cúpula e nas soluções técnicas, visão da
A forma particular com que se manifesta em J abor essa crise do na-
conjuntura internacional que promete fazer do neoliberalismo um instru-
cional define a persistência de um teatro das mentalidades que não des-
mento da social-democracia, sem ilusões de compreensão ou participação
carta o solo mítico para a emergência ex abrupto de personagens-símbolo
popular dentro da modernidade por demais opaca. Situação complexa que
de novos princípios, dado de permanência. Mas ele tem assumido o risco
não impede que a psicologia social coloque a defesa de uma opção política
de fazer em público, com atropelos e recaídas, a faxina ideológica que sua
e sua estratégia em termos da oposição setecentista entre a Razão universal
crônica proclama necessária, faxina que entre outras tarefas significa exor-
e os particularismos - religiosos, provincianos - dos que se opõem a uma
cizar o nacionalismo cultural herdado da experiência cinemanovista e, no
mesmo salto, evitar a queda no niilismo como faceta da " doença da moder-
Sobre o autor
nidade". Dado o gênero em que se aninham os textos, há forte demanda pela manutenção do tônus dramático, o que ele com talento e imaginação tem alcançado, sem dúvida com o preço de reafirmar um esquematismo totalizador tão. mais grave quando o proclama indesejável. A constante mítico-alegórica na composição dos cenários políticos favorece um teatro de oposições abissais, uma autêntica psicomaquia que, na tônica da alegoria medieval, envolve um choque de princípios em que o tudo ou nada soa como um juízo final. Nesses termos, seu movimento entre o apocalipse dos moralistas - Nelson Rodrigues, Glauber Rocha, as versões antitéticas da identidade nacional - e o dos "pós-modernos" - o mundo da não-identidade, o fim da história, a vitória da barbárie - resolve-se por enquanto neste novo limiar de catástrofe: a Razão acima definida ou o caos.
nasceu em 9 de junho de 1947, em Curitiba, Paraná. Formou-se em Engenharia Mecânica na Escola Politécnica [USP] e em Comunicações Sociais (Habilitação Cinema) na Escola de Comunicações e Artes [usP], no ano de 1970. Ingressou no mestrado em Teoria Literária [FFLCH-USP], orientado pelo professor Paulo Emílio Salles Gomes, apresentando, em 1975, a dissertação  procura da essência do cinema: o caminho da avant-garde e as iniciações brasileiras. Em 1980, recebeu o título de doutor com a tese Narração contraditória: uma análise do estilo de Glauber Rocha, 1962-64, orientada por Antonio Candido de Mello e Souza, publicado sob o título Sertão Mar: Glauber R ocha e a estética da fome . Fora do Brasil, em 1982, tornou-se PhD em Cinema Studies pela Graduate School of Arts and Science, da New York University, onde realizou também seu pós-doutorado, finalizado em 1986. Publicou em 1993 um volume que reúne a tese escrita para a NYU e a tese de livre-docência: Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. D esde 1989 desenvolve seus trabalhos com o apoio do CNPq. Foi professor-visitante da New York University, no D epartment of Cinema Studies (1995), da University of Iowa, no Communication Studies Department (1998), da Université Paris m - Sorbonne Nouvelle, na U FR Cinéma et Audiovisuel (1999). Desde 1971, é professor no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP. Sua intensa atuação na universidade prolonga-se nas gerações de alunos de mestrado e doutorado que orientou na área de cinema e na participação em núcleos de pesquisa (como o Centro de Estudos da Metrópole). Xavier é membro do Conselho Consultivo da Cinemateca Brasileira desde 1977, e faz parte do conselho editorial das revistas acadêm icas Novos &tudos Cebrap e Literatura e Sociedade. D esde 200 1, coordena a I SMAIL XAVIER
coleção "Cinema, Teatro e Modernidade" na Cosac & Naify. É autor de dezenas de artigos em revistas acadêmicas e de dez livros sobre teoria do cinema e cinema brasileiro. LJV ROS
O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (2ª edição revisada e ampliada, 1984). Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978. A experiência do cinema (org.). Rio de Janeiro: Graal, 1983 (2ª edição com posfácio,
1991). Sertão Mar: Glauber Roclza e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.
D. W. Grifjitlz: o nascimento de um cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984. O desafio do cinema ( em colaboração com Jean-Claude Bernardet e Miguel Pereira) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, r985. Alegorias do suhdesenvolvimemo: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993 . ' O cinema no século (org.). Rio de Janeiro: Imago, 1996. Allegories of Underdevelopment: Aesthetics·and Politics in Bra{ilian Modem Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997. O cinema hrasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. ARTIGO S E ENSAIOS
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