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Portuguese Pages 483 [486] Year 2023
Universidade Federal Fluminense REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega VICE-REITOR
Fabio Barboza Passos
Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL
Renato Franco [Diretor 2018-2022] Ana Paula Mendes de Miranda Celso José da Costa Gladys Viviana Gelado Johannes Kretschmer Leonardo Marques Luciano Dias Losekann Luiz Mors Cabral Marco Antônio Roxo da Silva Marco Moriconi Marco Otávio Bezerra Ronaldo Gismondi Silvia Patuzzi Vágner Camilo Alves
Colaboração de Márcia Almada nos exames materiais e visuais
Copyright © 2023 by Rodrigo Bentes Monteiro É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Editor responsável: Luciano Dias Losekann Coordenador de produção: Ricardo Borges Supervisão gráfica: Marcio Oliveira Normalização: Camilla Almeida Edição de texto e revisão: Icléia Freixinho Projeto gráfico e diagramação: Marcio Oliveira
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP M775 Monteiro, Rodrigo Bentes. O códice endiabrado : da sublevação nas Minas em 1720 / Rodrigo Bentes Monteiro. – Niterói : Eduff , 2023. - 483 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5831-164-5 BISAC HIS037050 HISTORY / Modern / 18th Century 1. História Moderna. 2. Hermenêutica. 3. Minas Gerais – Historiografia. I. Título. CDD 981.032 Ficha catalográfica elaborada por Camilla Castro de Almeida CRB7-0041/21
Direitos desta edição reservados à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - [email protected] Impresso no Brasil, 2023. Foi feito o depósito legal.
Para Laura de Mello e Souza, mestra da história, amiga da vida.
Não há passado nem há futuro. Tudo que abarco se faz presente.
Cecília Meireles
Sumário
Abreviaturas ........................................................................................................... 11 Lista de figuras ....................................................................................................... 13 Prefácio ................................................................................................................ 17 Introdução ............................................................................................................. 23 Capítulo 1. Matéria infernal ....................................................................................... 31 De volta? ................................................................................................................................. 34 Multifário ................................................................................................................................. 42 Autor e[m] processo ................................................................................................................. 59 Materialidade social ................................................................................................................. 70 Do gênero particular ................................................................................................................. 84
Capítulo 2. Memória fidalga ...................................................................................... 97 Penachos escritos .................................................................................................................. 100 Incenso fatal .......................................................................................................................... 113 Os filhos de Marte .................................................................................................................. 129 Arroios de livros ..................................................................................................................... 149
Capítulo 3. Textura espelhada ................................................................................. 159 Leitura distinta ....................................................................................................................... 164 Muitas razões ........................................................................................................................ 191
A vertigem dos nomes ............................................................................................................ 213 Os nomes nas notas .............................................................................................................. 231
Capítulo 4. Discursos vários ................................................................................... 245 Notícias em papéis ................................................................................................................. 255 O papel das cartas ................................................................................................................. 260 Instruções e relatos ................................................................................................................ 282 Inscrições acadêmicas ........................................................................................................... 292 Profecias e demônios ............................................................................................................. 299 Biblioteca desaparecida .......................................................................................................... 316
Capítulo 5. A arte oculta ........................................................................................ 325 Histórias, e política ................................................................................................................. 327 O [in]verossímil ...................................................................................................................... 342 Alquiminas ............................................................................................................................ 363 Alívio ao pecado ..................................................................................................................... 382
Conclusão ........................................................................................................... 407 Cronologia ........................................................................................................... 415 Fontes e bibliografia .............................................................................................. 423 Agradecimentos ................................................................................................... 479 Sobre o autor........................................................................................................ 483
Abreviaturas de arquivos, bibliotecas e instituições Arquivo do Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro - API Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa - AHU Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa - ANTT Arquivo Nacional, Rio de Janeiro - ANB Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte - APM Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa - BACL Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa - BPNA Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa - BNP Biblioteca Pública de Évora - BPE Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasília - CNPq Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro - BNB Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Faperj Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Lisboa - FCFA Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal - FCT Instituto de Estudos Brasileiros - Universidade de São Paulo - IEB-USP Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília - IPHAN
Lista de figuras Capa - Gilles Rousselet (1610-1686), Hercule tuant l’hydre de Lerne (1669), gravura a buril a partir do quadro de Guido Reni. Exemplar e fotografia do autor. Figura 1 - Quadro sinótico com genealogia de membros da família Sousa Coutinho. Arte de Lygia Moura. Figura 2 - Marcas d’água nos dois papéis Almasso de origem genovesa utilizados no APM, Avulsos da Capitania de Minas Gerais-017 (AVC-17). Desenho e fotografia do autor. Figuras 3 e 4 - APM, AVC-17. Dorso do DISCVRSO HISTORICO conservado. Fotografias de Flávia Andrade. Figuras 5, 6 e 7 - APM, AVC-17, f. 1r (primeira página), 146v-147r (exemplos de notas marginais) e 172v-173r (início da segunda parte no canto inferior direito). Cópias digitais de páginas do Discurso historico conservado. Figura 8 - APM, AVC-17, f. 75v. Detalhe da tinta negra aplicada sobre área raspada da tinta original. Fotografia em microscópio digital USB (60 x) apud Márcia Almada, Bentes Monteiro, O Discurso e a Noticia: manuscritos sobre a revolta de 1720 atribuídos a Pedro Miguel de Almeida, 3º conde de Assumar, Tempo, Niterói, v. 25, n. 1, jan./abr., 2019, p. 18. Figura 9 - APM, AVC-17, f. 184v. Detalhe da massa com cera contendo branco de chumbo posta para preencher a rasura. Fotografia de Almada em microscópio digital USB (40 x). Figura 10 - Quadro sinótico com genealogia de membros da família Almeida Portugal. Arte de Lygia Moura. Figura 11 - BNP, Iconografia, E. 1713 V, Manuel Gonçalves Ribeiro (1675-1725), Excellentissimo domino d. Joanni de Almeyda, comiti de Afsumar [...]. Figura 12 - FCFA, Domenico Pellegrini, Retrato da família do 3º marquês de Alorna (1805) apud Giuseppe Pavanello, Domenico Pellegrini 1759-1840: un pittore veneto nelle capitali d’Europa. Verona: Scripta, 2013, p. 78. Figura 13 - Gráfico com autores no texto do Discurso historico, e político. Arte de Ana Luisa Videira. Figura 14 - Gráfico com personagens e alegorias no texto do Discurso historico, e político. Arte de Ana Luisa Videira. Figura 15 - Gráfico com autores e obras nas notas do Discurso historico, e político. Arte de Ana Luisa Videira.
Em atenção à historicidade dos textos, procurou-se respeitar neste livro a ortografia original – incluindo pontuação e uso de maiúsculas e minúsculas – de títulos e trechos citados, de manuscritos ou edições impressas, antigas ou recentes. Devido às variações ortográficas nos documentos e ao grande número de nomes, lugares e referências no livro, tornou-se impraticável a feitura de índices remissivos, pelo que se pede a compreensão do leitor.
Prefácio
A notícia de que Rodrigo Bentes Monteiro estava investigando o famoso Discurso historico, e político sobre a soblevação, que nas Minas houve no anno de 1720 – O códice endiabrado, como ele o denominou na capa do presente livro, não me surpreendeu. Afinal, há anos ele estuda documentos antigos, como a coleção de impressos de Diogo Barbosa Machado, na Biblioteca Nacional do Brasil, além de ser profundo conhecedor de acervos ibéricos similares. Assim, acolhi a ideia com entusiasmo tendo o privilégio de acompanhar algumas etapas do desenvolvimento da pesquisa, ora mais próxima – ao longo de um pós-doutorado sênior que Rodrigo realizou na Unicamp entre 2016 e 2017 – ora mais distante como colega e leitora de sua intensa produção acadêmica. O que me surpreendeu, contudo, foram as numerosas descobertas que se seguiram ao longo de todos esses anos, fruto do espírito investigativo incansável de Rodrigo, aliado a uma disciplina de trabalho impressionante. Todo esse repertório de experiências e de competências que o torna um excelente historiador se apresenta, neste livro, não apenas como suporte da análise empreendida, mas essencialmente como erudição e saberes colocados à disposição de seus leitores. De fato, a proposta a que Rodrigo Bentes se dispõe não é para iniciantes. Primeiramente porque o Discurso histórico e político – por suas edições impressas – é um documento que despertou o interesse de historiadores renomados, recebendo diferentes leituras parciais e análises, sendo, inclusive, bastante citado pela historiografia brasileira desde o início do século XX. Em segundo lugar porque se trata
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O códice endiabrado
de um texto anônimo escrito no calor dos acontecimentos, pouco tempo após a sublevação nas Minas sufocada pelo então governador da capitania, Pedro Miguel de Almeida, 3º conde de Assumar, um dos possíveis autores do documento, de acordo com a visão predominante. E, finalmente, porque a envergadura da pesquisa empreendida é resultado de anos de uma formação primorosa de historiador. São muitas as situações no livro que revelam seu olhar arguto e treinado no trato com diferentes tipos de fontes históricas. Um bom exemplo é o conhecido excesso da punição imposta a Filipe dos Santos, considerado um dos líderes da revolta contra o estabelecimento das casas de fundição nas Minas e que resultou na sua execução sumária. Este aspecto ganhou as páginas dos livros didáticos, em meados do século XX, e serviu a teses nacionalistas que consideraram o motim um “movimento de caráter nativista”. A tese foi posteriormente revisada, mas, como o leitor poderá constatar ao longo das páginas que seguem, o martírio impetrado parece ter assombrado não só os jovens estudantes da história do Brasil, mas possivelmente também a consciência do conde governador, elemento que não passou despercebido a Rodrigo no cotejamento das fontes disponíveis. Por outro lado, se a produção do manuscrito e as circunstâncias nas quais foi escrito por si colocam um problema historiográfico de relevo, as suas reproduções e circulação também possuem histórias polêmicas e estudos divergentes na historiografia, os quais foram discutidos no livro com a habilidade de um especialista na história da escrita e da leitura. Quem escreveu o Discurso historico, e político? Por que e com que sentido o produziu? Para quem foi escrito? Estas três perguntas, aparentemente simples, cuja disposição para resolvê-las mobilizou o autor deste livro durante anos de trabalho, constituem-se no eixo estruturante do presente livro. A complexidade das respostas oferecidas, entretanto, possibilita ao leitor percorrer o império português da Época Moderna de leste a oeste e abre janelas de observação inacreditavelmente amplas para o estudo da cultura escrita e do universo das letras no período. Embora a proposta do autor de investigar a história do manuscrito ecoe nitidamente ao longo do livro, procedendo a um estudo impecável de filologia e hermenêutica do texto, trata-se de um trabalho de história social, como ele mesmo afirmou. Neste sentido, os agentes históricos se apresentam com a devida centralidade e não saem do foco do historiador. A trajetória de Pedro de Almeida, ana-
Prefácio
lisada em detalhes, é o caminho que leva à análise das ações e do sentido político dos representantes das grandes casas da nobreza portuguesa de fins do Seiscentos, do Setecentos e até o século XIX. Seu pai, irmãos, filho e netos são personagens que despontam no livro, estreitamente vinculados à história do códice e, para entendê-los, Rodrigo Bentes empreende uma pesquisa que revela a formação, os escritos e os valores da nobreza lusitana. Acompanhando o destino dos membros da casa de Assumar/Alorna o leitor consegue captar o ambiente típico das cortes régias do Antigo Regime, os afagos a tais vassalos e os desagrados dos reis para com eles, a importância da distância e da aproximação em relação à coroa, os preferidos e os preteridos. Elaborada com cuidado, a narrativa segue as evidências que a pesquisa revelou passo a passo a partir de hipóteses bem construídas, criando uma expectativa no leitor que cresce a cada capítulo. Entre os múltiplos procedimentos adotados, dois me parecem ter contribuído fortemente para o ineditismo da presente interpretação do Discurso historico, e político: a análise da materialidade do documento e o estudo das centenas de notas marginais ao texto. Ambas as opções metodológicas foram desenvolvidas no documento original (o códice) – outrora tido como desaparecido no Arquivo Público Mineiro – e em um manuscrito coevo intitulado de Noticia, sob a guarda do IEB-USP. Certamente a análise do manuscrito original é algo sensacional para a história e a memória do acontecimento, mas é o trabalho empreendido pelo historiador que se debruçou sobre esses documentos que faz a diferença. Desde a sua primeira publicação, as notas foram totalmente descartadas, o que levou à impossibilidade de um exame integral do Discurso. Atento a cada passagem e citação de textos clássicos, teológicos e bíblicos, bem como às analogias de figuras históricas e mitológicas, à prosa e à poesia ibéricas e a tantas outras referências presentes nas notas e no corpo do manuscrito, Rodrigo vasculhou bibliotecas físicas e virtuais de diferentes países, a fim de compreender o universo mental do possível autor de um texto tão sofisticado. A análise do documento enquanto artefato, por sua vez, forneceu pistas incríveis e possíveis respostas para perguntas importantes sobre a posse e o uso dos manuscritos estudados. Neste sentido, tinta, marcas d’água, caligrafia, estado de conservação e rasuras foram observados cuidadosamente. O cotejamento meticuloso
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dos dois documentos (o códice original e a notícia abreviada) é um dos pontos altos do livro e levantou novas hipóteses e interpretações plausíveis. Certamente não entrarei em detalhes sobre as respostas obtidas, as colaborações e parcerias que Rodrigo buscou ou os obstáculos que ultrapassou para chegar a elas, pois tudo isso faz parte do enigma e da história que este livro desvenda e ninguém melhor do que seu próprio autor para esclarecê-los. Como historiadora e uma das primeiras leitoras do livro, contudo, percebo que O códice endiabrado é uma obra de história que revela grande erudição e foi produzida no melhor do estilo acadêmico que as universidades brasileiras possuem, e destinada originalmente para o concurso de professor titular ao qual fez jus plenamente. Trata-se de um estudo coeso cujas partes se interligam e complementam; mas pode adquirir sentidos distintos conforme o amplo público leitor que atinge. Isto é, em busca de esclarecimentos sobre este códice, o autor enveredou por vários segmentos ou áreas do conhecimento histórico, alargando o alcance da leitura documental e, é claro, dialogando com os especialistas. São profícuas as contribuições, por exemplo, para a história da cultura escrita e da leitura na Época Moderna, conforme já apontado, para a história do Portugal moderno e das elites locais, no caso a alta nobreza, bem como da cultura intelectual jesuítica na Europa e na América portuguesa. Mas é impossível ignorar que o estudo contempla inicialmente os interessados na história das Minas e das insurreições e movimentos políticos do período colonial. O próprio acontecimento é aspecto relevante de estudo. Diretamente ligada à pesquisa destaca-se a arquivística e o percurso exemplar empreendido pelo autor na busca e localização das fontes, o qual permitiu a leitura do documento em diálogo com textos coevos, como correspondências, relatórios administrativos aos sucessores de cargos no império português, memórias, notícias e gazetas. Para os estudantes dos cursos de graduação e de pós-graduação em história, O códice endiabrado é uma aula prática de metodologia de pesquisa, uma vez que sem perder os documentos de vista, Rodrigo lança mão do auxílio indispensável de ampla bibliografia. Por outro lado, a importância e o debate sobre a narrativa histórica e a análise de discurso despontam como suportes na interpretação dos manuscritos em pauta. O escrutínio realizado dos autores e das obras citados nas notas – inclusive na forma de gráficos e tabelas – surpreende o leitor mais avisado e informa plenamente aqueles que não
Prefácio
dominam o mundo das letras clássicas. O repertório teórico de Rodrigo Bentes Monteiro é vasto, assim como os debates bibliográficos nos quais se envolve. Em vista disso, creio que eleger apenas um único segmento de destaque nesta obra seria minimizar um estudo que já nasceu grande, dada a sua afinidade com múltiplas áreas e subáreas do conhecimento. O livro que o leitor tem em mãos traz, portanto, um novo olhar sobre o Discurso historico, uma nova proposta de autoria do mesmo, bem como de seus receptores. A grande reviravolta historiográfica que ele apresenta talvez tenha origem na redescoberta do códice original. Eu estou convencida de que não se trata apenas desse aspecto. Porém, para saber se tudo isso é plausível é preciso envolver-se na aventura: boa leitura! São Paulo, fevereiro de 2022
Leila Mezan Algranti
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Introdução
Em fevereiro de 1995, ganhei um exemplar recentemente editado do Discurso histórico e político. Logo a seguir comecei a ler o estudo crítico da então orientadora e o texto documental. Para além da personalidade pública intempestiva daquele conde de Assumar, o Discurso impressionou-me pela eloquência.1 No mesmo ano, declamei passagens suas em Ouro Preto para um grupo de alunos adolescentes em meio a uma excursão colegial. Em 1997, em Paris, fui aconselhado pela coorientadora Katia de Queirós Mattoso a concluir o último capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com o Discurso histórico e político – e não prosseguir pelo século XVIII, como planejara. Era algo forte, ela dizia: “– Você começa com a aclamação de Amador Bueno e termina com o Discurso”. A sugestão foi aceita e lidar com aquele texto foi um prazer em meio à escrita de O rei no espelho. Ainda naquele ano, por indicação da orientadora publiquei o pequeno comentário de um opúsculo de autoria do 3o conde de Assumar, existente na coleção de folhetos
1 SOUZA, Laura de Mello e (org.). Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994.
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compilados por Diogo Barbosa Machado, na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro (BNB).2 O tempo passou e em 2011, em virtude de um projeto internacional sobre maquiavelismos no mundo ocidental, organizei um colóquio na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pensei então na ex-orientadora e no Discurso. Ante um imprevisto ela não pôde comparecer e assim a substituí na exposição – com uma ajuda sua no preparo – a fim de fazer um balanço historiográfico dos trabalhos recentes sobre o texto e não desfalcar a mesa. Quase por acaso fui levado de volta àquela edição. Na escrita do capítulo para o livro Maquiavel no Brasil, passei a estudar mais os trabalhos, personagens e situações históricas mencionados na publicação, entrando em contato com sua riqueza e complexidade.3 Em 2013, quando eu estava fazendo a revisão do livro citado, o colega Renato Franco lembrou-me que o códice – o livro manuscrito original – estava no Arquivo Público Mineiro (APM). E contatou a então superintendente Vilma Moreira dos Santos, que me enviou a cópia digital do manuscrito em dezembro daquele ano. Estava em Portugal e me segurei para não passar o tempo apreciando sua letra bonita e clara, esquecendo a pesquisa na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra. Naquele momento não tinha ideia do quanto ainda teria que investigar para realizar a análise. Laura de Mello e Souza incentivou-me a prosseguir, cedendo sua pasta com documentos transcritos e fotocopiados, tabelas manuscritas etc. A pasta de plástico azul me acompanha até hoje, seus papéis foram bastante consultados. O ano de 2014 foi dedicado a transcrever o texto central do manuscrito mediante a cópia digital de ótima qualidade e revisar o trabalho do então bolsista de iniciação científica Douglas Coutinho Dias, tendo como referências as edições já feitas. Depois o trabalho com as notas foi realizado, num exercício da mais difícil decifração dos muitos trechos em latim. A partir de 2016 contei com o trabalho
2 MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América 1640-1720. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 293-307 e BNB, Obras Raras (OR), Coleção Barbosa Machado (CBM), 23, 1, 7, no 8. PORTUGAL, Pedro Miguel de Almeida. Panegyrico para se recitar no dia 22 de outubro de 1736. Em que se celebravaõ os annos delrey nosso senhor. Remetido de Evora pelo conde de Assumar, censor da Academia Real. Lisboa: José Antonio da Silva, 1736, 19 p. Cf. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Comentário. Revista da Cátedra Jaime Cortesão, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 82-83, 1997. 3 MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Catilinária mineira: o discurso da revolta de 1720 em Vila Rica. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes; BAGNO, Sandra (orgs.). Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 179-221.
Introdução
de Leonardo Rosa Ramos, latinista em Roma, que traduziu para o português todos os trechos e ajudou-me a identificar mais obras em latim citadas no códice.4 Desde 2017 tenho revisto a transcrição em confronto com a cópia digital. Extratos seus foram repartidos entre alunos de disciplinas da graduação que ministrei no Instituto de História da UFF. Munidos de explicações e leituras sobre a pesquisa, eles por vezes me ajudaram a descobrir novos elementos. O divisor de águas da investigação ocorreu em janeiro de 2016, em minha primeira visita ao APM, em Belo Horizonte, com Márcia Almada. Conhecemos então o códice relativamente portátil e volumoso. Visualizei o capricho na elaboração dos fólios, da encadernação e a importância das notas – algo mais evidente no contato presencial. Embora fosse bem produzido, o aspecto do códice não condizia com o perfil de uma peça formal a ser entregue à coroa ou a um alto magistrado – naquele momento, essas ideias eram apenas suposições. Em dois dias acompanhei Márcia nos primeiros exames técnicos.5 Comparamos também a caligrafia e os tipos de papéis do manuscrito em tela aos da correspondência administrativa produzida no governo de Pedro de Almeida Portugal. Voltei ao APM algumas vezes, para conhecer outros documentos egressos da livraria da casa de Linhares também adquiridos para este arquivo, ler melhor as cartas daquele governador e ter mais contato com o códice. Acompanhei de longe a ida do AVC-17 para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2017-2018, a consecução de exames laboratoriais e sua conservação curativa aos cuidados de Patrícia Lavall, sob orientação de Márcia. Essas ações foram feitas com a anuência e o apoio do então superintendente do APM, Thiago Veloso Vitral. Em paralelo, visitas constantes à BNB potencializaram o contato com o catálogo produzido para o leilão da livraria dos condes de Linhares em Lisboa em 1895; com a importante cópia do Discurso existente naquela instituição; com os muitos folhetos existentes na coleção Barbosa Machado sobre relatos de batalhas e festas em Barcelona durante a Guerra de Sucessão da Espanha, ou acerca dos feitos na Índia do 1o marquês de Castelo Novo, depois de Alorna, multiplicados
4 Doutor em Letras Cristãs e Clássicas e professor convidado no Pontificium Institutum Altioris Latinitatis (Universidade Pontifícia Salesiana) e no Pontificio Ateneu de Santo Anselmo, ambos em Roma. 5
APM, Avulsos da Capitania de Minas Gerais (AVC)-17, 476 p.
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pela imprensa; e pela Hemeroteca Digital, acessei cópias de matérias de jornais sobre as fontes pesquisadas.6 Em 2019, uma disciplina de laboratório de ensino e pesquisa da UFF, na graduação, foi realizada integralmente na BNB em função desta pesquisa. Ainda em 2016 escrevi em parceria com David Martín Marcos um artigo sobre as atuações do embaixador português João de Almeida Portugal e seu filho na Guerra de Sucessão, com o foco nas atividades culturais. David possui estudos sobre o 2o conde de Assumar, sendo um especialista neste conflito espanhol e dinástico. E eu precisava compreender melhor a formação do futuro 3o conde de Assumar. O artigo foi significativo, mas também por um motivo não esperado. Apesar da rica vivência militar, política e cultural de Pedro de Almeida na Catalunha, eu não conseguia fazer muitas pontes entre ideias advindas desta experiência e sua participação no texto em análise. Havia algo neste que eu ainda não captava.7 Ao fim daquele ano, aproveitando a vinda de David Martín ao Brasil, realizamos um pequeno seminário na PUC Minas sobre o Discurso. Na ocasião, em Ouro Preto, hospedamo-nos na pousada que no fim do século XIX foi a primeira sede do APM, com a imprensa de Minas Gerais, sendo também a residência de José Pedro Xavier da Veiga – pude então conversar com seu descendente. Ao chegar em Minas, o Discurso manuscrito foi ali tipografado e impresso pela primeira vez.8 Nesse tempo realizava um estágio pós-doutoral sob supervisão de Leila Algranti na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de quem recebi valiosos conselhos. Em 2017 redigi um artigo com Márcia Almada, importante para sedimentar os avanços da pesquisa e fundamentar melhor as hipóteses, tecendo comparações com o manuscrito depositado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP).9 Neste instituto também pesquisei em complemento aos exames feitos por
6 BNB, Manuscritos (M), Imp. 1, 1, 39, Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895; BNB, M, 15, 2, 5, Discurso historico, e político, sobre a sublevação, q’ nas Minas Geraes hóve no Anno de 1720, no fim do qual se expendem as rasõens, q’ o ex.mo sen.r conde general teve para proceder summariamente ao Castigo (por A. L. C.). 147 p. Trabalho com a coleção de mais de 3 mil folhetos compilados por Diogo Barbosa Machado há muitos anos, na seção de livros raros desta instituição. 7 MARTÍN MARCOS, David; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Penachos de ideias: a Guerra de Sucessão da Espanha e a formação de Pedro Miguel de Almeida Portugal, 3o conde de Assumar. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 33, n. 61, p. 253-284, 2017. 8 VEIGA, José Pedro Xavier da (org.). A revolta de 1720 em Villa Rica: discurso historico-politico. Ouro Preto: Imprensa Official de Minas Geraes, 1898. Do seminário organizado por Júnia Furtado, participaram também Caio Boschi, David Martín Marcos, Heloisa Starling, Márcia Almada e Marco Antonio Silveira. 9
IEB-USP, AL-61, Noticia da sublevação, que nas minas do ouro preto houve no anno de 1720. 58 p.
Introdução
Márcia e na busca de informações sobre a coleção Lamego. Em paralelo à escrita do artigo, mediante a cópia digital cedida realizei a transcrição do manuscrito da Noticia, fazendo mais comparações com o Discurso. Naquele ano, no dia de Tiradentes havia publicado uma matéria de divulgação em jornal, propiciando comentários e insumos que passaram a vir de colegas do núcleo Companhia das Índias – UFF.10 Em 2018 realizei pesquisa em Lisboa, principalmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), no contato com a relevante correspondência de membros das casas de Assumar/Alorna e de Linhares, além de registros do Juízo da Inconfidência. Também busquei informes na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Conheci na altura o livreiro antiquário Pedro de Azevedo, cujo ofício me ajudou a verificar a dinâmica de transmissão de manuscritos entre descendentes da casa de Alorna. Nesse tempo já decidira fazer não apenas um novo estudo com a transcrição do Discurso, mas a tese de titularidade em História Moderna na UFF. A pesquisa em Portugal foi complementada pela diligência de Roberta Stumpf e Fabricio Lamothe Vargas. Este é um trabalho de história social, que conjuga um exercício de contextualização de ideias a procedimentos da hermenêutica, da cultura escrita e da leitura, concebendo o livro como um artefato. A busca do esclarecimento das circunstâncias e do processo de produção deste manuscrito raro e distinto é associada a exames de ordem material e visual, com atenção aos suportes de papel, tinta, encadernação etc. Por outro lado, a pesquisa sobre ideias diversas ali apropriadas, linguagens escolhidas e formas textuais elucida as motivações inerentes à feitura do códice, remetendo às histórias de seus principais agentes e receptores. Ademais, investigo a trajetória deste objeto escrito entre acervos particulares e públicos, até o momento em que suas edições e metamorfoses em impressos amplificam o leque de leitores empíricos, com o texto ou extratos seus adquirindo autonomia em relação aos referenciais de origem – ainda mais se o manuscrito seminal é anônimo. Fazemos parte dessas leituras que incidem sobre o volume produzido há mais de 300 anos. Mas as apreensões parciais não constituem a mesma coisa que a busca do seu sentido, relacionado às histórias de seus autores/ 10 ALMADA, Márcia; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Discurso e a Noticia: manuscritos sobre a revolta de 1720 atribuídos a Pedro Miguel de Almeida, 3o conde de Assumar. Tempo, Niterói, v. 25, n. 1, p. 1-25, jan./abr. 2019; e MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O códice da revolta. Estado de Minas, Belo Horizonte, 21 abr. 2017, p. 2-3.
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produtores e receptor(es). Decorre daí a necessidade de um rigor filológico no estabelecimento e na análise do texto altamente estético, em atenção às características do manuscrito matricial. Foi preciso também perscrutar a história daquele livro, com atenção aos âmbitos de sua produção e recepção. Um empreendimento com aporte interdisciplinar, no qual as fronteiras epistemológicas se desfazem. Beneficiário de leituras parciais feitas sobre o texto, das novas tecnologias e dos insumos bibliográficos de vária ordem, este trabalho é também contemporâneo, embora consciente do anacronismo intrínseco enfrentado. Por isso suas balizas cronológicas são largas. A consciência deste paradoxo evita a ingenuidade de crer ser possível captar com pureza a historicidade das letras de outrora, conhecendo-se os tratados de retórica e as preceptivas poéticas vigentes; também aconselha o respeito a leituras textuais já realizadas, que podem ser historicizadas, discutidas e até apropriadas. Sou tributário dos estudos antecedentes no lidar com o Discurso, sendo grato a José Pedro Xavier da Veiga e Laura de Mello e Souza. Sem seus valorosos trabalhos, talvez este texto não chegasse a mim, tampouco os inúmeros comentários sucessivos a essas publicações editadas. Entretanto, viso produzir aqui não mais uma leitura, mas uma interpretação do códice, considerando os aspectos acima indicados. A análise dialoga com suposições e hipóteses formuladas ao longo do tempo, distinguindo-se de generalizações e enquadramentos por vezes apressados. Nem todas as perguntas acerca das circunstâncias e dos motivos de produção do manuscrito são respondidas com conclusões cabais, mas sim com hipóteses fundamentadas. Prefiro este caminho do provável e do possível a tentar reconstituir lacunas e imaginar situações sem base empírica sustentável. Ainda assim, pretendo compreender melhor o objeto elegido, pelo seguinte plano. No Capítulo 1 situo o problema histórico pertinente ao AVC-17 por vários ângulos, como as diferenças entre as publicações impressas e o manuscrito do APM, informes sobre sua existência no século XIX advindos da cópia existente na BNB e dos catálogos de livros, e a comparação elucidativa com o exemplar do IEB-USP. Procuro lidar com a sociologia do livro na feitura de um balanço historiográfico, tentando esclarecer alguns pontos polêmicos acerca da origem do códice seminal; estudar as materialidades daqueles três manuscritos hoje encadernados, depositados em três instituições brasileiras; e situar o debate sobre história e formas textuais.
Introdução
A trajetória de membros da casa de Assumar e Alorna desde o início do século XVIII até o segundo decênio do século XIX em relação às suas produções escrita e artística – parte de um ethos nobiliárquico igualmente relacionado à guerra – é o tema do Capítulo 2. A rixa deste grupo aristocrático tradicional com a nobreza emergente e ilustrada dos Sousas Coutinho adquire relevo histórico, tendo a monarquia portuguesa como árbitro e poder central. Em paralelo, vislumbram-se indícios da passagem do códice em tela e outras obras da livraria de uma casa nobre para outra, em meio ao contexto da corte no Brasil e das guerras napoleônicas. Na atualização relativa de sua linguagem, o texto do Discurso historico, e político é descrito em dois longos itens, na forma como eu o capto. O exercício de leitura permite iniciar a análise do manuscrito, mediante listas de autores, obras, alegorias e personagens, no texto central e nas notas, priorizados e comentados conforme incidências e usos. No Capítulo 3 procuro lidar com o texto do AVC-17 como uma biblioteca sígnica, um mundo possível relacionado a outros e outros. Nesse empenho de decodificação, valho-me dos trabalhos de terceiros para o estudo de obras pretéritas. Trata-se de conhecer minimamente autoridades e escritos recorrentes, para ver como foram apropriados no códice – uma pista para captar homologias entre textos e eventos. O afã comparativo entre o Discurso e formas textuais correlatas a ambientes mais ou menos próximos é o cerne do Capítulo 4, considerando também os aspectos paratextuais já evidenciados. Passo assim do trabalho com elementos isolados à mensagem do discurso escrito como um todo, guardando especificidades em relação ao “real”, a seus supostos autores e leitores. Na busca do sentido do texto, procuro explicar e compreender, por comparação, o manuscrito escolhido. Neste capítulo consigo avançar também no entendimento do provável âmbito de produção do códice, adensando a percepção de contextos de ideias e linguagens que reforçam a sua proveniência pensada. No Capítulo 5 alguns tópicos de diferentes faces do texto são reunidos em itens sucessivos – no entanto, esses aparecem de modo mais ou menos disseminado em seu conjunto. Mais uma vez os contextos intelectivos são buscados e as apropriações operadas no manuscrito são relevantes para perceber suas motivações. A provável autoria colaborativa, as diferentes formações culturais e o peso do protagonista da narrativa no texto multifacetado são elementos que tornam
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complexa a análise do manuscrito. Por fim, emito uma visão de conjunto capaz de abranger o sentido da obra, a participação jesuítica e o relevante vínculo de Pedro de Almeida com o códice. Os exames mais completos do texto e dos suportes materiais são indissociáveis da pesquisa sobre a trajetória do artefato, desde o momento de sua elaboração até o presente. Conjugadas, essas ações repercutem na historiografia e na história. Nesse tempo tão difícil em vários aspectos, oxalá esta investigação possa contribuir para a pesquisa histórica e a crítica textual em geral, bem como para a preservação, a guarda de manuscritos e impressos e o acesso a eles nos arquivos e bibliotecas do Brasil e do mundo.
Capítulo 1
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Quando a historiadora já amplamente reconhecida empreendeu uma nova edição do documento sobre a Revolta de Vila Rica em 1720, não era a primeira vez que lidava com trechos deste. Desde o pequeno livro sobre a opulência e a miséria nas Minas Gerais1 ela valeu-se da passagem eloquente, a princípio pinçada do livro de Sylvio de Vasconcellos, para referir-se à natureza inóspita da capitania: os dias nunca amanhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. Eu, contudo, reparando com mais atenção na antiga e continuada sucessão de perturbações que nela se vêem, acrescento que a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdade os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como no inferno.2
Inferno era então uma palavra-chave na obra de Laura de Mello e Souza, empregada, conforme a leitura de fontes, para retratar a paisagem turbulenta que favorecia motins na região mineradora, ou referir-se à demonização do homem
1 SOUZA, Laura de Mello e. Opulência e miséria das Minas Gerais. São Paulo: Brasiliense, 1994 [1981], p. 36-38; SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 106; SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 70-71; e SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 46 e 207. 2 Apud VASCONCELLOS, Sylvio de. Mineiridade: ensaio de caracterização. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1968, p. 24-25. Apresentado por Afonso Arinos de Melo Franco, o ensaio tornou-se um clássico nos estudos sobre Minas.
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colonial, compondo uma “demonologia assistemática” no mundo ibérico, diferente dos tratados franceses, alemães e ingleses.3 Mas houve obstáculos no empreendimento de publicar o clássico da Coleção Mineiriana, sob patrocínio da Fundação João Pinheiro. Informada pelo APM sobre o desaparecimento do códice, ela foi constrangida a estabelecer o texto pela edição feita por José Pedro Xavier da Veiga em 1898, referida pela historiografia, que na década de 1990 já era um livro raro.4 Buscando uma comparação a fim de corrigir possíveis equívocos tipográficos, consultou na BNB, no Rio de Janeiro, a cópia manuscrita feita em 1825 do códice então pertencente à livraria dos condes de Linhares em Lisboa.5 Apesar de considerar os comentários de Hélio Gravatá, bibliotecário do APM que descreveu na década de 1970 o códice depois desaparecido,6 a historiadora não lidou integralmente com seu texto e as características materiais do manuscrito. Essas circunstâncias repercutiram na edição do documento e em sua análise. Por exemplo, as 490 notas existentes nas margens dos fólios foram suprimidas nas edições de 1898, com a justificativa de Xavier da Veiga – primeiro diretor do APM, ainda em Ouro Preto – de que eram calcadas na jurisprudência e na literatura contemporânea e clássica e teriam sido parafraseadas no texto central.7 Na cópia de 1825, hoje na BNB, essas muitas notas marginais não foram copiadas. E um texto mais resumido e adaptado do documento em tela, existente na coleção Lamego do IEB-USP, apresenta outro tipo de notas, com glosas dos parágrafos numerados no texto central do manuscrito.8
3 SOUZA, 1993, p. 46. É difícil classificar a historiadora em modelos historiográficos, mas a abordagem prevalecente aqui se coaduna à história das mentalidades, ao procurar compreender a projeção de imagens sobre as Américas portuguesa e espanhola, desenvolvendo ideias de O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), que ecoa (pelo avesso da ideia) HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1992 [1959]. Para um balanço dos estudos sobre magia em Portugal, com o pouco peso conferido ao demônio pela cultura da segunda escolástica e ilações sobre as obras de Mello e Souza e Buarque de Holanda, cf. BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [1987], p. 23-28. 4
VEIGA, 1898. O “documento” foi publicado primeiro em fevereiro do mesmo ano em números do jornal Minas Geraes.
5 BNB, M, 15, 2, 5, Discurso historico, e político, sobre a sublevação, q’ nas Minas Geraes hóve no Anno de 1720, no fim do qual se expendem as rasõens, q’ o ex.mo sen.r conde general teve para proceder summariamente ao Castigo (por A. L. C.). 6 GRAVATÁ, Hélio. Contribuição bibliográfica para a história de Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 27, p. 283-286, dez. 1976. Os comentários foram reproduzidos em GRAVATÁ, Hélio. Resgate bibliográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998, v. 1, p. 109. 7
VEIGA, 1898, p. 4.
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IEB-USP, AL-61, Noticia da sublevação, que nas minas do ouro preto houve no anno de 1720.
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Também em função do desaparecimento momentâneo do códice em Belo Horizonte, o exemplar da USP não teve aspectos referentes a tinta, letra, papel e encadernação comparados ao de Minas Gerais. A edição de 1994 do Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720 foi condicionada a esses fatores, ostentando na capa e no interior do livro uma arte baseada na folha de rosto da cópia oitocentista da BNB, ante a impossibilidade de contato com o manuscrito principal.9 A própria historiadora comenta: Registro esse episódio triste na esperança de alertar as autoridades e sensibilizá-las quanto a nossos acervos culturais. O códice perdido é, sem dúvida, um dos mais importantes documentos do século XVIII luso-brasileiro, matriz de todas as narrativas sobre o levante de Filipe dos Santos, de consulta obrigatória não só para os estudiosos das Minas, como também para todos os que se interessam pelos aspectos políticos e sociais de nossa história.10
Tais fatos possuem explicações relacionadas, como a incúria ocasional de arquivos ou governos brasileiros em relação à guarda de documentos e seu acesso por investigadores; a confiança excessiva de arquivistas e estudiosos em transcrições e impressões posteriores; e o momento vivido pela historiografia, antes da renovação substancial no âmbito da cultura escrita e visual sobre interpretação, materialidade, autoria e circulação de documentos, com interfaces entre esses temas e aspectos históricos fundamentais.11 Antes, também, da maior presença no meio
9 Como outras publicações de documentos desta coleção do Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro, a edição com tiragem de mil exemplares possui dimensões de 26 x 21 cm. O texto central do Discurso encontra-se entre as páginas 59 e 193, com amplas margens em branco (2,5 x 4,0 cm) e notas de rodapé da organizadora. As notas esclarecem sobre as diferenças entre o texto da edição de Xavier da Veiga e a cópia de 1825 hoje na BNB (preferindo-se o impresso de 1898), personagens e assuntos do contexto minerador do século XVIII, além dos trechos em latim traduzidos para o português por Norberto Guarinello. Na página 147, com base na cópia da BNB, a segunda parte do texto é enunciada com letras todas em maiúsculas e em negrito, com o escrito “seguem-se as razões que teve o conde-general para proceder sumariamente ao castigo”. A ortografia foi atualizada para a norma vigente no fim do século XX e a pontuação foi modificada quando a organizadora achou necessário. SOUZA, 1994. 10 Ibidem, p. 14. Em 2002, uma tese orientada por Mello e Souza sinaliza o manuscrito novamente localizado no APM. Embora trabalhe apenas com a edição impressa de 1994, a autora indica em nota a validade do cotejo entre o códice e o manuscrito existente em São Paulo, além de se verificarem os “escólios” excluídos na edição de Xavier da Veiga. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. 2002. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p. 218, nota 240. 11 O estudo de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin ganhara há pouco uma edição brasileira, cf. FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do livro. Tradução de Fulvia M. L. Moretto e Guacira Marcondes Machado. São Paulo: EdUnesp; Hucitec, 1992 [1958]. Roger Chartier e Robert Darnton apresentam nesse tempo produção mais concentrada na edição, circulação e leitura de impressos. No Brasil deve-se muito ao trabalho de Fernando Bouza: BOUZA, Fernando. Corre manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001. No tocante à materialidade dos textos, destacam-se as conferências de Donald F. McKenzie, publicadas em: McKENZIE, Donald F. Bibliografia e a sociologia dos textos. Tradução de Fernanda Veríssimo. São Paulo: Edusp, 2018 [1999]. Para autoria há discussão abrangente e calibrada em LOVE, Harold. Attributing authorship: an introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Sobre a materialidade dos escritos com pertinente discussão historiográfica, ver a síntese de ALMADA, Márcia. Cultura material da escrita ou o texto como artefato. In: CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da; MEIRELLES, Juliana Gesuelli (orgs.). Cultura escrita em debate: reflexões sobre o império português na América - séculos XVI a XIX. Jundiaí: Paco, 2018, p. 17-40.
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acadêmico brasileiro de estudos sobre ideias políticas e conceitos contextualizados12 e do desenvolvimento de tecnologias como a internet, a digitalização de cópias de documentos históricos e as maiores possibilidades de exame material. Vale a pena então tentar descortinar os episódios envolvendo as produções desses manuscritos, suas características e trajetórias, perscrutar a expressiva recepção bibliográfica de um deles por suas publicações parciais e iniciar novas análises.
De volta? Ao final de 1895 houve um grande leilão da livraria dos condes de Linhares, no palácio de Arroios, na calçada de Arroios ou de Alvalade – como era também conhecida – em Lisboa. Os motivos que levaram a essa venda por parte de Fernando de Sousa Coutinho (1850-1897), 4o conde de Linhares após a morte do 3o conde, Rodrigo de Sousa Coutinho (1823-1894), homônimo do avô, são provavelmente relacionados ao endividamento da família, pois em 1898 o próprio palácio seria também vendido.13 Por sua vez, na monarquia portuguesa sob a égide de Carlos I (1889-1908) vivia-se uma grave crise financeira, com alta do custo de vida, queda na taxa de câmbio entre Portugal e Brasil, tensão nas relações com a Inglaterra e redefinição das fronteiras coloniais na África. No governo exercido pela elite liberal com apoio do rei, o clima de insubordinação levou ao fechamento temporário do parlamento entre 1893 e 1896. Mas as reformas empreendidas tinham pouca eficácia. Os nobres titulados não exerciam grande influência na política, e o modelo emergente do militarismo alemão parecia não atrair o monarca, mais interessado em artes e ciência.14
12 O contato com a escola collingwoodiana e a história dos conceitos alemã intensificou-se em meados dos anos 1990, sumariado por JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs.). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Loyola; PUC-Rio, 2006. Quentin Skinner explicita sua metodologia e objetos em diálogo com a história dos conceitos de Reinhart Koselleck e os estudos de retórica. Cf. SKINNER, Quentin. Visions of politics: regarding method. Cambridge: Cambridge University Press, 2002 [1999], v. 1, p. 175-187. 13 Os condes de Linhares eram pares do reino, mas a julgar pelo teor de alguns documentos, viviam em dificuldades financeiras para manter seu estatuto social desde a morte de Rodrigo de Sousa Coutinho em 1812. ANTT, Condes de Linhares (CL), maços 83 e 104-109. 14 RAMOS, Rui (org.); SOUSA, Bernardo Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 554-563.
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Esse era um tempo de reaproximação diplomática entre Brasil e Portugal após o rompimento das relações em 1894, por ocasião da Revolta da Armada no Rio de Janeiro, quando navios portugueses abrigaram os rebeldes. Na presidência de Prudente de Morais (1894-1898), em maio de 1895 o gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil foi enviado como ministro plenipotenciário a Lisboa. Apesar de a nova república dos Estados Unidos do Brasil ser um exemplo para os republicanos portugueses, o diplomata preferiu aproximar-se do rei e pesquisar arquivos, interessado em angariar documentos que esclarecessem os limites territoriais brasileiros. A correspondência com José Paranhos Júnior, barão do Rio Branco, voltou-se para a busca de documentação nos acervos públicos e privados em Portugal que o auxiliassem nos litígios estrangeiros. Assis Brasil avisou ao futuro ministro das Relações Exteriores sobre o iminente leilão, tendo ordem e recursos para nele fazer grandes aquisições de livros e manuscritos.15 Pelo catálogo especialmente editado pelo livreiro Francisco Artur da Silva, que contou com ampla distribuição, aquele acervo particular foi iniciado em meados do século XVIII por Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1726-1780), governador de Angola e depois embaixador na Espanha na conjuntura do tratado de Santo Ildefonso (1777). E foi engrandecido por seus filhos Rodrigo (1755-1812), embaixador português em estados italianos, 1o conde de Linhares desde 1808, ministro do reino por várias vezes de 1795 até sua morte no Rio de Janeiro; José Antônio (1757-1817), o Principal Sousa, diácono principal da Patriarcal de Lisboa e membro da regência de Portugal durante a permanência da corte no Brasil; e Domingos de Sousa Coutinho (1762-1833), 1o conde e depois marquês do Funchal, diplomata com várias atuações no exterior, com destaque para Londres entre 1803 e 1814.16 Vários nomes citados aparecem no quadro a seguir.
15 SILVA, Isabel Corrêa da. Espelho fraterno: o Brasil e o republicanismo português na transição para o século XX. Lisboa: Divina Comédia, 2013, p. 144-159; e FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO – FUNAG (ed.). Assis Brasil: um diplomata da república. Rio de Janeiro: CHDD-Funag, 2006, v. 1, p. 122-123, 138, 140, 143-144. 16 BNB, M, Imp. 1, 1, 39, Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895, p. III-IV; e FRANCO, Luís Farinha; MONTEIRO, Ana Isabel Líbano. Leilões de livros: erudição, colecionismo e negócio séculos XVIII-XX. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002, p. 19.
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Casa dos condes de Linhares (c.1808-1897) Figura 1 - Quadro sinótico com genealogia de membros da família Sousa Coutinho. Arte de Lygia Moura.
Fernão de Sousa (c. 1640-1707) 10º conde de Redondo
Luísa Simoa de Portugal (c.1640-1723)
Roque Monteiro Paim (c.1643-1706)
Maria Antónia de Menezes Monteiro Paim (c.1700-?)
Rodrigo de Sousa Coutinho (c.1680-1748)
Ana Luísa Joaquina Teixeira de Andrade (c.1725-?)
Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1726-1780)
Rodrigo de Sousa Coutinho (c.1755-1812)
Gabriela di San Marzano (c.1760-1820)
1º conde de Linhares
Vitório de Sousa Coutinho (1790-1857) 2º conde de Linhares
Rodrigo de Sousa Coutinho (1823-1894)
3º conde de Linhares
Fernando de Sousa Coutinho (1850-1897) 4º conde de Linhares
José António de Sousa Coutinho (1757-1817) Principal Sousa
Catarina Juliana de Sousa Holstein (1791-1871)
Ana Carlota de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1827-1893)
Nuno de Sousa Coutinho (1854-1929) 5º conde de Linhares
Joana Francisca de Meneses (c.1675-?)
Maria Constança dos Santos Lisboa (1860-1942)
Domingos de Sousa Coutinho (1762-1833)
1º marquês do Funchal
João Carlos de Sousa Coutinho (1791-1824)
Gabriela de Sousa Coutinho (1822-1895)
Pedro Maria de Sousa Coutinho
2ª marquesa do Funchal
Agostinho de Sousa Coutinho (1886-1923) 3º marquês do Funchal
Maria de Assunção Gomes da Mata (1870-1951)
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Matias Barbosa da Silva (1671-1742)
Domingos Teixeira de Andrade (c.1677-?)
Francisco Xavier da Costa Noronha (c.1735-1802) senhor de Pancas
Francisco Maurício de Sousa Coutinho (1764-1823)
Francisco Afonso de Sousa Coutinho (1796-c.1835) marquês de Maceió
Amélia Correia Leite de Castro
Fernando de Serpa Leitão Pimentel (1851-1928)
Maria Barbosa da Silva
Maria Balbina de Sousa Coutinho
Guilhermina Adelaide de Carneiro Leão (1804-1856)
Alexandre de Sousa Coutinho (1824-1866)
Maria Ana de Sousa Coutinho (1857-1946)
Mariana de Sousa Coutinho
José Maria de Sousa Coutinho (1801-1834)
Damiana de Jesus da Silva
Maria Clara de Sousa Coutinho
Alberto Osório de Castro (1868-1946)
Gabriela Adelaide de Sousa Coutinho (1821-?)
Catarina de Sousa Coutinho (1861-?)
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A livraria dos condes de Linhares – um dos bens mais preciosos daquela casa – era composta de mais de 14 mil peças entre impressos e manuscritos, com ênfase nos campos científico, histórico e geográfico. Entre os 395 títulos manuscritos, a lista inicia com cinco atribuídos a d. Luís da Cunha, célebre embaixador luso no reinado de d. João V (1707-1750), sendo um autógrafo e quatro cópias de textos seus, sobre as memórias da paz de Utrecht, o reinado joanino, conselhos ao futuro d. José I (1750-1777) – o conhecido Testamento político17 – e uma descrição dos reinos de França, Escócia e Irlanda. Duas dessas cópias foram feitas por A. L. Caminha, além de três outros manuscritos mencionados no catálogo.18 O período revolucionário e das guerras napoleônicas aparece bem representado pela documentação sobre as trajetórias dos irmãos Sousas Coutinho. Conforme o interesse desta pesquisa, destacam-se, em séries de papéis vários, longas cópias sobre descrições cerimoniais de embaixadores estrangeiros, documentos sobre o processo dos marqueses de Távora de 1758 a 1777, libelos contra o marquês de Pombal e discursos acadêmicos do 2o marquês de Alorna.19 São muitos os registros do mundo ultramarino português, desde a atuação de Francisco Inocêncio em Luanda a miscelâneas que incluem notícias das gazetas em 1715 e sucessos na Índia do ano de 1747.20 Do número 294 ao 345, os títulos catalogados são exclusivamente sobre o Brasil e o Maranhão, correspondendo a 13% do total de manuscritos da coleção.21 O fato se explica pela atuação pretérita de d. Rodrigo como ministro do reino e seus planos reformistas desenvolvidos desde a década de 1790, com especial atenção ao Brasil,22 e pelo governo do irmão mais novo Francisco Maurício de Sousa Coutinho na capitania do Grão-Pará entre 1790 e 1803, pautado, entre várias
17 Reeditado, por exemplo, em: SILVA, Abílio Diniz (org.). Testamento político de d. Luís da Cunha. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2013. 18 BNB, M, Imp. 1, 1, 39, Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895, p. 179-181. 19 Ibidem, p. 184-187. João de Almeida Portugal (1663-1733), 2o conde de Assumar, foi embaixador de Portugal na Guerra de Sucessão da Espanha (1701-1713), conselheiro de Estado e atuante nos assuntos cerimoniais da corte, sendo amigo próximo de Luís da Cunha; seu neto homônimo João de Almeida Portugal (1726-18 02), 2o marquês de Alorna desde 1756, liderou o processo de revisão da condenação dos Távoras no reinado de d. Maria I (1777-1816). As remissões serão esclarecidas no Capítulo 2. 20 Ibidem, p. 210. Nesse tempo o 3o conde de Assumar era vice-rei na Índia, já nomeado 1o marquês de Castelo Novo, sendo intitulado 1o marquês de Alorna em 1748. O assunto será desenvolvido no próximo capítulo. 21 Ibidem, p. 241-250. 22 Conforme uma leitura, esses planos reagiam a um contexto difícil, caracterizado, entre vários fatores, pelas conjurações mineira e baiana. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 [1973], p. 233-271.
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reformas, pela delimitação do território e de sua rede fluvial por meio do incentivo à feitura de mapas.23 Mas também pela erudição mineralógica adquirida por d. Rodrigo na Europa e pelos empreendimentos de governo24 e negócios da família enraizados no centro-sul brasileiro, que possuía propriedades herdadas em Minas, administradas por representantes. Pelo lado paterno, os Sousas Coutinho do século XIX beneficiaram-se dos bens patrimoniais da casa de Redondo e dos serviços de antepassados por meio de cargos exercidos junto à monarquia portuguesa. Todavia, o casamento de Francisco Inocêncio com Ana Luísa Joaquina Teixeira de Andrade, filha de um oficial superior cujo sogro enriqueceu em Minas Gerais, foi tido como heterodoxo segundo os padrões de uma casa nobre. A aliança trazia por um lado fortuna à família pela filiação materna, com considerável patrimônio adquirido em Portugal e no Brasil – por exemplo, o palácio de Arroios provinha dessa filiação. Mas por outro lado, aquele casamento gerava problemas com a origem plebeia e mecânica da nova casa de Linhares25 – assunto a ser tratado no Capítulo 2. Como vimos, os mapas e escritos sobre o Brasil descritos no catálogo despertaram interesse. Os cerca de 75 títulos adquiridos pelo governo brasileiro destinaram-se à BNB, ao Arquivo Público Nacional e ao Ministério das Relações Exteriores. Cerca de 20 manuscritos foram reservados pelo barão do Rio Branco, então dedicado à questão dos limites entre o Amapá e a Guiana Francesa.26 Contudo, nove “documentos” foram comprados para o estado de Minas Gerais, pela diligência do secretário do estado Henrique Diniz e do comissário
23 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Francisco Maurício de Sousa Coutinho: sesmarias e os limites do poder. In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos; NEVES, Guilherme Pereira das (orgs.). Retratos do império: trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: Eduff, 2006, p. 259-277. 24 Para as reformas em Minas no governo de Bernardo José de Lorena (1797-1803) envolvendo o mineralogista José Vieira Couto, José Teixeira Vasconcelos e José Joaquim Vieira Couto (irmão do primeiro), cf. FURTADO, Júnia Ferreira (org.). José Vieira Couto. Memórias sobre a capitania das Minas Gerais: seu território, clima e produções metálicas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p. 13-47; e SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. O palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos ilustrados (Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803). 2013. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013, p. 228-265. 25 SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, comte de Linhares 1755-1812. Lisboa; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2002, v. 1, p. 19-38; BOSCHI, Caio César. Essencialmente mineiro. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p. 60-64, jan. 2012; SANTOS, 2013, p. 48-52. Para Varnhagen, Rodrigo de Sousa Coutinho tinha um morgado na capitania de Minas. Em nota, Rodolfo Garcia recupera documentos sobre a sesmaria cedida em 1709 pelo governador Fernando de Lencastre a Matias Barbosa (de quem levanta a genealogia), cuja fazenda foi confirmada por d. José I em 1766 em benefício de Francisco Inocêncio. Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil: antes de sua separação e independência de Portugal. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, v. 3, t. V, secção XLVIII, p. 13, 36-39. 26 BNB, M, 01, 013 a 046, Relatórios dos chefes da seção.
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David Campista.27 Entre os manuscritos adquiridos encontra-se o de número 307, Discurso historico, e político sobre a soblevação, que nas Minas houve no anno de 1720. No fim do qual se expendem as razoe’s, que o Excellentissimo Senhor Conde General teve para proceder summariamente ao castigo.28 E grosso modo, papéis vários sobre comércio, exército e marinha no Brasil entre 1755 e 1802 (24 peças) e entre 1799 e 1815 (18 peças); um dos manuscritos da instrução do desembargador José João Teixeira Coelho para o governo da capitania;29 o erário régio de Vila Rica em 1768;30 um relato do descobrimento das Minas de 1690 a 1722; mapas do rio Doce e seus confluentes; um mapa dos limites da capitania de Minas; e outro da comarca de Sabará.31 A BNB possui uma cópia manuscrita do texto principal do Discurso feita em 1825 por A. L. C., abreviatura que identifico ser de António Lourenço Caminha, o mesmo copista que aparece nomeado no catálogo da livraria dos condes de Linhares. Professor de retórica e poética em Lisboa, Caminha transcreveu, editou e publicou em forma impressa muitos textos de manuscritos, ou impressos em outras obras. Nas edições frequentemente subscrevia seu nome e acrescentava introitos, estudos e dedicatórias de sua autoria. Foi nomeado por d. João VI (1816-1826) oficial da Real Biblioteca Pública, falecendo em 1831.32 A cópia parcial do Discurso – sem as notas marginais – hoje na BNB indica que em 1825 o códice já estava sob a guarda da casa de Linhares, em cuja livraria se encontravam outros trabalhos do copista. Em função dessa cópia, Caminha teve contato com Vitório de Sousa Coutinho (1790-1857), filho de d. Rodrigo e
27 VEIGA, 1898, p. 3; GRAVATÁ, 1998, p. 109. 28 APM, AVC-17. O número 307 está inscrito na etiqueta posta na lombada do códice, bem como outros documentos provenientes daquela livraria apresentam no APM os números correspondentes ao catálogo referido. 29 Conforme a edição baseada no manuscrito existente no APM: IGLÉSIAS, Francisco (org.). José João Teixeira Coelho. Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. Depois Caio Boschi editou um exemplar depositado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), detalhando também a aquisição dos manuscritos para o estado de Minas Gerais no referido leilão. BOSCHI, Caio César (org.). José João Teixeira Coelho. Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Secretaria do Estado de Cultura; Arquivo Público Mineiro; Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 2007 [1782], p. 30, 32, 52-53. 30 A respeito, ver BOSCHI, Caio César; QUINTÃO, Régis Clemente (orgs.). Minas Gerais no Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal. Belo Horizonte: Centro de Memória e Pesquisa Histórica/PUC Minas, 2015. 31 APM, 1.3, 01, doc. 3, Termo de abertura, 30/04/1896; Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895, manuscritos 307, 315, 316, 320, 321, 329, 339, 341 e 342, p. 243-249. 32 SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858 -1923, t. 1, p. 188 -190. Para a atuação do copista e seus patronos na produção da cópia do Discurso em 1825, cf. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O papel da cópia. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes (org.). Modernos em curso: escritos e imagens no tempo. Niterói: Eduff; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2022a, p. 157-208.
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2o conde de Linhares desde 1812 e com seu irmão José Maria de Sousa Coutinho (1801-1833) – a quem um trabalho do copista foi oferecido, conforme o catálogo.33 Mas a cópia manuscrita do Discurso feita por A. L. C. não consta na lista editada para o leilão de 1895, nem em catálogos anteriores de manuscritos da BNB, outrora biblioteca imperial.34 Regente do reino em Lisboa, o Principal Sousa administrava os bens da casa antes da morte de d. Rodrigo, ajudado pelas irmãs Mariana e Maria Balbina – viúva do senhor de Pancas. O sobrinho Vitório viajava bastante, só ou acompanhado de irmãos, esposa ou da mãe (falecida em 1820), como atestam os passaportes para Rio de Janeiro, Minas Gerais (para cuidar das propriedades) e vários destinos europeus, e a intensa correspondência com o tio, falecido em 1817.35 Durante as disputas entre liberais e miguelistas, os Sousas Coutinho posicionaram-se com os liberais e José Maria foi preso em 1828, morrendo no cárcere. No breve reinado de d. Miguel (1828-1834) a livraria do conde de Linhares, com mais de cinco mil impressos, foi confiscada, indo para a Real Biblioteca no palácio da Ajuda. Em 1832 o palácio de Arroios foi posto em anúncio para ser arrendado, na ausência do conde Vitório de Sousa Coutinho.36 Não se sabe quando o grande conjunto de livros voltou aos Arroios – provavelmente isso ocorreu durante a gestão de Alexandre Herculano como bibliotecário da Ajuda, entre 1839 e 1877. Considerando o catálogo de 1895, faz-se uma comparação precária entre diversos registros de bibliotecas particulares de nobres, e tendo em conta as datas de edição – conforme levantamento apresentado por Mafalda Soares da Cunha e Nuno Monteiro. Na primeira metade do século XIX, esta livraria só perdia em tamanho para a do 3o duque de Lafões em 1833, sendo em 1819 maior em volumes que a do 3o marquês de Alorna, mas não a superando
33 Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895, p. 180. 34 BNB, M, 15, 2, 5, Discurso historico, e político, sobre a sublevação, q’ nas Minas Geraes hóve no Anno de 1720, no fim do qual se expendem as rasõens, q’ o ex.mo sen.r conde general teve para proceder summariamente ao Castigo (por A. L. C.). Mais adiante comentarei as características materiais deste códice. 35 Em carta ao sobrinho de 20/01/1812 (seis dias antes da morte de d. Rodrigo), o Principal Sousa sabia do grave estado de saúde do irmão. Ao final, escreve que neste momento tormentoso a livraria lhe valia como desafogo. ANTT, CL, maço 72 (doc. 7). Ver também maços 68 (doc. 18), 71 (doc. 1), 72 (doc. 7), 77 (doc. 150), 89 (doc. 117) e 91 (docs. 19 e 22). 36 GAZETA DE LISBOA, Lisboa, n. 141, 15 jun. 1832, p. 700; e Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda (BPNA), Arquivo interno, doc. 288 (Catálogo dos livros do conde de Linhares, p. 26 – no qual se referencia o Discurso original, mas não sua cópia).
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em títulos.37 Uma leitura rápida do catálogo de 1895 mostra como a biblioteca era cuidada no palácio de Arroios, havendo preocupação com a limpeza, as manchas por umidade e as traças que corroíam os papéis.38
Multifário Voltamos assim ao códice matricial e suas primeiras publicações. O documento anônimo de 479 páginas com dimensões de 21 x 15 cm, correspondendo aproximadamente à metade de uma atual folha A4, escrito com caligrafia clara e organizada e muitas citações eruditas, foi para Ouro Preto, onde sua chegada foi anunciada em 6 de maio de 1896 no jornal Minas Geraes por José Pedro Xavier da Veiga. Após referir os outros exemplares adquiridos, o primeiro diretor do APM escreve o título completo do Discurso, que “já indica assaz o espirito com que foi elle elaborado: é não só a defesa mas até a apologia do governador Assumar, o algoz inexoravel de Felippe dos Santos”.39 E prossegue: Não obstante o ponto de vista vicioso, apaixonado e mesmo suspeito (parece ser trabalho do proprio conde de Assumar) sob o qual foi escripto, o livro tem valor e utilidade historica: fornece pormenores da revolta de 1720 até agora geralmente desconhecidos, dá noticias aproveitaveis sobre os costumes e espirito da época e às vezes, no excesso da apologia ao despotismo reinante e de rancor contra os revoltosos da Villa-Rica, chega a ministrar argumentos muito aproveitaveis em favor destes. E’ livro que merecerá, talvez, publicação integral na Revista do Archivo, com os indispensaveis commmentarios e rectificações em bem da justiça e da verdade histórica.40
Seu texto central foi transcrito por Xavier da Veiga na própria residência, na qual também funcionavam o arquivo recém-criado e a imprensa. Foi publicado
37 CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno G. As grandes casas. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 232-233. Em CAROLINO, Luís Miguel. O poder dos livros: a biblioteca de Rodrigo de Sousa Coutinho. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 174, n. 460, p. 109-140, jul./set. 2013, trabalha-se com um catálogo existente no ANTT produzido em 1791/1792. 38 Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895. 39 BNB, Hemeroteca Digital (HD), TRB00055.0179, rótulo 291536. Minas Geraes. Orgão Official dos Poderes do Estado, Ouro Preto, n. 121, 06/05/1896, p. 5. 40 Ibidem.
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primeiramente entre 5 e 19 de fevereiro de 1898 no Minas Geraes,41 em seguida no livro A revolta de 1720 em Villa Rica. Discurso historico-politico, com dimensões de 18 x 12 cm. Neste, o texto central do “Discurso historico” encontra-se entre as páginas 7 e 218, em fontes tipográficas pequenas e com largas margens em branco (3,8 x 3,3 cm), sem indicativos da paginação original do manuscrito, embora sua divisão de parágrafos seja quase sempre respeitada. A mudança da primeira para a segunda parte do texto, na página 137 com o escrito “Seguem-se as razões que teve o Conde general para proceder sumariamente ao castigo” não é sinalizada com qualquer alteração tipográfica, como tamanho de fontes ou maior espaço entre linhas, diferente do apresentado pelo manuscrito. A ortografia foi parcialmente alterada em relação ao códice, em alguns casos sendo atualizada conforme a norma vigente em fins do século XIX, em outros foi mantida a forma original. Não identifico significativas mudanças de pontuação e uso de maiúsculas e minúsculas no decorrer do texto.42 Na “Advertencia” do livro, que reproduz o escrito no jornal em 05/02/1898, Xavier da Veiga pondera que os dizeres transcritos, a matéria, o estilo e o tom mostram que o trabalho “é da própria lavra do conde-general (conde de Assumar), ou de alguém por ele”. Qualifica seu estilo como gongórico, asiático,43 com erudição baseada na jurisprudência coeva e na literatura clássica. Segundo ele, as muitas notas marginais do documento seriam parafraseadas no texto central. Filipe dos Santos seria herói e mártir daquele movimento, e o livro um “código de tirania” com muitos fatos adulterados.44
41 A publicação ocorreu de modo intermitente entre essas datas, em colunas e com posicionamentos diferentes, com as “Ligeiras notas do editor” publicadas em 30/04/1898, p. 8-9. 42 VEIGA, 1898, p. 7-18. O exemplar que possuo foi reencadernado e restaurado – provavelmente antes era uma brochura. Ostenta na página de rosto uma dedicatória manuscrita do próprio J. P. Xavier da Veiga a João Pandiá Calógeras, engenheiro e político carioca que no início da carreira foi deputado federal por Minas Gerais. Essas observações contaram com a colaboração da bibliotecária Valeria Gauz, especialista em livros raros. 43 Na Roma antiga, asianismo era o estilo empolado com ritmos e efeitos, classificado por Cícero em dois tipos: com frases breves e conceitos, ou mais pomposo, enfático e veloz, adornado com figuras. NARDUCCI, Emanuele. A oratória na época de César. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006a [1997], p. 261. Já o religioso e letrado espanhol Luis de Góngora y Argote, expoente da literatura no Siglo de Oro, foi especialmente atento à sonoridade dos versos. As duas qualificações aqui são utilizadas de forma depreciativa e genérica, referindo-se a uma linguagem prolixa e maçante. 44 VEIGA, 1898, p. 3-6. Identificado ao IHGB, o jornalista e político Veiga valoriza a busca de fontes obtidas mediante uma rede de correspondentes. Nesse sentido insere-se a criação da Revista do Arquivo Público Mineiro em 1896. Em Efemérides mineiras (1898) a sedição de Vila Rica foi comentada em 29 páginas. No verbete de “28 de junho”, o autor não menciona o códice do Discurso, provavelmente por não ter terminado naquele momento a sua transcrição. VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides mineiras 1664-1897. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998 [1898], v. 2, p. 597-612; SILVA, Marisa Ribeiro. O artífice da memória. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 43, p. 74-91, jan./jun. 2007; e ALKMIM, Márcia Pereira. Correspondência proveitosa. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, ano LI, p. 152-161, jan./jun. 2015.
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A heroicização de Filipe dos Santos foi iniciada antes por José Vieira Couto de Magalhães, militar e folclorista que transcreveu do livro da secretaria do governo de Minas, em Ouro Preto, as missivas de Pedro de Almeida ao rei de 3 e 21 de julho e de 3 de agosto de 1720, além do termo com as condições dos rebeldes entregue ao governador em Vila do Carmo. O fabricador de mitos ingressou assim em 1862 no IHGB, valendo-se de descrições e metáforas produzidas pelo 3º conde de Assumar para relatar a revolta. Citou trechos das cartas impressas anexas ao artigo publicado, e evidenciou Filipe dos Santos como herói nacional, no mesmo ano de início da exaltação de Tiradentes. Mas nada denota que o “mitógrafo” tenha lido o Discurso.45 Nas notas acrescidas ao final do livro A revolta de 1720 em Villa Rica, o editor e arquivista Xavier da Veiga indica com documentos as “inverdades” contidas no “curioso e originalissimo” Discurso e assinala contradições das “abominaveis doutrinas do A.” (o autor), ao detratar a revolta e louvar o déspota que, no entanto, suplantou-a a ferro e fogo após acatar as condições dos revoltosos.46 Discorre então sobre Pascoal da Silva Guimarães, citando sua caricatura pelo Discurso e documentos do APM que o abonam; ou sobre o ouvidor deposto Martinho Vieira, mostrando pelo texto ora editado o “fiel retrato do tyranete”; acerca do juízo do “A.” sobre Sebastião da Veiga Cabral, contraposto ao de Rocha Pita em História da América portuguesa;47 a opinião do “libello diffamatorio” sobre Manoel Mosqueira da Rosa, confrontada com papéis do próprio conde de Assumar no APM; e por fim Manoel Nunes Viana, vituperado no Discurso como monstro, mas recebendo de d. João V distinções e mercês na carta pertencente ao APM.48 Xavier da Veiga discute também as contradições do Discurso em relação à revolta, citando páginas de sua edição, bem como as passagens mais eloquentes.
45 Nascido em Diamantina, ele era neto do mineralogista José Vieira Couto, já referido em nota. Entre várias ações recebeu de d. Pedro II (1831-1889) o tacape atribuído ao índio Martim Afonso Tibiriçá, figura mítica da história colonial sobre a fundação de São Paulo, desde 1922 no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. MAGALHÃES, J. V. Couto de. Um episodio da historia patria (1720). Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e Ethnographico do Brasil, Rio de Janeiro, v. 25, p. 515-564, 1862 (há controvérsias na datação da carta de agosto, como veremos no Capítulo 4); CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 60; SOUZA, 1994, p. 18; e ZAMORANO, Rafael. A autoridade do especialista e do nome próprio na fundação do “passado colonial” no Museu Histórico Nacional. In: DAHER, Andrea (org.). Passado presente: usos contemporâneos do “passado colonial” brasileiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2017, p. 147-148. 46 VEIGA, 1898, p. 219-239. 47 PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1976 [1730], p. 274-276. 48 VEIGA, 1898, p. 219-239.
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Mostra o contraste entre a descrição do amotinador Filipe dos Santos e sua posterior memória nacional, e igualmente em relação aos mineiros, vilipendiados no Discurso. Sobre a autoria do texto, verbera: “Eis o A. refutado pelo mesmo heroe a quem glorifica, ou, por ventura, eis o próprio governador Assumar batido e desmoralisado por si mesmo!” Por fim, reconhece ser “este um documento de valor historico maior do que á primeira vista poderá parecer”.49 Além do afã pela comprovação documental, evidencia-se o misto de horror e fascínio de Xavier da Veiga pelo texto comentado, talvez fruto de seu posicionamento político conservador na passagem da monarquia à república.50 A edição de Xavier da Veiga foi consultada por Diogo de Vasconcelos para escrever História antiga das Minas Gerais, de 1901, reeditado em 1904. No capítulo sobre o governo de Pedro de Almeida, após narrar os conflitos com o clero regular, as iminentes casas de fundição, os motins de São Francisco, Pitangui, fugas de escravos e castigos, o historiador – que admirava o estilo romântico do francês François-René de Chateaubriand – encontra no drama de 1720 a sua mais perfeita expressão.51 Conquanto por vezes não cite as fontes utilizadas, há trechos entre aspas ou parafraseados do Discurso editado e das cartas, comparados à tradição oral. Sobre a lenda da morte de Filipe dos Santos atado a quatro cavalos, Vasconcelos prefere a versão da forca seguida por esquartejamento existente no Discurso, “obra que se não é do Conde foi inegavelmente por ele revista e corrigida”. Adiante concebe o documento como peça de defesa, um “panfleto destinado a fazer opinião” ante o processo movido contra Pedro de Almeida em sua volta a Portugal. Qualifica seu estilo como laudatório, gongórico e difuso. Mas compreende a missão histórica do conde nas Minas, por ter apanhado a luva e enfrentado “uma luta de centauros”.52
49 Ibidem. 50 CARNEIRO, Edilane Maria de Almeida; NEVES, Marta Eloísa Melgaço. Introdução. In: VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides mineiras 1664-1897. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998 [1898], v. 1, p. 17-40. 51 A associação entre os dois autores é válida ao se considerar – além do apreço à narrativa dramática – o perfil conservador do literato francês, envolvido com a restauração monárquica e o relato das “ruínas” de seu mundo, situando-se na brecha do tempo entre regimes de historicidade, conforme HARTOG, François. Régimes d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003, p. 77-107. 52 VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974 [1904], p. 172-209 (citações em p. 203, 206-207). No volume seguinte editado anos depois, traça uma pequena biografia do conde de Assumar, tendo-o como um “homem de ferro”, cujo melhor monumento em Minas “é o poder público, elemento essencial e único de que se desenvolveu a ordem, princípio de todo nosso progresso”. Cf. VASCONCELOS, Diogo de. História média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974 [1917], p. 294.
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Diogo de Vasconcelos foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG) em 1907, e o primeiro a interpretar a história mineira numa visão de conjunto, com uma narrativa buscando compreender o processo histórico. Ao pesquisar fontes no APM junto ao amigo Xavier da Veiga e alhures, a ideia de História antiga surgiu no contexto da mudança da capital mineira para a nova Belo Horizonte. Vasconcelos e Veiga eram monarquistas que passavam a colaborar com as instituições republicanas emergentes, tentando promover a memória da antiga capital Ouro Preto. Para o historiador, Assumar era mais próximo às famílias paulistas, enfrentando os potentados forasteiros. Vasconcelos afina-se assim com os propósitos do governador, justificando de certo modo sua violência. A anarquia, a barbárie primordial e a natureza inóspita das Minas seriam aspectos matriciais daquela sociedade, e a ideia de um começo caótico era um topos do século XVIII, inclusive no Discurso, com desdobramentos na memorialística da região, por exemplo nos poemas de Cláudio Manuel da Costa e na obra atribuída a Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, tio do historiador em tela.53 Antecipando o bicentenário da revolta, em 28 de junho de 1919 o sócio do IHGMG Antonio Olyntho dos Santos Pires profere uma palestra no IHGB sobre o episódio precursor da independência, com Filipe dos Santos antecedendo Tiradentes. Olyntho ressalta os documentos: as cartas do governador e “uma interessante defesa que dele fez um escritor anônimo”. Cita então várias passagens do Discurso, valendo-se da eloquência do texto “gongórico”, ao descrever os costumes das Minas, intercalados com referências greco-latinas. Relata a vida de Pedro Miguel de Almeida, acentuando o contraste entre sua formação militar e aquele meio rústico. E após enaltecer Filipe dos Santos, volta a referir o texto editado.54 Mas havia outro artefato que então voltava. Alberto Frederico de Moraes Lamego tornou-se sócio do IHGB após uma estada europeia de 1906 a 1920, durante a qual adquiriu muitos livros e documentos. Ao final de 1929, publica oito artigos numa coluna em O Jornal, no Rio de Janeiro, e no Diário de São Paulo –
53 ROMEIRO, Adriana; SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Diogo de Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2014; ALCIDES, Sérgio. Estes penhascos: Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas 1753-1773. São Paulo: Hucitec, 2003; e ANASTASIA, Carla Maria Junho (org.). Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos. Breve descrição geográfica, física e política da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. 54 OLYNTHO, Antonio. Revolta de Vila Rica de 1720. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 85, v. 139, p. 443-498, 1921 [1919].
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ambos de propriedade de Francisco de Assis Chateaubriand. Na primeira matéria o advogado fluminense revela possuir um “interessante manuscrito, adquirido há anos em um alfarrabista de Lisboa”. Tendo 58 páginas com dimensões de 32 x 22 cm, de tamanho pouco maior que uma folha A4, e uma assinatura “raspada”, para Lamego o texto contém “tantas minudências e particularidades referentes ao conde de Assumar, que atribuímos ser ele o autor”, ainda mais por verificar semelhança de estilo com as cartas escritas pelo nobre português. Ignorando o códice existente no APM e sua edição, o bibliófilo considera a Noticia da sublevação, que nas minas do ouro preto houve no anno de 1720 “a narração mais completa [...], que embora examinada por muitos dos nossos historiógrafos, é ainda motivo de controvérsias”. Neste e nos artigos seguintes parafraseia o manuscrito, cruzando sua narrativa com outros textos.55 Nesse tempo o colecionador vivia no solar dos Airíses em Campos dos Goytacazes, onde abrigava valiosas biblioteca e pinacoteca. Lá recebia hóspedes amigos e interlocutores, entre eles Rodolfo Garcia, à época editor da obra de Francisco Adolfo de Varnhagen. No tomo IV da História geral do Brasil publicada em 1934, enquanto no texto central Varnhagen disserta sobre a Revolta de Vila Rica, Garcia comenta, em nota sobre a Noticia, um manuscrito inédito ainda pertencente a Lamego, sendo uma “relação bastante desenvolvida”, ao dar os nomes dos participantes do levante e acompanhar a marcha dos acontecimentos. Ademais, possuía uma assinatura riscada e ilegível, parecendo ser do conde de Assumar.56 Affonso de Escragnolle Taunay era grande amigo de Lamego e também o visitava em seu solar. Na História geral das bandeiras paulistas, após citar o Discurso editado em 1898 (atribuindo-o a Assumar) junto a outras fontes e bibliografia, Taunay menciona Lamego como um dos que restabeleceram a verdade sobre o episódio, por ter adquirido o manuscrito da Noticia e publicado a sua suma. Segundo o historiador radicado em São Paulo, o documento seria um “relato anônimo
55 IEB-USP, AL-61. Nos números analisados, as matérias dispostas em colunas e com subtítulos organizando os conteúdos apresentam mudanças de palavras e encurtamento de períodos em relação ao texto original da Noticia, além da interface presente com outros documentos. Portanto, não se trata da publicação literal de seu texto. BNB, HD, TRB00177.0171, rótulo 110523_02, LAMEGO, Alberto. Mentiras historicas: noticia da sublevação que houve em Ouro Preto em 1720. O Jornal, Rio de Janeiro, 13 e 20 out., 3, 10, 17 e 24 nov., 8 e 22 dez. 1929. Citação do exemplar de 13/10/1929 na p. 4. LAMEGO, Alberto. Mentiras historicas. Rio de Janeiro: Record, s.d. não apresenta matéria relacionada ao manuscrito. 56 VARNHAGEN, op. cit., v. 2, t. IV, secção XLII, p. 108, nota 58 (de Rodolfo Garcia).
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curioso, que deve ter sido redigido por indivíduo muito informado e testemunha presencial do motim”. Mas não vincula as duas narrativas, atendo-se a discutir a forma do suplício de Filipe dos Santos e criticar a versão nacionalista da revolta. 57 Incentivado por Taunay, Mário de Andrade hospedou-se no referido solar e em 1935 intermediou a compra e o transporte daquele acervo para o estado de São Paulo. Doravante a coleção Lamego pertenceria à USP e desde 1968 ao IEB-USP. 58 Fundamentado no outro códice, Teophilo Feu de Carvalho contesta o protagonismo do tropeiro rebelde na revolta. No Ementario da historia mineira, o historiador que por várias vezes foi diretor do APM nas décadas de 1920 e 1930 referencia muitas fontes em 23 capítulos sobre a sedição de Vila Rica, com críticas aos equívocos e imprecisões de Couto de Magalhães, Xavier da Veiga, Diogo Pereira de Vasconcelos e sobretudo de Diogo de Vasconcelos. Para tal vale-se de documentos depositados no APM, como cartas de Pedro de Almeida, dos oficiais da câmara de Vila Rica e do governador seguinte Lourenço de Almeida, além do termo de perdão dos revoltosos, já publicado. Louva o perfil autoritário e ordeiro de Assumar em detrimento dos amotinados “portugueses” – sobretudo Filipe dos Santos, inferior ao herói brasileiro Joaquim José da Silva Xavier, como precursor da independência. Menciona assim o óleo sobre tela do pintor fluminense Antônio Parreiras sobre o julgamento de Filipe dos Santos, de 1923, naquele momento na Assembleia Legislativa de Belo Horizonte.59 Com estilo afeito a polêmicas e muitas exclamações, Carvalho preocupa-se em esclarecer alguns episódios controversos do movimento: o exagerado incêndio do morro do Ouro Podre, o fictício arrastamento por quatro cavalos de Filipe dos 57 TAUNAY, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1949, p. 179-18 0. No Museu do Ipiranga em São Paulo, o diretor Taunay tinha intenção de retratar e fazer uma estátua de Filipe dos Santos junto a outras personagens da história pátria. Mas o projeto privilegiou os bandeirantes paulistas e suas conquistas territoriais, restando apenas da ideia original a data de 1720 num dos cantos da sanca da escadaria, num medalhão de baixo relevo, com moldura de ramos de louro e carvalho. Os outros cantos foram decorados com as datas de 1789, 1817 e 1822. MAKINO, Miyoko. Ornamentação do Museu Paulista para o primeiro centenário: construção de identidade nacional na década de 1920. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 10/11, p. 172-176, 2003. 58 SOFFIATI, Arthur. Mário de Andrade e(m) Campos dos Goytacazes: cartas de Mário de Andrade a Alberto Lamego (1935-1938). Niterói: Eduff, 1992. No IEB-USP a coleção Lamego é formada por 3.750 impressos e mais de 4.000 manuscritos concentrados nas histórias do Brasil e de Portugal, além de rica iconografia. NOGUEIRA, Arlinda Rocha; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; HUTTER, Lucy Maffei (orgs.). Catálogo dos manuscritos: coleção Alberto Lamego. São Paulo: Edusp, 2002. 59 CARVALHO, Feu de. Ementario da historia mineira: Felippe dos Santos Freire na sedição de Villa Rica em 1720. Bello Horizonte: Edições Historicas, 1933. O quadro de Antônio Parreiras, pintado sob encomenda do estado de Minas Gerais, foi destruído por um incêndio em 1959. Dele restam estudos parciais e um total, depositados no Museu Antônio Parreiras em Niterói.
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Santos, a ausência da condessa de Assumar nas Minas, a não aliança de Assumar com os paulistas em 1720 – diferente do ocorrido em Pitangui nos anos anteriores. Seu capítulo sobre a não convocação pelo governador de uma junta de justiça, com magistrados locais ou vindos de outra região, é muito elucidativo.60 Cita várias passagens do Discurso, algumas vezes sem referenciá-lo e assumindo o ponto de vista do texto – por exemplo ao mencionar os “boatos e pasquins malevolos” que anunciaram a revolta. Atribui a autoria do manuscrito ao jesuíta Antonio Correia, que vivia junto a José Mascarenhas no palácio de Pedro Miguel, sem esclarecer os “razoaveis e bons motivos” que o levaram a essa suposição.61 A autoria do Discurso também foi evidenciada por Gilberto Freyre em 1936, voltado para as transformações da sociedade patriarcal brasileira. Em seu vaivém de exemplos entre os séculos XVIII e XIX, ao tratar da mudança dos mineiros para os sobrados cita uma passagem eloquente e irônica do Discurso, na qual o conde de Assumar “ou alguém que se supõe ter sido ele” observa aqueles homens de origem obscura, que ao enriquecerem por comércio ou mineração enfeitavam-se com títulos, imitando a nobreza territorial e militar do reino: differenceam-se entam dos outros mineyros com a periphrase de grandes e poderozos: de Brigadeyros, Mestres de Campo e Coroneis se bem que, pella diversidade das insignias ainda agora se sabe menos o que elles sam; porque vereis que se neste o bastam de Marte mostra que he Mestre de Campo, ou Coronel, o Malho de Vulcano dis que he ferreyro: notareis que naquelle a vara de Mercurio insinua que he Juis, o tridente de Neptuno declara que he barqueiro. E eu conheço neste paiz hum homê honrado, o qual com outros nam entra nesta universal dos mineyros que (desde hûa varanda das suas cazas, que ficam onde o ribeyro dos Raposos entra no rio das Velhas) gracejando ao passar das carregações do Rio de Janeyro, que todos alli veem ter, cõ alguns pobres reynoes, que com o seu saco ás costas vinham atraz tocando cavallos, apontava para elles, e contando-os dizia: eis aqui dois Juises! Ali vinham tres Coroneis; acolá cinco Mestres de Campo.62
Destaque-se a capacidade do texto em tela de atender a vários interesses dos estudiosos. Com o foco em sobrado mais concreto, a morada de Pedro Miguel
60 Ibidem, p. 211-219. 61 Ibidem, p. 20, 98 e 263. 62 Apud FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985 [1936], v. 1, p. 278.
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de Almeida em Vila do Carmo é o pivô do livro de Salomão de Vasconcellos, ao defender a posição do seu tio Diogo, que em História antiga situa o hoje conhecido “palácio do conde de Assumar” na ladeira de São Francisco, onde depois residiria o primeiro bispo de Mariana, frei Manoel da Cruz. O polígrafo rebate assim as opiniões de Feu de Carvalho e do cônego Raimundo Trindade, que localizam a residência do famigerado governador na rua Direita, no “palácio velho”, depois convertido em cadeia e câmara. A fim de afirmar que o referido governador despachava no antigo “palácio”, mas residia atrás da igreja de São Francisco, onde ficaram os dragões durante a revolta, Vasconcellos arrola a tradição oral e vários documentos, entre esses o Discurso. Para ele a casa de Assumar foi palco do principal acontecimento político da vila, a revolta de 1720. Durante o Estado Novo, Salomão de Vasconcellos representa o futuro Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), além de atuar no IHGMG e na organização de arquivos do APM e da câmara de Mariana. Publica então obras com suporte documental, valorizando o patrimônio material da cidade – o que favoreceu o tombamento de bens e sua promoção a Monumento Nacional em 1945.63 Posteriormente, em livro sobre os palácios de Vila Rica, Francisco Antonio Lopes menciona rapidamente o códice existente no APM.64 A afinidade com aquele texto impresso era comum na referida família. Em 1951 Sylvio de Vasconcellos – filho de Salomão – vale-se bastante das publicações do APM e de estudos históricos para caracterizar as residências e os costumes em Vila Rica. O arquiteto é um dos primeiros a citar o relato da jornada feita por Pedro
63 VASCONCELLOS, Salomão de. O palacio de Assumar: estudo critico-historico. Bello Horizonte: Graphica Queiroz Breyner, 1937, p. 48, 92, 97-98; VASCONCELLOS, Salomão de. Breviário histórico e turístico da cidade de Mariana. Belo Horizonte: Biblioteca Mineira de Cultura, 1947, p. 37; e VIEIRA, Pollianna Gerçossimo. Salomão de Vasconcellos e a consagração da “Atenas Mineira” em Monumento Nacional (1936-1947). 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2016. 64 LOPES, Francisco Antonio. Os palácios de Vila Rica: Ouro Prêto no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955, p. 99. A designação de palácio para as modestas habitações dos governantes em Minas à época é controversa em termos urbanísticos, embora seja utilizada na documentação coeva, inclusive no texto do Discurso para referir a residência e/ou local de trabalho do governador durante a revolta. A casa do conde de Assumar, como hoje é conhecida em Mariana, então em ruínas, encontra-se restaurada sob supervisão do IPHAN.
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de Almeida do Rio de Janeiro até Minas em 1717, publicado em revista.65 A fim de descrever a instabilidade da sociedade mineradora, utiliza também o Discurso, por exemplo, ao citar de chofre a famosa passagem que abriu este capítulo, de modo mais extenso em relação ao que seria posteriormente veiculado: Das Minas e seus moradores bastava dizer o que dos do Ponto Euxino, e da mesma região afirma Tertuliano: que é habitada de gente intratável, sem domicílio, e ainda que está em contínuo movimento, é menos inconstante, que os seus costumes: os dias nunca amanhecem serenos: o ar é um nublado perpétuo: tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. Eu, contudo, reparando com mais atenção na antiga e continuada sucessão de perturbações, que nela se vêem, acrescentando que a terra parece que evapora tumultos: a água exala motins: o ouro toca desaforos: destilam liberdades os ares: vomitam insolências as nuvens: influem desordens os astros: o clima é tumba da paz e berço da rebelião: a natureza anda inquieta consigo, e amotinada lá por dentro, é como no inferno.
Na nota de rodapé, Vasconcellos atribui sua autoria de forma categórica ao conde de Assumar.66 Em 1966, no exílio na Europa, o estudioso adensa o estudo comparado das formas arquitetônicas em Portugal e Minas no ensaio Mineiridade – termo cunhado para designar o caráter peculiar dos mineiros, de todos os tempos. Conforme essa visão, o arquiteto recolhe das fontes o que a seu ver se coaduna com a ideia, despreocupado em contextualizá-las historicamente. Com acesso a escritos de Pedro Miguel de Almeida pela BNP, utiliza novamente informações provenientes do diário publicado da viagem do novo governador do Rio até Minas em 1717 e repete a citação do Discurso, doravante uma de suas mais conhecidas. Como vimos, ela depois atrairia o interesse de Mello e Souza pelo texto.67 Mas há mudanças de pontuação, grafia e palavras no traslado do manuscrito de 1720 para o trecho impresso primeiramente em 1898 por Xavier da Veiga, e em seguida da mesma passagem para as edições de 1951 e 1968 de Sylvio de Vascon65 Diário da jornada que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeiro até a cidade de São Paulo e desta até as Minas, ano de 1717. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 3, p. 295-316, 1939. Em seguida ao relato do trecho da viagem de Lisboa ao Rio, o referido documento seria publicado novamente em: TÁVORA, Maria José; COBRA, Rubem Queiroz. Um comerciante do século XVIII: Domingos Rodrigues Cobra procurador do conde de Assumar. Brasília: Athalaia, 1999, p. 197-221. Os dois manuscritos anônimos encontram-se na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (BACL), série azul, códice 382. O jesuíta Antonio Correia acompanhou o novo governador na viagem do Rio até Minas, bem como o secretário Domingos da Silva, autor gráfico dos relatos e do discurso lido por Pedro Miguel de Almeida em meio a essa viagem, em São Paulo – cuja caligrafia não corresponde à existente no Discurso e na Noticia. 66 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento - residências. São Paulo: Perspectiva, 1977 [1951], p. 37-38 . 67 Idem, 1968. Além de Mello e Souza, Caio Boschi em tese defendida em 1983 cita em nota a mesma passagem pelo livro de Vasconcellos. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder (irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais). São Paulo: Ática, 1986, p. 169.
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cellos. De dois pontos para ponto e vírgula em vários momentos no decorrer do parágrafo; de “acrescentarey” para “acrescentando” e depois “acrescento”. Desde a edição de Inferno atlântico, Laura de Mello e Souza cita em nota e na bibliografia o livro publicado em Ouro Preto no APM, certamente envolvida com o processo que resultaria na reedição de 1994.68 Os exemplos de mudanças de pontuação e palavras – felizmente nesse caso sem mais consequências – demonstram, no entanto, que as apropriações de extratos descontextualizados de um grande texto, bem como as atualizações de linguagem e pontuação a fim de facilitar a leitura contemporânea, podem por vezes alterar os sentidos originais.69 Também a atribuição cabal de uma autoria sem maiores reflexões repercute na historiografia, ao perder-se o contato com as circunstâncias de produção dos manuscritos.70 Paradoxalmente, o arquiteto possuía sensibilidade para captar a passagem eloquente, ademais introduzida pelas remissões a Ponto Euxino, no extremo do império de Roma na costa do mar Negro, e ao padre cartaginês Tertuliano – sinais para se explorar referências importantes no Discurso, como adiante veremos. Da arquitetura à poesia arquitetural. A leitura do “Romance V ou Da destruição de Ouro Podre”, de Cecília Meireles em Romanceiro da Inconfidência indica que, além das cartas publicadas por Couto de Magalhães,71 a poeta consultou o Discurso editado em 1898, a fim de tecer em 1953 o grande poema orgânico sobre episódios de Minas Gerais setecentista: Vieram cavalos de fogo: / são do Conde de Assumar. / Pelo Arraial de Ouro Podre, / começa o incêndio a lavrar. / O Conde jurou no Carmo / não fazer mal a ninguém. / (Vede agora pelo morro / que palavra o Conde tem! / Casas, muros, gente aflita / no fogo ralando vêm!) / D. Pedro, de uma varanda, / viu desfazer-se o arraial. / Grande vilania, Conde, / cometes para teu mal. / Mas o que agüenta as coroas / é sempre a espada brutal. / [...] (Vede as sombras dos soldados / entre pólvora e alcatrão! Valha-nos Santa Ifigênia! / - E isto é ser povo cristão!) [...] Morreu Felipe dos Santos / e, por castigo exemplar, / depois de morto na forca, / mandaram-no esquartejar! / Cavalos a que o prenderam, / estremeciam de dó, /
68 VEIGA, 1898, p. 37-38; VASCONCELLOS, 1968, p. 24-25; e SOUZA, 1993, p. 207, 250. 69 Sobre trechos de obras apropriados por outras publicações com alterações de sentido, cf. McKENZIE, op. cit., p. 32-41; sobre as decorrências de erros tipográficos, cf. BOUZA, 2001, p. 27-28; e BOUZA, Fernando. Imagen y propaganda: capítulos de historia cultural del reinado de Felipe II. Madrid: Akal, 1998, p. 134-139. 70 LOVE, op. cit., p. 14-31. 71 MAGALHÃES, op. cit.
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por arrastarem seu corpo / ensanguentado, no pó. / [...] Fogo vai, fumaça vem... / Um vento de cinzas negras / levou tudo para além... / Dizem que o Conde se ria! / Mas, quem ri chora também. / [...] Dissera o Conde: “Estais livres”. / E deu ordem de prisão. / Isso, Dom Pedro de Almeida, / é o que faz qualquer vilão. / [...] Quem vos deu poder tamanho, / Senhor Conde de Assumar? / “Jurisdição para tanto / não tinha, Senhor, bem sei...” / (Vede os pequenos tiranos / que mandam mais do que o Rei! / Onde a fonte do ouro corre, apodrece a flor da Lei!) [...] Morreu Felipe dos Santos: / Outros, porém, nascerão. / [...] deste Arraial do Ouro Podre / que foi de Mestre Pascoal.72
Em parte motivada por uma proibição anterior do Estado Novo sobre as comemorações no dia da execução de Tiradentes e após pesquisar durante anos, a poeta órfica – até então distinguida pela busca de um lirismo puro, sem imitações – mergulha na história de Minas para, mediante aproximações com a poesia espanhola, a gesta ibérica medieval e o teatro, compor o conjunto de poemas. Conforme Leila Gouvêa, era uma alegoria do Brasil coevo. No entanto, o Romanceiro persegue o canto e o sonho, destruídos pela sociedade industrial. Nesse pesadelo épico Cecília valoriza os vencidos e os pobres, os escravos e até mesmo os cavalos com dó de Filipe dos Santos, num registro ao mesmo tempo mimético e crítico. Desde a década anterior tencionava escrever uma tragédia, encontrando sua matéria-prima em Vila Rica. Valeu-se então de recursos visuais ou gráficos (recuo de estrofes, uso de parênteses e aspas ou mudança de fonte tipográfica), a fim de denotar vozes e tons entre a comoção, a ironia e a sátira. Uma conjunção dos tempos histórico, trágico e mítico, com a “voz irreprimível dos fantasmas”, “oráculos” e “sibilas” vibrando e submetendo-se à aprovação da poeta, que ajustava seu timbre à audição do público, segundo a conferência por ela proferida em Ouro Preto em 1955:73 Por isso, quatro anos de quase completa solidão, numa renúncia total às mais sedutoras solicitações, entre livros de toda espécie relativos ao [...] século 18 – ainda pareceram curtos demais para uma obra que se desejava o menos imperfeita possível
72 MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 [1953], p. 22-26. Os trechos por mim sublinhados contêm termos e expressões presentes no Discurso editado por Xavier da Veiga. 73 GOUVÊA, Leila V. B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São Paulo: Edusp, 2008, p. 36, 70, 107 e 167-209; e MEIRELES, op. cit., p. xviii, xxx.
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– porque se impunha, acima de tudo, o respeito por essas vozes que falavam, que se confessavam, que exigiam, quase o registro da sua história.74
Pode-se imaginar o quanto o Discurso editado, ao lado das letras de Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, dos autos da Inconfidência e do imaginário popular influenciaram a elaboração do Romanceiro.75 Filho de um ex-diretor do APM e também sócio do IHGMG, Augusto de Lima Júnior cresceu em meio a documentos e foi autor de vários livros sobre Minas. No âmbito do regionalismo mineiro com aspirações nacionais, em meio a debates sobre o patrimônio histórico no século XX, o polígrafo admirava Salomão de Vasconcellos e outrora fora o artífice do translado das supostas ossadas de inconfidentes da África para o Brasil. Em 1957 publica Vila Rica de Ouro Preto. No capítulo dedicado à revolta de 1720 – antecedido por um desenho com base no retrato de Pedro de Almeida na galeria dos vice-reis e governadores em Goa – o apelidado “Liminha” transcreve longos trechos de livros e documentos. Após a narrativa eloquente de Diogo de Vasconcelos, parafraseia e cita passagens do “Discurso Histórico e Político”, para ele “a palavra do próprio Dom Pedro de Almeida”. E se equivoca ao escrever que o documento teria sido publicado pela Academia das Ciências de Lisboa.76 Em chave mais historiográfica, Charles Boxer referencia várias fontes no seu capítulo sobre Vila Rica em The Golden Age of Brazil, entre elas o Discurso editado em 1898, para expressar a opinião desfavorável do governador sobre os mineiros ou simplesmente narrar a revolta. Boxer concebe o livro como a publicação integral da versão de Assumar sobre os episódios, com um “tom de forma polemicamente defensiva”, em função de sua “consciência um tanto inquieta” em relação ao julgamento e execução sumários de Filipe dos Santos – o apontamento fará especial sentido nos Capítulos 4 e 5. Nas notas de comentários bibliográficos,
74 MEIRELES, op. cit., p. xxvii. 75 Até hoje, nas madrugadas sem lua em Ouro Preto diz-se escutar o tropel dos cavalos ateando fogo no morro do Ouro Podre, mais conhecido como da Queimada. STARLING, Heloisa M. Ser republicano no Brasil colônia: a história de uma tradição esquecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 68 e 297. Em 1958, Cândido Portinari fez estudos para o quadro que figuraria no palácio do Alvorada, com Filipe dos Santos esquartejado por quatro cavalos, conforme pesquisa de Luciano Figueiredo. Ver GOIS, Ancelmo. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jul. 2019 e 19 jul. 2019, p. 12. Sobre a apropriação musical e política da revolta durante a ditadura militar, ver Vila Rica 1720, de Egberto Gismonti em 1972 e o poema de Cecília Meireles, por Sueli Costa, cantado pelo Quarteto em Cy em 1977. 76 LIMA JUNIOR, Augusto de. Vila Rica de Ouro Preto: sintese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Edição do autor, 1957, p. 79-92; e FERREIRA, Camila Kézia. Polêmica, patrimônio e arte: a obra de Augusto Lima Júnior. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019.
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pontua que os livros de Diogo de Vasconcelos não são confiáveis, pois o autor era muito influenciado pelo neorromantismo da época, embora tenha levantado fontes dos arquivos de Minas Gerais.77 Cabem a Hélio Gravatá os únicos comentários anteriores sobre o estado físico do códice depositado no APM antes de seu desaparecimento momentâneo, bem como valiosas referências aos artigos em jornal de Alberto Lamego sem, contudo, relacionar as duas fontes, o Discurso e a Noticia. Segundo o valoroso bibliotecário, em 1976 o códice do APM apresentava duas folhas em branco, seguidas por 238 folhas escritas e quatro em branco. As folhas não eram numeradas, mas iam de 1 a 30 de oito em oito folhas em letra igual à do manuscrito, sendo as folhas de 1 a 125 numeradas com tinta em “números modernos”. Já havia furos nas folhas, transcrições latinas nas margens e o escrito “Discurso histórico” na lombada.78 Ao priorizar a bibliografia produzida no período colonial, José Honório Rodrigues acompanha o escrito por Xavier da Veiga em 1898 e resume o Discurso em quatro páginas. Para ele o documento é “a mais valiosa fonte sobre o movimento chefiado por Pascoal da Silva e Felipe dos Santos”. Endossa a atribuição de sua autoria ao conde, a detração dos mineiros e o protagonismo de Pascoal da Silva Guimarães na revolta, citando vários de seus trechos. Ademais, percebe no texto uma técnica da retórica utilizada por historiadores antigos, que recriavam os discursos pela boca dos oradores/personagens presentes na narrativa.79 Portanto, até 1994 vários autores comentaram o texto do Discurso por sua impressão parcial de Ouro Preto, para heroicizar ou desfazer o mito do quase mártir Filipe dos Santos, perceber a inflexão representada no governo do conde de Assumar80 ante os potentados na antiga capitania de São Paulo e Minas do Ouro, endossar ou simplesmente narrar o mando autoritário do “conde general” com suas opiniões sobre os mineiros, contar a história da região em seus primeiros tempos,
77 BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil (dores de crescimento de uma sociedade colonial). Tradução de Nair de Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969 [1962], p. 185, 213 e 389 (citações na p. 213). 78 Sucedem-se a remissão aos comentários de Xavier da Veiga sobre a chegada do manuscrito e sua edição de 1898 (sem as notas marginais) e referências aos artigos de Lamego e ao escrito por Taunay sobre a Noticia. GRAVATÁ, 1998, p. 109-110. 79 RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. 1a parte: historiografia colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 343-347 (citação na p. 343). 80 Desde abril de 1718 Pedro Miguel de Almeida e Portugal, governador da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, recebeu autorização de d. João V para intitular-se conde de Assumar, embora seu pai João de Almeida e Portugal, 2o conde de Assumar e titular da casa, ainda vivesse até 1733. APM, Secretaria de Governo da Capitania (SC)-11, carta de 25/04/1718.
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caracterizar o estilo de vida em Minas ou até discutir o lugar do “palácio” de Assumar em Vila de Nossa Senhora de Ribeirão do Carmo – atual Mariana – com vistas ao reconhecimento de seu patrimônio histórico. Contribuíram assim para sublinhar seu caráter multifacetado e relevo historiográfico,81 enquanto a Noticia permaneceu pouco explorada, com uma publicação efêmera e o pouco contato dos historiadores com o manuscrito.82 Para o filósofo Paul Ricoeur, a distância espacial e temporal entre a escrita e a leitura, bem como a autonomia semântica do texto – a ser esclarecida adiante – possibilitam um âmbito maior de leitores potenciais num tempo indeterminado, alterando o caráter ostensivo de referência do “discurso”, que vai sendo reestruturado. Assim o texto liberta-se da tutela da intenção autoral e de seus limites situacionais.83 Voltamos assim ao meio da ação. Mesmo condicionado pelos fatores apontados, o estudo crítico de Mello e Souza sobre o texto central do Discurso possui grandes méritos, ao discutir a historiografia tradicional de Minas sobre a revolta, com muitos títulos aqui referidos. Percebe assim a mitificação construída de Filipe dos Santos à maneira de Tiradentes, contraposta à vilania personificada em Assumar, com base no texto. Interessada no tema dos motins coloniais,84 ela também vincula fortemente o Discurso à biografia, aos escritos e à biblioteca de Pedro Miguel de Almeida Portugal (1688-1756), 3o conde de Assumar titular em 1733, 1o marquês de Castelo Novo em 1744, com título alterado para 1o marquês de Alorna desde 1748. Mediante cartas escritas após a repressão da revolta pelo nobre português ao bispo do Rio de Janeiro, Francisco de São Jerónimo, e ao primo João Mascarenhas,
81 OLYNTHO, op. cit.; VASCONCELOS, 1974 [1904]; CARVALHO, 1933; TAUNAY, op. cit.; GARCIA apud VARNHAGEN, op. cit., v. 2; FREYRE, op. cit.; VASCONCELLOS, 1937; VASCONCELLOS, 1977 [1951]; VASCONCELLOS, 1968; BOXER, op. cit.; e RODRIGUES, 1979. 82 LAMEGO, 1929; VARNHAGEN, op. cit., v. 2; TAUNAY, op. cit.; GRAVATÁ, 1976; e GRAVATÁ, 1998. 83 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2013 [1975], p. 54-57. 84 O interesse resultaria em vários artigos e capítulos de livros, por exemplo: SOUZA, Laura de Mello e. Os ricos, os pobres e a revolta nas Minas do século XVIII (1707-1789). Análise & Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, n. 2-3, p. 31-36, 1989 (no qual explora brevemente o trecho de abertura deste capítulo em analogia à correspondência do conde de Assumar na p. 32); SOUZA, Laura de Mello e. Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 347-366 (em que realiza o mesmo movimento na p. 350); e SOUZA, Laura de Mello e. D. Pedro de Almeida Portugal e a revolta de 1720 em Vila Rica. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, p. 193-213. Uma contextualização mais ampla é publicada em: SOUZA, Laura de Mello e. Motines, revueltas y revoluciones en la América portuguesa de los siglos XVII y XVIII. In: TANDETER, Enrique; LEHUEDÉ, Jorge Hidalgo (orgs.). Historia general de América Latina. Madrid: Unesco; Trotta, 2000a, v. 4, p. 459-473.
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Mello e Souza fortalece a hipótese de participação dos jesuítas Antonio Correia e José Mascarenhas no escrito após a revolta, sobre quem recolhe informações.85 A historiadora detém-se em relacionar os nomes de autores mencionados nessa correspondência aos citados no Discurso e a livros existentes no inventário da biblioteca do 1o marquês de Alorna, publicado por Manuel Artur Norton, e estabelecer algum exame intertextual com outros escritos de Pedro Miguel, reforçando a possibilidade de sua autoria ou coautoria no texto, mediante a incidência de seu universo mental.86 Comenta ainda em nota o exemplar da coleção Lamego, percebendo seu texto sem as digressões e citações do Discurso, atendo-se aos acontecimentos do levante e com uma linguagem “mais moderna”, parecendo ser de meados ao último quartel do século XVIII. Apesar de não ter como comparar os dois manuscritos em termos materiais e visuais, Mello e Souza revela aqui grande sensibilidade, atenta a diferentes formas textuais, como veremos à frente.87 A reedição comentada representou um marco nas publicações da autora, que doravante assumem um perfil mais relacionado à história política e administrativa, todavia com uma abordagem social e/ou de cunho antropológico, com atenção à produção escrita. Em Norma e conflito há um estudo sobre o discurso de posse de Pedro de Almeida como governador da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, no qual se exalta a experiência pregressa que o levou ao cargo de general de batalha na Guerra de Sucessão da Espanha, além de um capítulo sobre os governadores nobres de Minas – entre eles Pedro de Almeida – no qual a historiadora comenta o impresso sobre a sublevação de 1720.88 Em O sol e a sombra seis capítulos analisam as trajetórias de governantes da América portuguesa setecentista, com uma abordagem relacional entre as letras, as armas e os respectivos governos, no fundo ensaiada no estudo crítico do Discurso. No capítulo 5 estuda a trajetória do
85 Entre os escritos do nobre, Mello e Souza trata da instrução dada pelo marquês de Alorna ao marquês de Távora no governo do Estado da Índia, em publicação tardia. Cf. SOUZA, 1994, p. 13-36. 86 NORTON, Manuel Artur. D. Pedro Miguel de Almeida Portugal. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1967, p. 324-344; e SOUZA, 1994, p. 36-56. Em suas anotações particulares cedidas a esta pesquisa, Mello e Souza produz tabelas manuscritas com os nomes de autores citados nas cartas escritas por Pedro Miguel de Almeida ao bispo e ao primo, os existentes no texto central do Discurso e os nomeados no inventário da biblioteca do 1o marquês de Alorna. 87 SOUZA, 1994, p. 14. 88 O discurso de posse foi publicado primeiro em: SOUZA, Laura de Mello e. Um documento inédito: o discurso de posse de D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, como governador das capitanias de São Paulo e Minas do Ouro em 1717. Revista da Cátedra Jaime Cortesão, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 67-83, 1997a; e SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 30-42, 175-199. Ver também MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit.
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3o conde de Assumar e sua casa nobre, aprofundando temas em relação a 1994, como a análise da correspondência de Pedro de Almeida e sua família, das agruras e feitos de Assumares/Alornas na corte portuguesa, além de realizar novo cotejo do inventário da biblioteca do 1o marquês de Alorna, com mais ilações entre os títulos dos livros e ideias veiculadas no Discurso. Estuda ainda no capítulo 6 a trajetória de Sebastião da Veiga Cabral, ex-governador da colônia de Sacramento, personagem bem atuante nos episódios da revolta de 1720, como se vê no Discurso.89 Contudo, maior foi o impacto da reedição de 1994 nos trabalhos de historiadores de várias escolas, entre artigos, livros, teses e dissertações que passaram a valer-se do texto de matriz setecentista, sedimentando-o como um dos documentos mais interessantes e citados da história do Brasil colonial. Devido ao grande número de estudos correspondentes a essa fase posterior, comentá-los em destaque fugiria ao escopo do livro, focado no trabalho documental.90 Mas em toda essa historiografia salta aos olhos a desproporção de comentários sobre um e outro escrito, pois a transcrição do códice no APM por Xavier da Veiga e suas duas publicações em livro o divulgaram bastante – o que não ocorreu com o exemplar do IEB-USP, cujo exame, por esta pesquisa, revela-se importante no esclarecimento da produção e do perfil literário do próprio Discurso. Paradoxalmente, a maior circulação da Noticia – como veremos – indica que este escrito repercutiu mais à época.91 Por sua vez, o sumiço temporário do exemplar em Belo Horizonte inviabilizou a comparação entre os dois manuscritos, fazendo com que opiniões sobre o Discurso editado fossem formuladas e reproduzidas entre os investigadores, sem contato direto com o texto em feição integral.
89 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 185-283. 90 Para citar poucos exemplos de sua representatividade, com base na edição de 1994, Francisco Bethencourt relata a sublevação de 1720 (valendo-se bem menos de Sebastião da Rocha Pita), estabelecendo ainda pelo Discurso ilações sobre a Guerra dos Emboabas (1707-1709). BETHENCOURT, Francisco. A América portuguesa. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa: o Brasil na balança do império (1697-1808). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998a, v. III, p. 228-230. Ver também GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Conde de Assumar. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 133-135; FONSECA, Alexandre Torres. A revolta de Felipe dos Santos. In: REZENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, v. 1, p. 549-564; e ANASTASIA, Carla. Sedição de Vila Rica. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Angela Vianna (orgs.). Dicionário histórico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 374-376. Impossível comentar todos os trabalhos mais recentes; um balanço dos mais significativos após 1994 foi feito em MONTEIRO, 2015, p. 180-187. 91 ALMADA; MONTEIRO, op. cit.
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Autor e[m] processo Apesar da riqueza das leituras apresentadas, algumas ideias construídas sobre os possíveis autores, motivos da produção e o destino do códice precisam ser revistas. Xavier da Veiga observa que no precioso cimélio: os dizeres transcriptos, e ainda mais do que elles a materia da obra, o estylo e o tom com que foi ella elaborada, mostrão que esse trabalho – verdadeiro memorial de um accusado impenitente – é da própria lavra do Conde-general (Conde de Assumar), ou de alguém por elle, e isso confirma a tradição do processo de responsabilidade que moveu-lhe em Lisboa o mestre de campo Paschoal da Silva Guimarães.92
O ex-diretor do APM relaciona a escrita do Discurso ao próprio conde ou seu representante e à “tradição” de existência de um processo movido contra Pedro Miguel pelo colono minerador e comerciante, enviado preso a Lisboa em 1722. Para Diogo de Vasconcelos o Discurso é uma “obra que se não é do Conde, foi inegavelmente por ele revista e corrigida”. Adiante, comenta: “Muitos têm dito, que o Conde, terminada a sua homenagem em agosto de 1721, e logo que chegou à metrópole, El-Rei desgostoso pelas suas violências e tiranias, o mandou submeter a processo de responsabilidade”. Se as ofensas partiam do poder público aos particulares, segundo o historiador cabia-lhes a ação por queixa de injúrias ou danos, conforme a jurisprudência do tempo. Pascoal teria requerido contra o conde, mas, falecendo, a instância extinguiu-se e o processo parou. O que não padece dúvida, é que o Conde viu-se obrigado a defender-se perante os seus conterrâneos em Portugal, escandalizados com a notícia flamante dos acontecimentos, defesa que nos deixou no Discurso Histórico Político, ao qual hoje se daria o nome de panfleto destinado a fazer opinião.93
Ressurge assim a associação entre a elaboração do Discurso e o suposto processo de Pascoal da Silva, além da designação errônea de panfleto para o tipo documental, evidenciando que Vasconcelos, embora amigo de Xavier da Veiga e ligado ao APM, lidou com a versão impressa do texto. A ideia repercutiu. Ao levantar e anotar documentos do Arquivo da Casa dos Contos, em Ouro Preto, o erudito José Afonso Mendonça Azevedo endossa
92 VEIGA, 1898, p. 4. 93 VASCONCELOS, 1974 [1904], p. 203-206.
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a versão de Diogo de Vasconcelos para o Discurso, “que esse mestre acredita ser a defesa com que o Conde, a esse tempo em Portugal, se defrontou com os seus poderosos inimigos”. Cita em seguida trecho da versão impressa de 1898, sobre o enforcamento e esquartejamento de Filipe dos Santos.94 Por sua vez, Feu de Carvalho afirma ter “razoáveis e bons motivos” (não explicitados, nem mesmo em outros escritos seus) para atribuir a autoria do “Disc. Historico Politico” ao jesuíta Antonio Correia, e não associa a produção da obra a qualquer razão.95 Já para Laura de Mello e Souza o Discurso foi escrito com o intuito óbvio de justificar a execução sumária de Filipe dos Santos, que na qualidade de homem branco e livre deveria ter sido julgado por uma Junta de Justiça. Em algumas passagens, que não chegam a uma dezena, o narrador usa a primeira pessoa; o Conde, por sua vez, é sempre referido na terceira pessoa do singular.96
Envereda então pelas discussões sobre a autoria, trazendo dados sobre os jesuítas e observando que na carta dirigida ao primo João Mascarenhas, o conde mencionou o envio de um intrigante “papel” escrito pelos padres. E apresenta muitas informações sobre Pedro de Almeida, que viveu um relativo ostracismo na corte após seu regresso das Minas. As razões para tal seriam a “residência” por meio da qual o ex-governante aguardava o julgamento das contas de seu governo nas Minas, uma altercação na praça do Rossio em 1725 e as implicâncias do marquês de Abrantes, afastando-o do beija-mão real mediante sua influência no adiamento desta inquisição, conforme o relato de viajantes.97 Nesse ponto a historiadora evoca a referida passagem de Diogo de Vasconcelos, ao escrever que “a tradição reza e tal evidência corrobora que era este o caso de Assumar, processado em Lisboa por Pascoal da Silva devido à queima de suas casas no Morro do Ouro Podre” – embora em nota afirme não ter localizado o
94 Sob a direção de Rodolfo Garcia na BNB, ver AZEVEDO, José Afonso Mendonça. Os levantes de Pitangui e a Revolta de Vila Rica (1720). Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. LXV, p. 121-153, 1945 [1943] (citação à p. 134). 95 CARVALHO, 1933, p. 20 e 98. 96 SOUZA, 1994, p. 25. 97 DESCRIÇÃO da cidade de Lisboa... In: CHAVES, Castelo Branco (org.). O Portugal de D. João V visto por três forasteiros. Tradução de Branco Chaves. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1989, p. 69-71; e MERVEILLEUX, Charles Fréderic de. Memórias instrutivas sobre Portugal 1723-1726. In: CHAVES, Castelo Branco (org.). O Portugal de D. João V visto por três forasteiros. Tradução de Branco Chaves. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1989, p. 69-71, 159; SOUZA, 1994, p. 25-41.
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referido processo nos arquivos.98 Endossa enfim a ideia de que o Discurso foi escrito a seis mãos (Pedro de Almeida, Antonio Correia e José Mascarenhas), salientando as similitudes entre o universo mental do conde e as ideias no texto em tela.99 Em O sol e a sombra reescreve parte dessa argumentação, adensando-a com maior exame dos títulos pertencentes à biblioteca do marquês de Alorna, seus escritos e o teor do Discurso.100 Não obstante a procedência de ideias sobre a possível tríade de autores, permanece a confusão entre o imaginado processo de Pascoal da Silva e o motivo de elaboração do Discurso. Em O rei no espelho credito a existência desse processo, interpretando o Discurso como a justificativa de um castigo sem julgamento. Anos antes havia feito um comentário comparativo entre o texto estabelecido em 1994 e um pequeno impresso de autoria do 3o conde de Assumar, pelas recorrentes menções a alegorias mitológicas como Hércules e hidras, comuns a Pedro Miguel e ao apego aos clássicos vigoroso à época.101 No capítulo de Maquiavel no Brasil, amparado ainda apenas pelo texto central republicado em 1994, não enfrento as questões da autoria e da produção do documento, na tentativa de captar o universo cultural nele incidente. Identifico assim, mediante um levantamento quantitativo de referências comentado, a relevância das orações Catilinárias de Cícero como linha mestra de inspiração política na sua redação, não obstante a existência de outros sentidos na escrita relacionados à cultura jesuítica.102 Ao confrontar o Discurso (pela reedição de 1994) com a documentação produzida pelo conde de Assumar durante a sedição, para Maria Verônica Campos o governador teria mandado rasgar os primeiros 82 fólios de um códice com despachos e petições hoje sob a guarda do APM, com a justificativa do secretário – feita em 23 de setembro de 1721, quando Pedro de Almeida não estava mais nas Minas – de
98 SOUZA, 1994, p. 32. 99 Ibidem, p. 42-56. 100 Idem, 2006, p. 185-252. 101 MONTEIRO, 2002, p. 300 e 302. No panegírico referido, Pedro Miguel de Almeida se encontrava em Évora no exercício de posto militar. BNB, OR, CBM, 23, 1, 7, no 8. PORTUGAL, Pedro Miguel de Almeida. Panegyrico para se recitar no dia 22 de outubro de 1736. Em que se celebravaõ os annos delrey nosso senhor. Remetido de Evora pelo conde de Assumar, censor da Academia Real. Lisboa: José Antonio da Silva, 1736, 19 p. Ver MONTEIRO, 1997. 102 MONTEIRO, 2015, p. 179-221 (em especial p. 183, nota 11). As quatro orações Catilinárias foram discursos proferidos por Cícero no senado romano no século I a.C. contra a conjura liderada pelo patrício Lúcio Sérgio Catilina. O evento será explicado no Capítulo 5.
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que esses correspondiam a um registro indevido. O responsável pela sindicância, o ouvidor Rafael Pires Pardinho, estranhou a ação. O termo de residência – a ser esclarecido adiante – do conde de Assumar ocorreu em Vila Rica em 24 de março de 1723, mas segundo a historiadora teria ficado inconcluso.103 Marcos Aurélio Pereira, autor de uma biografia contextualizada de Pedro Miguel de Almeida, vale-se das memórias publicadas do conde de Povolide, da descrição anônima e do relato produzido por Charles Merveilleux de 1723 a 1726, bem como da impressão das gazetas manuscritas existentes na Biblioteca Pública de Évora (BPE) para esclarecer o momento da chegada de Pedro Miguel em Lisboa. Os descontentamentos dos presos, a animosidade do marquês de Abrantes, a alteração no Rossio no fim de 1725 e o desterro da corte de Lisboa do “conde de Assumar moço” junto a outros nobres, de 1726 até 1732, são detalhados. Entretanto, o autor não vincula esses episódios ao suposto processo, mencionando em nota: “Não se achou documentação ou processo algum nos arquivos de Portugal ou Brasil sobre o governo do Conde de Assumar”.104 Voltada para o estudo da corrupção no Brasil da Época Moderna, e ancorada na pesquisa de Pereira no que respeita à casa de Assumar/Alorna, Adriana Romeiro elucida os processos de residência, criados na legislação portuguesa para fiscalizar a conduta de funcionários e ministros ao final de seus mandatos. O Desembargo do Paço indicava um magistrado – geralmente um ouvidor-geral – para a residência dos governadores, com provisão do Conselho Ultramarino. Testemunhas eram então inquiridas a fim de comprovar ou não a veracidade de eventuais denúncias. Conforme Romeiro, eram valorados itens como limpeza de mãos, obediência às ordens de Lisboa, atenção ao bem comum e conduta moral e religiosa, e não propriamente questões técnicas. Os autos de residência seguiam selados e lacrados para Lisboa. Após um parecer do Conselho Ultramarino, os papéis iam para o
103 APM, SC-14 apud CAMPOS, op. cit., p. 239. 104 PEREIRA, Marcos Aurélio. Vivendo entre cafres: a trajetória do conde de Assumar e o império ultramarino português. Curitiba: Prismas, 2016, p. 126-130 e 161 (citação à p. 423). Ver também SALDANHA, António Vasconcelos de; RADULET, Carmen (orgs.). Portugal, Lisboa e a corte nos reinados de D. Pedro II e D. João V: memórias históricas de Tristão da Cunha de Ataíde 1o conde de Povolide. Lisboa: Chaves Ferreira, 1990, p. 340, 351, 352, 358, 372, 406, 412 e 413; DESCRIÇÃO da cidade de Lisboa..., op. cit., p. 69-71; MERVEILLEUX, op. cit., p. 153, 159, 181-182; e LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis; OLIVAL, Fernanda (orgs.). Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. Lisboa: Colibri, 2002-2011, v. 1 e 2.
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Desembargo do Paço, onde um juiz emitia a sentença final. Enfim com a certidão, o funcionário podia solicitar mercês por seus serviços e novos cargos.105 Mas o início do processo podia atrasar muito, com prejuízos ao interessado, que se via envolto em suspeitas. Em 1721 os processos de residência ainda ocorriam frequentemente com a presença do governador no ultramar. Contudo, eles podiam ser manipulados. Lourenço de Almeida, governador da nova capitania de Minas Gerais de 1721 a 1732, viveu dificuldades em Lisboa para a instauração de seu processo. Em meio a agruras vividas sobre sua reputação, ele teria temido que o ouvidor de São Paulo, Rafael Pires Pardinho – responsável pela residência do antecessor, o 3º conde de Assumar, na antiga capitania de São Paulo e Minas do Ouro – fosse também o responsável pelo seu caso. D. Lourenço teria criticado essa residência tão célere e não queria que Pardinho inquirisse igualmente o seu governo.106 Em janeiro de 1721 houve uma reunião do Conselho Ultramarino em Lisboa para deliberar sobre os acontecimentos passados nas Minas. O procurador e os conselheiros leram as cartas de Pedro de Almeida enviadas ao rei em julho de 1720 – a serem vistas no Capítulo 4 – e as missivas das câmaras de Vila do Carmo e Vila Rica, devendo posicionar-se sobres os tumultos e a ação do governador.107 Eles reconheceram a gravidade dos episódios, ainda mais pela quebra dos perdões por parte dos sublevados. Apesar de o governador não ter esperado para formar uma junta de justiça ou mandar Filipe dos Santos preso para o Rio de Janeiro, preferindo enforcá-lo imediatamente, sua ação foi considerada eficaz para frear os tumultos. Fala-se em zelo, valor, constância e prudência, no bom uso de Pedro de Almeida dos procedimentos militares, rápidos e violentos. Vários sugerem que esse governo fosse averiguado pelo ouvidor de São Paulo, Rafael Pires Pardinho.108 Alarmista, António Rodrigues da Costa recomendava meios suaves para a guerra não se alastrar no Estado do Brasil. Conforme o conselheiro, devia-se prevenir o novo governador Lourenço de Almeida
105 ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 218-231. 106 Diário do conde de Ericeira de 03/11/1733, LISBOA; MIRANDA; OLIVAL, op. cit., v. 2, p. 293; e ROMEIRO, Adriana. Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732. Campinas: Ed. Unicamp, 2018, p. 148. 107 Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa (AHU), códice 233, consulta de 09/01/1721, f. 218r-223v. Transcrição cedida por Luciano Figueiredo. 108 Ibidem, f. 218r-219r. Rafael Pires Pardinho era ouvidor-geral em São Paulo, com jurisdição até o sul, sendo depois intendente no Distrito dos Diamantes de 1734 a 1738, quando foi nomeado para o Conselho Ultramarino. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. D. João V. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 172.
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para pactuar com os locais se necessário fosse, e o ministro responsável pela devassa da sublevação seria o mesmo do processo de residência do ex-governador – embora isso não fosse muito decoroso, segundo Rodrigues da Costa.109 Na Seção Colonial do APM – cujo corpus documental será comentado no Capítulo 4 – um códice com cópias de cartas de governadores e autoridades reproduz uma carta de d. João V a Lourenço de Almeida (ainda em Lisboa) em março de 1721, sobre o caso. Por esta o rei mostra-se prudente em confirmar o perdão dado pelo conde Pedro de Almeida – então em Minas aguardando o sucessor que chegaria em agosto – e instrui o próximo governador a receber o ouvidor Pardinho, para instaurar uma devassa contra os supostos atuantes na sublevação passada. Mas d. Lourenço só confirmaria o perdão régio se os ânimos estivessem alterados. Na mesma missiva o rei informa a Lourenço de Almeida que Pardinho também realizaria a residência do governo anterior, sendo essa uma matéria de “grande importancia e consideraçam”, para se “conseguir tudo o que for possivel ao sossego daqueles Povos”. Em alvará emitido dias depois, o rei confirma o perdão aos amotinados concedido pelo conde governador, a ser divulgado por Lourenço de Almeida caso fosse necessário.110 Portanto, infere-se que a devassa do governo de Pedro de Almeida ocorreu nas Minas sem maiores contendas, em prol do apaziguamento das forças na gestão do sucessor. Nesse tempo Pascoal da Silva Guimarães encontrava-se preso no Rio de Janeiro e depois iria para Portugal – infelizmente não se sabe quando morreu. Tal como sinalizaram Mello e Souza e Pereira, não localizei o imaginado processo em registros da Casa de Suplicação ou da Chancelaria de d. João V, de forma a corroborar a tradição popular e o indicado por Xavier da Veiga em 1898, doravante amplificado. Segundo as memórias do conde de Povolide, o processo de residência de Pedro de Almeida foi realizado no Brasil, perdurando em seu retorno a Lisboa em março de 1722. Ao menos até esse momento, por esse motivo ele não podia
109 AHU, códice 233, op. cit., f. 222r-222v. Percebe-se no parecer deste conselheiro uma crítica às ações de Pedro de Almeida, e visões de “estado” e “império” diferentes do que as cartas deste governador e os textos do Discurso e da Noticia evidenciam. O assunto será desenvolvido no Capítulo 5. Cf. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Antônio Rodrigues da Costa e os muitos perigos de vassalos aborrecidos (notas a respeito de um parecer do Conselho Ultramarino, 1732). In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos; NEVES, Guilherme Pereira das (orgs.). Retratos do império: trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: Eduff, 2006, p. 187-203; e CRUZ, Miguel Dantas. Um império de conflitos: o Conselho Ultramarino e a defesa do Brasil. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2015, p. 108-138. 110 APM, SC-16, f. 82r-82v, Carta de El Rey nosso S. sobre o procedimento que se ha de ter com os povos q’ se soblevara’o.
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frequentar o paço, ficando ausente do tradicional beija-mão real. Em 1725 ocorreu a confusão de nobres no Rossio, sucedida pelo degredo de 35 representantes da alta nobreza, entre eles o conde de Assumar moço. A meu ver o episódio insere-se no processo de gradual afastamento da nobreza tradicional do centro do governo, como veremos no Capítulo 2, e nada indica que haja um motivo particular contra o ex-governador de São Paulo e Minas do Ouro.111 A propósito, Adriana Romeiro recupera uma citação em nota do livro de Marcos Aurélio Pereira, de um relato proferido tempos depois pelo filho de Pedro de Almeida, o 2o marquês de Alorna João de Almeida Portugal, na corte de d. Maria I em meio à revisão do processo dos Távoras – aos quais ligava-se por laços de casamento. A historiadora não subjetiva a interpretação desse relato tardio, olvidando o caso do Rossio e estendendo o alcance do problema mineiro até 1732. Diferente da tese de Marcos Pereira, que ressalta, pela lógica da memória do 2o marquês de Alorna, a ação necessária em prol do Estado feita outrora por seu pai na repressão da sublevação e a compreensão tardia de d. João V, nomeando-o depois vice-rei da Índia. Para João de Almeida Portugal a casa de Távora também merecia o apoio régio após os excessos do 1o marquês de Pombal.112 Entretanto, conforme a captação de Romeiro, também compatível com a versão apresentada por João de Almeida sobre o ostracismo vivido por seu pai na corte, em todo esse tempo permaneceu uma reserva não registrada em escritos de d. João V em face do excessivo arbítrio do ex-governador de capitania, no exercí-
111 O exílio de 35 nobres representava, segundo Merveilleux, mais de ¾ dos que frequentavam a corte em dias de gala, ou acompanhavam o rei em público. SALDANHA; RADULET, op. cit., p. 340, 351-352, 358, 372, 406 e 412; MERVEILLEUX, op. cit., p. 181-182 e SILVA, 2006, p. 116. 112 Disse João de Almeida Portugal sobre seu pai: “Em 1717 foi o Marquês nomeado Governador de S. Paulo, e Minas, e sendo-lhe mandado estabelecer n’esse governo a casa de Fundição, e Quintos, essa ordem junta com outras, que desagradarão à pessoas absolutas, ocasionou uma revolta, que durou por alguns meses, e que custou muito a aplacar. Sem embargo da falta de tropas, e da insolência de um grande numero de levantados, o Marquês na força dos maiores perigos soube conservar o respeito da Coroa, e as ordens Régias tiverão a sua perfeita execução. Com este serviço granjeou o Marquês inimigos poderosos, que o malquistarão na presença de S. Majestade. Por essa razão esteve detido alguns anos à sua residência, e vencidos essa dificuldade a rogos seus foi sentenciada a seu favor a dita residência. Apesar d’isso continuou a desgraça do marquês, imaginando S. Majestade que da sua parte tinha havido algum excesso de jurisdição; mas, mostrando o mesmo Marquês que alguma ação mais severa do seu governo tinha sido posta em prática em virtude da sentença das Câmaras convocadas, e autorizadas pela necessidade extrema do Estado, S. Majestade se mostrou persuadido do bom procedimento do Marquês, e o admitio na sua Real Presença”. ANTT, Ministério do reino, maço 214, doc. 17. Apud PEREIRA, 2016, p. 311; e ROMEIRO, 2017, p. 260-261.
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cio de sua jurisdição em 1720.113 Embora não mencione o Discurso como peça de defesa política em algum processo, a historiadora atribui sua autoria, em algumas passagens, ao 3o conde de Assumar.114 Atento a diversas perspectivas historiográficas sobre o Brasil no período colonial, num capítulo de uma coletânea Marco Antonio Silveira relaciona o tema da razão de estado – pródigo na Europa dos séculos XVI e XVII, entendido em suma como a necessidade de conservação e ampliação de domínios – à colonização da América portuguesa. Para tal estuda a segunda parte do Discurso, intitulada Seguem-se as razões que teve o conde-general para proceder sumariamente ao castigo, pela reedição de 1994. Vale-se da pesquisa de Mello e Souza e acrescenta suposições, por exemplo sobre a cópia de 1825 da BNB, observando que o texto em tela adquiriu interesse como literatura histórica e política, sendo relevante para o estudo da colonização lusa na América.115 Conforme Silveira, a segunda parte do Discurso refere-se à justiça dos castigos aplicados, com argumentos e exemplos que não distinguem os campos da justiça e da política. Apresenta um levantamento comentado de autores e obras incidentes nesta parte, com a ressalva de que nem todas as obras referidas (considerando apenas o texto central do Discurso republicado) teriam sido consultadas diretamente pelo “autor”, e sim mediante outros livros mais recentes. Toma assim essas citações como apócrifas. Sobre a produção e a autoria do Discurso, lembra o temor do jovem Assumar de ser excomungado expresso na carta escrita ao bispo, credita a possibilidade de sua redação em Minas pelo uso do vocábulo “presente” em algumas passagens e atribui o uso da primeira pessoa no texto principal à voz de Pedro Miguel. Supõe ainda que a segunda parte do documento não tenha sido escrita pelo conde de Assumar moço e que o manuscrito visava uma publicação futura, ao defender o ex-governador de possíveis procedimentos judiciais, inserir a Revolta de Vila Rica na literatura política, 113 Em 1733 morreram Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses, 1o marquês de Abrantes – antagônico a Pedro de Almeida no âmbito da corte, talvez por seus predicados – e o pai João de Almeida Portugal, 2o conde de Assumar. O novo titular da casa de Assumar ingressa no mesmo ano na Academia Real da História, na vaga do marquês de Abrantes. Esses fatos corroboram o fim de seu ostracismo. MERVEILLEUX, op. cit., p. 159; LISBOA; MIRANDA; OLIVAL, op. cit., v. 2, p. 54, 86, 235, 237 e 241 e v. 3, p. 341; e MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o poder monárquico no séc. XVIII. Coimbra: Minerva, 2003, p. 333. 114 ROMEIRO, 2017, p. 269 e 283. 115 SILVEIRA, Marco Antonio. De extrema necessidade: justiça e razão de estado na sublevação mineira de 1720. In: FURTADO, Júnia Ferreira; ATALLAH, Cláudia Azeredo; SILVEIRA, Patrícia Ferreira dos Santos (orgs.). Justiças, governos e bem comum na administração dos impérios ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVIII). Curitiba: Prismas, 2017, p. 469-504.
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adaptar temas da razão de estado à realidade colonial e demandar da coroa uma atitude em relação aos problemas dos governadores.116 Já no capítulo dedicado à sublevação de Vila Rica, no livro sobre a importância do aspecto bélico e da razão de Estado na colonização da América portuguesa, Silveira também resume o período de ostracismo de Pedro de Almeida na corte até 1733, em seu ingresso na Academia Real da História. Explora sua primeira “prática” naquela instituição, aludindo à possibilidade de o 3o conde de Assumar escrever no momento um relato sobre o ocorrido em Vila Rica. Considera as ideias políticas de Pedro de Almeida pelas cartas escritas no Brasil e a instrução redigida na Índia, enfatizando o lugar da literatura sobre razão de Estado na elaboração do Discurso – que consulta pela cópia digital do manuscrito, com acesso às notas. Para Silveira o documento pode ter sido preparado para o processo movido contra o ex-governador, ou para ser divulgado em livro manuscrito ou impresso, “organizado segundo o estilo da literatura da razão de Estado” de modo a fazer circular um exemplo de como ocorria uma revolta colonial.117 Analisa o documento com o foco em sua segunda parte, observando nesta o tom petulante e franco ao dirigir-se ao rei em relação a outros documentos cotejados, sendo o uso da primeira pessoa do singular novamente atribuído a Pedro de Almeida. Explora trechos do Discurso que podem ter sido retirados do livro conhecido como Empresas políticas, de Diego de Saavedra Fajardo, e destaca o uso de obras de Virgilio Malvezzi e Giovanni Botero relacionadas à tópica da reputação – reforçando as hipóteses da defesa judicial ou da circulação futura. Identifica a matriz da divisa do estandarte dos dragões mencionada no Discurso sobre o raio jupiteriano, frequente em livros de emblemas. Associa todos os autores que destaca nas notas à literatura política da razão de Estado, inclusive Nicolas Caussin em seu combate aos jansenistas. Compara trechos e ideias de algumas obras e do Discurso,
116 Ibidem. Sobre a correspondência de Pedro Miguel de Almeida analisada por esse prisma, ver SILVEIRA, Marco Antonio. Entre a ordem e a guerra. Política e razão de Estado no governo do conde de Assumar (Minas Gerais, 1717-1721). In: BARRAL, María Elena; SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Historia, poder e instituciones: diálogos entre Brasil y Argentina. Rosario: Prohistoria, 2015, p. 47-71. O tema da razão de Estado também norteia os argumentos em PEREIRA, 2016, para compreender a trajetória de Pedro de Almeida Portugal, e a tese de João Henrique Ferreira de Castro: CASTRO, João Henrique Ferreira de. “Castigar sempre foi razão de Estado”?: os debates e a política de punição às revoltas ocorridas no Brasil (1600-1732). 2016. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016, p. 414-455. 117 SILVEIRA, Marco Antonio. A colonização como guerra: conquista e razão de Estado na América portuguesa (1640-1808). Curitiba: Appris, 2019, p. 163-182 (citação à p. 166).
