O afeto da terra: imaginários, sensibilidades e motivac̦ões de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agricultores e criadores

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Ler O ajèto da terra, escrito sob a forma de um diário de campo, é como se estivéssemos lá, nos dias de campo de Carlos Brandão, entre os homens e as mulheres do Pretos de Baixo, nos seus cenários de vida e trabalho. Com rigor científico e rara sensibilidade, Carlos Brandão vai desfiando os fios que tecem, com qualidades de afeto diferentes, as relações entre os homens e os seres da natureza para dar-nos ao entendimento a gramática costumeira destes relacionamentos. Aprendemos com ele como estes sujeitos do campo pensam os seus próprios modos de se relacionarem com o mundo natural, estabelecendo urna 'lógica d

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Carlos Rodrigues Brandão

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor HERMANO TAVARES Coordenador Geral da Universidade FERNANDO GALEMBECK Pró-Reitor de Desenvolvimento Universitário LUÍS CARLOS GUEDES PINTO Pró-Reitor de Extensão e Cultura ROBERTO TEIXEIRA MENDES Pró-Reitor de Graduação ANGELO LUIZ CORTELAZZO Pró-Reitor de Pesquisa IVAN EMÍLIO CHAMBOULEYRON Pró-Reitor de Pós-Graduação JOSÉ CLÁUDIO GEROMEL

EDITORA DA UNICAMP Diretor Executivo LUIZ FERNANDO MILANEZ Conselho Editorial ELZA COTRIM SOARES - LUIZ FERNANDO MILANEZ MILTON JOSÉ DE ALMEIDA — RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES SUELI IRENE RODRIGUES COSTA

O AFETO DA TERRA Imaginários, sensibilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis

FICHA CAIALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLI0FEcA CENTRAL DA UNICAMP Brandão, Carlos Rodrigues O afeto da terra: imaginários, sensibilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas B733a encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis / Carlos Rodrigues Brandão. - Campinas SP: Editora da Unicamp, 1999. (Coleção Pesquisas) 1. Agricultura - Aspectos ambientais 2 Política ambiental. 3. Administração agrícola. 1 Título 20.CDD - 630 363.7 ISBN: 85-2680478-2 - 631.2 índices para catalogo sistemático: 1. Agricultura - Aspectos ambientais 630 363.7 2. Política ambiental 631.2 3 Administração agrícola Coleção Pesquisas Copyright © by Editora da Unicamp, 1999 Nenhuma parte desta publicação pode ser grav-ida armazenada cm sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor. Gerência de produção Carlos Roberto Lama ri Assistência de produção Eiisabet/m Regina Marcheiti Supervisão de produção gráfica Via cl Camargo Supervisão de edição de textos Lucélia Caravieri Ternple Preparação de originais Raquel de Sena Rodrigues Tersi Editoração eletrônica Eva Maria Maschio Morais Russa na Cristina Barbosa Web design Carlos Leonardo Lamari Capa Adaiiion Clayton Santos Editora da Unicamp Caixa Postal 6074 Cidade Universitária - Barão Geraldo CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil Tel.: (Oxx19)788-1015 - Tel./Fax: (Oxx19)788-1100 lntcmnet www editora untvimp bi

l.apport de lethnologue á une approache écologique aux seus large consiste plutôt à montrer Ia part de creativité que chaque culture met dans sa maniére de socializer Ia n ature. I'iuuprv Dvscoi.s, La Nature Domestique: symbolisine et praxis Dans l'ecologie eles Aclivar Enxergar longe é o devaneio do camponês. Gvovoi:s SANO, La Valeé Noire Este diário ele estudos sobre os homens do campo e o seu mundo é para Elien e Klaas Woo rtm a nu.

DOS DIAS 13 ele março de 1995 Depoisde haver ido ...................................................................................11 13 ele janeiro de 1993 Progressoe benefício ................................................................................ 21 14 ele janeiro "A jóia da Mantiqueira": cenários ................................ .............................25 15 de janeiro Algumas visões, perfis de pessoas e lugares .............. .............................32 16 de janeiro AFazenda São José ....................................................... .............................36 17 de janeiro Avida dos gêneros ........................................................ .............................39 18 de janeiro O truco, o rodeio e a caçada ........................................ .............................49 19 de janeiro Joséfala de bichos ........................................................ .............................57 20 ele janeiro Alei dos outros ............................................................................................58 21 de janeiro Oafeto da terra ............................................................................... .........63 22 de janeiro Malhar o trigo, malhar o feijão .......................................... ......... ......... 68 23 de janeiro Sobre dó, ter dó, ter pena, ter pena de ...............

......... ........: .........69

24 de janeiro Ainda sobre a lógica dos sentimentos......................................................74

10 de fevereiro Alguns momentos à volta dos bichos .................................................... .127

25 de janeiro Sobre estilos de força e violência ............ ................................................. 75

11 de fevereiro Velhossímbolos? ................................................ ..... ................................ 128

26 de janeiro. Aindasobre "ter dó"...................................................................................77

12 de fevereiro C) (leScin do énieo? ................................................................................... 128

27 de janeiro Sobre árvores e homens............................................................................78

13 de fevereiro Um velho entre pés de milho.................................................................130

28 de janeiro Ainda sobre matas e pessoas....................................................................81

14 de fevereiro Sobrea terra, terras ..................... .............................................................131

29 de janeiro AntonioTelies ............................................................................................83

15 de fevereiro Uma ética de homens e bichos.. .......... .................................................. .133

30 de janeiro Sobre indicadores, marcadores cio tempo...............................................83

16 de fevereiro A mãe vaca: planos de família ...................... ......................................... .136

31 de janeiro Sobre homens, porcos e outros bichos....................................................93

17 de fevereiro 'Até que a morte os separe ................ .....................................................139

i de fevereiro O homem que abençoava os eucaliptos...............................................100

18 de fevereiro Deuses, homens e bichos... revisitados................................................ 142

2 de fevereiro Ainda sobre árvores e valores do mundo natural................................. 104

20 de fevereiro Ocampo, o melhor lugar........................................................................144

de fevereiro Sobre deuses, homens, bichos e plantas, ainda..................................107

21 de fevereiro Eu... vindo de fora .............. ......................................................................148

4 de fevereiro Eucalipto, pinheiro, árvores nativas......................................................113 5 de fevereiro A história dos capins................................................................................114 6 de fevereiro Nos montes, com Gaston Bachelard ....................................................117 7 de fevereiro Algumas idéias ecológicas do ponto de vista camponês. ................... 119 8 de fevereiro Masquem fala o quê? ................................................................................122 9 de fevereiro Ainda o mesmo, de novo.......................................................................124

BIBLIOGRAFIA............................... ............... ................................................ 157

22 de fevereiro Voltamospara casa................................................................................... 159 23 de fevereiro Em casa, longe do bairro dos Pretos... Perto......................................... 160 23 de fevereiro Um epílogo com Octavio Paz ........................................ ....................... .175 CADERNODE FOTOS ............... ........................................................................177

13 de março de 1995 DEPOIS DE HAVER IDO - INTRODUÇÃO Embora resultado de investigações realizadas em lugares e tempos diferentes, O afeto da terra deve ser considerado como urna espécie de complemento, mas também uma contraparte de A partilha da vida, o primeiro volume de minha contribuição para o relatório 94 e final dos trabalhos apresentados pela equipe de montanha do projeto Homem, Saber e Natureza (HOSANA), em sua versão enviada à FAP1SP. O outro texto, Vinho amargo, foi escrito em 1990 e fazia parte de um outro projeto. Assim, juntos, Vinho amargo, A partilha da vida e este, O aíèto da terra, compõem urna trilogia sobre o mundo camponês, criada ou revisitada dentro e por causa cio projeto Homem, Saber e Natureza. Agora que os tenho prontos, os dois trabalhos, devo confessar que ao confrontá-los com os meus projetos originais e com as propostas que fui desenvolvendo a partir delas, me vejo entre certezas e dúvidas. Em um momento do projeto HOSANA, chego temerariamente a sugerir uma espécie de "o pensamento camponês", cujo modelo à distância poderia bem ser o seu equivalente "selvagem", um dia escrito por Claucle Lévi-Strauss. Dentro cio projeto HOSANA, tínhamos objetivos comuns e acredito que, em boa medida, eles foram realizados. A mesma coisa ouso pensar a respeito de minhas contribuições etnográficas que, imagino, são a minha despedida de experiências de campo como um antropólogo, pelo menos nos termos em que estive trabalhando clurante muitos meses em Catuçaba, São Luís cio Parailinga, serra cio Mar; e no Pretos de Baixo bairro elos Pretos Joanopolis mi serra cia Mantiqueira, durante vários civis de dois meses no começo cio ano de 1993.

O que nos unia então e o que nos separava? Queríamos compreender, a partir de pesquisas empíricas, na maior parte dos casos, as maneiras como tipos bem definidos de pessoas, por meio de suas culturas peculiares, criavam, reproduziam, sentiam e pensavam os seus próprios modos de se relacionarem com a natureza e, em um sentido mais concreto e cotidiano, com o seu meio ambiente imediato, visível, percorrível de uma ou de outra maneira, trabalhável, apropriável, passível de ser, provisória ou definitivamente socializado, incorporado à experiência empírica e simbólica de seus sujeitos humanos, em suas sociedades, por meio de formas específicas de trabalhos que, ao mesmo tempo, lhes garantem a sobrevivência individual, a reprodução do grupo social e a qualificação relativamente peculiar de sua cultura. Aquilo que, com graus variáveis de convicção científica, costumamos chamar de uma "cultura popular" e, de maneira mais motivada em nossos estudos, de urna cultura calçara (para o caso das comunidades de pescadores do litoral de São Paulo) e uma cultura camponesa (para o caso das comunidades de agricultores e criadores de gado do interior do mesmo estado, situadas em geral nas, ou à volta das, serras do Mar e da Mantiqueira). Dentro do conjunto de todos os nossos trabalhos, A partilha da vida e O afeto da terra são, de uma maneira clara, contribuições cia primeira vertente. São trabalhos de campo construídos sobre minhas experiências com um tipo único de agente de intervenção sobre a natureza e de sujeito cultural: o agricultor-criador camponês, pequeno proprietário sitiante ou, no limite, arrendatário de terras. Os animais são a sua vida, mas os homens devem produzir a sua. Esta frase, escrita alhures um dia por Marx e repetida muitas vezes, foi uma boa acompanhante em minha viagem de anotações a respeito das trocas de gestos, de sentidos e de significados entre homens às voltas com animais, plantas e outros seres e domínios do mundo natural. E também entre os homens e eles, por meio cio exercício cio seu trabalho e cio seu poder. Mas - e este foi sempre o interesse mais agudo aqui - através, sobretudo, de conhecimentos e imaginários, de regras de relacionamentos e códigos de transações sociais e socionaturais realizados como a fração de uma cultura camponesa, naquilo em que ela pode ser lida no que tem de mais próximo à socialização rústica cia natureza. Naquilo em que, culturalmente, os homens cio campo se pensem e pensam a sua cultura no que eia tem de mais vizinha ao próprio mundo natural.

