O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues


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Portuguese Pages 382 [190] Year 2003

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O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues

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Ismail Xavier

O olhar e a cena \1elodrama, Hof6,wood, Cinema Novo, Nelson R odrigues

Cosac & Naify

••

cmematecabrasileua

~, 1 ll ',/1 1 111 !• llldlf

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N/11 1 , '1 111 1 1Vii•1, , 1111 1 I

1

l 111IPl111 11 ,1111n1ni 1e 11111 :1 in 1 ·ri r tação dos filmes apoiada na análise de como intera-

µ; ·rais que marcou o cinema brasileiro entre os anos 50 e os anos 90. As

µ; ·111 a

estões discutidas nas duas primeiras partes do livro repercutem nesta 111 1 •r eira pela observação do confronto entre os filmes que adotam os pa-

'S I ruLUra

dramática, o teor da cena e o lugar do espectador. Desta-

·o I rês pó lo · de atenção. Em primeiro lugar, há a questão do olhar e da cena no cinema produ-

cl rões consagrados da indústria cultural (seja Hollywood ou a novela da

zido em Hollywood, posto aqui em confronto com as suas matrizes tea-

'l' V) e os inseridos no contexto do cinema moderno de autor. Renovam-se

trais, notadamente o melodrama do século

desse cinema, o de sua formação e o de seu apogeu, representados por dois

,1í as tensões entre o realismo, o melodrama e as formas mais irônicas de .i pro priação dos gêneros tradicionais, pois o cinema, no diálogo com a

mestres em situações opostas: D. W. Griffith, a encarnação plena do melo-

o bra do dramaturgo, privilegiou os romances-folhetim, as tragédias cario-

drama, e Alfred Hitchcock, a figura da ironia e da autoconsciência radical

1,,1s

da representação. Focalizo também experiências mais recentes que, embo-

XIX.

Privilegio dois momentos

~ as crônicas, afastando-se das peças mais enigmáticas em que se faz

ra mais complexas do que o cinema de Griffith, revelam a continuidade dos

11 i. 1is nítida a distância em face desses pólos mais convencionais da repreu-11,ação. Em meu percurso, a ênfase recai sobre a relação entre o Cinema

códigos e dos valores que marcaram o sistema clássico desde sua formação.

N ,vo e Nelson Rodrigues, um bom laboratório para analisar um exemplo

Em segundo lugar, há a questão dos gêneros dramáticos tal como se

d,1 r ,tação entre olhar, cena e sociedade, em que se debatem diferentes

manifesta em exemplos paradigmáticos, de grande eficácia junto ao

pi 1Ií1i •as da representação que nos dizem muito sobre o processo cultural

público, extraídos do cinema e da televisão brasileiros. Focalizo um cine-

l,1,11.;il •iro entre 1960 e 2000.

1

ma político que incorpora fórmulas da indústria cultural, como é o caso de Hector Babenco, e uma teleficção voltada para a representação da his-

11 AI Ci\N E DO DISPOS ITIVO

tória recente, como o fizeram as minisséries de Gilberto Braga. Esses são 11111 0 r I :; rva Eric Bentley, o jogo da representação define uma equação 111 1,n a p h qual, dentro de certa moldura, A encarna B para o olhar de e

dois exemplos de rep resentação da experiência social que, ressalvada a

t

sua inserção no cinema de "grande público" ou na televisão, colocam o

11 1

problema da relação entre o realismo e as fórmulas do melodrama, seja quando estas se manifestam em uma agonia marcada por conflitos irreconciliáveis (Babenco ), seja quando elas conformam a comédia romântica como espaço de conciliação (Braga). Em terceiro lugar, há o conjunto de ensaios em que examino o vasto terreno das adaptações da obra de Nelson Rodrigues para o cinema ao longo de quatro décadas. Trata-se da mais significativa experiência dentro do eixo das relações entre cinema e literatura dramática no Brasil, país em que tais relações não demonstram grande densidade quando obser-

11 1, i·siô fora dela). Apresentada desse modo, a equação é simples mas, , , :i ' pção mais ampla, ela dá o tom no contexto contemporâneo, 1 111 11 11 , i, nll di sp : iti vos que articulam o olhar e a cena vão além do teatro, da

(q

111

,·.i , da foto grafia, do cinema, do vídeo e dos modos de composição 1 111111 1 ,1 1i.1. 1-:n v lv m outras formas de relação com o mundo fora de tais 111 1 id •a. , •o rn as interações e os jogos de poder de grande incidência 11111 111 ,., 1 vida o rdinária. A crescente importância da imagem num amplo 1 111 1111 I" ,1 11 11 d , ai ivid ades e relações é parte constitutiva de uma nítida onda

1

ili

,., 11·,il i'l., 1 2.

42

burguesa tradicional. A especificidade de Vertov diante dos franceses é a liga-

(;~o qu e ele es tabelece entre desmascaramento e exposição dos processos efetivos d:1produ ção social, das relações de classe, através da montagem cinematográfica.

43

, 1

analítico da imagem - retomam muito do repertório da vanguarda dos anos 20,

inserindo a caracterização do olhar do cinema numa reflexão mais am-

co, verdade foi poesia, originalidade, experimentação; mentira foi a rotina do comércio, o kitsch industrializado.

pla sobre técnica e cultura. Nessa reflexão, a moldura é outra mas prevalece

Não cabe agora a recapitulação do que foram as diferentes versões

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo, revelador, da foto-

desse conflito vanguarda/ cultura de massa em cada país e época. Não o

grafia e do cinema dentro da cultura européia. A promessa então se reafir-

poderia fazer nem quero, pois meu objetivo é saltar dessa primeira refle-

ma, sem as premissas de "expressividade total" e de retorno à natureza.

xão dos anos 20 para uma mais próxima de nós, gerada no contexto fran-

Com Benjamin, ela assume um contorno histórico mais bem demarcado, é

cês pós-68, reflexão que abandonou a tradição de opor verdade e menti-

formulada por um pensamento mais sensível à contradição e ao caráter das

ra, deslocando a discussão sobre a técnica do cinema.

li

1

1

forças sociais em conflito. Pensamento que nos trouxe uma avaliação da

No grande intervalo que saltamos, a crítica avançou na caracteriza-

questão da arte dentro de uma articulação mais lúcida com a conjuntura

ção do olhar sem corpo e suas implicações, notadamente na avaliação de

política e a própria natureza das apostas em jogo na Europa dos anos 30,

sua estrutura mais comunicativa e sedutora: o cinema clássico, olhar da

polarizada por uma confrontação decisiva entre revolução e reação.

indústria, expressão da ideologia dominante nos meios. Extensão do que

l

chamei "olhar melodramático", o cinema clássico é sua modernização. Faz A CRÍTICA DO OLHAR SEM CORPO

profundidade dramática, amplitude temática, concretizando o ver mais e No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema, o pensamento

melhor do cinema na direção de um ilusionismo mais completo - o cine-

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade ( cinema) e mentira

ma clássico é o olhar sem corpo atuando em sentido pleno, conforme a

(tradição cultural), e deu toda ênfase à cumplicidade entre cinema e natu-

caracterização dos seus poderes apresentada em minha primeira descrição,

reza, solidários enquanto um organismo e sua expressão visual, prontos a

que, de fato, ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular, dominan-

expulsar a simulação desde que a nova técnica fosse salva de sua adultera-

Le no mercado, e não a todo o cinema possível. É nele, mais do que em

ção promovida pelo universo da mercadoria. Por esse caminho, a oposi-

qualquer outra proposta, que vemos realizado o projeto de intensificar ao

ção entre um cinema desejado, objeto do recalque social, e aquele que

xtremo nossa relação com o mundo-objeto, fazer tal mundo parecer autô-

realmente impera (a pedagogia da indústria cultural) orienta-se por uma

nomo, existente em seu próprio direito, não encorajando perguntas na

teleologia: o presente é o momento dos entraves que impedem o desen-

direção do próprio olhar mediador, sua estrutura e comportamento. So-

volvimento na direção correta, capaz de realizar as promessas da nova

mos aí convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural.

técnica; o futuro é o preenchimento dessas promessas que, desde já, as van-

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60, dois grandes pólos

guardas anunciam e preparam. Entre 1920 e 1960, os poderes reais in-

de reflexão conduziram a crítica a essa naturalidade postulada pelo cine-

sistiram em repor o mesmo cinema dominante, o que trouxe em linhas

ma clássico: a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operações da

gerais a reiteração da mesma matriz de contestação. O conflito dominan-

111

ntagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referência

te/ dominado, traduzido em termos de verdade e mentira, refez-se ao

· ntral) e a crítica francesa inspirada na fenomenologia, tendo como foco

longo de eixos diversos. Quando prevaleceu um eixo político, o pólo da

maior André Bazin. 3

verdade (futuro) identificou-se à cultura revolucionária o da mentira

'

(presente), às mistificações da reação. Quando prevaleceu um eixo estéti44

[!

com que ele abandone os excessos maiores do passado, ganhe em sutileza,

'l ·

f. Bazin, Cinema: ensaios, trad. Eloisa Ribeiro (São Paulo: Brasiliense, r99r).

45

i 1

1

l

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

di' I '·111 •m con siderações de conteúdo (o tipo de universo ficcional ou do•ntári o) . ublinha a postura do olhar em sua interação com o mundo,

que faço agora, pois sua crítica ao ilusionismo começa com a advertência

r 11111

de que a imagem cinematográfica não deve ser lida como produto de um

1, 11ll o

olhar. Para ele, a suposição de que houve um encontro, uma contigüidade

,111

espacial e temporal, entre câmera e objeto não é o dado central e impres-

rn 11, inu idade, trabalhando as incertezas de uma percepção incompleta,

cindível da leitura da imagem. Sua presença na tela é um fato de natureza

11

plástica que deve ser observado em seu valor simbólico, avaliadas as

l' C,11 s1ruto ra

características de sua composição e sua função no contexto de um discur-

•,t·m cortes, observando uma ação em seu desenrolar, um acontecimentQ

so que é exposição de idéias, não sucessão natural de fatos "captados"

(' 111

mais legítima quanto mais reproduzir as condições de nosso olhar

·o racl no corpo, vivenciando uma duração e uma circunstância em sua

lIra I assada pelo mundo. Daí sua minimização da montagem (instância

pelo olhar. A diferença entre um plano geral e um close-up, por exemplo,

da onividência), sua defesa do plano-seqüência ( olhar único,

seu fluir integral). N uma visão mais atual, prestamos atenção especial ao que aproxima apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

muitas vezes não pode ser entendida como "olhar à distância" versus

e· 11 ã

"olhar de perto" , mesmo quando se focaliza o mesmo objeto, mas como

r is1encial de Bazin: há em_ambos, novamente, a atribuição de um poder

confronto de duas imagens de valores distintos. A diferença é de função,

d • verdade e de um poder d~ mentira encarnados em determinados esti-

valor, não de posição no espaço, pois pode não haver continuidade e

los. Para Eisenstein, há um estilo capaz de dizer o mundo social-his~óri-

· homogeneidade espacial para que se possa falar num "chegar mais perto"

·o, colocando o cinema como potência maior no plano do conhecimento.

- tudo depende do contexto do discurso por imagens. Ao contrário de Eisenstein, os críticos inspirados na fenomenologia

-

1

-~

ara Bazin, o cinema é uma espécie de "terceiro estado da criação" e exis-

1 •

um estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua

duto de um olhar - é essencial que ela seja vista como tal - e a sucessão

vssencial abertura no tempo. Contra esse pano de fundo da tradição teórica, a intervenção de

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogêneo.

J ·an-Louis Baudry, em 1969-70, põe em questão a constante promessa de

À imagem-signo de Eisenstein, eles opõem a imagem-acontecimento; à

u 111 estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque às premissas do cinema em

defesa da descontinuidade, própria do cineasta russo, respondem com

µ; ral, examinando mais a fundo as condições do espectador (seu raciocí-

uma defesa até mais radical do princípio de continuidade já presente na

ni o está municiado para analisar o espectador do filme clássico, mas

narração clássica, fazendo a ela um reparo fundamental: se a imagem em

13audry fala em cinema tout court). 4 O horizonte de seu exame é ressaltar o

movimento nos traz a percepção privilegiada do homem como ser lança-

modo pelo qual a recepção da imagem possui uma estrutura que, a seu ver,

do no mundo, como ser-em-situação, a falsidade do cinema clássico está

solapa o reiterado crédito - de Bazin, Eisenstein, Griffith, Epstein - na

na manipulação implícita em sua montagem, pois o olhar sem corpo e a

revelação da verdade como destinação fundamental do cinema. Ele inver-

endossam e defendem a premissa de que, no cinema, toda imagem é pro-

onividência criam, na tela, um mundo abstrato, de sentido fechado, pre-

rc a tradição e vê na simulação, na produção de efeitos (ilusórios) de

julgado e organizado pelo cinema. Toda montagem é discurso, manipula-

conhecimento, o destino maior da nova arte ( visão que julga confirmada

ção, seja de Eisenstein, de Griffith ou de Buiíuel. Em oposição, um crítico como Bazin solicita um olhar cinematográfico mais afinado ao olho de

4.

O mais importante dos textos de Jean-Louis Baudry dessa época, em torno de

um sujeito circunstanciado, que possui limites, aceita a abertura do

, 970, "Os efeitos ideológicos do aparelho de base", está publicado em Ismail

mundo, convive com ambigüidades. Quando pede realismo, ele não se

Xavier ( org.), A experiência do cinema (Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983).

47

r:1ns ·ndente que descortina o mundo e se vê no centro das coisas, ao

pela permanência do ilusionismo do cinema industrial). Isso se dá por

1

força da própria natureza da técnica cinematográfica, herdeira das ilusões

111 •smo tempo que radicalmente separada delas, a observar o mundo co-

da perspectiva, da persistência retiniana (não vemos os fotogramas, vemos

111 0 1 uro

olhar. Nessa apropriação ilusória da competência ideal do olhar,

o que não ocorre na tela, ou seja, o movimento da imagem, e temos a im-

·:-.1ou, portanto, no centro, mas é o aparato que aí me coloca, pois é dele o

pressão de continuidade), da falsa autenticidade documental da fotografia.

movimento da percepção, monitor da minha fantasia.

Rearticulando elementos já conhecidos, Baudry nos traz uma interpreta-

Para Baudry, uma filosofia idealista que postula um sujeito trans-

ção radical que questiona não estilos particulares de fazer cinema, mas o

. ' nd ente em oposição ao mundo objetivo que se dispõe ao conhecimento

fundamento mesmo de sua objetividade como técnica, essa mesma objeti-

•ncontra aí, na técnica do cinema, sua tradução visível. Toda sua ênfase

vidade que tem sido a sustentação maior das esperanças de verdade. Na

r 'c·ú sobre a produção simultânea da imagem e do sujeito -observador

definem um

oniv idente. A engenharia simuladora do cinema define, com~o efeito-

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusões da técnica e desatento às

suj eito, seu teatro da percepção total cujo protagonista sou eu-espectador

implicações contidas na própria estrutura do olhar da câmera tal como se

id entificado com o olhar da câmera.

nova perspectiva, as diferentes posições teóricas, desde

1920,

Nesses termos, o que dificulta a consolidação de linguagens alterna-

dá para nós na platéia. A técnica tem suas inclinações, seus efeitos ideológicos e, ?esse sentido, é ela mesma que impele o cinema industrial a desen-

i ivas

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcio-

1 111 na ilusão seu sustentáculo e os percalços das vanguardas devem-se a

nal. A força de encantamento desse cinema persiste na história porque o

que sua aposta é reverter a função daquilo que já nasceu para cumprir

dado crucial em jogo não é tanto a imitação do real na tela - a reprodução

outro destino. Digo destino porque a lógica dessa teoria transforma o cine-

integral das aparências-, mas a simulação de um certo tipo de sujeito-do-

ma num órgão que surgiu para cumprir um programa: o de objetivar, na

olhar pelas operações do aparato cinematográfico.

"mais verdadeiras" é esse pecado original inscrito na técnica. Esta

,sfera do visível, estratégias de dominação, especialmente as da classe bur-

Avaliar a potência do olhar sem corpo não é então inventariar as

guesa que presidiu sua origem. Assim, antes de instância liberadora, sub-

imagens que ele oferece; é focalizar o seu movimento próprio, sua forma

versiva, a condição do cinema é preencher uma demanda do próprio "uni-

de mediação, o que implica analisar sua incidência no espectador que

verso carcerário", tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato.

vivencia o poder de clarividência, a percepção total. Na sala escura, iden-

Há uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70; a

tificado com o movimento do olhar da câmera, eu me represento como

formulação aqui exposta é a tradução teórica radical dos impasses da con-

sujeito dessa percepção total, capaz de doar sentido às coisas, sobrevoar as

t

aparências, fazer,a_ síntese do mundo. Minha emoção está com os "fatos"

·tação no cinema. Temos o esgotamento de uma teleologia, a da técni·a redentora "entravada" pela poJítica e a economia, e sua substituição

que o olhar segue, mas a condição desse envolvimento é eu me colocar no

1 or

uma outra, a da técnica como instrumento maior de reposição de um

lugar do aparato, sintonizado com suas operações. Com isso, incorporo

sistema de poder. Em consonância com a tonalidade da reflexão sobre a '

(ilusoriamente) seus poderes e encontro nessa sintonia - solo do entendi-

linguagem, a cultura e a ideologia naquele momento, a teoria do cinema

mento cinematográfico - o maior cenário de simulação de uma onipotên-

mais original e polêmica ressalta o lado sistemático, inelutável, das ilusões

cia imaginária. No cinema, faço uma viagem que confirma minha condi-

' ci os enganos do olhar da câmera. Nesse contexto, a própria prática do

ção de sujeito tal como a desejo. Máquina de efeitos, a realização maior do

inema amplia o espaço para a reflexão teórica voltada para a questão do

cinema seria então esse efeito-sujeito: a simulação de uma consciência

simulacro - a citação, a imagem que alude à imagem, o circuito das refe49

rências a si mesmo, que o cinema leva ao paroxismo, entram para valer na

mos o bastante sobre a natureza do espectador, de modo a prever o cará-

esfera da indústria, constituem sua nova marca. Tal reflexão se faz dentro

ter de sua identificação com o aparato, a qual assume uma dimensão

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

única de adesão à imagem por força do efeito-sujeito. Como conhecedo-

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

res do desejo do espectador, denunciamos o conluio desse desejo com o

contemporânea. A imagem cinematográfica é então observada a partir de

programa da indústria e deduzimos daí as alienações do cinema e da pla-

sua participação em outra rede de relações, em que não há lugar para a

téia. Não tenho condições de endossar a generalidade desse saber a res-

interpretação (esse tomar a imagem como representação de algo exterior

peito do espectador; o aparato atua em determinada direção, mas a expe-

a ela), para o juízo da verdade ou mentira; em que se dissolve a oposição

riência do cinema inclui outras forças e condições que não se ajustam ao

aparência (imagem)/ essência (substância)- nada há por trás das imagens,

programa do sistema. A formulação de Baudry, embora inclua com toda

e las valem como efeitos-de-superfície, imagem remetendo a imagem,

a força a dimensão do desejo do espectador, não deixa de ser outra ver-

fluxo de simulacros.

são das teorias da manipulação global centradas em excesso no aspecto

Faço agora uma incursão que não é propriamente no terreno da

programático da experiência, de modo a confundir o processo que efeti-

nova filosofia e das questões mais amplas do simulacro na produção.

vamente ocorre com a lógica ideal do sistema. Focalizo uma situação

Trata-se de uma análise particular no nível da engenharia da simulação,

l. articular, didática nesse contexto, em que é perfeito o funcionamento do

caracterização de um efeito na qual não é necessário assumir as noções

a parato, em que podemos verificar o mecanismo da simulação em esta-

com a mesma ressonância que elas adquiriram na literatura dos anos 80.

lo, digamos, de laboratório.

Fecho a exposição com a consideração de um novo exemplo que, acredito, esclareça algumas observações feitas até aqui sobre a interação entre

IMU LAÇÃO E PONTO DE VI STA

espectador e imagem, so~re o papel da "moldura do sujeito" na leitura. Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

To da leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o cio sujeito

efeito de uma imagem depende de sua relação com o sujeito em determi-

oi servador, não o da "objetividade" da imagem. A condição cios efeitos

nadas condições. Da situação da testemunha de McCarthy, passei a uma caracterização mais detida do olhar do cinema e examinei dois momen-

da imagem é essa. Em particular, o efeito da simulaçã~ apóia-se numa ·on trução que inclui o ângulo do observador. 5 O simulacro parece o

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexão crí-

111 ' não é a partir de um ponto de vista; o sujeito está aí pressuposto. Por-

tica em torno do que há de engano e revelação nesse olhar. A partir de

1.i n I o,

uma discussão mais geral sobre a simulação do fato - na fotografia, no

1\ ·l.1 çã com o sujeito. Num plano elementar, podemos tomar o cinema

cinema - , chegamos a uma questão mais específica: a simulação do sujei-

'< mo modelo do processo. O que é a filmagem senão a organização do

to na estrutura mesma do olhar cinematográfico. Dentro da discussão

" ,1·o ntecimento" para um ângulo de observação (o que se confunde com

mais geral, o exemplo a· seguir envolve uma situação mais complicada do que a das fotos do tribunal - estaremos no cinema. Como inspiração, terei presentes as'lições de Baudry, sem no entanto incorporar o movimento totalizador de sua crítica ao olhar do cinema. Seu amplo diagnóstico, mobilizando a psicanálise, tem como pressuposto o fato de saber-

o processo de simulação não é o da imagem ~m si, mas o da sua

N •ssa · asserções, apóio-me no artigo de Xavier Audouard, "Le Simulacre", in (Paris: Cercle d' épistémologie de l'Ecole N ormale Supérieu-

f ', ,/, ; ,,,..,. pour l'analyse

11•, 11 . , mai .-jun. 1966). O horizonte de Audouard é o de uma discussão sobre o 1d1 •, ,li s1no I latô ni co; seu terreno é, portanto, distinto, e meu empréstimo não impli1,1 11111,1id •nrifi cação à sua perspectiva de análise.

o da câmera e nenhum outro mais)? O que é a fachada de prédio de estú-

leçida a disponibilidade total de Scottie, a situação-chave de Vertigo dese-

dio senão a duplicação do mesmo princípio da fachada "de rua" que su-

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster, ex-colega de escola que,

gere o que não é justamente quando observada de um certo ângulo e dis-

no reencontro, surpreende-o com o pedido para que siga sua mulher,

tância já pressupostos em sua composição? O que é a ficção do cinema

Madeleine. Elster mostra-se apreensivo com as manifestações de ausên-

clássico senão uma simulação de mundo para o espectador identificado

cia que ela apresenta, com os períodos de comportamento estranho em

com o aparato? Vejamos Vertigo ( Um corpo que cai), o filme de Hitchcock realizado

que ela parece ser outra pessoa, viagens de que retorna sem lembranças.

em 1958. Ele é a trama da simulação por excelência, como já foi observa-

proposto. Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine, pesquisa pela

do pela crítica. Trago um aspecto novo à consideração: o do espelhamen-

cidade, recolhe dados essenciais. Um primeiro quadro se compõe: a figu-

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

ra que dela se apossa em seus transes é Carlota Valdez, mulher que viveu

o próprio princípio da narração do filme. Tal como em outras obras de

:111

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

San Francisco no século x rx e que se suicidou em circunstâncias me-

Hitchcock, o cinema clássico aqui opera com eficiência máxima e, ao

lancólicas. Novamente com Elster, Scottie relata as descobertas. O mari-

mesmo tempo, oferece a metáfora viva para o seu próprio processo. Inte-

do introduz novo dado: Madeleine está em perigo de vida, pois descende

ressado nessa metáfora, acentuo nesta análise a mecânica da simulação, o

d ' Carlota, outras mulheres da linhagem cometeram suicídio e ela tem

funcionamento exterior do aparato, não o que, nas personagens, é desejo

,1•·ora a idade de Carlota ao morrer. Na primeira série de passeios de Madeleine, fase em que se compõe

do estratagema e disposição para a vertigem da imagem. Sigamos passo a passo a narrativa, até o ponto que interessa.

1> p1 adro, tivemos uma ostensiva duplicação: num primeiro plano, Scottie

Vertigem, título original, é a palavra que condensa as idéias-força

11bs rva Madeleine, que não reconhece sua presença (ele está fora do ter-

do filme em sua tematização do olhar e do ponto de vista. A apresentação

1i1ório dela) e se põe disponível ao olhar movimentando-se como numa

de Vertigo, criação de Saul Bass, nos traz a imagem do rosto feminino em

1'

close-up, tratado como máscara enigmática, imóvel. Uma aproximação

, ' ·011 ie que vigia Madeleine. São duas esferas, uma dentro da outra, que

maior e um passeio da câmera examinam essa máscara em seus detalhes

11.10 s tocam. Ela enquadrada pelo ponto de vista dele, ambos enquadra-

até que, isolado, o olho ofereça os sinais de vida.. Os seus movimentos, no

i

·na; num segundo plano, ao longo do mesmo eixo, a câmera observa

lllHpo r nós no lugar da câmera. Madeleine nunca devolve o olhar a Scot-

entanto, não criam uma expressão definida, uma intencionalidade do olhar.