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supondo que tenham sido transcritos de cartapácios – livros de notas que permitiam adaptar citações conforme as circunstâncias. Enfim, sublinha a valorização dos trabalhos de Tácito no documento, desenvolvendo a associação feita por Marcos Aurélio Pereira.118 Voltada para acepções do conceito de república na história do Brasil colonial, Heloisa Starling identifica em algumas cartas de Pedro de Almeida como governador de capitania, e principalmente no Discurso (pela reedição de 1994), o sentido que associa o termo a uma sedição perigosa contra a monarquia portuguesa na Revolta de Vila Rica.119 Valendo-se do estudo crítico de Mello e Souza e de um artigo de divulgação desta pesquisa,120 considera o documento uma peça de defesa política, cuja redação – mesmo exagerada – justifica a feroz repressão contra os rebeldes: Assumar estava particularmente apreensivo quanto às repercussões, na metrópole, do grau de violência de que lançou mão contra alguns dos personagens envolvidos no levante [...] E ele sabia que precisava explicar bastante bem em Lisboa, e no ultramar, as razões da execução sumária de Felipe dos Santos [...].121
Coteja assim algumas ideias presentes em livros da biblioteca, depois inventariada, do já 1o marquês de Alorna. Para Starling, fosse fruto de uma ficção retórica ou uma aspiração real dos sediciosos a eles atribuída no Discurso, a pretensa república temerária de vícios tramada em Minas inspirava-se nas experiências dos grupos intermédios da Casa dos Vinte e Quatro em Lisboa e nos doges das repúblicas de Veneza e Gênova – ideia explorada antes por Maria Verônica Campos, na percepção do governo de Pedro de Almeida em relação ao arranjo de clientelas na região.122 Outros trabalhos menos detidos no texto beneficiam-se da republicação de 1994 e do estudo de Mello e Souza para atribuir sua autoria a Pedro de Almeida
118 Ibidem. Os autores Virgilio Malvezzi e Nicolas Caussin, nomeados no texto central do Discurso como “Marques Virgilio” e “Causino”, foram identificados antes do acesso ao AVC-17 em MONTEIRO, 2015. Para a associação do Discurso a autores relacionados ao tema da razão de Estado, cf. PEREIRA, 2016, p. 311-314. 119 STARLING, op. cit., p. 65-77. 120 MONTEIRO, 2017, p. 2-3. 121 STARLING, op. cit., p. 67. 122 CAMPOS, op. cit., p. 248.
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e sublinhar o seu sentido político.123 Luiz Carlos Villalta capta a importância da carta escrita ao bispo e alude ao suposto processo, ao escrever: O conde de Assumar [...] apelou aos livros quando se viu processado por Pascoal da Silva e ameaçado de excomunhão. Assumar escreveu ao bispo do Rio pedindo-lhe conselhos. Esse o mandou consultar homens doutos. Na dúvida sobre se recorria aos doutos vivos ou aos mortos, e ciente de que os letrados das Minas não estariam do seu lado, recorreu aos livros, lendo [...] obras de Hipócrates, Platão, Ulpiano, Cassiodoro, Tertuliano, Salviano, São Jerônimo, São João Crisóstomo, Santo Agostinho e São Gregório.124
João Pinto Furtado, Silveira e Starling também aludem à famosa passagem de abertura deste capítulo, para caracterizar o ambiente geográfico violento, desordeiro e insubmisso; relacionar a forma de governar um povo a seu caráter conforme a literatura de razão de estado; ou mostrar, na perspectiva do Discurso, como a paisagem e a topografia às avessas propiciavam reviravoltas e inversões sociais. Reforçam assim argumentos de leitura predominantemente política do texto central ora publicado.125 No estudo crítico de 1994 feito por Mello e Souza, Adriana Romeiro foi mencionada por descobrir num processo inquisitorial que o jesuíta Antonio Correia, um dos prováveis coautores, possuía trechos copiados manuscritos da Clavis prophetarum, de Antônio Vieira. Em trabalho posterior, elucida a entrada do milenarismo nas Minas pelo sertão após a morte de Vieira na Bahia em 1697, corroborando a existência de um profetismo difuso na região à época, algo expresso na visão do padre Belchior Pontes sobre a Revolta de Vila Rica, nas ideias de Pedro Rates Henequim126 e em vários trechos do Discurso. Em outro livro Romeiro intitula “Tumba da paz, berço da rebelião” um capítulo sobre a terra sem lei e dos poten-
123 Por exemplo: ANASTASIA, Carla. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998, p. 45, 48 e 51; e FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788 -9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 15, 195, 211, 246 e 294, na qual em nota afirma: “Segundo é corrente, embora o texto circulasse no século XVIII como anônimo, o conde de Assumar seria o maior interessado em historiar o evento e registrar o Discurso, o que se faria especificamente para que pudesse se eximir de parcela da responsabilidade pela execução sumária, sem julgamento, de um homem branco e de alguma condição, Felipe dos Santos”. 124 VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 330-331. 125 FURTADO, 2002, p. 15 e 197; SILVEIRA, 2017, p. 497; e STARLING, op. cit., p. 71-72. 126 SOUZA, 1994, p. 28; ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 139-167; FONSECA, Manoel da. Vida do venerável padre Belchior de Pontes da Companhia de Jesus da província do Brasil. Lisboa: Officina de Francisco da Silva, 1752, p. 242-248; e GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680-1744). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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tados antes da Guerra dos Emboabas, valendo-se do texto em tela para descrever os perfis de Pascoal da Silva Guimarães e sobretudo do letrado, místico e errante Manoel Nunes Viana. Por sua vez, Sérgio Alcides explana sobre a paisagem hostil de Minas ao estudar a poesia de Cláudio Manuel da Costa, com analogias entre os versos do exilado Públio Ovídio Nasão em Ponto Euxino, do poeta mineiro em seu arcadismo peculiar e a prosa predominante no Discurso reeditado em 1994.127 Por vias diferentes e considerando seus objetos específicos, eles aproximam-se do que será exposto, em especial nos capítulos 3, 4 e 5. Vê-se assim que a escrita, como manifestação discursiva, separa o evento de sua significação, pois os traços materiais transportam a mensagem, fazendo com que a intenção do autor e os significados assumidos pelo texto deixem de coincidir. Essa dissociação confere significado próprio ao escrito, equivalente a uma autonomia semântica do texto. Embora este conceito seja relevante em sua hermenêutica, para Paul Ricoeur a participação autoral continua a ser importante. Por outro lado, a relação do texto com o leitor é igualmente complexa, pois uma obra, sobretudo impressa, cria seu público num alargado círculo de comunicação, gerando reconhecimentos imprevisíveis e significativos. Em decorrência, a apropriação do sentido do texto torna-se tão paradoxal como o problema da autoria.128
Materialidade social129 Não obstante a procedência de muitos argumentos nos trabalhos mencionados, e tendo sido contextualizada a visão nacionalista da revolta de 1720 que influenciou ao menos até 1994 as reflexões sobre o Discurso, três pontos carecem de investigação, como fruto de apontamentos e pesquisas anteriores: 1) a autoria principal dos dois
127 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 81-129, 134 e 160-163; e ALCIDES, 2003, p. 21-23, 99-106, 117-118. 128 Por essa perspectiva leitor e texto travam uma luta, gerando a dinâmica interpretativa. A hermenêutica começa quando esse diálogo acaba. RICOEUR, 2013 [1975], p. 42-50. 129 A materialidade de manuscritos e impressos – composta grosso modo de tintas, materiais/técnicas empregados em sua forma e pela composição físico-química – dispensa complementos, pois os objetos existem em sociedade. Mas nesta investigação atenta aos ambientes de produção, trajetórias, recepções e leitura dos artefatos, creio ser procedente adjetivar o termo e enfatizar a dinâmica histórica e social envolvendo os objetos como ponto fulcral do trabalho. A expressão social materiality aparece no artigo de James Daybell sobre a correspondência epistolar, com outra acepção, cf. DAYBELL, James. Material meanings and the social signs of manuscript letters in Early Modern England. Literature Compass, v. 6, n. 3, p. 647-667, 2009.
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manuscritos atribuída ao 3o conde de Assumar, fosse por seu protagonismo nos textos, pela parcialidade desses a seu favor nos episódios da sublevação, pela coincidência de metáforas e ideias ali presentes em outros escritos seus, ou pela correspondência parcial entre títulos de livros levantados em suas cartas, na biblioteca inventariada após sua volta da Índia e no texto central do Discurso; 2) o suposto destino do Discurso como tendo sido forjado para responder a um processo judicial em Lisboa, de residência e/ ou pleiteado por Pascoal da Silva Guimarães; 3) em relação a essas ideias, a análise de aspectos isolados do texto e a falta de contato com os manuscritos matriciais fizeram as explicações dos conteúdos e formas do “documento” serem parciais – como parciais foram as suas reproduções em impressos. Essas ideias e posturas, grosso modo cristalizadas na historiografia, deixaram em segundo plano a investigação sobre os outros possíveis coautores, os jesuítas Antonio Correia e José Mascarenhas, suas formações e universos culturais, a fim de adentrar novamente nos textos como esse cabedal informativo. O Discurso e a Noticia precisam ser enfrentados de modo mais integral. Trata-se também de investigar as circunstâncias de produção dos dois manuscritos destacados e seus aspectos físicos, de forma relacionada a sua elaboração intelectual, redação e confecção. Em suma, nada havia de concreto sobre os motivos, produção e circulação do códice hoje no APM, até ele ser identificado em 1825 na livraria dos condes de Linhares em Lisboa. Pois data deste ano a cópia de António Lourenço Caminha hoje existente na BNB, sendo o manuscrito matricial, como vimos, comprado em 1895 pelo governo mineiro num leilão de livros, indo enfim para o APM. Faltavam as análises material, visual e textual dos objetos guardados em Belo Horizonte e São Paulo, sendo eles relacionados. E faltava estudar a totalidade dos textos no tocante a formas textuais e concepções históricas – como veremos nos capítulos 3, 4 e 5. Várias ações de pesquisa apresentam-se relacionadas. Em outras palavras, ainda há dúvidas substanciais acerca dos manuscritos hoje depositados no APM e no IEB-USP: por quem, para que, quando e onde foram pensados e redigidos?130 Quais as relações e diferenças entre eles, se foram
130 PETRUCCI, Armando. Prima lezione di paleografia. Roma; Bari: Laterza, 2018 [2002], p. 17, 59. Sobre o manuscrito como testemunho gráfico e a análise do códice, cf. PETRUCCI, Armando. La descrizione del manoscritto: storia, problemi, modelli. Roma: Carocci, 2019 [2001], p. 57-104. As perguntas também interessam a Ricoeur; cf. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Traduções de Claudia Berliner e Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2010 [1991], v. 3, p. 301-302.
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concebidos sob a égide do governador da capitania? O reaparecimento do códice no APM, a digitalização das duas fontes e novos estudos sobre a interpretação e materialidade de documentos ampliam no presente as possibilidades de uma hermenêutica com perguntas e respostas.131 Uma nova transcrição do Discurso historico foi feita, atentando-se (com os limites da deterioração do papel por insetos) para as muitas diferenças de grafia, pontuação e diagramação, comparadas às edições posteriores. Os trechos em latim foram traduzidos, compreendendo as 490 notas marginais omitidas nas edições de 1898 e 1994, sendo seus autores e obras identificados tanto quanto possível. O texto e as notas do códice do IEB-USP também foram transcritos e confrontados ao de Belo Horizonte.132 No que respeita aos exames material e visual dos manuscritos, conta-se com a formação especializada e o talento de Márcia Almada. Com o auxílio de uma equipe técnica, chegou-se às seguintes inflexões.133 Há duas apresentações distintas, mas relacionadas, para os manuscritos focalizados. O Discurso historico é um volume encadernado com dimensões de 21 x 15 cm, com 240 fólios (476 páginas escritas) agrupados em 30 cadernos com assinatura numérica original na borda superior direita e numeração de fólios feita em época posterior. A assinatura numérica indica que o manuscrito foi redigido em cadernos previamente separados, visando ordená-los durante a cópia do texto para posteriores costura e encadernação. Desse modo os cadernos foram formados pela junção de quatro fólios de papel de fibra de linho tipo Almasso – pouco maiores que as dimensões de um papel almaço atual – dobrados ao meio. O corpo do códice
131 JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Traduction de Claude Maillard. Paris: Gallimard, 1978 [1974], p. 58. 132 A transcrição do códice do APM foi feita pelo autor deste livro e Douglas Coutinho Dias, depois revisada por Jean Gomes de Souza; a transcrição do manuscrito do IEB-USP foi feita pelo autor deste livro; os trechos em latim foram traduzidos por Leonardo Rosa Ramos, e identificados pelo mesmo e pelo autor deste livro. 133 Professora da Escola de Belas Artes e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autora de ALMADA, Márcia. Das artes da pena e do pincel: caligrafia e pintura em manuscritos no século XVIII. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. As informações seguintes foram adaptadas de ALMADA; MONTEIRO, op. cit., p. 15-21 – depois deste artigo várias notas foram desdobradas na transcrição do Discurso por referirem mais de uma obra, passando-se a 490 notas.
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contém papéis do século XVIII provenientes de dois moinhos diferentes, como mostram as marcas d’água na seguinte figura.134
Figura 2 - Marcas d’água nos dois papéis Almasso de origem genovesa utilizados no AVC-17. A da esquerda também foi utilizada no AL-61; na da direita (existente também no único bifólio do bando de Pitangui de 30/05/1718) destaca-se a cruz de são Jorge e os dragões alados, símbolos daquela república. Nas circunferências vazias há letras e números impressos que variam conforme o moinho produtor – havia muitos naquele grande centro de fabrico de papéis à época. Desenho e fotografia do autor.
A encadernação também é setecentista, apresentando uma pasta de papel laminado e revestimento em couro de carneiro de cor castanha e decoração simples; seu dorso apresenta uma decoração floral e a inscrição DISCVRSO HISTORICO
134 O papel Almasso era utilizado no serviço escriturário, inclusive no governo da capitania de São Paulo e Minas do Ouro e no caso dos documentos analisados é de origem genovesa, algo frequente na América portuguesa (por exemplo em fólios examinados por LARA, Silvia Hunold; FACHIN, Phablo Roberto Marchis (orgs.). Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678. São Paulo: Chão, 2021, p. 67). Esse tipo de papel, com uma das marcas d’água usadas no Discurso, foi identificado no IEB-USP, AL-61 (a Noticia) e no manuscrito de um fólio (42 x 31 cm) – um bando do governador Pedro de Almeida Portugal em 30/05/1718, a ser divulgado em lugares públicos ao som de tambores, concedendo perdão às sublevações e incentivando o povoamento da Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui, por seu secretário de governo Domingos da Silva. Mas sua caligrafia é distinta da verificada no Discurso historico e na Noticia. O manuscrito me foi ofertado pelo livreiro antiquário Pedro de Azevedo e pelos descendentes dos condes da Ribeira Grande, herdeiros de manuscritos pertencentes à 6a condessa da Ribeira Grande, neta do 1o marquês de Alorna. Já as cartas emitidas por aquele governador – compiladas desde 1736 no governo de Gomes Freire de Andrada e hoje integrando a Seção Colonial no APM – apresentam outro tipo de papel Almasso e a letra de Domingos da Silva, diferente dos manuscritos em tela. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Ao som de caixas: um bando do conde de Assumar em 1718. Revista de Fontes, Guarulhos, v. 7, n. 12, p. 141-148, 2020; BOSCHI, Caio César. Exercícios de pesquisa histórica. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2011, p. 35-100; e CASTAGNA, Andrea; MONTANARI, Gregorio (orgs.). Le filigrane degli archivi genovesi. Disponível em: http://www.labo.net/briquet/. Acesso em: 27 maio 2020. Sobre o fabrico artesanal do papel e as encadernações, cf. FEBVRE; MARTIN, 1992 [1958], p. 49-51, 106, 170.
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(Figuras 3 e 4). Nas folhas de guarda há o mesmo papel do corpo do manuscrito. Neste, o texto possui uma aparência elegante, com letra regular de tamanho médio e poucas ligaduras entre os grafemas e palavras – o que denota uma escrita lenta e cuidadosa.135 As entrelinhas e margens da mancha gráfica são largas e uniformes em todo o escrito, sendo as bordas externas mais amplas, com espaço para o registro das notas (Figuras 5, 6 e 7). O texto foi manuscrito com dois tipos de tinta metaloácida: a que hoje se apresenta em tom sépia, situada no corpo do texto, e outra de cor próxima ao negro, nas notas. Essas características indicam que houve um tempo longo de produção do códice, com a preparação de nova tinta para as notas após concluir-se o texto principal.
Figuras 3 e 4 - APM, AVC-17. Dorso do DISCVRSO HISTORICO conservado. Observe-se a etiqueta com o número 307, sua localização na livraria dos condes de Linhares. Fonte: Fotografias de Flávia Andrade. Uso de imagens gentilmente cedido pelo APM.
135 Grafema seria a menor unidade distintiva de uma cadeia escrita, seja uma letra ou palavra. José de Casanova em Primera parte del arte de escrivir todas las formas de letras (1650) e Manoel de Andrade de Figueiredo em Nova escola para aprender a ler, escrever e contar (1722) apresentam vários tipos de letras a serem imitadas em seus manuais. Todavia, pelos livros de compromissos analisados por Almada ou pelo Discurso, é difícil fazer aproximações com os modelos expostos. ALMADA, 2012, p. 53.
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Figura 7 Figuras 5, 6 e 7 - APM, AVC-17, f. 1r (primeira página), 146v-147r (exemplos de notas marginais) e 172v-173r (início da segunda parte no canto inferior direito). Fonte: Cópias digitais de páginas do Discurso historico conservado. Uso de imagens gentilmente cedido pelo APM.
Por sua vez a Noticia é um códice com dimensões de 32 x 22 cm, com cadernos formados com papéis de fibra de linho tipo Almasso sem dobrar, de uma das marcas usadas no Discurso historico. Trata-se de um documento de 29 fólios com 58 páginas numeradas originalmente. Mas sua encadernação é de origem contemporânea, do século XIX ou do início do XX. A mancha gráfica possui espaços entre linhas e margens internas estreitas, deixando espaço para as largas margens externas. A letra é regular e pequena, redigida com apenas um tipo de tinta metaloácida; o manuscrito apresenta mais ligaduras entre as letras, indicando uma escrita rápida e fluida. Os parágrafos do texto são numerados, com glosas nas margens externas que resumem os respectivos conteúdos. O Discurso historico e a Noticia sofreram correções em seus processos de escrita, feitas apenas para substituir letras ou palavras, ou sendo mais extensas, com mudanças em toda a frase. No Discurso historico elas foram realizadas de dois modos. Um quase imperceptível, como uma rasura sutil da linha para escreverem-se as
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novas letras, com a mesma tinta. Essa correção foi usada para substituições pontuais e hoje é apenas percebida com o uso de luz ultravioleta (Figura 8). Já o outro modo, mais complexo, iniciou-se com a raspagem superficial da tinta e a adição de uma massa feita com cera e pigmento branco de chumbo para preencher a rasura. A massa precisava secar para se fazer a nova inscrição e isso podia durar horas. Essa técnica foi usada em áreas pequenas (para substituir letras) ou maiores (para trocar palavras ou sentenças inteiras), sendo aí empregada uma tinta mais densa que a do texto – que hoje se encontra craquelada, pois a textura da massa impede a boa aderência ao suporte. Mas no momento da escrita essas correções seriam imperceptíveis, mantendo-se a elegância do manuscrito (Figura 9). Já na Noticia foram usados dois tipos de correção: com a raspagem sutil da letra ou a supressão da palavra inteira com um risco de tinta, escrevendo-se a nova palavra na entrelinha superior, com letra menos cuidada. Na última linha da página 58 uma informação foi obliterada, ao aplicar-se ali uma grande quantidade de tinta, como um borrão. Essa escrita pode ter sido uma assinatura, hoje ilegível devido à oxidação do papel e da tinta.136
Figura 8 - APM, AVC-17, f. 75v. Detalhe da tinta negra (atualmente craquelada) aplicada sobre a área raspada ao lado, da tinta original. Fotografia em microscópio digital USB (60x). Fonte: ALMADA, Márcia; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Discurso e a Noticia: manuscritos sobre a revolta de 1720 atribuídos a Pedro Miguel de Almeida, 3o conde de Assumar. Tempo, Niterói, v. 25, n. 1, jan./abr. 2019, p. 18. Uso de imagem gentilmente cedido pelo APM.
136 Lamego e Garcia aludiram a uma assinatura raspada ou riscada em 1929 e 1934, respectivamente. LAMEGO, 1929; e VARNHAGEN, op. cit., v. 2.
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Figura 9 - APM, AVC-17, f. 184v. Detalhe da massa com cera contendo branco de chumbo posta para preencher a rasura. Fonte: Fotografia de Almada em microscópio digital USB (40x). Uso de imagem gentilmente cedido pelo APM.
Pode-se inferir que os dois manuscritos foram redigidos pelo mesmo autor gráfico, pois apresentam letras distintas apenas no tamanho e no apuro da caligrafia.137 Eles foram produzidos em momentos próximos, no século XVIII e no mesmo local, com os mesmos tipos de papel. Esse profissional escrevia em português, latim e espanhol, dominava a pena e os padrões gráficos e ortográficos. Ante a ausência de uma “norma culta” para o português à época,138 há formas diferentes de se grafar as palavras e pontuar os períodos em cada artefato e também de forma comparada entre os dois – grosso modo, elas são mais simples e diretas na Noticia que no Discurso. O autor gráfico pode ter sido um escrivão particular contratado, um amanuense a serviço do governador de capitania,139 ou mais provavelmente um
137 O termo caligrafia, para nomear a arte da escrita, surge apenas no século XIX. ALMADA, 2012, p. 32. 138 MARQUILHAS, Rita. A faculdade das letras: leitura e escrita em Portugal no séc. XVII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, p. 230-234. 139 Na hierarquia das habilidades com a boa pena, os copistas, escreventes e amanuenses situavam-se em nível inferior. O amanuense escrevia a partir de um ditado, mas podia também ser sinônimo de escrevente; já o pendolista era um profissional capaz de escrever com elegância, mas por imitação, diferente dos grandes calígrafos, que conheciam a razão do traçado. Por sua vez os secretários detinham a confiança de um príncipe ou governante, escrevendo suas cartas. Como vimos, Domingos da Silva secretariou Pedro de Almeida de setembro de 1717 até ao menos o fim de julho de 1721. ALMADA, 2012, p. 73; e BOSCHI, 2011, p. 62.
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dos dois jesuítas apaniguados, pois o processo de redação dos manuscritos sugere a existência de uma autoria colaborativa entre o autor gráfico e um ou mais autores “intelectuais”, na dinâmica interna de elaboração dos textos e sua escrita.140 Explica-se melhor a seguir. Devido ao projeto gráfico e aos tipos de correção encontrados no Discurso, esse texto seria a versão final de um antes concebido em outros papéis de rascunho, que desapareceram. Nesse códice muito bem cuidado, a correção de palavras e frases inteiras retocadas com branco de chumbo e uma tinta mais densa que a utilizada antes indica a feitura de uma revisão crítica posterior do texto pelo(s) autor(es), após o manuscrito estar completamente trasladado. Houve assim preocupação em apurar palavras e ideias. É provável ainda que o Discurso tenha sido elaborado e redigido em primeiro lugar, tendo sido transcrito parcialmente e “editado” para se compor então o texto da Noticia, muito menor. Ao comparar no computador as duas transcrições feitas, percebe-se que palavras e expressões revisadas no Discurso foram utilizadas diretamente no manuscrito da Noticia. Portanto, a dinâmica de escrita dos dois artefatos escritos, com apuros de linguagem e correções, possibilita vislumbrar um ambiente redacional coletivo. Há indícios para pensar na elaboração do Discurso historico e da Noticia no período relativamente tranquilo de quase oito meses vivido por Pedro de Almeida em Vila do Carmo após a repressão aos rebeldes, até o início de sua volta ao reino em agosto de 1721. As cartas levantadas por Laura de Mello e Souza, do governador, enviadas ao bispo do Rio de Janeiro e ao primo, nas quais o nobre comentou que consultaria os jesuítas e os mortos doutos para ajudá-lo – a serem trabalhadas no Capítulo 4 – datam de janeiro de 1721.141 O trabalho de Almada revela a rica produção de manuscritos adornados para compromissos de irmandades leigas em tempo imediatamente posterior, indicando a presença de tratados e manuais para a
140 LOVE, op. cit., p. 32-50; e REGOLIOSI, Mariangela. Nel cantiere del Valla: elaborazione e montaggio delle “Elegantie”. Roma: Bulzoni, 1993. 141 GASPAR, Tarcísio de Souza. Tapanhuacanga em ruínas: história do palácio velho de Ouro Preto (c. 1660-1825). 2016. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 187-188; e SOUZA, 1994, p. 26-27.
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arte da escrita, sobretudo espanhóis seiscentistas, com estímulos ao autodidatismo no exercício da boa pena, nas Minas e outras capitanias do Estado do Brasil.142 Essa hipótese fundamentada de confecção local se coaduna com o tempo necessariamente longo de produção dos manuscritos, entre a elaboração intelectual, a escrita de ao menos dois textos – o Discurso e a Noticia – e a encadernação de ao menos um desses, o Discurso. Ademais, os dois escritos referem-se a acontecimentos muito recentes para narrar a sublevação de 1720 em Vila Rica, com o testemunho direto em sua descrição. Encadernada, a versão final do Discurso historico estava pronta para circular, como um livro manuscrito sem página de rosto ou colofão – portanto sem registros de autoria, data e local. A diagramação elegante, limpa e de fácil leitura, bem como as margens largas, denotam um padrão superior e pouco econômico de escrita, voltado para leitores de elite. Mas a encadernação não luxuosa e a portabilidade do códice não condizem com a hipótese de um destino planeado para o governo da monarquia portuguesa, que em geral trabalhava com volumes in-fólio. Diferentemente, o formato escolhido facilitava o transporte e o manuseio, embora o exemplar do Discurso historico não apresente marcas de muita manipulação.143 Por outro lado, a Noticia foi redigida pelo recorte das informações encontradas no Discurso. Neste escrito interessava sobretudo narrar os fatos ocorridos em junho e julho de 1720 em Vila Rica e Ribeirão do Carmo. Os parágrafos numerados e os resumos de temas nas glosas foram opções para organizar o texto, facilitar a leitura e a busca de informações. A caligrafia mais rápida e o uso de fólios Almasso, sem aparente preparo para encadernar e paginar, sugerem que o texto foi feito para ser compilado com outros papéis que continham notícias sobre vários acontecimentos,
142 Serafim Leite levanta vários trabalhos mecânicos de jesuítas no período, incluindo os de escrita, mas sem nomear os ditos padres, cf. LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa: Brotéria, 1953. À época, as ordens religiosas regulares foram expulsas das Minas, sendo esse um fator de florescimento das irmandades leigas na década de 1720. BOSCHI, 1986; e ALMADA, 2012. 143 A conservação do códice para preservação do suporte e da encadernação, com mínima intervenção, foi feita sob orientação de Almada no Laboratório de Conservação-Restauração de Documentos Gráficos e Fílmicos (LaGrafi) da Escola de Belas Artes da UFMG. Cf. LAVALL, Patrícia Vaz de Mello. Conservação curativa e preservação de vestígios históricos: tratamento do manuscrito Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. In: ALMADA, Márcia; VELOSO, Bethania; UTSCH, Ana (orgs.). Experiências e reflexões sobre a restauração de documentos gráficos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021, p. 99-117.
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podendo também ser copiado, como veremos no Capítulo 4.144 Apesar de a dimensão conflituosa e de responsabilidade política deste escrito ser algo delicado para a monarquia portuguesa, ele veiculava “novidades” sobre situações vividas sem o limite das breves informações das gazetas impressas. O manuscrito da Noticia foi consultado por muitas mãos, como mostram as marcas encontradas nos cantos das folhas, embora não se saiba o tempo desse manuseio.145 Resta ainda tecer observações de cunho menos detalhado sobre a cópia produzida por António Lourenço Caminha, Discurso historico, e político, sobre a sublevação, q’ nas Minas Geraes hóve no Anno de 1720, no fim do qual se expendem as rasõens, q’ o Ex.mo Sen.r Conde General teve para proceder summariamente ao Castigo, hoje depositada na BNB e feita no ano de 1825, como informado em sua primeira página.146 À maneira da Noticia, trata-se de um códice com dimensões de 32 x 22 cm, com cadernos formados por papéis de trapo de tipo Almasso sem dobrar – de várias marcas, distintas obviamente das utilizadas nos dois manuscritos antes analisados. Com a colaboração de Thais Helena de Almeida, Renata Amorim147 e Márcia Almada, depreende-se que o texto foi escrito com tinta ferrogálica. As folhas foram numeradas na frente de 1 a 147 e há numeração também no centro entre os parágrafos, até o de número 114 na página 63 – quando se passa a ter apenas marcas centralizadas inscritas entre esses, até o fim. Na página 1, no início do texto inseriu-se a palavra “Principio”. Nas páginas 93 verso e 94 reto
144 LISBOA, João Luís. Mots (dits) écrits: formes et valeurs de la diffusion des idées au 18 ème siècle, au Portugal. 1998 . Thèse de Doctorat – Institut Universitaire Européen, Florence, 1998; BELO, André. As gazetas e os livros: a Gazeta de Lisboa e a vulgarização do impresso (1715-1760). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2001; e BELO, André. Nouvelles d’Ancien Régime: la Gazeta de Lisboa et l’information manuscrite au Portugal (1715-1760). 2005. Thèse (Doctorat en Histoire) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2005. Para uma explicação circunstanciada, cf. ALMADA; MONTEIRO, op. cit., p. 7-14. 145 Bons exemplos de atenção ao estudo de caligrafias e suportes encontram-se em: DUARTE, Lígia Gaspar. Os escreventes: identidades gráficas nas gazetas manuscritas (1735-1738). In: LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis; OLIVAL, Fernanda (orgs.). Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. Lisboa: Colibri, 2002-2011, v. 3, p. 53-112; ANASTÁCIO, Vanda. Editar as cartas de Lília e Tirse: alguns problemas. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777). Lisboa: Colibri, 2007c, p. LVII-LXV; e ANASTÁCIO, Vanda. Critérios de edição. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Sonetos marquesa de Alorna. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007b, p. 73-84. 146 Na descrição do manuscrito nesta página, A. L. C. caracteriza-o como “Copia fiel do seu Original Authographo q’ existe na Biblioteca do Illusmo, e Ex mo Senr Conde de Linhares”. O termo refere-se ao sentido de “original”, sem necessariamente estar assinado. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu/Officina de Pascoal da Sylva, 1712, v. 1, p. 684; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, v. 1, p. 234; e MONTEIRO, 2022a. 147 Funcionárias da BNB no Laboratório de Restauração. Sobre a encadernação de obras fora e dentro da instituição, ver ALMEIDA, Thais Helena de. Conservadores, restauradores e cientistas na preservação do acervo da Biblioteca Nacional: de 1880 a 1980. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2021, p. 149-172.
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há uma pequena cetra148 seguida pelo início da segunda parte do texto, com as razões do “conde general” para proceder sumariamente ao castigo. Embora siga com relativa fidelidade o texto central do Discurso matricial, nesta cópia as muitas notas marginais foram suprimidas, a ortografia foi modificada e houve mais abreviaturas de palavras. Os trechos em espanhol no Discurso foram aqui traduzidos para o português, mas não os em latim. Há várias marcas de destaque – como sublinhados e pequenos traços verticais – no decorrer do texto, sugerindo seu uso como objeto de estudo. O texto apresenta também reclames fazendo a continuidade de palavras entre uma e outra página – presentes na Noticia e inexistentes no Discurso. O trabalho parece ter o mesmo autor gráfico do início ao fim, apesar de sua caligrafia denotar distintos graus de cuidado, com mais rasuras e uma escrita aparentemente mais rápida na segunda parte do que na primeira. No fim, antes da cetra final, há um acréscimo de escrito em latim não existente no Discurso e na Noticia, “Finis Laus Deo Virginique Matri” (Fim [.] Louvor a Deus e à Virgem Mãe) – um apontamento católico, coerente com a trajetória de Caminha e da casa de Linhares. As folhas do miolo contêm algumas fitas adesivas e outros procedimentos antigos de reparo. A encadernação existente foi feita com folhas de guarda de papel de fibra de madeira, com impressão de efeito marmorizado, não artesanal. O tecido usado para reforçar a união do miolo à capa de couro é similar ao utilizado na Noticia – ou seja, produzido entre o fim do século XIX e o início do XX. O dorso apresenta uma decoração simples, com douramento a quente, nervuras e duas tarjas com os escritos REVOLTA DE VILLA RICA e 1720. Uma etiqueta com o número 12735 colada no canto inferior direito da folha de guarda fixa, no verso da capa, indica o controle da encadernação – provavelmente feita fora da BNB, antes de se inaugurar ali a sua própria oficina em 1902. Nesse mesmo espaço no centro, o ex-líbris encomendado pela BNB ao pintor Eliseu Visconti em 1903 indica sua localização feita após esse tempo. O carimbado oval com o inscrito BIBLIOTHECA NACIONAL / SECÇÃO DE MANUSCRIPTOS / RIO DE JANEIRO,
148 Cetras são desenhos obtidos por cruzamentos de retas formando uma espécie de rede, cujas linhas podem ser finalizadas por curvas, sendo feitas para formar vinhetas, hastes de letras e outros detalhes. ALMADA, 2012, p. 139. O Discurso não apresenta cetra entre a primeira e a segunda parte do texto, e sim uma pequena no seu fim. Na Noticia não há este tipo de ornamento.
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presente em todas as folhas do miolo, provém do período entre a criação da seção de manuscritos em 1873 e a reforma ortográfica vigente no Brasil a partir de 1943. O título e o ano de 1720 escritos no dorso do códice, semelhantes ao título da edição impressa por Xavier da Veiga em 1898, remetem a uma tentativa de enquadrar seu conteúdo por uma perspectiva historiográfica brasileira e republicana, pelo uso do termo “revolta”, conotado mais positivamente que “sublevação”, conforme desenvolvido neste capítulo. Mas é provável que esta tenha sido uma reencadernação, pois os cadernos do miolo foram formados com alguma regularidade, indicando que a cópia foi feita desde o início para ser um códice. Como vimos, não foram encontradas referências a esta cópia do Discurso em catálogos do século XIX produzidos na BNB, na lista manuscrita de 1832 existente na BPNA e no impresso elaborado para o leilão da livraria dos condes de Linhares em 1895, somente ao códice original – apesar dessas duas últimas listas mencionarem outros trabalhos copiados por António Lourenço Caminha.149 Considerando o perfil do copista, o trabalho pode ter sido feito em função de um plano de publicação não efetivado, pois ele morreu em 1831. Mas, devido ao projeto de encadernação evidente pela formação dos cadernos no miolo, o códice deve ter sido encomendado por um particular, dentro ou fora da casa de Linhares. Essas possibilidades se coadunam com o fato de a cópia não integrar os catálogos da livraria dos condes de Linhares em 1832 e 1895. Em 1825 houve o reconhecimento da Independência do Brasil em Portugal – onde se vivia uma espécie de vazio no governo, ante o fracasso do regime liberal das cortes e a momentânea derrota dos miguelistas, no fim do reinado de d. João VI.150 Como vimos, nesse tempo o 2o conde de Linhares e seu irmão José Maria eram partidários dos liberais. A realização da cópia pode relacionar-se ao interesse então despertado pelo passado do novo império sul-americano no reinado de Pedro I (1822-1831), além dos vínculos patrimoniais e de origem que a linhagem dos Sousas Coutinho possuía com Minas Gerais. Em uma das viagens de Vitório a cópia pode ter vindo para o Brasil, ingressando mais tarde na Biblioteca Nacional.
149 Catalogo da importante livraria dos ex.mos sr.s condes de Linhares. Lisboa: Libânio da Silva, 1895, p. 179-181. 150 RAMOS; SOUSA; MONTEIRO, op. cit., p. 475-484; e PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 406-420.
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Portanto, por essas informações e indícios, a cópia do Discurso de A. L. C. provavelmente entrou na BNB mediante compra ou doação particular no período situado após a Exposição de História do Brasil em 1881 e 1882 organizada por Benjamin Franklin Ramiz Galvão – ela certamente teria figurado no volumoso catálogo produzido para o evento se estivesse então no acervo151 – e até 1902, não se sabe ainda exatamente quando.152 Essas considerações sobre o tempo de chegada deste manuscrito na BNB e a identidade do copista diferem das conjecturas levantadas por Laura de Mello e Souza e Marco Antonio Silveira em seus respectivos trabalhos.153
Do gênero particular Além da análise material ora detalhada, o códice matricial sobre a sublevação de Vila Rica também deu origem a uma matéria infernal e polissêmica, pelos conteúdos que veicula, pelas diferentes apreensões bibliográficas e por ter sido apropriado de múltiplas formas, deixando pontos obscuros referentes à autoria, às ideias e recepções ali expressas. Assim se apresenta o Discurso mais de 300 anos após sua provável elaboração. Este capítulo procura entender os textos manuscritos ou impressos como um tecido de informações, conforme o verbo tecer deriva do latim texere. A acepção significa o estado do tecido como trama ou textura de materiais, compreendendo dados visuais, físicos e cognitivos de forma integrada. A sociologia dos textos – assim percebidos – considera os motivos e interações humanas envolvidos nos estágios de produção, transmissão e consumo dessas tessituras. Trata-se também de ter em conta os papéis institucionais de arquivos, bibliotecas, fundações e editoras, de colecionadores e livrarias particulares, bem
151 Catalogo da exposição de historia do Brazil. Annaes da Bibliotheca Nacional, Rio de Janeiro, v. IX, 18 81-18 82. 2 tomos; e CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. O bibliotecário perfeito: o historiador Ramiz Galvão na Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2017, p. 219-260. 152 Até o presente consultei relatórios e a correspondência de chefes da seção de manuscritos no período que mencionam mais a entrada dos documentos originais que das cópias. Em relação aos livros de fatura da BNB, que podem indicar os momentos de aquisição e/ou encadernação de um exemplar, foram consultados os anos de 1898 a 1922, sem sucesso, pois as menções a compras de cópias e registros de encadernações com frequência não discriminam os títulos dos documentos. 153 SOUZA, 1994, p. 15-16; e SILVEIRA, 2017.
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como as distintas abordagens historiográficas. Esses âmbitos influem nos atos de guarda, conservação, imprensa e leitura dos textos de outrora em cada presente.154 As formas afetam o sentido de um manuscrito ou impresso. Um conjunto de significados indicando a presença de um ou mais autores pode ser enfraquecido por uma leitura preconcebida ou descontextualizada de um extrato documental. O tema, complexo, relaciona-se com a semiótica, a crítica textual e o papel das tipografias na produção de significados, além de teorias sobre intenções autorais e leituras. Em especial para os historiadores, ele envolve a análise dos significados passados e usos presentes dos textos verbais. Desse modo a transmissão de textos pode ser vista também como a da criação de novas versões, conformando novos livros. E uma história dos livros faz mais sentido ao se considerarem os diferentes significados históricos que eles adquirem ao longo do tempo. Grosso modo, os estudos da linguagem no século XX tenderam a priorizar os atos de fala entendidos por critérios contemporâneos, em detrimento da análise meticulosa dos processos de escrita, mais ligada a métodos filológicos tradicionais. A atenção à linguagem distanciou a crítica textual da pesquisa histórica, inibindo a possibilidade de se acreditar na recuperação de uma voz autoral ou de motivações por registros escritos. Conforme o bibliotecário McKenzie, a insistência sobre a primazia da fala criou um problema para a bibliografia baseada em livros, ao excluir aspectos não verbais da linguagem escrita do debate sobre a hermenêutica.155 Para Hans Robert Jauss, os formalistas da linguagem e até mesmo os filólogos tendem a concentrar-se excessivamente no conteúdo literário, descurando do “horizonte de expectativa” e da recepção social das obras. Por sua vez, a objetividade própria dos historiadores hesita em explicar a estética dos textos, preferindo entendê-los como documentos capazes de fornecer informações. Há assim um hiato entre as abordagens histórica e literária, dificultando o estudo histórico da literatura.156 Desde 1967 o teórico alemão comenta o rigor metodológico da crítica
154 McKENZIE, op. cit., p. 26-28. Para o detalhe do ponto de vista arquivístico sobre as diferenças entre fundos e coleções, a proveniência dos documentos e a contextualização do estado de Minas Gerais com atenção ao APM, ver VENANCIO, Renato Pinto; BARBOSA, Lidiany Silva. Como surgem os fundos arquivísticos: administração pública e produção documental em Minas Gerais. Acervo, Rio de Janeiro, v. 31, n. 3, p. 57-74, set./dez. 2018. 155 McKENZIE, op. cit., p. 32, 36, 38 e 52-53. 156 JAUSS, 1978 [1972-1975], p. 23-88.
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literária tradicional na captação de tendências e gêneros da textualidade – algo frequente para trabalhos mais “modernos” – ou organizando o material de forma unilinear segundo o esquema “vida e obra” do autor, um procedimento usual no estudo dos clássicos. As duas posturas movem-se num âmbito exterior à dimensão histórica. Por outro lado, o historiador costuma abster-se de comentários estéticos, premido pela necessidade de lidar com fatos ou considerar o efeito de uma obra na posteridade. Nessa história da beletrística, trata-se de estabelecer uma relação entre a análise histórica e a estética literária. Conforme Jauss, os formalistas tendem a ver o leitor como alguém capaz de distinguir a forma e o procedimento de um texto, à maneira de um filólogo conhecedor dos meios artísticos. Mas o texto não foi escrito para ser lido e interpretado por filólogos, tampouco por historiadores. Desse modo, formalistas da linguagem e historiadores marxistas – os principais interlocutores no tempo de Jauss ao proferir seu manifesto na Universidade de Constança – ignoram o papel do leitor como destinatário visado pela obra. Ao se estudar a literatura em suas dimensões de recepção e efeito, medeia-se mais o vínculo entre os aspectos estético e histórico.157 Contemplar o horizonte de expectativa de uma obra torna possível perceber seu caráter artístico a partir do modo como essa repercute num suposto público no momento de sua aparição, pelo contraste entre a experiência estética anterior e a “mudança de horizonte” exigida pela acolhida do novo trabalho. A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no passado possibilita também lidar com questões para as quais o texto foi, ao fundo, uma resposta, desvendando como o leitor de outrora o teria compreendido. Evidencia-se assim a diferença hermenêutica entre as compreensões passada e presente de uma obra. O projeto de Jauss considera a historicidade da literatura diacronicamente, no âmbito recepcional das obras; sincronicamente, entre as referências literárias de uma mesma época; e em relação ao desenvolvimento literário mais amplo. Assim compreende-se o sentido e a forma de uma obra no seu desdobramento histórico.
157 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994 [1967], p. 5-8, 15, 18-23; e JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. Tradução de Luiz Costa Lima e Peter Neumann. In: LIMA, Luiz Costa (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011 [1979], p. 77.
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Uma história particular relacionada a uma mais geral, quando a experiência do leitor adentra o horizonte de sua vida prática.158 Nos anos 1960, o estruturalismo em afirmação mereceu poucos comentários de Jauss, que o considera ainda cativo da estética da representação e dos esquemas taxonômicos, reduzindo a existência histórica dos textos e seu papel social. Mas a proposta inicial da estética da recepção, além de perder de vista o autor e a produção do texto, não mostra o papel ativo do leitor previsto na estrutura da obra. Mesmo em trabalhos posteriores, Jauss concentra-se na repercussão dos livros em outros tempos. Suas reflexões são assim mais pertinentes aos âmbitos seguintes de recepção do Discurso, desde a cópia manuscrita em 1825 na livraria do 2º conde de Linhares até os desdobramentos bibliográficos em decorrência das impressões de 1898 e 1994.159 Luiz Costa Lima reconhece o maior empenho de Wolfgang Iser em relacionar o texto literário a seu efeito estético no leitor. Iser chama de “estrutura apelativa” a presença implícita do leitor no texto, antes mesmo de surgir um agente empírico para exercê-la. Concebe assim um leitor orientado por valores, não raro de modo inconsciente. O texto literário abre perspectivas de percepção e imaginação que mostram um outro mundo, metamorfoseado daquele conhecido na experiência do leitor. Embora o texto ficcional não remeta de imediato ao campo da ação, os termos descritivos dessa esfera permanecem no texto, todavia de maneira mais complexa. O gênero pode ser encarado assim como uma norma que orienta a leitura, mostrando o grau de adequação ou rebeldia da obra que está sendo lida, ao reformular os fatos. Para Iser os textos – especialmente os ficcionais – são enunciados com “lugares vazios”, exigindo do leitor uma participação ativa. Relativiza-se assim a existência de uma única interpretação correta dos textos. Segundo Costa Lima, esse seria um ponto frágil da argumentação de Iser, pois a possiblidade de múltiplas interpretações inviabiliza a busca do leitor ideal e do sentido de uma
158 Apesar da sintonia acerca da ideia de compreensão de uma obra conforme a escola hermenêutica alemã, a perspectiva de Jauss não é igual a de Hans-Georg Gadamer, para quem o conceito de clássico pauta a mediação histórica entre passado e presente, escapando à dinâmica de pergunta e resposta. Segundo Jauss, Gadamer apegou-se a uma ideia de arte clássica para além de sua época de origem – a do humanismo. Ao enfatizar o reconhecimento do já conhecido, sua hermenêutica filosófica causa a impressão de uma verdade atemporal expressa na obra de arte. JAUSS, 1994 [1967], p. 25, 31-32, 35, 38-41; e JAUSS, 2011 [1979], p. 78-79. 159 JAUSS, 1994 [1967], p. 50-51; e JAUSS, Hans Robert. Pour une herméneutique littéraire. Traduction de Maurice Jacob. Paris: Gallimard, 1988 [1982].
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obra específica.160 Veremos no Capítulo 5 como essas ideias se adequam ao caso de leitura do Discurso no momento de sua produção. No âmbito da crítica de textos provenientes da América portuguesa, o trabalho de João Adolfo Hansen é um marco fundamental, ao destrinchar os códigos linguísticos que pautaram a escrita de muitos poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra na Bahia seiscentista – em especial os de forma satírica. Os códices que reuniam miscelâneas de poemas foram organizados entre o fim do século XVII e a primeira metade do XVIII, em paralelo à conformação do perfil de Gregório de Matos como grande poeta. No Oitocentos a tradição passou a concebê-lo como brasileiro ilustre e crítico da colonização portuguesa. Hansen relaciona as preceptivas retóricas e poéticas ao engenho de poesias que, mormente nos gêneros cômico ou satírico, reforçavam o bem comum. Ademais, analisa as atas da câmara de Salvador evidenciando como, também ali, expressa-se um discurso integrado ao “corpo místico” da monarquia portuguesa, mediante as queixas e sacrifícios relatados.161 O crítico literário desmonta a imagem romântica de um Gregório de Matos rebelde e subversivo, por isso sendo ostracizado e depois perfilado como herói brasileiro – enfrenta assim em 1989 a crítica tradicional. Seu trabalho está em sintonia com os importantes ensaios de Roland Barthes e Michel Foucault, os quais questionam o autor como sujeito empírico ante a pujança da linguagem e do texto – a proposta possui apelo especial para a Época Moderna, pois a centralidade do sujeito nos discursos “autorizados” seria uma construção recente, forjada a partir
160 Embora Iser concentre-se na literatura dos séculos XIX e XX, sua antropologia literária também perscrutou gêneros e obras da Época Moderna. Cf. LIMA, Luiz Costa. Prefácio à segunda edição; Prefácio à primeira edição: o leitor demanda (d)a literatura. In: LIMA, Luiz Costa (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011b [1979], p. 9-66; ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996/1999 [1976]. 2 vols.; e ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj, 2017 [1991]. 161 HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Ed. Unicamp, 2004 [1989]; e MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Overseas alliances: the English marriage and the peace with Holland in Bahia (1661-1725). In: CARDIM, Pedro et al. (orgs.). Polycentric monarchies: how did Early Modern Spain and Portugal achieve and maintain a global hegemony? Eastbourne; Portland; Vaughan: Sussex Academic Press, 2012a, p. 54-69.
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de meados do século XVIII.162 Informado por uma visão dual da colonização presente na historiografia brasileira, Hansen associa a sátira atribuída a Gregório de Matos a uma perspectiva metropolitana. Mas seu maior contributo ao estudo de textos pretéritos reside na busca do conhecimento erudito dos preceitos de retórica e poética em cada gênero discursivo, presentes na formação de letrados da Época Moderna, abrangendo obras clássicas e posteriores, os lugares-comuns ou tópicas, transmitidos desde a Antiguidade e disponíveis para imitação e/ou performance dos argumentos pertinentes a cada gênero. A perspectiva atenta a essa tratadística, bem como a ideias teológicas e políticas encontradas nos escritos antigos e tomistas partícipes da cultura ibérica, pode ser definida como uma prática nominalista do exame textual, no realce de sua abstração.163 O trabalho de Hansen foi complementado por Marcello Moreira, ao associar os códigos linguísticos e bibliográficos no estudo da tradição gregoriana. Mediante a crítica ao método apregoado por Karl Lachmann na primeira metade do século XIX, o filólogo questiona os critérios de autenticidade e genialidade que comumente norteiam as edições impressas dos textos de outrora, calcados na busca de uma vontade autoral. Ante a existência de variantes dos poemas, duvida também da possibilidade de se escolher um manuscrito em detrimento de outros para fixar um texto, conforme defendeu Joseph Bédier cerca de um século depois. Moreira aborda os cancioneiros poéticos – cadernos ou códices contendo miscelâneas de poemas apógrafos – comuns na cultura ibérica da Época Moderna com base no conceito de mouvance de Paul Zumthor, criado para compreender os movimentos de improviso, recriação e oralidade da poética medieval. Perscruta outros estudos, por exemplo acerca da poesia inglesa no Seiscentos. Coteja sobretudo casos da manuscritura no mundo ibérico, entre esses os pasquins sediciosos “publicados” durante a
162 BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2012a [1967], p. 57-63; BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2012 [1971], p. 65-75; e FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce qu’un auteur? Bulletin de la Société Française de Philosophie, n. 22, t. LXIV, p. 73-104, jul.-sept. 1969. Por sua vez, Chartier relativiza a questão ao evidenciar a produção coletiva editorial e o papel dos impressores. CHARTIER, Roger. O que é um autor?: revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino e Carlos Eduardo Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2014 [2012]. Para essas reflexões, ver a entrevista de Sérgio Alcides: ALCIDES, Sérgio. História e poética. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes (org.). Modernos em curso: escritos e imagens no tempo. Niterói: Eduff; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2022, p. 31-59. 163 HANSEN, 2004 [1989]. Para essas ideias, ver também a palestra: LIMA, Luís Filipe Silvério. A questão da autoria. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes (org.). Modernos em curso: escritos e imagens no tempo. Niterói: Eduff; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2022, p. 95-155.
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conjuração na Bahia em 1798, mas com o foco nos códices com poemas atribuídos a Gregório de Matos, considerados documentos enquanto artefatos bibliográficos – algo diverso das acepções usuais de texto e obra. Moreira analisa a materialidade de códices depositados em acervos brasileiros – um deles pertencente à coleção de Alberto Lamego, no IEB-USP, como a Noticia – atento aos poemas classificados por gêneros, às didascálias como paratextos que instruem sobre a vida do “autor” e organizam seções, bem como aos dorsos das encadernações, condicionando leituras. Portanto, propõe uma edição eletrônica hipertextual como solução para o universo móvel e plural dessa tradição bibliográfica.164 A opção de editar a poesia atribuída a Gregório de Matos transcrita do conjunto Asensio-Cunha – depositado em biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – uniu os dois pesquisadores. Em um volume da série, Hansen e Moreira entendem a historicidade dos manuscritos vinculada aos materiais e práticas simbólicas que os produziram. Reagem assim a modelos idealistas, românticos, teleológicos e anacrônicos da filologia anterior, próprios de uma visão “kantiano-hegeliana” de história, ao plasmarem uma evolução contínua que homogeneíza as artes, conforme o estilo barroco de Heinrich Wölfflin. Diferentemente, uma nova filologia mostra-se atenta às versões de um texto em movimento, ao descentrar o autor como critério de autorização e legibilidade textual e à materialidade do códice e dos manuscritos, considerados em seus modos de produção, circulação e recepção até o estado atual, seguindo Roger Chartier.165 Embora admitam ser impossível evitar totalmente o anacronismo, para Hansen e Moreira uma filologia voltada para as práticas letradas nos séculos XVI e XVII analisa os testemunhos de uma tradição bibliográfica de modo a perceber como a materialidade dos livros de mão impacta a leitura desses. Os critérios retóricos, poéticos, políticos e teológicos que ordenam os poemas manuscritos em seções também atuam como protocolos de leitura, sendo mais bem reconstituídos ao se
164 MOREIRA, Marcello. Critica textualis in caelum revocata?: uma proposta de edição e estudo da tradição de Gregório de Matos e Guerra. São Paulo: Edusp, 2011. 165 HANSEN, João Adolfo; MOREIRA, Marcello. Para que todos entendais: poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra, v. 5: letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 11, 33-50. Referências a WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros e Antonio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 2005 [1888]; e CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Edufrgs, 2002.
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considerarem os artefatos. As categorias metafísicas, teológico-políticas e retórico-poéticas modelam a representação como fundamento e mediação de outras representações, vinculadas a estamentos sociais e indivíduos. Segundo os pesquisadores, a sociedade luso-brasileira seiscentista pode ser definida pelos usos socialmente autorizados de signos verbais, gestuais, plásticos e outros que representam, em suma, pela substituição de algo ausente; nos conflitos de representações que tencionam hierarquias; ou pela formalização retórico-poética das práticas discursivas.166 A dimensão metafísica do conceito de representação encontra-se, por exemplo, nos escritos de Tomás de Aquino. Assim, o meio material da linguagem exemplificaria a presença divina na multiplicidade de coisas e conceitos figurados em formas textuais. A representação também é política, pois as formas discursivas encenam hierarquias de sujeitos de enunciados, tipos representados, destinatários e públicos empíricos. Por esse prisma, segundo a escolástica católica o Estado do Brasil integraria o “corpo místico” de vontades subordinadas ao rei no pacto de sujeição, contra as ideias de Maquiavel e Lutero. A historicidade dos regimes discursivos na Bahia seiscentista deve ser buscada nas refrações da representação, verificadas nos direcionamentos particulares e polêmicos do sentido no local, constituindo assim a sua realidade. Conforme Hansen e Moreira, a pesquisa empírica pode ser salutar, mas em excesso tende a desconsiderar os discursos como objetos históricos. Portanto, trata-se de quantificar, seriar e cruzar os regimes discursivos a fim de estabelecer homologias formais remissivas a modelos, autoridades, preceitos, valores antigos e coevos emulados nas representações particulares. Os prováveis modelos retórico-poéticos e teológico-políticos seriam aprendidos na Bahia com letrados ou no colégio jesuítico local. Também é possível descrever os condicionantes
166 Os autores valem-se de Louis Marin para o entendimento da representação. A perspectiva abstrata para se ler a poesia atribuída a Gregório de Matos quer evitar o anacronismo decorrente da crítica romântica, com a falácia biográfica (o homem empírico autor do poema não teria interesse poético) e a poesia como reflexo da realidade baiana seiscentista (a sátira como crítica direta das condições políticas e econômicas da sociedade). As representações na Bahia seiscentista seriam marcadas por eloquência, legalismos, casuísmos, citação de autoridades, tradicionalismo das fontes, muito latim e providencialismo corporativista, com as imagens encenando lugares-comuns retóricos e poéticos já conhecidos. HANSEN; MOREIRA, op. cit. p. 231, 288-292, 316, 349 e 422-423.
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sociopolíticos da destinação dos poemas, bem como conhecer as deformações e apropriações vividas em públicos empíricos posteriores.167 Reconheço a relevância dos apontamentos aqui reunidos, ainda tenho muito a aprender com a teoria e a crítica literárias. A inserção dessas reflexões e experiências de pesquisa indica que considero o Discurso historico uma peça de belas-letras e não propriamente uma defesa judicial pública ou um tratado político stricto sensu, como veremos adiante. Com efeito, a poesia guarda especificidades em relação ao real. Para Roman Jakobson, no poema a função referencial é desfavorecida pela função poética, com o foco na construção da mensagem e em seu código.168 Na poesia da Época Moderna, é importante informar-se sobre os modos de produção, circulação e recepção, estudar tratados, conhecer debates, interrogar a tradição das letras, relacionar a norma geral da mímesis a sua incidência particular conforme o contexto. Situa-se assim o objeto num âmbito maior de referências, prescrições e práticas da cultura letrada. Ao lidar com a noção de verdadeiro em certos meios e momentos, o conceito de verossimilhança atravessa a distância entre a tradição e suas atualizações históricas. Desse modo a poética bem prescritiva do período moderno depara-se com âmbitos exteriores às normas tradicionais, pois o verossímil se refere ao que poderia ser em princípio verdadeiro num dado contexto. Ao escrever, um poeta pensa nas normas da poética clássica, mas também no seu conhecimento da audiência a que destina o seu escrito. Portanto, interrogar a verossimilhança é um modo de abranger a historicidade de um poema sem depender tanto do referente imediato.169 Talvez esse caminho seja próximo ao proposto por Wolfgang Iser na análise dos textos ficcionais, todavia destacando o leitor. Por sua vez, a atenção à poesia em relação ao contexto foi o foco de Adriana Romeiro, ao analisar de modo
167 Hansen e Moreira detalham a invenção do poema mediante lugares-comuns aplicados pelo poeta segundo preceitos vindos da instituição retórica e de várias retóricas e poéticas, não raro rivais. O lugar-comum ou topos é um argumento indeterminado ou genérico aplicado pelo poeta ao emular obras de autoridades anteriores e coevas do gênero em que compõe, semantizado num argumento particular abstraído de seu referencial – no caso, a Bahia seiscentista. A emulação poética ordena-se por preceitos próprios do gênero para produzir prazer semelhante ou melhor ao da autoridade imitada. Para emular sem imitar servilmente, o poeta procura a propriedade ou o predicado ideal, desenvolvendo no poema uma espécie diferente. O engenho – a novidade que reproduz diferentemente os lugares e preceitos – distingue a emulação da imitação servil. Na orientação pragmática da representação do poema, o sujeito do enunciado lírico ou satírico é inventado segundo a categoria da “discrição”, oposta à vulgaridade, compondo os protocolos de invenção e recepção. Ibidem, p. 347-349 e 292-294. 168 JAKOBSON, Roman. Linguística e poética. In: JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução de Isidoro Bilkstein e José Paulo Dias. São Paulo: Cultrix, 1969 [1960], p. 118-162. 169 ALCIDES, 2022.
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diferente de Hansen as sátiras produzidas em Vila Rica na década de 1720 – como veremos no Capítulo 5, sobre os sonetos e sátiras presentes no Discurso.170 Entretanto, o AVC-17 depositado no APM é um objeto único, distinto das cópias de sátiras interpretadas por Romeiro e dos códices com miscelâneas de poemas perscrutados por Moreira e Hansen, dispersos em acervos públicos e coleções particulares no Brasil e no exterior. Compreende-se por que os exames materiais e visuais ocorreram apenas com alguns códices atribuídos a Gregório de Matos e que a pesquisa sobre suas trajetórias, pela própria condição movente dos poemas, tenha sido inviável. Como vimos, o códice do Discurso foi submetido a exames materiais e visuais detalhados, que foram comparados aos de um documento correlato – a Noticia – e à cópia manuscrita posterior. Conjugadas a outros empenhos de pesquisa, as informações geram pistas sobre as circunstâncias de produção do códice e seu destino. Em outras palavras, indícios de seus autores e sua primeira recepção. Trata-se assim de reagir a uma bibliografia que destacou o protagonismo de Pedro de Almeida Portugal na escrita do Discurso sobretudo por não considerar a função poética ali existente, em verso e prosa. Paradoxalmente, sigo nesta pesquisa os conselhos de Barthes e Foucault, pois a “etiqueta” do conde de Assumar posta no lugar do autor obliterava a compreensão do artefato. Por outro lado, se os sujeitos empíricos podem ser irrelevantes do ponto de vista poético e da linguagem, eles são essenciais no olhar histórico.171 Nos capítulos 3, 4 e 5 veremos que concepções de história pautaram a escrita do Discurso historico, certamente diversas das contemporâneas. No estudo da tradição manuscrita gregoriana, Hansen e Moreira contextualizam o tempo inicial dessa enunciação de dois modos: ao mencionarem a dinâmica social, política e econômica na Bahia seiscentista envolvendo a vida camarária, epidemias, o preço do açúcar etc.; ou – de maneira mais desenvolvida – destacando o conceito de representação para explicar os poemas historicamente, quando mobilizam as categorias retórico-poéticas e político-teológicas incidentes nos textos. Esses são aspectos válidos, mas muito genéricos e insuficientes do ponto de vista do historiador contemporâneo. O
170 ISER, 2017 [1991]; ROMEIRO, 2018; e MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Romeiro, Adriana. Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 39, n. 81, p. 245-249, maio/ago. 2019. 171 HANSEN; MOREIRA, op. cit.; BARTHES, 2012a [1967]; e FOUCAULT, 1969.
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estudo de caso envolvendo o Discurso possibilita uma investigação meticulosa, capaz de problematizar padrões convencionalmente estabelecidos. Por exemplo, as ideias políticas ali escritas – expressas em prosa e num registro distinto da sátira – eram bem indecorosas e heterodoxas para serem veiculadas publicamente, tanto em forma manuscrita como impressa, considerando as práticas de escrita, conveniências e a censura na monarquia portuguesa no tempo de d. João V. Também há flertes com a alquimia e a filosofia atomística que não escapariam à vigilância da Inquisição portuguesa e da Igreja de Roma à época. Dito de outro modo, o Discurso não foi feito para ser público, mesmo em forma manuscrita – diferentemente dos cancioneiros poéticos, da própria Noticia e dos pasquins sediciosos, que circulavam mais. Hansen e Moreira são céticos sobre a periodização histórica convencional, ao referirem as épocas entre aspas ou aludindo ao caráter iluminista e homogeneizador dos grandes tempos no tocante a formas textuais. Ao fundo, há a concepção de que a historicidade dos poemas atribuídos a Gregório de Matos reside na própria poesia e em seu jogo de representações. Portanto, entendem os aspectos histórico e artístico como sendo a mesma coisa.172 Mas a significação concreta e primeira de cada caso de estudo se dá pela história do artefato em relação a seu mundo, e não pela tradição bibliográfica ou literária. Voltamos então ao problema exposto por Jauss, a fim de diminuir a distância entre os estudos históricos e literários, em contraposição a uma abordagem imanente e formalista dos textos.173 Em suma, neste trabalho a Época Moderna é um enquadramento temporal controverso, mas aceito, que permite lidar com o primado do individual em sua acepção “humanista”, mas também com a permanência de estamentos, regras e ordens – no que se aproxima mais do termo Antigo Regime. A aparente ambiguidade de aspectos no lidar com esses séculos pode ser mais bem resolvida por investigações despreocupadas em qualificar o objeto a priori, com base em modelos externos de explicação. Uma
172 HANSEN, 2004 [1989]; MOREIRA, 2011; HANSEN; MOREIRA, op. cit.; PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. São Paulo: Edusp; Campinas: Ed. Unicamp, 1994; e PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001, p. 11-16. 173 A discrepância de prismas – e paradoxalmente a tentativa de aproximação – evidencia-se nos dois ótimos estudos antecedentes à edição de um manuscrito seiscentista em: SCHWARTZ, Stuart B.; PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 15-65. Ver JAUSS, 1994 [1967], p. 42.
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perspectiva heurística aberta torna o período instigante e desafiador, a depender de como se apresentam os casos particulares. * O presente livro é beneficiário das perspectivas acima, ao valer-se do estudo detalhado do texto do Discurso. Todavia, nele a análise textual – no que respeita a estrutura, expressões, formas, topoi, temas relevantes e peculiaridades, bem como ao contexto de ideias – é indissociável da percepção da materialidade e da configuração visual dos manuscritos, ora esmiuçadas. As informações advindas dos exames do texto e da matéria complementam a investigação acerca dos possíveis autores intelectual e gráfico do artefato textual em tela, de suas primeiras recepções e dos percursos entre bibliotecas particulares, coleções e arquivos públicos. Neste capítulo vimos a história envolvendo o códice destacado. No próximo a investigação procura fundamentar a hipótese de o Discurso ter permanecido entre os membros da casa de Assumar/Alorna, até migrar para a livraria dos condes de Linhares no segundo decênio do século XIX, como resultado dos embates entre dois grupos na monarquia portuguesa no fim da Época Moderna. Ao mesmo tempo, abre-se o leque de estudos sobre a produção letrada e o patronato de trabalhos escritos e/ou artísticos como componentes de um ethos aristocrático próprio, a fim de ampliar a possibilidade de apontamentos sobre os manuscritos.
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Capítulo 2
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Não havia indícios até o presente das recepções do Discurso historico, e político sobre a soblevação, que nas Minas houve no anno de 1720 e da Noticia da sublevação, que nas minas do ouro preto houve no anno de 1720 em Portugal. As informações de ordem material, associadas ao fato de o códice, atualmente em Belo Horizonte, encontrar-se ao menos desde 1825 na livraria dos condes de Linhares em Lisboa, fortalecem a hipótese deste primeiro manuscrito ter sido pouco consultado no reino europeu, enquanto a Noticia parece ter conhecido uma circulação volante, até ser adquirida por Alberto Lamego em um alfarrábio de Lisboa na década de 1920 e levada – provavelmente de volta – para o Brasil. Este capítulo perscruta o suposto destino do Discurso, com atenção às histórias das casas nobres mais próximas aos âmbitos de produção e percurso do códice, as de Assumar/Alorna (Figura 10) e de Linhares. Especialmente sobre a primeira delas, aspectos de suas bibliotecas e feituras elaboradas de manuscritos, impressos e algumas imagens são destacados, entrecruzando informações bibliográficas provenientes de vários estudos e arquivos. Os estudos acerca deste “documento” foram muito centrados na trajetória de Pedro Miguel de Almeida Portugal – transformado, pela parcialidade do conteúdo escrito, em um dos vilões da história do Brasil pela historiografia tradicional. O texto continuou a ser entendido por um prisma político em estudos recentes.
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Pedro de Almeida Portugal (1630-1679) 1º conde de Assumar
João de Almeida Portugal (1663-1733) 2º conde de Assumar
Isabel de Castro Mascarenhas (c.1665-1724)
Pedro Miguel de Almeida Portugal (1688-1756) 3º conde de Assumar 1º marquês de Alorna
João de Almeida Portugal (1715)
José de Almeida Portugal (1717)
Margarida André de Noronha
Fernando de Almeida Portugal (?-1712)
Maria José de Lencastre (1698-1749)
Lourenço de Noronha e Távora (c.1690-?)
Tomás de Noronha (1679-1760) 5º conde dos Arcos
Ana de Almeida Portugal (1723-?)
Maria do Rosário do Resgate de Noronha (1748-1822)
João José L. Mascarenhas Barreto (1778-1806) 7º conde da Torre 7º conde de Conculim 6º marquês da Fronteira
Isabel de Almeida Portugal (1724-1726)
Carlos Pedro M. José Augusto (1739-1793) conde de Oyenhausen
Leonor Benedita de Oyenhausen de Almeida (1779-1850) condessa de Oyenhausen 8ª condessa de Assumar 5ª marquesa de Alorna
Maria Benta de Almeida Portugal (?-1731)
Gastão José da Câmara Coutinho (1662-1736)
Madalena Bruna de Almeida Portugal (1689 -1729)
Bernardo de Castro Noronha e Lencastre
Leonor de Almeida Portugal (1750-1839) 7ª condessa de Assumar 4ª marquesa de Alorna
Maria Regina de Oyenhausen de Almeida (c.1781-?)
Aires de Saldanha Albuquerque (1755-1827) 2º conde da Ega
Madalena de Almeida Portugal (1725-1742)
Juliana de Oyenhausen de Almeida (1784-1864)
Frederica de Oyenhausen de Almeida (1782-1847)
Grigory Alexandrovich (1769-1857) conde de Stroganov
Memória fidalga
Casa dos condes de Assumar e marqueses de Alorna (c.1679-1850) Figura 10 - Quadro sinótico com genealogia de membros da família Almeida Portugal. Arte de Lygia Moura.
Diogo Fernandes de Almeida Portugal (1698-1752)
Luísa do Pilar de Noronha (1692-?)
João de Almeida Portugal (1726-1802) 4º conde de Assumar 2º marquês de Alorna
Leonor de Lorena e Távora (1729-1790)
Luís António da Câmara (1754-1802) 6º conde da Ribeira Grande
Maria Rita de Almeida Portugal (1751-1786)
Francisco de Almeida Mascarenhas (1701-1745)
Maria Isabel de Almeida Portugal (1730-?)
António de Almeida Portugal (1705-1754)
Luís de Almeida Portugal (1731-?)
Francisca de Almeida Portugal (1734-1736)
Pedro José de Almeida Portugal (1754-1813) 5º conde de Assumar 3º marquês de Alorna
João de Almeida Portugal (1796-1805) 6º conde de Assumar
Carlos Frederico de Oyenhausen de Almeida (1785-1795) conde de Oyenhausen
Leonor da Câmara (1781-1850) marquesa de Ponta Delgada
Manoel da Câmara (1783)
Henriqueta de Oyenhausen de Almeida (1789-1860)
Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro (1776-1849)
Maria do Santíssimo S. de Vasconcelos e Sousa (1790-1814)
José de Almeida Portugal (1714-?)
Fernando de Almeida Portugal (1737-?)
Diogo de Almeida Portugal (1739-1740)
Henriqueta Júlia Gabriela da Cunha (1787-1829)
Miguel de Almeida Portugal (1797-1806)
Luísa de Oyenhausen de Almeida (1791-1812)
José Maria Gonçalves Zarco da Câmara (1784-1820) 7º conde da Ribeira Grande
João Carlos U. de Oyenhausen de Almeida (1793-1822) conde de Oyenhausen
Mariana de Almeida Portugal (1785-1849)
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Busca-se aqui ir além do âmbito do protagonista e possível colaborador textual, a fim compreender o apreço pela cultura escrita manifesto em várias gerações de uma linhagem de fidalgos, como parte importante do seu ethos construído ante a monarquia e a sociedade portuguesa de outrora.1 Em paralelo, alguns elementos elucidam como o códice em tela, por tanto tempo escondido, passou desta casa nobre à biblioteca de outra, então mais bem posicionada politicamente no centro do poder.
Penachos escritos Durante a Guerra de Sucessão da Espanha, o 2o conde de Assumar João de Almeida Portugal foi nomeado embaixador extraordinário de Pedro II (16831706) junto ao arquiduque Carlos de Habsburgo, candidato ao trono espanhol pela coalizão. Em 1705 ele acompanhou desde o estuário do Tejo o pretenso Carlos III em sua viagem à Espanha por mar, situando-se primeiro em Valência, depois em Barcelona, onde o arquiduque instalou sua corte. Como representante do governo luso, o 2o Assumar participou da maioria das juntas de guerra organizadas pelo pretendente Habsburgo entre 1706 e 1711, com ministros, generais e agentes diplomáticos aliados, incluindo ingleses, neerlandeses, imperiais e portugueses, na luta contra os Bourbons. Nessas sessões o embaixador português atuou também na supervisão das praças fortes no leste catalão, ou na defesa de condições para os soldados portugueses. Travou assim estreitas relações com o arquiduque Carlos e alguns nobres da primeira nobreza castelhana.2 João de Almeida tomava então notas de viagens, de cartas por ele escritas sobre suas impressões da guerra, querelas cerimoniais, contendas com nobres e o contato com tropas portuguesas na estada catalã. Compôs assim um grande diário
1 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “ethos” da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança: algumas notas sobre a casa e o serviço do rei. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 19, p. 383-402, 1998; e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “ethos” nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 2, p. 4-20, 2005. 2 MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 253-284. Na monarquia portuguesa o recrutamento dos diplomatas não obedecia a um padrão social definido. CARDIM, Pedro; MONTEIRO, Nuno G.; FELISMINO, David. A diplomacia portuguesa no Antigo Regime: perfil sociológico e trajectórias. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares da (orgs.). Optima pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 314-329.
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manuscrito em quatro tomos, abrangendo o período de 1705 a 1708, hoje dispersos em vários arquivos e que ainda deverão ser analisados em sua totalidade.3 No presente só se conhece o paradeiro dos três primeiros tomos: um que estava no arquivo particular dos descendentes dos condes da Ribeira Grande, outro depositado no ANTT e outro na BNP.4 Os percursos desses documentos vinculam-se a trajetórias de membros da linhagem Almeida Portugal e sua práxis na transmissão de manuscritos. O exemplar depositado no ANTT lá entrou pelo espólio de Leonor de Almeida Portugal (17501839), bisneta do 2o conde de Assumar e 4a marquesa de Alorna desde 1823, cujo patrimônio foi incorporado à casa dos marqueses da Fronteira por descendência. O tomo que pertencia aos descendentes dos condes da Ribeira Grande chegou a este arquivo pelas mãos da outra bisneta e irmã de Leonor, Maria Rita de Almeida Portugal (1751-1786), condessa da Ribeira Grande por casamento.5 Por sua vez, o tomo existente na BNP provém da livraria do irmão caçula Pedro José de Almeida Portugal (1754-1813), titular da casa de Alorna desde a morte do pai em 1802, que teve os bens confiscados pelo Juízo da Inconfidência, como veremos adiante.6 Tempos depois da guerra na Espanha, no âmbito da Academia Real da História – da qual o 2o conde de Assumar foi membro de 1721 a 1733 – o bem informado Diogo Barbosa Machado menciona em 1747 a existência dos quatro
3 MARTÍN MARCOS, David. A embaixada de D. João de Almeida Portugal, 2o conde de Assumar, na corte do arquiduque Carlos: notas diarísticas, percepções e identidade. In: MARTÍN MARCOS, David; IÑURRITEGUI, José María; CARDIM, Pedro (orgs.). Repensar a identidade: o mundo ibérico nas margens da consciência europeia. Lisboa: Cham, 2015, p. 263-284.; e MARTÍN MARCOS, David. “Peregrino en su patria, va a peregrinar a las extrañas”: la memoria del yo en la embajada del conde de Assumar ante el archiduque Carlos (1705-1713). In: ÁLVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio; BRAVO LOZANO, Cristina (orgs.). Los embajadores: representantes de la soberanía, garantes del equilibrio, 1659-1748. Madrid: Marcial Pons, 2021, p. 441-466. 4 Diario que comessa em 28 de junho [de 1705], no inventariado; ANTT, Casas Fronteira e Alorna (CFA), 76, C[ontin]uação d[o diário e de tudo o que se] vay sucedend[o em] Cathalunha [e na] monarchia de Esp[anha, onde se] acha empenhado [Dom Carlos] 3o a quem venho por [embaixador] extraordinario del rey [Dom Pedro] segundo de Portug[al] e tem principio [no primeiro de março de 1706]; e BNP, Reservados (R), 747, Continuação do diario e de tudo o que vay sucedendo nesta expedição de Espanha e das mães partes da ditta monarchia em que com armaz del rey Dom Pedro segundo de Portugal meu senhor, e dos mães princepes aliados se pertende meter de posse de toda ella a el rey Católico Carlos 3o a quem venho por embaixador extraordinário del rey de Portugal meu senhor e tem prencipio este livro em 11 de outubro de 1706. MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 258. 5 Como vimos no Capítulo 1, também o bando datado de maio de 1718, com o mesmo papel utilizado em fólios do Discurso, fazia parte do arquivo da família Gonçalves Zarco da Câmara, descendente dos condes da Ribeira Grande e dos condes de Vila Franca, antigos donatários da ilha de São Miguel, nos Açores. Segundo o livreiro antiquário em Lisboa Pedro de Azevedo, em 2017 a maior parte deste arquivo foi depositada na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Mas o núcleo de manuscritos contendo muitas cartas de Alcipe e registros do 2o conde de Assumar e seu filho na Guerra de Sucessão da Espanha (com um tomo do referido diário) foi vendido separadamente. Entre os documentos sobrantes estava o bando de Pedro de Almeida para Pitangui. Ao devolver os exemplares não vendidos à família Gonçalves Zarco da Câmara em dezembro de 2019, Pedro de Azevedo comentou meu interesse. A família cedeu-o gentilmente, sabendo que ele retornaria ao Brasil. 6 ANTT, Juízo da Inconfidência e Ausentes ( JIA), Alorna (A), livro 506, maço 1, no 1. Autos do real avizo para reavaluar e vender os livros que entrarão por depozito na Real Bibliotheca Pública apreendidos do ex marquês de Alorna na forma que no dito se determina (09/02/1819), p. 389.
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tomos do diário no verbete sobre aquele autor, na Bibliotheca lusitana, referindo: “eftas obras fe confervaõ com a devida eftimaçaõ em a fua Excellentiffima Caza”.7 Havia um hábito de partilha dos manuscritos entre membros descendentes daquela linhagem nobre. O afã produtor e perpetuador de memória do 2o conde de Assumar já se expressara em sua atuação anterior como vedor da fazenda no reinado de Pedro II, na escrita de preparativos detalhados para receber embaixadores estrangeiros. Especialmente depois, em sua longa embaixada, ele mandou elaborar um copiador no qual eram coligidas as cartas escritas, mantendo viva a lembrança do serviço importante que prestava à monarquia. Os oito anos vividos na Espanha durante a guerra foram também importantes na formação do jovem Pedro de Almeida, que voltou a Portugal em 1713 como general e comandante das tropas lusas, substituindo o 5o conde de Atalaia, descontente com a nomeação do 2o conde de Assumar para o Conselho de Estado. Em Barcelona, onde residiu com o pai embaixador quando não estava em batalhas, Pedro Miguel de Almeida conviveu com nobres, militares, letrados e artistas de vários países, conforme o perfil cosmopolita da frente aliada na ciudad condal.8 Situada entre Madrid, a península itálica e a França, esta cidade possuía ligações com os grandes mercados editoriais de Lyon e Veneza, sendo um centro de circulação de ideias e produção tipográfica. Para evitar a concorrência estrangeira na venda de livros, desde meados do século XVII os impressores catalães publicavam folhetos de notícias: peças soltas de pequeno formato com até 20 páginas, também nomeadas gazetas ou relações, com informes sobre temas políticos ou militares, de grande aceitação popular. A maioria dos folhetos saídos dessas oficinas reproduzia o já impresso em Madrid, Paris, Viena, Roma ou Amsterdã. Mas a de Rafael Figueró, favorecida por sua fidelidade ao arquiduque Carlos de Áustria, anexava aos opúsculos notícias de eventos ocorridos na capital catalã.9
7 MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica. Na qual se comprehende a noticia dos authores portugueses, e das obras, que compuseraõ desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo prezente. Lisboa: Ignacio Rodrigues, 1747, t. II, p. 582. 8 Entre eles Manuel Caetano de Sousa, em viagem da Itália a Portugal antes de ser o mentor da Academia Real da História. MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 270-277. 9 CAMPRUBÍ I PLA, Xevi. L’impressor Rafael Figueró (1642-1726) i la premsa a la Catalunya del seu temps. 2013. Tesi (Doctorado en Història) – Universitat de Barcelona, Barcelona, 2013, v. 1.
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A oficina Figueró publicava também relações de festas pagas por autoridades locais, como os vários folhetos encomendados pelo 2o conde de Assumar, representante da monarquia portuguesa na corte austracista. Os impressos relatam seus investimentos na celebração de fatos alusivos à monarquia portuguesa em Barcelona e Valência, aos quais associava seu nome pelos serviços prestados: exéquias de Catarina de Bragança e Pedro II, casamento de d. João V com a irmã do pretenso Carlos III (o arquiduque Habsburgo), nascimento da infanta portuguesa.10 Também se imprimiam notícias de batalhas, que repercutiam na Espanha e no exterior. Várias evidenciam o nome de Pedro Miguel de Almeida em sua pujante escalada militar.11 Tendo ultrapassado a concorrência instituída no Conselho Ultramarino, escolhido diretamente pelo rei para o governo da delicada capitania de São Paulo e Minas do Ouro, ele empreendeu a longa viagem em 1717 de Lisboa ao Rio de Janeiro e desta cidade até as Minas. Os relatos manuscritos e anônimos das duas etapas do percurso encontram-se na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (BACL).12 David Martín Marcos observa a semelhança de registros entre os diários
10 BNB, OR, CBM, 24, 1, 1, no 14, Al excelentissimo señor don Juan de Almeyda, conde de Assvmar […] En dia, que nueftro amado rey Carlos, haze en la excelentiffima Barcelona, reales exéquias á la sereniffima señora doña Catalina, hermana del rey de Portugal, y reyna de Inglaterra […]. Barcelona: Bartholomè Giralt, 1706. 1 p.; 23, 2, 2, no 8, Nvmeroso cvlto, mvsico festejo, en aplavso de las felicíssimas, y reales bodas del avgvstissimo, y sereníssimo señor rey de Portugal don Juan Quinto, con la sereníssima archidvqvesa doña Mariana de Avstria. Mandado celebrar en el Grande Salon de San Jorge de la dipvtacion de Barcelona por el excelentíssimo señor conde de Assvmar, embaxador extraordinário de Portugal a la magestad de el rey católico Carlos terceiro. Barcelona: Rafael Figueró, 1709. 12 p.; 25, 3 bis, 10, no 6, Relacion de la avdiencia pvblica, que el dia 3. de febrero de 1709. tuvo de las majestades católicas el excelentíssimo señor conde de Assvmar, embaxador extraordinario de Portugal, a sv magestad católica, participandoles la notica del real defpoforio del serenifsimo señor rey de Portugal don Juan Quinto con la sereníssima señora reyna doña Mariana de Avstria y las destivas demonstraciones, qve por efpacio de três dias fucceffivos mandò hazer fu excelencia, en aprecio de efta tan feliz vnion, y dichofo arribo de fu Mageftad à la corte de Lisboa. Barcelona: Rafael Figueró, 1709. 4 p.; 23, 1, 3, no 1, Relacion, de la forma en qve el exmo. señor conde de Assvmar, embaxador extraordinário de sv magd. portvgvesa en esta corte, participò a la sra. emperatriz reyna, el nacimiento de la princesa Eleonor, hija primogênita de los sres. reyes de Portugal. Barcelona: Rafael Figueró, s.d. 2 p. MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 270-274. 11 BNB, OR, CBM, 23, 4, 5, no 1, Dinis de Mello de Castro, Ultima noticia da expugnaçam da praça de Valença de Alcantara, & relação da de Albuquerque rendida com capitulaçoens pelo exercito da provincia de Alem-Tejo governado pelo Conde de Galveas. Lisboa: Valentim da Costa Deslandes, 1705. 8 p.; 23, 4, 6, no 43, Relacion del feliz svcesso, que ha logrado el deftacamento comandado por el excelentifsimo señor conde de Atalaya, […] que fe ha dicho aver marchado à Cervera […]. Barcelona: Rafael Figueró, 1708. 4 p.; 23, 4, 7, no 3, Gazeta de Barcelona […], no 23, Barcelona: Rafael Figueró, 1709. 4 p.; 23, 4, 7, no 19, Relaçam dos movimentos, e acçoens, que depois da batalha de Almenara obrou o exercito de sua magestade Catholica, & da feliz vitória, que ultimamente alcançou das armas do duque de Anjou, junto a Saragoça […]. Com a copia de hua carta da mefma magestade Catholica para a el rey noffo senhor. Lisboa: Antonio Pedrozo Galraõ, 1710. 12 p.; 23, 4, 7, no 21, Relaçam das ultimas noticias que vieraõ […]. Lisboa: Antonio Pedrozo Galram, 1710. 4 p.; 23, 4, 7, no 17, Copia de la carta, qve el señor mariscal conde Guido de Starhemberg, efcrivió […] al rey nueftro señor […] relacionando la gloriofa batalla […] en el campo de Alcarria, entre Cifuentes, y Brihuega. Barcelona: Rafael Figueró, [1710]. 4 p.; 23, 4, 7, no 58, Relaçam da campanha de Alem-Tejo no outono de 1712 [...]. Lisboa: Miguel Manescal, 1714. 54 p. Ver MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 259-269. 12 BACL, série azul, códice 382, nos 7 e 8, f. 240-295, Relaçãm Diaria da Viagem que fez ao Rio de Janeiro o Conde de Assumar D. Pedro de Almeyda e Diario da jornada, que fes o Exm.o Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeyro athé a Cid.e de São Paulo, e desta athe as Minas. Anno de 1717. Valendo-se da publicação em revista do segundo trecho da viagem em 1939, Laura de Mello e Souza trata dos percalços no trajeto de hospedagem e alimentação, sem conjecturar a autoria do texto. SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: NOVAIS, Fernando A. (dir.); SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 1, p. 58-61. Os dois textos foram impressos em TÁVORA; COBRA, op. cit., p. 183-221. Diferentemente desses autores, identifico a letra do secretário Domingos da Silva nos relatos.
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do 2o Assumar e os relatos da viagem de Pedro Miguel de Almeida, de Lisboa ao Rio de Janeiro e desta cidade até Minas.13 É provável que o novo governador tenha participado ativamente na redação desses textos, nos quais é descrito na 3ª pessoa e em tom laudatório. Ali estão os interesses em “ciência” – sobretudo pelos movimentos náuticos – já observados pelo viajante Giovanni Francesco Gemelli Careri na anterior estada catalã,14 bem como o conhecimento de poderosos locais com os quais lidaria durante vários anos. Chegou assim a São Paulo em setembro daquele ano. Após exaltar os feitos dos antepassados, ele valorizaria sua experiência pregressa no discurso de posse: que mais com os próprios penachos se adornam as pessoas, que com os que por herança lhe vem de seus antepassados; de uns não menos que de outros foi Deus servido que eu tivesse em abundância. Digam as histórias dos mais acreditados autores; os mares, e as campanhas do Oriente, donde os meus antecessores expuseram e perderam a vida no serviço do seu rei, o que eles obraram. A Europa, onde sou bem conhecido, e nela Valença de Alcântara, Albuquerque, Barcelona, Catalunha, Almenara, Saragoça, Vila Viçosa, todos campos de sanguinolentas batalhas, referiram as minhas ações; pela qual razão posso dizer com toda a confiança, que poucas pessoas terão em Portugal arriscado mais vezes que eu a sua vida pelo seu rei, e pela sua pátria.15
Não resta dúvida sobre a formação letrada e bélica deste nobre português, desde as primeiras instruções feitas em casa sob influência de Rafael Bluteau, com quem Pedro Miguel e a condessa sua mãe Isabel de Castro se correspondiam. Nesse tempo o clérigo teatino, em viagem ou recluso no mosteiro de Alcobaça, indicava leituras e dava conselhos ao adolescente Almeida Portugal.16 Na carta de junho de 1704 escrita pela condessa, bastante explorada pela historiografia, a mãe aconselhava Pedro Miguel a honrar o pai e os antepassados Almeidas e Mascarenhas, quando o marido acompanhava o arquiduque e Pedro II até a fronteira e o jovem preparava-se para ingressar no conflito. E lhe recomendava consultar os livros durante o tempo livre,
13 MARTÍN MARCOS, 2015, p. 265-266. 14 MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 274. 15 SOUZA, 1999, p. 32-34 (citação na p. 36). Ver também MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 260-261. A edição feita por Mello e Souza considerou uma cópia manuscrita na BPNA, Manuscritos, 54/XIII/16, e outra na BPE, códice CXVI/2-13, no 27 – por meio de suas fotocópias identifico a letra de Domingos da Silva. 16 NORTON, 1967, p. 15; e PEREIRA, 2016, p. 81.
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porque a aplicação às letras, não embaraça o uso das armas, antes mais airoso maneja estas, quem está mais senhor daquelas, [...] entendei que para todos os lances as ciências são boas armas, e não vos deixeis esquecer do que tendes aprendido com tanto trabalho.17
Deve-se sublinhar ainda a amizade entre João de Almeida Portugal e Luís da Cunha, tendo ambos atuado como embaixadores na referida guerra ou em seu desfecho. Na BNP e no Arquivo do Palácio do Itamaraty (API) no Rio de Janeiro, encontra-se uma longa correspondência reveladora de amabilidade, respeito e troca intelectual, na qual o 2o conde de Assumar contava o ocorrido em Portugal e suas conquistas e d. Luís escrevia as notícias europeias. Já em 1716, o embaixador providenciava o envio de cópias de dois volumes das memórias sobre a paz de Utrecht ao amigo.18 Numa carta escrita em Madrid em novembro de 1719, Luís da Cunha expressa, provavelmente sobre os motins ocorridos no Pitangui: Meu Amigo, e Meu S.r Recebi a carta de V E de 24 do passado, e estimo a occafiao’ em q’ V E nesta fua he mais succinto do q’ a costuma honrarme, pois teve tao’ gustofa occupaçao’ como a de ler as Cartas dos S.r D. Pedro de Almeida de saber q’ ficava com bo’a saúde, e haver descuberto a conspiraçao’ de q’ me avizao’, e de tudo lhe dou infinitos parabens, pois aquelle Brazil, e aquellas Minas sao’ o bem q’ a Velha tem.19
Em agosto de 1720, no rescaldo da sublevação de Vila Rica, o mesmo embaixador manifesta contentamento pelo fato de o 2o Assumar ter recebido notícias do filho.20 Em setembro de 1721, de Paris Luís da Cunha atesta o recebimento da carta do mês anterior e escreve: “estimo as boas novas que me dà da sua saude e do S. Dom Pedro de Almeyda que com tanta gloria tem continuado o seu Governo tao’ cheyo de inquietaçoens nas naturais a tao’ mà Gente”.21 E na mesma cidade em abril de 1722, comemora:
17 Apud BOXER, Charles R. Uma carta inédita da primeira condessa de Assumar para o seu filho, D. Pedro de Almeida e Portugal (2 de junho de 1704). In: ACADEMIA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. Collectânea em honra do prof. doutor Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1974, p. 273. 18 Como vimos no Capítulo 1, cópias dessas memórias (cujos originais foram oferecidos ao rei) também estavam entre os manuscritos do conde de Linhares em 1895. BNP, R, códice 1608 apud PEREIRA, 2016, p. 79. Sobre a amizade entre Luís da Cunha e João de Almeida, ver FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012, p. 128. 19 API, 343-1-9, Ofícios de Madrid e Paris dirigidos ao conde de Assumar, 1719-1723, no 41. 20 Ibidem, no 120. 21 Ibidem, no 234.
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Dou a V. Ex.a o Parabem da chegada do S. Conde de Assumar, cujo Governo foi tao’ feliz, havendo com a sua grande Prudencia discipado tantos receos, entre tao’ mà Gente. Ponhame V. Ex. as aos seus pés, dandolhe a verdadeira idea de que a obrigaçao’ que devo ao Pay se estenderà agradecidam.te ao filho.22
Para Luís da Cunha, Minas adquiria nesse momento maior centralidade, conforme os interesses do império português.23 Por esses pequenos trechos, o pai em Portugal e seu amigo no estrangeiro eram influenciados pela parcialidade do filho do primeiro – o ex-governador que então retornava ao reino – mediante uma versão dos acontecimentos no fundo similar à desenvolvida no Discurso historico, e político e na Noticia. Há de se prestar atenção ao afã de produção de memórias históricas – manuscritas e impressas – característico desta casa nobre. Ao que parece, o empenho do 4o conde da Ericeira Francisco Xavier de Meneses nos anos iniciais da Academia Real da História para o exame de manuscritos de livrarias particulares não foi acompanhado pelos outros membros, apesar de prometido pelo 2o conde de Assumar em 1724.24 Todavia, por ocasião de sua morte em 1733, o padre teatino José Barbosa – em substituição a Manuel Caetano de Sousa, por ventura mais próximo àquele núcleo familiar – proferiu uma oração fúnebre para João de Almeida, feita sob auspícios e com as informações do filho, doravante titular da casa e reabilitando-se ante a coroa após o relativo ostracismo vivido, explicado no Capítulo 1. O cronista da casa de Bragança elogiou os varões antepassados dos Almeidas, cuja casa era como uma oficina de Marte por forjar capitães e generais, além de embaixadores, vedores e conselheiros de Estado. E após descrever os feitos do 2o conde, o acadêmico real comentou minuciosamente a trajetória bélica do
22 Ibidem, no 283. 23 FURTADO, 2012, p. 248-249. 24 O empenho resultaria sobretudo no levantamento da biblioteca do 3o conde de Vimieiro, Diogo de Faro e Sousa – compreendendo a preciosa coleção de Manuel Severim de Faria – e em 1735 na publicação do catálogo das obras de Manuel Caetano de Sousa, fundador da Academia. ASKINS, Arthur; SOBRAL, Cristina; ALMEIDA, Isabel. Examinar os manuscritos das livrarias particulares: obra do conde de Ericeira. Lisboa: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos; Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, 2012 (referência à sessão de 25/10/1724 na p. 21). Na Collecçam dos documentos estatutos e memorias da Academia Real da Historia Portugueza... Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva/Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1721-1736. 16 tomos, há vários discursos de membros da casa de Assumar que não serão detalhados. Em linhas gerais, o 2o conde de Assumar (como outros acadêmicos) participou pouco das sessões, com justificativas de estar fora de Lisboa ou indisposto. Desse modo não cumpriu a encomenda de narrar as memórias de Sancho I (1185-1211) e Afonso II (1211-1223), alegando dificuldades com livrarias e arquivos. Em 1733 o 3o conde de Assumar Pedro de Almeida promete continuar o trabalho do seu antecessor marquês de Abrantes na pesquisa de medalhas, moedas e inscrições romanas; no fim daquele ano tornou-se censor; e em 1734 expôs seus estudos sobre as vias militares de Braga, além de moedas, mármores e bronzes romanos.
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astro lusitano Pedro de Almeida Portugal na guerra na Espanha, com base nos impressos compilados pelo irmão Diogo Barbosa Machado. Mas também com informes e o ponto de vista do interessado, pois alguns dados não aparecem nos opúsculos compulsados pelo abade de Sever.25 O tom laudatório deste texto contrasta com o relato de Domingos da Conceição, capelão que percorreu a península ibérica integrado ao exército português naquela contenda. Em seu diário, escrito sem aparente intenção de publicação e/ ou enaltecer figuras coetâneas, frei Domingos fez breves referências a Pedro de Almeida. Tempos depois o 3o conde de Assumar pediu o manuscrito emprestado ao frei, e após lê-lo disse que discordava de muitas coisas. E ficou com o documento original, devolvendo a Domingos da Conceição apenas uma cópia.26 Faz-se evidente o vínculo entre feitos bélicos, o empenho na produção e na seleção de uma memória escrita e a construção de uma personalidade pública ligada à guerra. Mas há de se notar também outros membros da casa, por exemplo Francisco de Almeida Mascarenhas (1701-1745), um dos filhos mais novos do 2o conde de Assumar. Após estudar filosofia com os oratorianos, ele foi porcionista – espécie de aluno particular – do Colégio de São Paulo em Coimbra, onde viveu vários anos e se correspondia com o já idoso Manuel Caetano de Sousa sobre compras de livros, localização bibliográfica e interpretações várias.27 Licenciado em cânones em 1723, foi em seguida nomeado presbítero e deputado da Inquisição de Lisboa. Em 1728 ingressou na Academia Real da História, tornando-se ali censor após dez anos,
25 BNB, OR, CBM, 24, 1, 4, no 9, BARBOSA, José. Elogio do excellentissimo senhor d. Joaõ de Almeida e Portugal, conde e senhor do Assumar, gentil-homem da câmera de sua magestade, do conselho de Estado, e Guerra [...]. Lisboa: Joseph Antonio da Sylva, 1735. 62 p. Ver MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 268. 26 É o que se depreende pelo escrito na primeira página da cópia existente na BACL, série vermelha, 45, f. 77v-78, 110-110v e 115v-116v. O diário, até então pouco conhecido, foi traduzido do original em português para o castelhano e editado na Espanha. Ver ALBAREDA SALVADÓ, Joaquim; LEÓN SANZ, Virginia (orgs.). Domingos da Conceição. Diario bellico: la Guerra de Sucesión en España. Traducción de David Martín Marcos. Alicante: Publicaciones Universidad de Alicante, 2013; e MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 269. 27 Para essas informações, cf. DOMINGOS, Manuela D. Erudição no tempo joanino. Leituras - Revista da Biblioteca Nacional - O livro antigo em Portugal e Espanha séculos XVI-XVIII, Lisboa, s. 3, n. 9-10, p. 191-219, 2001-2002. Conforme Isabel Mota, as numerosas cartas expressam uma rede de relações interpessoais com cumplicidades e rivalidades. Cita como exemplo o códice da BNP que reúne 70 cartas de Manuel Caetano de Sousa a Francisco de Almeida entre 1731 e 1734, sobre bibliografia, preços e apreciações de livros, conversas eruditas com outros doutos sobre crítica de fontes, opiniões sobre impressores e livreiros e problemas de publicação. MOTA, op. cit., p. 68.
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quando ascendeu também ao posto de principal da Igreja Patriarcal de Lisboa – como cônego presbítero28 – e também ao de promotor da Inquisição de Coimbra. Na volta a Lisboa, manteve assídua correspondência com letrados espanhóis, entre eles Gregorio Mayans y Siscar, de quem recebeu convite para integrar a recém-criada Academia Valenciana em 1745, pouco antes do seu falecimento. Preocupado como o erudito valenciano em pautar as investigações históricas em fontes autênticas, na Academia foi encarregado de compor a história eclesiástica de Portugal – que não chegou a completar, em parte por envolver-se em controvérsias com outros acadêmicos.29 Preparava-se também para concluir a obra Bibliotheca hispana, e lusitana, para a qual reuniu dezenas de códices, coligidos por ele mesmo ou sob sua orientação, hoje depositados na BNP. Francisco de Almeida deixou um número considerável de manuscritos e uma biblioteca com mais de 11 mil volumes, com 4.690 títulos impressos, além dos próprios manuscritos e alheios – uma das maiores livrarias particulares registradas em Portugal antes do terremoto de 1755.30 Segundo Francisco José Freire (Cândido Lusitano) tratava-se de um crítico ácido e erudito, que aplicava o rigor também a seus próprios trabalhos, mobilizando um grande aparato crítico para apoiar ou refutar uma matéria tratada.31 Diogo Barbosa Machado, mais contido, após narrar sua genealogia nobre e trajetória, em 1747 limita-se a listar os trabalhos impressos do autor em tela.32 Mas no tomo suplementar da Bibliotheca lusitana impresso em 1759 mencionou suas últimas rea-
28 Ser censor da Academia Real significava estar em sua cúpula dirigente, logo abaixo da direção. MOTA, op. cit., p. 35. A Igreja Patriarcal de Lisboa foi instituída em 1716 pelo papa Clemente XI (1700-1721), os “principais” eram dignitários como os cônegos presbíteros e diáconos. 29 Ibidem, p. 201. Gregorio Mayans e outros eruditos empenhavam-se nesse tempo em escrever novas histórias da América espanhola, patrióticas mas também críticas, privilegiando a tradição humanista e a filologia, consolidando os registros históricos coloniais no Arquivo das Índias. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Como escrever a história do Novo Mundo: histórias, epistemologias e identidades no mundo atlântico do século XVIII. Tradução de Juliana Bastos Marques. São Paulo: Edusp, 2011 [2001], p. 20, 170, 180, 194. 30 BNP, Fundo Geral (FG), B. 793 P, Catalogo da livraria que ficou por fallecimento do excellent. e reverendis. senhor principal d. Francisco de Almeyda Mascarenhas. S. n. t. 262 p. Este catálogo foi impresso provavelmente para venda dos livros impressos e manuscritos do nobre, como veremos adiante. 31 BNB, OR, CBM, 24, 1, 10, nos 6 e 7, FREIRE, Francisco Joseph. Elogio do exc.mo e rever.mo senhor d. Francisco de Almeida Mascarenhas, principal da Santa Igreja de Lisboa, do conselho de sua magestade, Ec. Escrito e dedicado aos illustrissimos, e reverendissimos senhores da casa de Assumar, irmãos do mesmo senhor. Lisboa: Ignacio Rodrigues, 1745. 59 p.; Segundo elogio na morte do excellentissimo e reverendissimo senhor dom Francisco de Almeida Mascarenhas, principal da Santa Igreja de Lisboa, do conselho de sua magestade, Ec... Lisboa: Regia Officina Sylviana, 1745. 20 p. Membro da clientela dos Almeidas Portugal, em outro trabalho Freire ressalta o 2o conde de Assumar, pai de Francisco, como um dos ótimos escritores de cartas em Portugal. FREIRE, Francisco Joseph. O secretario portuguez compendiosamente instruído no modo de escrever cartas. Lisboa: Antonio Isidoro da Fonseca, 1745 apud MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. A arte de escrever cartas: para a história da epistolografia portuguesa no século XVIII. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 49 e 389. 32 MACHADO, 1747, t. II, p. 99-100.
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lizações, citando vários de seus manuscritos e os elogios proferidos por ocasião de sua morte. Havia, ao que parece, uma rivalidade entre os dois eruditos.33 Doente, Francisco de Almeida retirou-se para a quinta da família em Almada, onde faleceu em 1745. Sua portentosa biblioteca foi assunto nas cartas enviadas pelo jovem 4o conde de Assumar João de Almeida Portugal a seu pai Pedro de Almeida, então vice-rei da Índia, 1o marquês de Castelo Novo e depois de Alorna, principalmente na volta de Paris a Lisboa de João de Almeida, quando este passou a gerir as questões da casa.34 Em uma longa carta de abril de 1749, o 4o conde de Assumar menciona o testamento do “tio Francisco” junto a preocupações com joias empenhadas a um particular, dívidas da família com outros nobres do reino e sobretudo na Misericórdia.35 Relata então ao pai: João de Melo anda há infinito tempo para vender a livraria, mas agora dizem que poderá ser que haja quem a compre e neste caso hei-de-fazer toda a diligência e pode ser que a consiga por tomar esse dinheiro para pagar as dívidas impertinentes com que nos perseguem. A propósito da livraria direi a V. Ex.a que nela tenho achado além dos livros que V. Ex.a apontou, outros com o seu nome e outros que sem isso me dizem que são de V. Ex.a e nenhum deles hei-de largar sem ordem de V. Ex.a Não sei agora de certo quais são mas nenhum se há-de perder em sendo ocasião.36
Em outra extensa missiva de março de 1750, João de Almeida comentou novamente o testamento do tio Francisco, contando que estava acabada a venda
33 Sobre a Bibliotheca hispana, e lusitana, Barbosa Machado comenta que o autor coligiu muitas memórias para a obra, prometendo-lhe passá-las “repetidas vezes” para aumento da Bibliotheca lusitana, “mas faltando a tantas promessas a publicamos independentemente deste auxílio”. MACHADO, 1759, t. IV, p. 125. Sobre a rivalidade entre Francisco de Almeida e Diogo Barbosa Machado, ver MOTA, op. cit., p. 202. 34 As cartas escritas desde 1744, quando João de Almeida estava em Paris junto a dois irmãos sob tutela de Luís da Cunha, seguiam normalmente para a Índia pela via mediterrânica, por intermédio do tio José de Almeida Portugal, nascido em 1714, cavaleiro da ordem de Malta; já as remetidas após a volta do jovem Assumar a Lisboa desde 1746 aproveitavam as naus da carreira da Índia. Para essas informações, cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). Meu pai e meu senhor muito do meu coração: correspondência do conde de Assumar para seu pai, o marquês de Alorna. Lisboa: Quetzal, 2000. No mesmo ano Mello e Souza publica um pequeno capítulo abrangendo a correspondência de outros membros da casa de Assumar/Alorna, entre eles e com Luís da Cunha. SOUZA, Laura de Mello e. Fragmentos da vida nobre em Portugal setecentista. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000b, p. 77-88, cuja análise também aparece em SOUZA, 2006, p. 208-214. 35 Em 1765 a Santa Casa de Misericórdia era a maior credora da casa de Alorna, com 41,13% de suas dívidas. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003 [1998], p. 385. Em sua volta do Brasil Pedro de Almeida foi provedor da Misericórdia de Almada, onde tinha terras, sendo sucedido pelo filho João de Almeida. O fato pode ter ajudado a obter crédito junto à confraria, na qual os nobres ocupavam postos proeminentes. TÁVORA; COBRA, op. cit., p. 62; e SÁ, Isabel dos Guimarães. As misericórdias portuguesas, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, p. 39-44. 36 Apud MONTEIRO, 2000, p. 93-120 (citação na p. 109). Vários assuntos desta carta foram abordados em SOUZA, Laura de Mello e. O público e o privado no império português de meados do século XVIII: uma carta de dom João de Almeida, conde de Assumar, a dom Pedro de Almeida, marquês de Alorna e vice-rei da Índia, 1749. Tempo, Niterói, n. 13, p. 59-75, 2002; cuja análise é reproduzida em SOUZA, 2006, p. 214-219.
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de sua livraria. Os recursos foram usados em reformas na quinta em Almeirim, sobre as quais se estendeu bastante.37 Essas passagens podem ser interpretadas como demonstrativas de um relativo desprezo das grandes casas nobres de Portugal à época pela posse de livros – apesar da afamada livraria dos condes da Ericeira possuir mais de 15 mil volumes e ser bastante mencionada antes de sua destruição pelo terremoto de 1755, bem como a biblioteca dos duques de Lafões, antes (cerca 30 mil livros) e depois (8.650 títulos) do referido desastre.38 Mas é possível contextualizar mais o episódio, considerando o endividamento crônico que assolava nesse tempo as casas da primeira nobreza da corte lusa, a opção custosa e um tanto inovadora de se manter três filhos em Paris por anos, com o pagamento de lições caras de mestres visando a seu aprimoramento cultural, e a lógica de serviço e representação que pautava o ethos nobiliárquico português na altura39 – expressa por exemplo na remodelação constante das propriedades em Almeirim. Ademais, não se sabe quantos e quais livros foram considerados por seu filho pertencentes ao 1o marquês de Alorna na livraria do tio clérigo e no decorrer do tempo outras livrarias desta casa nobre seriam também notáveis. As longas cartas foram escritas entre os 17 e 24 anos de João de Almeida, sendo similares a uma mescla de diário e memória, com estilo outrora esboçado nos manuscritos do avô embaixador homônimo, amigo de Luís da Cunha – em quem Pedro Miguel de Almeida provavelmente plasmou o destino do primogênito. Embora com tom mais pessoal, nelas o jovem 4o conde de Assumar trata de vários assuntos, dando a impressão de compô-las paulatinamente enquanto aguardava a oportunidade de envio. Conforme os interesses desta pesquisa, destacam-se os estudos e leituras feitos. Na estada parisiense João de Almeida lidou com astronomia, filosofia, mecânica, física, geometria, álgebra e geografia por meio de seu instrutor, referenciando autores como Musschenbroek, Descartes e Newton, além de comentar viagens então realizadas ao Círculo Polar Ártico e ao Equador. Também relata a educação
37 MONTEIRO, 2000, p. 135-142. 38 CUNHA; MONTEIRO, 2011, p. 232. 39 MONTEIRO, 2003 [1998] (especialmente p. 143-155 e 203-555); e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003, p. 83-138.
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dos irmãos Luís – que permaneceu sob tutela de Luís da Cunha – e Fernando, 40 cuidando ainda de mandar ao pai pares de óculos especiais para sua idade, livros e periódicos da França. Após ter passado por Barcelona, onde conheceu a reputação militar de Pedro de Almeida em conversa com antigos combatentes, de volta a Lisboa seus estudos adquiriram feição autodidata: matemática, memórias de academias de ciências e livros de história que o pai possuía, e mais “políbios e com o que pertence à táctica e depois faço tenção de ler as memórias dos melhores generais enquanto V. Ex.a não chega para me dar lições que mais me aproveitem”.41 Enviou ao pai um livro sobre as auroras boreais e escreveu com entusiasmo sobre astronomia, eletrização de corpos com uma bola de vidro e a pedra filosofal. Comentou a polêmica sobre o novo livro de Luís António Verney em Portugal sem se posicionar, justificando-se por não ter mandado ainda o exemplar pedido pelo genitor.42 No contexto de demarcação de terras na América em função do tratado de Madrid, menciona a atuação de geômetras e cosmógrafos, aludindo a monsieur D’Anville, geógrafo de Luís XV.43 Nesse âmbito o secretário de d. João V, Alexandre de Gusmão, chegou a lhe pedir emprestado um quadrante do marquês de Alorna, logo devolvido. Em Portugal, sendo mais responsável pela gestão da casa, continuou a relatar ao pai a educação dos irmãos. Os estudos de retórica, filosofia, teologia e direito canônico de Luís no colégio jesuítico e as lições de francês, latim, escritura santa e mitologia de Fernando – com um abade mais caro que o instrutor anterior, mas excelente em ciência e método. Em contrapartida, nada é referido sobre o tema em relação às irmãs freiras, que frequentemente visitavam no convento. Desde seu retorno João de Almeida começou a criticar os costumes locais, mormente
40 Luís de Almeida Portugal nasceu em 1731 e ingressou em 1758 na ordem de Malta, onde foi comendador, bailio e vice-chanceler. Fernando de Almeida Portugal nasceu em 1737. Deve-se sublinhar a presença de membros desta casa nobre na seleta ordem internacional dos cavaleiros hospitalários de São João de Jerusalém, sediada na ilha de Malta, na qual só ingressavam fidalgos, diferentemente das ordens militares controladas pela coroa. Antes de Luís de Almeida, Lopo de Almeida Portugal, secundogênito do 1o conde de Assumar, foi cavaleiro da ordem, bailio e grão-mestre em Portugal. E como vimos, José de Almeida Portugal, caçula do 2o conde de Assumar, também foi cavaleiro na mesma ordem. NORTON, 1967, p. 351, 355 e 357; MONTEIRO, 2000, p. 35 e 86; e VERSOS, Maria Inês. O valor da linhagem e do real serviço: o acesso ao grau de cavaleiro da ordem religiosa e militar de S. João de Malta e o arquétipo de fidalgo em Portugal nos finais do Antigo Regime. In: FERNANDES, Isabel Cristina (coord.). As ordens militares e as ordens da cavalaria na construção do mundo ocidental: actas do IV encontro sobre ordens militares. Lisboa: Colibri, 2005, p. 827-870. 41 Apud MONTEIRO, 2000, p. 131. 42 Ibidem, p. 150. 43 Júnia Furtado observa que a geografia e a cartografia faziam parte do currículo de estudos dos Almeidas Portugal sob tutela de Luís da Cunha, em especial do jovem 4o conde de Assumar. FURTADO, 2012, p. 56 e 66.
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as práticas de sucessão na fidalguia, ao rejeitar a noiva planejada e escolher para esposa Leonor de Lorena e Távora, filha dos marqueses de Távora. No entanto, ele não gozava de boa reputação ante a marquesa titular da casa, que estranhava sua excessiva erudição, “porque tudo quero levar por filosofia e por cálculo”.44 Em seu teste de maturidade, o 4o conde de Assumar entrava em choque com o tio mais velho Diogo45 pela liderança na administração dos bens da casa. Nas cartas sobressaem preocupações com dívidas e credores, que faziam por exemplo vender bens livres, como a livraria do tio Francisco, para se administrarem as propriedades plenas – as quintas de Almada e sobretudo de Almeirim. As comendas das ordens militares também geravam encargos com obras nas igrejas, embora provessem os nobres de bons recursos para despesas com cavalariças, cozinha farta e criados – entre esses João Rebelo, a ser referido mais adiante. Por fim, as cartas deixam entrever comentários – evidentemente parciais – do filho em relação à reputação do pai em Lisboa. Durante a decrepitude de d. João V, houve murmúrios de que o marquês de Alorna seria o futuro primeiro-ministro ou general da armada no novo reinado, ou embaixador da França após a morte de Luís da Cunha em 1749. À maneira do marechal Maurício da Saxônia na Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748), para João de Almeida seu pai era um “herói do século”.46 Boatos sobre expectativas não concretizadas, ante a moderada nomeação de Pedro de Almeida como mordomo-mor da rainha Mariana de Áustria antes da morte de d. João V, a frustração do jovem 4o conde de Assumar por não ter sido nomeado capitão e sua preocupação com o soldo atrasado do pai:47 esses foram fatos ocorridos no contexto da queda em desgraça do marquês em seu retorno ao reino em janeiro de 1752.
44 Apud MONTEIRO, 2000, p. 149. 45 Diogo Fernandes de Almeida Portugal (1698-1752), antecedendo o irmão mais novo Francisco, estudou no Colégio São Paulo da Universidade de Coimbra, licenciando-se em cânones. Também foi deputado da Inquisição de Lisboa, principal da Patriarcal e acadêmico real, tendo ainda vários benefícios eclesiásticos. NORTON, 1967, p. 354; e MONTEIRO, 2000, p. 28 . Contudo seria menos afeito às letras e mais regalista que o irmão. Conforme Isabel Mota, sua prática de entrada na Academia Real em 1727 demonstrava uma cultura profana e clássica. MOTA, op. cit., p. 331. 46 MONTEIRO, 2000, p. 122. 47 Ibidem, p. 125-155.
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Incenso fatal Entretanto, anos antes, os feitos lusos na Índia de Pedro Miguel de Almeida Portugal foram louvados por meio de muitas publicações, inspiradas no triunfo quinhentista de João de Castro após o cerco de Diu,48 bem como nas Décadas de Tito Lívio, João de Barros e Diogo do Couto, além dos relatos e retratos escritos pelas Vidas paralelas de Plutarco. Era uma espécie de compensação simbólica pela difícil conjuntura enfrentada no Estado da Índia ante o embate com potências locais como os maratas e o Bicholim, impondo desafios aos governantes da alta nobreza portuguesa. O contexto será minimamente explorado no Capítulo 4. Por ora, importa sublinhar que os feitos do 5o conde da Ericeira Luís Carlos Xavier de Meneses, vice-rei na Índia de 1717 a 1721 e 1o marquês de Louriçal em seu curto segundo vice-reinado (1740-1742), receberam vários encômios, abortados com sua morte repentina. A produção de impressos de perfil laudatório e comemorativo atingiu o auge no vice-reinado do 1o marquês de Castelo Novo/Alorna (1744-1750), e esses foram seguidos em menor número pelos editados no governo do vice-rei Francisco de Assis de Távora (1750-1754). Uma “celebração sem precedentes”, expressa em numerosos papéis e percebida por alguns estudiosos.49 Na “colleçaõ singular, e de summa estimação” dos “sucessos” da história de Portugal compilados por Diogo Barbosa Machado50 – grosso modo chamada coleção de folhetos e hoje depositada na BNB – há 16 exemplares de impressos produzidos durante o governo na Índia de Pedro de Almeida Portugal, classificados pelo aba-
48 A memória do 4o vice-rei da Índia d. João de Castro (1545-1548), representado em seu triunfo em Goa após o sucesso do cerco de Diu à maneira de um general romano, era forte no século XVIII, por exemplo na coleção de retratos impressos em gravuras compilados por Diogo Barbosa Machado. Tudo começou com a encomenda feita pelo vice-rei quinhentista a Gaspar Correia e um reputado pintor indiano, para comporem uma galeria com retratos dos 13 primeiros governadores lusos da Índia, até João de Castro. Junto às figuras há longas inscrições com nomes, tempos e feitos dos respectivos governos. A prática de retratar governadores e vice-reis da Índia perdurou nos séculos seguintes, incluindo o vice-reinado de Pedro de Almeida. Embora com execução mais rude, as fontes iconográficas desses quadros seriam os retratos militares de Ticiano Vecellio e a galeria de Paolo Giovio, ligado a Francisco de Holanda e João de Castro por amizade. JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Uomini illustri: a série de retratos dos vice-reis portugueses em Goa. In: PAULINO, Francisco Faria (org.). Tapeçarias de d. João de Castro: catálogo da exposição. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga; CNCDP, 1995, p. 73-78; e MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O louvor da (in)distinção: Portugal e o ultramar nas coleções de Barbosa Machado (século XVIII). In: XAVIER, Ângela Barreto; SILVA, Cristina Nogueira da (orgs.). O governo dos outros: poder e diferença no império português. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2016, p. 499-500. 49 MONTEIRO, 2000, p. 539-540. Diogo Ramada Curto apresenta uma visão de conjunto desses discursos impressos de glorificação, outrora compilados por Boxer, Opera minora, v. 1, cuja reedição de 2002 foi organizada pelo historiador. Cf. CURTO, Diogo Ramada. Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII). Campinas: Ed. Unicamp, 2009, p. 369-372, 387. 50 Expressão utilizada pelo colecionador em seu catálogo. BNB, M, 15, 1, 002, Cathalogo dos livros da livraria de Diogo Barbosa Machado distribuidos por elle em materias e escrito por sua própria maõ, p. 33.
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de de Sever em tomos sobre notícias de proezas militares de portugueses na Índia oriental, e elogios oratórios e poéticos de duques, marqueses e condes de Portugal. A presença marcante dessas obras indica sua grande circulação no reino como um todo e no âmbito da Academia Real da História à época. Embora os eventos alusivos ao mundo ultramarino representem apenas 10% desta coleção com perfil nitidamente europeu, os relatos de batalhas no Oriente parecem ter gozado de especial aceitação no século XVIII português.51 Segundo Ambrosio Machado (pseudônimo de José Barbosa), autor do impresso sobre a posse e a entrada em Goa do novo marquês de Castelo Novo, o fidalgo Almeida Portugal seria muito digno pelos grandes serviços feitos à coroa, não apenas na Guerra de Sucessão da Espanha – onde mostrou o valor de seus avós – mas também no governo das Minas, “aonde temeram atrevidos a sua resolução” e ainda recentemente como mestre de campo general no Alentejo.52 O redator da Gazeta de Lisboa, José Freire Monterroio Mascarenhas, de quem se tratará mais no Capítulo 4, ex-combatente na mesma guerra na Espanha e próximo aos Almeidas Portugal, participou deste movimento com uma série de impressos sobre Pedro Miguel de Almeida – a Epanaphora indica, acompanhando de Lisboa a sua nomeação como marquês de Alorna pela conquista daquela praça e de outras. No primeiro papel da série, Monterroio narrou a chegada do marquês de Castelo Novo a Goa junto ao novo arcebispo, Lourenço de Santa Maria e Melo, mais tarde
51 A coleção de folhetos de Diogo Barbosa Machado, com aproximadamente 3.185 impressos sem brochura produzidos entre 1505 e 1770, agrupados e encadernados pelo colecionador em 146 tomos sobre memórias das elites da monarquia portuguesa, representa uma grande reunião de impressos desse tipo, inexistente em arquivos de Portugal e Espanha. Nela o peso dos relatos de batalha atinge 16% do total da coleção, sendo o evento coletivo mais expressivo entre os assuntos – o que denota a boa recepção dessa produção “literária” naquela sociedade de Antigo Regime. A quantificação do peso das casas nobres na produção de impressos é mais difícil de fazer, pelas frequentes mudanças de titulação. Os Assumares/Alornas, João de Almeida e Pedro de Almeida, são assunto ou autores em 22 impressos, além dos relatos da Guerra de Sucessão da Espanha que mencionam as atuações de Pedro de Almeida sem tê-lo como protagonista. MONTEIRO, Rodrigo Bentes; CARDIM, Pedro. Seleta de uma sociedade: hierarquias sociais nos documentos compilados por Diogo Barbosa Machado. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes et al. (orgs.). Raízes do privilégio: hierarquias sociais no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 69-104. 52 BNB, OR, CBM, 23, 4, 10, no 1, MACHADO, Ambrosio [ José Barbosa]. Relaçaõ da posse, e da entrada publica, que fez na cidade de Goa o illustr. e excell. senhor d. Pedro Miguel de Almeida, marquez de Castel-Novo, vice-rey, e capitaõ general do Estado da India... Lisboa: Officina Sylviana, 1746. 18 p., p. 2.
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seu algoz.53 O terceiro desses papéis, com 68 páginas, contém ao final uma carta do marquês ao autor, na qual Pedro de Almeida lhe professa amizade, explicita a correspondência mantida, informa como fez a relação da campanha passada e pede, sobre a última, que “escolhesse aquilo que lhe parecesse imprimir”. Sinaliza ainda que recebia as gazetas pela secretaria de Estado, não havendo necessidade de o redator remetê-las, somente “as suas boas novas”.54 Evidencia-se assim, publicamente, que o nobre vice-rei se valia da amizade com o talentoso escritor e editor e participava do controle e da difusão daquelas narrativas – especialmente neste número dedicado ao infante d. Pedro, futuro Pedro III (1777-1786), consorte de d. Maria I. A Epanaphora indica e outras publicações apresentam por vezes mapas que detalham de forma didática as conquistas do marquês na região, aproximando aquele mundo estranho dos leitores, doravante compreendido sob a lógica das novas realizações portuguesas. Cada vez maiores, esses opúsculos eram pródigos em descrever por longos títulos os postos e distinções de Pedro Miguel de Almeida Portugal, bem como suas recentes vitórias.55 Alguns relatos foram originalmente escritos por partícipes das campanhas, como o capitão engenheiro e de bombardeiros Manuel Antonio de Meirelles, que narrou em verso e prosa as conquistas do vice-rei desde 1746. No ano seguinte Meirelles iniciou outra série de papéis, a Relaçaõ dos felices successos da India. Os nomes
53 BNB, OR, CBM, 23, 4, 10, no 2, MASCARENHAS, José Freire de Monterroio. Epanaphora indica na qual se dà noticia da viagem que o illustrissimo, e excellentissimo senhor marquez de Castelo Novo fez com o cargo de vice-rey ao Estado da India, e dos primeiros progressos do seu governo; e se referem tambem os successos da viagem do excellentissimo, e rev.mo senhor d. fr. Lourenço de Santa Maria, arcebispo metropolitano de Goa, primaz da Azia oriental, sua chegada, entrada, e suas funçoens archiepiscopaes[...]. Lisboa: [Pedro Ferreira], 1746. 59 p. D. frei Lourenço de Santa Maria e Melo, franciscano do seminário de Varatojo, pertencia à jacobeia – movimento surgido em Coimbra em 1707 que visava em suma reformar o comportamento dos religiosos, com ligeiros traços de jansenismo mas sem questionar a autoridade papal – e portanto ao círculo de frei Gaspar da Encarnação, importante ministro de d. João V. SOUZA, Evergton Sales. Jansénisme et reforme de l ‘Eglise dans l’empire Portugais 1640 à 1790. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2004, p. 187-234; e PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do império 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, p. 169-170 e 528-529. 54 BNB, OR, CBM, 23, 4, 10, no 4, MASCARENHAS, José Freire de Monterroio. Epanaphora indica parte III. Continua-se em referir os inclitos progressos da illustrissimo, e excellentissimo senhor marquez de Castelo Novo vice-rey, e capitam general do Estado da India portugueza. Expoem-se a expugnaçam da fortaleza de Terecol, a tomada da armada dos Bounsulós, e o rendimento da cidade de Rary. Com huma carta topographica da ilha de Goa, terras adjacentes, e as novamente conquistadas. Escrita e dedicada ao serenissimo senhor infante d. Pedro[...]. Lisboa: s.n., 1748. 68 p., p. 88-89. 55 BNB, OR, CBM, 23, 4, 10, no 3, MASCARENHAS, José Freire de Monterroio. Epanaphora indica parte II. Em que se referem os progressos, que tem feito no governo do Estado da India portuguesa, o illustrissimo, e excellentisimo senhor marquez de Castelo Novo, vice-rey do Estado, e nelle capitam general das armas portuguesas, destruindo a Rama Chandra Santu, e Zeiramo Santu, Bonsulôs, Sardessays de Cudalle, principes poderosos no continente da India, vefinhos a Goa. Lisboa: s.n., 1747. 74 p.; 23, 4, 10, no 5, MASCARENHAS, José Freire de Monterroio. Epanaphora indica parte IV. Na qual se lerám os progressos politicos, militares, e civis, que no discurso do anno de 1747, fez no seu governo o ilustrissimo, e excelentissimo senhor marquez de Alorna, do conselho de sua magestade, seu conselheiro de guerra, conde, e senhor da villa de Assumar, alcaide mór das villas de Santarem, Almeirim, e Golegan, comendador das comendas de Santa Maria de Loures, S. Salvador de Souto, S. Payo de Farinha podre, S. Juliam de Cambres, S. Cosme, e S. Da’miaõ, e Santa Maria de Graça de Monforte, todas na Ordem de Christo. Vice-rey, capitam general do Estado da India, Ec. Ec. Lisboa: s.n., 1748. 109 p. As partes V (1750) e VI (1752) da Epanaphora não foram incluídas na coleção por Barbosa Machado, embora também constem do acervo da BNB.
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de autores e outros combatentes, inscritos nesses impressos, podiam ajudar depois na obtenção de mercês por eles reivindicadas ante a coroa. Ainda mais no tempo deste vice-reinado, quando a estada dos soldados na Índia foi regulada por Pedro de Almeida para durar no máximo seis anos, evitando-se as numerosas deserções, pelas dificuldades enfrentadas pelas tropas portuguesas em relação aos apelos de uma vida mais livre entre os nativos.56 Eram assim redobradas as expectativas de se obter benefícios ulteriores no reino europeu em função dos atos de bravura no Oriente. Um desses impressos foi dedicado a Diogo Fernandes de Almeida Portugal, irmão do marquês.57 Os autores José Luís Coutinho e Vitorino José Siqueira eram desembargadores no tribunal da Relação de Goa. Pedro de Almeida teria problemas com magistrados desta Relação no fim do governo. Mas por meio dos impressos se fortaleciam as redes clientelares, calcadas na sociedade local e com interesses no reino europeu – dois desses opúsculos foram dedicados a Maria de Lencastre, 3a condessa de Assumar.58 Destaque-se ainda a atuação direta ou indireta, mas muito
56 LOBATO, Manuel. A guerra dos maratas. In: BARATA, Manuel Themudo; TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir.); HESPANHA, António Manuel (org.). Nova história militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004, v. 2, p. 328. 57 BNB, OR, CBM, 24, 1, 2, no 16, MEIRELLES, Manuel Antonio de. Poema heroico [...] que contra o inimigo Bounsuló alcançou o illustrissimo, e excellent. senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal, marquez de Castello Novo, vice-rey, e capitaõ general da India, na tomada de Alorna, Bicholim, e Sanquelim, no anno de 1746. Que ao mesmo illust. e excellent. senhor oferece [...] capitaõ engenheiro, e de bombardeiros, que se achou presente a toda a campanha. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1747. 39 p.; 24, 1, 2, no 17, MEIRELLES, Manuel Antonio de. Poema heroico, ou metricas proezas de marte, executadas pelo illustrissimo, e excellentissimo senhor marquez de Castello-Novo, [...] conquista das terras de Bounsuló atè a praça de Rary... Lisboa: Miguel Rodrigues, 1747. 49 p.; 23, 4, 10, no 7, MEIRELLES, Manuel Antonio de. Relaçaõ da conquista das praças de Alorna, Bicholim, Avaro, Morly, Satarem, Tiracol, e Rary pelo illustr. e excellent. senhor d. Pedro Miguel de Almeida, e Portugal, marqvez de Castello-Novo, conde de Assumar, [...] offerecida ao excellent. e rever. senhor d. Diogo de Almeida Portugal, principal da S. Igreja de Lisboa [...] Parte primeira. Lisboa: Manoel Coelho Amado, 1747. 52 p. (contém também a 2a parte nas p. 34-52); 23, 4, 10, no 8, MEIRELLES, Manuel Antonio de. Relaçam dos felices successos da India desde 20 de dezembro de 1746 até 28 do dito de 1747. No governo do illust., e excellent. senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal [...] parte terceira. Lisboa: Francisco Luiz Ameno, 1748. 61 p.; 23, 4, 10, no 9, MEIRELLES, Manuel Antonio de. Relaçaõ dos felices successos da India desde o primeiro de janeiro até o ultimo de dezembro de 1748, no governo do illustrissimo, e excellentissimo senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal [...] parte quarta. Lisboa: Francisco Luiz Ameno, 1749. 48 p.; 23, 4, 10, no 10, Relaçaõ dos felices successos da India desde janeiro de 1749 ate’ o de 1750, no governo do illustris., e excellentis. senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal [...] parte quinta. Lisboa: Francisco Luiz Ameno, 1750. 30 p. 58 BNB, OR, CBM, 24, 1, 2, no 18, COUTINHO, José Luís. poema heroico historico em applauso dos felices successos, e victorias, que alcançou contra o inimigo Bounsuló em Alorna, & Bicholim, o illustrissimo, e excellent. senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal [...] offerecido a illust. e excel. senhora d. Maria de Lencastre, primeira marquesa de Castello-Novo, e terceira condessa de Assumar. Lisboa: Nova Officina de Manoel Coelho Amado, 1747. 24 p.; 24, 1, 2, no 19, COUTINHO, José Luís. Proseguemse os applausos do illustrissimo, e excellent. senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal [...] nas gloriosas emprezas, e victorias, que pessoalmente conseguio nos mezes de novembro, e dezembro de 1746 contra o inimigo Bounsoló no Arandem, e em Rary. [...] offerecidos a’ illustr. e excel. senhora d. Maria de Lencastre, primeira marqueza de Castello-Novo, e terceira condessa de Assumar... Lisboa: Nova Officina de Manoel Coelho Amado, 1747. 32 p.; 24, 1, 2, no 21, COUTINHO, José Luís. Continuaõ-se os applausos do illustrissimo, e excellentissimo senhor d. Pedro Miguel de Almeida, e Portugal [...] com a narraçam da tomada de Neutim. Praça importante maritima do Bounsuló inimigo, e mais felices progressos desta terceira campanha, em que sua excellencia foy assistir pessoalmente com huma poderosa armada naval, no anno de 1748[...]. Lisboa: Herdeiros de Antonio Pedrozo Galram, 1750. 22 p.; 24, 1, 2, no 20, SIQUEIRA,Vitorino José. Brevis oratio, quam coram illustrissimo, excellentissimo que domino d. Petro Michaele de Almeyda Portugal, indiae pro-rege strenuissimo, dignissimo Ec. Ec. Ec. habuit in supremo Goae senatu... Lisboa: Typographia Alvariensi, 1748. 8 p. Não se sabe se seria de Meirelles ou Coutinho a autoria do seguinte impresso: 24, 1, 2, no 15, Applausos metricos ao illustrissimo, e excellent. senhor d. Pedro Miguel de Almeida e Portugal [...] pelos felices successos, e gloriosas victorias, que tem conseguido naquelle estado contra o inimigo Bounsuló nas conquistas de Alorna, Bicholim, Avaro, Morly, Satarem, Tiracol, Rary, e toda a armada, e armazens dos Sardessaes de Cudalle. Lisboa: Nova Officina de Manoel Coelho Amado, 1747. 11 p.
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nomeada nas folhas de rosto, do tipógrafo Francisco Luiz Ameno, na altura com oficina na rua das Gáveas em Lisboa, chancelando a oficina de Manoel Coelho Amado em várias publicações citadas – o que sugere a existência de uma rede de influências, interesses e patronatos envolvendo autores em Goa e Lisboa, tipógrafos, livreiros e “papelistas” do terreiro do Paço em função dos impressos em tela, sob a égide do marquês.59 Vários impressos in-quarto e volantes sublinhavam a genealogia desse ramo dos Almeidas em Francisco de Almeida, 1o vice-rei da Índia (1505-1509). Contudo, a ligação ocorria por via indireta e ilegítima, por um filho bastardo de Diogo Fernandes de Almeida, prior do Crato60 e irmão do afamado vice-rei quinhentista – que pereceu sem filho vivo. O afã genealógico e o elogio dos talentos bélicos e letrados de Pedro Miguel de Almeida já eram evidentes na obra de António Caetano de Sousa, correspondente do vice-rei em tela também durante seu governo na Índia.61 Em 1752, certamente influenciado pelo incenso indiano dos impressos em Lisboa, Barbosa Machado na Bibliotheca lusitana descreveu a trajetória e a produção letrada do 1o marquês de Alorna.62 O peso da genealogia associada à história norteou ainda a inclusão de um verbete sobre Pedro de Almeida (1630-1679), vedor da Casa Real e igualmente vice-rei da Índia (1677-1679). Nomeado ao fim da vida 1o conde de Assumar, ele foi descrito pelo abade de Sever com seus modestos trabalhos no tomo suplementar da mesma obra, publicado somente em 1759, três anos após a morte do neto Pedro Miguel63 – um tempo de turbulências na vida de seu sucessor João de Almeida, como veremos adiante. Embora seja centrado no vice-reinado do 1o marquês de Alorna, o trabalho de Filipe do Carmo Francisco perspectiva uma ação orquestrada entre os compo-
59 CURTO, Diogo Ramada et al. As gentes do livro: Lisboa, século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2007, p. 98-99. 60 O prior do Crato era o superior da ordem militar dos hospitalários em Portugal, desde o século XVI sediada na ilha de Malta. Anos depois do priorado de Diogo Fernandes de Almeida, o posto passou a ser atribuído frequentemente a infantes da família real, até sua incorporação à Casa do Infantado em 1789. Note-se a ligação dessa linhagem dos Almeidas com a ordem de estrito acesso fidalgo e não controlada pela coroa. VERSOS, op. cit. 61 SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da casa real portugueza: desde a sua origem ate o presente, com as familias illustres, que procedem dos reys, e dos serenissimos duques de Bragança. Lisboa: Officina Sylviana, 1743, t. X, p. 815-818. Numa das cartas Pedro de Almeida sugere ao teatino a elaboração de um índice geral para a obra e indica um embaixador espanhol para lhe fornecer informações sobre famílias espanholas. Apud RÊGO, João de Figuerôa. Reflexos de um poder discreto. Lisboa: Cham, 2008, p. 152. 62 No verbete há referência ao governo mineiro anterior: “onde com severidade regulada com prudência sustentou na obediência do seu soberano os povos de tão dilatado domínio”. MACHADO, 1752, t. III, p. 552-553 (citação à p. 552). 63 Idem, 1759, t. IV, p. 261.
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nentes da linhagem dos Almeidas Portugal na primeira metade do Setecentos, no sentido da propaganda de suas imagens públicas e do fortalecimento de sua casa nobre na sociedade de corte portuguesa.64 Por essa visão, os impressos na Guerra de Sucessão da Espanha e as atividades acadêmicas caracterizam uma preponderância social e cultural da casa de Assumar/Alorna, incluindo os irmãos mais novos. Diogo Fernandes e Francisco de Almeida foram principais da Igreja Patriarcal de Lisboa e atuantes na Inquisição – espaços alternativos e/ou complementares de poder à Academia Real da História. Os Assumares – como eram chamados – possuíam no reinado joanino um protagonismo social e cultural superior ao outrora reservado a secundogênitos nobres. Pelo cotejo de obras impressas e por estudos quantitativos calcados entre 1721 e 1736 – quando se publicaram os documentos da Academia – Carmo Francisco constata a eleição pioneira do 2o conde de Assumar logo após a nomeação dos 50 sócios fundadores; o percurso atípico de Pedro de Almeida, tendo dirigido muitas sessões desde 1733; e a alta incidência de membros desta família entre os censores acadêmicos. Analisa assim os elementos de confronto ou cumplicidade nesse meio, como a polêmica acerca da prevalência dos colégios de São Paulo ou São Pedro na Universidade de Coimbra, o discurso de Diogo de Almeida na Academia Real provocando a retirada do marquês de Valença e seu filho da instituição, ou a rivalidade entre Diogo Barbosa Machado e Francisco de Almeida Mascarenhas.65 Para Carmo Francisco, no tempo do vice-reinado de Pedro Miguel de Almeida na Índia as elites portuguesas, mediante várias publicações, estavam mais próximas dos conflitos ultramarinos do que durante o governo de outrora na capitania de São Paulo e Minas do Ouro. Com os novos impressos se forjava e difundia uma imagem do governante relacionada à cultura e à guerra. Essa representação do poder possuía um forte componente visual. Em vários arquivos encontram-se hoje manuscritos ilustrados que evidenciam os processos editoriais, com o incentivo
64 Para essas informações, cf. FRANCISCO, Filipe do Carmo. O primeiro marquês de Alorna: restaurador do estado português da Índia (1744-1750). Lisboa: Tribuna, 2010. Algumas leituras principais respaldam essa dissertação de mestrado em Letras: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Ana Maria Alves. Lisboa: Estampa, 1987 [1969]; BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 1994 [1992]; e MONTEIRO, 2003 [1998]. 65 MOTA, op. cit., p. 116-117; e FRANCISCO, op. cit., p. 57-62.
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à feitura de novos mapas, encartados nos impressos em fólios dobráveis e maiores, para expressar o aumento de influência do Estado da Índia na região.66 O pesquisador identifica 24 impressos produzidos entre 1746 e 1752 a fim de celebrar os feitos do marquês de Castelo Novo/Alorna na Índia. Essas fontes provêm de uma rede humana formada para elaborá-las, incluindo autores residentes em Goa. Dois desses trabalhos foram editados em italiano e um em francês – o que denota interesses para além da circulação dos impressos em Portugal, Goa e cercanias. O processo célere de criação escrita e impressão de quase 2.500 páginas foi um importante fenômeno cultural voltado para a figura do vice-rei. Adaptava-se assim uma tradição literária a um novo contexto, conforme expresso pelo próprio nobre na licença por ele concedida à publicação de um trabalho anterior: “e pode servir de continuação às Decadas que temos deste mesmo assumpto”.67 Analogias eram então tecidas nos escritos entre as conquistas de Castelo Novo/Alorna, o legado clássico e generais coevos, pois os textos visavam fazer ingressar o vice-rei numa espécie de panteão histórico e cultural. Também na Gazeta de Lisboa verifica-se uma evolução das notícias referentes ao fidalgo em tela. A singularidade do processo se expressa na concessão régia do título de marquês de Alorna em 1748, um dos únicos fornecidos pelos reis de Portugal ao próprio nobre conquistador de uma terra ultramarina assim nomeada. Para Carmo Francisco, o marquês de Castelo Novo/Alorna dominava a linguagem de sua sociedade de corte, visando atingir ao monarca e ao público leitor – possivelmente inebriado com as publicações de cunho aventureiro, exótico e político. Os impressos projetavam expectativas de elites goesas por meio de um diálogo, com pedidos de notas explicativas sendo atendidos e publicados a cada edição, mediante o talento invulgar de Monterroio.68 Mas o incenso vindo da Índia pode também ter sido fatal a seu principal patrono e protagonista. Em 1752 a recepção do marquês em Lisboa não foi a esperada, com a recusa de d. José I em recebê-lo e um processo judicial pesando sobre
66 FRANCISCO, op. cit., p. 78-90. 67 No vice-reinado do marquês de Távora foram produzidos 18 textos, sem a unidade de autoria e forma dos anteriores. Ibidem, p. 141-143. Citação do 3o conde de Assumar na licença em: COSTA, Diogo da. Relaçam das guerras da India desde o anno de 1736 até o de 1740. Lisboa: Antonio Isidoro da Fonseca, 1741; e Porto: Antonio Pedroso Coimbra, 1741 apud Ibidem, p. 143. 68 Ibidem, p. 152-155, 175-176 e 191-193.