Pois, na verdade, o que os dias revisitados de meus cadernos de campo revelam, a seguir, são fragmentos de estratégias tecnológicas e sociais de reprodução cotidiana, sazonal e ancestral da matéria física cia sociedade e de um estilo de vicia próprio do campesinato, creio eu, bastante difundido por todo o país. Juntos, leitor, estaremos visitando momentos em que, por meio de ações diretas, de formulações de idéias, de estabelecimento de classificações e de atribuição de valores de muitiiclentidades associadas a princípios e preceitos de uma lógica cia natureza e de uma ética rural cio ambiente, homens e mulheres plantadores de milho e feijão e criadores de gado leiteiro, porcos e aves de quintal pensam sobre si mesmos e sobre seres de seu mundo natural. Como pessoas de sítios e fazendas, reunidas em famílias que estreitamente associam o afeto do outro ao trabalho de todos, pensam a frase de Marx vivendo o seu dilema todos os dias de quase todo o tempo da vida? Eles, que nunca leram Marx e que, na maior parte dos casos, situados ainda bastante à margem da cultura exageraciamente letrada, que é o estofo de nossas vicias, fazem da Bíblia Sagrada e de outros livros de conhecimento e devoção cristãos os textos com que se aprende a ser e a viver. Convenhamos. Ilá até aqui uma divisão de olhares e enfoques curiosa, provavelmente explicável, mas por certo indesejável. É que, como qualquer outra oposição no campo das ciências sociais, correse o risco de se sobreenfatizar em cada uma cicias uma face do que se estuda, deixando a outra na obscuridade. Pior, consideradas as abordagens umas diante das outras, nota-Se que sobra entre elas sempre um intervalo. Uma espécie de espaço cio 'buraco negro", ali, onde muitas vezes estão escondidas das boas teorias as pequenas perguntas intrigantes, silenciosas e muito reveladoras. há exceções, corno sempre. Mas até agora, na imensa maioria dos estudos realizados por cientistas sociais, a questão geral do meio ambiente está ausente, está subsumicia em outras, como a análise cia prática econômica entre produtores rurais, ou é apresentada através de uma ênfase muito grande em sua dimensão mais política, mais sociologicamente institucional. No caso cia antropologia, desde onde eu imagino estar falando, fora as pesquisas de culturas tribais, o mundo natural é quase sempre um mero cenário das transações sociais entre os homens, UM lugar não social, mas culturalmente socializávei, das relações práticas e simbólicas - mas em qualquer dimensão sempre providas cie "teias e tramas de significados" - vividas entre atores sociais e

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os seus seres. Em alguns momentos de minha contribuição ao relatório HOSANA 1993 (outros afetos, outros olhares, outras idéias, outras relações algo de antigo e algo de novo para repensar as bases teóricas e os caminhos do projeto Homem, Saber e Natureza), teci aiguns comentários a respeito. Foi quando me lembrei de uma oportuna seqüência de estudos recentes de historiadores e geógrafos, na qual uma revisita aos imaginários, às sensibilidades e às codificações dos relacionamentos homem/natureza trouxe ao campo de perguntas e busca de respostas que nos interessa uma intrigante densidade. Entre Keith Thomas e Alain Corbin, ficamos sabendo o que já sabíamos, sem havermos, no entanto, buscado para isto um entendimento científico. Aprendemos que as pessoas ao longo dos séculos não somente criam, compram e vendem bois e, em alguns casos, os trocam por esposas ou os oferecem em sacrifício aos seus deuses, mas que elas fazem tudo isto e muito mais porque atribuem aos bois feixes de sentidos e de significados, eivados tanto de critérios lógicos quanto de sensibilidades tornadas valor cultural. Critérios sociais que os fazem poder ser um tipo desejável e polissêmico de alimento, um bem de raiz, um objeto precioso de transação, um móvel de trocas entre parentes e aliados, um símbolo de poder e de riqueza, um parceiro servil no irahalho, um objeto de deleite em alguns esportes ou um ser vivo a ser dado aos deuses. Aprendemos que o trato dos jardins, assim como o cuidado dos animais, variam com o passar dos tempos, submetendose a princípios culturais de transformação de quadros mentais do imaginário coletivo, ao mesmo tempo em que participam do próprio processo de mudança e consolidação provisória de novas idéias, novos valores, éticas e sensibilidades. Pena que os historiadores, por vício do ofício, estão falando sempre do passadio, ainda que as observações que eu li em vários livros sejam de uma desejável atualidade, Quando colocamos à nossa frente toda a produção brasileira recente do que poderíamos generalizar como uma ampla e variada sociologia da questão ambiental, o que vemos é que ela, em primeiro lugar, aportou mais textos de teoria e pesquisa empírica nos últimos dez anos do que em toda a sua história até a década de 80. Vemos, em segundo lugar, que justamente nos últimos anos, mercê da própria atualíssima relevância dia "questão ambiental", a produção dos cientistas sociais, a respeito dias transações homem/naturezasociedade/ambiente, ocupa hoje, em 1980, um lugar inimaginável. Vemos, em terceiro lugar, que tudo isto tem provocado uma flexibilidade importante dlOs olhares e elas ênfases entre novos pesqui-

sadores vários deles hoje em nossos programas de pós-graduação -, de tal sorte que algumas antigas questões econômicas, politicas, sociais e culturais estão sendo revisitadas com o foco sobre a dimensão socialmente ambiental das perguntas feitas. Feitas a quem? E esta é uma boa pergunta. Feitas com prioridade aos agentes políticos da "questão ambiental", muito mais do que aos atores cotidianos da vivência social do meio ambiente. Claro, todos nós sabemos que as grandes empresas pecuaristas, mineradoras e madeireiras da Amazônia possuem um poder de fogo (nos sentidos literal e simbólico da palavra, ao mesmo tempo) infinitamente maior do que o dos índios, dos caboclos de beira de rio, dos seringueiros e mesmo dos garimpeiros, no que toca à elesnaturalização devastadora do ambiente na Amazônia. Sabemos também que mesmo entre nós, em um Brasil mais próximo, a degradação das águas, ares e terras corre por conta dos maus acordos e das intenções não confessáveis em que o poder de Estado se mescla com os interesses imediatos do mercado de bens e capitais. Sabemos ainda que, em uma crescente medida, é através da atuação diferenciada de novos atores sociais, amhientalistas notórios e organizações e movimentos preservacionístas que algumas mudanças jurídicas, políticas, éticas e mesmo de sensibilidades têm sido alcançadas. Um foco da atenção da pesquisa social sobre as questões e os atores deste plano de trocas é muito relevante. Mas uma concentração quase exclusiva sobre eles me parece injusta para com outros sujeitos tão ou mais envolvidos em tudo o que é a linha de frente de nossas preocupações. Injusto para com eles, os sujeitos tão múltiplos do campo, dos rios e matas, das beiras do mar, distribuídos entre agricultores camponeses, trabalhadores rurais assalariados, pescadores, carvoeiros, garimpeiros, madeireiros de pequena escala (quantos (ides inventivamente clandestinos), caçadores (idem) e tantos outros, entre os quais chamam hoje a atenção os seringueiros, em geral apontados como organicamente preservacionistas (exemplo: o Acre), e os garimpeiros, geralmente acusados de serem destruidores inveterados de tudo O que não é o ouro, a cassiterita ou os diamantes, Além de injusto, porque não faz com estes atores costumeiros dia empina caseira de nossas ciências sociais o mesmo que a antropologia das sociedades tribais faz com os povos indlígenas, um certo esquecimento de tais pessoas e culturas populares, no que toca às suas relações com o mundo natural, deixa em branco conhecimentos

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de um valor científico muito grande e de urna utilização social bastante urgente, como no caso de novos programas escolares de educação a mbíental. Entre muitas outras coisas, chama a atenção a maneira imprópria como a atualidade cia questão do ambiente e uma decorrente legislação ambiental têm sido levadas aos homens e às mulheres do campo Sem, sequer, um pequeno manual adequado às suas culturas e sem qualquer oferta, por precária que seja, de um acesso inteligente aos mesmos conhecimentos e preocupações que nos roubam a calma dos dias e o sono das noites, tudo o que se conhece a respeito dos "problemas cio meio ambiente", em algumas comunidacies rurais de São Paulo e de Minas Gerais, onde estive pesquisando, é a ação sempre tida como arbitrária e injusta da "Polícia Florestal", da "Floresta", da "Florestal", tão temida hoje entre os camponeses, guardadas as proporções, quanto o foram a polícia militar e as forças armadas entre aqueles que um dia sonharam organizar os homens cio campo para que eles fizessem por sua conta a justiça política que a maioria cicies reconhece lhes faltar até hoje. Para dizer a verdade, eu gosto muito mais do que escrevi em A partilha da vida cio que dos escritos de O afeto da terra. Não devo esquecer, e peço ao leitor que fique sabendo, que há algumas cliferenças importantes entre estes dois textos irmãos. Irmãos sim, mas com urna respeitável diferença de idade. A partilha da vida, meu relatório da pesquisa feita em Catuçaba, na serra cio Mar, foi iniciado bem antes do hosANA. Foi originalmente parte de um projeto sobre reprodução cio conhecimento em comunidades de campesinato tradicional. Foi, mais tarde, convertida ao HOSANA e, por esta razão, bastante ampliada corno pesquisa de campo e corno um relatório de pesquisa. Dei-me ao direito de um grande vôo. Tratei a cultura camponesa de Catuçaba com um olhar múltiplo e inseri nele, como um de seus momentos, algo que pode ser considerado, com mais rigor, como de urna antropologia cio meio ambiente. O contrário aconteceu com O af'eto da terra. Tocia a sua pesquisa foi fita já dentro cia proposta original do HOSANA. Estive no campo durante um tempo muito menor do que o que gastei (com uma generosa lembrança) na serra do Mar. Durante 40 dias, duas alunas de graduação e eu estivemos morando e vivendo cotidianamente no Pretos de Baixo, o começo cio bairro dos Pretos, no município de Joanópolis, na encosta do "lado paulista" da serra da Mantiqueira. Para que o leitor se localize com mais facilidade, perto, mas