111 •, nin ·uém devolve o olhar à câmera (regra do filme clássico). Mas é

Preparam apenas o cenário para um movimento em espiral, na profundi-

,1 1,, bígua essa passividade, pois é o movimento dela que dirige o olhar

dade. Mergulho na interioridade, cujo fundo inatingível está sempre em

tl1•I •, '

recesso. Aproximação e recuo, atração e fuga - a ambigüidade do movimento da espiral figura a experiência matriz de todo o filme cujo eixo é o

·i

ação de ambos que dirige o nosso olhar, sempre na esteira do

l1 11•11il o de observação de Scottie, com quem partilhamos a ignorância, a 1 111

io.' iclade, a descoberta.

percurso de Scottie, profissional do olhar, detetive, personificação da

/\ 1 ó · a segunda conversa com Els ter, o tema do suicídio engendra

vertigem. Logo na primeira seqüência define-se a questão desse protago-

11 111.1 l'llptu ra nesse esquema de perfeita simetria. Madeleine/Carlota

nista: numa perseguição pelos telhados de São Francisco, a vertigem de

1111.1 .· · ,i-1s águas da baía de San Francisco; Scottie a resgata. Permanece-

Scottie o faz responsável pela morte de um guarda que cai no vazio ao

1111 l' p11 ro o lh ar; ele passa ao plano da intervenção e do diálogo. Com os

tentar ajudá-lo. Sentimento de culpa, aposentadoria compulsória. Estabe-

il, 11 ·, j11111 os, ra nha certa concretude o que, em Scottie, é já sonho român53

tico, tonalidade de experiência ironicamente mimetizada pela textura cio

elos no quarto, ficamos ao lado de Judy, nova baliza, e temos a revelação

filme , projetada nos espaços, no som, configurando um desfile de clichês

imediata, sem delongas, que não espera o final: Judy é Madeleine.

do melodrama. Encarnando a figura híbrida de detetive, apaixonado e

Sozinha no quarto, hesitante, nervosa, precisando decidir se foge ou

terapeuta, Scottie permeia cada encontro de inquirições, procura devas-

assume o risco do reencontro com nova identidade, Judy/Madeleine re-

sar o imaginário de Madeleine/Carlota, decifrar a esfinge, provocar a

capitula a trama urdida por Elster. Para livrar-se de sua mulher, ele con-

catarse reveladora, curar a mulher por quem está apaixonado ..Nada nos

tratou Judy para simular Madeleine. Ou seja, assumir essa identidade

coloca adiante dele na investigação.

para alguém colocado no ponto de vista de Scottie. Elster sabia dos pro-

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Mis-

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

são Católica perto de São Francisco, procurando explorar um sonho dela

de Scottie a testemunha ideal, pois era esperado que nunca chegasse ao

que ele julga revelador, sinal de que a solução do enigma está próxima e,

topo para ver Madeleine ser atirada por ele, Elster, quando Judy, com o

com esta, a salvação, superada a pulsão de morte que a domina. Lá che-

mesmo traje e aparência, chegasse, certamente sozinha, ao alto da torre.

gando, tudo se precipita quando Madeleine abandona suas recapitulações

Pensando ser sujeito ativo na cura de Madeleine/Carlota, Scottie tentou

e insiste em caminhar sozinha em direção à igreja, procurando livrar-se

resgatá-la e apaixonou-se por um simulacro, por uma imagem construída

de Scottie, que não consegue enfim retê-la e percebe, em pânico, a torre

para seu ponto de vista. O dispositivo montado estava todo apoiado nas

alta do sino. A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

posições recíprocas de observador e imagem, dueto que deu corpo à fic-

dirigir à capela e à torre, seguida de Scottie que, como suspeitamos,

ção consagrada a posteriori pela sistemática do tribunal (num estratagema

jamais chegará ao topo da escada, retido pela vertigem - e somos retidos

bem mais complexo, Judy/Madeleine ocupa o lugar da falsa evidência

com ele. Ouve-se o grito. Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o

apresentada à testemunha no meu primeiro exemplo). O diagnóstico do

corpo que cai.

suicídio que absolve Scottie é a consumação do crime perfeito. A posição

O ex-detetive vive a reiteração da culpa, a humilhação pública de um

de Elster - aquele que sabe - corresponde à posição do dispositivo narra-

julgamento em que é absolvido porém psicologicamente massacrado; Els-

dor da história no cinema clássico (ele permanece à sombra e orquestra as

ter despede-se olimpicamente, não sem antes também absolvê-lo. Scottie

imagens). Portanto, no enredo que coloca em cena, Vertigo espelha o pró-

entra em colapso, é internado. Quando retorna às ruas de San Francisco,

prio mecanismo desse cinema que, via de regra, constrói-se segundo a

destila sua fixação no passado, volta aos mesmos lugares, quer encontrar

lógica do crime perfeito: define o meu ponto de vista, dá corpo ao simu-

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhança. Um

lacro, é monitor de meu desejo, tal como o dispositivo Elster-Judy-Made-

dia, depara com Judy (Kim Novak, novamente), diferente nas maneiras,

leine-Carlota em relação a Scottie.

no cabelo; distante em termos de classe. Em tudo o mais a réplica de

O filme de Hitchcock vai adian~e, não se reduz à exposição desse

Madeleine. Ele a segue, bate à porta do seu quarto de hotel, explica seus

mecanismo. Este se encontra inserido num tecido de relações que envol-

motivos, convida-a para jantar. Ela d confia, dá provas de sua identidade

vem não só a identidade e o desejo de Scottie, mas também a identidade

(sou Judy, não o conheço), tenta ar jeição, ma · finalmente aceita. Satisfei-

e o desejo de Judy/Madeleine (a simulação não foi apenas para ele, a

to, ele diz a hora do encontro e retira-se. Pela primeira vez em todo o filme

paixão não foi apenas dele). Uma leitura mais completa de Vertigo exi-

não o acompanhamos, nos separamos de seu ponto de vista. De repente,

giria a consideração detalhada do movimento derradeiro da trama. Re-

não é mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar. Reti-

velado, para nós, o estratagema do crime, as questões permanecem na

í4

55

esfera das duas personagens, agora entregues à resolução de todo o dispositivo de

identidade/simulação/vertigem. 6

Tomei Vertigo como um laboratório no qual, sob controle, exibe-se

Permanecendo, porém, nas

uma engenharia da simulação: aquela acionada pelo olhar do filme clássi-

considerações sobre o aparato do olhar, que é meu objetivo central aqui,

co, a qual alia a força de sedução da cena à invisibilidade do aparato. Para

afasto-me do filme, não sem antes fazer breve referência ao que, na parte

íin alizar, gostaria de ir além dessa referência mais imediata ao aparato do

final de Vertigo, devolve-nos à questão da leitura da imagem no cinema.

cinema clássico, pois a análise aqui feita permite uma inversão nos meca-

No reencontro das personagens, Scottie, impelido por sua fixação

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metáfo-

na imagem do passado, insiste em fazer de Judy, nos mínimos detalhes, a

ra da sociedade como "universo carcerário" e se desdobram em imagens

réplica fiel de Madeleine. Ao observar sua metamorfose, redefinimos

do "aprisionamento pelo olhar". Diante dos aparatos de comunicação que

nossa relação com a cena antiga: a imagem de Kim Novak era Judy, que

nos cercam, é comum a caracterização de uma competência de controle,

era Madeleine, às vezes Carlota; Judy possuída por Madeleine (a posses-

de ordenamento, cristalizada no olhar vigilante, onipresente, que se volta

são, transferência, se refaz agora); Madeleine (Judy) falando de sentimen-

o tempo todo para nós. Considerando as tecnologias do olhar, podemos,

tos que eram de Judy (Madeleine), numa duplicação de palavras, expres-

ntretanto, destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

sões, gestos que não permite definir os contornos que separam, uma da

a ação de um olhar que, em vez de estar voltado para mim, olha por mim,

outra, essas quatro presenças. Refiro-me a Kim Novak porque todo o

oferece-me pontos de vista, coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

estratagema do filme conta com os falsetes, fragilidades de seu desempe-

a ironia de Vertigo: Scottie é o olhar vigilante, profissional, mas o proces-

nho, para o bom efeito. A construção das identidades em abismo embara-

so de controle atua em sentido inverso - é o dispositivo que define seu

lha a enunciação dos gestos: como dizer quem "expressa" o quê quando a

ponto de vista). Cercado de imagens, vejo-me inscrito pela media numa

ação dramática requer um fingir fingimento num processo em cascata?

segunda natureza, num processo que implica um cotejo de pontos de vista

Vertigo ilustra, nesse aspecto, o quanto a leitura do rosto está atrelada à

muito peculiar, que me afasta, por exemplo, do enfrentamento próprio da

moldura que possuo e não à exclusiva expressividade da imagem. Tudo

relação pessoal, intersubjetiva. Esta se constitui pela devolução do olhar

nas palavr~s e gestos de Judy /Madeleine ganha um sentido novo a partir

nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado: o olho que vejo

de cada deslocamento do ponto de vista. O que não significa apenas uma

é olho porque me vê, não porque o vejo. Diante do aparato construtor de

questão de espaço e informação, mas inclui, de modo decisivo, uma dis-

imagens, minha interação é de outra ordem: envolve um olho que não

posição particular do observador, que completa a ação invisível do apara-

vejo e não me vê, que é olho porque substitui o meu, porque me conduz

. to (no caso, para a consumação dos efeitos desejados, era preciso que o espectador da cena fosse Scottie, com seu perfil e seu passado).

le bom grado ao seu lugar para eu enxergar mais ... ou talvez menos. Dado inalienável de minha experiência, o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista. Enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos desse olhar. Observar com ele o mundo mas

6. Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade/ simulação/ vertigem e, em particular, sua resolução trágica ao final do filme, ver Robin Wood, Hitchcock's Films (Nova York: Castle Books, 1969), no qual a moldura é a psicanálise; e Nelson Brissac Peixoto, Cenário em ruínas (São Paulo: Brasiliense,

·olocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação om o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, íora do campo, torna visível.

1987), cujo texto pressupõe uma reflexão sobre o mundo dos efeitos-de-superfície,_ o vazio, a dissolução da origem, o simulacro.

56

57

lugar do crime a noção clássica de representação e a teoria do espetáculo, de Grijfith a Hitchcock

' ertas afinidades entre o cinema e o teatro permitem trabalhar ,uma noção ·l ássica da representação válida nos dois domínios, e tomá-la como base para comparar duas teorias a respeito do papel social do espetáculo formuladas em dois momentos do cinema clássico americano: o da formação, cuja figura central é D. W. Griffith, e o do apogeu, cuja figura-chave é Alfred Hitchcock. No que diz respeito às relações entre o cinema e o teatro, meu objetivo é destacar continuidades, não rupturas. Muito já se falou sobre as diferenças entre as duas formas de espetáculo, visando marcar especificidades. Estas existem, mas devo aqui explorar os pontos de intersecção, pois o cinema narrativo quase sempre traz o teatro dentro de si, atualiza gêneros dramáticos, envolve mise-en-scene. A própria experiência de grandes diretores consagra o que há de comum entre palco e tela. De Griffith e Eisenstein a Fassbinder e Bergman, passando por Welles e Visconti, é enorme o elenco de_ artistas que atuaram nos dois campos, de modo a atestar em seu cinema a incidência de seu teatro e vice-versa . A história nos tem oferecido inúmeros exemplos de um intercâmbio que não deixou de ser motivo de incômodo para uma parcela da crítica cinematográfica. Em particular, no início do século xx, por força de um interesse em consagrar o cinema como esfera autônoma no sistema das artes, a tônica dos cinéfilos foi a defesa das virtudes da nova arte muda contra os vícios da cena teatral entendida, de maneira redutora, como mundo da palavra. Numa combinação de argumentos técnicos e morais, em particular o elogio à verdade dos gestos e às revelações do rosto em close-up no cinema, montou-se um

59

esquema teleológico que perdurou por décadas. Segundo tal esquema, a

cm tais pontos extremos de sua trajetória, obras reflexivas que, trabalhan-

nova arte viria coroar um movimento evolutivo em direção a formas mais

do a representação dentro da representação, lidaram com as mesmas con-

"completas" e mais "sinceras" de representação, mostrando-se mais apare-

1radições

\

que mobilizaram filósofos e moralistas em torno do estatuto da

lhada para os desafios da vida moderna. O que está implícito nesse ra-

ena teatral, e seus derivados modernos, na sociedade. É célebre a polêmi-

ciocínio é a idéia do cinema e do teatro como blocos homogêneos de

a que envolveu Rousseau e os enciclopedistas em torno do papel benéfico.

expressão, nitidamente separados pela técnica, n;fo se atentando para o fato

o u corruptor do teatro; são também conhecidos os reiterados debates, pre-

decisivo de que são os estilos, as formas de conceber o espetáculo, seja no

sentes ainda hoje, sobre o efeito das imitações, sobre a representação da

palco, seja nas telas, que definem a relação do trabalho com o teor da expe-

violência e do sexo, no palco, na tela, no vídeo. Nesse sentido, coloco em

riência social e com o seu tempo. Dentro de um certo recorte, é a inscrição

pauta um problema afeto à representação em sentido amplo, esse que per-

de uma peça ou de um filme em determinado movimento estético que cons-

in ite

titui o fator mais relevante da análise, para além das diferenças de suporte

naturalista para o cinema clássico, baliza de minhas considerações.

falar em continuidade quando passamos de um certo tipo de teatro

técnico. Um cinema expressionista exibe critérios de composição que o teatro e a pintura expressionistas ensinam e afasta-se dos princípios natu-

/\ l1EPRESENTAÇÃO

ralistas de representação tanto quanto as obras que o inspiram; o teatro e o cinema enquanto espetáculos populares não se discutem nos mesmos ter-

No artigo "Diderot, Brecht, Eisenstein", 1 Roland Barthes nos lembra da

mos que o teatro e o cinema dirigidos a um público erudito e burguês mais

r ·lação existente entre teatro e geometria, pois o teatro é uma prática que

restrito. Em síntese, não posso tomar Cinema e Teatro no singular para

~11põe um "lugar calculado" do qual se observam as coisas. A condição

encaminhar uma discussão conseqüente de suas relações. Devo fazer de-

pa ra que haja "representação" é o olhar de um sujeito (autor, leitor, es-

marcações, atento ao gênero (de teatro e de cinema) e atento à história.

P ctador ou voyeur) que mira numa certa direção e corta uma superfície

Como observei, vou ocupar-me aqui do cinema clássico, esse que se

d · modo a formar com esta um cone do qual o seu olho ( ou seu "espírito",

forma no período 1908- 19, estabiliza-se nos anos 20 e mantém-se como o

·o rno diz Barthes) é o vértice. Ou seja, temos o lugar da ação, o recorte,

estilo de narração privilegiado pela indústria cinematográfica até o final

o suj eito que observa e a admissão de que algo separa observador e

dos anos 50. Tal cinema atualiza uma forma particular de espetáculo com

ob~ervado, condição para a delimitação dos contornos da cena. A repre-

certas regras de representação, trazendo uma concepção peculiar de sua

ti

função na sociedade. É a articulação entre as normas do espetáculo e a fun-

.' iÇío ao espaço de quem a observa. Essa é uma noção clássica que vale

·ntação sempre se dá dentro de limites, tem seu espaço próprio, em opo-

ção social a ele atribuída que me interessa destacar, e meu percurso envolve

p:1ra a prática teatral dentro de certo período e estende-se ao mundo da

a comparação entre as formas pelas quais, em dois momentos da tradição

1

·la, pelo menos no caso do cinema que me interessa aqui.

clássica, Griffith e Hitchcock afirmaram sua teoria do espetáculo por meio

To'm ando o sentido da "representação" tal como o sugere Barthes, a

de seus filmes. Veremos como, tanto em 1909 como em 1954, uma preocu-

o po ição cena-espectador oferece o eixo que permite ressaltar uma con-

pação com a ética das imagens se expressa no próprio movimento da re-

1i nu i

lade cuja caracterização envolve um conjunto de elementos que

presentação, quando o 'cineasta, ao montar um dispositivo que inscreve a cena dentro da cena, atribui ao espetáculo (teatro e cinema, igualmente) uma determinada função que o legitima. Ou seja, o cinema clássico traz,. 60

,. ,: ,s' artigo de Roland Barthes está no livro

O óbvio e o obtuso, trad. Lea Novaes

i,1 f, Janeiro: Nova Fronteira, [1982] 1990).

61

atestam muito bem a inscrição do cinema numa tradição bem definida de

Uma ocasião significativa em que essas perguntas foram feitas de

espetáculo, pelo menos como este é entendido a partir do barroco e, de

modo a solicitar um movimento em direção ao ilusionismo foi o século

forma mais específica, desde os postulados do drama sério burguês que

xvm, quando na França uma prática teatral que não explorava muito bem

Diderot elaborou no século

Não se trata de recapitular, passo a

essa via aberta pelo espaço do "palco italiano" foi criticada por Diderot.

passo, um percurso de séculos, mas apenas evocar certos momentos da

Espectador insatisfeito, ele recusa o teatro que fazia da apresentação da

história do espetáculo que, sem dúvida, são retomados pelo cinema nar-

tragédia francesa clássica um desfile de atores estáticos empenhados em

XVIII.

rativo no momento em que esse se instaura no início do século xx.

declamações a seu ver enfadonhas, porque apoiadas exclusivamente no

Por volta de 1530 se configura na Itália uma ordem espacial do

efeito da palavra. O filósofo da ilustração rejeita um teatro entendido como

esp-etáculo definida pelo que depois ficou consagrado como "palco ita-

recitação de poesia, por mais nobre que esta seja, e solicita a elaboração de

liano": platéia toda de um lado, ação teatral do outro, ambos encarando-

um jogo cênico que, dando ênfase à expressão dos sentimentos trazida pelo

se em oposição frontal, separados por uma fronteira nítida na qual

gesto e pela fisionomia, crie a ilusão da realidade das emoções sugeridas

"fosso" e cortina materializam a diferença de estatuto dos espaços, o da

pelos atores, faça palpável aqui e agora o conjunto de situações vividas

representação e o da realidade. Tal fronteira emoldura o espetáculo, fun-

1 elas

personagens. Diderot quer ação no palco, reprodução eficaz da vida

ciona como uma janela que se abre para o mundo imaginário da cena que

·m todas as dimensões, especialmente aquelas que se dão para o olhar. O

se desenrola suspensa numa plataforma, à disposição do olhar do espec-

1catro é um tableau em movimento e a ação que acompanhamos no palco

tador que, embora cheio de empatia, permanece ciente do "hiato" que os

leve envolver-nos pela sua capacidade de tornar presentes, ao alcance dos

separa. Uma concepção da pintura que se consolida a partir da Renasci-

se ntidos, os lances do mundo imaginário da peça. A teoria e a prática do

mento, notadamente no que diz respeito ao efeito-janela e à questão do

que ele denominou drama sério burguês, distinto da tragédia, implicam,

profundidade, bem como alguns postulados do ilusionismo barroco dei-

·ntre outras mudanças, a apresentação dos sentimentos tais como se fossem

xam claramente sua marca nesse arranjo espacial do espetáculo teatral.2

vividos naturalmente, um ir além da apresentação convencional, indireta,

Esse arranjo reforça a idéia de que há um microcosmo a se observar

el as paixões, método que vê como próprio do sistema de representações ao

através da moldura separadora, o que gera uma aproximação mais decisi-

gosto do aristocrata do Antigo Regime. Tal como em outras dimensões da

va entre a posição do espectador de teatro e a do observador de um

·xperiência, a cultura burguesa reivindica aqui a natureza contra a con-

quadro (no cinema, em movimento). Uma integração extraordinária de

v nção, não teme o sentimentalismo e chega ao lacrimoso em sua concep-

.,, arquitetura e cenografia dá ao espaço cênico tal estatuto e enseja um tipo

6, e idealiza sua postura no mundo, fazendo do baixo QI uma vantagem

certeza do filho. Simétrica inversão, tal encontro especial não vem aqui

,•li ·:1. O sentimentalismo cerimonioso das seqüências finais quer, com cer-

para manchar a pureza da donzela, mas se coloca como o gesto purifica-

1,•za, dirimir qualquer dúvida em torno da adesão a Forrest. Ressalta sua

dor, ato abençoado da moça poluída pelo mundo, criação de vida que con-

dignidade e a de quem lhe delega o mandato paterno, que o confirma como

trasta com as formas de Jeanny cómerciar com a morte. Trata-se da con-

1•111 singular de uma corrente subterrânea de continuidade dos valores da

cepção de Forrest filho que Forrest pai, como Joseph, só vai descobrir

l,1111 íli a como substrato nacional. Tudo se fecha numa chave elegíaca que

quando a heroína vê a morte já bem perto. No meio tempo, entre o ato

1il .1sta as gracinhas de um "olhar de cima" dirigido ao herói que foi sem

sexual e o reencontro, Jeanny usufruiu da modernização e, sem enfrentar

tl (1vicl a o núcleo, porém raramente o alvo maior, da ironia com que o filme

120

0

121

tratou o poder político e a rebeldia, reservando ao provincjano recluso, com

il ,• 11111 sa l era mais, de um ver além da figura que está com a palavra. Mas

ares de mônacla, a condição de reserva moral da nação.

11 ,111 (.•

Ao longo cio filme há oscilações de tom, mas o tratamento das cena

·1'q uem exclusivamente narra; o relato não se faz a rigor a partir do

1•11 po n1

de vista, como poderia ocorrer num romance narrado em pri-

tende a apequenar os envolvidos, exceto Forrest e o núcleo cios que lhe são

11 li' i r.i

p ·ssoa, situação em que teríamos a voz do próprio herói como única

íntimos e solidários. A incompreensão que ele exibe das situações vividas,

1, 11 11 · s11 g stiva de qualquer efeito. No filme, a banda de imagem desenvol-

a forma mecânica com que obedece a ordens e assume tarefas, a estupidez

1•

com que responde a perguntas, suas citações da filosofia materna, tudo isso

li ,, 1p :la a voz da personagem e produz os efeitos que resultam cio con-

não afeta seu prestígio. No outro pólo estão as agitações de uma história

l1111110 ntre a palavra e a cena, esta dizendo sempre mais e expondo os

política na qual a glória é efêmera, presidentes são reiteradamente baleados

11111 iIcs da intelecção de Forrest. 1 Com esse método, a miopia do narra-

e projetos de mudança desenham-se como modas passageiras ou insensatez

i!, 1, J.'o rrest escancara-se e, ao mesmo tempo, compõe um álibi eficiente

de radicais, não encontrando sujeitos dignos da tarefa . Muita gente proj eta

p,11 .1 o se ntimentalismo que, afinal , não é só seu, trazendo o espectador

seus próprios delírios na palavra, no silêncio ou na açào de Forrest.

1•

·om relativa independência - há como que uma outra mediação que

°

l',11 ,1 rna i perto cio seu cérebro acanhado que termina por receber adesões

Contra si mesmas, as personagens históricas, os movimentos sociais

1'''111 ·si-il o franco e direto. Esse duplo canal de enunciados é um traço

e as lutas políticas incorporam-se ao trajeto enquanto estereótipos, frases

11111dr rn o do filme que, tal como as citações, engendra uma forma mais

chapadas, clichês de comportamento. Em contraponto, Forrest, protegido

111 1,il de compor a fábula que repõe os termos da estética providencial

pela Providência, se sai bem, sistematicamente. Guerra, esportes, mundo

1111ri~111 a. Está lá a voz over do protagonista, a lembrar os avanços da nar-

da mídia e negócios são espaços de uma ligeireza cômica em que a esfera

1,11 1v:1 moderna na articulação de palavra-e-imagem, construção de cote-

pública nivela-se por baixo. Parentesco, afetos e amizades são dados de um

i"' irt)ll icos para deleite da platéia. Mas não estão lá as implicações mais

drama sentimental que reafirma o valor da personagem e dos seus eleitos.

l111 1d.is do método que, a partir do film e noir e especialmente de Welles,

No plano prático da vida, a vitória de Forrest é o ápice de um inverossímil

111,11' ·ou um cinema que assumiu para valer os desafios do contexto moder-

desejado pela fábula. O filme quer contrapor-se à tônica dominante do

111 , ,, .1 in stabilidade da experiência urbana, sem as âncoras aqui mobiliza-

cinismo e das constatações pirotécnicas do poder da violência, quer ironi-

il ,1•,, !•:feitos complicadores e toques de ironia tornam Forrest Gump mais

zar os super-heróis da g unfighter society, condecorando um corredor que

111 11•rtssante que os melodramas canônicos, mas não impedem que nele se

levou um tiro na bunda; mas sabe serem ineficazes suas inversões, a menos

111 111'i µ; ure, a sério, a sacralização de um núcleo estável de domesticidade e

que mobilize princípios construtivos modernos, crie uma sensação de inte-

1, ,d · ao sentimentalismo (não propriamente aos sentimentos).

ligência enquanto sugere a força maior dessa combin ação de bons senti-

) castelo da pureza assume aqui feição radical; o herói atravessa o

mentos e estupidez. Decisão crucial, evita reafirmar seus valores por meio

1111 111do sem mácula, assume múltiplos papéis sem se contaminar, pois sua

da autoridade de um narrador externo que intervém e avança sentidos

1s valores dignos de louvor são encarnados em gente transparente e de

lha na zona sul do Rio de Janeiro como caixa de um clube noturno. Seu

h1ia índole, e os valores a serem rejeitados encarnam-se em gente de natu-

ex-marido é um músico medíocre, mas "um bom sujeito". Apesar de con-

1·t·za perversa, o que se reconhece pela cisão entre aparência e essência,

fuso e de pouca valia na educação de Marcos, ele é um amigo da casa,

1

mantendo em bons termos sua relação com a ex-mulher e com o filho. D

\º, trazem valores de produção e um estilo de fatura bem a gosto do que

opera apenas na,zona norte; tem contatos internacionais, casas espalha-

1 •

das pela cidade e assume ares sofisticados. A criação do estilo "filme policial de padrão internacional" marca a escolha dos ambientes e dos

11,11uralismo que marcou a segunda onda. Ao contrário da safra 19 s0 , ,•sses dois filmes empenham-se mais no cultivo do bom gosto na esfera do

tipos, dissolvendo uma premissa da peça, concentrada em um mundc >

,l,·.,ign, com roteiros mais elaborados e melhores desempenhos dos atores,

mais acanhado. Na composição do mito do Boca de Ouro, Avanci11i

,·m o açodamento de então n a lida com o erotismo. Todos os textos de

.i

via mais comercial do "cinema da retomada", agora no entanto sem 0

explicita na tela seus dois pontos extremos: nascimento e morte. Sfío

p.trl ida

cenas-chave na construção da ironia barroca dirigida à personagem, poi:1

11

são curtos, fonte de exercícios em torno de uma fórmula, e vale aí

contrapõem situações grotescas ao sonho de grandeza e à ambição eles

prazer da composição visual, o contraste entre a cor esmaecida e a cor ,.iturada, o vermelho-sangue no clímax da ação dramática. Há um desfi-

medida. Logo no início do filme, o destino de morte no "lixão", com

l11t t rno das personagens que estão a recordar ou expor seu mundo inte-

lica" de Patrício contra Herculano, que, ao contrário da armação d('

1i, 11· em outra forma de atualização visível (em oposição à simples hipoti-

Amado Ribeiro contra Arandir, não se insere no campo profissional do

posc). Define-se aí, na figuração do processo psicológico, talvez o palco

interesse e do comércio da notícia, é pura figura do ressentimento. O

qtll'

111,tis decisivo do drama, mesmo no caso de algumas tragédias cariocas, e

não exclui, no caso do jornalista e de sua empreitada lucrativa, a exibiç~o

11.io só em Vestido de noiva ou Valsa n. 6. O momento zero em que se dá o

de um estilo cafajeste e de um teatrinho sádico diante das mulheres q11 ('

11•1rno ao passado define um ajuste de contas com feridas que o aconte-

projetam o perfil dele na esfera do rancor, tornando-o a versão extrem~1

' 1111ento novo faz vir à tona (ou ao palco). Voltando a Vestido de noiva,

da de uma ambígua (reveladora) homofobia que passa a cercar Arandir pria do cinema. É sintomático que, dentro ele uma moldura geral de 21

Jabor opta por diminuir o papel de Patrício nà história, visto que sua atenção st•

concentra na oposição direta entre Herculano e Serginho, principalmente no fim , t i que está de acordo com sua ênfase no declínio do pai; o lado bíblico do complô du irmão contra o irmão e a função de Patrício como condutor da traina atenuam-se. Na l

peça, ele é a figura do ressentimento bem-sucedida na vingança, um anti-Peixoto.