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si. Ausente na morte de d. João V e na mudança de entourage na corte, Pedro de Almeida não evitou o impacto negativo das denúncias de mercadores goeses sobre suas irregularidades. Elas foram mencionadas como advertência, contrapostas aos feitos de conquista, na carta escrita por Alexandre de Gusmão a Pedro de Almeida em março de 1747, e endossadas no duro relatório enviado pelo arcebispo de Goa à coroa em 1749.69 Contudo, o alarde excessivo dos fastos heroicos nos impressos – à maneira das hipérboles presentes no Discurso e na Noticia – pode também ter cheirado mal, com consequências sobre o lugar do nobre sexagenário naquela monarquia governada por um novo rei e um secretário ambicioso. Mais que a ilicitude nos negócios, o elogio desmedido das capacidades do marquês de Alorna nos impressos de ampla circulação teria provocado incômodo no secretariado estatal – o peso indecoroso da representação de um poder frequentemente não é explicitado em relatórios e juízos formais. Numa apropriação da reflexão de Pierre Bourdieu, naquele momento o poder simbólico de Alorna não foi mais reconhecido, sendo considerado arbitrário pelas novas forças emergentes.70 Os efeitos do terremoto foram o pretexto para lhe chamar de novo ao serviço régio em 1756, a fim de comandar o aprovisionamento de víveres na região onde era alcaide-mor – a partir de Santarém, perto de sua morada em Almeirim e longe de Lisboa, conforme o interesse de Sebastião José de Carvalho e Melo.71 Foi então convidado a dirigir a sessão na Academia Real e realizar o sermão no aniversário da rainha Mariana Vitória de Bourbon. Proferido ante o casal régio, seu último discurso foi mordaz ao referir-se à perseguição sofrida e à ocasião por ele considerada “hum meio honroso de envorgonharme”. O marquês dizia encontrar-se num “profundo Silencio, fructo infausto do escarmento a que os trabalhos de Marte me
69 Ibidem, p. 96 e 135; NORTON, 1967, p. 254; PEREIRA, 2016, p. 163-165; e ROCHA, Andrée (org.). Alexandre de Gusmão. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 47. Como vimos, o arcebispo frei Lourenço de Santa Maria e Melo correspondia a um novo perfil episcopal mais centrado na Igreja e na religião, por suas ligações com a jacobeia e o também franciscano frei Gaspar da Encarnação. PAIVA, op. cit., p. 502, 509, 516 e 525. 70 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 [1989], p. 14. Para Boxer os condes de Assumar e Ericeira não eram bem quistos por d. João V, como se percebe por sua correspondência com o cardeal da Mota, seu maior interlocutor desde a década de 1730 até morrer em 1747. BOXER, 1969 [1962], p. 370-371; e SILVA, 2006, p. 71-74. Conforme Pereira, os ostracismos vividos por este nobre após voltar da América e do Oriente eram fruto da variação de seu capital simbólico e político, de suas relações na corte e da oposição enfrentada, na luta da fidalguia portuguesa por prestígio. PEREIRA, 2016, p. 187. 71 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 89-90 e 134.
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reduzirão”, fazendo do elogio à rainha uma crítica à nova política do monarca e seu valido.72 Morreu meses depois. O inventário da biblioteca de d. Pedro de Almeida, publicado por Manuel Artur Norton, infelizmente não discrimina os manuscritos dos impressos e é muito geral, com pouco detalhe sobre os títulos dos livros e seus autores. Nele foi possível contar 1.842 volumes – um número modesto comparado ao da livraria de seu irmão Francisco, falecido 11 anos antes. Como vimos, desde 1994 Laura de Mello e Souza teceu ilações sobre os títulos descritos nessa biblioteca e os autores e obras mencionados no Discurso, chegando a uma correspondência parcial. Entre 1720 e 1756 houve um hiato considerável de tempo e não há informação de que o governador de capitania tenha levado para São Paulo e Minas uma grande quantidade de livros. Por esta investigação, a elaboração do Discurso e da Noticia pertence a uma autoria colaborativa, na qual a formação letrada dos jesuítas próximos ao nobre governador foi fundamental, como veremos nos próximos capítulos.73 Entretanto, se os impressos efêmeros falharam naquele tempo em fixar a memória dos feitos de Pedro Miguel de Almeida, aproximadamente um século depois ela foi resgatada na Índia, mediante três publicações sucessivas de um registro outrora manuscrito74 – algo similar ao ocorrido com o Discurso, editado em jornal e livro 178 anos (em 1898) e 274 anos depois (em 1994) após a provável produção do códice em Vila do Carmo, adquirindo a cada impressão novos significados. A Instrucção do ex.mo vice-rei marquez de Alorna ao seu successor o ex.mo vice-rei marquez de Tavora foi originalmente escrita por ordem da coroa, destinada a um só leitor, visando informar ao novo vice-rei sobre a situação existente e as medidas tomadas. Era
72 BPE, códice CIX-8, Cumprimento que o marquez d’Alorna fez à raynha N. Snrã. em nome da Académia em 31 de março 1756, dia dos seus annos, sendo director do dia, e achando-se prezente El Rey, e toda a familia real, f. 109-112 apud FRANCISCO, op. cit., p. 68-71. 73 NORTON, 1967, p. 324-344; SOUZA, 1994, p. 42-55; e SOUZA, 2006, p. 231-252. A propósito, havia uma forte ligação do governador em tela com os jesuítas, na educação de seus filhos e também na Índia. FRANCISCO, op. cit., p. 174. 74 Carmo Francisco trabalha bem o sentido das impressões tardias da Instrucção do marquês de Alorna, que até então circulava em cópias manuscritas até ser editada na Índia em 1836, 1856 e 1903. Com os territórios outrora conquistados já perdidos há tempos, o texto foi apropriado como paradigma de um poder territorial, ao apresentar uma análise estratégica da situação enfrentada. Francisco analisa as leituras feitas pelos editores Frederico Leão Cabreira e Felippe Nery Xavier no século XIX, interessados em validar o Estado português na Índia. As muitas notas acrescentadas, com informações e dados estatísticos, visam contextualizar o texto matricial e pôr em causa algumas afirmações do marquês de Alorna. Portanto, fornecem novo sentido a enunciados proferidos num tempo muito anterior, a mando do rei e com um único destinatário. Uma memória metamorfoseada – à maneira do Discurso em suas publicações posteriores. FRANCISCO, op. cit., p. 178-190.
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também um contato familiar, pois o marquês passava o governo ao pai de sua nova nora, Leonor de Lorena e Távora. O exame intertextual da Instrucção de forma comparada ao Discurso – outro longo manuscrito atribuído a Pedro Miguel de Almeida, produzido quase 30 anos antes e publicado muito depois – será feito no Capítulo 4. Por ora, vale destacar duas alegorias complementares e recorrentes nos escritos relacionados a este nobre português, de Hércules e da hidra de Lerna, ou hidras em geral, presentes ao final deste escrito.75 Elas são encontradas no Discurso e em outros escritos do 3o conde de Assumar – como no Panegyrico de 1736 – como forma de emular o antagonismo entre o herói mitológico por excelência e a serpente monstruosa, cujo sangue serviu para envenenar as setas mortíferas doravante usadas pelo filho de Júpiter. Hércules – ou Heraclés – já figurava em destaque na gravura produzida em lisonja ao 2o conde de Assumar, após sua nomeação para o Conselho de Estado no fim da Guerra de Sucessão da Espanha e antes de 1725, quando o gravador Manuel Gonçalves Ribeiro teria morrido, segundo informação da BNP, cuja cópia digital se apresenta na figura seguinte.
75 XAVIER, Felippe Nery (org.). Instrucção do ex.mo vice-rei marquez de Alorna ao seu successor o ex.mo vice-rei marquez de Tavora (segunda edição): rectificada, e enriquecida, com novas peças do mesmo autor, e 38 0 notas historicas. Nova Goa: Imprensa Nacional do Estado da Índia, 1856 [1836], p. 123.
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Figura 11 - BNP, Iconografia (I), E. 1713 V, Manuel Gonçalves Ribeiro (1675-1725), Excellentissimo domino d. Joanni de Almeyda, comiti de Afsumar[...]. Fonte: Domínio público.
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Suas dimensões originais de 29,4 x 20,5 cm indicam que o gravado em água forte corresponde ao tamanho de uma folha A4. Na gravura, o cartucho com inscritos em latim sobre o 2o conde de Assumar João de Almeida Portugal (conselheiro régio, vedor da Casa Real e alcaide-mor das vilas de Santarém, Golegã e Almeirim) representa também o monte Cáucaso, sobre o qual encontra-se no centro Prometeu, “aquele que pensa antes”, ensinando as artes aos homens. Ele é desacorrentado a sua esquerda por Hércules em seu 12o trabalho e à direita por Mercúrio, protetor dos viajantes. Ambos pisam com os pés esquerdos em dois seres híbridos ladeando o cartucho. Acima de Prometeu há uma associação entre os seis besantes dourados das armas dos condes de Assumar e os pomos de ouro guardados pelas Hespérides – a caminho do jardim dos deuses, Hércules teria libertado Prometeu. Como timbre do escudo – que ostenta também uma cruz dobrada – a águia, dentro da coroa condal, aparece entre as alegorias de Apolo, protetor das artes à esquerda (tendo ao fundo Vênus) e Minerva, deusa da sabedoria à direita. Os deuses apontam para cima, onde resplandece triunfante o carro de Hélios.76 Na tentativa de leitura, ao voltar da guerra – alusão a Hércules – no leste ibérico, onde serviu como embaixador à maneira de Mercúrio, João de Almeida estava livre para inventar e elaborar, no reino e em prol do rei solar (Hélios), com as belas-artes (Apolo e Vênus) e letras (Minerva, que também alude à guerra) e os pomos de ouro de sua casa nobre – o jardim das Hespérides. Por esse viés, a gravura pode ter sido produzida por ocasião do ingresso do 2o conde de Assumar na Academia Real da História em 1721, tempo em que a metáfora de d. João V como rei Sol vicejava na corte – ao modo de Luís XIV, falecido em 1715.77
76 BNP, I, E. 1713 V, RIBEIRO, Manuel Gonçalves. Excellentissimo domino d. Joanni de Almeyda, comiti de Afsumar[...]. Para essas informações, principalmente: KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 [1990]; e FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da sala de Sintra. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1921, v. 1, p. 34 e v. 2, p. 285. Pouco se sabe sobre o desenhista e gravador – provavelmente seria português, num período em que os gravadores estrangeiros predominavam na corte joanina, teria um hábito de cavaleiro e desenhou um trabalho gravado por Carlo Grandi, gravador italiano que produziu vários trabalhos para jesuítas. MARQUES, Ana Luísa dos Santos. Arte, ciência e história no livro português do século XVIII. 2014. Tese (Doutorado em Belas Artes) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014, v. 1, p. 64-65. 77 Sobre a influência francesa em metáforas acerca da monarquia nesse tempo, cf. BEBIANO, Rui. D. João V, rei-Sol. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 8, p. 111-121, 1986; e BEBIANO, Rui. D. João V: poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987, p. 87-136. Sobre as gravuras francesas colecionadas por este rei, destruídas pelo terremoto mas recuperadas pelas notas manuscritas de Pierre-Jean Mariette, ver MANDROUX-FRANÇA, Marie-Thérèse; PRÉAUD, Maxime (orgs.). Catalogues de la collection d’estampes de Jean V, roi de Portugal. Lisbonne; Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Bibliothèque Nationale de France/Fundação da Casa de Bragança, 2003. 3 vols. A gravura a buril de Gilles Rousselet (39,5 cm x 29 cm), da Academia Real de Pintura, de Hércules matando a hidra de Lerna, foi feita a partir do quadro de Guido Reni que estava no gabinete de Luís XIV. A imagem figura na capa deste livro e um exemplar estava na coleção de estampas de d. João V. Cf. v. II, p. 182.
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Esse também foi o período da provável escrita do Discurso e da Noticia em Vila do Carmo, antes do regresso do filho Pedro Miguel de Almeida ao reino. Especialmente no Discurso se fazem presentes essas alegorias. Como veremos nos próximos capítulos, para além das linguagens políticas e personagens em destaque, há um mundo significativo de referências culturais e formas de comunicação situadas entre os meios escrito, visual e oral,78 envolvendo o gosto áulico e o fabrico de memórias gloriosas por esta casa nobre. Indubitavelmente, João de Almeida Portugal patrocinou e/ou aprovou a gravura, embora não tenha sido dela o seu autor. Com atenção ao âmbito da produção letrada e à gestão de manuscritos e impressos, será preciso acompanhar o provável percurso do códice sobre a sublevação de 1720 em meio aos descendentes desta linhagem, com algumas pistas de sua recepção. Nas cartas que escreveu ao pai, para o jovem 4o conde de Assumar Almeirim era um refúgio de “desafogo” ante a “melancolia” da corte austera.79 Uma quinta foi comprada em 1723 na região do Ribatejo por Pedro Miguel de Almeida Portugal, ao chegar do governo de São Paulo e Minas do Ouro com o dinheiro oriundo dos negócios que usufruiu por meio de procuradores,80 possibilitando construir ali a residência apalaçada, cujos planos foram revisados pelo engenheiro e arquiteto húngaro Carlos Mardel.81 Almeirim foi o grande investimento da casa nobre em bens patrimoniais, desde a instauração desta linhagem dos Almeidas em fins do século XVI e sua elevação à grandeza em 1677. Conforme se depreende do inscrito no cartucho da gravura analisada, no tempo do 2o conde de Assumar a família já detinha ali propriedades, sendo ele o primeiro administrador do morgadio de Vale de Nabais.82 Depois outras terras confinantes foram anexadas, quase todas com prazos foreiros devidos a várias instituições. Com sua plantação de amoreiras, criação de bichos-da-seda e manufatura deste tecido, as quintas de Almeirim
78 BOUZA, Fernando. Comunicação, conhecimento e memória na Espanha dos séculos XVI e XVII, tradução de Ângela Barreto Xavier. Cultura, Lisboa, n. 14, p. 105-171, 2002. 79 MONTEIRO, 2000, p. 92. 80 Segundo o 1o conde de Povolide, em 1723 o conde de Assumar moço “compra muita fazenda em Santarém”. SALDANHA; RADULET, op. cit., p. 351. Ver também NORTON, 1967, p. 216 e 242-244; PEREIRA, 2016, p. 150-160; e PEREIRA, Marcos Aurélio. Fortunas e infortúnios ultramarinos: alguns casos de enriquecimento e conflitos políticos de governadores na América portuguesa. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 28, n. 47, p. 279-285, 2012. 81 O sargento-mor engenheiro de infantaria chegou a Lisboa em 1733 e tornou-se arquiteto de d. João V. Mais tarde, participaria dos projetos de reconstrução de Lisboa após o terremoto. MONTEIRO, 2000, p. 20 e 140; e SILVA, 2006, p. 187-188. 82 NORTON, 1967, p. 352.
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forneciam à casa de Alorna 6,8% de seus proventos em 1765 – um rendimento ínfimo comparado aos decorrentes dos bens da coroa e de ordens militares, acumulados durante séculos.83 Contudo, era um lugar de prestígio. Nesse tempo a alta nobreza já costumava viver em Lisboa, mas houve quintas onde se perpetuaram casas cuidadas e com investimentos. Essas eram visitadas por cortesãos, conforme registros do último quartel do século XVIII.84 No entanto, a vida do 2o marquês de Alorna foi marcada por seu encarceramento entre 1759 e 1777, em virtude do laço matrimonial adquirido com a família e casa de Távora. Ele perdeu assim a chance de ser embaixador na França – havia sido antes indicado para o cargo – e não participou de nenhuma guerra, como desejava. Ao sair da prisão da Junqueira no início do reinado mariano, João de Almeida e Portugal foi o principal incentivador da revisão do processo dos Távoras ocorrido no reinado anterior, visando inocentar os sobreviventes e a memória dos supliciados em 1759. Os dois processos judiciais encontram-se hoje no Arquivo Nacional, no Brasil, no Rio de Janeiro (ANB), onde provavelmente chegaram com a corte portuguesa – a parte referente a sua revisão foi estudada por Patrícia Woolley Alves. A documentação inclui mais de 80 testemunhos e itens de interrogatórios produzidos por João de Almeida e autorizados pela rainha. Mas a nova sentença publicada em 1781 teve um valor mais simbólico que prático – nesta não se cogitou restituir os bens sequestrados, os embargos feitos pelo procurador da coroa ficaram pendentes e d. Maria I nunca a confirmou.85 Em função do imbróglio que acometeu também sua casa, vários escritos foram atribuídos à autoria e/ou ingerência do 2o marquês de Alorna. A começar por suas impressões do cárcere, publicadas pela primeira vez no século XIX.86 Grosso modo, há também um manuscrito anônimo a ele dedicado sobre a insuficiência da
83 MONTEIRO, 2003 [1998], p. 345-346. 84 Ibidem, p. 441. 85 Para essas informações, cf. ALVES, Patrícia Woolley Cardoso Lins. D. João de Almeida Portugal e a revisão do processo dos Távoras: conflitos, intrigas e linguagens políticas em Portugal nos finais do Antigo Regime (c.1777-1802). 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011, p. 18-86. Ver também BEIRÃO, Caetano. D. Maria I 1777-1792. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1944 [1933], p. 141-167. 86 Com relato dramático, as impressões do cárcere denunciam o despotismo dos magistrados e as condições das prisões no Antigo Regime, contendo detalhes sobre companheiros de prisão do marquês – entre eles os jesuítas e o filho do duque de Aveiro. Conforme Patrícia Alves, na BNP há várias versões manuscritas do texto, mas nos documentos sobre a revisão do processo dos Távoras não se menciona o relato. SILVA, Francisco Ribeiro da (org.). As prisões da Junqueira durante o ministério do marquês de Pombal escritas ali mesmo pelo marquês de Alorna, uma de suas vítimas. Lisboa: Frenesi, 2004 [1857] apud ALVES, op. cit., p. 230 e 268.
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tortura nos processos de justiça, pautado em verbetes da Encyclopédie e referências como Cícero e Aristóteles; e outro acerca de princípios da jurisprudência criminal aplicados à “catástrofe dos fidalgos” – ambos depositados no ANTT. Nesse último texto João de Almeida Portugal teria se queixado de o pai não ter sido recompensado pelas façanhas militares na Índia, e de seus próprios insucessos em obter as comendas e bens da coroa administrados por sua casa, quando ainda estava preso no forte da Junqueira.87 Uma “súplica” manuscrita dirigida à rainha também foi atribuída ao nobre em tela; e dois volumes do processo de revisão correspondem a um manifesto manuscrito que teria circulado clandestinamente em Lisboa em 1787. No longo texto com remissões clássicas e modernas, o procurador de João de Almeida Portugal respondeu aos embargos do processo, adotando no epílogo um procedimento comum aos magistrados setecentistas: escrever na primeira pessoa, como se a voz do réu expusesse diretamente sua indignação, clamando por piedade.88 Em seu acervo pessoal – hoje no ANTT – há rascunhos e extratos desse manifesto, bem como minutas e notas diversas que revelam aspectos da trajetória e da visão de mundo do 2o marquês de Alorna. Por exemplo, conferências e listas de livros e memórias sobre serviços de seu avô e pai na Espanha e na Índia. Há ainda uma espécie de manual militar escrito para o filho Pedro José de Almeida Portugal, no qual o marquês discorre sobre as qualidades de um bom general e estratégias a serem adotadas em situações de guerra – para ele, a arte militar era a principal ocupação de um nobre.89 Após sair do forte da Junqueira, o 2o marquês de Alorna optou por viver retirado em Almeirim, sobretudo ao perceber a hesitação da rainha em reabilitar os Távoras. Suas incursões acadêmicas são pequenas. Um manuscrito na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) informa que em 1777 o
87 Seguindo os estudos de Nuno Monteiro, para Patrícia Alves o último manuscrito revela os rancores da alta nobreza do reino, quando homens como Pedro de Almeida Portugal, Francisco de Távora e descendentes eram preteridos em favor de secretários de Estado como Sebastião José de Carvalho e Melo. As comendas eram os principais rendimentos das grandes casas nobres, e as renovações e confirmações de mercês, um pacto secular entre a nobreza e os reis da dinastia Bragança. Comendas, títulos e bens da coroa eram encartados em casas nobres por serviços prestados na guerra, no governo das conquistas e em ofícios de destaque na corte. No gabinete do conde de Oeiras e depois marquês de Pombal essa regularidade foi interrompida, e assim a casa de Alorna não teve suas mercês confirmadas. ALVES, op. cit., p. 87-147; MONTEIRO, 2003 [1998], p. 501-552; e MONTEIRO, 2003, p. 83-103. 88 ALVES, op. cit., p. 148-227. 89 Ibidem, p. 296.
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marquês de Alorna, recentemente liberto, recitou uma oração nos anos de Pedro III na Academia Real da História. Nesta menciona o abatimento da instituição e solicita a proteção régia, fazendo ainda uma dura crítica a Pombal. Uma cópia desse discurso encontra-se atualmente na BNB, adquirida no leilão em Lisboa da livraria do conde de Linhares, como vimos no Capítulo 1.90 Quando d. Maria I foi afastada do poder em 1792, João de Almeida Portugal ainda tentou reaver a memória e parte dos bens dos sogros junto ao príncipe d. João. Condicionada pela clausura ou por sua preferência pelo isolamento, a correspondência do fidalgo foi farta desde a juventude – como vimos pelas cartas escritas ao pai – e continuou nos 18 anos de prisão por missivas clandestinas trocadas desde os anos de 1760 com esposa e filhos, várias delas cifradas ou escritas nas entrelinhas com sumo de limão, hoje depositadas na BGUC. A notável escrita epistolar do 2o marquês de Alorna foi constante até sua morte em 1802 – no ANTT há muitas cartas suas escritas no período, a membros do núcleo familiar em suas diferentes trajetórias.91 Em carta escrita à primogênita Leonor após sua libertação, João de Almeida menciona que a coleção de regimentos do avô homônimo – mordomo-mor de d. João V de 1722 a 1733 – foi furtada enquanto ele estava preso no forte da Junqueira. Segundo o criado João Rebelo algumas pessoas andavam atrás dela, pelo que o marquês de Alorna suspeitava do 1o marquês de Pombal. Na mesma missiva o pai informa à filha que encomendou a obra em vários tomos intitulada Mappa de Portugal, provavelmente do oratoriano João Baptista de Castro.92 A suspeita do furto de livros confirma – ao contrário do ocorrido com os marqueses de Távora e o duque de Aveiro – o não confisco de bens do 2o marquês de Alorna pela coroa no reinado de José I. Ademais, a carta indica um controle familiar sobre os manuscritos da casa, bem como o interesse em adquirir novos títulos.
90 MOTA, op. cit., p. 118. O discurso foi catalogado equivocadamente, como tendo sido proferido por Pedro Miguel de Almeida na Academia Real das Ciências. BNB, M, I-29, 14, 6; MORENO, Carmen Tereza Coelho (org.). Colecção Linhares. Lisboa: CNCDP, 2000, p. 25, título 83. A Academia Real das Ciências foi fundada em 1779. Em 1783, junto a outros nobres o 2o marquês de Alorna apresentou uma petição para ressuscitar a Academia Real da História, ofuscada pela das Ciências, que possuía também atividade historiográfica. FRANCISCO, op. cit., p. 59. 91 ALVES, op. cit., p. 228-300. 92 ANTT, CFA, caixa 128, N-IX-3.
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Os filhos de Marte Na história da literatura portuguesa, as poesias de Leonor de Almeida Portugal – condessa de Oeynhausen por casamento desde 1779, 4a marquesa de Alorna depois de 1823 – possuem projeção maior ou equivalente em relação ao lugar ocupado pelo Discurso e o “conde de Assumar” na historiografia brasileira. Elogiada em meados do século XIX por Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco, suas obras saíram do prelo cinco anos após a morte da marquesa, por iniciativa de duas de suas filhas.93 Posteriormente foram mais editadas. Ao publicar seletas de poemas e cartas, Hernâni Cidade considera Leonor de Almeida uma escritora “pré-romântica”, por dar vasão a sentimentos particulares em meio a referências arcádicas do gosto neoclássico outrora em voga.94 Afilhada do avô Pedro de Almeida, a menina Leonor de Almeida Portugal começou a escrever poesia em sua clausura de 18 anos junto à mãe e à irmã no convento de São Félix, em Chelas, nos arredores de Lisboa – para onde foram levadas em 1759 por conta do processo dos Távoras. Como afirmou ao longo da vida, ela escrevia versos para aliviar o sofrimento, seu e dos familiares.95 Com a conivência de guardas na prisão da Junqueira e de criados, desde cerca de 1763 houve correspondência epistolar entre o 2o marquês de Alorna e parentes próximos. Pela troca de cartas percebe-se o interesse do pai na instrução de Leonor, então dedicada a aprender regras de versificação, retórica e os subgêneros poéticos praticados: soneto, cantiga de mote e glosa, écloga, idílio, canção, ode, elegia, epístola, hino, epicédio, cantata, cantiga, madrigal, epitáfio e paráfrases de salmos e cânticos religiosos – conforme o arranjo existente na edição póstuma de suas obras. Para
93 ALORNA, Leonor de Almeida Portugal, Marqueza de. Obras poeticas de d. Leonor d’Almeida Portugal Lorena e Lencastre... Lisboa: Imprensa Nacional, 1844. 6 vols. 94 CIDADE, Hernâni (org.). Marquesa de Alorna: inéditos, cartas e outros escritos. Lisboa: Sá da Costa, 1941; e CIDADE, Hernâni (org.). Marquesa de Alorna, poesias. Lisboa: Sá da Costa, 1960. Para essas informações, ANASTÁCIO, Vanda. Sonetos marquesa de Alorna. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007a, p. 45; e ANASTÁCIO, Vanda. Introdução. In: REIS, Carlos (org.). Marquesa de Alorna. Obras poéticas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015a, p. 11-29. 95 Na obra completa e póstuma, contando com a orientação prévia da mãe, as filhas editaram como epígrafe palavras de Tristia, de Ovídio: Carminibus quaero miserarum obliuia rerum (procuro nos meus poemas um esquecimento para os meus desgostos). Apud ANASTÁCIO, 2015, p. 17. O encerramento de três mulheres numa casa religiosa por autoridades políticas equivalia a uma prisão. Os conventos eram uma solução digna para mulheres de camadas superiores da sociedade, reclusas por infrações suas ou de seus tutores à ordem social, ou por não disporem de tutela masculina. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: EdUnB, 1999; e ANASTÁCIO, 2007a, p. 19.
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tal estudava tratados de Aristóteles em francês, de Horácio editado por Francisco José Freire, a Art poétique de Boileau96 impressa em 1674 e traduzida em manuscrito em 1697 pelo 4o conde da Ericeira, ou a Poétique de Marmontel publicada em 1763. Em 1771 o abade Batteux editou num só volume em francês várias poéticas antigas e modernas, o que deve ter facilitado a consulta.97 Na segunda metade do Setecentos a relação com a cultura da Antiguidade assumia nova forma. Em linhas gerais, as poéticas clássicas e preceptivas nelas inspiradas codificaram a épica e o drama, mas não detalharam as formas textuais líricas. Os poetas da Época Moderna passaram a suprir essa lacuna por imitação, gerando regras para a poesia. Assim surgia uma tradição de textos seletos de autores clássicos, imitados e adaptados para línguas vulgares, agregando-se depois obras mais recentes. Os poemas de Leonor denotam o domínio das preceptivas modernas. Mas por vezes ela preferia imitar poetas antigos, ou luso-modelares como Camões, ou setecentistas coevos portugueses, franceses, italianos, ingleses e alemães. Nessa fase sua poesia se caracterizava pelo verso solto, o uso alegórico da mitologia clássica, o gosto bucólico e os subgêneros poéticos herdados da Antiguidade. Não raro ela surgia do improviso de uma performance oral e/ou para difundir valores civilizacionais.98 Trata-se de uma reforma do gosto – baseada em academias literárias arcádicas fundadas em Roma e Lisboa – que visava combater os excessos de hipérboles e artifícios vindos da retórica seiscentista por um efeito mais simples, inspirado na natureza de pastores e ovelhas. Entre os sonetistas de meados do século XVIII que vivenciaram essa mudança de gosto na poesia encontra-se Cláudio Manuel da Costa. Conforme Sérgio Alcides, após sua volta de Coimbra ele não conseguiu ser um poeta arcádico na terra natal mineira, preferindo seguir o modelo de Ovídio
96 Em seu segundo canto Boileau explica os subgêneros: o idílio ou a écloga pastoral, a elegia dos apaixonados, a ode dirigida em princípio aos deuses, as rigorosas leis do soneto, o dito espirituoso no epigrama, a sátira de origem latina. BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. Tradução de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2018 [1674], p. 29-35. 97 ANASTÁCIO, 2007a, p. 20; e ANASTÁCIO, 2015, p. 12-14. Nas cartas escritas ao pai Leonor também comentava a educação do irmão: “Parecendo-me que o método que êle seguia lhe era um tanto prejudicial e também aos nossos negócios, tomei a resolução de lhe falar particularmente e de instruí-lo de tudo o que eu julgava próprio ao estado presente; argüi-lhe com vigor e ternura tudo o que parecia preguiça e descuido; fiz-lhe ver a ridicularia dos princípios falsos por que se governam todos na nossa terra; recordei-lhe as máximas de V. Ex.a e de meu Avô [...]”. Apud CIDADE, 1941, p. 51. 98 ANASTÁCIO, 2015, p. 14-17; e ANASTÁCIO, 2007a, p. 53-60.
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em seu desterro de Roma.99 Como veremos no Capítulo 3, a obra do poeta latino foi uma referência importante no Discurso para caracterizar a natureza das Minas como locus horridus.100 Tempos depois Ovídio seria também presente na produção de Leonor, pois as experiências do vale de Chelas e do posterior exílio em Londres justificaram a escolha antecipada da referida passagem de Tristia como epígrafe de suas obras póstumas. As cartas de Chelas revelam os estratagemas das irmãs Leonor e Maria Rita com o pai para terem lições regulares com mestres particulares, de vários idiomas (francês, italiano, inglês, latim e árabe), música e pintura, obterem material de escrita (papéis, tintas e penas) e livros recentes mediante contatos com livreiros, amigos ou pelo irmão Pedro – com licença no Colégio dos Nobres para ler e portar livros proibidos. Há também relatos sobre outeiros poéticos realizados nas grades do convento, nos quais Leonor tornou-se exímia na arte do improviso e da glosa feita a partir dos motes de outrem. Nesse âmbito adquiriu reputação em Lisboa, pois a nova forma de sociabilidade atraía poetas e curiosos.101 Entre os frequentadores mais assíduos estava Francisco Manuel do Nascimento (Filinto Elísio), que lhe atribuiu a persona de Alcipe. O episódio da filha violada de Ares, ou Marte – conforme a recepção indistinta da cultura greco-romana à época em Portugal – teria causado o julgamento do deus no Areópago, por ter morto o filho de Netuno.102 Nos versos de Alcipe os ornatos mitológicos eram associados aos temas da separação familiar e da angústia pelo encerramento, com evocações de um locus amoenus, em contraste com o vale de Chelas como lugar de horror. Os poemas circulavam por cópias partilhadas nos outeiros ou vendidas secretamente pelas freiras.103
99 ALCIDES, 2003. 100 Como veremos nos próximos capítulos, o manuscrito sobre a sublevação de 1720 afina-se em prosa e poesia com um tempo anterior ao debate sobre o gosto, sendo afeito a hipérboles, metáforas, uso de mitologias e “espanholismos” (termo pejorativo), de modo diverso das poesias de Cláudio Manuel da Costa e Leonor de Almeida Portugal – embora esta em 1771 numa carta despreze a poesia daquele, considerando-o “um pobre rapsodista”. ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777). Lisboa: Colibri, 2007d, p. 16; e SOUZA, Laura de Mello e. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 131. 101 ANASTÁCIO, 2015, p. 33; ANASTÁCIO, 2017a, p. 21-23 e 52; e LOUSADA, Maria Alexandre. Novas formas: vida privada, sociabilidades culturais e emergência do espaço público. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 448. 102 TEIXEIRA, Antonio Jose. Noticia da mythologia onde se contém em fórma de dialogo a hiftoria do paganismo, para a intelligencia dos antigos poetas, pinturas, e efculturas, &c. &c. Traduzida do francez por A. J. T. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1780, p. 116. 103 ANASTÁCIO, 2015, p. 18.
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A divulgação de poesias por manuscritos era comum à época, pelas assembleias e outeiros conventuais – onde mulheres podiam se destacar – ou nas academias e sociedades eruditas, de acesso privilegiado aos homens. No espólio da autora há muitas cópias de poemas corroborando a existência dessa circulação. O acesso à tipografia foi mais condicionado pela censura estatal após a criação da Real Mesa Censória em 1768. O mercado editorial dependia do apoio de mecenas com entrada na corte, e as obras poéticas que chegavam à imprensa costumavam louvar poderosos e/ou celebrar efemérides da monarquia portuguesa.104 O círculo informal em torno da família vilipendiada pelo arbítrio de Sebastião José era um modo elegante de demonstrar oposição ao despotismo do conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal. Portanto, Leonor de Almeida Portugal não teve apenas fama póstuma. Atraídas pela reputação da jovem poetisa enclausurada, a 4a condessa do Vimieiro Teresa de Mello Breyner e Joana Isabel de Lencastre Forjaz – que presidiam à época assembleias frequentadas por letrados vários – desejaram ter contato com Alcipe. Vencida a concorrência, Teresa tornou-se amiga de Leonor, mãe e irmã, sendo a visita mais frequente das senhoras no período – sua correspondência é a segunda mais volumosa conservada, atrás apenas da trocada entre Leonor e o pai João de Almeida Portugal.105 Pelo uso de pseudônimos, cuidado nos assuntos tratados, variação de portadores, falsos destinatários e caligrafias alternativas, as cartas das interlocutoras evidenciam a consciência das autoras de que essas podiam ser lidas por terceiros.106 As missivas de Lília e Tirse – como se chamavam as amigas – ficaram na posse dos herdeiros de Leonor, que em 1777 teria pedido a Teresa para lhe entregar as cartas de sua autoria. Segundo Anastácio, o exame material apresenta vestígios
104 Ibidem, p. 22-23; e LOUSADA, op. cit. 105 Com acesso à livraria dos condes de Vimieiro, a condessa foi relevante nos campos político e intelectual português na segunda metade do século XVIII, tendo sido dama da rainha (como suas mãe e avó) e promotora de assembleias. Não obstante o estatuto social comum, ela e Leonor de Almeida diferiam em biografias e modelos de leitura. Onze anos mais velha e com origem austríaca, Teresa pautava-se pelo exemplo da imperatriz Maria Teresa. Casada com o 4o conde de Vimieiro Sancho de Faro e Sousa, ela também provinha da linhagem dos senhores de Ficalho, que se esmeravam na formação letrada das mulheres da casa – como se percebe pela tutoria que recebeu de Francisco José Freire. Desde 1777 Mello Breyner integrou o grupo do duque de Lafões, apoiante de d. Maria I. Por isso em 1779 ajudou a fundar a Academia Real das Ciências de Lisboa – da qual farão parte o 4o conde do Vimieiro e o 2o marquês de Alorna. Em 1794 ingressou num convento, morrendo ao que parece quatro anos depois. VÁZQUEZ, Raquel Bello. Quem é Teresa de Mello Breyner. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777). Lisboa: Colibri, 2007, p. XLI-LV. 106 ANASTÁCIO, 2007d, p. XVI-XVII.
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das folhas terem sido cosidas com linha branca, formando um volume. Na correspondência existente da 4a marquesa de Alorna há grupos de cartas juntas assim, reunindo as de um período ou destinatário específico, com riscos e alterações feitos pela mão de Leonor. Provavelmente ela acalentou o projeto de publicá-las.107 Por essas cartas, enquanto Leonor se encantava com os enciclopedistas, Rousseau e Voltaire, Teresa afligia-se com as leituras da amiga e a divulgação abusiva de seus poemas. A natural insegurança no início da correspondência cedeu o passo a convicções mais fortes de Leonor nos anos seguintes. Também pelas cartas escritas ao pai, sabe-se que era interessada em história, filosofia, religião, ciência, medicina e política, bastante inserida nas polêmicas do século. Como ocorre na correspondência de autores, nas missivas há uma contaminação entre os relatos proferidos na primeira pessoa e os modelos literários – algo adensado pelo fato de Leonor estar presa. No entender de Teresa Sousa de Almeida, era uma retórica do sentimento, meio distinta dos padrões portugueses à época. Nas cartas particulares a aparente espontaneidade era também construída, pois as duas amigas exibiam reciprocamente os seus conhecimentos.108 A libertação da família Almeida foi cantada em verso por poetas. Maria Rita casou em 1778 com Luís António José Maria da Câmara, 6o conde da Ribeira Grande (alcaide-mor de Ponta Delgada), e Leonor em seguida com o conde germânico Carlos Augusto de Oeynhausen, primo do conde de Lippe – nobre alemão que tivera importante papel no exército português no reinado anterior. Tendo a rainha e Pedro III como padrinhos de casamento, a nova condessa conseguiu que o marido fosse nomeado em 1780 ministro plenipotenciário em Viena. Em meio aos filhos que nasciam, para o casal esse foi um período de intensas trocas culturais na corte austríaca, favorecidas pelos contatos prévios do 2o duque de Lafões, João
107 Ibidem, p. XXI-XXIII. Sublinhe-se a visão parcelar dessas publicações, ante a extensa documentação conservada de Leonor de Almeida Portugal em vários arquivos, somando cerca de 20 mil espécimes entre correspondência, memoriais, documentação notarial etc. Conforme Vanda Anastácio, estamos numa fase “arqueológica” de levantamento de informações e problemas. ANASTÁCIO, 2007a, p. 15. 108 ALMEIDA, Teresa Sousa de. Lília e Tirse. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777). Lisboa: Colibri, 2007, p. XXV-XXXIX.
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Carlos de Bragança.109 Também foi um tempo de dificuldades financeiras, pelas quais o núcleo familiar migrou para o sul da França. Parecem ter regressado a Portugal entre 1790 e 1792, tendo morrido Carlos Augusto em 1793.110 Viúva, segundo alguns biógrafos ela se retirou para as quintas de Almeirim e Almada. Mas os intercâmbios literários ocorridos no período – por exemplo com o poeta Manuel du Bocage – desacreditam essa versão.111 Após a morte da irmã Maria Rita em 1786, a correspondência entre Leonor e o irmão caçula Pedro José de Almeida Portugal se intensifica.112 Educado em liberdade e casado desde 1782 com a filha do 6o conde de São Vicente, o 5o conde de Assumar seguia a carreira militar com o contentamento do pai113 – como vimos, ele escrevera apontamentos sobre o tema para o filho. Mas enquanto João de Almeida terminava a vida retirado em Almeirim com os livros, no âmbito cortesão lisboeta os dois filhos sobreviventes interagiam com as transformações ocorridas no reino luso: as mortes de Pedro III e do príncipe herdeiro d. José, os desdobramentos da Revolução Francesa, o afastamento do governo de d. Maria. O pacto com a fidalguia portuguesa em função dos antepassados é evidente na carta de d. Maria I em 1791, pela qual o conde de Assumar Pedro José de Almeida recebia a mercê de uma comenda em remuneração pelos serviços prestados por seu avô – o 1º marquês de Alorna Pedro de Almeida – e bisavô, o 2º conde de Assumar João de Almeida. Faz-se assim um histórico detalhado das ações heroicas 109 Com origem no infante d. Miguel (bastardo de Pedro II), a casa de Lafões possuía um estatuto social ambivalente entre a grandeza nobre e a família real. Celibatário durante largo tempo, João Carlos de Bragança ficou cerca de 20 anos fora de Portugal, principalmente na corte da imperatriz Maria Teresa de Áustria, onde adquiriu relevante cabedal cultural e chegou a ser cogitado por João de Almeida Portugal como futuro marido de Leonor. Na volta ao reino fundou a Academia Real das Ciências em 1779, casou-se, deixou descendência e comandou o exército português, como veremos à frente. MONTEIRO, Nuno Gonçalo; COSTA, Fernando Dores. D. João Carlos de Bragança, 2o duque de Lafões: uma vida singular no século das Luzes. Lisboa: Inapa, 2006. 110 ANASTÁCIO, 2007a, p. 28-38. 111 Ibidem, p. 38-39; e ANASTÁCIO, Vanda. Nota biobibliográfica. In: REIS, Carlos (org.). Marquesa de Alorna. Obras poéticas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015b, p. 37. A propósito, ver o estudo sobre o complexo sistema de decoros de Bocage na variedade dos gêneros e registros por ele exercitados, entre a sátira e o arcadismo. PÉCORA, 2001, p. 203-245. 112 VARGAS, Fabricio Lamothe. A pena e a espada: política e subjetividade nos escritos de Pedro e Leonor de Almeida Portugal (17801833). 2022. Dissertação (Mestrado em História Moderna e dos Descobrimentos) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2022. 113 Tutelado pelo conde de Oeiras enquanto a família permanecia presa, o menino Pedro José teve a educação confiada a um padre-mestre e criados na casa da família situada à rua da Boa Morte, em Lisboa. Em 1766 ingressou no Colégio dos Nobres idealizado pelo secretário de Estado – seu nome era o primeiro da lista de alunos, entre os poucos filhos da alta nobreza. Lá conviveu com os colegas Rodrigo e José António de Sousa Coutinho, filhos de Francisco Inocêncio e protegidos de Sebastião José de Carvalho e Melo. No tempo livre visitava a família no convento, fazendo também com que livros chegassem a Leonor por intermédio da condessa do Vimieiro. Já rapaz, cuidava dos bens de sua casa com o auxílio de um administrador. Com a extinção do colégio, em 1772 Pedro entrou na nova Universidade de Coimbra. Mas após o primeiro ano não prosseguiu nos estudos, preferindo ingressar no exército como cadete de um regimento de cavalaria. NORTON, José. O último Távora. São Paulo: Planeta, 2008, p. 15-126. Sobre o Colégio dos Nobres, cf. MONTEIRO, 2006, p. 192.
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e dignas de ambos, sobretudo na Guerra de Sucessão da Espanha e no vice-reinado da Índia. Com relação ao governo mineiro do 3º conde de Assumar, escreve-se: No anno de mil SeteCentos, e dezaséte, normádo Governador de São Paulo, e Minnas, passou o Már, elançou naquelle Continente o fundamento de muitas couzas, conducentes ao melhoramento do Governo: Evitou com grande acordo, e desvanecêo a Conjuração dos Negros, q[ue]; não atalhada daria de si a perda das Minas: Estabelecêo a Cáza da Fundição, e Quintoz, em q[ue] têve q[ue] vencer grandes obstáculos da párte de pessoas absolutas, e levantadas; e se no Seu Governo sevio forçádo a uzár de severidade, obrou assim authorizádo pela necessidade extrema do Estádo, e sem Trópas soube naquélla critica conjuntura concervár o respeito da Coroa, e as Ordens Régias tiverão a sua perfeita execução.114
De forma ambígua, os dois irmãos eram respeitados como membros da alta fidalguia portuguesa.115 Mas tinham a pecha do passado turbulento e da marca da grandeza nobiliárquica, como descendentes de casas outrora perseguidas pelo 1o marquês de Pombal. Esses aspectos voltavam a estar em xeque na regência do príncipe d. João. No contexto político tumultuado, era difícil para a monarquia portuguesa manter a política pendular em relação à aliança inglesa ou francesa. Pedro de Almeida, então chefe de regimento em Évora, participou em 1793 da campanha no Rossilhão, quando o exército luso-espanhol foi vencido por tropas revolucionárias e a Espanha passou à influência francesa. Inadvertidamente, Portugal permaneceu em estado de guerra com a França.116 Já pai de dois filhos, o 5o conde de Assumar criou a Legião de Tropas Ligeiras – conhecida como Legião Alorna – para combater o contrabando no Alentejo e alhures. Os eventuais conflitos com o já idoso
114 ANTT, CFA, caixa 132 (documentos não numerados). Carta porque V[ossa] Mag[esta]de há por bem fazer mercê ao Conde de Assumar Dom Fr[ei] Pedro deAlmeida, e Portugal, Cavaleiro proféço da Ordem de Christo, da comenda de Santa Maria de Algodres, da misma ordem, no Bispádo de Vizêo; em remuneração dos serviços de seu Avô o Marques de Alorna Dom Pedro de Almeida, e de seu Bisavô o Conde de Assumar Dom João de Almeida, p. 7. Transcrição cedida por Fabricio Lamothe Vargas. 115 Em 1787, na primeira estada de William Beckford em Portugal, o 5º conde de Assumar foi considerado “um rapaz elegante, de nariz arqueado, extremamente airoso e presumido” e “peralvilho”, junto ao amigo Bernardo José de Lorena (futuro governador de São Paulo, depois de Minas Gerais, 5o conde de Sarzedas desde 1805 e depois vice-rei da Índia), sendo fidalgos que interagiam com o inglês protegido do 5o marquês de Marialva. ALEXANDER, Boyd (org.). Diário de William Beckford em Portugal e Espanha. Tradução de João Gaspar Simões. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1988, p. 89, 103, 134, 143, 167-168 e 171. 116 Tudo era incerto em relação às alianças externas nesse tempo, quando o jovem 5o conde de Assumar mandou guarnecer com “cocares da liberdade” as espadas dos oficiais de seu regimento e vestir os soldados com fardas semelhantes às da tropa francesa. DIAS, Graça; DIAS, J. S. Silva. Os primórdios da maçonaria em Portugal. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986, v. 1, t. 1, p. 377 apud NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal c. 1808-1810. São Paulo: Alameda, 2008, p. 74-75.
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2o duque de Lafões, chefe do exército, não impediram que o príncipe d. João lhe encomendasse em 1799 um escrito sobre as reformas necessárias às armas lusas.117 As rixas faziam parte das cabalas da corte. Em 1798 o marquês de Alorna moço – o pai continuava recluso em Almeirim – não foi convidado para o banquete oferecido por Rodrigo de Sousa Coutinho no palácio de Arroios pelo aniversário de d. Maria I, reunindo homens como o duque de Cadaval, o marquês das Minas, o conde de Redondo, além de ministros plenipotenciários, membros das principais famílias e altos funcionários. Conforme Nívia Pombo, não convidar adversários como Alorna sugere a boa reputação do secretário de Estado junto ao príncipe d. João. Mas o ato também expressa a distância vivida naquele momento entre alguns “grandes” – pouco afeitos a misturar-se com homens por eles considerados indignos do governo – e a nova nobreza de serviços.118 Afilhado do 1o marquês de Pombal, d. Rodrigo era o novo homem forte no contexto de enfraquecimento da função monárquica, com a doença da rainha e a regência oficiosa de d. João de 1792 a 1799. Seus conhecimentos e erudição eram então valiosos instrumentos de poder.119 Como vimos no Capítulo 1, sua linhagem fortalecia-se pelos recorrentes ofícios de antepassados prestados à coroa. Mas, apesar da ascendência nobre de vários membros, pesava sobre os irmãos Sousas Coutinho a mácula pelo casamento heterodoxo do pai Francisco Inocêncio com a rica herdeira de origem plebeia e “brasileira”. Conforme a linguagem genealógica, a filiação mecânica não chegava a caracterizar um tição de sangue cristão-novo, mas certamente abalava as pretensões do grupo de elite.120 Junto ao príncipe regente, havia disputa também no terreno das ideias. Em maio de 1801, após a derrota para a Espanha na Guerra das Laranjas, o marquês de Alorna escreveu a d. João:
117 O plano de 1799 foi publicado primeiramente em: [PORTUGAL, Pedro José de Almeida]. Marquês de Alorna marechal de campo: reflexões sobre o sistema económico do exército, 1799. Lisboa: Livraria Ferin, 1903. Ver também AMARAL, Manuel (org.). A luta política em Portugal nos finais do Antigo Regime: os documentos de crítica à reforma do exército de 1803. Lisboa: Tribuna da História, 2010, v. 2. 118 ANTT, CL, maço 96/1 apud SANTOS, 2013, p. 24 e 48. 119 NEVES, 2008, p. 191. 120 Em 178 6 José António de Sousa Coutinho penou para ingressar como principal da Patriarcal de Lisboa e outrora o caçula Francisco Maurício chegou a fazer-se passar por bisneto de outro Matias Barbosa, senhor de engenho natural da Bahia, mas nobre, para poder ingressar na prestigiosa ordem de Malta, que só admitia fidalgos. Ibidem, p. 52; e SILVA, 2002, v. 1, p. 27-29 e 210-211. Sobre a febre genealógica no Portugal moderno e os tições, cf. RÊGO, op. cit.
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Poderemos aqui resistir algum tempo, mas bem vê V. A. R. que se nos caírem forças muito grandes e o empenho absoluto de suas potencias não será possível por fim embaraçar que façam alguma entrada e mesmo que nos cerquem. [...] Em todo o caso, o que é preciso, é que V. A. R. continue a reinar, e que não suceda à sua Coroa o que sucedeu à de Sardenha e de Nápoles e o que talvez entra no projeto das grandes potências que suceda a todas as Coroas de segunda ordem na Europa. V. A. R. tem um grande império no Brasil e o mesmo inimigo que ataca agora com tanta vantagem talvez trema e mude de projeto, se V. A. R. o ameaçar de que se dispõe a ir ser Imperador naquele vasto território, adonde pode facilmente conquistar as colônias Espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa. Portanto, é preciso que V. A. R. mande arrumar com toda a pressa todos os seus navios de guerra e todos os de transporte, que se acharem na praça de Lisboa, que meta neles a Princesa e seus filhos, os seus Tesouros e que ponha tudo isto pronto sobre a barra de Lisboa e que a Pessoa de V. A. R. venha a esta fronteira da Beira aparecer aos seus povos e acender o seu entusiasmo.121
Pedro de Almeida não foi o primeiro nem o único a propor a ideia de um império luso-brasileiro – basta lembrar a proximidade de seu bisavô com d. Luís da Cunha. No mesmo ano Leonor tornou-se dama de companhia da princesa Carlota Joaquina, serviço relevante e bem remunerado para as grandes casas aristocráticas.122 Seu engajamento em favor de generais da contrarrevolução surgida na Vendeia passou a ser tratado nas cartas escritas ao casal de príncipes. Por essas também se percebe a animosidade com os secretários de Estado Luís Pinto de Sousa Coutinho e Rodrigo de Sousa Coutinho. Com mente fértil, ela os chamou
121 ANB, Negócios de Portugal, 712-2-3, apud NEVES, 2008, p. 85-86. Ver também LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996 [1908], p. 44-45; e PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 97-99 e 181-182. Nívia Pombo utiliza o mesmo trecho como epígrafe de um capítulo proveniente de sua dissertação de mestrado, sobre as tensões na corte de d. Maria I. Neste discute visões coevas e historiográficas sobre a vida e a obra de Rodrigo de Sousa Coutinho (entre elas os estudos de Kenneth Maxwell sobre a “geração de 1790”), cujo perfil meritório foi marcado por seus dois principais biógrafos, o descendente FUNCHAL, Agostinho de Sousa Coutinho, Marquez do. O conde de Linhares: Dom Rodrigo Domingos Antonio de Sousa Coutinho. Lisboa: Bayard, 1908; e SILVA, 2002-2006. POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015, p. 35-92. 122 MONTEIRO, 2003 [1998], p. 509; e MONTEIRO, 2003, p. 93-97.
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de “arlequins diplomáticos”.123 Ao defender a causa da Vendeia junto ao príncipe regente, argumentou com orgulho fidalgo: Enfim, Senhor, permita V. A. R. que eu lhe alegue um motivo mais do meu desejo: é um nome, o nome com que nasci, o nome que, desde o princípio da Monarquia, na Praça de Almeida, na Batalha de Toro, nas praias do Indo e Ganges, nas praças de Alorna, Bari, Bicholim, Tiracol, no Gôlfo de Ormuz e quer em quantos feitos de guerra distinguiram as gloriosas armas dos seus predecessores, se assinalou de um modo que com êle me transmitiram os mais inolvidáveis exemplos de fidelidade e valor. Permita V. A. R. que esta coragem e fidelidade hereditária não fique em mim frustrada, e conceda-me a glória de obter de V. A. R. o que entendo em minha consciência pode ser útil à sua conservação e serviço.124
Invocando os feitos ancestrais dos Almeidas desde a guerra pela sucessão castelhana em 1476 até os fastos do avô na Índia, Leonor entendia-se sucessora dessas qualidades, renovadas por vidas sucessivas mediante serviços e mercês em forma de um pacto secular com a monarquia.125 Nos planos para a missão secreta que articulava junto ao príncipe, o irmão devia saber de tudo e não os ministros, pois é preciso que de cá se sustentem os meus passos e, tendo pela prôa dois antagonistas, quais são os dois revolucionários D. R. [d. Rodrigo] e D. J. [d. João de Almeida Melo e Castro], é muito difícil acertar, por isso o que mais necessita o Príncipe é de um Primeiro Ministro, com o valor de morrer a seus pés mais depressa que consentir que o enganem, e não o vejo que aqui tenha lugar outro senão o Patriarca, a quem a falta de saúde priva quási dos meios de ser útil e, neste caso, sem se guiar por preocupações e vacilações frouxas, deve meu irmão esquecer tudo e assentar que nada fêz se se não fêz a si Primeiro Ministro, não para presidir, mas para poder coibir os outros que sem freio transtornam tudo e arriscam o Príncipe.126
123 Apud CIDADE, 1941, p. XXXVIII. Luís Pinto de Sousa Coutinho (1735-18 04) era secundogênito de uma proeminente família da nobreza provincial, conhecida pela linhagem Pinto, pela localidade de Balsemão na comarca de Lamego e por vínculos com a ordem de Malta. De 1769 a 1772 governou Cuiabá e Mato Grosso, quando foram produzidos muitos mapas sobre a região, no tempo de conflitos com as missões jesuíticas espanholas. Em 1774 tornou-se ministro plenipotenciário em Londres, onde, com a esposa poetisa Catarina de Lencastre, montou significativa livraria. Suas memórias serviram como fonte para o abade Raynal elaborar sua Histoire de deux Indes em 1780. Foi secretário de Estado de 1788 a 1801 (tornando-se 1o visconde de Balsemão) e em 1803. Os arrufos não impediam Leonor de ter relações literárias com a viscondessa de Balsemão. FURTADO, Júnia Ferreira; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Raynal and the defence of the Portuguese colonization of Brazil: diplomacy and the memoirs of the visconde de Balsemão, translation by Richard Wall. Análise Social, Lisboa, v. 1, n. 230, 2019, p. 8-9. 124 MONTEIRO, 2003, p. 124. 125 MONTEIRO, 2003 [1998], p. 366-367 e 501-552; e MONTEIRO, 2003, p. 86-89, 111 e 146. 126 CIDADE, 1941, p. 133-134.
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Melhor que o “revolucionário” d. Rodrigo, após a dissimulação feita em prol do já idoso patriarca, para ela o irmão deveria ser o primeiro ministro. A cumplicidade fraterna era total: Tenho conferido largamente com meu irmão, e um e outro não temos nunca diante dos olhos senão V. A. R. e a sua segurança [...] Meu irmão, que me comunica os seus pensamentos, ainda me deixa menos lugar ao sossego, que em vão procuro; as suas ideias honradas e vastas, o seu ânimo sempre prêso ao bem e vantagem do seu Príncipe, que ama ternamente, move o seu engenho rápido e lhe faz alcançar verdades, que ainda não avistam aqueles a quem não é concedida uma igual extensão de luzes e tão constante ardor, como aquêle que o anima pelo bem e serviço do Trono.127
Ao cardeal patriarca José Francisco de Mendonça, seu aliado de momento, a condessa relata que d. Rodrigo outrora manifestara interesse pela causa da Vendeia, mas ponderou em seguida que o príncipe receava comprometer-se com o governo francês.128 Em carta ao príncipe regente, ela acusa os secretários de duplicidade ante os generais, aos quais não se deu nada.129 Em 1802, em nova carta ao patriarca, comenta com preconceito aristocrático sobre o embaixador em Madrid Cipriano Ribeiro Freire: não lhe permite a sua classe mesma o compreender a importância dos negócios que trata. Sem atribuir-lhe nenhuma intenção má, basta a natureza dos seus próprios interêsses para vermos que estes se cruzarão com os interêsses maiores da Monarquia e da Pátria. A êle qualquer forma de governo pode ter-lhe utilidade. Não é assim a nobreza e clero, que não podem existir bem sem Monarca; e, nestes termos, a causa do Soberano é nossa por ser dele e dele por ser nossa.130
Dizia querer não importunar o príncipe regente, mas d. Rodrigo a expulsara de sua habitação, outrora concedida por d. João. Valorizava assim o pacto dos grandes com a realeza, em contraposição aos novos servidores. Para a condessa de Oeynhausen, suas opiniões e as do irmão concordavam com as dos melhores estadistas, “mas em nada se parecem com a política que rege os Gabinetes, a qual desgraçadamente parece tender toda para a dissolução da Monarquia”. Em outra
127 Ibidem, p. 135. 128 Ibidem, p. 142-143. 129 Ibidem, p. 146-150. 130 Ibidem, p. 156.
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missiva, lamenta com o patriarca que os ministros se apoderaram de suas cartas escritas ao príncipe em apoio aos generais.131 O partido francês na corte lusa não dependia de convicções ideológicas, podendo ser composto com realistas ou revolucionários.132 Com a assinatura do tratado de Amiens em 1802 entre França e Inglaterra, Leonor foi isolada na corte. Paradoxalmente, seu envolvimento na contrarrevolução despertou suspeitas do intendente-geral de polícia Diogo Inácio de Pina Manique. A Sociedade da Rosa por ela criada – aparentemente com perfil apenas cultural – foi investigada e reprimida.133 Mesmo com o afastamento de Luís Pinto de Sousa Coutinho e de Rodrigo de Sousa Coutinho no ministério, em 1803 Leonor saiu de Portugal, em princípio para resolver questões de herança do filho João Carlos Ulrico de Almeida e Oyenhausen (1793-1822) na Alemanha. Mas sua correspondência alude a uma missão secreta contra Napoleão, supostamente delegada a ela pelo príncipe regente. Foi assim a Madrid e em novembro de 1804 embarcou para Londres.134 Em meio à guerra entre Portugal e Espanha (com a França por trás), em 1802 o 3o marquês de Alorna criou um clube aristocrático. Para Pedro José de Almeida, os lugares de conversação se restabeleceriam pelo fomento à amizade entre parentes, evitando os riscos de adesão à franco-maçonaria. Mas suas ideias também se opunham à distribuição desordenada de honras no reino. Pelos estatutos do clube a nobreza dividia-se em grandeza, nobreza antiga e nobreza moderna. A proeminência cabia ao primeiro grupo, tendo como chefe supremo o príncipe, seguido pelo líder dos nobres – provavelmente Pedro de Almeida. A agremiação provocou reação na corte. Numa carta ao príncipe d. João, d. Rodrigo – informado pelo prior dos Anjos, padre José Ferrão, seu protegido e destacado maçom – expôs sua opinião. O secretário pontuou o pouco crédito de Alorna na corte, ainda mais
131 Ibidem, p. 158-159 e 175-176 (citação à p. 158). 132 Conforme Lúcia Bastos Neves, havia duas sensibilidades no Conselho de Estado e no Ministério dos Negócios Estrangeiros, conhecidas na historiografia por partidos francês e inglês. Com estratégias distintas, os dois grupos tentavam diminuir os riscos de um conflito no continente. Não eram divergências entre uma postura absolutista ou liberal com princípios ideológicos claros, mas sobre a melhor posição de Portugal no contexto internacional. O partido inglês era representado pelo secretário de Estado de Negócios Estrangeiros Luís Pinto de Sousa Coutinho, substituído por João de Almeida de Melo e Castro, e sobretudo por Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e Ultramar de 1796 a 1801 e presidente do Real Erário de 1801 a 1803. NEVES, 2008, p. 76; e PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 82, 88. 133 ANASTÁCIO, 2015b, p. 38; e NEVES, 2008, p. 235-236. 134 ANASTÁCIO, 2007a, p. 40-42.
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ao formar a sociedade sem consentimento do príncipe regente. Considerava a iniciativa descabida, aconselhando providências para “extirpar este mal” e “tirar das mãos de doidos e mal-intencionados a Força armada, pois que da mesma podem abusar, quando menos se espera” – referenciando Alorna, marechal de campo e chefe legionário.135 Nesse ambiente de valorização da nobreza histórica e hereditária, publicou-se uma história da aclamação de d. João IV em 1640, evidenciando que a dinastia Bragança devia o seu poder ao apoio decisivo de um grupo de nobres.136 Também circulou na corte uma memória de autor anônimo, na qual se aponta a confusa distribuição de distinções como causa da crise política vivida pela monarquia portuguesa. Conforme Nívia Pombo, no texto atribuído a Alorna se defende a antiga ordem na concessão de honras e privilégios, em contraposição à depois chamada “inflação de títulos” ocorrida desde 1792, quando d. João passou a exercer o governo.137 Para José Norton – que publicou uma cópia existente no arquivo do conde da Barca António de Araújo de Azevedo, hoje no Arquivo Distrital de Braga – o texto pode ter origem no papel portado por Pedro José de Almeida em sua tentativa fracassada de obter audiência com o príncipe regente em 1803.138 Entre os vários assuntos dispostos, no primeiro capítulo sobre o governo há uma pista que indica essa autoria ou a encomenda do texto a outrem por parte de Alorna, ao mencionar-se Diogo Fernandes de Almeida (o prior do Crato antepassado do marquês) como único exemplo positivo de “privado”, sendo muito estimado e protegido por d. João II (1481-1495), de quem foi monteiro-mor.139 Conforme a cópia editada, sucedem-se 13 pequenos capítulos sobre os secretários de Estado, o erário
135 PEREIRA, Ângelo. D. João VI príncipe e rei: últimos anos dum reinado tormentoso. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1958, p. 22-23 apud SANTOS, 2013, p. 75-76; NORTON, 2008, p. 148-154. 136 PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 110-111. 137 A historiografia costumava atribuir o manuscrito ao conde de São Lourenço, baseada na publicação de um pequeno trecho do texto por Camilo Castelo Branco em 1874. Nívia Pombo utilizou uma cópia conservada no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, atribuída ao marquês de Alorna. ANB, códice 807, v. 5 apud SANTOS, 2013, p. 78-79 e 82-83; e PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 112-118 (que comparam essa memória à Carta do marquês de Penalva, atribuída ao conde de São Lourenço). Sobre a inflação de novos títulos nobiliárquicos na paradoxal regência joanina, que taxava mais os grandes e ao mesmo tempo os protegia, cf. MONTEIRO, 2003, p. 97-103. 138 NORTON, José (org.). Marquês de Alorna. Memórias políticas. Lisboa: Tribuna da História, 2008, p. 11. 139 Ibidem, p. 86.
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(com críticas veladas à gestão de Rodrigo de Sousa Coutinho),140 a nação, tributos, exército, tribunais, clero (defendendo os jesuítas e criticando sua expulsão),141 os enobrecidos, a força, o espírito nacional e as audiências. No capítulo sobre a nobreza despontam argumentos contundentes sobre a tensão social e política vigente: a Nobreza antiga, isto é, a que vem desde o Senhor Rei D. Afonso V, ou mais de trás, representa uma grande massa de serviços feitos a Portugal. Por consequência uma fidelidade absoluta aos interesses de Portugal deve achar-se infalivelmente nos representantes destas Famílias [pode ser uma alusão ao mítico Duarte de Almeida, decepado ao carregar o estandarte real na batalha de Toro em 1476, antepassado dos Almeidas Portugal]; porque têm um valor, para assim dizer, intrínseco neste Reino, e perdem-no se ele deixa de conservar a sua independência. Há cinquenta anos que se trabalha em desautorizar esta Classe, e não porque os Agentes se persuadam que ela é má, mas porque desejam subir para ela de repente, e ficar nela sem que dê nos olhos o contraste da antiguidade de Serviços com a modernice das operações Químico-políticas que fazem de repente e que a Justiça não consegue senão por largos tempos [critica as reformas desde o reinado de d. José I e valoriza o pacto secular da alta nobreza com a monarquia]. Com efeito há cinquenta anos que ao pundonor se dá o nome de arrogância, à lealdade e lisura o de pouco fundo: chama-se pródigos os generosos: se um Nobre tem um defeito conta-se como defeito geral da Nobreza [critica os argumentos dos Sousas Coutinho para amenizar sua mácula de linhagem]. Uma casualidade fatal abre finalmente uma estrada larga para chegar ao fim que se deseja; aproveita-se a ocasião de alterar as leis e as formas; persuade-se o Soberano que a sua Majestade foi lesada de propósito, e sem mais reparo, sem mais prova, solta-se o raio e abate-se de um só golpe o Corpo da Nobreza, fulminando uma parte e assombrando todo o resto [critica a punição de membros das casas de Távora e Alorna]. Assim ficou anatemizada pelo Trono Português a Raça daqueles homens que tanto serviram o Senhor Rei D. João IV [alusão ao momento de elevação à grandeza de várias casas nobres]. Daqui por diante foi fácil estabelecer a desconfiança, inutilizar o merecimento e a instrução dos Nobres judiciosos e aplicados, exagerar a ignorância de alguns, dando-se como regra geral da Nobreza, e fazer ocupar os Cargos
140 Ibidem, p. 69-70 e 95-99. 141 Ibidem, p. 113.
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da primeira importância por quem não tinha raízes fundas no Estado, nem tanta obrigação de lhe ser fiel, como os da primeira Classe [denuncia a injusta ocupação de importantes postos no governo pela nobreza de segunda classe].142
Trata-se de um texto riquíssimo ao expressar a situação política vigente em Portugal, que pode ter sido esboçado pelo 3o marquês de Alorna com ajuda de outrem, até mesmo de sua irmã – indubitavelmente mais versada nas letras. Ante esses conflitos, a coroa comporta-se de modo ambivalente. Após a queda de João de Melo e Castro e Rodrigo de Sousa Coutinho e a ascensão de António de Araújo de Azevedo ao ministério,143 em dezembro de 1804 o príncipe regente nomeou Pedro José de Almeida vice-rei do Brasil.144 Em março de 1805 foram expedidos decretos do Conselho Ultramarino e cartas ao vice-rei cessante com instruções para a posse do sucessor, que já compunha o grupo de oficiais de confiança e mandava preparar o navio para cruzar o Atlântico. Nessa expectativa o 3o marquês de Alorna encomendou ao reputado pintor veneziano Domenico Pellegrini, especialista em retratos – gênero pouco cultivado até então em Portugal –, um quadro seu, da esposa Henriqueta Júlia Gabriela da Cunha e dos filhos João (1796-1805) e Miguel de Almeida Portugal (1797-1806), que seriam, a princípio e seguidamente, 6o e 7o condes de Assumar (Figura 12). Vindo de sucessivas estadas em Nápoles, Roma, Veneza, Londres e Paris, Pellegrini chegou em Lisboa em 1803, levado pelo amigo gravador Francesco Bartolozzi, convidado de Rodrigo de Sousa Coutinho para dirigir ali um curso de gravação. O pintor trazia consigo o gosto inglês pela retratística – em voga desde o Setecentos – e a formação veneziana, sendo um colorista especial, por exemplo ao valer-se da técnica da vellatura para produzir um efeito de maciez. Distinguia-se assim por um neoclassicismo temperado, diferente do capitaneado por Jacques-Louis David. Em Portugal pintou retratos do príncipe regente, de expoentes da aristocracia portuguesa e eminentes ingleses e franceses ali residentes, sendo vários
142 Ibidem, p. 109-110. Os trechos entre colchetes e os sublinhados são meus. Ver também FREIRE, op. cit., v. 2, p. 320-340. 143 A queda de Rodrigo de Sousa Coutinho em 1803 e a designação de António de Araújo de Azevedo para a Secretaria de Estado e Negócios Estrangeiros em 1804 possibilitaram restabelecer relações econômicas com a França e a presença de embaixadores em Portugal, como os generais Lannes e Junot, fazendo com que a cultura e os costumes franceses entrassem com maior intensidade no reino luso. NEVES, 2008, p. 80. 144 ANTT, CFA, caixa 132 (documentos não numerados). Patente que Vossa Alteza Real Há por bem fazer mercê ao Marquez de Alorna, de o nomear para Vice Rey e Capitão General de Mar e Terra do Estado do Brasil, por tempo de tres annos e o mais que V[ossa] A[lteza] R[eal] for servido em quanto lhe não nomear Successor.
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convertidos em gravuras.145 O Retrato da família do 3º marquês de Alorna é um óleo sobre tela com dimensões de 2,40 x 1,98 cm, atualmente na Fundação das Casas de Fronteira e Alorna (FCFA) em Lisboa, cuja cópia digitalizada reproduz-se a seguir.
Figura 12 - FCFA, Domenico Pellegrini, Retrato da família do 3o marquês de Alorna (1805). Fonte: PAVANELLO, Giuseppe. Domenico Pellegrini 1759-1840: un pittore veneto nelle capitali d’Europa. Verona: Scripta, 2013, p. 78. Uso de imagem gentilmente cedido pela FCFA.
Na cena elaborada para produzir um aspecto plácido, ao pôr do sol sob a luz difusa e amarela de Lisboa, o marquês de Alorna desponta ao centro, garboso aos 50 anos, fardado como comandante de sua legião, apoiado em dois degraus no
145 Talvez por ser maçom e simpático à França, ganhou a admiração de Laure Junot, esposa do então representante do governo francês em Lisboa, Jean-Andoche Junot. Dela e sua filha Joséphine, Pellegrini pintou em 18 05 o retrato em óleo sobre tela, considerado carro-chefe de sua obra. Laure Junot escreveria depois em suas memórias com sarcasmo sobre a sociedade portuguesa da época. Após a vinda da corte para o Brasil e as invasões francesas, o governo regencial expulsou Pellegrini de Lisboa em 1810. PAVANELLO, Giuseppe. Domenico Pellegrini 1759-1840: un pittore veneto nelle capitali d’Europa. Verona: Scripta, 2013.
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alpendre de sua morada na rua da Boa Morte. O nobre oficial de cavalaria segura com a mão direita o primogênito João – então com nove anos – em traje de alferes. Por trás e em plano superior, a marquesa, trajada com vestido de musselina branco gelo no melhor estilo império e com lenço em vermelho pompeiano, dá um braço ao marquês e com outro acolhe o caçula Miguel, de 8 anos, igualmente uniformizado. Miguel é o único a olhar em direção ao artista, enquanto João e Pedro voltam-se à esquerda e Henriqueta apresenta uma expressão vaga que capta a atenção do espectador. Ao fundo vê-se o pátio dos cavalos, o convento oratoriano das Necessidades e a barra do Tejo. Conforme José de Monterroso Teixeira, o comovente retrato de 1805 enfatiza a personalidade marcial do protagonista, reforçada pelo fato de os filhos portarem a mesma divisa do pai. O estatuto social da primeira nobreza transparece assim pela posição militar, valorizando o tempo napoleônico e as possíveis afinidades políticas do 3o marquês de Alorna.146 Trata-se de um quadro espetacular ante o retrato anônimo, sombrio e menor –hoje bem conhecido – do avô Pedro Miguel de Almeida, também pertencente à FCFA, provavelmente feito quando o marquês de Castelo Novo preparava sua viagem para a Índia em 1744.147 O talento de Pellegrini deve ter custado caro à casa nobre endividada. Destaca-se a tendência não exclusiva desta linhagem em amplificar feitos e realizações com produções culturais, mesmo em conjuntura adversa. Menos hábil na poesia que as irmãs, o 3o marquês de Alorna patrocinou uma arte de grande sensibilidade como forma de distinguir virtudes, em sintonia com suas convicções e os novos tempos. Mas em julho de 1805 o príncipe regente comunicou a Pedro de Almeida que a nomeação fora revogada e o cargo de vice-rei do Brasil seria dado a Marcos de Noronha e Brito, 8o conde dos Arcos. No ano seguinte, após insistente pedido
146 TEIXEIRA, José de Monterroso. Domenico Pellegrini a Lisbona (1803-1810): l’oppressiva instabilità politica e il celebrativo ritratto delle élites. In: PAVANELLO, Giuseppe. Domenico Pellegrini 1759-1840: un pittore veneto nelle capitali d’Europa. Verona: Scripta, 2013, p. 229-249 (sobretudo p. 238); PAMPLONA, Fernando de. Dicionário de pintores e escultores portugueses. Barcelos: Livraria Civilização, 2000, v. IV, p. 283-284; e NORTON, 2008, p. 170-172. 147 Há notícias sobre a pinacoteca deste nobre, que chamou o pintor André Gonçalves (1685 ou 1692-1762) para estudar e copiar pinturas flamengas de sua coleção, que possuía também paisagens, cenas de batalha e naturezas-mortas. O 3o conde de Assumar encomendava muitos trabalhos a Francisco Vieira Lusitano (ver ORLANDI, Pellegrino Antonio. Abecedario pittorico. Venezia: Giambatista Pasquali, 1753, p. 205) e colecionava objetos de história natural (vindos também do Brasil) e medalhas de ouro (ver LISBOA, Balthesar da Silva. Discurso historico, politico, e economico dos progreffos, e eftado actual da filozofia natural portugueza, acompanhado de algumas reflexoens fobre o eftado do Brazil. Lisboa: Officina de Antonio Gomes, 1786, p. 16). Todas essas informações em: DELAFORCE, Angela. Art and patronage in Eighteenth-Century Portugal. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2002, p. 335, 341, 456 e 458.
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o marquês de Alorna recebeu como consolação a sesmaria da aldeia de Santo Antônio em Campos dos Goytacazes, na capitania do Rio de Janeiro. Os foros devidos à Fazenda Real pelos colonos doravante seriam pagos ao marquês que, no entanto, seria responsável pelas despesas com os índios habitantes.148 A desgraça foi também doméstica, pois em outubro de 1805 e agosto de 1806 morreram acidentados, respectivamente, os meninos João e Miguel de Almeida Portugal.149 Nesse ínterim o marquês de Alorna foi nomeado governador das armas do Alentejo. Sua incerteza ante os acontecimentos aparece na carta por ele enviada de Vila Viçosa ao príncipe d. João em março de 1806, na qual reclama dos conflitos jurisdicionais que minavam o seu trabalho na província: Vossa Alteza Real tem vontade de que eu o sirva bem, eu parece-me que ainda tenho mais vontade disso – Mas no estado actual das coizas nao o posso conseguir, porque sendo como sou simplesmente encarregado, náo tenho pelo Regimento outro nenhum encargo [...] portanto se Vossa Alteza Real quiser que eu fique aqui sem poder adiantar de modo nenhum os seus intereces, e em qualidade de simples arr[u]inado para este Canto do Mundo, náo digo que fico com gosto, mas digo que lhe hei de obedecer a risca. Mas se Vossa Alteza Real quiser, que eu lhe fassa algum serviço, hé preciso que eu fique estabelecido de modo, que possa saber de certo quando mereço o Agrado de Vossa Alteza Real, ou quando o desmereço, para esse efeito, requeiro a Vossa Alteza Real, que por Decreto, ou por Instrucoens, ou por qualquer outro modo que a Vossa Alteza parecer melhor, me autorize a por em pratica os Servicos que quiser de mim.150
O marquês não sabia como era reputado ante o príncipe regente e de que forma poderia servi-lo. Em suma, não sabia mais qual era o seu lugar naquela sociedade. O grande revés público sofrido por ele – coincidente com a trágica perda de sucessão direta na casa – guarda relação com as intrigas cortesãs. Essas eram alimentadas pelas pressões externas inglesa e francesa, a necessidade premente de vinda da corte portuguesa para o Brasil e pelas desavenças entre d. João de Bragança e Carlota Joaquina de Bourbon. A aparente depressão do príncipe, contraposta ao interesse da princesa pela regência em sintonia com a Espanha, ambos os fatores
148 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005, p. 255-256. 149 NORTON, 1967, p. 359; e NORTON, 2008, p. 178-179 e 197-198. 150 API, 170-3-1. Carta do marquês de Alorna ao príncipe d. João. Ver também VARGAS, op. cit., p. 36.
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culminaram na suposta e mal explicada conspiração de fidalgos, na qual o nome de Alorna foi envolvido.151 Os episódios seguintes são conhecidos: Bloqueio Continental, retorno de Portugal à órbita inglesa, volta de d. Rodrigo e João de Almeida Melo e Castro às reuniões do Conselho de Estado, viagem da corte e nomeação no Brasil de Rodrigo de Sousa Coutinho como secretário de Estado dos Negócios da Guerra e do Estrangeiro, em posição firme contra a França.152 Mas os franceses foram relativamente bem recebidos em Portugal. Visando assenhorear-se do reino no qual já fora embaixador, Jean-Andoche Junot substituiu o governo da regência por um conselho presidido por ele e formado por três secretários franceses residentes em Portugal e alguns portugueses. Com a complacência de autoridades locais e apoio da maioria da alta nobreza e de alguns letrados, o general francês busca afastar os possíveis resistentes e atrair colaboradores, especialmente os melhores oficiais e soldados, então retirados de Portugal a fim de reforçar a Grande Armée. Conforme Lúcia Bastos Neves, nesse tempo de mitologias políticas o marquês de Alorna foi nomeado comandante das tropas portuguesas. Junto a Gomes Freire de Andrade e Manuel Inácio Martins Pamplona, passou a dirigir um contingente de cerca de nove mil homens a serviço do imperador. Em maio de 1808 uma delegação de nobres liderada pelo 2o conde da Ega Aires de Saldanha Albuquerque – genro de Leonor de Almeida Portugal por seu casamento com Juliana de Almeida e Oyenhausen (1784-1864) – foi enviada a Bayonne para homenagear Napoleão Bonaparte.153 Em Portugal sucederam-se o movimento de resistência ao norte, a restauração da soberania de d. João e a volta da preponderância inglesa. O Juízo da Inconfidência ressurgiu, enquanto a Intendência Geral da Polícia incentivava denúncias contra os supostos amigos dos franceses. Repelidas, as tropas napoleônicas tentaram nova invasão em 1809, logo abortada no norte reinol. Após um longo périplo por
151 PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 140-144; AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 34-44; e NEVES, 2008, p. 81. 152 NEVES, 2008, p. 83-93. 153 Ibidem, p. 94-98 e 185-190. A historiadora baseia sua análise de Portugal no tempo das invasões napoleônicas no conceito desenvolvido por GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [1986]. Ver também MARTINS, Ana Canas Delgado. Governação e arquivos: d. João VI no Brasil. Lisboa: Torre do Tombo, 2007, p. 45-46.
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Espanha e França, em agosto de 1810 o marquês de Alorna participou intensamente da 3a invasão francesa a Portugal, comandada pelo marechal André Massena. Os franceses chegaram a tomar Coimbra, mas não conseguiram entrar em Lisboa e em outubro de 1811 retiraram-se definitivamente após a batalha do Buçaco.154 Nesse ínterim a marquesa sua esposa foi obrigada pelo governo da regência a recolher-se no mesmo convento em Chelas, onde outrora ficaram sua sogra e cunhadas. Do Rio de Janeiro o príncipe d. João acusou o marquês de crime de “lesa-majestade de primeira cabeça”, por seduzir os ânimos locais como se fosse um general português, espalhando “proclamações sacrílegas” em prol de apoio aos franceses. Seus bens e rendimentos seriam confiscados e Pedro de Almeida seria banido do reino, privado de todos os títulos, honras e dignidades. Se fosse apanhado vivo seria levado ao cais de Belém, para num alto estrado lhe cortarem mãos e cabeça, sendo depois queimado e suas cinzas lançadas ao mar. As semelhanças com os episódios de 1759 são evidentes.155 Após nova estada em Paris, onde residiam a sobrinha Juliana e o conde da Ega, ainda no comando da Légion Portugaise Pedro de Almeida ingressou na campanha da Rússia. Tendo permanecido no governo da Lituânia, durante a penosa retirada invernal ele morreu em janeiro de 1813 na cidade prussiana de Königsberg – junto ao amigo Gomes Freire de Andrade, que escreveu sua última memória.156 Em dezembro de 1812, atendendo ao pedido da condessa de Linhares Gabriela di San Marzano – viúva de Rodrigo de Sousa Coutinho, falecido no Rio em janeiro daquele ano –, o príncipe regente concedeu-lhe a sesmaria da aldeia de Santo Antônio, em Campos dos Goytacazes, com os foros pagos pelos colonos. Em 1806 esta sesmaria fora doada a Pedro de Almeida, então marquês de Alorna.157
154 NEVES, 2008, p. 106-111; e MARTINS, 2007, p. 79 e 92. 155 BNB, OR, 022B, 001, 001, 55. Proclamação do principe e regente d. João declarando d. Pedro de Almeida, marques de Alorna, traidor de Portugal, reu de lesa majestade, privando-o de todos os títulos, honras e dignidades, e oferecendo um premio para quem o apresentasse vivo ou morto. [Rio de Janeiro]: Impressão Régia, 06 set. 1810. Em fevereiro deste ano foi assinado o tratado de comércio e navegação entre Portugal e Grã-Bretanha, selando o destino português. Ver também MARTINS, 2007, p. 100; NEVES, 2008, p. 194-197; e NORTON, 2008, p. 274-275. 156 NORTON, 2008, p. 281-308. 157 SILVA, 2006, v. 2, p. 661.
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Arroios de livros Em seu exílio disfarçado na Inglaterra, Leonor de Almeida Portugal publicou em 1812 duas traduções em português, a Arte poética de Horácio (já antes editada em Portugal por Francisco José Freire) e o Ensaio sobre a crítica de Alexander Pope, impressas com a indicação “por huma portuguesa”. Traduções eram comuns entre mulheres escritoras à época, ao significarem aptidão e modéstia para um trabalho intelectual considerado generoso e desinteressado. Havia assim uma constante preocupação com a imagem por ela difundida.158 Sua correspondência caracteriza melhor o engajamento político. De início o ministro Luís Pinto de Sousa Coutinho preocupou-se com seus movimentos em Madrid e Londres, pelo que alertava ao embaixador Domingos António de Sousa Coutinho para não levar suas ideias a sério. Ao que parece ela frequentou o círculo de aristocratas franceses exilados na Inglaterra. Sua poesia escrita no período expressa preocupação com a situação de Portugal. Em 1809 chegou a ir rapidamente a Lisboa sem passaporte. Interpelada pela intendência de polícia, logo retornou.159 De 1804 a 1814, os assuntos mais recorrentes nas cartas escritas pela condessa em Londres sobre a corte no Rio de Janeiro e a regência de Portugal foram: os problemas de dinheiro pelo mal recebimento de pensões, resultando numa vida precária; o rapto e o casamento anglicano da filha Luísa de Almeida Oyenhausen (1791-1812) com um médico protegido do príncipe regente, seguidos por gravidez e morte da jovem;160 e a morte do irmão – com quem correspondeu-se em boa parte desse tempo – fazendo dela a sucessora da casa ante o falecimento anterior dos sobrinhos. Esses temas foram motivos de atritos com o embaixador português em Londres, Domingos António de Sousa Coutinho.161
158 Após voltar a Portugal ela publicaria traduções de textos de Chateaubriand, Lamennais e paráfrases de salmos. ANASTÁCIO, 2015a, p. 21. 159 Idem, 2007a, p. 42-44. 160 O assunto não será aqui detalhado, mas por ele se percebe a verve aristocrática da condessa. MÓNICA, Maria Teresa. Romantismo político. In: SOUSA, Maria Leonor Machado de; EHRARDT, Marion; PEREIRA, José Esteves (orgs.). Alcipe e a sua época. Lisboa: Colibri, 2003, p. 21-37; API, Legação em Londres, Correspondência do conde de Funchal ao conde de Galveias (junho de 1813), docs. 240-243. 161 Sobre os poderes de Domingos de Sousa Coutinho na política externa portuguesa no período, cf. PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 200-201.
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As cartas de Leonor ao amigo António de Araújo de Azevedo – outrora ministro no período de aliança francesa e desde 1808 no Rio de Janeiro – revelam a hostilidade disfarçada.162 Adquiridas pela Biblioteca Pública de Braga, foram depois editadas, facilitando a consulta dos textos de datação lacunar. Nessas cartas a condessa refere-se aos “mais atrozes infortúnios solicitados e provocados pelo mais incrível rancor de um inimigo que jurou perder-me, e que nem já se põe disfarce nem limite à sua cólera”, pois “D. D. [d. Domingos] tinha solicitado para mim o mais estranho proceder”.163 Comenta também que suas cartas e as do amigo eram interceptadas. Para ela, os que assim procediam ora eram “orangs” (orangotangos) ora cavalheiros, sendo preciso “mostrar aos ingleses que não somos todos orangotangos, que os interesses, a glória, a honra do nosso soberano é o primeiro objeto dos nossos cuidados”.164 A condessa também pede a Azevedo notícias do enteado João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg (1776-1838), filho ilegítimo do marido que veio para o Brasil, e invoca o posto de dama de honra da princesa a fim de minorar os maus tratos recebidos. Em 1811 as pensões dos exilados deixaram de ser pagas por instruções de Lisboa, e d. Domingos lhe assegurou por carta a intenção de cobrir-lhe pessoalmente as despesas por seis meses. Nem assim Leonor o poupou. Ante a chegada do conde de Palmela, Pedro de Sousa Holstein, como novo embaixador português e a nomeação do conde do Funchal d. Domingos para o Conselho de Estado, observa com ironia o desânimo deste em ir para o Brasil, retardando a todo custo a partida, pois era gordo e prazenteiro.165 Por fim, apresenta sua versão da morte do irmão – sempre coagido a lutar pelo inimigo Napoleão – e começa a tomar providências para voltar a Portugal.
162 O futuro conde da Barca (a partir de 1815) era homem cultivado, estudioso de ciências e literatura alemã, com experiência diplomática nos Países Baixos, França e Rússia. No Rio de Janeiro foi substituído no ministério por d. Rodrigo, novo 1o conde de Linhares, embora participasse do Conselho de Estado. Trouxe consigo sua grande livraria (hoje no acervo da BNB), uma tipografia (base da Impressão Régia na nova corte) e uma coleção mineralógica. Na morte de d. Rodrigo em 1812, Azevedo retornou ao ministério, na pasta de Marinha e Domínios Ultramarinos. Empreendeu experiências botânicas e químicas e posteriormente patrocinou a Missão Artística Francesa, falecendo em 1817. NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. António de Araújo de Azevedo, conde da Barca. In: VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das (orgs.). Dicionário do Brasil joanino 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 44-45. 163 Apud VAZ, A. Luís. A marquesa de Alorna: cartas do exílio em Londres (1804-1814). Braga: Presença e Diálogo, 1974, p. 82-83. Ver também ALVIM, Maria Helena Vilas-Boas e. A marquesa de Alorna e as cartas do exílio em Inglaterra. In: SOUSA, Maria Leonor Machado de; EHRARDT, Marion; PEREIRA, José Esteves (orgs.). Alcipe e a sua época. Lisboa: Colibri, 2003, p. 99-116. 164 VAZ, op. cit., p. 84-85. 165 Ibidem, p. 92-95 e 115-118.
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Mas não sabia se os governadores do reino tinham sido informados da ordem do príncipe regente, sendo aconselhada a ter procuradores encarregados de efetivar suas rendas e posses, para então poder viajar e estabelecer-se em Lisboa com a família – filhos e criados – decentemente. Assim dilatou o prazo de partida, só retornando ao reino luso em julho de 1814.166 O retardo na chegada parece ter prejudicado o controle dos bens da casa. Num pequeno rascunho de carta sem data e destinatário, escrito num envelope já utilizado dirigido à condessa e conservado em sua correspondência diversa no ANTT, ela relata estar a ponto de ir para Lisboa (portanto em 1814), quando foi informada de “huma nova ocurrencia” que “me obriga a recorrer a V. Exa pa de novo invocár a Sua Alteza a fim de que me acuda e avalie o rigôr das mas tristes circunstancias”. Segundo a condessa, hia pello meu procurador tomár posse dos bens despedaçados que me tocão. porem nesse momento aparefcem dados á Casa do defunto Conde de Linhares, e que me resta se nem a ley me defende? Os termos ambíguos com que me informão de Lisboa, fruto do temor que paraliza ainda todos os que imprego, não me deichão entender clara e destintamente que bens são. Porem recordando os conhecimentos que tinha dos bens da Casa, soponho que são só podem ser as terras de Almeirim, mais seguras que se derão aos Souzas, foreiras a Ordem de Malta. por que não conheço a outras terras de Caza que o fossem se não essas.167
Conforme Leonor de Almeida, os bens integravam o morgado da casa, sendo, portanto, inalienáveis. Assim lhe pertenciam como sucessora imediata, não podendo ser confiscados. Sua desconfiança em relação a outra família é patente, suspeita de usurpação: Nem eu me persuado que a família dos Souzas, queirará com huma tal usurpação manchar os sentimentos desinteressados e elevados que ostentão e que he de sabêr que eles tinhão quando S. A. R. os destingue com tão altos empregos. em consequencia suplico a V. Exa. que ponha na presença do Principe N. S. o meu desamparo e necessidade para que ordene que os bens de Val de Nabaes, Almeirim e mais pertenças se me restituão como Prazo em vida primeiramente hypotecado ao
166 Ibidem, p. 114 e 121-126. 167 ANTT, CFA, caixa 174 (documentos não numerados), p. 1. As rasuras encontram-se no manuscrito. Note-se a menção à seleta ordem de Malta. O sublinhado é meu.
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Morgado e depois anexo a elle o qual como me pertence como emediata suceçora do sobredito Morgado.168
Mas não apenas as terras, segundo o procurador da condessa, teriam sido usurpadas: A colecção de magníficos Paineis que lhe estava incorporada tocava. A livraria formada com tanta inteligência e cuidado por meu Avô, meu Pai e meus Tios os preciosos manuscriptos. tudo desapareceu. e como não he possivel que se sequestrem bens, sem que os executores fafcão inventarios, devo pedir a V. Exa. para que qu igualmente suplicar a S. A. R. que por hum decreto aviso ou como for servido ordene que se me entreguem estes inventarios e se me diga o a inteligencia da lugar em que acantão estes importantes objectos possa os retornar como propriedade inalienavel segundo a natureza delles e o meu direito.169
Desse modo, também a livraria ou parte dessa, com os manuscritos, teria passado aos Sousas Coutinho. Ainda no mesmo esboço – não se sabe se este depois foi copiado em carta enviada a outrem, talvez António Araújo de Azevedo ou o marquês de Aguiar Fernando José de Portugal e Castro170 – a condessa justifica que o cartório com os papéis regulando os títulos e direitos da casa também teria desaparecido, bem como as obras do marido, a correspondência com o pai e pessoas da família, os móveis, “tudo desapareceu” – repete. Assim chegaria em Lisboa com “huma numerosa família [filhos e criados] sem casa sem dinheiro” e meios para litigar. E se os tivesse, qual seria o Advogado a quem não a frustrasse o poder e authoride de hum Governador do Reino contra huma parte, oprimida esmagada e despojada como eu! O meu Repudio he infalivel por que está nas mãos da justiça e clemencia nas mãos de S. A. R. que invoco com a mais profunda humildade e confiança filial.171
168 Ibidem. A rasura encontra-se no manuscrito. 169 Ibidem, p. 2. As rasuras encontram-se no manuscrito. O trecho sublinhado é meu. Ao retornar do Oriente o 1o marquês de Alorna trouxe seis painéis ingleses de portos do mar da Índia, 13 painéis de pintura ingleses com vidro, dois painéis de espelhos com quatro placas de cobre esmaltado, 38 painéis de “pintura da china” sobre vidro com moldura negra ou dourada e dez painéis pequenos com a mesma técnica. NORTON, 1967, p. 278 e 280; PEREIRA, 2016, p. 204. 170 Fernando José de Portugal e Castro, ex-governador da Bahia e vice-rei no Rio de Janeiro, retornou ao Brasil com a corte em 1808, tornando-se 1o conde de Aguiar e em 1813, 1o marquês de Aguiar. Após a morte do conde de Linhares, em 1814 foi ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, tendo traduzido em 1810 e 1812 livros de Alexander Pope – como Leonor, que o menciona bastante em sua correspondência no período. Não obstante ser afinado com o “partido inglês”, como António de Araújo de Azevedo ele possuía certa rivalidade com Rodrigo de Sousa Coutinho. GUIMARÃES, Lúcia Paschoal. Fernando José de Portugal e Castro, conde de Aguiar. In: VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das (orgs.). Dicionário do Brasil joanino 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 163-164; e PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 218-219. 171 ANTT, CFA, caixa 174, p. 2. O trecho entre colchetes é meu.
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No ANTT há várias cartas escritas pela condessa sobre o morgadio da casa de Assumar/Alorna, dirigidas a autoridades e/ou ao príncipe regente, e o desaparecimento da documentação cartorária. Não se sabe quais bens seriam encartados no morgado por esses documentos e se Leonor de Almeida agia de boa-fé, com conhecimento de causa. Se o irmão outrora titular da casa foi declarado inimigo da pátria, o que não integrava o seu morgado podia ser confiscado pela coroa.172 Todavia, nada justificava o furto de bens móveis de uma biblioteca particular para outra. Em carta sem destinatário identificado, escrita já em Lisboa e referindo-se ao rei (portanto desde 1816), ela reclama dos abusos de poder dos governadores do reino, rogando ao interlocutor para interceder junto ao Principal Sousa, José António de Sousa Coutinho.173 Durante a terceira invasão francesa em Portugal, o Conselho de Regência foi recomposto sob influência de d. Rodrigo, com o irmão Principal Sousa, o conde de Redondo Fernando Maria de Sousa Coutinho, o doutor Ricardo Raimundo Nogueira (ex-reitor do Colégio dos Nobres), o conde de Castro Marim e o ministro plenipotenciário inglês Charles Stuart – depois substituído por William Beresford. Os regentes procuravam controlar a situação e angariar apoio contra supostos jacobinos e simpáticos a Napoleão.174 O eixo de circulação de documentos e informação entre o governo sediado no Rio e a regência em Lisboa passava pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, onde estava d. Rodrigo. Na posição-chave de representante português em Londres, Domingos de Sousa Coutinho também colaborou para formar o novo governo regencial, cujas secretarias em Portugal eram subordinadas ao Brasil.175 Entre os “tigres do Rossio” – como eram chamados os regentes por trabalharem no palácio daquela praça – o Principal Sousa atuava para diminuir o poder de outros agentes no governo de Lisboa. Suas tendências centralistas em princípio coadunavam-se com os interesses britânicos. Mas em 1811 a campanha
172 Seria excessivo detalhar a instituição do morgadio em Portugal e o caso da linhagem dos Almeidas Portugal, com remissões às Ordenações filipinas e à reformulação em 1770 no reinado josefino. Ver MONTEIRO, 2003 [1998], p. 231-232 e 346-347; MONTEIRO, 2003, p. 93-97; e MONTEIRO, 2006, p. 186. 173 ANTT, CFA, caixa 171 (documentos não numerados). 174 NEVES, 2008, p. 111, 188, 234. 175 MARTINS, 2007, p. XVII, 54-80.
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movida pelos Sousas Coutinho resultou na retirada de Stuart do governo, e após o fim da guerra na península ibérica houve dificuldade para reduzir os poderes do marechal Beresford no comando do exército português. Na memória escrita por Ricardo Nogueira, percebe-se a dinâmica das reuniões, quando os trabalhos fora do palácio eram frequentes.176 Embora o governo de Lisboa dependesse cada vez mais do Rio de Janeiro, Domingos de Sousa Coutinho submetia aos governadores no reino assuntos fora de sua alçada, pois eram da jurisdição do príncipe regente. Em 1814 o reagrupamento das forças aliadas e a abdicação de Napoleão geraram atos diplomáticos dos governadores em desacordo com seus limitados poderes.177 Conforme Ana Canas Martins, a série de 180 cartas oficiosas e privadas do Principal Sousa a d. João, escritas entre agosto de 1810 e agosto de 1817, revela uma comunicação paralela entre Lisboa e Rio de Janeiro. Nessas, Sousa expressou opiniões em memorandos e interveio a favor de pessoas, mesmo se os requerimentos eram transmitidos oficialmente e discutidos com os demais governadores. O governador também informou d. João sobre a guerra – anexando cópias de cartas de militares por ele recebidas – e escreveu aos secretários de Estado, sobretudo ao irmão Rodrigo de Sousa Coutinho, de forma particular ou oficiosa, pois algumas missivas eram também mostradas ao príncipe regente e depois rei.178 O parentesco facilitava a produção de correspondência particular mesclada a registros oficiais, em meio aos cargos exercidos pelo remetente ou destinatário, como ocorria com os Sousas Coutinho. Nos documentos hoje pertencentes à coleção Linhares na BNB, há um copiador de ordens com cópias de ofícios e despachos
176 Ibidem, p. 80-93, 101-102 e 160. Segundo Nogueira, o Principal Sousa era um maníaco. Desejava o bem público, mas agia com precipitação e falta de tino, sendo grosseiro e incauto na fala, conservando inimizades de família e devendo passar para o Rio de Janeiro o que ocorria no governo. ARAÚJO, Ana Cristina (org.). Ricardo Raimundo Nogueira. Memórias políticas: memória das coisas mais notáveis que se trataram nas conferências do governo (1810-1820). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p. 72. 177 Como vimos pelas cartas de Leonor, após a morte do conde de Linhares em 1812 Domingos de Sousa Coutinho quase o substituiu na pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Mas após assinar sem permissão régia o tratado de Paris de 30/05/1814, foi afastado das negociações do congresso de Viena. MARTINS, 2007, p. 96- 97 e 112. 178 A historiadora e arquivista refere-se aos livros secretos de cartas do Principal Sousa para o príncipe regente entre 1810 e 1817, do arquivo da família Linhares, cujo microfilme integrava a Filmoteca Ultramarina Portuguesa no Instituto de Investigação Científica Tropical, em Lisboa. Conforme Canas Martins, há rascunhos dessas cartas de 1815 no IHGB. Alguns originais de 1810 foram arquivados no ANTT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, caixa 12, maço 6. Outros estão no ANB, Rio de Janeiro, na coleção Gabinete de d. João VI. Nessa correspondência, alguns assuntos referem-se a modos de governar, membros do governo ou com peso político (por exemplo Beresford e suas competências após o fim da guerra) ou ao estado de instituições administrativas, agricultura, comércio e fazenda de Portugal. Assim o Principal Sousa informava ao monarca sua opinião. Mas em outras circunstâncias escondia documentos dos outros regentes em Lisboa. Por exemplo, ao examinar a documentação francesa encontrada na casa do conde da Caparica, outrora residência do cônsul francês, o Principal Sousa separou um documento e sem conhecimento dos outros regentes entregou-o a um alto funcionário subordinado a d. João. MARTINS, 2007, p. 192 e 255.
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enviados, além dos ofícios recebidos. Como vimos no Capítulo 1, esses exemplares foram obtidos pelo governo brasileiro no leilão realizado em 1895 da livraria dos condes de Linhares, no palácio da calçada de Arroios em Lisboa.179 Em Portugal vivia-se um ambiente de improviso no governo, acentuado em virtude de o centro do poder encontrar-se no Rio de Janeiro. Em Lisboa, as rivalidades e interesses particulares despontavam com rudeza. Alguns militares que regressaram a Portugal após servir no exército napoleônico eram maçons. Foram denunciados, presos e julgados sumariamente em 1817 pelo governo regencial. O general Gomes Freire de Andrade, amigo de Pedro de Almeida na Légion Portugaise, tornou-se grão-mestre da maçonaria em 1816, sendo sentenciado à morte com mais 11 supostos conspiradores. Nesse tempo os regentes eram apenas o Principal Sousa e o marquês de Borba (antigo conde de Redondo), auxiliados por dois secretários. Ambos apresentavam problemas de saúde e José António de Sousa Coutinho morreu em outubro de 1817.180 As bibliotecas particulares, sobretudo de alguns nobres e emigrados com a corte, não foram poupadas, com a feitura de inventários e sequestros. No ANTT encontra-se a documentação referente ao Juízo da Inconfidência, com o confisco de bens dos acusados de traição. Por exemplo, os documentos apreendidos ao 2o conde da Ega destinavam-se a averiguar e punir o notório partidário da França napoleônica, depois perdoado.181 Contudo, Pedro José de Almeida Portugal foi sentenciado em 1810182 e morreu no início de 1813. Em 1818 fez-se uma lista dos livros apreendidos ao ex-marquês de Alorna e avaliados para ingresso na Real Biblioteca Pública, futura BNP. Em fevereiro de 1819 duas listas foram remetidas a d. João VI, pois a coroa venderia os livros que já possuísse.183 A lista de 420 fólios compreende 3.650 volumes e 1.590
179 Segundo a autora, ao menos dois ramos da família Sousa Coutinho em Cascais e Lisboa guardavam documentos privados dos séculos XVIII e XIX. Os de Lisboa foram adquiridos pelo ANTT em 2002. MARTINS, op. cit., p. 234-237. Ver também MORENO, op. cit. 180 PEDREIRA; COSTA, op. cit., p. 338-339; e MARTINS, 2007, p. 108-110. 181 MARTINS, 2007, p. 290-307; e NEVES, 2008, p. 192-193. 182 Em dezembro de 1810 concluiu-se a sentença no Juízo da Inconfidência, aprovada pelo príncipe regente em fevereiro de 1811. Mas em abril deste ano suspeitou-se no Rio de Janeiro que uma conjura tramava tirar o Principal Sousa do governo e – entre outras iniciativas – entregar a marquesa de Alorna a seu marido. ARAÚJO, 2012, p. 110, 117 e 129. 183 Os livros duplicados foram vendidos em setembro do mesmo ano. ANTT, caixa 132 (documentos não numerados). Notícia da venda, e Rematação dos Livros pertencentes a Caza Confiscada do Ex Marquez d’Alorna, pelo Doutor Joze Antonio da Silva Pedroza.
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títulos, detalhados e incluindo os manuscritos – diferente do inventário produzido outrora para a livraria do avô 1o marquês de Alorna, já referido. Mas é possível reconhecer a presença de uma biblioteca na outra, pelos títulos, formatos e datas das edições.184 A partir do verso da página 85, discriminam-se de modo seleto os livros que entrariam na Real Biblioteca Pública. Entre impressos e manuscritos, ao lado de muitos títulos sobre o contexto da Guerra de Sucessão da Espanha, clássicos latinos, autores da política moderna e livros de viagens, há um tomo dos diários produzidos pelo 2o conde de Assumar João de Almeida Portugal – como vimos no início do capítulo – e vários outros códices atualmente na BNP.185 Mas não há qualquer menção neste inventário ao Discurso historico, e político sobre a soblevação, que nas Minas houve no anno de 1720, com este título ou outro similar. Apesar da continuidade da investigação sempre permitir o surgimento de novas pistas, foram aqui levantadas fortes evidências sobre o transporte, anos antes, deste códice – junto a outros manuscritos referidos no Capítulo 1 – da livraria do 3o marquês de Alorna (provavelmente situada em Almeirim) para o paço de Arroios do conde de Linhares, como apontou Leonor de Almeida em seu rascunho, consciente da disparidade vivida nessas relações de força. O ato ilícito dificilmente seria explicitado na correspondência do Principal Sousa, membro mais proeminente da família Sousa Coutinho em Lisboa na altura, governante do reino e responsável pela administração de sua casa nobre na ausência de D. Rodrigo e na juventude do 2o conde de Linhares Vitório de Sousa Coutinho, então no Brasil. Provavelmente, o translado escondido dos manuscritos ocorreu entre setembro de 1810 – quando Pedro José de Almeida foi declarado traidor de Portugal – e julho de 1814, quando a condessa de Oyenhausen retornava ao reino. Como vimos, em 1825 o texto central do Discurso já era copiado na livraria da casa de Linhares, possivelmente visando ao seu transporte para o Brasil. Em 1820, a revolução traria d. João VI de volta a Portugal no ano seguinte. Desde o seu retorno ao reino luso, Leonor de Almeida dedicou-se a reabilitar a memória do 3o marquês de Alorna, conseguindo em 1823 a revisão da sentença e
184 ANTT, JIA, A, livro 506, maço 1, nº 1; e CUNHA; MONTEIRO, op. cit., p. 233. 185 O título escrito é: Carlos Terceiro. Continuação do Diario, e de tudo que vay sucedendo na Expedição da Hespanha, e das mais partes desta Monarquia em folio hum volume, avaliado em trezentos réis. ANTT, JIA, A, livro 506, maço 1, nº 1, p. 389.
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a renovação para si dos títulos de 4a marquesa de Alorna e de condessa de Assumar. Ocupou então um lugar central na vida cultural portuguesa à época, como mediadora de poetas de várias idades.186 * Procurou-se demonstrar neste capítulo o relevo da cultura escrita e artística como aspecto componente do ethos desta casa nobre, ao longo de gerações. Além das terras com ou sem jurisdição, dos serviços militares e na corte, dos postos em praças ultramarinas e das comendas renovadas ou não, a verve fidalga e grande dos Assumares/Alornas parece identificar-se com um perfil letrado e bélico que assumiu diferentes faces desde o início do século XVIII, no que respeita a sua produção: 1) confecção de manuscritos como memórias de eventos e conflitos de base histórica e política, atuando como signos de distinção social e com circulação restrita ao âmbito familiar; 2) patrocínio de edições impressas com rápida difusão para propagandear feitos culturais, políticos e militares ocorridos em lugares distantes (Espanha, Índia), amplificando a reputação de seus membros por serviços prestados à coroa; 3) afã erudito e colecionista, no meio acadêmico vivido com forte aporte eclesiástico; 4) defesa expressa em manuscritos anônimos ante as vicissitudes vividas por elementos da casa; 5) apontamentos de ordem militar e/ou de governo visando instruir a outrem; 6) intensa correspondência epistolar para além do meio institucional; 7) por fim, produção lírica qualificada no tempo mais permeável à expressão secular feminina. A falta de estudos comparados prejudica a visão de conjunto e dificulta o posicionamento do grupo de elite – considerado aqui de modo diacrônico em termos de produção cultural – em face de seus congêneres setecentistas. Casas nobres como a de Ericeira são mais notáveis sob o prisma letrado e inovador, com um desempenho mais bem percebido pela historiografia. Contudo, o objeto desta investigação não é a história de uma linhagem de fidalgos, tampouco a dinâmica de longa duração
186 ANASTÁCIO, 2007a, p. 44. A 4a marquesa de Alorna recebeu a renovação do título, mas não os bens da coroa e ordens administrados pelo irmão e seus ascendentes. A única comenda que Alcipe possuía já era administrada por ela. MONTEIRO, 2003 [1998], p. 324-325. Seu neto José Trazimundo Mascarenhas (1802-1881), 7o marquês da Fronteira, editou em 1861 suas próprias memórias em cinco volumes, nas quais a avó é personagem assídua.
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envolvendo comportamentos de grupos nobiliárquicos destacados – entre si e ante a coroa – e sim um ou dois manuscritos elaborados para um membro da alta nobreza da corte. Nesse âmbito, a percepção de ações de patronato, circulações restritas e apreço à cultura escrita problematiza e enriquece a questão da autoria dos textos em tela, ao mesmo tempo que os aproxima – mediante o entendimento de suas dinâmicas de produção – da práxis tradicional de um coletivo, própria de sociedades do Antigo Regime. Por isso a trajetória do Discurso, de Minas a Portugal e de volta a Minas entre os anos de 1720 e o fim do século XIX, faz mais sentido nesse contexto, em meio aos movimentos de relativos declínio e ascensão de dois grupos nobres no âmbito da monarquia portuguesa. Entretanto, os dois manuscritos sobre a sublevação em Vila Rica não apresentam remissões à linhagem dos Almeidas Portugal por feitos antepassados, e o Discurso historico, e político menciona apenas duas vezes a atuação pregressa de Pedro Miguel de Almeida Portugal na Guerra de Sucessão da Espanha – diferentemente do teor do discurso de posse por ele proferido em São Paulo em 1717, como vimos. Vamos adentrar então no texto do Discurso, a fim de obter, por este, mais informações.
Capítulo 3
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Pedro Miguel de Almeida Portugal, seus pais, o irmão Francisco, o filho João e os netos Leonor, Maria Rita e Pedro José – além dos respectivos consortes, parentes colaterais e descendentes – foram promotores, autores, colecionadores e/ ou apreciadores de manuscritos e impressos de vária ordem. De 1721 até o segundo decênio do Oitocentos, eles foram também possíveis leitores do Discurso, mesmo com atribuladas trajetórias envolvendo doenças e falecimentos, uma estada no Oriente, longos encarceramentos e reclusões, exílio e campanhas no estrangeiro. Apesar do pouco manuseio conforme o exame material feito, segundo Alcipe em 1814 o precioso manuscrito despertou interesse na casa nobre de Linhares, sendo copiado depois por um profissional experiente. Cobiçado ao fim daquele século pelo governo de Minas Gerais, seu escrito principal – publicado em jornal, mas sobretudo em livro – tornou-se um vivo relato da Revolta de Vila Rica em 1720, então compreendida por chave nativista e republicana. Apesar do estilo “barroco”, impresso e lido a contrapelo o escrito central do texto podia denunciar o despotismo português personificado no conde de Assumar, em contraposição ao herói Filipe dos Santos ou ao colono Pascoal da Silva Guimarães – além de suscitar várias outras leituras. No fim do século XX, uma reedição ampliaria o papel deste conteúdo na historiografia sobre Minas e a América portuguesa, sendo considerado sobretudo pelo prisma político ou pela concepção de natureza acerca da região, adquirindo grande repercussão acadêmica.
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Por sua vez, o manuscrito da Noticia tendeu a ser consultado por círculos seletos desde a sua elaboração, mantendo-se com leitura restrita – embora com circulação mais ampla que o Discurso – até ser comprado por Alberto Lamego, quando possivelmente foi encadernado. Parafraseado pelo colecionador em jornais em 1929, passou a ser mencionado por amigos historiadores. Como vimos, ingressou em 1935 na Universidade de São Paulo, em arquivos frequentados por pesquisadores vários. Somos assim leitores do Discurso em diferentes tempos. Nossas leituras querem dizer de nós mesmos, de nossa “biblioteca interior” – conforme Antonio Castillo Gómez, pois o ritmo traçado pelas letras mobiliza ânimos e vontades na apropriação leitora. Do outro lado está o livro, espelho no qual as almas se enfrentam.1 Livro e leitura assumem um papel cardeal na construção narrativa de vidas ricas em conteúdos, restritas a cânones, dispersas, prazerosas ou tendo o escrito como reflexo de perfeição e virtude. Na escrita, presenças e ausências, citações e omissões indicam maneiras distintas de perscrutar não somente autores, mas também leitores e receptores das obras, conhecendo suas noções de ética, estética, comportamento social e costumes.2 Além de constituírem objetos de posse ou coleção, os livros fazem mais sentido ao serem lidos, pois seus textos são elaborados sob essa expectativa. Ao encontrar um leitor, os signos quase invisíveis na página ganham vida e despertam de sua aparente mudez, acrescidos do papel exercido pelas formas materiais.3 Um processo complexo, delineado pela consideração de diferentes modos de leitura e conjuntos de leitores. Se esses conferem sentido aos livros, os discursos escritos podem ser como negativos de fotografias, ao interrogar-se que tipos de leitura teriam sido feitos – algo incerto, pois nem sempre há pistas sobre as
1 CASTILLO GÓMEZ, Antonio. Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro. Tradução de Claudio Giordano. Cotia: Ateliê Editorial, 2014, p. 197-198. 2 Ibidem, p. 205-206. A recepção também inventa, desloca, distorce. Um texto só existe se houver um leitor dando-lhe significado. Daí a atenção prestada à maneira pela qual ocorre o encontro entre os mundos do texto e do leitor (retomando os termos de Ricoeur), pois a leitura não é apenas uma operação abstrata intelectual, mas também engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros, cf. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary Del Priore. Brasília: EdUnB, 1999 [1994], p. 9-16. 3 CASTILLO GÓMEZ, 2014, p. 16-17. Vale lembrar a designação dos objetos de uma coleção como semióforos, intermediários entre o mundo visível dos vivos e o invisível dos mortos e antepassados. POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi v. 1: memória-história. Tradução de Suzana Ferreira Borges. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 51-86.
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experiências de apropriação e construção de sentido por cada leitor. Na falta de vestígios individuais, pode-se tentar reconstituir situações, maneiras e gestos que norteariam a relação com os textos, buscando elucidar os motivos de sua produção e as circunstâncias de alguns momentos de leitura.4 Uma atividade cooperativa leva o destinatário a tirar do texto o que ele não diz, mas pressupõe, preenchendo espaços vazios. Esses movimentos produzem a fruição textual, requisitando do leitor a análise dos significantes pertinentes a fim de dar-lhes sentido. Conforme Umberto Eco, essa pragmática pode ser entendida como o efeito dos signos nos destinatários. Um texto narrativo constitui uma série de atos linguísticos que “fingem” ser asserções atuando sobre as personagens em jogo, sem necessidade de crédito ou prova – uma cadeia de artifícios expressivos a serem atualizados pelo destinatário/leitor, que deve possuir uma competência gramatical. Mas a competência do destinatário não é necessariamente a mesma do emitente.5 No caso da elaboração do Discurso, seus autores deviam prever um leitor capaz de cooperar na atualização textual pensada, pois gerar um texto significa traçar uma estratégia compreendendo as previsões dos movimentos alheios. Não raro, num texto anônimo, emitente e destinatário são gramaticalmente expressos na mensagem. Mas também o leitor empírico de outro tempo, como sujeito dos atos de cooperação, pode deduzir do texto uma hipótese de autor. Por isso ele possui deveres “filológicos”, devendo recuperar com a máxima aproximação possível os códigos do emitente. Se o texto executa um trajeto mais amplo e circula publicamente, será preciso vê-lo em novas situações comunicativas, proporcionando frequentemente juízos ideológicos – quando se aborda o texto partindo de uma perspectiva relacionada à própria competência. Nesses casos o leitor magnifica algum tema ou topos e
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CASTILLO GÓMEZ, 2014, p. 21, 50 e 101-103.
5 Para essas reflexões, cf. ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. Tradução de Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2019 [1979], p. 35-83.
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adormece outros. Vê-se assim a hipocodificação do Discurso como peça de defesa política na historiografia brasileira, em sequência a suas edições.6 Mas não se pode esconder o peso das circunstâncias de enunciação. A identificação do autor depende de traços textuais, evidenciando o universo atrás do texto, do destinatário e o processo cooperativo de sua leitura. Desse modo um texto seria um sistema de nós ou juntas, em que alguns – como palavras, rimas, a literariedade e os exotismos – estimulam a cooperação do leitor modelo, fazendo conexões. Para atualizar as estruturas discursivas, o leitor confronta a manifestação linear com os códigos e subcódigos fornecidos pela língua em que o texto foi escrito, por sua própria competência enciclopédica relacionada àquela língua. Em casos de hipercodificação estilística, ele pode decodificar expressões registradas pela tradição retórica, reconhecendo figuras e sintagmas, pois nenhum texto é lido independentemente da experiência do leitor com outros textos.7 Em posse da linhagem dos Almeidas Portugal durante largo tempo e com um formato que sugere o seu uso particular, não se sabe como o Discurso foi lido desde 1721. Em primeiro lugar, o texto teria especial apelo ao próprio Pedro Miguel de Almeida. Apesar de sua relativa erudição, ele não era propriamente douto nas belas-letras – convém relativizar a opinião construída nos círculos literários então em voga visando enaltecer sua casa nobre, depois reproduzida na bibliografia. Sua escrita é bem diversa da encontrada neste manuscrito. Nada indica que ele aos 32 anos – vindo de uma longa guerra na Europa e no fim de um governo ultramarino difícil – dominasse preceptivas retóricas e poéticas. Por outro lado, pela mão de seu secretário escrevia cartas incessantemente e era capaz de admirar um belo texto, que conjugava os fatos ocorridos com o louvor de sua atuação e com paralelos históricos, engenhos poéticos, remissões a autoridades e ideias ousadas. Em seguida, a condessa Maria de Lencastre e os filhos – sobretudo o primogênito varão sobrevivente João de Almeida, nascido em 1726 – teriam o 3º conde de As-
6 Ibidem, p. 151-161. A hipocodificação é uma codificação imprecisa, uma abdução que resume uma ou mais porções de textos sob uma etiqueta comum, provisoriamente admitida como unidade pertinente de um código em formação. Essas apreensões parciais são vagas, mas efetivas de conteúdo, ainda que as regras que permitem a análise articulada dessas porções expressivas permaneçam ignoradas. ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. Tradução de Antônio de Pádua e Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2002 [1976], p. 123. 7 ECO, 2019 [1979], p. 70-74. Hansen e Moreira observam as competências leitoras conforme o conhecimento ou não de técnicas retóricas e poéticas empregadas pelo poeta e reconhecidas pela recepção, em práticas letradas no mundo ibérico nos séculos XVI e XVII. Cf. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 229 e 359.
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sumar como exemplo de ação política e virtude. Podiam assim deleitar-se com o livro de mão que relatava os feitos do marido e depois pai na terra exótica e hostil, justificando ante os próximos medidas intempestivas e delicadas ao juízo da coroa. Também não sabemos se Leonor – afilhada do 1o marquês de Alorna – ou Maria Rita e Pedro José tiveram contato direto com o códice, nele reparando os artifícios já criticados no fim do Setecentos.8 Em relação aos condes de Linhares e sua casa, a cópia realizada e o catálogo de sua livraria impresso para o leilão evidenciam o interesse geopolítico e também histórico despertado pelas Minas, devido aos planos de governo envolvendo o Brasil e o passado familiar ali expresso em propriedades. No fim do século XIX, devido a dificuldades financeiras e alterações no modo de vida nobiliárquico português, esse apreço aparentemente esmaeceu-se. E pelo impacto das edições de 1898 e 1994, várias apreensões bibliográficas foram cotejadas no Capítulo 1. Embora esta interpretação coteje as diferentes modalidades de leitura realizadas sobre manuscritos e impressos ao longo do tempo, seu cerne encontra-se no destaque à casa de Assumar e Alorna.9 Longe de ser uma leitura livre ou isenta, neste capítulo se inicia um exercício de contextualização intelectual em relação aos âmbitos de produção e recepção do Discurso no século XVIII, considerando a materialidade do códice e sua finalidade. A investigação apresenta-se como um empenho de análise dos aspectos textuais do manuscrito. Será preciso antes descrevê-lo sumariamente e atualizar sua linguagem para facilitar a compreensão, mas buscando – paradoxalmente, numa espécie de anacronismo consciente – captar como o códice matricial poderia ter sido lido após sua elaboração.10 Pode-se então
8 Sobre a leitura em voz alta ou silenciosa em Portugal, cf. LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. A cultura escrita nos espaços privados. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 334-366. 9 Uma interpretação confere sentido a amplas porções de discurso com base em decodificações parciais. Logicamente, ela é também uma inferência. ECO, 2002 [1976], p. 118. 10 Para Ricoeur a hermenêutica visa apropriar-se do que antes era estranho, pois a interpretação quer assimilar, tornar coevo. Consegue-se este objetivo ao atualizar a significação do texto para o leitor presente. RICOEUR, 2013 [1975], p. 128. Conforme John Pocock, o historiador explica as linguagens de outrora, mas não deve se expressar como elas; negar esse anacronismo inerente a essa ação seria algo ingênuo. POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. Tradução de Fábio Fernandez. São Paulo: Edusp, 2003, p. 34.
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começar a perceber vestígios de seus autores e destinatários no modo de organizar o discurso e mediante as inferências intertextuais ali presentes.11
Leitura distinta O Discurso historico, e político sobre a soblevação, que nas Minas houve no anno de 1720 apresenta uma primeira página diversa das folhas de rosto de manuscritos e impressos feitos para circular.12 Após o título, inicia com a frase “Varios tem sido os motins, e soblevaçoe’s, que em diversos tempos houve nas Minas, Mas nenhūa de tam perniciozas consequencias, e tanto para temer, como a presente do anno de mil, e setecentos e vinte” – conforme a Figura 5 no Capítulo 1. Sua primeira nota é uma citação de Salústio sobre a conjuração de Catilina, ressaltando em latim o fato memorável pela excepcionalidade do delito e do castigo. O autor coloca-se logo na primeira pessoa do singular: “darey primeyro hua’ breve noticia das Minas, e seus Moradores”, aludindo a uma confusão dos mineiros desde 1719, ao chamarem motim o que era rebelião, com nota da mesma obra de Salústio margeando o argumento. Desponta então o famoso trecho sobre os fenômenos naturais das Minas, ladeado pelo cartaginês Tertuliano em sua advertência a Marcião, Ovídio em Metamorfoses e por Gabriel Pereira de Castro em Ulisseia.13 Um pequeno verso e um trecho em prosa reforçam o elo entre trabalho minerador e natureza intempestiva, propiciando a eloquente reflexão com uma máxima de Focílides, além de Tibulo e Ovídio (Metamorfoses) em notas: Sendo assim necessariamente hemos de confessar, que os motins sō naturaes das Minas, e que hé propriedade, e virtude do ouro tornar inquietos e bulliciozos os
11 CASTILLO GÓMEZ, 2014, p. 186-187. A descrição seguinte é diversa do laborioso resumo de CAMPOS, op. cit., p. 218-231. Embora reconheça a pujança do texto (“A força do texto do Discurso histórico é tamanha que é difícil não se deixar levar pela retórica barroca de seus autores”), pela reedição de 1994 a historiadora restringe sua narrativa ao relato factual, sobretudo da primeira parte, confrontando os eventos nas notas de rodapé da tese com a correspondência administrativa e alguma bibliografia. Elimina assim alegorias, paralelos e remissões intertextuais presentes, mesmo na mancha gráfica central. Segundo Campos, os autores do Discurso visavam justificar a punição do motim (sobretudo do suplício de Filipe dos Santos) ante juristas e letrados, a cúpula da Igreja e os habitantes das Minas. Para tal vale-se sobretudo das leituras do estudo crítico de Mello e Souza e de minha tese de doutorado. Citação em CAMPOS, op. cit., p. 218. 12 HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 150. 13 APM, AVC-17, f. 1r-2v (citações em f. 1r e 1v). Como veremos no Capítulo 5, há metáforas inspiradas na alquimia neste trecho e em outros do Discurso.
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animos dos que habitam as terras, onde elle se cria. Pelo menos eu acho, que depois, que se principiou a tirar ouro, se viram as primeyras duvidas; e contendas no mundo: retirou-se a justiça para o Ceo, e produzio a terra gigantes, e poderozos, que atrevidos, rebeldes, e insolentes intentaram levantar-se contra o seu soberano.14
Sucede-se um longo parágrafo sobre a conquista da Hispânia no tempo de Augusto por meio de Lúcio Floro em notas, e volta-se a mencionar a natureza singular das Minas, cujo ouro oculta fezes e males, dos quais saem da terra vapores e fumaças que corrompem o ar, penetrando por olhos, narizes e boca, “e outros poros até o mais interior”, introduzindo consigo as más qualidades, como venenos nos indivíduos – citações de Ovídio (Metamorfoses), Tibulo, Focílides e Heliodoro ladeiam o argumento. Por Pausânias, Plínio o velho e Cícero (Sobre a adivinhação), menciona-se o oráculo de Delfos no texto central. Se a “Sybilla Delphica” profetiza a violência, a força oculta da terra também propicia os motins mineiros.15 A primeira pessoa do singular volta a ser empregada na reflexão sobre os grandes nas Minas, “folhetas, ou estatuas de ouro” que “fazem estrondos, excitam tumultos, movem bulhas, formam motins, solicitam liberdades”. Por eles atuaria o Diabo, “pelas bocas das suas catas, como por bocas de inferno” – inferno vizinho ao ouro, segundo Ovídio.16 Sem querer pôr “nada de minha caza”, no Discurso se escreve “o que achar escrito nos Authores”, parecendo que eles falam dos mineiros.17 Lúcio Floro retorna para tratar da fundação de Roma, acolhendo rústicos, ladrões e malfeitores. Minas também foi formada por homens brutos e facinorosos, paulistas, portugueses ou de muitas nações, viciosos como os romanos segundo Paulo de Tarso.18 Trata-se assim dos mineiros vis que receberam cargos de coronéis, mestres de campo e brigadeiros, à maneira de Adão, vestido com peles após pecar. As notas mais uma vez são de Tertuliano, de uma epístola de Sêneca e de um verso de Ovídio em Amores (alterando-se o significante). Para descrever os poderosos das Minas seria necessário – conforme o texto – levantar os olhos e ver como Luciano
14 Ibidem, f. 3r. O sublinhado é meu. 15 Ibidem, f. 5v. 16 Ibidem, f. 5v-6v. 17 Ibidem, f. 6v. 18 Ibidem, f. 7r-8r.
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de Samósata referiu o templo da deusa Síria, cuja estátua parecia também ser Juno, Palas, Vênus ou a Lua, Reia, Diana, Nêmesis e as parcas, portando o fuso e a balança numa mão, noutra o cetro e a lança, na cabeça o fogo e os raios, e no peito o cinto de Vênus. Comenta-se: “Isto que em Syria podia ser falso, hé verdadeyro nas Minas”.19 A história, como para o satirista, estava a serviço de uma argumentação. Segue o trecho que despertou a atenção de Gilberto Freyre, sobre a excessiva distribuição de patentes militares entre os mineiros e o desprezo expresso pelos juízes,20 com notas de Tomás de Aquino, um epigrama do teólogo puritano inglês John Owen (por meio de Nicolas Caussin) e um verso da Eneida de Virgílio. Nova epístola de Sêneca é mencionada em nota, bem como as Metamorfoses de Ovídio no texto central, para caracterizar a sociedade às avessas e fora do lugar. Há depois outra remissão aos oráculos, desta vez em Roma, mostrando confusão entre as consultas e respostas dos deuses, com nota ainda não localizada. Sucede-se a elocução contundente, dirigida em tom imperativo ao rei: Se Sua Magestade quer, que as suas Minas nam andem sempre tao’ confuzas, tam perturbadas, faça que nellas se restituāo os Mineyros à seu lugar, mande que quantos se acham hoje introduzidos, ainda que bem á sua custa, nesta republica, vá cada hum tratar de seu officio.21
Para o Discurso, as mãos calejadas no remo e no martelo não eram para mandar, devendo-se respeitar na “republica” os ofícios originais de cada um. Essa situação contagiou as Minas e outras praças do Brasil. O comentário em nota valeu-se de Cícero (Discurso contra Pisão) sobre a honra alcançada pelo erro dos homens, e da máxima de Focílides.22 Associa-se novamente a condição dos mineiros ao clima das Minas como causa dos motins, “onde a natureza inclina a tumultos, e persuade desordens”. Mas como na revolta de 1720 os “cabeças” procuraram
19 Ibidem, f. 9v-10r. 20 A passagem foi citada no Capítulo 1. FREYRE, op. cit., v. 1, p. 278. A militarização dos membros da câmara de Vila Rica é própria do período, cf. REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A câmara municipal de Vila Rica e a consolidação das elites locais, 1711-1736. 2015. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 205. Por outro lado, o antagonismo com magistrados locais é expresso em alguns trechos do manuscrito – que destaca as origens simples de seus membros para essas duas formas de distinção social. 21 JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução de Isidoro Bilkstein e José Paulo Dias. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 125; APM, AVC-17, f. 12v. 22 APM, AVC-17, f. 12v-13r.
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“affecttar pretextos, quero mostrar a todos as causas, e fazer publico o seu fim” (uso da primeira pessoa) para “qualquer outro, que ouça, ou lea esta noticia” (alusão à leitura em voz alta em função conativa) o “horror” com a lealdade portuguesa. Entende-se ser lícito aborrecer com boa teologia os “authores desta soblevaçam”. Uma elegia de Ovídio em Amores é citada, com nova alteração do significante.23 Em seguida menciona-se a frota de 1719 trazendo os dragões, a nova lei sobre a cobrança do quinto, a ordem para dispensar os oficiais de ordenança e o reconhecimento régio da expulsão dos religiosos. As notícias foram recebidas com desgosto, provocando alterações na “republica” das Minas, “inquieta por natureza”, podendo ocorrer uma sublevação geral. Pascoal da Silva Guimarães começou a maquinar sua vingança. Notas de Virgílio e Camões ladeiam o relato.24 Após um parágrafo redigido na primeira pessoa, sobre a difícil arrecadação do quinto nas Minas, o Discurso exemplifica com os hebreus, insubmissos ao poder divino, como os brutos mineiros. Nas notas há um provérbio de Nero sobre a vontade maior que a razão, um verso de Ovídio em Arte amatória e um dito atribuído a Sêneca. Por esse prisma, a lei das casas de fundição encobria o atrevimento dos rebeldes, expondo o conde a perigos. Segundo nota da Eneida, os derrotados não teriam tanta soberba. A metáfora de ímpeto e recolhimento é expressa na imagem do mar em fúria e igualado nas ondas. Recorda-se o motim do Maneta na Bahia, em seguida conta-se a trajetória de Pascoal da Silva, para que “nesta rellaçam appareça descuberta a sua figura”. Reinol nascido em Guimarães, no Rio de Janeiro trabalhou como caixeiro, tendo aprendido esse ofício com o fluminense Francisco do Amaral Gurgel – no entanto elogiado em nota pelas décadas de Tito Lívio por sua habilidade e humanidade – e tendo se estabelecido nas Minas.25 Mas Pascoal da 23 Ibidem, f. 13r-13v. O sublinhado é meu. 24 Ibidem, f. 15r-15v. 25 A menção pode referir-se ao lucrativo contrato para abastecer de carne a região, de 1701 a 1707 nas mãos de Francisco do Amaral Gurgel (depois capitão-mor), em Paraty ou nas Minas aliado a Pascoal da Silva, Manoel Nunes Viana e outros; e também à promoção a sargento-mor de Pascoal da Silva no governo de Fernando de Lencastre no Rio de Janeiro (1705-1709), favorecendo o grupo emboaba nas Minas. ROMEIRO, 2008, p. 132-144. Após mais de um ano preso em Portugal, o rico e controverso Amaral Gurgel emprestou dinheiro a Pedro de Almeida na vinda para o governo de São Paulo e Minas, como se lê no testamento de seu pai, 2o conde de Assumar. Em 1717 o genro de Amaral Gurgel liderou a comitiva de Pedro de Almeida da fazenda de Santa Cruz até Paraty, onde com sua esposa (filha mulata de Amaral Gurgel) ofereceu um banquete ao novo governador de São Paulo e Minas. Assim entende-se melhor a nota marginal do AVC-17. TÁVORA; COBRA, op. cit., p. 198-200; PEREIRA, 2016, p. 153-154; e SANTOS, Douglas Corrêa de Paulo. Os Amaral Gurgel: família, poder e violência na América portuguesa (c.1600-c.1725). 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017, p. 155-165 e 218-222.
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Silva era armado de “hua’ affectada modestia, brandura, e cavillaçam, manha, e docilidade, poucas palavras, e sempre submissas, com apparentes, e externos vizos de obediencia”.26 Enriqueceu como poderoso local, pelos muitos escravos e pelo cabedal “que lhe dourava a villesa da condiçam”, sendo “officiozo, e malevolo, modesto, e refolhado, brando, e vingativo”, mestre dos disfarces ao reconciliar-se com os inimigos, a quem depois buscava danar, como na sublevação para expulsar o conde do governo.27 Segundo o Discurso, quando o conde festejava em 17 de abril de 1720 o aniversário da condessa (veja-se o apelo familiar na narrativa),28 Pascoal da Silva ofereceu-se para ajudar, convidando uns e outros para “examinar os animos, e fazer de seu partido os que achasse desgostozos, e menos affeiçoados”. No palácio teria ofertado uma arroba de ouro a um homem para trair o conde. O intento foi comparado a veneno, recebendo uma nota de Ovídio em Amores, cuja tradução seria: “Sob o doce mel escondem-se piores venenos”. Na página seguinte arremata-se o juízo com trecho do soneto de Sá de Miranda: “Este retrato vosso hé só sinal Ao longe do que sois” (ficando a dúvida se o sentido se refere à ausência da esposa de Pedro Miguel, conforme o poema de amor quinhentista, ou ao ardil do poderoso minerador e comerciante).29 Temeroso que o ouvidor da comarca de Ouro Preto, Martinho Vieira, o implicasse, Pascoal da Silva planejou a sublevação para matá-lo e expulsar o conde e demais ministros, “ficando reduzido o estado a hua’ republica de vinte, e quatro, e seu Doge”.30 Os rebeldes teriam acordado que cada um ficaria com 300 “negros” pagos pelo povo (generalização para referir tropas de escravizados de origem afro, possivelmente incluindo mestiços e talvez índios). O fato foi ornado com sátira de
26 APM, AVC-17, f. 20r. 27 Ibidem, f. 20v-21r. Na região desde 1707, o sargento-mor e depois mestre de campo Pascoal da Silva integrou a primeira comissão eleitoral camarária na fundação de Vila Rica em 1711, sendo juiz ordinário em 1719 e interferindo na câmara através de seu filho João da Silva, juiz ordinário em 1719 e 1720. REZENDE, 2015, p. 139, 156-157. Em janeiro de 1718 foi provido no governo de Vila Rica e seu termo pelo governador Pedro de Almeida. MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. Jogos de interesses e estratégias de ação no contexto da revolta mineira de Vila Rica, c.1709-c.1736. 2005. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 134. 28 Sobre a ausência da condessa, cf. CARVALHO, 1933, p. 63-70; e SOUZA, 1999, p. 175-199. 29 APM, AVC-17, f. 21r-22r. 30 Como vimos no Capítulo 1, CAMPOS, op. cit., p. 248; e STARLING, op. cit., p. 65-77.
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Horácio, sobre o único sepulcro para a mísera plebe.31 O misterioso número é associado aos 24 cavaleiros do apocalipse, bem como ao ovo de Oromasis da mitologia persa, com 24 deuses bons e outros maus, ali introduzidos por um gênio infernal. Embora Plutarco seja citado em nota, o texto central baseia-se no livro La corte santa do jesuíta francês Nicolas Caussin (em edição espanhola, tratado no Discurso como Causino). Comenta-se então: “Mas isto hé fabula, a verdade hé, que nesta amassada todos eram màos, e nenhum bom”, pois os 24 sátrapas desta imaginada república seriam rebeldes, diabólicos e infernais, que pretendiam atingir o Rio de Janeiro, fazendo ali um porto franco para as nações estrangeiras.32 Corriam murmúrios entre moradores de bairros vizinhos sobre as liberdades de Pascoal da Silva no morro, com lojas mantidas por comerciantes que funcionavam como abrigo para escravos fugidos por muitos meses. As vendas eram como “lupanares”, um co’mercio abominavel, trato vil, e ganho illicito dos brancos, que nellas punham, ou para melhor dizer expunham, negras gentis para mais prompta sahida, facil consumo dos seus effeitos e segura attracçam dos negros, que até para às suas obscenidades alli achavam asseadas camas.33
O morro de Pascoal da Silva é comparado a uma cidadela (o termo lembra Barcelona após a estada de Pedro de Almeida, trechos da Eneida, ou uma cidadela alquímica) defendida pelo filho do poderoso local. Atendendo a queixas, o conde tentava proibir as lojas, mas a câmara não executava os editais. Pascoal da Silva ainda arrematou o direito de fazer a nova casa da câmara. Também exorbitava como juiz ordinário, arruinando os moradores. Ao lado, Camões e Sêneca tratam do ódio. Por sua vez o ouvidor Martinho Vieira seria leviano e “solto de lingua”, desprezando Pascoal da Silva e seus parentes. Imprudente, irritava a muitos. Ao
31 APM, AVC-17, f. 23r-23v. Sobre as etnias africanas dos escravizados na região, cf. RODRIGUES, Aldair. Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 33, n. 69, p. 64-87, jan./abr. 2020; e a respeito da presença invisível de indígenas e mestiços, ver RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. 2003. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, p. 141-210. 32 APM, AVC-17, f. 23v-24v. 33 Ibidem, f. 26r-27r. A nota mais uma vez remete a Amores, de Ovídio. Citação no f. 27r. Embora não tenha citado o Discurso, o estudo de Luciano Figueiredo e Ana Maria Magaldi sobre a prostituição feminina nas Minas cai como uma luva na passagem acima. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Brasília: EdUnB; Rio de Janeiro: José Olympio, 1993 [1983], p. 74-110.