"cio outro lado da serra", fica a conhecida "Vila de Monte Verde", e uma difícil trilha liga os dois lugares. Nossa pesquisa foi exclusivamente sobre a vida dos homens e mulheres do campo no bairro dos Pretos (eventualmente visitávamos outros bairros rurais do município), e, mais no meu caso cio que no de minhas duas companheiras estudantes de pesquisa, a questão central, quase única, foi a que faz o próprio mote de nosso projeto geral: aprender como urna cultura patrimonial de agentes diretos so(como a natubre o mundo natural estabelece uma lógica da natUreza reza "natural" e a natureza socializada são pensadas por ela, sis(através de que valores, princíternicamente) e urna ética do ambiente pios e sensibilidades, códigos de trocas entre seres humanos-e-sociais e seres não_humanos-e aturais, mas passíveis de serem socializados, incorporados vivencial ou simbolicamente à vida social, aos imaginários e aos códigos sociais cia cultura, são diferencialmente estabe lecidos). Cedo escapei pela melhor tangente da obrigação ele produzir um trabalho mais rigorosamente limitado e sistemático. Algo de que uma análise estruturalista de velha escola ou, melhor ainda, urna etnografia classificatória, segundo um modelo qualquer de etnociência, seriam bons exemplos. Não fui formado cientificamente nem para uma coisa e nem para a outra. Dentro de um projeto até certo ponto tateantemente pioneiro) e em uma pesquisa, ela mesma, bastante iniciante, preferi optar por um trabalho exploratório de estilo muito pessoal. Perdi em rigor acadêmico, ganhei em rigorosa'cLvem tura científica. Finalmente, até onde posso antever futuros, estou certo de que este é o meu último trabalho resultante de urna pesquisa de campo com comunidades rurais. Quando eu vejo os meus alunos fazendo melhor cio que eu a mesma coisa que comecei a praticar quando era ainda um aluno, penso que é a hora de mudar de rumos... ou de lugares. a forma que Por tudo isto preferi dar ao livro O afeto da terra ele acabou tomando. Explico-me. Durante os dias ele campo, trabalhei de urna maneira quase fanática. Em parte porque precisava aproveitar todos os momentos cie meus poucos dias. Em parte porque precisava fazer, de meu próprio exemplo, uma boa lição de "prática antropológica" para as chias alunas de graduação que me acompanharam e que não estiveram no Pretos de Baixo como minhas auxiliares de pesquisa, mas como investigadoras de seus próprios projetos de pesquisa. Assim sendo, além dos pequenos cadernos de cam17

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po levados comigo para todos os locais da pesquisa - quase sempre o sítio de alguém do Pretos de Baixo -, eu escrevia todos os dias uni "caderno de campo revisitado". Um desses livros de atas grandes, de capa preta, solenes e numerados de 1 a 100. Reunindo minhas anotações "de momento" com leituras, com reflexões, com algo de nossas conversas de "antropólogos no campo", eu reescrevia o que me parecia mais intrigante, importante, dando já a esta segunda escrita um quase "ar de relatório". No momento de, afinal, iniciar o presente relatório, eu me perguntei por que não fazer a mesma coisa de novo. Isto é, revisitar o caderno de campo revisitado e escrever um texto que o acompanhasse, dia a dia. Esta é a forma que o relatório final de O afeto da terra tornou. Sequer o livrei de alguns momentos pessoais de devaneios e de confissões. Se meus interlocutores camponeses se confessam a mim, por que não fazer o mesmo a mim mesmo e a você, leitor? Creio que quase todas as perguntas essenciais que eu tinha foram, pelo menos, respondidas em esboço. A influência dos historiadores citados em meu relatório anterior é bastante visível. Mas, mais ao gosto dos antropólogos do que deles, aqui e ali não resisto a desenhar alguns esquemas e propor algumas classificações de domínios e relações. Quero começar o reconhecimento do dever ela gratidão, com as pessoas da equipe de montanha do HOSANA. Construímos juntos um sério ambiente de trabalho e um lugar de afetuosa camaradagem de que não me esqueço. Outros amigos do projeto HOSANA, especialmente os da equipe de montanha, foram interlocutores de uma grande valia. Não dá para esquecer as várias reuniões na casa de João Luís em Atibaia e, depois, na de Rosa e na de Thaís em Campinas. Agradeço ainda a presença e o apoio do pessoal do AwEl3A1Ã: Observatório a Olho Nu, ela UN!CAMP, e especialmente ao Ulisses, à Sônia e à Teka, responsáveis pela "micragem" final de todos os meus relatórios do projeto. Uma vez mais contamos com o apoio da FAPmP, e sem ele o trabalho não teria sido possível. O padre Carlos foi um amigo dos primeiros dias de pesquisa, nos cedendo a pequena 'casa do café", onde vivemos a nossa primeira semana no Pretos de Baixo. Neide e Joaquim, um generoso casal de São Paulo com um sítio em Joanópolis, abrigaram-nos por muilos dias, vezes sem conta, nos primeiros tempos cia pesquisa, antes 18

de havermos escolhido o bairro dos Pretos como local de pesquisa, A eles, à Rosa e à Giseile o nosso "obrigado" pela hospitalidade. Até onde a palavra "acolhida" tem um sentido humano, ela deve ser usada da maneira mais fecunda para traduzir como os do Pretos de Baixo nos receberam. Desde o primeiro dia fomos tratados como pessoas "de longe", acabadas de chegar e, no entanto, já quase "de casa". É preciso agradecer de uma maneira muito especial ao casal Antônio Fernandes e Bernarclina, assim como a José e Penha. Na casa deles, sede da Fazenda São José, estivemos muitas vezes, entre almoços, dormidas ou outros longos momentos de convivência. Às vezes era preciso um esforço para lembrar que o motivo de nossa estada ali era uma pesquisa. Roberto e Cinira, dona Joana, SOL! Chico Amaro, lembrando os seus nomes quero recordar as outras pessoas dos sítios do Pretos de Baixo com quem convivemos durante os dias da pesquisa. A maneira solidária como as porteiras dos sítios e as portas das casas nos foram abertas facilitou muito o nosso trabalho de campo. Mas foi mais. Ela foi um atestado de como, entre as pessoas cio campo, os "estranhos" (seguidiamente estarei falando em meu texto na oposição nuclear entre os "daqui" e os "de fora") podem ser de imediato acolhidos como "gente do lugar" e incorporados à intimidade dos dias cia vicia, com uma generosidade, cada vez mais rara nos mundos "de fora", que eles e nós tememos por tantos motivos. lara Cecilia I'imentei Rolim e Lilian dos Santos Rahal foram mais cio que duas participantes dos trabalhos de campo. Quero ser testemunha da seriedade com a qual, iniciantes ainda, as duas se dedicaram ao trabalho proposto. (]arios Rodri,gtics Brandão Focinhos do Rio Verde, março de 1995

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13 de janeiro PROGRESSO E BENEFÍCIO

No meio de uma dessas conversas de intervalo, falei a José, filho de Antônio Fernandes, sobre as possíveis vantagens do asfaltamento da estrada que ligaria Joanópolis à Rodovia Dutra, passando pelo bairro dos Pretos e por São Francisco Xavier. Ele completou de imediato a minha observação dizendo o seguinte: 'Pra nós isso não trás benefício nenhum." A frase dita no arranque, quase interrompendo a minha, me fez lembrar outra cicie mesmo, dias atrás: "Com o progresso, muita coisa piorou." Penso que, de maneiras e em momentos diferentes, ele e outros cio Pretos de Baixo devem lembrar a mesma coisa, várias vezes. De uma forma muito diferente da minha (mas moderno o bastante para comentar, com uma atualizada sagacidade, o desempenho cio "time do São Paulo" e de outros rivais), ele separa o progresso, algo que somente pode vir de fora, da cidade e de algum lugar social do poder, do beneficio, aquilo que deveria provir do progresso para as famílias e as pessoas do lugar. Mas nem sempre vem: pelo menos "aqui pra nós"; pelo menos "agora, nesses tempos". Procuro acompanhar o seu pensamento. Em um primeiro momento ele sugere que o progresso representa, para "os cia roça", uma perda visível e vivenciada de algumas qualidades que fazem ser "boa" a vida cotidiana e tradicional cio "homem do campo", mesmo quando "pobre" (o que não é o seu caso) e "dura". Os três adjetivos entre aspas são muito comuns no lugar. Antes cia chegada do asfalto entre a via D. Pedro 1 e Joanópolis, os bairros rurais e os sítios da serra eram mais isolados, mas muito mais seguros: primeiro, porque eram habitados apenas pela "gente do lugar", conhecida e confiável; segun-