220

\ .il o rização do efeito impactante da imagem ( cena visível), tal teatro 111,lt)ifeste sua " cinetropia" nas instâncias em que se trata - para o protag1111ista que enseja tal recuo no tempo - de uma reapresentação, de uma 1111.,gem mediada, embora sua fluência na sucessão aparente autonomia

221

(e nos convença disso enquanto a seguimos). É nessa autonomia aparen-

Parte III

te da cena - talvez metáfora para um senso interno de potência individual da personagem, enquanto sua ação, em verdade, faz mover um mecan ismo implacável - que se apóia a intensidade do efeito dramático. O caminho das tragédias cariocas não é o de explorar a dimensão épica desse procedimento (chamar a atenção para o narrador), pois seu diálogo mais peculiar, no aspecto da armação das peripécias, é com os dispositivos do melodrama, apanágio do ressentimento e de sua teatralização em cenários não raro sadomasoquistas. Tais dispositivos, no entanto, são deslocados e submetidos a um outro ponto de vista, não tanto por moldura ou comentário externo à engrenagem, mas pelo que, dentro dessa, se expressa no estilo das falas e dos gestos. O teor de melodrama contido nos excessos e no lado kitsch das personagens se compensa, então, pelo descompasso entre o teor da cena - que segue a tônica de trazer tudo à superfície, própria do gênero - e a ironia implicada em sua forma, velocidade, enunciação verbal. A personagem reivindica crédito, expõe sua verdade, mas a peça não endossa, sem mais, sua peroração. E os filmes foram tanto melhores quanto melhor trabalharam e, às vezes, radicalizaram esse procedimento; no caso, valendo-se dos recursos especiais do olhar que o cinema tem ao compor a cena.

222

li ~I

/\

O CINEMA NOVO LE NELSON RODRIGUES

K

Boca de Ouro o mito, a mídia, a cena doméstica e a cidade

O teatro e o cinema modernos no Brasil são experiências que só se adensaram nos anos 60. São duas formas de expressão que estiveram ausentes das manifestações mais incisivas do Modernismo brasileiro nos anos 20 e 30 (as peças de Oswald de Andrade só foram encenadas muito depois). No cinema, afora o exemplo de Limite [1931], de Mário Peixoto, foi preciso esperar o Çinema Novo para encontrar os influxos de uma estética moderna. Quanto ao espetáculo teatral, o momento hoje mais celebrado como inaugural de sua modernidade foi o ano de 1943, quando o grupo carioca Os Comediantes encenou a peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. No entanto, um processo mais consolidado de encenações e textos brasileiros modernos, com diálogo entre autores e encenadores, e polêmicas, só ocorreu de fato quando nos aproximamos de t960. Nos anos 50, a consolidação do gênero "grande teatro", atestado pe]a presença do

TBc,

entre outras companhias,

criou condições para laboratórios dramáticos dos quais emergiram novas propostas de atualização da cena brasileira, como a dos jovens do Arena e do Oficina, numa transformação do teatro que poderia ser vista, grosso

modo, como paralela ao processo que preparou o Cinema Novo. Mas seria uma ilusão supor que tenha havido um diálogo forte e continuado entre esses dois terrenos, o qual foi mais tímido do que seria de esperar. 1 Há

1.

A peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam hlack-tie, encenada pelo Tea-

tro de Arena em 1958, é considerada um marco do teatro brasileiro. Essa ·peça, em versão atualizada pelo próprio Guamieri, chegaria ao cinema somente em t980, em filme dirigido por Leon Hirszman.

·. >

exemplos, como O grande momento [1958], de Roberto Santos, comédia rea-

iria aclimatar o legad0, de Brecht ao contexto do cinema brasileiro que

lista que traz a incorporação dos atores e das preocupações do Teatro de

trabalhou em combinação com outros influxos, como nos filmes de Glau-

Arena, a partir dos pressupostos comuns de uma cultura nacional-popular

ber Rocha, Joaquim Pedro e Leon Hfrszman. Politicamente conservador

de esquerda. A partir de 1961, atores, cineastas, escritores e encenadores

Nelson Rodrigues, já ent~o o nome mais consagrado da dramaturgia bra-'

uniram-se nos chamados Centros Populares de Cultura (CPC), ligados à mi-

sileira, viu seu teatro chegar ao cinema naquele mesmo ano, com Boca de

litância política universitária, dando frutos como o filme Cinco veres fàvcLa

Ouro, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. O cineasta de esquerda, iden-

[1962], de que participaram jovens cinemanovistas.

tificado com o neo-realismo, filma um drama no qual há uma passagem em

No entanto, observada a conjuntura de início dos anos 60, verifica-se um jogo de contrapesos surpreendente: de um lado, há a presença comum

11

0

que clara ironia é endereçada ao movimento italiano, e faz das tensões entre seu ponto de vista e o do dramaturgo um fator de enriquecimento.

de movimentos renovadores no cinema e no teatro; de outro, embora a

Essa inversão de expectativas quanto à direção em que se deu o diá-

atmosfera ideológico-política aproximasse esses campos, a dramaturgia

logo entre cinema e teatro repete-se em r964-65. Anselmo Duarte adapta

brasileira, em termos estéticos, pouco influiu no Cinema Novo, não só

Vereda da salvação, peça de Jorge Andrade que poderia ter sido objeto de

porque ele se afastou da experiência do

por força de sua opção pelo

uma criação de G lauber Rocha, uma vez que focaliza o messianismo

cinema de autor, mas também por escolhas dos cineastas ditadas por cir-

popular e a questão das comunidades pobres do campo. Por seu lado, o

cunstâncias e não atreladas a um conteúdo programático de pedagogi.1

Cinema Novo filma, novamente, Nelson Rodrigues. Leon Hirszman rea-

CPC

política. Claro que uma nova cultura teatral, feita de um diálogo mais efe-

1

liza A falecida, outra produção de imagens fortes originadas das mesmas

tivo com a cena moderna, de Brecht a Artaud,-se fez presente no cinema,

1

mas autores como Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho não chegaram

tensões ideológicas entre cineasta e escritor, agora vividas de uma forma ainda mais incisiva. 2

então às telas. Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, foi filmado em 1963,

No longo prazo, a aproximação entre cinema e teatro reservaria

mas por um diretor de teatro, Flávio Rangel, que não pertencia aos gru-

11ma crescente hegemonia a Nelson Rodrigues, adaptado por cineastas de

pos que agitavam o mundo do cinema. Orfeu da Conceição, peça de Vini-

todas as tendências, enquanto Jorge Andrade e Dias Gomes, por exem-

cius de Moraes, tornou-se um filme francês dirigido-por Marcel Camus

plo, não voltariam ao cinema. 3 Dentro desse quadro, vale a pena deter-se

em 1958, visto equivocadamente no mundo inteiro como se fosse expres-

na observação de Boca de Ouro, primeiro afo das relações entre o Cinema

são genuína de um ethos nacional.

Novo e o dramaturgo, filme cujo valor pode ser mais bem reconhecido

Dentro desses descompassos, 1962 trouxe um movimento cruzado

hoje, quando temos uma história das adaptações de Nelson Rodrigues e

dos mais significativos. Dias Gomes, um dramaturgo de esquerda, chega

'>:tbemos o parco resultado que tiveram, na maioria dos casos. Ao mesmo

ao cinema pelas mãos de Anselmo Duarte, cineasta ligado à tradição da

lt·mpo, as inúmeras encenações de peças do autor incluem um espetáculo

Vera Cruz e pouco afeito às preocupações políticas dos jovens. A experiência, nos termos desejados pelo diretor de cinema, tem enorme êxito, e o filme O pagador de promessas ganha a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Na época, foi identificado pelos europeus como exemplo do Cinem;1 Novo embora fosse mais afinado ao cinema clássico e distante do ideário )

do cinema moderno, tal como expresso na "estética da fome", proposta gue 226

' . Para uma análise em detalhe, ver cap. 9, infra. 1· Nos anos 70, ambos seriam mobilizados pela TV, e Dias Gomes, em particular,

t«•l'i,1 papel importante no elenco de dramaturgos que aclimataram o projeto do tea1"º nacional-popular para os termos da telenovela, na qual conseguiram, com p, t•c;o que se sabe, uma relação mais orgânica com o público.

0

como o Boca de Ouro do Teatro Oficina, de 1999, em que se exacerba a

afeitos ao gênero policial clássico, e a força do diálogo reque r uma decu-

dimensão mítica da peça, numa encenação que se emoldura como uma

pagem mais precisa do que a encontrada em seus filmes anteriores. Boca

liturgia, de modo a estimular um olhar retrospectivo que, por suas dife-

de Ouro marca o encontro entre um herdeiro do neo-realismo, o movi-

renças, repõe ó interesse nas soluções encontradas, segundo o clima da

mento italiano tão decisivo na formação do cinema moderno, com a clra-

época, no filme de N e~son Pereira. Esse produto teve atenção menor na

maturgia de Nelson Rodrigues. A relação é tensa, pois Nelson intensifica

história do Cinema Novo e cabe agora reavaliá-lo. Primeiro, porque ques-

as peripécias, exacerba as situações-limite, afastando-se da representação

tiona o clichê da ausência de filmes urbanos na fase de emergência do

do cotidiano no ritmo da vida comum, daquela consagração do instante

movimento. Segundo, porque tem ressonâncias claras em outras expe-

qualquer solicitada por Cezare Zavattini, o principal roteirista e ideólogo

riências da década. Como já observei em Alegorias do subdesenvolvimento

do neo-realismo. Inversões e golpes de teatro marcam um senso dramáti-

(1993), Boca de Ouro, peça 'e filme, foram uma inspiração decisiva para

co mais afinado àquele que Hollywood tratou de adaptar para si, desde o

Rogério Sganzerla em O bandido da lur_ vermelha [1968], no qual são evi-

transplante bem-sucedido do melodrama no início do século xx. E a essa

dentes as citações de Nelson Rodrigues, ao lado da presença de Oswald

convergência de sensibilidade entre Nelson Rodrigues e a tradição da

de Andrade e de Glauber Rocha. Se observarmos a relação com o kitsch,

indústria vem somar-se sua postura avessa aos pressupostos humanistas

tão central na paródia do tropicalismo em 1967-68, vale lembrar a presença, já na peça, de uma visão irânica - atraída pela vivacidade mas com

do neo-realismo, identificados com uma visão do popular que ele ironiza exatamente em Boca de Ouro.

fundo crítico - dirigida à grossura do bicheiro e à retórica dos jornais,

Num certo momento do segundo ato da peça, Maria Luiza, o este-

que encontrará terreno fértil no cinema e no teatro brasileiros· pós-Terra

reótipo da grã-fina da zona sul, faz uma visita ao endereço suburbano do

em transe [1967] e pós-O rei da vela, encenada em 1967.

Boca de Ouro, procurando estreitar sua relação com o famoso bicheiro; dessa vez, leva duas amigas à cata de donativos para instituições de carida-

O HERÓI GROTESCO E SUA TRAGÉDIA

de e deslumbradas com a excursão a Madureira. Olhando para o protagonista, ela diz às amigas: "O Boca não é meio neo-realista?", e uma delas

A peça Boca de Ouro foi escrita em 1958. E Nelson Pereira dos Santos, em

responde: "O De Sica ia adorar o Boca". As observações trazem uma di-

1962, foi convidado a dirigir o filme, resultado da iniciativa de Jece Vala-

mensão cult e frívola que inscreve a figura

dão, produtor e ator principal, que já trabalhara com o cineasta na década

no referencial estético do então ".cinema

anterior. O ator já tinha boa experiência interpretando personagens trucu-

de arte" e desloca o que é, de fato, expec-

lentas da zona norte - como o malandro violento de Rio 4 0 graus [1955) -

tativa de encontro com uma sensualidade

e apresentava-se como possuidor do rosto e do estilo ideais para repre-

mais "selvagem". Aqui, toda uma expe-

sentar tipos ousados e ambiciosos, como o protagonista de Os cafajest e.,·

riência cultural de contato entre classes

[1962], de Ruy Guerra, e o bicheiro de Nelson Rodrigues. O cineasra

apresenta-se em versão degradada, e o

pôde retomar o universo do subúrbio carioca, agora explorado em out n 1

envolvimento com a questão social de tipo

tom, mantendo o fundo social mas com maior complexidade na trama r

humanista e democrático, característico do

nas motivações psicológicas das personagens, dado o texto teatral cl1·

pós-guerra em diferentes países, amesqui-

apoio. Nelson Pereira combina seu tom realista com dispositivos rn:1i :i

nha-se. O ar sonso de Maria Luiza e a aura

228

\

229

que procura criar com a adesão a práticas esotéricas (que tanto impressio-

Guardadas as diferenças, tanto o filme de gângster quanto a peça

nam o Boca) projetam sobre o neo-realismo um halo de inconseqüência,

inspiram-se em dispositivos muitas vezes trabalhados num tipo de roteiro

reduzindo-o a um item de consumo conspícuo dos ricos, de mesmo teor

trágico acionado pela ambição desmedida do herói. Mas estão ambos

que o turismo sexual na zona norte. Há um olhar entrecruzado em que o

igualmente marcados por um jogo de motivações mais recente, de cunho

imaginário do bicheiro e o da grã-fina convergem, selando a atração mú-

naturalista, em que os traços decisivos da personalidade do protagonista

tua. Como veremos, ela é uma personagem-chave da peça, mas por ora

estão associados aos dados adversos de sua origem social, acrescidos a par-

vale essa cena como cristalização de uma polaridade entre os mundos do

ticularidade humilhante do Boca, nascido num banheiro de gafieira. Há,

dramaturgo e do cineasta, desafio para Nelson Pereira, que não descartou

obviamente, muita coisa que afasta a peça do naturalismo, a começar pela

seu viés realista ao filmar a peça e manteve a fala de Maria Luiza tal e qual ,

forma mais irreverente, diante do convencional, com que Nelson Rodri-

devolvendo de bom humor a provocação.

gues trabalha os excessos da personagem-títu lo. Enquanto Scarface é o

1

Esse lance anedótico remete a minha pequena crônica do quadro

nome público cunhado pelo traço adquirido por um fer imento não deseja-

ideológico de início dos anos 60, quando os valores de um Cinema Novo

do, embora típico ao seu mundo de violência, Boca de Ouro é o nome

emergente criavam arestas com o teatro de Nelson Rodrigues, principal-

assumido a partir de uma escolha deliberada, de um gesto aparentemente

mente quando lido num registro mítico, o que nesse caso se liga à atualiza-

absurdo do protagonista no momento em que chega ao topo, hora de luxo

ção de esquemas que remetem à tradição do filme de gângster. Basta lem-

e capricho. Há aí um simbolismo que retoma o código da tradição religio-

brar Scarface [1933], de Howard Hawks, que acentuou uma dimensão

sa, pelo qual a hierarquia dos seres se exprime na fisionomia (ou a subs-

trágica no percurso de ascensão e queda do chefe de quadrilha urbano, rei-

tância moral se traduz nas aparências), o mesmo que o naturalismo resi-

terando o recurso a passagens sinalizadoras da idéia de destino e vocação,

dualmente incorpora. Nelson Rodrigues faz valer esse código mas vai

e compondo uma trama na qual o homem poderoso se deixa destruir por

além da medida. A nota distintiva do herói é excessiva e já quase paródica,

um ponto fraco localizado na esfera da vida privada, não na natureza dos

e o código, embora presente, traz um toque expressionista que desestabili-

seus negócios. A paixão e o ciúme pela irmã, no caso de Scarface, trazem

za a tônica de transparência do melodrama. Para complicar, Boca de Ouro

ao centro o drama familiar como agente do destino, o que, em outros ter-

define-se na peça quase sempre como figura refletida no espelho dos

mos, também acontecerá com Boca de Ouro, fixado na imagem da figura

outros, uma personagem em segundo grau que, por isso mesmo, diz tanto

materna. Na cena hollywoodiana, o dispositivo familiar insere-se num

sobre seu contexto quanto sobre si mesma, pois tudo se contamina e a

esquema melodramático cujo desenlace faz prevalecer a "justiça poética"

transforma numa projeção, num fantasma, tanto quanto num fato em seu

na qual se pune a figura transgressora da lei. Em Boca de Ouro, o esquema

próprio direito. Sua única ação direta e incontestável diante do leitor da

não se reduz a tal maniqueísmo, mas estará pautado igualmente pelo tom de

peça é a que se passa na cadeira do dentista, quando o cuidar de si e o exer-

parábola moral, não faltando a mesma tônica de intervenção do destino

cício da vaidade desdobram-se no comando inusitado - "o senhor vai

pela sexualidade, terreno do qual deriva o ponto cego do herói, sua "falha

arrancar todos os dentes, porque eu quero uma dentadura de ouro". Ao

trágica". A morte chega pelas mãos da falsa piedosa, cujo toque perverso

ordenar a cirurgia radical, celebra sua potência numa situação que, nor-

logo se sugere pela sua presença em cena, de modo a tornar aceitável a

malmente, é de sentimento de castração, decadência. Ele se antecipa ao

revelação final do seu crime que surpreende e deleita os jornalistas à cata

tempo. Se antes superou os limites de classe, agora quer resolver tudo de

de sensações na cobertura da morte do bicheiro.

vez. A dentadura de ouro é a prótese afirmadora de um sonho infantil,

230

231

incorporação grotesca do brilho que escapa da degeneração orgânica, feti-

página policial e a atenção social a qualquer dos seus movimentos - afin al,

che que seu mau gosto julga distintivo, uma ostentação a marcar no rosto

é uma "personalidade" - acabam por oferecer-lhe um espaço de consagra-

a vitória social sobre o estigma do pobre banguela, imagem típica da misé-

ção no qual mesmo a condenação o promove e representa a vitória da peri-

ria brasileira, e também a estampar na boca a grande aposta na superação

feria no espaço da mídia. Ele é, portanto, o herói que se teme mas que se

de limites, pois o metal nobre tem a ver com as coisas eternas, com a auto-

admira, e do qual se espera favores, figura de uma intimidade que muda o

glorificação que o embriaga. Estará feliz, mais tarde, quando Maria Luiza

sem.ido de sua violência, pois tudo nele é familiar. E a ativação de seu ima-

o comparar a um deus asteca, e múltiplas vezes vai completar a receita do

ginário, isso nos diz a peça, é anterior à intervenção da mídia, pois resulta

mito referindo-se ao caixão de ouro que o aguarda como urna definitiva.

de um jogo de poder concreto na relação pessoa a pessoa. Cabe então seguir

Sua tragédia estará cristalizada, acima de tudo, nessas duas perdas no

texto e filme para analisar a relação entre o protagonista e sua vizinhança,

momento da morte inesperada, que lhe sonega a ocasião da pompa: dentes

não apenas a partir das paixões do jogo do bicho, mas também a partir do

de ouro arrancados, caixão tosco de madeira.4

que sua figura representa no circuito da sexualidade, ponto de tensão entre

1

Condensada nessa arcada emblemática que resume o percurso de

seu estilo de vida e as convenções da família. Junto com a mitologia singu-

ascensão e queda do herói, a parábola moral do Boca de Ouro ganha

lar do Boca de Ouro, há um drama doméstico no centro da cena.

conotações específicas conforme o tratamento que se dá ao motivo da derrota em meio à ambição desmedida. Pode-se privilegiar a articulação

PÓ LOS TEMÁTICOS : MITO, MÍDIA E MORAL DA FAMÍLIA

desse motivo com um conjunto de determinações sociais e históricas, ou compreendê-lo como atualização de um paradigma da "condição huma-

Quanto ao protagonista e sua história, a peça insiste na sua origem humil-

na", universal e a-histórica. Nesse sentido, o que me interessa analisar é a

de, na fixação na figura materna desconhecida, na vontade de poder

perspectiva original definida por Nelson Pereira na articulação entre o

como compensação e na vingança do ressentido contra todos. Radicaliza,

drama individual do protagonista, que, em geral, concentra os comentá-

inclusive, a esterilidade de tal empreitada, voltada para a imagem e a

rios da crítica, e a posição privilegiada de mediador que ele ocupa no con-

pompa da morte, com uma sintomática recusa da procriação, que não

fronto da esfera privada com a esfera pública.

assume nem mesmo numa vida conjugal burguesa que poderia ajudar nos

Figura do manda-chuva autoritário e paternalista, o Boca constrói seu

negócios e na sua assimilação pela sociedade. Quanto a sua relação com

carisma apoiado na oferta de gratificação material (o dinheiro ganho no

homens e mulheres, vale a ênfase no poder inquestionável diante da fra-

jogo, ou o bem conseguido no favor) ou imaginária (o teatro composto por

queza dos que o confrontam, dado essencial na sua relação com os mari-

sua figura, e em torno dela, gratifica um contingente de "pequenos ho-

dos medíocres que o drama trará ao primeiro plano.

mens" a destilar suas vidas amargas num cotidiano sem encanto). Seu nome

A peça organiza-se em torno da visita do repórter à casa de dona

significa dinheiro e sensação, paixões e interesses de alto risco. A crônica da

Guiomar, ex-amante do bicheiro. Antes disso, temos apenas a cena de abertura, que nos traz a determinação do Boca de Ouro diante do dentista

4. Hélio Pellegrino, no artigo "Boca de Ouro", in Nelson Rodrigues, Teatro completo

(Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993), pp. 217-19, e depois Carmine Martuscello, em



a irrupção do fato que deslancha a narrativa: a chegada da notícia de sua

O teatro de Nelson Rodrigues: uma leitura psicanalítica (São Paulo: Siciliano, 1993),

111o rte a uma redação de jornal, momento de agitação em que o chefe des-

acentuam a figura do caixão de ouro como volta redimida, idealizada, ao útero mater-

pacha Caveirinha, o repórter, para extrair de dona Guiomar alguma re-

no manchado pela fama. Nelson Pereira dará ênfase à dimensão social do simbolismo.

vt: lação sensacional sobre o bicheiro. Instala-se o paradigma da busca

232

2 33

encarnado no jornalista, tal como em

uma visão da vida social como entrelaçamento de relatos que não apenas a

Cidadão Kane [1941], de Orson \Velles.

comentam mas a instituem, de forma a tornar as identidades um "discu rso

Prevalece a mesma idéia de mergulhar na

dos outros" . E o próprio Boca ironicamente afirma "eu sou o que os jo rn ais

v.ida privada da figura pública, procurar

dizem", assim como, para nós, ele será o que Guigui disser, nas três versões.

na intimidade o segredo capaz de renovar

No entanto, a estrutura da peça nos sugere o quanto, embora haja circula-

o interesse do leitor. O repórter, no filme

ção pública, a matriz do mito está na vida privada, no espaço da intimidade

de Welles, vai procurar Susan Alexander,

no qual se criam as carências (vazios) que requerem o manto da fabu lação,

ex-mulher de Kane, e não tem sucesso

no qual se manifesta uma disposição a criar ficções e, se a ocasião se apre-

em sua primeira tentativa de entrevistá-

sentar, fazer-se vedete como Guigui ao receber o jornalista.

la. Aqui, Caveirinha tem mais sorte, pois,

O repórter pede para que ela lhe conte um crime, desses sensacio-

ao contrário de Susan, Guigui ( esse é seu apelido) não está consumida

nais, e ela responde com um episódio que nada tem a ver com as operações

pela solidão e pelo álcool. Resolveu sua questão voltando para o marido

do jogo do bicho, as façanhas do herói ou a briga entre quadrilhas. Põe em

com quem vivera antes elo caso com o bicheiro, retorno feito possível

cena um casalzinho sem importância, Celeste e Leleco, que se envolve

mais pelas fraquezas dele elo que por qualquer gesto nobre. Assim, a

com o Boca num lance de triangulação amorosa sem maiores_paixões, com

questão do Boca de Ouro não está fechada na vida do casal e, como vere-

toques de crônica de bairro, às vezes até de comédia de costume, mas vio-

mos, Guigui tem mais motivos para falar do falecido do que o lance de

lento e melodramático no desenlace. Esse é o teor do jlashback que com-

vaidade diante da atenção pública de repente recebida. Sua fala vai reunir

põe o corpo maior da peça, embora haja outras vozes, como a da imprensa

os dois registros - o público e o privado - no desdobramento em três

retórica e superlativa, e tudo se emoldure com as duas cenas emblemáticas

atos, cada qual trazendo uma versão diferente para um único episódio

localizadas nas pontas, exteriores aos relatos de Guigui: a já comentada

que ela decide narrar. O jornalista, como arremedo de terapeuta, anteci-

abertura, quando se produz a dentadura de ouro, única apresentação dire-

pa aqui os esquemas dos manipuladores de talk-slwws da televisão de

ta do protagonista; e a cena final do necrotério, efetivo lugar das revela-

hoje, orquestrando os momentos catárticos de Guigui e as confissões do

ções espetaculares, ponto de arremate da ironia do dramaturgo dirigida às

casal. Mas o sentido da experiência não se reduz ao efeito imediato da fala

ambições do bicheiro e às manipulações da imprensa.

de Guigui como espetáculo voltado para a escuta da mídia.