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lado, a nota do poeta cômico ateniense Menandro: “Os cabelos brancos indicam a idade, não a inteligência”.34 O ouvidor também se indispunha com o antecessor Manoel Mosqueira da Rosa e Sebastião da Veiga Cabral, causando a mancomunação de vários, sobretudo de Pascoal da Silva com João Lobo – hóspede em sua casa – e o frade franciscano Francisco do Monte Alverne, apóstata “como quasi todos os mais Frades, que cá se acham”. Era como na conspiração contra César, segundo a nota de Suetônio, em trecho ornado com palavras de Camões.35 Preso pelas desordens que fizera em Pitangui, João Lobo, solto, teria desabafado com o ouvidor Martinho Vieira contra o conde, dizendo que o remédio era se conjurarem e lançarem-no fora do governo.36 Segundo o Discurso os conspiradores estavam arruinados ao modo dos de Catilina – com Cícero em nota –, embora o conde tratasse a todos igualmente. Dois meses antes do motim o conde fez uma divisa para o estandarte dos dragões, avisando ser melhor desistir da empresa: uma mão suspensa no ar com um raio saindo de uma nuvem ameaçava os montes abaixo, com o lema jupiteriano identificado por Marco Antonio Silveira, cedere, aut caedi – “ceder, ou ser feridos”. O estandarte expressava “seu animo galhardo”. Junto aos sonetos produzidos, profetizavam incêndios e ruínas que poderiam ocorrer em Vila Rica.37 Seguem os cinco sonetos em manuscrito maior e originais do Discurso. Os principais cabeças queriam conservar o mando pelo motim, enquanto os demais temiam ser vexados por dívidas e punidos pelos crimes. De tal forma se conclui:
34 Veja-se o topos da prudência acionado para caracterizar a atuação do ouvidor. APM, AVC-17, f. 30v-31r. O “Morro” era um lugar de comércio em zona de mineração, atendendo aos interesses da facção de Pascoal da Silva na câmara. O arrematante da obra da casa da câmara e cadeia era João Ferreira Diniz (um dos presos na repressão, e que depois seguiu para o Rio de Janeiro), suspeito de ser testa de ferro de Pascoal da Silva. Desde meados de 1719 Martinho Vieira de Freitas tinha sido nomeado pelo rei ouvidor em Vila Rica, interferindo em nova eleição na câmara sob orientação do governador; mas o antecessor Mosqueira da Rosa permaneceu na região. CAMPOS, op. cit., p. 234; e REZENDE, 2015, p. 85 e 220-223. 35 APM, AVC-17, f. 31v-38r. Citação no f. 36v. Para capturar João Lobo, o tenente José de Moraes Cabral teria se valido de “hua’ espia”, concordando com “apanhada” em feminino, que vem antes (f. 36r); a grafia é mantida em 1825 (BNB, M, 15, 2, 5, Discurso historico, e político, sobre a sublevação, q’ nas Minas Geraes hóve no Anno de 1720..., f. 22r) e em 1898 (VEIGA, 1898, p. 38), sendo alterada para “um espia” em SOUZA, 1994, p. 78. 36 APM, AVC-17, f. 38v. Segundo Feu de Carvalho, o minhoto João Lobo de Macedo serviu como militar no reino, em Pernambuco, Colônia de Sacramento e Rio de Janeiro, chegando em 1711 às Minas. Em 1718, sendo brigadeiro de infantaria, foi designado regente para conter as desordens em Pitangui, mas demorou a entrar na vila, perdoou os amotinados sem autorização do governador, não conteve outra sublevação e foi preso em 1719. CARVALHO, Feu de. Occorrencias em Pitanguy (historia da capitania de S. Paulo e Minas) 1713-1721. Annaes do Museu Paulista, São Paulo, t. IV, p. 600-628, 1931. 37 APM, AVC-17, f. 38v-40v (citação no f. 40v). Segundo Marco Antonio Silveira, a referência ao raio de Júpiter está presente em vários emblemas e divisas à época, ver SILVEIRA, 2019, p. 170-171.
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Donde parece que os motins [...] se compoem neste paîz de duas qualidades de pessoas, ou de dous generos de maldade. Da malicia da quelles, que levados do incrivel dezejo de dominar o governo, se tinhao’ antigamente apoderado da authoridade, e mando, de que hoje se achavō destituidos, e o procuravam por meyo tam illicito, recobrar; [...] effeito: e do furor de alguns da infima pleba, que reduzidos da fortuna à ultima miseria, e temerozos da justiça pellos seus empenhos, e delictos, com os seguros de se verem izentos della, ou com a esperança da liberdade, sempre nas Minas dezejada, como quē nam tinha já que perder, se agregavam livremente à esta facçam.38
Três notas com citações de Salústio (A conjuração de Catilina) ladeiam o parágrafo. A seguir o autor – em primeira pessoa – explica como “neste paîz se formao’ os motins, e o com q’ o povo nelles entra”.39 Alterando-se a narrativa para o tempo presente e em tom dramático, esses motins iniciam no silêncio da noite, com nota de soneto de Camões. Seis ou sete mascarados, acompanhados de 30 ou 40 “negros” armados, ocupam as bocas das ruas ou batem às portas das casas e as arrombam, correndo e gritando “viva o povo, senao’ morra”. Mas os moradores são como ovelhas ante lobos. Alarmando o povo ignorante, um mascarado diz em voz alta (e direta): “meu povo, quereis que façamos isto, ou aquillo? e se todos nam dizem que sim, os negros armados ou ferem, ou matam alguns”.40 Conforme o Discurso, os ídolos nas Minas ludibriavam no jogo da fortuna por cálculo, num teatro de aparências, solicitando adorações com insolências e desaforos, procurando “baralhar os povos, e insistir nos tumultos por conservar cada hu’ o tiranno altar”. Notas de Sêneca, Camões, Tácito e Cícero (2a Catilinária) margeiam o argumento, a seguir concluído: “Muito perderam em nao’ alcansar o tempo de Solon, cuja ley privava das honras da republica a quem se havia neutral nos motins, que por deixar de entrar nelles eu seguro, que nenhum destes ficasse na sua republica sem honras”.41 Passada a primeira fúria, se a galhofa dura mais de 24 horas muitos gostam, principalmente assassinos e devedores. Outros aproveitam para vingar ou roubar, engrossando o séquito dos cabeças. Volta-se então ao caso particular, quando João
38 APM, AVC-17, f. 42v-43r. 39 Ibidem, f. 43r. 40 A nota é de um sermão de João Crisóstomo aos alexandrinos. Ibidem, f. 44v-45r. 41 A nota é de Plutarco, sobre a tardia vingança dos deuses. Ibidem, f. 46r. O sublinhado é meu.
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da Silva – juiz ordinário em Vila Rica e filho de Pascoal – é associado a Bruto na véspera da morte de César no senado, por um episódio retirado de Lúcio Floro. Bruto fora visitado por um mau gênio – como João da Silva, convidado por homens mascarados para entrar junto com o primo no motim, matar o ouvidor e expulsar o conde do governo. No Discurso duvida-se deste relato, avisado por carta ao conde quatro ou cinco dias antes da sublevação, sendo mais correto afirmar que João da Silva era o mau gênio do pai.42 Na mesma manhã o conde recebeu uma carta comunicando a prisão de João Lobo na casa de Pascoal da Silva, percebendo assim o estratagema do filho. O conde, prudente e resoluto, agradeceu a notícia, respondendo não recear. Mas pediu ao ouvidor para fazer diligências e este repreendeu publicamente João da Silva. Seu furor fê-lo perder a razão, segundo a Eneida de Virgílio em nota.43 No relato do movimento iniciado em 28 de junho, um morador rebuçado avisou o ouvidor que naquela noite planejavam sua morte. Ele escapou, acompanhando de longe o motim descer do morro de Pascoal da Silva. Seis mascarados com negros armados arrombavam portas e levantavam os moradores, levados de tropel. Alguns sequazes desciam pelo outro lado do morro, levantando o bairro do Padre Faria. Destruíram o que havia na casa do ouvidor, procurando-o em Vila Rica. Notas da Eneida e de Sá de Miranda ornam o parágrafo. Na câmara, mandaram negros armados bloquear as ruas para não dispersar o povo. Alguns buscaram o letrado José Peixoto da Silva para redigir a primeira proposta enviada a Ribeirão, onde estava o conde.44 Na ocasião seis “negros” de Manoel Nunes Viana achavam-se em Vila Rica. O autor do Discurso – em primeira pessoa – espanta-se de ele não participar da sublevação, pois suas ações eram como um raio. A nota de Cícero (Discurso a favor de Milo) reforça o odioso caráter, descrito por sua trajetória. Enriquecido
42 Ibidem, f. 47r-48r. João da Silva Guimarães tornou-se juiz ordinário na câmara de Vila Rica em 1719 por eleições de barrete, substituindo um juiz que deixara o cargo. Aparece nas atas da câmara até julho de 1720. REZENDE, 2015, p. 212, 225-226, 233. Ainda em 1719 recebe de Pedro de Almeida a patente de capitão-mor das ordenanças de Rio das Pedras até Raposos. MATHIAS, 2005, p. 134. Depois da sublevação teria ido para os sertões mineiro e baiano, recebendo patente de capitão-mor. IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos, comércio e cores nos sertões da América portuguesa - século XVIII. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. 43 APM, AVC-17, f. 49r-50v (citação no f. 49r). 44 Em 1718 o doutor José Peixoto da Silva foi síndico da câmara para defender causas abertas temporariamente e chegou a ser nomeado pelo governador juiz dos órfãos, mas o posto foi extinto em seguida. REZENDE, 2015, p. 101, 108.
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nos currais da Bahia com a desgraça alheia – como Cipião nas ruínas da África, mediante Lúcio Floro –, ele passou a desgraçar os paulistas: “detrimento das leys, escandalo da religiam, horror da natureza, innumeraveis attentados, repetidos insultos, infinitas maldades, foram, e vam continuando em o fazer conhecido nas praças do reyno, e suas Conquistas”.45 Com menções apenas nominais em nota a Virgílio (Eneida) e Horácio, seus vícios são pintados com tintas fortes: mortes, assaltos, incêndios e uma rede de influências que atingia os tribunais. Com estrondo, os delitos pareciam maiores e assustavam. Após comparar Manoel Nunes ao cruel suevo Ariovisto, ausente como se estivesse presente pelo relato de César sobre a conquista da Gália,46 ele é associado no próprio corpo do texto a Medeia e Dido, personagens das Heroides. Com base na comparação com a rainha de Cartago, duvida-se se o potentado era mais perigoso distante ou próximo. Várias notas respaldam a descrição de Manoel Nunes, ausente da sublevação em Vila Rica: Salústio (A guerra contra Jugurta), décadas de Tito Lívio, Agostinho (Contra Fausto), Cícero (Discurso a favor de Milo), Virgílio (Eneida e éclogas), um epigrama de Marcial e Lúcio Floro. Em cinco fólios de tirar o fôlego, sua crueldade é tida como desumana, com perfídia mais que púnica, sem verdade e bondade, temor a Deus ou fidelidade e escrúpulo de consciência. Só desejo de fazer o mal e vingar-se, apetência de dominar, desdém pelos castigos da justiça, pois lhe agradam discórdias, iras, traições e maldades, maior peste que saiu do inferno, castigo de Deus aos sertões, encarnação do próprio vício. É comparado então a Seronato (ditador na Gália no século V) – outro Catilina segundo o poeta e alto funcionário de Roma Sidônio Apolinário. O trecho sem nota inspira-se no Sermão do bom ladrão do padre Antônio Vieira, não nomeado. A seguir mencionam-se suas leituras políticas e místicas, como explora Adriana Romeiro.47 Um parágrafo adiante, o Discurso qualifica-o como herdeiro das fantasias de d. Quixote; mas sem ser cavaleiro andante, manda sempre seu Sancho Pança, o escravo Bigodes (veja-se a comicidade do comentário). Dos humildes passa-se ao exemplo não seguido de Fábio, herói romano nas guerras púnicas. Contudo, Manoel Nunes prefere Herodes, a degola 45 APM, AVC-17, f. 55r. 46 Ibidem, f. 55v. 47 A historiadora apresenta um estudo do poderoso, explorando também trechos do Discurso pela edição de 1994. ROMEIRO, 2008 , p. 156-178.
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e a guerra – fúria infernal que o fazia temido como um persa, nas Minas ou na Bahia. A seguir volta-se a citar Caussin, desejando que ele escrevesse “no Brasil” (provável lugar de produção dos manuscritos) para retratar ao vivo e pintar com hipérboles – como fez com Hércules e o leão – a insolência e as ações de Manoel Nunes, ao modo da escrita divina na parede, mostrada ao rei babilônico Baltasar. Conclui-se então: “tenho por fé, que hua’ mam invisivel estâ no Ceo fulminando a sentença da sua ruina, a qual lhe considero proxima, e im’inente”.48 Volta-se ao premeditado motim, iniciado três dias após a frota chegar com cartas sobre as casas de fundição. O povo, satisfeito com o governador, por vezes desobedecia, mas não pegava em armas. Mas os cabeças persuadiram que o conde assentaria as casas de fundição, pois ele era “acerrimo executor das ordens de El-Rey”.49 Lembra-se então novamente do aniversário da condessa em abril, quando um pasquim insinuou – por trecho modificado do evangelho de Lucas – a saída do conde do governo, que traduzido seria: “João, voltando-se para trás, olhou para Pedro. Pedro, por sua vez, sairá e chorará amargamente”.50 Depois da festa um amigo do conde perguntou a Pascoal da Silva quando voltaria a Vila Rica. Ele respondeu que viria para o bota-fora do conde – segundo o Discurso, para o motim de 28 de junho. Segue-se uma analogia entre o conde e são Pedro (seu protetor) e um soneto composto para o manuscrito. Na primeira pessoa do plural, “Vamos agora ver a proposta” escrita por José Peixoto pelo arbítrio dos cabeças, sobre impugnar as casas de fundição, o privilégio de cobrar dízimos, o registro dos comerciantes, a moderação dos salários dos oficiais de justiça, a postura das câmaras, os contratos de gado, fumo, sal etc. Desatino para equivocar o povo, ela torturaria o seu artífice, como o lendário touro de Perilo.51 O pedido de perdão finalizava-a, nos termos modestos e cortesãos usados por José Peixoto. O feito foi comparado à postura de Joabe – violento soldado sobrinho do rei David – e recebe em nota uma sentença erradamente atribuída a Sêneca.52 48 APM, AVC-17, f. 54v-60r (citação em f. 59v-60r). Os fólios plenos de metáforas hiperbolizam o narrado pateticamente, deformando a imagem de modo fantástico e desproporcional, mas tendo como referência o icástico, cf. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 299, 360, 371-373. 49 APM, AVC-17, f. 60r. 50 Ibidem, f. 60v. 51 Notas da Eneida de Virgílio e outra atribuída a Salústio complementam a argumentação. Ibidem, f. 62r-63v (citação no f. 62r). 52 Ibidem, p. 64r-64v (citação no f. 64r).
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A proposta foi lida em público. Com paródia da Ilíada de Homero à margem, sobre os sapos e ratos que lutam, um emissário a cavalo grita que as “geraes” estavam levantadas e entrega-a ao conde, que manda juntar os dragões e chama o ouvidor da comarca para Vila do Carmo.53 Escreveu também a pessoas principais para irem com seus negros armados. Mas não podia atacar Vila Rica, pois vários dragões continuavam distantes. Ao amanhecer a vila estava sossegada. Na nota em latim, Aristóteles na Ética a Nicômaco comenta: “o medo é a espera do mal”. Os mascarados noturnos voltam a ser comparados a lobos. Segundo o profeta hebreu Habacuque – por meio de são Jerônimo –, os lobos, medrosos dos caçadores, ficam quietos em suas covas para saírem à noite com fúria e Estácio, pelo poema épico Tebaida, compara os lobos a demônios. A seguir cita-se Hesíodo por meio de Clemente de Alexandria, para quem os gênios eram anjos da guarda observando nossas ações. Mas eles podem ser demônios, que para o herege Menandro (não confundir com o poeta ateniense antes citado) seriam bons. Para o Discurso, Menandro precisava ir às Minas mudar seu parecer, pois “entre todos estes màos genios, nam há hum só diabo bom, se’do que todos sam muy bons diabos”54 (note-se a apropriação de autores e ideias antigos pela literatura patrística em sua discussão sobre os seres intermédios e sua adequação ao âmbito da revolta). O conde respondeu que muitos pontos da proposta estavam resolvidos pelo rei, e aguardava os ouvidores para uma junta sobre os demais. Mas para os cabeças o conde castigaria depois os supostos culpados e assim o povo voltou a amotinar-se. Outra vez, uma curiosa nota de Lucrécio (Sobre a natureza) ladeia o parágrafo. O conde teria dito que governar esta república era mais difícil que “triumphar dos inimigos de sua Magestade na Campanha” (sua participação na Guerra de Sucessão da Espanha), com nota retirada de Tito Lívio. Compara-se assim o povo volúvel das Minas ao rio Himero, que, no relato de Polyhistor ou De mirabilus mundi, de Solino – por Nicolas Caussin –, muda segundo os ares e terras, correndo amargo para o norte e doce para o meridiano. Segue-se a citação das oitavas sobre santa Úrsula, então atribuídas a Camões. Três procuradores pediram
53 Ibidem, f. 64v-65r. 54 Ibidem, f. 65r-67r (citações em f. 65r e 66v-67r). Com base nessa passagem, as expressões “diabos bons” e “mui bons diabos” foram metáforas das relações de negociação e aliança entre o governador Pedro de Almeida e os locais no âmbito da revolta em MATHIAS, 2005, p. 94-135.
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ao conde que fosse a Vila Rica dar o perdão e moderar o povo. Mas acabada a conferência, José Peixoto lhe segredou para não ir, pois no caminho armava-se uma emboscada.55 O conde entendeu que José Peixoto possuía “a chave do segredo” sem revelá-la. Como sua fé era venal e insegura, ele depois contou que Pascoal da Silva disse a seu filho para executar todo o motim. Mistérios, sombra, terror e pouca luz envolviam a resolução do negócio, enquanto Tácito, Marcial, João Crisóstomo e Sêneca destacam o engodo. Procurando parecer bom, José Peixoto tornava-se pior, como os albaneses na guerra contra os romanos segundo Lúcio Floro, vendo antes para onde se inclinava a fortuna a fim de “se encostarem à ella”. Como no livro Eclesiástico e na invectiva de Cícero contra Marco Antônio, “nam hé possivel proporcionar o fim, que se espera com os meyos, que senam dam”.56 O conde desejava atacar o tumulto, mas não possuía soldados suficientes e era preciso passar por ásperos desfiladeiros para entrar em Vila Rica. Descobrindo o intento dos cabeças e como os “melhores pilotos” que se deixavam levar pela tormenta para não naufragar, ele adiou a resolução. No trecho em nota de Remédios do amor traduzido como “Enquanto o furor estiver em curso, concede-lhe”, altera-se bastante o significante em benefício da forma, para validar a analogia com a prudência do conde em adiar a repressão. Este consultou algumas pessoas principais de confiança, formulando que o perdão só teria vigor se o rei aceitasse, em caso de reincidência passando-se à espada “sem mais tella de justiça”. Os procuradores – especialmente José Peixoto – não aceitaram a cláusula. Então o conde disse que se “fizesse, como entendesse”, pois depois de “se lhe manifestar a ordem de El-Rey, nam haveria lugar para esta accusaçam” (note-se a versão retrospectiva sobre a dissimulação do governador). Camões sela o argumento: “Pois aquillo, que os Reys jà tem mandado, Nam póde ser por outrem derrogado”.57 O conde enviou o jesuíta José Mascarenhas para pregar ao povo e depois o tenente-general com o perdão. Mas incitado pelos cabeças, para o povo o conde queria enganá-lo, e o padre e o tenente quase foram mortos. Cegos, os amotinados
55 APM, AVC-17, f. 67r-69v (citação no f. 68r). 56 Ibidem, f. 69v-71r (citações em f. 69v, 70v-71r). 57 Ibidem, f. 71v-73r (citações em f. 71v-72r e 73r).
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provocavam uma indignação que os punisse. Uma nota de Sêneca (Sobre a clemência) complementa o episódio.58 Enfim o conde enviou um edital à câmara para ser publicado, declarando que as casas de fundição não seriam efetivadas até julho de 1721, na esperança de o rei revogar a lei dos quintos, criando-se suspense. O conde também escreveu que suspenderia os contratos dos caminhos da Bahia e do Rio de Janeiro e que o rei podia conceder privilégios às câmaras, premiando alguns no seu serviço a fim de moderar a fúria e captar benevolências – com nota da Eneida sobre o dinheiro, a vontade e os privilégios.59 Mas o edital foi também rejeitado. Exclama-se então: De balde se cansa a mayor politica em applicar nobres instromentos do premio, que aos generozos peitos (como branda cera) primorozamente lavram de todo, à humildes animos, que (como duros penhascos) só a violentos golpes do rigor difficultozamente obedecem em parte: Na Democracia das Minas hé mais efficàz a dezatençam, que o primor, porque na sua republica ainda o mayor Cortezam hé plebe; sendo poes todos povo; [...].60
O autor – na primeira pessoa e respaldado por Plínio o velho, Virgílio e Horácio em notas – afirma cuidar para os cabeças contrários à paz não receberem prêmios, sendo ordenados na obediência e no sossego.61 A câmara pedia ao conde para este ir sozinho de noite a Vila Rica, algo reforçado pela escuta de alguns padres em confissões. Conforme o Discurso, os eclesiásticos nas Minas não cuidavam do serviço de Deus. Na câmara petulante, o filho de Pascoal da Silva era juiz. Segundo um confidente, planejava-se um atentado ou a deposição do conde. Isso fê-lo dissimular e responder que estaria em Vila Rica na manhã seguinte. Os rebeldes então armaram-se e marcharam com quase 1.500 homens para a Vila do Carmo – ornados no Discurso com um canto de Camões. Com Salústio sobre a conjura de Catilina e César na conquista da Gália à margem, interroga-se: “Mizeravel estado o da republica, onde os mesmos, que eram obrigados à concorrer para a páz,
58 Ibidem, f. 73r-74r. 59 Ibidem, f. 74r-75r (citação em f. 74v-75r). 60 Ibidem, f. 75v. 61 Ibidem, f. 75v-76r.
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ministravam o tumulto! màs que muito assim soceda sempre nas Minas, se nellas dominao’ os vicios, e obedecem as virtudes?”62 Quando o povo chegou perto da vila, Filipe dos Santos formou uma quadrilha para atacar a casa condal. O sargento-mor protestou e o tropeiro demoveu sua cabala, conquanto o conde não duvidasse de qualquer ponto da proposta. A companhia de dragões estava no térreo e na varanda ao fundo. Os principais acudiram com seus negros armados, guarnecendo o palácio e casas vizinhas.63 O conde mandou que alguns da câmara de Ribeirão e principais mostrassem o estandarte (com o raio de Júpiter) na estrada, pedindo ao povo para não entrar na vila, enviando apenas um procurador. Ladeados pela Eneida, os amotinados responderam que queriam ouvir o perdão da boca de seu general. Só Filipe dos Santos apartou-se com os seus, para atacar. Junto aos da câmara estava Sebastião da Veiga Cabral, possível comandante dos sublevados se a conjuração fosse adiante – como Catilina, pelo relato em nota de Salústio. Perguntou-lhes o que queriam, dizendo (com nota de epístola de Horácio, sobre a exortação que anima o temeroso): “filhos, nam quereis caza de quintos, nē de moeda? quereis que vá o Ouvidor com todos os diabos? quereis-me a my’? aqui estou, tudo se farâ, que eu hey de ser vosso procurador” – ao modo dos historiadores antigos, conforme José Honório Rodrigues.64 Depois foi ao palácio, pintando o caso de forma grave. Sua doidice contrastava com a constância do conde, cujo ânimo não se atropelava por fantasmas, conforme Sá de Miranda e Virgílio.65 Alguns aconselhavam o conde a não falar ao povo em sua chegada ao palácio, para não se expor a desaforos. Mas ele, por seu nascimento, ânimo desprezador de perigos, confiança em Deus e atenção ao culto divino – margeado em nota por Aristóteles –, respondeu que precisava mostrar-se, pois sua autoridade faria desmaiar os mais intrépidos. Apareceu então à janela, sendo aclamado com vivas e
62 Ibidem, f. 77v-78r. 63 Por passagens como esta infere-se o lugar do “palácio” do conde de Assumar. VASCONCELLOS, 1937, p. 48, 92, 97-98. Sobre Filipe dos Santos Freire, nascido em Cascais e tendo chegado no Brasil em 1713, cf. CARVALHO, 1933, s.p. 64 RODRIGUES, 1979, p. 345. 65 APM, AVC-17, f. 80r-82r (citação no f. 82r). De origem cristã-nova, o reinol Sebastião da Veiga Cabral seguiu a carreira militar, tendo governado a Colônia de Sacramento de 1699 a 1705. Atuou depois na Guerra de Sucessão da Espanha, quando escreveu a Representação sobre aquela colônia ultramarina, então de volta aos espanhóis. Tentou ser governador da capitania mineira três vezes, perdendo os pleitos para Brás Baltasar da Silveira, Pedro de Almeida Portugal e Lourenço de Almeida. Em 1717 estava em Minas. Preso na repressão ao levante, foi para o Rio de Janeiro e morreu em Portugal no início de 1730. SOUZA, 2006, p. 253-283.
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aplausos. Como os cabeças podiam amotinar a vila, não houve tempo para discurso, dizendo-lhes apenas que mandassem os procuradores. Aos leitores disserta-se sobre a natureza volúvel do povo, com a Eneida à margem: Nam repare quem ler este successo, que em hum povo amotinado houvesse tanta obediencia, que como ese o vinha diante botado ào sacrificio, eram ovelhas mansas, ou violentadas, em que correspondiam as acçoe’s externas àos ditames do animo, o qual nam foy nunca de fazer aquella temeridade, nem faltar à obediencia, como pretendiam os cabeças. Obrava no enganado povo impulso alheyo, e força oculta governava suas acçoês, como vemos, que socede nos mizeraveis corpos, a quem occupa, e oprime a paixam de espirito maligno, e rebelde: ou em algua’s figuras, em que a agitaçam hé destreza, os movimentos artificios, e os que parecem passos proprios, sam alheyos compassos: emfim que em apparencia tudo se fazia pello povo, e nada por elle em realidade.66
José Peixoto subiu com a proposta “mais sua, que do povo”. Conforme a nota de Júnio Moderato Columela, as cidades eram mais prósperas sem os causídicos, e os letrados desgraçaram as Minas (veja-se o desprezo por letrados leigos na região). O conde convocou os principais a seu favor, mas o procurador – incitado de paixão segundo Tomás de Aquino – não deixou o secretário registrar o edital e o perdão sem conferi-los, acrescentando que este devia ser selado com as armas reais. Com base num epigrama de Marcial, o Discurso dirige-se diretamente ao procurador: Aproveyte-se da occaziam, dicte à seu gosto as condiçoens do perdam, faça quanto quiser agora que tem o jogo na mao’, que eu lhe prometto, que ao depoes se ache, como o barbeyro de Marcial, com os pès, e as mâos quebradas, ja que como letrado não’ adverte, que onde o que se concede de sua natureza hé ma’o, contra a ley do Princepe, e contra toda a boa razam, tambem hé de sua natureza nullo, porque o juramento e palavra real nam hé escudo de delictos, e desaforos, nem pode ser vinculo de injustiças, e iniquidades.67
66 O sublinhado é meu, sobre a função conativa e a consideração do destinatário de modo aberto. Na reflexão da página seguinte do códice cita-se um verso de Sá de Miranda sobre a virtude e a inveja. APM, AVC-17, f. 83v-84r. 67 Ibidem, f. 86v-87r.
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Após remissão ao rei espartano Agesilau, mediante apotegmas de Erasmo de Rotterdam68 sobre a postura do procurador, retoma-se a função conativa voltada para o procurador e com ironia – tendo ao lado ditos de Ovídio: se acha, meu Doutor, que o tal juramēto hé valiozo, faça que sua Magestade jure, que lhe ha de dar o reyno, e depois obrigue-o pela palavra, e saberá se hé seu: e se acaso (como para o grande Alexandre o de Macedonia à Philippe) lhe parecer pequeno o reyno de Portugal, pòde desta sorte apossar-se de quantos, nas quatro partes do mundo, lhe agradarem.69
Destaca-se a pretensão do doutor ao desafiar a lei dos príncipes e a fé pública como pedra fundamental da justiça, conforme Cícero (Sobre os deveres). Na leitura do edital e do perdão o povo começou a aplaudir o general com aclamações e vivas – margeado por Virgílio e Camões – ao “grande Conde Dom Pedro, que nas Minas serâ sempre a pezar da enveja celebre, respeitado, & eterno”. Em Vila Rica – como na Roma antiga descrita por Famiano Nardini – houve à noite luminárias que alegravam o povo e assombravam os cabeças, “pompa funeral da sua desgraça”.70 Por alguém no motim o conde recebeu uma carta de Pascoal da Silva, temendo a ida do povo a Vila do Carmo. O Discurso indaga como a notícia chegou antes em Rio das Velhas, onde o poderoso morava, no mesmo dia em que o conde recebia a carta. Como se soube, o rebelde ocultava-se em Vila Rica. A sátira de Juvenal e ditos de Ovídio reforçam o argumento. Seu intento foi malogrado, como se viu pela ousadia de Filipe dos Santos. O conde esperava reparar as feridas após a borrasca, segundo Lúcio Floro, Camões e Tito Lívio. Ao dispor dos próprios recursos para comprar a adesão de alguns, exclama-se: “Desgraçado clima, abominaveis Minas, em que a mayor lealdade hé venavel, e a mais pura fé anda em balanças!”71 Chegou então o aviso de outro motim em Sabará, também com mascarados constrangendo moradores. As diligências do ouvidor da comarca e do tenente local mantiveram a vila quieta. Mas em Vila Rica os cabeças voltaram a amotinar o povo, dizendo que as 30 arrobas de ouro a serem dadas ao rei – conforme a
68 A obra é uma tradução por Erasmo de Plutarco, com uma coleção de ditos antigos. Na nota se informa o impressor veneziano estabelecido em Roma Paolo Manuzio, que na segunda metade do Quinhentos recebeu monopólio do papa Pio IV para editar livros dos Padres da Igreja e outros católicos. FEBVRE; MARTIN, op. cit., p. 88, 285, 347. 69 APM, AVC-17, f. 87r-87v. 70 Ibidem, f. 88r-88v. 71 Ibidem, f. 88v-92v (citação no f. 92v).
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proposta – seriam pagas somente ali. Sucede-se uma digressão sobre o perdão, a confissão e a penitência. O conde publicou novo edital com o perdão, declarando que as 30 arrobas eram para todas as Minas. Contudo, os cabeças inquietavam o povo, medroso que o conde fosse mais severo. Maldade que inculcava medo, segundo Camões ao lado. “Astucias, trayçoe’s, enganos varios, Perfídias inventavam, e teciam os cabeças” para formar os motins (imitando-se estrofe d’Os lusíadas),72 com mais metamorfoses que o deus Proteu e o rei etrusco Vertuno. Muitos dos principais eram “espias dobres” de ambos os partidos. E isso – para o autor em primeira pessoa – “hé a mayor desgraça de quem governa nestes paizes, onde se vé tam pouco armado o braço real, que para à sua conservaçam ha de necessariamente dar o altar da fidelidade àos idolos da trayçam”.73 Seguindo conselhos de Salústio (A guerra contra Jugurta) e Virgílio (Eneida), na tempestade desfeita o conde, conhecedor dos mares e com o leme vigilante, não confiava em ninguém, prevenindo os dragões e escrevendo a vários durante a noite. Pediu preces aos vigários pela quietação do “estado”, deixando-os admitir nas igrejas os frades outrora expulsos. O desencanto com os religiosos é respaldado por uma écloga de Virgílio. Menos maduros e prevenidos que o conde feito de pedra (segundo santo Agostinho), os cabeças fizeram novo motim em 6 de julho para depor o imprudente e leviano Martinho Vieira – e nisso o Discurso dá-lhes razão, conforme apontamentos de Salústio (A guerra contra Jugurta). Eles diziam que o ouvidor averiguava o caso em Vila do Carmo e o conde, buscando um castigo exemplar, quintaria os moradores de Vila Rica. A câmara pressionou, relatando o perigo sobre o magistrado. Por ordem do conde o ouvidor retirou-se para Catas Altas e depois para o Rio de Janeiro, sendo alvo de uma digressão sobre a sua intemperança. Mas tirada a fonte de escândalo, pela narrativa inspirada na conjura de Catilina pelo mesmo Salústio, a tempestade aumentou, com tiros e incêndios por obra de mascarados, deixando os moradores sem sono – conforme a sentença atribuída a Sêneca e o dito de Lucrécio, para quem a avareza e a ambição tiram os homens da razão, submetendo-os ao crime.
72 Sobre a interpolação como forma de portar autoridade ao texto, cf. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 66. 73 APM, AVC-17, f. 95r-95v.
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O conde então valeu-se do “ladram fiel” ao chamar o ex-ouvidor de Vila Rica Manoel Mosqueira da Rosa, que com “manhoza reluctancia” ofereceu-se para ser provedor da Fazenda Real e/ou dos Defuntos e Ausentes. Seus desejos, simulação, astúcia, ambição e conspiração são amplificados por Sá de Miranda, Virgílio, Salústio, Camões e Lúcio Floro. O conde deu-lhe ordem para obrar pelo sossego público, prometendo não castigar ninguém se cessassem os tumultos. Mas o ouvidor tomou o partido de Filipe dos Santos. Conforme Camões e Salústio (A guerra contra Jugurta), Mosqueira da Rosa era astuto e sábio no dano e Pascoal da Silva usou-o para sublevar o povo.74 Convocaram então 50 ou 60 homens da sua patrulha com negros armados, aclamando o Mosqueira ouvidor sem participação popular, mas com Cícero (Discurso a favor de Ligário). Embora Pascoal da Silva viesse escondido às noites “dar calor àos motins” e “traçar as maquinas”, ao aparecer o conde também lhe incumbiu do sossego da vila. Já sabia que esses eram os principais cabeças, mas não os castigaria agora. Infelizes e maus segundo Sêneca (Sobre a clemência), eles não desfizeram “o nublado” que armaram, mas aumentaram a cerração, empolando as ondas da tempestade. Sebastião da Veiga, por indústrias, cavilações e caminhos indecentes, agradava aos moradores, para mostrar ao rei o quanto lhe queriam como governador.75 Analisa-se então a postura do Veiga, ao não ir à casa condal quando o povo de Vila Rica foi a Ribeirão. Na noite de afastamento do ouvidor Martinho Vieira, ele mandou chamar dois jesuítas no palácio (provavelmente Antonio Correia e José Mascarenhas), dizendo que um criado seu estava morrendo – com nota de Lucrécio. Quando os padres chegaram, fez “convulsoe’s, e tregeitos” dizendo que ia para o Rio de Janeiro, pois lhe teriam dito que o conde escrevera ao rei afirmando ser ele o cabeça do motim. Entre parênteses se observa: “a qual entendo seria a sua consciencia, que o acusava”. Com notas de Sêneca sobre a consciência e o espírito medroso, de Aristóteles sobre o medo como trepidação do espírito e ainda mencionando Ulpiano e Camões, fingiu querer ir na mesma noite para convencer os
74 Mosqueira da Rosa tentou intervir em eleições da câmara em 1716 e 1717. O ouvidor de Vila Rica era aliado a outro grupo que queria chegar ao poder, formado em maioria por comerciantes ligados a Pascoal da Silva Guimarães e Manoel Nunes Viana. Durante o motim de Catas Altas em 1718 , o ouvidor foi omisso. Ao fim deste ano, o governador Pedro de Almeida conseguiu afastá-lo do processo eleitoral da câmara para o triênio 1719-1721. Após a sublevação de 1720 foi preso e enviado para o Rio de Janeiro, depois para o reino. CAMPOS, op. cit., p. 160-161; e REZENDE, 2015, p. 202-206, 218. 75 APM, AVC-17, f. 101v-105v (citações em f. 101v, 104v, 105r).
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padres, pedindo-lhes que o despedissem do conde. Os padres voltaram ao palácio percebendo a malícia do Veiga e inteiraram o conde desse fato, que mandou-lhe dizer que a notícia era falsa, esperando que ele e seus amigos concorressem para o sossego público. Em nota, para Virgílio (Eneida) a violência cresce mais ao lutar-se contra ela.76 Mas o Veiga protestou que não tinha amigos e não falava com ninguém. O conde escreveu as mesmas palavras para demovê-lo da jornada, enquanto em nota Camões fala das razões do suspeito. Dali por diante passou a frequentar o palácio, mostrando-se zeloso da cozinha do conde, pois podiam envenená-lo. O evangelho de Mateus dá o tom sobre a hipocrisia dos escribas e fariseus, seguido por Gabriel Pereira, duvidando do zelo. Para Sebastião da Veiga o conde devia retirar-se para São Paulo. Como a harpia Celeno, reveladora de profecias de infortúnios e desgraças a Eneias e aos troianos, o conspirador buscava persuadir o conde a escapar das Minas, com nota da Eneida ornando os conselhos. Mas este conde general não podia seguir os exemplos do conde de Santa Coloma – vice-rei em Barcelona assassinado por rebeldes catalães em 1640 – ou do ateniense Demóstenes, que fugiu do inimigo macedônio. Segundo o Veiga, naquela noite dois rebuçados vieram a sua casa, dizendo que os cabeças o tinham eleito governador. O conde disse-lhe para aceitar o governo; ele teria então começado a chorar, verberando que em três dias iria para o Rio de Janeiro, pois sua honra não lhe permitia aceitar. O conde replicou que os cabeças seguiriam seus passos, podendo executá-lo. O Veiga insinuava que o conde devia retirar-se para São Paulo. Mas o conde, a quem – conforme Tito Lívio – “sobrava valor para atrever-se àos perigos”, disse-lhe que a malícia, a impiedade, os ameaços e destrezas dos poderosos, as invectivas e atrevimentos dos perturbadores não podiam obrigá-lo, pelo sangue que lhe corria nas veias, a dar um só passo de retirada, pois suas ações visavam o serviço do rei, sendo seu prêmio a glória de bem obrar. Horácio, Camões e Sílio Itálico (A guerra púnica) endossam os bons propósitos e a virtude contra os adversários. Mesmo entre os gentios, quando Antíoco ameaçou a menoridade do filho de Cleópatra, esta afirmou que os deuses tinham raízes mais fundas que as árvores e por isso ela resistia aos golpes – argumento ladeado por 76 Ibidem, f. 106r-107v.
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uma ode de Horácio. Assim, o conde esperava Deus confirmar o ânimo, “para zombar de destresas, e illudir machavelismos, mas tambem para destroçar motins, e cortar cabeças”. Também para Salviano de Marselha, ao comentar a ocupação vândala na Hispânia, as causas eram maiores que as forças. Enfim Salústio (em nota) sela a semelhança com a conjura de Catilina, sobre a diferença de objetivos entre os rebeldes e o senado romano.77 Para o conde os estratagemas do Veiga foram descobertos, pois antes ele queixava-se de o nobre não apoiar seu requerimento em Lisboa para suceder-lhe no governo. Intrigava assim com os principais, sendo os fatos narrados com o respaldo de Virgílio, Gabriel Pereira e Horácio. “Destas, e outras, que por nam ser molesto deixo de repetir” o Veiga fazia diariamente, louvando a sua paciência em suportar o governo pouco experiente do conde. Depois mostrava o “perigozo estado, em que se achavam as Minas”, insinuando como sublevá-las. Arrematava dizendo querer retirar-se, temendo as violências do conde, pois não convinha estar na vila ao prever que os povos o escolheriam como governador. Em nota, Lucrécio comenta sobre os homens que vão para longe e aumentam suas riquezas com o sangue de civis.78 Recorre-se também a Caussin para o retrato de Manoel Rodriguez Soares – sombra inseparável de Manoel Nunes Viana – inspirado no ministro Amã, personagem do livro bíblico de Ester: um homem humilde, sem Deus nem consciência, cheio de labirintos, astuto e dissimulado, leão na prosperidade e mono na adversidade, cuja vida é um perpétuo crime.79 Manoel Rodriguez era uma cópia de Manoel Nunes, seu sócio nos cabedais, assassínios e insolências – tendo nas bordas Virgílio (Eneida), Lúcio Floro e Quinto Cúrcio Rufo (sobre as amizades de Alexandre o grande). Porém, Manoel Rodriguez seria mais calado e brando, tendo sepultado os desgostos e encoberto sua vingança. Muitos o temiam afirmando que tinha pior entranha, conforme Sá de Miranda, Gabriel Pereira e o papa santo Leão
77 O sublinhado é meu. Ibidem, f. 109v-112v (citações em f. 111r e 112r). 78 Ibidem, f. 112v-116v (citações em f. 115r e 116r). 79 Através de Nicolas Caussin se tem acesso ao livro de Ester, rainha da Pérsia junto ao rei Assuero. O ministro de origem macedônica Amã perseguia os judeus, povo de Ester. O rei Assuero mandou enforcar Amã e matar seus dez filhos. GORGULHO, Gilberto da Silva; STORNIOLO, Ivo; ANDERSON, Ana Flora (orgs.). A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1989 [1973], p. 770-782. À maneira de Nunes Viana, o retrato de Manoel Rodriguez aparece deformado. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 377.
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I, dito o Magno. Enfim, “nada vale contra os dous a fortuna nada podem os astros, padece viole’cias o Ceo”, como pilantras no jogo de cartas.80 Quanto ao Veiga, num ofício do diabo semeava a cizânia sobre as ações do conde, sendo censurado em nota por Camões. Por outro lado, queria ser bem quisto ao visitar os humildes, insinuando ter poderes na corte com ministros – conforme a Eneida – e ordens para averiguar em segredo procedimentos do conde e outros, atraindo descontentes. Alguns acreditavam nas representações deste sargento-mor, mas outros perguntavam o intuito deste tratamento estranho. Ao retirar-se, Sebastião da Veiga pegou a estrada pelo meio de Vila Rica, sem lembrar das precauções prometidas (ir numa rede, disfarçado de mulher). Em nota, Gaspar Pinto Correa comenta a superficialidade do temerário. Entre Vila do Carmo e Vila Rica comunicou-se com o Mosqueira, cujo filho lhe foi falar “nam sey o que, sô sey [...]” (atenção ao uso da primeira pessoa e à linguagem informal, em função emotiva),81 propondo que o conde se fingisse de doente e lhe deixasse o governo, a fim de acabarem os motins. Camões e Gaspar Pinto sublinham à margem a ambição. O conde então concluiu que o Veiga andava metido “nesta maroma”. Mas ele – sagaz como Alcibíades e Temístocles em notas – não podia ser enganado e acautelava-se, respondendo que consideraria o assunto até o dia seguinte. Veiga contara o ocorrido a um criado, pedindo-lhe para convencer o conde a “abraçar aquelle arbítrio”.82 Por um confidente de Ouro Preto, o conde recebeu uma carta informando que naquela noite o povo iria a Vila do Carmo expulsá-lo, fazendo Sebastião da Veiga governador ou chefe da república. Entendeu-se assim o recado de Pascoal da Silva (explicado adiante). Com o comentário das Geórgicas de Virgílio sobre os profetas, o conde acreditou na notícia, pois os cabeças o preveniam com avisos, para se fiar neles ou servirem depois como defesa. O conde disse ao Veiga que
80 APM, AVC-17, f. 116v-118r (citação no f. 118r). Na edição de Mello e Souza, aparece como Manuel Rodrigues Soares, possuindo terras e escravos no Caeté – abreviado no manuscrito como Roi’z, cf. SOUZA, 1994, p. 122-123. Ao início de 1718 o governador Pedro de Almeida endossou o pedido de hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo para o mestre de campo Manoel Rodriguez Soares por ter prendido José Gurgel, foragido do Rio de Janeiro. Ver SANTOS, 2017, p. 214-215. Mas depois solicita ao ouvidor de Rio das Velhas para impedir que ele e o primo Manoel Nunes Viana fracassassem na arrematação da passagem daquela comarca. No mesmo ano, o motim de Catas Altas começou por uma disputa de lavra envolvendo de um lado Manoel Rodriguez Soares e Manoel Nunes Viana. Até meados de 1718 o governador ainda tentava cooptar lideranças. CAMPOS, op. cit., p. 175; e REZENDE, 2015, p. 217-218. 81 JAKOBSON, 1969, p. 126. 82 APM, AVC-17, f. 118r-122r (citações em f. 121r, 121v e 122r).
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responderia à carta, mas na realidade dava ordens necessárias para a repressão – ladeado pela Eneida. Naquela mesma manhã Pascoal da Silva deu recado – por frei Francisco do Monte Alverne – ao conde que descobriu um meio de sossegar o tumulto, esperando sua aprovação. Pelo plano ele amotinaria os povos de São Bartolomeu, Cachoeira, Itaubira e Ouro Preto, fazendo-se cabeça de todos. Então pediria um novo perdão a ser concedido pelo conde, enquanto as câmaras solicitariam ao rei mais três anos para as casas de fundição. Ele teria apoio do filho juiz em Vila Rica, de outros parentes em Sabará, Cuieté, Ribeirão e Rio das Mortes, além de amigos e obrigados. Olhando o futuro como na comédia de Terêncio (Adelphoe), o conde por carta demoveu Pascoal da Silva da ideia, pois não era certo excitar um motim para destruir outro, pois os motins eram como fogo – facilmente mantido conforme Plutarco. Mas se podiam depois apagar incêndios, que se atalhassem logo as faíscas, seguindo o conselho de Cícero a Bruto. E quanto ao suposto pedido das câmaras, “nam estava o paiz tam agradavel, e apetecido, que movesse à dezejos de mayor assistencia”.83 Rememoram-se então esses elementos em três longos parágrafos, margeados com ditos de Sêneca, Lúcio Floro, Museu, Cícero, o padre Pedro Possino e Lucrécio. Enfim, o conde resolveu como César por meio de Suetônio, preferindo acabar logo com a situação a ficar prisioneiro de piratas ou cercado por rebeldes. Desse modo “intentou, emprendeo, e conseguio o castigo” – resolução louvada em soneto feito para o Discurso.84 Mandou logo montar a tropa dos dragões e tomar o caminho – trecho bordeado por Sá de Miranda – de Vila Rica, enquanto se prendia Sebastião da Veiga, enviado para o Rio de Janeiro. Com remissão a Salústio sobre a conjura de Catilina, ordenou pela meia-noite que 30 cavalos fossem às casas do Mosqueira e de Pascoal da Silva, tendo prendido também os freis Vicente Botelho e Francisco do Monte Alverne. O procedimento “nao’ sey com que razam” foi estranhado nos claustros do Rio de Janeiro. Mas – imitando-se uma carta de Sá de Miranda ao rei – se os religiosos concorriam para as perturbações, as armas eram lícitas aos
83 Ibidem, f. 123v-125r (citação no f. 125r). Quase nada se sabe sobre o franciscano Francisco do Monte Alverne, além do escrito no Discurso. Apaniguado de Pascoal da Silva, quando preso no Rio de Janeiro teria ameaçado queixar-se ao papa da omissão do bispo sobre o governador, como veremos no próximo capítulo. 84 Ibidem, f. 125v-129v (citação no f. 129r).
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seculares. Com referência a Camões em nota, não prenderam outros por falta de soldados “e ser o cubertor muy curto” para abranger todas as partes, referindo-se ainda a Cícero (Discurso a favor de Milo) e fábulas de Esopo não especificadas.85 Em mais uma digressão pelo mesmo Salústio, “desta sorte acabam os designios dos traydores, e impios, q’ com pretexto do bem publico buscam suas proprias conveniencias, e pretendem adiantar seus particulares interesses em prejuizo, e danno do Princepe”. Com os presos levados para Vila do Carmo, as desordens não cessaram na bárbara Vila Rica, com Lúcio Floro duas vezes citado. Uma tropa de mascarados com negros armados desceu do morro de Pascoal da Silva, multiplicando matanças conforme Lucrécio. Com tiros de bacamartes, arrombavam portas, gritando que os que não fossem no outro dia soltar os presos e seu “Pay Pasqual da Silva” teriam as casas incendiadas. Como acharam poucos, fizeram o vigário abrir a igreja matriz, para procurar os moradores. Palavras de uma sátira de Pérsio ornam o episódio. O conde chamou os principais presentes na vila, para participar-lhes o motim. Esses temiam o séquito de parentes, compadres e amigos de Pascoal da Silva, além de seu filho que estava no mato com escravos armados.86 Considerando o perigo que ameaçava a vila e o governo, era preciso mandar um oficial com dragões e negros armados guarnecerem a vila, conter os moradores e postar-se contra os sublevados. O conde – mais uma vez pautando-se em Lúcio Floro – também devia mandar demolir e assolar as casas de Pascoal da Silva “e todas as mais dos seus adherentes, [...] quando era publico, que serviam de escandalozo, e funesto receptaculo àos amotinadores”, participando-lhe na cadeia que uma tropa destruiria os sublevados suspeitos de serem sua gente. O preso ordenou por escrito ao filho que retirasse seus escravos e armas. Segue-se um longo excursus sobre os anseios do conde – margeados por Camões – temendo as execuções dos amotinadores, como setas que lhe feriam a alma e lhe magoavam os olhos, excitando a compaixão em seu peito, embora seu ânimo não sossegasse. Esperava que os presentes apoiassem aquela expedição, conforme o dito de Sêneca e uma exortação de Agápito a Justiniano.87 85 Ibidem, f. 129v-130v (citações em f. 130r-130v). Segundo o próprio Discurso, o beneditino Vicente Botelho era filho de Mosqueira da Rosa. Preso, morreu enfermo em 1720 no Rio de Janeiro. Ver também MATHIAS, 2005, p. 86. 86 APM, AVC-17, f. 130v-132v (citações em f. 130v e 131v). 87 Ibidem, f. 132v-134v (citações em f. 133r e 134r).
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Porém, após um verso de Camões, ladeado por uma elegia de Ovídio em Amores, nada aconteceu e o conde ficou desesperado pela passividade de muitos ante os castigos e prisões. Assim foi a Vila Rica fiado em Deus (ou nos deuses, como o herói romano Caio Mário em A guerra contra Jugurta), descontente com a ingratidão dos moradores. Ali soube que os sequazes de Pascoal da Silva partiram para Cachoeira amotinando as gentes, como nos campos devastados da Eneida. Em nova conferência em Ribeirão, acordou com os principais que Vila Rica não ficava segura sem uma “severissima demonstraçao’”. O conde, “contra a sua natural clemencia”, devia “soltar as redeas ào furor” procedendo a um “horrorozo castigo”, com o incentivo de Camões a não olhar para trás. Pois a brandura se cansava ante a sua natureza feroz, por isso “viamos, que a obstinaçam, e desaforo, que na contenda, fazia rosto ào perdam, vinha, na porfia, a dar costas ào rigor” (uso da primeira pessoa do plural na observação sobre a postura do conde).88 Ordenou então ao capitão de dragões João de Almeida e Vasconcelos, ao tenente José Martins Filgueira, ao alferes Manoel de Barros Guedes89 e a cerca de 15 dragões para arrasarem no morro as casas de Pascoal da Silva e dos que entraram ou ajudaram nos motins, “destruindo as leys do Monarca” e levantando “rebeldes com o dominio de sua Magestade” a fim de “erigir hua’ republica neste governo”. Um sargento, um capitão e um alferes, moradores do morro, informariam as casas a serem destruídas. Os capitães apressariam a diligência, ateando fogo onde fosse difícil demolir e depois entrariam na mata procurando os escondidos. Mas os negros, querendo roubar e beber as “potagens, de que todas aquellas vendas largamente abundavao”, começaram a demolir e queimar ao mesmo tempo, tendo ao lado desse relato palavras do livro de Jó, aqui traduzidas: “e o fogo devorará as suas tendas”. Por outro lado, o fogo espalhava-se pelas palhas, embora os dragões e ordenanças
88 Ibidem, f. 135r-138r (citações em f. 137v-138r). 89 João de Almeida Vasconcelos, José Martins Filgueira e Manoel de Barros Guedes lutaram na Guerra de Sucessão da Espanha. PEREIRA, 2016, p. 303. Na expedição contra o motim em Pitangui, o alferes Barros Guedes foi ferido no peito com dois tiros, tendo o conde providenciado um cirurgião e recomendado ao rei, em maio de 1720, sua promoção a ajudante de tenente. CARVALHO, 1931, p. 646, 657-659, 675-677. Em 1720 Guedes teria sido o primeiro a prender Francisco do Monte Alverne e Pascoal da Silva, sendo responsável pela guarda de Filipe dos Santos e tendo prendido também os letrados José Peixoto da Silva e José Ribeiro Dias, tendo sido promovido a capitão em 1734. CARVALHO, 1933, p. 156-158; e MATHIAS, 2005, p. 159-160. Natural de Óbidos, José Martins Filgueira obteve o hábito de cavaleiro de Cristo por serviços prestados na guerra na Espanha. Chegou às Minas em 1720 após ter passado pelo Rio de Janeiro. A nomeação para cargos militares era normalmente feita pelos governadores de capitania, mas precisava ser confirmada pelo Conselho Ultramarino. Criado em 1719, o regimento dos dragões era remunerado e composto com solteiros, semelhante a uma tropa de elite. STUMPF, Roberta Giannubilo. Os cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014, p. 250, 317.
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se empenhassem em preservar as casas livres, gritando aos moradores para as defenderem. A fúria dos loucos patrocina assim os remédios (note-se a imputação de responsabilidade aos “negros” pelo alastramento do fogo).90 As casas de Pascoal da Silva, com grossas e sólidas madeiras, foram incendiadas, “porque parece que o elemento apurou a voracidade”, deleitando-se em arruinar aquele “escandalo de Villa rica, padram da infidelidade, e muralha da ingratidam” conforme Cícero nas Filípicas. Seu dono teria concorrido para o estrago com dois barris de alcatrão lá existentes – gênero nunca visto nas Minas. Segundo o epigrama de Marcial e o dito do grego Licofronte, Pascoal da Silva era o fogo do seu incêndio, que o conde tantas vezes tentou apagar com paciência e piedade. O minerador também é comparado, pela fábula de Esopo, à águia que comeu filhotes de cabra ao pé do morro, tendo ele lesado os mineiros comendo-lhes a fazenda, impedindo o seu “trato”. Mas o jovem Assumar era o Jove português, ao provocar no potentado o que ocorreu à águia. Pois essa, ao arrebatar a vítima dedicada a Júpiter (em origem seria Zeus), levou uma brasa que lhe consumiu o ninho, como Pascoal da Silva teve sua casa queimada pelo alcatrão.91 Enquanto isso Luís Soares prendeu Filipe dos Santos em Cachoeira, que declarou não se desobrigar da quaresma havia sete anos e planejar ali um motim, tendo causado o de Vila Rica por ordem de Pascoal da Silva e do Mosqueira. Por sua confissão (note-se o peso do catolicismo na condenação) e ter sido apanhado em flagrante, foi no mesmo dia enforcado e esquartejado “com applauzo dos moradores” e nota de Ovídio (Íbis).92 Conhecendo agora a maldade dele, os moradores passaram a maldizer suas indústrias e aplaudir o conde. Para se verem nas Minas o castigo e o prêmio das “republicas” bem governadas – conforme Demócrito – o conde premiou Luís Soares com um hábito de Cristo “que por particular authoridade real
90 APM, AVC-17, f. 138v-140v (citações em f. 138v, 139r, 140r). O dito de Cícero na nota do f. 140v foi erradamente atribuído a Sêneca. 91 Ibidem, f. 140v-141v (citações em f. 141r-141v). 92 Conforme uma reflexão, Filipe dos Santos representaria os comerciantes e suas redes, grupo mais ameaçador no momento, enquanto décadas mais tarde Tiradentes representaria os militares, segmento que então ameaçava a sujeição a Portugal. CAMPOS, op. cit., p. 254.
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podia dispender”.93 Busca-se o exemplo na divisa do imperador Maximiliano com a águia de duas cabeças, na qual um bico sustenta o raio do castigo para os maus e outro, a coroa, como prêmio aos bons. Camões, Salústio (A conjuração de Catilina), Sá de Miranda e Agápito ladeiam o importante parágrafo, concluído com outra nota de Ovídio em Amores, aqui traduzida: “Tal morte foi coerente com a sua vida”.94 Adiante compara-se a ferida de Télefo (filho de Hércules) – feita e curada pela lança do herói Aquiles – à sublevação de 1720, remediada com “a mesma lança, que a fès”, por um dos livros de Tristia, de Ovídio. A cura da revolta por meio da lança aparece como eufemismo favorável ao governador de capitania.95 Com notas sobre Quinto Cúrcio e Plutarco, o texto seguinte refere Celenas, cidade da Frígia na qual Midas erigiu seu templo, onde uma formidável boca tragava casas e gentes. O oráculo respondeu a Midas para lançar nela o mais precioso: após lançar prata e ouro, a boca somente fechou com o sacrifício de Anchucro, o filho de Midas que nela se atirou. A fonte não citada, mais uma vez, é o livro de Nicolas Caussin. O feito é comparado à sublevação de Vila Rica, com o sacrifício da vida de Filipe dos Santos após o lançamento da prata dos editais e do ouro dos perdões, sem resultado.96 Ao final da primeira parte há trechos eloquentes, como o parágrafo margeado pelo dito de Salústio (A conjuração da Catilina): Acabem de entender os Princepes, que talves aumentam os dannos da republica com a sua piedade, e que em certas occazioins sam mais piedozos, quanto mais severos; poes a severidade que castiga a alguns, hé piedade, que absolve a muitos, porque esses poucos, que o rigor, para exemplo colheo as māos, fazem que, para triunfo da benignidade se prostrem à seus pés todos os mais. Nem como poderâ segurar-se, e fazer confiança nos bons vassallos o Princepe, que perdoa àos màos, quando hé sem duvida; que perdoar aos màos hé botar a perder os bons; e juntamente mostra a
93 O documento com a medida do governador é transcrito em CARVALHO, 1933, p. 249-251. Embora fosse prevista em casos extraordinários, a concessão do hábito ao que parece não foi concretizada, pois este nome não aparece nos registros do ANTT. OLIVAL, Fernanda. O Brasil na disputa pela política de “mercês extraordinárias” da coroa (séculos XVI-XVIII). In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes (orgs.). Império de várias faces: relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo: Alameda, 2009, p. 169. Em 1717 Luís Soares Meirelles teria patente de tenente. Almotacé na câmara de Vila Rica, foi eleito provedor dos quintos dos distritos daquela vila em 1718. GASPAR, 2016, p. 324-325, 375 e 377. 94 APM, AVC-17, f. 142r-144r (citações em f. 143r e 143v). 95 A passagem pode ter sido inspirada no recurso alquímico do “unguento de armas”, como veremos no Capítulo 5. 96 APM, AVC-17, f. 144r-145r (citação em f. 144r).
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experiencia, que nada humilha, e derruba tanto a insolencia dos Coraçoe’s rebeldes, como a formidavel vȯz, e horroroza vista de hum successo tragico.97
Sucedido pelo trecho abaixo, anotado à margem com versos de Lucrécio e Camões: E veja-se como este merecido castigo de Philippe dos Santos, e justa queima do Morro fes hu’ tal effeito, que i’mediatamente se afogaram os motins, e cessaram por toda a parte as perturbaçoe’s, trocando-se o furor em brandura, a ousadia em rendimento, a violencia em sogeyça’o.98
Os cúmplices são enfim como as moscas que atormentam Hércules – por meio de Pausânias em nota – voando do rio Alfeu ao das Velhas e aos currais da Bahia, onde ficam seguros. Os delitos feitos nas Minas não costumam acompanhar os que saem, sendo essa a razão dos excessos vistos no país. Esta seria a relação do motim ou sublevação das Minas “à que jà aqui, deramos fim” (na primeira pessoa do plural). Os mineiros deviam agradecer a Deus “o especial beneficio, com que por industria, intelligencia, e resoluçam grāde do Conde” livrou-os da opressão e da tirania que os ameaçavam “e à todo o estado”. Se não aplaudissem o conde como a Constantino, ao libertar Roma das crueldades de Magêncio, ao menos deviam lembrá-lo com felicidade num arco de triunfo com a inscrição Fundatori quietis (fundador de repouso), sem duvidar se houve excesso no castigo dos culpados, entendendo “que nos termos prezentes” o castigo era “na quella forma de extrema necessidade”.99
Muitas razões A segunda parte do manuscrito, dedicada às “razoe’s que teve o Conde general para proceder sum’ariamente ao Castigo”, anunciada ao início do texto e com subtítulo escrito em letras maiores, corresponde a 38 % do total de páginas
97 Ibidem, f. 145r-145v. Os sublinhados são meus. No início o tom imperativo, ousado e quebrando o decoro se o códice fosse recebido por um magistrado a serviço da coroa. No fim a função poética evidente pela busca da sonoridade das palavras. Sobre os decoros interno e externo da obra, cf. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 368-369. 98 APM, AVC-17, f. 145v. 99 Ibidem, f. 145v-147r (citações em f. 146v-147r).
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escritas. Inicia com a série retumbante de nove parágrafos começados em forma de anáfora – ou seja, com expressões repetidas e aproximadas. No primeiro deles “Era de extrema necessidade o Castigo” pois, após o conde lidar com as propostas do povo e conceder dois perdões, o atrevimento e a rebeldia continuaram por 18 dias, quando vários andaram armados nas ruas insinuando que o motim pretendia expulsar o governador “e mais ministros de sua Magestade, e a erecçam da republica, à que se tinha assentado reduzir este estado”.100 Também “Era de extrema necessidade” porque na comarca de Rio das Velhas se adotou a proposta de Vila Rica e seu ouvidor reclamava sobre o perigo do motim espalhar-se se não fosse despedaçado “no berço”. Igualmente “Era de extrema necessidade”, pois os principais de São João d’El-Rei, predispostos a socorrer o conde caso fossem chamados, lhe escreveram sobre o risco de aprovar-se naquela comarca a proposta dos amotinados de Vila Rica sobre a casa de fundição. Também “Era de extrema necessidade” se os “braços apartados deste governo” seguissem os levantados, pois nesse caso seria quase impossível o remédio. Relembra-se o ocorrido em Pitangui, onde o provedor cobrou os quintos sem queixa dos povos, mas quando foi entregá-los o mandaram voltar, esperando o sucesso do motim. Ao conde pareceu ser esta a conjunção para o castigo para não suceder o mesmo em Serro do Frio, onde Antonio Soares Ferreira dava a lei, favorecendo insultos e assassinatos. Era importante mostrar aos povos que nada o assombrava, tendo o braço armado sobre régulos e insolentes. Por isso mandou atacar também Antonio Soares e sequazes. E assim os de Vila Rica, vendo o castigo dos vizinhos, moderariam os excessos. Neste quarto parágrafo anafórico há um trecho em nota de Metamorfoses sobre a ferida incurável, aberta com punhal para a parte sã não ser contaminada.101 Igualmente “Era de extrema necessidade” pois os outros povos, que respiravam mais liberdade, esperavam o sucesso de Vila Rica a fim de passarem ao
100 Ibidem, f. 147v. 101 Ibidem, f. 148r-150v (citações em f. 148r e 148v). O paulista Antonio Soares Ferreira descobriu as minas de Serro do Frio, sendo guarda-mor em seus primeiros tempos. A leitura do Discurso endossa a dificuldade de se cobrar o quinto no Mato Dentro. Em 1718 o governador Pedro de Almeida ordenou o fim da exploração de ouro no local enquanto Soares Ferreira não repartisse as lavras em datas minerais. Ferreira tentou escapar à prisão fugindo, mas acabou sendo morto. O governador repartiu as datas em Vila do Príncipe, fundada em 1714. Em fevereiro de 1720 foi criada a comarca de Serro do Frio, mantida sob jurisdição mineira e não da Bahia, como se disputava. SILVA, Dario Augusto Ferreira da. Memoria sobre o Serro antigo. Cidade do Serro: Typ. Serrana, 1928; e CAMPOS, op. cit., p. 217.
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seu partido, fomentados pelos poderosos – desconfiando-se que estivessem confederados. Compara-se então o governo do conde a Hércules ante hidras e leões. No sexto e longo parágrafo anafórico, “Era de extrema necessidade” porque embora alguns de Vila do Carmo acompanhassem o conde, eles estavam “tam possuidos do medo” que podiam aderir aos levantados, chegando a dizer na sala do palácio que, sobre a casa de fundição, igualavam-se aos povos. Alguns deixavam-se ouvir pelos desordeiros – fazendo como Tibério, delegando aos deuses a resolução de suas injúrias. Não acudiam assim ao conde com eficácia, conforme nota de Museu (Ero e Leandro), sendo manhosos como a velha da fábula de Esopo, que iludia o lobo ao dizer uma coisa e fazer outra. Espalhavam notícias sobre o pouco poder do conde. Desse modo a obediência estava quase perdida no governo, pois o pânico com a duração dos motins fazia crível a ruína “do estado”, apesar de todos se declararem “por El-Rey”.102 “Era de extrema necessidade” também, pois foi preciso mostrar aos cabeças do motim “que bastava hua’ sombra, ou imagem” do rei “reprezentada no seu lugar tenente” para sua justiça ser triunfante e seus ministros respeitados. Era preciso desfazer o conceito de que o conde castigara os delitos mais severamente que outros governadores. Se ele pudesse pacificar os tumultos com brandura, entenderiam que receava. A referência em nota é Salústio, pela conjura de Catilina, mais uma vez. A situação seria degrau para maiores inquietações no fim do governo, ficando sem autoridade para exercer o mando, sujeito ao arbítrio dos povos, atado à disposição dos poderosos. Desse modo, “nam conseguido o projecto da republica”, deixava a obediência e as leis ao sucessor.103 Conforme ainda o oitavo parágrafo, “Era de extrema necessidade”, pois a prisão dos cabeças não cessou os motins. Na noite seguinte houve mais tumultos, arrombando-se portas e janelas de casas, profanando-se a igreja matriz – com nota de Sêneca sobre a falta de bons costumes, decoro e pudor, erradamente atribuída a Plutarco – e matando-se gente. Mas no espelho do dia as máscaras ocultas à noite caíram, com outra nota de Sêneca (Sobre a ira). E assim o conde soube dos levantados nos matos, do filho de Pascoal da Silva com 200 negros armados e que
102 APM, AVC-17, f. 150r-153r (citações em f. 150r, 151r, 152v). 103 Ibidem, f. 153r-154r (citações em f. 153r, 153v).
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Filipe dos Santos e outros sublevavam em São Bartolomeu, Cachoeira, Itaubira e Congonhas, convocando também gente do Rio das Velhas (onde Pascoal da Silva possuía parentes) para soltarem os presos e sitiar o conde em Vila Rica, expulsando-o das Minas.104 “Era finalmente de extrema necessidade o castigo”, por não haver mais esperança de um terceiro perdão, uma vez “ultrajados os meyos da suavidade, e esgotados os remedios lentos, e maturativos”. Desse modo seria erro grave suavizar com anódinos a enfermidade a ser purgada com medicamentos fortes. À maneira de Cícero na 2a Catilinária, clamava-se por severidade em lugar de ingenuidade, pois a urgência “nao’ consentia vagares”. Com todos os perigos ameaçando “o credito de El-Rey, e seu Lugar tenente empenhado”, vendo-se tratar de aclamar Sebastião da Veiga e depor o conde, este só teria ânimo para suster, reprimir e destroçar os insultos, a fim de conservar a honra. “Por todas estas razoe’s, e outras, que logo iremos notando, nao’ podia neste paîz ser outro, nem mais lento o castigo”105 – nesses parágrafos há uso de termos médicos para referir o corpo político, imitam-se as orações de Cícero e o relato de Salústio no argumento e emprega-se o primeiro pronome no plural no fim. Mais que outros, devia-se castigar severamente este motim por ser uma rebelião contra o soberano. O castigo não devia ser lento. Executá-lo vagarosamente seria metamorfosear “em dan’o o remedio”. Especialmente nas Minas, onde nunca se viu o golpe do braço real sobre os delinquentes. “Lastimozo, e desgraçado paiz o das Minas, onde parece se ignorava atè aqui, que cabia na jurdiçam do Principe castigar a rebeldia dos vassallos!”106 Assim, na “republica” não se devia consentir qualquer rebelião. A gravidade do delito parece não caber nas forças de um ministro, por isso o espartano Agesilau – conforme Plutarco – quis que o castigo fosse uma obrigação imediata do soberano ou seu representante. Para João Crisóstomo, os príncipes deviam reprimir a rebelião licenciosa e desordenada do povo, conforme trecho no Discurso em latim. Segundo Cneio Domicio – mediante Cícero (Discurso a favor de Milo) – os príncipes
104 Ibidem, f. 154r-155r. 105 Ibidem, f. 155r-156r (citações em f. 155r, 155v e 156r). 106 Ibidem, f. 156r-157r (citações em f. 156v e 157r).
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deviam resistir à multidão volúvel e à temeridade dos dissolutos. Dessa forma o castigo importava no “credito de Sua Magestade”. Mais que em outra parte “das muitas do seu dominio”, era preciso ver “severissimas demonstraçoe’s, e rigorozos effeitos do seu poder”. Pois era voz comum “desde o principio das Minas, que nellas nao’ tinha El-Rey mais poder, que o que os Mineyros lhe quizessem permitir”. Os mineiros, nos motins sem castigo, em vez de reconhecerem a benignidade real, não reputavam “o poder de sua Magestade; e parece que com algua’ razam”.107 Anuncia-se o tema da reputação desenvolvido nos parágrafos seguintes, bastante traduzidos de um adjunto escrito por Giovanni Botero a sua Della ragion di stato.108 Pelo pequeno tratado “Della riputatione del prencipe”, segundo o poeta Torquato Tasso, o vinheiro, em busca de melhores uvas, poda a vinha muitas vezes. Assim, aquele que deseja ganhar reputação deve podar os seus excessos, sendo reputar o mesmo que podar. Conforme o Discurso, Botero não concorda que a reputação seja no reputante uma ação passiva, pois ela seria composta de temor e amor dos vassalos em relação ao príncipe. Embora reputado e reputante concorram para formar a reputação – e nesse sentido fica de pé a opinião de Tasso – “eu facilmente acomodara a seguilla” (uso da primeira pessoa, num raciocínio já distinto do de Botero no dito tratado) se ele mandasse o reputado podar e não o reputante, “porque bem pòde ser hum Principe perfeito, sem haver nelle cousa, que se condene, e com tudo nao’ ter reputaçam algua’”.109 Portanto, o príncipe deve podar os vassalos e não a si mesmo. Segue uma exortação ao rei português com nota atribuída a Salústio (na realidade Salviano de Marselha, em erro gráfico do escriba ou da fonte consultada): Pòde Sua Magestade nestes vassallos os atrevimentos, pòde as dezobediencias, pòde, e tire (pois que pòde) as rebeldias, e logo nao’ haverâ nestas Minas vassallo, que em seu felicissimo tempo se atreva a sahir hum só passo fora das suas leys, e fora das ordens dos seus governadores, e á pouco custo sustentarâ, entre os Mineyros, aquella reputaçao’, que o tem feito primeyro entre os mayores Principes do mundo.110
107 Ibidem, f. 157r-158r (citação em f. 158r). 108 Por exemplo a de Roma em 1598, a de Veneza em 1606 e posteriores. TORGAL, Luís Reis; RALHA, Rafaella Longobardi (orgs.). João Botero. Da razão de Estado. Tradução de Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992 [1589], p. LII. 109 APM, AVC-17, f. 158v-159v (citações em f. 159r e 159v). 110 Ibidem, f. 159v-160r.
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O Discurso continua na primeira pessoa: “Bem sey, (como ainda agora acabo de dizer)” que o amor dos vassalos compõe a reputação, atando-os à obediência do príncipe. Essa afeição entraria mais pelos olhos que por ouvidos, segundo Camões em verso. Evoca-se assim a cidade de Gand amotinada no tempo de Carlos V, “porque nas estreytezas do sangue humilde nao’ pode caber a excellencia illustre, e a fineza rara do amor dezenteressado ào Princepe”. Nas Minas, os chamados grandes criaram-se na servidão. Rústicos e atrevidos, os grandes ignoravam as pensões dos vassalos e as regalias do príncipe, confiados na distância do monarca, “benigno Sol deste hemisferio”. Mas, desconhecendo as diferenças e a obediência, converteram essa luz “benigna” do planeta nos rigores do incêndio: “abraze, gaste, e destrua tantas fezes, que lhe dan’am as suas Minas” – note-se a argumentação de cunho aristocrático, a alusão a d. João V como Sol no hemisfério sul, sua transformação em fogo provocando o incêndio do morro e a recorrente analogia entre ouro e fezes.111 Crescendo em dramaticidade, no Discurso se argumenta que, por causa da distância e do defeito dos vassalos mineiros, o príncipe teria apenas o temor como remédio de sua reputação (percebe-se aqui a volta do tratado de Botero e por trás ideias maquiavelianas). Deus também recorreria ao temor para sua reputação, com trovões e ferindo às vezes com o raio. Se os homens sabiam pelos raios que Júpiter governava os céus – conforme nota de Lucano em Farsália – “nam hà que estranhar, que ignorem os Mineyros, que há Rey, que domine este paiz, onde nunca foy visto o seu rayo”. Pois segundo o cronista Godofredo de Viterbo, reforçado por Lívio em nota, com a espada na baynha nao’ he possivel sogeitar ao mundo, que sô se pode governar com a torrente do sāgue humano, concluindo que o Princepe, que quizer reynar estabeleça, authorize e faça que á custa do sange dos Vassallos se guardem as suas leys, [...] porque senam punir as maldades, nao’ hé Princepe em realidade, hé hua’ representaçao’, e sōbra de Princepe. Poes hé certo q’ o decoro real nem se vincula ào sceptro, nem se anexa à coroa, avulta sim nos golpes do montante, no estrondo das artelharias, no tropel dos Cavallos, e na multidao’ dos infantes, porque só onde se lhe temem as forças hé despotica a Soberania, e sô entam obra livre, e respeitada, quando lhe assistem o braço alentado, e a ma’o armada.112
111 Ibidem, f. 160r-161r (citações em f. 160r, 160v e 161r). 112 Ibidem, f. 161r-162v (citações em f. 161v-162v).
Textura espelhada
Note-se a passagem veemente, indecorosa se lida por representantes régios ou mesmo num círculo português mais amplo. Em seguida menciona-se Ciro, que ao marchar para a Etiópia, acabou se retirando quando o rei etíope lhe mostrou seu arco – base de sua reputação. Mas nas Minas, vemos particulares com quase 40 armas postas em suas salas, servindo mais à vaidade que à defesa. Assim granjeiam crédito, estimações, obediências; dificilmente os governadores os mandam prender. Volta-se então a advertir o comportamento régio: “se sua Magestade [...] nao’ attender a sustentar a sua reputaçaô, e a conservar a authoridade dos seus governadores, parece que deixa desobrigado ao mesmo governador de acudir com tanto risco de sua vida por essa reputaçao’”. Pois os vassalos eram “como a flor Gigante, que segue os movimentos ao Sol”. O rei devia assim retirar a árvore da desobediência “que aqui se acha tam crescida, que pretende fazer sombra à Soberania, e independencia do throno”, para governadores e vassalos “à custa do sangue de suas veas” oporem-se aos transgressores da sua lei.113 Quando o povo impugnou as casas de fundição antes do seu estabelecimento, sem sujeitar-se ao rei, não se devia confirmar o perdão. Porquanto Perseu, rei da Macedônia, ao vencer o cônsul Públio Licínio pediu a paz, mas este respondeu-lhe que só a obteria pondo seu reino sob o domínio romano. Após esses eventos aproximados, volta-se ao uso da primeira pessoa: “Nao’ ignoro, que houve tempo, em que nas Minas conveyo dissimular muitas couzas, mas deviam depois, ou dentro, ou fora dellas, executar-se logo as penas dos delictos”, pelo atrevimento dos rebeldes que não respeitavam o sagrado – conforme outro apotegma de Erasmo. Por isso “hé bem que em toda a parte se castigue” – a pouca religião dos rebeldes justificava a dissimulação do conde.114 Seguem um trecho em latim e uma nota do tratado médico de Francisco Vannotius. Virgilio Malvezzi (David perseguido) também reforça que a reputação pesa mais no príncipe que no estado e na própria vida, com trecho da versão espanhola atribuída a Francisco de Quevedo. “E porque esta doutrina se funde em experiencia, sem sahir do Brasil” se passa ao quilombo dos Palmares, onde negros fugidos sem arte, disciplina, discurso, armas ou dinheiro deram muito trabalho à capitania de 113 Ibidem, f. 162v-164r (citações em f. 163r, 163v e 164r). Note-se o tom condicional e ousado da advertência simulada ao rei. 114 Ibidem, f. 164r-165r (citações em f. 164v, 165r).
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Pernambuco, sendo necessário “puxar por todas as forças do estado”. Após dissertar sobre a dificuldade de dominar aquele sertão, pondera-se sobre o âmbito mineiro, onde seus habitantes não reconhecem superioridade, “na medulla dos certoe’s da America” de difícil sujeição por razões notórias, “mas por outras muitas, que nam sao’ estranhas em mayor comprehensam, e que eu por hora callo” – consoante à elegia de Camões em nota.115 As Minas, com o maior cabedal da América e do reino, seriam prejudiciais à coroa, pois segundo Botero a reputação é o verdadeiro patrimônio do príncipe e na opinião do “moderno” Juan Baptista Valenzuela – em nota e citado em latim no texto – o rei é rico ao conservá-la e pobre ao perdê-la. Lembra-se o “Illustrissimo Politico digno de melhor fortuna” Sebastião César de Meneses (Suma política) para respaldar o crédito do rei e o uso do castigo no freio dos excessos (uma das poucas referências às letras portuguesas de cunho nitidamente político) e outra fábula de Esopo, sobre a serpente queixosa de que todos a pisavam, com a resposta de Júpiter (em origem Zeus) para ela morder logo a fim de impor-se. Seguem então novas remissões a Gaspar Pinto Correia, Horácio e principalmente Nicolas Caussin – em quem o longo parágrafo se estende, imitando-o. A argumentação encerra com Cícero, comentando a esperança da impunidade (Discurso a favor de Milo).116 Após novo verso de Camões o Discurso particulariza os motins, “que eu brevemente mostrarey quantos tem havido, e ninguem me mostrarâ, que se lhes desse mais castigo, que o perdam”. Lembra-se então a “soblevaçao’ geral de reynoes contra Paulistas”, com Manoel Nunes Viana, que “se levantou despoticamente cô o governo”, arrogando a si as regalias do trono, criando tribunais e postos, “deixando apenas para o Soberano o nome da Magestade”, só se retirando com a chegada de António de Albuquerque. Mas seu delito foi bem-sucedido, pois o “Santelmo do perdam” confirmou todos nos postos por ele criados. Notas sobre a felicidade, a glória e a impunidade no crime por Cícero (Filípicas), Lúcio Floro e Lívio ladeiam o argumento iniciado na primeira pessoa do singular.117 Na volta à carga a Nunes Viana, o registro no tom satírico é flagrante: 115 Ibidem, f. 165v-168r (citações em f. 166r, 166v, 167v, 168r). 116 Ibidem, f. 168r-171v (citações em f. 168v e 169v). Valenzuela foi bispo de Salamanca no reinado de Felipe III e autor do Discursus, & animadversiones de status, ac belli, de onde se retirou a citação. 117 Ibidem, f. 171v-173r (citações em f. 171v e 172r e 172v).
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Desde entam, como de Cicero dis Juvenal, este novo Vianna, ou de Vianna, de vil transformado em grande [imitação da sátira de Juvenal em nota, sobre pretenso enobrecimento do potentado], se armou positivamente contra as justiças, oppos-se ás mayores difficuldades, e entendeo com tudo, dominando absoluto, e despotico em ambos os foros as Minas, e feito no rio de Sam Francisco Senhor da que’, e dalém [pelos epigrama de Marcial em nota e trecho de Suetônio sobre o domínio arbitrário de César, provocação com o título dos reis lusos], naô hé como os nossos poderozos, que huns tem o seu destrito no ouro preto, ribeyram do Carmo, e rio das mortes, outros no Sabarâ, Cayetê, e mato dentro, terminando-se nestes montes, ou na quelles rios o seu dominio [crítica aos poderes limitados dos governadores régios], tem hua’ jurdiçam, que nao’ conhece horizonte [fora do percurso do ano e do sol, conforme a Eneida]: tiranisa ambos os governos da Bahia, e Parnambuco, e se houvessem mais governos, podiamos dizer da sua insolencia o que do valor dos Portuguezes disse Camoe’s [...].118
Em sequência a versos de Camões e Gabriel Pereira, mencionam-se os motins no Ribeirão contra o ouvidor no tempo do governo anterior de Brás Baltasar da Silveira, sobre o corte do gado e a contagem dos quintos por bateia, além de outro no Papagaio com o ouvidor-geral. No Pitangui houve três, proibindo a entrada de reinóis e da justiça ou impondo a morte a quem pagasse o quinto. Embora condenados, os motins eram tolerados por costume, conforme nota de Salústio (A guerra contra Jugurta). Eram como a árvore de ouro do “Poeta” (Camões), da qual, ao tirar-se um ramo, surgia outro; ou como o trabalho dos ciclopes na oficina de Vulcano, com golpes sucessivos segundo a Ulisseia; ou como a corda tirada pelos troianos “para incendio de sua pátria” (Eneida). “Digamos tudo de hua’ ves”: os motins eram resquícios exalando o contágio da primeira sublevação, pois a “Serpente do Vianna” deixou infeccionadas as Minas, quélidro (na tradução de Lucano em Farsália) há muito “humeando” a terra com venenos – como no incêndio provocado por Druso, segundo Lúcio Floro.119 Assim o povo obedecia mais aos poderosos que aos ministros régios, por ver leis, direitos, sentenças, paz e guerra, até a jurisdição eclesiástica em seu poder. Favorecidos, honrados e ricos, eles viviam como “Principes das Minas” não sujeitos ao castigo e certos do perdão. Quatro notas de Salústio (A guerra contra Jugurta e A
118 Ibidem, f. 173r-173v. O sublinhado e os trechos entre colchetes são meus. Ver MONTEIRO, 2002, p. 304-305. 119 APM, AVC-17, f. 173v-175v (citações em f. 174v e 175r).
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conjuração de Catilina) respaldam a amplificação, terminada com frase de Francisco Manuel de Melo sobre sua história da Catalunha: “ni siempre el perdon se cuenta por virtud”.120 Após mais um verso de Camões, evoca-se Plutarco sobre a vingança tardia – ou castigo – dos deuses, voltando-se ao tema da reputação régia, pois o “estado só entam se segura bem” quando o príncipe não sofre pela desobediência dos atrevidos. Conforme Virgilio Malvezzi (El Rómulo) citado em espanhol, o respeito é a alma do senhorio, sendo o desprezado um cadáver, não um príncipe. Na nota seguinte surge nova remissão às Heroides, pela carta de Helena de Troia a Páris, com menção ao gigante Briareu de cem braços, análogo ao poder do rei, semelhante por sua vez ao Sol, capaz de ferir do monte ao vale mais distante. Após breves remissões a Faetonte (o filho de Hélios fulminado por um raio de Júpiter) e ao mortal e invejoso Salmoneu, continua-se com o episódio do rei da Arcádia Licáon, rebelado ao promover um festim, punido pelo rei dos deuses com sua metamorfose em lobo, por meio de Ovídio. Da mitologia à história, a serviço do argumento: “Castiguem-se atrevimentos, que eu fico, que no castigo do presente motim melhor se alcanse a gravidade dos passados”. Cícero não ignorou a malícia e a enormidade das sedições, interrogando-se que pena seria aplicada a tão grave delito. O cônsul fulmina então o seu discurso contra os sediciosos, com trecho modificado das Filípicas – produzidas outrora contra Marco Antônio. Também contra Catilina, pedindo a Júpiter que afaste os aliados na conjuração. Na Igreja católica, num concílio de Toledo se promulga a excomunhão dos conspiradores do poder régio, com trecho citado em latim.121 No parágrafo seguinte comenta-se: “Agora me ocorre a consideraçao’” a vontade de se excomungar “o Conde” pelo castigo – atenção ao uso diferente dos pronomes. Defende-se que antes foram promulgados editais, bandos e perdões visando conciliar os que “inficionavam” o governo. Fez-se então como o general romano Sula, mandando matar os que cresciam com os motins “e danno da Republica”; ou como Alexandre, punindo os sediciosos com a pena de morte; ou Júlio César, inexorável no castigo, por Suetônio. “Nem me digam, que nam hé
120 Ibidem, f. 176r-176v (citação em f. 176v). 121 Ibidem, f. 177r-179v (citações em f. 177r, 178v).
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o mesmo impugnar em parte as dispoziçoe’s do Soberano, que faltar em tudo, como rebelde â obediência”, pois conforme uma epístola de Cassiodoro (político do reino ostrogodo na península itálica), se parte de uma ordem não é observada, ela é violada por inteiro. Ainda mais ao pretender destruir a lei do monarca aceita há um ano e expulsar o conde e os ouvidores, “com animo de reduzir o estado à hua’ republica, ou eleger novo governador”.122 O castigo seria “Terrible” segundo “hum Politico nosso com nome, e vóz estranha” – Francisco Manuel de Melo sobre a história da Catalunha. Embora o conde tentasse acalmar os tumultos para “o socego da republica”, ele castigou por correr risco de vida e para manter a paz, a lei e o bem público. Conforme o martírio de Eleazar (Macabeus) e “modernamente dictou” frei Felix Potestas em latim, o medo de um perigo, se implica em dano maior para a república, obriga a transgredir a lei, pois o bem comum precede o individual. Dessa forma, segundo Cícero (contra Catilina) a culpa não seria sua, mas das circunstâncias. Conforme o Discurso o conde teve muitas razões – ouvindo Platão (para quem o apressado teria dificuldade para obter os fins) e Sêneca (tragédia Agamenon, Sobre a ira), ao dizer que os pecadores deviam ser primeiro corrigidos com brandura, depois com severidade. Mas na nota de Ovídio (Metamorfoses) altera-se de novo o significante em benefício da expressão traduzida: “Primeiramente deve-se tentar tudo”. Volta-se então em nota ao pequeno tratado sobre a reputação de Botero.123 Em seguida a outro verso de Camões e uma nota de Lucano, argumenta-se que o conde castigara a fim de não pôr “em mayor perigo o estado”. Conforme Virgilio Malvezzi (El Rómulo), “las buenas resoluciones pocas vezes se toman interas: en todas as cosas se hallan peligros; y por asegurar-se del mal, nó se hase sinó la mitad del bien”. De novo por um soneto de Camões, sucedido por um trecho de César (A guerra das Gálias), defende-se o castigo repentino. O motim seria raro onde as forças do príncipe fossem superiores aos levantados, com castigos extrajudiciais. Como as águas, os motins começam em fontes e despenham em rios, aumentando a corrente furiosa. Mas segundo a Política de Aristóteles, a sedição se acalma ante coisas grandes. Nesse ponto Ovídio é o pivô de uma menção aos antigos e moder122 Ibidem, f. 180r-181v (citações em f. 180r, 180v, 181r, 181v). 123 Ibidem, f. 181v-184r (citações em f. 181v, 182r, 183r, 183v).
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nos, aproximados pelo emblema de Florens Schoonhoven, sendo ambos os autores referidos no texto central. Pelo Discurso, antigos e modernos queriam o mesmo em face das revoltas, mas se reconhece que Ovídio em Remédios do amor versava sobre assuntos distintos dos tratados pelo holandês seiscentista. Mais uma vez, imagens e escritos são destituídos dos primeiros significantes, apropriados como “razões” para a aplicação do castigo sumário. A pluralidade temática se completa pelas notas marginais. Nessas, após mencionar-se o livro de Gaspar Pinto Correa de 1643 sobre Portugal no tempo dos Felipes, quando os lusitanos viviam sob o cativeiro de Madrid, semelhante a uma Babilônia, desponta a citação de um livro sobre a educação da juventude cristã do jesuíta francês Laurent Le Brun, aludindo aos babilônicos como fetos antes de adolescerem para serem destruídos.124 Nesse caleidoscópio de significados e linguagens, a árvore alegórica – mencionada no emblema de Schoonhoven – retorna por epístolas de Cassiodoro, ao incentivar a poda nas pequenas árvores, pois os ramos seriam grandes no futuro e a correção acelerada remediaria o mal. Como Salústio (A conjuração de Catilina) ao elogiar a celeridade, ou Tácito – “grande mestre de Principes” – aconselhando a prontidão, ou Diego de Saavedra Fajardo (Idea de un príncipe político christiano), para quem era melhor não dissimular os desacatos, tirando logo as cabeças dos sediciosos e exibindo-as em público. O mesmo teria feito Cipião Africano segundo Plutarco e antes ponderou Platão (A república) e depois Tácito (Anais) – histórias andando em círculos em torno de uma ideia. Contudo, a preferência autoral se revela: “E melhor que todos o Causino” (Nicolas Caussin), para quem (citando em espanhol) era preciso ir logo ao início dos conselhos turbulentos das maldades.125 Os Anais de Tácito voltam a ser invocados, juntamente com a vida de Agrícola, sobre os limites da dissimulação e da paciência, com o acorde de Maeróbio sobre os exemplos, mais eficazes que a razão. Conforme Valério Máximo (Feitos e ditos memoráveis) o castigo deve ser áspero e repentino. O conde devia seguir esses exemplos, pois primeiro admitiu propostas, publicou editais, concedeu perdões.
124 Ibidem, f. 184r-186v. Nas palavras do Discurso: “todos os Politicos assim antigos, como modernos se cansam em intimar, e persuadir, que no principio com a mayor severidade se atalhem os motins, porque nao’ succeda nelles, o que nas arvores, e nos vicios succede [...] advertencia, ainda que á diverso intento de Ovidio, de onde tirou Schoonhovio a idēa para o seu emblema quarenta, e seis”. Ibidem, f. 186r-186v. 125 Ibidem, f. 186v-188r (citações em f. 187r, 188r).
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Frustradas as diligências, prendeu as cabeças e “devendo apartallas dos corpos” castigou “levemente na fazenda, onde era menos sensivel o golpe, a Pasqual da Silva, e á poucos mais, que com elle visinhavao’ no Morro”. Após o eufemismo favorável a Pedro Miguel resumem-se os episódios da repressão, margeados por Virgílio, com o respaldo de Diego Saavedra e Tácito (Anais) no texto central. Versos de Camões, cantos de Gabriel Pereira e uma écloga de Sá de Miranda ornam os danos causados pelo “principal motor Philippe dos Santos”, sua prisão e confissão. Por isso, “feito su’mario, o mandou o Conde arrastar pelas ruas, e depois de enforcado, esquartejar, mais para terror, que para castigo”, pois os mineiros bárbaros temiam mais as circunstâncias que a morte, conforme Maximiliano de Habsburgo por meio de Solórzano Pereira em nota. Estremecidos seus ânimos – com Camões ao lado tratando do medo – ocultaram-se nos confins do governo, ou nos sertões da Bahia e de Pernambuco.126 Nesse passo recorda-se a história contada por Justo Lípsio, quando leões na África não deixavam cultivar os campos, sendo necessário matar alguns e crucificá-los para assombrar os outros. Por isso devia-se proceder com rigor contra Filipe dos Santos, conforme o grego Símaco e Sêneca (Sobre a ira) em notas. Na Bahia e no Rio de Janeiro, muitos não conheciam os mineiros. O autor (em primeira pessoa) admira mais a paciência do conde que a insolência dos cabeças e seus aderentes. Dirige-se então mais uma vez aos leitores para que ouçam o “Causino” (Caussin): muchos claman (dis elle) por la clemencia, más nó conocen las cosas, ni los hombres. Ay que luchar muchas vezes con gentes asperas, e indomitas, que siendo arrojadas para emprender, nó tienen conciencia para bolver sobre si, si con suavidad quisiera alguno governar-las, procurando ser clemente, vendria à ser cruelissimo.127
Da clemência principesca à do Cristo, com comentários bem católicos, mas acrescidos de notas do historiador latino Quinto Cúrcio e de Camões. Indaga-se – como Cícero (Discurso a favor de Ligário) – que homem a não ser o conde seria tão constante ou paciente? O diálogo prossegue: “Nam se persuada ninguem, que depois de apurado, entre tantas sem rasoe’s, o sofrimento cedeo aqui a piedade ȧo
126 Ibidem, f. 188r-191v (citações em f. 189r, 190v, 191r). 127 Ibidem, f. 193v. CAVSINO, Nicolas. La corte santa. Traducción de d. Pedro Gonzalez de Godoy. Barcelona: Rafael Figuerò, 1698 , t. III, p. 164. O texto no Discurso foi cortado e um pouco alterado, sem mudar o sentido. Note-se a publicação catalã do mesmo impressor da corte austracista em Barcelona no tempo da guerra, como vimos no Capítulo 2.
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rigor”. A execução da justiça não diminuiu a clemência do conde, que castigou ao ver que a misericórdia traria maior ruína. Três notas de Ovídio adornam o trecho com alterações de significantes, pois os versos do jovem poeta latino tratavam de casos amorosos na Roma antiga. O referencial político volta no fim do parágrafo com Salústio (A guerra contra Jugurta) e Sêneca (Sobre a ira) em moldes mais estoicos, para quem a morte seria a melhor misericórdia.128 Após uma rima de Camões, relata-se que o senador romano Sexto Júlio Frontino, cônsul em vários governos, dizia ser pior viver sob um príncipe permissivo – “Como aqui succedeo sempre em todos os governos passados” e em Roma no tempo de Nerva – que sob um que nada permitia. Volve à cena Caussin, aconselhando severidade e rigor aos príncipes e ministros, mas lembrando a sua profissão defendeu também a clemência.129 A digressão é sucedida por uma écloga de Sá de Miranda, reforçando o diálogo com o leitor em prol do castigo a remediar o dano. Segundo a Catilinária de Cícero, era preciso amputar para corrigir, enquanto o Discurso imita-o no sentido de remediar. Para Sêneca (Sobre a ira), “com toda a severidade Estoyca”, os maus mortais deviam ser extintos. Salústio (A guerra contra Jugurta) – pela voz de Caio Mêmio – advoga que o direito deve permitir o derrame de sangue em prol da satisfação pública.130 Respondendo aos mineiros, segundo o autor (na primeira pessoa) muitos – com a consciência enlaçada na culpa segundo Cícero em nota (Discurso a favor de Milo) – não viam a morte de Filipe dos Santos e o fogo no morro como bom procedimento. Justifica-se assim por Tácito (Anais) a não convocação de ouvidores regionais para a junta, mediante o exemplo do conselho tardio de Helvídio Prisco durante a contenda entre os imperadores Vitélio e Vespasiano. Na mesma lógica de alterarem-se os contextos para produzir significados comuns, versos de Ovídio (Amores) margeiam o trecho, sucedidos por referências abreviadas obtidas por Solórzano Pereira, de difícil identificação. Era preciso remediar o dano antes “que perigue o estado”. Para Salústio (A conjuração de Catilina) os romanos castigavam logo
128 APM, AVC-17, f. 193v-194v (citação em f. 194v). 129 Ibidem, f. 195r-196r. O trecho do Discurso aparece ligeiramente alterado em relação à edição de origem. CAVSINO, 1698, disertación XXXVI (de las penas, y premios), p. 235-238 (citação à p. 237). 130 APM, AVC-17, f. 195r-196v (citações em f. 195r, 196v).
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após a confissão ou quando a culpa fosse evidente e os “Doutores” (novamente com referências difíceis em nota) concordam que não se deve dilatar o castigo, como determinou o imperador Constantino, completado por um verso de Sá de Miranda.131 Neste “nosso caso” era público que Filipe dos Santos era criminoso e sublevava os povos e mascarados saíram de casas no morro para inquietar a vila – um crime notório, conforme o jurista Marco Antonio Sabelli, citado no texto central em latim e referenciado em nota. Desse modo as juntas não serviam para os casos violentos, perdendo-se grandes oportunidades nas palavras de Salústio (A conjuração de Catilina), como ocorria na dependência do imperador, de príncipes germânicos e do rei da Polônia ante dietas e comícios, que retardavam as empresas. Por isso a ocasião era a mãe dos bons sucessos, sendo fundamental aproveitá-la – segundo o rei Mitrídates, do Ponto, o macedônio Antígono, ou Políbio. O remédio era não convocar a junta, conforme Sá de Miranda diria ao conde em outra écloga (alterando-se o significante) e um soneto de Camões. Segue-se explicando o perigo de ocorrerem motins em outras comarcas nas Minas, sobretudo no Rio das Velhas – “e nunca teria boa desculpa o medico, que por atalhar o danno de hum braço, lhe applicasse remedio, que â todo o corpo causasse depoes mortal maligna”. De outro modo o conde iria contra preceitos de Platão e Cícero, sobre os governadores atenderem ao corpo inteiro da república, sentido arrematado por citação em espanhol do “Marquéz Virgilio” – Malvezzi, em David perseguido.132 Não era também conveniente a junta determinar o castigo dos culpados, conforme o uso heterodoxo de Ovídio em duas notas (Remédios do amor) sobre a demora que fortifica, pois isso exporia o conde ao atrevimento dos cabeças, embaraçando as decisões. Assentando portanto com Tácito e Salústio (A conjuração de Catilina) que o remédio das sedições era a celeridade, era preciso deixar os meios ordinários e “tentar os contràrios, sahir dos termos, e exceder a ordem”, conforme ditos de Solórzano Pereira (com trechos citados em latim no texto central) ou um édito do rei espartano Agesilau por Claudio Eliano, feito como se fosse para os motins de Vila Rica.133
131 Ibidem, f. 196v-198v (citação em f. 197v). 132 Ibidem, f. 198v-200r (citações em f. 198v, 200v, 201r). 133 Ibidem, f. 200r-202v (citação em f. 202r).
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Para que “nao’ tropece a consciencia no menor escrupulo” busca-se o aval do frei agostiniano Juan Márquez (El governador christiano). O professor de teologia em Salamanca louva Tito Lívio, ao tratar do rei de Roma Túlio Hostílio pela morte do soberano albanês Mécio Fufécio. A prontidão também foi defendida pelo jurista romano Ulpiano, pelo quinhentista da Sicília Mauro Burgio, por Bártolo de Sassoferrato e sobretudo Solórzano Pereira, para quem as leis variam como as metamorfoses do deus Proteu. Mais uma vez finda-se o parágrafo com verso de Sá de Miranda. Continua-se no mesmo sentido com Tomás de Aquino, uma regra do direito canônico e uma reflexão na primeira pessoa – seguida por trecho em latim de Tácito (Anais) – sobre a necessidade urgente em prol do público contra o particular.134 Horácio é invocado para reforçar a utilidade em prol do justo, seguido por Cícero (Discurso a favor de Ligário), para quem a necessidade era superior ao foro humano. Por isso mesmo o respeitado rabi medieval Maimônides também defendia o juízo repentino e essa seria a diferença dos generais e governadores em relação aos magistrados, pois aqueles deviam proceder extrajudicialmente, executando bandos e mandatos sem apelação ou agravo – voltando-se a citar Mauro Burgio. Interroga-se então: “Mas se agora que o Conde defendeo o estado, e manteve o bem publico achaō, que alterou os termos da justiça, que diriam depoes, quando chegassem à ver, que por se ajustar á dispozicao’ das leys deixàra perecer o bem publico, e tiranisar o estado?”135 – note-se a separação entre leis e bem comum e a justificativa da ameaça de tirania para a medida excepcional. Para o herói grego Jasão ou na Suma teológica de Tomás de Aquino, a justiça e o bem comum eram superiores aos preceitos morais e bens particulares. Assim o conde apenas opôs-se ao interesse particular e ao restabelecer o bem público não castigou mais nenhum culpado. Com nostalgia, o Discurso recorda o tempo em que governadores e “varoe’s excellentes” podiam castigar por sua própria mão os perversos. Na Roma de Cícero (1a Catilinária) muitas vezes os particulares matavam os perniciosos “à Republica”, como Públio Cornélio Cipião, que matou Tibério Graco
134 Ibidem, f. 203r-205v (citação em f. 203r). 135 Ibidem, f. 205v-206v (citação em f. 206v).
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e o general de cavalaria Caio Servílio Aala que tirou a vida do pretenso tirano Espúrio Mélio – “essa foy antigamente a excellencia da Republica Romana”.136 Passa-se então ao texto sagrado, com Moisés sofrendo com os clamores dos hebreus na corte do faraó. Em típica digressão sermonística, no Discurso se pontua: e foy esta acça’o tambem aceyta nos olhos divinos, que eu nao’ sey se por ella, depoes della sey eu [espontaneidade próxima à oralidade], q’ dahi á tempos deo o Senhor a Moyzes o titulo de Deos: e cada vès q’ considero [uso da primeira pessoa] neste successo (permittame o mesmo Deos, que sem offensa sua me explique assim, pois com toda a Theologia, e fé portugueza catholicamente rendido, protesto, que nem por sombras idolatra aqui meu pensamento) [de novo a eloquência da parenética].137
Continuando o Discurso na primeira pessoa e pautando-se em Cícero (Discurso a favor de Milo), desculpam-se os gregos, por terem como deuses os heróis que castigavam tiranos, pois até o bíblico Jó castigava os maus e tiranos. Segundo Caussin, essas ações eram abonadas pelo preceito divino do amor ao próximo, referindo-se aos príncipes que deviam cuidar dos vassalos. Se um particular podia castigar os que maltratam inocentes, o governador, premido por juramento a Deus e ao rei, não poderia “pegar em armas, onde for necessario para comprimir a injustiça desmandada em delictos?” – veja-se o paralelo entre exemplos pagãos, o Antigo Testamento, religião e política na Época Moderna, próximo à oratória sagrada do tempo. Nas Minas não havia regimento ou ordem para o castigo dos motins, devendo-se obrar conforme a razão e os exemplos dos antigos e modernos, pois, para Sêneca, a justiça conforma a razão. O rei “tacitamente” permitiu aos generais castigarem quando fosse mais conveniente, devendo-se conceder aos governadores ultramarinos poderes mais extraordinários que aos bispos. Alude-se então à ordem régia de janeiro de 1719, que autorizava em casos de extrema necessidade os governadores a concederem o perdão, reivindicando que também o governador castigasse como possível as sublevações – como disse Enrico Caterino Davila no seu livro sobre as guerras civis na França.138
136 Ibidem, f. 206v-208r (citações em f. 207v, 208r). 137 Ibidem, f. 208r-209r (citação em f. 208v-209r). Os trechos entre colchetes são meus. 138 Ibidem, f. 209r-211v (citação em f. 210r). A carta de d. João V em 11/01/1719 aos governadores do Estado do Brasil e de Angola exigia que os governantes aguardassem autorização régia para validar o perdão das sublevações. CASTRO, 2016, p. 109-110.
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O conde, “na ultima desesperaçaō honrada”, com risco de sua vida religiosa, foi levado pelo impulso “de seu sangue illustre”. Ante os desaforos dos cabeças e seus agentes, “lhe nam cabia jà nas vèas” para em benefício público destruir as sublevações, prender os cabeças, arrasar “poucas casas” e mandar enforcar Filipe dos Santos. Mesmo assim ele não estaria “na extrema necessidade, que El Rey suppoem, e requer”. E não se sabe se o rei aprova o castigo, pois também não concede o perdão – alude-se ao descompasso entre as ações do conde e da coroa portuguesa. A fala de um grande capitão romano – ao dizer que no estrondo das armas não podia ouvir as leis do senado – mistura-se ao caso dos sediciosos de Vila Rica. Com as armas na mão por 18 dias, “quebrando com tanto estrondo os ouvidos ào Conde”, ele não podia ouvir as leis e castigou quatro rebeldes – conforme Cícero (Discurso a favor de Milo), Valério Máximo e epigrama de Marcial, no texto e nas notas. Vendo a situação sem modo nem plano segundo a sátira de Horácio, o conde fizera lícito o que não era – segundo o bispo de Pavia Enódio, escrevendo sobre o antecessor e também santo Epifânio. Pois somente das armas se esperavam frutos e o conde entendeu – com Tito Lívio e Salústio (A guerra contra Jugurta) à margem – que devia reputar os desordeiros como inimigos públicos, decidindo-se pela luta armada. Armas lícitas para o monge cisterciense alemão Gunther de Paris, em seu épico sobre Frederico Barbaroxa, do qual se citam versos em latim.139 Embora desde o início de sua segunda parte o Discurso aluda a situações modernas exemplares – como na menção ao ocorrido no quilombo dos Palmares –, no caminho para o seu fim dez fólios impressionam por uma remissão massiva desse tempo, mesclada a poucos exemplos antigos e argumentos de ordem jurídico-política.140 Nas suas palavras: “E deixadas as historias antigas, em que talves a sem-razaô, e impiedade deslustra os successos, vejamos os exemplos, â que nos persuade a relligiam, e a justiça, que acredita as modernas”.141 Em suma, os episódios comentados nessas páginas podem ser agrupados nos seguintes blocos temáticos: Guerras de religião na França. O texto lembra as inquietações em Marselha no reinado de Henrique III, quando o governador da Provença Henrique
139 APM, AVC-17, f. 212r-214v e 221r (citações em f. 212r, 212v). 140 Para o detalhamento das seguintes situações: Ibidem, f. 215r-225v; e MONTEIRO, 2015, p. 195-200. 141 APM, AVC-17, f. 217v.
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de Angoulême, bastardo de Henrique II, mandou enforcar os amotinados, sendo alguns atirados da janela do palácio. Também em 1591, em meio ao predomínio da Liga católica em Paris, seu líder o duque de Mayenne (no manuscrito “Umena”) mandou prender e garrotear quatro supostos culpados de um assassinato, sendo seus corpos expostos ao público. Recuperam-se ainda episódios da conjuração de Amboise contra o poder do duque de Guise – regente no curto reinado de Francisco II – quando a cavalaria real ateou fogo na vizinhança “onde confusamente pereceram culpados, e innocentes, reservados muy poucos delles, para darem noticia da conjuraçaô”.142 Informações vindas da versão espanhola do livro do italiano Enrico Caterino Davila, cujo nome homenageava Catarina de Medici e Henrique III, a quem serviu como militar desde 1583.143 A conjura Pazzi em Florença. Por meio de Philippe de Commynes citado em nota, o Discurso enfatiza a violenta repressão à tentativa frustrada desta família de banqueiros em tomar o senhorio de Lourenço de Medici na república em 1477, apoiados pelo rei de Nápoles Fernando I e pelo papa Sisto IV (1471-1484) – que desejava introduzir seu sobrinho Girolamo de Riario na Romanha. Lembra então os corpos enforcados e dependurados nas janelas do palácio do governo, entre eles os do arcebispo de Pisa Francesco Salviati, de Francesco e Giacomo de Pazzi “e outros muitos; e sem mais prova, ou sentença, que os primeyros, foram todos enforcados, e expostos”. Alude-se ainda à diferente pena aplicada ao oficial do papa, Gian Battista da Montesecco, “que tinha â seu cargo a gente de guerra”: ele teria sido degolado ou decapitado em função de seu posto.144 Na monarquia hispânica em 1521, quando Adriano de Utrecht governava Castela no lugar de Carlos I, ausente para ocupar-se de sua investidura imperial como Carlos V. O AVC-17 ressalta a revolta dos comuneros, somente debelada após serem violentamente castigados alguns dos principais motores. Ou no mesmo ano na Nova Espanha, aludindo à sublevação de Antonio de Villafaña contra Hernán
142 Ibidem, f. 221r. 143 Posteriormente atuou como diplomata e planejou uma história das guerras civis na qual tomava parte, pois conviveu com personagens e presenciou eventos. O trabalho conheceu várias traduções e edições. DAVILA, Enrico Caterino. Historia de las guerras civiles de Francia... Traducción y adiciones de Basílio Varen de Soto. Amberes: Juan Bautista Verdussen, 1713, p. 207-208 (1º caso), 397-398 (2º caso) e 17-20 (3º caso). Sobre a percepção de Katia Mattoso acerca do relevo desta obra para a narrativa política no Discurso (como veremos depois), ver SOUZA, 2006, p. 233, nota 92. 144 APM, AVC-17, f. 219r-219v.
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Cortez, descoberta antes de eclodir. Cortez teria entrado com seus guardas na casa do rebelde, que confessou o delito. Na mesma noite ele foi enforcado, seu corpo exposto na janela de seu alojamento, “vendo-se igualmente o castigo ào tempo, que se publicou a causa, que nos conjurados infundio temor, e em todos aborrecimento â culpa”. O ano de 1521 seria ainda a referência para outro motim, não identificado, nas Canárias, antes da instalação do tribunal da Audiência (no texto “rellaçao’”) na região. Os principais cabeças teriam sido enforcados a mando do governador.145 Na monarquia portuguesa, o Discurso volta-se para a Guerra da Restauração (1640-1668) pela pena do conde de Ericeira, ao relatar as ações de Francisco de Sousa Coutinho em 1641 na comarca de Beja, tendo repreendido os moradores das vilas de Moura e Barrancos – e queimado a última – por sua pouca constância na defesa da praça. Destaca-se a execução com fogo em Portugal com força de lei, lembrando o ocorrido em 1720.146 Em outro momento, a comparação entre os contextos restauracionista e de Vila Rica retorna, ao justificar-se a repulsa de uma violência maior, pelo castigo antecipado imposto pelo conde, de modo similar ao defendido pelo embaixador sobre a libertação do infante Duarte de Bragança, preso em Milão por ordem dos Habsburgos.147 Já em “Angola”, no mesmo ano fatal de 1521 teria ocorrido uma sublevação não localizada de sobas, logo castigados.148 Esses exemplos são intercalados em parágrafos com argumentos jurídicos sofisticados, primeiramente com o recurso às leis de Castela e da Nova Espanha para justificar o ocorrido nas Minas e explicar as medidas tomadas nos motins anteriores, conforme Cícero (2a Catilinária) em nota e Solórzano Pereira (Política indiana). Mas também com o evangelho de Mateus e o “grande Vieyra”, por um trecho do Sermão de santa Teresa. A seguir trata-se da execução com fogo, comum em Portugal, advogada também pelo “Causino” contra os que cometem injustiças. Se
145 Ibidem, f. 220r-220v (citação em f. 220r-220v). A conspiração na Nova Espanha e seu castigo foram relatados em: SOLIS, Antonio de. Historia de la conquista de Mexico: poblacion, y progressos de la America septentrional... Brusselas: Francisco Foppens, 1704, livro V, cap. XVIII. p. 560-562. A obra não foi citada no manuscrito. 146 APM, AVC-17, f. 221r-221v. ERICEIRA, Luís de Menezes, Conde da. História de Portugal Restaurado. Lisboa: João Galrão, 1679, t. 1, livro IV, p. 230. 147 APM, AVC-17, f. 228v-229r. A carta dirigida a Ratisbona era um manifesto em latim em defesa do infante. Francisco de Sousa Coutinho era embaixador de Cristina da Suécia e conhecido da casa de Bragança desde os tempos de Vila Viçosa. A menção ao documento encontra-se no livro do veneziano BIRAGO, Giovanni Battista. Historia della difunione del regno di Portogallo dalla corona di Castiglia. Amsterdam: Niculau van Ravesteyn, 1647, livro V, p. 395. 148 APM, AVC-17, f. 220v. Angola não existia no século XVI. Talvez o Discurso se reporte ao Congo de Afonso I e aos reinos vizinhos Loango ou Ndongo, com débil ocupação lusa.
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no reino e suas vizinhanças era lícito valer-se do fogo para combater a desobediência, o elemento seria mais necessário em terras distantes como no “nosso Brasil”.149 No Brasil, em tempo próximo aos acontecimentos mineiros em tela, o códice refere um crime passional em Sergipe no governo de João de Lencastre (1694-1702), quando um coronel pôs fogo na casa do “mulato assáz temido” Antonio de Faria, que morreu queimado150 – Antonio Correia acompanhou este governador-geral às minas de salitre no sertão da Bahia. Por fim, alude-se a uma sindicância do desembargador Belchior da Cunha Brochado no Rio de Janeiro, o qual pôs fogo em oficinas de madeiras, bem como ao governo – também no Rio – de Francisco Xavier de Távora, que mandou queimar a fazenda onde José Gurgel se abrigava151 (os padres Antonio Correia e José Mascarenhas nasceram no Rio de Janeiro e estudaram no colégio desta cidade, como veremos no próximo capítulo). Após mais digressões sobre o caso mineiro, há trechos em latim de códigos jurídicos civis ou canônicos, com nomes de jurisconsultos e clérigos abreviados no texto central, entremeados com a argumentação de modo cifrado, visando provocar um efeito de erudição – desta vez calcada em autoridades “medievais” e modernas.152 Já nas últimas páginas do códice invoca-se a justificativa do direito natural ante a impossibilidade de o conde convocar ministros para a junta de magistrados, sendo lícita a sua defesa. A seguir, a derradeira “razão” atribuída a Ovídio no manuscrito surge no texto central, retirada de obra provavelmente escrita por um imitador do
149 Ibidem, f. 216r-217v e 221v-223v. 150 Ibidem, f. 223v-224r. Na capitania de Sergipe a ouvidoria foi instalada em 1696, executada pelo governador-geral João de Lencastre. Os novos ouvidores estenderam sua atuação até a Bahia, mas os moradores desta região contestaram, entendendo estar sob a jurisdição baiana. No governo de Lencastre destruíram-se os últimos quilombos formados após o fim de Palmares, pois os fugitivos concentraram-se em aldeias no sertão. Esses fatos podem relacionar-se ao caso narrado. ANTÔNIO, Edna Maria Matos. Conflitos e rebeliões: tecendo o mando colonial. In: CHAMBOULEYRON, Rafael; ARENZ, Karl-Heinz (orgs.). Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial: conflitos, revoltas e insurreições na América portuguesa. Belém: Açaí, 2014, v. 12, p. 26-37. 151 APM, AVC-17, f. 224r-225r. Há referências ao primeiro crime em AHU, Rio de Janeiro, caixa 9, doc. 1650-1651, 22/05/1688 e doc. 1670-1678, 15/12/1688, e ao segundo crime em caixa 16, doc. 3353-3354, 12/04/1714; doc. 3360, 12/06/1714 e doc. 3376-3379, 03/11/1714. O desembargador da Relação Belchior da Cunha Brochado atuou no Rio em 1688-1689 sobre o assassinato do provedor da fazenda Pedro de Sousa Pereira em 1687 envolvendo a família Amaral Gurgel, com a conivência do bispo do Rio de Janeiro José de Barros Alarcão. SANTOS, 2017, p. 100-114. Após as invasões francesas no Rio, no governo de Xavier de Távora (1713-1716) instalou-se um tribunal para julgar e punir vários crimes, como a morte de João Manoel de Mello a mando de José Pacheco e José Gurgel do Amaral, que matou também um mulato criado do padre Cláudio do Amaral. O governador considerou José Pacheco e José Gurgel culpados, mandando arrasar a chácara do pai de José, entre outras medidas. SANTOS, 2017, p. 196; e FREIRE, Felisbello. História da cidade do Rio de Janeiro. 1564-1700. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1912, v. 1, p. 269-270 e v. 2, p. 461 e 465. 152 APM, AVC-17, f. 224v-231r. Identifico os seguintes nomes: Aloysio Riccio, Angelo Aretino, Baldo de Ubaldi, Bártolo de Sassoferrato, Benedicto de Pumblino, Denys Godefroy, Fillippo Decio, Hans von Scheiding, Hermenegildo Fellini, Joannis Oinotomi e Sidônio Apolinário, além de referências às Sete partidas de Afonso X. Seria muito difícil Pedro Miguel de Almeida Portugal ser autor dessas passagens, cf. SOUZA, 1994, p. 41.
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célebre poeta, a Consolatio ad Liviam. Nesse ínterim, sobretudo na segunda parte, o antigo Cícero e o moderno Virgilio Malvezzi são como coringas dispostos no texto em várias passagens, em meio a referências bíblicas e outros autores e personagens da Roma pagã. Identifico a peroração deste Discurso em seis parágrafos de tamanhos desiguais ao final. O primeiro deles começa em tom desafiador: “Agora quizera eu saber se o nosso Soberano” não procede também como outros príncipes ex abrupto (repentinamente), ou só por tribunais. Desse modo não previu como “aquelle, à quem a sua grandeza em rasam do cargo constituhio, como princepe deste paiz” portar-se-ia com os sediciosos. Com os argumentos de sempre sobre a honra e fama condais, interroga-se sobre as razões do castigo: “para desoprimir a provincia, e se conservar no governo, de que dera homenagem, com honra, e com fama, como Principe, sem desluzir em si a soberana idéa do Monarca, q’ representa?” – veja-se o lugar e a função pretendidos para o moço conde na monarquia portuguesa de d. João V.153 A seguir retoma-se a metáfora do político como piloto ante a tormenta, amplificada por trecho em latim da obra – não referenciada – de Cornélio Nepo (Vida de Ático). O encômio ao conde emulando Roma no fim da República, com Tito Lívio e Gabriel Pereira de Castro à margem, atinge então o ápice: Ainda depondo as coroas, de que o laureou a campanha [Guerra de Sucessão da Espanha], e despindo as virtudes, de que o adorna o moral, se deviam por esta acça’o ào co’de os triumphos, que aos Governadores, que a seu successor entregavam pacifica, e sogeita a provincia decretou Roma; màs se o Capitolio o nao’ vio victoriozo [flagrante sobreposição de tempos], e ovante nos carros do seu triumpho, velo hâ na carroça dos applausos triumphante, e coroado a posteridade vindoura, que à sua fama emula ào tempo, e à mesma eternidade, segura mais que nas memorias, erigir nas admiraçoe’s para exemplar de Governadores, e Principes, immortal estatua.154
Pede-se assim que o rei distinga adiante o conde com graças, favores, mercês e privilégios – conforme a lógica de serviço da nobreza desenvolvida no Capítulo 2.155
153 APM, AVC-17, f. 233r-234r (citações em f. 233r, 233v, 234r). 154 Ibidem, f. 234r-235r (citação em f. 234v-235r). Os trechos entre colchetes são meus. 155 Para Campos, o fato de mencionar-se o fim do governo do conde e sua expectativa de obter mercês indica que ao menos parte do Discurso foi escrita após seu retorno a Lisboa, cf. CAMPOS, op. cit., p. 238. Como vimos no Capítulo 1, os exames material e visual apontam – por vários aspectos – um ato contínuo de redação e encadernação do códice e uma identidade entre as autorias gráfica e intelectual, o que corrobora a hipótese de sua produção no primeiro semestre de 1721, quando o governador se encontrava em Ribeirão do Carmo.
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Entretanto, no fim do texto ressurge El governador christiano, de frei Juan Márquez, pelo exemplo de Moisés. Segundo o Discurso, Deus sempre honrou Moisés desde o primeiro passo, declarando-se por ele com novas maravilhas e favores. Mas nunca se fez tão grande nele ao vê-lo no episódio do bezerro de ouro castigar a idolatria do povo. Portanto, em Moisés vê-se o conde, nos hebreus os mineiros e em Deus o rei – interpretação figural a ser desenvolvida depois. Por essa visão, o sucesso dos hebreus e a ação de Moisés eram uma história antecipada, uma profecia histórica do caso mineiro e da resolução “gloriosamente grande” do conde. A idolatria dos hebreus e o desatendimento à lei dos mineiros deram-se em função do ouro, que traçou a maldade (retoma-se o exórdio do Discurso, pelo trecho imitado das Metamorfoses de Ovídio), com desprezo do verdadeiro Deus ou do legítimo senhor. Mas se Moisés castigou muitos e levou o bezerro ao fogo, o conde permitiu que o fogo arruinasse poucas casas, castigou alguns rebeldes e sacrificou uma só vida. Assim o conde competiu com Moisés no zelo da honra de seu príncipe, esperando a justiça do monarca. Para o autor anônimo, essa foi uma advertência singular de frei Juan Márquez, concluindo “eu com elle, pelas suas formaes palavras, este papel”.156
A vertigem dos nomes Segundo Laura de Mello e Souza o Discurso é um texto de riqueza inesgotável, podendo ser abordado de várias formas e por especialistas diversos. “Há nele muito a explorar em termos da teoria política, da circulação das idéias na Europa de inícios do século XVIII, da criação de estereótipos sobre as terras americanas”.157 Ante a necessidade de escolher caminhos de análise, há algo evidente em seu texto central e potencializado pela consideração das notas: a profusão de nomes de autores de várias épocas e contextos, personagens e situações estrangeiras no âmbito minerador. Esses nomes – onipresentes no Discurso e quase ausentes na Noticia – possuem funções sígnicas ao comunicarem ideias, valores e sentimentos mais ou
156 APM, AVC-17, f. 235r-238r (citações em f. 236r, 238r). 157 SOUZA, 1994, p. 56.
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menos relacionados a conteúdos que fundamentam e/ou ornamentam, incutindo-lhes autoridade.158 No manuscrito em tela há poucos equívocos de referência no texto e nas notas, incluindo indicações de livros, capítulos e itens – alguns erros podem provir das próprias fontes consultadas. Como vimos, trata-se de um códice muito bem cuidado em termos materiais e também na forma escrita. Esses aspectos indicam seriedade do que está sendo comunicado, incluindo as alterações de significantes e menções aparentemente excêntricas em várias passagens – ao que tudo indica, elas são deliberadas. Por esse prisma, a busca de sentido nas ideias essenciais ao texto pauta-se em tentar perceber os possíveis significados de nomes e situações emblemáticos naquele ambiente cultural e não em examinar a exatidão da bibliografia consultada pelos autores em primeira mão. O fato de muitas referências no Discurso terem sido mencionadas mediante leituras de terceiros também problematiza a tentativa de correspondência deste texto com a biblioteca do 1o marquês de Alorna e com os títulos mencionados nas cartas do então governador de capitania ao primo e ao bispo do Rio de Janeiro – embora esses dados sejam também considerados. Posso assim formar listas construídas a partir do texto narrativo e referencial, mas com evidente função poética159 e adentrar no códice como se ele fosse um mundo possível. Não obstante, as listas sugerem o infinito, pois os nomes destacados se relacionam entre si em múltiplas combinações e evocam outros, e outros...160 Ordenadas de forma a evidenciar os elementos mais incidentes no texto, elas orientam a análise desse universo cultural. Mediante um levantamento quantitativo comentado, começa-se assim a perscrutar autoridades, personagens
158 Escolho esse caminho de análise – e não o da ênfase na retórica normativa – por duas razões: 1) ao supor que a competência do primeiro leitor do Discurso historico alcançava mais os pesos de autoridades, ideias e eventos paralelos mencionados que a identificação de figuras de linguagem e lugares-comuns. 2) Essa seria a melhor maneira de captar e resumir o texto como um todo, sem subsumir as muitas histórias narradas e aludidas neste mediante explicações abstratas ou potencializando partes e aspectos seus em detrimento de outros. 159 JAKOBSON, 1969, p. 118-162. Nas narrativas ficcionais o tempo narrativo é exibido sem conexão direta com a rede espaço-temporal, pois os textos poéticos tratam do mundo, mas não de modo descritivo. Como sugere Jakobson, a referência não é abolida, mas dividida ou cindida. Deve-se assim alargar o conceito do mundo para admitir referências não ostensivas como as da poética. Esse alargamento de horizonte permite falar do mundo aberto pelos textos. RICOEUR, 2013 [1975], p. 54-57. 160 ECO, Umberto. A vertigem das listas. Tradução de Virgílio Tenreiro Viseu. Lisboa: Difel, 2009, p. 12, 17.
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e situações “além das Minas” referidas no manuscrito, com cerca de 300 alusões identificadas em seu texto central.161
Figura 13 - Gráfico com autores no texto do Discurso historico, e político. Arte de Ana Luisa Videira.
Observa-se nesta primeira contagem o vultoso número de autores citados e/ou identificados no códice, abrangendo suas duas partes, a primeira mais narrativa da revolta e a segunda com justificativas para o castigo. Embora a segunda parte evoque mais auctoritates, com 105 nomes, 27 deles também são mencionados na primeira. A maior referência explícita no texto central do Discurso é Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), autor do fim da república romana a quem voltar-se-á em vários momentos. A biblioteca do 1o marquês de Alorna possuía 14 volumes não discriminados de suas 161 Para essas informações, ver MONTEIRO, 2015, p. 187-194. Os cômputos não são exatos e evitou-se contar repetições de nomes em passagens muito próximas. Algumas identificações são evidentes mesmo sem remissão literal no texto e assim foram registradas. Vários nomes estrangeiros no Discurso foram aportuguesados a partir de versões espanholas, fruto das edições consultadas. E várias citações e passagens em português, espanhol ou latim não discriminam suas fontes e/ou são retiradas de trabalhos de terceiros. Mas foi possível transcrevê-las da internet e identificar autores, trechos e obras, incorporando-os aos dados levantados. Entretanto, interessa perceber o que cada nome significa per se, mesmo que a informação tenha sido consultada para o Discurso por meio de outra fonte, ou seja equivocadamente atribuída.
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obras e o filósofo e orador também fazia parte da bagagem letrada de Antonio Correia e José Mascarenhas. No século XVIII e desde muito antes, Cícero era um forte argumento de autoridade e sua presença faz pensar no Discurso concebido conforme uma tradição retórica. Mas o grande orador foi igualmente um homem de ação e governo, questor na Sicília, senador e cônsul da república, tendo escrito sobre suas convicções ante fatos concretos. O tema será aprofundado no último capítulo, na tentativa de identificar ideias jurídicas e políticas no texto em análise. Pode ser ousado conectar, sobretudo por trabalhos de terceiros, aspectos de conteúdos e estilos ciceronianos – e dos outros autores que virão – ao códice estudado; mas de outro modo não seria possível contatar um mundo tão vasto. Um aspecto refere-se à mescla entre filosofia e retórica representada por Cícero, pautando-se na convicção – sobretudo após sua viagem à Grécia – de que o político/orador devia possuir uma profunda cultura filosófica e literária. Nesse sentido, como a história, a filosofia era mestra da vida, adaptando-se a tradição acadêmica e peripatética do pensamento grego à situação romana, em forma dialógica, elegante e persuasiva. Como um elemento de entrega à res publica, sua eloquência – assim alimentada – manifestava-se por orações em processos judiciais e políticos, normalmente com uma gravitas altiva e solene, mas contendo momentos de ironia e até comicidade. Por vezes, seus discursos flertavam com a ficção, ao simularem lances teatrais no processo.162 Ao evoluir da técnica persuasiva a uma arte de expressão oratória, a retórica transformava-se também em fato literário – ao longo da vida e sobretudo no fim, Cícero remodelou e divulgou seus discursos escritos. Neles, há retratos detalhados para impactar o auditório, expressões redundantes, amplificações, períodos amplos e harmoniosos em prosa (invenção sua nas letras latinas), atenção ao ritmo e à sonoridade das palavras e figuras de repetição como a anáfora. Os elementos descritivos alternavam tendências ao grandioso e ao patético, indo do pathos trágico à sátira, incluindo os estilos baixo (com a função de docere – informar); médio (para delectare – proporcionar prazer); e elevado (a fim de movere – inflamar paixões). Conforme suas obras de retórica, era preciso valer-se dos três – embora Cícero privilegiasse o grandioso, concebendo-se como o maior orador romano, à maneira
162 Para essas informações, cf. NARDUCCI, Emanuele. Cícero. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006b [1997], p. 263-310.
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do ateniense Demóstenes (também citado no Discurso) que, no entanto, era mestre dos áticos. Esse asianismo de Cícero, mais moderado após sua viagem à Grécia, teria sido criticado pelos aticistas.163 Destaca-se ainda a habilidade ciceroniana – como orador, filósofo e jurista – em elevar casos particulares ao nível de problemas gerais da república romana. Ao evidenciar pormenores e silenciar outros, construía suas versões dos fatos, a partir de então cada vez mais divulgadas, redescobertas no passar do tempo e impressas. Chega-se então ao Discurso cotejado, que relaciona essas versões aos episódios em torno de 1720, bem como ao tema amplo da atitude da monarquia portuguesa em face dos motins.164 Aproximadamente cem anos antes essa influência ciceroniana foi parcialmente metabolizada na corte francesa Bourbon. O segundo autor mais presente na mancha gráfica central do Discurso é o jesuíta Nicolas Caussin (1583-1651), ausente na carta escrita por Pedro Miguel ao bispo ou na biblioteca do 1o marquês de Alorna. Após a regência de Maria de Medici – de tendência ultramontana – e a reabertura do Colégio de Clermont em 1618, talentosos jesuítas franceses dedicaram-se às letras humanísticas e à arte oratória, numa pedagogia da eloquência junto ao público escolar. Formavam assim quadros para carreiras profanas no palácio, na corte e no exército. O padre Caussin, após ensinar retórica em Clermont e publicar obras em latim e grego, a partir de 1620 consagra-se à pastoral no meio mundano, sendo requisitado em várias paróquias. Conforme Marc Fumaroli, criava-se um gênero novo na apologética católica posterior ao concílio de Trento (1545-1563), quando os jesuítas franceses renunciavam à eloquência política veemente dos tempos da Liga nas guerras religiosas, adotando postura mais decorosa.165 163 Ibidem. No século XIV, apenas fragmentos de Orador e Do orador eram conhecidos de alguns clérigos. Em 1421 descobre-se um manuscrito completo e o texto do Bruto, com uma história crítica da eloquência republicana romana. Desde o fim do século XV edições e reedições difundiram essas obras na Europa como fascinantes novidades, tornando os homens modernos mais informados sobre a retórica dos antigos. No Bruto – cujo protagonista era amigo político de Cícero e chefe dos aticistas – Cícero polemiza contra o mito da antiga simplicidade então defendida, pois na Grécia houve tanto eloquências quanto oradores áticos. Para Cícero a eloquência é sabedoria e palavra, adaptadas na arte oratória a circunstâncias e homens reais e não de outrora. Propõe assim uma estética oratória aberta, reconciliando tendências e atuando nas três claves. Em suma, o espetáculo oratório como aticismo e asianismo sem excessos. FUMAROLI, Marc. L’âge de l’éloquence: rhétorique e “res literaria” de la Renaissance ao seuil de l’époque classique. Genève: Droz, 2009 [1980], p. 47, 53, 55. Apesar do tom pejorativo, Xavier da Veiga não se equivoca ao qualificar o Discurso como asiático, se encontramos esses aspectos no códice que emula Cícero. VEIGA, 1898, p. 4. 164 Todavia, não se pode associar Cícero categoricamente ao estoicismo, pois ele criticava o rigorismo e a imperturbabilidade de Catão (visto como arcaico) e também não persuadiu o aticista Bruto da validade de seu gosto oratório. Por outro lado, Cícero era avesso ao epicurismo, simpático por exemplo a Júlio César. NARDUCCI, 2006b [1997]. 165 FUMAROLI, 2009 [1980], p. 246, 250-260.
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O modelo de Caussin eram os Tableaux de Flávio Filóstrato (c. 170-250) – sofista grego no império romano – tal como editados desde 1578 na França, com grande repercussão.166 Trata-se de uma “sofística sagrada”, com a exposição de figuras místicas para representar mistérios como os hieróglifos egípcios. Nessa arte dramática, a prosopopeia dava voz a personificações alegóricas, seres inanimados ou invisíveis como anjos e demônios. Naquele âmbito, os jesuítas franceses da primeira metade do Seiscentos eram ciceronianos, autorizando o ecletismo na imitação e uma maior gama expressiva.167 Ao falarem e escreverem também em francês, atingiam um público ávido de eloquência e espetáculo, mas não iniciado em pesquisas eruditas ou debates em latim. Desde 1619, com suas Eloquentiae sacrae et humanae parallela, Caussin e os regentes de Clermont propunham uma nova arte oratória. Aliada à fé e à sabedoria, a eloquência ressurgia em linguagem suntuosa e críptica, representando o verbo divino da natureza. Nessa “retórica das pinturas” cara aos jesuítas franceses mais “retóricos” (diferentes de outro grupo mais “erudito”), Caussin apoia-se na autoridade de Clemente de Alexandria para justificar seu uso cristão, esboçando no Polyhistor o vocabulário e a sintaxe dessa língua que intentava reconstituir a linguagem divina, anterior à queda de Adão.168 Em 1620 publica as Tragediae sacrae inspiradas em Sêneca, acentuando o pathos oratório: o gênero trágico também servia à eloquência sagrada, como uma tragédia em prosa. Para Caussin a prosa era superior à poesia, pois esta era prisioneira do metro e da precisão. Ao elogiar Sêneca, por um jogo de contrapesos ele afirmava a preferência do orador romano pelo modelo ático. Ao lugar ocupado pela Segunda Sofística em sua arte, contrapunha autores menos “sulfurosos” como Salústio, César, Lívio, Sêneca e vários padres da Igreja, numa espécie de enfrentamento amigo entre sofística e patrística, a eloquência pagã tardia – imaginativa, poética, 166 A redescoberta da Segunda Sofística confunde-se com as origens do humanismo florentino e veneziano; as edições de seus textos essenciais datam do início do século XVI. Filóstrato seria um mestre da écfrase, ao descrever deuses antigos, heróis, virtudes e vícios personificados. Ibidem, p. 291, 294 e 301. 167 No entanto, a mímesis é um conceito complexo de origem aristotélica, tradicionalmente entendido (ou desvirtuado) como imitatio entre os autores da Época Moderna, cf. LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Edufsc, 2014 [2000], p. 29-55. 168 Em 1618 ele publicou em Paris uma obra em duas partes intitulada Electorum symbolorum... syntagmata e Polyhistor symbolicus – reeditada em 1634 como Symbolica Aegyptorum sapientia. Nela, justificava o uso cristão de ensinamentos egípcios, apoiando-se no Polyhistor, de Caio Júlio Solino, mencionado no Discurso por suas alusões à natureza instável. O jesuíta seria ainda fonte não citada de outras passagens no texto central, por exemplo sobre o ovo de Oromasis, símbolo da mitologia persa, por CAVSINO, Nicolas. Simbolos selectos, y parábolas históricas. Traducción de Francisco de la Torre. Madrid: Imprenta Real, 1677, p. 403. Um “livro Proteu”, em que os gêneros se entrecruzam e acumulam-se. FUMAROLI, 2009 [1980], p. 258, 269-282, 286.
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sensual – e a dos Padres da Igreja, que combateram essa eloquência apropriando-se de suas técnicas, como veremos mais no próximo capítulo. Para Fumaroli, Caussin era fascinado pelos segundos sofistas latinos e gregos, que ele conheceu pelas biografias de Suetônio e Filóstrato, pelas polêmicas de Luciano de Samósata e dos próprios Padres. À maneira de Cícero, ajustava-se assim às circunstâncias.169 A simbiose entre sofística pagã e eloquência cristã fazia os escritos de Caussin parecerem compostos de um vitalismo espiritualista próximo a uma visão mágica do mundo, pautando-se na ideia de simpatia entre os elementos, no fundo relacionada ao lendário Hermes Trismegisto. Mas uma sofística cristã precisava polemizar com a sofística pagã, alternando adulação e ironia mordaz. Uma retórica imaginativa e emocional, mas de aspecto grave. Nos sofistas, a explicação possuía cores vivas, com palavras escolhidas por sua beleza e sonoridade. Ovídio (aluno do sofista Aurélio Fusco), Luciano, Clemente de Alexandria, João Crisóstomo, Heliodoro e Solino são nomes relacionados a essa tendência, mencionados no Discurso por si e/ou pelo helenista Caussin, que se valia muito de fontes gregas. Sobretudo por João Crisóstomo, o estilo cristão escrito submetia-se à performance oral; por um relevo teatral e pictórico produziam-se efeitos sobre figuras de palavras – mormente no gênero epidíctico ou demonstrativo, sobre virtudes e vícios de heróis e vilões. Preservavam-se assim as palavras do texto, mas mudando seu sentido; ou mudavam-se palavras, conservando o sentido; ou mantinham-se palavras e sentido, mas para outro uso; ou opunham-se figuras e personagens, dando voz a autores/ atores ausentes. Esses movimentos são frequentes no Discurso, evidenciados pelo cotejo de texto e notas.170 Mas Caussin era também conhecido por seu rigor contra os jansenistas, e por menções no texto central do manuscrito defendia severidade e “império” em face de delitos, escândalos e insolências de gentes ásperas e rebeldes. Em La cour saincte, publicada primeiramente em 1638, Caussin dirige-se à corte francesa com essa linguagem. Fumaroli destaca a grande influência desta obra – de várias partes – sobre a nobreza cortesã, além de dramaturgos e apologistas
169 Há assim ambiguidade relacional entre eloquência e literatura, artes pagã e cristã, reproduzindo de algum modo o ocorrido nos últimos séculos do império romano, quando os sofistas se apoiaram no neoplatonismo para justificar a mescla de retórica demonstrativa e poesia bíblica a seus alunos, os Padres da Igreja. O padre Caussin incensa teólogos e sofistas, jogando anátema sobre os segundos que ele admira outrora. FUMAROLI, 2009 [1980], p. 284-289, 291. 170 Ibidem, p. 292-308, 338, 325, 345-347, 359-360.