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do, porque os que antes vinham, por difíceis caminhos de barro, eram raros e bons, quase sempre conhecidos de alguém; terceiro, porque hoje em dia, "com as facilidades, chegam bons e maus", e as estradas rápidas facilitam a fuga dos maus, "Os homens dos sítios" estão mais do que acostumados com estradas sem asfalto e transitam por elas há muitos anos, primeiro sobre ou com animais; depois, com carros velhos (Fuscas e Brasílias predominam) ou apropriados para as condições rurais. Ele reconhece que serra-acima as condições de vida e de trabalho ainda são bastante precárias e que, sobretudo nos últimos anos, algum progresso trouxe também benefYcios para as pessoas do lugar. Mas, de modo geral, sendo alguma coisa externamente favorável, ele pode ser internamente uma perda, ou a ameaça de perdas de uma vida rústica e precária, mas vivida como ainda segura, confiável e até mesmo "farta", de um ponto de vista estritamente "camponês". Sendo o progresso o sinal cia presença de um estilo forâneo e urbano de vicia, ele não transforma de uma maneira favorável a vicia nos sítios, e ameaça trazer "de fora" agentes de mudanças cuja presença poderosa poderia alterar um estilo cie vida cuja experiência ancestral, realizada fora cia linha de frente cio progresso, é, em boa medida, a sua condição. Pois "sem o trabalho cio campo a cidade nem come e nem vive". Como os sitiantes "que podem", no Pretos de Baixo, José e seu pai, Antônio Fernandes, não abrem mão dos recursos benéficos cio progresso, cio trator de rodas à vacina para o gado. Mas, ao contrário cio que eles imaginam que pensam as "pessoas cia cidade", para "os cio campo" cada recurso do progresso recobre uma perda antececiente, que uma própria outra dimensão ou decorrência de um outro progresso provocou. Assim, as terras de antes foram "mais fortes", férteis e muito menos vulneráveis às pragas "de hoje em dia". Famílias com mais filhos e terras aravam com burros e bois as terras de lavoura, plantavam sem ou com muito menos adubos químicos e colhiam sem a necessidade de aditivos artificiais de proteção. Foram perdas progressivas das condições naturais e sociais da produção agropastoril, aquilo que tornou necessários os recursos cio progresso. Mas elas são também devidas ao que, em um plano ou no outro, representa um sinal de mudança inciesejacia no sistema local de trabalho e produção, na estrutura perversa de comercialização dos bens da terra, diante das práticas extorsivas de venda dos produtos hoje necessários à própria produção; num estilo de vicia que, mesmo quancio imaginado (e dito, como um antecipado aviso de diferenças en-

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tre "eles" e "nós") como "roceiro" e "atrasado", é reconhecido como um valor e um bem herdados dos "mais velhos" e ameaçados pelos "de fora". Alguns benefícios muito bem aceitos, como a escola, são percebidos também como um bem inevitável, cuja maior utilidade é preparar para uma vida moderna e áspera no campo, ou, mais ainda, para uma vida já fora dele, na cidade, as crianças e os jovens que em um futuro próximo já não irão poder mais ou querer mais viver no campo. Quando José acentua as desvantagens cio progresso, desacompanhado de benefícios para as pessoas dos bairros rurais e dos sítios, e quando ele associa o asfaltamento de rodovias, outras melhorias de condições de acesso ao campo, à conseqüente chegada de pessoas "de fora", como turistas eventuais ou como compradores de sítios ou outros terrenos para recreio ou para investimento, ele entrevê no que muda uma série limitada de vantagens materiais, tecnológicas, em que o que mais interessa é o que está de algum modo ligado à atividade agropastoril e se situa dentro do âmbito, cada vez mais limitado, de acesso dos agricultorese criadores de gado leiteiro a tais bens e recursos "modernos". Mas um leque de vantagens materiais, dispensáveis no passado, necessárias hoje, chega ao campo com um repertório de desvantagens econômicas e, principalmente, sociais e morais, que representam desde a sua ótica um ganho "para os de fora" e uma inevitável perda para "os daqui". Este é também o sentido em que um ilusório progresso, cuja razão real é o benefício de outros, ricos urbanos, em detrimento das pessoas do campo, tende a ser pensado como algo injusto. Ele é visto como a imagem de uma "invasão", com a chegada indesejada de outras pessoas, poderes e valores de cuja "força", dlireta ou à distância, resultará uma perda cio poder de comunidades dos bairros para manterem um modo de vicia que de pouco tempo para cá tem sido posto em questão apenas pelos jovens. Já conhecemos uma visível oposição entre "os daqui" e "os de fora", tão própria de comunidades camponesas tradicionais. Mas, não apenas delas, é preciso não esquecer. A maneira como ela é vivida e pensada, inclusive em tudo o que em tempos e termos recentes tem a ver com a "questão ambiental" que nos trouxe a Joanópolis, no cotidiano e no imaginário das pessoas cio Pretos de Baixo, fica mais clara quando José Fernandes e seu pai, Antônio, falam sobre a neocimegadla de forasteiros e a crescente compra de terras por eles,

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dos dois lados das estradas que sobem da cidade em direção aos primeiros montes da serra da Mantiqueira. Várias vezes conversamos sobre a chegada dos pais de seu Antônio Fernandes e dele mesmo, vindos do sul de Minas. José e sua esposa, Penha, contaram da primeira vez uma longa história de vindas e idas. Chegam os antepassados e o pai de José, que, quando pode, abandona a fazenda cio pai e compra as suas próprias terras, ampliando as que lhe chegam pelo seu casamento com dona Bernardina. Parentes deles, mineiros vindos, ou ainda em Minas, venderam as suas terras e compraram fazendas no Mato Grosso, "a mais de 3 mil quilômetros daqui". Paulistas e paulistanos estão desde alguns anos atrás comprando terras caras na região de Piracaia e de Joanópolis, serra-acima. Outros, parentes ou vizinhos cio bairro dos Pretos ou de outros bairros próximos, como o Cancan, o Sabiaúna, a Maria Alferes, estão vendendo as suas terras e mudando para uma cidade, entre Joanópolis e São Paulo, com uma forte concentração em Bragança Paulista. Ou, em menor proporção, estão comprando terras "longe", fora de São Paulo, É cada vez mais raro que um vizinho sitiante compre de outro terras postas à vencia. Assim, a regra é a de que para cada vencia-esaída de uma família de 'gente cio lugar', corresponda uma comprae-chegada de "gente de fora". E José lembra que várias pessoas apontam isto como um "sinal de progresso", com o que ele não concorda. Pois os compradores "ricos", vindos de fora, trazem com eles novas condições de prática cia agricultura e de pecuária leiteira que modernizam de Cito o cenário de trabalhos e trocas de região em detrimento dos sitiantes antigos, que não os podem acompanhar. José comenta um exemplo costumeiro. Desprovidos de maquinário, os donos de sítios necessitam contratar força de trabalho em alguns períodos críticos das lavouras de feijão e milho. O preço local cio dia-de-trabalho estava por volta de 50 mil. No entanto "as pessoas de fora chegam aqui oferecendo 100 mil por dia, que eles podem pagar e vale pra eles, pelo lucro que eles sabem que vão ter". Os trabalhadores diaristas, assim contratados, não aceitam depois trabalhar mais para os sitiantes antigos. Algumas famílias empobrecidas chegaram a vender terras de sítio, com o que compraram apenas uma casa de periferia em Bragança Paulista. Estão reduzidas hoje a uma pobreza impensável dez anos atrás. Outras se tornam "caseiras", empregadas dos novos donos de seus próprios sítios. Ora, já que apenas muito poucas famílias de sitiantes tradicionais estão podendo reproduzir as mesmas condições e um mesmo estilo 24

mero ainda menor de pequenos agricultores, proprietários, arrendatários ou parceiros, então, se há um progresso, nos termos em que nas manhãs de domingo a TV Globo o anuncia fácil e acessível a todos no Globo Rural, ele é abertamente seletivo e importa "a ruína" dos que não podem - ou não querem mais - adequar-se aos seus termos. José conclui hstancio para nós as três saídas possíveis para a família. Imagino que muitas vezes, à volta cia mesa, os seus pais, eles próprios e até mesmo os dois filhos pequenos terão conversado a respeito, achando apenas a segunda solução desejável e boa, mas reconhecendo nela justamente a mais frágil, agora e daqui em diante. 1) Abandonar o sítio, vendê-lo bem e ir para a cidade e para o trabalho urbano, aproveitando o fato de que Penha já é professora em Joanópolis. 2) Permanecer no sítio, insistindo em manter as condições possíveis cio mesmo modo de vida tradicional, acrescido das mudanças tecnológicas viáveis e das mudanças sociais inevitáveis (um destino urbano para os filhos) ou desejáveis (a profissão urbana de Penha). 3) Vender as terras "aqui" e seguir o destino dos parentes, compranclo "terras de largueza" em Mato Grosso. Retomo aqui e ali este mesmo assunto, aproximando-o dos relacionamentos entre as pessoas dos sítios e o seu mundo de natureza.