--

Sintético e ágil, econômico na definição de seus espaços, o texto da

Temos, portanto, três pólos temáticos: o mito, o teatro da mídia e a

peça reúne aquele conjunto "mínimo" que localiza os pólos fundamentais

cena familiar, os quais se alimentam reciprocamente, e a matéria de que se

da mitologia: o jornal, a casa de Guigui, a casa de Celeste, a mansão do

faz essa costura é a mesma q1Je oferece o critério formal para a divisão em

Boca e o necrotério. No filme, há uma expansão do terreno das ações pela

três atos: a narrativa, seu prazer, seu fascínio, suas funções na vida social e

inclusão do mundo da rua e dos espaços públicos da cidade que, embora

na particularidade de um percurso de vida. Há o mito, o jornal, as ressonân-

assumida como o lugar do mito, revela no filme novos pontos de fuga,

cias da esfera pública, mas a teia do imaginário começa em cada casa. Daí

saídas laterais, criando, ao final, um campo de visão em que o pano de

porque uma assimetria no tratamento elos dois terrenos, pois, embora s(·

fundo recua para introduzir uma teia mais diversificada de caminhos.

ocupe em chave satírica do comportamento dos jornalistas, a peça concentra-se no drama do casal e na vida privada do Boca. Seu dispositivo acentua

2

34

O ESPAÇO REALISTA NO FILME DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS

criança. Na peça, isso pode ser lido como delírio de Celeste, que procura um selo de intimidade com o protagonista. No filme, a sugestão ele que

A opção realista do cineasta não se dá apenas no aspecto " cor local",

Celeste pode ser a menina-testemunha torna veraz um fato que está no

autenticidade dos ambientes, um certo estilo do olhar dirigido ao espaço

campo da lenda, consolida uma leitura realista da carreira "criminosa" do

e à figura humana. Ela se confirma mais do que tudo na forma como a

bicheiro. Dado que é reforçado na forma como Nelson Pereira constrói a

narração trabalhou os acréscimos frente ao texto, notadamente na abertu-

cena do consultório, incluindo um capanga armado que ameaça o dentista

ra e no desenlace do filme.

quando este recusa-se à tarefa (na peça, o doutor resiste de maneira proto-

A abertura traz, a título de prólogo, a evocação de um passado mais

colar e logo aceita o dinheiro, sem a pressão de capangas, partilhando da

remoto do que o focalizado no drama, procurando dar concretude a uma

risada do Boca de Ouro no fechamento da cena). O cineasta não aceita

possível,biografia do Boca de Ouro. Sua carreira mostra-se em lances pal-

esse toque de demonização (a gargalhada) do profissional, qu e dá um tom

páveis, por meio de uma sucessão de flashes que explicitam o estilo de ação

mais sinistro ao ritual que batiza o herói.

do protagonista quando jovem anônimo, dentro de situações-clichê bem

No filme, há uma opção pelo regime diurno da experiência, o que

demarcadas, estilo que lhe permitiu ascender ao topo da hierarquia da

afasta possíveis sombras exploradas numa chave expressionista, que sem

contravenção: falta de escrúpulo, ousadia, disposição de matar friamente

dúvida o texto comporta em seu registro noturno e em sua constelação de

em função de interesses. Desfilam em imagens as armações de uma carrei-

projeções que embaralham subjetivo e objetivo.

ra padrão de bandido, em verdade próxima do modelo de ascensão do

Vemos o repórter tocar a campainha da casa de Guigui como um

Scarface, tudo pontuado pelos créditos do filme e apoiado numa trilha

detalhe a mais numa manhã rotineira, até mesmo precedido pela visita de

musical associada ao gênero policial. Os congelamentos de imagem desta-

uma outra mulher inventada por Nelson Pereira. Faz-se fofoca, ouve-se o

cam, em primeiro lugar, a estrela do filme - Jece Valadão - , que expõe o

rádio. Na casa de Guigui, o tom de crônica compõe um ambiente típico de

início da carreira do Boca: a experiência da prisão, sua promoção gradual

classe média baixa, com a família em pleno café da manhã, a mulher a pro-

no esquema, a postura de comando no assai.to a uma banca rival e numa

ver, o marido a se arrumar, as crianças a andar de um lado para o outro, os

emboscada noturna, os contatos com o patrão, o flerte com a mulher deste

vizinhos a observar curiosos, a visita a incomodar. E essa atenção à vizi-

e o crime decisivo, nunca mencionado na peça: em plena rua, sem avi so

nhança amplia-se entre a primeira e a segunda versões do relato de Gui-

prévio, mata o chefe a facadas. A apresentação direta da ação delineia uni -

gui. Na primeira, ela conta o episódio escolhido sem saber que o Boca está

percurso que perde qualquer ambigüidade e define de pronto um caráter.

morto ( Caveirinha recebeu instruções expressas na redação para não reve-

O herói ganha contornos mais definidos, embora as lendas que o cercam

1ar

continuem a ter seu lugar. A cena do dentista só virá depois do prólogo,

momento em que entra em crise e arrepende-se de ter falado mal do

quando esse já nos tiver dito muitas coisas que terão seu efeito em nossa

bicheiro. Depois de uma cena de choro que vira comédia familiar, Guigui

leitura das ações do herói adiante no filme. Por exemplo, não só há a cena

insiste em telefonar para a redação do jornal (ação inventada, que não

do assassinato do chefe na calada da noite, como também a câmera most r:i

1·011sta da peça) para retificar o relato e produzir a segunda versão, agora

o ato sendo presenciado por uma garota que observa de uma janela, aLraÍ·

11,10

da pelo ruído. Tal detalhe muda o sentido da fala de Celeste mais adiante,

dos moradores do bairro superinteressados no conteúdo de sua fala. Esse

quando disser ao Boca de Ouro que o viu matando alguém quando ela em

1111cresse popular enseja uma imagem excepcional quando Guigui termina

a notícia), e só é informada da morte do ex-amante no fim do relato,

mais em casa mas numa mercearia, empunhando o telefone, cercada

2 37

o segundo flashback e voltamos ao espaço da mercea-

uma máscara mais grotesca, de uma dose mais venenosa de malícia, e os

ria: em primeiro plano, vemos um pacote de açúcar

lances mais baixos reservam-se a Celeste e Leleco, os protagonistas da his-

furado, que alguém segura tão absorto no relato que

tória narrada ao jornalista, pois estão mais ancorados na esfera do irnagi-

não percebe seu conteúdo escoando-se, como se fosse

nário e de suas polarizações. Dado que o ressentimento de Guigui é notó-

uma ampulheta a marcar a passagem do tempo, a imo-

rio, é preciso dar-lhe uma conotação mais suave, compondo um rosto que

bilidade de todos diante do fascínio da narrativa, o

se coaduna com a proposta do filme em seu final, quando será necessária

prazer e o preço da curiosidade.

essa imagem mais inocente, de ressentimento mas também de abertura para

O contexto social e a cena pública cheia de observadores ganham

o outro (a mesma que o jornalista explora).

notável ampliação na seqüência final em frente do Instituto Médico Legal

Nos relatos, apesar da explícita mediação da ex-amante na composi-

(IML): aqui, toda a cidade se vê sugerida na multidão de extras e no com-

ção da imagem do Boca de Ouro, há a]go já conhecido desd e a cena de

portamento da câmera ao narrar a agitação causada pelo cadáver do Boca

abertura em sua forma de comandar a conversa e manipular a situação. As

de Ouro. Em geral, o espaço cênico do filme reforça a idéia de uma conti-

mudanças no enredo de uma versão para outra não atingem, por exemplo,

nuidade entre o universo elo bicheiro e os assuntos familiares, cotidianos,

um fato de referência na composição de sua identidade, como o ressenti-

traço que se afirma inclusive na composição do ambiente de sua própria

mento expresso de forma violenta, colérica, quando há menção à pia da

casa, que, com pequenas alterações de cenário entre uma versão e outra,

gafieira. Os temas da vaidade e do auto-endeusamento, trabalhados no

permanece sempre um espaço verossímil observado por uma câmera cola-

texto a partir da matriz da idolatria e da "alienação pagã", ganham no

da à movimentação das personagens, sem in.serts para destacar objetos,

filme uma ênfase de tipo psicológico, acentuada pelo perfil dandy de

sugerir mistérios: o mundo de Boca de Ouro é no seu interior tão legível

malandro, bem colocado por Jece Valadão. Não se dá ênfase às metáforas

quanto o mundo externo. Neste, a liberdade maior de movimentos da

que relacionam o Boca de Ouro com a questão do orgulho luciferino, da

câmera pelos espaços abertos favorece uma dimensão documental. Há,

reivindicação arrogante do direito ao crime, do fetiche do ouro. A ironia

portanto, a continuidade de um mundo legível de olhares, intenções, dese-

fi nal da peça, o cadáver desdentado, recebe uma leitura que acentua o

jos, dentro de uma evolução material e psicológica que destaca as varia-

eixo das diferenças sociais estampadas na boca. Antes que os repórteres

ções da subjetividade de Guigui. Sua figura, interpretada por Odete Lara,

falem nos dentes, o filme introduz uma ação paralela: na confusão de-

compõe-se de modo a tornar notórias (e, portanto, cômicas) suas inten-

fronte o necrotério, ganha destaque a figura de um homem pobre que

t

ções e emoções, evidenciando fraquezas, limitações de inteligência e uma

parece mais agitado do que os demais; num dado momento, quando o cai-

ingênua vaidade que a torna sempre vulnerável aos melodramas que a

xão aparece nas mãos dos burocratas, ele evita o cerco, corre e faz ques-

enredam, com o marido, com as crianças, com o Boca de Ouro. O filme a

tão de abri-lo, constatando diretamente a ausência dos dentes de ouro,

torna simpática, mesmo quando é condenável a direção do gesto, resultan-

fato que anuncia publicamente. Agitado com essa redução ao denomina-

do numa observação que, de um lado, evita o olhar superior ( a narração

dor comum, diz aos gritos "este homem não tem nenhum dente ... é como

não a olha de cima) e, de outro, cria uma imagem mais cândida das figuras

eu, ó", enquanto mostra a própria boca desdentada.

do povo, que se pode questionar pela falta de jeito, mas que revela muito

A tendência a reforçar os aspectos da história que têm clara referên-

bem a opção de Nelson Pereira por um humanismo preocupado em nos

cia socioeconômica preside não apenas as inserções de novos fatos e per-

fazer solidários ao casal, apesar de tudo. Agenor e Guigui são poupados de

sonagens, incidindo na composição de certos lugares pela filmagem para

2 39

dar força à contextualização visual desejada e articular a variação dos

lhante, sem dúvida, para ele, que poderia ter vivido algo parecido ao que

espaços à evolução da experiência de Guigui na sucessão dos relatos. Se o

vemos Leleco enfrentar nos relatos. De qualquer modo, é fato que foj

teatro de Nelson Rodrigues facilita sua tradução em filme pela velocidade,

levado a "engolir" a força maior do rival e a traição da mulher que se

pelos flashbacks e paralelismos, a síntese dramática e as frases curtas, nesse

espelha agora no episódio que ela narra três vezes. Afora esse espelha-

caso a passagem ao cinema só tem a ganhar com o papel central conferido,

mento, cujos detalhes vou ana1isar, há uma articulação bem precisa entre

na peça, à questão do foco do olhar, ao uso da variedade de pontos de vista

as versões, indicadora de um motivo mais fundo, psicológico, que enca-

para narrar o mesmo episódio, operação já referida ao esquema em três

minha o depoimento em certa direção, de modo que o deslocamento ope-

versões utilizado em Rashomon [1950], de Akira Kurosawa. 5 Em Boca de

rado da primeira à terceira não resulta apenas dos humores de Guigui

Ouro, as diferentes versões partem da mesma pessoa, que, em função de

durante a conversa, embora esses tenham efeito evidente.

motivos deixados claros, altera seu relato a cada repetição. Não há uma

No plano imediato, no primeiro dosflashbacks vale o despeito pelo

dimen~ão jurídica no cotejo entre as versões, e não se trata de fechar ques-

Boca de Ouro (afinal, foi "chutada" por ele). Depois, vale a dor da notí-

tão sobre qual é a verdadeira. Sem dúvida, Guigui não é uma narradora

cia da morte do herói e o ressentimento dirigido ao marido Agenor (feliz

confiável, e a análise dos três relatos faz mais sentido enquanto sintoma da

com a novidade). Na última versão, vale o clima de reconciliação com o

relação atual entre ela e sua fala. A leitura deve, no entanto, ir além dos

marido (manipulada pelo jornalista esperto). Assim, Boca é vilão na pri-

motivos imediatos usualmente comentados, e meu objetivo agora é mos-

meira versão, depois herói virtuoso e, finalmente, um assassino de mulhe-

trar que há uma lógica interna na evolução dessa fala. Tal lógica, já suge-

res. E a imagem do casal também varia: uma forma de simbolicamente

rida na peça, reforça-se no filme porque a moldura criada por Nelson

Cuiomar falar das disposições mais fundas dela própria diante da situação

Pereira vai articular o núcleo central das três narrativas com as alterações

vivida no triângulo com Agenor e o bicheiro, pautadas por culpa e ressen-

que introduziu na abertura e no desenlace.

1i mento,

'

'

e também pela exasperação diante de um marido que aceitou a

:4ituação humilhante, retrabalhada aqui simbolicamente na cadeia de ações l' reações que vem selar, três vezes, a morte de seu representante, Leleco.

O JOGO DE ESPELHOS NA NARRAÇÃO INTERNA: AS PROJEÇÕES DE GUIGUI

Na primeira versão, há o desejo de Boca de Ouro, a inocência de

1

l

A escolha do episódio a narrar não é casual. Por meio dela cria-se um dis-

cio

poder divino de vida e de morte. O filme trabalha mais a questão da vai -

:a.: afigura inevitável - a câmera permanece fora do quarto e vemos Celes-

dade (está cercado de espelhos) e vem confirmar o diagnóstico moral dl'

rc sentadinha de frente para nós, emoldurada pela porta aberta. A segunda

2 44

Boca de Ouro, na primeira versão, sentando na cama à espera do que

2

45

l .11iza

e elide o problema, devendo-se esperar o terceiro ato para ver o

lt id 1eiro atravessar a barreira de classe. Já está implicada, na peça, essa

i 111po::;ição de Maria Luiza ao passarmos de uma versão a outra, como se l1011vesse em Guigui uma dificuldade para reconhecer tal movimento. No /'iln1 e, duas ocorrências, digamos assim, colaboram para que

O

gradualis-

1110 se configure com mais força. O cinema traz um aceno a Maria Luiza já 1 1,1

ocorrência se dá quando Maria Luiza, em vez de sair conforme ordena n

1•ntre outras imagens, mostra a chegada do bicheiro à casa. O jardim da'

Boca, dirige-se ao quarto oferecida, e a observamos exatamente do me:-:

!'ren te está ocupado por gente que se acotovela, na expectativa de uma

mo ponto, com a mesma composição anterior que destaca o batente d:1

,t1l'11ção e de um auxílio. Lá estão as três grã-finas que vieram para colher

porta emoldurando a figura enjaulada. Há agora um movimento de ap ru ximação da câmera que permite ver, sobre a mesinha da sala que vai sai11-

donativos, e o movimento de câmera mostra Maria Luiza, de passagem, no 111eio do pessoal. É uma presença fugaz, um flash que não tem continuida-

do lentamente de quadro, uma estatueta em estilo "fim de século" que tra·,.

cl v, pois a grã-fina não existe no primeiro relato de Guigui - enquanto

o clichê da mulher sensual, do corpo lânguido que se oferece. Sela-se aq11 i

iTna prevista no texto- e só o filme lhe dá existência antecipada, de modo

a idéia da passagem da inocência suburbana de Celeste-Guigui para

11

,, µ;crar uma conexão com a segunda versão na qual ela ganhará espaço no

toque sedutor da femme fatale (visível na estátua, que contém a verdad1·

11•xto da peça e no interior da casa. Na terceira versão, não temos a cena do

de Maria Luiza, e não sua postura recatada ao sentar na cama). É clara :1

J,1rdim, mas é sintomática a forma como o bicheiro chega nó hall ao pé da

substituição pela qual Maria Luiza (o anjo da morte) ocupa o lugar q111·

1

era de Celeste, ou seja, de Guigui, aqui identificada com a moça suburb.1

l1ostilidade maior na manifestação de ciúme; agora, a ansiedade do Boca

na. É dessa imagem de Maria Luiza sentada na cama que saltamos para .1

1 1

seqüência no necrotério. O papel central da grã-fina no jogo de projeções da ex-amante

.1111ante, que deixa clara a diferença entre sua postura diante de Celeste d 11

Boca - a Guigui que perdeu o lugar - encontra, portanto, sugestões q11 1•

·scada e é recebido por Guigui. Antes, o assunto era Celeste, e não havia

11 c se prepara para receber Maria Luiza desperta a raiva incontida na

("ela é como eu") e diante da mulher ela zona sul. Essa identificação explí1·i1 a com Celeste confirma o jogo de espelhos e dá início

à versão na qual

vêm da forma (como a repetição do enquadramento) e confirmações

gio, o dado desagradável: a presença de

gressivo deslocamento ocorrido na forma da presença de Maria Luiz:1.

Maria Luiza no interior da casa como

É preciso um tempo para que Guigui possa reconhecer o foco da ques1ü11

passo decisivo para sua própria expulsão.

e compor diante de si a figura plena da rival sentada no que era antes sr ,1

Há aqui um esquema de retorno do repri-

trono. Na peça, a grã-fina entra em cena na segunda versão, quando 1r;1•1,

mido, um processo de atualização do que,

as amigas e, na conversa de curiosa, irrita o bicheiro, que reage com a dr::

sem a mediação da história de Celeste

qualificação das endinheiradas por meio do concurso de seios, em troca d.i

Guigui não poderia trazer à tona. O que

jóia. Pela vitória de Celeste (Guigui) - obviamente manipulada pelo Boc.1

está então em pauta nos jlashbac!cs não é

- a ala feminina de Madureira mostra sua resistência ao assalto de Mari .i

somente a imagem do Boca de Ouro, de

'



primeira versão. Nelson Pereira sai para os exteriores com a câmera e

'

1 47

resto afetada por um esquema de diferenças elementar diante de tudo o

A palavra paradoxo ressoa enquanto olhamos os rostos impassívcis, como

mais; diferenças que, além disso, têm um motivo direto e estiveram até

se a questão para o cineasta não fosse tanto a derrota do Boca de Ouro cm

aqui associadas pela crítica aos humores de Guigui. O mais fundo desse

circunstâncias grotescas, mas a relação entre o tecido dessa mitologia e

processo é a catarse de Guigui, o enfrentamento de sua condição de res-

essas fisionomias de gente pobre que permanecem opacas ao serem vistas

sentida. Como observei, o relato não é a revelação da verdade do passado;

em close-up, deixando menos a idéia de um certo saber implicado nesse

é a revelação do processo atual. O que Nelson Pereira faz é transformar tal catarse, cujas conseqüên-

olhar da câmera e mais um convite a uma indagação sobre o que o locutor

cias permanecem indefinidas ao final da peça, em um rito de passagem

som-imagem, esses olhares documentais em plena rua, que só o cinema

efetivo que será confirmado quando o casal rejeitar o assédio de Caveiri-

permite, preparam a oposição final que resume a perspectiva do filme:

nha e se afastar do espaço em que a multidão leva adiante seu culto ao bi-

com o

cheiro. O filme constrói a seqüência final seguindo os diálogos que envol-

Caveirinha desistindo da perseguição ao casal, para quem lança um último

vem os homens da imprensa e a locução do radialista que procura projetar

nlhar de decepção; no contracampo, a cidade revela o horizonte de uma

"grande evento" no terreno mítico, dramatizar, apelar para exemplos

agitação urbana que segue seu curso, e vemos o casal afastando-se do

lendários, santos e vilões, não importa. Boca é o Al Capone, o Dom Qui-

drama do bicheiro para misturar-se à população, talvez em busca de seu

xote do jogo do bicho, o Drácula de Madureira. O sentido do kitsch aqui se

próprio caminho: a vida continua fora do círculo do Boca.

0

denomina de "povo carioca formidável". Esse tom indagativo na relação

IML

ao fundo e ainda trazendo o mundo atrelado ao Boca, vemos

exacerba e a paródia ao discurso da mídia projeta sobre o mito a sombr:1

Na peça, a forma da variação entre a primeira e a terceira versões

da desqualificação. O locutor comenta as reações de um povo incrível e

sugere o mesmo processo psicológico implicado no espelhamento. Enfim,

criativo que toma a notícia do cadáver desdentado e a transforma em

j:'1 está lá o gradiente de culpa e expiação formado pela sucessão dos rela-

piada, e o cineasta introduz a figura do popular, já citada, a mostrar sua

ros de Guigui, que encaminham sua catarse. Mas a superação do ressenti-

própria banguela, fazendo o bicheiro, nesse plano simbólico da dentadura ,

111 .casal

certos detalhes, como visto. Aparentemente simples, a composição forn 1.tl de Nelson Pereira encaminha muito bem sua interpretação da peça.

llo~a- re~elava, já na peça, outras faces do drama, principalmente a crítica ,l1 ng1da a fraqueza moral que' atrela as pessoas simples à figura carismátiNelson Pereira incorpora a perspectiva multifacetada da peça mas

~

dr~ra hierarquia dos termos. Procura apoio no processo psicológico de , '111gm e o formaliza em detalhe para encaminhar o que não está na e a ,,, se· ·b·1·d d d p ç ' a possz 11 a e e mudança, a válvula de saída diante do jogo de , c·pett:oes, provavelmente inspirada na recusa de uma condição humana

, !ª:

O RESSENTIMENTO DO BOCA DE OURO E O .OE GUIGUI : DUAS MEDIDAS

Uma leitura distinta da peça poderia explorar de forma mais rad ic:: il

à parábola moral do ressentimento e da ambição desmedida -

\ 1v1da em chave trágica pelo protagonista. A condenação da vaidade do

1 ,1.

seu fio de esperança, mas fundamentalmente pelo cuidado e acerto v111

u1dutavel e na afirmação, em filigrana, daquilo que a experiência dasper·1 ,nagens tem de contingência histórica. 11

supremacia do mosaico de pontos de vista e a mediação dos narraclc 111111

li

llatureza mesma da danação das personagens; e descartou a ironia radical

nham condição de sair da engrenagem e superar as mazelas que marc~, No filme, Nelson Pereira leva a cena da reconciliação na mesni.,

que 1mp 1-

volvida na ênfase à circularidade e à prisão no circuito do desejo c~mo

t l'

ram sua inserção no círculo do Boca de Ouro.

,

Nelson Pereira descartou, em primeiro lugar, a leitura mítica en-

experiência do casal com o repórter, uma vez que o tratamento dado :, Guigui e a Agenor não nos anima a dar-lhes crédito, a imaginar que

. . aquz um final totalmente distinto.

1 .irra

No confronto entre paradigma universal e condição histórica mutá1·1, a questão do ressentimento, que é um dado central na peça, sofre um

1

significativo deslocamento, visto que a opção de privilegiar o meio-tom

cara grotesca do protagonista. A chave é o mito e o que se pode dell' l'a 1.vr,

da crônica afasta as polarizações com ressonâncias metafísicas, ou mesmo

por meio da psicanálise, como expressão de verdades humanas. O tcx1o ele

a postulação de um sentimento que defina, no singular, a natureza huma-

Pellegrino, cujas poucas páginas se concentram no protagonista, é um

na. Se há a dimensão do trágico encarnada no herói que perde o privilé-

comentário sobre a dimensão trágica do Boca que o cineasta endossaria,

gio e despenca na ordem das coisas, tal dimensão justapõe-se a um mundo

com a ressalva de que a forma como ele focaliza as figuras simples deslo-

mais flexível que não dá espaço para a idéia de sacrifício do herói. Sua morte, para a coletividade, é uma contingência e não uma vocação. Em

ca os dados estruturais e ilumina o outro pólo da situação, pois a oposição é clara. De um lado, Maria Luiza coloca-se como o complemento do Boca

consonância, o percurso dos que estão por baixo não se vê mais fadado à

de Ouro no gesto ousado e grotesco, lance radical de crime e apropriação

repetição, como assinala o final, muito próprio dos anos 60, que busca seu

do fetiche, dentro da lógica que o pólo trágico da peça potencializa. De

encaixe no movimento da peça, valendo-se do que desde o início o filme

outro, Guigui é a mulher que faz avançar o pólo prosaico, das neuroses

expôs visualmente (no rosto e nos gestos) a propósito da subjetividade de

domesticadas e das contingências cotidianas, figura a quem Nelson Perei-

Guigui. Em seu rosto, a corrosão do ressentimento parece não ter feito

ra privilegia no desenlace para justamente trazer o universo da vida comum para o centro.

seu trabalho a fundo, e ela confirma tal reserva de boa vontade quando, ajudada pelas circunstâncias, torna-se capaz de relativizar o mito do Boca, mesmo que dentro de limites.

Se proponho uma leitura do filme pautada no processo psicológico de Guigui como um esboço de superação do ressentimento, o faço sancio-

A condição de ressentimento "existencial" encarna-se, de forma

nado por essa opção de Nelson Pereira de focalizar, no grande drama, a

radical, no Boca de Ouro, desdobrando-se na figura do "furor destruti -

personagem menor, a que permanece na medida comum dos mortais. Mas

vo", tal como observou Hélio Pellegrino, que nos ofereceu a melhor inter-

a questão não está apenas aí, no que o filme acresce, pois o que ocorre no

pretação do protagonista nessa dimensão. Ele ressalta a dimensão mític.i

relato-memória-imaginação de Guigui, nessa veia psicológica, está mais

do Boca em seu desejo alquímico de transmutação do excremento (é assim

enraizado no próprio universo de Nelson Rodrigues do que parece. Tem

que ele se vê, despejado no mundo) em ouro (sua ambição), e explora os

paralelos consagrados em outros percursos, como no processo de Alaíde

sentidos de sua revanche contra o mundo, vendo a falha maior da perso

em Vestido de noiva. Nessa peça, definidos os três planos - o do real, 0 da

nagem exatamente no ressentimento, "paixão existencial" que o impede dr

memória e o da alucinação-, é neste último que se encenam os dados mais

se aceitar e se amar: "na sua fragilidade, na argila perecível e corruptível que ele também é, para além de qualquer ressentimento. Nesse instanll',

fundos da psicologia da personagem que agoniza na mesa de cirurgia, após o atropelamento que dá início a tudo. Lá está o mesmo movimento de

sem o saber, eis que encontra a pedra filosofal que o transfigura e lhe abn·

recalque pelo qual uma figura decisiva dentro da experiência da protago-

7

as portas da luz que não se apaga". A partir da psicanálise, a leitura de Pellegrino faz um movimento de·

nista (a figura do trauma, da rivalidade, do seu medo de derrota) preserva, de início, um véu que cobre sua identidade. E depois, gradativamente, vai

interpretação de tipo existencial cristão, que vincula o valor da peça ao st·11 alcance universal apoiado na construção dos simbolismos que permitem .,

como a figura da irmã trazida à tona para expor a ferida maior de que deri-

ela dar o grande salto, a começar pelo teor das figurações contidas na 111 ,1:

va o colapso de Alaíde (que, ao contrário de Guigui, não tem uma segun-

7. Cf. Hélio Pellegrino, op. cic., pp.

da chance). Os termos da guerra sem fim são os mesmos: a competição feminina em torno de um único homem, o ressentimento bem típico cios

219-20.

definindo seu contorno até a revelação plena, ao final do processo, no caso

1

mecanismos do desejo mimético que governa tais disputas, de peça a peça (lembremos O heijo no asfalto, com a competição das irmãs pela figura de Arandir). Se o Boca de Ouro exprime de forma mais direta a questão da

')

A falecida e o realismo a contrapelo

de Leon Hirszman

idolatria, esta não está de todo ausente em outros mecanismos obsessionais de tais mulheres presas a uma fantasia que transforma homens comuns, sem carisma, em seres cultuados. A particularidade do Boca como figurafetiche é deslocar o processo, pois a competição que deflagra não se dá no contexto do casamento, no interior da família, no caldo de cultura dos desejos incestuosos, no qual o "ou eu ou ela" não tem cenário de reconciliação possível. Ele é o masculino fora da família, condição para sua potência

ZULMIRA, ANTES DE MADALENA

maior. É o sedutor que chama a si as obsessões e que, ameaçando o casal do exterior, deixa uma fresta pela qual Nelson Pereira "salva" Guigui como

Para compensar o nascimento na pia de gafieira e co rrigir o qu e o inco-

representante de um senso popular da zona norte, sem que possamos dizer

moda como "mancha de origem", o Boca de Ouro sonha com a glória do

que haja qualquer atenção especial à dimensão ética do drama familiar;

caixão de ouro e planeja seu enterro como coroamento da grande vingan-

somente a vontade do cineasta de, entre mito, gente comum e mídia, deixar

ça sobre a sociedade. A acumulação de riqueza coloca-se então a serviço

claro o que mais lhe interessa.

do fetiche centrado na caveira dourada e na pompa de sua preservação: a

Selminha ele O beijo no asfà!to e dona Guiomar de Boca de Ouro (pe-

vida trabalhando para a morte. Para afrontar a prima Glorinha, compen-

ça) dissolvem-se no movimento que leva ao desenlace, pois o centro cio

sar sua pouca importância diante dos vizinhos e vingar-se da vida e do

drama está em outro lugar; Nelson Pereira não quis reservar a mesma

marido, Zulmira planeja seu próprio enterro como quem tece os cordéis

sorte à personagem interpretada por Odete Lara, forma de sugerir que ~1

de um grande crime, providenciando com diligência todas as encomendas

vocação ao desastre talvez não seja a norma da humanidade.



deixando tudo preparado, desde os detalhes pomposos do ritual até a

fcmna de financiá-lo, tarefa difícil no espaço de pobreza em que se move. Provê, inclusive, o acontecimento central: sua própria morte. Ao Boca de ( >u ro e a Zulmira, o destino reserva o grande logro de um miserável 1•11terro à vis,ta de todos, não lhes dando a chance dessa derradeira revandie em que tanto se empenharam. 1

1. 1~m referência ao Boca de Ouro, Carmine Martuscello, em O teatro de Nelson Nr1rlrigues: uma leitura psicanalítica (São Paulo: Siciliano, 1993), ressalta o anelo de

1111s1algia uterina, de culto à figura materna, implicado nesse investimento na urna l1111t•rária, numa observação que não exclui esse dado de revanche programada,

11,.,._ antes se articula a ele, confirmando sua feição regressiva. Sobre Boca de Ouro, , 1'1'

ca p. 8, supra.