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estrangeiros na Companhia de Jesus que a imitaram. Com numerosas reedições aumentadas até a edição póstuma definitiva de 1664 in-fólio, foi reimpressa na França até 1691 e conheceu traduções em alemão, inglês, italiano, espanhol, holandês e latim. Por ela tentava-se converter a nobreza de espada, rebelde ao disciplinamento moral, intelectual e político. Nesse carrefour de gêneros recrutados pelo humanismo profano e eclesiástico, a obra é um vasto repertório de letras antigas – pagãs e cristãs – com exemplos usados para argumentos morais e religiosos. Uma biblioteca de tradução, pela qual os ignorantes das línguas clássicas, mas leitores em vernáculo, recebiam uma tintura de humanismo.171 Com uma imitação eclética, segundo o historiador da literatura La cour saincte revela o gênio jesuítico de amálgama e fusão. O catalisador desta enorme “enrolação” seria o pequeno livro dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola, conduzindo o retratado a um estado de vida que lhe permitisse servir melhor a Deus. Em seu livro 1, Caussin estuda em sequência 13 “razões” pelas quais o nobre devia desejar a perfeição cristã. Desse modo, aliando a écfrase dos sofistas aos exemplos antigos, amplificava o método dos Exercícios, numa metafísica do processamento e do paralelismo de imagens que possibilitava às nobrezas sacerdotal e de espada acessarem essa linguagem sagrada. 172 Por seu prestígio letrado, no início de 1637 o padre Caussin foi chamado por Richelieu para ser o novo confessor de Luís XIII. Mas, ao encampar desejos de paz com a Espanha, em consonância com a rainha Ana de Áustria e uma favorita do rei então enclausurada, o jesuíta não demonstrou prudência política. A postura desagradou ao cardeal e ministro no tempo da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que o exilou no fim do mesmo ano.173 A Maria de Medici, Luís XIII, Gaston d’Orléans e Ana de Áustria dedicaram-se nesse tempo traduções dos livros de Caio Cornélio Tácito (c. 56-118). Na
171 Ibidem, p. 363-370. Para uma atenção às diferentes edições da obra e à adaptação editada em português em 1652 por António Pires Galante, cf. SANTOS, Zulmira C. Da Corte sancta à corte santíssima em Portugal. Revista da Faculdade de Letras, Porto, anexo V, p. 205-215, 1993. 172 FUMAROLI, 2009 [1980], p. 365-370. Minha leitura de uma tradução não associa os Exercícios a essa perspectiva, cuja linguagem remete a uma interiorização da fé, à busca da contrição, com medo do inferno e a prática regular dos sacramentos, em especial da confissão. LOYOLA, Santo Inácio de. Exercícios espirituais. Tradução de J. Pereira. São Paulo: Loyola, 2015. A parenética jesuítica parece ter matrizes na literatura patrística, como veremos no Capítulo 4. 173 CHEVALLIER, Pierre. Louis XIII: roi cornélien. Paris: Fayard, 1979, p. 539-546; e LADURIE, Emmanuel Le Roy. L’Ancien Régime: l’absolutisme en vraie grandeur (1610-1715). Paris: Hachette, 1991, t. 1, p. 99.
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biblioteca do 1o marquês de Alorna também figurava um volume dos Anais, em latim ou uma tradução, pois o historiador romano invadiu o mundo letrado e editorial europeu entre os séculos XVI e XVII, devido à descoberta recente do conjunto de suas obras, potencializadas pelos comentários e edição em latim do flamengo Justo Lipsio.174 Qualificado no códice como grande mestre de príncipes, parece ser esse o maior estereótipo assumido na Época Moderna pelo outrora pretor, senador e cônsul no principado de Nerva, tendo ainda exercido algum cargo de governo ou comando militar provincial. Na Roma imperial Tácito e seu amigo Plínio o moço eram mais conhecidos como escritores. O historiador escrevia sobre conflitos entre o senado e a monarquia, com a cautela de narrar acerca do passado e dos mortos, sem assumir uma postura rebelde. No suposto relato objetivo dos fatos, fazia-se herdeiro de uma historiografia pragmática, que remontava ao grego Tucídides e a Salústio – em quem inspirou-se para compor alguns excursus e retratos, como veremos. Mas como Salústio, Lívio e outros historiadores romanos, Tácito combina essa tradição com a historiografia “trágica” surgida em torno de Alexandre o grande, que aproveitava os momentos empolgantes da narrativa histórica para concentrar-se nas personagens. Ao relatar os acontecimentos anuais com poucas digressões e uma dramaticidade invulgar, Tácito notabilizou-se ao narrar intrigas palacianas com espírito crítico. Uma história política sobre disputas nos centros de poder que, por seu tom enigmático, podia ser apropriada de diferentes modos. Com uma visão pessimista da natureza humana, ele emitia juízos morais sobre os imperadores mortos, mais que sobre suas medidas políticas. A épica amarga volta-se para os comportamentos ambíguos de indivíduos ambiciosos e corruptos ou de multidões assustadas e movidas por impulsos baixos.175
174 Tácito foi o historiador antigo mais traduzido na Época Moderna. A última edição em espanhol de suas obras ocorreu em 1629; em português imprimiram-se em 1715 alguns livros dos Anais, mas com comentários misturados ao texto que tornam difícil identificar o original. MARTÍNEZ BERMEJO, Saúl. Translating Tacitus: the reception of Tacitus’s works in the vernacular languages of Europe, 16th-17th centuries. Pisa: Plus, 2010, p. 19-20 e 23-25. 175 Para essas informações, ver CITRONI, Mario. Tácito. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006a [1997], p. 907-945. Ver também MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Tradução de Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: Edusc, 2004 [1990], p. 66-83; e para as fontes utilizadas por Tácito, cf. SEGURA RAMOS, Bartolomé. Introducción a Tácito: tradición y aportación personal del historiador a la historiografía romana. In: BADILLO O’FARRELL, Pablo; PASTOR PÉREZ, Miguel A. (orgs.). Tácito y tacitismo en España. Barcelona: Anthropos, 2013, p. 11-41.
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Embora Salústio fosse seu modelo, Tácito se distingue por condensar em poucas linhas retratos incisivos de personagens complexas, por vezes apresentadas de modo paradoxal. Como vimos, isso não ocorre no Discurso, próximo ao estilo ciceroniano, com oscilações e mais adjetivos nos períodos ao descrever personalidades públicas sem contradições entre virtude e vício. Todavia, ao elaborar um estilo original, Tácito – junto a Sêneca, a quem admirava – suplantaria Cícero em alguns círculos letrados pósteros, como na França parlamentar seiscentista176 ou nos escritos de Francisco Manuel de Melo, mencionado no Discurso como “hum Politico nosso com nome, e vóz estranha” ou “hum moderno” por sua Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña.177 Mas se o estilo de escrita de Tácito é nítido, o mesmo não ocorre com os significados políticos e culturais assumidos por suas obras no início da Época Moderna. Conforme Saúl Martínez Bermejo – parafraseando Umberto Eco – pode haver excesso de interpretação ao atribuir características comuns ao tacitismo, termo criado em 1921 para compreender a recepção plural de seus trabalhos nos séculos XVI e XVII: o uso escondido de um Maquiavel “absolutista”, mas também a crítica republicana ao poder principesco, o revelador dos segredos do Estado, as descrições etnográficas da Britânia e da Germânia, o psicologismo de seus retratos (veja-se o anacronismo de algumas qualificações) e sua brevitas com viradas de pensamentos e frases são talvez os aspectos mais conhecidos provenientes de leituras de suas obras.178 No Discurso cita-se Tácito – no centro e na marginália – apenas duas vezes na primeira parte, referido em notas por trechos dos Anais em latim sobre insolências e discórdias no teatro das Minas; ou para condenar a venalidade do letrado José Peixoto, procurador dos amotinados. Mais ao final da segunda parte, após se
176 FUMAROLI, 2009 [1980], p. 425-672. 177 APM, AVC-17, f. 181v e 237r. Autor cosmopolita português, com influência tacitista em escritos como o diálogo Hospital das letras, no qual imita Trajano Boccalini – que por sua vez satiriza a repercussão da obra de Tácito – ou na cópia manuscrita incompleta de 1797 encontrada na BNB, de texto a ele atribuído, impresso no Rio de Janeiro e depois como MELO, D. Francisco Manuel de. Tácito português: vida, morte, ditos e feitos de el rey dom João IV de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1995 [1940]. Ao que parece escrito em 1650, o texto relata no estilo consagrado as vicissitudes da casa de Bragança desde 1604 (nascimento do futuro rei) até antes da execução do secretário Francisco de Lucena em 1643, com alguns acontecimentos relativos ao Brasil antes do desterro do autor na Bahia. REIS, Carlos (dir.); PIRES, Maria Lucília Gonçalves; CARVALHO, José Adriano de (orgs.). História crítica da literatura portuguesa: maneirismo e barroco. Lisboa; São Paulo: Verbo, 2001, v. III, p. 165-206. 178 O termo foi criado por Giuseppe Toffanin. Ver MARTÍNEZ BERMEJO, op. cit., p. 1-38; ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015 [1990]; e MOMIGLIANO, op. cit., p. 157-185.
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comentar que “os Politicos assim antigos, como modernos se cansam em intimar, e persuadir, que no principio com a mayor severidade se atalhem os motins”,179 há mais remissões aos Anais – obra maior e madura, na qual Tácito narrou as intrigas da corte dos imperadores da dinastia Júlio-Cláudia – e às Histórias, sobre a época dos Flávios, de estilo semelhante, com mais atenção aos populares. Por essa obra relata-se a disputa entre os generais Vitélio – escolhido pelas legiões da Germânia no contexto tumultuado após a morte de Nero – e Flávio Vespasiano, conquistador da Judeia que derrotou o primeiro. Já o brioso senador Helvídio Prisco, condenado à morte por Vespasiano e frequente nas Histórias, é recuperado por uma citação dos Anais. De Agrícola – biografia antes escrita sobre o sogro de Tácito, que ocupou importantes posições nos governos da Aquitânia e da Britânia, caído no ostracismo no principado de Domiciano – há uma citação. Esses são exemplos fortuitos que não expressam a essência das personagens descritas por Tácito em tons sombrios, mesclados a máximas retiradas dos livros de Diego de Saavedra Fajardo e Juan Solórzano Pereira, conforme a cultura dos aforismos própria daquele tempo. Um Tácito reduzido a pílulas, conforme sua reputação na Época Moderna.180 Na península itálica e no mundo germânico, alguns teóricos o veem como a primeira fonte para a doutrina da razão de Estado. Mas alguns jesuítas o criticam por revelar segredos do governo, enquanto moralistas do século XVII – como o inaciano Baltasar Gracián – usam Tácito como guia de prudência, a melhor autoridade na arte de dissimular, cara ao cortesão. Para vários Tácito oferecia uma instrução política, servindo ao poder ou para desvendá-lo. No Capítulo 5 veremos como esses aspectos evidenciam-se no Discurso.181 O texto central do Discurso enaltece também Luís de Camões (c. 1524-1580), com trechos de Os lusíadas e de sua produção lírica entremeando a narrativa – re-
179 APM, AVC-17, f. 186r. 180 CITRONI, 2006a [1997]. Ver também ANTÓN MARTÍNEZ, Beatriz (org.). Tácito. Anales. Madrid: Akal, 2007, p. 13-98. Em MONTEIRO, 2015, p. 189-190, identifiquei trechos de Tácito no Discurso retirados de livros de Juan de Solórzano Pereira; Silveira encontra passagens na obra de Diego de Saavedra Fajardo em SILVEIRA, 2019, p. 178-179. Como veremos no Capítulo 5, Solórzano pautava-se nos livros de Saavedra. A expressão “Maquiavel reduzido a pílulas” foi adaptada de BALDINI, Enzo. Proêmio: maquiavelismo e maquiavelismos. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes; BAGNO, Sandra (orgs.). Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 21. 181 GRAFTON, Anthony. Tacitus and tacitism. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010a, p. 920-924.
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ferenciados muito mais nas notas – e configurando numerosos momentos em que a poesia ocupa espaço no texto predominantemente em prosa. Os versos dispostos ou imitados teriam um valor mais que ornamental e simbólico, ao evocarem, principalmente, a viagem de Vasco da Gama e as glórias passadas dos portugueses notáveis, herdeiros de expansões e epopeias antigas, com heróis, deuses e mitos clássicos, inspirados nas obras de Homero, Virgílio e outros. No início do século XVIII, Camões teria expressivo papel nessa identidade lusófona e é preciso não desmerecer a presença que conferia um tom épico e imperial ao códice, unindo mais uma vez as letras e armas.182 Os lusíadas foram primeiramente publicados quando Camões (1572) ainda estava vivo, mas quase toda a lírica camoniana foi editada postumamente, num crescendo de atribuições desde a primeira edição das Rimas em 1595. No âmbito da monarquia hispânica, em 1624 Manuel Severim de Faria torna-se o segundo biógrafo de Camões e desde 1639 Manuel de Faria e Sousa distingue-se como comentador da epopeia e das demais rimas, além de realizar duas novas biografias. Em Portugal, as publicações de Faria e Sousa ultrapassaram sua morte em 1649, estendendo-se ao final do Seiscentos. Conforme Jorge de Sena, esses comentários foram importantes para a recepção de Camões até a década de 1730, conferindo a Os lusíadas um estatuto similar, na tradição humanística, às edições dos grandes clássicos. Em suma, Faria e Sousa defende o poema como sendo épico e heroico (para alguns Camões teria também se inspirado no romanzo, forma marginal aos padrões gregos e latinos) e enfatiza na obra a presença do elemento pagão – na edição de 1639, esse foi um problema para a Inquisição de Lisboa. Enumera também aspectos de uma epopeia: a escolha de assunto próximo e com um só herói na ação exemplar; o poema desenvolvido mais como invenção do que como história (embora esta deva estar também presente); sendo acompanhado de episódios, figuras, imitação e outros adornos, com estilo elegante e sublime sem excluir o fácil e até o jocoso; e que o poeta se transforme nas personagens, falando conforme cada uma delas.183
182 SILVA, Vítor Aguiar e (org.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011, p. 42-45, 341-345 e 923-933. 183 Para essas informações ver SENA, Jorge de. Trinta anos de Camões: 1948 -1978 (estudos camonianos e correlatos). Lisboa: Edições 70, 1980, v. 1, p. 171-249; ALMEIDA, Isabel. Edições dos séculos XVII e XVIII. In: CARDOSO, José Augusto (org.). A biblioteca camoniana de d. Manuel II. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; Fundação da Casa de Bragança, 2015, p. 23-33; e NISHIHATA, Mauricio Massahiro. A defesa do camonista Manuel de Faria e Sousa no tribunal do Santo Ofício de Lisboa (1640). 2014. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
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Ademais, Faria e Sousa compara Os lusíadas à Odisseia e à Eneida, em números equivalentes de livros e versos, aludindo aos mistérios da epopeia camoniana – o que teria contribuído para o seu fascínio entre os leitores. Em sua edição, o texto do grande poema vem acompanhado de comentários. Ao resumir o argumento geral da epopeia, trata as profecias como um elemento estrutural da obra, relacionando-as a aspectos ocultos, valendo-se então de Virgílio.184 As edições póstumas de Faria e Sousa das Rimas – impressas até 1616, em seu tempo – foram objeto de interrogações do comentador sobre a autenticidade de vários poemas atribuídos a Camões, provenientes de cancioneiros quinhentistas com pouca imputação autoral, ou apropriados indevidamente por outros poetas.185 Este foi o caso das “oitavas de santa Úrsula”, publicadas inicialmente como sendo do rival e emulador camoniano Diogo Bernardes, atribuídas a Camões por Faria e Sousa e assim mencionadas no Discurso186 – antes de sua contestação por filólogos dos séculos XIX e XX. Grosso modo, sonetos, redondilhas, éclogas, odes, elegias e canções camonianos podem ser relacionados às vicissitudes do amor, com o sentido parcialmente confiado à elocução rítmica, cuja compreensão encontra-se menos no conteúdo intelectual dos conceitos e mais na arquitetura dos versos.187 Em alguns casos nas notas, pela forma de se referenciar no códice AVC-17, percebe-se a leitura das obras de Camões através das publicações de Faria e Sousa – o que teria possibilitado também o contato com seus comentários fascinados por mistérios e alegorias, fazendo da poesia algo semelhante à pintura. Ainda presente no Discurso o “marquês Virgílio”, ou Virgilio Malvezzi (1595-1653), ensaísta bolonhês traduzido nas principais línguas europeias. A obra de Malvezzi caracteriza-se por um laconismo inspirado em Tácito e Sêneca, com uma economia de nexos, metáforas e epítetos expressa em frases breves e harmônicas – diferente do Discurso, com muitos adjetivos no texto. Também havia em seus livros um “sentido de surpresa”, quando o autor saltava de um tema a outro sem uma ordem perceptível. Suas biografias políticas pareciam dramas ou pinturas;
184 SENA, 1980, p. 196-197. 185 Ibidem, p. 250-265 e 135-170. 186 APM, AVC-17, f. 69r. 187 SENA, 1980, p. 23-25.
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nelas, em meio a um relato mais abstrato, engatavam-se as considerações, dando-se por supostos os dados do protagonista.188 Francisco de Quevedo admirava esses golpes de efeito, traduzindo a seu modo Il Romulo para o espanhol em 1632, com rápida difusão.189 Embora o estilo de Malvezzi seja distinto do hiperbólico Discurso (que menciona os livros El Rómulo e David perseguido em espanhol), há nessas leituras do conde e/ou dos jesuítas algo próximo ao descrito no códice. Trata-se do interesse pelas emoções de personagens e seus pressupostos éticos e políticos, fazendo elaborar relatos morais com intenção didática, numa mescla própria da poética seiscentista entre narrativa e digressões, história e ensaio. O relato de mortes violentas provocava catarses similares à tragédia teatral, com paixões, virtudes e vícios humanos aplicados à história e à luta política. O estoicismo de Malvezzi pactua com a insegurança e a volubilidade da época, distante da constância defendida pelos clássicos. Por outro lado, seu moralismo católico esmera-se em desmascarar os vícios. Esses valores articulam-se numa visão aristocrática de sociedade, na qual a monarquia dava a ordem.190 No texto do Discurso o marquês Virgílio é invocado cinco vezes: para tratar da reputação do príncipe como sendo mais importante que o “estado” e a própria vida; sobre a inutilidade da lei sem força para castigar; ou para afirmar a rebelião como sendo igual ao crime contra o príncipe ou o governador. Mas não apenas autores e livros seriam importantes para captar funções sígnicas no texto examinado, como vemos no gráfico seguinte.
188 Il Romulo contém divagações sobre o príncipe como político afortunado pelo exemplo do rei de Roma, que teria apenas erros morais indispensáveis e poucos equívocos políticos, possuindo carisma, ascendência e valor. Por essa visão, Rômulo soube impor-se como chefe, morrendo de modo fulminante sem ultrapassar a maturidade. Para Malvezzi a fortuna não era antagonista da virtude, mas expressão de um instinto, uma inspiração formando parte da pessoa. BLANCO, Mercedes. Quevedo lector de Malvezzi. La Perinola - Revista de Investigación Quevediana, Pamplona, n. 8, p. 77-108, 2004. 189 Ver ISASI, Carmen (org.). Francisco de Quevedo. El Rómulo. Bilbao: Universidad de Deusto, 1993. O conde-duque de Olivares chamou Malvezzi a Madrid em 1636 para celebrar os triunfos do seu regime, integrando-o em missões diplomáticas e conselhos da monarquia. A aparente inspiração profética, os paradoxos e bruscas digressões manifestavam-se então nos discursos de Gaspar de Guzmán. ELLIOTT, John H. El conde-duque de Olivares. Traducción de Teófilo de Lozoya. Barcelona: Crítica, 2004 [1986], p. 40, 594, 605 e 629-632. O jesuíta Baltazar Gracián também teria se inspirado na biografia do primeiro rei de Roma para compor El héroe em 1639. GARCÍA LÓPEZ, Jorge. El estilo de una corte: apuntes sobre Virgilio Malvezzi y el laconismo hispano. Quaderns d’Italià, Barcelona, n. 6, p. 155-169, 2001. 190 BATTISTINI, Andrea. Il trionfo del contrappunto. In: RIPARI, Edoardo (org.). Virgilio Malvezzi. Opere. Bologna: Persiani, 2013, p. 9-30.
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Figura 14 - Gráfico com personagens e alegorias no texto do Discurso historico, e político. Arte de Ana Luisa Videira.
Na Roma antiga Júpiter era o deus do dia, da luz, a mais importante divindade naquele panteão, com origem no patrimônio mítico comum dos povos indo-europeus, mas assumindo características particulares, mesmo em relação ao grego Zeus. Deus do céu, ele era senhor do raio e do trovão. Um de seus templos erguia-se no Capitólio, onde reinou soberano, eclipsando outras divindades. Sob sua proteção os dois novos cônsules eleitos – junto a senadores, magistrados e sacerdotes – iam solenemente agradecer-lhe a conservação da república e suas vitórias. No Palatino ficava o templo de Júpiter Stator, onde Cícero iniciou as Catilinárias. Na época imperial, governantes identificavam-se como suas encarnações.191 No âmbito classicista ele era uma forte alegoria de poder, ao simbolizar valores, mitos e fatos passados, e por analogia acontecimentos coevos.192
191 BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico: mitologia e religião romana. Brasília: EdUnB; Petrópolis: Vozes, 2008 [1993], p. 189-193. 192 HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Ed. Unicamp, 2006, p. 7-26.
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Desde o Renascimento gravuras e livros impressos europeus faziam releituras das obras de Hesíodo, Horácio e Ovídio – autores citados no Discurso. Descreviam-se assim deuses antigos para representar paixões, virtudes e vícios humanos de forma atualizada. Nas bibliotecas régias ou nobiliárquicas pululavam gravuras e livros com imagens (em forma escrita ou visual) de Júpiter e seu filho Hércules – como vimos, os combates do semideus ao leão de Nemeia e à hidra de Lerna eram os prediletos de Pedro Miguel de Almeida para referir os motins.193 Também na astrologia da época, seguindo os apontamentos de Claudio Ptolomeu, o planeta Júpiter – com seu influxo quente e moderadamente úmido – possuía ação benéfica sobre os elementos básicos da vida na Terra (fogo, ar, água e terra), compensando a má influência de Saturno.194 No Discurso Júpiter é invocado como deus passível de consentimento ou indignação, na oração fulminada por Cícero contra os sediciosos na conjuração de Catilina, ao defender que fossem banidos de Roma; ou ao mencionar-se a fábula de Esopo sobre Júpiter e a serpente – em origem, seria Zeus. Impressionam no texto as inúmeras alusões a raios, trovões, tempestades e demais fenômenos climáticos, não raro usadas para definir o poder forte dos príncipes, à maneira do deus romano.195 Da analogia pagã à cristã. As pontes entre os nomes de Pedro Miguel e o apóstolo Pedro são recorrentes, algo comum nos sermões da época e na documentação laudatória da Academia Real da História – da qual o 3o conde de Assumar faria parte a partir de 1733. O conde celebrava o dia do santo em 29 de junho, num mundo onde as palavras e as coisas andavam juntas.196 Os exemplos bíblicos constituem argumentos expressivos de ordem moral no códice, potencializando a
193 Com forte entrada na península ibérica (segundo algumas versões, ele teria morrido na Hispânia), Heraclés ou Hércules era o herói civilizador por excelência, o mais adaptável da Antiguidade greco-romana, com um conjunto de qualidades morais e intelectuais extraordinário. Único herói grego que era também um deus, ele era a própria encarnação do triunfo sobre o sofrimento humano. Após tornar-se um emblema para os humanistas, na Época Moderna a tradição sobre Hércules encontra-se dispersa em vários aspectos do herói, tidos como “vinhetas”. Pode-se considerar a incidência do seu exemplo em valores neoestoicos pertinentes a exércitos europeus, com os quais Pedro Miguel de Almeida conviveu na Guerra de Sucessão da Espanha. GALINSKY, Karl. Hercules. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 427-429; e OESTREICH, Gerhard. Neostoicism & the Early Modern State. Translation by David McLintock. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 [1982]. 194 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. L’harmonie du monde au XVIIe siècle: essai sur la pensée scientifique d’Athanasius Kircher. 1995. Thèse (Doctorat en Philosophie) – Université de Paris IV, Paris, 1995, cap. 15; e CAROLINO, Luís Miguel. A escrita celeste: almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Access, 2002, p. 15-16. 195 Por exemplo, no estandarte dos dragões descrito no Discurso. APM, AVC-17, f. 39v-40r. Ver SILVEIRA, 2019, p. 170-171. 196 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1966], p. 23-61.
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participação de Antonio Correia e José Mascarenhas. Nesse jogo de similitudes, Moisés parece ter sido mais próximo à personalidade pública do 3º conde de Assumar, em suas manifestações de força, rigidez e punição a desordeiros, sobretudo no episódio concernente ao bezerro de ouro, mencionado ao final do Discurso.197 Conforme Erich Auerbach, a interpretação figural surgiu na Antiguidade grega e foi desenvolvida por autores latinos como Lucrécio, Cícero e Ovídio, até materializar-se nos livros de Quintiliano como conceito retórico elaborado. Desde Tertuliano, os padres da Igreja abordam a figura como a representação de algo similar a realizar-se no futuro, reconhecível como numa profecia. Em Contra Marcião essa dinâmica faria parte de uma substância; pessoas e eventos do Velho Testamento prefiguravam o Novo com significados literais. As frases relacionavam-se entre si como figura (sombra) e preenchimento (verdade). Sombra e verdade seriam abstratas em relação ao significado, mas eram concretas sobre pessoas/veículos daquele sentido. Ao lado de uma interpretação espiritualista, abstrata e alegórica, centrada em Alexandria e de inspiração mais pagã, a interpretação figural desenvolveu-se pelos escritores latinos da Igreja.198 As cartas de Paulo de Tarso entre os gentios – por uma via mais poética – e o pensamento histórico e concreto de Agostinho favoreceram a interpretação figural do Velho Testamento, propalando seu uso em sermões e missões. Mas a forma de interpretar podia estender-se, por pregações, a personagens seculares separadas no tempo. Segundo Auerbach, na maior parte dos países europeus a visão figural exerceu influência na Idade Média e permaneceu viva até o século XVIII, sem ser diferenciada de outras formas alegóricas ou simbólicas. No Discurso, Moisés é a figura e o conde general o seu preenchimento aperfeiçoado. Neles estariam o princípio criativo, a essência presente na mudança, os matizes de significado entre
197 Algumas dessas passagens pautam-se no livro de frei Juan Márquez (1565–1621), clérigo agostiniano que estudou na Universidade de Toledo, tendo sido professor de teologia em Salamanca e pregador de Felipe III, II de Portugal (1598 -1621). Seu livro baseia-se nas vidas de Moisés e Josué como protótipos de governadores cristãos, contra os exemplos expostos por Maquiavel e Bodin. MARQVEZ, F. Ioan. El governador christiano dedvcido de las vidas de Moysen, y Iosve, principes del pveblo de Dios. Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1614 [1612]. Juan Márquez foi mencionado na carta escrita ao bispo do Rio de Janeiro e encontra-se no Discurso, sendo uma das evidências do âmbito comum de origem desses registros. SOUZA, 1994, p. 40; e SOUZA, 2006, p. 229. 198 Para essas informações, ver AUERBACH, Erich. Figura. Tradução de Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997 [1994], p. 26-31 e 47. Ver também QUINTILIANO, Marcos Fábio. Instituição oratória. Tradução de Bruno Fregni Bassetto. Campinas: Ed. Unicamp, 2016, t. III, livro IX, p. 373-629.
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arquétipo e cópia.199 Como veremos no último capítulo, se o livro de Juan Márquez demonstra a simbiose entre política e religião na Época Moderna, podendo ser inserido no tema da razão de estado, seu uso no Discurso foi adaptado à parenética, na qual os jesuítas eram especialmente treinados. O peso das figuras bíblicas citadas no texto seria de aproximadamente 13%, com equilíbrio entre o Antigo e o Novo Testamento e poucos exemplos especificamente egípcios ou persas. Em contrapartida, o mundo clássico faz-se presente em 53% de personagens do texto, divididos em gregos (6%), romanos (22%) e retirados de sua mitologia (25%). Estendendo essa errática tentativa de periodização e agrupamento ao conjunto de autores citados e/ou identificados no texto central, o predomínio do mundo clássico se evidencia mais: os autores bíblicos surgem com 1,5%, os gregos antigos com mais de 11% e os latinos pagãos com quase 36%. Os escritos da patrística correspondem a 6% no texto do manuscrito, enquanto escolásticos, santos e juristas “medievais” somariam 9%. Por fim, diversos autores da Época Moderna perfazem 36 % num total de 132 remissões. E se agrupamos por contextos e épocas as referências históricas do texto em tela, compreendendo autores, personagens e situações, vê-se num total de 300 – grosso modo – a Antiguidade greco-romana despontar com 48%, as referências bíblicas com 8%, a Idade Média com 9% e a Moderna com 32%.200
Os nomes nas notas Resta contemplar as 490 notas marginais no manuscrito original, quase totalmente centradas em autores e obras (Figura 15), com muitas citações em latim ou em português – as notas da Noticia glosam os conteúdos dos parágrafos ao lado, sendo completamente distintas. As notas do Discurso foram suprimidas em 1825 na cópia de António Lourenço Caminha, quando o códice estava em Lisboa. Como vimos, esta cópia ingressou na BNB posteriormente. Em abril de 1896 nove documentos comprados da livraria dos condes de Linhares entraram na sede do
199 AUERBACH, 1997 [1994], p. 33- 46 e 51-52. 200 MONTEIRO, 2015, p. 194.
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APM em Ouro Preto. Entre eles o Discurso, transcrito e impresso em 21 meses. Compreende-se a omissão das muitas notas por Xavier da Veiga nas edições de 1898, pois nas primeiras diagramações em jornal daquele ano não havia espaço para notas e o mesmo ocorreu com o livro impresso in-oitavo, com 239 páginas.201 Ademais, as notas eram trabalhosas de serem transcritas pelas abreviaturas empregadas, a caligrafia pequena e os trechos em latim. Mas há algo referente aos estudos nos séculos XIX e XX que justifica o desprezo por aquelas notas e aquele modo de escrever. Na advertência impressa no jornal e no livro, Xavier da Veiga qualifica o Discurso como “gongórico e asiático”, demonstrando estranhamento com o texto da primeira metade do século XVIII.202 Por sua vez, Diogo de Vasconcelos escreve outro tipo de notas, com comentários que quase não mencionam as fontes. E endossa a opinião do amigo sobre o documento: “Laudatório a mais não poder ser, gongórico e difuso, conforme o gosto literário da época”.203 Entretanto, no tempo da sublevação de Vila Rica as notas marginais podiam suportar melhor argumentos e histórias, denotando uma arte literária relacionada ao âmbito no qual foram geradas. Com elas procura-se convencer o leitor, lembrando autoridades que conferiam decoro ao texto. Os historiadores antigos costumavam não identificar suas fontes em textos paralelos a suas narrativas, sendo seguidos por alguns autores da Renascença. Anthony Grafton perscruta as origens das notas de rodapé históricas no hábito de juristas e professores romanos referenciarem tratados, em códigos de universidades medievais, nas glosas marginais de manuscritos e impressos de teologia, direito e medicina, ou no recurso a autoridades antigas em delicados textos políticos da Época Moderna – remissões não raro facilitadas por resumos vindos de outras obras. Para os historiadores eclesiásticos, as autoridades citadas dentro e/ou à margem dos textos representavam o apoio a teses defendidas, antes do afã antiquário e da feição ilustrada de história se afirmarem.204
201 VEIGA, 1898. 202 Ibidem, p. 4. 203 VASCONCELOS, 1974 [1904], p. 206. 204 GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre a nota de rodapé. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1998 [1997]; MOMIGLIANO, op. cit.; e GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [2000], p. 13-79. As notas que acompanham poemas atribuídos a Gregório de Matos também são protocolos de leitura, fixando no leitor um “referente” externo ao discurso poético, mas que na verdade faz parte deste, reforçando o argumento. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 179.
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Figura 15 - Gráfico com autores e obras nas notas do Discurso historico, e político. Arte de Ana Luisa Videira.
Nas muitas notas marginais Camões é o autor mais citado, com 45 remissões a sua lírica e épica, além dos instantes em que seus versos cadenciam o texto central, fazendo dele um autor onipresente no códice. Como vimos, a elaboração do Discurso situa-se num período de grande recepção camoniana, quando a citação, a glosa e a recriação de trechos de sua obra demonstram a agudeza do poeta ou prosador. Nesse tempo Camões exercia uma atração estética pelo deleite de sua poesia, capaz de mover afetos com jogos verbais e decoro. Como os autores portugueses do reino e do ultramar narravam fatos distintos, eles retomavam parte do fraseado do poeta quinhentista nos episódios, sem os conteúdos e significantes originais. Assim ocorre
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no Discurso, com uma correspondência exata entre os números dos cantos e as 30 estrofes de Os lusíadas referenciados em notas, além das frases imitadas na mancha central. Também a forte incidência de alegorias pagãs aproxima o códice em tela dessa epopeia. No caso da lírica, a verificação de leituras é mais difícil, pelas várias edições e numerações de poemas existentes. Tal prática faz das formas o seu conteúdo,205 ao apresentar uma celebração epidérmica da pátria e da expansão lusas. Mais que o desejo de emulação, percebe-se no códice uma atitude reverencial ante a qualidade do poeta – movimento também percebido em relação a Francisco de Sá de Miranda e Gabriel Pereira de Castro, cuja epopeia seria ainda mais situada no plano do maravilhoso mitológico.206 O Discurso também se ancora fortemente em Caio Salústio Crispo (86-34 a.C.) por seu relato sobre a conjuração do patrício Lúcio Sérgio Catilina, no século I a.C. na Roma republicana, escrito após as mortes de César, Bruto e Cássio. É dele a primeira emulação na página inicial do manuscrito, com o exórdio “Varios tem sido os motins, e soblevaçoe’s, que em diversos tempos houve nas Minas, Mas nenhūa de tam perniciozas consequencias, e tanto para temer, como a presente do anno de mil, e setecentos e vinte”, com a nota em latim ora traduzida do célebre prólogo de A conjuração de Catilina: “Com efeito, creio que este fato seja sobretudo digno de memória pela excepcionalidade do delito e do perigo”.207 Também é bastante citado o relato – escrito depois – de Salústio da guerra havida no século anterior contra o príncipe Jugurta, da Numídia. Por esses livros, os retratos moralizantes e discursos em voz direta elaborados pelo historiador romano pautam as caracterizações vis de Pascoal da Silva Guimarães, Manoel Nunes Viana, Sebastião da Veiga Cabral,
205 Conforme a ideia de uma semiose ilimitada, a unidade de forma do conteúdo pode tornar-se expressão de outro conteúdo. Parte do referente pode ser empregada como significante, usando-se a parte pelo todo. O Discurso seria assim uma grande metáfora que pode ser reduzida a uma cadeia subjacente de conexões metonímicas (a ossatura do código). Há criatividade na linguagem quando se inventam possibilidades combinatórias ou emparelhamentos semânticos não previstos, como no códice em tela. ECO, Umberto. As formas do conteúdo. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2010 [1974], p. XII-XIV, 22-23 e 78-79. 206 Por exemplo, na passagem diagramada como um verso híbrido, na iminência da prisão de Filipe dos Santos, no início imita-se uma frase da estrofe do canto VI de Ulisseia, seguida por frase de écloga de Sá de Miranda e finalizada com trecho do canto III de Os lusíadas – referenciados corretamente em três notas sucessivas. APM, AVC-17, f. 190v. CUNHA, Mafalda Ferin. Camões na poesia barroca portuguesa. In: SILVA, Vítor Aguiar e (org.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011, p. 172-176. Para o império português percepcionado por Sá de Miranda e a fortuna de sua obra, ver AMARAL, Sérgio Alcides Pereira do. Desavenças: poesia, poder e melancolia nas obras do doutor Francisco de Sá de Miranda. 2007. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 238 -275. Sobre Gabriel Pereira de Castro, ver SENA, Jorge de. Estudos de literatura portuguesa III. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 211-212. Para várias informações, ver ALMADA; MONTEIRO, op. cit., p. 11-13. 207 APM, AVC-17, f. 1r.
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Manoel Rodriguez Soares e Mosqueira da Rosa feitas no Discurso. Em revanche, o conde general reina junto a heróis antigos e/ou fabulosos, acima do mundo de vícios e sedições. O perfil de monografia histórica, o estilo áspero da narrativa salustiana e até mesmo o esquecimento dos problemas sociais e econômicos seriam outros aspectos comuns ao manuscrito em tela.208 Um dos mais lidos historiadores romanos, Salústio foi estudado e emulado também como filósofo moral, pensador político e estilista. Sua popularidade demonstra a versatilidade de seus escritos em diversos ambientes, com os prólogos filosóficos, as digressões de fundo político-social ou geográfico, os discursos dramáticos, as cenas de batalha e os retratos paradoxais sendo imitados. Várias características suas de sintaxe – como a alteração cronológica dos eventos e os excursus pelos quais o historiador corta a narrativa – e de vocabulário influenciaram trabalhos. Ao associar episódios da história romana à mitologia antiga, suas narrativas se embelezam com elementos de pathos, horror, sonhos, oráculos e presságios, sem os excessos gregos. Desde a Idade Média, narrativas de histórias clássicas constituem um material importante para as letras vernáculas. Uma tradição acolheu a personagem de Catilina em sua luta contra Cícero e a república, culminada na trágica morte em batalha, inspirando composições literárias. Na ars historica da Renascença tardia, Salústio seria uma referência para o direito e a política. No século XVII passou a ser citado junto a Tácito e Sêneca em prol de teorias de governo ou por uma filosofia neoestoica da prudência.209 Nos currículos escolares, as monografias sobre a sublevação de Catilina e a guerra de Jugurta sustentaram lições gramaticais e de retórica, informaram sobre a história romana e forneceram máximas diversas. Trata-se de exemplos para narrar eventos recentes com as vicissitudes de personagens ilustres, à maneira de Catão, César ou Mário. No Setecentos o uso dos discursos diretos já seria démodé, mas o retrato salustiano de Catilina era ainda famoso nos cursos de retórica. Conforme Carlo Ginzburg, os jesuítas, interessados
208 Além de continuar a perspectiva de Tucídides de que a linguagem reflete a realidade, percebe-se em Salústio uma arquitetura textual mais desarmônica (com um estilo abrupto e cortante para narrar os acontecimentos políticos) em relação à simetria de Cícero. Por outro lado, ambos conferem caráter dramático à narração, com variações no desenvolvimento, incerteza dos resultados etc. Para essas informações, cf. CARRERA DE LA RED, Avelina (org.). Salustio. La conjuración de Catilina. Guerra de Jugurta. Madrid: Akal; Clásica, 2001 (especialmente p. 17-102); e NARDUCCI, Emanuele. Salústio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006c [1997], p. 411-429. 209 OSMOND, Patricia. Sallust. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 856-858.
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em conflitos políticos na América, valiam-se desses ornatos. Eles possuíam sensibilidade teatral, gostavam de reflexões audaciosas e lidavam com a diversidade cultural.210 A seleta de temas e estilos nos manuscritos advinha dos inacianos que secundavam Pedro de Almeida, bem como de sua própria verve, mas não apenas na forma textual. Como veremos, há uma relação vertical, buscada pelos autores do Discurso e pelo próprio governador, entre os eventos da sublevação de 1720 e a conjura de Catilina, respaldada nos escritos de Cícero e Salústio. Por sua vez, Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.), também citado 37 vezes em notas no Discurso, pautou-se em Homero – inspirando mais tarde, no gênero épico-histórico, Petrarca e depois Camões, perpetuando-se ainda na tradição da cavalaria épica. No códice setecentista a Eneida é referenciada principalmente por sua função sígnica. Mas há aspectos imitados deste grande poema ou das Geórgicas – que despertaram especial interesse nos séculos XVII e XVIII – aumentando sua capacidade de comunicação, ao modo do poeta latino notável pelo uso da intertextualidade. Por exemplo, sobre as relações entre Roma e Cartago por meio da rainha Dido e com o “orientalizado” Marco Antônio – apropriados por contraste para caracterizar os rebeldes de 1720 – ou acerca da ambiguidade de Júpiter. Há também no Discurso a busca de um estilo similar ao de Virgílio no uso de anáforas na segunda parte; no excursus final encomiástico de efeito, com menção ao Capitólio; e no ritmo por vezes claro-escuro do manuscrito, existente nas Geórgicas. Na narrativa épica em tela, o conde é descrito à maneira de Eneias, como um herói em meio à guerra. Embora o poeta latino fosse próximo ao epicurismo, os valores estoicos presentes na Eneida aparecem num messianismo de oráculos difuso no texto e na ideia da “missão” da qual o conde general era investido – um líder militar capaz de interpretar presságios, em meio a uma Roma de magistrados. O legado
210 GINZBURG, 2002 [2000], p. 80-99.
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de Virgílio confunde-se com a própria história ocidental, em termos literários e como fator identitário.211 Pode-se especificar um percurso de recepção. O autor modelar forneceu material para aulas de gramática e retórica, quando os jesuítas adaptavam obras de Virgílio em versão cristianizada, embora banindo algumas de suas éclogas e o livro IV da grande epopeia em verso. Virgílio era a maior referência para a poesia e o gênero épico, quase tanto como Cícero era para a prosa. Conforme Yasmin Haskell, na poesia neolatina havia uma hibridização bizarra das formas clássicas. Nos colégios jesuíticos, manuais práticos para aspirantes a poetas instruíam como imitar Virgílio no plano épico, transferindo os valores de Roma para a Companhia de Jesus. O uso do latim permitia canibalizar a poesia virgiliana em termos verbais e estilísticos, na transubstanciação de um texto quase sagrado. Pelo programa Ratio studiorum – a ser visto no próximo capítulo – escolhiam-se os poemas mais úteis aos exercícios, livros produzidos no âmbito da Companhia evocavam aspectos de suas obras e os professores comparavam Homero e Virgílio constantemente. Um desses manuais, do padre francês Laurent Le Brun, foi citado no Discurso. Le Brun adaptava poemas de Virgílio e Ovídio em forma cristianizada. Nos séculos XVII e XVIII houve uma voga dessa poesia didática no âmbito da Companhia de Jesus.212 Como vimos, não há como resumir a influência de Cícero em retórica, política e filosofia, mediando as relações entre as culturas grega e romana, a oratória e as belas-letras. Mencionado 36 vezes nas notas, ele notabilizou-se pelo impacto emotivo de seu estilo com abundância de palavras, expressões e amplificações.
211 A menção ao estoicismo lembra também Lúcio Aneu Sêneca (ca. 4 a.C.-65), citado nas notas (embora com vários equívocos de atribuição) por epístolas, tragédias (recriando peças da mitologia grega com grande carga emocional e reflexões sobre o poder tirânico), o tratado Sobre a clemência e o diálogo Sobre a ira, sendo também conhecido por suas anáforas, antíteses e retórica, na esteira da filosofia diatríbica. Ver LABATE, Mario. Virgílio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006a [1997], p. 447-498; CITRONI, Mario. Séneca. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006d [1997], p. 719-760; PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, v. II, p. 246-327; BAUMBACH, Manuel. Aeneas. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 8-10; MOST, Glenn W. Virgil. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010a, p. 965-968. Sobre a intertextualidade virgiliana e sua identidade romana em oposição a Cartago e ao Oriente, ver NELIS, Damien P. Vergil’s library. In: FARRELL, Joseph; PUTNAM, Michael C. J. (orgs.). A companion to Vergil’s Aeneid and its tradition. Chichester: Wiley Blackwell, 2014 [2010], p. 13-25; e REED, J. D. Vergil’s Roman. In: FARRELL, Joseph; PUTNAM, Michael C. J. (orgs.). A companion to Vergil’s Aeneid and its tradition. Chichester: Wiley Blackwell, 2014 [2010], p. 66-67. 212 HASKELL, Yasmin. Practicing what they preach? Vergil and the Jesuits. In: FARRELL, Joseph; PUTNAM, Michael C. J. (orgs.). A companion to Vergil’s Aeneid and its tradition. Chichester: Wiley Blackwell, 2014 [2010], p. 203-216; APM, AVC-17, f. 186r. O livro IV da Eneida foi citado em três notas no APM, AVC-17, f. 75v, 96v, 109r.
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Cícero é citado no Discurso, por exemplo, pelo colóquio De legibus (sobre as leis), ao enfatizar a aplicação das penas ante os delitos; ou por De officiis (sobre os deveres), marcado pela intolerância moral aos menos favorecidos e por recuperar em tom autoritário os princípios ético-políticos da res publica aristocrática. Escrito durante a luta contra Marco Antônio no Egito, em De officiis se polemiza contra o ditador assassinado, tendo César quase como um Catilina redivivo, enquanto no Discurso alerta-se para cuidar de todas as partes da res publica, ou sobre os instintos rebeldes dos mineiros, ou sobre os fundamentos da justiça.213 Por De divinatione (sobre a adivinhação) mencionam-se os vaticínios da sibila, profetizando a violência em analogia aos motins naturais das Minas. O diálogo ciceroniano foi escrito quando as práticas divinatórias alcançaram também o grupo dirigente na república romana, no tempo de incertezas pelo conflito civil – algo também referido por Salústio em A conjuração de Catilina. Cícero manifesta ironia sobre crenças e práticas que lhe pareciam ridículas. Mas sua narrativa confere aos sonhos divinatórios uma atmosfera alucinada e de pesadelo, demonstrando amplo domínio dos meios expressivos – esse fascínio pelo oculto foi o aspecto apropriado pelo Discurso. Sobre as Catilinárias, destaca-se o tom agreste e veemente a fim de timbrar o furor subversivo. Nas quatro orações Catilina é visto como demagogo, um inimigo público assemelhado no Discurso aos sublevados mineiros, principalmente Sebastião da Veiga e Pascoal da Silva. Na execução de Filipe dos Santos, ressalta-se o aplauso do povo – conforme a 4a Catilinária, pela qual se decidiu a execução sumária dos conspiradores sem garantias jurídicas.214 Conquanto Cícero no Discurso a favor de Milo alivie certos pormenores para desviar a atenção em favor do assassino de Clódio, há trechos nesse texto que enfatizam os crimes dos rebeldes. Por sua vez, no discurso violento empregado nas Filípicas contra as pretensões de Marco Antônio após a morte de César – decalcado do discurso de Demóstones contra Filipe da Macedônia – Antônio é caracterizado como um bandido vulgar em grande variedade de tons (grandiloquente, solene, de dor, indignação e até satírico), semelhante a retratos dos amotinados mineiros. Por fim, dos livros escritos para formar Marco Júnio Bruto orador surgem conselhos sobre a validade da prudência a fim de antecipar-se aos
213 Para essas informações, ver NARDUCCI, 2006b [1997], p. 263-310. 214 Sobre o tema há um exercício de interpretação em MONTEIRO, 2015.
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conflitos. Há ainda nos discursos ciceronianos momentos epidícticos ou celebrativos, como no Discurso ao louvar-se o conde general.215 Conforme Anthony Grafton, nos séculos XVII e XVIII foi sobretudo o Cícero “cívico” que reviveu nos escritos.216 Mas não somente de retórica e política fez-se o códice em tela. A célebre passagem sobre a natureza das Minas em seu início – destacada por Sylvio de Vasconcellos e Laura de Mello e Souza – emula um trecho das Metamorfoses de Públio Ovídio Nasão (43 a.C.-17),217 apresentado aqui por uma tradução/edição contemporânea: Sobre estas paira o ar, que é tanto mais leve que a massa da terra / e do que a massa da água, quanto mais pesado é do que o fogo. / Aí fixou o lugar e a névoa, fixou aí o lugar às nuvens / e aos trovões, que haviam de apavorar as mentes humanas, / e aos ventos, que produzem raios e relâmpagos.218
Ovídio e trechos de suas obras são citados em 35 notas no códice – além de mencionados quatro vezes na mancha gráfica central. Adiante, os temas da natureza e do ouro viciante voltam a vincular-se à cosmogonia e ao caos descritos no primeiro livro de Metamorfoses. Acentuando os conflitos entre os elementos, a etiologia ovidiana respalda as transformações engendradas pelas riquezas naturais das Minas, ao gerar gigantes e seus motins.219 Na primeira parte do Discurso, mais três passagens aludem a Metamorfoses. Por essas vê-se a terra com veios de ouro que ocultam fezes e males, exalando vapores que corrompem o ar e entram pelos poros nos indivíduos, introduzindo vícios e venenos. A prática dos mineiros de arrasar a terra para as catas é comparada ao dever do rei ante os poderosos, cuja existência era garantida pelo Diabo, que surgia pelas bocas das catas, comparadas a bocas do inferno – inferno vizinho ao ouro, segundo os versos de Ovídio. Embora o ouro só seja mencionado por duas vezes no primeiro livro de Metamorfoses, o poema
215 NARDUCCI, 2006b [1997], p. 263-310; e PEREIRA 2009-2012, v. II, p. 125-180. 216 GRAFTON, Anthony. Cicero and ciceronianism. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010b, p. 197. 217 OVÍDIO, Metamorfoses, I, 54-55; APM, AVC-17, f. 2r-2v. 218 DIAS, Domingos Lucas (org.). Ovídio. Metamorfoses. Tradução de Dias. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 47. Para essas informações e reflexões, ver LABATE, Mario. Ovídio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006b [1997], p. 583-616; e MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Discurso historico, e político metamorfoseado. In: MEGIANI, Ana Paula Torres; MONTEIRO, Rodrigo Bentes (orgs.). Traços: da obra de Laura de Mello e Souza. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2021a, p. 332-353. 219 KEENEY, E. J. The Metamorphoses: a poet’s poem. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 140-153.
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épico, mas não heroico, potencializa as remissões à natureza alquímica na prosa do códice, como veremos no Capítulo 5. Mais surpreendentes são as obras juvenis de Ovídio, dedicadas às artes do amor e do sexo no principado de Augusto, produzidas antes do seu exílio na costa do mar Negro. Essas foram apropriadas para referir-se ao engodo de cariz político, por exemplo no ardil de Pascoal da Silva, valendo-se da celebração do aniversário da jovem condessa de Assumar para examinar os ânimos dos desgostosos. Ou pela menção aos lupanares improvisados em vendas no morro daquele potentado, onde escravos fugidos obtinham e gastavam ouro no comércio com negras gentis em camas asseadas. As notas de Ovídio com trechos elegíacos – inspirados na poesia erótico-didática de Propércio e Tibulo – endossam a repressão à licenciosidade vinda da riqueza, seja na Roma antiga ou em Vila Rica. Por sua vez, a crueldade de Manoel Nunes Viana é associada no corpo do texto a Medeia e Dido, personagens das Heroides. Como se sabe, nessas epístolas poéticas Ovídio emulou obras de Eurípides, Virgílio e outros, ao imaginar cartas de mulheres míticas a seus amantes e/ou maridos, usando a voz feminina. Há assim uma relação intertextual de perfil diacrônico e vertical entre o Discurso, os versos ovidianos sobre infortúnios amorosos um tanto subversivos e as letras clássicas antecedentes. Impressiona que a tragédia grega, bem como a perfídia, o poder e o carisma imaginados para a rainha de Cartago sejam apropriados dessa forma a fim de descrever o comportamento do poderoso mineiro. Também na nota de Remédios do amor (pequeno poema para se curarem os venenos do amor, com moderação), no trecho traduzido como “Enquanto o furor estiver em curso, concede-lhe”, altera-se bastante o significante em benefício da forma, para validar a analogia com a prudência do conde em adiar a repressão da revolta.220 Não há como mencionar todas as passagens. Pascoal da Silva e seus asseclas voltam a ser associados na primeira parte do Discurso – com evidentes mudanças de conteúdos – a trechos de Metamorfoses, Amores e Heroides. Ao relatar-se que Filipe dos Santos foi apanhado em flagrante e com aplauso dos moradores foi enforcado e esquartejado, ficando sem sepultura e cadáver, as referências escolhidas foram 220 APM, AVC-17, f. 72r. Ver BOOTH, Joan. The Amores: Ovid making love. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 61-77; FULKERSON, Laurel. The Heroides: female elegy? In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 78-89; GIBSON, Roy K. The Ars amatoria. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 90-103; e BOYD, Barbara Weiden. Remedia amoris. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 104-119.
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um trecho do poema invectivo Íbis, pleno de maldições e ataques a um inimigo imaginado (a tradução seria “Serás arrastado pela mão do carnífice diante dos aplausos do povo”), aludindo aos sangrentos esportes romanos. Adiante, em nota há uma frase de Amores, traduzida como: “Uma tal morte foi coerente com a sua vida”. Mas o comentário ovidiano foi concebido para versar sobre o destino infausto de um homem que amou duas mulheres ao mesmo tempo. Depois, compara-se a ferida de Télefo, filho de Hércules, feita e curada por Aquiles, e a sublevação de 1720 por um dos livros de Tristia, série poética elaborada no exílio de Ovídio – manifestando com talento (numa mescla de lamento e humor) o desespero pelo perdão de Augusto em sua tragédia pessoal. No Discurso, a cura da revolta por meio da lança aparece como eufemismo favorável ao governador de capitania.221 Como vimos, a segunda parte do manuscrito inicia-se com nove parágrafos começados em forma de anáfora. Somente a partir do quarto deles há um trecho em nota, de Metamorfoses. Nesta parte surge nova remissão às Heroides, pela carta de Helena de Troia a Páris, com menção ao gigante Briareu, com cem braços análogos ao poder do rei, semelhante ao Sol, capaz de ferir do monte ao vale distante. E após as remissões a Faetonte e Salmoneu, recupera-se o episódio do rei Licáon, rebelado ao promover um festim, punido pelo rei dos deuses com sua metamorfose em lobo. Poucas páginas adiante há outra nota sobre a mesma fábula, como fruto dessa insubordinação punida com rigor. Ovídio é também o pivô da instigante menção aos antigos e modernos, aproximados pelo emblema de Florens Schoonhoven. Embora no Discurso autores antigos e modernos tivessem os mesmos objetivos em face dos motins, reconhece-se que Ovídio em Remédios do amor versava sobre assuntos diferentes do holandês. Como vimos, o jesuíta Laurent Le Brun adaptava obras de Virgílio e Ovídio em forma cristianizada.222 Quatro notas com trechos de Amores e Remédios do amor margeiam as folhas seguintes, entremeadas a outras, na mesma lógica de alterar-se os significantes. Por fim, nas últimas folhas, após invocar-se o direito natural ante a
221 APM, AVC-17, f. 143r-144r. Ver CLAASSEN, Jo-Marie. Tristia. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 170-183; e HELZLE, Martin. Ibis. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 184-193. 222 SCHOONHOVIUS, Florentius. Emblemata: partim moralia, partim etiam civilia. Amsterdam: Joannem Janbonium, 1648; LE BRUN, Laurent. Institutio iuventutis Christianae. Paris: Sebastianum & Gabriellem Cramoisy, 1653, cap. II, p. 8; e HASKELL, 2014 [2010], p. 214-216.
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impossibilidade de o conde convocar ministros para a junta de magistrados, desponta a derradeira “razão” atribuída a Ovídio no texto central, retirada de obra provavelmente escrita por um imitador do célebre poeta, a Consolatio ad Liviam – uma elegia de consolo a Lívia, esposa de Augusto, pela morte de seu filho Druso.223 Ao mesclar mito e história, ser um ventríloquo de mulheres, desdenhar do poder dos deuses e inspirar-se de modo tão original nas poesias helenística e latina, Ovídio era o enfant terrible da poesia augustiana. Trata-se talvez do mais influente e popular escritor da tradição clássica, pois sua reputação, conhecendo altos e baixos, só declinaria no decorrer do século XVIII. Sua obra-prima, Metamorfoses, ao mesclar força, apelo visual e memoráveis narrativas articuladas num grande catálogo de histórias, permitia adaptar e reinventar até mesmo cenas bíblicas. Mas seus outros poemas maiores, especialmente os ousados e glamourosos Amores, Arte amatória e Remédios do amor também teriam um papel nessa celebridade deveras heterodoxa em relação ao catolicismo. Nesses trabalhos era frequente distorcerem-se os textos e sentidos originais, sem prejuízo dos engenhos e efeitos.224 * Em conclusivo, se o apego aos clássicos – sobretudo latinos – representa uma forte tendência do texto em análise, o aspecto não seria exclusivo desta fonte, ao constituir um sinal de erudição e autoridade inerente àquele tempo – valores também presentes na aristocracia lusitana letrada setecentista e na formação jesuítica. As apropriações no Discurso suscitam mais reflexões, a serem feitas nos Capítulos 4 e 5.225 Por outro lado, a contagem visando perceber o peso das referências a autores, personagens e situações portuguesas, incluindo as possessões ultramarinas, revela
223 LABATE, 2006b [1997], p. 613; e KNOX, Peter E. Lost and spurious works. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 213-214. 224 BROWN, Sarah Annes. Ovid. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 667-671; e SPENTZOU, Efrossini. Theorizing Ovid. In: KNOX, Peter E. (org.). A companion to Ovid. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013, p. 381-393. Sobre as edições ilustradas e gravuras de Metamorfoses, ver FEBVRE; MARTIN, op. cit., p. 147-149. 225 Para sensíveis abordagens do “classicismo” e suas transformações na Época Moderna, embora concentradas na experiência europeia, ver QUONDAM, Amedeo. Rinascimento e classicismi: forme e metamorfosi della modernità. Bologna: Il Mulino, 2013; e CANFORA, Luciano. Gli antichi ci riguardano. Bologna: Il Mulino, 2014.
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escassas menções ao mundo luso, atingindo apenas 8% do total de 300 referências históricas na mancha gráfica central – excetuando o âmbito imediato das Minas. Nesse exercício intertextual limitado, constata-se na transcrição a fidedignidade com que trechos de autoridades antigas ou modernas foram copiados e citados no Discurso, com precisão e poucos erros de referência. Graças a esse aspecto foi possível vencer, mediante o uso de mecanismos de busca na internet,226 os obstáculos de perfurações causadas por insetos no códice. Completei assim muitas lacunas, identificando por leitura de cópias digitais as edições de livros (hoje raros) consultadas pelos autores, mormente de impressos nos séculos XVII e XVIII, antes da sublevação. Os autores dispunham de livros impressos, entre obras seminais e compêndios de ditos, máximas e aforismos. O detalhamento da ortografia e dos grafemas escritos com exatidão em português, latim ou espanhol no códice indica a consulta direta a impressos e menos a anotações manuscritas.227 Ao mesmo tempo, a verificação mais precisa das leituras feitas e apropriadas permite perceber o que teria sido consultado e como teria sido reescrito, evitando-se o risco de generalizar o entendimento de nomes e trabalhos apenas por suas reputações pósteras.228 Para avançar a análise sob outro prisma, quatro grandes conjuntos, entre autoridades e textos mencionados, podem ser formados: 1) De modo coerente com as listas, Camões e os épicos heroicos de Virgílio, Gabriel Pereira de Castro e outros constituem um primeiro grupo, que confere ao códice uma evidente função poética, ao qual se juntam Sá de Miranda – na reverência a outro grande poeta português – e seu emulado Horácio. Epopeias e lírica não seriam assim um adereço externo, mas um ornatus, componente fundamental do próprio texto, altamente estético.229
226 Sobre a relevância das consultas a cópias digitalizadas de livros raros na pesquisa histórica, ver GAUZ, Valeria. História e historiadores de Brasil colonial, uso de livros raros digitalizados na comunicação científica e a produção do conhecimento, 1995-2009. 2011. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia; Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011, p. 186-212. 227 Sobre a edição de livros impressos portáteis e o interesse por livros de autores latinos antigos na Europa moderna, ver FEBVRE; MARTIN, op. cit., p. 137-139, 361, 364-366. 228 Ao lidar com um texto e uma série de textos precedentes, o princípio da intertextualidade liga-se ao de hipercodificação, em ECO, 2002 [1976], p. 122. 229 Os antigos retóricos concebiam as figuras do discurso na categoria de ornamento, ornatus. Mas o ornatus antigo, ao modo do tato, do pulso, do olhar, da voz e da respiração (sintomas pelos quais o médico julga a doença ou a saúde) seria o próprio discurso em si, no éclat que manifesta a outrem seu vigor, sua juventude, o poder de atrair uma resposta. O discurso assim seria um corpo pelo qual o orador se mostra a alguém. FUMAROLI, 2009 [1980], p. XVI.
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2) Os prosadores latinos de primeira linha Cícero e Salústio aproximam-se bastante de traços essenciais do códice, por formas (os vários tons ciceronianos, a abordagem monográfica de Salústio etc.) e conteúdos histórico-políticos (as Catilinárias e demais conflitos) próprios a seus escritos, configurando o segundo grupo – relacionado ao último a ser descrito, mas distinguido por expressar metaforicamente uma remissão direta a um evento histórico e político passado. 3) Há também textos que respaldam filosofias naturais, o fascínio pelo oculto, analogias mitológicas e registros satíricos, compreendidos por formas que produzem efeitos de estranhamento ou cômicos, por seus próprios nomes e/ou pelas frequentes alterações de significantes. Entre eles o clássico de primeiro time Ovídio é o carro-chefe, junto a Nicolas Caussin e sua cornucópia de exemplos, seguidos de longe por Lucrécio, a Batracomiomaquia e no perder das contas Juvenal, Luciano de Samósata, Cervantes etc.230 4) Por fim, e de maneira relacional ao segundo grupo, a apropriação de passagens de Tácito, Sêneca e Tito Lívio, bem como as várias formas textuais surgidas nos âmbitos político e jurídico moderno, aglutinam Virgilio Malvezzi, Juan Márquez, Solórzano Pereira, Saavedra Fajardo e Giovanni Botero no quarto grupo, com argumentos de ordem histórica, moral e jurídica invocados para uma causa que é também política. Mas não somente, como se verá. Portanto, antigos e modernos são frequentemente identificados como grupos distintos no códice, mas sem controvérsias – apenas em um momento há a inflexão de que as histórias pagãs, um tanto sem razão, devem ceder o passo a exemplos
230 No século I a.C., Tito Lucrécio Caro valeu-se de recursos diversos para expor no poema De rerum natura a filosofia de Epicuro e sua compreensão da natureza, com destaque aos átomos e de modo desprendido da influência dos deuses. Cícero, Virgílio, Ovídio e outros teriam admirado sua obra, mas rejeitavam seu antiprovidencialismo. O manuscrito foi recuperado em 1418 por Poggio Bracciolini e o texto teve fortuna controversa, inspirando, por exemplo, Maquiavel (copiou-o de próprio punho e fez comentários) e Giordano Bruno (que o atacou, mas para alguns e para a Inquisição, pautou-se em Lucrécio). HASKELL, Yasmin. Lucretius. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 546-547; NARDUCCI, Emanuele. Lucrécio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006e [1997], p. 383-402; e GREENBLATT, Stephen. A virada: o nascimento do mundo moderno. Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [2011].
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cristãos e modernos.231 Ambos respaldam os paralelos entre ações e o caráter de personagens nas Minas de 1720, além de muitas outras figuras históricas e/ou fabulosas – em contraste aos “negros”, que oscilam no texto entre a submissão e a imprevisibilidade.232 Esses aspectos fazem o manuscrito instigante e provocador. Ao aprofundar alguns temas levantados, faz-se necessário comparar o Discurso a outros mais ou menos correlatos, a fim de melhor identificar seu perfil e sentido.
231 APM, AVC-17, f. 217v. Ou seja, antigos e modernos tendem a ser dispostos no Discurso sem juízos de valor entre si. No mundo ibérico, embora focados em contextos diversos, os seguintes estudos não dão conta da questão: MARAVALL, José Antonio. Antiguos y modernos: visión de la historia e idea de progreso hasta el Renacimiento. Madrid: Alianza, 1998 [1986]; REBELO, Luís de Sousa. A tradição clássica na literatura portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982; e CUNHA, Norberto Ferreira da. Elites e académicos na cultura portuguesa setecentista. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001. Por outro lado, a controvérsia na França no fim do século XVII, após o estudo de FUMAROLI, Marc. Les abeilles et les araignées. In: LECOQ, Anne-Marie (org.). La Querelle des Anciens et des Modernes. Paris: Gallimard, 2001, p. 7-218, é relativizada em NORMAN, Larry F. The shock of the ancient: literature & history in Early Modern France. Chicago; London: University of Chicago Press, 2011. Para Inglaterra, ver LEVINE, Joseph M. Between the ancients and the moderns: Baroque culture in Restoration England. New Haven; London: Yale University Press, 1999; e LEVINE, Joseph M. The Battle of the Books: history and literature in the Augustan age. Ithaca; London: Cornell University Press, 1991. 232 Os selvagens perscrutados em HARTOG, François. Antigos, modernos, selvagens. Tradução de Mariana Portela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2021 [2005] não contemplam a designação genérica e depreciativa de “negros” no Discurso, incluindo escravizados de origem afro e possivelmente mestiços e indígenas na região. Mas são eles, sobretudo os escravizados, que inspiram o medo no governador de se fazer nas Minas um novo Palmares, como veremos no próximo capítulo.
Capítulo 4
Discursos vários
Distante da acepção de obra, Roland Barthes chama discurso a descrição formal de palavras superiores à frase, desde o tempo do retórico Górgias – celebrizado por Platão no diálogo com Sócrates – até a ciência linguística no fim da década de 1960, com repercussões na análise literária. Tudo, enfim, seria texto. A nova linguística busca o caráter universal do discurso em formas e regras de combinação. Embora matizando sua postura anterior, Barthes duvida se a análise estrutural pode preservar a antiga tipologia dos discursos, fazendo o poético ser diferente do romanesco, do ficcional ou do histórico. Questiona assim se o estatuto do discurso histórico seria distinto da narrativa imaginária, como na epopeia, no romance e no drama. Ao destacar os momentos em que o historiador designa seu ato no discurso, Barthes vale-se dos shifters definidos por Roman Jakobson, permitindo passar do enunciado à enunciação: de escuta ou testemunha (ao escrever que ouviu ou inspirou-se em algo), ao organizar a matéria mostrando os tempos do historiador e do enunciado, quando o discurso aprofunda o tempo em certas passagens numa “história denteada”, ou com exórdios inaugurando o texto por meio de um introito ou prefácio. Nesses
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momentos o historiador exprime a sua subjetividade, confrontando o tempo crônico com seu próprio “tempo-papel”.1 Mas há outros shifters sobre o enunciador, os protagonistas e o destinatário. O discurso literário não comporta normalmente signos do leitor, embora sua estrutura implique um sujeito na leitura. Os signos do enunciador são mais frequentes, por exemplo ao participar do enunciado como protagonista, fazendo o eu virar ele. A escolha do pronome na terceira pessoa seria um “álibi retórico” para disfarçar a intenção do enunciador ao descrever atos passados – à maneira dos relatos de Júlio César sobre a conquista da Gália ou a guerra civil contra Pompeu. Nesses textos claros e objetivos, visando em suma propagandear o poder, a primeira pessoa do “general-historiador” irrompe somente quando César discursa a seus legionários.2 Como vimos, essa é uma leitura recorrente na bibliografia sobre o Discurso historico – por esse prisma, o conde de Assumar ocultou-se na terceira pessoa ao escrever, sendo também um general-historiador. Todavia, não percebo uma dinâmica coerente de alternância no uso dos pronomes neste texto conforme essa suposição.3 Por sua vez, o enunciado pode ser recortado em unidades formando coleções lexicais. Segundo Barthes, nesses grupos temáticos encontra-se a unidade do discurso, sendo a palavra uma pequena estrutura. No discurso histórico – normalmente mais assertivo – as unidades seriam semelhantes às de um texto ficcional. Barthes classifica possibilidades tendentes à metáfora, à metonímia, aos entimemas (um inteligível não simbólico mais frequente no romance), aos andamentos diversos no
1 A postura anterior seria expressa no seu primeiro trabalho sobre uma escrita neutra, meramente indicativa, transparente, sem desenvolver a forma “literária”. BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Tradução de Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 70, 2015 [1953]. Para essas reflexões, cf. BARTHES, Roland. O discurso da história. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2012b [1967], p. 163-180. 2 BARTHES, 2012b [1967], p. 168-170; NOVAK, Maria da Gloria; NERI, Maria Luiza; PETERLINI, Ariovaldo Augusto (orgs.). Historiadores latinos: antologia bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1988], p. 3-37; e NARDUCCI, Emanuele. César. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006f [1997], p. 333-345. 3 A ideia de Pedro de Almeida como principal autor do Discurso fez Mello e Souza escolher a epígrafe de sua reedição num trecho do “Discurso preliminar” da instrução para o governo da capitania de Minas Gerais do desembargador do Porto: COELHO, José João Teixeira. Instrucção para o governo da capitania de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 8 , n. 1, jan./jun. 1903, p. 404: “E se eles fossem Generais, e ao mesmo tempo Historiadores das Anedotas dos seus governos?” – SOUZA, 1994, p. 13, 41. A epígrafe foi repetida e a expressão “general-historiador” intitulou um item no cap. 5 de O sol e a sombra, cf. SOUZA, 2006, p. 185, 224 e 230, nota 88. Em edição posterior da Instrução, Francisco Iglésias menciona o “fascinante” Discurso atribuído a Pedro de Almeida e Cláudia Alves de Melo fez nova transcrição do manuscrito existente no APM, vindo também da livraria dos condes de Linhares em Lisboa. IGLÉSIAS, op. cit., p. 32, 44-45. No trecho citado na p. 54 a palavra “generosos” surge no lugar de “Generais”, mudando o sentido da frase. São vários os manuscritos e publicações desse texto, comparados em BOSCHI, 2007 [1782] – nesta edição baseada em exemplar de 1782 existente no IHGB, mantém-se “generais” na p. 168. O caso mostra a importância das transcrições e da consulta aos manuscritos para a análise histórica.
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enredo ou evidenciando as escolhas dos protagonistas numa história reflexiva – no que Maquiavel seria o melhor exemplo. Os significados do discurso histórico seriam dispostos assim em dois níveis: um imanente ao enunciado com os sentidos dados pelo historiador, e o de sua “filosofia da história”. Uma elaboração próxima ao imaginário, com existência essencialmente linguística – na esteira de Nietzsche. Embora o discurso histórico tenha pretensão realista, para Barthes a confusão do referente com o significado faz dele um discurso performativo com trucagem, com efeito do real ao dizer que aconteceu – algo de grande apelo em nossa civilização.4 Distante do formalismo linguístico, Michel Foucault considera os aspectos de controle, seleção e distribuição que, por vários procedimentos, conjuram poderes e perigos para dominar o acontecimento aleatório. As interdições no discurso – entendido como episteme – revelam suas ligações com o desejo e as relações de poder, importantes no conhecimento histórico. Assim, o discurso traduz algo por que se luta. Nessa ordem discursiva e constitutiva nas sociedades, Foucault destaca os mecanismos de exclusão, sobretudo em torno dos pares razão/loucura e verdadeiro/falso. Desde os Diálogos de Platão os sofistas teriam sido repelidos ante a afirmação de uma verdade apoiada em instituições, a exercerem coerção sobre outros discursos e fazendo a literatura ocidental buscar apoio no verossímil, na sinceridade, na ciência, em suma, no discurso verdadeiro.5 A acepção foucaultiana de discurso ultrapassa o escopo deste livro. Mas há princípios coercivos dentro e fora do códice em tela, condicionando leituras e a aceitação do que está sendo comunicado. Uma mesma obra pode gerar discursos distintos – por exemplo no caso da Ilíada e sua paródia Batracomiomaquia, citada quatro vezes no Discurso – ou ser apropriada de vários modos, como vimos nos capítulos 1 e 3, tanto para o AVC-17 como para as muitas obras interpoladas em sua composição. Sem recuar aos gregos antigos, a dinâmica entre história e fábula, verdadeiro e falso, e mesmo entre o temor de exclusão e a vontade do poder – ao considerar-se o protagonismo de Pedro de Almeida no códice – parece evidente
4 BARTHES, 2012b [1967], p. 170-18 0; e BARTHES, Roland. O efeito de real. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2012 [1968], p. 181-190. Essa acepção é presente na análise da Vida de Gregório de Matos feita por HANSEN; MOREIRA, op. cit., v. 5, p. 14, 186. 5 Para essas reflexões, ver FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2014 [1971], p. 8-18.
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e complexa no Discurso sobre a sublevação de 1720. Veremos depois como o texto do Discurso não foi feito para ser impresso ou difundido na monarquia portuguesa ao tempo de d. João V. Na famosa conferência de 1970, o filósofo considera a não existência contemporânea de “sociedades de discurso” ao modo dos ritos de arcaicos rapsodos, com seus jogos ambíguos de segredo e divulgação para conservar ou produzir discursos, fazendo-os circular em espaços mais fechados ou distribuindo-os sob estritas regras – alude assim a distintas circulações.6 Ao perceber a linguagem como discurso, Paul Ricoeur valoriza mais a frase que a palavra, pois no entrelaçamento entre nomes e verbos reside a unidade do pensamento. O conceito de discurso ultrapassa os termos e signos isolados pela semiótica – presente no capítulo anterior – por meio do predicado do logos ou discurso, a ser contraditado ou aceito por outros. Ao relativizar a extensão do modelo seminal de Ferdinand de Saussure a espectros amplos como os textos, o filósofo mostra o risco de se tratar a linguagem como sistema fechado, propondo abordá-la de modo mais orgânico. A substituição da parole e da langue pelo discurso legitima a semântica como estudo da frase, o acontecimento da fala no que respeita ao sentido – chave no estudo da linguagem. O discurso seria o evento da linguagem, compreendido como significado por uma hermenêutica mais abrangente. Ricoeur entende a linguagem como obra escrita e não como ente autônomo ou metafísico, possuindo potenciais e limites, pois o texto escrito apresenta maior distância do referencial ostensivo que o discurso oral. A exteriorização do discurso seria algo próprio à escrita, sendo possível pensar nas dimensões relativamente autônomas de autor, texto e leitor. Nem transparente ou completamente opaco em relação ao
6 Ibidem, p. 31-47. Diferentemente, Segre explica a comunicação linguística enquanto discurso, referindo-se à adoção do termo pelos pós-saussurianos para resolver a antinomia langue/parole e explicar melhor os sintagmas. Em suma, o estudo do discurso visa perceber leis e regularidades em frases e enunciados. No exame de um texto, marcas indicam seu início, desenvolvimento e fim conforme as expectativas do ouvinte/leitor, sendo o significante e o significado indissociáveis, pois a percepção daquele dá-se pela audição ou leitura do outro. A leitura seria uma síntese memorial parafraseada, sendo impossível dominar uma extensão maior. Chega-se assim ao resumo do conteúdo denotativo, mas também se observam os elementos conotativos. Palavras-chave, temas e vetores estilísticos ajudam a compreender os conceitos predominantes e o léxico, integrando as abordagens de conteúdo e forma. Sobretudo os formalistas russos distinguem a narração ou fabula, os motivos, a intriga etc. No século XX esta concepção convive com o enaltecimento da linguagem e a depreciação do sujeito, pois para Lacan o discurso primário seria em suma o do inconsciente (do eu projetando-se no outro) e Foucault analisa os discursos de modo abstrato. SEGRE, Cesare. Discurso. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi v. 17: literatura-texto. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005 [1989], p. 11-40.
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“real”, o discurso escrito liga-se à experiência histórica, acolhendo as atividades de explicação e compreensão.7 Uma hermenêutica da leitura com ênfase no contato entre os mundos da obra e do leitor – que se orienta no mundo por uma “interpretação” mais profunda que a linguagem. O texto passa a ser entendido como ação, um ato de fala ou discurso no qual sentido e acontecimento estão imbricados, pois o discurso ocorre como acontecimento, mas se compreende como sentido. Ademais, o discurso remete a um locutor e um interlocutor, enraizando-se como significado no mundo da ação. Enunciado e vivência – entendida como uma apreensão essencial – seriam faces da mesma moeda. O filósofo associa a explicação linguística à fenomenologia sem um psicologismo excessivo, para mostrar que a linguagem se ancora na realidade. Juntas, essas disciplinas podem analisar o discurso da ação, envolvendo intenções, motivos, causas e agentes, “intersignificados” numa rede de conceitos, a serem compreendidos uns pelos outros. Esses conceitos são controversos, pois a análise linguística, ao reconhecer apenas os enunciados públicos, tende a eliminar um antecedente mental ou causa final do processo da ação, recusando uma compreensão transcendente ou finalista do texto. Ricoeur aproxima-se aqui da tradição hermenêutica alemã, embora desprovido do sonho romântico de unificar interpretações. Ao relacionar a intenção aos motivos e desejos e não propriamente a uma causa objetiva, visa tornar um discurso inteligível e assim o interpreta, além de descrevê-lo e/ou explicá-lo, compreendendo sua historicidade no mundo. Por outro lado, a explicação metodológica do texto, em relação às suas circunstâncias, evita a postura teleológica e conclusões estabelecidas a priori.8 Essa perspectiva de análise se adequa ao estudo de caso proposto. No tempo do Discurso historico, para o padre teatino Rafael Bluteau – tutor do jovem Pedro de Almeida antes de sua ida para a Guerra de Sucessão espanhola – discurso seria
7 Desde a década de 1960 a linguagem se destaca nas reflexões de Ricoeur, que concede atenção à análise de Saussure, então bastante apropriado. No entanto, mais ancorado nas noções de sujeito e sentido, o filósofo estabelece um diálogo com o estruturalismo a fim de definir sua própria postura hermenêutica. Antes de sua obra despertar maior interesse pelos historiadores, atuou como professor em Chicago, de cuja experiência resultou o pequeno livro. Para essas ideias, ver RICOEUR, 2013 [1975], p. IX-X, 11-23; e DOSSE, François. Paul Ricoeur: os sentidos de uma vida (1913-2005). Tradução de Roberto Roque Lauxen, Gonçalo Marcelo, Hugo Barros, Andrés Bruzzone. São Paulo: LibersArs, 2017 [2008]. 8 Trata-se aqui da recolha de apontamentos de um seminário ministrado por Ricoeur entre 1967 e 1979, com uma fase marcada pelo estudo de grandes obras da filosofia analítica de matriz anglo-saxônica, entre John Austin (cujo livro Quand dire, c’est faire traduziu para o francês) e Ludwig Wittgenstein. RICOEUR, Paul. O discurso da ação. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2012.
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o próprio ato de fala, de discursar; ou um termo dialético, significando um grau alcançado de entendimento pelo uso da razão, que passaria de uma proposição a outra mediante raciocínio e argumentação. Bluteau arrola exemplos de uso da expressão, alguns alusivos ao sentido de um espaço de tempo: no “decurso” do qual... Em suma, o termo expressa a exposição oral e/ou escrita de um exercício intelectual.9 Por outro lado, o Discurso historico, e político indica sintonia com as ideias de Aristóteles, pois o estagirita, pouco citado no manuscrito, mas mediado por seus leitores, representou um paradigma de compreensão da natureza, do universo e dos homens em Portugal e suas conquistas até meados do século XVIII. O sistema aristotélico integrou a formação dos jesuítas Antonio Correia e José Mascarenhas, que estudaram e/ou lecionaram nos colégios de Olinda, Rio de Janeiro e São Paulo, como veremos adiante,10 e também o cabedal de Bluteau e Pedro de Almeida – embora o teatino, próximo às casas de Ericeira e Assumar, tenha sido identificado como avesso à escolástica.11 Convém perscrutar essa matriz em companhia do filósofo francês. Segundo Ricoeur, especialmente pelo escrito na Ética a Nicômaco Aristóteles seria o pai da fenomenologia e da análise linguística aplicada ao agir.12 Em seu estudo sobre a Poética, o mythos – entendido como trama de intrigas – explicado na tragédia aparece como complementar ao verbo compor. Por esse prisma, a poética é a arte de compor intrigas, enquanto a mímesis – como imitação ou representação – seria um processo dinâmico e produtivo. Ricoeur associa a imitação/representação ao agenciamento dos fatos, diferentemente do entendimento usual da mímesis como cópia ou réplica. E aplica o paradigma do mythos na tragédia à composição de outras narrativas como a epopeia – um texto normalmente maior e elaborado a partir da interação dos caracteres, com ações narradas simultaneamente, de modo ficcional
9 BLUTEAU, op. cit., v. 3, p. 245; NORTON, 1967, p. 15-16; e PEREIRA, 2016, p. 80. Para essas informações, cf. ALMADA; MONTEIRO, op. cit., p. 9-12. Um levantamento dos títulos iniciados com discurso entre os cem anos que cercam 1720 na BNB, BNP e Biblioteca Nacional de España revela uma profusão de tipos documentais, sendo impraticável a definição de gênero textual. 10 SOUZA, 1994, p. 26. 11 DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura europeia (séculos XVI a XVIII). Porto: Campo das Letras, 2006 [1952], p. 155-159; e PEREIRA, 2016, p. 199-200. 12 RICOEUR, 2012, p. 56, 150-151; e ARISTOTE. Éthique à Nicomaque. Traduction de J. Barthélemy Saint-Hilaire. Paris: Le Livre de Poche, 1992, livre III.
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ou não. Enquanto na Ética a Nicômaco as qualidades morais do sujeito precedem a ação, conforme a Poética o poeta, ao compor a ação, rege a qualidade ética dos caracteres. Em especial na tragédia, a “reviravolta” do herói vai da fortuna ao infortúnio. Mas a direção pode ser inversa, com lugar para reviravoltas – próprias do “meio” da composição poética – também nos textos épicos.13 Conquanto no códice de 1721 os fatos sejam dispostos em ordo naturalis, há nele elementos de uma epopeia em prosa, ao emularem-se feitos de heróis passados e deuses, conciliando a poesia votada ao deleite e a retórica para persuadir e ensinar.14 As fábulas verossímeis, enxertadas em inúmeros parágrafos da narrativa histórica, conferem decoro ao texto, incentivando a recompensa dos virtuosos e o castigo dos sublevados.15 No Discurso as descrições de personagens inspiram-se no gênero épico, com respaldo nos retratos das monografias históricas de Salústio, praticados em cursos de retórica e pautando no AVC-17 as caracterizações dos principais rebeldes. Ademais, as hesitações e conflitos internos do conde narrados no texto, antes de desencadear o furor da repressão, lembram os movimentos catárticos presentes nas epopeias, sobretudo na Eneida. No texto em tela também se varia o modo de narrar, com o uso da primeira pessoa do singular em vários momentos, enquanto na maior parte se emprega o tom impessoal, com o caráter e as ações do conde governador e outros referidos na terceira pessoa. Mas a leitura desses trechos não possibilita afirmar uma relação direta entre o uso diferenciado de pronomes e a prevalência das figuras do historiador ou do poeta aristotélicos – neste manuscrito, o relato impessoal pode mencionar eventos da sublevação de Vila Rica, por vezes conjugados à poesia, 13 Para essas reflexões, ver RICOEUR, 2010 [1983], v. 1, p. 56-92; ARISTOTE, op. cit., livre II; e ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. 14 Uso o termo retórica à maneira humanística, para referir um repertório de meios persuasivos, abrangendo desde a linguagem figurativa e formal de um texto até a postura do orador, oscilando entre a retórica definida como instrumento e técnica e/ou concebida como meio de deliberação ética. Segundo Bluteau, retórica era a arte de falar com elegância, inculcando boas razões para provar e persuadir ouvintes. O teatino elenca suas partes (invenção, disposição, elocução e pronunciação e possivelmente a memória) e gêneros (demonstrativo, deliberativo, judicial). Trata então da retórica eclesiástica na arte de pregar, destacando os gêneros panegírico, didascálico e parenético, referenciando Quintiliano no fim deste verbete. Já o retórico era associado ao sofista por gregos e romanos, como habilidosos oradores. Com o tempo a retórica artificiosa foi também criticada, permanecendo a tensão entre a arte e o entendimento. BLUTEAU, op. cit., v. 7, p. 305-306. Em acepções contemporâneas retórica seria a arte da palavra, da eloquência, de bem argumentar; ou o conjunto de regras que a formam; a disciplina ou as aulas que ensinavam essa arte; o uso dos recursos e regras pertinentes; o emprego de procedimentos enfáticos e pomposos para persuadir ou exibir; um discurso ornamentado e vazio, ou um debate de coisas vãs. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004 [2001], p. 2.447. 15 MUHANA, Adma Fadul. A epopéia em prosa seiscentista. São Paulo: Ed. Unesp, 1997, p. 192-276; e ALMADA; MONTEIRO, op. cit., p. 12-15.
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enquanto opiniões são emitidas sob a fórmula do “eu” para os vários motins em Minas, sendo também associadas a aspectos do maravilhoso. Já na Noticia, o conde e os homens de 1720 são referidos na terceira pessoa e não há quase o emprego da primeira.16 A alternância de sujeitos no Discurso parece ser um artifício complexo, ou a questão é mais simples de resolver? Como vimos, ante a provável tríade de colaboração autoral, Antonio Correia é o único não nomeado no códice. A Poética também se vincula à cultura argumentativa da retórica no século V a.C., embora construindo o acontecimento a partir da intriga e não o contrário. Sobre a célebre diferença de Aristóteles entre a história verdadeira e particular e a poesia mais filosófica e abrangente, Ricoeur observa que o poeta deve buscar o possível no encadeamento verossímil dos fatos – como um poeta de histórias, que representa ações. O enredo da intriga universaliza as personagens, mesmo quando elas conservam nomes próprios, inserindo-as nos planos da ética e da política. Num poema sobre acontecimentos sucedidos, o artífice das palavras produz “quase coisas”, ao inventar o “como se”. As reviravoltas próprias da intriga seriam o coup de théatre (para tradutores franceses) do reconhecimento – ao que se junta o pathos violento, intensificando o atemorizante e o digno de piedade na trama. As emoções trágicas impedem o herói de atingir a excelência em termos de virtude e justiça. Ao girar em torno das reviravoltas da fortuna, o mythos trágico explora as vias pelas quais a ação lança homens valorosos na infelicidade – em contraponto à ética, que ensina como a ação virtuosa conduz à felicidade. O poeta sabe como melhorar ou deteriorar os caracteres pela ação. Há assim uma transposição quase metafórica da ética para a poética.17 Somente na Retórica os discursos se relacionam aos efeitos no auditório, mas para Ricoeur também na Poética há algo orientado para o espectador ou leitor, com um prazer construído dentro e fora dessa. Aplica então o dito aristotélico da Ética a Nicômaco sobre o prazer à obra literária, articulando a composição à recepção – conforme Hans Robert Jauss, visto no Capítulo 1. O prazer é construído na obra e experimentado pelo espectador, ligando-se à categoria do persuasivo, desenvolvida na Retórica. Na epopeia, pode-se acolher o irracional e estirar o verossímil até o
16 MUHANA, 1997, p. 81-91 e 208-210. 17 ARISTÓTELES, 2015, 51a36-54b8; e RICOEUR, 2010 [1983], v. 1, p. 56-92.
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ponto de ruptura, preferindo-se o impossível, mas verossímil, ao possível, mas não persuasivo. As emoções desabrocham no espectador com o prazer gerado pelo temor e pela piedade, transportados dos fatos para a representação. Nesse sentido, o espectador ideal de Aristóteles é implícito, ao modo do leitor de Wolfgang Iser – mas ele pode ser real e capaz de gozar. A catarse seria o ponto culminante da depuração sediada no espectador. Essa alquimia subjetiva, obtida por uma arte formal, é experimentada pelo leitor, que se apropria do mundo da obra.18 No entanto, o Discurso parece distante das metas e regras dos membros da Academia Real da História fundada em 1720,19 ao apresentar sobreposições de referências e fontes, bem como um fascínio por exemplos e ideias vindos de mitologias pagãs e cristãs. Um certo saber ocultista, relacionado à sofística sagrada – nas palavras de Marc Fumaroli20 – mesclado a histórias de reinos, guerras, conquistas e castigos, registros orais e escritos, e concepções sobre o mundo natural em parte coerentes com a física peripatética, mas não somente. De todo modo, diverso daquele intento acadêmico em separar as histórias eclesiástica e secular, no afã da comprovação documental.21 Como veremos no Capítulo 5, no aspecto político o Discurso distingue-se do apreço grego ao bom governo monárquico ante a degenerada tirania,22 ideias reelaboradas na Época Moderna pela concepção de um pacto entre Deus, povo e o rei – conforme o neotomismo incidente em Portugal e no ultramar americano.23 Em suma, o texto em tela prefere tratar da releitura de autores latinos, sobretudo das orações Catilinárias de Cícero e do livro de Salústio sobre a mesma conjura.24 Mas o exame das notas existentes no códice indica uma consulta recorrente a discursos
18 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Edson Brini. São Paulo: Edipro, 2011; ARISTÓTELES, 2015; ARISTOTE, op. cit., livres VII, X; JAUSS, 1978 [1974]; e ISER, Wolfgang apud RICOEUR, 2010 [1983], v. 1, p. 56-92. 19 CUNHA, 2001, p. 11-47; e MOTA, op. cit., p. 53-76. 20 FUMAROLI, 2009 [1980], p. 257-391. 21 Em outras palavras, mesmo com pistas sobre a formação cultural de Pedro de Almeida durante a Guerra de Sucessão da Espanha – por exemplo no contato com Manuel Caetano de Sousa em sua estada em Barcelona – será preciso abrir o campo de investigação. MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 275-277. 22 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 105-126. 23 TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982. 2 vols.; BALDINI, A. Enzo (org.). Aristotelismo politico e ragion di stato: atti del convegno internazionale di Torino 11-13 febbraio 1993. Firenze: Leo S. Olschki, 1995; e MONTEIRO, 2002. 24 MONTEIRO, 2015, p. 179-221.
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do conhecido jurista Juan de Solórzano Pereira, compilados em edição póstuma. Essa leitura pode ter influenciado a escolha do título na primeira folha manuscrita e a inscrição DISCVRSO HISTORICO no dorso do códice, além de sugerir um apego ao âmbito do direito e do “casuísmo” como meio eficaz de argumentação.25 Percebe-se no manuscrito uma metamorfose dos preceitos de matriz aristotélica sobre a retórica. O Discurso seria predominantemente judiciário (ao defender Pedro de Almeida em sua repressão aos acusados na revolta) e demonstrativo (em louvor às virtudes do conde general e censurando os vícios dos rebeldes vis). A acepção de discurso político proveniente da Retórica, ao evidenciar a deliberação consensual e futura da polis sobre o caso, não é explícita no códice em análise – embora tenha seu sentido expresso em um parágrafo no fim da segunda parte, quando se roga por uma melhor memória do conde e espera-se o seu triunfo à maneira dos generais romanos no Capitólio, sendo, portanto, digno das mercês régias, em função das razões apontadas para a aplicação do castigo. Somente aqui, o aspecto político expressa ser subserviente ao rei.26 Mediante exemplos e entimemas, o texto persuade o leitor acerca da verossimilitude da narrativa, construindo sua versão sobre o castigo da sublevação de 1720 de forma análoga a outros motins. Em Vila Rica e Ribeirão do Carmo, o contraste com os vilões é fundamental na redação. Evidencia-se o caráter de Pedro de Almeida, reproduzindo seu ponto de vista por argumentos plenos de elogios, vitupérios e emoções que amplificam os efeitos – como a cólera e a indignação dos deuses ante a insolência dos amotinados.27 As induções dos exemplos de histórias e fábulas são assim mais numerosas que as deduções próprias dos entimemas, a fim de captar o julgamento favorável da suposta “audiência”. Com ritmo e jogos de palavras, o manuscrito comporta duas grandes partes, conforme as anotações do estagirita: a exposição narrativa da revolta, e argumentos com as razões para ser
25 Foram consultados pelos autores do Discurso vários discursos sobre casos específicos de 1628 a 1641 compilados em: SOLORZANO PEREYRA, D. Ioan de. Obras posthumas: recopilacion de varios tratados, memoriales y papeles, escritos algvnos en cavsas fiscales, y llenos todos de mvcha ensenanza, y ervdicion. Zaragoça: Diego Dormer, 1676. O “casuísmo” no trato com as questões jurídicas é recorrente no códice em tela, como veremos no Capítulo 5. 26 APM, AVC-17, f. 234r-235v. 27 A correlação de vitupério e louvor remete a uma doutrina do gênero epidítico presente em leituras da Retórica e da Poética feitas nos séculos XV e XVI na península itálica, sobretudo pela função epidítica do Bem, repercutindo nos “humanistas”. Depois, houve uma revivescência da composição nos três grandes gêneros aristotélicos em preceptivas retóricas, sobretudo do demonstrativo, em manuais usados a par dos escritos antigos, cujo valor não pode ser relegado a segundo plano. HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 165, 191-193.
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aplicado o castigo – embora as muitas analogias estejam presentes em ambas. O prólogo e o epílogo encontram-se integrados no início e no fim das duas partes.28 Mas para que esta forma textual seja mais bem identificada, faz-se necessário compará-la sumariamente com discursos coevos e/ou correlatos a sua suposta elaboração.
Notícias em papéis Conforme o mesmo Bluteau, notícia era o conhecimento ou coisa a ser conhecida, fosse evidente ou duvidosa. Ao resultar de opiniões e conjecturas, essa não era certa como a ciência, sendo, todavia, diferente de nova, termo que divulgava um evento recente, talvez sem fundamento ou dono.29 Como vimos no Capítulo 2, durante a estada de aproximadamente oito anos de Pedro Miguel de Almeida em Barcelona, os impressores catalães costumavam publicar folhetos de notícias, peças de pequeno formato com até 20 páginas também nomeadas gazetas ou relações, com informes sobre temas políticos ou militares, com razoável circulação. Único periódico impresso português após os coevos à Guerra de Restauração, a Gazeta de Lisboa surgiu em 1715, seis meses após o tratado de Utrecht, em folhetos quinzenais de oito a 12 páginas. Desde o início da Guerra de Sucessão da Espanha folhetos “noticiosos” em português passaram a ser publicados periodicamente em Lisboa, alguns deles chamados gazetas. A Gazeta lisboeta pode ter surgido do hábito de se ler notícias em português sobre batalhas europeias durante o conflito. Seu redator era José Freire Monterroio Mascarenhas, ex-combatente e próximo aos Almeidas Portugal. Na Gazeta, os eventos de lugares distantes eram os preferidos para serem narrados, mas eram raras as notícias publicadas sobre o Brasil.30
28 ARISTÓTELES, 2011. 29 BLUTEAU, op. cit., v. 5, p. 754-757; LISBOA, 1998, p. 343-344; e MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora: notícias de história. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula (orgs.). O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 187-199. Para essas informações, cf. ALMADA; MONTEIRO, op. cit., p. 6-9. 30 De 1704 a 1710 José Freire Monterroio Mascarenhas atuou na Guerra de Sucessão junto a tropas inglesas. De volta ao reino, frequentou academias literárias e criou a Gazeta. Conhecido por seu estilo e erudição, ele vinha, contudo, de um ramo ilegítimo dos Mascarenhas, herdando a cultura nobiliária mas não os privilégios. Após a guerra vendeu seu talento para escrever trabalhos no mercado de impressos. Traduziu e publicou dezenas de relações de sucessos, tratados de paz e manifestos políticos europeus, nos quais quase não assinou o nome. Foi autor também de manuscritos que lhe davam mais prestígio. Apesar de protegido do 4o conde de Ericeira, não entrou para a Academia Real da História Portuguesa. MACHADO, op. cit., t. II, p. 853-857; BELO, 2001, p. 112-113; e BELO, 2005, p. 193-200, 220, 259.
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João Luís Lisboa e André Belo concedem atenção a um tempo no qual a oralidade e o conhecimento dos eventos eram importantes na comunicação. Percebem assim os vínculos entre imprensa oficial e publicações episódicas, periódicos impressos e manuscritos, histórias orais e escritas, entendendo que eventos e notícias eram concebidos e circulavam por diferentes meios. Naquele mundo, mesmo os textos que não aparentavam reproduzir o discurso oral portavam traços de uma pontuação alusiva à leitura em voz alta, frequentemente em grupo. Um texto escrito podia ser depois escutado e lido, ou só escutado, ou apenas lido, sendo mais confiável ao invocar um testemunho do que era então recontado.31 Esses aspectos evidenciam-se no Discurso e na Noticia da sublevação, que nas minas do ouro preto houve no anno de 1720, pela eloquência das expressões utilizadas e pela busca de palavras adequadas na feitura de um e outro exemplar – deixando entrever um provável processo coletivo de redação entre os autores intelectuais e o gráfico.32 As notícias impressas associavam-se à circulação de novelas manuscritas na Europa nos séculos XVII e XVIII.33 Os círculos eruditos das pequenas academias provinciais e da corte, junto à monarquia portuguesa, controlavam a difusão da informação, conotando pejorativamente o elemento popular. Entre 1715 e 1725 a Gazeta de Lisboa era impressa na oficina de Pascoal da Silva, a mesma da Academia Real da História fundada em 1720. Seu estatuto era superior, mas seus privilégios a faziam menos interessante, pois nela não se podia dizer tudo.34 Já as notícias manuscritas eram valorizadas por testemunharem o ocorrido, serem menos custosas, com difusão rápida e menos constrangimentos, permitindo adequar seus exemplares aos destinatários. Entretanto, os novelistas não queriam divulgar muito as notícias ou
31 LISBOA, 1998, p. 32-49; e BELO, 2005. Ao estudar os murmúrios nas Minas setecentistas durante os conflitos, Tarcísio Gaspar tem o Discurso na edição de 1994 como carro-chefe do capítulo sobre a revolta de 1720. Alude à importância do aspecto oral naquela sociedade por meio do texto, que evidencia um governante atento a sua reputação, os ditos e ouvidos de potentados e populares que influenciavam o jogo político. Mas não analisa o texto em sua dinâmica de escrita, leitura e audição. GASPAR, Tarcísio de Souza. Palavras no chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Annablume, 2011, p. 83-109. 32 APM, AVC-17 e IEB-USP, AL-61. 33 A aproximação com as novelas suscitou o exercício de leitura sob minha orientação feito por Pedro Henrique Domingues de Lima, valendo-se da metodologia proposta em Erich Auerbach para explicar a moldura, os protagonistas e a composição da Noticia. Ver LIMA, Pedro Henrique Domingues de. Relatos de um país inquieto: análise crítico-textual da Noticia da sublevação [...] de 1720. Cantareira, Niterói, n. 35, p. 188-204, jul./dez. 2021; e AUERBACH, Erich. A novela no início do Renascimento: Itália e França. Tradução de Tercio Redondo. São Paulo: Cosac Naify, 2013 [1926]. 34 À época os impressos passavam pela censura do poder Ordinário dos bispos, da Inquisição e do Desembargo do Paço, cujas licenças eram necessárias a qualquer publicação. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
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publicá-las logo, preservando-as de modo a configurar um círculo seleto, conforme o valor de distinção social próprio das sociedades do Antigo Regime.35 Esses textos também podiam passar de um suporte a outro – como as memórias do conde de Povolide, muito depois publicadas – ou permanecer manuscritos e quase secretos, na forma dos diários de João de Almeida Portugal, 2o conde de Assumar, e do Discurso durante o século XVIII.36 Monterroio correspondia-se com o 4o conde de Ericeira Francisco Xavier de Menezes – amigo de Pedro Miguel de Almeida e acadêmico do reino ligado às reuniões savantes da corte desde o fim do século XVII – que enviava notícias de Lisboa para a Gazeta antes da censura oficial, e com dois eruditos novelistas de Santarém, que coordenavam a redação de periódicos manuscritos com alguma difusão. Eles eram leitores discretos da Gazeta, que conheciam as matérias publicadas e as circulantes por meios manuscritos ou orais, divididos entre o apreço pela conversação cortesã e a importância crescente da escrita. Assim, exemplares de notícias sobre guerras ou naufrágios podiam ser trocados por odes medievais, registros fúnebres, genealogias ou curiosidades antigas. As notícias escritas à mão apresentavam uma forma textual próxima à imprensa periódica; mas elas possuíam mais liberdade no tratamento de assuntos, pois os eventos que exprimiam turbulências tendiam a ser ausentes do impresso, ao significarem uma desordem no corpo político. Monterroio selecionava a informação, ao dispor de textos que não eram publicados – por exemplo sobre eventos em praças do império ultramarino português.37 Algumas notícias eram transformadas em papéis, que atingiam até dezenas de páginas, com um discurso mais circunstanciado que os curtos relatos da Gazeta. Dessa forma o redator ganhava distância e tempo em relação aos acontecimentos, para triar a informação e desenvolver seu estilo sem os limites do periódico. Desde o século XVI imprimiam-se em Portugal relatos de viagens, naufrágios e cercos militares; no Setecentos os assuntos eram diversos, mas o da guerra predominava, anexando-se também informações locais mais desenvolvidas. Driblava-se assim a censura, mais incidente na publicação periódica. Monterroio editou mais de 120
35 LISBOA, 1998, p. 397-402, 460-464; e BELO, 2005, p. 176-181. 36 MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 253-284. 37 LISBOA, 1998, p. 377, 500; e BELO, 2005, p. 176-181.
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dessas brochuras entre 1708 e 1759.38 Como vimos no Capítulo 2, ele participou do movimento em louvor aos feitos lusos na Índia na década de 1740, com uma série de brochuras sobre Pedro Miguel de Almeida, a Epanaphora indica. Nesses escritos não se verifica semelhança de estilo com os manuscritos em tela. Seria esse o planejado destino da Noticia, ou ela teria sido redigida para circular em forma manuscrita? O exame material do exemplar AL-61 evidencia seu significativo maior manuseio em relação ao AVC-17, sugerindo que a Noticia circulou como manuscrito no âmbito acima exposto antes de tornar-se um códice pertencente a Alberto Lamego ou outrem – embora não se saiba o tempo dessa manipulação. É plausível também conjecturar sobre a existência de mais cópias deste texto em Portugal e alhures. Não obstante, a análise do exemplar existente no IEB-USP revela a dinâmica peculiar e errática de redação e correções no processo de escrita da Noticia e do Discurso, como vimos no Capítulo 1. Há assim um forte vínculo de origem entre os dois artefatos textuais, que apresentam o mesmo tipo de papel e autor gráfico. Mas há rasuras específicas no manuscrito AL-61, com um apuro de palavras e expressões no próprio texto, que podem sugerir a existência de um projeto de publicação não ocorrido. Pelas evidências apontadas é importante perceber a Noticia como um objeto que circulou mais que o Discurso, provavelmente em Portugal. Com 58 páginas manuscritas e 120 parágrafos numerados, seu texto é um resumo adaptado do códice AVC-17, contendo principalmente o relato da sublevação de Vila Rica, com o uso de expressões e termos um tanto mais simples e diretos – como observa Laura de Mello e Souza.39 Os parágrafos tendem a ser mais curtos que no Discurso, facilitando a leitura. Na Noticia, a referida segunda parte do texto inicia-se apenas na página 48, com subtítulo aproximado ao códice do APM: “Razoe’s, que teve o Conde general, para proceder, na forma que vimos ao castigo”.40 Correspondendo a cerca de 17% do manuscrito, a proporção menor desta segunda parte evidencia o peso da narrativa factual, mais presente na primeira. Por sua vez as digressões fabulosas, mitológicas, alusivas a outros episódios e considerações políticas e/
38 BELO, 2005, p. 257-259; e LISBOA, 1998, p. 346, 397. 39 SOUZA, 1994, p. 14. 40 IEB-USP, AL-61, p. 48.
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ou jurídicas foram quase suprimidas no atual códice, inclusive no tocante a suas referências e notas. A propósito, as 300 notas foram diagramadas – também como no Discurso – de modo não linear, à margem esquerda ou à direita do texto central. Na Noticia, em grande maioria as notas glosam os conteúdos factuais do relato – pleno de elogios e vitupérios, como no códice do APM. As notas do exemplar do IEB-USP também enumeram em algarismos arábicos as nove razões em forma de anáfora no início da segunda parte, e os vários motins ocorridos nas Minas no fim do texto. Neste, há bem menos trechos em latim, não há frases em espanhol, tampouco versos. Na prosa do texto central, as interpolações identificadas pelas notas do Discurso não raro continuam a existir na Noticia, mas elas perderam seus indicativos. Neste exemplar, tenho a impressão que os autores citados no texto central ou nas notas, todos na segunda parte (Plutarco, João Crisóstomo, Francisco Vannotius, Giovanni Botero e Juan Valenzuela), o foram mais pela conveniência da redação que por uma significação especial – à exceção de Botero, pois o tema da reputação é chave para o entendimento da Noticia, na volta de Pedro de Almeida e também ante a chegada dos presos em Portugal.41 Há algo a ser explanado no Capítulo 5, digno de atenção. Algumas passagens mais contundentes do Discurso, nas quais se reclama da falta de atuação da monarquia portuguesa nas Minas, não se encontram na Noticia, sugerindo a busca de leitores e decoros diversos para um e outro manuscrito. Sobre o uso dos pronomes, o “eu” perde força em relação a seu uso mais frequente no AVC-17, preferindo-se no AL-61 o emprego da primeira pessoa no plural, sendo o conde descrito na terceira pessoa. No fim do texto, a obliteração de um informe no lugar que poderia apresentar uma assinatura permanece um enigma – não se sabe quando e onde a adição excessiva de tinta foi feita, antes da aquisição da Noticia por Alberto de Moraes Lamego, em Lisboa.
41 Em abril de 1722 os presos ainda estavam no Rio de Janeiro, sendo encaminhados ao reino a pedido do 3º conde de Assumar conforme a provisão de d. João V passada ao governador do Rio de Janeiro, Aires de Saldanha de Albuquerque, para remeter os presos Pascoal Silva Guimarães, Manoel Mosqueira da Rosa, Sebastião da Veiga Cabral, Antônio Antunes Reis, José Peixoto da Silva, José Ribeiro Dias, João Ferreira Dinis, Antônio de Figueiredo Botelho, Manoel Moreira da Silva e frei Francisco do Monte Alverne. AHU, Rio de Janeiro, caixa 12, doc. 1315. Lisboa, 27/04/1722.
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Em suma, ao apresentar uma história mais pragmática e secularizada que o Discurso – mas não desprovida de engenhos – a Noticia parece ter sido um texto mais influente na reputação de Pedro de Almeida em seu retorno a Lisboa em março de 1722, antes de o seu processo de residência terminar nas Minas. No AL-61 o peso das descrições de personagens como Sebastião da Veiga Cabral e Pascoal da Silva Guimarães – levados presos do Rio de Janeiro para Portugal neste mesmo ano – é muito maior que os retratos satíricos de Manoel Nunes Viana e Manoel Rodriguez Soares. Em contraparte, esses dois últimos poderosos que participaram indiretamente do levante e ficaram impunes são altamente presentes no AVC-17. A narrativa com ideias políticas mais atenuadas na Noticia – apesar deste relato ser também impróprio para impressão – se coaduna com o perfil de uma notícia manuscrita conforme as circulantes em Portugal à época.
O papel das cartas Na correspondência do governo da capitania de São Paulo e Minas do Ouro costuma-se mencionar o envio de papéis inclusos. O termo seria uma designação genérica para escritos de vária ordem, fossem notícias manuscritas mais acabadas e talvez depois impressas, a Noticia, o próprio Discurso – conforme mencionou a sua autoria no fim deste texto – ou outras formas textuais.42 Em 1736, o governador da capitania de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrada, designou o novo secretário Antônio de Sousa Machado. Com a assistência do então comissário régio Martinho de Mendonça de Pina e Proença,43 Machado operou um inventário dos livros, ordens e documentos existentes na secretaria. Os livros com cartas foram identificados, divididos em maços, numerados e/ou alfabetados e depositados em
42 “Advertencia singular, com que o ditto Frey Joam Marques vem ā concluir o lugar, e eu com elle, pelas suas formaes palavras, este papel”. APM, AVC-17, f. 238r. 43 À época Martinho de Mendonça era membro da Academia Real da História e letrado respeitado na corte, tendo publicado em 1734 a obra Apontamentos para a educação de um menino nobre e atuado na organização da biblioteca régia. Veio então às Minas analisar e propor metas ao sistema tributário sobre a exploração mineral. Para essas informações ver BOSCHI, 2011, p. 35-58; com versão original em: BOSCHI, Caio César. Nas origens da Seção Colonial. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 43, n. 1, p. 38-51, jan./jun. 2007.
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estantes e armários, num notável tratamento arquivístico que daria origem à Seção Colonial no APM. No que respeita ao governo de Pedro de Almeida na capitania de 1717 a 1721, a correspondência compilada em códices provenientes desta organização foi consultada. Foram lidas as cópias das cartas dirigidas a autoridades da capitania de São Paulo e Minas – ouvidores, militares, oficiais camarários e clérigos – e as emitidas ao governador da capitania do Rio de Janeiro Aires de Saldanha e Albuquerque; ao vice-rei Pedro António de Noronha, marquês de Angeja; ao governador-geral Sancho de Faro, conde do Vimieiro; aos governadores interinos da Bahia, ao vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses, ao bispo do Rio de Janeiro Francisco de São Jerónimo de Andrade; e ao arcebispo da Bahia, Sebastião Monteiro da Vide. Trata-se de material compilatório, com caligrafia e papéis distintos dos existentes no Discurso e na Noticia, apresentando interferências em relação ao escrito original das cartas. A caligrafia dessas cópias corresponde à do secretário Domingos da Silva, verificada no manuscrito outrora pertencente aos condes de Ribeira Grande em Portugal, sobre o bando do governador divulgado em Pitangui, datado de 30 de maio de 1718 – como vimos nos Capítulos 1 e 2. Entretanto, algumas observações de conjunto podem ser feitas em relação a personagens e enredos narrados nos códices em tela.44 Nas cerca de 700 cartas lidas, enviadas entre dezembro de 1717 e agosto de 1721, impressiona a atividade escrevinhadora do governador, desde o fim de abril de 1718 assinando “Conde Dom Pedro de Almeyda” com autorização régia – e nunca “Conde General” ou “Conde”, como referido no Discurso e na Noticia. O ouvidor-geral de São Paulo Rafael Pires Pardinho correspondia-se ocasionalmente com o conde desde aquele momento. As atribulações em Pitangui são mencionadas a partir de julho do mesmo ano, bem como as atuações indevidas do brigadeiro João Lobo de Macedo e de Manoel Rodriguez Soares, personagens assíduas no Discurso. As descrições dos desmandos do mestre de campo Manoel Nunes Viana – primo de Manoel Rodriguez – no sertão começam em cartas enviadas ao ouvidor-geral da comarca do Rio das Velhas e ao novo governador-geral, conde do Vimieiro, em
44 APM, SC-11, SC-13, SC-16.
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outubro de 1718. Por sua vez o ouvidor-geral de Ouro Preto, Manoel Mosqueira da Rosa, é acionado para inibir o motim em Catas Altas no mês seguinte. De volta a Pitangui, também em novembro o conde menciona em ao menos três cartas as perturbações causadas pelo padre secular Miguel Mascarenhas, irmão do jesuíta José Mascarenhas, que era tão seu amigo45 e – depois – provável colaborador dos manuscritos em tela. A propósito, são frequentes as reclamações a respeito dos religiosos nas cartas. Nessas turbulências o governador conta com o auxílio do tenente Manoel da Costa Fragoso, mencionado no Discurso como capitão dos cavalos.46 Em dezembro de 1718 o conde escreve a Manoel Nunes, então procurador de Isabel Guedes de Brito, grande proprietária de terras na Bahia e sogra de João Mascarenhas (1682-1729), seu primo.47 Manoel Nunes é eventualmente mencionado em cartas ao conde do Vimieiro e outros. O conde preocupa-se com as alterações promovidas por aquele insolente senhor dos currais no sítio do Papagaio, conforme longas cartas enviadas de Vila do Carmo ao ouvidor Pardinho e ao arcebispo da Bahia.48 Por missivas dirigidas a ouvidores, militares e governantes, percebe-se que os conflitos aumentam. Teme-se também um levante de negros ao modo de Palmares. Assim, o morro de Pascoal da Silva Guimarães – mencionado pela primeira vez em carta de março de 1719 ao ouvidor do Rio das Mortes – onde mineravam muitos negros, sobretudo homens, inspira cuidados.49 O temor da sublevação de negros é também assunto nas cartas dirigidas no mês seguinte a este mestre de campo e ao conde do Vimieiro, nas quais comenta as ações de Manoel Nunes e Manoel Rodriguez – doravante foragido na Bahia. Em meados de 1719, nas missivas ao novo ouvidor-geral de Ouro Preto Martinho Vieira, o assunto das casas de fundição torna-se incidente. Com o governador do Rio de Janeiro Aires de Saldanha, discute o novo regimento das ordenanças, 45 Ibidem, SC-11, f. 69r e 80r; CARVALHO, 1931, p. 617; e LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Loyola, 2004 [1938], v. 3, t. VI, p. 487. 46 APM, AVC-17, f. 80r. 47 CAMPOS, op. cit., p. 197, confunde o primo João Mascarenhas (cuja biografia será mais adiante explicitada) com o ex-governador-geral João de Lencastre, falecido em Lisboa em 1707. 48 APM, SC-11, f. 89v-92r. 49 Ibidem, f. 118r-118v. Por outra carta de 1719 depositada no APM, o governador mostra-se aflito com o costume dos negros locais de Angola e Mina de elegerem seus reis. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 212, 353. Desde sua viagem do Rio de Janeiro a Minas em 1717, Pedro de Almeida recebeu carta de Pascoal da Silva, conhecendo-o na chegada e visitando sua esposa no morro que também recebia o seu nome. TÁVORA; COBRA, op. cit., p. 204, 220.
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enquanto em outras cartas os delitos de João Lobo no Pitangui continuam a incomodar. Em novembro, ao ouvidor-geral do Rio das Velhas, admite que “os negros sa’o os que podem pôr em mayor cuidad.o este Gov. por isso na ultima Junta propus se lhe cortasse hu’a arteria do pé a todo o que fogisse”, a fim de evitar um novo Palmares.50 Em dezembro lamenta a morte do conde do Vimieiro, dirigindo-se aos governadores interinos na Bahia. Com os oficiais da câmara de São Paulo e o magistrado Pardinho, discute por esses meses leis antigas e modernas sobre a liberdade dos índios. No fim do ano, o decreto de expulsão dos religiosos regulares das Minas ocupa as instruções para diligências de oficiais e magistrados51 – um assunto delicado na correspondência com o bispo do Rio de Janeiro, entendendo-se que o prelado sugeria uma retirada mais branda. Em janeiro de 1720 justifica brevemente a ação ao ouvidor de Ouro Preto com base em fontes eclesiásticas e jurídicas, incluindo a obra de Solórzano Pereira.52 Mas os temas da arrecadação dos quintos e do contrato de aguardente também motivam as cartas locais. Ao final de junho ocorre a prisão de João Lobo, que devia ser logo conduzido ao Rio de Janeiro, conforme o conde. O relato de João da Silva Guimarães – filho de Pascoal – de que teria sido interpelado por mascarados na rua é referido na resposta ao mesmo em 25 de junho. O episódio foi relatado na Noticia e no Discurso – neste último com paralelos clássicos.53 O clima na correspondência esquenta, com preocupações em relação a Pascoal da Silva e João Lobo. Em carta de 27 de junho ao ouvidor Martinho Vieira, cita trecho em latim do livro Eclesiástico, louva o brio do republicano Catão ante a crítica de César e alude a um episódio da história da França.54 Mas o “alvoroto” continua, no tumulto dos moradores de Vila Rica contra o ouvidor e nos pedidos em desacordo com os interesses da Fazenda Real. Em 10 de julho relata a Aires de Saldanha a “labareda” levantada contra as casas de fundição, cessada com o 50 APM, SC-11, f. 170r. A passagem, referindo-se ao corte do tendão de Aquiles conforme o Code noir de 1685 para a Luisiana francesa, foi mencionada em SOUZA, 1982, p. 109. 51 As preocupações com os escravos e a falta de zelo do clero andavam juntas. Em agosto de 1719 o governador informou ao rei sobre o desleixo da educação religiosa dos negros, sugerindo a nomeação de um bispo missionário para visitar as Minas e o envio de 12 missionários jesuítas – note-se o apreço por esta ordem regular em relação às outras. APM, SC-04, f. 231r-231v; e PEREIRA, 2016, p. 402. 52 APM, SC-11, f. 205v; e SILVEIRA, 2015, p. 69. 53 APM, SC-11, f. 240r-240v; APM, AVC-17, f. 46v-49v; IEB-USP, AL-61, p. 13-14. 54 APM, SC-11, f. 241v-242r.
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afastamento do ouvidor e o perdão concedido.55 Em 20 de julho, já em Vila Rica, o conde informa a Martinho Vieira sobre as prisões de Sebastião da Veiga, Manoel Mosqueira da Rosa, Pascoal da Silva, frei Vicente Botelho, frei Francisco do Monte Alverne e outros que ficam presos na própria vila – além de Filipe dos Santos, “que ja fica esquartijado pellas maquinas q’ hia levantando”.56 Em 2 de agosto relata o “horrorozo motim” em longa carta aos governadores da Bahia.57 Entretanto, no mesmo mês a refrega em reprimir a sublevação cede o passo a preocupações em instalar uma casa da moeda – evitando-se o nome “fundição”.58 Em setembro, por ordem régia, o governador concede a Manoel Rodriguez Soares, então afastado no sertão da Bahia, o controle da passagem do Rio das Velhas, e assim se lhe perdoava a culpa nos casos que sofressem devassa59 – lembremos de seu pérfido retrato no Discurso, com base nos livros de Salústio, Nicolas Caussin e no livro bíblico de Ester. Ao mesmo tempo, o conde preocupa-se em regular o uso de armas de fogo, em continuar a retirada dos frades e evitar quilombos. Em outubro escreve a Martinho Vieira sobre a importância de mostrar ao rei a gravidade dos delitos cometidos na ausência do ouvidor, bem como de cuidar dos presos no Rio de Janeiro.60 Em novembro, como de hábito, trata Aires de Saldanha como “meu amigo”, comenta a convicção arraigada no povo de que ele queria estabelecer as casas de fundição à força, e também sobre o maior sossego dos povos após a formação da junta, além da suspensão do projeto da casa da moeda.61 De volta a Ribeirão do Carmo desde o fim do ano, na carta ao mesmo em janeiro
55 Ibidem, f. 244r-244v. 56 Ibidem, f. 248r-248v. 57 Ibidem, f. 249v-251v. 58 A ordem régia de 11/02/1719 aludia a casas para fundir o ouro e transformá-lo em barras, adiante denominadas “Casas Reais das Fundições”; em 17/02/1719 o termo utilizado é “Casa dos Quintos”; em 11/05/1719 se menciona “Casas Reais da Fundição”; e em 19/03/1720 trata-se de uma casa que fabrique moedas de ouro. A mudança de denominação teria sido sugerida pelo governador. Informações cedidas por Angelo Alves Carrara. Ver CARRARA, Angelo Alves (org.). O livro primeiro da provedoria da Real Fazenda de Minas Gerais, 1722-1727. Juiz de Fora: Clio Edições Eletrônicas, 2011, p. 8. No Discurso as expressões usadas são: “casa(s) de fundição” (muitas vezes), uma vez “casa dos quintos, e de moeda” e outra “casas de fundição, e moeda” – a ortografia foi aqui atualizada. 59 APM, SC-11, f. 265v-266r. Ver CAMPOS, op. cit., p. 255-256. 60 APM, SC-13, f. 2r. 61 Ibidem, f. 7r. A solidão no ambiente colonial era combatida com muito trabalho e pela formação de vínculos de amizade entre governadores por meio das cartas, conforme SOUZA, Laura de Mello e. A vida privada dos governadores na América portuguesa no século XVIII. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 300-332. Outro amigo de Pedro de Almeida bem percebido pelas cartas é Bartolomeu de Sousa Mexia, secretário das Mercês de d. João V, outrora encarregado de cuidar de seus meios-irmãos Miguel e José (bastardos de Pedro II), falecido em outubro de 1720. SILVA, 2006, p. 53.
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de 1721 escreve sobre a necessidade de se embarcarem os presos logo para Lisboa por temer sua comunicação com os locais, e alude à influência do clima na América.62 Ainda antes, em dezembro, se desculpa pela falta de notícias ao secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real, louva a fundação da Academia Real da História, fala do fim da “larga tragedia” e reclama dos poderosos da terra.63 Em janeiro de 1721 escreve ao vice-rei Vasco César de Meneses acerca do receio – vigente após a sublevação – de instalarem as casas de fundição, e sobre os presos no Rio de Janeiro.64 As preocupações com os quintos e as sublevações passadas continuam nas cartas escritas aos ouvidores locais. Em 28 de junho – um ano após o início do movimento – solicita ao escrivão da Fazenda Real da comarca do Rio das Velhas que discrimine detalhadamente as despesas feitas às suas expensas para o serviço régio, e “as faça arrecadar pellos bens dos prezos culpados na sublevaça’o do anno passado de 1720, e de outros”.65 Por fim, em julho, avisado que o sucessor Lourenço de Almeida se encontrava no Rio de Janeiro, agradece o apoio dos oficiais da câmara de Vila Real, contente “de me restituir a minha caza despois de ta’o prolongada ausência”. Os oficiais o teriam ajudado a cumprir com as obrigaçoens deste Governo, e m.to mayor m.to neste anno em q’ foi necer.o mayor cuid.o p.a conseguir o socego, q’ hoje por favor em de Deos se logra em todas estas minas despois de tanta molestia, e tanto trab.o como causara’o as alteraçoen’s passadas de V.a Rica – eu me na’o quero lembrar dellas, porq’ só quero levar na lembrança aquelles q’ tem merecido como v m.ces q’ se anteponha’o p.a o premio, assim como o tem feito p.a o serviço, no q’ protesto ser na corte p.a v. m.ces hum procurador, como quem foi, e he test.a de vista do seu bom procedim.to 66
Pedro de Almeida construiu laços e redesenhou contatos – de moto próprio e/ou por pressão externa – com personagens hostilizadas no Discurso, conforme apontou Xavier da Veiga nas notas acrescidas no fim de seu livro, na recomposição de alguns agentes com a coroa.67 Não obstante, o governador reprimiu duramente a sublevação de Vila Rica, após contemporizar com motins anteriores. As dinâmicas
62 APM, SC-16, f. 1v-2r. 63 Ibidem, SC-13, f. 11r-12r. 64 Ibidem, f. 15r-15v. 65 Ibidem, f. 37r. 66 Ibidem, f. 39r. O sublinhado é meu. 67 VEIGA, 1898, p. 219-239.
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de poder e relações políticas e sociais subjacentes a essa volumosa correspondência – cuja leitura não abrangeu a totalidade – são complexas e fortes, como observa Maria de Fátima Gouvêa, ultrapassando o problema das casas de fundição.68 Na historiografia há muitos trabalhos diretamente relacionados a esse âmbito exposto nas cartas e de certo modo no códice em análise, por exemplo sobre a violência e os rumores coletivos nas Minas;69 os problemas de tributação, os rearranjos de clientelas e as revoltas;70 a justiça e as relações de poder;71 as prerrogativas e/ou autonomia da câmara de Vila Rica mediante o estudo de suas atas, tendo em foco esse levante e a submissão posterior à coroa, bem como seu papel na realização de luminárias e festas;72 acerca da urbanização na região mineradora;73 das redes e negociações entre o governador e agentes locais antes e depois da revolta de 1720;74 sobre o enraizamento de atividades comerciais;75 a pobreza dos homens livres;76 o extermínio e/ou a escravidão de índios, denominados carijós;77 a escravidão, o senhorio e trato de africanos em Vila do Carmo e Vila Rica, bem como o desven-
68 A historiadora elenca aspectos: a ascensão política de Vila Rica; a falta de privilégios concedidos pela coroa; a ausência de um juiz de fora; e a necessidade de estudos aprofundados sobre oficiais régios em relação à administração portuguesa. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Dos poderes de Vila Rica de Ouro Preto: notas preliminares sobre a organização político-administrativa na primeira metade do século XVIII. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 31, p. 120-140, jan. 2004. Ver também FURTADO, Júnia Ferreira. As câmaras municipais e o poder local: Vila Rica - um estudo de caso na produção acadêmica de Maria de Fátima Gouvêa. Tempo, Niterói, v. 14, n. 27, p. 6-22, 2009. 69 ANASTASIA, 1998; e GASPAR, 2011. 70 CAMPOS, op. cit.; e CARRARA, Angelo Alves. Amoedação e oferta monetária em Minas Gerais: as casas de fundição e moeda em Vila Rica. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 26, n. 43, p. 217-239, jun. 2010. 71 SOUZA, Maria Elisa de Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no setecentos - a comarca de Vila Rica de Ouro Preto: 1711-1752. 2000. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2000. 72 REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. Poder local, agentes régios e controle camarário em Vila Rica, 1711-1789. 2020. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020 (e seu mestrado bastante mencionado no Capítulo 3). Ver também SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. A vila em ricas festas: celebrações promovidas pela câmara de Vila Rica – 1711-1744. Belo Horizonte: C/Arte, 2003. 73 BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Códigos e práticas: o processo de constituição urbana em Vila Rica colonial (17021748). São Paulo: Annablume, 2004; e, sobretudo, FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011. 74 MATHIAS, 2005. 75 FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999. 76 SOUZA, 1982. 77 VENANCIO, Renato Pinto. Os últimos carijós: escravidão indígena em Minas Gerais: 1711-1725. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 17, n. 34, p. 165-181, 1997; e RESENDE, op. cit.
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damento das etnias africanas com novas tecnologias;78 e os meios de distinção social e nobilitação nessa sociedade mineradora.79 Impossível mencionar todos os estudos. Mas o cerne deste livro encontra-se na busca do sentido de produção e circulação do atual AVC-17, sendo procedente perceber nas cartas matizes relacionais não demonstrados no principal códice em tela, que foi elaborado sob outra expectativa de recepção. Em outras palavras, por suas elaborações escritas, os distanciamentos do Discurso e da Noticia em relação a seus referenciais ostensivos são grandes e também diversos entre si. Essa distância seria ainda evidente no tocante às cartas lidas, bem como em relação aos assuntos contextuais acima mencionados, embora os dois longos manuscritos em destaque também possuam, sobretudo em relação a seus supostos primeiros leitores, seus próprios aspectos coercivos – algo a ser visto no Capítulo 5.80 Outro conjunto de cartas encontra-se na BNP, em alguns códices da Coleção Pombalina, cujo núcleo duro outrora pertenceu ao 1o marquês de Pombal e sua família. O códice 479 corresponde a um copiador das respostas dos governadores às ordens régias, contendo 54 cópias de cartas de Pedro de Almeida, desde julho de 1717 (então no Rio de Janeiro) até junho de 1721 (já prestando contas a d. João V sobre despesas feitas em seu governo).81 Nesse corpus destacam-se as cópias de três cartas do governador a d. João V, de 3 e 21 de julho e em 9 de agosto de 1720, narrando respectivamente: o motim de Vila Rica; o castigo impetrado; e sobre a lealdade dos moradores da comarca de Rio das Mortes no mesmo movimento.82 As cópias manuscritas constituem praticamente os mesmos textos – com algumas diferenças ortográficas, de pontuação etc. – das cartas transcritas do livro da secretaria do governo de Minas, em Ouro Preto (antes da criação do APM), publicadas por José Vieira Couto de Magalhães em 1862, como vimos no Capítulo 1.83 78 MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. As múltiplas faces da escravidão: o espaço econômico do ouro e sua elite pluriocupacional na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711-1756. Rio de Janeiro: Mauad, 2012; GASPAR, 2016; e RODRIGUES, 2020. 79 STUMPF, op. cit. 80 RICOEUR, 2013 [1975]; e FOUCAULT, 2014 [1971]. 81 BOSCHI, Caio César; QUINTÃO, Régis Clemente (orgs.). Minas Gerais nos “Reservados” da Biblioteca Nacional de Portugal. Belo Horizonte: Centro de Memória e de Pesquisa Histórica da PUC Minas, 2017, p. 18-22 e 25; e BNP, R, Coleção Pombalina (CP), sobretudo códice 479, f. 46r-120v e 643, f. 30r-40r. 82 BNP, R, CP, 479, f. 97r-108r apud BOSCHI; QUINTÃO, op. cit. 83 MAGALHÃES, op. cit., p. 545-564. A última dessas foi datada nesta publicação como sendo de 3/8/1720 (p. 564), enquanto em BNP, R, CP, 479 f. 108r está escrito 9/8/1720.
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Na primeira dessas o conde relata ao rei o início do motim em 28 de junho, o afastamento do ouvidor Martinho Vieira – a quem não poupa críticas por sua “altiveza” – e os episódios resultantes na ida de mais de mil homens, sendo muitos armados, da comarca de Ouro Preto a Vila do Carmo em 2 de julho (um dia antes da redação da carta), a fim de ouvir do conde a aceitação integral das reivindicações. Pedro de Almeida escreve ter concedido tudo o que pediam, mandando ao rei em anexo uma cópia da nova proposta.84 Mas em outra missiva, de 21 de julho, ressalta a conspiração dos cabeças ainda insatisfeitos, pois segundo o conde eles premeditavam não terem governador ou ministro nas Minas. Era uma “conspiração mui semelhante a de Catalina”, urdida entre sete ou oito pessoas endividadas que teriam maquinado tempos antes “este horroroso atentado”.85 Entre esses estava o marechal de campo Pascoal da Silva Guimarães com sua rede de parentes, pelo que as sublevações continuaram. O conde relata ao rei ter suspendido as diligências para expulsar os frades, rogando preces aos vigários pelo sossego do governo. Apesar de buscar todos os remédios, “Deus se mostrava mais irado talvez para no maior perigo mostrar a sua omnipotência”.86 Cabeças também eram Sebastião da Veiga Cabral e Manoel Mosqueira da Rosa, chamado “ladrão fiel” – como no Discurso e na Noticia.87 De modo similar aos dois manuscritos em tela, os pedidos de cargos do Mosqueira são narrados nessas cópias. Junto ao afilhado de Sebastião da Veiga, Filipe dos Santos era o “agente dos cabeças”, tendo publicado na vila o intento de “expulsar-me e as
84 Ibidem, p. 545-552; BNP, R, CP, 479, f. 97r-100v. Em curiosa carta de 10 de julho de 1720 a d. João V (proveniente de outro arquivo), o governador recupera a memória de motins passados, relacionando-os a comportamentos indevidos de ouvidores locais, até o vigente contra Martinho Vieira e as casas de fundição. Após longa digressão, considera que essas casas seriam onerosas e pouco eficazes para coibir o contrabando, devido à vastidão daqueles domínios e à repugnância dos povos. Estende-se sobre as justificativas desses para não se implementar assim o quinto, fazendo paralelos com o ocorrido no Chile. Propõe então que o rei fosse moderado com os vassalos para animá-los, sugerindo a proposta do superintendente das casas de fundição Eugênio Freire de Andrade de se tirar apenas 12% do ouro a ser fundido na casa da moeda, ou até 16% se fosse necessário. Biblioteca Oliveira Lima, Washington, Livro de registro das cartas que o ex.mo s.r conde de Assumar dom Pedro de Almeida escreveu a s. Majestade que Deus guarde sendo governador e capitão general da capitania de São Paulo e Minas, Carta de d. Pedro de Almeida ao rei, Vila do Carmo, 10/7/1720. Transcrição cedida por Luciano Figueiredo. Sobre o superintendente Eugênio Freire de Andrade, chegado nas Minas às vésperas da revolta, cf. CARRARA, 2011, p. 8-17. 85 MAGALHÃES, op. cit., p. 552; BNP, R, CP, 479, f. 101r – aqui há dúvida na cópia entre “Catalina” e “Catilina”. Baseada no códice hoje no APM, SC-04, p. 856 (cópia feita em 1925, em Belo Horizonte) ou na cópia setecentista na f. 254v, Anastasia escreve “Catalina” em Vassalos rebeldes; cf. ANASTASIA, 1998, p. 52; por sua vez Figueiredo escreve “Catalunha” em: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Da Catalunha a Vila Rica: troca de soberania e experiências modernas no Brasil colônia. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes (orgs.). Império de várias faces: relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo: Alameda, 2009, p. 248. O assunto será desenvolvido no Capítulo 5. 86 MAGALHÃES, op. cit., p. 554; BNP, R, CP, 479, f. 102r. 87 MAGALHÃES, op. cit., p. 554; BNP, R, CP, 479, f. 102r e 881v-882r (nesta última a mesma expressão foi usada para referir-se a Faustino Rebelo apud CAMPOS, op. cit., p. 199); APM, AVC-17, f. 101v; IEB-USP, AL-61, p. 32.
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justiças, e ficar governando o dito Sebastião da Veiga”.88 Pela missiva o conde já desconfiava há muito de Filipe dos Santos, tendo-o quase mandado antes preso para o Rio de Janeiro. Em seguida narra os ardis de Sebastião da Veiga, secundado pelo afilhado, a fim de o conde retirar-se para São Paulo, enquanto Pascoal da Silva já distribuía ofícios do novo governo. Preso o Veiga, o conde manda os ajudantes e 30 dragões prenderem os outros cabeças em Vila Rica: Manoel Mosqueira, Pascoal da Silva, frei Vicente Botelho (filho do primeiro) e frei Francisco do Monte Alverne (camarada do segundo). Como no Discurso e na Noticia, narra-se a proposta de Monte Alverne – instruído por Pascoal da Silva – ao conde, para simular outro motim.89 O povo teria ficado contentíssimo com as prisões, mas os sequazes dos cabeças, acompanhados de “negros”, ameaçaram os moradores, exigindo a liberdade dos presos, em especial de Pascoal da Silva. O conde decidiu pelo castigo exemplar, e descreve a repressão com os mesmos dados do Discurso e da Noticia: a marcha com os principais, os dragões e 1.500 “negros” armados até Vila Rica, os presos conduzidos atrás; o fogo nas casas de Pascoal da Silva no morro, onde mineravam quase 4 mil negros, um lugar de perigo para os levantes; os emissários de Pascoal da Silva amotinando os povos em Cachoeira etc. Então Luiz Soares de Meireles “agarrou o mais diabólico homem que se póde imaginar chamado Felippe dos Santos, que era o perturbador de que se servia Pascoal da Silva para mover o povo”. O conde mandou um juiz “que serve de ouvidor”90 fazer um sumário de testemunhas, e ante a confissão o tropeiro foi enforcado, com os quartos postos nos lugares onde tumultuou. Segue o parágrafo cujo início foi interpolado em poema de Cecília Meireles: Eu, Senhor, bem sei que não tinha jurisdicção para proceder tão summariamente, e que não podia fazer sem convocar os ministros da comarca; mas uma coisa é experimental-o e outra ouvil-o, porque o aperto era tão grande, que não havia instante que perder; a brandura já não podia obrar, e só o rigor e um exemplo horroroso faria, como fez, alguma impressão: e creia-me Vossa Magestade com aquella sinceridade com que o sirvo, que se houvera tempo para fazer estes actos
88 MAGALHÃES, op. cit., p. 555; BNP, R, CP, 479, f. 102v. 89 MAGALHÃES, op. cit., p. 558; BNP, R, CP, 479, f. 104r; APM, AVC-17, f. 123v; IEB-USP, AL-61, p. 41. 90 MAGALHÃES, op. cit., p. 559-560; BNP, R, CP, 479, f. 105r.
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com toda a formalidade, que não tomara sobre mim este peso a não estarem as cousas tão melindrosas.91
Para além da mudança brusca de posição no tocante às cartas anteriores, note-se o tom modesto ante a autoridade régia, diferente do atrevimento adotado no Discurso. Conforme a carta, o ouvidor Martinho Vieira retomou seu lugar. O conde reitera o pedido de concessão de privilégios a Vila do Carmo pela fidelidade de seus moradores, bem como ao mestre de campo José Rebelo Perdigão, ao escrivão da ouvidoria de Ouro Preto Manoel José e ao vigário em Vila do Carmo Pedro de Moura e Portugal. Sugere ainda que o rei ou algum secretário envie cartas de agradecimento a outros. Por fim, informa remeter a cópia do “summario que se fez a Felippe dos Santos, para que conste a Vossa Magestade a precisão por que obrei aquelle castigo”.92 Na última carta referida – de 3 ou 9 de agosto – comenta o perigo da sublevação contagiar a Vila de São João d’El-Rei na comarca do Rio das Mortes, elogiando a atuação do ouvidor Valerio da Costa Gouvêa e do juiz ordinário Feliciano Pinto de Vasconcellos. O conde pede ao rei prêmios de distinção aos dois.93 As cartas relatando a rebelião de Vila Rica ao rei podem ter sido consultadas para a redação do Discurso e da Noticia. Mas uma leitura atenta indica que elas não foram copiadas, sequer interpoladas na escrita dos manuscritos em tela. Há coincidências de assuntos e até de algumas expressões, mas não de trechos, mesmo curtos. Vários agentes descritos em destaque nessa correspondência encontram-se ausentes nos dois longos manuscritos estudados. Tampouco identifico semelhança de estilo entre as cartas de Pedro de Almeida ao rei e os códices AVC-17 e AL-61. Portanto, relativizo o peso de sugestões sobre a autoria intelectual comum a esses registros, pois o sentido desse corpus documental é bastante distinto do Discurso e mesmo da Noticia, considerando seus escritos, características materiais e circulações.94 As epístolas em origem teriam a colaboração do secretário Domingos da Silva, enquanto o Discurso e a Noticia, como vimos no Capítulo 1, provêm de um processo
91 MAGALHÃES, op. cit., p. 560; BNP, R, CP, 479, f. 105v. O sublinhado é meu. “Jurisdição para tanto / não tinha, Senhor, bem sei [...]”. MEIRELES, op. cit., p. 26. Sobre o assunto, ver CARVALHO, 1933, p. 211-219. 92 MAGALHÃES, op. cit., p. 562; BNP, R, CP, 479, f. 106v. 93 MAGALHÃES, op. cit., p. 562-564; BNP, R, CP, 479, f. 106v-108r. 94 MONTEIRO, 2017, p. 2; e SILVEIRA, 2019, p. 166.