14 de janeiro "A JÓIA DA MANTIQUEIRA": CENÁRIOS

As terras e cidades paulistas ao redor cia serra cia Mantiqueira sofreram destinos muito desiguais. Nazaré Paulista, na várzea, na beira cia Rociovia D. Pedro 1, lamenta até hoje a perda de quase todas as suas melhores terras de cultivo para as represas cio "Sistema Cantareira". Alguns loteamentos de beira das novas águas atraem compradores de posses médias. Por certo a presença deles em muito pouco compensa a saída de inúmeras famílias de sitiantes indeniza-

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dos e mandados embora. Atihaia cresce e vende até hoje aos de São Paulo chácaras e terras caras, debaixo do "melhor clima do mundo". No alto da serra, Campos cio Jordão é o melhor exemplo cio que pode acontecer a uma cidade tornada um pleno cenário dificilmente repetível por perto. Mas, a menos de 15 km, Santo Antônio cio Pinhal, pobre de turistas e de hotéis, pelo menos inventa ser "o primeiro município ecológico cio Brasil". Assim também Joanópolis, antiga São João cio Curraiinho, a quem nem sequer o auto-elogio de "a jóia da Mantiqueira" serviu para atrair um número de compradores ricos de terrenos à beira cia represa, ou de chácaras e sítios na encosta paulista cia serra, suficiente para alterar os indicadores cia economia, o destino parcial das pessoas e a rotina ainda roceiramente tranqüila de todos os dias. Da pequena casa de sítio onde morei no Pretos de Baixo eu costumava caminhar quase todos os dias até o Salto dos Pretos, por onde o rio Cachoeira despenca 154 metros e forma a queda d'água mais alta de São Paulo, em uma paragem camponesa de serras que não fosse por um pequeno bar de macieira, não sugeriria em nada um raro lugar para o turismo. Levantadas com critério por Neide, uma professora de São Paulo, dona de Sítio não longe cia sede cio município, a quem devemos os primeiros chas de hospedagem emJoanópolis, existem outras 40 cascatas e cachoeiras, algumas de fato de uma rara beleza, Na manhã de "terça-feira gorda", o telejornal anunciava que Águas de Lindóia havia recebido cerca de 40 mil turistas de carnaval. Desconfio dos números, mas os escrevo como os ouvi. Ajoanópolis não terão vindo 400, talvez nem mesmo 40, e o Salto dos Pretos terá recebicio mais "gente cie fora" cio que todo o restante cio município. A ainda mínima acolhida a pessoas com interesse de turismo e veraneio não impede que Joanópolis comece a ser descoberta como um desses lugares de vicia rural em nada diferente de outras, entre São Paulo de L1111 lado cia serra, e Minas Gerais, cio outro, de um momento para o outro abertas à vocação cio cenário, Uma descoberta tardia daquilo que muitos anos antes fez Monte Verde, a menos de 30 quilômetros de Joanópolis, mais alto na Mantiqueira, mais cercado de araucárias, mas sem os atrativos aquáticos e a extensão de terras e montanhas clejoanópolis. Nos últimos vinte anos cio século passado começam a derrubacia das grandes matas que, escapadas cia devastação antecedente ocorrida no vale do Paraíba, ainda cobriam quase todos OS montes e montanhas entre Piracaia e a fronteira Minas Gerais/São Paulo, na 26

crista da Mantiqueira. Dentro de uma extensa e luxuriante região de transição entre a Mata Atlântica e os campos de altitude, algumas dessas florestas de encostas eram coberturas densas cio "pinheiro araucária", cujos últimos remanescentes, solitários ou em raros bandos assustados, subsistem entre pastos, matos e eucaliptais. Uma grande última concentração deles sobrevive cio outro lado da serra, em terras cia Fazenda Levantina, pertencente à Melhoramentos. A cobertura vegetal de serra-acima preserva fiorestás apenas nas montanhas e nas encostas menos propícias aos pastos e às terras de lavouras. Dizem os mais velhos que até cerca de 30 ou 40 anos atrás, havia ainda grandes pinheirais nativos e eram raros os eucaliptais, que hoje em dia disputam com os pastos o direito à terra e, aqui e ali, ocupam mesmo áreas de florestas que, mesmo protegidas por lei, não deixam de ir sendo pouco a pouco devastadas. Quando o café chega aos montes cio lado paulista cia serra, ele já encontra por lá lavradores tradicionais, locais e mineiros, ocupados com a agricultura rústica de pequena produção de excedentes baseada no milho e no feijão, lavouras dominantes até hoje em toda Joanópolis e nos municípios vizinhos, fora Atihaia. Lavouras que se completavam com as de fumo, algodão (mais para uso local do que para venda ao mercado), cana e mandioca. Criavam-se porcos para consumo caseiro e venda regional, além de aves e gado leiteiro. A expansão da pecuária de leite é, em boa medida, devida ao aumento cio número de migrantes mineiros e apenas depois cia década de 40, como em outras áreas vizinhas às duas serras que aprisionam o Vale cio Paraíba, é que ela conhece um crescimento geométrico, e em vários municípios chega a ser a principal fonte de renda de sítios e fazendas. Tal como aconteceu também por perto e mais longe, a derrocada cio café não trás aos municípios à beira cia serra Mantiqueira uma outra agricultura de mercado em grande escala. Assim como outros municípios montanhosos, joanópolis nunca foi um local de atração de produtores de monoculturas especializadas, após o café. Nunca subiram os seus morros e montanhas os pequenos agricultores japoneses que se esparramaram por Atibaia, Piracaia e Bragança Paulista.' Ocupando terras cuja altitude varia entre 900 e 1.500 metros, e havendo perdido, tal como Bom Jesus dos Perdões, Recomendo ao leitor: 'I'haís Martins Echeverria, Caipiras e samurais modernos. Dissertação de mestrado em antropologia social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNIC\Mi'. Campinas, 1993.



Nazaré Paulista, Igaratá e Piracaia, a melhor parte de suas terras baixas para as represa da CEsp, o município nunca foi significativamente invapelos mesmos "batateiros" que, entre proprietários e arrendatários rios de "terras frias", arrasam como em desertos os cenários de Pedra Bela, Munhoz, Toledo e outros municípios altos de Minas Gerais. A palavra crise parece estar definitivamente incorporada ao vocabulário das mulheres e dos homens dos bairros rurais. E ela depressa passa de um valor biopsicológico ("crise de rins", "crise de nervos',), para um valor econômico social ("crise da pecuária", "o povo da roça agora vive nessa crise"). Até onde podem vasculhar os seus horizontes, com os recursos de sua lógica de relações de vida, trabalho e mercado, e com a leitura que fazem dos dados que lhes chegam, 05 sitiantes de serra-acima não arriscam nenhuma frase de esperança. Reconhecem uma grave "crise" que, se afeta a todos, afeta duplamente "os homens cio campo". Não parece haver uma "saída", seja em direção a uma monocultura de mercado, altamente arriscada, mas correspondlentemente proveitosa, com a batata ("batateiro um ano tá de calça de veludo e no outro tá de bunda de fora"), seja em direção a um maior proveito econômico cia pecuária leiteira. Os pastos naturais estão definitivamente esgotados; a pastagem "formada de brachíara" é uma alternativa possível para apenas alguns criadores do lugar e, mesmo assim sobre escassos alqueires de morros íngremes não existe no horizonte outra qualquer possibilidade conhavel de transferencia de recursos e trabalho, para a pequena agricultura, como as flores ou as hortaliças das vargens ao longo cio rio Cachoeira, em Piracaia, . ' para o criat-orio de outros animais.-

Alguns dados porventura úteis sobre a produção rural do município, Em 1920, 208 informantes rurais produzens 1.184 toneladas de grãos de café, No censo de 1940, aumentam os produtores declarantes e diminui a cl mtnticlade de grãos 266 toneladas contra 1.110 toneladas. Em 1970, os produtores são 70 e a produção é de pouco mais de 173 toneladas. Dez anos mais tarde, os números descem para 28 cafeicultores, donos de restos de cafezais, e 11 toneladas. Em 1970, há em joanópolis 624 estabelecimentos rurais ocupando uma área de 36.215 hectares. Em 1975, são recenceadas 543 propriedades com 35.215 hectares. De novo o número aumenta para 628 propriedades em 1980, em uma área total de 35.718 hectares. O café, que em 1920 ocupava 1.700 hectares de lavouras, ocupa, no censo de 1980, apenas 13 hectares, A cana ocupa um hectare. O arroz, 38 hectares, Os três principais produtos da agricultura local, a batata, o feijão e o milho ocupam respectivamente: 186 hectares, 732 hectares e 1.761 hectares. De acordo COM o censo de 1980, 390 informantes colhem 3.483 toneladas de milho e 337 colhem 347 toneladas de feijão, números curiosamente não incuto desiguais

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Usando com desconfiança palavras de urna gramática que desconhecem, como "turismo", ou que conhecem ainda pouco, como "reflorestamento», algumas pessoas dos bairros de cima sugerem com suspeitas que "o futuro dejoanópolis" poderia estar na conjunção de um com o outro. Desde que se sai da sede do município e se começa a subir em direção a São Francisco Xavier, já no município de São José dos Campos não é difícil entrever como, na seqüência das terras e dos sítios, os cenários naturais e já socializados alternam-se quase se opondo, aqui e ali. Como eu disse antes, grandes extensões de matas de montanhas são separadas, ora por pastagens, ora por eucaliptais. Em alguns morros, os últimos e protegidos pinheiros "nativos" alternamse com "pinheiros novos" (especialmente o pinus eliote) e variedade de eucaliptos. Velhos sítios e antigas fazendas sem placas sobre porteiras sem cadeados, sucedem sítios com portões pintados de cores vivas, cadeados fechados e avisos de "propriedade particular" e cuidado com o cão", sob placas com nomes urbanos. Um cicies, o pioneiro nisto, avisa, a cores, que aquela propriedade é uma "reserva biológica cio lhAMA". Os tempos mudam, os neopovoaclores vindos cia capital ou de cidades próximas compram porções de alqueires ou compram sítios inteiros. Invadem, dos rue e 4.274 toneladas de milho e entre 319 colhem 530 tonelacultores, colhe; cEis de feijão. Alguns dados sobre a batata. Em 1920, somente sete produtore,s declaram 11,5 toneladas de batata. Nos censos de 1975 e de 1980, o 1 batateiros estabiliza-se ao redor de 2$ produtores. Mas a produ17 toneladas cm 1940 para 3.385 toneladas em 1970, 3273 toneladas em 1975 e 3.878 toneladas em 1980, ocupando arcas de, respectivamente: 214 211 e 216 hectares. Ora, nos mesmos anos ha, destinados ao plantio do milho, 161$, 1.636 e 1.761 hectares. Mesmo não sendo nunca considerada pelos sitiantes locais como a sua produção agrícola mais importante pois ela sempre está atrás do milho e do feijão, a batata representou, em 1980 414% do valor bruto das lavouras temporárias de 16,58, do valor da produção agropastoril total. Quase sempre a batata é plantada por arrendatários "de fora" e pesa sobre ela uma maldição entre as pessoas do lugar: a batata sempre acabará arruinando aquele que pretende fazer dela uma tonte rápida de grandes lucros. Em toda a região é uns sinal de dificuldades financeiras ou sociais (falta familiar de força de trabalho, o arrendar terras de propriedades aos batateiros, reconhecidos como degradadores inveterados de terras férteis. tara uma última medida de proporções, a receita municipal, derivada da agricultura e da sivilcutura (basicamente o eucalipto), foi, em 1980 de 74.026.000 cruzeiros. A da pecuária foi de 95.990.000 cruzeiros e a da indústria rural de apenas 1.273.000 cruzeiros. (Censos de agricultura e pecuária do lims de 1920, 1940, 1970, 1975 e 1980.)