2

55

O que mata o bicheiro é o que se mostra de imediato como prcp111,

cm Cinco veres favela [1962], produção do CPC. Ao contrário, sua tônica foi

tecer da trama, recusa o sexo e o marido, restando-lhe uma certa vol11p l:1

a do estudo, em profundidade, de certas personagens em cenários de crise

de antecipação, quando investe nesse prazer de dar a ver, embora apc11. 1r1

e dissolução, como em A falecida. Se o movimento da protagonista é aqui

quando inerte e frio, o corpo que esconde agora em vida. Alimentada p, 11

sempre descendente, nada é muito distinto do que se pode ver num con-

esse imaginário, ela encaminha a própria morte com requinte, sob o 0 111.11

junto de filmes brasileiros desencantados, feitos no período 1965-70, em

impotente do marido e fora da vista de Pimentel, o secreto ex-am:1111 1•

que há nítido empenho em entender melhor a mentalidade daquelas ca-

milionário, a quem ela não deixa de reservar uma surpresa: a ele cabcr;í •1

madas da população das quais se esperava outro comportamento na crise

papel de financiar a pompa do enterro. Ao marido Tuninho caberá rcr,·

política então vivida. Ao mesmo tempo, esse tipo de movimento descen-

ber o dinheiro sem perguntas e pagar a funerária.

dente corresponde a forças presentes na obra de Hirszman que superam a

1

1

1 1

do Cinema Novo e o percurso desse cineasta, revela sua dimensão adversá-

Nem tudo, entretanto, funciona como previsto. Embora Tuni11l11 1

conjuntura dos anos 60. O que vemos em A falecida não está alheio ao

decida cumprir o prometido no leito de morte, o encontro com Pime1111•l

clima de outros filmes, notadamente São Bernardo [ 1972), adaptação de

põe tudo a perder. O milionário recebe aquele que se apresenta co1111 1

Graciliano Ramos que guarda suas afinidades com a adaptação de Nelson

primo de Zulmira e, de início, mostra-se disposto a colaborar, não ci l:1111 1

Rodrigues. Embora distintas na formação e no contexto social, há traços

da quantia que deverá desembolsar. No entanto, durante a conversa, 11I

comuns de inquietude tolhida nas duas mulheres, Zulmira e Madalena. E

mentel revela, envaidecido, seu af]àir com Zulmira, deixando o marid11

é sugestivo comparar o tratamento dado a essas personagens interrogadas

humilhado ( teria ela previsto essa hipótese?). Na base da chantagem, ·1·11

por Hirszman com insistência, em planos longos, na procura de imagens

ninho extrai do milionário a enorme soma determinada pela falecid a. l•:111

capazes de sugerir a força escondida na imobilidade, a energia de uma

seguida, dá o troco à mulher, encomendando o mais barato dos entc n·o•1

expansão contida que, na inversão própria dos ressentidos ou melancóli-

e vai para o Maracanã. Enquanto o caixão miserável de Zuimira é

cos, desdobra-se num caminho de morte. São projetos de abandono do

c a1'l't'

gado pelos vizinhos, Tuninho vive seu momento catártico no es1{id111

mundo que amadurecem, ganham configuração definida e espelham-se na

lotado vendo o clássico Vasco e Fluminense, solitário na multidão.

determinação com que essas mulheres conduzem as longas cenas de des-

Diante da desgraça ,do casal protagonista de A falecida [1965J, ::1•11

pedida, observadas de perto e com paciência por uma câmera que continua

cotidiano besta, sua falta de perspectiva, seu isolamento, observadon·•,

a interrogá-las mesmo quando estão lá de corpo estendido, inertes. Cada

apressados do Cinema Novo e da cultura militante saída dos Centros Pop11

qual a seu modo, elas encontram na morte anunciada a contundente res-

lares de Cultura dos anos 60 perguntaram-se como, afinal, Leon Hirszni.111

posta à cegueira do marido, alcançando um efeito devastador sobre Tuni-

fez a ponte entre seu projeto de cinema político e o compromisso de fil n i. 11

nho e Paulo Honório, condenados a conhecer suas mulheres tarde demais.

a peça de Nelson Rodrigues, logo após o golpe militar de 1964. Di lil'I I

l~sse paralelismo - e outras semelhanças no ritmo, na exploração do rosto

transformar o final da história em recado de esperança, em profissão d

olho na imediatez da experiência da morte; de outro, o fato inexorável de que esse encontro no leito de morte não anula a violência do esquema da vingança de que Tuninho só terá consciência retrospectiva. De qualquer modo, a cena se configura como um momento de reconhecimento mútuo de marido e mulher, que até aqui tinham se postado como células entretidas em seus próprios assuntos. Posto entre parênteses, o contexto da trama - tendência que o estilo de Hirszman favorece -, a partilha desse momento estabelece um lastro de identidade no casal reforçado pela solidão aí implicada. Lá estão a tuberculosa e o desempre-' gado, abraçados na cama a assumir essa passagem na privacidade absoluta, administrada sem testemunhas, sem médico, sem padre, sem parentes, sem apefos a Deus e sem busca de socorro nos vizinhos. Apenas o amparo dos corpos e o diálogo; apenas a determinação de Zulmira e a reação

·I

anêmica do marido que, solidário na dor, embarca, também pela fraque-

O DESEJO MIMÉTICO E A VINGANÇA DE ZULMIRA

za, no roteiro de que será a vítima principal. Seu percurso de "queda no real" começa nesse momento decisivo em que observa o rosto da mulher

O eixo da questão religiosa de Zulmira é a sexualidade, esfera cenLral da

com insistência, após fechar os olhos de uma Zulmira que deixou deres-

culpa que potencializa a programação da morte e põe a personagem sob

pirar e enrijeceu a expressão. A configuração da cena atesta uma reserva

o domínio de um ascetismo que, na verdade, corresponde ~1 internaliza-

de dignidade no precário, curiosamente afirmada por meio de uma busca

ção do "olhar da norma" , encarnado na prima G lorinha. Como em O

de gravidade que põe em cena o que permanece em off na peça. Torna-se

beijo no asfalto, por exemplo, e seguindo uma regra derivada do mel o-

aqui mais nítida a aposta do cineasta nos aspectos minimamente formado-

drama, o olhar, aqui como instância da lei moral, não do desejo, mostra

res da experiência-limite que esse marido medíocre enfrenta, alguém que,

sua força, embora Leon Hirszman trabalhe de forma convencional esse

ao contrário de outros maridos do universo de Nelson Rodrigues, terá a

olhar da censura na cena do flagrante, quando Glorinha cruza com os

chance, dessa vez, de um desdobramento, de um terceiro ato da peça no

amantes de braços dados. Ao longo do filme, o cineasta está mais con-

qual lhe caberá a última resposta, após tomar consciência de um passado

centrado na composição de outro olhar que, dentro da tônica já expos-

humilhante e de um presente que se mostra outra coisa diferente do que

ta, busca uma "terceira via" , afastada dos modos de olhar que definem

tinha imaginado.4 Tuninho fechou os olhos de Zulmira como que enunciando sua morte

os pólos da obsessão de Zulmira, capturada no círculo de culpa ( diante

para uma platéia ainda a se perguntar pelo desfecho da agonia. Olhou de

olhar do outro como desejo). Esse olhar procurado pela câmera é justa-

frente, com insistência, o cadáver, confirmando um senso de identidade

mente aquele que se faz ausente na experiência da protagonista, cujo

que o desenrolar da cena havia sugerido e a alternância final dos rostos ·

estratagema de vingança é, de certo modo, a realimentação do círculo

veio selar. Resta verificar se esse senso novo, e talvez conquistado, é capa,.

que a aprisiona.

J

do olhar do outro como juízo moral) e prazer exibicionista ( diante do

de ultrapassar o rasgo sentimental gerado na iminência do fato, notada-

Zulmira negou seu momento pleno de vida com Pimentel, quando o

mente após as revelações de Pimentel. Para chegar ao centro de A faledda

olhar de Glorinha fez o amor perder a graça e, com ele, a vida. A cena

é preciso analisar as duas vinganças: a da mulher e a do marido.,:.

traumática potencializou a antiga rivalidade, vinda da infância, e ela elevou a prima à condição de modelo absoluto. Aprisionada nesse modelo,

4. Desses outros maridos, há toda a linhagem de Char1es Bovary que, no mundo

rodriguiano, encontra sua expressão maior no Herculano de Toda nuder será casu;r,, da, destinatário de revelações post-mortem sem direito a resposta. Sobre Herculano, ver cap.

10,

infra.

transformou a construção da morte no seu prazer maior desde que esta se pusesse como vingança imposta a todos. Ostentar o corpo, ostentar riquezà, porém sob a condição da morte. A protagonista de A falecida está aprisionada no esquema, aqui fatal, do desejo mimético, tal como propõe

11 1

René Girard em sua análise dos enredos romanescos.5 Fixada no modelo

tentado algo na direção de Glorinha? Fez-se de curioso numa área antes

eleito, ela faz do suposto desejo da outra o seu próprio desejo: a glória

sem intei.:esse para ele? Essas são indagações que o filme resolveu co rtar

ascética, a volúpia na castidade. E seu calvário, produzido pelos sentimen-

pela raiz, mudando a fonte da informação e seu contexto: na ida ao médi-

tos de inveja e admiração, ódio e idolatria, escravidão ao modelo, tece bem

co, a mãe de Zulmira, na conversa do bonde, conta-lhe a história da ope-

a trama do desejo mimético quando a figura do modelo, sendo interna ao

ração e da perda do seio. Fica descartado o "golpe de teatro" maior dessa

mundo da personagem, é posta pela própria vítima num terreno inacessí-

revelação que, na peça, compõe o final do primeiro ato. É como se hou-

vel, no qual permanece indiferente, olímpica. É notável, considerado esse

vesse também aí, nesse deslocamento, um gesto de preservar Tunin ho e,

esquema, o gesto de Zulmira quando propõe a Tuninho, que reclama da

de modo geral, diminuir a função dramática da fofoca no espaço social

abstinência sexual, um movimento de sedução para o lado de Glorinha.

das personagens. Novamente, forma de desamesquinhá-las.

Mais do que um desafio ou um simples "chega pra lá", essa proposta pre-

Ressalvada essa diferença entre peça e filme, a conseqí.iência prática

tende, diante da indiferença da rival, diminuir a distância que a separa,

é que o novo saber de Zulmira, ao mesmo tempo qu e fa:t. deslanchar a

imaginariamente, da prima. Não se trata de uma rivalidade gerada pelo

outra via (a que sela o compromisso entre vaidade, exibicionismo e obe-

desejo do mesmo homem, mas de uma competição pela maior perfeição na

diência ao modelo), "mancha" Glorinha, compensa a implacável distân-

via ascética, corrida na qual Glorinha sofreria decisiva derrota caso o ardil

cia no eixo espiritual do ascetismo diminuindo os trunfos da prima no

funcionasse. Mais do que tudo, seria uma devolução do olhar; fazer a outra

eixo mundano da vaidade, instância em que Zulmira, pela morte progra-

viver um falso segredo de que ela, em verdade, deteria a chave. Na peça, a configuração dos atos dispõe que tal caminho de vingan-

mada, marcará sua superioridade ( quando esta puder ser assumida sem prejudicar o outro eixo da rivalidade).

ça, por meio da sedução da prima por Tuninho, fracasse (dado anunciado

O projeto de vingança endereçado a Glorinha não exclui a agressão

no fim do primeiro ato) antes que a fabricação da morte se ponha em

a Tuninho, nem o papel que a rejeição dele e os problemas da vida do

marcha (no segundo ato). Mas o que há ,de sugestivo nessa disposição

casal assumiram na recusa que Zulmira passou a ter da vida. Foi ele

insere-se num jogo mais complicado pelo fato de ser o próprio Tuninho

quem, no início da relação, "lavou as mãos" e evidenciou restrições que

quem traz a revelação sobre a falta de um seio na prima, revelação de que

foram tomadas por Zulmira como ofensa grave, sempre recolocada a

se pode indagar o motivo e a fonte. Se tal segredo era ilusório e virara

cada relação sexual sem graça do casal. Tal ofensa, no entanto, encontrou

tema de fofoca do bairro ou da família, por que não seria do conhecimento

sua vingança no relacionamento com Pimentel, experiência de reconci-

de Zulmira? Como teria Tuninho, supondo-se que diz a verdade, obtido

liação de Zulmira com seu próprio corpo que só lhe foi sonegada, subi-

tal informação (à falecida não interessa pôr isso em questão)? Teria ele

tamente, pelo impacto do olhar da prima. Nesse torneio reforça-se de novo a idéia de que a questão central de Zulmira permanece sua relação

5. René Girard, emMensonge romantique etvérité romanesque (Paris: Bernard Grasset, 1961), afirma a condição ilusória de um sujeito de desejo que concebe sc11

fantasmática com esse olhar-juízo moral. A interdição gerada pela prima repõe o poder de Tuninho, marido protegido pelas convenções sociais

investimento no objeto como um dado autôriomo, atestado de soberania. Girard

que a peça, na cena que o filme suprimiu, denuncia no comportamento

insiste na condição triangular, social, pela qual o desejo passaria sempre pcl:i

da própria família dela, com seus comentários sobre os deveres da espo-

mediação de um modelo, esse outro que designa o objeto de desejo e se põe con1t 1

sa nó casamento. No que toca a esse poder do marido, A falecida conduz

alvo de uma imitação ambivalente, misto de admiração e rivalidade.

as coisas com a discrição que a própria fraqueza de Tuninho impõe, sem

2 73

.

,

explorar fantasmagorias góticas presentes, por exemplo, em Toda nudez será castigada e no romance-folhetim Meu destino é pecar, quando há o

paradigma da mulher aprisionada num casamento em que o marido ou sua família têm o poder de submetê-la a uma engrenagem terrível e às vezes mortífera, expressiva ele uma misoginia que se estampa com clareza na produção hollywoodiana do mesmo gênero. Aqui há, sem dúvida, a submissão ao vínculo conjugal insatisfatório, no qual a mulher convive

embaralhando os termos de sua posição de classe, confundindo vitó ria e

com uma figu ra medíocre. Se a moral não lhe dá saída (a não ser a clan-

derrota. Zulmira, ao se vingar de todos, distribui os papéis confo rme o sta-

destin a), novamente a morte ganha valor, pois é a condição que permite

tus de cada um dentro da série: humilhar a fraqueza do marid o, cobrar caro,

a exposição integral de sua verdade, revelação de que seu poder de sedu-

como nunca fizera, a felicidade partilhada com o amante e dar resposta sar-

ção alcançou alguém bem mais rico e poderoso do que Tuninho, um

cástica à sedução barata de Timbira. Sua vitória, sabemos, é efêmera, ima-

Pimentel que, em tudo, é o oposto da impotência de seu marido. A figu -

ginária. O projeto de Zulmira, minado nn base, falha caba lmente, e o

ra do homem rico, por seu lado, estará no final reduzida à tarefa de

"valor de exposição" planejado para a cena do enterro inverte-se. Q uando

financiar a empreitada da pompa fúnebre também sem direito a resposLa.

a prima, no filme, aparece na janela, é para observar o quadro precário, não

Cobrança tardia de uma Zulmira que, nesse particular, assume o lugar

o triunfo de Zulmira. Nesse aspecto tão central, a vingança não se consuma.

daquela que merece o "investimento maior e a exibição pública", o que,

No entanto, uma vez já morta, seria ela afetada por isso? Zulmira

conforme as circunstâncias, talvez lhe permita ainda atingir aquela ouLra

morre sem testemunhar o resultado de seu estratagema; seu desenlace é 0

rival que ficou fora do alcance durante a relação clandestina e não per-

mergulho pleno na viagem escolhida, pois o destino poupa-lhe o momento

deu suas prerrogativas: a esposa oficial de Pimentel.

de ajuste de contas com a realidade. Esta-desaba, ela morta, sobre o marido

No requinte do esquema, o projeto que movimenta a trama, em sem:

medíocre, como no romance de Flaubert, uma das referências da peça.ó

vários ângulos, define sua veia totalizadora como agressão, não escapando nem a figura média de um Timbira, o último dos homens menores, pobres,

A VINGANÇA DE TUNINHO E SEU MOMENTO DE VERDADE

sem poder, com quem se deparou na vida. A aspiração vingativa, Zulmi r:1 a traduz em providências reais que culminam numa programação q1w ·

Zulmira viva, a alienação de Tuninho é, no fundo, mais radical do que a

investe de erotismo todo o seu contato com a funerária. Na sua vingant;.1

dela. Por isso mesmo, ele não terá comando sobre a catástrofe que abala de

imaginária, a funerária é um elo fundamen tal na consumação do desejo r ,

vez seu pequeno mundo, assumindo uma dimensão patética, pouco trágica,

no plano prático, oferece a ocasião de mais um embate com os homens nH· diante o flerte com Timbira, que, numa certa tipologia masculina, ocup:111

6. Madame Bovary e o bovarismo como paradigma do ressentimento são dados cen-

ponto médio entre Tuninho e Pimentel. Se um porta os signos de derrot :i,

trais na exposição que Girard faz de sua noção de "desejo mimético" . Nesse sentido, o

pobreza, castração, e o outro os signos de vitória, riqueza, onipotênci;1, 1 1

traço "bovarista" de Zulmira estaria, mais do que tudo, em sua inserção dentro de tal

malandro da funerária representa uma solução de compromisso de q11t·111 ,

paradigma do desejo (aqui, alimentado por um modelo que sanciona a via ascética), e

mais próximo do pólo. da castração, cultiva a imagem da onipo tênci:1 1\ movendo-se no território da pobreza, sublima pequenos ganhos episócli rn•1,

nao yropriamente em uma ou outra semelhança de percurso entre ela e a Emma de 1•laubert. Vale dizer, a formulação de Girarei permite talvez especificar melhor a ques-

1,10 do bovarismo em A falecida, já apontada por Sábato Magaldi, entre outros autores.

2 75

dado O acanhamento de sua figura de homem solitário que não conhece sua condição. Seu mal-estar manifesta-se logo na primeira cena em que aparece, quando fala da aposta que, se tivesse dinheiro, faria contra todo o estádio do Maracanã em favor do Vasco. Há a ostentação de uma fidelidade apaixonada ao clube, mas também, pelo tom da fala e pelo teor da fantasia, sinais de um ressentimento que contamina de vingança o grande gesto, inversão imaginária de sua impotência e irrelevância no mundo. Na primeira cena, a aposta é promessa abstrata, desafio imaginário lançado a todos num arroubo de entusiasmo que acaba ironicamente cortado pela prosaica dor de barriga. Simetricamente, no fim da peça, Tuninho leva consigo um dinheiro que nunca teve, e pode então cumprir a promessa inusitada. A aposta, num primeiro impulso, parece em vias de consumar-se. No entanto, uma vez que joga o dinheiro para o alto como quem se livra de um problema, o desafio lançado termina por cumprir um papel simbólico, catártico, no seu percurso. Em sua feição exterior, é um espasmo de heroísmo anunciado aos berros no estádio, mas sem visar efeito prático nenhum . junto à multidão que o cerca (isso ganha maior definição no filme em fun ção da filmagem in loco, que dissolveu o ator Ivan Cândido em pleno estádio lotado). Enquanto gesto-chave, ao contrário do que ocorre no início, não vem simplesmente dar expressão a seu fanatismo, que erige o futebol em absoluto e o faz juiz de sua felicidade ou desgraça. O trauma da morLc de Zulmira e a humilhação diante de Pimentel cortaram a possibilidade dl' ele dar vazão plena a seu surto vascaíno e, no instante decisivo, o unive rso das ilusões de torcedor se vê suplantado pela realidade, por demais contun dente, do viúvo que está prestes a confirmar uma condição precária cl v gigolô tardio. Ressoam nesse final outros enredos.

com Ritinha, Tuninho acaba jogando o dinheiro para o alto num gesto em que se livra, digamos assim, do material que simboliza sua perm anência no círculo do casamento falido. Dada a configuração da cena final, talvez ele possa deixar para trás essa condição de viúvo ressentido a tirar vantagem daquilo que o humilha; e talvez possamos pensar que algo mais se vislumbrl em sua experiência para além de um a degradante continuidade da vingança. Como colocado pela peça, e reafirmado pelo filme, é a questão moral que prev:alece e alimenta o drama, definindo os termos do discurso sobre a precariedade de Tuninho e suas possibilidades de superação. Mas há em Leon I-Iirszman um interesse na discussão das questões sociais ( divisão de classes, o mundo do trabalho, o desemprego), e ele tem diante de si uma situação em que os problemas de consciência e de mobilização política pautam-se por uma ~otória ausência no mundo das personagens. Pode-se dizer que sua forma radical de desenhar a solidão do casal quer acentuar essa ausê~cia como um dos traços que ajuda a qualificar .o espaço rarefeito em que as personagens se movem, pois sua solidão se faz muito do que, fora deles, fo~nece o quadro da atomização. E Tuninho, em quem se pode encontrar um impulso de convívio, não chega a encontrar no futebol o universo de partilha de experiências com força suficiente para retirá-lo do vazio, para além do espasmo periódico dos estádios. No entanto, não há, nessa história, relações ou vivências capazes de especificar a natureza negativa de uma sociedade que abriga tais experiências como condição estrutural, sempre recolocada. Desde a abertura, a atenção se volta para a dimensão mais pessoal, ética, de um

Tal como Edgard, o protagonista de Bonitinha mas ordinária, Tu ni nho chega à última cena com uma soma de dinheiro cuja aceitação

rn1

recusa funciona como uma definição do caráter. Edgard segura o cheq, w que o patrão corrupto - o dr. Werneck - lhe ofereceu para provar q1 11• "todos têm seu preço" e que o discurso ético do pobre funcionário 11:,n resistirá à tentação do dinheiro. Tuninho leva no bolso o que

acaba queimando o cheque e dispondo-se a iniciar uma vida de pobre

conscµ; 11 i 11

extorquir de Pimentel como primeira prestação. Como Edga rcl , q11

320

são de Manchete. Pois Glauber nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sem-teto no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda". Ver Nelson Rodrigues, O reacionário - Memórias e confissões (Rio de Janeiro: Record, 1977), PP· 37-38.

321

sentimento de descompasso com os rumos da sociedade. Ocasiã~> p:11·.1 uma releitura crítica do imaginário patriarcal no momento de sua au,v_:1 clr.1• · A naldo Jabor sintonizados num paru cnl :11·: maturgo, N elson Ro d ngues e r o gosto pela dicção apocalíptica.

Na caracterização do percurso de Arnaldo Jabor-cineasta, meu ponto de partida tem sido sua forma de conduzir uma espécie de anatomia da decadência que toma o espaço da família e da vida conjugal como flancos privilegiados de ataque. Sua ironia em relação ao mundo privado procura a ressonância política e coloca-se, desde o início, como capítulo de uma psicologia social empenhada em denunciar um certo estilo de dominação enraizado na formação social brasileira. Creio ter esclarecido a forma como o cineasta, com a mediação de Nelson Rodrigues, conduz a reflexão sobre o declínio da figura paterna, a nova geração dos cínicos e a desagregação de relações humanas em que se apoiou sua visão amarga do processo de modernização administrado pelo regime militar. 1 A força de sua encenação fez de Toda nudez será castigada e O casamento episódios centrais no "processo da família" condu-

zido por alguns cineastas do Cinema Novo nos anos 70. A tônica da tragicomédia definiu o gênero privilegiado na exposição da crise de uma ordem familiar sujeita à ironia porque constituinte de traço nuclear de uma tradição cultivada desde a colônia e retomada como símbolo de identidade nacional pela ideologia do golpe de r964. Antes de avançar, uma observação: há um contexto maior para a operação de Jabor. A "crise da família" e o conflito de gerações fo ram temas centrais na pauta das ciências humanas em muitos países, nos anos 60 e 70,

1.

Minha análise de Toda nuder será castigada e O casamento está reproduzida no

cap. ro, supra.