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colaborativo entre outros autores gráfico e/ou intelectual – embora seja também possível que o secretário, conhecedor do conteúdo das cartas, tenha colaborado. Duas cartas trabalhadas por Mello e Souza em seu estudo crítico são próximas ao âmbito de elaboração do Discurso e da Noticia.95 Na primeira, escrita em Vila do Carmo em 13 de janeiro de 1721 ao primo João Mascarenhas que estava na Bahia, Pedro de Almeida comenta a carta recebida no mês de novembro anterior, disserta sobre a paixão e a razão – desejando que a primeira não lhe cegasse a segunda – e alude aos vínculos familiares do primo com Isabel Guedes de Brito, tocando em questões específicas. No fim, escreve que em Vila do Carmo e no Rio de Janeiro o ânimo inquieto “destas gentes”, a expectativa de como o rei consideraria suas ações e a proximidade da chegada da frota geraram questionamentos de algumas resoluções sobres os castigos da sublevação, com suspeitas se o nome do conde estaria numa bula papal. Assim, “me foi precizo para o socego da Consciencia pedir a dous Padres da Companhia q estão na minha Caza, bons Theologos q me dicessem o q sentião no cazo, e fizerão o papel incluzo o qual remeto a v. s.”. O conde pede então ao primo – tido à conta de letrado – para devolver-lhe o dito papel comentado, “alegando as mais razoens de direito que fizerem a bem deste cazo” e assentando sua intenção em prol do “bem público”, pois os delitos cometidos iam ali “verdadeiramente narrados”.96 A outra carta merece ser mais contextualizada. Desde 1702 Francisco de São Jerónimo era bispo no Rio de Janeiro. Nascido em Lisboa em 1647, ele ingressou na congregação secular de São João Evangelista – ou dos loios – em 1666. Cerca de cinco anos depois, no mosteiro de Alcobaça recebeu as ordens sacras. Formou-se como mestre em teologia, possivelmente pela Universidade de Coimbra. Foi lente de filosofia e prima – ou seja, ministrava a aula mais prestigiosa − de teologia no colégio de sua congregação em Coimbra e Évora, onde foi também reitor do seu colégio e provisor do arcebispado de 1678 a 1689, sendo duas vezes o geral de sua congregação. Em 1683 tornou-se qualificador do Santo Ofício – exercendo assim tarefas sobre o controle de livros e escritos a serem impressos. Chegou a ser indicado para o bispado de Macau, mas não aceitou. Em 1700 foi sugerido pelo secretário
95 SOUZA, 1994, p. 26-27; e SOUZA, 2006, p. 199 e 229. 96 ANTT, CFA, no 120, p. 15-16 (transcrição cedida por Mello e Souza). Os sublinhados são meus.
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Mem de Foyos Pereira a Pedro II para a mitra fluminense, sendo preconizado pelo papa Clemente XI em agosto de 1701 e sagrado no convento de santo Elói em dezembro. Em março de 1702 o novo bispo iniciou sua viagem, aportando e tomando posse no Rio em junho.97 Em sua correspondência com o rei, governadores vários e a câmara local, ocupou-se de assuntos diversos. Também tentava estruturar geograficamente a diocese, investindo em obras e criando novas paróquias. Como primeiro bispo do Rio de Janeiro a residir de fato na cidade, Francisco de São Jerónimo tentou sem sucesso implementar a mudança de lugar da Sé, bem como fundar um convento de religiosas. Mas logrou uma residência própria para os bispos. Conforme o padroado vigente, o empenho do bispo dependia da aprovação régia, e nessa época o monarca não deliberava sem antes auscultar conselhos, juntas e órgãos competentes. Ademais, o governo episcopal era marcado por conflitos de jurisdição, por exemplo no direito de ingerência na Santa Casa de Misericórdia, ou sobre os limites do bispado fluminense com o arcebispado da Bahia, envolvendo contendas com o governo-geral sobre quem devia autorizar a entrada e controlar os religiosos nas Minas.98 No Rio atuou como governador interino em 1704, 1708 e 1709. Segundo monsenhor Pizarro – que consultou os manuscritos no arquivo do cabido –, era virtuoso e santo nas ações, talvez correspondendo em alguma medida ao modelo de bispo como pastor das almas. De seu paço no morro da Conceição o bispo acompanhou o crescimento da cidade e as preocupações com sua defesa, sobretudo após as invasões francesas no âmbito da Guerra de Sucessão espanhola. Na primeira
97 Para essas informações, ver ARAUJO, Joze de Souza Azevedo Pizarro e. Memorias historicas do Rio de Janeiro das provincias annexas à jurisdicção do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Impressão Regia, 1820, t. IV, p. 73-90; RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil: expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822). Santa Maria: Palloti, 1988, v. III, p. 41-44; e MENDES, Ediana Ferreira. Da Universidade de Coimbra ao Brasil: os bispos da Baía e do Rio de Janeiro (1676-ca.1773). 2018. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2018, p. 117-153. Embora as nomeações episcopais ocorressem formalmente pelo papa, desde o século XVI acolhiam-se os designados pelo rei de Portugal. Essa dinâmica fazia os bispos, em geral, serem criaturas e agentes régios. Pedro II consultava o conselho de Estado nas escolhas, buscando equilíbrio entre os representantes de várias ordens nas dioceses reinóis e das conquistas para não caracterizar uma hegemonia. Embora as dioceses nas conquistas fossem menos rentáveis que as reinóis, ser bispo significava ter autoridade religiosa, poder político, estima social, alguma rentabilidade econômica e distinção. Desde o fim do concílio de Trento o modelo episcopal seria menos relacionado ao ascetismo monástico ou ao mundano principesco, para ser o do pastor responsável pelas ovelhas e pela diocese, como um juiz severo e paternal, com capacidade de disciplinamento social e de influenciar comportamentos. Como vimos no Capítulo 2 sobre o arcebispo de Goa, desde 1720 as nomeações, antes mais centradas em critérios religiosos, articularam-se à lógica política. Várias tendências influenciavam assim o comportamento episcopal. PAIVA, op. cit., p. 9-10, 42, 129-133, 155, 172-173, 224-229, 450, 525, 565. 98 MENDES, 2018, p. 117-128.
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delas, 1.200 homens comandados por Jean-François Duclerc desembarcaram na barra de Guaratiba e tentaram entrar na cidade pelo sertão.99 Derrotados no dia de são Januário, em setembro de 1710 Francisco de São Jerónimo instituiu o culto ao santo como protetor da cidade, em meio aos festejos de louvor à vitória. Cerca de um ano depois houve a entrada espetacular de 18 embarcações francesas na baía da Guanabara sob o nevoeiro matinal; a tomada da ilha das Cobras e dos montes por 3.500 homens sob a liderança de René Duguay-Trouin; a fuga dos moradores com bens preciosos deixando a cidade praticamente deserta; os franceses celebrando um Te Deum na igreja dos jesuítas; a capitulação firmada em outubro pelo governador da capitania Francisco de Castro Morais; e o pagamento do resgate de mais de 600 mil cruzados ao celebrado corsário.100 Em novembro, com a chegada de António de Albuquerque – governador da Repartição Sul, depois de São Paulo e Minas do Ouro – e seus homens, os franceses retiraram-se após sitiar a cidade por mais de dois meses. Desde antes os cidadãos da câmara queixavam-se contra Francisco de Castro Morais, ameaçando fazer um motim. Os locais também podiam aliar-se aos franceses no ambiente de medo, tensão e desordem, na análise de Maria Fernanda Bicalho. O bispo estava presente junto a António de Albuquerque nas negociações com os moradores sobre o ressarcimento parcial aos cofres régios pelo pagamento do resgate, e na passagem do governo da capitania a Francisco Xavier de Távora – que também lutou com Pedro de Almeida na Guerra de Sucessão da Espanha – em junho de 1713.101 Uma conjuntura insurgente no Rio e em outras partes do Brasil – mormente Bahia, Pernambuco e Minas – nas leituras de Mello e Souza e Bicalho.102
99 Segundo um registro satírico publicado em 1732, o bispo teria fugido com os demais religiosos – à exceção dos jesuítas, que conforme Serafim Leite combateram os franceses. Apud BOXER, 1969 [1962], p. 111. 100 Para essas informações, cf. Ibidem, p. 106-127; e BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 268-298. 101 Ao modo de Pedro de Almeida, o Conselho Ultramarino valorizou a experiência bélica e a nobreza na nomeação para contextos delicados na América. Mas Francisco de Távora queria o pagamento integral do resgate pelos moradores, pelo que o referido conselho reagiu. O novo governo promoveu a vinda de engenheiros para fortificar a cidade, como o francês João Massé, que projetou uma muralha envolvendo-a, ao que parece não concluída e depois destruída pelo crescimento citadino. Em seu governo até 1716 também se instaurou a devassa contra Francisco de Castro Morais. BOXER, 1969 [1962], p. 187-189; MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 264; e SANTOS, Fábio Lobão Marques dos. Entre honras, heróis e covardes: invasões francesas e disputas político-familiares (Rio de Janeiro, século XVIII). 2012. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 102-103 e 108 -109. 102 SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda, 1680-1720: o império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 41-81; SOUZA, 2000a.
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Entre 1713 e 1714 Francisco de São Jerónimo teve mais uma altercação sobre os limites dos foros civil e eclesiástico. Francisco Xavier de Távora ordenou a prisão do cônego Claudio Gurgel do Amaral em agosto de 1713, mas inicialmente querendo prender seu filho José Gurgel, acusado de assassinar um sargento. Segundo o prelado o governador enviou o cônego preso para a fortaleza de Santa Cruz, pois ele teria “muitas culpas”, ordenando fazer uma devassa. Em junho de 1714 o bispo relembrava esta prisão à coroa, acrescentando que tinha inquirido o governador sobre os delitos do sacerdote, pois no foro eclesiástico ele era ilibado. Protegia assim Claudio Gurgel, que ocupara postos importantes na cidade. O caso foi analisado pelo procurador da coroa e pelo Conselho Ultramarino em novembro de 1714. Em janeiro de 1715 d. João V acatou os votos dos conselheiros: o caso pertencia ao foro eclesiástico, devendo-se respeitar a decisão do prelado.103 Mas no Discurso louva-se a repressão feita pelo governador, mandando arrasar a chácara de Claudio Gurgel.104 Contudo, problemas maiores de jurisdição ocorriam nas Minas – onde o bispo nunca pôde ir por alegados problemas de saúde, enviando visitadores. Como se sabe, a corrida ao ouro gerou aumento populacional na região e na cidade do Rio de Janeiro, com dificuldades para evitar os descaminhos e fiscalizar a extração, pois a violência grassava com mortes e roubos. O bispo procurou repartir as 17 novas paróquias criadas na região com igrejas, párocos e vigários de vara com possibilidade de acudirem aos casos, mas o ouro era um constante apelo. A extensa malha paroquial garantiria a assistência religiosa, consolidando a ocupação do território e servindo como instrumento de disciplinamento social. Nessas paróquias os sacerdotes eram nomeados pelo bispo sem necessidade de aprovação régia, sendo remunerados pela população. Esses provimentos geraram novos conflitos no exercício episcopal.105 Por outro lado, muitos clérigos regulares e seculares dirigiam-se para a região buscando fortuna. No início o bispo fluminense planejou enviar regulares
103 MENDES, 2018, p. 134-135 (as consultas do AHU foram referidas no Capítulo 3). 104 APM, AVC-17, f. 224v-225r. Para detalhes sobre a trajetória do letrado formado em Coimbra e depois padre Claudio Gurgel do Amaral e seu filho José Gurgel, cf. SANTOS, 2017, p. 51-52, 68-70, 100-121, 196-197 e 207-218. 105 MENDES, 2018, p. 137-138; BOSCHI, Caio César. “Como os filhos de Israel no deserto”? (ou: a expulsão de eclesiásticos em Minas Gerais na 1a metade do século XVIII). Varia Historia, Belo Horizonte, n. 21, p. 119-141, 1999; e FONSECA, op. cit., p. 82-130.
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para administrar os sacramentos da população mineira, mas houve empecilhos nessa proposta: dificuldade de acesso à região, carestia de víveres, pouca disposição da coroa em arcar com os custos, a população itinerante e a má conduta dos religiosos que chegavam – gerando sua má reputação em face dos poderes locais e central. O envolvimento dos padres na extração ilegal de ouro impulsionou a coroa a ordenar em 1705 sua expulsão das Minas, contando com a ajuda do bispo. Segundo Ferreira Mendes, Francisco de São Jerónimo confidenciou a seu protetor Foyos Pereira a dificuldade em proceder com os desterros. A conjuntura da Guerra dos Emboadas fez perdurar o quadro – a coroa reforçou em 1709 a interdição, com o confisco dos bens e ouro tomados aos religiosos. Segundo o bispo, a maior parte dos clérigos residentes nas Minas não possuía licença do poder Ordinário, e sua passagem dava-se pelos sertões da Bahia.106 Após estudar a possibilidade de financiar hospícios no lugar de conventos para assegurar as missões religiosas nas Minas – tendo esbarrado na resistência de algumas câmaras e dos próprios jesuítas e franciscanos – a coroa decidiu manter em 1716 o expediente das missões anuais e por concessão de viático, com uma ajuda de custo aos religiosos, por exemplo no aluguel de casas, com valor proporcional a sua distância no primeiro ano, depois sendo reavaliado. Este seria o caso dos padres Antonio Correia e José Mascarenhas. Em agosto de 1720 o bispo escrevia ao secretário das Mercês Bartolomeu de Sousa Mexia – amigo de Pedro de Almeida – para explicitar sua opinião favorável ao novo bispado que se pretendia fundar em Minas, a ser sediado em Ribeirão do Carmo, atual Mariana.107 Entre julho e agosto de 1717 Pedro de Almeida esteve por um mês no Rio de Janeiro, antes de dirigir-se a São Paulo e Minas. Os relatos de viagem não
106 Ainda por outro lado, houve elevada procura pelo sacerdócio no episcopado de Francisco de São Jerónimo, quando cerca de 347 indivíduos procuraram a ordenação, mais que nos governos anteriores e posteriores. A maior demanda ocorria pelo crescimento territorial e populacional, mas também por uma menor exigência nos processos de habilitação em comparação aos episcopados seguintes, de bispos mais rigoristas ligados à jacobeia. Apesar de ser austero com os cristãos-novos na triagem dos delitos compreendidos na jurisdição inquisitorial, Francisco de São Jerónimo não foi rígido com os de ascendência africana e indígena, deferindo o processo de muitos. MENDES, 2018, p. 139-146. Em livro de divulgação destinado a sublinhar a perseguição aos cristãos-novos no Rio e em Lisboa, sobre a trajetória do escritor António José da Silva, o judeu, e sua família, o bispo aparece com perfil moderado, até mesmo pacificador. DINES, Alberto. Vínculos do fogo: Antônio José da Silva, o judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 394, 491, 497, 507, 525, 545, 595, 604-605, 647, 665, 709, 769, 788-789, 801, 807, 811. 107 A resolução régia de desmembrar o bispado fluminense com mais duas dioceses em São Paulo e Minas já estaria tomada desde 1720. MENDES, 2018 , p. 149-153. Para Diogo de Vasconcelos, o conde de Assumar propôs a criação de um bispado em Minas e outro em São Paulo, recebendo resposta do rei em setembro de 1720. ANDRADE, Francisco Eduardo de; ANDRADE, Mariza Guerra de (orgs.). Diogo de Vasconcelos. História da civilização mineira: bispado de Mariana. Belo Horizonte: Autêntica, 2014 [1935], p. 55.
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detalham a estada,108 mas provavelmente ele conheceu aqui frei Francisco de São Jerónimo. Desde o fim de 1719 o tema da expulsão dos religiosos regulares das Minas desgostava o idoso bispo. Contudo, das cartas escritas por Pedro de Almeida ao clérigo depreende-se um profundo respeito, ainda mais após a sublevação. Em 30 de agosto de 1720, de Vila Rica ele roga ao bispo para “pedir a Deos a paz e Concordia neste paiz porq como a borrasca foi grande ainda os mares anda’o mui cabados”.109 Na missiva de 17 de novembro, expressa ter aguardado a carta do bispo com expectativa, pois temia que frei Francisco se influenciasse pela “opinia’o dos q’ no Rio de Janeir.o me reputava’o materialme.e por vitando”, embora não concebesse, “mesmo q’ na minha insufficiencia e falta de letras”, que o bispo pensasse mal dele, “pois com ser m.to differente a minha proffiça’o, pareceme q’ poderei moftrar sem mais estudo nem interpretaça’o”. Segundo Pedro de Almeida, “nem na priza’o dos sacerdotes nem no incendio do morro houve suazão do demonio, ou animo de fazer mal, sena’o bem, e na’o sei se ainda hoje me doo de algum q’ deixei de fazer, porq’ e esse o mal de q’ a consciencia me acuza”.110 Para o governador, os rebeldes queriam diminuir seu crime “empurrandome a culpa do q’ sô elles tivera’o, porq’ entendo, segundo a boa raza’o q’ na’o fica’o culpados nas consequencias e desordens os q’ castiga’o, sena’o os q’ dera’o ocazia’o a q’ se cometessem”. Deixando as histórias profanas, envereda em seus exemplos pela história divina, seguindo Moisés, Josué e “outros grandes Heroes daquella idade, e em todos acho aprovado entrar a ferro e fogo pella rebeldia”. Refere assim a “affectada piedad.e da America”, onde os culpados, proclamando-se inocentes, estiveram com as armas nas mãos por 18 dias, ameaçando “o patrimonio de El Rey, a deffença do seu Dominio e a conservaça’o de suas leys e a deffença natural”. E se na guerra justa era desculpável matar o inocente, não havia “mayor justiça, que castigar alguns onde todos fora’o culpados”.111 Embora Pedro de Almeida se visse apenas como defensor do rei,
108 TÁVORA; COBRA, op. cit., p. 183-221. 109 APM, SC-11, f. 267r. 110 APM, SC-13, f. 6r. Os sublinhados são meus. 111 Ibidem, f. 6v. O sublinhado é meu. A referência a Moisés e Josué remete ao livro de F. Ioan Marqvez, cf. MARQVEZ, op. cit.
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comtudo na’o quero pagarme tanto da minha opinia’o q’ em matr.a duvidoza a preffira a nenhu’a alheya, e peço a V. Ill.ma como a mais humilde das suas ovelhas, dizerme o q’ sente neste cazo [...] sendo impocivel deixar de dezembainhar a espada com rigor contra aquelles com q’ na’o pode valer a brandura, a tolerancia, a paciencia e a concessa’o de tudo o q’ pedia’o [...].
Pois nesta terra 18 dias de sofrimento não bastavam para tirar-lhe a razão e fazer desaparecer a justiça. Informa então que o ouvidor providenciaria as testemunhas contra os freis Francisco do Monte Alverne e Vicente Botelho, pedindo ao bispo para não soltá-los “pellas damnozas consequencias q’ se poderia’o seguir a este paiz”.112 Como vemos, na carta o governador expressa ser pouco letrado por exercer outra profissão – pode ser um topos de rusticidade, habitual à época.113 Preocupa-se com sua reputação ante o bispo pelos atos cometidos, e disserta sobre a culpa e/ou inocência sua e dos rebeldes, segundo a perspectiva católica e jurídica, mormente sobre a guerra justa. Ademais, cita exemplos e argumentos presentes no Discurso. Chega-se enfim a outra carta trabalhada por Mello e Souza. Na longa epístola emitida de Vila do Carmo em 31 de janeiro de 1721, a ponte com o códice em tela é mais evidente. Por esta infere-se a resposta do bispo à missiva anterior – conforme observa a historiadora – na qual o prelado sugeria que Pedro de Almeida se aconselhasse com dois jesuítas doutos que tinha junto a si para aliviar a consciência.114 Mas nesta última carta do governador, entre 17 autoridades nomeadas, 13 são encontradas no texto e/ou nas notas do Discurso, correspondendo a 75% do total. Embora a maioria dos trechos em latim citados não coincida no AVC-17, há um dito de Cassiodoro reproduzido literalmente na carta e no códice.115 A carta ao bispo faz referência à “impressão de Lisboa, a folha 76” para o livro de frei
112 APM, SC-13, f. 6v. 113 PÉCORA, Alcir. A história como colheita rústica de excelências. In: SCHWARTZ, Stuart B.; PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 52. 114 SOUZA, 1994, p. 26-27 e 40. 115 Traduzido seria: “É um bom remédio contra o mal a pronta correção, e às vezes é um gênero de piedade frear a ‘infância’ do crime, para que não cresça e se torne um adulto”. ANTT, CFA, no 120, p. 32 (transcrição cedida por Mello e Souza); e APM, AVC-17, f. 187r.
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Juan Márquez, na edição utilizada no Discurso.116 No tocante a figuras, episódios e alegorias, fatos recentes envolvendo o governador Francisco de Távora e José Gurgel no Rio de Janeiro despontam nos dois registros,117 bem como Hércules, hidras e serpentes, triviais nos escritos de Pedro de Almeida. Em 10 de fevereiro o conde escreveu outra carta a Francisco de São Jerónimo, informando saber que, no Rio de Janeiro, Francisco do Monte Alverne ameaçava queixar-se ao papa sobre a omissão do bispo no caso do incêndio do morro do Ouro Podre. Dizendo-se amigo do prelado, para Pedro de Almeida o incêndio foi feito militarmente e com autoridade pública, em guerra justa a inimigos armados contra o soberano. Incentiva o bispo a apressar as diligências contra os presos, desde que sem a participação de letrados nascidos na América, “porq talves entenderão, como os demais seos compatriotas, q o Crime de Rebellião não he tão atroz, como nas mais partes do mundo”.118 Desconhecem-se as respostas do bispo, que morreria em 7 de março seguinte aos 74 anos.119 Entretanto, na carta de Pedro de Almeida escrita no fim de janeiro – após receber o conselho de Francisco de São Jerónimo para se valer dos dois jesuítas – há um nítido maior apelo às letras, citações e autoridades em relação a todas as missivas lidas.120 De volta a Vila do Carmo, onde estariam os livros e notas, o 3º conde de Assumar seguiu a sugestão episcopal, esmerando-se em mostrar que os doutos mortos avalizavam suas ações, diferente dos vivos.121 Nesta carta o aval foi buscado num leque diversificado, com predomínio dos santos e/ou Padres da
116 MARQVEZ, op. cit., livro I, cap. XVIII, p. 76; ANTT, CFA, no 120, p. 32 (transcrição cedida por Mello e Souza); e APM, AVC17, f. 203r e 235r. 117 APM, AVC-17, f. 224v-225r; e ANTT, CFA, no 120, p. 27 (transcrição cedida por Mello e Souza). 118 ANTT, CFA, no 120, p. 36 (transcrição cedida por Mello e Souza). O desprezo pelos letrados nas Minas – exceção aos jesuítas que o acompanhavam – é também evidente em: APM, AVC-17, f. 70v, 85r-85v. 119 No Rio, o sermão da missa de sétimo dia foi pronunciado pelo beneditino Matheus da Encarnação; em Lisboa as exéquias ocorreram no convento de santo Elói em julho de 1722, sendo o sermão proferido pelo loio Francisco de São Thomas. Nos dois textos impressos, louvam-se como de hábito as virtudes do falecido, em interpretações figurais associando-o a Jó, ou alegóricas, ao Sol. Particularmente o sermão pregado no Rio parece ser atento a seus atributos de sabedoria e talento (para os quais teria se valido de erudição teológica), bem como de apoio aos pobres. BNB, OR, CBM, 25, 1, 10, no 3, THOMAS, Francisco de São. Sermam nas exequias do illustrissimo, e reverendissimo senhor d. Francisco de s. Jeronymo... Lisboa Occidental: Officina de Francisco Xavier de Andrade, 1723. 20 p.; e no 4, ENCARNAÇÃO, Matheus da. Sermam em as exequias do illustrissimo, e reverendissimo senhor d. Francisco de s. Jeronymo... Lisboa Occidental: Officina de Joam Antunes Pedrozo, 1722. 33 p.; e MENDES, 2018, p. 152. 120 Na carta de novembro de 1720 ao mesmo destinatário, o conde desmereceu seu talento letrado em contraposição ao brio militar, o que pode fazer novo sentido. É possível que no momento da carta escrita ao primo em 13 de janeiro de 1721 o conde já tivesse recebido a sugestão do bispo de buscar auxílio nos dois padres. 121 ANTT, CFA, no 120, p. 30 (transcrição cedida por Mello e Souza).
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Igreja Pedro, Paulo, Tertuliano, Agostinho, Jerônimo, João Crisóstomo, Salviano de Marselha, Gregório Magno e Luís IX de França, conforme o destinatário almejado. Mas também com os magistrados de todos os tempos Ulpiano, Cassiodoro (também padre), Afonso X de Castela e Pedro Gregório, associados aos clássicos Hipócrates (com paralelos médicos para conter a sedição), Platão e Sêneca, bem como ao moderno e bem temperado religioso-político Juan Márquez. Mas não somente. Por esta epístola ao bispo pastor, o católico Pedro de Almeida teria a “consciencia livre de Remorsos”, apesar de sua ação ser mal recebida pelos inteligentes, além dos cegos nas “cataratas da Sedição”. Por isso, ainda que “me não acuzasse a consciencia” não era fácil aquietar o ânimo, embora não duvidasse de seu crédito junto ao bispo. Como uma ovelha, expunha suas “razoens ao Pastor espiritual”. Em meio a exemplos, diz ter obrado “com authoridade publica”, sem “odio, má vontade, Suazao do Demonio, nem authoridade privada”. Afirma que devia satisfação ao bispo para evitar ser juiz em causa própria. Por isso remetia ao juízo episcopal “a confirmação do meu socego”, gozando “o descanso interior”. A fim de fundamentar a queima do morro seguia então o conselho, “tendo em minha caza dous Padres da Companhia tão doutos”. Antes da ação o conde receava aconselhar-se com eles, pelo sangue a ser derramado. Os outros letrados e bacharéis das Minas também não o podiam aconselhar, pois eram sequazes na causa adversária, ignorantes ou dissidentes. O único recurso era recorrer aos mortos “para me darem a ajuda q’ nos vivos não achava”. E como nesta circunstância era difícil acertar, quem desde a sua infancia mais proffeçou a ruidoza sciencia das armas, q’ o descanço, e a ociozidade das Letras, comtudo a natural inclinação, o genio, ou a educação q’ sempre propendeo para instruirme, não so do q’ pertencia à minha profficao mas do q’ compete a todos os humanos para se saberem no mundo reger com bons costumes nos instantes q’ limpo do pó da Campanha pendurava a Espada: achey q’ não era de piqueno Refrigerio os Livros.122
Vemos então – e mais uma vez – o 3º conde de Assumar, aos 32 anos de idade, relativizar sua erudição pelos desafios impostos pela trajetória militar pregressa, não obstante o desvelo da mãe Isabel de Castro Mascarenhas e de Bluteau em sua
122 Ibidem, p. 27-30. O sublinhado no parágrafo anterior é meu.
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instrução a distância, conforme exposto no Capítulo 2. Nesta carta são arrolados argumentos de juristas, seguidos pelos eclesiásticos, tendo por último Juan Márquez (como no Discurso), alternando-os com menções ao enredo da rebelião. O conde comunica então ao bispo loio q’ despois de sucedido o incendio algu’as vezes me confessei com os Padres da Companhia, com quem V. Illma. me manda Consultar, e não se lhe offerecendo dúvida a absolverme; quer agora a disgraça não sei se do mundo todo, se particular da América q’ me seja precizo confessar publicamente pella venia q’ me não dão, nem os ignorantes, nem os doctos, e descobrir no papel incluzo o interior da minha consciencia, e a resposta q’ me derão os ditos Padres as duvidas alheyas.123
Por fim, manifesta estar humilde para receber a correção episcopal, dispondo-se a fazer uma penitência. Como vemos, a palavra consciência é recorrente nas cartas dirigidas ao primo e ao bispo, acompanhada pela busca da justificativa erudita e da absolvição junto aos padres da Companhia, sobretudo pela queima do morro.124 O assunto relaciona-se à percepção do certo e do errado de Pedro de Almeida e a tribunais de disciplinamento na Época Moderna, pois os temas da consciência individual e da confissão estão ligados. Enquanto a justiça “civil” punia os culpados, a Igreja dispensava o perdão divino aos delitos, em troca de uma confissão explícita, detalhada e repetida dos pecados. Ante o pecado mortal de Pedro de Almeida (assassinatos sem base legal, desrespeito ao 5o mandamento divino), os jesuítas Antonio Correia e José Mascarenhas, seus confessores imediatos, aparentemente eram mais laxistas, perdoando-o e não adiando a absolvição ou a transferindo ao bispo – como se percebe pelas cartas do governador a Francisco
123 Ibidem, p. 35. Os sublinhados são meus. 124 No Discurso a descrição do incêndio do morro do Ouro Podre é trágica e espetacular, com a aguardente bebida pelos negros e os barris de alcatrão de Pascoal da Silva atiçando o fogo; mais adiante disserta-se sobre o valor das execuções com fogo em Portugal (com “força de ley” e respaldadas por Nicolas Caussin), por exemplos recentes ocorridos na Bahia e no Rio de Janeiro. APM, AVC-17, f. 138v-142r e 222v-225r. O episódio, presente no imaginário popular sobre o morro da Queimada, é comentado na historiografia de Minas, aparecendo ainda no quadro de Antônio Parreiras e na poesia de Cecília Meireles.
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de São Jerónimo.125 Mas nessas missivas o nobre evidencia ter escrúpulos com a situação delicada, estando inquieto e sem paz interior.126 Conforme Jean Delumeau, naquele tempo uma vasta gama de manuais de confessores, tratados de casuística e súmulas de confissão instruía sobre o assunto, com debates sobre a suficiência do sentimento de atrição (a aversão aos pecados e o medo do inferno) para a remissão dos pecados, ou se era necessária a contrição (o amor a Deus) para a mesma. Os jesuítas eram reputados por seus críticos rigoristas por serem mais ternos e suaves com os fiéis, e por desenvolverem no século XVII sofismas para uma literatura casuística, tentando tranquilizar os penitentes em relação a alguns pontos – em especial no tocante à defesa da honra e da reputação. Os casuístas preocupavam-se em aliviar o peso da confissão.127 Desse modo, pelas cartas do 3º conde de Assumar ao primo e ao bispo, depreende-se que Antonio Correia e José Mascarenhas, bons teólogos e indicados pelo próprio prelado, eram os diretores de consciência de Pedro de Almeida, com funções mistas de pai, médico e juiz no foro interno, junto ao então governador, com capacidade de elaborarem para ele as “razões de direito”. O tema complexo relaciona-se ao escopo do livro, focalizado no códice em tela. No último capítulo indica-se uma relação entre o tema da consciência de Pedro de Almeida e o sentido da produção do Discurso, com destaque para o papel dos jesuítas como confessores e também artífices do texto analisado.
125 Vale lembrar as constituições do arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 por Sebastião Monteiro da Vide, adaptando a legislação canônica ao âmbito luso-americano e encaminhando normas do concílio de Trento, parcialmente aplicadas na redação do texto só publicado em 1719, em Lisboa. Entre vários tópicos são descritos os delitos sob a jurisdição episcopal, suas penas e censuras. FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (orgs.). Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010; e FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste 1640-1750. São Paulo: Alameda, 2007, p. 38. 126 Os escrupulosos costumavam multiplicar as confissões e/ou faziam exames de consciência extenuantes redigindo listas de pecados, em busca de uma contrição mais forte e retornando ao confessionário a fim de acalmar a alma inquieta. Entre 1564 e 1663, cerca de 600 autores católicos – franceses, italianos, espanhóis, flamengos etc. – compuseram tratados de casuística, inseparáveis da história do escrúpulo. DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Tradução de Álvaro Lorencini. Bauru: Edusc, 2003 [1983], v. 1, p. 599-606; LOYOLA, op. cit., p. 185-187. Para os conceitos de confessionalização e disciplinamento em Portugal, ver PALOMO, Federico. A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006. 127 Esses escritos ajudavam os confessores na lida com casos especiais, indicando como interrogar o penitente, guiá-lo no exame de consciência, esclarecer circunstâncias, avaliar a gravidade do pecado e vencer obstáculos (medo, vergonha, presunção, desespero) para a boa confissão. Seus redatores eram canonistas, que viam os confessores como juízes nos tribunais da penitência, encarregados pela Igreja no julgamento das almas. Para eles, pecado significava transgredir a lei (divina, eclesiástica ou civil) e seu discurso girava em torno das categorias do lícito e do ilícito. Decorre daí a contribuição maciça do direito em suas obras e as constantes referências a textos legislativos. Essas com o tempo deixaram de ser guias práticos para os confessores e suas ovelhas, tornando-se obras autônomas que expunham os casos na lógica do direito canônico, configurando uma nova ciência especulativa, refinada e exaustiva, pois os autores apoiavam-se num número crescente de auctoritates, rationes e decisões jurídicas. Após o concílio de Trento uma nova casuística surgiu, ancorada em leis escritas, no direito canônico e numa lei moral inscrita na consciência, com atenção aos elementos atenuantes. DELUMEAU, 2003 [1983], p. 378-380; e DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: a confissão católica séculos XIII a XVIII. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [1990].
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Certamente os jesuítas foram a mola mestra na elaboração da longa carta de 31 de janeiro de 1721, bem como dos papéis inclusos mencionados nas cartas ao primo e ao bispo. E também do Discurso e da Noticia, dois longos manuscritos em processo de gestação desde aquele momento, após o fim de atividades intensas e o retorno do governador a Vila do Carmo – lá permanecendo até agosto, quando enfim inicia seu retorno a Portugal.128 Seriam necessários vários meses na elaboração, principalmente, daquele códice matricial, com trechos que chegam a contemplar o momento de circulação de rumores na Bahia e no Rio de Janeiro sobre a legitimidade do castigo.129 Como vimos no Capítulo 1, havia condições para a feitura do códice tão elaborado em Minas naquele tempo. Mas, embora tratassem em princípio de conteúdos comuns, as formas textuais do Discurso, da Noticia e das cartas analisadas possuíam decoros e sentidos diversos.
Instruções e relatos Distintos também do caso da posterior Instrucção do vice-rei do Estado da Índia Pedro Miguel de Almeida – já 1o marquês de Alorna – ao sucessor Francisco de Assis de Távora, anunciada no Capítulo 2. Impressa cerca de 90 anos após escrita, a Instrucção era em princípio um manuscrito para um único destinatário, com quem se contraía naquele momento laços familiares pelo casamento do 4o conde de Assumar João de Almeida – filho de Alorna – com Leonor de Lorena e Távora, filha dos marqueses de Távora. Embora fosse produzido sob ordem régia, o bom relacionamento entre os membros da alta nobreza portuguesa deve ser considerado para compreender o sentido do documento. Descreve-se o texto por sua segunda impressão tipográfica em 1856, e não por um manuscrito mais próximo à origem.130 Conforme Filipe do Carmo Francisco, os paratextos e edições constituem versões produzidas por interessados
128 Sobre este período em específico, ver GASPAR, 2016, p. 187-188. 129 “Agora me ocorre a consideraçao’, com que estes mesmos queriam que pelo seu castigo houvesse o Conde incorrido em excomunham”; “E o mesmo cuido que quizeram entender na Bahia, e rio de Janeyro muitos, q’ fallao’ de longe, por nao’ dizer, que de cor, e que nam presenciaram o cazo”. APM, AVC-17, f. 180r, 193r. 130 BNB, OG, I, 270, 5, 4, XAVIER, 1856 [1836].
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em revitalizar o Estado português na Índia no século XIX.131 Na “Advertencia” da segunda edição Felippe Nery Xavier indica que a primeira esgotou e por isso organizou o novo opúsculo em três partes: um resumo da vida do marquês e sua Instrucção; o relato da campanha de Alorna e outras conquistas; por fim um discurso seu no tribunal da Relação, seguido por um formulário do cerimonial de governo. Em suma, o marquês chama sua Instrucção de “discurso”, dividindo-a igualmente em três partes. Na primeira trata dos régulos e potentados vizinhos ao Estado da Índia, abordando os amigos e inimigos. Justifica-se por não prosseguir na conquista dos dessais de Cudal,132 pois a campanha contra um rival não litorâneo podia ser danosa – à exceção da praça de Alorna, onde as embarcações chegavam por um rio conduzindo mantimentos, munições e apetrechos. Ademais, por estar no interior e ter resistido a duas tentativas anteriores, por benção divina a conquista de Alorna foi um “martelo” na cabeça do Bonsuló, que diminuiu sua soberba e facilitou mais empresas.133 Ao lidar com os pleitos inimigos, o sucessor devia deixar o rival fazer sua proposta por capítulos, respondendo-os então à margem, concedendo ou não os pedidos, indeferindo os mais fáceis para insistirem nesses e fazendo-os esquecer os difíceis. Mas também podia deixar o tempo passar para descobrir “cavilações” e “falsidades” dos gentios – sempre fundados em negócios injustos ou no próprio interesse. Por não terem a verdadeira fé, os gentios não tinham amigos e virtudes. O marquês de Alorna instruía ao de Távora para desconfiar de adulações, gestos de sinceridade e cordialidade. Comenta o ânimo caviloso de um ministro marata que atuou na conquista da Província do Norte, tido como o maior inimigo do
131 FRANCISCO, op. cit., p. 178 -190. Desde 1746 as campanhas de Pedro Miguel de Almeida Portugal, consolidadas por Francisco de Assis de Távora, com a introdução de nova artilharia trouxeram outra configuração ao Estado da Índia. A perda da Província do Norte em 1740 foi compensada, por conquista e/ou ocupação resultante de tratados, pelos territórios ao redor de Goa, passando de 755 Km2 a 2.845 Km2. BETHENCOURT, Francisco. O Estado da Índia. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa: o Brasil na balança do império (1697-1808). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998b, v. III, p. 255-256, 258, 264. 132 Os dessais eram os desapossados de suas terras pela expansão marata desde a segunda metade do Seiscentos, as quais funcionavam para os portugueses como estados-tampão. No vice-reinado do conde de Sudamil (1732-1741) fez-se guerra contra os dessais de Cudal, na época um feudo do império Bonsuló, que então se aliou aos maratas na conquista da Província do Norte. Pedro de Almeida procurou fazer alianças com os dessaiados a fim de evitar maiores danos. Para essas informações em notas, ver LOBATO, op. cit., p. 319-324, 328-329. 133 Os Bonsulós de Sawantvady eram uma família de líderes da casta brâmane sauntó ou sawant, também existente em Goa, aparentados à família real Marata. Reinavam sobre território ao norte da capital portuguesa, a Praganã Cudal. Ibidem, p. 323.
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Estado da Índia.134 Era preciso também precaver-se contra espias, pois entre os portugueses havia mouros – sendo cristãos apenas no nome – com cor, traje, língua e lei dos gentios, podendo circular sem disfarce.135 Na segunda parte Pedro de Almeida trata dos outros europeus no contato com os portugueses, considerando piores os holandeses, seguidos pelos ingleses, mas elogiando os franceses e espanhóis.136 Na última aborda o governo interno, sobre o senado, os conselhos de Estado e Fazenda, a Junta das Missões, os tribunais etc. Sobre o tribunal da Relação, considera os desembargadores como servidores inferiores no reino, que buscavam na Índia uma ascensão rápida. Apoiam-se em Solórzano Pereira e outros juristas, mesmo contra o vice-rei. Mas ao se contestá-los com os mesmos autores, os chamam de estrangeiros que ignoram os fatos, fazendo interpretações forçadas. Segundo o experiente marquês, eles nunca o venceram em argumentos. O vice-rei tratava a todos com urbanidade, benevolência e autoridade. Ao advertir procurava ser brando, recomendando vigilância, e assim “não me foi necessario usar de remedios fortes, que ficassem sugeitos á interpretação do publico”.137 Reclama também do atual arcebispo sem nomeá-lo, a quem atribui sete pecados capitais: insultos à jurisdição real, a pessoas incapazes, violências e prisões contra soldados, querer que as igrejas dependam só do poder Ordinário, juízos temerários e libelos difamatórios, incivilidade com ministros e principais, e por último a oposição contínua ao vice-rei durante seis anos.138 Recomendando ao sucessor guardar distância das contendas com eclesiásticos, volta a tratar dos habitantes locais, por natureza tímidos, vingativos e cavilosos, propensos a querelas, falsidades e desordens “neste Paiz, aonde a liberdade lhes
134 A Província do Norte, estreita faixa litorânea ao norte de Goa, foi retirada do Estado da Índia entre 1737 e 1739 por um exército marata equipado com material fornecido pelos ingleses. De 1720 a 1740 a confederação marata – meio religiosa e “nacionalista”, com cavalaria ligeira – foi a primeira potência da Índia, com vasta expansão a noroeste. O plano do marquês de Alorna de reconquistar a Província do Norte não foi aprovado, pelo receio de provocar a intervenção inglesa. Ibidem, p. 317, 324, 328. 135 A suma busca, evidentemente, pontos de contato com o Discurso. Para o resumo da primeira parte neste parágrafo, cf. XAVIER, 1856 [1836], p. 8-72. 136 Ibidem, p. 73-77. Embora a Instrucção referisse os holandeses e ingleses como sendo piores que os franceses, a longo prazo a aliança inglesa protegeu os portugueses de outros perigos. BETHENCOURT, 1998b, p. 258. Talvez aqui o marquês de Alorna expresse opinião diferente da habitual, curiosamente também vista em seus herdeiros, conforme o Capítulo 2. 137 XAVIER, 1856 [1836], p. 77-93 (citação à p. 93). 138 O marquês refere-se ao arcebispo franciscano Lourenço de Santa Maria e Melo, como vimos no Capítulo 2.
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augmenta a insolencia”.139 Os brâmanes inspiravam cuidado, pois apesar de seu aparente bom modo, eram mentirosos. À maneira dos romanos, o novo vice-rei devia moderar as paixões alheias – o que só conseguiria freando as suas próprias. Esse exemplo instruía melhor os súditos que a razão e o castigo. Portanto, segundo Alorna o marquês de Távora não teria descanso nesse “theatro de contradicções” cheio de traças, enganos e astúcias dos inimigos, além das queixas e violências domésticas. Iria combater hidras “mais pestilentes que a de Lerna”, que dilataram o nome de Hércules, ainda mais pelos outros trabalhos vencidos. Mas tudo seria menos áspero ao emular os heróis, no caminho da virtude e da glória.140 Na biografia de Pedro de Almeida, Manuel Artur Norton resume a Instrucção pela reedição de 1856, concebendo-a como um “testamento político” ao expressar a percepção do marquês das necessidades daquele Estado.141 Em seu estudo crítico Laura de Mello e Souza – pela edição de 1836 – destaca o aspecto pragmático e objetivo do texto. Ao buscar compreender o universo mental deste conde de Assumar e as ideias do Discurso, percebe a similitude de teorias climáticas nos dois registros, além do desprezo evidente pelos naturais da terra.142 Diogo Ramada Curto produz estudo mais detalhado sobre esse escrito, comparando-o a outros discursos produzidos no império português.143 Atento à especificidade de cada gênero ou tradição discursiva em várias formas de comunicação, bem como aos efeitos da figura do autor e de ideias, grupos, instituições, conjunturas econômicas e interesses políticos, o historiador procura perscrutar o
139 XAVIER, 1856 [1836], p. 101. 140 Ibidem, p. 77-123. Há ainda um aditamento à 2a parte, seguido nesta publicação pelo relato da conquista de Alorna (p. 3-45) e por um “Discurso politico” do marquês de Alorna na Relação (p. 49-75). Em suma, durante o vice-reinado de Pedro Miguel de Almeida Portugal de 1744 a 1750 as preocupações voltaram-se para a segurança da navegação. A fim de evitar deserções, o serviço militar na Índia foi limitado a seis anos, com o regresso sendo assegurado pela coroa. Desenhou-se então o projeto de alargar as fronteiras de Goa até os desfiladeiros dos Gates, então na posse do Bonsuló. O primeiro passo foi a conquista da fortaleza de Alorna, seguida por Bicholim, Tiracol, Rarim, Neutim e Carlim, incorporando-se 26 aldeias de Alorna e 33 de Bicholim ao Estado da Índia. LOBATO, op. cit., p. 329. 141 NORTON, 1967, p. 171-176 (citação à p. 176). 142 SOUZA, 1994, p. 34 e 47-48; SOUZA, 2006, p. 219-220, 239-240 e 244-245. Nizza da Silva também se vale do texto de forma mais descritiva, cf. SILVA, 2006, p. 258-260. 143 O autor aprimora trechos e ideias de estudos anteriores, por exemplo: CURTO, Diogo Ramada. As práticas de escrita. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa: o Brasil na balança do império (1697-1808). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, v. III, p. 421-462; e CURTO, Diogo Ramada. Portuguese imperial and colonial culture. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada (orgs.). Portuguese oceanic expansion, 1400-1800. New York: Cambridge University Press, 2007a, p. 314-357. Para as seguintes reflexões, cf. CURTO, 2009, p. 355-417.
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sentido de cada texto, em contraposição a modelos de interpretação historiográfica e ideologias concebidos a priori, que condicionam as análises históricas.144 Nesse leque, as instruções régias e de vice-reis sobre o Estado da Índia foram amplificadas na historiografia por suas posteriores impressões. Pelas reedições de 1856 e 1903, Curto concede atenção ao formulário cerimonial registrado pelo referido marquês, à diplomacia de relações pessoais aconselhada ao sucessor e ao relato das conquistas – sobretudo o da praça de Alorna em 1746, acompanhado da lista de indivíduos a serem premiados. No estudo de vários discursos, destaca a frequente “linguagem das virtudes” como eixo lógico, fazendo-os pertencer a uma concepção de ordem política. Uma visão imperial e eurocêntrica, na qual as virtudes do governador, ao admitirem a dissimulação, entre várias correntes encontram respaldo nas ideias de Maquiavel, Botero ou em diferentes formas de “tacitismo”.145 Todavia, ao comentar outro documento produzido nesse âmbito, o historiador assevera: “o conhecimento crítico de um livro como esse demonstra que a pluralidade de formas de ler um texto nunca é tão importante quanto a identificação do verdadeiro sentido do mesmo”, sendo procedente ter uma preocupação antropológica em reconstituir o sentido atribuído pelos autores a suas ações e formas culturais.146 Por exemplo, as referências a inquéritos e justificações contidas na Instrucção indicam uma lealdade peculiar a uma ordem legal. Desde o período no Brasil o então governador de capitania justificava de um ponto de vista jurídico suas medidas repressivas, ou citava Solórzano Pereira para defender a liberdade dos índios, portanto a favor dos jesuítas.147 Mas havia outras lealdades. Como vimos no Capítulo 2, Ramada Curto vincula a casa nobre de Assumar/Alorna – com seu apreço às letras e o patrocínio de autores para escreverem sobre suas ações – a um ethos nobiliárquico próximo ao padrão criado ao final do Seiscentos pela casa de Ericeira/Louriçal, que aliás
144 CURTO, 2009, p. 8. 145 Ibidem, p. 372-373, 393 e 397. 146 Ibidem, p. 398-399. 147 As referências para medidas repressivas na sublevação de 1720 são as cartas do governador ao primo e ao bispo (ANTT, CFA, no 120, p. 15-16 e 27-35) e para a menção a Solórzano a carta ao rei de outubro de 1719 (BNP, R, CP, 479, f. 83v), ambas apud SOUZA, 1994, p. 26-27 e 49. CURTO, 2009, p. 404. Como vimos, há outra menção ao jurista em carta ao ouvidor de Ouro Preto em janeiro de 1720. APM, SC-11, f. 205v.
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antecedeu Pedro de Almeida no vice-reinado da Índia. A biblioteca deste fidalgo, repleta de livros em latim e francês, combinava autores clássicos e portugueses, contendo grupos expressivos de livros sobre guerra e fortificações, pedagógicos e/ou religiosos e obras como L’esprit des lois de Montesquieu e Abregé de l’histoire universelle de Voltaire – a última certamente adquirida após o retorno a Portugal. Nesta livraria havia poucos, mas significativos títulos de direito (dos mais tradicionais às novas formas de direito natural e internacional), sendo preciso considerar a diferença entre os livros possuídos por um nobre e os realmente lidos por ele. Desse modo os espelhos de príncipes e as reflexões políticas de vária ordem, como as de Luís da Cunha – a quem seu pai, ele e os filhos eram próximos – teriam impactado o seu “testamento político” no tocante à linguagem das virtudes.148 Resume assim a Instrucção impressa. Por esta, a guerra era pensada não em termos de direito e justiça, mas por custos e benefícios econômicos e estratégicos. O marquês apresenta uma visão contrastante dos príncipes locais, pois eles eram viciosos, mas podiam respeitar tratados e ser competentes. Não sendo ignorante em assuntos da lei, o vice-rei dispensava o recurso aos magistrados da Relação, como vimos pelo uso dos argumentos de Solórzano – a dificuldade de relacionamento com esses membros não era apenas sua. Por sua vez, o conflito com os arcebispos que tentavam apropriar-se da jurisdição régia também era explicado pela linguagem das virtudes. Para Ramada Curto o marquês desprezava as instituições coloniais, ao concentrar as virtudes em si. O vice-rei deveria cuidar de seu bem-estar físico e sua rotina diária, controlando as próprias paixões, seguindo exemplos da Roma antiga. Não obstante a influência plural na trajetória do 1o marquês de Alorna, Curto aponta a centralidade da linguagem das virtudes na Instrucção, pela qual os reis orientais eram corruptos e cruéis. Por isso o texto seria uma construção idealizada, silenciando sobre outros conflitos e oposições.149 Embora não trabalhe com o Discurso sobre a sublevação de 1720, a análise de Ramada Curto evidencia pontos de contato e desenvolve aspectos identificados
148 CURTO, 2009, p. 404-406. O livro de Voltaire, só publicado em 1753, assegura que o inventário foi feito depois. Após diligências na FCFA e no ANTT foi impossível localizar o manuscrito que deu origem ao anexo intitulado “Chamada no 20” em NORTON, 1967, p. 324-344. Desse modo não sei exatamente quando e onde o inventário – provavelmente post mortem – foi feito e se apresentou uma forma mais detalhada em manuscrito, pois o autor não dá pistas a esse respeito. 149 CURTO, 2009, p. 407-416.
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por Mello e Souza. Apesar da maior maturidade do marquês, a visão de mundo detratora dos locais e instituições expressa-se aqui também, com as virtudes sendo concentradas em poucos, principalmente em si mesmo. A recomendação para Francisco de Távora controlar as próprias paixões pode ter um traço neoestoico, algo percebido no comportamento de membros da casa de Alorna durante o século XVIII e coerente com a usual alusão a Hércules.150 Mas o catolicismo faz-se igualmente presente quando o marquês roga proteção ao jesuíta e santo Francisco Xavier. Entretanto, a Instrucção propriamente dita possui sentido distinto dos relatos públicos das conquistas, também parte dessas impressões posteriores – sendo o texto então manuscrito coevo aos numerosos opúsculos que propagandeavam os feitos do marquês, como vimos no Capítulo 2. Por sua vez Marcos Aurélio Pereira, em biografia contextualizada sobre Pedro de Almeida, após cotejar a instrução régia igualmente publicada no Oitocentos, vale-se da edição de 1856 para relatar as conquistas do marquês na Índia. Compara a Instrucção e as Instruções políticas de Luís da Cunha pela edição de Abílio Diniz Silva, tendo as últimas como mais vastas, pois ao escrever a seu sobrinho, o embaixador abrangia a economia do império português e pensava a política a favor do Estado e não propriamente do príncipe.151 Ainda assim Pereira entende o texto da Instrucção como “escrita de Estado”, embora o documento lhe pareça um manual de governo pragmático e específico, com detalhes geográficos e sobre órgãos de governo, sem citações explícitas. Para o historiador o Discurso – pela edição de 1994 – seria um texto justificativo que buscou fundamentos em leituras sobre a razão de Estado para ações tomadas antes, mas sendo diferente de um tratado político. Por outro lado, a Instrucção lembra a existência de redes de estratégias, memórias, informações e pessoas que incidiam sobre o marquês. Após referir vários autores, Pereira vale-se do estudo preliminar de Ramada Curto; e adiante percebe semelhanças entre a Instrucção e o conhecido texto de Gomes Freire de Andrada a seu irmão José Antonio, para o governo da capitania de Minas Gerais, em 1752.
150 O comportamento é verificado no 2o marquês de Alorna João de Almeida após o tempo na prisão e em sua filha a condessa de Ribeira Grande Maria Rita de Almeida, ao declarar em cartas ao pai que ela e o marido aderiram ao estoicismo. ANTT, CFA, nos 180 e 181. 151 A cópia manuscrita das Instruções políticas de Luís da Cunha a seu pupilo Marco António de Azevedo Coutinho (1736) que serviu de base ao estudioso localiza-se na BNPA. SILVA, Abílio Dinis (org.). D. Luís da Cunha. Instruções políticas. Lisboa: CNCDP, 2001. Para essas ideias, ver PEREIRA, 2016, p. 89-90, 286-287, 292, 315, 337-346, 351 e 432-433.
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Entretanto, ressalta o preconceito característico do marquês de Alorna como um “nobre nos trópicos” e seu desejo patente de glória. Mônica da Silva Ribeiro dialoga com a tese de Pereira, ao perceber o governo de Gomes Freire de Andrada no centro-sul do Brasil entre 1733 e 1763 como um tempo de maior presença da razão de Estado na América portuguesa.152 Ao deixar as Minas em 1751 para atender ao problema da demarcação de limites com a coroa espanhola ao sul – no momento em que se suspendia o sistema de capitação para a volta das casas de fundição em Vila Rica, São João del-Rei, Mariana e São Paulo –, o irmão mais moço, então tenente-coronel de cavalaria, assumiu o posto de governador interino. Nesse âmbito o governador militar – outrora também atuante na Guerra de Sucessão da Espanha – escreveu ao irmão a Instrucção e norma, um guia para o governo apresentando funcionários, eclesiásticos e oficiais com os quais lidaria. Para Ribeiro, era um manual de advertências com base na experiência vivida. Na preocupação com a obediência a Deus e ao rei, na racionalidade administrativa, no cumprimento de tarefas e na ordem de direitos e deveres, havia preocupação com o bem comum e a satisfação dos povos. Segundo a autora, a razão de Estado articulava-se às redes relacionais com civis, eclesiásticos e militares e com o artifício da dissimulação, algo negligenciado por Luís Vahia Monteiro, antecessor de Gomes Freire no governo do Rio – na historiografia, este último teria um perfil sobretudo conciliador. A passagem mais famosa deste texto só publicado em 1899 no APM – no ano seguinte ao Discurso – é aquela em que Gomes Freire, atento à reputação do irmão, escreve ser “preciso misturar o agro com o doce, em tal forma que se conheça, incontestavel, que o vosso animo só respira a defensa da razão, e de justiça, enquanto for pelo seu caminho”.153 No célebre capítulo de Desclassificados do ouro, ao lidar com duas abordagens em princípio díspares para o entendimento da administração lusa nas Minas, Mello e Souza vale-se da expressão:
152 Para essas ideias, cf. RIBEIRO, Mônica da Silva. “Se faz preciso misturar o agro com o doce”: a administração de Gomes Freire de Andrada, Rio de Janeiro e centro-sul da América portuguesa (1748-1763). 2010. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010, p. 111-120. 153 INSTRUCÇÃO e norma que deu o ill.mo e ex.mo sr. conde de Bobadella a seu irmão preclarissimo snr. José Antonio Freire de Andrade para o governo de Minas, a succeder pela ausencia de seu irmão, quando passou ao sul. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 4, p. 727-735, 1899 (citação na p. 727).
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Assim, engolfada em contradições, a administração mineira apresentou um movimento pendular entre a sujeição extrema ao Estado e a autonomia. Por esse motivo, entre outros, o governo das Minas foi sempre uma empresa difícil e delicada, exigindo a mistura do agro com o doce e a adoção da prática do bater-e-soprar.154
Em nota, além do trecho de Instrucção e norma, a historiadora referencia o ensaio de Sylvio de Vasconcellos, pela formulação do “bater-e-soprar”. Conforme o arquiteto, nas Minas, onde Pedro de Almeida é praticamente prêso e só a custa de muitas artimanhas, sobrevive. D. Lourenço, que lhe sucede, só se empossa com o consentimento do povo. A debilidade do poder da Coroa ressalta das instruções dadas pelo Rei a êsse último Governador: só confirmar perdão prometido se absolutamente indispensável. A hipótese confirma-se, submetendo-se o Rei à vontade do povo, sem meios para contrariá-la. O soberano vê-se coagido a negociar sua autoridade com os súditos, com muito tato e habilidade, cedendo quando necessário. Autoridade consentida, frágil, muito diferente do absolutismo implantado em todo o resto do reino. Fere, suplicia quando pode. Perdoa a seguir. Bate e sopra, como diz a gíria popular.155
Percebe-se assim a associação metafórica eficaz para sumariar o governo da capitania das Minas, mas que precisa ser esmiuçada ao se analisarem casos e textos específicos. Curiosamente, por trás de tudo, há a leitura sensível do arquiteto durante o seu exílio em Portugal da correspondência existente na BNP, também apropriando-se da edição de 1898 do Discurso, que por sua vez mobiliza a historiadora a citá-lo, estudá-lo e reeditá-lo quase um século depois. A meu ver o texto do Discurso – embora também mostre um “conde general” ouvindo as queixas dos povos e perdoando – encontra-se afinado com o perfil de uma narrativa épica construída sobre os episódios de 1720, que enaltece as ações grandiloquentes e o castigo impetrado. No códice se justifica o castigo de modo peculiar e em tom desafiador à monarquia portuguesa, vista como ausente e excessivamente pacífica. Em outras palavras, elogia-se mais o agro que bate. Como vimos no Capítulo 1, este último aspecto é percebido por Marco Antonio Silveira, que em seu livro também lida com os trabalhos de Ramada Curto, Pe-
154 SOUZA, 1982, p. 97. 155 VASCONCELLOS, 1968, p. 67-68. A referência em nota é a carta de d. João V a Lourenço de Almeida, já referida no Capítulo 1, aqui citada por BNP, R, CP, códice 643, fl. 34.
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reira e Silva Ribeiro. Além de cotejar as Instruções políticas de Luís da Cunha pela edição de Diniz Silva e publicações de Sebastião da Rocha Pita, a serem vistas adiante,156 Silveira concede atenção a um interessante e extenso registro publicado em 1877, trabalhado de forma resumida por Curto, a Relação historica e politica de 1692, escrita por Francisco Teixeira de Moraes, ligado à câmara de Alenquer, no Estado do Maranhão e Grão Pará, sobre os acontecimentos da chamada Revolta de Beckman.157 Dedicado a Roque Monteiro Paim, secretário de d. Pedro II, conselheiro da Fazenda e juiz da inconfidência, no Oitocentos o manuscrito foi ofertado ao IHGB pelo sócio Antonio Henrique Leal. Ao que parece, sua publicação preservou as notas, impressas no rodapé das páginas – diferentemente do caso das impressões do Discurso. Não sei se a divisão em capítulos e itens numerados provém do manuscrito ou resulta da edição da revista impressa. De todo modo, seu texto impressiona pela erudição, com trechos em latim, versos de Camões, além de remissões a Solórzano Pereira, Tácito, Cícero, Virgilio Malvezzi, Severim de Faria, Ovídio, Jean Bodin, Azpilcueta Navarro e outros. Conforme Silveira, o cidadão de Alenquer, Teixeira de Moraes, defende o cativeiro indígena, sendo contra os jesuítas e a companhia de comércio criada em 1682. Mas Moraes era também adverso a Manuel Beckman e outros, e a favor de Gomes Freire de Andrada, que pacificou a região e por isso tornou-se governador – homônimo aliás e tio do futuro conde de Bobadela a partir de 1758, nessa família de servidores da monarquia portuguesa.158 Silveira compara a Relação historica e politica de 1692 por sua versão impressa ao Discurso sobre a sublevação de 1720 – consultado também agora pela cópia digital do manuscrito – e identifica semelhanças entre os textos, lendo-os, em suma, como exemplos da presença da razão de Estado na colonização da América portuguesa. Não obstante a riqueza desta Relação sobre a Revolta de Beckman, realmente comparável ao Discurso forjado sobre a sublevação de Vila Rica, penso que o 156 SILVEIRA, 2019, p. 159-161, 164-166, 182, 185-195, 201-202. 157 MORAES, Francisco Teixeira de. Relação historica e politica dos tumultos que succederam na cidade de S. Luiz do Maranhão... [1692]. Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e Ethnographico do Brasil, Rio de Janeiro, t. XL, parte primeira, p. 67-155 e 303410, 1877; SILVEIRA, 2019, p. 95-113; e CURTO, 2009, p. 290-296. 158 A título de curiosidade, Gomes Freire de Andrada, governador do Maranhão de 1684 a 1688, era antepassado direto do general Gomes Pereira Freire de Andrade e Castro, amigo de Pedro José de Almeida, 3o marquês de Alorna, acompanhando-o em sua morte em 1813 na campanha da Rússia, como vimos no Capítulo 2. Maçom, Gomes Freire foi acusado de liderar uma conspiração contra d. João VI em 1817, sendo enforcado.
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termo razão de Estado é por demais polissêmico na história e na bibliografia – incluindo historiografia, filosofia, ciência política e letras – para favorecer uma análise de conjunto. Por exemplo, Pereira, Ribeiro e Silveira não compartilham da mesma compreensão do termo, o que pode gerar aproximações difíceis ante o conceito plural. Com respeito às tendências historiográficas e modelos analíticos, saliento o sentido de origem do códice, ou livro manuscrito, sem colofão e anônimo, ou seja, sem dedicatória ou paratexto que explicite as relações de força subjacentes.159 Por outro lado, esses vínculos sociais são mais evidentes nos outros textos perscrutados neste item: a instrução de um grande de Portugal a outro sucessor igualmente fidalgo, sob a égide régia; ou ao irmão governador interino, numa família ávida por nobilitação; e um relato erudito de um cidadão de região próxima, aparentemente concebido como encômio ao recente governador e dedicado a um alto funcionário régio – a propósito, antepassado dos Sousas Coutinho e condes de Linhares. Esses aspectos fazem do Discurso historico, e político um códice bem mais complexo e de difícil apreensão, sendo preciso abrir espaço aos prováveis artífices e suas filiações de ideias.
Inscrições acadêmicas Como vimos, o padre secular Miguel Mascarenhas, perturbador em Pitangui no fim de 1718, era irmão do jesuíta José Mascarenhas, considerado pelo próprio Pedro de Almeida seu mui amigo naquele momento.160 Segundo os dados levantados por Serafim Leite – não obstante o tom apologético de sua história –, José Mascarenhas nasceu por volta de 1679 no Rio de Janeiro, onde ingressou em 1694 no colégio da Companhia. Ali inaugurou a cátedra de prima – aula mais prestigiosa do dia, comparada à de véspera. Em 1711 teria missionado de Paranaguá a Santa Catarina. De 1716 a 1719 foi o primeiro a lecionar filosofia no Colégio de São Paulo. Em maio de 1720, numa carta ao provincial geral da Companhia, informa que após o curso em São Paulo foi para Minas missionar. Associou-se assim ao padre
159 O vínculo dessas relações com a retórica faz-se evidente em GINZBURG, 2002 [2000], p. 13-99. 160 CARVALHO, 1931, v. 3, t. VI, livro III, cap. I.
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Antonio Correia – que chegou em 1717, vindo do Rio – e elogiou suas virtudes doutrinárias, de aconselhamento, austeridade e conversação, fazendo-o venerável. Segundo Mascarenhas, os moradores os distinguiam dos outros padres regulares. Instalados numa pequena casa perto do palácio do governador em Vila do Carmo, eles atendiam crianças, rústicos e escravizados, recusando-se a receber o ouro que lhes era ofertado. Pedro de Almeida deve ter conhecido José Mascarenhas em sua passagem por São Paulo em 1717. Por sua mediação pacífica junto aos amotinados de Vila Rica em 1 de julho de 1720 – mencionada no Discurso e na Noticia161 – foi louvado em carta régia, tendo então cerca de 40 anos. Em setembro do ano seguinte, em outra carta ao provincial, para Mascarenhas os vereadores e os principais de Ribeirão do Carmo não queriam a volta dos dois padres ao Rio de Janeiro. Neste mesmo ano, em Santos, em outra carta posicionou-se sobre a pequena alteração na chegada ao Rio do novo governador da capitania de Minas Gerais, Lourenço de Almeida, com os índios aldeados. Em 1726 teria missionado na Ilha Grande, tendo deixado escrito um atestado.162 Em agosto de 1747, já sexagenário emitiu no Rio de Janeiro um parecer detalhado ao mestre decano Francisco Xavier, sobre a inscrição encontrada numa gruta na serra de Itaguatiara, na comarca do Rio das Mortes (atualmente em São Tomé das Letras). José Mascarenhas fez o parecer com base no desenho colorido também integrante do chamado códice Costa Matoso, e por sua vivência pregres-
161 APM, AVC-17, f. 73r-74r; IEB-USP, AL-61, p. 21-22. Nas memórias sobre o padre Belchior Pontes o episódio também foi mencionado, sem nomear o padre que atuou a serviço do governador. FONSECA, 1752, p. 250. 162 LEITE, 2004 [1938], v. 3, t. VI, livro III, cap. I.
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sa na região.163 Por esses registros percebe-se o gosto pela decifração de enigmas, associando o hieróglifo às supostas passagem e pregação de são Tomé no Brasil, em 54 d.C. – conforme ideia presente, por exemplo, nas cartas de Manuel da Nóbrega.164 A legenda do desenho concebe a inscrição como sendo reveladora de símbolos cristãos. Em seu parecer – com escrita diversa da caligrafia do Discurso e da Noticia – Mascarenhas enumera e desenvolve sete argumentos sobre deduções bíblicas, da Antiguidade egípcia e ritos fúnebres indígenas, confirmando a acepção. Cita o escolástico e humanista italiano Giovan Pictro delle Fosse (compilador de escritas hieroglíficas), o “eruditíssimo Bluteau” e Athanasius Kircher – jesuíta alemão seiscentista estudioso de hieróglifos egípcios, alquimia e astrologia, como veremos no próximo capítulo.165 Conforme Iris Kantor, esses manuscritos se inserem no movimento acadêmico brasílico setecentista, um tanto distinto do português – mais atento ao modelo clássico romano – ao destacar uma visão providencialista da história. Assim construía-se a memória de um passado afirmando a identidade americana. Desde 1730 Martinho de Mendonça de Pina e Proença deu notícia da inscrição na Academia Real da História. No Rio de Janeiro, o desenho de 1747 foi inter-
163 Para essas informações, cf. Inscrição enigmática formada em quatro regras para argumento de serem também os sinas povoadores da América, e Interpretação que deu o padre José Mascarenhas, lente de prima no colégio do Rio de Janeiro, às letras de que se trata. In: FIGUEIREDO, Luciano; CAMPOS, Maria Verônica (orgs.). Códice Costa Matoso: coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso, de que tomou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, v. 1, p. 374-382. O códice de 554 fólios contém 145 manuscritos de natureza diversa, compilados entre 1749 e 1752 pelo ouvidor de Ouro Preto Caetano da Costa Matoso, tendo vindo a público em Coimbra, 1924, no leilão da livraria do conde de Ameal, depois em 1925 em outro leilão em Londres, em seguida sendo adquirido pelo bibliófilo brasileiro Félix Pacheco e despertando o interesse de Affonso Taunay, então escrevendo a História geral das bandeiras paulistas. Com a morte de Pacheco em 1935, sob diligência do diretor do Departamento Municipal de Cultura Mário de Andrade – à maneira da Noticia, como vimos no Capítulo 1 – na gestão do prefeito Fábio Prado, foi adquirido após negociações em 1936 para a Biblioteca Municipal (atual Mário de Andrade), com o incentivo do diretor Rubens Borba de Moraes. Ver o estudo de Luciano Figueiredo, ao articular a trajetória do livro manuscrito a circunstâncias de sua elaboração, ao gosto e às agruras vividas pelo referido ouvidor entre Brasil e Portugal, a fim de entender o seu sentido: FIGUEIREDO, Luciano. Estudo crítico: Rapsódia para um bacharel. In: FIGUEIREDO, Luciano; CAMPOS, Maria Verônica (orgs.). Códice Costa Matoso: coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso, de que tomou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, v. 1, p. 37-154. 164 HOLANDA, op. cit., p. 108-129. 165 FIGUEIREDO; CAMPOS, op. cit., p. 374-382. A respeito, ver ROMEIRO, Adriana; RAMINELLI, Ronald. São Tomé nas Minas: a trajetória de um mito no século XVIII. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 21, p. 58-69, 1999, que comentam o trabalho de Kircher em sua interpretação dos mistérios da natureza.
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pretado pelo cirurgião-mor Mateus Saraiva, médico formado em Coimbra, por sua vez mostrando-o a José Mascarenhas, que morreria naquele ano.166 Nesse âmbito, Sebastião da Rocha Pita seria membro fundador da Academia dos Esquecidos em 1724 e sócio supranumerário da Academia Real. Nascido em 1660, estudou no colégio jesuítico em Salvador. Seguiu trajetória militar, sendo também senhor de engenho e dedicado às belas-letras. Em 1715 ofereceu seu Tratado político dividido em três discursos ao marquês de Angeja, vice-rei no Estado do Brasil, com trechos depois apresentados em conferências dos Esquecidos.167 Ao que tudo indica o Tratado foi escrito entre 1703 e 1706, após a mudança de posição de Portugal na Guerra de Sucessão da Espanha, a partir de então aliando-se à candidatura do arquiduque Carlos Habsburgo, a quem Pedro II acompanhou em sua entrada em Castela em 1704 – é este o rei luso referido em todo o escrito.168 Há duas cópias manuscritas do texto, na BGUC e na BNB – sendo esta mais completa, com 53 páginas. Segundo Eduardo Sinkevisque, trata-se de uma prosa histórica com recurso a exemplos de muitas outras histórias, buscando ensinar, deleitar e mover o destinatário com ornatos, digressões e écfrases, inserida no gênero demonstrativo, mas também com aspectos do deliberativo – ou político. Com influências da retórica aristotélica e do modelo historiográfico romano, o texto apresenta-se em ordo naturalis, com sobreposições de narrativas que chegam a eclipsar o tema central, mas sem caracterizar uma fábula; o uso da primeira pessoa do singular ou do plural, conforme o ofício do historiador; e muitas autoridades antigas ou medievais imitadas ou emuladas.169
166 ROMEIRO; RAMINELLI, op. cit., p. 58-59; e KANTOR, Iris. Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec, 2004, p. 215, 219 e 223. Por sua vez Cañizares-Esguerra perscruta as muitas analogias de semelhanças ocultas feitas entre elementos antigos (hebreus, hieróglifos egípcios, clássicos greco-latinos) e a cultura nativa mesoamericana, bem como a Real Academia Espanhola de História fundada no início do século XVIII, preocupada em escrever uma nova história do Novo Mundo com fontes primárias, concorrendo com o Conselho das Índias no acesso a informações. Nesse ambiente havia paradigmas historiográficos distintos, como a tradição erudita valenciana de Gregorio Mayans y Siscar, mencionado no Capítulo 2. CAÑIZARES-ESGUERRA, op. cit., p. 168-170, 221. 167 KANTOR, op. cit., p. 96. 168 MARTÍN MARCOS, David. Península de recelos: Portugal y España, 1668-1715. Madrid: Marcial Pons, 2014, p. 174-184. 169 A publicação de Heitor Martins baseou-se apenas na cópia da BGUC, ver MARTINS, Heitor (org.). Sebastião da Rocha Pita. Tratado político. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. Para mais informações e ideias seguintes, cf. SINKEVISQUE, Eduardo (org.). Sebastião da Rocha Pita. Tratado político (1715). São Paulo: Edusp, 2014, p. 21-87.
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Esses aspectos são percebidos no Discurso historico, mas com matizes próprios. Como vimos, após a dedicatória e o prólogo o Tratado divide-se em três discursos iniciados com pequenos parágrafos de “Argumento”, sendo o primeiro discurso voltado para eventos históricos gerais até a divisão dos reinos, o segundo sobre a legitimidade da monarquia portuguesa fundada no milagre de Ourique, e o último para justificar o apoio de Pedro II ao arquiduque Carlos de Áustria, como uma guerra justa. Apresenta assim silogismos diversos do códice AVC-17, que possui caráter monográfico e narrativo. Os paratextos situam o Tratado e seu autor nomeado em relações de respeito institucional ao vice-rei, à coroa e à Igreja de Roma – algo inexistente no códice anônimo e sem colofão do Discurso. Um aspecto importante, pois segundo Sinkevisque o Tratado constitui um texto ponderado, honesto e prudente no sentido ciceroniano, escrito em estilo médio e produzindo uma imagem icástica – distinta do fantástico e do fantasioso – adequada ao encômio régio. Minha leitura confirma este perfil linear. Entretanto, o bem mais extenso Discurso, com muitas notas marginais, numerosos trechos em verso, recursos pontuais à sátira, alusões a mistérios naturais e ideias políticas endiabradas, apesar de ser encomiástico em relação a Pedro de Almeida, apresenta-se como um texto híbrido e não respeitante a poderes instituídos – em que pesem as posições diferentes dos dois agentes, Rocha Pita e Pedro de Almeida, ante a mesma monarquia. A fim de escrever a Historia da America portugueza, Rocha Pita fez viagens pelo Brasil em busca de documentos e arquivos. Embarcou então para Lisboa para completar a pesquisa, onde a obra foi impressa em 1730, dedicada a d. João V. Dividida em dez livros dispostos em ordem cronológica, com parágrafos numerados, seus sumários vão desde o Descobrimento do Brasil até o último livro, sobre as minas do ouro e as ações do governo-geral. Como na retórica aristotélica, a primeira pessoa do historiador – no singular ou no plural – observa e narra. Para os censores acadêmicos e dos poderes Ordinário, da Inquisição e do Desembargo do Paço, era uma história política, ao expressar a verdade sobre os sucessos descritos com “artificiosa brevidade”, embora na advertência o autor previna que os dois primeiros livros foram escritos em estilo poético, sendo os demais em histórico. Como no Tratado, nessa primeira história do Brasil impressa predominaria o discurso
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demonstrativo, afirmando ações gloriosas modeladas em historiadores, políticos e autoridades de escritos morais antigos.170 A leitura do “livro decimo, e ultimo” indica a chegada do novo vice-rei marquês de Angeja em 1714. O ex-vice-rei da Índia é comparado ao general romano Germânico, tendo participado antes na tomada de Madrid pelas tropas portuguesas durante a Guerra de Sucessão. São descritos os fatos e realizações de seu governo, sucedido pelo conde do Vimieiro em 1718, cuja vinda foi acompanhada de presságios, com a falsa notícia de sua morte na viagem. Todavia houve um incêndio na rua Direita e ataque de piratas, depois executados na forca, até a morte do conde em outubro de 1719. Enterrado na igreja dos capuchos, ali João Mascarenhas – o referido primo de Pedro de Almeida – ornou seu túmulo. Rocha Pita descreve então a trajetória de louros do falecido. O governo interino seria formado pelo arcebispo Sebastião Monteiro da Vide, o chanceler da Relação e o mestre de campo mais antigo. Quando o provedor da planejada casa da moeda Eugênio Freire de Andrade – fartamente referido na correspondência de Pedro de Almeida, mas ausente no Discurso e na Noticia – vai para as Minas fundar as casas dos quintos, inicia-se o relato da rebelião com um encômio ao conde de Assumar: Tinha as redeas do Governo geral das Minas, desde o anno de mil e setecentos e dezasete, D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar, de illustrissima Casa, e Familia, fecunda em Heroes famosos, que alcançaraõ esclarecida fama pelo amor da Patria, e pela fidelidade aos Monarchas Portuguezes; virtudes, que exerceraõ naõ só na Lusitania, porém em todas as mais dilatadas porções da Monarchia. Com o exemplo dos seus ascendentes, e com o entendimento proprio, e outras admiraveis prerogativas, de que liberalmente o dotara a natureza, foy o Conde moderando os humores, que mal compleicionados nos corpos daqueles Povos, traziaõ descompostos todos os seus membros.171
No tempo de término dessas páginas, Pedro de Almeida encontrava-se afastado da corte por conta da altercação no Rossio, como vimos no Capítulo 1. O relato da sublevação ocupa dez parágrafos, sumariando os fatos narrados na
170 SINKEVISQUE, Eduardo. Sebastião da Rocha Pita (1660-1738). In: VARELLA, Flávia; OLIVEIRA, Maria da Glória de; GONTIJO, Rebeca (orgs.). História e historiadores no Brasil: da América portuguesa ao Império do Brasil c. 1730-1860. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015, p. 17-42. Ver também PITTA, Sebastião da Rocha. Historia da America portugueza, desde o anno de mil e quinhentos, do seu descobrimento, ate de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa Occidental: Officina de Joseph Antonio da Silva, 1730 [reimpressa pelo Barão Homem de Mello - Collecção de obras relativas á historia da capitania depois provincia da Bahia. Bahia: Imprensa Economica, 1878]. 171 PITTA, 1878, p. 413-426 (citação à p. 426).
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correspondência, com alguns equívocos de nomes e isentando de culpa Sebastião da Veiga Cabral, que morreu em Lisboa no início de 1730. No fim, conclui-se: O Conde de Assumar foy continuando o Governo das Minas com menores obstaculos, mas com proprias fadigas, por serem aquelles Povos compostos de tanta variedade de genios, quantas saõ as Provincias, e Conquistas de Portugal, e da nossa America, de donde concorrem para aquellas parte, e daõ muito, que merecer ao Governador, que as chega a socegar, como o Conde, pois da quietaçaõ daquelles moradores fez todos os interesses, que podera adquirir para a sua Casa, a naõ ser o mayor brazaõ dela as acções heroicas, e o Real serviço dos nossos Augustos Monarchas.172
Um providencialismo comedido, encômios, alguns paralelos, um relato factual comprometido com instituições e poderes reconhecidos. Algo diferente da narrativa hiperbólica do códice “Proteu” em tela. Como vimos no Capítulo 2, a Academia Real da História entendia a escrita da história também como um processo de coleta, inventário e leitura de documentos e notícias. Francisco de Almeida Mascarenhas – o irmão mais novo de Pedro de Almeida – foi eleito acadêmico em 1728, dedicando-se a colher dados para elaborar sua Bibliotheca hispana, e lusitana. Até morrer em 1745 ele coletou 40 volumes manuscritos de informações sobre autores, como se vê pelo catálogo de sua livraria.173 Vários códices na BNP contêm a correspondência entre Francisco de Almeida e sócios supranumerários do reino e das províncias ultramarinas, em busca de informes sobre escritores e obras – em maioria eclesiásticos, mas também seculares e poetas. No códice consagrado ao Brasil há um catálogo de escritores das ordens eclesiásticas, seguindo em princípio a divisão por províncias de cada ordem. Responsável pela ordem franciscana, o frade leigo Apolinário da Conceição redigiu em Lisboa em 1737 o memorial dos religiosos seráficos no Rio de Janeiro. Interessado em publicar obras, no fim descreveu os manuscritos que possuía, entre esses um de seis fólios, do sermão proferido pelo jesuíta José Mascarenhas no convento de Santo Antônio, no Rio, em novembro de 1726, em virtude da canonização dos freis
172 Ibidem, p. 429. 173 BNP, FG, B. 793 P, Catalogo da livraria que ficou por fallecimento do excellent. e reverendis. senhor principal d. Francisco de Almeyda Mascarenhas. S.n.t. Para essas informações, cf. MUHANA, Adma Fadul. Memórias de escritores do Brasil na Academia Real da História Portuguesa. Teresa. Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 19, p. 116-132, 2018.
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Giacomo della Marca e Francisco Solano. Segundo Conceição, “He este Pe. tanto no pulpito, como na cadeira applaudido por sua sciencia, e graça na Oratoria”.174 Frei Apolinário também se correspondia com o referido médico Mateus Saraiva, físico-mor do presídio no Rio de Janeiro, que em 1738 enviou-lhe uma carta informando seus estudos, querendo publicá-los e ingressar na Academia Real. Saraiva escrevia igualmente a Diogo Barbosa Machado – em pleno processo com sua Bibliotheca lusitana. Segundo Adma Muhana, na Ilustração da América portuguesa apresentada por Saraiva a frei Apolinário, “um arraigado providencialismo se exibe a cada frase do médico, apoiado em uma argumentação com intrusões científica e dialética, em que as tradições valem menos do que os testemunhos histórico-naturais”. A primeira parte da Ilustração enaltecia a providência divina por são Tomé, com base na mencionada inscrição na pedra ao sul de Vila Rica, semelhante às outrora identificadas por João de Barros e Diogo do Couto na Ásia, depois interpretadas por Athanasius Kircher. Para Saraiva esse monumento prenunciava o Quinto Império, em clara ponte com as ideias de Antônio Vieira.175 Portanto, José Mascarenhas, em 1721 provável colaborador do multifacetado Discurso, era um notável mestre de filosofia em São Paulo quando provavelmente conheceu Pedro de Almeida. Em 1726 foi aplaudido no Rio de Janeiro por sua ciência e oratória nas aulas no colégio jesuítico, proferindo sermão em igreja distinta de sua ordem. No fim da vida, o douto jesuíta interpretou a inscrição enigmática com base em saberes específicos e sua vivência nas Minas. Mas ainda há pontas soltas nesse tecido plural.
Profecias e demônios Desde a feitura do estudo crítico do Discurso em 1994, Adriana Romeiro comunicou a Mello e Souza ter descoberto no processo inquisitorial do padre
174 BNP, R, códice 908, f. 240r – transcrição cedida por Fadul Muhana. O sublinhado é meu. O termo ciência pode designar filosofia, à época. Sobre frei Apolinário, ver PALOMO, Federico. Conexiones atlánticas: fr. Apolinário da Conceição, la erudición religiosa y el mundo del impreso en Portugal y la América portuguesa durante el siglo XVIII. Cuadernos de Historia Moderna, Madrid, anejo XIII, p. 111-137, 2014. 175 MUHANA, 2018, p. 124.
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Manoel Lopes de Carvalho – morto em Lisboa num auto de fé em 1726 – que nas Minas ele tomou contato com uma cópia da Clavis prophetarum de Antônio Vieira, pelo padre Antonio Correia.176 O fato convida a cotejar os vínculos entre essa obra, o Discurso e o legado de Vieira na região mineradora. A história de redação da Clavis é controversa, por sua associação a outros textos proféticos do jesuíta: a carta escrita na Amazônia em 1659 depois intitulada Esperanças de Portugal, e a História do futuro publicada postumamente em 1718, ambas escritas em português. Para Silvano Peloso – mediante estudo do processo inquisitorial de Vieira de 1663 a 1667 e de sua correspondência – a Clavis seria o grande projeto de vida vieiriano, em processo de escrita desde 1645, potencializado por estudos e contatos em suas estadas na França, Holanda e em Roma, e com a vivência intensa no Maranhão. Diferia assim da carta reservada, dirigida a princípio ao nomeado bispo do Japão para confortar a rainha regente Luísa de Gusmão (1656-1662), depois utilizada como sinal da heresia de Vieira no referido processo; e também do texto então produzido, calibrado para a recepção na corte Bragança e ante os inquisidores, impresso décadas mais tarde.177 O tema é controverso.178 Destaque-se a atenção dispensada por Peloso aos distintos destinatários, modos de escrita e circulações desses três documentos, de forma relacional a similitudes e diferenças textuais. Nesse afã, colhe informações que podem ser vinculadas indiretamente ao Discurso, por exemplo sobre o contato entre Antônio Vieira e Nicolas Caussin em Paris em 1646 ou 1647, quando o primeiro apresentou ao ex-confessor de Luís XIII escritos preliminares, com notas sobre fundamentos, textos e autoridades – notas não mostradas aos inquisidores na sessão ocorrida em Lisboa cerca de 20 anos depois. Naquele encontro parisiense Vieira teria falado ao “Causino” sobre a obra chamada Clavis prophetarum ou De regno Christi, na qual trabalhava há algum tempo, e conheceu a biblioteca do Colégio
176 SOUZA, 1994, p. 28; e ROMEIRO, 2001, p. 152. 177 O estudioso aponta a confusão feita entre as referências de elaboração da Clavis e da História do futuro desde a obra de João Lúcio de Azevedo (AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda, 2008 [1918-1921, revisada em 1931]. 2 tomos) repercutindo na bibliografia. PELOSO, Silvano. Antonio Vieira e l’impero universale: la Clavis prophetarum e i documenti inquisitoriali. Roma: Sette Città, 2005. 178 Como obra magna de Vieira, a Clavis ecoa as discussões intelectuais e religiosas do século XVII. Para um balanço bibliográfico e sobre os vários manuscritos da Clavis, ver VALDEZ, Ana T. Vieira between History of the future and Clavis prophetarum. In: LIMA, Luís Filipe Silvério; MEGIANI, Ana Paula Torres (orgs.). Visions, prophecies and divinations: Early Modern messianism and millenarism in Iberian America, Spain and Portugal. Leiden; Boston: Brill, 2016, p. 215-229.
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de Clermont. Na estada em Roma de 1669 a 1675, cópias da Clavis incompleta começaram a circular por sua própria iniciativa em ambientes vizinhos.179 Desde 1681 na Bahia, Vieira escreveu em sua correspondência que os sermões – publicados em vários tomos a partir de 1679 – lhe significavam menos que a Clavis, obra da qual aceitaria até renunciar a paternidade, tendo em vista a sua divulgação.180 Dias após sua morte em 1697, os manuscritos foram depositados numa arca a ser enviada a Lisboa e depois a Roma, fazendo-se uma cópia desses para permanecer no Colégio da Bahia. No catálogo feito por Giovanni Antonio Andreoni são mencionados três livros. Mas segundo o ajudante dos últimos dez anos Antonio Maria Bonucci, seriam quatro.181 É impossível mensurar a circulação de cópias da Clavis no Brasil, por fragmentos e via oral. Foi comentada pelo jesuíta Valentin Stansel e compendiada por Matteo Falleto – cujo escrito também foi mencionado pelo padre baiano Manoel Lopes de Carvalho em seu processo.182 Stansel nasceu na Morávia, tornando-se um conhecido matemático, astrólogo e filósofo na Universidade de Praga. Desde 1663 estabeleceu-se no Brasil, publicando em 1685 Uranophilus caelestis peregrinus em Gand – trabalho escrito em Salvador, Bahia. O livro no fundo inspira-se na obra Itinerarium exstaticum, publicada em Roma em 1656, de Athanasius Kircher – com quem Stansel conviveu no Colégio Romano, tornando-se depois seu correspondente e lhe enviando peças para o seu grande museu naquele colégio. Conforme Carlos Ziller Camenietzki, os dois estudos foram construídos em forma de diálogo e descrevem viagens extáticas de personagens aos céus, discorrendo sobre sua estrutura e a influência dos astros.
179 PELOSO, op. cit., p. 62-63 e 104. 180 Sobre a relação de Vieira com a autoria, ver LIMA, Luís Filipe Silvério. Um “apócrifo” de Vieira: discursos sebastianistas, leitura de impressos e circulação de manuscritos (séc. XVII-XVIII). In: HERMANN, Jacqueline; MARTINS, William de Souza (orgs.). Poderes do sagrado: Europa católica, América ibérica, África e oriente portugueses (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Multifoco, 2016, p. 53-83. 181 Andreoni era uma personalidade forte no Colégio da Bahia, referência de um grupo que também contrastou com Vieira. Originário de Luca, entrou na Companhia em 1667, em 1681 foi convencido por Vieira a ir para o Brasil, onde foi seu secretário quando ele foi visitador geral das missões. Com o pseudônimo de André João Antonil, sua obra Cultura e opulência do Brasil, impressa em 1711, foi logo sequestrada pela coroa, por divulgar riquezas que podiam interessar a estrangeiros. A partir de 1698 seria reitor por duas vezes do Colégio da Bahia, também provincial de 1705 a 1709, e por seu conhecimento do latim teve papel importante na custódia dos manuscritos de Vieira, tendo falecido em Salvador em 1716. Por sua vez Bonucci, nascido em Arezzo em 1652 – também na Toscana – igualmente veio em 1681 no séquito de Vieira. Do colégio instalado no Recife foi para a Bahia, passando a ajudar Vieira na redação da Clavis em 1687. Era menos envolvido que Andreoni nas questões políticas e administrativas e mais interessado nas ideias religiosas. Desde 1703 estava em Roma, onde morreu em 1729. PELOSO, op. cit., p. 116, 120 e 127-130. 182 Em 1700 o missionário piemontês Giovanni Matteo Falleto, após consultar três jesuítas que leram manuscritos de Vieira – segundo Peloso provavelmente Andreoni, Bonucci e Stansel –, compôs um compêndio da Clavis. PELOSO, op. cit., p. 133-134; e ROMEIRO, 2001, p. 152.
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Mas o trabalho de Kircher teve dificuldade para ser aprovado pelos censores internos da Companhia de Jesus – do Collegium Revisorum – e esta seria a provável razão para Stansel não o citar diretamente, preferindo referenciar outros livros do jesuíta alemão.183 No século XVII o gênero das viagens imaginárias era frequente, inspirado em parte no já conhecido sonho de Cipião, de Cícero. Com metáforas, hipérboles e analogias, descrevia-se um cosmos governado por estímulos e simpatias, procurando conciliar as ideias do astrônomo alemão Johannes Kepler com o tradicional esquema ptolemaico-aristotélico da Companhia de Jesus. Sobre as causas desses movimentos, Stansel vale-se dos conhecimentos do magnetismo de Kircher para refutar as teses de Kepler, mas aceitando a inteligência divina. Uranophilus apresenta um mundo organizado, mas não submetido a uma lógica única, ora explicando os movimentos celestes por uma inteligência diretriz, ora examinando-os à luz de teses atomísticas. À maneira de seu correspondente em Roma, Stansel validava experiências por analogia para verificar as influências dos astros nas vidas e mentes dos homens, sendo as relações humanas – como as virtudes de animais, plantas ou minerais – parte dessa rede de correspondência universal. Como veremos no próximo capítulo, os trabalhos de Kircher – citado como autoridade na interpretação da pedra enigmática e presente no ambiente letrado da Bahia no fim do Seiscentos – afinavam-se com a filosofia neoplatônica.184 Esse ambiente intelectual envolvia as trajetórias dos artífices do códice em tela. Antonio Correia teria nascido em 1656 no Rio de Janeiro, onde entrou para a Companhia de Jesus aos 19 anos. Em 1695 foi um dos dois jesuítas a acompanhar o governador-geral João de Lencastre na expedição que saiu da capital para as minas de salitre na serra da Jacobina, sertão da Bahia, visando ali criar novos núcleos urbanos e aldeias. Na ocasião teria evitado um derramamento de sangue, conforme registro de Andreoni. Ante a impossibilidade de mais jesuítas se estabelecerem na região, foram criadas poucas aldeias – entre elas a de Natuba,
183 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Baroque science between the old and the New World: Father Kircher and his colleague Valentin Stansel (1621-1705). In: FINDLEN, Paula (org.). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. New York: Routledge, 2004, p. 311-328 . 184 Ibidem (em especial p. 324).
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para onde Bonucci foi enviado em 1699.185 Eram vários os pontos de contato com o círculo de Vieira, cujo falecimento possivelmente foi presenciado por Antonio Correia na cidade da Bahia. Adquiriu os votos plenos como jesuíta em 1701 – a chamada profissão de fé. Depois lecionou filosofia no Colégio de Olinda, ao que parece durante a Guerra dos Mascates (1710-1711). É o próprio Andreoni – ou Antonil – quem descreve os caminhos de São Paulo, Rio de Janeiro (caminhos velho e novo) e Bahia para as Minas, do Rio das Velhas ou de Cataguazes. Apesar da célebre metáfora sobre os filhos de Israel no deserto, e embora a obra deste jesuíta sublinhe os danos da cobiça do ouro ao Brasil, sendo também pontuada com citações de auctoritates, seu texto é essencialmente descritivo em termos espaciais e econômicos, muito diferente da linguagem conotativa e histórica do Discurso ou da Noticia. Sublinhe-se ainda a postura do autor subserviente ao rei não encontrada no AVC-17, possibilitando a impressão da obra dedicada à memória do padre José de Anchieta com todas as licenças necessárias, não obstante as conveniências de governo que bloquearam essa circulação.186 Conforme carta já mencionada de José Mascarenhas, o padre Antonio Correia – tido nesta missiva como austero, venerável e imortal – saiu do Rio de Janeiro em agosto de 1717 na comitiva de Pedro de Almeida em direção às Minas, entrando em Vila Rica em dezembro. Mas no diário desta jornada não se explicita o seu nome. Como vimos, desde 1719 os dois padres viviam numa casa perto do “palácio” em Vila do Carmo, sendo referidos na correspondência do governador com o primo João Mascarenhas e o bispo Francisco de São Jerónimo. Antonio Correia entendia de “coisas de medicina”. Talvez por esses predicados acompanhou o novo governador às Minas. Em 1721, no tempo da provável redação do Discurso e da Noticia, teria cerca de 65 anos. Dos três supostos colaboradores autorais, é o único não nomeado na terceira pessoa nos manuscritos anônimos em tela. Contraiu depois “uma diuturna moléstia de tristezas”, morrendo em agosto de 1727, ao que parece no Rio de Janeiro.187
185 LEITE, 2004 [1938], v. 2, t. V, p. 291 e 391; e PELOSO, op. cit., p. 132. 186 ANTONIL, Andre Joao. Cultura e opulencia do Brasil por suas drogas, e minas. Lisboa: Officina Real Deslandiana, 1711, p. 136-138, 159-168 e 179-181. A obra foi reeditada várias vezes, por exemplo em 1899 pelo APM, por iniciativa de Xavier da Veiga. 187 LEITE, 2004 [1938], v. 3, t. VI, livro III, cap. I; e TÁVORA; COBRA, op. cit., p. 197-221.
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Mesmo com dados esparsos, é procedente lidar com aspectos e ideias associados à cintilante personalidade pública de Vieira – especialmente na Clavis prophetarum e nos sermões então sendo impressos – em relação ao Discurso, entendendo o legado do “grande Vieyra” como exemplo de atuação, eloquência e de um perfil altamente político, antes de sua figura ser apropriada em outros círculos como a Academia Real da História.188 A leitura da edição em português dos três primeiros livros da Clavis, feita a partir de duas cópias manuscritas conservadas em bibliotecas romanas, não indica semelhanças pontuais com o AVC-17 – com as ressalvas da complexa reconstrução filológica dos textos originais em latim, da tradução consultada e da multiplicidade de cópias e versões existentes, fazendo improvável qualquer verificação exata.189 Mas algumas observações podem ser feitas com a ajuda de comentadores. O conceito providencialista do tempo e da história, onipresente n’A chave dos profetas e inserindo-a no gênero profético ou deliberativo, em princípio é quase ausente no Discurso historico, sendo talvez adaptado para aludir ao destino promissor do conde general nas páginas finais. O aspecto não impede que uma hermenêutica capaz de fundir Bíblia, metafísica escolástica, retórica, arte combinatória e um certo hermetismo esteja presente nos dois textos – n’A chave apropriando-se dos dois Testamentos e escritos dos primeiros padres como prenúncio do cumprimento da vontade divina, no Discurso valendo-se das mesmas fontes para avalizar ações passadas nas sublevações. Em ambos os casos, as autoridades são a chave de leitura.190 Nos dois textos há alegorias factuais – evidenciando profecias já realizadas ou incumpridas – e verbais, associando as palavras como metáfora. As de primeiro tipo, entendidas como alegoria dos teólogos ou analogia lógico-ontológica, seriam características d’A chave dos profetas. Mas também são utilizadas no Discurso, como vimos pela associação entre o conde e Moisés por meio da obra de frei Juan Már-
188 APM, AVC-17, f. 222r. A acepção do Vieira político, adaptando-se às circunstâncias de forma integrada a sua obra é o argumento de Ronaldo Vainfas em: VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. A primeira biografia de Vieira surge pelo padre André de Barros; cf. BARROS, André de. Vida do apostolico Antonio Vieyra da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746. 189 FRANCO, José Eduardo; CALAFATE, Pedro (orgs.). Obra completa padre António Vieira: A chave dos profetas. Tradução de António Guimarães Pinto. São Paulo: Loyola, 2014, t. III, v. 5. p. 155-397 e v. 6, p. 31-481. 190 Para essas ideias, ver HANSEN, João Adolfo. Prefácio. In: FRANCO, José Eduardo; CALAFATE, Pedro (orgs.). Obra completa padre António Vieira: A chave dos profetas. Tradução de António Guimarães Pinto. São Paulo: Loyola, 2014, t. III, v. 5, p. 11-56.
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quez, por um exercício de repetição que relaciona seres, homens, ações e eventos históricos de tempos diferentes. Não obstante, em ambos os discursos – e mais no Discurso historico – a alegoria dos poetas proporciona associações por simples semelhança, como recurso para atribuir versatilidade ao engenho. As duas operações são parecidas, facilmente tomando-se uma pela outra. Conforme João Adolfo Hansen, a adequação da verdade ou do verossímil ao intelecto seria própria dos escolásticos, capazes de pensar a significação e o sentido das palavras para especificar conceitos formulados em outras realidades. Assim, os agentes históricos são percebidos como semelhantes a seres que já foram, são e hão de ser.191 Pedro Calafate observa essa adaptação de ideias própria da cultura escolástica nos escritos de Vieira – em especial n’A chave dos profetas, pela defesa do poder temporal de Cristo em contraposição ao espiritual do papa. Ao longo do texto escatológico – que aliás admite a aliança com os espanhóis, diferente da História do futuro – Vieira estabelece um diálogo com Francisco Suárez e outros. Ao considerar a legitimidade da guerra justa como resistência ativa contra a tirania, percorre novos caminhos no âmbito do direito natural, sobre a origem divina do poder político entre os homens, atribuindo poder terreno a Cristo com base no direito comum a todos. Assim, Cristo podia fazer resistência ativa e guerra justa contra a tirania de alguém, como o Demônio. O tema da resistência ao tirano era recorrente nos escritos escolásticos desde o século XIII, quando Tomás de Aquino aceitou cautelosamente o apoio de Cícero ao assassinato de César pelo crime de usurpação do poder – tese também sustentada na legitimação da independência de Portugal por Francisco Velasco de Gouveia em 1644.192 Presente na formação de Antônio Vieira, Antonio Correia e José Mascarenhas desde os tempos em que foram alunos nos colégios jesuíticos da Bahia ou do Rio de Janeiro, a escolástica permitia associar ideias de distintos filósofos, admitindo a existência de um patrimônio comum de verdades a serem depuradas num debate dinâmico – algo relacionado ao probabilismo, como veremos no Capítulo 5. Se a lei natural constituía a racionalidade humana, o homem pode distinguir
191 Ibidem, p. 5-25 e 26-48. Ver também HANSEN, 2006; e AUERBACH, 1997 [1994]. 192 Para essas ideias: CALAFATE, Pedro. Introdução. In: FRANCO, José Eduardo; CALAFATE, Pedro (orgs.). Obra completa padre António Vieira: A chave dos profetas. Tradução de António Guimarães Pinto. São Paulo: Loyola, 2014, v. 5, p. 57-94, 108-109. Ver também VALDEZ, op. cit., p. 223-229; TORGAL, 1981-1982, v. I, p. 121-252 e v. II, p. 24-32; e MONTEIRO, 2002, p. 84-91.
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o bem do mal por meio da experiência. Desse modo era possível não se submeter a interpretações mais correntes de textos doutos, para afirmar o ainda não dito – uma versão diferente sem contrariar de todo as autoridades.193 A contraposição de ideias também se faz presente no Discurso historico, bem como a subjetivação do direito natural em prol das ações do governador, ou a demonização das Minas, dos mineiros e dos cabeças da sublevação. Por esses artifícios, no AVC-17 os poderosos locais – com Manoel Nunes Viana à frente – são vistos como tiranos ou demônios, justificando-se a guerra justa contra eles. Mas enquanto n’A chave dos profetas ou na História do futuro Vieira explicita sua adesão à tese da soberania inicial do povo, o Discurso historico silencia sobre esse aspecto.194 Portanto, há discrepância de sentidos entre a interpretação presente n’A chave dos profetas, das escrituras do Velho e do Novo Testamentos para vislumbrar o reino de Cristo profetizado por Daniel a ser consumado na Terra, e a monografia histórica em tela, voltada quase totalmente para o passado. Não obstante, ambos os textos apresentam recursos das retóricas sacra e profana, bem como relações especiais entre palavra e imagem, conteúdo e forma, oferecendo assim chaves de leitura a seus respectivos objetos de dissertação. Silvano Peloso também faz a ponte entre o profetismo de Vieira e as heresias atribuídas ao padre Manoel Lopes de Carvalho e a Pedro de Rates Henequim – morto num auto de fé em Lisboa em 1744 – por meio dos estudos de Romeiro e Plínio Freire Gomes, valendo-se dos respectivos processos inquisitoriais.195 A singular cosmologia de Henequim (conforme Freire Gomes) e a tese vieiriana do Quinto Império associada a uma conspiração política (segundo Romeiro) relacionam-se à circulação de ideias proféticas entre os jesuítas à volta de Vieira, bem como à entrada desse profetismo nas Minas no século XVIII. Natural de Lisboa, Henequim estudou no tradicional colégio jesuítico de Santo Antão. No início do Setecentos chegou em Pernambuco e veio para as Minas em busca de prosperidade. Atuando como minerador, pertenceu ao círculo de Manoel Nunes Viana na Guerra dos Emboabas e presenciou a sublevação de Vila Rica. Foi para
193 CALAFATE, op. cit., p. 115-118, 130. 194 Ibidem, p. 98-102. 195 PELOSO, op. cit., p. 11, 102, 134-135. Para essas ideias, cf. ROMEIRO, 2001; e GOMES, 1997.
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Lisboa em 1722 – dois anos após o padre Manoel Lopes de Carvalho –, onde foi preso em 1741. Por sua vez Carvalho, formado no colégio jesuítico da Bahia na virada do século, viveu depois em Ouro Branco, provavelmente entre 1715 e 1719. Em 1726 o viajante suíço Charles de Merveilleux – o mesmo que percebeu o apreço às belas-letras e o interesse científico do 3º conde de Assumar – descreveu o auto de fé de Carvalho em Lisboa, e neste a atenção dispensada ao “judaizante” por d. João V, pois o padre baiano despertou interesse na corte lusa.196 Alguns aspectos da cosmologia de Henequim merecem ser destacados. Além de atribuir os registros da suposta passagem de são Tomé na América a Adão – em coerência com a ideia do Brasil como paraíso terreal – o herege cria na existência de demônios bons e maus, especulando sobre os corpos espirituais dos anjos ou espíritos, feitos de terra e com sexos como Adão e Eva. Conforme as perspectivas de Carlo Ginzburg (sobre a circularidade de culturas) e Michel Vovelle (acerca dos sistemas cognitivos e intermediários culturais), Freire Gomes explica a miscelânea que conjugava certo odor reformista (Henequim era filho de um cônsul holandês), elementos da cabala judaica e ideias indígenas, com um olhar retrospectivo sobre totalidades míticas já construídas. Estabelecia assim a continuidade entre os mundos físico e metafísico, por meio de alegorias que personificavam realidades abstratas.197 O “Moisés herético” teria dito aos inquisidores que nas Minas minerava e estudava as Escrituras, querendo tornar-se padre em Lisboa. Envolvido na suposta conspiração, foi preso e assumiu seu lado profeta, citando versículos em latim e reproduzindo conteúdos de seus preciosos manuscritos. Ao atribuir poderes mágicos à escrita, Henequim aproximava-se da cabala e indicava conhecer a vida e as ideias de Vieira – aspecto mais desenvolvido por Romeiro.198 Entretanto, o fascínio pelo mistério das letras, ao converter desígnios supremos, compreende também uma dinâmica lúdica em relação ao sagrado, na acepção de Johan Huizinga; ou permite pontes com a demonologia, pela manipulação de forças pouco conhecidas,
196 GOMES, 1997; ROMEIRO, 2001; e MERVEILLEUX, op. cit., p. 152, 154-159, 170, 178. 197 GOMES, 1997, p. 23-25 e 64-77; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [1976]; e VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. Tradução de Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Brasiliense, 1987 [1985]. 198 GOMES, 1997, p. 33-37, 45, 50-53, 61, 88 e 124; e ROMEIRO, 2001, p. 99-167.
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mas reais, na esteira de Stuart Clark. Por essa visão, o demônio seria o cientista natural por excelência.199 O Discurso historico, e político não é um texto escatológico, providencialista ou com predomínio da cultura judaica. A metáfora de um quinto império de pedra, em fácil analogia com o nome de Pedro de Almeida, não aparece no manuscrito. Mas o fenômeno profético se expressa em várias passagens, bem como alusões a gênios, demônios e anjos – bons e maus. O célebre trecho que associa Minas ao inferno, imitando as Metamorfoses de Ovídio, é precedido por uma nota de Tertuliano em sua advertência a Marcião, sendo as Minas habitadas por gente intratável, em contínuo movimento e sem costumes. Ainda nas primeiras páginas menciona-se o oráculo de Delfos visitado por Pausânias e Plínio o velho, boca da terra pela qual “fallava, & respondia Apollo”, inspirando vaticínios anunciados pelos rústicos. Conforme Cícero em Sobre a adivinhação, a “Sybilla Delphica” profetizava violência. No Discurso então se exclama: “porque me naō persuadirey eu tambem, que nas Minas sō naturaes os motins, e que o habito, q’ a terra de si lansa, e emitte por tantas catas, e socavoe’s, os estâ comunicādo, e refundindo nos ânimos de seus moradores?”200 A natureza peculiar das Minas é associada a profecias de conflitos passados. A situação mineira é explicada pela Antiguidade clássica, como no parágrafo sobre a confusão entre perguntas e respostas nos oráculos de Roma: hia hu’ poeta consultar com Apollo seus brandos pensamentos, e respondia-lhe Marte em tom de guerra: vinha o Soldado pedir favor a Marte, e fazia lhe versos Apollo: subia o Senador a tratar com Jupiter as materias do governo, e Cupido fallava-lhe de amores: entrava o pretendente a queixar-se da Dama a Cupido, e despedia-o politico Jupiter.201
Segundo o Discurso, os romanos variaram os lugares dos ídolos, pondo os deuses em altares que não lhes pertenciam. Mas se uma divindade podia responder absurdos, que respostas dariam “quem nada professa, nem de couza algua’ das que
199 Conforme os cursos de Mello e Souza na USP à época da escrita desta dissertação de mestrado. GOMES, 1997, p. 69, 87 e 185-186; HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1990 [1938]; e CLARK, Stuart. The scientific status of demonology. In: VICKERS, Brian (org.). Occult & scientific mentalities in the Renaissance. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 351-374. Mais recentemente, cf. CLARK, Stuart. Pensando com demônios: a idéia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Edusp, 2006 [1997], p. 205-403. 200 APM, AVC-17, f. 2r e 5r-5v. 201 Ibidem, f. 11v-12r. A nota referente a esta passagem ainda não foi localizada, referindo-se a “Francisc. de Spinoz. tract. de antiquit. et disposit. Roman. antiquit. 71. disposit. 71”.
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na republica trata tem a menor intelligencia?”202 Note-se o sofisma para descrever analogamente a falta de preparo dos amotinados nas Minas. Parágrafos adiante, a “Magestade de Deos”, ao punir os hebreus antigos com relâmpagos, trovões e mandamentos, seria melhor que “o fabulozo Orpheo”, ao poder ser brando ou imprimir a lei na resistência das pedras conforme a situação. Assim o “Monarca do Ceo” dava exemplo “aos Principes da terra”,203 na comparação entre os deuses histórico e fabuloso. Doze páginas depois, ao relatarem-se os planos da sublevação em Vila Rica para matar o ouvidor Martinho Vieira, expulsar o conde e demais ministros, proclamando “hua’ republica de vinte, e quatro, e seu Doge”, a multiplicação “deste mysterioso numero” é associada aos 24 cavaleiros apocalípticos e ao ovo de Oromasis – mitologia persa – que abrigava 24 deuses bons, por meio de Plutarco. Mas o “infernal genio” Animanto ali introduziu outros maus. Comenta-se então que nas Minas os 24 “Satrapas desta imaginada republica” eram rebeldes, diabólicos e infernais.204 Em seguida distingue-se a “fabula” da “verdade”; mas os números e textos foram utilizados como artifício. Em outro momento, o episódio do mau gênio, uma “figura negra” que apareceu a Marco Júnio Bruto na véspera da morte de Júlio César, pelo relato do historiador Lúcio Floro – baseado em Plutarco – é comparado ao aviso de João da Silva ao conde. O filho de Pascoal da Silva contou que numa noite foi abordado por um negro, dizendo que outros homens lhe queriam falar, convidando-lhe para entrar no motim, matar o ouvidor e expulsar o conde. O paralelo propicia um jogo de palavras entre “obscuro”, “negro” e “genio”, associando enfim Bruto ao traidor. No Discurso, o conde conclui que o aviso preventivo foi um estratagema de Pascoal e seu filho, “o mao genio de seu pay”.205 Adiante, deseja-se que Nicolas Caussin escrevesse no Brasil para retratar a insolência de Manoel Nunes Viana, como a escrita divina na parede mostrada ao rei babilônico Baltasar, com “fé, que hua’ mam invisivel estâ no Ceo fulminando 202 Ibidem, f. 12v. 203 Ibidem, f. 16v-17r. 204 Ibidem, f. 23v-24r. Pela coincidência do texto, a fonte consultada foi La corte santa, de Nicolas Caussin, que por sua vez cita Plutarco, Ísis e Osíris, referenciado em nota no Discurso. 205 Ibidem, f. 46v-47v.
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a sentença da sua ruina, a qual lhe considero proxima, e im’inente”.206 Transpõe-se aqui o sentido de uma profecia passada a algo não ocorrido, mas desejado – a desgraça do poderoso local. Páginas depois, menciona-se o profeta hebreu Habacuque por meio de são Jerônimo, para quem os lobos, com medo dos caçadores, ficam quietos de dia nas covas, mas saem à noite furiosos. Estácio, pelo poema épico Tebaida, compara os lobos a demônios; e segundo Hesíodo – por Clemente de Alexandria – os gênios eram anjos da guarda observando nossas ações. Já para Menandro os demônios seriam bons, mas nas Minas “entre todos estes màos genios, nam há hum só diabo bom, se’do que todos sam muy bons diabos”. Percebe-se a apropriação de nomes e ideias provenientes da literatura patrística na discussão sobre os seres intermédios.207 Muito adiante, os conspiradores que aconselhavam o conde a desertar são comparados à harpia Celeno, reveladora de profecias de infortúnios e desgraças a Eneias e aos troianos, conforme a Eneida de Virgílio. Portanto, o conde era como Eneias nas Minas – também profetizado por Poseidon na passagem de Troia a Roma, sendo capaz de interpretar presságios.208 Faz-se referência ainda ao oráculo na Frígia e ao episódio do rei Midas, mais uma vez conotando o ouro negativamente.209 E no fim do texto há a interpretação figural de Moisés e do conde à maneira de um sermão, mas pelo livro do agostiniano Juan Márquez, como vimos no Capítulo 3. Para o Discurso Moisés seria um deus, capaz de castigar a idolatria do povo em função do ouro. Portanto, o ocorrido com os hebreus e a ação de Moisés eram uma profecia do caso mineiro e da resolução do conde.210 Os assuntos mundanos sobre episódios da sublevação são associados a exemplos pagãos e bíblicos, com interpretações em maioria alegóricas, inspiradas sobretudo na literatura patrística – mesmo que mediada por livros modernos. São várias as autoridades desse âmbito mencionadas no Discurso: o cartaginês Ter-
206 Ibidem, f. 59r-59v. 207 Ibidem, f. 66r-67r. 208 CASALI, Sergio. The development of the Aeneas legend. In: FARRELL, Joseph; PUTNAM, Michael C. J. (orgs.). A companion to Vergil’s Aeneid and its tradition. Chichester: Wiley Blackwell, 2014 [2010], p. 37-43; e PANOUSSI, Vassiliki. Aeneas’ sacral authority. In: FARRELL, Joseph; PUTNAM, Michael C. J. (orgs.). A companion to Vergil’s Aeneid and its tradition. Chichester: Wiley Blackwell, 2014 [2010], p. 58-60. 209 APM, AVC-17, f. 108v e 144r-145r. A fonte por trás é Nicolas Caussin. 210 Ibidem, f. 235r-238r.
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tuliano (apologético do cristianismo em detrimento da filosofia pagã), Clemente de Alexandria (então santo em 1720) com suas tapeçarias de ideias, os exegetas Agostinho e Jerônimo, o bispo de Constantinopla João Crisóstomo (o “boca de ouro”), o papa Leão Magno (que demoveu Átila e Genserico de maiores estragos em Roma) e nomes menos representativos como o cristão fiel aos godos Cassiodoro, o hispânico Prudêncio (com a Psicomaquia ou “batalha das almas”), o bispo de Tessália Heliodoro, Agápito Diácono e os gauleses Sidônio Apolinário e Salviano de Marselha. Mas os hereges Marcião e Menandro também participam dessa história, a ser descortinada em linhas gerais. No império romano do século II d.C., sobretudo na Ásia Menor e no Egito vivia-se uma ascendência da literatura grega. Gêneros tradicionais como a poesia e a historiografia eram ofuscados pela nova produção oratória, que surgia descentralizada em várias cidades. A mensagem cristã adaptava-se nessas sociedades híbridas – com forte presença helenística, tradições judaicas, egípcias e persas. Em Roma, Síria, Cartago ou Atenas, os literatos Suetônio, Luciano de Samósata (presentes no Discurso), Apuleio e Filóstrato falavam grego. Uma produção literária bilíngue, com refinada retórica e ampla cultura geral, destinava-se a um público culto e urbano. Esses oradores mais concentrados no ambiente grego eram os sofistas ou neossofistas, distinguidos pelo virtuosismo da palavra e da forma. Sendo literatos, discutiam filosofia com uma apaixonada defesa da retórica, considerando essa arte – não raro polêmica – um eficaz meio de educação.211 Para o cartaginês Apuleio – apropriando-se de Platão – havia três espécies de deuses: o arquiteto do mundo divino; as estrelas e outros deuses habitantes do céu; e os chamados pelos antigos romanos de “intermédios”, inferiores aos deuses
211 A Segunda Sofística sucedia à primeira geração grega do século V a.C. Para Werner Jaeger a ação dos sofistas ligava-se à educação (paideia), voltada ao poder nas cidades, educando jovens nobres com palavras fundamentadas. Tende-se a ver a sofística do ponto de vista de Platão, com o conhecimento pautado na dúvida socrática; mas a sofística misturava-se à política e à ética, ultrapassando o aspecto formal; apropriava-se de poetas como Homero, da epopeia e da tragédia, sendo multifacetada e comunicativa; ao conservar a polis, seria a maior techne (palavra em grego com espectro mais extenso que arte, designando a prática de conhecimentos especializados). Traduzida para o latim, penetrou no pensamento ocidental como cultura espiritual, dissociada da religião. Alguns discípulos seguiam os mestres sofistas pelas cidades, hospedados por ricos e poderosos. Nos Diálogos, Platão e seu mestre enfrentam vários sofistas. Para Protágoras, Zeus outorgou aos mortais os dons da técnica, e do espírito da virtude política, a justiça, a prudência, a piedade etc. Por sua vez Górgias personifica a arte retórica, representando o aspecto cultural voltado para o poder. Para Sócrates a retórica é a capacidade da palavra sugerir aos ouvintes uma aparente certeza pela sedução, não sendo uma techne e sim uma capacidade de obter aplauso, emoções e prazer. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1936], p. 335-371, 621-636 e 649-660; BARILLI, Renato. Retórica. Tradução de Graça Marinho Dias. Lisboa: Presença, 1983 [1979], p. 13-19; e MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2013 [2004], p. 12 e 20-25.
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supremos, todavia maiores que a natureza dos homens. Essas ideias permaneceram na geração seguinte africana, como parte de um clima religioso. Os apologistas do século II e III – como Tertuliano – eram cristãos convertidos que frequentavam escolas pagãs, com ensino centrado nos clássicos. Citavam assim poetas gregos, dirigindo-se a um público pagão. Os filósofos pagãos também eram utilizados como apoio da nova religião e para condenar a antiga, ou para encontrar naquela literatura prenúncios do cristianismo. Portanto a apologética, considerada um gênero literário, era uma forma de oratória análoga à Segunda Sofística, embora destinada a promover o cristianismo.212 A maior parte das informações sobre Tertuliano – primeiro teólogo de língua latina – provém da enorme rede constituída por Jerônimo. Seus escritos foram especialmente difundidos nos séculos XVI e XVII. Os cinco livros de Contra Marcião (trabalho citado no Discurso antes do famoso trecho referido ao início do Capítulo 1) correspondem a 1/5 de sua obra completa preservada, transmitindo o pensamento do herege do século II. Por esses, Marcião seria um rico armador originário do Ponto Euxino, no mar Negro, que em Roma propagou ideias mal recebidas na comunidade cristã. Em 144 teria voltado ao Oriente para organizar igreja própria. Por meio de Tertuliano, sabe-se que o herege em suas Antíteses não identificava Cristo como o messias prenunciado pela escritura judaica, considerando-o ainda vindouro. Separava também o deus dos judeus, criador do mundo, e o pai de Cristo, tendo-os como inconciliáveis.213 Para Marcião o mundo criado era um lugar mau e estranho, uma prisão ou armadilha. Por ser obra do deus inferior, a realidade divina não estava presente nesse mundo totalmente. Os marcionitas eram próximos a correntes que desprezavam e
212 MORESCHINI, op. cit., p. 25-29 e 32-39; e CONSOLINO, Franca Ela. Apologética: Tertuliano e Minúcio Félix. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006 [1997], p. 1031-1038. 213 Ao final da vida Tertuliano aderiu ao montanismo, movimento ascético e carismático na Frígia que asseverava que o Espírito Santo encarnou na pessoa de Montano, assessorado por duas profetisas, que anunciavam a próxima descida da Jerusalém celeste em sua cidade natal. Não obstante, Tertuliano era caracterizado por seu rigorismo e conhecimento das escrituras e do latim, inovando seu vocabulário. Para essas informações, ver LETTIERI, Gaetano. Graça e livre arbítrio. In: BERARDINO, Angelo di; FEDALTO, Giorgio; SIMONETTI, Manlio (orgs.). Dicionário de literatura patrística. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave-Maria, 2010 [2007], p. 790-866; CASTAGNO, Adele Monaci. Heterodoxa e heresiológica, literatura. In: BERARDINO, Angelo di; FEDALTO, Giorgio; SIMONETTI, Manlio (orgs.). Dicionário de literatura patrística. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave-Maria, 2010 [2007], p. 918-942; SIMONETTI, Manlio. Marcião. In: BERARDINO, Angelo di; FEDALTO, Giorgio; SIMONETTI, Manlio (orgs.). Dicionário de literatura patrística. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave-Maria, 2010a [2007], p. 1182-1185; e LEAL, Jerónimo. Tertuliano. In: BERARDINO, Angelo di; FEDALTO, Giorgio; SIMONETTI, Manlio (orgs.). Dicionário de literatura patrística. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave-Maria, 2010 [2007], p. 1575-1583.
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hostilizavam o mundo naquele tempo. Conforme Claudio Moreschini, a doutrina platônica de que o mal era causado pela matéria sofreu na obra de Marcião uma mudança interpretativa. Nesse caso, a criação do mundo por uma matéria má demonstra a imperfeição e a baixeza do demiurgo que, como deus inferior, recorria a esse substrato.214 No Discurso, a referência a essa obra em nota para assemelhar o Ponto Euxino a Minas, sendo ambos os lugares habitados por gente intratável e inconstante, imediatamente antes da passagem que associa Minas ao inferno – argumento-chave neste códice – parece ser assim bem procedente. Com o deus do Antigo Testamento abaixo do revelado por Cristo, esse diteísmo relaciona-se à possibilidade admitida pelos pagãos de um deus superior, acima de outras divindades. Segundo Platão – especialmente no Timeu –, os demônios eram intermediários entre os deuses e homens. Para os neoplatônicos, no grau mais alto havia demônios inteligentes e abaixo estavam os deuses materiais, influenciando a vida no mundo. Na tradição platônica da época imperial havia demônios bons e maus, pois a própria alma – capaz de subir aos céus ou cair na materialidade e no mal – não era muito distinta de um demônio.215 Em Alexandria, Clemente ou Cirilo consideravam o cristianismo a verdadeira filosofia e falavam da influência dos demônios sobre os pagãos, deslumbrando-os com verdades parciais para infiltrar erros. Como base no Gênesis e no livro de Enoque, diziam que os anjos prevaricadores, conhecendo algumas profecias, geraram os deuses pagãos e o politeísmo, produzindo similitudes entre as religiões pagã, judia e cristã a fim de perder os homens. Por sua vez, para os judeus alexandrinos, os filósofos gregos, insuflados por esses anjos, plagiaram a Bíblia. Ateniense, após sua conversão Clemente levou para sua vida cristã a formação filosófica recebida na cidade natal, aproveitando os recursos culturais de Alexandria – ponto de encontro de religiões, mistérios, filosofias e especulações. Para ele a filosofia, como desígnio divino, pela interpretação das escrituras preparava os gregos a fim de receberem
214 MORESCHINI, op. cit., p. 65-66. Há pontes entre Marcião e o gnosticismo, pela valorização negativa da criação. CASTAGNO, op. cit., p. 920. 215 MORESCHINI, op. cit., p. 64, 653, 680, 689.
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a mensagem cristã como logos divino, a ser conhecido por poucos. O mestre dessa gnose – ou seja, da salvação pelo conhecimento – era Cristo.216 O hibridismo contribuía para desvalorizar a compreensão literal dos mitos, mas com novo interesse pelas formas de expressão religiosa, percebido no tratado Ísis e Osíris de Plutarco e em alguns livros do Stromata (tapete de várias cores) de Clemente – ambos citados no Discurso nas passagens destacadas. Assim era possível unir o interesse platônico pela filosofia à devoção dos iniciados nos mistérios, não obstante as diferenças entre gregos, judeus, egípcios e persas. Nesse comparatismo, Clemente descobria o significado dos mitos. Os exegetas tendiam a encontrar algo sugestivo numa palavra, número ou objeto. A raiz da técnica era judaica, mas havia movimentos análogos no pensamento grego, pois em Plutarco há subentendidos nos mitos, objetos e práticas simbólicas – o visível indicando realidades mais profundas. O recurso à linguagem e à simbologia iniciava o leitor de Alexandria – bem informado sobre mistérios e ritos – no cristianismo. Com esse objetivo, Clemente valia-se de uma concepção mística acentuada, antecipando o que seria levado ao extremo por Orígenes.217 Na passagem referida no Discurso sobre anjos e demônios menciona-se Menandro de Caporetto, conhecido por obras de são Justino e testemunhos indiretos. No século I d.C. Menandro seria discípulo de Simão Mago, citado nos atos apostólicos. Por essa escritura, após ser convertido e batizado, Simão voltou a prometer milagres. No século II, segundo Justino, o mago acreditava personificar o deus supremo, enquanto sua mulher Elena encarnava o pensamento, criando os anjos e arcanjos etc.218 Portanto, para Henequim, Antonio Correia ou José Mascarenhas, heresias imaginadas, sibilas, mistérios egípcios, persas e várias tradições compunham uma amálgama que servia de base a profecias e/ou manuscritos elaborados. O códice AVC-17 ainda é pródigo em mencionar oráculos, em maioria por relatos romanos, evidenciando o fenômeno profético – presente também na história do
216 FRAILE, Guilllermo; URDANOZ, Teofilo. Historia de la filosofia: el cristianismo y la filosofía patrística. Primera escolástica. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1975, v. II, p. 80-81; e MORESCHINI, op. cit., p. 70 e 108-113. Para o gnosticismo, cf. MORESCHINI, op. cit., p. 43-44, 49-50, 63, 121 e 130; e CASTAGNO, op. cit., p. 920-921. 217 MORESCHINI, op. cit., p. 115-117 e 172. 218 CASTAGNO, op. cit., p. 936-937; e FRAILE; URDANOZ, op. cit., p. 90-91.
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padre Belchior de Pontes publicada em 1752, pela qual este jesuíta profetizou a sublevação de Vila Rica.219 Em suma, a leitura de textos proféticos ou históricos atualizava e adaptava os significados matriciais a situações novas, pela via literal ou alegórica.220 Desde o século XIII os Padres são reconhecidos como autoridade máxima no comentário das escrituras, inclusive por Tomás de Aquino. No início da Época Moderna, enquanto as universidades permaneciam alinhadas à abordagem por sentenças fragmentadas, os círculos humanísticos preferiam os textos patrísticos completos, que começavam a ser traduzidos do grego para o latim. Grosso modo, essa literatura de inspiração platônica fornecia aos humanistas um ponto de apoio em relação à escolástica, mais aristotélica. No primeiro quartel do Quinhentos, editores de textos patrísticos atuaram fora dos círculos universitários. Erasmo produziu edições de Jerônimo, João Crisóstomo, Agostinho, Orígenes e outros com vários interesses – inclusive pela Antiguidade pagã. No decorrer do século houve edições patrísticas nos círculos universitários católicos e protestantes, tentando melhorar as precedentes. Ao mesmo tempo, a Igreja após o concílio de Trento fornecia manuscritos e incentivava as citações bíblicas dos Padres em vernáculo.221 Com base nessa herança humanística comum a católicos e protestantes, destaca-se o papel de jesuítas e beneditinos na difusão da literatura patrística. Os jesuítas reuniam expressivos “patrólogos”, pois a espiritualidade dos padres gregos – em especial – afinava-se com a de Inácio de Loyola, com ênfase nos escritos ascéticos dos padres do deserto. Nesse tempo também foram publicados guias para edições da literatura patrística.222 Como vimos, Caussin, Vieira, Carvalho, Henequim, Correia e Mascarenhas estudaram em colégios jesuíticos – os dois últimos
219 LIMA, Luís Filipe Silvério; MEGIANI, Ana Paula Torres (orgs.). Introduction. In: Visions, prophecies and divinations: Early Modern messianism and millenarism in Iberian America, Spain and Portugal. Leiden; Boston: Brill, 2016, p. 16; e FONSECA, 1752, p. 242-248 . 220 SIMONETTI, Manlio. Exegética. In: BERARDINO, Angelo di; FEDALTO, Giorgio; SIMONETTI, Manlio (orgs.). Dicionário de literatura patrística. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave-Maria, 2010b [2007], p. 711-712. 221 BACKUS, Irena. Obras dos padres e transmissão. In: BERARDINO, Angelo di; FEDALTO, Giorgio; SIMONETTI, Manlio (orgs.). Dicionário de literatura patrística. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave-Maria, 2010 [2007], p. 1271-1279. 222 Ibidem, p. 1279-1282; e FEBVRE; MARTIN, op. cit., p. 232, 284, 286.
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no Rio de Janeiro, sendo depois mestres de filosofia em Olinda ou São Paulo. Será preciso assim contemplar minimamente seu programa de estudos.223
Biblioteca desaparecida A partir de 1599, pela Ratio studiorum – o programa estabelecido pela Companhia de Jesus, esboçado desde 1581 para o estudo e o ensino em seus colégios, pautado no modelo romano – os jesuítas eram treinados em argumentos e exemplos pelo uso da palavra.224 Em suma, nos colégios da ordem – unidades complexas e multifuncionais onde atuavam os padres – havia estudos inferiores de retórica e humanidades (de gramática latina e eventualmente grego), acrescidos dos cursos superiores de filosofia e teologia nos colégios médios e grandes, respectivamente. Os cursos destinavam-se a clérigos (futuros missionários ou mestres) e leigos interessados. No Brasil, o primeiro curso de filosofia ou artes – arte liberal, superior à mecânica – surgiu no Colégio da Bahia em 1572, obtendo-se o de teologia no fim do século XVII. O Colégio do Rio de Janeiro passou a ter seu curso de filosofia em 1663. Em Pernambuco foram concedidos graus em artes a partir de 1674. Em São Paulo, somente em 1732 houve curso regular de artes, mas já havia professores de filosofia antes, como José Mascarenhas. Especialmente os cursos de filosofia eram reconhecidos pela monarquia portuguesa como parte da formação universitária, que podia completar-se em Évora ou Coimbra, por exemplo. Distinguia-se assim o ensino elementar do superior, com base no estudo da cultura clássica. Os estudos teológicos privilegiavam Tomás de Aquino, além das atas do concílio de Trento, a Bíblia, os clássicos e os “Santos Padres” – a quem
223 Freire Gomes percebe a importância desses estudos no Colégio de Santo Antão em Lisboa na formação de Henequim. GOMES, 1997, p. 42. Mais tarde, Cañizares-Esguerra destaca a sensibilidade peculiar dos autores clérigos, com estranhas “paisagens mentais” ainda não totalmente exploradas e perscruta o ambiente hispano-americano na segunda metade do século XVIII, com símbolos neoplatônicos associados aos mesoamericanos a fim de entender a natureza. CAÑIZARES-ESGUERRA, op. cit., p. 259, 321-409. 224 O nome completo seria Ratio atque institutio studiorum Societatis Iesu, estabelecida no generalato de Claudio Acquaviva (1581-1615). Nesse tempo também se fixaram concepções importantes sobre o pensamento filosófico da ordem, com as obras de Francisco Suárez, Roberto Bellarmino e Luis de Molina. Para as seguintes informações, ver FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952, p. 119-230; NEVES, Guilherme P. C. Pereira das. O seminário de Olinda: cultura e política nos tempos modernos. 1984. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1984, v. 1, p. 136-311; NEVES, Guilherme P. C. Pereira das. A modernidade nas aulas dos jesuítas. Nossa História, Rio de Janeiro, n. 10, p. 81-83, 2004; LEITE, Bruno Martins Boto. Fábrica de intelectuais: o ensino de Artes nos colégios jesuíticos do Brasil, 1572-1759. História Unisinos, São Leopoldo, v. 24, n. 1, p. 21-33, jan./abr. 2020.
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se procurava seguir na interpretação literal ou alegórica. Os futuros missionários e professores exercitavam-se no uso da razão prática – moral – em estudos de casos de “consciência” nos colégios da Companhia, durante dois anos no curso de teologia, que durava quatro anos. Já as aulas filosóficas pautavam-se sobretudo em Aristóteles. Os professores de filosofia – cujo curso durava três anos – deviam também concluir os cursos de retórica e humanidades e de teologia. O curso de retórica e humanidades baseava-se em Cícero, explicando-se os autores antigos num alternado uso do latim e da língua vulgar para interpretar poetas e historiadores. As práticas de retórica visavam a eloquência na oratória e na poética, segundo regras e estilos descritos por Aristóteles, Cícero e Quintiliano. O professor de humanidades valia-se da prosa de Cícero, César, Salústio, Tito Lívio e Quinto Cúrcio, e da poesia de Virgílio e Horácio, sendo os versos de Ovídio expurgados de qualquer inconveniência. Na gramática, lidava-se com cartas ou elegias de Cícero, Ovídio, Virgílio, Tibulo e outros, e entre os gregos João Crisóstomo, Esopo, Plutarco e Focílides. Nos exercícios, primeiro vertia-se um ditado em vernáculo para o latim a fim de imitar o autor e observar sua sintaxe, depois traduzia-se a lição para a língua pátria, retrovertendo-a então para o latim, por fim esclarecendo as metáforas. Para ornar passagens de forma erudita, frases elegantes eram recolhidas na história ou na mitologia, sendo essa memória exercitada com declamações, traduções do clássico em vernáculo e vice-versa, disputas individuais e em grupo – incluindo representações teatrais. Eram substituídas assim as referências culturais dos alunos, em prol da Antiguidade clássica e de uma herança humanística adaptada aos propósitos educacionais e de estudo da Companhia.225 As semelhanças com práticas, autores e obras incidentes no Discurso são claras – inclusive pelos versos ali existentes elaborados no códice, sobre episódios da própria sublevação. Assim forjava-se a vocação jesuítica, por
225 O conceito de humanismo é complexo, ante o termo surgido no século XIX. Trabalho aqui com a acepção de um espírito humanista abrangente à Época Moderna e em diálogo com as questões advindas das Reformas protestante e católica, presente na obra de Delio Cantimori, cf. CANTIMORI, Delio. Los historiadores y la historia. Traducción de Antonio-Prometeo Moya. Barcelona: Península, 1985 [1971], p. 343-363; e CANTIMORI, Delio. Humanismo y religiones en el Renacimiento. Traducción de Antonio-Prometeo Moya. Barcelona: Península, 1984 [1975].
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obediência, dedicação aos estudos e uma verve eloquente, elementos capazes de posicionar seus membros em face do mundo.226 Cada província contava com expoentes em literatura e eloquência, e as bibliotecas dispunham de uma renda anual vinda dos bens do colégio ou de outra fonte. Livreiros eram contatados para que não faltassem livros. A livraria do Colégio da Bahia – onde esteve Antonio Correia – era em princípio a mais importante do Brasil, iniciada com livros trazidos por Manuel da Nóbrega. Desfalcada na ocupação da Bahia pelos neerlandeses em 1624, foi depois refeita, possuindo em 1694 por volta de três mil livros dos mais variados gêneros. No tempo da morte de Vieira o bibliotecário – também encadernador e tipógrafo – era Antonio da Costa, natural de Lyon, significativo centro livreiro. Em São Paulo – onde José Mascarenhas lecionou – entre os livros de humanidades circulava o de Antonio Maria Bonucci, ajudante de Vieira nos últimos anos, escrito em português na Bahia, impresso em Lisboa em 1706.227 Os dados esparsos justificam-se pela extinção dos colégios jesuíticos na monarquia portuguesa e suas conquistas por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo em 1759. Ante a ausência de catálogos das livrarias, algumas informações são obtidas por outras fontes, como autos de sequestro de bens no contexto da expulsão da Companhia, a exemplo do inventário realizado em 1775 no governo do vice-rei Luís de Almeida, 2o marquês de Lavradio, no Rio de Janeiro. Em julho daquele ano o desembargador Manuel de Albuquerque e Melo, um escrivão e dois livreiros da cidade – Pedro da Silva Torres e Manuel Francisco Gomes – reuniram-se no antigo colégio, no morro do Castelo, para avaliar os livros existentes. O vice-rei determinou que se fizessem três grupos de livros: os de disciplina eclesiástica seriam entregues ao bispo; os que fossem proibidos seriam enviados para Lisboa; e o resto seria distribuído entre alguns ministros e letrados.228
226 PROSPERI, Adriano. La vocazione: storie di gesuiti tra Cinquecento e Seicento. Torino: Einaudi, 2016, p. 81-97 e 159-219. Para o enquadramento da Companhia no império ultramarino português, cf. ALDEN, Dauril. The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its empire, and beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996. 227 LEITE, 2004 [1938], v. 2, t. V, livro I, cap. IV, p. 216 e v. 3, t. VI, livro IV, cap. IX, p. 557. 228 AUTO do inventario e avaliação dos livros achados no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro e sequestrados em 1775. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 301, p. 212-259, 1973. O auto manuscrito encontra-se no IHGB (Ms. L 58) e foi transcrito para impressão pelo jesuíta José da Frota Gentis. Algumas informações para o artigo da revista foram obtidas por Serafim Leite, cf. LEITE, 2004 [1938], v. 3, t. VI.