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primeiro, os montes de difícil acesso para arados e bois, e compram mais tarde terras mais planas, raras e cobiçadas, não longe das estradas de serra-acima. As velhas casas rurais são reformadas, e o interesse dado a um jardim, a um pomar mais "civilizado", a lugares de fruição cio tempo e do cenário, é um indicador, visível da estrada, da mudança de dono em um sítio. Quando possível, as águas próximas são aproveitacias para uma pequena represa e, então, patos e gansos, dados mais aos olhos cio que aos estômagos, substituem os indispensáveis chiqueiros de porcos rústicos das pessoas cio lugar e a pequena tropa errante das "aves cio terreiro" das mulheres sitiantes, nunca pensadas como algo para se ver, para embelezar uma propriedade de produtores familiares, sempre pensada, vivida e, portanto, ocupada e mantida como uma unidade doméstica de pura produção de bens. Os novos ocupantes de terras não representam um tipo único de sujeito interessado no mundo rural de joanópohs. Em um primeiro momento, poderíamos dividi-los entre os motivados pela leiva e os interessados pelo cenário. Mas, como sempre, são os seus híbricios os que intrigam mais, Coloquemos de um lado civas categorias de novos produtores: primeiro, os neo-reflorestadores, motivados, exclusivamente, à produção de lenha e madeira através de pinheiros (mais raro) e de eucaliptos (mais freqüente); segundo, os novos pequenos proprietários, motivados a uma produção modernizada da agricultura ou mesmo cia pecuária, aqui e ali responsáveis pela introdução, bem ou mal sucedida, de produtos como mel e abelhas, o morango etc. Coloquemos cio outro lado os novos proprietários e/ ou moradores a quem interessa mais a fruição cio cenário natural do que a sua transformação em um espaço útil de produção de mercadorias; terceiro, as famílias (porque aqui o peso do interesse familiar é bastante acentuado), motivadas em sítios cie recreio, de "lazer" ou equivalentes, com um mínimo desejo de sua utilização para qualquer tipo de atividade produtiva; quarto, as pessoas, casais ou pequenos grupos cio jovens (raros ainda e um pouco mais visíveis de São Francisco Xavier para cima, em direção a Campos cio Jordão), ecologicamente motivados a uma ocupação de cenários para a "preservação cia natureza" e para a vivência de algo mais cio que o simples "lazer", onde uma associação entre "vida natural" e alguma espiritualidade de tipo holista não raro é lembrada. Um sujeito híbrido, cuja presença tende a ser visivelmente crescente, é o neocomprador motivado ao lugar de "lazer" ou de "preservação" tanto quanto à realização, nele, de algum tipo de ativicia-

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de agropastoril cie pequena escala, segundo os padrões tradicionais da economia camponesa, com leves acentos de modernização ou de acordo com padrões inovadores, tal como os sugeridos por algum modelo de agricultura orgânica. Ora, se os produtores antigos são uma comunidade bastante homogênea de atores culturais e de sujeitos de destino, auto-cliviciidos apenas entre "mais fortes" (mais ricos) e "mais fracos"; "agricultores" e "criadores"; "mais tradicionais" e "mais modernos"; "mais instruídos" e "mais ignorantes"; ainda moradores no sítio ou já moradores na cidade, mas donos ainda de terras cio onde obtém a renda familiar principal, o mesmo flác) acontece com os neo-ocupantes. Entre eles há uma oposição de estilos de vicia O de razões de compra e venda que, nos casos mais extremos, os torna inimigos declarados, assim como tende a tornar-se cada vez mais visível, e vir a ser um critério relevante de identidade e valor. Nada mais antagônico cio que o investigador não-morador no plantio de eucaliptos, interessado apenas na terra como fator de lucro direto, e o comprador naturalista (é preciso criar um termo para esta pessoa e outros poderiam ser usados, como "ecologista", "ambientalista", "preservacionista") para quem o motivo único ou essencial da vencia e da compra cie terras é o seu valor em si como "natureza preservada". Como cenário destinado à experiência da vicia e não ao interesse cio lucro, onde o que vale é justamente o que o trabalho dios homens não transforma na natureza. Enquanto os cio primeiro grupo derrubam inatas ou reocupam com árvores de crescimento rápido as terras esgotadas dos pastos e são, de perto, vigiados pela Polícia Florestal, os cio segundo semeiam por toda a Mantiqueira novas experiências de relacionamentos com o ambiente, não raro destinadas algumas ao fracasso cia subsistência, ou cie umapequena e heróica comercialização de "produtos naturais", ao lado de organizações locais ou mesmo regionais de vocação preservacionista.3 Existe, desde 1985, uma Área de Proteção Ambiental da Mantiqueira. Ela foi criada por decreto presidencial e envolve mais de 20 municípios da serra. Dos de São Paulo entram: Campos do Jordito, Cruzeiro, l,avrjnha, Pindamonhangaba, Piquete, Santo Antônio do Pinhal e Queluz, São José dos Campos, apesar de 510 Francisco Xavier e Joanópolis, fica (te fora, Tal como em outras APAs federais ou estaduais, na da Mantiqueira teoricamente ficam restritas todas as atividades industriais e agroindustriais potencialmente poluidoras; obras (te terraplanagem e outras obras (te infra-estrutura capazes (te afetar 'as condições ecológicas locais", as atividades provocadoras

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de erosão e as que de alguma maneira ameacem extinguir as espécies raras da biota". (Relatório F1:DAPAM, 1991, São Paulo, pp. 42-3). De outra desde o começo dos anos 90, foi fundada em São Paulo uma frente em Defesa da Mantiqueira (Feoa'Aa) com o objetivo de reunir e articular o trabalho ele várias pequenas ONG5 espalhadas por vários municípios da Mantiqueira no Rio ele Janeiro. São Paulo e Minas Gerais. De acordo com os seus próprios dirigentes, o trabalho da entidade é limitado e as possibilidades do exercicio ele uma efetiva ação ambientalista na serra é muito difícil. Mesmo nos municípios incluídos na Al'A ela Mantiqueira, as decisões preservacionistas são aplicadas de maneira muito limitada e o poder de interferência predatória de vários agentes sociais interessados em "investir" na Mantiqueira é grande e, em alguns casos, crescente. Um elos perigos imediatos é ti aumento acelerado ele turistas, veranistas e neo-ocupantes urbanos das paisagens ela serra. Em Joanópolis. não existem ainda instituições oficiais ou civis ele tipo ambientalista, a não ser em âmbito muito restrito, como no caso do bairro do cancan.

uma com a sua chácara mais próxima dos estilos urbanos do campo do que das "sedes" de sítios. As pessoas "do lugar" dividem com os "de fora" espaços que já não são mais exclusivamente seus. Por isso mesmo, e para atrair mais pessoas e famílias "que mudem o bairro", como me disse um dos "de lá", já há bares mais modernos, longe do estilo das "vendas" da roça. Há um camping e com freqüência promovem-se festas e rodeios, com anúncios mais fora do bairro do que dentro dele. Eu estou enfatizando algumas diferenças não porque elas pareçam ser originais. Não são, e o que acontece aqui repete-se por toda a parteem outros cenários rurais de São Paulo, de Minas Gerais, do outro lado da serra e de quase todo o Centro-Sul do país. É que eu quero fugir de uma etnografia restrita a um modelo de tradicionalidade camponesa, para pensar o que de fato está acontecendo à. volta dela, com o foco de minha atenção concentrada sobre as reciprocidades homem—natureza. Mas, mesmo neste campo, afinal, o que é a regularidade confiável e o que é o insólito? A que atribuir o nome de "tradicional" e a que o de "moderno"? De que maneira a realidade tão densa e polissemícamente vivida com e como símbolo, cabe dentro do pequeno tabuleiro em que as minhas categorias a aprisiona para tornála efêmera e tão restritamente inteligível? O que, aqui, testemunha no fluxo sensível do tempo a duração cias coisas e o que atesta o que há em todas, em tudo à minha volta, de tão provisório? Não estará "tudo à minha volta" sendo como o cenário natural desta manhã? Pois choveu forte uma boa parte da noite e agora a manhã de pio de pássaros e vapores da água que se aninham à volta dos rios ou, mais leves, sobem em direção ao alto dos montes ("neblina baixa, sol que racha, neblina na serra, chuva da terra") ainda não decidiu se retorna à chuva da noite ou se abre no céu o véu das nuvens e dá à terra encharcada o áspero sol de janeiro. Pouco antes do café, eu lia algumas passagens do Bachelard "noturno" e, com menos gosto, um conto de Vírginia Woif. Foi quando avistei um homem sem sapatos, de calças arregaçadas e sem camisa perseguindo uma vaca negra que fugia a trote por trilhas de morro à sua frente. Ele trazia nas duas mãos um cabresto, um laço e campeava sem paciência a vaca que fugira do mangueiro. Três vezes ele conseguiu a custo trazê-la até o estreito descampado da capela do Pretos de Baixo, onde pensava encurralá-la a um canto e prendê-la com o laço. Minutos antes, eu era ainda embalado pelo

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15 de janeiro ALGUMAS VISÕES, PERFIS DE PESSOAS E LUGARES