322

1 1

uma vez que as mudanças no estatuto da juventude e os influxos mais

tura mundial cujo desdobramento ainda é incerto, seja porque o ideário tra-

gerais do desenvolvimento no pós-guerra geraram experiências de libera-

dicional tem rendimento político para o regime. Procuram explorar o terre-

ção sexual e substituições da autoridade familiar por outras formas de con-

no da vida privada pelo que aí existe de matricial em face de um comporta-

trole institucional, dentro da chamada "dessublimação repressiva" própria

mento conservador. Vem daí a vontade de psicologia, um empenho em

à sociedade de consumo. O quadro de questões em torno dessa crise e das novas articulações da família é muito mais amplo do que o terreno restrito

entender os substratos de caráter inconsciente da ordem social, porque a decepção com a realidade política sugere que nem tudo é racionalidade e

em que me desloco. Os movimentos de transformação e de reposição de

expressão de interesses materiais no comportamento político, havendo dis-

estruturas familiares são nuançados, envolvem embaralhamentos e desau-

posições psicológicas contraditórias que os cineastas querem entender,

torizam "leis gerais", bastando lembrar, como referência, as críticas a

sabendo-se parte do universo focalizado. Há nesse movimento uma dose de

apressados diagnósticos de época feitas por Christopher Lasch. 2 Não se

revanche contra um imaginário familiar que foi assumido por eles como

trata, portanto, de trazer o conjunto da questão para minha análise, mas

marca por excelência do público comprador de ingressos, espectadores

apenas de sublinhar o sentido desse processo pelo qual, no Brasil, no

diante dos quais proclamaram seu divórcio, numa postura afinada porém

momento em que se adensam os bolsões urbanos de uma incipiente socie-

algo distinta daquela do teatro de agressão. Há uma dimensão da auto-aná-

dade de consumo, as mesmas forças que promovem o avanço técnico-eco-

lise que, presente no encaminhamento do debate sobre a sociedade, foi um

nômico assumem a tarefa contraditória de defesa da tradição familiar como

gesto decisivo do Cinema Novo, definindo sua força e seu risco nos anos 70,

componente dos "valores cristãos" mobilizados contra a expansão do

uma vez que o ajuste de contas com a tradição não se deu sem um certo

comunismo, conforme a doutrina de segurança balizada pela Guerra Fria.

enredamente nas articulações simbólicas que focalizou, demarcando os

Ao tornar tal tradição alvo do sarcasmo, os filmes não inauguram o "pro-

limites de sua imagem da modernização tal como se configurou no Brasil.

cesso da família" , mas vêm dar-lhe uma feição particular ajustada ao qua-

Em seu movimento em direção à família e ao que chamei de anato-

dro político, expondo o lado cafona e acanhado da empreitada moral do

mia da decadência, o Cinema Novo tomou o atalho oferecido pelas refe-

regime, sublinhando as iniqüidades recobertas pelo esquema de poder.

rências literárias num leque bastante diversificádo. A matriz pode ser

Está presente nesse processo a clássica operação de des7 ascaramento:

Nelson Rodrigues, como é o caso de Jabor, mas pode também ser Dalton

revelar a distância entre ideologia e prática efetiva; a famíli ,tradicional, o

Trevisan, em Guerra conjugal [ r975], de Joaquim Pedro, Lúcio Cardoso,

vigor do patriarca e seus valores evidenciam-se mais como construção sim-

em A casa assassinada [1971], de Saraceni, ou mesmo Graciliano Ramos,

bólica do que como realidade. Mas essa operação é acompanhada da cons-

em São Bernardo (1972], de Leon Hirszman, e Oswald de Andrade, lido

ciência, menos óbvia, da eficácia do simulacro na geração de comportamen-

na chave da " adaptação literária" , em Os condenados [1973], de Zelito

tos políticos e na construção de um princípio de autoridade que, embora

Viana, ou na encampação mais iconoclasta do Cinema Marginal, em Os

tenha bases materiais em outros processos (a formação do capitalismo téc-

monstros do babaloo [1970], de Elyseu Visconti.

nico-burocrático nos anos 70), vale-se da tradição moralista para ganhar

Na observação do trajeto de J abor, examinado o diálogo com Nelson

legitimidade. Os cineastas fazem a comédia tomando a ordem familiar bra-

Rodrigues, resta analisar como o cineasta prossegue o debate em torno da

sileira a sério, seja porque sua crise sinaliza adaptações a uma nova conjun-

figura do pai, dentro desse primado de uma psicologia social que busca uma visão totalizante do país. Na consideração dos desdobramentos e das

2.

Ver Refúgio num mundo sem coração (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1.99t).

contradições dessa psicologia, meu percurso chega ao J abor-cronista, para

ver como aí se combinam Nelson Rodrigues, a matriz cinemanovista e as

dimensão política desse perfil psicológico. O filme queria surpreende r os

citações de pensadores da formação nacional, como Gilberto Freyre e Sér-

conservadores em sua própria casa para buscar verdades pri vadas, pes-

gio Buarque de Holanda. Tais heranças e incorporações, num primeiro

quisar segredos da intimidade que pudesse relacionar ao comportamento

momento, permitem rechear sua idéia de Brasil, formando o lastro que

público. Vinha para expor o lado mais doméstico da marcha em direção

destaca a imaginação de Jabor no jornalismo diário. Mas vêm gerar ten-

ao golpe de Estado que Terra em transe alegorizava, concentrado nas lide-

sões quando o movimento das crônicas leva-o ao engajamento direto nas

ranças políticas e no jogo do poder.

opções que se abrem no Brasil pós-Collor e no processo sucessório. Emer-

Em sua representação do golpe, o filme de Glauber condensa o pro-

ge aí, na crônica, o social-democrata exasperado pela resistência que uma

cesso político na ação de um grupo de agentes que personificam, de um

certa mentalidade-obstáculo, em parte a mesma que ele inventariou nos

lado, uma esquerda atrelada a um esquema populista e, de outro, uma

filmes, oferece às ponderações da Razão, agente nuclear de mudança que

direita oligárquica que conspira e interrompe o processo eleitoral que a

sua psicologia tende a ver como irradiação de foco único.

ameaça. Num teatro que envolve comícios populistas, a traição da burguesia local às forças populares, movimentos da militância de esquerda, inter-

O PROCESSO DA FAMÍLIA

venções do capital multinacional, o destaque maior é dado ao líder da oligarquia, Porfírio Diaz. É ele a figura de referência no percurso de Paulo

1967 é um ponto de inflexão no percurso que me interessa. Ano de Terra

Martins, o jovem intelectual que está no centro do relato e estabelece com

em transe, que valerá aqui uma observação, e do documentário Opinião

o líder conservador uma relação trabalhada, ao longo do filme, em termos

pública, em que Jabor já apresentava um inventário de comportamentos

edipianos ( dependência, rivalidade e libertação). Essa relação dá feição

revelador, focalizando grupos familiares em pequenos apartamentos,

particular à vitória dos conservadores na cena política de Eldorado, país

jovens inseridos no circuito do rock e da moda, setores do funcionalismo

alegórico onde o golpe de Estado desenha-se como reposição da violência

público, gente de televisão e outras peças da chamada "opinião pública".

originária que marcou a empresa colonial dos europeus nos trópicos. Vitó-

A invasão dos espaços domésticos, a atenção à roda de fofocas cotidianas,

ria do trinômio Tradição-Família-Propriedade, o golpe encarna-se em

as confissões que traduzem aspi~ações p~ss~ais ~ais fundi'. ges_tos menos controlados na mira de uma camera bisbilhoteira, tud1 smahzava uma

Porfírio Diaz, que costura a articulação entre suas bases materiais (apoio do capital internacional e cooptação da burguesia local) e o discurso tra-

vivacidade nas pessoas que, conforme já assinalado mais de uma vez pela

dicionalista. Porta-voz da casa-grande, D iaz monopoliza a iniciativa; é o

crítica, escapava à moldura teórica da observação. A montagem, por seu

elo decisivo da cadeia conservadora: o interesse material, representado

lado, ordenava as peças do inventário, destacando o imaginário sentimen-

pelo magnata Fuentes, o burguês modernizador que controla as indústrias

tal da cultura industrializada, as superstições e a histeria de encontros reli-

e as comunicações, tem papel secundário. Foco por excelência do golpe, é

giosos sob o co~ando de milagreiras, o munc;lo de Chacrinha e da novela

a tradição patriarcal, mais do que o estamento militar ou os donos do

de TV. Tudo estruturado em torno da tese - com citação direta de Wright

dinheiro, que se coloca então como o fascismo fascinante a oferecer a

Mills - de que é próprio das classes médias o retraimento, o apego à auto-

fisionomia grotesca para o ataque do Cinema Novo. Os jovens cineastas,

ridade, o afã de segurança, a miopia social, o consumo do kitsch. Tal

focalizando o mundo conservador pós-golpe, identificaram a ordem insta-

inventário, ao apresentar a galeria de pequenos homens capturados em

lada com figuras dessa tradição, em geral exemplares menos potentes e

redes imaginárias, entrincheirados no mundo doméstico, sublinhava a

mais caricatos que serviam de alvo para a sátira anti-autori tária. .





Opinião pública, contemporâneo de Terra em transe, já focalizava os

mesmos valores que Diaz mobiliza, deslocamento que o põe co mo fig u rn

seguidores da ordem: os fracos, o rebanho identificado às classes médias,

menor que, flagrada nas mazelas cotidianas, permite sabotar as fundações

os filhos do medo, como afirma o poema de Drummond citado no filme.

do projeto de Diaz. Obviamente, a distância que separa tais figuras de pai

Nos anos 70, as duas adaptações de Nelson Rodrigues expõem mais dire-

em termos de força e envergadura é enorme, mas coaduna-se com essa pas-

tamente a figura do pai à humilhação, confirmando a escolha do alvo da

sagem que estou apontando: mudam os termos da representação - da ale-

crítica em sua relação com a imagem do golpe e com o corpo da tradição

goria nacional solene e dramática à tragicomédia - e muda o tratamento da

saído da alegoria de Glauber. Curiosamente, é o próprio Jabor quem sina-

figura submetida à crítica. Diaz interessa pela potência vitoriosa na vida

liza a passagem do público ao privado como desdobramento da discussão

pública; Herculano, Sabino, e depois Juarez, interessam como balizas de

política do Cinema Novo, permitindo a observação de Herculano, primei-

uma anatomia da vida privada e de certo estilo de malograr na comédia das

ro elo da cadeia Herculano-Sabino-Juarez ( o pai de Tudo bem [1978])

transgressões e culpas do pai de família flagrado em sua precariedade.

como antítese de Diaz, a figura cinemato-

Sabino, em particular, permite que o comentário envolva todo um estilo

gráfica símbolo da tradição vitoriosa em

nacional de vida política: ao contrário de Herculano e seu mundo fechado,

1964. Uma leitura intertextué!l de Toda nude{

o desenlace da comédia do pai de Glorinha apresenta-se como um delírio

permite assinalar um detalhe, uma nota de

messiânico vivido no espaço público e no contato com o "povo".

rodapé, que pontua essa passagem para a

Na seqüência bombástica da confissão de Sabino, assumida a dimen-

anatomia do espaço doméstico pela qual se

são coletiva do evento, a mise-en-scene de Jabor retoma, com ênfase, a tôni-

explora o lado avesso, menos visível, de fi-

ca das totalizações do Cinema Novo, antes mesmo de sua anatomia da

guras associadas à ideologia no poder, agora

decadência chegar a Tudo bem. A moldura geral de O casamento [1975] e

9bservadas fora do espaço político-institu-

sua articulação entre drama doméstico e experiência social, entre o público

cional. Não é um acaso o fato de J abor abrir seu filme com o travelling no

e o privado, extravasam o texto de Nelson Rodrigues para dar nova dimen-

aterro do Flamengo, focalizando Herculano ao volante, com seu ar cafo-

são ao calvário do protagonista. Já destaquei as imagens da enchente que

na, num passeio que refaz o espaço e o movimento da pi;ada triunfal de

emolduram a história, metáfora totalizante do colapso social e alusão ao

Porfírio Diaz, um forte emblema de Terra em transe.

desastre urbano que guarda relações com as atividades empresariais de

1

No filme de Glauber, a composição da liderança maior dos conserva-

Sabino. Há outra moldura, esta dentro do percurso do protagonista, que

dores visa sublinhar um estilo de intervenção na esfera pública, na luta pelo

interessa também destacar, como contraste entre início e fim do filme. Do

poder. Da vida privada de Diaz, temos os sinais de sua solidão a compor a

início, vale lembrar a cena em que Sabino dirige-se de manhã ao trabalho

imagem do defensor intransigente da oligarquia. A inspiração religiosa de

e, do banco de trás do carro, exige maior pressa do motorista enquanto a

sua missão política ata sua militância à obcecada preservação de purezas

multidão que cerca o veículo e observa seu interior permanece como amea-

ameaçadas e exige uma vida em consonância com o ideal ascético. Missio-

ça potencial, cria estranhamentos pelo olhar dirigido à câmera. O engarra-

nário, Diaz é a tradição patriarcal representada no momento da demonstra-

famento de trânsito, o obstáculo, a aflição: nessa situação cotidiana do em-

ção de força. Sua retórica do Bem e do Mal atinge o grotesco mas guard a

presário, o coletivo se faz presente na figura da multidão que significa

uma eficiência sinistra que inibe qualquer movimento em direção à co mé-

simplesmente inércia, resistência ele massa humana à progressão do carro,

dia. Herculano é a versão prosaica, ajustada ao tom de Toda nude{, dos

massa de que Sabino está separado e com a qual pouco se importa, a não

J29

ser como estorvo. Enquanto o empresári9 vive o dia-a-dia pragmático da

O capítulo seguinte da psícologia social de Jabor é Tudo bem, no qual

administração dos negócios, buscando eficiência, sua relação com o outro

se reagrupam os temas já presentes nas tragicomédias, trabalhados no mes-

se dá na tônica da dominação, da ausência de interesse que ultrapasse a fun-

mo estilo. Temas e estilo agora apoiados num roteiro original mais cali-

cionalidade dos corpos. No final, ocorre o contrário. Ao dar o "salto meta-

brado para oferecer a representação do país como um todo. Com a famí-

físico", seu delírio tem resposta "popular", instaura uma liderança: ele é

lia no centro, a articulação entre vícios privados e catástrofes públicas se faz explícita.

seguido por uma pequena multidão, como um beato cercado de seus adoradores e entra em comunhão com o coletivo. Enfim, tem seu momento de

'

glória populista. Desse modo, na cena de sua prisão, são nítidas as resso-

TUDO BEM: A MATRIZ COLONIAL Dó MESMO

nâncias de um clima delirante, exacerbado, que caracteriza os comícios de Terra em transe, tratado agora com menos gravidade mas com a mesma iro-

Nesse filme-síntese deságuam as diferentes inspirações. Na comédia con-

nia. É no momento do mergulho no sonho messiânico que Sabino conse-

jugal, Juarez e Alzira repõem alguns lances do repertório rodriguiano. 3

gue, mesmo que à sua revelia, atualizar um estilo de conduta enraizado na

Na alegoria, é nítido o diálogo com G 1auber e sua postura totalizante: o

formação social, vivendo uma experiência de solidariedade e comunhão.

apartamento da família é um microcosmo da nação, um teatro de populis-

Ou seja, seu teatro de salvação retira-o da pequena esfera para fazer desse

mo, euforia carnavalesca, surto messiânico, migrações, violência, submis-

encontro uma espécie de reposição, em tom menor, da apoteose barroca da

são ao estrangeiro. 4 E novamente J abor justapõe o arcaico e o moderno

ilusão com que G lauber equacionou a vida política brasileira. Apoteose

nos termos da Tropicália: cultura de mercado e folclore rural, ritos indí-

seguida aqui das imagens da enchente, que, não excluídas as alusões bíbli-

genas e natureza tropical, televisão e símbolos patrióticos definem o mundo kitsch da família.

cas, fecham o discurso com promessas de desabrigo e peste, inserindo o fracasso da figura paterna no quadro geral da "miséria brasileira". Como já assinalei, o 't om da mise-en-scene na tragicomédia de Jabor

Prese~te na abertura e nos créditos, a articulação entre vida doméstica e imaginário nacional permanece ao longo do fi1me. Juarez, o chefe de

não permite que se trabalhe o gesto de Sabino como sacrifício redentor. Observado do exterior por um olhar irânico, não é t 1enor seu fracasso apesar da congregação que seu gesto instala. Desse "\,odo, o cotejo entre

3. Há citações de Zulmira, a protagonista de A falecida, na figura de Alzira, a mãe

começo e fim traz à tona esse contraste entre a potência de separação do

em Tudo bem: há a frustração, os rompantes de "vou morrer", a obsessão semelhan-

moderno (Sabino empresário, cidadão produtivo, está só) e a potência de união do arcaico (Sabino encontra seu público na confissão). Em seu tra-



te com a figura da loira. O lance é paródico e Fernanda Montenegro, que fez a Zulmira no filme de Leon Hirszman, desenha uma Alzira frustrada, mas francamente cômica, isenta de culpa, que se vinga na obra (reforma da casa), não na morte.

jeto, a eficiência econômica é fator de isolamento; ele se mostra uma ver-

4. Em verdade, juntamente com A idade da terra, filme que Glauber deu por termi-

são acanhada de um princípio de individuação da modernidade. O delírio

nado em 1980, Tu.do bem fecha um ciclo de alegorias nacionais, totalizantes, elabo-

religioso, o sair de si, congrega, afirmando a oposição entre espírito de

radas pelos cineastas do Cinema Novo a partir dos anos 60. O palco da encenação

coletividade e mundo prático. O primeiro rea-

de G lauber expande-se pelo Brasil (Brasília, Salvador, Rio de Janeiro), é abrangen-

liza-se no espaço das ilusões e excessos, da festa

te em seus espaços e figuras; o teatro de Jabor contrai-se no apartamento ele Copa-

em sentido lato, o segundo desfila como um vale-tudo de exploração e violência.

cabana. Mas a identidade de questões e a atenção especial ao tema da decadência atestam que, na diferença de estilo e tonalidade, a ironia amarga de J abor - urbana, cética - tem pontos de encontro com o profetismo evangélico de Glaube r.

família aposentado, é o ponto central de mediação: traz para o apartamento na zona sul do Rio o universo mítico dos elementos formadores da nação de que se vê baluarte. Ex-integralista, expõe seu ideário em reiteradas conversas imaginárias com três companheiros do passado: o integralista fanático, cultivador das "emanações telúricas"; o italianado de São Paulo,

um anseio de agradar a visita ( o estrangeiro rico). Dado o eclipse do marido, Alzira ocupa os vazios, mostra energia, até mesmo quando se queixa da abstinência sexual, do trabalho na ca-

que faz o elogio do progresso e das fábricas de macarrão; e o poeta par-

sa. É incansável em seu exibicionismo coquete, que inclui a encenação sensual do affair do marido com "a loira", adultério

nasiano, que adorna as " reuniões" do grupo com sua retórica. Juntos,

imaginário que ela própria inventa. Esse teatro doméstico arrasta-se até o

evocam vivências de juventude, os bons tempos da lida política, o ufanis-

momento em que Juarez simula, ao telefone, o fim do suposto caso. Pode

mo nacionalista de matizes fascistóides. Enfim, tudo o que contrasta com

então o casal "reconciliado" engajar-se na reforma do apartamento: vida

o presente medíocre de Juarez. Homem fraco, sem autoridade na vida da

nova. Alzira celebra a vitória após "26 anos de luta". Vitória isolada, pois,

família e do prédio, ele é a direita folclórica à vontade no espaço da comé-

do começo ao fim, seu convite ao sexo não tem resultado, nem mesmo

dia, tal como um fascista de Fellini na cena italiana. Seu percurso será de

quando pede a Aparecida, a doméstica nordestina, que benza o apartamen-

crescente amargura, reconhecimento da impotência sexual, paterna e

to, em especial a cama do casal. Soberana, de qualquer modo, na condução

social, mergulho na apatia que encontra compensação cada vez menor nas fantasias e recordações.

da família, sua tônica é a relação populista com as empregadas (a carioca

Burguês mediano, nem rico nem pobre, é o "pequeno homem" que

nos negócios, mas atua sempre como mãe compreensiva, saboreando seu

encarna o declínio da figura paterna já trabalhado em Toda nude{ [1972] e O casamento. Está agora mais velho, mais acanhado. O cultivo dos emble-

papel em longos discursos que elogiam o estilo de vida dos miseráveis, exaltando a bondade do povo, a poesia que há na pobreza.

mas da velha ideologia curupira identifica-o como um velho cheio de

A tensão relevante em Tudo bem não se dá no eixo das gerações ou

manias a quem ninguém adere, nem a mulher nem os filhos. Os jovens, no-

mesmo no das rusgas entre marido e mulher. Desloca-se, portanto, em

vamente, estão associados à decadência, agora expressa em termos radicais.

relação a Toda nudez e a O casamento. A questão aqui é a contenção dos

Ao contrário de Serginho ou Glorinha, os filhos de Juare são figuras debi-

"excessos populares". A reforma gera a gradual invasão do espaço fami-

]óides, anódinas. Sua distância em relação ao pai é apenasf,,o desinteresse de

liar pelas figuras do trabalho, as classes subalternas. Sua função é prepa-

alienados incapazes de qualquer confronto. Com ar de geração perdida, são

rar o cenário para a festa final em homenagem ao americano, ocasião em

pólos da comédia que se vale no filme da experiência de Regina Casé e

que a família, cumprindo seu ritual de classe, vai apagar os sinais dessa

Luiz Fernando Guimarães trazida do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o

presença de povo e trabalho. No processo, desenha-se a tradicional imbri-

Trombone. Absorvidos em si mesmos, não prestam atenção à reforma do

cação de intimidades entre patrões e empregados, tudo dentro da econo-

apartamento: o filho preocupado com sua posição na multinacional em que

mia informal, dos salários precários compensados por cortesias que fazem

trabalha como Relações Públicas; a moça voltada para o consumo, "as

o orgulho da família como gente "legal". Os arremedas de conflito ser-

compras", o possível casamento com o americano, sempre sonsa.

vem para identificar tipos cômicos estáveis que, na sucessão de situações

1

esperta e a nordestina ingênua) e com os pedreiros. É autoritária, eficiente

Nesse mundo medíocre e sem surpresas, o elemento motor é Alzira.

absurdas, trazem seu pequeno mundo para dentro do apartamento, de

Fato que reduz o élan da família aos termos da dona de casa: empreender é

modo a compor o painel social desejado, incluídas as narrações da misé-

construir a boa aparência, encenar um "tudo bem" cosmético associado a

ria na fala dos pedreiros, que enchem os "bons ouvidos" de Alzira. Todos

332

se dão ares de dizer tudo, em família. Além do ·show da dona da casa, há a

de duas formas tradicionais do "excesso popular" que ameaçam o mundo

folação de um pedreiro desabusado em torno de fatos escabrosos ocorri-

da religião disciplinada e do trabalho, o mundo do "somos cristãos" de

dos na região onde mora, com um toque rodriguiano de "grotesco popu-

Juarez. Mais para o final, uma terceira forma desse excesso manifesta-se

lar". E há a história da família "sem teto" do imigrante que conta a vida

para criar o pesadelo maior, pôr em risco a festa. No último dia, um con-

do pai candango de Brasília, mostra fotos, compõe um clima tipo "o

flito entre dois pedreiros em torno de uma banana roubada gera o crime:

sonho acabou" que define a analogia entre a microempreitada do aparta-

há um cadáver no meio da sala que, em poucas horas, será ocupada pelos

mento e a construção da capital do país. A cidade-monumento nacional,

convidados. Criada a aflição, Jabor aproveita o crescendo do drama e lança

como a pequena reforma do apartamento, é preparação para receber

mão do detalhe de montagem para intensificar o efeito: está lá o cadáver

influxos, atestar a modernização. Esforço de transformação da fachada,

estendido no chão e já se antecipa o som da orquestra de Ray Conniff; o

mantidas as estruturas, que envolve o exercício renovado do princípio de

corte seco introduz o passeio de câmera que mergulha na festa. Tudo

exclusão: solicitar o pólo popular como executor da obra para, em segui-

parece normal, mas sabemos o motivo das posições estranhas de Alzira e

da, expulsá-lo ou confiná-lo, a fim de que seus sinais não manchem o

dos filhos ao pisar em pontos especiais não cobertos pelo tapete. Na área

espaço. O ocultamento exige ares democráticos, mas a política de contro-

de serviço, Aparecida vela o cadáver do pedreiro. A justaposição sala de

les diplomáticos nem sempre funciona. Principalmente quando o trans-

visitas/quarto de empregada chega a seu ponto emblemático e se mantém

bordamento, como o de Aparecida, envolve um surto de misticismo e his-

até que a atenção volte-se para o americano. Este fala da Global Village,

teria que se propaga numa desmedida inaceitável.

da comunicação via satélite, e domina a platéia de brasileiros apatetados

A tensão, de início cômica, entre as demarcações da ordem e os

que o segue a cantarolar Around the World como exaltação da técnica e da

excessos populares muda de tom no desastre final, que será preciso ocul-

modernidade. Para fechar o discurso, irrompe a imagem aérea de Foz do

tar. O primeiro lance coletivo ~ o do carnaval comandado pela empregada mais esperta, quando a animação expande-se e transforma o aparta-

Iguaçu, e a cachoeira oferece os termos da catarse: exuberante, porém em queda livre, descendente como em O casamento.5

mento numa passarela de escola de samba, para desespero de Juarez. O

Nesse final, a montagem sela o tema do transbordamento, uma

embalo só se dilui (em realidade, o lugar da catarse se tt~nsfere) quando

constante de Jabor ao longo dos filmes e também das crônicas dos anos

todos se unem para estancar um forte jato de água que \ ai de um cano

90: o fluxo das águas que figura o colapso, do sujeito (retorno do reprimi-

estourado do banheiro. Mais adiante, é a vez de Aparecida transformar-se

do) e da ordem social. Por outro lado, o sangue sob o tapete e o cadáver

em estopim. Criado um clima propício pela evolução das peripécias, ela

na área de serviço sinalizam o recalque da violência na construção do

entra em crise, gritando no quarto fechado; quando abrem a porta, ela sai

cenário da festa, reafirmando o princípio de exclusão como dado central da modernização conservadora.

de olhos esbugalhados, com duas chagas nas palmas das mãos. Atravessa o apartamento, vaga pelas ruas, em transe, e acaba dando origem a uma grande romaria que transforma seu quarto em santuário. Uma multidão entra em cena e acotovela-se nos corredores do prédio, aparecem vendedores ambulantes e Juarez tem de lutar muito para entrar em casa. Na exasperação, toma coragem e expulsa todo mundo, repondo a ordem. Esses dois episódios - carnaval e surto messiânico - marcam a presença 334

5. A queda-d 'água, aqui, além de ponto final que evoca a metáfora totalizante ela

enchente em O ca.samemo, ironiza também o ufanismo do início cio século xx que sobrevive não apenas em Juarez: não por acaso, no meio do filme, ele assiste ao programa de Amaral Neto na TV, série ufanista dedicada à natureza brasileira - o documentário sobre a pororoca embalado pela voz exaltada do repórtet·.