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Restavam então 4.700 volumes dos 6 mil outrora pertencentes à livraria dos jesuítas no Colégio do Rio de Janeiro, onde se formaram Correia e Mascarenhas – que aqui lecionou por vários anos. Muitos livros já estavam comidos por insetos. Pelo que se depreende da tentativa de decifração dos títulos em vários idiomas à época, e priorizando as obras e autores relacionados ao Discurso historico, e político, havia volumes de: Aristóteles, Cícero, Horácio, Júlio César, Júnio Moderato Columela, Lúcio Floro, Marcial (Epigramas), Ovídio (Metamorfoses), Platão, Plínio o velho (História natural), Quintiliano (não citado no Discurso), Salústio, Sêneca, Sílio Itálico, Suetônio comentado, Tácito, Terêncio, Tito Lívio, Valério Máximo, Virgílio e Virgílio comentado por Minélio, Agostinho, Cirilo de Alexandria, Clemente de Alexandria (Stromata), Jerônimo, João Crisóstomo, Orígenes (não citado no Discurso), Tertuliano, Aloysio Riccio, ditos de Gunther de Paris, Godofredo de Viterbo, Gregório IX, Tomás de Aquino (Suma teológica), Antônio Vieira (Sermões), Athanasius Kircher (não citado no Discurso), Benedictus Pereyra (não citado no Discurso), Sebastião Monteiro da Vide (Constituições do arcebispado da Bahia, obra não citada no Discurso), Enrico Caterino Davila (Historia de las guerras civiles de Francia), Felix Potestas, Filippo Picinelli (Mondo simbolico, não citado no Discurso), Francisco de Mendonça (Viridarium), Francisco de Quevedo, Juan Baptista Valenzuela Velázquez (Opuscula theologico-juridico-politica), Gaetano Felice Verani (não citado no Discurso), Giovanni Birago, 3o conde da Ericeira (História de Portugal restaurado), Luis de Molina (não citado no Discurso), Luís de Camões (Rimas e Os lusíadas), Manuel Barbosa (Remissiones), Manoel da Fonseca (Vida do venerável padre Belchior de Pontes, não citada no Discurso), Marco Antonio Sabelli, Martín Del Rio (Disquisitionum magicarum, não citado no Discurso), Miguel de Cervantes, Nicolas Caussin (La corte santa e Eloquentiae sacrae et humanae paralela), Philippe de Commynes (Memórias), Ordenações filipinas, Rafael Bluteau (não citado no Discurso), Saavedra Fajardo (Empresas), Solórzano Pereira (Indiarum iure), Baltasar de Victoria (Teatro de los dioses de la gentilidad, não citado no Discurso) e Virgilio Malvezzi (David perseguido) – além de livros de história da Espanha, um livro
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sobre Carlos V, um sobre a vida de Francisco de São Jerónimo, ditos de filosofia em seis tomos e enigmas numéricos.229 O empreendimento do marquês de Lavradio se relaciona ao aviso do 1o marquês de Pombal à Real Mesa Censória em maio de 1774, para os prelados de ordens regulares do reino e das conquistas entregarem “na secretaria desta Real Meza Censoria todos os Livros, que contra as Prohibiçoens da mesma Meza se conserva[sse]m nas Bibliotecas dos Conventos das suas respectivas Ordens, e extrahir Certidoens das Referidas entregues”.230 Em estudo de conjunto sobre a circulação de livros impressos e a leitura na América portuguesa, Luiz Carlos Villalta concentra sua atenção nos inventários de bibliotecas particulares e na censura existente de 1750 a 1808, percebendo, sobretudo no período do consulado pombalino, a reação ao milenarismo, corporativismo e probabilismo jesuíticos231 – veremos no último capítulo como alguns desses aspectos se expressam no Discurso. Por este levantamento com uma seleta dos livros restantes do Colégio do Rio de Janeiro, vislumbra-se o vasto mundo cultural que teria possibilitado – mais de meio século atrás – a elaboração do manuscrito em tela, multifacetado e com muitas obras e autores acima descritos incidentes em seu texto, mesmo considerando o acervo já desfalcado.232 Essas obras foram presentes nas formações de Antonio Correia e José Mascarenhas, ultrapassando bastante o leque de autoridades prescritas pela Ratio. Como vimos pelos exames material e visual, e também por referências textuais, o códice foi redigido e encadernado provavelmente em Minas no primeiro
229 AUTO do inventario e avaliação dos livros achados no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro e sequestrados em 1775. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 301, p. 212-259, 1973. Os exemplares bíblicos não foram aqui registrados; reproduzi alguns títulos não citados no Discurso cuja consulta parece provável ou sendo relacionados ao contexto, pelo esclarecido no decorrer do livro; especifiquei os títulos somente quando havia indicação; vários volumes e obras encontram-se repetidos no inventário; esta publicação foi feita a partir de documento compilado por Serafim Leite; parte do acervo foi doada ao bispado do Rio de Janeiro em 1775 e encontra-se hoje na biblioteca do Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido, Rio de Janeiro; os livros existentes na fazenda de Santa Cruz também foram compulsados em inventários de 1759 e 1768. Ver HISTORIA dos collegios do Brasil: manuscripto da Bibliotheca Nacional de Roma (copia). Annaes da Bibliotheca Nacional, Rio de Janeiro, v. XIX, p. 76-144, 1897; LEITE, Bruno Martins Boto. A biblioteca do antigo colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro: inventário das obras que restaram. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 130, p. 255-289, 2014 [2010]; e RIBEIRO, Marília de Azambuja; SANTOS, Luísa Ximenes. A livraria da fazenda de Santa Cruz. In: AMANTINO, Marcia; ENGEMANN, Carlos (orgs.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da coroa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013, p. 145-179. 230 ANTT, Real Mesa Censória, Decretos e avisos recebidos pela mesa, caixa 188 apud VILLALTA, 2015, p. 262. 231 Ibidem; e VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS, Fernando A. (dir.); SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 1, p. 360-383. 232 Estamos assim ante um acervo conforme o livro inspirador de Luciano Canfora, cf. CANFORA, Luciano. A biblioteca desaparecida: histórias da biblioteca de Alexandria. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1986].
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semestre de 1721. Contudo, é possível que as 490 notas – copiadas com exatidão e poucos equívocos de referência – tenham sido escritas nas margens devidamente preparadas para essas no Colégio do Rio de Janeiro, se Antonio Correia retornou a esta cidade com Pedro de Almeida, na viagem de volta deste nobre a Lisboa, enquanto José Mascarenhas foi para Santos ainda neste ano. Lembremos que as notas apresentam a mesma caligrafia do texto do Discurso, além de correções feitas com raspagem da tinta ou adição de uma massa com cera e pigmento branco de chumbo, e que a caligrafia existente no comentário de José Mascarenhas à inscrição enigmática – hoje em São Tomé das Letras – é distinta da apresentada pelo Discurso e pela Noticia. Esta é apenas uma possibilidade, coerente com a existência de uma grande biblioteca capaz de fornecer de modo amplo e fidedigno o acesso à bibliografia citada. É impossível saber quantos livros foram consultados diretamente e/ou por terceiros na produção do Discurso. Mas observo que grande parte das referências foi feita mediante consulta de impressos e não por anotações manuscritas – razoável supor, portanto, que os autores tivessem disponíveis edições de autoridades, compilações de máximas e aforismos, e notas particulares.233 Grosso modo, essa bibliografia priorizou os exemplos clássicos – em especial romanos – comparados a episódios mineiros por volta de 1720. Mas os paralelos entre as várias histórias foram produzidos sobretudo pela exegética importada da literatura patrística, com justificativas adaptadas de historiadores e magistrados de vários tempos, como veremos. Camadas de linguagens provenientes de âmbitos distintos, apropriadas e entrecruzadas de modo peculiar: um discurso a princípio aristotélico, mas com vários traços neoplatônicos; o relato político associado a elementos místicos; argumentos jurídicos mesclados à retórica, valendo-se de sofismas; o tom épico da narrativa para descrever um castigo atroz e fora da lei; por fim, em meio a poesia e prosa, o herói construído de modo distinto de sua monarquia.
233 Por exemplo pelo jesuíta Francisco Garau, do Colégio de Barcelona, em: GARAU, Francisco. El sabio instrvido de la natvraleza, en qvarenta maximas politicas, y morales, ilvstradas con todo genero de ervdicion sacra, y humana. Barcelona: Rafael Figuerò, 1702 [1675], no qual há várias remissões presentes no códice. Mais uma vez, a trajetória pregressa de Pedro de Almeida se encontra com a cultura jesuítica.
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Para além das formas textuais e preceptivas, as belas-letras propiciavam recepções singulares, ressignificando leituras e escritas.234 Por uma arqueologia de contextos linguísticos empregada para perceber como o Discurso historico, e político foi realizado, camadas heterogêneas são descobertas no interior de um mesmo texto. Alguns idiomas provêm de sociedades e momentos históricos não mais vigentes em 1720 – como hoje não mais existe o morro do Castelo no centro do Rio de Janeiro, onde ficava o importante colégio, demolido de 1920 a 1922. Os artífices do Discurso foram filósofos e retóricos competentes ao mesclar e entrelaçar idiomas num único e complexo discurso, tornando-o instigante e capaz de ultrapassar o seu próprio tempo. Pode-se indagar se essa série de enunciados seria predominantemente unitária ou plural.235 As diferenças entre o Discurso e a Noticia podem ser exploradas por esse prisma. * Após lidar com notícias manuscritas, correspondência, instruções de governo, trabalhos acadêmicos e textos proféticos, espera-se ter avançado na interpretação do Discurso historico, e político pelas comparações realizadas. Mas alguns conteúdos e formas presentes no códice merecem ser especificados de modo a entendê-lo como metáfora, um acontecimento significante criado pela linguagem. Retomando Paul Ricoeur, em algum momento é necessário suspender os referenciais diretos para conferir inteligibilidade ao processo de análise, no entrecruzamento entre história e ficção, sem ter a história como ramo da literatura. Ao deslocar a teoria metafórica da semântica da palavra para a frasal, compreende-se melhor o espectro da enunciação de um discurso – ou do Discurso – como uma “torção metafórica” que tenta englobar o conjunto do texto. A polissemia das palavras cede assim o passo a uma
234 Pocock opera com uma história dos discursos políticos a fim de compreender as linguagens e os atores históricos reagindo uns aos outros, em diversos contextos. Ao mesmo tempo (com base em Quentin Skinner), perscrutar a “autoria” faz-se relevante. Apropriando-se do conceito de langue para definir o contexto linguístico e de parole para referir o ato de fala ou discurso, Pocock aborda os vários âmbitos mediante essas interações. O foco se desloca da intenção para a efetuação, integrando langue e parole. As linguagens se transformam, estimulando leituras por vezes anacrônicas, provocadas pelos textos. Em sua reação a uma história tradicional do pensamento político, parece-me excessiva a ênfase na publicação impressa para definir o que um autor “estava fazendo” com seu texto, desconsiderando o propósito de um manuscrito com circulação restrita. POCOCK, 2003, p. 24-30 e 42-43. 235 Ibidem, p. 67-70, 74-75.
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maior contextualização, reduzindo o leque de leituras possíveis.236 Esse movimento implica também considerar códigos sociais, políticos e culturais vigentes, que condicionam a produção, a legitimidade e a circulação daquele artefato textual – vimos como a materialidade do códice integra também essa história. Mas também as emoções envolvidas. Desse modo há de se compreender os desejos intrínsecos, a luta e o poder do Discurso historico, e político, sobretudo em relação a seu protagonista, possível colaborador e primeiro “dono”.237 É o que veremos no próximo capítulo.
236 RICOEUR, 2013 [1975], p. 31 e 69-77; e RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2015 [1975], p. 155, 347, 376-377, 388. 237 FOUCAULT, 2014 [1971].
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Capítulo 5
A arte oculta
Os estudos de Hayden White, ao conceberem a narrativa de imaginação histórica impregnada de conteúdo linguístico, acabam por estender essa perspectiva do Oitocentos aos trabalhos históricos em geral – razão de sua enorme controvérsia, como se sabe. Nesse entendimento, os historiadores contemporâneos realizam atos essencialmente poéticos, conforme alguns tropos de linguagem, caracterizando, em síntese, o campo histórico no qual se escreve. Assim, a estrutura verbal de um discurso narrativo em prosa representaria os processos passados. Ironias, metonímias e sinédoques seriam no fundo tipos de metáfora – uma figura essencialmente representacional – diferentes entre si pelas reduções ou integrações feitas no âmbito de suas significações.1 Sem enveredar pelas mudanças historiográficas do século XVIII ou por casos posteriores abordados pelo historiador, cabe explorar essas ideias. Segundo White, o próprio discurso estabelece a adequação da linguagem utilizada na análise
1 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Laurênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992 [1973], p. 11-18, 48.
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dos objetos, de modo mais “trópico” que lógico.2 Decorre daí a procedência de Mimesis, de Erich Auerbach, ao revelar diferentes formas de se apresentar o real. A palavra discurso, derivada do latim discurrere, lembra movimento, deslocamento, que podem ser percebidos ao se captarem vontades ou emoções. O discurso seria assim um empreendimento mediador, vinculando-se ao tema pelo qual foi elaborado e também a sua própria interpretação. A função mediadora permite pensar a narrativa histórica como uma grande metáfora, com os acontecimentos expostos num perfil conhecido na cultura literária.3 A indistinção entre narrativas históricas e ficcionais recebeu duras críticas. Por exemplo de Carlo Ginzburg, ao enfatizar as relações entre retórica, prova e história – pensando o historiador como arqueólogo.4 Ou então pelo incentivo a se lerem os textos entranhados de história, lembrando em outra chave o mesmo livro de Auerbach. Ao se escavarem os escritos contra as intenções de seus produtores, podem emergir vozes incontroladas e fragmentos de verdade. Conforme Aristóteles na Poética, os historiadores falam do que foi, enquanto os poetas do que poderia ter sido. Entretanto, historiadores e poetas a seus modos procuram destrinchar o verdadeiro, o falso e o fictício. Ginzburg destaca o termo aristotélico enargeia, para designar a vividez e a clareza do conhecimento histórico, sendo ao mesmo tempo um modelo estilístico e cognitivo, situado entre a retórica e a historiografia.
2 A palavra trópico, de tropo, em grego significaria mudança de direção, desvio, ou modo, maneira. Em latim clássico significando “metáfora” ou “figura de linguagem”, ingressa nas línguas modernas por meio de tropus. Em inglês esses sentidos seriam compreendidos pelo termo style. Dito de outro modo, seria a sombra da qual todo discurso realista tenta fugir, sendo não apenas um desvio de sentido possível, mas também para outro sentido; um ideal do que seria correto, próprio e verdadeiro “em realidade”. Assim, constitui um movimento do modo como as coisas estão relacionadas para uma linguagem que considera as coisas expostas de outra forma. No discurso predomina o esforço para se adquirir este direito expressivo, sendo o tropo a sua alma, pelo qual alcança seu objetivo. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 2014 [1978], p. 13-15. 3 AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard Sperber e Suzi Frankl Sperber. São Paulo: Perspectiva, 1971 [1946]; e WHITE, 2014 [1978], p. 15-17 e 107-108. 4
GINZBURG, 2002 [2000], p. 60-61.
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Assim a verdade seria uma questão persuasiva, ligada marginalmente ao controle objetivo dos fatos.5 O capítulo procura ser atento a esses aspectos, no que respeita à pertinência do sistema de White para o manuscrito em tela – cujo discurso parece anterior às transformações da historiografia setecentista – e ao incentivo de Ginzburg sobre os fios e rastros do conhecimento histórico no texto estético. Como vimos, formas e conteúdos são indissociáveis na hermenêutica. Por conseguinte, após o desenvolvimento de alguns temas fundamentais, considera-se essa dupla face na busca de uma ou mais metáforas que sintetizem o Discurso historico, e político.6 Por trás de tudo, a relação entre história, política, filosofia, ficção, direito e retórica, tão complexa no AVC-17.
Histórias, e política Trata-se de dar atenção ao contexto linguístico e à força ilocucionária subjacentes para conhecer melhor o fito desta produção.7 A ars historica empregada no Discurso historico assemelha-se, por exemplo, ao estilo de Quinto Cúrcio Rufo, citado três vezes no texto e em notas no códice. O autor romano do século I d.C. adaptou fontes gregas para contar a vida de Alexandre o grande. Seu uso foi ex5 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [2006], p. 11-24, 170-171 e 210-230. Por sua vez Ricoeur verifica a presença da categoria do Análogo na Retórica de Aristóteles como “metáfora proporcional” e reconhece a contribuição dessas ideias para explorar a relação entre a narrativa histórica e o passado “real”, perpassada pela grade do Mesmo, do Outro e do Análogo. A análise tropológica explicita a pertinência do Análogo, mas ao isolá-lo dos outros “gêneros” (o Mesmo e o Outro) pode-se apagar a fronteira entre ficção e história – um “entrecruzamento” para Ricoeur, pois ambas se ancoram na narrativa e no tempo. White mostra o lado fictício da representação do mundo e não o que é realista na ficção. Ao enfatizar somente o procedimento retórico, pode ocultar a intencionalidade que atravessa a “trópica do discurso” na direção dos acontecimentos passados. Há uma certa coerção do passado sobre o discurso histórico, exigindo dele uma retificação. Nessa relação complexa, é preciso combater os preconceitos de que a linguagem do historiador seria transparente ao deixar falar os fatos, ou da literatura de imaginação não permitir apreender a realidade. RICOEUR, 2010 [1991], v. 3, p. 256-264, 310-328. 6 Conforme Eco, a interpretação metafórica trabalha sobre interpretantes, ou seja, funções sígnicas que descrevem o conteúdo de outras funções sígnicas. Mas a elaboração de uma metáfora dentro do texto ou como sua suma não é uma contrafação, tampouco impõe um pacto ficcional ou falso, podendo concernir ao campo da experiência e das emoções vividas. A interpretação metafórica seria como uma abdução, ao buscar apreender um contexto discursivo, fazendo indagar sobre a intertextualidade e a origem das metáforas precedentes. Assim ocorrem as metáforas de metáforas, interpretáveis à luz de um conhecimento intertextual, com diferentes sistemas de ideias – ou linguagens – interagindo. ECO, 2015 [1990], p. 116-117, 121 e 127-129. 7 Ao estudar circunstâncias específicas na produção de ideias políticas, com atenção ao contexto de ideias, ao exame intertextual e à dinâmica social envolvente, a perspectiva de Quentin Skinner é fundamental neste trabalho. Destaque-se sua postura aberta no debate e o aprimoramento obtido em outros textos (sobre motivos, intenções, interpretações e atos de fala) desde o célebre artigo de 1969, com insumos de Robin Collingwood, Ludwig Wittgenstein e sobretudo John Austin. SKINNER, 2002 [1999], v. 1, p. 57-127. Todavia, o caso apresentado pelo Discurso – um códice anônimo, sem colofão, com circulação restrita e dominado pela personalidade pública de Pedro de Almeida – escapa ao espectro já contemplado pelo historiador inglês.
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pressivo até o século XVIII, com versões ilustradas em vernáculo que atraíam o interesse de príncipes. Quinto Cúrcio não possuía noções de tempo e espaço, sendo mais retórico que historiador, desatento à credibilidade das histórias. A história era assim integrada a estratégias textuais, feita para instruir e deleitar ao narrar eventos passados de modo acurado e eloquente.8 Vindo de caminhos profundos, o gênero das artes historicae ganhou nitidez em meados do século XVI como um ramo da retórica capaz de oferecer atraente educação política e moral ao apropriar-se de episódios particulares. Após os apontamentos de Aristóteles sobre a poesia como sendo superior e mais abrangente, e a célebre máxima da “mestra da vida” propalada por Cícero, no Seiscentos autores de várias clivagens políticas e confessionais continuaram a ver a história como fonte de exemplos – cujos protocolos ensinavam a compor discursos com decoro para situações particulares, mesmo no campo político. Entre eles encontra-se Virgilio Malvezzi, citado cinco vezes no texto e oito nas notas no Discurso. Atuante na Espanha sob a égide de Felipe IV, o bolonhês escreveu biografias segundo esse modelo, atento ao gosto e à demanda dos leitores.9 Conforme Andrea Battistini, a obra de Malvezzi seria como um mar em movimento, com perigos de vento e naufrágio, conotando instabilidade e inquietude. Há nela também uma patologia médica, segundo a metáfora comum da historiografia antiga, existente por exemplo em Lúcio Aneu Floro, citado 18 vezes em nota e duas no texto central do Discurso. Em seu compêndio da história romana, o historiador latino do principado de Adriano comparava o corpo estatal ao humano, com doenças de difíceis diagnósticos e terapias. Já nos primeiros decênios do Seiscentos, a confiança na prudência política, ministrada por ideias em forma de aforismos trazidos da história antiga, fez manuais de prudência, epítomes, máximas morais e tratados proliferarem. Malvezzi adota essa proposta com uma
8 GRAFTON, Anthony. What was history: the art of history in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 4-11; NOVAK; NERI; PETERLINI, op. cit., p. 155-169; e CITRONI, Mario. Historiografia e erudição desde Tibério até Cláudio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006b [1997], p. 683-686. 9 GRAFTON, 2007, p. 21-37; BERTELLI, Sergio. Rebeldes, libertinos y ortodoxos en el Barroco. Traducción de Marco-Aurelio Galmarini. Barcelona: Península, 1984 [1973], p. 15-22, 20, 250. Para um enquadramento geral das interfaces entre poesia/história/novela mais focado no mundo germânico, KOSELLECK, Reinhart. historia/Historia. Traducción de Antonio Gómez Ramos. Madrid: Trotta, 2004 [1975], p. 27-46. Por sua vez Albrecht Altdorfer, no quadro Batalha de Alexandre, de 1528, inspirou-se na obra de Cúrcio Rufo. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006 [1979], p. 21-25.
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visão profunda e pessimista, pois a justiça seria deixada à sorte de atores trágicos no drama do poder. O príncipe malvezziano pauta-se mais no carisma que na tecnologia política, como um animal pleno de paixões. Uma poética do caos, na qual é difícil sugerir uma historia magistra vitae, segundo Battistini.10 Os retratos de personagens malvezzianas seriam protagonizados pela dissimulação, numa concepção teatral da história, com prosa austera, pausada e lacônica – diferente de Cícero e do Discurso. O bolonhês valer-se-ia dos casos narrados por Tácito e suas sentenças para desenvolver os retratos, de Justo Lipsio para escrever Il Romulo em 1629 com traços estoicos, e de Tito Lívio para os discursos diretos. Como vimos no Capítulo 3, Francisco de Quevedo traduziu suas obras, admiradas também por Nicolas Caussin, Diego Saavedra Fajardo e Baltasar Gracián.11 Nessas biografias, dados vindos de fontes clássicas e bíblicas compõem argumentos que evidenciam episódios e decisões. Desses atos, a prosa lacônica deduz ou discute lições morais e políticas, fazendo do marquês um oráculo de sua época. Há também em Malvezzi um forte classicismo, ao destacar por Il Romulo a história de Roma como modelo reflexivo. Ao tratar esses temas como em romance, adaptava modelos de prosa, renovando o biografismo histórico. Para Jorge García López, as ideias de Maquiavel incidem na obra de Malvezzi no caso da potência da fortuna, ou por trechos interpolados, mas não citados de livros do florentino. Portanto, o essencial de El Rómulo ou David perseguido – as traduções para o espanhol citadas no Discurso – não seriam os fatos conhecidos, mas o conteúdo político transmitido.12 Deve-se perceber como os escritos do “Marques Virgilio” figuram no Discurso historico, para além das possíveis apropriações de ideias e/ou semelhanças de estilo com outros autores, pois o bolonhês foi uma moda na corte de Felipe IV, onde foi chamado a servir na década de 1630. Como vimos no Capítulo 3, Malvezzi – cuja obra David perseguido também integrava o acervo do colégio jesuítico do Rio de
10 BATTISTINI, op. cit., p. 26 e 33-39; NOVAK; NERI; PETERLINI, op. cit., p. 227-235; e LABATE, Mario. Literatura e sociedade, de Adriano a Cómodo (117-192 d. C.). In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006c [1997], p. 970. 11 BATTISTINI, op. cit., p. 40-46, 69. 12 O nome de Quevedo ficou associado a Malvezzi e traduções não feitas por ele foram assim editadas. Pode ter sido esse o caso da edição consultada: MALVEZZI, Virgilio. Las obras del marques Virgilio Malvezzi: David perfeguido, Romulo, y Tarquino. Traducción de Francisco de Quevedo Villegas. Lisboa: Paulo Craesbeeck, 1648. Para essas informações, cf. GARCÍA LÓPEZ, op. cit.; MONTEIRO, 2015, p. 191; e MONTEIRO, Rodrigo Bentes; DANTAS, Vinícius. Maquiavelismos e governos na América portuguesa: dois estudos de ideias e práticas políticas. Tempo, Niterói, v. 20, n. 36, 2014, p. 2-3 e 16.
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Janeiro – é citado em espanhol como um oráculo, para iluminar sobretudo o topos da reputação, personificado na figura do príncipe/governador.13 O mundo era então um grande teatro, e a tradição oral e escrita romana, uma fábrica de lendas épicas e heroicas. O gênero possuía continuidades de forma e preocupação: protestantes, católicos, clérigos ou leigos explanavam como aprender lições do passado, aplicando-as ao presente. Os autores respondiam aos que tinham escrito antes e os argumentos pareciam jogos sofisticados – lembrando mais uma vez Johan Huizinga.14 As histórias divina, natural e humana atuavam em paralelo, fundindo o brilhante ao bizarro num continuum espaço-temporal. Como numa concha, a ars historica movia-se por estranhos espaços intelectuais, estimulando reflexões úteis a mestres, estadistas e cortesãos. A história era um assunto, não uma pesquisa.15 Com informações de viajantes, navegadores e missionários, abraçava-se o mundo conhecido e variado, pois as causas possuíam os mesmos efeitos. Os artistas da história contatavam escritores antigos e modernos com livros de notas ou pelas próprias edições. Por uns livros se acessavam outros, por conseguinte o conteúdo e o estilo dos antigos, reproduzindo similitudes, provérbios e aforismos. Isso incluía história, mas também outros assuntos. Preparava-se assim o texto como um corpo uniforme de links, adicionando-lhe sabor. A cornucópia de histórias servia às necessidades.16 Este seria o caso do Discurso, bem detalhado em suas remissões, como vimos no Capítulo 3. Embora Anthony Grafton mencione os incentivos de Quintiliano e Justo Lipsio à feitura de livros de notas, a exatidão verificada no códice pela cópia de grafemas vários, números e palavras nas notas sugere a consulta de uma bibliografia impressa. Essa poderia ter sido mais acessada no Colégio do Rio de Janeiro,
13 O tratado sobre a reputação de Giovanni Botero que figurou na edição de adjuntos a Da razão de Estado é a única parte desta obra citada no Discurso. Botero é referido duas vezes no texto central e quatro nas notas, sempre por: BOTERO, Giovanni. Aggiunte fatte da Giovanni Botero Benefe alla sua Ragion di Stato. Venezia: Nicolò Misserini, 1606, livros I e II. Os autores do Discurso parecem só ter consultado essa edição adicional. Relativiza-se assim o peso do autor e de sua obra no códice em tela, praticamente sem economia ou uma atenção abrangente à conservação do conjunto de conquistas portuguesas – exceção às Minas. Ou seja, o que se destaca de Botero no Discurso é a preocupação com a reputação do príncipe. TORGAL; RALHA, op. cit., p. LII; e SENELLART, Michel. Machiavélisme et raison d’Etat: XIIe-XVIIIe siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 1989, p. 56-83. 14 HUIZINGA, op. cit. 15 GRAFTON, 2007, p. 77-188; BERTELLI, op. cit., p. 23-25, 29. 16 Justo Lipsio propôs a feitura de quatro livros de notas, sobre memorabilia, ritualia, civilia e moralia. Mas nele a incoerência entre o filólogo e o retórico fazia-se evidente – o mesmo ocorria com vários em sua prática historiadora. GRAFTON, 2007, p. 200-229.
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complementando-se assim o manuscrito na passagem de Pedro de Almeida por esta cidade em 1721, em sua volta a Lisboa. Mas devido à lacuna de informações sobre essa segunda estada fluminense do 3º conde de Assumar e ao parco conhecimento da trajetória e dos escritos de Antonio Correia – que teria falecido no Rio em 1727 – a suposição permanece incomprovada. Ademais, o texto central é também rico em referências e citações. O avanço da história política diminuía o apelo dessa crônica tradicional, metamorfoseada em novas práticas narrativas, produzidas por clérigos radicais e jesuítas desde o século XVI, ou por testemunhos de aristocratas nas guerras religiosas na França – como Enrico Caterino Davila, mencionado apenas uma vez no texto central do Discurso historico, e político, mas cujo livro foi bastante utilizado para recuperar exemplos daquele conflito, no fim da segunda parte do códice.17 No término da Revolução Gloriosa na Inglaterra, as artes historicae estavam fora de moda, incapazes de transmitir a história coeva. Quando ali ocorreu a Batalha dos Livros, e a Querela dos Antigos e Modernos na França, os que valorizaram os autores antigos e os considerados modernos expressavam ambos, grosso modo, um espírito crítico mais aguçado para a história.18 Mas vários continuaram a escrever assim. Como vimos no capítulo anterior, o aspecto político não se apresenta do mesmo modo nos textos do Discurso e da Noticia. Para além da ausência de fábulas, poesias e histórias maravilhosas que entremeiam o conjunto do AVC-17, no AL-61 não há as passagens contundentes que compõem o códice do APM, frequentemente atribuídas ao pensamento do conde de Assumar. Por exemplo as seguintes, dirigidas em tom imperativo ao rei, citadas no Capítulo 3: Se sua Magestade quer, que as suas Minas nam andem sempre tao’ confuzas, tam perturbadas, faça que nellas se restituāo os Mineyros à seu lugar, mande que quantos se acham hoje introduzidos, ainda que bem á sua custa, nesta republica, vá cada hum tratar de seu officio.19
17 Ibidem, p. 235-252; BERTELLI, op. cit., p. 29, 145-150; e MONTEIRO, 2015, p. 195-196. 18 LEVINE, 1991; e FUMAROLI, 2001, p. 7-220. 19 APM, AVC-17, f. 12v.
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Acabem de entender os Princepes, que talves aumentam os dannos da republica com a sua piedade, e que em certas occazioins sam mais piedozos, quanto mais severos; poes a severidade que castiga a alguns hé piedade, que absolve a muitos, porque esses poucos, que o rigor, para exemplo colheo as māos, fazem que, para triunfo da benignidade se prostrem à seus pés todos os mais. Nem como poderâ segurar-se, e fazer confiança nos bons vassallos o Princepe, que perdoa àos màos, quando hé sem duvida; que perdoar aos màos hé botar a perder os bons; e juntamente mostra a experiencia, que nada humilha, e derruba tanto a insolencia dos Coraçoe’s rebeldes, como a formidavel vȯz, e horroroza vista de hum successo tragico.20 Pòde Sua Magestade nestes vassallos os atrevimentos, pòde as dezobediencias, pòde, e tire (pois que pòde) as rebeldias, e logo nao’ haverâ nestas Minas vassallo, que em seu felicissimo tempo se atreva a sahir hum só passo fora das suas leys, e fora das ordens dos seus governadores [...].21 [...] nam hà que estranhar, que ignorem os Mineyros, que há Rey, que domine este paiz, onde nunca foy visto o seu rayo. E que admiravelmente, posto que no rude estilo de seu tempo, dis Gotfrido Viterbiense, que com a espada na baynha nao’ he possivel sogeitar ao mundo, que sô se pode governar com a torrente do sāgue humano, concluindo que o Princepe, que quizer reynar estabeleça, authorize e faça que á custa do sange dos Vassallos se guardem as suas leys, e no mesmo lugar adverte ȧos Monarcas, que o estoque desembaynhado, que nos dias sole’nes costumam levar diante de si, nao’ vay debalde, he para que castiguem com promptidam os delictos, e logo mais abaxo da à razam, que há para o castigo, dize’do: porque senam punir as maldades, nao’ hé Princepe em realidade, hé hua’ representaçao’, e sōbra de Princepe. Poes hé certo q’ o decoro real nem se vincula ào sceptro, nem se anexa à coroa, avulta sim nos golpes do montante, no estrondo das artelharias, no tropel dos Cavallos, e na multidao’ dos infantes, porque só onde se lhe temem as forças hé despotica a Soberania, e sô entam obra livre, e respeitada, quando lhe assistem o braço alentado, e a mao’ armada.22
Os trechos acima são ousados demais para serem veiculados publicamente ou como peça de defesa político-jurídica no reino de Portugal, como já se supôs. Para além dos jogos de palavras em sua verve – veja-se por exemplo o trocadilho com os verbos podar e poder no terceiro trecho – e da violência exacerbada, eles soam como advertências a d. João V, diferindo do tom subserviente adotado por
20 Ibidem, f. 145r-145v. 21 Ibidem, f. 159v-160r. Os sublinhados são meus. 22 Ibidem, f. 161v-162v.
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Pedro de Almeida em sua correspondência com o rei, e mesmo de suas práticas na Academia Real da História. Na trajetória do 3o conde de Assumar e 1o marquês de Alorna, identifico veemência semelhante somente em 1756, no fim da vida, quando este frustrou suas expectativas ao não ser nomeado ministro ou conselheiro no novo reinado de José I, como vimos no Capítulo 2. Ademais, o fato de esses trechos não comporem o texto da Noticia – artefato mais manipulado ao longo do tempo – sugere que o ex-governador de capitania possuía noção de decoro sobre qual “discurso” contribuiria para a sua boa reputação política, ao circular em âmbitos seletos e doutos. Provavelmente ele levou os manuscritos de Minas a Portugal – não se sabe ainda se houve e/ou há mais cópias da Noticia. Todavia, o espírito desafiador existente no Discurso, ante a hipótese fundamentada neste trabalho de o códice ter sido produzido visando sobretudo o âmbito do próprio nobre, adquire maior procedência – em especial na casa de Assumar/ Alorna, afeita à guerra e às letras. Manuscritos elaborados e bonitos também são produzidos para serem secretos, diria Fernando Bouza – embora elucidando o contexto do Siglo de Oro espanhol.23 A propósito, a segunda parte do manuscrito inicia-se com a série de nove grandes parágrafos começados em forma de anáfora: “Era de extrema necessidade o Castigo”, “Era de extrema necessidade” e “Era finalmente de extrema necessidade o castigo”. Em suma, por esses trechos – de forma ainda desprendida das remissões à margem – era necessário o castigo, pois a rebelião continuou por 18 dias, ameaçando expulsar o governador, ministros e erigir uma república, após o conde acolher as propostas dos rebeldes e conceder dois perdões. Ademais, os moradores de Vila Rica, Vila do Carmo, Rio das Velhas e São João d’El-Rei podiam aderir ao motim e os casos passados em Pitangui e Serro do Frio seriam avisos da atitude a ser tomada, devendo o conde mostrar que não temia os amotinados – em meio a recorrentes metáforas médicas e aos trabalhos de Hércules. As razões se repetem com outras palavras nos parágrafos. Apesar de todos se declararem pelo rei, a obediência estava quase perdida no governo. Embora quisesse, o conde não podia ser mais brando e clemente, pois a inquietação aumentava. Ao derrotar o projeto
23 BOUZA, 2001.
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da república, ele deixava a obediência e as leis ao sucessor. Ainda com a prisão dos cabeças o motim não cessou, com João da Silva e negros armados no mato e Filipe dos Santos e outros sublevando em São Bartolomeu, Cachoeira, Itaubira e Congonhas, chamando também os de Rio das Velhas. Portanto, o conde foi severo para defender o crédito do rei “e seu Lugar tenente empenhado”. “Por todas estas razoe’s, e outras, que logo iremos notando” era necessário o castigo.24 A repressão, mediante as cenas de impacto da queima das casas no morro de Pascoal da Silva e da execução de Filipe dos Santos, lembra episódios evocados no próprio Discurso – desde a morte e a guerra contra os catilinários a muitos outros eventos descritos, especialmente na segunda parte. O tema da necessidade política é caro aos estudos sobre razão de Estado, em evidência na produção letrada europeia dos séculos XVI e XVII, em especial nas penínsulas itálica e ibérica.25 No Discurso vários autores/obras modernos citados podem ser vinculados a essa temática, desde o jesuíta Giovanni Botero a Justo Lipsio, Diego de Saavedra Fajardo e Sebastião César de Meneses, e de forma mais tangencial, Juan de Solórzano Pereira, Virgilio Malvezzi e Juan Márquez.26 Não tenho condições de analisar até onde iam as ideias republicanas dos sublevados – na carta de 21 de julho ao rei, o aspecto não é explicitado, somente por analogia à conjuração de Catilina. No Discurso o projeto de república dos rebeldes é um ponto central das razões para se aplicar a medida excepcional, associado ao fato de o conde já perdoar motins na região desde 1718,
24 APM, AVC-17, f. 147v-156r (citações em f. 155r, 155v e 156r). 25 Trabalho com acepção estrita da ideia de razão de Estado, no âmbito da Contrarreforma na Europa e forjada em reação a escritos políticos que ameaçavam a supremacia da Igreja de Roma – como os de Maquiavel e Bodin – expressa por exemplo em: COMPARATO, Vittor Ivo. El pensamiento político de la Contrarreforma y la razón de Estado. Hispania Sacra, Madrid, ano LXVIII, n. 137, p. 13-30, ene./jun. 2016. O termo possui diferentes apreensões nos meios historiográficos francês e anglófono. Vários autores referidos no Discurso, na Itália e na Espanha nos últimos decênios do século XVI e na primeira metade do XVII, apropriaram-se dos escritos de autoridades latinas para legitimar suas ideias. Por sua vez historiadores do século XX como: MEINECKE, Friedrich. La idea de la razon de Estado en la Edad Moderna. Traducción de Felipe Gonzalez Vicen. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983 [1924]; MARAVALL, José Antonio. Teoria del Estado en España en el siglo XVII. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997 [1944]; e FERNANDEZ-SANTAMARIA, Jose A. Razon de Estado y politica en el pensamento español del Barroco (1595-1640). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986 [1983], produziram ricos estudos ao descortinar obras, mas amplificaram o conceito à maneira de uma etiqueta atemporal (Meinecke) ou para o mundo ibérico seiscentista (Maravall e Fernandez-Santamaria), tornando difícil a análise do uso dessas ideias em casos particulares. A polissemia do termo no Antigo Regime e o anacronismo historiográfico do constitucionalismo no século XIX foram sinalizados por Bartolomé Clavero em: CLAVERO, Bartolomé. Razon de estado, razon de individuo, razon de historia. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 15-59; e em VIROLI, Maurizio. De la política a la razón de Estado: la adquisición y transformación del lenguaje político (1250-1600). Traducción de Sandra Chaparro Martínez. Madrid: Akal, 2009 [1992] as ambivalências de trabalhos específicos foram perscrutadas, embora simplificando a mudança de ideias políticas ocorrida na península itálica. Para um estudo crítico da obra de Meinecke, cf. FERREIRA, Bernardo. Entre kratos e ethos: ética, política e história em Friedrich Meinecke. Lua Nova, São Paulo, n. 100, p. 225-282, 2017. 26 O quantitativo das menções explícitas no texto e nas notas do Discurso a cada um desses autores é: Botero (2 menções no texto e 4 em notas), Saavedra Fajardo (2 no texto e 1 em nota), Justo Lipsio (1 no texto), Sebastião César de Meneses (1 em nota), Solórzano Pereira (4 no texto e 4 em notas), Virgilio Malvezzi (5 no texto e 8 em notas), Juan Márquez (3 no texto e 1 em nota).
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bem como aos perigos de sua expulsão e do aumento da sublevação. Entretanto, há algo nesses parágrafos que dificulta a sua caracterização. Somente a partir do quarto parágrafo há um trecho em nota, das Metamorfoses de Ovídio, sendo o sexto trecho anafórico ladeado de remissões a Museu (Ero e Leandro) e Esopo (fábulas), o sétimo a Salústio (A conjuração de Catilina), o oitavo a Plutarco (mas citando uma tragédia de Sêneca) e Sêneca (Sobre a ira) e o último a Cícero (2a Catilinária). Embora na Noticia se priorize o traslado e a edição do texto da primeira parte do Discurso, esses nove parágrafos foram reproduzidos quase integralmente no códice hoje em São Paulo, sem essas notas. Contudo, em todo o AVC-17 preferiu-se citar mais autores e obras antigos. No trecho de grande apelo retórico pelo uso da anáfora, ao justificar-se a medida de exceção – o governador não podia punir de morte um homem livre sem a chancela de uma junta de magistrados – optou-se por mencionar trabalhos e temas clássicos. Entre esses a conjura de Catilina, pelos escritos de Salústio e Cícero, é o único e forte conteúdo político-jurídico nas notas sobre as razões para reprimir-se sumariamente a rebelião.27 Por que isso ocorre? Como vimos no Capítulo 1, as 490 notas do Discurso apresentam a mesma caligrafia do texto central, sendo fruto de um processo errático de redação – verificado pela análise das correções – que evidencia a interatividade entre as autorias gráfica e intelectual do Discurso e da Noticia. Busco interpretar o escrito em tela enquanto artefato – e não o castigo e a ação política considerados em si naquele contexto social, tampouco a suposta essência de autores e obras citados no manuscrito. Isso significa ser mais atento às recepções e adaptações de ideias no texto analisado, bem como considerar o âmbito cultural e político pertinente à produção do códice e à situação de Pedro de Almeida naquele momento. Em outras palavras, trata-se de perscrutar a relação entre aquelas letras e o poder – na forma como esse vínculo se apresentava especificamente. Por esse prisma, se o códice do Discurso fosse de caráter estritamente político e/ou judiciário,28 destinado ao governo português ou a maior circulação social,
27 APM, AVC-17, f. 146r-156r. 28 Lembrando os discursos judiciário, político e encomiástico prescritos por Aristóteles em Retórica e A política; cf. ARISTÓTELES, 2011; ARISTÓTELES, 2006, p. 105-126.
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algumas menções a autores “políticos” modernos – como Nicolau Maquiavel e Jean Bodin – não seriam de fato convenientes, sobretudo na cultura portuguesa tradicional, afeita ao neotomismo e à vigilância católica. Por exemplo, o termo “machavelismos” só aparece uma vez no manuscrito de Belo Horizonte, para conotar pejorativamente as ações rebeldes. De modo coerente com esse cuidado, no texto trabalharam-se ideias de autores católicos e modernos aceitos naquele ambiente, como Giovanni Botero e outros, por exemplo sobre os topoi do amor e do temor dos vassalos, da reputação do príncipe e da repressão antecipada às sedições – referenciando mais os clássicos como Tácito, talvez para dissimular outras leituras e/ou identificações políticas malvistas.29 Mas mesmo com passagens ocultas, sem referências ou citando autoridades antigas por trechos também encontrados em obras de autores modernos adequados, percebe-se no Discurso historico, e político uma crítica às ações da monarquia ante as sublevações, com aguerridas ideias sobre os temas do castigo, da violência e do temor, incoerentes com uma exposição pública do texto por iniciativa de alguém inserido naquele âmbito, como Pedro de Almeida. Em função dessa distonia em relação ao comportamento habitual da monarquia portuguesa à época,30 da instrumentalização de ideias políticas e jurídicas no Discurso a ser vista adiante, e da permanência do texto no âmbito familiar, é possível referir-se a “maquiavelismo” no sentido largo do termo, para compreender a elaboração do Discurso com passagens contundentes. Tamanha ousadia seria garantida pelo anonimato e pela custódia do códice em âmbito restrito – mas esta é também uma etiqueta redutora, que não condiz com a diversidade cultural do manuscrito.31
29 APM, AVC-17, f. 112r; MONTEIRO, 2015; e MONTEIRO; DANTAS, op. cit., p. 1-26. 30 Em suma, nesse tempo a práxis seria mais caracterizada pelo perdão e o contemporizar de situações do que pelo castigo intempestivo. Mas havia transformações incipientes. Em 1719, uma carta régia autorizava o perdão dos motins pelos governadores de Brasil e Angola; por sua vez a chancela para apenas o governador-geral (o vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses) sentenciar vassalos com pena capital ocorreu em maio de 1720. BNB, M, 2, 3, 5, apud CASTRO, 2016, p. 109-110, 132-142. Ver também MONTEIRO, 2002, p. 279-307, 326-327. No âmbito reinol, as mudanças no reinado de d. João V seriam vividas sobretudo na década de 1730, com o reforço das secretarias de governo em detrimento dos conselhos. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. A consolidação da dinastia de Bragança e o apogeu do Portugal barroco (1668-1750). In: MATTOSO, José (dir.); HESPANHA, António Manuel (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Rio de Mouro: Lexicultural, 2002a, v. VIII, p. 267-282; e BICALHO, Maria Fernanda. Inflexões na política imperial no reinado de d. João V. Anais de História de Além-Mar, Lisboa, v. VIII, p. 37-56, 2007. 31 A acepção refere-se a estratégias de governantes ou rebeldes calcadas no uso da força e na dissimulação, sem com isso expressar que os autores do Discurso tenham lido escritos de Maquiavel, embora houvesse essa possibilidade pela circulação de cópias manuscritas clandestinas. Por outro lado, o tema da dissimulação é recorrente na história da Companhia de Jesus. MONTEIRO; DANTAS, op. cit., p. 2-3; e FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Maquiavelianas brasileiras: dissimulação, ideias políticas e revoltas coloniais (Portugal, séculos XVII e XVIII). Tempo, Niterói, v. 20, n. 36, p. 1-24, 2014a.
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Por outro lado, o estado é recorrente no códice em tela. Excetuando-se passagens nas quais seu significado remete a uma situação ou condição sem sentido político ou territorial, o termo desponta ao lidar-se com a obra de Lúcio Floro – Epítome de Tito Lívio – sobre a relação da cidade-estado de Roma com as vizinhas; ou para referir “o pacifico estado do governo presente” após a vida do conde ser exposta a perigos e tendo-se sujeitado os povos. Ainda na primeira parte, ao se narrar o ardil de João da Silva Guimarães na câmara de Vila Rica e a ida de 1.500 amotinados a Vila do Carmo, exclama-se: “Mizeravel estado o da republica, onde os mesmos, que eram obrigados à concorrer para a páz, ministravam o tumulto! màs que muito assim soceda sempre nas Minas, se nellas dominao’ os vicios, e obedecem as virtudes?” A nota é de Salústio, n’A conjuração de Catilina. Ao tratar da segunda proposta dos sublevados sobre o cancelamento da casa de fundição e uma nova cobrança dos quintos, entende-se que esses pontos não convinham, pois “comprehendiam todo o estado”. Após conversar com os principais sobre a proposta, segundo o Discurso o conde cria poder serenar a borrasca e remediar qualquer desgraça que “sobreviesse ào estado, â cujo aumento, e conservaçao’ estava obrigado”. No fim da primeira parte conclui-se a relação do motim, agradecendo a Deus a “industria, intelligencia, e resoluçam grāde do Conde”, que os livrou “da fatal oppressam, e tyrannia, que os ameaçava, e à todo o estado”. O feito é comparado à ação de Constantino contra o suposto usurpador Magêncio em Roma, pois o castigo era “de extrema necessidade”. 32 No primeiro parágrafo anafórico da segunda parte, “Era de extrema necessidade o Castigo”, pois os rebeldes após 18 dias de sublevação queriam expulsar o governador “e mais ministros de sua Magestade, e a erecçam da republica, à que se tinha assentado reduzir este estado”. Pelo sexto parágrafo “Era de extrema necessidade”, pois alguns de Vila do Carmo que acompanhavam o conde estavam medrosos, e a obediência quase perdida no governo, fazendo ter como certa “a sogeyçam, e ruina do estado”. Adiante sugere-se que o detrimento da reputação do rei ao não aplicar o castigo podia perigar “este estado”. Francisco Vannotius – através de um discurso de Solórzano Pereira – desponta com o dito em latim que reforça o argumento da perda de autoridade do príncipe; e o “Marques Virgilio 32 APM, AVC-17, f. 7r, 18r-18v, 77v-78r, 89v-90v e 146v-147r. Os sublinhados são meus.
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ainda aperta mais este ponto”, ao afirmar que “na balança dos Principes deva a reputaçaō pesar mais, que o mesmo estado, e que a propria vida”, com trecho de David perseguido citado em espanhol. O Discurso “sem sahir do Brasil” passa das Minas ao quilombo dos Palmares, que puxava “por todas as forças do estado”. Adiante Caussin, em La corte santa, adverte para se evitar o rigor em demasia, para que não “se deite a perder o estado”. 33 Volta-se assim a afirmar que O estado só entam se segura bem, quando o Principe nao’ sofre sem castigo quantos, Com a desobediencia, pretenderam atrevidos opprimir de seu respeito os vitaes alentos. Pelas duraçoe’s do respeito se regula a idade das Monarquias, sub’siste a Monarquia o que no Principe existe o respeito, porque na intelligencia dos politicos, es el respecto alma dela sen’oria, es vn cadaver, nó Principe, el que cae en desprecio.34
A citação e a nota são de El Rómulo, de Malvezzi/Quevedo. A seguir, disserta-se que “o motim como hé hum movimento acelerado, e prompto, nam podia involver a premeditada malicia”, pretendendo “a destruiçao’ da nova ley do Monarca”, expulsar o conde, ouvidores “e mais justiças”, com ânimo de “reduzir o estado à hua’ republica” ou eleger novo governador, “no que consiste a mais refinada rebelliam, e a mayor offensa da Magestade”. Apesar dessas razões, o conde era responsável por lidar com os excessos do motim e satisfazer “o serviço de El-Rey”. Todos dificultavam a contingência do castigo, pondo “em mayor perigo o estado”. Há uma nota de Lucano em Farsália, sobre as guerras entre César e Pompeu no fim da república romana – “Não demore, procrastinar sempre fez mal a quem está pronto a agir”. Segue-se no texto outro dito de El Rómulo – “las buenas resoluciones pocas vezes se toman interas: en todas lȧs cosas se hallan peligros” – ladeado por nota das Histórias de Tácito, com sentido abrangente. O perigo de arruinar o estado volta ante a dificuldade e a inconveniência de se convocar ouvidores para a junta, ameaçando repetir o ocorrido com Helvídio Prisco e Vespasiano na luta contra Vitélio, conforme Tácito – Histórias e Anais. Nesse passo Ovídio – por Amores – é invocado sobre os conselhos, com alteração de significante. Regras do direito vindas do livro de Solórzano – De indiarum iure – então despontam: “Não se deve esperar até que tudo venha a ruínas, e melhor é agir tempestivamente do que
33 Ibidem, f. 147r-147v, 152v-153r, 165r-165v, 166v-167r e 170v. Os sublinhados são meus. 34 Ibidem, f. 177r-177v. O sublinhado e o itálico são meus.
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tomar medidas depois que o mal tenha sido consumado, ou pretender reparar uma empresa já arruinada”. Arremata-se com texto e nota de Salústio – A conjuração de Catilina – para se proceder logo ao castigo.35 Mais adiante, em parágrafo respaldado integralmente na Suma teológica de Tomás de Aquino, defende-se que “o Conde defendeo o estado, e manteve o bem publico”, e se acham que ele “alterou os termos da justiça”, que diriam depois, “que por se ajustar á dispoziçao’ das leys deixàra perecer o bem publico, e tiranisar o estado?” Segundo Cícero na 1a Catilinária, os particulares matam cidadãos perniciosos que começam “a arruinar o estado da Republica”, e “essa foy antigamente a excellencia da Republica Romana, comprimirem, e Castigarem os varo’e’s famozos com mais asperos castigos ào Cidadao’ perniciozo, que ào inimigo mais cruel”. Pela 2a Catilinária, Cícero invoca o argumento da guerra justa contra o sedicioso Catilina, pois quando “Roma era mais bem governada, mayores castigos se davam ào perturbador da republica, que āo inimigo mais cruel”. Como governador e capitão-general o conde era obrigado “à defender este estado” de quaisquer inimigos. Ademais, Solórzano na Politica indiana – citado em espanhol e referenciado em nota – trata das atribuições dos vice-reis na defesa dos inimigos externos e internos, com a ajuda dos capitães-generais. Em Portugal isso seria mais obrigatório, pelo juramento de homenagem dos governadores. E se “recebia tanto danno este estado, por que senam havia o Governador de resolver à offendellos, como inimigos?”36 No fim do códice, na remissão a episódios da Época Moderna, a conjura Pazzi em Florença é lembrada pelas memórias de Philippe de Commynes. Os Pazzi, o rei de Nápoles e o papa queriam introduzir Girolamo de Riario “na quelle estado”. Em Sergipe, o “Governador do estado” João de Lencastre reprimiu a alteração pondo fogo numa casa. Malvezzi e Quevedo surgem mais uma vez para tratar do “sustentamiento del estado” pelas leis, que tocam aos legistas como judiciais, e aos príncipes como políticas, pois a sublevação pretendia “impedir a ley do Princepe
35 Ibidem, f. 181r-181v, 184v-185r, 197v-198r. Os sublinhados são meus. 36 Ibidem, f. 206v-208r e 216v-217r.
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nas casas de fundiçaô, e moeda” que serviam para sustento e aumento “do reyno”, entendido pouco depois como “estado”.37 Vê-se assim estado ser associado a uma cidade como Roma ou Florença, ou ao Estado do Brasil por seu governador-geral; a uma situação do governo ou da república, no sentido de organização política; ao perfil tributador/fiscal; identificado ao governo para aumento e conservação; ou ameaçado por opressão e tirania, pois dedicado ao bem público; mas também sendo monárquico, contra a forma de governo republicana; e contra os cidadãos perniciosos, devendo ter forças – até mesmo por seus particulares – para reprimir a rebelião; sendo passível de ruína, perigos, sujeição; a ser defendido por governadores contra inimigos externos e internos; entendido como reino sustentado pelas leis da justiça e da política; mas por outro lado sendo menos importante que a reputação e o respeito do príncipe, na luta política permanente. Percebe-se uma fluidez conceitual no Discurso acerca do estado – sempre em minúscula no manuscrito, assim seguido pelas impressões de 1898 e 1994. Pelos trechos destacados, trata-se de um corpo político preferencialmente monárquico e secular, capaz de arrecadar tributos e personificado no rei, por sua vez representado pelo governador ultramarino nas Minas. Esse estado também se vincula a situações de engrandecimento, ruína e perigo – a semântica da mesma palavra é plural. Mas ao considerar-se Roma no século I a.C. como uma república, nela o cônsul Cícero defendia a execução de cidadãos por particulares – ou seja, a violência fora da lei – quando ameaçassem com tirania o bem público, sendo nesses casos a guerra justa. Ademais, as leis de justiça e governo valiam menos que a reputação do príncipe, ou do próprio governador. Dito de outro modo, o estado situava-se abaixo do soberano, não sendo uma persona ficta – ideia mais corrente a partir de meados do século XVIII no direito internacional. Essas acepções se coadunam com as quatro passagens mais contundentes antes citadas, calcadas em ideias de violência, poder, moralidade, guerra, soberania e castigo. Na bibliografia mencionada junto a essas acepções de estado, as remissões a livros de Virgilio Malvezzi predominam, evidenciando os temas da reputação e da luta política;
37 Ibidem, f. 218v-219r, 223v-224r e 227r-228r. Os sublinhados são meus.
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seguidas pelas obras de Juan de Solórzano e Cícero, a serem exploradas adiante; por sua vez Tácito aparece como repositório de exemplos, mas não como artífice conceitual; destaque-se ainda o argumento sobre a summa potestas e o bem comum ou público – conquanto omitindo-se a origem popular deste poder, desenvolvida sobretudo por Francisco Suárez.38 Leituras atualizadas até meados do Seiscentos e apropriadas de modo peculiar, discrepantes em relação a concepções mais amplas e sólidas do império ultramarino ou do Estado moderno português, apresentadas, por exemplo, pelo conselheiro António Rodrigues da Costa e o embaixador Luís da Cunha. Apesar de se veicularem no manuscrito ideias pertinentes a uma razão de Estado ou estado monárquico – a necessidade política, a medida excepcional, a reputação do príncipe, a tributação e a conservação da conquista –, essas foram utilizadas no AVC-17 em prol da situação do conde governador, e não da monarquia portuguesa. Desse modo, o sentido mais adequado para a expressão no códice em tela – e com e minúsculo neste caso parece melhor – seria o apregoado pelo jesuíta Baltasar Gracián em El héroe: uma razão de estado de si mesmo, tendo em vista o provável apoio do conde Pedro de Almeida à produção do códice atualmente no APM; sua possível colaboração textual; e a recepção do manuscrito no seio da casa nobre na qual ele era membro expoente.39 Todavia, convém não absolutizar – com o perdão do trocadilho – as ideias políticas levantadas no AVC-17, pela arte retórica desenvolvida neste. Curiosamente, no Discurso o estado não é associado ao estatuto social de um nobre, com remissões a sua linhagem aristocrática e a feitos ancestrais – frequentes na casa de Assumar/Alorna, como vimos no Capítulo 2. O nome “Assumar” não consta em todo o AVC-17, apenas uma vez aparece “Conde Dom Pedro”, só por duas vezes escreve-se “Conde Governador”, e uma vez faz-se referência a seu
38 Exercício similar para a história inglesa e com gama maior de textos foi feito por Skinner em: SKINNER, Quentin. Uma genealogia do estado moderno. Tradução de Mónica Brito Vieira. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2011 [2008] – trabalho no qual corrige sua perspectiva anterior sobre ser possível recuperar um conceito distintivo de estado moderno. Conforme Skinner (neste trabalho), o único método para identificar perspectivas de determinados autores sobre o conceito de estado é analisar as circunstâncias precisas em que se discute o referido conceito. SKINNER, 2011 [2008], p. 9 e 49. Ver também as considerações sobre os léxicos e palavras-chave nos textos em SKINNER, 2002 [1999], p. 158-174. 39 VISTARINI, Antonio Bernart; MADROÑAL, Abraham (orgs.). Baltasar Gracián. El héroe: oráculo manual y arte de prudencia. Madrid: Castalia, 2003, p. 67; e CLAVERO, op. cit.
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“nascimento” ou “sangue illustre”.40 Por outro lado, as virtudes pessoais e militares do “Conde” ou “Conde general” são exaustivamente proclamadas. O aspecto instiga a interrogar sobre a relação pessoal de Pedro de Almeida com a produção dos manuscritos em tela e as formas textuais escolhidas, sobretudo quando a aparente sisudez cede o passo a outras expressões.
O [in]verossímil Ainda em seus primeiros fólios, a fim de demonstrar quem são “os chamados grandes, e poderozos das Minas”, segundo o Discurso é necessario, que levanteis os olhos, e estendais a vista da consideraçam à ver aquella celebrada Deoza, á que Luciano em hum livro, que de suas excellencias compóz, por lhe nao’ saber o nome, deo o titulo de Syria, onde estava o templo, em que à esta Deoza vio. Conta poes que vio em Syria o templo de hua’ Deoza, cuja estatua tinha a forma de muitas, pella variedade das insignias, que juntamente a ornavam: Se nestas mostrava sinaes de ser Juno, Pallas, Venus e a Lua, na quellas se equivocava Rhea, Diana, Nemesis, e as Parcas; porque em hua’ mam se lhe notava o fuzo, e a balança: noutra o ceptro, a lança: na cabeça o fogo, os rayos: no peito o cinto de Venus: emfim pòdia dizer, que tinha visto quasi todas as mais Deozas quem apenas vio esta.
Complementa-se: “Isto que em Syria podia ser falso, hé verdadeyro nas Minas”,41 seguindo o trato da confusão de títulos e patentes entre os mineiros, já destacado. O parágrafo não possui nota marginal, mas refere-se a Luciano de Samósata, nascido na Síria no século II d.C., advogado itinerante no império romano. Depois Luciano escreveu muitos opúsculos e ensaios de diálogos cômico-filosóficos, retórica, panfletos, biografias, teatro e romance. Embora não fosse incluído na Vida dos sofistas de Filóstrato, Luciano é considerado partícipe da chamada Segunda Sofística, conforme vimos nos Capítulos 3 e 4, pródiga no mundo grego sob a dinastia dos Antoninos, tendo vivido no principado de
40 APM, AVC-17, f. 82v, 88r, 148v e 212r e 215r. No IEB-USP, AL-61 só há “Conde general” e “Conde”, sem mencionarem-se os nomes Pedro (referindo-se diretamente a Pedro de Almeida) e Assumar. 41 Ibidem, f. 9v-10r. O sublinhado é meu.
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Marco Aurélio. Seus trabalhos satíricos – que compreendem diálogos de mortos ou deuses, encômios paradoxais e viagens fantásticas – o fizeram popular, tendo sido emulado por humanistas como Thomas More e depois Fénelon. Apesar do estilo límpido, seus livros eram incômodos, pois havia neles um certo modo iconoclasta de tratar os assuntos. Após o concílio de Trento seus escritos foram incluídos em índices de livros proibidos. O conjunto da obra foi condenado em Veneza (1554) e Roma (1557 e 1590) – abrangendo as traduções em vernáculo. Alguns trabalhos foram proscritos em Roma (1559, 1564), Parma (1580) e nas Inquisições portuguesa (1561) e espanhola (1583). Mas nunca deixou de ser lido, despertando por exemplo o interesse do 4o conde da Ericeira Francisco Xavier de Meneses, que promoveu a publicação de duas versões em português de Como se deve escrever a história em 1733.42 Nesta obra Luciano de Samósata procura identificar o que era ou não próprio à história, em meio a outras formas discursivas que a cercavam. Apesar do caráter cômico, ele criticava a plêiade de historiadores aduladores de Roma, num momento de euforia da historiografia filorromana devido às vitórias nas fronteiras – os temas antirromanos eram presentes na obra de Luciano e nos escritos gregos à época. Escrevendo em grego, ele atingia o mundo dos autores de histórias romanas em grego, voltadas também para os romanos. Nessa sátira opunha a busca da verdade – conforme a percepção aristotélica da história – à adulação e não exatamente à mentira, pois a história era uma atividade política que exigia imparcialidade e justiça, sendo bem exemplificada por Tucídides.43 A remissão possibilita fazer pontes com a ideia de história veiculada no Discurso, pleno de adulações ao conde general. Por esse prisma a história aparece associada à retórica, como um simulacro da política e sem compromissos com a verdade, pois o historiador – aos olhos de Luciano – não devia ser totalmente livre
42 Para essas informações, ver BRANDÃO, Jacyntho Lins (org.). Luciano de Samósata. Como se deve escrever a história. Tradução de Lins Brandão. Brasília; Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 11-14; MARSH, David. Lucian. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 544-546. Destaque-se o pequeno ensaio de Carlo Ginzburg sobre a Utopia de More, questionando abordagens – incluindo a de Quentin Skinner – que enquadram o livro de maneira “séria” na temática do estado, enquanto para o historiador italiano a “árvore” da qual Utopia provém relaciona-se mais à sátira da viagem fantástica de Luciano. GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [2000], p. 17-42. Algo similar pode ocorrer com o Discurso historico – não em específico sobre Luciano de Samósata – ao se considerar uma chave explicativa capaz de abranger todo o artefato textual, para além do aspecto político. 43 BRANDÃO, 2009, p. 141-146 e 168-174.
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como o poeta. Pelo encômio, Luciano de Samósata fazia a distinção entre a história e a poesia – e assim percebe-se o Discurso historico, e político próximo a outras formas de discurso, para além de seu título. Na visão de Luciano, em contraposição ao poeta, o historiador deveria ter uma liberdade sóbria e temperada, para poder escrever com justeza.44 Na contenda entre o verdadeiro que cabe à história e o verossímil pertinente à poesia, Luciano busca o inverossímil ou ficcional, tendo como referência as narrativas verossímeis – como se vê pelo trecho do Discurso em destaque. Por este, a deusa Síria podia ser qualquer divindade romana, dependendo da forma de se olhar a estátua.45 Trata-se assim de um amplo e complexo espectro da produção em prosa, abrangendo a oratória política, jurídica e epidítica, a sofística, a filosofia, os relatos de viagem etc. À época, tratados helenísticos distinguiam entre a prosa com objetivos de verdade e a poesia visando o prazer, sendo o orador epidítico comumente designado como sofista. Para Luciano de Samósata era inadequado valer-se da retórica para inserir elogios e críticas na história.46 O elemento cômico aparece ainda no Discurso – por exemplo – na associação entre o escravo Bigodes de Manoel Nunes Viana e o Sancho Pança, de Cervantes,47 ou nas notas com os sapos e ratos que lutam junto aos amotinados na paródia da Ilíada.48 Por sua vez as sátiras do estoico Pérsio são bem severas,49 distintas dos moderados sermones de Horácio – inicialmente distinguido por Bruto, depois grande
44 O filósofo Platão, no diálogo com Górgias, desprezava o poeta e o retor, por escreverem sobre o que não sabiam. Posteriores à poesia, filosofia e história definiam-se em relação àquela. Mas, na prática, filósofos (ao estilo platônico) e historiadores (tucidianos) não se viam como antípodas dos poetas. Ibidem, p. 178-199. 45 Para Aristóteles, na poesia era preferível o impossível verossímil (que persuade) ao possível incrível (que não persuade). Ou seja, o verossímil (o que poderia acontecer) prevalecia sobre o inverossímil (o que não poderia acontecer) e sobre o verdadeiro (o que aconteceu). ARISTÓTELES, 2015, 1461b, 10; BRANDÃO, 2009, p. 205-206. 46 BRANDÃO, 2009, p. 211, 223, 264. 47 APM, AVC-17, f. 57v. 48 Ibidem, f. 25v, 56v, 59r, 64v. 49 Ibidem, f. 131v, 175r; e CITRONI, Mario. Pérsio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006c [1997], p. 767-777.
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amigo de Mecenas no círculo de Otaviano –, pioneiro em aliar a poesia sóbria e elegante a temas de interesse social.50 Tão ou mais famoso como satirista é o poeta Juvenal, originário de Aquino, na Campânia romana, tendo vivido por volta de 60 d.C. e depois de 127. Juvenal é citado no Discurso pela primeira vez ao relatar-se a carta de Pascoal da Silva Guimarães ao conde, na qual ele e seu filho o alertavam sobre a iminente ida do povo tumultuado a Vila do Carmo em 2 de julho de 1720, quando o satirista exclama em nota que o vício engana com a aparência da virtude. Após notas de Claudiano e de Ovídio (Metamorfoses e Heroides) com evidentes alterações de significantes, pondera-se que Pascoal da Silva morava a dois dias de viagem de Vila do Carmo. Assim, ele estava oculto em Vila Rica, dissimulando sua ação ao errar a data e o local na carta – ou dando a entender ao conde quem animava de fato o motim. 51 O trecho da sátira XIV em nota corresponde a uma sequência mais moderada das 16 sátiras em versos hexâmetros de Juvenal, divididas em cinco livros e vindas a público aproximadamente no período de 110 a 130, entre os principados de Trajano e Adriano. Por aquela, os filhos aprendiam com os pais a serem cruéis, despudorados e esbanjadores. Às voltas com seus patronos, Juvenal criticava os vícios da sociedade romana com base no modelo republicano de virtude. Chamava a atenção para a satura – a mistura de alimentos de qualidade baixa – composta na sátira com desejos, temores, iras e prazeres, denunciados por ele com indignação. Mas seu sarcasmo apresenta uma linguagem artística complexa, com o uso de muitos artifícios apesar das expressões coloquiais, sendo menos filosófica que em
50 APM, AVC-17, f. 23v, 43r, 76r, 205v, 213v. Citado 13 vezes em notas e uma no texto do Discurso, Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.), apesar de sua origem plebeia, conseguiu estudar filosofia em Atenas, onde tornou-se protegido de Bruto e lutou por sua causa na batalha de Filipos. Em Roma, apesar de próximo a Mecenas e Augusto, manteve independência, preferindo a villa que ganhara ao tumulto da capital, escrevendo sátiras, odes e epístolas em verso – guardando a tensão entre o momento “privado” e a dimensão geral do discurso poético. Uma dessas epístolas, dedicada a Pisão e seus filhos, seria doravante conhecida como Ars poetica, e influenciaria a poesia e a teoria estética no porvir. Aspectos de moralidade, moderado engajamento político, linguagem interessante e uma forma impecável em textos curtos fizeram Horácio mestre de muitos, sendo fácil a sua tradução para o vernáculo. CITRONI, Mario. Horácio. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006d [1997], p. 499-537; e MOST, Glenn W. Horace. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010b, p. 454-460. 51 APM, AVC-17, f. 89r-89v.
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Horácio e Pérsio. Em outras palavras, suas sátiras possuíam um tom trágico com registro cômico – o hexâmetro era também o verso das epopeias.52 A capacidade de Juvenal expressar a essência chocante ou paradoxal de uma situação corresponde à técnica das sententiae.53 Mais ao final do códice, ao recuperarem-se os motins passados nas Minas desde a Guerra dos Emboabas, a passagem já citada no Capítulo 3 realiza inteligentes sentenças dos poderes de Manoel Nunes Viana, emulando a sátira de Juvenal a respeito do arrivismo na sociedade romana. Desse modo “este novo Vianna, ou de Vianna, de vil transformado em grande” dominava “absoluto, e despotico” nas Minas, “e feito no rio de Sam Francisco Senhor da que’, e dalém” à maneira dos soberanos lusos, “naô hé como os nossos poderozos” – os ministros e governantes com jurisdições delimitadas – pois “tem hua’ jurdiçam, que nao’ conhece horizonte” e “tiranisa ambos os governos da Bahia, e Parnambuco”. Nas notas, além de remissões a Suetônio (A vida dos césares - Júlio César), Virgílio (Eneida) e Camões (Os lusíadas), Juvenal vem em primeiro lugar com um trecho da sátira VIII, na qual nobres degenerados são contrapostos a plebeus virtuosos. Finaliza-se o parágrafo com um epigrama de Marcial – a propósito, amigo de Juvenal –, mas encontrado na sátira de Marco Terêncio Varrão.54 Os comentários às sátiras de Juvenal avolumaram-se desde o século IV, pois os Padres da Igreja o viam como um mestre da moral; na Época Moderna vários impressos em latim conjugavam as sátiras de Pérsio e Juvenal; e no Seiscentos o célebre satirista francês Nicolas Boileau-Despréaux imitava Horácio e Juvenal.55 Adriana Romeiro estuda essa forma textual que circulava por mídias peculiares, no caso das peças de perfil satírico produzidas sobre o governo de Lourenço de Almeida na capitania de Minas Gerais, de 1721 a 1732 – com a colaboração de Tiago Miranda. Concebidas com perfil moralizante segundo Aristóteles (sobre a comédia), Juvenal ou Luciano, assumindo o predomínio do elemento jocoso na
52 CITRONI, Mario. Juvenal. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006e [1997], p. 947-962. A etimologia do termo satura é controversa segundo HANSEN; MOREIRA, op. cit., v. 5, p. 398-401. 53 LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. Tradução de R. M. Rosado Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 [1967], p. 216-260. 54 APM, AVC-17, f. 173r-173v. 55 WINKLER, Martin M. Juvenal. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W.; SETTIS, Salvatore (orgs.). The classical tradition. Cambridge; London: Harvard University Press, 2010, p. 500-502.
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Espanha da Época Moderna, e assemelhadas aos pasquins no vocabulário de Rafael Bluteau, as sátiras – ao mesclarem o erudito ao popular, o oral ao escrito, servindo ao vitupério anônimo como gênero considerado baixo – possuem uma historicidade complexa. Romeiro perscruta a tipologia textual de cinco fontes hoje depositadas na BGUC, das quais somente uma apresenta outra versão existente na BNP. Manuscritas em português, em prosa ou verso, com passagens num latim por vezes macarrônico, referenciando também letrados latinos e figuras mitológicas, as peças são formadas, grosso modo, por uma carta crítica a d. Lourenço atribuída a outrem; um romance poético de suas ações; a simulação da alforria concedida pelo governador aos habitantes das Minas; uma comédia sobre os vícios de seus apaniguados; e a descrição do preparo de seu funeral simbólico.56 A historiadora percebe a especificidade desses manuscritos que aglutinam a crítica moralizante ao burlesco, como anedotas morais que referenciam mordazmente fatos da trajetória do governante em Minas ou parodiam situações, celebrando sua partida. Romeiro aprofunda o exame das tipologias textuais adotadas, suas qualidades, partes, topoi e recursos cômicos; mostra como os papéis injuriosos assumiram diferentes faces na Espanha seiscentista, na Nova Espanha e no Brasil dos séculos XVII e XVIII, chegando enfim à história mineira; e prefere abordagens menos formalistas para entender a cultura manuscrita. Entre estudos tradicionais e de revisão, considera o conceito de opinião pública de Jürgen Habermas inadequado ao contexto mineiro setecentista, pleno de dissensões e murmúrios numa sociedade autovigilante.57 No âmbito brasileiro, produz abordagem diversa da realizada por João Adolfo Hansen sobre a sátira na Bahia seiscentista, com autoria atribuída a Gregório de Matos. Como vimos, para Hansen a função do autor – lembrando Roland Barthes, Michel Foucault, e a virada linguística – é relativizada pelo peso das preceptivas poéticas.58 Conquanto Romeiro endosse, na linha de Hansen, que as sátiras seguiam modelos de retórica e poética e integravam a concepção neoescolástica de outrora, pela crítica ao mau governo de d. Lourenço em prejuízo do 56 Para essas informações, cf. ROMEIRO, 2018; e MONTEIRO, 2019. 57 GASPAR, 2011. A sociedade autovigilante e o aspecto privado associado ao oculto são argumentos centrais em vários capítulos de MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. A respeito ver MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Do privado ao oculto. Tempo, Niterói, v. 18, n. 32, p. 247-253, 2012b. 58 HANSEN, 2004 [1989]. Para uma ótima análise sob esse prisma, ver HANSEN; MOREIRA, op. cit. (sobretudo p. 375-376, 409, 422-423).
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bem comum, ela concebe o referente empírico de sua elaboração como sendo mais realista do que para o crítico literário. Seu estudo sobre a trajetória de Lourenço de Almeida – caso-chefe do livro sobre corrupção – seria assim a chave de leitura para discursos que hoje pareceriam cifrados.59 Apesar de não conceder atenção à materialidade desses papéis e às relações entre as cópias até seus momentos de entrada na BGUC e na BNP, Romeiro recolhe pistas sobre a possível circulação das sátiras por notícias manuscritas e depois impressas,60 inferindo que os textos teriam sido produzidos em Vila Rica no fim do governo de Lourenço de Almeida, chegando ao mesmo tempo que ele a Portugal e contribuindo para enxovalhar a sua reputação. Considera, pela trilha das reflexões de Fernando Bouza e outros, que os manuscritos metamorfoseavam referenciais cultos para atingir outros públicos, provavelmente feitos e reproduzidos para serem lidos também em voz alta.61 A historiadora também cogita de os papéis terem sido escritos por mais de uma pessoa, ou de ter havido uma autoria colaborativa para cada peça. As sátiras podem ter sido encomendadas a alguém versado, por exemplo Félix de Azevedo da Cunha, que vivia em Ribeirão do Carmo e escreveu em 1726 um pequeno tratado de perfil cômico, hoje na BPE. O livro contempla ainda a sociabilidade literária ao redor dos desafetos de d. Lourenço. Por outro lado, o ambiente de calígrafos e copistas nas décadas de 1720 e 1730 em Minas denota a riqueza cultural da região nos primeiros decênios do século XVIII.62 Neste tempo bastante anterior ao da criação da Real Mesa Censória em 1768, não obstante a vigência das distantes Ordenações filipinas, havia outro sistema de censura, mais formalista e menos proibitivo para os impressos, bem tolerante com os manuscritos.63 Nesse mundo moviam-se os papéis de perfil satírico. Mas se Bluteau não distinguia entre a sátira e o pasquim, o léxico português o faria mais tarde. Atento a mensagens escritas clandestinas dispostas em espaços
59 ROMEIRO, 2018; e ROMEIRO, 2017, p. 279-361. 60 LISBOA; MIRANDA; OLIVAL, op. cit. 61 ROMEIRO, 2018; e BOUZA, 2001. 62 ALMADA, 2012. 63 ROMEIRO, 2018; e MARTINS, 2005.
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públicos – de rebeldes ou mesmo de poderes coloniais – para insuflar desobediência ou difamar desafetos, Luciano Figueiredo estuda a “pasquinada” de papel e tinta frequente na história mineira setecentista. Conforme o enquadramento abrangente do historiador sobre as revoltas, os pasquins eram produzidos sobretudo no início das sublevações, quando os amotinados escreviam manifestos para circular e obter adesões, ou autoridades buscavam apoio nas cercanias para reagir – antes da atuação do Conselho Ultramarino ou de surgirem relatos mais elaborados sobre os movimentos.64 Por sua natureza seriam artefatos frágeis e voláteis, que escapariam à preservação. Na Revolta de Vila Rica, pasquins ameaçavam com castigo os que aceitassem pagar os quintos nas casas de fundição, ou alarmavam sobre os intentos do governador.65 No Discurso historico, e político esses fatos são aludidos, e menciona-se um pasquim exposto em abril de 1720, na manhã seguinte à festa de aniversário da esposa do governador – quando também teria chegado a notícia do bom ânimo de d. João V sobre a disposição do conde em executar a nova lei sobre as casas de fundição. O trecho alterado do evangelho de Lucas (22, 62) é centralizado em destaque no manuscrito, sem referência: “Conversus Joannes respexit / Petrum, Petrus autem exibit / foras, et flebit amare”. A tradução seria: “João, voltando-se para trás, olhou para Pedro. Pedro, por sua vez, sairá e chorará amargamente.” No episódio das negações do apóstolo Pedro, trocou-se Jesus (ou Senhor) por João, em prol da analogia com os prenomes do rei e do governador, e mudou-se o tempo verbal para o futuro no fim, conforme a habitual alteração de significantes no Discurso. O suposto pasquim sugere que o governador negaria o rei e sairia? Trata-se de um registro bíblico instrumentalizado politicamente, cujo código – embora erudito – seria reconhecido por um coevo, nas Minas ou no reino europeu. Convém lembrar a narrativa idealizada concernente ao códice.66
64 Para essas informações, ver FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Escritos pelas paredes. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, ano L, n. 1, p. 42-61, jan./jun. 2014b, p. 42-61. O dossiê Conspirações e sedições nas Minas Gerais organizado pelo historiador é precedido pela imagem reproduzida em duas páginas do primeiro fólio manuscrito do AVC-17. O termo pasquim teria surgido em Roma no século XVI, com os papéis postos ao pé da estátua da figura enigmática de Pasquino, a serem lidos por todos os passantes. FIGUEIREDO, 2014b, p. 18-19, 56, 61. 65 Ibidem, p. 49. 66 Ibidem, p. 49 e 52; APM, AVC-17, f. 60r-60v; e GORGULHO; STORNIOLO; ANDERSON, op. cit., p. 1973.
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Os pasquins – com interface mais popular e pública por tempo limitado, conectados à luta política pela difusão oral – eram diferentes das mais extensas e seletas notícias manuscritas, vistas no Capítulo 4.67 Na Noticia o mesmo trecho em latim também aparece, mas sem destaque, em contínuo ao parágrafo 37 e com as seguintes notas marginais: “Em Abril se começou a dispor o motim” e “Pasquim contra o conde”.68 Da sátira e dos pasquins à poesia. Desde os diálogos platônicos com sofistas e retores, seguindo pela sistematização aristotélica, chegando a Cícero, Horácio e Quintiliano e depois, várias preceptivas transformaram as concepções sobre retórica e poética ao longo dos séculos. A começar pela relação com a própria Poética de Aristóteles, cuja mímesis compreendia uma face atual e outra potencial – a enargeia já referida, mescla de estilo e conteúdo. Para Luiz Costa Lima, a mímesis aristotélica dizia respeito ao possível de ser concebido, pautada na veracidade e na verossimilhança. Mas a imitatio latina e as poéticas renascentistas, mesmo após a redescoberta da Poética, numa leitura arrevesada do estagirita não chegaram a essa acepção criadora – aliás coerente com o pensamento de Aristóteles sobre a poesia como superior à história. Para o teórico da literatura, no condicionamento da imitatio havia um veto implícito à ficção, entendendo-se o ofício do poeta como deleitar por meio da imitação, sendo a inventio – a primeira das cinco partes da retórica clássica, na seleção do material a ser elaborado em discurso – limitada na prática a reiterar-se uma moralidade já estabelecida.69 Trata-se de saber como essas ideias se aplicam a âmbitos específicos. Nas palavras de Sérgio Alcides, a poesia submetia-se ao reino do poder, fundamental
67 Entre várias referências, o historiador trabalha com a correspondência de Pedro de Almeida; o enquadramento de uma sociedade barroca segundo José Antonio Maravall; as ideias de João Luís Lisboa sobre interfaces entre o escrito e o oral (mas diferenciando os pasquins das notícias); com Fernando Bouza sobre a circulação manuscrita e Antonio Castillo Gómez sobre avisos e panfletos. FIGUEIREDO, 2014b, p. 42-61. Ver também BOUZA, Fernando. Papeles y opinión: políticas de publicación en el Siglo de Oro. Madrid: CSIC, 2008, p. 95-109; e CASTILLO GÓMEZ, 2014, p. 135-165. 68 IEB-USP, AL-61, p. 17. 69 LIMA, 2014 [2000], p. 29-38. Por outro viés, em diálogo com a crítica literária e a historiografia, o filósofo Ricoeur faz uma leitura tripla da mímesis: 1) pautada em modelos acrônicos e regras pragmáticas; 2) na composição pelo mythos trágico que pauta também a epopeia, com reviravoltas, episódios dignos de piedade ou atemorizantes etc., marcando a literatura dramática no Ocidente entre a tradição e a inovação; 3) na atenção ao auditório que relaciona persuasão e recepção, fazendo o ouvinte/leitor interagir com o mundo do texto, conferindo à mímesis uma temporalidade específica. Os paradigmas tradicionais ajudam o leitor a reconhecer a regra, o gênero ou tipo de história, atualizando-a por meio da leitura. O leitor brinca assim com as exigências narrativas e experimenta o prazer do texto, conforme Roland Barthes. Mas para Ricoeur o texto se torna obra na interação com o receptor, pois as obras literárias vêm ao mundo como qualquer discurso – no que difere da tendência então dominante, que recusa o extralinguístico em nome da imanência da linguagem. Segundo Ricoeur, as obras poéticas se reportam ao mundo por uma referência metafórica. RICOEUR, 2010 [1983], v. 1, p. 93-147.
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no Ocidente da Época Moderna.70 A expressão república das letras surgiu no início do século XV em Florença, onde se respiravam os legados de Dante, Petrarca e Boccaccio e a retórica clássica desempenhava um papel fundamental. Em 1417 o aristocrata veneziano Francesco Barbaro escreveu ao florentino Poggio Bracciolini sobre sua descoberta: um manuscrito da Instituição oratória de Quintiliano, até então perdida. Apropriada de vários modos nos séculos seguintes, a obra exerceu grande influência sobre a cultura letrada – como vimos, estava na livraria do colégio jesuítico do Rio de Janeiro, decerto em outros no Brasil. Em torno de 1525 o poeta Francisco de Sá de Miranda (c.1486-1558) – citado quatro vezes no texto do Discurso e 16 em notas – retornou de sua viagem de alguns anos à península itálica, trazendo consigo formas da poesia italiana: o verso endecassilábico (hoje endecassílabo), a oitava, a terza rima, a canção petrarquista e o sonetto.71 Pioneiro em Portugal ao escrever regularmente poemas em formas italianas (sobretudo o soneto e o endecassílabo), Sá de Miranda produziu pouco mais de 30 sonetos e também exercitou o endecassílabo em éclogas, elegias, canções e epístolas – sem deixar de praticar a “medida velha” das redondilhas maiores, octossilábicas, em português e castelhano.72 Desse modo a trajetória e a obra de Sá de Miranda – vinculadas às paradoxais desavenças consigo próprio e à corte de d. João III (1521-1557) – exemplificam “a duplicidade intrínseca” da cultura letrada na Época Moderna, submetida a uma ordem sociopolítica particular, mas também vinculada ao universalismo das letras. O poeta possuía opções, mas também seguia esquemas. O autor de um soneto não
70 Para o historiador e poeta, a relação entre letras e poder, com a inerente competição entre estados modernos europeus, foi um tanto negligenciada nos trabalhos de Marc Fumaroli. AMARAL, 2007, p. 49, 56-57, 71, 88-89. 71 O soneto teria sido inventado por Giacomo da Lentini, de 1215 a 1235 escrivão na corte siciliana de Frederico II Hohenstaufen. Tomava-se então uma oitava popular, acrescentando um sexteto como arremate e requinte (14 versos endecassilábicos organizados em dois grupos desiguais, um de oito versos com duas rimas cruzadas e outro de seis com três rimas interpoladas). O notaro possuía formação jurídica e a experiência foi repetida por outros poetas, incluindo o imperador (que os estimulava), então em disputa com o papado e ocupado com o código de sua realeza “juricêntrica”. O sistema de Lentini sofreu modificações e no século seguinte os sonetos de Petrarca dedicados a Laura tornar-se-iam o modelo mais expressivo a seguir. KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo de teologia política medieval. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [1957], p. 77-98; AMARAL, 2007, p. 96-97; e RAMON, Micaela. Sonetos. In: SILVA, Vítor Aguiar e (org.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011, p. 905. 72 AMARAL, 2007, p. 67-68 e 83-86. Sérgio Alcides menciona Jorge de Sena, ao apontar o provincianismo da versão antes dominante na fortuna crítica de Sá de Miranda. Conforme Sena, no século XIII os portugueses já sabiam sobre o novo estilo surgido. Sá de Miranda foi aberto ao modelo italiano quando este ao mesmo tempo tornava-se europeu. A difusão do soneto e do verso endecassílabo além da península itálica ocorreu no segundo quartel do século XVI, três séculos depois dessas formas de poesia terem sido criadas. Da Europa, a escrita do soneto estendeu-se à América e Ásia. Cf. AMARAL, 2007, p. 85-86; SENA, Jorge de. Estudos de literatura portuguesa I. Lisboa: Edições 70, 2001 [1979], p. 55-73; e RAMON, op. cit., p. 905.
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era livre no tocante à quantidade de versos ou estrofes, precisando apreender o conjunto e articular suas partes. Ademais, lidava com constrangimentos temáticos, discursivos e composicionais advindos da retórica clássica.73 Ainda assim o soneto, com sua plasticidade quase geométrica de estrofes, permitia ao poeta um poder nessa “monarquia subjetiva”. Nele, a forma poética fixa assemelha-se a um silogismo; o arremate no fim esclarece o conjunto, cumprindo virtualidades antes enunciadas; e sua linearidade discursiva seria apenas ilusória, pois o poema plasma um conjunto simultâneo. A troca de uma sílaba altera a significação literal, bem como o valor rítmico ou fônico. Há um certo espiritualismo nessa forma composta para leitura silenciosa, ao soar em outro plano (decorre daí o seu nome), convidando à apreciação subjetiva do leitor, súdito provisório do autor. Em contraste à cantiga e ao vilancico – não raro musicados para divertir as cortes – o soneto era a forma poética preferida da cultura letrada, adequando-se a temas e conteúdos. Oriundo da cultura jurídica, ele também requintava a cantiga camponesa siciliana, adquirindo prestígio nas monarquias europeias e sendo praticado de modo amplo – nem sempre com rigor, pois se escreveram também sonetos para serem lidos em voz alta, em momentos solenes ou saraus, ou foram musicados e cantados, servindo ao louvor de senhores.74 Em Portugal, desde o fim do Quinhentos os sonetos precediam outros poemas em várias edições das obras de Sá de Miranda e das Rimas de Camões, consultadas ao se escrever o Discurso. Camões foi um cultor exímio do soneto, tendo como temática principal o amor em várias manifestações e em menor número o encômio de personagens, com pendor elegíaco ou heroico. Como vimos no Capítulo 3, há um problema no estabelecimento do corpus da produção lírica camoniana. Não obstante, essa forma interagia com o público letrado mediante sua linguagem e técnica, e não como gênero literário. Ao demarcar o espaço da poesia de modo mais rigoroso, o soneto traduz elementos intelectuais da música – estrutura numérica, harmonia, divisão de tônicas principais, pausas etc. – com a palavra e o som verbal no lugar do som musical e da melodia.75 73 AMARAL, 2007, p. 89. 74 Ibidem, p. 89-91 (citação à p. 90); RAMON, op. cit., p. 904; e HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 205-206. 75 AMARAL, 2007 p. 91-98. Ver também RAMON, op. cit., p. 905-907; e SENA, Jorge de. Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista peninsular. Lisboa: Portugália, 1968.
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No Discurso historico, e político há muita poesia, em inúmeros versos citados e/ ou interpolados ao longo do texto, referenciados ou não em nota, de autoridades antigas ou de tempos mais recentes. Na primeira parte há três momentos com sonetos autógrafos – no sentido de “originais”. No primeiro deles, ainda quando se averiguava a conspiração dos cabeças na narrativa a dois meses do motim, o conde teria mandado fazer a divisa para o estandarte dos dragões inspirada no raio de Júpiter, como vimos. Segundo o Discurso, essa profetizava os incêndios e ruínas futuros em Vila Rica, prenunciados também pelos seguintes sonetos: Soneto 1.º Huā nuvem, q’ rompe chama acesa? Huā māo, em q’ a chama se embaraça? Hum rayo suspendido, que ameaça? Hum monte presumido na grandesa? Oh! tu que naō receas, que essa altesa, Com que ao monte competes, se desfaça, Cede hum pouco da altura, q’ a desgraça, Aos montes se destina nesta empresa. Naō creas, que talves pode a distancia Minorar couza alguā dos ensayos, Porque o rayo se arma à toda a estancia. Tema sempre a grandesa os seus desmayos, Pois que serâm os dannos em substancia, Onde atè os ameaços chovem rayos?
Soneto 2.º A cerviz hoje abaixe altivo monte, Ou tema, que prostrada do seu cume, A soberba eminencia em cinzas fume Os estragos lamente, os dan’os conte. Que esse rayo, que o busca pella fronte Se acazo despedir parte do lume,
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Verâ quando mais alto se presume, Que foy sua grandesa àos dan’os ponte. O monte se submeta, ceda a rocha, Porq’ dessas, que vé, nuvens espessas Os estragos lhe mostra fatal tocha. Poes o rayo, qual pedra, que, nas pressas, David contra o Gigante desabrocha, Nam derruba tambem mais q’ os cabeças.
Soneto 3.º A Moysès, que no monte topa a morte Abre Deos em hum valle a sepultura, Porque saiba a mais alta creatura, Que em baixezas do monte acaba a sorte. Hoje nesta do Conde empreza forte De Deos aquella idèa bem se apura, Poes sô contra os que estâm em mais altura O seu rayo fatal destina o corte. Poes se Moyzes por Deos mandado ao alto Da morte o rayo topa, que as grandesas Abaixo fas rodar logo de hum salto; A subir nam se tentem as fraquesas, Que do rayo, que vem, a o breve assalto Ham de parar ludibrio entre as baixesas.
Soneto 4.º Essa mam, que detem nos ares vagos Ao rayo, insinua aos montes nossos Que os do forte metal hontem colossos Hoje apenas despojos sam dos lagos. Advirtam poes os montes, q’ os Carthagos Tiveram nas grandezas os destrossos
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Porque onde os obeliscos sam mais grossos Fas o rayo mayores os estragos. Deponham logo os montes tanta lida, Com que âs nuvens se atrevem, q’ o perigo Lá somente os aguarda na subida. Porque o rayo nam desce, e o Castigo, Que essa mam lhe sustem compadecida, No subir cada qual leva com sigo.
Soneto 5.º Esse, que sobre o monte rayo sóa, Rompendo a grossa nuvem, q’ o gerara, Hé do Conde benigno empreza rara, Com que a sua justiça se coroa. Tema a soberba o danno, que apregoa O rayo, que suspensa a mam dispara, Poes nos fataes estragos, q’ prepara, Ao grande aviza, quanto ao monte atròa. Màs se do monte a mam o dan’o emprende Cô a suspensam, que ostenta na devisa, Nam vė, que das ruinas o defende? Oh quanta aqui piedade se devisa! Visto estâ, que os estragos nao’ pretende, Quando, antes do danno, o rayo avisa.76
Adiante, após explicar-se o suposto pasquim parafrástico da negação de Pedro, segundo o Discurso Pascoal da Silva planejava o “bota fora” ou a expulsão do conde para a noite de 28 de junho (véspera do dia de são Pedro), em outra analogia com o apóstolo – anualmente festejado pelo governador com fogos e luminárias. De novo, um soneto preconizara os fatos:
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Repetido este dia de Vos seja Tantas vezes, q’ á essa, q’ prescrita Nas cinzas do seu fado a ley limita, Mais q’ exemplos de vida, deis enveja. E nessas, que sagradas sam da Igreja Insignias, de que Pedro se acredita, Tende, invicto Dom Pedro, aquella ditta, Que presago hum affecto vos dezeja. Porque formo juizo (e nam me engano) Que hua’, e outra fingura singulares As fortunas franquea, estorva o da’no: Poes se as chaves seguram, q’ á milhares De dittas ham de abrir portas ào anno, O montante cortar promette azares.77
Por fim, após as dúvidas do conde sobre reprimir o motim por conta do desprezo dos editais, da quebra dos perdões e da desobediência dos rebeldes, este resolveu “Cortar a cabeça à esta hydra, e ver (ainda que com grande risco) se podia despedaçalla”. A ação imitava Júlio César – mediante Suetônio citado em nota – pelo momento em que o futuro ditador foi preso por piratas no mar Egeu, e “com hua’ desesperaçao’ honrada, digna, e dignissima de seu grande coraçam, intentou, emprendeo, e conseguio o castigo”,78 mandando crucificar os culpados. Em paralelo, a resolução condal foi aplaudida no soneto abaixo – a ser seguido pelo relato da feroz repressão. A prometter castigos se atrevia Dos piratas â furia, que o cercava, O gam Cesar, a quem nao’ assombrava, O perigo evidente, em que se via. Inda que prisioneyro, nao’ sofria
77 Ibidem, f. 60v-62r. 78 Ibidem, f. 127v, 129r.
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Seu animo mostrar, que desmayava: Que o valor, que no peito lhe pulava Desmayo nos contrarios infundia. Esta se calle acçao’, que a vossa empreza Hé mais nobre por ser mais o perigo, Em que se vio, Senhor, vossa firmeza. Cesar sô ameáça ào inimigo, Vos entre tantos mil, e sem defesa, Passais dos ameáços ào castigo.79
Embora se trate de poesia encomiástica, conforme Sérgio Alcides esses versos altamente codificados não são canhestros. Eles foram valorizados na diagramação do códice, anunciados como a forma prestigiosa dos sonetos e destacados no manuscrito por meio de letras maiores que o conjunto do texto. Seu autor no Discurso conhecia poesia, em especial a técnica do soneto, com versos graves em terminação paroxítona – em oposição aos versos agudos que terminam em oxítona, e aos esdrúxulos terminados com proparoxítona. Destaque-se a existência de motivações orientando a escrita dos sonetos e exemplos – o estandarte com o raio, a vida de Pedro apóstolo, o episódio em torno de César – que propiciam paralelos com os perigos e disposições envolvendo o conde. Nos dois primeiros casos, os sonetos foram apresentados no texto como já tendo sido realizados, sendo assim profecias depois cumpridas. Evidentemente não foi assim, pois a sublevação em curso impedia a previsão dos acontecimentos. Desse modo os sonetos proféticos foram elaborados retrospectivamente como memória – fazendo pensar se o próprio estandarte dos dragões e/ou o dito do pasquim, reproduzidos no texto, também não teriam sido concebidos a posteriori. Por sua vez, a analogia com o episódio da vida de César, disposta em forma de soneto imediatamente antes do relato do castigo, demonstra a reviravolta e o encômio belicoso que justificavam o furor e o ímpeto, mas também a prudência e a astúcia, pois César – conforme Suetônio – arquitetou o castigo após a humilhação sofrida. Vê-se o quanto as belas-letras nortearam a elaboração do Discurso historico. 79 Ibidem, f. 129r-129v.
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A quem se deve essa destreza? Como vimos no Capítulo 2, o 2o conde de Assumar João de Almeida Portugal e seu filho Pedro de Almeida eram afeitos ao mundo letrado, frequentando círculos resultantes da extinta Academia dos Generosos, cujas reuniões ocorriam na casa do pai de d. Luís da Cunha, amigo de ambos. Destaque-se também a instrução a distância fornecida por Bluteau ao então adolescente e a célebre carta escrita pela mãe no debute do jovem na Guerra de Sucessão da Espanha. Ademais, a estada de oito anos em Barcelona colocou pai e filho em contato direto com letrados catalães e estrangeiros, e também com Manuel Caetano de Sousa – hóspede no garboso palacete arrendado pelo embaixador português. O futuro fundador da Academia Real da História voltou a Portugal acompanhando o general de batalha Pedro de Almeida, nomeado novo comandante das tropas lusas aos 24 anos de idade, no início de 1713 – ante a ausência do conde de Atalaia. A cidade cosmopolita proporcionou ao jovem nobre um ambiente cultural que ultrapassava em muito o âmbito português à época.80 Mas tudo isso – expressando sensibilidade e apreço às letras e formas artísticas, como algo característico desta casa nobre – é muito pouco quando comparado ao treino intensivo da cultura jesuítica na arte retórica e na produção poética. A ideia da provável maior destreza de Antonio Correia e José Mascarenhas na matéria se adensa, ao pensar no círculo envolvendo os últimos anos de Vieira na Bahia e nas experiências sólidas vividas pelos dois padres, formados pela Ratio studiorum e tendo sido professores de filosofia nos colégios do Rio de Janeiro, São Paulo e Olinda – como vimos no Capítulo 4. Por trás dessa sapiência havia a Arte poética de Horácio. Nessa obra também conhecida como Epístola aos Pisões, 476 versos em tom coloquial dissertam, em suma, sobre a necessidade de harmonia na composição, unindo os efeitos do prazer à utilidade, com ingenium, ars (também no sentido grego de técnica) e alguma ousadia, assemelhando a poesia à pintura. Ao expressar motivos, funções e princípios estéticos, o escrito horaciano orienta a poesia coeva e futura. Ao menos desde Petrarca, Horácio era uma autoridade universal na poesia.81
80 MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit. 81 CITRONI, 2006d [1997], p. 543-545; e ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2014 [2008], p. 55-68.
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É difícil comparar o Discurso historico, e político a outras produções letradas no âmbito português moderno, fruto de transformações internas e modelos vindos da Espanha e da península itálica. Grosso modo, valorizava-se a locução artificiosa como fator de beleza e deleite e os encômios assentavam-se em autoridades diversas. Embora as comparações – conforme Quintiliano – ajudassem no entendimento, o uso contínuo de metáforas tendia a transformar as coisas num enigma que solicitava argúcia interpretativa, provocando admiração. Por sua vez, a quase onipresente antítese fazia definir os seres em oposição com engenhosos contrastes, e a hipérbole, ao exprimir o excesso, contaminava metáforas, comparações e antíteses, metamorfoseando o texto.82 Grande parte da poesia portuguesa no período fazia-se à sombra de Petrarca, Camões e Góngora; mas há de se destacar outras presenças no Discurso. As 13 notas sobre a Ulisseia, ou Lisboa edificada de Gabriel Pereira de Castro são substanciais. Pelo poema épico sobre a lendária fundação de Lisboa por Ulisses, impresso primeiramente em 1636 – quatro anos após a morte do autor, jurista no tempo de Portugal na monarquia hispânica – acessa-se a Odisseia de Homero. Todavia, a Ulisseia apresenta uma nova visão do herói, com mais traços pessoais, virtudes e proezas que o modelo homérico, enquanto antepassado dos reis e heróis lusos – como o jovem Assumar. No início do poema, a feiticeira Circe encoraja Ulisses a imitar Eneias em sua viagem à Itália – veja-se a relação intertextual também com a Eneida – e lhe indica o caminho até a Lusitânia. Ali ele fundaria Lisboa, destinada a ser cabeça de uma grande potência na Europa. Dividida em dez cantos com 139 estrofes em oitava rima (composta de oito versos decassílabos), a Ulisseia apresenta a mesma métrica de Os lusíadas. Para Camilo Castelo Branco, Lisboa edificada possui uma forte urdidura pagã e mais traços do maravilhoso que o grande poema camoniano. Seus versos seriam reconhecidos por suas destreza técnica e plasticidade. O Discurso permite reconhecer as reminiscências literárias de epopeias antigas, flertando com o regime de historicidade épico ou heroico descrito por François Hartog.83
82 REIS; PIRES; CARVALHO, op. cit., v. III, p. 21-72. 83 GLASET, Edward apud Ibidem, p. 422-424; SENA, 1988, p. 211-212; BRANCO, Camillo Castelo. Curso de litteratura portugueza. Lisboa: Livraria Editora de Mattos Moreira, 1876, p. 30-31; e HARTOG, 2003, p. 53-75.
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Na prosa, Francisco Manuel de Melo pode ter deixado sua marca no manuscrito por sua Historia de los movimientos y separación de Cataluña, ao relatar os fatos em que interveio, tirando deles narrativas e lições à maneira da monografia de 1720. Como vimos no Capítulo 3, apesar do estilo similar ao de Tácito – distante da eloquência deste códice – para Melo a história situava-se entre a retórica e a poética, com ações de príncipes, comandantes e outros entrecruzando-se de modo complexo. Com sentenças e aforismos fazendo a ponte entre verdades abstratas e acontecimentos particulares, Francisco Manuel de Melo apresentou reflexões morais como conclusões dos fatos, evitando as digressões. Mas expressou especial interesse pela “psicologia” das personagens – no que se aproxima do Discurso historico, pródigo nesses retratos.84 As novelas ficcionais de cavalaria, alegóricas ou exemplares, também guardam semelhanças com o Discurso, quando o autor bizantino seminal Heliodoro é citado ou Cervantes irrompe por meio dos referidos d. Quixote e Sancho Pança. Mas pode-se buscar uma experiência de leitura mais pontual e “realista”. No início do século XVIII a poesia épica ibérica era cantada pela pena do português Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos, conhecido por seus poemas heroicos escritos em castelhano: Nuevo mundo, dedicado a Felipe V e publicado em Barcelona em 1701, e Alfonso – em homenagem ao primeiro rei luso, Afonso Henriques. Depois Morais e Vasconcelos aderiu à causa aliada na Guerra de Sucessão, publicando um relato em prosa inspirado em Tácito. No opúsculo em castelhano o autor elogiou o 2o conde de Assumar João de Almeida Portugal, embaixador português na corte Habsburgo em Barcelona, e seu filho Pedro Miguel, ao mencionar suas vitórias militares. Certamente o jovem nobre tomou contato com esses trabalhos antes de ir para as Minas.85 O perfil alegórico fazia sucesso, como se vê pelo Compêndio narrativo do peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, editado várias vezes, coevo ao Discurso historico e patrocinado por Manoel Nunes Viana, em cujo texto também se veicula
84 REIS; PIRES; CARVALHO, op. cit., p. 171-189; TOBELLA, Juan Estruch apud REIS; PIRES; CARVALHO, op. cit., p. 199-201. 85 VASCONCELOS, Francisco Botelho de Moraes i. Progressos militares de Leopoldo Enrique Botelho de Magalhaens. [S.l.: s.n.], s.d., p. 52 e 46-76; MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 276-277.
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uma visão negativa do ouro.86 Um pouco ancorada na perspectiva de Hans Robert Jauss, Maria Francelina Drummond analisa a “epopeia sacra” com atenção às cinco reedições em Lisboa de 1728 a 1765, ao interesse do público à época, ao paradigma literário da peregrinação pelo narrador viajante, ao aspecto moralizante, ao gênero floresta no qual as histórias se enovelam, à utopia ecoando traços platônicos, e à prosa intercalada por poemas. O autor – de quem quase nada se sabe – confiou o maço de folhas a Manoel Nunes Viana. O mecenas o fez publicar pelo impressor Manoel Fernandes da Costa, que o reedita em 1731 – Miguel Manescal da Costa, Antonio Vicente de Paula e Francisco Borges de Souza foram os impressores seguintes. Nos 28 capítulos do primeiro livro, a partir da conversa com um ancião na cidade da Bahia (Salvador), o peregrino inicia a sua salvação espiritual por uma viagem. Meio penitente, foi às Minas com objetivos morais, citando autoridades antigas para criticar o clero – sobretudo secular – e outras instâncias do Brasil. Os encontros com a natureza e os moradores formam os temas e enredos. No último capítulo o velho ressurge e se autodenomina “Tempo-bem-empregado”, o guia do narrador.87 Destaca-se a “representação ficcional da colônia como inferno”, segundo a autora inaugurada por Marques Pereira, pois a peregrinação mística visava superar o “inferno colonial”.88 O escritor demonstra admirar a espiritualidade franciscana. Conforme Drummond, ele conviveu no ambiente erudito da Bahia no fim do século XVII e no início do XVIII, tendo acesso a bibliotecas como a do colégio jesuítico, a mesma que proveu outrora as leituras de Francisco Manuel de Melo – um modelo para o peregrino, junto a Gregório de Matos. O Peregrino da América trata da
86 Como vimos, Manoel Nunes Viana foi reconhecido por seu letramento no Discurso historico. Ele patrocinou a impressão do Compêndio narrativo e de tomos das Decadas da Asia, de Diogo do Couto (1736), em busca de prestígio no reino e alhures. Note-se o apreço às belas-letras presente em Pedro de Almeida e no poderoso regional, seu antagonista. Mas o Discurso e a Noticia conheceram recepções distintas dos impressos, explicadas neste livro pela nobreza de Pedro de Almeida e/ou pelo teor conflituoso dessas narrativas. ROMEIRO, 2008 , p. 156-178; e PALOMO, 2014, p. 111-137. Sobre o ideal heroico e as epopeias sacras presentes na literatura da América portuguesa, ver CANDIDO, Antonio (org.). Sergio Buarque de Holanda. Capítulos de literatura colonial. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 27-78. 87 Para essas informações, cf. DRUMMOND, Maria Francelina Silami Ibrahim. Leitor e leitura na ficção colonial. Ouro Preto: Ler, 2006. O segundo livro é de autoria duvidosa e permaneceu manuscrito até 1939, quando a cópia existente na BNP gerou sua edição impressa junto ao primeiro, pela Academia Brasileira de Letras. Com 22 capítulos, neste o Tempo retorna da Europa e, após elogiar d. João V, faz retomar o papel coadjuvante ao narrador. Embora mantenha a forma dialogal, com descrições, narrativas paralelas, exemplos e interpolações textuais, o segundo livro é mais alegórico – menciona-se neste o sucesso alcançado pelo primeiro nas edições de 1728 e 1731. DRUMMOND, op. cit., p. 39-42, 76-77. 88 Cita em notas Buarque de Holanda, que em Visão do paraíso não percebeu a singularidade da obra, mencionada em SOUZA, 198 6, p. 99-100, 144 para tratar do sincretismo ou do tratamento dos escravos, e sobretudo em SOUZA, 1993, p. 32, 46, 202-203 (nota 33) e 207 (nota 75). Mello e Souza associa o Peregrino ao Discurso como exemplos da “demonologia assistemática” na América portuguesa. Drummond menciona ainda o Erário mineral de Luís Ferreira Gomes (1735), a ser visto adiante. SOUZA, 1993, p. 50, 61, 176, notas 54, 57.
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viagem aos livros e ao conhecimento, capaz de transmutar a natureza diabólica. A autora levanta as possíveis leituras citadas evocando modelos dialogais, práticas ascéticas, de espiritualidade e moral; cogita obras não mencionadas, mas implícitas e sobre a cultura oral; nota a tradução frequente para o português de trechos da Bíblia, de autoridades greco-latinas ou da patrística, visando a publicação; e arrola exemplos das belas-letras ibéricas e de alhures, na escrita por vezes bilíngue entre o espanhol e o português.89 Não obstante a proximidade contextual e as muitas possibilidades de análise, trata-se de um escrito muito diverso em termos de circulação, moralidade e temas desenvolvidos em relação ao códice focalizado. O Discurso foi construído com fronteiras mais tênues entre histórias, o verossímil poético e o inverossímil ficcional. Em alguns momentos, neste texto se distingue entre a fábula e o verdadeiro, mas em muitos outros não há essa separação. Por outro lado, o fato de os autores gráfico e/ou intelectuais terem produzido quase simultaneamente dois manuscritos diversos e relacionados – o Discurso mesclado de formas expressivas e a Noticia eminentemente narrativa – indica que a autoria colaborativa sabia operar com várias historicidades discursivas, conforme as expectativas de recepção. A propósito, o ornatus que ao mesmo tempo decora e fundamenta a arte do discurso, conferindo um sal que estimula o gosto, um je ne sais pas quoi mais sentido do que dito90 expressa-se também por filosofias especiais.
89 SOUZA, 1993, p. 79-8 0, 91-119. Conforme Renato Franco, neste texto a experiência temporal submete-se à espiritual, reverberando um dualismo que remonta a Agostinho ou à Psicomaquia de Prudêncio (seguindo Hansen) ao tratar virtude e vício de forma alegórica. O peregrino era um pauper, categoria que designava vários tipos de necessidade, sendo digno de caridade. Escrito durante a extração mineradora, o texto é sensível aos impactos do ouro e do enriquecimento. Grosso modo, pobres e escravizados eram entendidos como grupos de tutela análogos, mas distintos, pois a cultura cristã da Época Moderna nem sempre incluía indígenas e africanos. Marques Pereira não trata dos escravos nos trechos sobre a pobreza, mas sua condição inferior é evocada ao discorrer sobre o pater familias na oikonomia cristã. Se os escravizados deviam ser humildes e obedientes, para o narrador os proprietários deviam ter compaixão ante os miseráveis, mostrando nos diálogos o que se esperava daqueles. No Setecentos os moralistas passaram a comentar o papel das famílias cristãs com os escravos, para integrá-los na religião romana. Entre os portugueses a tendência despontou com a impressão da obra de Giorgio Benci em 1705, citada nas Constituições primeiras do arcebispado da Bahia (1707). FRANCO, Renato. Riqueza, pobreza e miséria no Compêndio narrativo do peregrino da América. In: FRANCO, Renato; CARNEIRO, Alexandre; FREITAS, Edmar (orgs.). As paixões e os afetos: percepção e figuração da realidade em múltiplas temporalidades. São Paulo: Hucitec, 2020, p. 226-237. 90 BOILEAU-DESPRÉAUX, 2012 [1674], p. 12.
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Alquiminas O trecho do códice que abriu o Capítulo 1 – antecedido em nota pela visão de mundo do herege Marcião, por Tertuliano, e emulando verso das Metamorfoses de Ovídio – foi divulgado nos livros de Sylvio de Vasconcellos e Laura de Mello e Souza. Mas o ar sempre nublado, o frio do país, o vício ardente, os tumultos evaporados da terra, a água exalando motins, o ouro que provoca desaforos, as liberdades destiladas pelos ares, as insolências vomitadas por nuvens e os astros influindo liberdades, ao tipificarem por meio de arte retórica a natureza das Minas associada ao inferno, também agregam elementos alquímicos e astrológicos, enquanto filosofias naturais à época.91 Algumas passagens corroboram essa leitura, por exemplo ao se escrever na mancha gráfica central – com notas marginais de Tibulo e Focílides sobre o ouro maléfico e ilusionário: o ouro encerra, e occulta em si muitas fezes, e muitos males, dos quaes sahem, como da terra vapores, certas fumaças, que corrompem este ar, que por toda a parte nos cerca, o qual penetrando por olhos, narizes, e boca, e outros poros até o mais interior, e introduzindo dentro juntamente com sigo as màs qualidades, de que estȧ inficionado, faz q’ dos venenos, que envolve, resultem nos individuos, a que se co’munica, os effeitos.92
A conhecida associação, acima invertida, com o ouro ocultando as fezes, retorna ao tratar-se das oscilações do povo de Vila Rica – dócil ante os editais e cartas do conde, ou azedo e turbulento na consulta aos agentes dos cabeças da sublevação – por verso das oitavas de Santa Úrsula, atribuídas a Camões por Manuel de Faria e Souza, mas antes publicadas como sendo de Diogo Bernardes: O’ povo cego, e leve, as torpes fezes Aparta do ouro puro, e lança fora, Torna-te à teu pastor perdido gado, Olha que vàs sem elle mal guiado.93
91 APM, AVC-17, f. 2r-2v. 92 Ibidem, f. 4v-5r. 93 Ibidem, f. 69r.
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Na segunda parte do texto, ao referirem-se os motins em Gand no reinado de Carlos V, no Discurso o monarca é tido como benigno Sol deste hemisferio, e na altura, à que os tem elevado o seu ouro naō conhecem Rey, nem obedecem a ordem sua; mas se nam medem bem as differenças, e apuraō mal o ouro, converta o mesmo Planeta as modificaçoe’s da benigna luz em rigores de incendio consumidor: abraze, gaste, e destrua tantas fezes: que lhe dan’am as suas Minas.94
O tecido apresentado possui pontas soltas nas formações dos prováveis colaboradores textuais. No âmbito da Guerra de Sucessão da Espanha, quando não estava em batalhas Pedro de Almeida frequentou a farmácia de Carlos Habsburgo, interessado no gabinete de curiosidades e nas plantas medicinais recolhidas na passagem anterior do arquiduque por Portugal. Segundo o viajante italiano Giovanni Francesco Gemelli, o jovem nobre era interessado em ciência. Como vimos no Capítulo 2, Pedro de Almeida teria retornado das Minas com uma coleção de minerais. Anos depois, Charles Fréderic de Merveilleux foi incentivado pelo secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real a conhecer em Lisboa “o jovem conde de Assumar, que fora governador das Minas, com os condes da Ericeira, pai e filho, com o moço marquês de Alegrete, todos muito dedicados às Belas-Letras”. Em suas memórias o viajante suíço descreve a serra de Sintra e os registros de um oficial estrangeiro que ali viveu recolhendo plantas, tendo fixado o mercúrio na cor do ouro na presença do marquês de Abrantes, e com interesse numa fonte da qual saía uma grande luz, e numa mina de ímã – ambas ali existentes. Segundo Merveilleux, o marquês de Abrantes afastou o estrangeiro, “porque via com desagrado a proteção que lhe dispensava o secretário de Estado e a amizade que lhe tinha o conde de Assumar, homem sabedor e com curiosidades, a quem lhe invejava o génio e a habilidade”.95 Mais adiante, na correspondência entre o vice-rei da Índia e seu filho, vimos no Capítulo 2 o jovem 4o conde de Assumar João de Almeida Portugal escrever entusiasmado ao pai sobre auroras boreais, astronomia, eletrização de corpos com bola de vidro e a pedra filosofal. Havia assim diálogo entre eles sobre esses assuntos na década de 1740.
94 Ibidem, f. 160v-161r. 95 MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 274; LISBOA, 1786, p. 16; e MERVEILLEUX, op. cit., p. 152-159 (citações em p. 152, 159).
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Por sua vez, na Bahia Antonio Correia conviveu com o padre Valentin Stansel, matemático, missionário e professor de teologia moral naquele colégio da Companhia de Jesus, também astrólogo e autor de Uranophilus, publicado em Gand em 1685. Seu livro dialogava com o controverso – por ter enfrentado dificuldades com a censura jesuítica – Iter exstaticum (título abreviado) de Athanasius Kircher, publicado primeiramente em 1656. Como vimos no Capítulo 4, Stansel conheceu o erudito jesuíta alemão em Roma, tendo se correspondido com ele durante 20 anos, quando viveu em Lisboa, na Bahia e em Pernambuco, tratando de assuntos como livros, observações de eclipses, a fauna e a flora do Novo Mundo. No Brasil, os trabalhos de Stansel eram conhecidos sobretudo por médicos e poetas – a astrologia natural era aplicada na medicina, pois as epidemias permitiam constatar a influência dos astros no mundo sublunar. Ao afinar-se com o sistema do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe, Stansel acompanhava os astrônomos da Companhia de Jesus, advogando o centro e a estabilidade das coisas na Terra, os corpos celestes e terrestres compostos com os mesmos elementos, sendo passíveis de geração e corrupção etc.96 Como vimos, segundo um raro informe Antonio Correia entendia de coisas de medicina. Vários anos depois, Athanasius Kircher foi um dos três nomes citados na interpretação da pedra enigmática – na atual São Tomé das Letras – pelo já sexagenário José Mascarenhas.97 As menções convidam a perscrutar esse contexto de ideias. Carlos Ziller Camenietzki estuda a filosofia de Kircher, jesuíta com posição privilegiada na Roma de Alexandre VII (1655-1667), ligado a uma tradição hermética adaptada ao âmbito da Reforma católica, em busca de explicar a “harmonia do mundo” – governado pela providência divina, mas também sujeito
96 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Da Bahia às estrelas: as viagens celestes de Valentin Stansel (1621-1705). In: CAROLINO, Luís Miguel; CAMENIETZKI, Carlos Ziller (orgs.). Jesuítas, ensino e ciência: séc. XVI-XVIII. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2005, p. 227-240. Tycho Brahe (1546-1601) era um autoditata com interesse em alquimia e na equivalência entre fenômenos terrestres e celestes. Foi um grande observador, principalmente a olho nu. Com instrumentos adquiridos ou construídos por ele, observava os planetas e cometas continuamente pela paralaxe, determinando a distância relativa entre os astros. Diferentemente de Copérnico, não acreditava no movimento da Terra, evitando a censura teológica ao afirmar um universo fechado por uma esfera estelar com rotação cotidiana, a Terra no centro das órbitas da Lua e do Sol que, no entanto, estava no centro das órbitas de outros cinco planetas. Por outro lado, seus cálculos equivaliam ao sistema copernicano. O sistema de Brahe foi preferido por muitos jesuítas e sua autoridade obstaculizou a difusão das ideias de Copérnico. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Tradução de Antonio Angonese. Bauru: Edusc, 2001 [1997], p. 128-132. 97 Embora elementos da Antiguidade fossem associados a manuscritos simbólicos na América, tempos antes Kircher desdenhou os pictogramas mesoamericanos em relação aos prestigiados hieróglifos egípcios. CAÑIZARES-ESGUERRA, op. cit., p. 65, 96, 131-131, 262, 355.
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a forças imanentes. Suas ideias tinham origem em alguns pontos das filosofias de Tomás de Aquino e Averróis, admitindo causas naturais cegas ou naturalizando milagres, também incorporando traços das metafísicas de Francisco Suárez e Luis de Molina. Destaca-se ainda a influência da mística alemã medieval e do cardeal quatrocentista Nicolau de Cusa, que construiu sua filosofia em bases neoplatônicas. Para este o conhecimento nascia da comparação entre o conhecido e o desconhecido, das coisas do mundo, consideradas contrações diretas de Deus. Um universo plural e indefinido, com objetos diversos e proporcionais entre si, passíveis de corrupção e imperfeição – ideias que se coadunavam também com o ambiente humanista italiano e o colecionismo da Época Moderna.98 No Seiscentos havia tensões envolvendo a magia e o hermetismo, com críticas ao aristotelismo e também a novas filosofias naturais. Por exemplo, o médico inglês Robert Fludd polemizou com Johannes Kepler, ao defender a existência de seres intermédios entre Deus e o mundo dirigindo os eventos, em contraposição ao mecanismo de leis imutáveis que governaria o universo. Conforme Camenietzki, o conflito de ideias ocorria fora do âmbito da filosofia peripatética. Adepto do providencialismo absoluto, Fludd integra a fraternidade Rosa-Cruz em 1617. Por esta defende que a ciência deve decifrar os signos impressos pelo autor do mundo, com uma linguagem simbólica para definir a proporção de luz ou trevas das coisas – retomando Nicolau de Cusa, a exegese dos textos bíblicos, a cabala etc. Na França após 1640, o debate sobre os propósitos providencialistas envolveu Pascal, os jansenistas, jesuítas, dominicanos e protestantes. Mas mesmo na Roma católica era possível a atuação de alguém heterodoxo e avesso a dicotomias filosóficas.99
98 CAMENIETZKI, 1995, caps. 1 a 6. As obras de Tomás de Aquino foram por vezes completadas por outros após sua morte, como seus comentários sobre os livros meteorológicos de Aristóteles. Há trechos em que Tomás de Aquino deixa em aberto a questão da transmutação de metais, não incapacitando os defensores da crisopeia. Numa passagem apócrifa atribuída a Tomás de Aquino sobre Aristóteles, a posição negativa sobre a alquimia cede lugar a uma distinção entre alquimias verdadeira e sofística, bem como à possibilidade de se transmutarem metais, não obstante a sua dificuldade. Portanto, na Época Moderna a posição de Tomás de Aquino sobre a alquimia parecia ao menos ambígua, pois seus escritos podiam ser invocados por lados opostos. Os tomistas percebiam que Aristóteles concedia à alquimia a capacidade de efetuar transmutações metálicas, ainda que imperfeitamente. MATTON, Sylvain. Philosophie et alchimie à la Renaissance et à l’Âge Classique: scolastique et alchimie (XVIe-XVIIe siècles). Paris; Milan: SÉHA; Arché, 2009, p. 2-11. 99 O hermetismo no pensamento do dominicano Giordano Bruno e o movimento Rosa-Cruz foram estudados por Frances Yates. Não obstante a qualidade de suas pesquisas, a historiadora inglesa vê apenas como reacionárias as atitudes de jesuítas e do âmbito da Contrarreforma, dificultando a percepção do diálogo cultural também ocorrido no seio da ordem católica. YATES, Frances A. Giordano Bruno e a tradição hermética. Tradução de Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Cultrix, 1995 [1964]; e YATES, Frances A. O iluminismo Rosa-Cruz. Tradução de Syomara Cajado. São Paulo: Pensamento, 1983 [1972]. Cf. CAMENIETZKI, 1995, cap. 6.
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Ingressando nos estudos jesuíticos em 1620, Kircher deixou a Alemanha em 1631 durante a Guerra dos Trinta Anos e se estabeleceu em Avignon – onde lecionou matemática e línguas orientais, conhecendo os hieróglifos egípcios. Em 1635 foi para Roma, onde ficaria até morrer em 1680. Nesse tempo já escrevera um livro sobre o magnetismo, posicionando-se na polêmica sobre seu uso na medicina, em especial acerca do “unguento de armas” ou unguento magnético, ou simpático – uma preparação alquímica para curar feridas a distância, pois o médico aplicava o unguento sobre a arma que provocou a ferida, a fim de saná-la. O medicamento foi proposto por Paracelso no Quinhentos, sendo combatido ou sustentado até meados do século XVII. Trata-se de uma concepção de natureza governada por relações de simpatia e antipatia entre as coisas, podendo-se manipular as qualidades para produzir efeitos maravilhosos. Em 1641 Kircher voltou ao medicamento num segundo livro sobre magnetismo, polemizando contra o providencialismo radical de Robert Fludd e desdenhando do uso do unguento – mas em diálogo com o saber alquímico.100 No Discurso historico, ao final do relato do castigo com a prisão e a morte de Filipe dos Santos, compara-se a sublevação à chaga de Télefo, o filho de Heraclés – ou Hércules – que numa versão de sua lenda fora ferido na coxa pela lança de Aquiles. Télefo consultou o oráculo de Apolo para saber como curar a ferida aberta há anos. O deus teria dito que esta só seria curada por quem a causou. Aquiles concordou e pôs um pouco da ferrugem de sua lança no ferimento, curando “â chaga de Telepho, à que sô deo remedio a mesma lança, que a fès”. Na nota ao lado há uma elegia de Ovídio, em Tristia, sobre o episódio.101 Para além da retórica
100 No Colégio Romano Kircher foi professor de matemática em vários anos. Ali as disciplinas não tinham professores fixos, favorecendo experiências pedagógicas e filosóficas. As prioridades de trabalho intelectual, ensino e via missionária estavam consolidadas, em obediência ao papa e visando reconquistar o terreno perdido para os hereges. A Companhia estava nas quatro partes do mundo, possuía dois santos (Inácio de Loyola e Francisco Xavier) e dois cardeais (Bellarmino e Toledo). Mas havia conflitos. A escolástica era um vasto âmbito de debate de muitas escolas, no qual os jesuítas aderiram ao realismo de base tomista, subordinando as disciplinas filosóficas à teologia de Tomás de Aquino e do concílio de Trento, com algumas ideias dos Padres da Igreja e outros teólogos não tomistas. Essa subordinação da filosofia à teologia na ordem evitava o surgimento de hereges em seu seio. O Collegium Revisorum estabelecido por Claudio Acquaviva em 1597, composto com teólogos e professores, examinava os livros a serem publicados. Mas havia tensão entre a vanguarda de estudos e o trabalho da Contrarreforma pela glória divina (nem sempre o conhecimento confirmava a teologia), aumentada pelas observações de Galileu, a experiência barométrica e teorias da gravidade. As obras e a atuação de Kircher no museu do Colégio Romano inseriam-se nesse ambiente plural, pujante e conflituoso do século XVII, repercutindo no Novo Mundo. CAMENIETZKI, 1995, caps. 6 e 8. 101 APM, AVC-17, f. 144r; e KURY, 2008 [1990], p. 371-372. A propósito, Filipe dos Santos foi arrastado, à maneira de Heitor, por Aquiles, na Ilíada.
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e do sofisma favorável ao conde general, percebe-se a alusão ao tema do unguento de armas. Na Companhia de Jesus escreveu-se contra a magia e a alquimia. Mas a ausência de uma negação cabal sobre a transmutação metálica no doutor Angélico e na escolástica, e o posicionamento de juristas sobre a sua licitude pesaram sobre os teólogos e filósofos jesuítas. Benedictus Pereyra foi o primeiro a estudar detalhadamente o problema da crisopeia, ante o prestígio crescente de Paracelso no Sacro Império Romano Germânico. Ensinando no Colégio Romano desde 1656, Pereyra era autor de um tratado já muito reeditado sobre a Física de Aristóteles, com capítulos sobre a alquimia. Citando auctoritates, nesses questiona se era possível produzir ouro pela arte alquímica; relata opiniões dos defensores da transmutação metálica; e expõe sua posição sobre a inexistência de uma razão filosófica ou teórica provando a impossibilidade da crisopeia, ou a possiblidade de aproximar-se o calor do fogo ao celeste. Para Pereyra a crisopeia seria praticamente impossível de realizar-se, pois nunca se provou o seu logro. A alquimia, útil se limitada a destilações e coisas similares, seria perniciosa ao pretender fazer ouro.102 No colégio jesuítico de Coimbra, comentários sobre Aristóteles eram ditados aos alunos, com os escritos de Pereyra por trás – condenando, mas tendo em destaque o assunto da alquimia. O protagonista dessa polêmica antimágica era o padre Martín Del Rio, com a obra Disquisitionum magicarum libri sex, publicada entre 1599 e 1600 em Louvain, com mais de 15 edições no século XVII. Ao explicar aspectos da alquimia, Del Rio trata da crisopeia, segundo alguns conhecida por Moisés e sua irmã, por Salomão, Hermes Trismegisto, Aristóteles e alguns pitagóricos, além de estar presente nas Escrituras. Para outros, havia um sentido alquímico no enigma da Sibila e em outros mitos. Del Rio estuda a eficácia da alquimia no fabrico do ouro, sumariando opiniões diversas. Mas em sua exposição e refutação detalhadas revela ter grande conhecimento da literatura alquímica, avançando no axioma de que a arte dos alquimistas podia transformar com fogo outros metais em ouro. As razões para tal seriam os argumentos contrários insuficientes, o episódio bíblico dos mágicos do faraó transmutando bastões em serpentes, o poder do fogo
102 MATTON, 2009, p. 22-28.
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evidente na digestão alimentar, a geração espontânea por cadáveres etc. A questão da crisopeia era assim resolvida por uma possibilidade teórica e pela probabilidade das transmutações, sendo a alquimia uma magia natural, pelos influxos celestes postos em jogo. Del Rio admitia a prática alquímica para os humildes, justos, pios e com meios financeiros suficientes. Conforme Sylvain Matton, a obra tornou-se referência obrigatória para os teólogos jesuítas, usada por adversários ou partidários da alquimia.103 Livros de Benedictus Pereyra, Martín Del Rio e Athanasius Kircher – embora não citados no AVC-17 – figuram no inventário da livraria do Colégio do Rio de Janeiro, como visto no Capítulo 4. Portanto, não havia uma regra clara da Companhia de Jesus proibindo a alquimia, ou essa não teria sido significativa, bem como a interdição de seus membros ensinarem medicina não expressava o valor dado a essa prática por esses clérigos. Os escritos de seus teólogos e filósofos demonstram suspeição, mas também prudência sobre a alquimia transmutatória. Apenas uma minoria negava a possibilidade física das transmutações, em face da outra que afirmava sua veracidade, crendo que os metais eram continuamente engendrados nas entranhas da Terra. Essas posturas perduraram até o século XVIII, não obstante a hostilidade crescente do meio científico, também ecoando entre os jesuítas.104 Em sequência à alegoria sobre a chaga curada de Télefo com a lança de Aquiles, menciona-se no códice o mítico rei Midas, por Quinto Cúrcio e Plutarco, mediante Nicolas Caussin (La corte divina o palacio celestial). O episódio da cratera aberta em Celenas, na Frígia, que tragou o filho de Midas em sacrifício, mostra analogamente que, para a “boca da soblevaçam” não bastaram a prata dos editais e o ouro dos perdões, sendo necessário sacrificar a vida de Filipe dos Santos.105 Em passagens do Discurso há uma apropriação não literal de princípios alquímicos, por vezes invertendo os sinais – o ouro gera fezes – ou construindo paralelos e imagens esclarecidos com este saber. A que isso se deve?
103 Ibidem, p. 28-47. 104 Ibidem, p. 71-75. 105 APM, AVC-17, f. 144r-145r; MATTON, Sylvain. L’interprétation alchimique de la mythologie. Dix-huitième siècle, Lyon, n. 27, p. 73-87, 1995. O sacrifício ritual de Filipe dos Santos é mais de uma vez referido no códice, também em relação ao episódio bíblico do bezerro de ouro e Moisés, no fim do Discurso. Ele pode ter raízes poéticas na Eneida, na posição de Eneias como líder sagrado e militar dos romanos, em analogia ao conde general de 1720. PANOUSSI, op. cit., p. 52-65.
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Nos cursos de filosofia da Companhia, os professores expunham argumentos contra e em prol da alquimia, embora desde o fim do Seiscentos se cedesse cada vez mais lugar à doutrina química dos elementos ou princípios naturais. Manuais desses cursos, como Philosophia universa speculativa peripatetica, de Gaetano Felice Verani, estavam também na livraria do Colégio do Rio de Janeiro. Sem mencionar autores compulsados, Verani apresenta a natureza metálica como uma exalação subterrânea, a semente de todos os metais, ou a pedra filosofal em si. Seu desenvolvimento compunha o “espírito geral do mundo”. Em suma, sal, enxofre e mercúrio constituíam as coisas, e por destilações ou extrações sobre o fogo obter-se-iam esses elementos. Por trás de tudo estava a pirotecnia, a arte do fogo ou espagiria, a separar ou reunir de forma resolutória (extraindo quintessências de substâncias grosseiras), purificatória (separando os metais das fezes) ou transmutatória (a alquimia ou crisopeia propriamente dita, para extrair ou coagular ouro de outros metais).106 No Discurso historico o incêndio no morro do Ouro Podre é narrado de modo singular. Sobre as casas de Pascoal da Silva, compostas com sólidas madeiras, “parece que o elemento apurou a voracidade” do fogo, para “destruir aquelle escandalo de Villa rica”. Na falta do castigo da justiça, as casas já poderiam ter sido consumidas por pragas e maldições. Segundo o texto, nas casas do minerador havia dois barris de alcatrão – “genero nunca visto nas Minas, e que nellas jà mais tivera sahida”. Inflamados, esses propiciaram a queima. Portanto, o próprio Pascoal da Silva “era o fogo do seu incendio”, por juntar “tanta lenha de excessos á chama da justiça, que o Conde tantas vezes anciozamente procurou apagar com os burrifos da paciencia, e chuveyros da piedade”. Notas de Cícero (Filípicas), Marcial (Epigramas) e Licofronte (Cassandra) ladeiam o parágrafo.107 Se o discurso de Cícero lembra o seu ataque a Marco Antônio (em paralelo a Pascoal da Silva), o epigrama de Marcial e o dito do antigo bibliotecário grego em Alexandria explicitam a relação entre o fogo do morador e a própria casa. Mas os curiosos e inauditos barris de alcatrão aumentaram o fogo. O alcatrão é obtido ao destilarem-se matérias orgânicas, como carvão, ossos e madeiras resinosas. A água de alcatrão era usada na alquimia mediante a espagiria, sendo também um remédio tradicional contra
106 MATTON, 2009, p. 256-287. 107 APM, AVC-17, f. 141r-141v.
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várias enfermidades. Como se vê, já não se sabe o limite entre a arte do discurso e o relato factual.108 O incêndio narrado no códice – mesmo favorecido pela incúria dos escravos, como se “explica” – possui um sentido alquímico e purificador, de forma a justificar a ação do conde general, fazendo do morro de Pascoal da Silva um grande alambique. O parágrafo aparece mais resumido no texto da Noticia, mencionando-se os barris de alcatrão, mas sem digressões. Nas notas ao lado se escreve: “Poem se fogo as casas de Pasq.al da Silva” e “Dous barris de alcatrao’ se lhe achao’ em casa”.109 A metáfora do morro do Ouro Podre como lugar de destilação pode referir-se também ao momento em que no códice compara-se aquele a uma cidadela. O termo alusivo a uma grande fortificação faz parte da história da Guerra de Sucessão da Espanha, após a partida de Pedro de Almeida de Barcelona; também aparece na Eneida de Virgílio; mas a imagem da cidadela alquímica é também recorrente em livros de alquimia, com as pedras angulares da fortaleza protegendo a rocha central, onde ocorria a espagiria – como numa mandala.110 Entre a história, a mitologia e a filosofia natural, a construção do texto vale-se de várias filiações de ideias. Ademais, no códice menciona-se em dois momentos a águia. A águia bicéfala dos Habsburgos, portando num bico o raio e em outro a coroa, logo antes da menção à passagem sobre a chaga de Télefo; e imediatamente a seguir ao parágrafo sobre o fogo no morro e os barris de alcatrão, por uma fábula de Esopo (A águia e a raposa), na qual a águia destrói o próprio ninho ao trazer brasas.111 Dispostas desse modo, as únicas menções ao animal no manuscrito não parecem fortuitas. A águia possuía papel importante nos textos e gravuras alquímicos dos séculos XVI e XVII, ao representar o caráter volátil da pedra filosofal, em oposição ao leão como matéria sólida – por vezes, a ave é representada acima de um morro. Era associada ao poder de se sublimar por destilação e ao princípio do “dois em um”, unindo o
108 Desse modo o texto seria mais ou menos permeável ao real, podendo representá-lo e também criá-lo. JAUSS, 1978 [1974], p. 36-37, 42. 109 IEB-USP, AL-61, p. 47. 110 APM, AVC-17, f. 27r; GARCIA ESPUCHE, Albert. Una societat assetjada Barcelona 1713-1714. Barcelona: Empúries, 2014; e ROOB, Alexander. O museu hermético: alquimia & misticismo. Tradução de Teresa Curvelo. Lisboa: Taschen, 1997, p. 335-355. Outra alusão alquímica pode encontrar-se na menção ao ovo de Oromasis (príncipe do fogo), contendo 24 deuses (considerado um número misterioso), símbolo da mitologia persa descrito por Plutarco (Ísis e Osíris) e apropriado no Discurso a partir de Nicolas Caussin. Trata-se de um “ovo filosofal” a ser incendiado com uma espada de fogo? APM, AVC-17, f. 23v-24r; e ROOB, op. cit., p. 490-497. 111 APM, AVC-17, f. 144r-144v e 141v-142r.
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estável ao volátil, ou os opostos, no caso da águia bicéfala. Nos frontispícios dos livros de Kircher são recorrentes as imagens de águias, com uma ou duas cabeças.112 Por fim, o exemplo de Moisés e o bezerro de ouro em associação ao conde na peroração do Discurso pode aludir à arte filosófica da fusão, pois Moisés teria sido próximo ao lendário Trismegisto, instruído assim no saber egípcio. Não por acaso, Diocleciano em 294 ordenou queimar os livros egípcios sobre a crisopeia, para preservar o domínio romano. Trata-se de uma alquimia do verbo, com raízes nos Padres da Igreja, apropriada pela formação em retórica dos jesuítas, valendo-se de uma erudição profana apoiada em várias fontes, em busca de similitudes. Nesse universo concebido como um grande livro, a destilação simbolizava aperfeiçoamento, mas também o poder. A alquimia era utilizada por autores religiosos como matéria do discurso, potencializando a eloquência por termos a ela emprestados, capazes de fascinar. Esse saber não era entendido como magia sobrenatural ou superstição, tampouco possuía uma dimensão religiosa. Subalterno à física nos cursos de filosofia, era também difundido entre o público mundano nos colégios da Companhia, como metáfora de purificação e transformação da alma.113 A ideia do espírito universal ou geral do mundo, mais imanente, representava uma mudança na chamada “filosofia hermética” ou neoplatônica. O spiritus mundi, concebido como corpo sutil e veículo da alma incorporal de um mundo material, podia aproximar-se da concepção de alma material de um universo material, abrindo caminho ao materialismo vitalista a se expandir no século XVIII.114 Em 1651 a Ordinatio pro studiis superioribus foi divulgada no âmbito jesuítico, a fim de impedir dissensões entre os professores de teologia e filosofia, restringindo a liberdade dos segundos conforme o já estabelecido pela Ratio. Em suma, os filósofos não deviam negligenciar questões sobre a natureza e as qualidades dos influxos celestes sobre as coisas sublunares, afirmando a dependência do mundo em face de seres superiores. Recomendava-se não questionar a livre criação divina, a causa primeira nas transformações do mundo sublunar, a graça, a origem do mundo etc. Conforme
112 Na Nova Espanha, clérigos crioulos viam a águia asteca com as asas abertas em forma de cruz como um símbolo neoplatônico para afastar os maus espíritos. CAÑIZARES-ESGUERRA, op. cit., p. 374; JOLY, Bernard. Rationalité de l’alchimie au XVIIe siècle. Paris: Vrin, 1992, p. 244-245; ROOB, op. cit., p. 263, 302, 362, 364, 416, 435, 464, 470, 480; e CAMENIETZKI, 1995, cap. 13. 113 MATTON, 2009, p. 28, 661-737. 114 Ibidem, p. 855-865.