Q bairro dos Pretos, aqui no "Pretos de Baixo", onde nos instalamos e onde faremos a parte nuclear da pesquisa, é um lugar mais harmonioso, mais acolhedor e mais cheio de vida local do que por certo parece a quem passa apressado em busca do "Salto dos Pretos" Tal como a maioria dos bairros rurais paulistas, o "Pretos" nem de longe concentra casas e pessoas como as aldeias onde estive na Galícia ou, pelo menos, como a inesquecível Catuçaba, na serra cio Mar. A um primeiro olhar - que ás vezes parece ser o único olhar que têm os turistas de carro e pressa - parece que aos dois lados cia estrada não há nada e quase ninguém. Algumas casas esparsas cercadas de seus pomares, suas áreas de trabalho, seus mangueiros, suas lavouras e campos. Um campo de futebol a que se chega passando por uma chfícil "pinguela" sobre o rio Cachoeira. Ao longe, a casa da escola. O bar na beira cio caminho e, escondida de quem passa, a capela cio bairro. Fora os cia natureza, não há por toda a parte atrativo algum, e eu lembrava outra vez a Galícia, onde em uma antiga aldeia de casas de pedras com sete moradores, os últimos, você pode encontrar uma igreja cio século XIV ou um mosteiro em ruínas de um século antes. Mais abaixo, perto da cidade, o Cancan é bem um bairro de transição. Muito mais pessoas "de fora" compraram terras e construíram casas. Sítios foram repartidos e pertencem hoje a várias famílias, cada

jogo fertilíssimo de imagens e a sempre inesperada maneira com que Gaston Bacheiard mistura as palavras para atribuir sentidos de devaneio não apenas à montanha (cujo amor acho que comungamos juntos) ou à floresta, mas até mesmo à lama, à pedra, e procurava pôr ordem em algumas lembranças desta pesquisa e de outras, em Goiás e em São Paulo. Lembrava como as pessoas do campo de uma maneira geral sugerem pensar como valor os cenários cia natureza de uma forma diferente e até mesmo oposta à nossa. A minha, amante inveterado de matos, águas claras e montanhas. A rios jovens "naturalistas" que, como eu, invadem, pelas mesmas e por outras razões, a mesma Mantiqueira. Pois o que nós chamamos de "mata primária" eles, às vezes, chamam "mato sujo". Foi quando o homem, já com a vaca presa no laço, voltava ao mangueiro e ao me olhar de passagem, mais sério cio que o esperado, parecia querer dizer-me que, co-habitantes por alguns momentos de um mesmo campo natural de relações, os nossos significados sobre eles são desiguais, porque o que vivemos ali é oposto. Por isso nem mesmo os nossos sentimentos podem ser os mesmos. Sentado à sombra, diante cia cachoeira cio córrego da Onça que despenca entre árvores um pouco longe, à frente cia casinha onde nos hospedamos ao lado cia capela cio bairro, os lugares de minha contemplação prazerosa e de meu passeio são os locais de seu trabalho sempre árduo, mesmo quando poetizado pelos que não o conhecem de clentro, vivido com os braços. São as trilhas de seus trajetos, nunca um passeio, entre um ponto e outro da geografia que a vicia camponesa rnapeia muito mais como referentes do exercício penoso sobre a natureza, cio que como cenários de deleite provindos dos exageros cicia. Dentre os que conheço, cenários que vão do excursionista adolescente e o jovem escalador de montanhas ao já quase crepuscular "pesquisador de campo", são muito raros os lugares melhores do que este para viver e pensar isto. Porque, sendo estes ambientes de serra ainda tão preservadamente camponeses e já tão indefesamente abertos às pessoas que chegam e chegarão de fora com poderes muito maiores cio que os rias pessoas daqui para tudo transformar, eles colocam lado a lado uns e outros. Já em nossas primeiras conversas e um pouco para estabelecer entre eles o reconhecimento de minha própria identiciade, os homens e mulheres daqui dizem repetirias vezes que os "de fora", turistas eventuais rio "Salto" ou neocompradores forâneos de terras de serra, são uma gente que trabalha e se aglomera "lá", na cidade. Em um mundo exterior e para muitos 34

distante e pobre de referentes, "essas pessoas" ganham, mediante tipos de atividades nem sempre reconhecidas como um "trabalho", o dinheiro suficiente para virem comprar "aqui" as terras que as "gentes do campo" estão precisando vender, dado as condições do trabalho - da idéia de "trabalho" no seu sentido mais denso, mais completo - não lhes permitem mais preservar a sua própria terra. "Lá" é de onde os "de fora" "vêm", "chegam" ou "fogem". E a expressão "fugir ria cidade", que os rio campo acabaram aprenriendo com os "de lá", tornou-se afinal uma fórmula feliz para explicar por que "eles" chegam em um número crescente. Da cidade, onde se pode ser rico e dotado de poder, se "foge", dano que a conseqüência ria mistura rio poder com a riqueza é também o perigo, a violência, a desarmonia entre as pessoas e as categorias sociais de pessoas. O "campo", a "roça", o "nosso lugar", são os pontos finais ria fuga "cicies", porque "aqui", mesmo entre pobres ou empobrecidos onde ricos e poderosos são os cana vez mais raros dentre os "nossos" e os cana vez mais próximos dentre os "cicies" - ainda se está à distância do que "eles" criaram e agora os ameaça, abrigando-os a vir em fuga até o "nosso lugar", onde a presença de seus valores e poderes torna nossa a ameaça que era deles e pesava sobre eles. Do campo não se "foge". Não há pessoas vendendo o sítio rios avós e "fugindo pra cidade". Para eia "se vai". "Daí eles venderam tudo e foram pra cidade". Os mais afortunados podem passar, "mudando pra cidade", por uma equivalente mudança de vicia nunca inteiramente desejaria, caso as condições ria "viela na roça" fossem agora como se reconhece que foram "um rua". Unia mudança às vezes até idealizada, e que em direção ao bem realiza-se apenas para um número muito pequeno de famílias e de pessoas. Ela equivale, em seus melhores termos, a passar rio lraI)ahIlo (aquilo que em plenitude realizam apenas os "do campo" e outros homens rio trabalho, vizinhos), para o negócio (como o "abrir uma venda" ou tornar-se um motorista ele táxi) ou para o emprego (como o ser professor ou, melhor ainda, 'arrumar um lugar na prefeitura"). O negócio ou o emprego quebram no homem rio campo, sujeito do trabalho e ator deum mono de via ancestral mente exemplar, uma identidade de nobreza épica, mesmo quando realizaria na pessoa de "um pobre", mas devolvem, como uma evidente compensação, algo que o aproxima a ser como "a gente ria cidade". Essas pessoas que chegam "fugindo" por um par de dias ou para tona a vicia, para cenários de onde a crise expulsa ou "obriga a sair" a 35

"gente da roça", chegam para viver neles a experiência do não-trabalho. Pois, fugitivos de "lá" e poderosos "aqui", eles chegam para investir (aplicar recursos de multiplicação do dinheiro através de bens e serviços comprados de outros), para descadsar, invadindo, sobretudo no caso dos aposentados, um cotidiano de trabalho com a presença do não-trabalho estabilizado como experiência de vida, e para fluir, para dar aos tempos da vida e aos locais da natureza os mesmos usos das pessoas "do lugar", mas francamente exagerados (pescar no rio, fazer um churrasco), ou novos e inesperados usos (fazer longas excursões, tornar demorados banhos de sol, escalar montanhas etc.).

O círculo próximo da Fazenda São José abarca o seguinte: casa da família (sede da fazenda), área do tanque da casa, forno caipira, garagem da "Brasília", garagem do trator, capela familiar, paiol, galinheiro e chiqueiro, mangueiro do gado, curral e pomar. Os espaços mais masculinos são: as duas garagens, o paiol, o curral. Os espaços mais femininos são: a casa (+ cozinha, sala e quartos; - varanda), o galinheiro, a área do tanque e a capela. Os espaços mais neutros são: o mangueiro do gado, o forno caipira e o pomar. Eles próprios estabelecem as diferenças. Quando seu Antônio Fernandes fala de "parentes ricos" e morados distantes, entre o Mato Grosso e Rondônia, ele lembra donos familiares de dez mil reses. Ele que, segundo Penha, a nora, não tem mais do que 40 reses e 18 vacas produzindo leite. Mas comparada com outras de toda a região, a família é muito menor do que o tamanho da propriedade e o próprio nome "sítio", que ele usa, aplica-se mal a terras que beiram os 200 alqueires mineiros (ou paulistas, segundo os mineiros: 24.200 m2 ). Não é difícil constatar que os "Fernancies" vivem .um estilo camponês alguns pontos acima da maioria dos vizinhos sitiantes, muito embora se identifiquem com eles mais cio que com os grandes fazendeiros e, principalmente, com os proprietários empresariais vindos "de fora". Eles poderiam ser grandes "lá", como os distantes parentes que "foram", mas não "aqui", onde é melhor ser como os próximos, parentes ou não.