335

Ao trazer todo o país para dentro do mundo doméstico, Tudo bem

dade patriarcal é compor um diagnóstico que aponta, no presente, o que aí

evidencia, na sua estrutura, o influxo de uma tradição ensaística da socio-

a repete como farsa, o que aí é declínio efetivo da ordem familiar sob a capa

logia brasileira, apresentando uma versão nova da clássica dicotomia feita

de uma atualização cosmética. Nesse sentido, de toda a armação do regime

de casa-grande e senzala, sobrados e mocambos. Introduz um novo par,

burocrático-autoritário e seu projeto de modernização, ataca-se o flanco da

sala de visitas e quarto de empregada, que atualiza e assume a pertinência

direita folclórica, a que acredita na permanência dos valores tradicionais e

de uma síntese social a partir do núcleo familiar. Ao fazê-lo, não se ilude com versões idílicas da convivência entre as classes trazidas por essa

pensa o regime como sua garantia. Ou seja, o pólo Tradição-Família-Pro-

matriz, sendo irônico com as operações de ocultamento aí implicadas.

catural sem potência efetiva (a ordem econômica segue outros caminhos),

Além disso, seu sarcasmo dirigido ao ufanismo - forma matriz do "tudo

mas que ainda é moeda corrente no plano ideológico. 6

priedade (TFP) que é representado em Tudo bem por esse nacionalismo cari-

bem" e da catilinária do "berço esplêndido" - desautoriza a visão pater-

Iniciado em torno de 1970 - ou seja, período da censura, do mora-

nal, o olhar da casa-grande ou da sala de visitas, com sua idealização-anu-

lismo, do auge da repressão - , o "processo da família" de Jabor foi en-

lação do povo exaltado como parte da natureza a domesticar. No entanto,

contrando diferentes versões em que o espaço doméstico figurou relações

o desfile das indisciplinas - crenças, carnaval, cordel, beatismo - retém

de poder e marcou a discussão das raízes da apatia política. Esta foi assu-

um resíduo folclorizante. O filme diverte-se com as aflições dos donos da

mida como traço nacional insistente, inclusive na conjuntura específica

casa, mas a comédia apóia-se demais no estereótipo, acentuando o grotes-

de Tudo bem, que é de gestação da Anistia e do fim do

co, a histeria e a violência como traço geral: mancha encoberta dos donos

observa o Brasil pelo lado das permanências de prazo largo, das experiên-

da casa mas, acima de tudo, marca desinibida dos empregados. Ou seja, o

cias populares de transgressão espasmódica da ordem, comportamento

excesso popular está lá para dizer a verdade do todo. E a ênfase recai no

marcado por respostas pontuais que estariam ligadas à insuficiência de

que, nessa esfera, é confir.mado sobre a "miséria brasileira", sobre a

articulação, pela base, que marcou o processo de abertura e mais tarde

ausência de sujeitos históricos fortes e sobre a ausência de articulação do

resultou no que Fernando Henrique Cardoso chamou de "democracia

social com o político, dado criador dessa falta de saída que se figura no

conservadora" .7 Estão obviamente ausentes os setores mais organizados

fluxo das águas de conotações apocalípticas.

da sociedade, como era comum acontecer no Cinema Novo desde os anos

\

AI-5.

Esse filme

Se, nos anos 70, a sociedade brasileira era obvia\\1ente mais complexa,

60, que mesmo quando foi mais inclusivo em sua alegoria, como em Terra

se a própria configuração desse mundo acanhado define uma casa-grande

em transe, insistiu no peso político de uma tradição histórica formadora

já sem colunas mestras, por que insistir na matriz colonial, na família como

da mentalidade-obstáculo, essa que denota atraso, tende ao delírio, à

núcleo da reflexão sobre o país? Nessa escolha, Jabor condensa a resposta

inconsciência política, à não-solidariedade dos de baixo e à solução vinda

do Cinema Novo ao regime militar: faz questão de negar a modernização como força produtora de uma nova sociabilidade, de uma nova qualidade de vida, efetiva formação de classes sociais. A questão é marcar o lado conservador do modelo brasileiro, assumir a modernização como mudança de

6. É interessante lembrar que, como mostrou o trabalho de Sérgio Botelho do Amaral, "Guerra conjugal": uma batalha de Joaquim Pedro de Andrade (Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, r991), o filme de Joaquim, realizado em r974, tem também a TFP como alvo de referência em muitos de seus lances.

pele, casca que encobre a repetição de formas arcaicas de dominação e con-

7. Ver A construção da democracia - estudos sobre política (São Paulo: Siciliano, r993),

vivência de classes, reposição de uma subserviência a poderes externos sob

particularmente os artigos "A fronda conservadora - o Brasil depois de Geisel" e

a aparência do Brasil Grande. Nessa perspectiva, adotar a matriz da socie-

"Os anos Figueiredo" .

337

de cima ( em Tudo bem, é típica nos pedreiros uma postura de desunião,

pulação mais sofisticada em sua tecnologia. O desfile grotesco da eli te do

inveja, conflitos internos). Assumido o peso da tradição patriarcal, voltada para as relações in-

poder que se delineava no circo populista do grande comício do filme de G lauber retorna nas festas de largo abençoadas por ACM e nas sessões do

formais de mando e para a privatização do espaço público, a compreensão

Congresso, especialmente em passagens da votação do impeachment de Col-

da inconsistência política, da alienação, apóia-se numa forte presença da

lor, tornada espetáculo de

psicanálise, evidente desde Toda nude{ e O casamento. A alegoria totalizan-

"pelo meu chefe Maluf ", "por Santa ... ". O Jabor cronista, já nos anos 90,

te de Tudo bem vem ajustar essa presença à anatomia do estilo de sociabili-

não perdeu a chance de extrair o melhor rendimento dessa convergência.

TV:

"pelos meus filhos", "pela minha família",

dade encravado na tradição colonial. Essa é a síntese que resulta da opção do cinema pelo ajuste de contas com a família como forma de chegar à

A PSICANÁLISE DO ATRA SO

política. Resultam expostas as feridas de um Brasil com vontade de ser moderno, porém mergulhado na reposição do Mesmo em sua forma cari-

Quando Jabor assumiu a crônica de jornal, já em plena desilusão da Nova

cata e, por isso mesmo, desenhado de forma agressiva nos termos da ordem

República, o desfile de corrupção e crime organizado, as chacinas, a lon-

familiar em decomposição. A rigor, sabe-se que tomar o pólo arcaico de

gevidade da crise econômica e o sentimento de questões insolúveis na vida

relações pelo todo é uma deformação só possível a partir da expulsão de

brasileira alimentavam, com nova força, a idéia da iniqüidade como mar-

camadas fundamentais do Brasil moderno - incluídas as classes formadas

ca nacional. O teor rotineiro da barbárie desafiava, como hoje desafia, a

pelo avanço da indústria e dos serviços. Está claro que a alegoria não dá

retórica já melodramática do noticiário e da programação da mídia.

conta do país vigente naquele momento. Chama, porém, a atenção para

Mesmo os redutos mais tradicionais de fantasia e otimismo da

aspectos de uma antropologia brasileira que, muitas vezes desdenhados

vam-se contaminar pelo real à cata de uma solução de compromisso entre

pela militância dos partidos à esquerda, são fundamentais na discussão

o desejo, o devaneio e os dados contundentes do dia-a-dia. A novela em

política. Ou seja, temos aí aquele esforço em captar peculiaridades da vida

horário nobre fazia seus ensaios na direção de uma noção mais adulta de

social que o Cinema Novo reiterou em sua observação do país, sempre

" realismo", seguindo mais de perto a obsessão de Hollywood com o triun-

mais sensível aos resíduos de mentalidade arcaica, de \ociabilidade patriar-

fo da esperteza e da violência no mundo contemporâneo. Abria-se o vídeo

cal, de jogos clientelistas, de populismo. Se essa é uma ~~presentação defor-

para uma consideração "mais a sério" da corrosão dos valores, embora

mada em seu privilégio a um dos pólos, gera, no entanto, uma matriz para

prevalecesse a exploração dos momentos sensacionais em que violência,

pensar o Brasil, capaz de reconhecer os efeitos políticos da convivência de

contravenção e jogos de poder traduziam-se em dramas pessoais, fofocas

temporali~ades, dessa heterogeneidade social em que se acotovelam e se

de família, choros, confissões, arroubos sentimentais, crises de ódio.

acomodam tradição e modernidade. No limite, essa matriz tem oferecido, desde os anos óo, determinadas imagens da vida política que o episódio

Na teatralização da esfera política, ganhou impulso a busca da personagem interessante e houve até uma certa experimentação - como no

Collor recolocou em pauta como versão apoteótica da convivência de

caso da família Collor - quanto ao gênero dramático adequado para qua-

arcaico e moderno, do universo da mídia e do "em família". O delírio à la Diaz do final de Terra em transe retoma no discurso de

lificar a experiência social. A ansiedade em ver tal experiência ganhar sentido, e a recusa em procurá-lo em nexos causais de teor mais estrutu-

posse do presidente eleito em 1989, bem como os dados do carisma, do

ral, dirigiu a conversa para os dados personalizados do processo, incluindo

messianismo político, da massa apatetada, agora embalada por uma mani-

uma dose diária de pitoresco: os dramas do ministro que se expõe quando

338

TV

deixa-

B9

é "flagrado" sem saber pelas câmeras, os depoimentos patéticos das vítimas

cronista procurou inscrever o cotidiano e a política em formas d ramfüicas

de violência ou de desastres, as caretas dos âncoras da

e seu "serviço

produtoras de uma visão original. Isso, em parte, o fez retomar a chave da

personalizado" da informação. A tônica nacional de reiterado malogro fez

tragicomédia presente nos filmes. No limite, porém, em consonância com

da idéia do "trágico'' uma moeda corrente. Fórmula automática, essa idéia

a tônica do tempo, esboçou-se um tom de tragédia mais efetivo naquele

perdeu sua força como dotação de sentido, tornando-se idéia tosca de fata-

ponto em que Jabor procurou recuperar a densidade do termo.

TV

lidade associada ao recalque do discurso sobre interesses concretos.

No seu teatro da sociedade, o cronista ora construiu "interiorida-

De modo geral, o uso de noções correlatas a gêneros dram áticos,

des" , inventou perspectivas (privadas, secretas) que tornassem interes-

privilegiando a gravidade e afastando-se da biague, atualizou um pro toco-

santes as personagens públicas em debate (os irmãos Collor, PC Farias);

lo de reações já desgastado, mas que ganhou interesse em função da esca-

ora compôs seu próprio drama ao narrar incursões reais ou imaginárias

lada da ficcionalização da notícia. A narrativa dramática tornou-se um

pelos focos de pobreza, pelos espaços do poder ou pelos labirintos dos

sucesso, não apenas como exacerbação do mecanismo da fofoca, mas tam-

economistas. Diante dos despossuídos, tematizou a interrogação, o pro-

bém como elaboração de um discurso no qual o cálculo dos efeitos e do

blema de encontrar as palavras, as encenações que pudessem qualificar a

gênero adequado à situação é hiperconsciente. Uma galeria de escroques

desgraça sem o clichê ou a obscenidade, enfrentando a opacidade da

garante matéria farta para os exercícios de psicologia social e a teatraliza-

experiência e a dificuldade do enfoque. D iante dos ricos e de boa parte

ção do cotidiano canaliza-se, excluindo-se as vítimas, para o anti-herói

dos políticos, as excursões imaginárias pintaram o quadro com desenvol-

como figura tipo, não sendo rara a sugestão de que ele "nos" define. Nesse

tura, pois ele já estava à vontade na exposição dessa comédia. Reencon-

movimento, volta à cena o caráter brasileiro, com uma força que a idéia do

trou aí as "relíquias do Brasil" que emperram a modernização - ver a crô-

nacional perdeu em suas outras dimensões. E retorna sem a dominante de

nica da visita ao Congresso Nacional - ou freqüentou festas de sociedade

humor que o caracterizou no passado: Macunaíma sai de pauta, pois o

que ironizou em textos nos quais a estrutura do comício de Terra em tran-

senso comum perdeu a paciência em face da malandragem, fazendo da

se inspirou o desfile de tipos nacionais, sobreviventes e emergentes,

ética o tema central do discurso político.

observados como encarnação dessa mescla de cinismo e convicção exal-

Dentro dessa atmosfera, a crônica de J abor 1?\anhou destaque pela

tada que tem reposto a iniqüidade. Excursões ao passado marcaram o

força de sua construção de personagens inspirada n\)s episódios da vida

quanto ontem e hoje o olhar encontra o mesmo país: estilo personalista de

cineasta. 8 Desde suas

relações e de poder, gosto pelas soluções messiânicas, escrachos populis-

social, transferência para o jornal da experiência do

adaptações de Nelson Rodrigues, a questão de Jabor foi esta: acertar o

tas, autoritarismo das elites.

tom, engendrar o ponto de vista capaz de qualificar, adequadamente, a

Se o Brasil se repete, resta ao cronista retomar a tônica dos filmes,

desmedida das personagens, ajustá-las a um debate em torno da dimensão

enumerar os novos palhaços da "loucura brasileira" ou voltar ao destaque

nacional de suas mazelas e de seu estilo. Na ausência do cinema, que tra-

dos arcaísmos provincianos alheios à cidadania moderna, traços que per-

ria o desdobramento dessa lida com os gêneros, a inquietação quanto às

sistem na Nova República - vide a eleição de Jânio Quadros em 1985, a

formas .do drama desaguou no jornalismo. Atento à agenda nacional, o

estratégia populista de Collor em 1989, os dramas de família na crise do governo, a confusão entre público e privado atualizada nos episódios de

8. Para as crônicas de Arnaldo Jabor escritas durante o pedodo Collor, cf. a cole-

1992. Resta enfim sublinhar a persistência da mentalidade-obstáculo, o

tânea Jabor, A. Os canihais estão na sala de jantar (São Paulo: Siciliano, r993).

peso da tradição e do estilo de sociabilidade já encenados em Tudo 6em.

34 1

Há algo mais, no entanto. A lida com figuras singulares do poder acaba gerando uma nova resolução imaginária - essa que esboça o trágico -, na qual a dicção apocalíptica do cronista, tão freqüente no comentário

guarda como herói trágico, cientista político e a111rop(1lo1•;0 ("t:Ht' t' massa grotesca que dissolve os tons elevados: o

ta toma, arcaicamente, como organismo sem fraturas, ou comunidade. A

Mesmo é a bolha emprestada de Hollywood, massa gelatinosa que con-

partilha desigual do poder e da riqueza, os conflitos de valores e a luta

versa com Collor no palácio, lugar onde sempre esteve como um fantas-

ideológica, embora reconhecidos aqui e ali, não parecem capazes de apon-

ma a fazer da história um romance gótico escrito por presidentes volun-

tar a lógica das ações e os interesses por detrás dos massacres ou da delin-

tariosos às voltas com forças ocultas.

qüência política. Dada sua envergadura, a desmedida sugere algo mais, um

Determinação maior do processo, o Mesmo vale por um postulado de

fator oculto à altura dessa ultrapassagem de limites que não parece apegar-

identidade que não carece de especificação; é uma onipresente zona escura,

se a nenhuma força social identificável no jogo de poder. O tom trágico

inacessível senão pela alegoria. Desgastadas as totalidades recobertas por

exige a configuração de destinos e, na consideração do fator oculto, toda

noções como "espírito", "caráter nacional", Jabor encontra o vocabulário

ênfase recai sobre "nossa" identidade como aquele algo além que explica:

da psicanálise. O uso de expressões como Id nacional sinaliza a preferên-

existe um substrato nacional mais fundo, uma vocação para a desmedida (o

cia, como também o teor uterino do Mesmo, princípio regressivo que assi-

ponto fraco do caráter que aciona as tragédias). País do equívoco, o Brasil

mila a si próprio e dissolve o novo. O ponto decisivo, no entanto, não está

seria o lugar geográfico de "encontros marcados" , onde vale a força dos

aí. Está na lógica de todo o esquema que iguala ordem histórica e universo

atavismos, das vinganças adiadas, da "tradição secular de loucuras", de um

do desejo e da ordem sexual. Sujeitos descentrados movem-se às cegas ilu-

imenso e indefinido rol de pulsões inconscientes (e nacionais) que estariam

didos em suas intenções, impulsionados por determinações opacas, origi-

por trás dessa transformação da experiência-limite em prato cotidiano.

nárias, que os condenam à repetição. O trágico aqui é a batalha de Sísifo

De crônica a crônica, a psicanálise do atraso avança em sua genera-

contra a astúcia da inércia primeva nacional: "toda tentativa de me destruir

lidade e elimina, por assim dizer, seus toques de\1salvação. As figuras do

me coloca de novo no poder" . O Mesmo, como dado matricial (o desejo

inconsciente nacional adensam-se e o Mesmo adq\iire corpo, manifesta-se

nacional de fracasso), deixa de ser um conteúdo. É uma forma que se repõe

como entidade. Ele não é apenas a imobilidade do país que permite, atua-

nos variados conteúdos que diferentes épocas atualizam. Daí porque se

lizando a matriz de Tudo bem, reduzir os industriais aos termos da casa-

minimiza, ao longo das crônicas, a idéia de um valor arcaico - como a

grande e os líderes sindicais do

aos termos da senzala. Nem apenas

família patriarcal, por exemplo - ,que impede que o novo se instale. Como

as formas da "loucura nacional", nas quais os presidentes "não saem, eles

fórmula astuciosa, o Mesmo dissolve a oposição tradicional/moderno

têm alta" . Nem as visíveis encarnações do arcaísmo, a vocação para o fra-

(dois conteúdos manifestos) e define-se como um sistema do equívoco.

casso em que a hiperinflação é um destino que se mescla de interesse alu-

Ativa no passado, ativa ao longo da história, essa forma se faz também

cinado (os especuladores) e de mentalidade messiânica (pensa-se a hiper

presente nessa mentalidade autodepreciativa do Brasil como país inviável,

como o desastre, mas também como a salvação - a mentalidade do país a

ineficiente, que predomina com toda a força a partir dos anos 80, a década

deseja). O Mesmo é o princípio de eterno retorno à matriz (fala-se de his-

perdida. O Mesmo está na versão pós-milagre do sentimento de inferiori-

tória fixa), "pasta essencial de que tudo é feito" , "inércia primeva" que se

dade e de culpa que deságua na vitória de Collor, salto para o equívoco

344

ABC

145

neoliberal que substitui a pasmaceira da Nova República de Sarney. O

ódio, uma geléia de indignação com oportunismo". Lança sobre si o ri sco

Mesmo está no Congresso, no Brasil contemporâneo no qual os arcaísmos,

de ser engolido pela mesma engrenagem do erro permanente, agora reves-

os "sentimentos profundos que estão aí há séculos", vêm encontrar a cum-

tida ele pós-modernismo, risco de contaminar-se pelo desejo do fracasso,

plicidade da constelação dita pós-moderna.

essa relação ambígua com o mundo em que o sujeito, sem ilusões de auto-

A matriz arcaica sublinhada desde Tudo bem vem agora se articular a

nomia, se vê perdido e assume o "desejo insano do caos" . Aqui, o cronis-

um dado da contemporaneidade na configuração do Mesmo. O país vive

ta dos anos 90 se vê às voltas, em verdade, com a mesma vertigem de

novas dimensões, mas essas cristalizam-se na razão cínica que o retrato dos

interrogações que assola as personagens do cineasta dos anos 80, seja o

jovens já anunciava nos filmes dos anos 70. O Brasil de Collor, o mesmo

Paulo de Eu te amo [1981], seja o jovem casal de Eu sei que vou te amar

que está saturado de discussões em torno do pós-moderno, permite uma

[1986], filmes em que Jabor encenou, pela primeira vez, o drama que ator-

nova aproximação que se faz a partir da crise do sujeito, do fim das espe-

menta os cristãos-novos da sociedade permissiva. Enfim, começou lá, na

ranças, do senso de impotência na sociedade do espetáculo, da saturação de

cena entre quatro paredes, o laboratório em que sua imaginação trabalha

imagens que tudo expõem, incluindo o velho teatro dos conservadores. Se

os Narcisos da era do vídeo, expondo o outro lado do impasse nacional.9

o brasileiro, como de resto o mundo, desaprendeu as ilusões revolucioná-

Resta ver como, encenado na vida privada, portanto em seu terreno por

rias, o período Collor põe em crise as convicções democráticas, a ingênua

excelência, o "desejo do fracasso" revela sua origem nos longas-metra-

fé nas virtudes subversivas da abolição da censura. Do equívoco do país

gens, antes que as crônicas o projetem para a ordem social.

das torturas e da repressão encoberta, saltamos para o equívoco do país

Observo agora a psicanálise do atraso em sua matriz contemporâ-

intoxicado de escândalos, afogado na série de CPis, na reiteração cotidiana

nea, momento em que o cinema de J abor faz a passagem das questões da

da indigência política. A imaginação do cronista aproxima a exposição

família patriarcal (matriz colonial, fator endógeno da mesmice) para as

excessiva aos podres da sociedade à saturação do voyeur superexposto à

questões da neurose moderna (fator exógeno).

pornografia. E a lógica adotada - ordem social/ordem sexual - leva ao mesmo diagnóstico: se a intoxicação pelas imagens de sexo explícito e a

A MATRIZ CONTEMPORÂNEA DO MESMO

banalização da nudez geram a falta de apetite sex\~al, a pornografia política gera a apatia social. Restaria um cidadão assolallo pela inércia, pulsão de

Em seus filmes dos anos 80, J abor deu andamento ao teatro das crises con-

morte, metamorfose contemporânea do Mesmo.

jugais e da desordem amorosa iniciado nas adaptações de Nelson Rodri-

Os dados da tecnologia atual inserem-se no processo mas não mu-

gues. Alterou, no entanto, seus termos. A cada filme, os protagonistas

dam sua lógica nem a vocação nacional: a modernização, tal como se dá,

mudam de geração. O purgatório doméstico não mais se define como

acelera a emergência de novas matérias aptas a atualizar o desejo do fra-

oposição entre desejo e norma tradicional; o mundo dos pais e o debate da

casso, determinação maior do impasse atual que impulsiona os iludidos

família saem do centro do drama e o labirinto da nova subjetividade vem

pela high-tech, os surfistas na crista da onda, os intelectuais-disneylândia. Nesse ponto, o cronista, ciente de sua inserção no teatro que descreve,

9. Aqui, Jabor aproxima-se da formulação de Joaquim Pedro em Macunaíma

olha-se no espelho e desconfia de sua própria démarclze, na qual o zelo pela

[1969]. A sociedade de consumo vem constituir o vale-tudo e aquela demanda de

verdade é também prazer do voyeur. Observa que o jornalista é implacável

infantilização e hedonismo a que se ajusta muito bem a "nossa" matriz arcaica, ou o "caráter nacional" entendido então nos termos da malandragem.

e critica o país inteiro, mas "a partir de uma vaga pasta de moralismo e de

347

definir o espaço dos desencontros. O que as personagens mais jovens

Medo semelhante assombra a moça de Eu sei que vou te amar. Não é

ganham em fluência perdem em direção, afogadas num jogo de esconde-

outro o sentido de sua fala posta em destaque no prólogo que antecipa a

esconde, sucessão interminável de pequenos teatrinhos embalados por

questão que permaneceu em pauta durante toda a conversa com o ex-

amor-próprio, feridas abertas, impulsos de vingança, disputas de poder,

marido.

evocações de um passado mais pleno de que têm medo. Confusos, procla-

De um filme a outro temos duas versões do mesmo paradigma.

mam aquele anseio melodramático de tudo dizer e expressar, mas palavra

Dois encontros semelhantes, no ponto de partida, na gangorra de afetos e

e gesto há muito abandonaram o terreno da transparência. Resta a vivên-

agressões, na forma do desenlace. Homem e mulher encontram-se num

cia de conflitos insolúveis.

espaço confinado, lugar de uma terapia a dois, na aparência alheia a um

Eu te amo e Eu sei que vou te amar marcam a passagem da ironia

quadro social que, em verdade, é sempre reposto, pelas evocações da con-

endereçada à decadência da família - que era a tônica até Tudo bem - para

versa, pela composição do ambiente cuja colagem de arcaico e moderno

a encenação de uma crise de identidade e de sentimentos que se assume

alegoriza a interminável transição brasileira.

como "doença da modernidade", essa doença catalisada pelo esvaziamen-

Em Eu sei que vou te amar, o nexo entre o Brasil e a crise das perso-

to da ordem patriarcal, do qual emergem as figuras libertas e ansiosas

nagens é sugerido mais de leve, sem a moldura escatológica de Eu te amo,

que, entre outras, Christopher Lasch teorizou. No cinema de Jabor, tais

tão explicitadora. O anteparo de ironia adensa-se, e o que se diz sobre o

figuras entram em cena para atualizar em nova chave o drama de aparta-

país, o povo, o mundo não parece matéria a ser levada a sério, pois afirma-

mento da zona sul: são agora as ovelhas desgarradas da crise brasileira.

ria relações de sentido estáveis que o filme, de fato, não se permite. Ao .