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Ziller Camenietzki, o atomismo era um problema apresentado nos enunciados da Ordinatio acerca das proposições sobre a forma, a matéria e os elementos em desacordo com explicações tomistas, por exemplo sobre a eucaristia. Ademais, o atomismo vincula-se a uma filosofia natural baseada numa mecânica radical entre as coisas, podendo assim negar a providência divina. Embora fosse à época mais um campo de teorias do que uma filosofia precisa, o pensamento era incompatível com a ideia de um mundo governado por agentes espirituais, sendo inaceitável aos teólogos que combatiam o determinismo de uma ordem natural.115 O atomismo tinha raízes gregas, mormente na filosofia de Epicuro. Como vimos no Capítulo 3, no século I a.C. o romano Lucrécio compôs o poema Sobre a natureza das coisas, difundindo nos meios literários latinos aquelas teorias físicas em versos. De modo distinto do estoicismo, o epicurismo também concebia a felicidade do homem nele mesmo. Todas as coisas seriam compostas de átomos, que se movem e podem desprender simulacros, por sua vez entrando nos homens e despertando-lhes emoções – uma explicação mecanicista das coisas. O poema lucreciano fazia diminuir os medos humanos dos deuses, do além e da morte, pois a alma seria mortal, devendo valorizar o pensamento e a sensação, sendo as penas explicadas pelo próprio mundo, pelas paixões que atormentam os homens.116 Uma cópia manuscrita do extenso poema foi recuperada em 1418 e o texto passou a ser divulgado por seus aspectos filosóficos e qualidade literária, sendo considerado heterodoxo e até subversivo. Mas suas impressões não foram proibidas pelos índices da Igreja de Roma. Sergio Bertelli identificou a grafia de Maquiavel num manuscrito com a transcrição do poema lucreciano. Embora já se cogitasse acerca dos vínculos entre Maquiavel e o epicurismo, Alison Brown faz a conexão entre Maquiavel e Lucrécio por vários pontos, por exemplo sobre a questão da fortuna. Para Luís Gustavo Mandarano, embora haja alguns desacordos nessa confrontação, percebe-se como o poema pode ter inspirado a forma maquiaveliana de pensar e entender o mundo, especialmente no que respeita à visão de uma humanidade oprimida pela religião. O remédio para esses males seria descobrir o
115 CAMENIETZKI, 1995, cap. 10. 116 Dividido em seis livros, o poema explica a filosofia de Epicuro aos romanos mediante linguagem poética e metáforas, discorrendo sobre o atomismo, a mente e a alma, as sensações e o pensamento, o mundo e os fenômenos terrestres e celestes, movidos pela fortuna – ou acaso. PEREIRA, 2012, v. II, p. 111-124.
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funcionamento do universo, com as coisas surgindo conforme a natureza e não por intervenção divina.117 Há ainda estudos sobre a visão cósmica de Giordano Bruno – um cosmo único, homogêneo e com vários mundos – com acento lucreciano. Por esse prisma, a relação entre natureza e vicissitude, bem como o atomismo de Bruno, aludem ao poema de Lucrécio, tendo como marcas a unidade, a eternidade e a indestrutibilidade da matéria.118 No AVC-17, Sobre a natureza desponta em oito notas na primeira parte. O primeiro trecho margeado por nota de Lucrécio é sobre a culpa admitida e o medo do castigo de um suposto cabeça do motim, ao não atender ao chamado do conde quando este averiguava a sublevação; o segundo quando, após a proposta dos amotinados, o conde “traduzia de outra maneira as emoções” conforme Lucrécio, e dilatava o prazo da resolução enquanto os cabeças continuavam a inquietar o povo; o terceiro trata do afastamento de Martinho Vieira, “pedra de escandalo”, quando mascarados pressionavam os moradores a recolherem-se em suas casas. Contra os amotinados e seus cabeças, Lucrécio (mencionado também no texto) exclama que a avareza e a ambição obrigam os homens a sair da razão, passando a ser sócios no crime.119 O quarto trecho refere-se ao momento anterior à ida do povo de Vila Rica a Ribeirão do Carmo, quando Sebastião da Veiga Cabral, com estratagemas, não ia à casa do conde, desculpando-se. O Veiga mandou então chamar os dois padres jesuítas “que assistem em pallacio”, dizendo que um criado seu estava morrendo. Quando os padres chegaram, começou a fazer “convulsoe’s, e tregeitos”, dizendo que ia para o Rio de Janeiro, pois alguém lhe dissera (sua consciência, segundo o Discurso) que o conde escreveu ao rei afirmando ser ele o cabeça do motim. O quinto trecho trata dos discursos dissimulados do mesmo Veiga Cabral, perturbando o governo do conde ao dizer querer retirar-se para sua fazenda, temendo que as violências do governador causassem um motim, e se ele ficasse na vila o 117 BEJARNO, Miguel Castillo (org.). Tito Lucrecio. La naturaleza de las cosas. Traducción de Castillo Bejarno. Madrid: Alianza, 2003, p. 65-118; e BROWN, Alison. Machiavelli e Lucrezio: fortuna e libertà nella Firenze del Rinascimento. Roma: Carocci, 2013 apud SILVA, Luis Gustavo Mandarano Cruz e. Um deus para Maquiavel(?): religião e religiosidade nos escritos de um segundo secretário da república de Florença (sécs. XV e XVI). 2020. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020, cap. 1. 118 BOMBASSARO, Luiz Carlos. Natureza e vicissitude: Giordano Bruno, leitor de Lucrécio. Hypnos, São Paulo, v. 33, p. 204-226, 2014. 119 APM, AVC-17, f. 65r-65v, 67r-67v, 100r-101v (citações em f. 67v, 100r).
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escolheriam como governador. Em nota, para Lucrécio, os homens, incentivados por um falso terror, tentam escapar para longe.120 O sexto trecho também trata dos ardis de Sebastião da Veiga, com o perigo de ele “errar o salto na palestra dos seus discursos”, ao pretender “o deslustre do Conde”. Este não devia confiar naquele, por sua “variedade de industrias, destrezas, artificios, maquinas”; mas também havia tumultos, desordens e perigos, pois o desprezo dos editais e a quebra dos perdões prometiam danos ao príncipe e aos vassalos. Por isso, segundo Lucrécio em nota, não havia como pôr fim aos males. Mas, como vimos no item anterior, no fim do parágrafo o conde resolveu agir como César após ser preso pelos piratas.121 O sétimo trecho refere-se ao momento seguinte à prisão dos cabeças e a sua condução para Vila do Carmo, quando as desordens não tinham cessado em Vila Rica, e mascarados desceram do morro de Pascoal da Silva com negros armados, disparando tiros e arrombando portas, pois os que não fossem libertar os presos e Pascoal da Silva teriam as casas incendiadas. Conforme a nota lucreciana, era matança após matança. Enfim, o último trecho ladeia uma frase conclusiva sobre as ações do conde: E veja-se como este merecido castigo de Philippe dos Santos, e justa queima do Morro fes hu’ tal effeito, que i’mediatamente se afogaram os motins, e cessaram por toda a parte as perturbaçoe’s, trocando-se o furor em brandura, a ousadia em rendimento, a violencia em sogeyça’o.
Em nota, segundo Lucrécio, tudo pode acabar repentinamente.122 À exceção de uma nota sobre o livro IV, as outras sete notas remetem ao livro III de Sobre a natureza – há erro numa citação. Nesses livros Lucrécio explica os fenômenos humanos, concebendo a alma como um agregado de átomos que morrem com o corpo. Pelos simulacros emanados, as paixões também seriam reguladas pela física, podendo ser perigosas se maníacas, ilusórias ou imaginativas. Contudo, a razão pode dissipar as tendências primitivas e o medo, a fim de se viver dignamente.123 Percebe-se que Lucrécio foi acionado no Discurso para tratar sobretudo das emoções, desregradas e/ou dissimuladas nos sublevados – em especial nos 120 Ibidem, f. 106r-106v, 116r-116v (citações no f. 106v). 121 Ibidem, f. 127r-129r (citações em f. 127r, 127v). 122 Ibidem, f. 131r-131v (citações em f. 145v-146r). 123 NARDUCCI, 2006e [1997], p. 385.
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ardis de Sebastião da Veiga Cabral, em três parágrafos – ou sendo mais ajustadas com o conde governador. A alusão a um mundo mecânico respalda o último dito eloquente, ao findar-se a repressão. O atomismo de matriz epicurista representava uma vertente de ideias distinta do hermetismo afeito a mistérios presente no Discurso; também do saber alquímico há pouco explicitado; e logicamente do catolicismo tridentino. Embora autor e obra não fossem proibidos, o engenho provocava sensações de espanto e curiosidade, conferindo ao texto sal e até pimenta. Parece ser este o sentido de se eleger De rerum natura para ornar os trechos destacados.124 Na Ordinatio de 1651 acham-se outras propostas no âmbito filosófico e científico da Companhia de Jesus, por exemplo, ao impedir-se a defesa do movimento da Terra. Cinco anos depois Kircher publica em Roma seu livro dedicado a Cristina da Suécia, com título abreviado em edições posteriores para Iter exstaticum. No texto pleno de metáforas, há teses sobre os problemas astronômicos percebidos pelos jesuítas à época. Em suma, para Kircher os astros eram acidentes geográficos resultantes da combinação dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) nos planetas; o Sol compunha-se de fogo sólido e líquido, com uma superfície movimentada; seu corpo emitia uma fumaça espessa e luminosa; e essas nuvens eram importantes, pois a maioria dos cometas era fruto de emanações da matéria solar. Outro problema entre os renovadores da filosofia aristotélica e o diálogo com novas ideias era o movimento dos astros. Segundo Kircher, seres inteligentes com características simbólicas movimentavam os planetas; o céu estelar era uma imensa região de éter, com muitos astros em distâncias diferentes da Terra; as estrelas eram semelhantes ao Sol, algumas delas com planetas a seu redor; e a Terra era o centro do universo – embora contraditando sua própria descrição, contornada no livro kircheriano com empenho argumentativo. Iter exstaticum também expressa – sem citar – a influência de Nicolau de Cusa. Os censores da Companhia exigiram a supressão de passagens contra as ideias aristotélicas e de Tomás de Aquino sobre a solidez dos céus. Ao que parece, Kircher respeitou a censura no impresso de 1656, mas as críticas continuaram nas várias edições do livro, pois seu pensamento não
124 HANSEN; MOREIRA, op. cit., p. 350.
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era consensual no interior da Companhia – que apresentava uma grande pluralidade em matéria filosófica, por vezes vigiada.125 Ao retomar-se a mesma passagem no início do manuscrito que emula Ovídio, segundo o Discurso os astros influem desordens. Mas também podem ser benéficos, no caso de Júpiter ou Jove – a personagem alegórica mais recorrente no códice, como visto no Capítulo 3. Conforme Luís Miguel Carolino, nesse tempo o céu era considerado mais perfeito que os corpos terrestres. Mas se os astros influíam na vida da Terra, o grau desta ação variava em relação a concepções científicas, filosóficas e religiosas. Desde o século II d.C. em Alexandria – quando Claudio Ptolomeu desenvolveu a cosmologia aristotélica – pelo estudo do zodíaco cria-se que o Sol, a Lua e os demais planetas podiam alterar o fogo, a terra, a água e o ar. Enquanto a Lua, Júpiter e Vênus possuíam influências benéficas ao produzirem calor e umidade com moderação, Saturno e Marte, excessivamente frios e secos, eram maléficos. Apesar de existirem vários astrólogos seminais, o mundo português afinava-se com a matriz ptolomaica, a fim de explicar a influência celeste oculta sobre a região terrestre, cognoscível somente por seus efeitos. Havia previsões astrológicas sobre calamidades naturais e fatos humanos – embora as últimas, ao porem em xeque a ideia de livre-arbítrio, fossem repelidas pela censura eclesiástica. Almanaques com prognósticos astrológicos eram pródigos na imprensa seiscentista, antes da astrologia e da astronomia divergirem. Impressos em in-oitavo, eram uma espécie de calendário com meteorologia, prenunciando possíveis catástrofes naturais e indicando datas importantes do ano futuro. Os almanaques agregavam também informações várias e histórias de caráter jocoso voltadas ao leitor mais
125 CAMENIETZKI, 1995, cap. 10. Luís Carolino trata da revitalização do pensamento aristotélico no início da Época Moderna por meio da obra do jesuíta português Baltasar Teles, atribuindo aos corpos celestes uma qualidade motriz intrínseca, não totalmente dependente de Deus ou dos anjos – ideias ancoradas em parte na metafísica de Luis de Molina. Cf. CAROLINO, Luís Miguel. Baltazar Teles e a dinâmica celeste na primeira metade do século XVII: a dimensão metafísica de uma questão cosmológica. In: CAROLINO, Luís Miguel; CAMENIETZKI, Carlos Ziller (orgs.). Jesuítas, ensino e ciência: séc. XVI-XVIII. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2005, p. 99-122.
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letrado – cada vez mais importantes nessas publicações baratas, com o passar do tempo e o declínio da astrologia.126 Para além dos deuses romanos, apropriados das letras latinas para adquirirem significados metafísicos a exemplo do raio de Júpiter, o Discurso apresenta um saber astrológico difuso e vinculado à alquimia e à medicina – talvez valendo-se da cultura dos almanaques, ao enfatizar-se o ano fatídico de 1521, quando teriam havido conflitos em Castela, na Nova Espanha, nas Canárias e em “Angola”.127 No século XVII vários médicos eram também astrólogos, por seus estudos de filosofia natural envolvendo física, cosmologia e meteorologia. A ideia de que a doença resultava de um desequilíbrio de humores – provocado pela ação dos planetas – no corpo humano era difundida na época. Postulada por Hipócrates no século V a.C., continuou aceita pela maioria dos médicos e astrólogos. Os quatro tipos de humores – o sangue, a fleuma, a cólera e a melancolia – correspondiam a qualidades primárias dos planetas.128 No Discurso há muitas metáforas acerca de remédios e enfermidades. Essas eram empregadas em diversos escritos, no tempo em que a constituição política era descrita não raro por seus órgãos, em paralelo a um corpo humano passível de doença e cura por medicamentos suaves ou fortes. Antonio Correia entendia de medicina, e a massa feita com cera e pigmento branco de chumbo para preencher rasuras no códice, por vezes cobrindo uma frase ou nota inteira – tipo de correção peculiar verificado por Márcia Almada e equipe, conforme o Capítulo 1 – indica a existência do produto em alguma botica próxima. Com uso versátil em medicamentos ou na maquiagem de nobres, o chumbo nessa época não era extraído na América portuguesa. Mas fazia parte dos receituários jesuíticos. Na edição do chamado Formulário médico encontrado no sul do Brasil e atribuído a jesuítas – cujo códice encontra-se na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de
126 CAROLINO, 2002. Keith Thomas concede atenção ao mundo inglês, onde astrólogos – também de vertente ptolomaica – eram bem reputados para opinar sobre o futuro de homens e mulheres e os fenômenos climáticos, com os almanaques circulando amplamente. Na combinação de astrologia e medicina, uma visão de mundo compreendia os planetas, o zodíaco, casas, signos, humores, qualidades, miasmas, putrefações. Conforme a abordagem própria do historiador nas relações entre o homem e o mundo natural, recorria-se à astrologia em momentos de impotência e incerteza – tal como a feitiçaria também explicava o desconhecido –, pois o corpo humano era um microcosmo do mundo. THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra. Séculos XVI e XVII. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [1971], p. 235-314. 127 APM, AVC-17, f. 219v-220v. 128 CAROLINO, 2002, p. 27 e 53.
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Janeiro – Heloisa Meireles Gesteira expõe a importância da circulação de ideias e experiências mais ou menos relacionadas à Companhia de Jesus, interagindo com grupos indígenas e produtos vindos das quatro partes do mundo. Pelo exame do texto, a historiadora busca pistas sobre os passos e os espaços de sua elaboração, entendendo-o como fonte expressiva da sistematização de saberes médicos à época. Trata-se de um grande caderno provavelmente utilizado em boticas e enfermarias, que pode ter sido fruto de experiências várias e circulado por diferentes lugares e agentes. Seguindo a ênfase do manuscrito, Gesteira concede mais atenção a plantas presentes nas receitas do que aos animais e minerais, e observa a simbiose entre praticas mágicas e médicas, sem oposição entre o erudito e o popular.129 Por sua vez, Bruno Boto Leite mostra as origens do ofício de boticário na América portuguesa, recuando até a Europa medieval para tratar do surgimento das boticas como arte mecânica, seguindo por sua valorização no século XVII até serem ofuscadas pelo desenvolvimento químico.130 Pode-se examinar a obra em busca do chumbo, encontrado em receitas para “almorreimas” (hemorroidas), queimaduras, retenção de urina, comichões no corpo, “alporcas” (escrófulas), “belidaz” (infecção ocular), inchaços etc. O chumbo era misturado com azeite para untar hemorroidas ou queimaduras, ou a outros ingredientes no fabrico de unguentos, que por vezes eram feitos com “fezes de ouro” (resíduos de
129 GESTEIRA, Heloisa Meireles. Práticas médicas e circulação de saberes na América portuguesa: reflexões sobre um caderno de receitas medicinais atribuído aos jesuítas. In: GESTEIRA, Heloisa Meireles; LEAL, João Eurípedes Franklin; SANTIAGO, Maria Claudia (orgs.). Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019, p. 17-42. Eliane Deckmann Fleck contextualiza a circulação de receituários no sul do Brasil pelos cadernos de missionários, que revelam a interação entre saberes europeus e indígenas e a importância dos colégios jesuíticos, com herbários, hospitais e boticas, na prática experimental dos impérios ibéricos ultramarinos; cf. FLECK, Eliane Deckmann. As artes de curar na América platina setecentista: uma análise de manuscritos jesuíticos de matéria médica. In: GESTEIRA, Heloisa Meireles; LEAL, João Eurípedes Franklin; SANTIAGO, Maria Claudia (orgs.). Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019, p. 73-110. Ver MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Mosaico de trás para frente. Topoi, Rio de Janeiro, v. 22, n. 47, p. 576-581, 2021b; BOUZA, 2001; RAJ, Kapil. Relocating modern science: circulation and the construction of knowledge in South Asia and Europe, 1650-1900. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010; RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997; e CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e medicina no Brasil colonial. Tempo, Niterói, v. 10, n. 19, p. 61-75, jul./dez. 2005. 130 LEITE, Bruno Martins Boto. Tradições empíricas: a coletânea de receitas de remédio do boticário Manoel de Oliveira Cerial e o saber de botica na América portuguesa. In: GESTEIRA, Heloisa Meireles; LEAL, João Eurípedes Franklin; SANTIAGO, Maria Claudia (orgs.). Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019, p. 43-71. No capítulo sobre o exame material e visual, os autores evidenciam a importância dos suportes, sugerindo a trajetória movimentada do dito Formulário. Por fim, a transcrição paleográfica é fundamental a filólogos e historiadores, possibilitando perceber cópias eventualmente feitas de trechos de impressos ou outros manuscritos, algo mais evidente num tempo sem normatização ortográfica da língua portuguesa. Cf. GESTEIRA, Heloisa Meireles; LEAL, João Eurípedes Franklin; SANTIAGO, Maria Claudia (orgs.). Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019, p. 111-434.
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ouro).131 Segundo Serafim Leite, as boticas dos colégios jesuíticos na América portuguesa renovavam-se com medicamentos trazidos do reino, ou que eram manipulados localmente por boticários peritos nessa arte. Entre os vários remédios na farmacopeia europeia, o unguento de chumbo vinha de Lisboa. Os medicamentos eram ofertados a pobres e ricos – a partir de 1732, no Colégio do Pará, esses seriam constrangidos a contribuir materialmente. Em 1694 a farmácia do Colégio da Bahia era provida de toda espécie de remédios, sendo muito procurada.132 Como vimos no Capítulo 1, os autores do Discurso dispunham da massa de cera e pigmento de chumbo no momento da produção do códice; mas era possível também fazer essas correções, no caso das notas, com a mesma substância no Colégio do Rio de Janeiro – conforme a suposição incomprovada exposta no Capítulo 4. Embora a medicina naturalista de Galeno – o médico grego seguidor de Hipócrates no século II d.C. – tivesse predominado no pensamento médico por muitos séculos, em vários tratados e escritos havia simbiose de ideias, em princípio contraditórias, com a mais “espiritual” alquimia e/ou a astrologia interagindo com ambos os saberes. Júnia Furtado estuda o caso de José Rodrigues Abreu, médico cirurgião formado no reino que acompanhou António de Albuquerque – então governador da Repartição Sul – na pacificação da Guerra dos Emboabas. Na expedição Abreu teria escrito entre 1709 e 1713 a Relação das minas brasílicas – manuscrito hoje perdido, mas cujas partes podem ser identificadas em Historiologia médica, publicação posterior do autor impressa entre 1733 e 1739, quando o médico estava em Lisboa e já tinha ascendido socialmente. Conforme Furtado, no verbete “Ouro” desta obra o médico realiza uma abordagem ao mesmo tempo racional, mágica e mítica da região das Minas, com preponderância do estudo marcado pela empiria, tentando unir sua experiência a teorias da medicina. Contudo, segundo os censores, o autor conjugou dogmas aceitos com heresias, inspirando-se por exemplo em Georg Ernst Stahl, físico e químico alemão, herdeiro de um saber alquímico mais animista. No livro de Rodrigues Abreu, naturalismo e animismo por vezes se completam. O ouro mineiro era gerado do hálito sulfúreo-mercurial nas entranhas da Terra, com os apontamentos médicos mesclando-se a observações geográficas de
131 GESTEIRA; LEAL; SANTIAGO, op. cit., p. 183, 259, 279, 291, 303, 325, 329, 354, 369, 411. 132 LEITE, 2004 [1938], v. 2, t. IV, livro III, cap. III e t. V, livro I, cap. IV.
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cunho fantástico, em diálogo com a ideia de paraíso terreal nas Minas – consoante a profecia coeva de Henequim, como vimos no Capítulo 4.133 Durante a segunda invasão francesa em 1711, Rodrigues Abreu provavelmente deslocou-se com o governador António de Albuquerque para o Rio de Janeiro e com Luís Gomes Ferreira, o cirurgião-barbeiro autor do Erário mineral – um dos primeiros tratados de medicina “brasileira” escrito em português, descrevendo os males mais frequentes nas Minas e os meios eficazes de sua cura. Publicado primeiramente em 1735, o livro resulta da experiência de Gomes Ferreira no Brasil de 1707 a 1731, sobretudo em Minas. Tal como Abreu, o cirurgião valorizava o que ele tinha vivido. Em 1716 deixou a região de Sabará, indo para Vila Rica, onde estabeleceu-se na fazenda do mestre de campo José Rebelo Perdigão.134 Nesse tempo a câmara de Vila Rica proibia os médicos de venderem remédios, cabendo a tarefa somente aos boticários. Mas Gomes Ferreira possuía sua própria botica. O cirurgião Ferreira era mais “galênico” que Abreu Rodrigues e o Discurso historico e em 1718 mudou-se para Vila do Carmo, dedicando-se também à mineração. Após mais mudanças, em 1732 retornou a Portugal.135 Havia assim ao menos uma botica próxima ao âmbito de produção do códice estudado. No Discurso historico o ouro também surge continuamente das entranhas terrenas. Mas ali a natureza é pintada com tintas infernais – diferentemente das ideias de Abreu Rodrigues, Henequim ou do jesuíta Simão de Vasconcelos, na crônica sobre a Companhia de Jesus no Brasil publicada em 1663.136 Valendo-se de linguagens semelhantes, os textos podiam seguir caminhos opostos, conforme o propósito de cada obra. Ao narrar a sublevação de 1720 e justificar o seu castigo, no códice em tela as referências à alquimia – embora pontuais – se destacam. Não se sabe até onde iam os interesses e práticas dos autores do AVC-17 em relação a
133 FURTADO, Júnia Ferreira. As Índias do conhecimento, ou a geografia imaginária da conquista do ouro. Anais de História de Além-Mar, Lisboa, v. IV, p. 155-212, 2003. 134 Perdigão foi mencionado na carta de Pedro de Almeida a d. João V de 21/07/2020, pedindo mercês àquele por seus serviços ao reprimir a sublevação de Vila Rica. MAGALHÃES, op. cit., p. 562; BNP, R, CP, 479, f. 106v. 135 FURTADO, Júnia Ferreira. Arte e segredo: o licenciado Luís Gomes Ferreira e seu caleidoscópio de imagens. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Luís Gomes Ferreira. Erário mineral. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002a, v. 1, p. 3-30. 136 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. O paraíso proibido: a censura ao paraíso brasileiro, a Igreja portuguesa e a Restauração de Portugal entre Salvador, Lisboa e Roma. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014, sobretudo p. 9-23, quando na introdução o autor disserta sobre as ideias de paraíso e inferno na historiografia brasileira, com destaque para as obras de Buarque de Holanda e Mello e Souza.
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esse saber. Contudo, no manuscrito também se optou por enfatizar o Diabo, os demônios e o veneno, em contraposição a Deus e aos anjos. As intensas relações entre Céu e Terra na Época Moderna desaconselham a antecipar o tema da secularização no estudo. A simbiose entre o espiritual e o terreno aparece ainda no códice endiabrado por outro prisma, relacionado ao poder sobre as almas.137
Alívio ao pecado Nas palavras de José Pedro Xavier da Veiga, o Discurso historico-politico era o “verdadeiro memorial de um accusado impenitente”. Para Laura de Mello e Souza, o conde impôs “a sua visão de mundo” a Antonio Correia e José Mascarenhas na produção do Discurso histórico e político.138 As procedentes afirmações podem adquirir novos significados. No texto em tela o enredo da sublevação explica-se em parte pelas atuações dos ouvidores da comarca de Ouro Preto – o anterior e dissimulado Mosqueira da Rosa, o imprudente e deposto Martinho Vieira. Menciona-se também a atuação do desembargador Cunha Brochado no Rio de Janeiro, enquanto o ouvidor de São Paulo Pires Pardinho foi citado na correspondência do governador da capitania, sendo depois responsável por seu processo de residência. Os magistrados provavelmente estudaram em Coimbra ou Évora, as duas cidades universitárias em Portugal nesse tempo em que os juristas se tornavam figuras centrais naquela sociedade. Desde o século XVI havia a opção concreta de graduar-se em direito no reino português, após o estudo secundário em algum colégio jesuítico reinol ou ultramarino – ou nos colégios seculares de São Paulo ou São Pedro, ligados à Universidade de Coimbra. Joana Estorninho de Almeida informa sobre a grande preferência dos estudantes pelos cursos de direito em relação ao de teologia, e do direito canônico em relação ao direito civil, na primeira metade do século XVII,
137 MARRAMAO, Giacomo. Céu e Terra: genealogia da secularização. Tradução de Guilherme Alberto Gomes de Andrade. São Paulo: Editora Unesp, 1997 [1994], p. 15-23; e MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. Tradução de Gomes de Andrade. São Paulo: Editora Unesp, 1995 [1983]. 138 VEIGA, 1898, p. 4; e SOUZA, 1994, p. 41.
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em Coimbra. Apesar dos custos elevados, filhos da nobreza, clérigos ou leigos de origem modesta buscavam complementar a formação clássica, livresca e jurídica, e/ou obter um cargo eclesiástico ou secular. O conhecimento do direito significava prestígio social e poder, pois seu curso atestava o domínio do latim (língua jurídica por excelência), além de familiaridade com as categorias do direito e a lógica do discurso, possibilitando um lugar na administração eclesiástica ou da coroa em âmbito reinol ou ultramarino. Na segunda metade do Seiscentos, enquanto na Europa em geral a vida universitária decrescia – possivelmente pela saturação da burocracia existente –, em Portugal houve aumento da procura, com declínio observado na Universidade de Évora somente a partir de 1717. Essa situação pode ter sido fortalecida pela Guerra da Restauração, quando se restringiu o acesso a Salamanca e outras universidades da Espanha. Conforme o caráter litigante e corporativo daquela sociedade, frequentemente o direito canônico subsidiava a lei do reino, enquanto advogados e procuradores – não raro com cursos incompletos – representavam causas em nome dos queixosos.139 A capacidade de fazer justiça se adquiria pelo estudo. Essas informações se coadunam às ideias de António Manuel Hespanha, ao sublinhar a capacidade normativa e reguladora dos juristas em relação à ordem social. O jurista era alguém familiarizado com uma imagem do mundo produzida por juristas, ultrapassando fronteiras e jurisdições pelo diálogo em latim – língua hermética para o vulgo, com prestígio quase sacral – mediante textos eclesiásticos e seculares. Os magistrados eram assim como sacerdotes, cujos cargos tendiam a ser transmitidos nas famílias. Os ganhos do prestígio dessa especialização de juristas profissionais letrados – com base num modelo de justiça baseado na escrita e na tradição culta do direito europeu ocidental – eram evidentes. Com técnica intelectual, faziam do seu saber algo complicado e abstrato, distante do entendimento popular. A artificialidade do discurso lhe conferia uma aparência de oculto, escondido aos mortais comuns – mas que devia relacionar a razão ou justiça natural ao coti-
139 A maior procura pelo direito canônico ligar-se-ia também à promulgação dos decretos do concílio de Trento como lei do reino em 1564. ALMEIDA, Joana Estorninho de. A forja dos homens: estudos jurídicos e lugares de poder no séc. XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004. Para um estudo mais descritivo, ver HISTÓRIA da universidade em Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, t. II, p. 823-834 e 943-964. Sobre as edições de livros de direito no início da Época Moderna, ver FEBVRE; MARTIN, op. cit., p. 398-399.
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diano. Conforme o historiador do direito, entre o fim do século XVI e meados do XVII houve oposição entre juristas e “políticos”, entendendo os segundos como orientados pelas máximas do pragmatismo da razão de Estado. Por outro lado, havia preconceito contra os juristas por seu hermetismo e distanciamento, também vinculados a móbeis escondidos e perversos, algo expresso por exemplo por Antônio Vieira ou pela conhecida obra anônima Arte de furtar.140 No Discurso historico se verbera contra os causídicos ou letrados, referindo-se aos procuradores do povo José Peixoto da Silva e José Ribeiro Dias, ao juiz ordinário da câmara João da Silva (desconheço sua formação) ou de modo geral, enquanto seu autor define-se como teólogo.141 Na carta de 10 de fevereiro de 1721 ao bispo Francisco de São Jerónimo, ante os rumores vindos do Rio de Janeiro, Pedro de Almeida escreve que o incêndio do morro foi feito em guerra justa a inimigos armados contra o rei. Pede então ao bispo para apressar as diligências com os presos, mas sem a participação de letrados nascidos na América, pelo risco de atenuarem o crime de rebelião. Adiante, expressa preferir aconselhar-se com os doutos padres da Companhia, pois os outros letrados e bacharéis das Minas eram aliados aos adversários, ignorantes ou dissidentes. Nesta carta menciona bastante sua consciência livre de remorsos, sem ódio, má vontade ou persuasão do Demônio, pelo que se confessava repetidamente com os ditos padres.142 Mas em sua segunda parte o Discurso sustenta argumentos e exemplos de ordem eclesiástica e/ou jurídica para respaldar a queima do morro e o castigo de Filipe dos Santos. Embora já referencie antes o jurista canônico Juan Baptista Valenzuela Velázquez, no tempo de Felipe III de Espanha,143 ideias dessa ordem despontam ao mencionar-se a excomunhão dos conspiradores contra o poder régio por um dos concílios de Toledo, aludindo-se imediatamente aos rumores sobre a possibilidade de se excomungar o conde.144 Citam-se então exemplos históricos
140 HESPANHA, António Manuel. A monarquia: a legislação e os agentes. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011a, p. 12-31; e HESPANHA, António Manuel. Os modelos normativos: os paradigmas literários. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011b, p. 58-70; e ALMEIDA, 2004, p. 53. 141 APM, AVC-17, f. 70v, 85r-85v, 13v, 203r. 142 ANTT, CFA, no 120 (transcrição cedida por Mello e Souza). 143 APM, AVC-17, f. 168v. 144 Ibidem, f. 179v-180r.
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sobre o castigo, para em sequência surgir a epístola de Cassiodoro – como na carta escrita ao bispo. Pouco adiante menciona-se o martírio de Eleazar (Macabeus) e a teologia moral de frei Felix Potestas em latim. Citações de perfil variado se sucedem nas páginas, demonstrando ser por vezes necessário transgredir a lei, pois o bem comum precede o individual. Resume-se a repressão do motim com a prisão e confissão de Filipe dos Santos, arrastado pelas ruas, enforcado e esquartejado, pois os mineiros temiam mais as circunstâncias que a morte segundo Maximiliano de Habsburgo, citado por Solórzano Pereira em nota. Continuando a alterar referenciais para produzir significados comuns, versos de Ovídio (Amores) margeiam o trecho, sucedidos por citações abreviadas de difícil leitura em De indiarum iure, do mesmo Solórzano. Para Salústio (A conjuração de Catilina) os romanos castigavam após a confissão ou quando a culpa fosse evidente, e os “doutores” (novamente com referências difíceis em nota) concordam que não se deve dilatar o castigo, conforme o imperador Constantino.145 Um crime público e notório, segundo o jurista Marco Antonio Sabelli, citado no texto central em latim e em nota. Desse modo as juntas não serviam para casos violentos, perdendo-se grandes oportunidades nas palavras de Salústio (A conjuração de Catilina). Segue-se explicando o perigo dos motins em outras comarcas. O remédio das sedições era assim deixar os meios ordinários e tentar os contrários, saindo dos termos e excedendo a ordem, segundo emblemas de Juan de Solórzano (com trechos citados em latim no texto central). A prontidão também era defendida pelo jurista romano Ulpiano, pelo quinhentista da Sicília Mauro Burgio, pelo trecentista Bártolo de Sassoferrato e pelo mesmo Solórzano, para quem as leis variam como Proteu. Continua-se com Tomás de Aquino, uma regra do direito canônico e por um trecho em latim de Tácito (Anais) – sobre a urgência em prol do público contra o particular.146 O rabi medieval Maimônides também defendia o juízo repentino, e essa seria a diferença dos generais e governadores em relação aos magistrados, ao procederem extrajudicialmente com bandos e mandatos sem apelação – voltando-se a citar Mauro Burgio. Para o herói grego Jasão, ou a Suma teológica de Tomás de 145 Ibidem, f. 180r-198r. 146 Ibidem, f. 198v-205v.
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Aquino, a justiça e o bem comum eram superiores aos preceitos morais e particulares. Assim o conde opôs-se ao interesse particular para restabelecer o bem público. Conforme Cícero (1a Catilinária) os particulares podiam matar os perigosos para a república, com exemplos citados. Passa-se então ao relato bíblico, com Moisés na corte do faraó. Pautando-se depois em Cícero (Discurso a favor de Milo), a autoria desculpa os gregos, ao terem como deuses os heróis que castigavam tiranos, pois até o íntegro e bíblico Jó teria castigado os maus e tiranos. Ademais, nas Minas não havia regimento ou ordem para castigar os motins, devendo-se agir conforme a razão e os exemplos antigos e modernos. Desse modo o rei devia conceder aos governadores ultramarinos poderes mais extraordinários que aos bispos. Alude-se à ordem régia de janeiro de 1719, que autorizava os governadores a perdoarem em casos de extrema necessidade; mas o governador também devia castigar como fosse possível as sublevações.147 Em meio a digressões e auctoritates o conde, vendo a situação irresoluta, fez lícito o que não era, segundo o bispo de Pavia Enódio, escrevendo sobre o antecessor e igualmente santo Epifânio – armas também lícitas para o cisterciense alemão Gunther de Paris, em seu épico sobre o imperador Frederico Barbaroxa. Sucedem-se várias remissões a situações modernas, mescladas a poucos exemplos antigos. Os exemplos são intercalados com argumentação jurídica, por exemplo advogando-se o recurso às leis de Castela e da Nova Espanha para justificar o ocorrido nas Minas e explicar as medidas tomadas nos motins anteriores, segundo Cícero (2a Catilinária) em nota e Solórzano Pereira (Politica indiana).148 Segundo as Ordenações filipinas vigentes, na falta de lei ou costume do reino os juízes aplicariam o “direito comum” europeu, contido nos direitos romano e canônico, na glosa de Acúrsio (século XIII), nos comentários de Bártolo de Sassoferrato ou na opinião de juristas posteriores. Conforme António Hespanha, as Ordenações explicitavam a grande liberdade dos juízes em relação ao hipotético direito régio, cheio de lacunas, interpretável ou postergado segundo o direito
147 Ibidem, f. 205v-211v. 148 Ibidem, f. 212r-223v.
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comum, pois os letrados nesse tempo não estudavam especificamente um direito português.149 No Brasil, o códice refere a atuação do desembargador Cunha Brochado no Rio de Janeiro, e após mais digressões sobre o ocorrido em Minas, surgem trechos em latim de obras jurídicas civis e canônicas, com nomes de jurisconsultos e clérigos abreviados no texto central, mesclados à argumentação de modo quase cifrado – como visto no Capítulo 3. Já nas últimas páginas do manuscrito, invoca-se a justificativa do direito natural ante a impossibilidade de o conde convocar magistrados para a junta, sendo lícita a sua defesa – antes de se enveredar pelo encômio ao conde e pela história final de Moisés.150 Como vimos, o jurista espanhol Juan de Solórzano Pereira, formado em Salamanca em direito civil e canônico, além de referenciado no Discurso foi mencionado na correspondência do governador Pedro de Almeida e adiante em seu vice-reinado na Índia. Seus livros De indiarum iure (1629), com versão modificada em Politica indiana (1647), Emblemata centum regio politica (1653) e discursos contidos em uma edição de obras póstumas (1676) foram as fontes para no códice se escreverem passagens de muitas auctoritates e reproduzirem de forma bastante exata – em notas ou no próprio texto do Discurso – nomes abreviados e quase cifrados, cujas edições foram identificadas na internet graças a essas grafias peculiares. O ex-ouvidor da Audiência de Lima e depois membro do Conselho das Índias detinha um extraordinário prestígio como jurista desde sua morte em 1655, sobretudo para assuntos coloniais. Provavelmente, Pedro de Almeida teria seus livros à mão em Vila do Carmo. Todavia, assim como a erudição do Discurso historico pode ser relativizada pelas evidentes cópias de notas e citações visando impressionar, o jurista parece também ter procedido dessa maneira, como atestam os muitos livros de emblemas, aforismos ou sentenças que possuía. Conforme Beatriz Antón, à maneira de Justo Lipsio e Diego Saavedra Fajardo, trata-se de uma “retórica de citações”, destinada a reproduzir loci communes. Os trechos de obras de Tácito, copiados na edição milanesa das Empresas políticas (1642) de Saavedra – seu amigo e colega conselheiro, de cujo livros se valia – eram trasladados e/ou modificados nos 149 Ordenações filipinas, livro III, 64 apud HESPANHA, 2011a, p. 26. 150 APM, AVC-17, f. 224v-234r.
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emblemas e livros de Solórzano.151 Devido ao afã compilatório próprio da Época Moderna, é difícil identificar uma coerência de ideias nos livros de Solórzano ou Saavedra – embora ambos tenham se valido, respectivamente, de suas experiências no vice-reino do Peru ou em embaixadas na Europa para dissertar sobre rebeliões e castigos.152 A remissão massiva a jurisprudências de outros casos era o cerne da cultura jurídica da época, em especial no mundo ibero-americano, como veremos.153 Por sua vez, a conjuração de Catilina é uma referência histórica paradigmática no Discurso, inserida no âmbito do direito romano. Como vimos, o episódio foi mencionado pelo governador em carta a d. João V em julho de 1720 para resumir a sublevação – não obstante a grafia controversa, este é o único evento que se enquadra na descrição sumária da conjura na missiva.154 O exórdio no códice em tela emula a monografia de Salústio sobre o evento, margeado em nota com o célebre trecho original em latim. Por esta obra e pelas Catilinárias de Cícero, a rebelião é de longe o acontecimento histórico mais referido, à exceção da própria sublevação de 1720 – 33 remissões em notas, igualando-se ainda às da epopeia Eneida e superando as 30 notas de Os lusíadas – em todo o AVC-17. Vale a pena adentrar nesses relatos de modo mais circunstanciado. Em meados do século I a.C., a república romana experimentava questões advindas de sua expansão territorial – como o destino e a propriedade das novas terras conquistadas, o estatuto social dos povos integrados, os impostos etc. As
151 ANTÓN, Beatriz. Tacitismo, emblemática y libros de loci communes. In: BADILLO O’FARRELL, Pablo; PASTOR PÉREZ, Miguel A. (orgs.). Tácito y tacitismo en España. Barcelona: Anthropos, 2013, p. 219-268. 152 Para Solórzano como conselheiro, ver SCHÄFER, Ernesto. El Consejo Real y Supremo de las Indias: su historia, organización y labor administrativa hasta la terminación de la Casa de Austria. Madrid: Marcial Pons, 2003, v. I [1935], p. 225, 235-239, 253, 290, 296302, 342, 351 e v. II [1946], p. 127-128, 153, 165, 317-318, 351, 418; AMADORI, Arrigo. Negociando la obediencia: gestión y reforma de los virreinatos americanos en tiempos del conde-duque de Olivares (1621-1643). Madrid: CSIC, 2013, p. 57, 66, 155, 191, 311, 377. Para a experiência diplomática de Saavedra e seu contato com a rebelião dos Países Baixos, cf. SABATINI, Gaetano. Roma, Nápoles, Venecia, Milán: la etapa italiana de Saavedra Fajardo en el gran teatro de la diplomacia barroca (1610-1633). In: RUIZ IBÁÑEZ, José Javier (org.). Pensar Europa en el Siglo de Hierro: el mundo en tiempos de Saavedra Fajardo. Murcia: Compobell, 2008, p. 41-74; e VERMEIR, René. El campo de Marte: los Países Bajos que vivió Saavedra entre la realidade de la guerra y la búsqueda de la paz. In: RUIZ IBÁÑEZ, José Javier (org.). Pensar Europa en el Siglo de Hierro: el mundo en tiempos de Saavedra Fajardo. Murcia: Compobell, 2008, p. 75-89. 153 Para Víctor Tau Anzoátegui, Solórzano (sobretudo por sua Politica indiana) era uma expressão culminante da concepção casuísta na América espanhola, estendendo-se ao mundo português, cf. TAU ANZOÁTEGUI, Víctor. Casuismo y sistema: indagación histórica sobre el espíritu del derecho indiano. Sevilla: Athenaica, 2021 [1992], p. 573. WEHLING, Arno. A prática da justiça no Brasil setecentista, casuísmo e sistema. In: FURTADO, Júnia Ferreira; ATALLAH, Cláudia Azeredo; SILVEIRA, Patrícia Ferreira dos Santos (orgs.). Justiças, governo e bem comum na administração dos impérios ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVIII). Curitiba: Prismas, 2017, p. 11-29. 154 Na carta de 20 de julho de 1720, para Pedro de Almeida a referida conspiração era semelhante à de Catilina por ser “urdida entre 7 ou 8 pessoas que na desesperação de não poderem pagar á ninguem exorbitantes dividas que deviam, e querendo ainda assim conservar o respeito e auctoridade despotica, machinaram muito tempo antes, segundo o que depois soube, este horroroso attentado”. Apud MAGALHÃES, op. cit., p. 552.
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tensões refletiam-se no senado, onde os optimates, afinados aos interesses de famílias patrícias, distinguiam-se dos popvlares, compactuando com as queixas da plebe. Lúcio Sérgio Catilina era um patrício, outrora pretor em Roma e governador na África, cuja família encontrava-se endividada. Em 66 e 64 ele foi alijado e derrotado em duas eleições consulares. Desse modo Catilina, Públio Lêntulo e outros começaram a conspirar contra o senado, divulgando promessas entre os descontentes da capital e de províncias próximas – somos reféns da parcialidade dos relatos de Cícero e Salústio. A trama foi delatada a Cícero, homo novus de família enriquecida, mas plebeia, que chegara ao poder máximo em Roma com talentos políticos e oratórios, no tempo em que as batalhas judiciais se resolviam pela força persuasiva dos discursos.155 Desde o século II a.C., nos tribunais permanentes romanos julgavam-se crimes praticados por membros da elite dirigente, o que influía nos destinos dos condenados e seus clientes. A eloquência forense manipulava sentimentos e opiniões, em sua capacidade de condenar ou absolver, tendo crescido mais no século seguinte. A importância dos processos políticos deslocava os conflitos da cidade para o plano judicial, influindo nos imputados – em maioria figuras proeminentes – com reflexos em interesses coletivos, econômicos e sociais. Ao dominar vários temas e registros estilísticos, Cícero destacou-se em face do auditório.156 Em 8 de novembro de 63, o cônsul proferiu ante os senadores no templo de Júpiter Stator, no Palatino, sua primeira oração contra Catilina (com o próprio presente), conclamando-o a deixar Roma, aludindo também ao assassinato do tribuno da plebe Tibério Graco em 133 – o episódio foi referido no Discurso historico, para defender os direitos de os particulares matarem cidadãos perniciosos à república.157 O revoltoso saiu da urbe. No dia seguinte, em sua 2a Catilinária Cícero informou o exílio de Catilina ao senado. Mas este continuou a conspirar na província, enquanto Lêntulo e outros permaneceram em Roma. A terceira oração contra Catilina revelou a descoberta de um suposto plano para arregimentar soldados, massacrar 155 Para essas informações, ver ODAHL, Charles Matson. Cicero and the Catilinarian conspiracy. New York; London: Routledge, 2011; e MONTEIRO, 2015, p. 200-203. 156 Mais adiante, com a crise da república e a ascensão dos chefes militares, a eloquência perderia autonomia. NARDUCCI, Emanuele. Oratória e historiografia entre os séculos II e I a.C. In: CITRONI, Mario (org.). Literatura de Roma antiga. Tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006g [1997], p. 239; e NARDUCCI, 2006a [1997], p. 259-260. 157 APM, AVC-17, f. 207v-208r.
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os optimates e incendiar a capital, além de uma aliança com os alóbroges – povo do sul da Gália insatisfeito com o jugo romano. O senado foi convocado para atestar a culpa de Lêntulo e seus cúmplices, que confessaram os crimes ou permaneceram em silêncio. Pela terceira oração ciceroniana, sabe-se que Lêntulo cria-se, segundo revelações de oráculos, futuro detentor do reino e do domínio da cidade. Cícero agradeceu aos deuses a descoberta da sedição.158 Em 4 de dezembro o senado reuniu-se para decidir a pena dos chefes da conjura. Nesta sessão Júlio César – então pontífice máximo e pretor designado, suspeito de participar da conspiração em seus primeiros momentos – discursou a favor da prisão perpétua para Lêntulo e os sequazes. Mas o cônsul Cícero, em sua 4a Catilinária, defendeu a pena de morte para todos como remédio eficaz para a república. A eficiente retórica de Cícero preparou o caminho para o discurso de Catão – o tribuno estoico republicano – a favor da execução capital dos catilinários, sem processo. Os discursos opostos de César e Catão foram depois reelaborados pela pena de Salústio a favor de César, seu protetor.159 Mas Cícero logo reescreveu e divulgou suas quatro Catilinárias, a partir de então conhecidas como sua grande ação política na defesa de Roma. No dia seguinte ao embate no senado, Lêntulo e mais quatro líderes rebeldes foram estrangulados. Catilina morreu um mês depois em combate, na batalha de Pistoia, quando Cícero estava deixando o cargo. Por sua intercessão a favor da pena capital aplicada aos conjurados já presos, ele depois foi exilado temporariamente do senado – em princípio sem poder para medidas tão drásticas.160
158 ODAHL, op. cit., p. 272-274; CÍCERO. As catilinárias. Tradução de Amilcare Carletti. São Paulo: Leud, 2000 [1999] (sobretudo p. 84, 166); e CICERÓN. Catilinarias. Traducción de Crescente López de Juan. Madrid: Alianza Editorial, 2009 [2005]. Sobre a oratória “popular” dos irmãos Gracos no século II a.C. e o projeto de reforma agrária em contraposição a interesses de aristocratas, ver NARDUCCI, 2006g [1997], p. 236-237. 159 CARRERA DE LA RED, op. cit., p. 103-177. Luciano Canfora menciona a análise da conjura de Catilina como um “empurrão” das figuras de proa da política republicana para se instaurar um regime ditatorial, com César e depois Augusto. Por essa visão, a crise provocada pelo programa de Catilina seria uma etapa na luta entre a velha forma estatal oligárquica e a monarquia militar, despontando como origem de novos sistemas. Desse modo o cerne do discurso de César não seria o equilíbrio, mas alertar que a repressão dos catilinários criava um precedente perigoso. Esta conjuração antecedeu aquela contra César e sua medida emergencial pela morte dos líderes semeou posteriores ilegalidades, das quais o próprio Cícero foi vítima. Contudo, Cícero estaria convencido de que a figura de um princeps era necessária à república. CANFORA, Luciano. Júlio César: o ditador democrático. Tradução de Antonio da Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 2002 [1999], p. 81, 90-91, 93. 160 Em seguida à repressão, dissolveu-se o consenso em torno do projeto político de Cícero, atacado pela execução sumária dos cúmplices de Catilina. Crescia então a supremacia de César e Pompeu. O consulado de César significou a perda da importância política do grande orador, quando em 58 o novo tribuno Clódio apresentou uma proposta de lei prevendo o exílio para quem condenasse à morte um cidadão romano, sem possibilidade de apelo ao povo. Cícero deixou Roma ante a aprovação iminente da medida. Seus bens foram confiscados e sua casa demolida, só voltando à capital em 57. NARDUCCI, 2006b [1997], p. 275-276.
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Os paralelos entre os dois relatos de natureza diversa sobre o conflito pretérito e o Discurso historico, e político – em forma e conteúdo – são fortes, como vimos no Capítulo 3: dramaticidade de discursos e retratos sobre os rebeldes; defesa da medida excepcional; o exemplo latino na apropriação do evento, dignificando ações e textos. Apesar das ressignificações e leituras feitas sobre o episódio ao longo do tempo, na Época Moderna as belas-letras – no caso mediante o domínio do latim e a preferência clássica – permitem relações verticais entre acontecimentos separados por séculos e contextos. Apesar de constituírem diferentes tipos de registro, os discursos sobre a conjuração de Catilina constituem uma expressiva metáfora do texto em análise. Contudo, se os debates realizados no fórum romano situam o manuscrito em tela no âmbito jurídico-político, no códice essas referências aparecem entremeadas a outras de matiz eclesiástico e cristão, por remissões a ditos e auctoritates provenientes do direito canônico, de trechos bíblicos etc. Como vimos, a discussão jurídica no AVC-17 irrompe justamente quando se lembra o perigo de o conde ser excomungado. Paolo Prodi considera os dualismos inerentes à ideia de justiça pretérita. Entendendo o foro como lugar físico ou simbólico de exercício da justiça, com fronteira móvel entre o espiritual e o temporal, o historiador observa a complexidade da literatura jurídica e teológica dos tempos medievais e modernos, não redutível a dicotomias entre os poderes eclesiástico e secular. Além das normas e sanções, o costume e a moral exerciam funções coercivas, com penas imateriais eficazes, em função da promessa de [in]felicidade eterna. Trata-se da distinção progressiva, mas sobretudo dos vínculos entre as ideias de pecado (como desobediência à lei moral) e delito (infringindo-se a lei positiva).161 O foro seria o lugar do reconhecimento da culpa, da relação entre vida e norma, do medo de um tribunal cuja pena podia redimir pecados e libertar do mal. Desde o século III, com Ulpiano o direito ocidental dividia-se em direito natural, das gentes e civil. Os Padres da Igreja apropriaram-se da linguagem jurídica, com regras litúrgicas e disciplinares. Tertuliano transpôs termos da ordem romana, como sacramentum e outros sobre milícia, autoridade e ofício, para a linguagem
161 PRODI, Paolo. Uma história da justiça: do pluralismo dos tribunais ao moderno dualismo entre a consciência e o direito. Tradução de Isabel Teresa Santos. Lisboa: Estampa, 2002 [2000], p. 13-23.
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religiosa. As ideias de pecado e penitência vieram do direito penal romano. O crimen e o delictum absorviam o peccatum na linguagem teológica e jurídica, sendo a Bíblia a fonte primordial. Para João Crisóstomo a Igreja devia submeter-se ao poder imperial. Conforme Prodi, o codex de Justiniano representa essa dualidade institucional. Embora a diferença entre crimen e delictum já existisse em Agostinho como desobediência ativa ou omissão de obediência, os termos seriam assimilados no direito canônico clássico. Nascia assim um direito fundado nas Escrituras, paralelo ao direito romano barbárico, ligando os planos religioso e secular. Apesar da separação entre justiças secular e eclesiástica, e na Igreja entre justiça eclesiástica e o perdão dos pecados, no Ocidente não se distinguia bem entre os foros interior (da consciência) e exterior. Enquanto na teologia passava-se a diferenciar o pecado do crime social, na própria Igreja esboçava-se um direito concorrente ao direito secular.162 Nos séculos XII e XIII o direito canônico torna-se um sistema jurídico autorreferente. Havia assim dois ordenamentos radicados no antigo direito romano: o canônico gerido pelo papado, e o civil dos príncipes seculares. Na nova justiça eclesiástica, o sacramento da penitência – pautado na confissão/absolvição dos pecados – permitia a jurisdição da Igreja sobre as almas. Com reflexões vindas da patrística e das Escrituras, os canonistas separaram o pecado do delito, coagindo e punindo o réu no foro eclesiástico. Se a Inquisição representava a fronteira externa deste foro, a excomunhão e a confissão significavam seu limite interno em relação à justiça divina, pelo controle da consciência – pois o pecado oculto produzia culpa e perturbava a relação com Deus. Nascia assim um foro penitencial, após o concílio de Trento distinguido entre sacramental e não sacramental – para Prodi uma “confusão” no direito canônico entre penitência, excomunhão e direito penitencial eclesiástico, com consequências até o presente. O intento em formar um sistema único de justiça na cristandade falhou, abrindo caminho a ordenamentos
162 Ibidem, p. 22-61. Ao tratar desses autores e obras em perspectiva próxima à história das mentalidades, Jean Delumeau prioriza o âmbito teológico e a ideia de pecado, bem como suas constantes remissões ao inferno. DELUMEAU, 2003 [1983], v. 1, p. 19-37, 82, 357-368 e v. 2, p. 12 e 94.
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jurídicos concorrentes, à distinção entre os foros eclesiástico e civil e a uma nova relação entre lei humana (civil e eclesiástica) e consciência.163 O poder da Igreja sobre as coisas temporais levou a uma secularização do direito canônico e ao gradual afastamento entre os foros interno e contencioso. Enquanto a penitência deixa a esfera do direito para entrar no âmbito teológico e pastoral, o direito canônico absorve princípios e métodos do direito civil. Sua influência aumentou com glosadores e comentadores, fazendo surgir o conceito de razão com base no direito. As relações entre os direitos natural e civil são complexas, sobre a ideia de razão divina ou natural por um lado, e a lei positiva ou cânone por outro. Na concorrência tardo-medieval entre papado e império, os cânones prevaleciam ao tratar-se do peccato, quando a Igreja julgava. Mas para Bártolo de Sassoferrato os foros espiritual (ou da penitência) e eclesiástico coincidiam. Os canonistas do porvir viram nele o vértice do pensamento romanístico, ao harmonizar os direitos romano e canônico, com perfil ambivalente entre teologia e direito civil.164 No século XIV nascia o direito penal público, em sentido moderno. Mas apesar de se tentar separar os delitos eclesiásticos, civis e mistos, as jurisdições continuavam interligadas.165 Para o historiador italiano, é importante considerar o diálogo entre lei e consciência sem apressar a pujança da norma nos Estados modernos europeus – ocorrida lentamente e mediante várias recepções do direito romano, pelos direitos civil e canônico e outros direitos corporativos e/ou citadinos, incluindo polêmicas entre humanistas e bartolistas. No direito canônico o justo pode tornar-se injusto ou vice-versa, em contraposição à lei escrita. O “soberano pontífice” era ao mesmo tempo legislador e juiz de um novo direito eclesiástico-canônico, pactuando com as
163 DELUMEAU, 2003 [1983], v. 1, p. 361-373. Nesse tempo a distinção entre pecados mortais e veniais já estava feita, primeiro por Agostinho e depois com Tomás de Aquino. A Psicomaquia de Prudêncio (citada no Discurso) era invocada para opor os sete pecados capitais aos dons do Espírito Santo, num combate alegórico entre virtude e vício. A distinção entre pecados foi importante para a Igreja latina e o sacramento da confissão (na qual era preciso contar-se os pecados mortais), cuja anualidade era obrigatória desde o concílio de Latrão em 1215. PRODI, 2002 [2000], p. 63-109. 164 Diferentemente de António Hespanha, para Prodi não se trata de um direito comum, mas do dualismo daquele mundo jurídico entre os direitos canônico e civil, ordenamentos universalistas, mas autônomos, como o Sacro Império e a Igreja. Enquanto o direito canônico assimilava o direito romano, o direito civil alimentava-se do direito natural-divino. O conhecimento de ambos era necessário na maioria das causas, sem que os foros fossem apenas dois. PRODI, 2002 [2000], p. 126-134. 165 Conforme Prodi, a teologia de Tomás de Aquino, inspirada no pensamento aristotélico, apesar de marcar a história das ideias jurídicas ocidentais, não dava conta da administração da justiça, ao deixar em aberto a contradição entre os planos da consciência e da lei. Ibidem, p. 111-157, para o tomismo, p. 146-152.
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monarquias para gerir as igrejas territoriais.166 Iniciava-se assim uma tênue ruptura entre as ideias de pecado e delito. Na nova visão da política – favorecida com a difusão do pensamento aristotélico – o bem comum positivava o poder, que podia derrotar o pecado. Mas não havia ruptura entre os foros pelos quais o homem respondia por suas ações. A esfera do pecado abrangia as faltas cometidas, e o direito era apenas parte de um universo normativo moral e religioso maior. A interseção entre foros externo (a partir de então mais submetido à lei estatal) e interno (a ser mais controlado pela Igreja) era complicada. O direito canônico afirmava-se como disciplina eclesiástica sobre a vida do cristão, enquanto a teologia moral refletia e ensinava sobre o “dever-ser”. O Decálogo era o código-mor de virtudes e vícios para os confessores; mas ao lado coexistiam os direitos natural e divino, humano, canônico e civil. Deixando o mundo jurídico concreto, o direito natural era subjetivado, interiorizado, interagindo com o foro da consciência – do pecado, da penitência e da salvação. Essa seria a orientação da Segunda Escolástica, pois seus teólogos e juristas dialogavam com a Espanha católica, num grande laboratório de forças.167 Todas as auctoritates até aqui mencionadas o são também no Discurso. Como vimos no Capítulo 4, em função de temores e aflições expressos pelo governador nas cartas ao primo e ao bispo, este apresenta os jesuítas como confessores de Pedro de Almeida – seus juízes no foro interno. No AVC-17 também se dá importância à confissão de Filipe dos Santos, desobrigado da quaresma havia sete anos – caracterizando assim a má fé do rebelde a ser supliciado.168 Ao recuperar reflexões de Jean Delumeau sobre o pecado e a confissão, Prodi entende que na Época Moderna, além dos vários direitos coexistentes, havia compreensões plurais da ordem física e moral cósmica – algo também visto no item anterior, sob outro prisma. A concorrência entre ordenamentos jurídicos expressa-se no âmbito con-
166 PRODI, Paolo. Il sovrano pontefice: un corpo e due anime: la monarchia papale nella prima età moderna. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 127-248. 167 PRODI, 2002 [2000], p. 159-214. 168 APM, AVC-17, f. 142v.
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fessional, provocando ansiedade ao não resolver o problema da relação entre os direitos e o foro interior.169 Desde o Quinhentos, em Salamanca havia uma avaliação cada vez mais fina das determinações morais, ao permitir por vezes uma escolha livre ante soluções razoáveis, conferindo aos doutores a importância de oráculos. Ante os medos, culpas e inseguranças no mundo católico, os clérigos eram médicos de almas. Na vasta documentação produzida destacam-se tratados de casuística moral, com opiniões prováveis sobre casos de consciência – seu auge seria na primeira metade do Seiscentos. Para os rigoristas, a moral relaxada dos confessores derivava do probabilismo – doutrina que respaldava o agir conforme uma opinião provável ou plausível, contando-se com defensores respeitáveis, mesmo havendo opinião contrária. Segundo críticos mais ou menos relacionados ao jansenismo, era um desregramento laxista.170 Nos séculos XVI e XVII, a literatura casuística floresceu em países católicos e protestantes, quando almas escrupulosas recorriam a especialistas da moral, buscando reconforto em doutores qualificados. Dúvidas eram convertidas em certezas para a consciência, desde que com defensores sensatos e excelentes razões. A partir de meados do Seiscentos e no início do século seguinte, houve mais ataques rigoristas a esse laxismo probabilista.171 Entretanto, identifico essa lógica argumentativa na segunda parte do Discurso historico, e político. A partir da menção aos rumores sobre a excomunhão do conde, as muitas razões elencadas oscilam por diversos direitos e letras de ordem eclesiástica e civil, com recurso às
169 PRODI, 2002 [2000], p. 215-219. Para Delumeau, o discurso culpabilizador do cristianismo vincula-se à interiorização da consciência e ao medo de si mesmo. A dramatização do pecado reforça a autoridade clerical; por outro lado o homem ocidental é levado a aprofundar-se, conhecer melhor o seu passado e desenvolver sua memória. Uma consciência culpada desenvolve-se ao mesmo tempo que a arte do retrato, acompanhando a ascensão gradual do indivíduo e da criatividade. DELUMEAU, 2003 [1983], p. 9-14; e DELUMEAU, 1991 [1990]. 170 DELUMEAU, 1991 [1990], p. 9-14 e 89-99. 171 Ibidem, p. 102-117. Desde o concílio de Trento proibiram-se comentários e uma jurisprudência interpretativa dos decretos conciliares. Ao distanciar-se do novo direito tridentino-pontifício e da teologia, o direito canônico também se seculariza. Em Trento também se modificou a teoria e a práxis da confissão, no âmbito do tribunal ou foro penitencial – Prodi prefere chamá-lo assim e não “tribunal da consciência” como Adriano Prosperi, que contrapõe um conceito de disciplina humanístico e individual à concepção de disciplina tridentina. Para Prodi o caminho percorrido pelo concílio de Trento sobre a penitência insere-se no processo de confessionalização, articulando os poderes político e religioso e preservando a “alma” para a Igreja, além do magistério e de sua jurisdição. Isso era possível com a conjunção dos foros interno e externo, um juízo da Igreja sobre o pecado, a confissão pormenorizada das culpas e sua satisfação. Esse controle disciplinar, com um caráter jurisdicional, possibilita perceber a relação entre foros interno e externo e os planos jurídico e religioso na práxis pós-tridentina da confissão. PRODI, 2002 [2000], p. 282-289; e PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários. Tradução de Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Edusp, 2013 [1996], p. 241-330.
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Escrituras, aos Padres da Igreja e magistrados de vários tipos e tempos, numa osmose entre o espiritual e o temporal.172 No fim do século XVI houve uma virada na práxis da confissão, preparando o surgimento de um direito da consciência separado do positivo. Reconhecidas nas dioceses, as ordens religiosas são protagonistas na confissão pós-tridentina. Embora o tribunal diocesano tenha perdido importância para o da Inquisição, mais concentrado nas heresias, os bispos guardaram para si os casos reservados – quando o papa e os bispos podiam dispensar os fiéis de irregularidades no foro consciencial, diretamente ou através do vigário. Aumenta assim a importância do foro diocesano na esfera penitencial, paralela, mas autônoma em relação ao direito canônico. Parece ter sido este o caso de Pedro de Almeida, dos jesuítas e do bispo Francisco de São Jerónimo após a sublevação de Vila Rica, alterado com a morte do último. A penitenciária era uma referência para a teologia moral e o sistema normativo cristão; por ela se concediam dispensas na transgressão de normas canônicas. Nos países católicos, o declínio do sistema de casos reservados ocorre no século XVIII, em paralelo à absorção desses territórios pela justiça estatal.173 Mas na era da consciência seiscentista, governos e lei positiva chocavam-se com a lei divina ou natural e a religião vigente. Ligando os foros interno e externo, interpretações produziam uma casuística com noções sobre ação legal, culpa e responsabilidade. Já não era um dualismo entre ordenamentos jurídicos diversos, mas entre lei positiva e norma moral, seguindo modelos como o aristotélico-tomista, o neoestoico e/ou uma linguagem mística, teológico-jurídica. No Colégio Romano, jesuítas valiam-se de jurisperitos para casos de consciência, influenciando sacerdotes e confessores com sua teologia moral. Os bons teólogos, práticos e confessores,
172 Moral e direito atuavam juntos desde os tempos medievais. No probabilismo se admitia a liberdade de seguir uma opinião provável, ainda que não fosse a mais provável, na solução de casos morais. Acentuava-se a solução do caso concreto, referenciando muitos elementos para aplicá-los conforme as circunstâncias. Surgido na Espanha nas primeiras décadas do século XVI, o probabilismo tornou-se uma prática da Companhia de Jesus, expandindo-se até meados do Seiscentos. Mas as críticas sofridas não impediram sua difusão na América no século XVIII, com a ativa presença dos jesuítas. O probabilismo moral coincidiu com o auge do “casuísmo” no plano jurídico, com atenção aos casos e matizes e não às normas e doutrinas. TAU ANZOÁTEGUI, op. cit., p. 57-62. 173 PRODI, 2002 [2000], p. 290-314. Prosperi concede mais atenção à ação inquisitorial, flagrando uma certa nostalgia católica na análise de Prodi. Cf. PROSPERI, 2013 [1996], p. 61-535; e PROSPERI, Adriano. Uma discussão com Paolo Prodi. Revista de História, São Paulo, n. 160, p. 131-146, 2009. Com análise centrada no caso português e tendo como base os estudos de Delumeau, para João Francisco Marques a confissão era uma arte, influenciando o sentido de muitas obras e práticas, cf. MARQUES, João Francisco. Rituais e manifestações de culto. In: AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.); MARQUES, João Francisco; GOUVEIA, António Camões (orgs.). História religiosa de Portugal: humanismo e reformas. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, v. 2, p. 546-552. Ver também CARVALHO, Joaquim Ramos de. Confessar e devassar: a Igreja e a vida privada na Época Moderna. In: MATTOSO, José (dir.); MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 32-57.
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eram também bons canonistas, pois a teologia e a filosofia esclareciam sobre a conduta humana em relação à razão natural, às Escrituras e à história. A justiça tinha assim um rosto divino/humano. Um novo direito natural diferenciava-se do direito positivo, separando o pecado e o delito – como transgressão da norma civil ou canônica. Os moralistas católicos eram juristas especializados no foro interno, lidando com várias tradições de pensamento e produzindo formas mistas de expressão escrita, de manuais a textos eruditos, com muitas citações de autoridades. Os grandes autores desses tratados pertencem a ordens religiosas, sendo os jesuítas expoentes.174 Embora Paolo Prodi não particularize o mundo ibero-americano, percebo a pertinência dessas ideias na contextualização do Discurso historico, e político, em especial em sua segunda parte. Nesta, a profusão de citações – mediante cópias de terceiros ou edições seminais – mescla muitos doutores mortos, alguns deles anunciados pelo próprio Pedro de Almeida nas cartas que escreveu ao bispo, certamente já “turbinado” na missiva de 31 de janeiro de 1721 pela cultura jesuítica. No Discurso, seu autor define-se como teólogo – os professores de filosofia Antonio Correia e José Mascarenhas também estudaram teologia, e não se sabe se Correia fez o curso de teologia no Colégio da Bahia. Desprezam-se assim os advogados e procuradores letrados das Minas e do Rio de Janeiro, embora recorrendo a juristas vários. Desse modo as razões para aplicar sumariamente o castigo eram também políticas; mas elas são mais caracterizadas pelo âmbito jurídico, no qual os direitos canônico e natural ou divino contavam bastante – algo mencionado na carta de Pedro de Almeida ao primo João Mascarenhas. Já vimos o quanto a bibliografia citada no códice provém do século XVII para trás – tempo de simbiose entre os âmbitos jurídico e moral, antes da sacralização do direito civil. Em sua correspondência como governador após a sublevação, percebe-se Pedro de Almeida apreensivo com
174 PRODI, 2002 [2000], p. 327-390. Delumeau observa a ambiguidade da palavra mundo nos escritos de Inácio de Loyola (Exercícios espirituais, c. 1522), importantes na retomada do macabro cristão pela Reforma católica, e de Roberto Bellarmino (De arte bene moriendi, 1620), com significados sobre a Terra e seus habitantes, ou a concupiscência em várias formas (luxúria, cobiça, orgulho). DELUMEAU, 2003 [1983], v. 1, p. 49, 109 e 124 e v. 2, p. 60. Pedro Cardim considera a força do elemento religioso na literatura de teólogos e canonistas em Portugal nos séculos XVI e XVII. CARDIM, Pedro. Religião e ordem social: em torno dos fundamentos católicos do sistema político do Antigo Regime. Revista de História das Ideias, Coimbra, n. 22, 2001, p. 148 -149.
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o posicionamento do rei. Mas o Discurso historico, e político não expressa este temor, ante a incerteza mais evidente relacionada ao foro consciencial.175 As cartas de Pedro de Almeida a João Mascarenhas na Bahia e ao bispo Francisco de São Jerónimo no Rio de Janeiro, e o papel dos jesuítas como confessores e prováveis produtores do códice são elucidativos para compreender o Discurso nesses fólios. A metodologia de problemas no texto – associada ao probabilismo por seus adversários – foi usada nos escritos de Antônio Vieira e seu círculo, com o qual Antonio Correia conviveu. É provável que um esboço desse momento do Discurso – após mencionar-se o perigo da excomunhão do conde – tenha sido remetido no papel anexo à carta enviada a João Mascarenhas, que pode ter opinado sobre as “razoens de direito que fizerem a bem deste cazo”. Nesta carta Pedro de Almeida pedia ao primo, reputado como o “melhor Letrado”, para ler o papel incluso e devolvê-lo, acrescentando suas razões. Razões em princípio feitas pelos jesuítas para o conde. Como vimos no Capítulo 4, na carta enviada ao bispo em fim de janeiro de 1721 também foram expressas várias razões, relacionadas a essas páginas do manuscrito.176 Voltamos assim aos comentários de José Pedro Xavier da Veiga e Laura de Mello e Souza referidos no início deste item, como intentos de captar o sentido do texto estudado. Eles continuam a ser procedentes, ao lidarmos – na acepção do primeiro – com o memorial de um acusado impenitente, aflito por razões de vária ordem que justificassem os atos impetrados em julho de 1720.177 Pelos relatos de batalhas da Guerra de Sucessão da Espanha, percebe-se que Pedro de Almeida era impulsivo e acostumado a vitórias, explicitadas por ele
175 Por outro lado, Tau Anzoátegui perscruta o “casuísmo” (termo surgido depois) no direito indiano na América hispânica até o século XIX, em contraposição ao espírito sistêmico. Em suma, seus aspectos seriam: uma crença social ou tradição com raízes medievais e ligações com a teologia moral, o caso como eixo da reflexão jurídica na atenção às circunstâncias, a possibilidade de ligar o fato ao direito, o peso da opinião de auctoritates (numa erudição abarrotada de citações de autores não lidos, sem seguir modelos de lógica, dialética ou retórica) relacionadas a leis e razões por uma metodologia de problemas, a importância do fator humano, o recurso à dissimulação, a noção de equidade com base em Aristóteles. TAU ANZOÁTEGUI, op. cit. Para a América portuguesa, de modo bem menos desenvolvido, ver WEHLING, op. cit. 176 APM, SC-13, f. 6r-6v, Carta a Francisco de São Jerónimo. Vila Rica, 17/11/1720; ANTT, CFA, no 120, Cartas de 13/01/1721 a João Mascarenhas e 31/01/1721 a Francisco de São Jerónimo (ambas de Vila do Carmo) (transcrições cedidas por Mello e Souza). Citações na p. 16 – na carta ao primo. Segundo António Caetano de Sousa, João Mascarenhas foi porcionista no Colégio de São Paulo em Coimbra, e seguindo as letras foi desembargador do Porto, da Relação de Lisboa e deputado da Mesa de Consciência e Ordens. Largando a vida clerical, foi tesoureiro-mor da Sé do Algarve, tendo casado em 1717 na Bahia com Joana Guedes de Brito. Faleceu em 1729 sem filhos. Portanto, era formado em direito canônico, possivelmente também no civil. SOUSA, António Caetano de. Memorias historicas, e genealogicas dos grandes de Portugal... Lisboa: Regia Officina Sylviana, 1755, p. 363. 177 VEIGA, 1898, p. 4.
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de modo vaidoso em sua chegada a São Paulo em 1717. A reputação de herói de guerra, por ele também construída, teria influenciado d. João V a nomeá-lo vice-rei do Estado da Índia em 1744. Ademais, no governo das Minas suportou antes vários motins, sendo pressionado pelos sublevados em 1720 no palácio em Vila do Carmo até desencadear a feroz repressão. Há poucas informações sobre sua piedade, para além da devoção a são Pedro. Mais tarde, quando já era marquês de Castelo Novo e vice-rei na Índia, interveio junto a João V para custear a publicação em Barcelona do livro Epítome histórico del portentoso santuario y real monasterio de Nuestra Señora de Montserrate, de Pedro Serra i Postius, dedicado ao rei luso. Segundo a lenda, são Pedro viera com a imagem morena de madeira ao “monte serrado”, lugar do mosteiro. Pedro de Almeida e o autor Pedro Serra provavelmente conheceram-se na Catalunha durante a guerra. O título do livro consta no inventário da biblioteca do 1º marquês de Alorna. Por sua vez em Goa, teria invocado a proteção do jesuíta e santo Francisco Xavier.178 Mas a atrição e o respeito católico transbordam das cartas dirigidas ao bispo, nas quais o episódio do incêndio no morro do Ouro Podre é especialmente mencionado. Apesar da aparente benevolência, o prelado e os jesuítas eram agentes de um discurso homogêneo, recorrente e culpabilizador em relação ao pecado mortal. Conforme a perspectiva abrangente de Delumeau, o auge dessa onda de culpa no Ocidente cristão foi vivido nos séculos XVI e XVII.179 Compreende-se assim por que o Discurso expressa a visão de mundo do 3º conde de Assumar – na percepção de Mello e Souza. O texto despreza o mundo mineiro infernal e metamorfoseia o conde general em herói, esperando receber mercês régias. Paradoxalmente, deixa implícito o seu tormento ante as horrorosas sublevações de Vila Rica – as quais, conforme escreveu no fim do governo, “eu me na’o quero lembrar dellas”. Um sentido profundo vinculado ao códice, sobre a racionalização da consciência de Pedro de Almeida como fiel e indivíduo – neste caso, um tanto desprendido de seu
178 MARTÍN MARCOS; MONTEIRO, op. cit., p. 260-269 e 275; SOUZA, 1999, p. 36; SILVA, 2006, p. 25; e XAVIER, 1856 [1836], p. 8 -123. Curiosamente, o nome de Pedro de Almeida foi ligado de modo involuntário à descoberta da pequena estátua a partir de então conhecida como Nossa Senhora Aparecida, em 1717, quando se dirigia às Minas, passando por Guaratinguetá. 179 Se no âmbito teológico e inquisitorial o fogo separaria os justos e injustos, Delumeau faz pontes entre a neurose coletiva de culpa e o arcabouço conceitual freudiano, pela consciência. Nesse sentido o pecado pesaria mais que o erro, ao compreender a noção de responsabilidade pessoal ante os homens e Deus, com o fogo interno propagando-se na alma do incendiário. DELUMEAU, 2003 [1983], v. 1, p. 573, 564-572 e v. 2, p. 64, 105, 183-188, 263 e 278; e BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1949], p. 21.
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estatuto social. Algo bem próprio da ambivalente Época Moderna, justamente a esse respeito.180 Ausente no manuscrito da Noticia ao menos no que respeita às páginas ora analisadas, o aspecto jurídico-moral é fundamental no códice em tela, corroborando seu uso particular. Mas ele surge entremeado a elementos históricos, políticos, poéticos, jocosos, épicos, fabulosos e filosóficos, igualmente ancorados em vasta bibliografia – incluindo as alterações de significantes vistas no decorrer do trabalho. O perfil multifacetado – cuja compreensão é essencial na análise do manuscrito – não é do mesmo jaez dos livros de Solórzano e outros juristas canônicos e/ou civis citados. Não obstante a sua formação cultural – incensada depois no âmbito da Academia Real da História – o governador de capitania não possuía competências específicas, tampouco o tempo disponível dos confessores apaniguados para a redação de um códice sofisticado. É provável que Pedro de Almeida tenha opinado ativamente na elaboração do Discurso historico, e político, fornecendo informações, explicitando gostos, pareceres etc. – como vimos, o governador e os padres por ele escolhidos conviviam no mesmo ambiente, vivenciando juntos os episódios narrados. Todavia, o apreço às belas-letras não significa necessariamente talento escritor, e assim a participação condal no texto pode não ter ocorrido; ou ter sido semelhante à provável ação de seu pai João de Almeida Portugal no patrocínio da gravura alegórica sobre o 2o conde e a casa de Assumar; ou à encomenda do retrato de família ao pintor Domenico Pellegrini feita pelo neto, o 3o marquês de Alorna Pedro José de Almeida, como vimos no Capítulo 2. Trata-se de algo difícil de aferir no presente. Por outro lado, aspectos analisados no decorrer deste trabalho sobre a cultura jesuítica e as trajetórias de Antonio Correia e José Mascarenhas evidenciam seus talentos e formações adequados à produção do Discurso historico – pelo domínio de artes mecânicas e liberais. Por essa perspectiva, o códice foi elaborado para o 3o conde de Assumar, e não por ele. Pedro Miguel de Almeida foi o primeiro e principal receptor do manuscrito, pois o códice urdido de forma complexa teria o potencial de apaziguar sua alma inquieta.181 Embora não se saiba se assim
180 SOUZA, 1994, p. 41; citação em APM, SC-12, f. 39r, Carta aos oficiais da câmara de Vila Real, Vila do Carmo, 11/7/1721. 181 Como vimos no Capítulo 1, o aspecto foi percebido nas poucas linhas escritas por Boxer sobre o Discurso na versão impressa de 1898. BOXER, 1969 [1962], p. 213.
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ocorreu, de algum modo sua alma estava ali. Ao que parece o livro manuscrito foi por ele considerado e preservado, passando assim a seus descendentes.182 Quase um século depois, foi transferido para a casa de Linhares. Porém, como costurar os elementos plurais levantados? * Na economia do texto operada no último capítulo, aspectos foram privilegiados de forma a compreender sua diversidade intrínseca. A concepção de história predominante – longe de assemelhar-se a um paradigma setecentista – aparece impregnada de uma mescla de tempos sobrepostos, eventos históricos e/ou fabulosos, com linguagem conotativa no encômio ao conde general ou para detratar os sublevados. Por outro lado, na mistura se distingue o enredo da sublevação contado em ordo naturalis, mostrando que os autores do códice sabiam mover-se entre diferentes historicidades, como se vê pelo relato factual priorizado no manuscrito da Noticia. Por isso o aspecto político foi compreendido de modo associado a histórias políticas ali narradas – da própria rebelião de 1720, dos motins mineiros e conflitos ocorridos no Brasil, sobretudo no mundo de todos os tempos. Nessas histórias, percebe-se a fluidez dos conceitos de estado e razão de Estado, oscilando entre o argumento do bem público e a defesa da situação do conde para respaldar o uso da violência – além de advertências à monarquia portuguesa, fortes demais para serem veiculadas amplamente. Muitas das histórias contadas valeram-se do gênero épico, transformando o protagonista em herói à maneira de Vasco da Gama, Eneias, Ulisses ou Aquiles, e os rebeldes em vilões pintados com tintas pérfidas. Os vínculos do Discurso com a poesia são evidentes, não apenas pelos momentos em que a prosa cede lugar ao verso. Buscando deleitar o leitor, no códice há sonetos compostos com relativa destreza, sátiras parafraseadas, imitações de poetas célebres nas culturas portuguesa e
182 Evidencia-se o papel do destinatário na compreensão, atualização e interpretação textual e o modo como o próprio texto prevê essa participação, com seus sistemas de significação e/ou desejos, pulsões e arbítrios. Cruzam-se assim as intenções do autor, da obra e do leitor. O leitor empírico pode conjecturar sobre a intentio operis e o leitor modelo postulado pelo texto. Mas essa conjectura deve referir-se ao texto como um todo orgânico. ECO, 2019 [1979], p. 151-161; e ECO, 2015 [1990], p. 2-15, 164 e 179. Ver também SKINNER, 2002 [1999], p. 90-127.
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clássica. Transita-se assim entre o verdadeiro da história, o verossímil poético e a sátira por vezes inverossímil – algo presente em efeitos e seres fabulosos descritos. O manuscrito ultrapassa os âmbitos histórico e político. Um texto híbrido, não redutível a preceptivas retóricas e poéticas, ao mesmo tempo que lidava com essas.183 Não raro, o engenho produz alterações de significantes que produzem efeitos de estranhamento e até cômicos, perceptíveis para um leitor culto da primeira metade do século XVIII. Ademais, no decorrer da narrativa da sublevação algumas profecias foram concebidas como parte de sua memória. Esse é o gancho para perscrutar filosofias naturais subjacentes ao códice, explicadas no âmbito da cultura jesuítica seiscentista, mas também do imaginário da Época Moderna. Uma retórica pontualmente inspirada em princípios da alquimia é identificada no manuscrito, para além das conhecidas metáforas vindas da medicina, ou sobre a influência astral nas coisas terrestres. Referências ao poema de Lucrécio flertam com o atomismo, associadas ao espanto. Apropriando-se de exemplos antigos ou modernos, ideias em princípio contraditórias convivem no texto, que escapa aos padrões da cultura aristotélica e tomista. No caudal produzido a fim de fascinar, sobressai a inspiração neoplatônica para descrever as Minas de forma mágica e misteriosa, valendo-se de leituras avalizadas nos estudos da Ratio – bem como nos Padres da Igreja – e/ou no seiscentista Caussin. Não há como saber se os aspectos filosóficos heterodoxos no texto altamente estético correspondem a convicções dos autores. Mas há elementos favorecendo essa ponte, por interesses e leituras – mostrando a riqueza da cultura jesuítica na América portuguesa e o gosto de membros da alta nobreza lusitana, como Pedro de Almeida. Por fim, o âmbito jurídico é mais bem compreendido ao serem ressaltados o aspecto moral e religioso e os vínculos indissociáveis entre pecado e delito, conforme os direitos canônico e secular vigentes à época e a importância do foro da penitência, incidente na consciência cristã e individual. A articulação entre as cartas enviadas por Pedro de Almeida ao primo e ao bispo e o momento do Discurso sucessivo à menção do perigo de excomungar-se o conde demonstra o relevo da tríade formada pelo idoso pastor, o nobre aflito com seu destino no Céu e na Terra e os confesso-
183 Cañizares-Esguerra conclui pela originalidade das histórias produzidas como mundos alternativos na América setecentista, sem contemplar o âmbito português. CAÑIZARES-ESGUERRA, op. cit., p. 413.
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res Antonio Correia e José Mascarenhas. Como o próprio governador resumiu o motim em carta ao rei, o paralelo com a conjuração de Catilina é uma metáfora eficaz do Discurso – perpassando-o do início ao fim. Mas em alívio ao foro interior de Pedro de Almeida, no texto recorre-se a muitas auctoritates, conforme o laxismo jesuíta definido por seus adversários e os tratados de casuística outrora em voga. Mais uma vez, o contexto de ideias evidencia o 3º conde de Assumar na condição de leitor e receptor, enquanto os confessores seriam os principais autores, com o provável protagonismo – na escrita e na elaboração textual do Discurso e da Noticia – de Antonio Correia, o mais experiente e único não nomeado no texto, desconhecendo-se sua caligrafia em outros escritos.184 A participação de José Mascarenhas também é provável, bem como a de Pedro de Almeida, para as informações factuais – sem descartar o possível auxílio do secretário Domingos da Silva. Mas a preocupação com o detalhe no artefato – na escrita e nas ideias – é própria do meio clerical. Reflexões heterodoxas em termos políticos e filosóficos, o estudo de caso sobre o foro consciencial, o fato de seus produtores se conceberem como imitadores e não “autores” e o ambiente coletivo percebido na dinâmica de redação dos manuscritos, endossam o perfil do volume como gesto anônimo e voltado à circulação restrita.185 O códice produz suas diabruras. Sua arte oculta pode significar a visão belicosa e crítica do governo monárquico português na região; mas também os registros satíricos e/ou cômicos, bem como o engenho poético; ou as ideias herméticas ou mecanicistas; ou ainda os argumentos morais e jurídicos, quase cifrados. As reflexões seminais de Johan Huizinga relacionam o aspecto lúdico ao direito, sem diminuir a seriedade das batalhas verbais. Também a poesia possui fisionomia diversa da vida comum, com alteração da linguagem, disfarces de sentido, a imaginação capaz de encantar e um herói não raro encarnando a personagem principal – a história aduladora insere-se nesse âmbito. Em diálogo com a filosofia, os sofistas antigos exibiam os conhecimentos de sua velha arte, oscilando entre o rito solene e o divertimento, num jogo perspicaz, pleno de artifícios. Conforme
184 Destaque-se a autoria atribuída a Antonio Correia por CARVALHO, 1933, p. 20 e 98. 185 Sobre a concepção de autor como gesto, ver AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007 [2005], p. 55-63.
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Huizinga, filosofia e sofística resultavam ambas de uma esfera lúdica arcaica. Nos diálogos platônicos, filósofos e sofistas não eram completamente díspares, embora os segundos cultivassem mais a palavra brilhante.186 O historiador neerlandês pode ter ampliado demais o conceito de jogo e seus significados culturais e sociais, pois nem todas as expressões por ele levantadas possuem caráter agonístico.187 Mas é notório o empenho em chamar a atenção para formas culturais que, ao buscarem beleza, mistério, prazer e conhecimento, representam algo diverso da ordem prática, sendo também sérias. Segundo Huizinga, no século XIX o elemento lúdico foi abafado.188 Xavier da Veiga não pôde compreender a dinâmica textual atinente ao Discurso, conferindo-lhe a tacha de uma peça solene e pública. A ideia perdurou na historiografia. Entre ensinar, comover e divertir o leitor, evidencia-se enfim o papel do deleite no códice em tela, relacionado ao gosto, à satisfação, ao regalo e ao belo, podendo restringir-se à capacidade de lograr sem atingir um efeito real. Por outro lado, o deleite opõe-se ao desgosto, entendido como desprazer, dissabor, falta de alegria, aborrecimento e contrariedade.189 Retoma-se assim a acepção de verdade entendida como persuasão, por uma tentativa de controlar os fatos, e a noção de mímesis como algo possível de ser concebido, abrindo caminho ao campo ficcional.190 A adoção de certas alternativas informa sobre a intencionalidade do texto. Para Wolfgang Iser a ficção oferece um sentido à existência, ao transgredir o mundo real. Essas operações seriam complexas num texto como o Discurso, que soma suas próprias transgressões às de escritos predecessores. Nessa abertura ao lúdico, textos podem ser produzidos sobre o ato de fingir. Para além da imitação, Iser sublinha a necessidade de se considerar na mímesis também o âmbito performático, sinalizado desde Platão e Aristóteles, com a possibilidade de o real comportar – mesmo que lentamente na história – um processo de autorrealização. O jogo textual desdobra186 HUIZINGA, op. cit., p. 74, 87, 100, 133, 147-149 e 157-170. 187 Roger Caillois critica a abordagem de Huizinga e propõe um sistema classificatório para os jogos, no qual se destaca o mimetismo, inspirado no exemplo de alguns insetos. Representa-se assim a personagem como num disfarce, um simulacro, com prazer de fazer-se passar por outro na simulação de outra realidade. CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Tradução de Maria Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2017 [1958], p. 57-62. 188 HUIZINGA, op. cit., p. 214 e 217. 189 QUINTILIANO, op. cit., t. III, livro III, p. 193; BLUTEAU, op. cit., v. 3, p. 145; e HOUAISS; VILLAR; FRANCO, op. cit., p. 931, 994. 190 GINZBURG, 2002 [2000], p. 60-61; GINZBURG, 2009 [2006], p. 11-24, 170-171 e 210-230; e LIMA, 2014 [2000], p. 29-38.
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-se na apresentação do diferente. Ao não conseguir definir-se, o ser humano se encena por fantasias, estando simultaneamente em si e fora de si, pois o fictício e o imaginário fazem parte da antropologia. Por isso o texto pode esclarecer por que o homem necessita da ficção.191 Conforme Iser, os textos ficcionais possuem elementos do real em termos sociais, mas também emocionais, pois o ato de fingir não é imaginário ou difuso e sim intermedeia a relação entre imaginário e realidade pelos elementos selecionados, que permitem apreender intenções específicas em face de diferentes contextos. A ficção textual pode reunir várias linguagens, focos e pontos de vista, que seriam contraditórios em discursos mais empíricos. No Discurso historico, e político há momentos que excedem a capacidade dos códigos formais interpretativos. A ficção mimetiza o seu caráter, preservando alguns elementos naturais a fim de o texto ser compreendido como se fosse um mundo contextual. O texto ficcional provoca reações afetivas nos receptores, podendo significar uma reação ao mundo. Assim, tensões podem ser dissipadas ao assimilar-se de forma ficcional uma experiência.192 Esses aspectos elucidam características importantes do códice. Pelo grau de criação que esta produção também comporta, não se trata apenas de uma imitação. Embora acreditando serem imitadores, nesta análise os jesuítas tornam-se autores, todavia bastante dependentes das expectativas do receptor. Ao que parece, Pedro de Almeida ficou satisfeito com sua heroicização encetada no Discurso, ao narrar-se nele a sublevação de Vila Rica de modo peculiar, contribuindo para desfazer seu desgosto ou angústia com o ocorrido. Sua extrema necessidade de lidar com as razões para o castigo impetrado foi ali atendida pelos doutos padres. Por essa visão, o Discurso é um produto de invenção sofisticada, um simulacro de Pedro de Almeida nas vestes de um conde general prudente, justo, forte e sagaz, que assim
191 Não há representação sem performance, sendo essa distinta do que é representado. Mimética, a representação pressupõe algo apresentado no ato da descrição. As poéticas tradicionais transmitiram esses conhecimentos pelos séculos, mas seria inadequado substituir a noção de mímesis pela de performance, pois as leituras aristotélicas fornecem “receitas” para produzir obras de arte. Contudo, essas parecem indicar que a representação inclui a performance. Desde os primórdios o conceito de representação entendido como mímesis foi ambivalente. ISER, 2017 [1991], p. 26-30, 385-386. 192 Ibidem, p. 31-56 [tradução da 1a versão de Costa Lima e Heidrun Krieger, 1983]. Por sua vez Jauss enfatiza a identificação catártica e estética do leitor, capaz de liberar emoções conforme a teoria aristotélica, ligando-se a um imaginário inscrito na forma teatral da tragédia. JAUSS, 1978 [1972-1975], p. 143-147, 162-166.
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se autointerpretou por meio de uma encenação – ao menos naquele momento.193 Ironicamente, o simulacro retornou ao Brasil, enquanto códice endiabrado nas montanhas de Minas.
193 ISER, 2017 [1991], p. 406-409. O sentido de simulacro também seria aplicável à gravura produzida para o 2o conde de Assumar e ao quadro encomendado pelo 3o marquês de Alorna – a depender de mais investigações. STOICHITA, Victor. O efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros. Tradução de Renata Correio Botelho e Rui Pires Cabral. Lisboa: KKYM Imago, 2011 [2008].
Conclusão
Muito mais do que aqui fica poderia ser relatado, pois o Discurso historico, e político é mesmo um material riquíssimo de investigação. Nesta, procurei mostrar a importância de perscrutar histórias de arquivos, coleções, leilões de livros e bibliotecas, a fim de colher elementos que ajudem a elucidar a trajetória e o perfil do volume anônimo e enigmático, bem como de exemplares a este relacionados. Tratei assim o AVC-17 depositado no APM como um artefato; também o documento irmão – mas diverso – pertencente ao IEB-USP; e a cópia feita em 1825, hoje na BNB. Com a colaboração de Márcia Almada e equipe, pelos exames materiais e visuais desses três objetos obtivemos informações e indícios, complementando outras frentes investigativas sobre o manuscrito feito com arte. Conseguimos chegar a pontos relevantes, no estabelecimento das autorias gráfica e intelectual comuns ao Discurso e à Noticia; em hipóteses fundamentadas de suas circunstâncias de produção; sobre a dinâmica de correções indicando um trabalho coletivo e cuidadoso para o primeiro códice; e conhecendo fisicamente os artefatos diferentes, mas relacionados. Ademais, identifiquei o copista António Lourenço Caminha vinculado à casa nobre de Linhares, abrindo o caminho para considerar a permanência do Discurso naquela livraria durante boa parte do século XIX, em meio a vicissitudes da história portuguesa. Por vários fatores, a historiografia perdeu contato com o códice matricial sobre a rebelião de 1720, passando a lidar apenas com as publicações de 1898 e
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1994. As numerosas notas marginais manuscritas não constam desses livros, e no presente século houve avanço das possibilidades de estudo sobre a interpretação e a materialidade de manuscritos e impressos provenientes da Época Moderna – paradoxalmente, em plena era digital. Procurei lidar com várias leituras do texto central bastante comentado, valorizando nessas os insumos e os diferentes olhares – o que endossa a importância do documento elegido para as histórias do Brasil e de Minas na Época Moderna. Alguns pontos necessitavam de esclarecimentos, mormente sobre a autoria por vezes atribuída de modo categórico a Pedro de Almeida e sobre o motivo da elaboração do Discurso. Desde 1898, ideias foram sendo reproduzidas quase automaticamente entre os trabalhos – faço parte deste empenho de autocrítica e desconstrução. Ao promover a análise minuciosa do manuscrito, realizo algo distinto dos modelos historiográficos de compreensão geral que, grosso modo, procuram enquadrar textos e imagens vindos de séculos passados conforme perspectivas contemporâneas. Busquei demonstrar como a análise conjugada do texto, da matéria e do percurso documental é capaz de produzir uma interpretação mais próxima ao sentido de origem do artefato. A atenção à materialidade dos textos também evidencia os limites das cópias digitais como registros históricos para os pesquisadores. Não obstante, beneficiei-me das novas tecnologias de exames e das cópias digitalizadas de livros raros, consultadas na internet. Por essas cheguei a uma quase radiografia das leituras e citações realizadas pela autoria do códice, verificando a exatidão de grande parte de suas referências e o cuidado com que este foi tecido. Outro paradoxo de investigação consistiu em descentrar a análise do protagonista da narrativa – o conhecido conde de Assumar no Brasil – estendendo o horizonte de estudos a outros expoentes de sua casa nobre, desde o pai aos descendentes e membros colaterais. Ao dar atenção a esta linhagem, constato o apreço à guerra, às letras e à produção artística, compondo um ethos nobiliárquico expresso em algumas práticas, como o patronato de obras. Como parte dessa forma de representação, o gosto pela cultura manuscrita e particular fez vários exemplares de membros da casa serem preservados e transmitidos por gerações de descendentes até a atualidade – e não apenas pelos herdeiros titulares. Junto a outros manuscritos e impressos, o Discurso migrou no segundo decênio do Oitocentos da biblioteca do
Conclusão
3o marquês de Alorna para a livraria dos condes de Linhares – como verifico por documentos descritos no catálogo produzido para o leilão desta última em 1895. A trajetória do Discurso em acervos particulares insere-se na perspectiva de longa duração, entre as histórias de relativo declínio e ascensão de dois grupos próximos à monarquia portuguesa: 1) A linhagem dos Almeidas, que serviu às dinastias de Avis e de Bragança desde o século XV, em guerras contra Castela, no vice-reinado da Índia, em virtude da sucessão espanhola e na capitania de São Paulo e Minas do Ouro, foi elevada à grandeza pelo príncipe regente d. Pedro com o novo condado de Assumar. Ao fim do reinado joanino, seu maior expoente recebeu o título de marquês de Alorna, em retribuição a feitos de conquista. 2) A nobreza menos ilustre de sangue e de batalhas dos Sousas Coutinho foi, no entanto, distinguida pelo serviço no reinado de d. José I sob a égide de Sebastião José de Carvalho e Melo, sendo especialmente fortalecida na regência do príncipe d. João. Nesse afã comparativo, o 2o conde de Assumar foi conselheiro de Estado ao voltar de Barcelona; o 3o conde Pedro Miguel de Almeida foi por duas vezes governante no além-mar, integrou o Conselho de Guerra e colaborou com o Conselho Ultramarino, mas não foi ministro ou general da armada como esperado, sendo mantido distante da corte; já o 2o marquês de Alorna, seu filho, foi preso por 18 anos e consumiu suas energias em reabilitar a casa de Távora no reinado mariano; e o neto Pedro José de Almeida, 3o marquês de Alorna, se antes chegou a ser nomeado vice-rei do Estado do Brasil, em 1810 foi declarado traidor da pátria por aderir ao exército francês. Em revanche, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho foi governador em Angola e embaixador na Espanha, casando-se com uma rica herdeira em Portugal e no Brasil, garantindo assim sua ascensão econômica; por sua vez o herdeiro, o 1o conde de Linhares Rodrigo de Sousa Coutinho e seus irmãos José António e Domingos atuaram com forte parceria no ministério, em embaixadas importantes e no governo do Brasil e de Portugal, sobretudo de 1808 a 1817. Enraizaram ainda seus interesses no centro-sul brasileiro. Nesse ínterim, uma sesmaria concedida pela coroa, escritos e talvez até os painéis vindos da Índia migraram de uma casa nobre para outra. Compreendo a história daqueles impressos e manuscritos – hoje dispersos nos dois lados do Atlântico – no âmbito daquela relação de forças em transformação.
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Mas conheci melhor, também, a personalidade pública de Pedro Miguel de Almeida Portugal, instruído a distância por Bluteau, bem formado sob os cuidados da mãe. Durante a guerra na Espanha, quando não estava em batalhas o jovem nobre viveu por oito anos com o pai em Barcelona – ambiente cosmopolita que aguçou sua curiosidade intelectual, pelo mercado editorial e pelos círculos letrados ali existentes. Paralelamente, seu nome era mencionado nos impressos de notícias de batalhas, galgando postos militares na frente aliada, distinguido pelo soberano austríaco por ser filho do embaixador e conde português, mas também por suas virtudes bélicas. A escalada militar culmina na sua volta ao reino em 1713 como comandante das tropas lusas. Ao ser nomeado diretamente por d. João V governador da delicada capitania de São Paulo e Minas do Ouro (ultrapassando a concorrência instituída no Conselho Ultramarino), o novo governador chega a São Paulo vangloriando-se daquelas vitórias. Inteligente, vaidoso e impulsivo, no governo mineiro enfrentou motins com atividade escrevinhadora incessante, por meio do secretário Domingos da Silva. Todavia, os desdobramentos da sublevação de junho e julho de 1720 em Vila Rica foram deveras perturbadores para sua consciência e reputação, ante os poderes maiores instituídos. Encontram-se aí as razões das respectivas produções de dois manuscritos tão interessantes como o Discurso e a Noticia. Na volta ao reino, o 3o conde de Assumar tentou controlar sua memória acerca dos feitos passados na Espanha e nas Minas. Foi alijado da corte junto a muitos outros filhos da nobreza tradicional, e/ou pela rivalidade com membros desse grupo de elite, no âmbito da Academia Real da História. D. João V queria mantê-lo a distância, embora reconhecendo sua boa reputação de guerra. Nomeado vice-rei do Estado da Índia, pegou o embalo da voga de impressos portugueses que relatavam conquistas no Oriente prestigioso e exótico, valendo-se principalmente do talento de escritor de José Freire Monterroio Mascarenhas. A rede criada em torno dessas publicações aumentou bastante o poder simbólico do marquês de Castelo Novo e depois de Alorna no Estado da Índia e no reino europeu. As denúncias de irregularidades no governo e sua queda em desgraça no retorno à corte fazem mais sentido se compreendidas por esse prisma. Com o cabedal composto de vários tipos de informações, após a transcrição descrevi e resumi o texto do Discurso, parafraseando-o conforme lia-o – incluindo as
Conclusão
numerosas notas e identificando as obras mencionadas. Iniciei a análise por meio de um levantamento quantitativo comentado de referências a auctoritates, livros, personagens, alegorias e situações pretéritas – para além do âmbito minerador, privilegiado pela historiografia. Calcado em estudos de semiótica, o exercício de proporções gerou surpresas. Se o predomínio clássico já era evidente no texto central, o cotejo das notas mostrou melhor o relevo poético no manuscrito, pela profusão de versos de antigos e modernos, citados ou interpolados na prosa no centro. Em prosa ou verso, o gênero épico também se destaca, caracterizando o texto do Discurso. Há também no manuscrito referências com significantes alterados na redação, leituras incomuns, recursos a sofismas e sátiras, na mescla de histórias entrelaçadas à narrativa da sublevação. Embora a conjura de Catilina continue a ser uma metáfora eficaz para o manuscrito – conforme entendi em estudo anterior, ainda sobre a versão impressa – os aspectos acima redimensionam o peso político-jurídico percebido outrora no texto central. Pelo conhecimento possível de autores, obras, personagens, alegorias e situações evocados – sobretudo os mais incidentes – comecei a perceber como esses foram apropriados no texto. A bibliografia consultada, o detalhe das citações e a retórica apontam para o papel da cultura jesuítica naquela produção. Mediante insumos bibliográficos vindos da filosofia, da linguística e da história, a análise torna-se mais complexa, ao comparar o Discurso a formas textuais correlatas aos âmbitos de Pedro de Almeida, Antonio Correia e José Mascarenhas. A Noticia, cartas, instruções de governo, relatos de conflitos, textos acadêmicos e proféticos foram confrontados com o AVC-17, de modo a perceber semelhanças e diferenças. O entrecruzamento de fontes aprofundou o exercício heurístico, permitindo identificar aspectos no conjunto textual a fim de melhor captar o seu sentido. Por exemplo, as cartas de Pedro de Almeida ao primo na Bahia e ao bispo do Rio de Janeiro, no provável momento de início da produção do códice, são significativas para perceber suas motivações; e as alegorias e figuras existentes nos escritos dos Padres da Igreja foram matéria-prima para elaborar ricas imagens sobre a natureza infernal das Minas. Em meio a esses papéis, as trajetórias dos padres professores de filosofia Antonio Correia e José Mascarenhas foram descritas, com a Ratio studiorum e o inventário do restante da biblioteca do Colégio do Rio de
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Janeiro respaldando suas sólidas formações e as pontes com o manuscrito estudado. O Discurso provém daquela lavra. A hermenêutica prossegue com a análise de alguns temas capazes de resumir o conteúdo plural do códice. As muitas histórias e sobretudo a visão política ousada – diferente da Noticia, aparentemente voltada para uma circulação seleta – coincidem com o perfil de um manuscrito destinado a um ambiente restrito, conforme sugerem os exames técnicos e o estudo da trajetória do volume. Por sua vez, o flerte com a sátira e os sete sonetos encomiásticos elaborados o situam como peça estética produzida para o deleite, não obstante suas outras características textuais. À maneira de antigos rapsodos, os jesuítas transformaram o conde general num herói. O códice também flerta com filosofias naturais, destacando-se a argumentação inspirada na alquimia, possível no âmbito elástico da Companhia de Jesus, capaz de abrigar tendências neoplatônicas. Enfim, o temor de o conde ser excomungado – expresso nas cartas dirigidas ao primo e ao bispo e no próprio Discurso – faz despontar a percepção de um caso de consciência em busca de razões para o castigo impetrado, ante o pecado público cometido. Em suma, ideias heterodoxas de matiz político ou filosófico, bem como a última situação exposta, explicam melhor o anonimato do manuscrito e o sentido de origem avesso à divulgação. Todas as evidências – sobre matéria, texto e trajetória – indicam que aquele códice foi produzido para um âmbito particular. Voltamos assim à questão da autoria. Pedro de Almeida era um homem de guerra e com pouco tempo para as letras, conforme escreveu algumas vezes em sua correspondência. À época, não se conhecem outros escritos seus além das cartas. Depois seria autor de alguns opúsculos, práticas acadêmicas, muitas missivas e das instruções de governo ao marquês de Távora. Em face do verniz cultural presente em sua formação, Antonio Correia e José Mascarenhas reúnem mais predicados para os muitos malabarismos e digressões verificados no texto, apesar de pouco se saber sobre suas trajetórias – que foram contextualizadas em termos intelectuais. Mas o 3º conde de Assumar deve ter contribuído com ideias e insumos na redação do Discurso e da Noticia. Chego então a um ponto inflexivo em relação a leituras já realizadas sobre o primeiro manuscrito. Trata-se de reconhecer a importância da formação cultural dos jesuítas professores de filosofia e confessores do nobre, a fim de compreender
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melhor as escolhas feitas no próprio texto. Pedro de Almeida pode ter sido o patrono e/ou incentivador do Discurso, ou tê-lo recebido como um regalo, sem excluir a possibilidade de ser seu colaborador textual – o vínculo específico nos escapa, pois as ações podem estar associadas. Entretanto, pelo aspecto altamente perturbador do levante de Vila Rica na consciência deste nobre; pelos elementos de deleite existentes no códice que podiam amenizar seu desgosto com as sublevações da terra; por sua metamorfose no texto em herói épico; e pelas ideias políticas ali defendidas de modo erudito, atendendo a seus anseios e aflições, Pedro de Almeida situa-se melhor no papel do leitor implícito concebido na elaboração do próprio Discurso. Um vínculo importante e particular, conferindo ao códice o papel de outro corpo, capaz de mostrar o conde general em forma encenada. Um remédio para a alma, à maneira de um fármaco. Por meio daquele códice, Pedro de Almeida assenhoreava-se do seu passado e futuro ao se irrealizar na leitura. A ficção mesclada à história exerce uma função libertadora – conforme a epígrafe deste trabalho, retirada do poema “Irrealidade”, da poeta Cecília. Em relação a Antonio Correia e José Mascarenhas, a hipótese de autoria colaborativa e o anonimato do códice endossam a percepção de que eles se concebiam como imitadores e produtores, conforme o cultivo das belas-letras à época. Contudo, creio ser procedente reconhecê-los hoje como autores – não de modo romântico e individualista, sendo essa perspectiva já ultrapassada. Ao imitarem antigos e modernos, ao seguirem e mesclarem padrões de retórica e poesia, filosofias naturais, ideias políticas, a casuística jurídica e moral, o fictício e o factual no relato da sublevação – com uma bibliografia do Seiscentos para trás –, eles acabaram por criar um texto singular. Por suas competências e pelos assuntos que veicula, o Discurso ultrapassou o seu próprio tempo e as circunstâncias de origem. O texto adquiriu autonomia e repercussão no retorno do volume ao Brasil. A defesa eloquente do conde de Assumar – no fundo de uma causa incerta, com uma lógica emotiva e meio irracional no uso da palavra – passou a ser lida como provocação pela historiografia nacionalista e republicana brasileira, sucedida por leituras diversas, que atribuíram ao texto vários significados. Na passagem do manuscrito ao impresso, alterou-se o sentido do documento entre o meio particular e o público. Seu potencial de sedução virou pelo avesso. Tal como os ditos de Ovídio
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ou Lucrécio em várias passagens do códice, o Discurso teve seu significante alterado no decurso do tempo. Foi produzido para uma coisa, mas serviu para outras. Desde 1721 até o presente um objeto mimético, endiabrado, urdido com apreço em sua trama fabulosa e histórica, de forma a dissimular a sua textura. Estou certo que seus autores adoraram fazê-lo. O inscrito DISCVRSO HISTORICO no dorso da encadernação não traduz a sua totalidade. Tampouco o aspecto político, compondo o título no primeiro fólio escrito. O texto transita entre várias formas textuais. Trechos seus podem ser lidos de várias maneiras. O conjunto pode ser visto de muitos lados, tratados sucessivamente, mas não de todos os lados ao mesmo tempo. Como nas obras complexas, no Discurso há muitas vozes, sendo difícil reconstituir o seu todo. Portanto, esta interpretação é também anacrônica e lacunar, embora consciente. Sem validar empiricamente todas as hipóteses formuladas, procurei fundamentá-las mediante uma lógica de probabilidade, a fim de compreender o códice de modo mais integral e produzir uma explicação melhor, mais provável que outras leituras. Como vimos pela fortuna crítica do próprio manuscrito, a cautela e a prudência são virtudes também para os historiadores. O Discurso é mais belo pelo que nele supera o entendimento.
Cronologia
1656 – Provável nascimento de Antonio Correia no Rio de Janeiro. 1656 – Morre d. João IV, primeiro rei português da dinastia Bragança, sucedido por seu filho Afonso VI, menor de idade. Regência da rainha viúva Luísa de Gusmão. 1662 – Golpe de Alcântara, d. Afonso VI assume o poder em Portugal. 1668 – Afastamento de d. Afonso VI na reunião de cortes e início da regência do príncipe d. Pedro. 1668 – Fim da Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha. 1669 – Reconhecimento da independência portuguesa pela Santa Sé. 1675 – Antonio Correia ingressa na Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro. 1677 – Pedro de Almeida Portugal, vice-rei da Índia, é intitulado 1º conde de Assumar na dinastia Bragança pelo príncipe regente d. Pedro. 1679 – Ante a morte do pai, João de Almeida Portugal é o 2º conde de Assumar. 1679 – Provável nascimento de José Mascarenhas, no Rio de Janeiro. 1683 – Morte de d. Afonso VI. Seu irmão o sucede como d. Pedro II de Portugal. 1688 – Nasce Pedro Miguel de Almeida Portugal, filho do 2º conde de Assumar e de Isabel de Castro Mascarenhas. 1694 – O padre José Mascarenhas ingressa na cátedra de prima no colégio jesuítico no Rio de Janeiro.
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1695 – O padre Antonio Correia acompanha o governador-geral João de Lencastre em expedição no sertão da Bahia. 1695 – Repressão final ao quilombo dos Palmares pelo governador Caetano de Melo e Castro. 1701 – O padre Antonio Correia faz profissão de fé como jesuíta. 1701 – Início da Guerra de Sucessão da Espanha. 1702 – Chega ao Rio de Janeiro d. fr. Francisco de São Jerónimo, novo bispo desta diocese. 1703 – Mudança da posição de Portugal na Guerra de Sucessão da Espanha, a partir de então junto à coalizão de aliados, contra os Bourbons. 1703 – Tratado de Methuen entre Portugal e Grã-Bretanha. 1705 – O 2º conde de Assumar, embaixador de Pedro II de Portugal, acompanha o arquiduque Carlos de Áustria, pretendente Habsburgo à coroa espanhola, na viagem de Lisboa até Valência e Barcelona. 1705 – Pedro Miguel de Almeida Portugal participa da conquista de Valência de Alcântara, de Albuquerque e da tomada do castelo de Montjuic, perto de Barcelona. 1705 – Morre Catarina de Bragança, viúva de Carlos II, rei Stuart da Grã-Bretanha. 1706 – Pedro Miguel de Almeida é promovido pelo arquiduque a ajudante geral. 1706 – Entrada do exército aliado em Madrid. 1706 – Morre Pedro II de Portugal. 1707 – Aclamação de d. João V. 1707 – Batalha de Almansa, com derrota dos aliados. 1708 – No cerco de Lérida, Pedro de Almeida é distinguido como coronel nos relatos de batalhas. 1708 – Guerra dos Emboabas nas Minas até o ano seguinte. 1709 – Pedro de Almeida é brigadeiro de cavalaria. 1710 – Invasão francesa ao Rio de Janeiro comandada por Jean-François Duclerc. 1710 – Antonio Correia leciona filosofia em Pernambuco. 1710 – Guerra dos Mascates em Pernambuco até o ano seguinte.
Cronologia
1710 – Nas batalhas de Almenara e Saragoça, Pedro de Almeida é sargento-mor de batalha. 1711 – Invasão francesa do Rio de Janeiro comandada por René Duguay-Trouin. 1711 – Nova tomada de Madrid pelos aliados. 1711 – Na batalha de Villaviciosa de Tajuña houve derrota dos aliados, mas Pedro de Almeida se destaca e é mencionado como general. 1711 – O arquiduque Carlos Habsburgo torna-se imperador do Sacro Império Romano-Germânico. 1711 – O 2º conde de Assumar João de Almeida Portugal é nomeado para o Conselho de Estado da monarquia portuguesa. 1711 – O padre José Mascarenhas missiona de Paranaguá a Santa Catarina. 1712 – Pedro de Almeida passa a comandar interinamente os efetivos portugueses na Espanha. 1713 – Início dos tratados de Utrecht, fim da Guerra de Sucessão da Espanha. 1713 – Pedro de Almeida comanda a retirada das tropas portuguesas da Espanha. 1715 – Casamento de Pedro de Almeida com Maria José de Lencastre. 1716 – Pedro de Almeida é nomeado diretamente por d. João V governador da capitania de São Paulo e Minas do Ouro. 1716 – O padre José Mascarenhas passa a lecionar filosofia no Colégio de São Paulo. 1717 – Viagem de Pedro de Almeida de Lisboa até Minas. A partir do Rio de Janeiro, o padre Antonio Correia o acompanha. 1718 – Pedro de Almeida é autorizado por d. João V a intitular-se conde de Assumar. 1718 – Motins de Pitangui, Catas Altas e Papagaio, nas Minas. 1719 – Decreto régio de expulsão das ordens regulares religiosas das Minas. 1719 – O padre José Mascarenhas chega às Minas, encontrando o padre Antonio Correia. Passam a morar numa casa perto do “palácio” do conde em Vila do Carmo. 1720 – Fundação da Academia Real da História Portuguesa. 1720 – Revolta de Vila Rica. Os presos são levados para o Rio de Janeiro. 1721 – Morre d. fr. Francisco de São Jerónimo, bispo do Rio de Janeiro.
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1721 – Provável tempo de redação do Discurso e da Noticia, no 1º semestre em Vila do Carmo. 1721 – Chegada do novo governador Lourenço de Almeida e partida de Pedro de Almeida das Minas. 1722 – Chegada de Pedro de Almeida em Lisboa, em março. 1722 – Os presos Pascoal Silva Guimarães, Manoel Mosqueira da Rosa, Sebastião da Veiga Cabral, José Peixoto da Silva, o padre Francisco do Monte Alverne e outros são levados para Lisboa. 1723 – Fim do processo de residência de Pedro de Almeida nas Minas. 1725 – Alteração na praça do Rossio, em Lisboa. Afastamento da corte de d. Pedro de Almeida e outros filhos da alta nobreza de Portugal. 1726 – José Mascarenhas é reconhecido por sua ciência e oratória num sermão no convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro. 1727 – Provável morte de Antonio Correia no Rio de Janeiro. 1730 – Sebastião da Veiga Cabral morre na prisão em Lisboa. 1733 – O 3º conde de Assumar ingressa na Academia Real da História na vaga do falecido marquês de Abrantes, seu rival. 1733 – Morre o 2º conde de Assumar, João de Almeida Portugal. 1744 – Entrada de Pedro de Almeida no Conselho de Guerra. 1744 – Pedro de Almeida é nomeado vice-rei do Estado da Índia e 1º marquês de Castelo Novo. 1744 – Viagem de Pedro de Almeida até a Índia e posse como vice-rei em setembro. 1746 – Tomada da fortaleza de Alorna, na Índia. 1747 – No Rio de Janeiro, o padre José Mascarenhas emite parecer sobre a pedra enigmática na serra de Itaguatiara, em Minas, e morre no mesmo ano. 1748 – D. João V nomeia Pedro de Almeida 1º marquês de Alorna. 1750 – Fim do vice-reinado do 1º marquês de Alorna na Índia e início de sua volta para Portugal, com estada na Bahia. 1750 – Morte de d. João V e início do reinado de d. José I.
Cronologia
1752 – Chegada do 1º marquês de Alorna, Pedro de Almeida, em Lisboa. 1755 – Terremoto em Lisboa. 1756 – Morre Pedro Miguel de Almeida Portugal, em Cascais. 1758 – Início do processo dos Távoras. 1759 – Execução de membros da família Távora em Lisboa e prisão de João de Almeida Portugal, 2º marquês de Alorna, com esposa e filhas enclausuradas em convento. 1759 – D. José I decreta a expulsão dos jesuítas de Portugal e de seus domínios ultramarinos. 1766 – O 5º conde de Assumar Pedro José de Almeida Portugal ingressa no Colégio dos Nobres, sob a tutela do conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo. Lá estão os irmãos Rodrigo e José António de Sousa Coutinho, protegidos daquele secretário de Estado. 1772 – Pedro José de Almeida Portugal ingressa na Universidade de Coimbra. 1773 – O 5º conde de Assumar abandona os estudos universitários e segue a carreira militar. 1777 – Morte de d. José I e início do reinado de d. Maria I. 1777 – Libertação do 2º marquês de Alorna, sua esposa e filhas. 1792 – Afastamento de d. Maria I do poder régio português. 1799 – Início da regência oficial do príncipe d. João em Portugal. 1802 – Morre o 2º marquês de Alorna, João de Almeida Portugal. 1803 – Saída do reino português de Leonor de Almeida Portugal, filha do 2º marquês de Alorna, indo para a Espanha. 1803 – Domingos de Sousa Coutinho, embaixador português em Londres. 1804 – Leonor de Almeida Portugal se estabelece em Londres. 1805 – O príncipe regente d. João revoga a nomeação do 3º marquês de Alorna, Pedro José de Almeida Portugal, como vice-rei do Brasil. 1806 – Bloqueio Continental. 1807 – Invasão francesa e viagem da corte portuguesa para o Brasil. 1808 – Em Portugal, o 3º marquês de Alorna assume o comando da Légion Portugaise a serviço de Napoleão.
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1808 – No Rio de Janeiro, Rodrigo de Sousa Coutinho é o 1º conde de Linhares na dinastia Bragança. 1809 – Nova invasão francesa no norte de Portugal, logo repelida. 1810 – O 3º marquês de Alorna Pedro José de Almeida participa da 3ª invasão francesa de Portugal. 1810 – Recomposição do Conselho da Regência em Portugal. José António de Sousa Coutinho, o Principal Sousa, é um dos principais regentes. 1810 – No Rio de Janeiro, o príncipe regente d. João acusa o 3º marquês de Alorna de crime de lesa-majestade. 1811 – Batalha do Buçaco, retirada francesa de Portugal. 1812 – Morte do conde de Linhares Rodrigo de Sousa Coutinho no Rio de Janeiro. 1813 – Pedro José de Almeida Portugal morre durante a retirada da campanha napoleônica da Rússia. 1814 – Volta de Leonor de Almeida Portugal ao reino português. 1815 – Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves. 1816 – Morre d. Maria I no Rio de Janeiro, início do reinado de d. João VI. 1816 – O 2º conde de Linhares Vitório de Sousa Coutinho participa como militar na Guerra da Cisplatina. 1817 – Morre o Principal Sousa em Lisboa. 1817 – Revolução Pernambucana. 1820 – Revolução liberal do Porto. 1820 – Volta do 2º conde de Linhares, Vitório de Sousa Coutinho, a Lisboa. 1821 – Volta de d. João VI para Portugal. 1822 – Independência do Brasil e início do reinado de d. Pedro I. 1823 – Leonor de Almeida Portugal é reconhecida como 4ª marquesa de Alorna. 1824 – Confederação do Equador. 1825 – Tratado de reconhecimento da independência do Brasil, com Portugal.
Cronologia
1825 – Cópia do Discurso na livraria do 2º conde de Linhares, em Lisboa. 1826 – Morre d. João VI. Início do reinado de d. Maria II, filha do imperador do Brasil Pedro I, que reinou como Pedro IV em Portugal por dois meses. 1828 – Início do reinado de d. Miguel I em Portugal em meio à guerra civil. 1831 – Abdicação de Pedro I no Brasil em favor do filho, Pedro II. Início do período regencial. 1832 – A livraria do 2º conde de Linhares, que se encontra em viagens, está confiscada no Palácio da Ajuda, em Lisboa. O Discurso aparece descrito no catálogo desta biblioteca. 1834 – Exílio de d. Miguel e novo reinado constitucional de d. Maria II em Portugal. 1834 – Morre o ex-imperador do Brasil, Pedro I, em Portugal. 1839 – Morre a 4ª marquesa de Alorna, Leonor de Almeida Portugal, em Lisboa. 1840 – Declaração da Maioridade de d. Pedro II no Brasil. 1853 – Morte de d. Maria II e início do reinado de Pedro V em Portugal. 1857 – Morte do 2º conde de Linhares Vitório de Sousa Coutinho em Lisboa. 1861 – Morte de Pedro V em Portugal e início do reinado de seu irmão d. Luís. 1889 – Morte de d. Luís e início do reinado de Carlos I em Portugal. 1889 – Proclamação da república no Brasil. 1894 – Morre o 3º conde de Linhares Rodrigo de Sousa Coutinho. 1895 – Leilão da livraria do 4º conde de Linhares, Fernando de Sousa Coutinho, em Lisboa. 1896 – O Discurso e outros manuscritos chegam à sede do APM em Ouro Preto, na atual rua Xavier da Veiga. 1898 – Primeiras edições do Discurso em jornal e em livro, por José Pedro Xavier da Veiga. 1906 – Início da viagem de Alberto Lamego pela Europa, onde adquire a Noticia num alfarrabista em Lisboa. 1908 – Assassinato de Carlos I em Lisboa, início do reinado de Manuel II. 1910 – República em Portugal.
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1911 – Transferência do acervo do APM de Ouro Preto para Belo Horizonte, na Praça da Liberdade. 1922 – Deslocamento do acervo do APM para a rua da Bahia, em Belo Horizonte. 1929 – Alberto Lamego publica em jornais paráfrases e trechos da Noticia. 1935 – O acervo de Alberto Lamego é vendido para o governo de São Paulo e vai para a USP. 1938 – O APM se estabelece na avenida João Pinheiro, em Belo Horizonte. 1969 – A coleção Lamego integra o IEB-USP. 1994 – Reedição do texto central do Discurso com estudo crítico de Laura de Mello e Souza. 2017 – O Discurso é examinado e restaurado na UFMG aos cuidados de Márcia Almada e Patrícia Lavall. 2018 – Retorno do códice ao APM. 2020 – Defesa da tese O códice endiabrado no Instituto de História da UFF.
Fontes e bibliografia
I - Fontes manuscritas a) Arquivo Público Mineiro - Belo Horizonte (APM) - Avulsos da Capitania de Minas Gerais-017. Discurso historico, e político sobre a soblevação, que nas Minas houve no anno de 1720. No fim do qual se expendem as razoe’s, que o Excellentissimo Senhor Conde General teve para proceder summariamente ao castigo. 476 p. Secretaria de Governo de Capitania (Seção Colonial) - Códices 04, 11, 13, 14 e 16. - 1.3, 01, doc. 3. Termo de abertura, 30/04/1896.
b) Fundação Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro (BNB) Seção de Manuscritos - 15, 2, 5. Discurso historico, e político, sobre a sublevação, q’ nas Minas Geraes hóve no Anno de 1720, no fim do qual se expendem as rasõens, q’ o ex.mo sen.r conde general teve para proceder summariamente ao Castigo (por A. L. C.). 147 p. - Relatórios dos chefes da seção - 01, 013 a 046.
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- 15, 1, 002. Cathalogo dos livros da livraria de Diogo Barbosa Machado distribuidos por elle em materias e escrito por sua própria maõ.
c) Instituto de Estudos Brasileiros - Universidade de São Paulo (IEB-USP) - AL-061. Noticia da sublevação, que nas minas do ouro preto houve no anno de 1720. 58 p.
d) Arquivo do Palácio do Itamaraty - Rio de Janeiro (API) - Códices 170-3-1; 343-1-9 - Legação em Londres, docs. 240-243.
e) Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Lisboa (ANTT) - Casa Fronteira e Alorna - caixas 76, 120, 128, 132, 171, 174, 180 e 181. - Condes de Linhares - maços 68, 89, 71, 72, 77, 83, 91 e 104-109. - Juízo da Inconfidência e Ausentes, Alorna - livro 506, maço 1.
f) Biblioteca Nacional de Portugal - Lisboa (BNP) - Códices 747 e 479, 643, 908 (Coleção Pombalina) - BOSCHI, Caio César; QUINTÃO, Régis Clemente (orgs.). Minas Gerais nos “Reservados” da Biblioteca Nacional de Portugal. Belo Horizonte: Centro de Memória e de Pesquisa Histórica da PUC Minas, 2017.
g) Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda - Lisboa (BPNA) - Arquivo interno, doc. 288.
Fontes e bibliografia
h) Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (BACL) - Série azul, códice 382; série vermelha, códice 45.
i) Arquivo Histórico Ultramarino - Lisboa (AHU) - Códice 233, consulta de 09/01/1721. - Rio de Janeiro, caixas 9, 12, 16.
j) Biblioteca Oliveira Lima - Washington (BOL) - Livro de registro das cartas que o exm.o sr. conde de Assumar dom Pedro de Almeida escreveu a s. Majestade que Deus guarde sendo governador e capitão general da capitania de São Paulo e Minas, Carta de d. Pedro de Almeida ao rei, Vila do Carmo, 10/7/1720.
l) Avulsos - Diario que comessa em 28 de junho [de 1705] (outrora no arquivo particular dos descendentes dos condes da Ribeira Grande). - Bando de Pitangui, 30/05/1718 (outrora no arquivo particular dos descendentes dos condes da Ribeira Grande).
II - Fontes impressas e edições críticas a) Fundação Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro (FBN) Obras Raras - Coleção de folhetos de Diogo Barbosa Machado Aplausos dos anos de reis, rainhas e príncipes de Portugal, t. II (23, 1, 7, no 8); Genetlíacos de reis, rainhas e príncipes de Portugal, t. III (23, 1, 3, no 1); Epitalâmios de reis e rainhas de Portugal, t. III
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(23, 2, 2, no 8); Notícias militares de d. Pedro II, t. II (23, 4, 5, no 1); Notícias militares de d. João V, t. I (23, 4, 6, no 43); Notícias militares de d. João V, t. II (23, 4, 7, nos 3, 17, 19, 21 e 58); Notícias militares da Índia oriental, t. II (23, 4, 10, nos 1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10); Elogios de duques, marqueses e condes de Portugal, t. I (24, 1, 1, no 14); Elogios de duques, marqueses e condes de Portugal, t. II (24, 1, 2, nos 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21); Elogios fúnebres de duques, marqueses e condes de Portugal, t. II (24, 1, 4, no 9); Elogios fúnebres de cardeais e arcebispos de Portugal (24, 1, 10, nos 6 e 7); Sermões de exéquias de bispos portugueses, t. II (25, 1, 10, nos 3 e 4); Notícia das embaixadas que os reis de Portugal mandaram aos soberanos da Europa, t. III (25, 3 bis, 10, no 6). - 022B, 001, 001, 55. Proclamação do principe e regente d. João declarando d. Pedro de Almeida, marques de Alorna, traidor de Portugal, reu de lesa majestade, privando-o de todos os títulos, honras e dignidades, e oferecendo um premio para quem o apresentasse vivo ou morto. [Rio de Janeiro]: Impressão Régia, 06 set. 1810. - 21, 4, 12. Obras poeticas dedicadas ao [...] conde da Calheta, &c. &c. &c. seu author Antonio Lourenço Caminha, professor régio de rhetorica, e poetica. Lisboa: Ofiic. de Joze da Silva Nazareth, 1784, t. I. - 24, 4, 13. Obras poéticas dedicadas ao [...] senhor Joze Pedro Hasse de Bellem[...] Seu author Antonio Lourenço Caminha professor regio de rhetorica e poetica. Lisboa: Offic. de Joze da Silva Nazareth, 1785, t. II. - 35, 0, 17. Collecçaõ fúnebre das obras impressas por occasiaõ da morte do sereníssimo senhor d. Joseph príncipe do Brasil. Lisboa: S. ed., 1788. Obras Gerais - I, 270, 5, 4. XAVIER, Felippe Nery (org.). Instrucção do ex.mo vice-rei marquez de Alorna ao seu successor o ex.mo vice-rei marquez de Tavora (segunda edição): rectificada, e enriquecida, com novas peças do mesmo autor, e 380 notas historicas. Nova Goa: Imprensa Nacional do Estado da Índia, 1856 [1836]. - V-256, 2, 6 no 8. Elogio [...] à sempre grande, sempre imortal senhora d. Carlota Joaquina, [...] seu author Antonio Lourenço Caminha, professor régio de rethorica, e poética. Lisboa: Impressão Regia, 1806. - V-389, 1, 21. Ordenações da Índia do senhor d. Manoel de eterna memoria [...] oferecidas ao [...] d. João principe regente por Antonio Lourenço Caminha, professor régio de rhetorica, e poetica. Lisboa: Impressão Régia, 1807.
Fontes e bibliografia
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b) Biblioteca Nacional de Portugal - Lisboa (BNP) Fundo Geral - B. 793 P. Catalogo da livraria que ficou por fallecimento do excellent. e reverendis. senhor principal d. Francisco de Almeyda Mascarenhas. S. n. t. 262 p. Iconografia - E. 1713 V. RIBEIRO, Manuel Gonçalves. Excellentissimo domino d. Joanni de Almeyda, comiti de Afsumar [...].
c) Avulsos ALBAREDA SALVADÓ, Joaquim; LEÓN SANZ, Virginia (orgs.). Domingos da Conceição. Diario bellico: la Guerra de Sucesión en España. Traducción de David Martín Marcos. Alicante: Publicaciones Universidad de Alicante, 2013. ALEXANDER, Boyd (org.). Diário de William Beckford em Portugal e Espanha. Tradução de João Gaspar Simões. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1988. ALORNA, Leonor de Almeida Portugal, Marqueza de. Obras poeticas de d. Leonor d’Almeida Portugal Lorena e Lencastre... Lisboa: Imprensa Nacional, 1844. 6 vols.
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Agradecimentos
Agradeço ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa (processos 302307/2016-8 e 303538/2019-8), pela bolsa de pós-doutorado em 2016-2017 (163188/2015-7) e pelo auxílio concedido (424389/2016-9). A pesquisa também se relaciona a projetos coordenados por Ronaldo Vainfas (pronex Faperj/CNPq) e por mim (E-26/210.133/2016-216102). Agradeço ainda ao projeto dirigido por Antonio Álvarez-Ossorio (U. Autónoma de Madrid), no Brasil coordenado por Maria Fernanda Bicalho (União Europeia, programa Marie Skłodowska-Curie, no 823998) e ao dirigido por Ângela Barreto Xavier (ICS-U. de Lisboa), com apoio da FCT, Portugal (HIS/28364/2017). Com Laura de Mello e Souza aprendi a dialogar com clássicos e modernos, na busca da erudição para o trabalho com as fontes; Renato Franco iniciou o acesso ao manuscrito que originou este trabalho; Márcia Almada foi uma colaboradora plena de talentos e boa vontade; David Martín Marcos deu-me segurança para entender o mundo anterior de Pedro de Almeida; Sérgio Alcides foi um esteio na arte poética, fundamental no momento da escrita; Leila Algranti expressou toda a sua sensibilidade na supervisão do pós-doutorado que alavancou a investigação; Nuno Monteiro foi um inestimável e animado interlocutor, seguido de perto pela delicadeza de Iris Kantor. A Maria Fernanda Bicalho, Célia Tavares e Silvia Patuzzi, coordenadoras do núcleo Companhia das Índias-UFF na vigência desta investigação, e aos pesquisadores marujos, sou grato pela solidariedade acadêmica. A André de Melo Araújo pela parceria no grupo Metamorphose, pertinente a essa proposta.
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Ao Instituto de História da UFF e aos colegas que possibilitaram meu crescimento profissional, representados pelos então diretores Laura Maciel e Alexsander Gebara, pelo chefe do Departamento de História Mario Grynszpan, e pelos coordenadores da pós-graduação, Alexandre Carneiro C. Lima, e de graduação, Lívia Magalhães e Tâmis Parron. Também agradeço pelo estágio pós-doutoral na linha Política, cultura e memória, no Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp. Aos funcionários do APM, em especial ao ex-superintendente Thiago Vitral e a Márcia Alkmim; aos funcionários da nossa Biblioteca Nacional, sobretudo Luciane Medeiros (Manuscritos) e Thais Helena de Almeida (Restauração). Igualmente, agradeço aos funcionários do IEB-USP e do ANTT. Aos familiares Yvan, Angela, Anabelle, Beatriz, Vera e Claudia, por me aguentarem em todo esse tempo e entenderem as muitas ausências; a Jônia Valesini, Kiu Eckstein e Miriam da Conceição, por lidarem com a minha existência – da qual esta pesquisa faz parte. Sou grato a amigos, colegas, alunos e profissionais que souberam prestar a ajuda certa quando precisava: Adma Muhana, Adriana Romeiro, Adriene Tacla, Aldair Rodrigues, Ana Videira, Ana Paula Megiani, Angelo Carrara, Bento Mota, Bruno Feitler, Carlos Ziller Camenietzki, Cristina Tomé, Daniela Calainho, Denise Rollemberg, Douglas Coutinho Dias, Douglas Santos, Ediana Mendes, Eduardo Sinkevisque, Elisa Garcia, Evergton Souza, Fabricio Lamothe Vargas, família Gonçalves Zarco da Câmara, Fernando Bouza, Francine Iegelski, Georgina Santos, Giselle Venancio, Guilherme Pereira das Neves, Hayna Ramos, Heloisa Gesteira, Heloisa Starling, Isabel Corrêa da Silva, Jacqueline Hermann, Jean Gomes de Souza, José Ananias Figueira da Silva, José Luís Cardoso, Leonardo Ramos, Lorelai Kury, Lucas G. Ferreira, Lucia Guimarães, Luís Filipe Silvério Lima, Luís Gustavo Mandarano, Luiz Carlos Soares, Luiz César de Sá, Luiz Rezende, Lygia Moura, Márcia da Guia Silva, Marcello Moreira, Marcelo Rocha Wanderley, Marco Antonio Silveira, Maria Elisa de Sá, Mariangela Leite, Marília de A. Ribeiro Machel, Maria Aparecida Borrego, Miguel Faria, Nívia Pombo, Pedro Cardim, Pedro de Azevedo, Pedro Flor, Pedro Henrique Lima, Renata Amorim, Rhuan Vetuani Pereira, Rita Codá Santos, Roberta Stumpf, Ronaldo Vainfas, Ronald Raminelli, Saúl Martínez Bermejo, Sheila Faria, Stela
Agradecimentos
Guerreiro, Susana Flor, Tarcísio Gaspar, Tiago Miranda, Valeria Gauz, Vanda Anastácio, Victor Tiribás e William Martins. Por fim, a oportunidade de a tese ter recebido em outubro de 2020 as instigantes arguições dos colegas Luciano Figueiredo, Andrea Daher, Caio Boschi, Júnia Furtado e Lúcia Bastos Neves propiciou o acolhimento de sugestões e a fundamentação de argumentos neste livro.
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Sobre o autor
Rodrigo Bentes Monteiro é professor titular de História Moderna no Instituto de História da UFF, onde atua desde 2002 na graduação e pós-graduação. Pesquisador do CNPq e da Cia. das Índias, é atualmente coordenador executivo desse núcleo e um dos líderes do grupo Metamorphose, sobre interpretação e materialidade de manuscritos e impressos. Possui publicações sobre cultura escrita e visual, história intelectual e política, com ênfase em Portugal e no Brasil da Época Moderna.
Formato: 16 x 23cm Tipologia: Baskerville 11/16.2 Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)/Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) Número de páginas: 483 Impresso e acabado na Gráfica e Editora Aliança - Rua Palmeiras, nº 39, Qd. 10, Lote 08, Sala 01, Campestre de Goiás/GO
O papel utilizado na confecção deste livro é produto de árvores originárias de manejo florestal certificado.