Em Eu te amo, é explícita a correlação entre a desordem amorosa de

longo do percurso, os tons da mise-en-scene e a perspectiva do teatro con-

Paulo, empresário falido, marido abandonado, e a consciência nacional do

jugal alteram-se na mesma proporção da instabilidade radical das perso-

"fim do milagre" . A seqüência inicial do filme, em seu esquema escatoló-

nagens. O encontro combinado após meses de separação atesta mútua

gico, antecipa as imagens do cronista: o locutor do telejornal anuncia a

carência, mas também um anseio de fazer valer pontos de vista, transferir

descoberta de uma grande massa informe, malcheirosa, debaixo da mesa

culpas. No debate, ninguém cede de fato e o jogo de provocações prolon-

da Presidência do Congresso, a "grande cag1Pª nacional". Em seguida, o

ga-se indefinidamente. A par da anatomia da crise, inventário das ofensas,

protagonista fala ao telefone de sua falência~como cliente da corrupção

a evocação dos "bons temp·o s" é contraditória. O casal faz um ritual de

oficial, maldiz o castelo de cartas do milagre de Delfim e se diz em busca

identidade que, embora massageie os egos, reafirma o lado carcerário da

de palpabilidade, afã de concreto: "O Brasil não existe, somos medíocres,

relação plena: o amor é uma doença, uma gosma; une mas é de natureza

covardes". Está aí refeito o roteiro de auto-agressão das figuras culpadas

antidemocrática. Entre autonomia e entrega sem limites, o movimento é

de Nelson Rodrigues. Mas Paulo vai além: assiste, no vídeo, à cena da

circular, há saídas pela tangente. Nas cegueiras estratégicas, infantis,

separação. E ouve novamente sua ex-mulher brandir a verdade maior: seu

reconhece-se a mesma constante: a atração pelo fracasso, o medo da

desejo do fracasso, levado à morbidez. Essa é a moldura de um percurso

união, é o estratagema que condena os apaixonados ao dilaceramento.

em que seguimos seu namoro com Maria ( ou Mônica), feito de pequenas

Dado explícito nas fig·uras de Paulo e Maria de Eu te amo, tal estra-

encenações para criar imagem, ele e ela vivendo duplos de si mesmos, rei-

tagema é a linha de resistência que pontua o drama do casal de Eu sei que

terando a mentira embalada pelo medo da entrega. Como se envolver, se

vou te amar. A tônica é, em ambos os filmes, a falação desenfreada, as lon-

não há garantias, se tudo é efêmero?

gas confissões que evoluem na direção reveladora do Duplo, essa figura

349

que cristaliza o "caminho do Mal" na vida dos protagonistas. Tal caminho

sombra valorizador do lado feriei 1c

tem a sua versão feminina - a moça em Eu sei que vou te amar, tanto quan-

de corpos e objetos, pelo qual o ci ne-

to a Maria de Eu te amo, assumindo o paradigma da prostituta - e a sua

asta dispõe-se a enfrentar, na franja

versão masculina - o jovem ex-marido, tanto quanto Paulo em Eu te amo,

arriscada da incorporação, o regi me

assumindo a relação com o travesti. 1º

da visualidade por ora vitorioso: o

O duplo, esse Outro que é fantasia ou prática clandestina, no passado se apresentava como uma função: era estável seu papel de sustentação

do discurso publicitário. Nessa tônica, os dois filmes dos

da norma antiga, do casamento tradicional. No esvaziamento da norma,

anos 80 já sinalizam algo que irá rcLOrnar com força nas crônicas: o medo

ele propõe-se como dado inelutável da identidade sexual, condição de

do olhar ingénuo, o afã de encenaç~o ela in1cligência (já levado ao paroxis-

dilaceramento interno na liberdade aparente. Vivência de uma opacidade

mo em Eu sei que vou te amar). Esse movimento alimenta o culto do para-

radical, a crise de identidade direciona a viagem para o terreno da tagare-

doxo, dos jogos de duplo sentido, desse visível que é efeito de superfície,

lice, essa ansiedade de narração de si mesmo e de recuperação do poder

plasticitlade. A afirmação direta e o sentimento claro, a visão natural das

pela palavra que dá o tom nos dois filmes.

coisas, colocam-se como ilusões perdidas. E o movimento autocentrado

Movimento correlato, Eu te am,o inaugura a composição de uma

das personagens cria o descompasso que persiste nas reviravoltas bem cal-

nova visualidade no percurso do Cinema Novo, exercício de um olhar

culadas, e só se resolve quando, inevitável um desenlace, a comédia impri-

voltado para um mundo que se dobra sobre si mesmo. No cenário fecha-

me um tom paródico, de artifício deliberado, ao encontro final - mais cha-

do e narcísico em seus espelhamentos, a ostentação de tecnologias da

pado em Eu te amo, mais elaborado em Eu sei que vou te amar. Nos dois

imagem, de efeitos de luz e texturas, sempre remete a outras imagens. É a

filmes, o final feliz implica um salto para outro espaço, a cena ao ar livre

reposição ad nauseum de fi~ras da sedução que se sobrepõem ao fluxo de

substituindo o confinamento, promessa de abertura que se revela figura de

palavras para compor o teatro de extroversão das personagens, miragem

linguagem, citação de final feliz que é versão encabulada de um romantis-

do " eu profundo" . Visualidade, portanto, distante daquela indagação

mo de fundo que se toma por ingênuo, utopia a que cineasta e personagens

aberta, que incorpora o acidente e a surpres~, típica à fenomenologia dos

se vêem ainda apegados - não por acaso o amor é uma gosma - mas pro-

cinemas novos dos anos 60-70, empenbados~numa pedagogia da percep-

curam d~saprender. Do amor, fala-se de sua permanência, mas na tônica de

ção, no movimento que procura "surpreender o mundo em ato", como se

uma instabilidade irremediável neste mundo de mercadorias em que a crise

dizia. Saturada de um inventário cuja potência afigurou-se, com a moder-

do sujeito e o ar saturado de imagens e modelos embaralham os papéis,

nização, de efeitos ilusórios, a busca do valor-documento na imagem des-

potencializam o lado trágico do desejo.

loca-se para o reconhecimento da imagem-mercadoria, para o domínio

Instala-se no percurso de J abor a dramatização das duplicidades, di-

técnico de um aparato que se assume como peça de um mundo de artifí-

gamos imperativas, esse "quem sou eu?" irresolúvel já formulado obsessi-

cios, teatro irremediável. Resta, portanto, o mergulho no jogo de luz e

vamente por Jorginho, personagem da mídia em O bandido da Íu{ vermelha

[1968], de Sganzerla. Interrogação que, também lá, comprometia, no paraPara a noção do travesti como o que "viaja na identidade", ver a crônica de

lelismo entre personagens e contexto social, o conjunto da nação. Saímos

Jabor "O travesti não quer ser mulher" , no Iivro Os canibais estão na sala de jantar

do processo da família e mergulhamos nesse processo que combina sufoco

(São Paulo: Siciliano, 1993).

afetivo e fluência sexual na grande cidade, exasperação do " espírito de per-

10.

35 1

li

1

formance,, . Nessa tônica, as personagens de Jabor permi tem-se os encan-

pelas simulações de tragédia do cronista que, de resto, frustraram -s •.

tos de quem tem cacife para o consumo em níveis internacionais, figuras

Aqui, o dado visível do contemporâneo é a atomização, o senso de isola-

modernas no cenário e na roupa, envoltas num design de revista e enreda-

mento, a ruptura de um pacto suposto com a comunidade. No drama ele

das na literatice. De Tudo bem a Eu sei que vou te amar, a lapidar sucessão

Paulo e Maria ou no do jovem casal, o povo é o O utro distante, no qual

das gerações encarnada nos protagonistas faz desaparecer aquele olhar

está a vida concreta, a dor palpável, o problema relevante; mas essa esfe-

exterior que emoldurava a crise dos pais e observava seu melodrama. O

ra não faz senão servir de contraponto ilustrativo aos impasses discutidos

conflito agora envolve questões mais afetas ao pólo moderno do país, tem

pelos amantes entre quatro paredes. No pouco que se fala desse Outro, é

mais a ver com cineasta e espectadores, gerando um espaço de identifica-

clara sua distância de um ideal de sujeito histórico presente no início dos

ção não mais tão ameno quanto aquele em que o ponto comum era o riso

anos 60 e já questionado desde Terra em transe.

dirigido às figuras cafonas e arcaicas. Mais jovens, os protagonistas, embo-

É nítido, nesse particular, o movimento gradual de desqualificação.

'I

ra mantenham aquela compulsão a confessar, a fazer o mea culpa já obser-

Se nas alegorias de Glauber a distância em relação ao ideal não impede

1

vado nos pais em declínio, colocam-se mais à vontade na auto-ironia. Con-

que o povo permaneça sempre como força a convocar, dado de projeção

seguem uma vivência, digamos, mais carnavalesca de suas angústias,

futura, em J abor o desencanto com o oprimido é irremediável, reforçan-

assumindo as oscilações de humor, os fracassos, no tom mais filosófico do

do uma visão à la Nelson Rodrigues, com ênfase na experiência bruta,

clown. No seu teatro ainda há lugar para a histeria, mas essa é vivida em

nas desgraças individuais em série. A presença do povo em Eu te amo se

melhor estilo, mais elegante no domínio dos conceitos capazes de falar do

dá nessa franja da ação passional e do crime insólito,jàit divers, drama de

impasse, menos convicta no entanto em sua possibilidade de superar o cli-

sangue em que o marido corta a cabeça da mulher e sai com ela na mão

chê. Desde cedo, essas novas personagens respiraram a psicanálise, e a ciência já deslocou a religião como baliza da vida moral. O desconforto,

pela rua desesperado, em franco contraste com a civilidade anêmica do Paulo abandonado e humilhado.

que inclui nos jovens do último filme a nostalgia das interdições do pai,

Nesse afastamento gradativo, Glauber encarna o espaço da nostalgia

ganha outras formas de expressão. Liga-se agora à constelação contempo-

de Jahor, emblema das utopias "desaprendidas" , dos sonhos frustrados de

rânea que, a par do que se possa afirmar como diapnóstico da vida social,

união entre intelectual e povo, das esperanças e projetos que o Brasil abor-

traz um saber atual sobre sujeitos e afetos que J abof não demora a incorpo-

tou. O autor de O beijo no asfalto define o espaço de um reconhecimento:

rar na composição das cenas da vida privada. Essas, enquanto exercício

o da conjuntura presente como confirmação do olhar do moralista que

dramático, preparam sua própria expansão, concretizada no momento em

nivela humanidade e vício, do descrédito radical no coletivo de quem

que Jabor se torna jornalista e passa a focalizar as cenas da vida pública, o

observou o "pequeno homem" de outro ângulo, não vendo nele o sujeito

teatro político. O gosto pela psicanálise extrapola a valfdade dos paradig-

histórico suposto pelas esquerdas, mas as contradições de caráter, a pleto-

mas para outros terrenos, e o que se dramatizou, em primeiro lugar, como

ra de experiências malogradas. A alegoria do Mesmo - o Id nacional, o

paradigma da vida amorosa - o desejo do fracasso - será erigido depois em

desejo de fracasso - é uma totalização que muito deve a esse pessimismo

traço nacional e, mais do que isso, em sua força estruturante, modeladora

sistemático, à visão grotesca do popular. Visão que, em Jabor, é dilacera-

da experiência em escala histórica.

da, pois o cineasta sofre de uma compensação iluminista e sabe o quanto,

1

Na alegoria do Mesmo, o substrato subterrâneo de unidade nacional

em função de sua miopia política, Nelson Rodrigues viu grandeza onde

não requer o sentimento de comunidade, em outros momentos exigido

menos devia: no cultivo conservador da tradição nacional, nas figuras e

352

valores mais notórios do autoritarismo do "homem cordial" (no sentido

cura, a chance oferecida pela história de superar as marés impulsi v:,s, o

de Sérgio Buarque) e, em especial, no chefe do terrorismo de Estado de

domínio do id, a barbárie. A queda de Collor e a prisão de

1970. Ou seja, naquilo que Jabor considera, em suas crônicas, como a ar-

si sós, não assumiram a dimensão catártica desejada. Pelo menos, rüio s;io

quifigura do Mesmo, personagem e regime de lugar garantido na galeria

visíveis seus efeitos terapêuticos mais fundos. Novas polaridades, proces-

do erro permanente, raiz maior da crise atual (afinal, não foram os "idio-

sos decisórios como eleições, algo que mobilize a nação será a pedra de

tas" de 1968 que criaram a dívida externa, o modelo de concentração de

toque capaz de atestar ou não o novo patamar civilizatório. Antes mesmo

renda, a deterioração da vida social e política). Entre os ideais das passeatas dos anos 60 e Nelson Rodrigues, o ci-

de consultas populares, a polêmica em torno do ministro Fernando Hen-

neasta-cronista procura conduzir a autocrítica referida aos dogmatismos

a nova oposição para caracterizar a crise: estamos ou não preparados para

da juventude sem comprometê-la com a visão conservadora da queda das

sair da "inércia primeva" em direção ao reino da Razão?

PC

Farias, pm

rique traz o clima para o teste. E a presença do equilibrista permite cunhar

utopias como um bem absoluto. Isso, no Brasil de Collor e Itamar, signifi-

A té aqui, o strip-tease moral dos donos do poder, espelho da nação,

ca recusar o Mesmo em sua última versão: o conluio de oligarquia e voga

era o ponto de decolagem da terapia. Supostos parteiros da superação do

neoliberal que ganhou plena expressão na razão cínica e nas jovens ambi-

Mesmo, tais figuras exigiam um olhar clínico que as tornasse personagens

ções de 1990. No entanto, como fazê- lo, se o Mesmo parece força motriz

interessantes, tarefa exercida pela psicanálise do atraso, que exagerou em

inelutável, presente no arcaico e no ultramoderno? Como fazê-lo na

meras caras de pau os traços de uma tragédia iluminadora. O desdobra-

ausência de um "sujeito histórico transformador" , nessa constelação anti-

mento efetivo da crise reafirmou a continuidade dos percursos medianos,

humanista de crise dos paradigmas? Uma vez postulado um princípio de

dos acertos de cúpula, das renúncias oportunistas, da morosidade dos

regressão que se põe acima das classes e das determinações sociais, mon-

inquéritos. A idéia totalizante de um organismo nacional em crise, pre-

tada a armadilha entre a insistência dos arcaísmos e uma precoce "doença

missa da psicanálise proposta, requeria um mecanismo endógeno de su-

da modernidade", como sair do círculo, completar a terapia?

peração do Mesmo, um espírito de comunidade e um herói disposto ao

No circo das'atrações nacionais, o cronista vislumbra no alto a figura da salvação: entra em cena o equilibrista.

t

OE COMO ATRELAR O MESMO À RAZÃO (OU O CONTRÁRIO)

sacrifício, mas a hipótese trágica projetou grandeza e a psicologia viu loucura onde só havia mesquinhez e cálculo ( este muito bem percebido por Jabor no empresário Pedro Collor, no momento das denúncias). Valeu de novo o princípio de coerência da tragicomédia, das personagens grotescas, tal como nos filmes, pequenas demais para sustentar dialéticas trans-

A noção de Id nacional explicita-se no título da crônica "Monstros do Id

formadoras. Era preciso criar um novo cenário para a hipótese mítica

nacional amam o caos" (Folha de S.Paulo, 15 de junho de 1993), cujo cená-

desse momento especial de ruptura, e o empenho de Jabor na defesa de

rio é o Congresso, assumido como grande circo onde, solitário, o ministro

Fernando Henrique vem oferecê-lo. Sua coluna define uma perspectiva

da Fazenda tenta equilibrar-se na corda bamba enquanto todos os porta-

de intervenção mais nítida e, por isso mesmo, mais vulnerável. Afinal, ao

vozes do Mesmo - o elenco é enorme e admirável - torcem pela sua

contrário da condição indefinida das figuras populares da salvação no

queda. A condição desse artista solitário não é a do isolamento gerado pela

alegorismo que Glauber sustentou até A idade da terra [1980), o de Jabor

delinqüência radical (Collor): contra rudo e contra todos, contra o etlws

tem de ajustar-se a uma conjuntura política específica, à defesa de um

nacional ele encarna a Razão. No vácuo da crise, surge a perspectiva da

candidato à Presidência. Nessa tarefa, o cronista assume com mais fre-

'

354

355

qüência o tom argumentativo do comentarista político, buscando menos

da criação artística (caso elo tropicalismo). Evoca-se a metáfora cligtsriv:1

as encenações de grande efeito que marcaram seu sucesso no período

da antropofagia oswaldiana, com uma diferença notável: não se Lrat a niais

Collor. Mas a postura de ficcionista persiste e, com ela, o gosto pela ale-

de falar da contribuição milionária de todos os erros, das vantagens estra tégicas do atraso, ironias da malandragem que deslocam porém preservam

goria de fundo pedagógico. O que repõe, em outra chave, a busca pela o abandono da matriz psicológica. Se a tradição da qual vieram Collor e

o primado do nacional. Na fórmula de Jabor, trata-se, ao contrário, de superar esse primado para ter a chance de um primeiro acerto.

Farias confirmou sua distância diante da hipótese do sacrifício herói-

Colocando os avanços em termos das sobras positivas do processo

co, era recomendável a mudança de gênero: J abor põe em cena o suspen-

comandado de fora, não desejado - "o que fizemos com o que fizeram ,, . . conosco -, o cronista retoma, no mesmo movimento, o tema da desmon-

tonalidade certa de representação do teatro político, o que será feito sem PC

se, com possível final feliz, na alegoria do circo. Faz da Razão a nova per-

sonagem, e ressalta sua proeza onde ela não era esperada. O Mesmo, enquanto disposição inconsciente ao fracasso, era um

brasileira, o mito da contracultura dos anos 70, talvez o mito de um socia-

princípio explicativo, mecanismo totalizante que não oferecia saída. Daí

lismo inventado no Brasil. A desmontagem sugere a faxina teórica gera-

porque exige a passagem para outro princípio abstrato - a Razão univer-

dora de novas disponibilidades, condição para a modernização conse-

sal que permite conceber novo dinamismo no interior da psicologia.

qüente, domesticação do Id nacional. Saem de pauta a questão colonial e

Enquanto oposição ao Mesmo, a Razão, ao contrário do caráter endógeno

seus avatares modernos, ponto de articulação dos diferentes nacionalis-

do "princípio do erro permanente", afirma sua alteridade como fator exó-

mos, o que implica descartar a dimensão predatória e toda a violência

geno que os novos tempos vêm impor. Exige o abandono da idéia organi-

imperial contida na polaridade civilização/barbárie. O dilema contempo-

cista do nacional como núcleo irredutível infenso à temporalidade. Requer

râneo se faria, sim, da reedição de tal polaridade, reedição em que a luci-

nova articulação entre interno e externo, apta a descartar a idéia, presente

dez mandaria saltar para o lado oposto ao da tradição que liga Oswald de

em Tudo bem e em outros filmes do Cinema Novo, de que a modernização

Andrade, G lauber Rocha e outros que observaram as abstrações do ilumi-

reflexa é mera mudança de fachada, reforma cosmética que refaz a crosta

nismo como ideologia racionalizadora da dominação. Pondo de lado o

de um Id imutável. Para acolher a hipótese da Rajão salvadora, é preciso

compromisso dessa polaridade com os processos que estão na raiz do que

observar que a modernização, embora contraditóf a, envolve uma produ-

ele chama de inércia primeva, Jabor canaliza a abordagem da formação

ção conseqüente de forças novas na sociedade. Admitir que, em contrapo-

colonial brasileira para a questão do "iberismo", 11 essa forma do Mesmo

sição ao desejo do fracasso e às manobras do Mesmo, mudanças estruturais vão se processando no país por força dos influxos externos. Significa,

que Sérgio Buarque equacionou e que a ciência social atrelou a um estilo ' populista de liderança, a todas as formas de clientelismo que ora apupam

indo além, montar a dialética da "invasão que vira invenção", tornando

o equilibrista. O que não impede, no entanto, que essas formas sejam con-

sem efeito a idéia de história fixa, abrindo espaço para uma nova persona-

vocadas para a aliança pela Razão, certa de seu poder condutor, num pro-

gem, ou um novo princípio regulador, fora do domínio da "inércia prime-

cesso que reitera o mesmo princípio de solução pelo alto bem enraizado na

va" ou da hegemonia da razão cínica que proclama o fim da história. O que

tradição política brasileira. Seria a vez, na atualização do princípio, das

antes só se notava como episódios da reposição do Mesmo passa, a partir

operações do intelecto em oposição à via carismática mais afeta ao Id

tagem das ilusões históricas: entre elas, o mito de uma peculiar Revolução

da nova premissa, a articular-se com o elogio ao avanço econômico expresso na formação da nova classe operária do ABC, com o elogio a lances

11.

Ver "Brasil vice à beira do destino pastelão" . Fo!ILa de S.Pardo, 29 mar. 1994.

15'/

' \

nacional. Minimizados os outros fatores da vida social e do jogo do poder,

·d o erro permanente, que podem "melar" os projeto:; da esqu erda moder-

a oposição entre figuras referidas às esferas da psique marca o eixo de rup-

na de Genoíno e Mercadante e, no limi te, sabo1ar a1é um l .ula prcsidc1Hr,11/0, 15 mar. •99•1·

como acontece com essa tradição, o cronista apresenta, numa primeira

fase, aquele movimento misto de dissabor e orgulho em seu senso de iden-

certa forma de integração na nova ordem intern acional. fü:11nido:; 11:1 v il

tificação com o nacional como comunidade imaginada. Assumido que

comum do irracionalismo, merecem desqualificação a priori, n~o pOl'q111•

uma certa mentalidade permeia o social, mais forte do que outras determi-

expressão de interesses concretos, mas porque visceral e nacio nalm c11tc

nações, sua psicologia produz um dinamismo que, apesar do militante mea

dogmáticos, aquém de um patamar de maturidade exigido pelo mund o

culpa dirigido ao próprio cronista e seus leitores, desliza para o organicis-

técnico da nova fase do capitalismo. Este se impõe como totalidade, diga-

mo, que, em última análise, apresenta um toque de fatalismo conservador,

mos como Natureza; exige adaptação, um dobrar-se ao princípio de reali-

a par do que ilumina em aspectos importantes do processo, como observei

dade que a Razão, reduzida à condição de Pai tecno-instrumental, ensina.

1

desde a leitura dos filmes. O "nós brasileiros" do cronista, o desejo de fra-

Na passagem das alegorias de desqualificação do Pai arcaico para

casso, o erro permanente e a culpa universal repõem aquele tipo de diag-

essa de elogio do Pai moderno, a psicologia social de J abor, sem dúvida,

nóstico em que, exceto pelos agentes notórios da vida pública, as instân-

desliza depressa demais no jogo de difícil encaixe entre as totalidades - o

cias do poder menos óbvias, quase sempre as de aparência mais civilizada,

Mesmo, o Id nacional, a Razão. Há problemas de articulação entre a psica-

permanecem à vontade, administrando à sombra seus interesses, em meio

nálise do atraso, o mito iluminista e as angústias do Eu impotente na cena

às desqualificações do político, do pobre ou do brasileiro "em geral".

contemporânea. Não surpreende, no entanto, o fato de tais questões não

Com explícito alinhamento à esquerda, pela biografia, pelo cinema e

prejudicarem o impacto da crônica, pois seu interesse no debate político

pelo empenho da crônica atual, Jabor vive o drama desse toque fatalista,

depende mais de cada efeito imediato, sua aposta maior. Enquanto série

dessa atenção especial que sempre deu ao fundo do poço, temeroso da

discreta, os textos de circunstância são como a novela: não lhes é decisiva a

irigenuidade. Seu ceticismo quanto à viabilidade de uma saída em que as

coerência; os bons capítulos, compensando os maus, garantem o vínculo

classes dominadas teriam papel decisivo como foco da mudança - estariam

com o leitor. Existe até um rendimento dramático nessa oscilação de erros

por demais contaminadas pela mentalidade-obstáculo - gerou, em 1992, o

e acertos, dadas as dificuldades do jogo assumido pelo cronista diante do

equacionamento da crise como pedagogia, lição subversiva no plano das mentalidades, esperança de maturação do

seznacional na vertigem supos-

processo que, embora lhe creditemos ordem e sentido, apresenta-se no diaa-dia c9mo indeterminação e enigma. O essencial é que, no movimento do

tamente criada pela radicalização do malog1'~. Collor era a mescla perfeita

cineasta ao cronista, pode ver-se condensado o esgotamento de uma con-

de impulsos arcaicos e razão cínica moderna, e permitiria um duplo exor-

cepção, em verdade de raízes antigas, da identidade nacional: essa passa de

cismo. Mas em sua queda não desempen hou o papel com a pompa e o sen-

princípio, explicativo com potência infinita de reposição (a psique como

timento trágico requeridos. Na voragem do Mesmo e à beira do abismo, o

fundamento maior da história) à condição de contingência superável

mito iluminista coloca-se como último recurso de superação, entendida a

(mesmo que em seu lugar coloquem-se outros princípios abstratos).

Razão como habilidade no jogo de cúpula e nas soluções técnicas, visão da

A forma particular com que se manifesta em J abor essa crise do na-

conjuntura internacional que promete fazer do neoliberalismo um instru-

cional define a persistência de um teatro das mentalidades que não des-

mento da social-democracia, sem ilusões de compreensão ou participação

carta o solo mítico para a emergência ex abrupto de personagens-símbolo

popular dentro da modernidade por demais opaca. Situação complexa que

de novos princípios, dado de permanência. Mas ele tem assumido o risco

não impede que a psicologia social coloque a defesa de uma opção política

de fazer em público, com atropelos e recaídas, a faxina ideológica que sua

e sua estratégia em termos da oposição setecentista entre a Razão universal

crônica proclama necessária, faxina que entre outras tarefas significa exor-

e os particularismos - religiosos, provincianos - dos que se opõem a uma

cizar o nacionalismo cultural herdado da experiência cinemanovista e, no

mesmo salto, evitar a queda no niilismo como faceta da " doença da moder-

Sobre o autor

nidade". Dado o gênero em que se aninham os textos, há forte demanda pela manutenção do tônus dramático, o que ele com talento e imaginação tem alcançado, sem dúvida com o preço de reafirmar um esquematismo totalizador tão. mais grave quando o proclama indesejável. A constante mítico-alegórica na composição dos cenários políticos favorece um teatro de oposições abissais, uma autêntica psicomaquia que, na tônica da alegoria medieval, envolve um choque de princípios em que o tudo ou nada soa como um juízo final. Nesses termos, seu movimento entre o apocalipse dos moralistas - Nelson Rodrigues, Glauber Rocha, as versões antitéticas da identidade nacional - e o dos "pós-modernos" - o mundo da não-identidade, o fim da história, a vitória da barbárie - resolve-se por enquanto neste novo limiar de catástrofe: a Razão acima definida ou o caos.

nasceu em 9 de junho de 1947, em Curitiba, Paraná. Formou-se em Engenharia Mecânica na Escola Politécnica [USP] e em Comunicações Sociais (Habilitação Cinema) na Escola de Comunicações e Artes [usP], no ano de 1970. Ingressou no mestrado em Teoria Literária [FFLCH-USP], orientado pelo professor Paulo Emílio Salles Gomes, apresentando, em 1975, a dissertação  procura da essência do cinema: o caminho da avant-garde e as iniciações brasileiras. Em 1980, recebeu o título de doutor com a tese Narração contraditória: uma análise do estilo de Glauber Rocha, 1962-64, orientada por Antonio Candido de Mello e Souza, publicado sob o título Sertão Mar: Glauber R ocha e a estética da fome . Fora do Brasil, em 1982, tornou-se PhD em Cinema Studies pela Graduate School of Arts and Science, da New York University, onde realizou também seu pós-doutorado, finalizado em 1986. Publicou em 1993 um volume que reúne a tese escrita para a NYU e a tese de livre-docência: Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. D esde 1989 desenvolve seus trabalhos com o apoio do CNPq. Foi professor-visitante da New York University, no D epartment of Cinema Studies (1995), da University of Iowa, no Communication Studies Department (1998), da Université Paris m - Sorbonne Nouvelle, na U FR Cinéma et Audiovisuel (1999). Desde 1971, é professor no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP. Sua intensa atuação na universidade prolonga-se nas gerações de alunos de mestrado e doutorado que orientou na área de cinema e na participação em núcleos de pesquisa (como o Centro de Estudos da Metrópole). Xavier é membro do Conselho Consultivo da Cinemateca Brasileira desde 1977, e faz parte do conselho editorial das revistas acadêm icas Novos &tudos Cebrap e Literatura e Sociedade. D esde 200 1, coordena a I SMAIL XAVIER

coleção "Cinema, Teatro e Modernidade" na Cosac & Naify. É autor de dezenas de artigos em revistas acadêmicas e de dez livros sobre teoria do cinema e cinema brasileiro. LJV ROS

O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (2ª edição revisada e ampliada, 1984). Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978. A experiência do cinema (org.). Rio de Janeiro: Graal, 1983 (2ª edição com posfácio,

1991). Sertão Mar: Glauber Roclza e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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