A metade masculina cio grupo doméstico é composta de Antônio Fernandes, "dono" do sítio e agropecuarista administrador, entre a atividade e a aposentadoria; José Fernandes, o filho, plenamente ativo, e os dois netos escolares: Giovanni e Gustavo. A metade feminina conta com dona Bernardina, esposa de Antônio, e Penha, mulher de José e professora no Colégio Estadual de Joanópolis, o que não a impede de participar bastante das atividades diárias da casa e do quintal. A casa de sede do sítio dos Fernandes não tem jardins. Algumas flores silvestres adornam apenas o pequeno cercado de bambu que separa a "capelinha" familiar dos espaços vizinhos dedicados ao trabalho. Na face voltada para "fora", na direção de quem chega, há um gramado rústico e com cuidados. A varanda muito pouco usada da casa abre-se para esse gramado que serve mais às manobras de carros e tratores do que ao deleite dos donos e de seus filhos. De todos os lugares à volta da casa-sede, apenas a capela sugere ser um local "tratado" e dado aos prazeres dos olhos, aos gestos escapados cio trabalho e da convivência multiplamente vivida à sua volta, nos seus intervalos curtos. Algumas casas de sitiantes ou de agregados, menores e mais pobres, levam dentro delas oficinas de trabalho e locais de armazenamento de instrumentos ou de produtos do trabalho agrícola. Creio haver descrito sumariamente esta condição em A partilha cia vida. A casa grande do sitiante de "mais recursos" realiza duas variações que a aproximam das residências urbanas: a) ela diferencia os cômodos e os individualiza, de modo que haja "um lugar para cada coisa", e, no limite, um quarto para cada pessoa ou par de pessoas (banheiros privativos nunca, um luxo perverso da ociosidade urbana); h) ela separa com fronteiras mais definidas os espaços do trabalho e os espaços da pura convivência, deixando apenas à cozinha a vocação de continuar sendo por completo lugar de uma coisa e da outra, especialmente quando o fogão de lenha é mantido nela e não deslocado para o lado de fora ou para uma "cozinha caipira". Separam-se os lugares de "se estar" dos de "dormir e descansar"; separam-se estes lugares cios de "comer", e os locais do trabalho são deslocados para fora de casa. Sobram para dentro cicia os "das mulheres": processar os alimentos, fazer a comida, arrumar a casa, cuidar dos filhos pequenos, costurar e consertar a roupa. Quando algumas etnografias cio mundo rural apenas desenham na casa do campo (mas, jamais, a "casa de campo"),,os domínios domésticos de vocação mais masculina e os de vocação feminina, entre a varanda e a sala, e a cozinha e os quartos, elas esquecem algumas

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16 de janeiro A FAZENDA SÃO JOSÉ

variações que qualificam o sentido cia vivência cotidiana de tais oposições. No rancho caipira mais tradicional, precariamente dividido internamente e com freqüência requisitado para ser também o lugar de guarda das colheitas do trabalho, maridos e esposas, homens e mulheres da casa, trazem para dentro cicia o próprio trabalho. Ali, enquanto as mulheres multiplicam "os serviços cia casa", os homens reparam instrumentos, processam algum alimento, antes de passá-los ao domínio cia cozinha, afiam foices e até mesmo tratam de um pequeno animal enfermo. A casa cio campo multiplica do lado de fora os espaços e reduz o campo dos trabalhos. Quem sai com eles para os terreiros, os paióis e outros redutos tornados francamente masculinos, à volta da casa, são os homens. Os vegetais do redor da residência ganham espaços melhor delimitados: a horta, o pomar, a pequena lavoura de produtos de consumo diário. Assim também os animais que são classificados com maior rigor e separados em seus remos de cercas e tapumes: as aves (femininas e das mulheres), os porcos (masculinos e neutros), os animais de trabalho e o gado de leite (comum) e de corte, muito raro (masculinos, fora as vacas, simbolicamente o mais feminino de todos os animais domésticos, e dos homens). No sítio dos Fernandes há uma área reservada às aves, criadas soltas durante o ci, outra para os porcos e outra, grande e fundamental, para a ordenha das vacas e o trato dos bezerros. Dentro cia casa os homens "estão", comem, dormem e clescansam, enquanto as mulheres trabalham, antes de fazer nela o que fazem os homens nos espaços tornados lugares ao "ar livre", à volta cia casa. Assim, fora a pequenina capela, tudo à volta cia sede do sítio divide lugares de trabalho, entre plantas, bichos e homens. Fora aqueles de que já falei, restam a garagem cio carro e a do trator, o paiol, lugares de franco domínio masculino; o forno caipira, a área cio tanque, território doméstico das mulheres. À volta deste primeiro círculo ao redor cia casa, as terras de lavoura, os pastos naturais e artificiais, com suas divisões, os matos e as matas, as beiras de rios e córregos, as trilhas e estradas entre uns e outros, são lugares internos/externos bastante masculinos. Mas apenas separar os espaços segundo os gêneros, desta maneira tão usual, ainda quer dizer muito pouco. É provável que uma aproximação entre isto e algumas idéias de Philippe Descola possa ser interessante. Afinal, os lugares dos Mundos cia convivência e cio trabalho não são "assim" porque são. E

nem, sabemos já, uma regra geral de espírito utilitário divide uma lógica de espaços e uma rotina dos tempos entre as categorias de pessoas. Não seria difícil seguir com uma classificação dos lugares sociais da vida e cio trabalho divididos entre os gêneros, e, através de suas oposições, chegar a bons resultados. Mas eles são conhecidos e dizem pouco. A menos que a esta geografia dos SeXOS saibamos acrescentar alguns outros aspectos, em geral descuidados nos estudos sobre comunidades rurais. Ora, falando dos Achuar, Descola lembra que entre a caça, a pesca e a agricultura, as relações homem-mulher são mais de complementaridade cio que de oposição. Não há, de maneira exclusiva, locais e atividades masculinos e femininos, e o que importa considerar é como, com presenças diversas nos mesmos espaços e através de atividades desigualmente complementares, homens e mulheres realizam a sua parte de trabalho de uma mesma atividade.

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17 de janeiro A

VIDA DOS GÊNEROS

Sim, os homens caçam, não há dúvida. Mas as mulheres os acompanham muitas vezes, cuidam dos cães e carregam os macacos mortos. Ritualmente elas fazem sortilégios propiciatórios e simbolicamente respondem por uma fração complementar essencial do significaclo da caçada. Os homens atiram nas águas as plantas que atordoam e matam peixes e os ferem. Mas as mulheres os recolhem; coletam os peixes na água, como frutas fáceis de pegar com as mãos. As mulheres semeiam, tratam ela lavoura e colhem. Os homens preparam o terreno bravio, queimam e, assim, dominam unia porção próxima de natureza ainda não incorporada à sociedade, para que as mulheres exerçam ali uma espécie de trabalho duplamente fecunclaclor. Primeiro, ao fecundar com a semente a terra pronta para o plantio. Segundo, ao colher e preparar com o fruto da terra a condição de vicia do grupo humano da unidade doméstica. É com este sentido de complementaridade que uma revisão das dicotomias costumeiras poderia ser adequadamente nuançada. Elas são: lavoura verstis floresta, grupo doméstico versus estranhos, vegetal verses animal, preclação exercida sobre a natureza verses transformação cia natureza, ação de morte através cia guerra e cia caça

versus produção da vida pela concepção e nascimento de pessoas e pela horticultura; reprodução biológica versus reprodução social) Com o exemplo da horticultura, Descola diz o seguinte a respeito da complementaridade Achuar, Mythologiquernent atcestés, Ia repartition du takát (o termo Achuar mais próximo à idéia de trabalho produtivo, CRB) hortícole entre les sexes indique assez que, dans l'esprit des Achuar, I'horticulture est une activité composite clui supose Ia complémentarité entre travail masculin et travail féminin. Concretêment, cette complémentarité s'exerce au cours de deux phases distinctes, l'essartage et Ia plantation, elles-mêmes divisées en deux moments symetriques, le débroussaillage pré-cédant l'essartage et te désherbage succédant à Ia plantation. La premiére phase est exclusivement d'ordre masculin et consiste à détruire Ia vegetation natureile, tandis que Ia seconde, essentiellement d'ordre féminin, cnnsiste a créer et entretenir une vegetation controlée en lieu et place de l'ancienne végétation naturelle inaugurée par les hommes.2

Como em outros casos onde o trabalho humano sobre a natureza se aplica envolvendo homens e mulheres, a percepção Achuar da agricultura sugere uma atividade unificada, completamente dividida entre momentos de trabalho masculino e momentos de trabalho feminino. Alguma lógica mais do que apenas prática domina a divisão da complementaridade? Sim, mas ela não deve ser tomada em termos absolutos. No processo social de socialização da natureza de incorporação de espaços, seres e situações vividos e pensados como do mundo natural ao domínio da cultura de uma maneira predominante os atos considerados como de domínio-destruição da natureza são masculinos, enquanto os atos tidos corno de incorporação-fecundação da natureza são mais femininos. Se a caça, menos takát e mais urna atividade prazerosa e aventureira, próxima da guerra, no sentido Achuar, é de alguma maneira um mais-valor do que a horticultura, cada urna destas atividades recebe urna atribuição de sentido em si mesma, e qualifica o seu bom realizador de uma polar igual maneira. Um bom caçador é valorizado quando consegue sucesso na "sua" caçada, do mesmo modo como a sua esposa o é quando produz com sucesso na "sua" lavoura,

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Philippe Descola, Le jardin de colibri: precès de trauril et catégorizations sexuelies chez les Achuar de L'Equateur, L'Horne, jan.-mar., 1983, XXIII(I), 61-89. 2

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Talvez isto seja possível porque, fora de urna condição social de produção para o mercado, onde os bens apropriàdos da natureza para o mundo humano são de imediato transformados, nele, de valor de uso em mercadoria, a lógica Achuar não pensa os diferentes momentos do trabalho sobre o mundo natural como uma seriação discreta de operações concretas, onde o valor do produto futuro é maior do que o sentido do gesto humano no ato de produzi-lo, mas antes como um círculo de atividades pensadas em função das précondições específicas, necessárias à realização de cada uma delas. Ora, há provavelmente uma outra razão e eu quero lembrá-la aqui, porque acredito que os homens do campo de Joanópolis têm algo em comum com ela, embora estejam cada vez mais metidos em uma cadeia de significados de mercado na lógica do trabalho produtivo. É que entre os Achuar o trabalho não é concebido como entre nós e, portanto, o seu imaginário abre-se a outros campos de significação que são excluídos, ou são muito restritos nos nossos, estando ainda presentes no mundo rural tradicional, não esquecer. Ele não se divide no jogo tecnologicamente previsível das atividades de transformação do mundo natural em função exclusiva dos interesses e das necessidades dos humanos. Ele é, antes, o resultado de um comércio permanente entre o mundo social e o mundo de natureza incorporado à sociedade, e um mundo natural e supranatural dominado pelos espíritos com os quais é necessário entrar em comunicação; aos quais é indispensável seduzir favoravelmente, constranger, tornar propiciatórios. E não apenas por meio de performances de sentimentos individuais, mas, sobretudo, por meio de técnicas simbólicas apropriadas. E acontece que os direitos de uso, assim como os saberes de seus ritos, são tanto uma atribuição masculina quanto feminina. Mais, são, como na caça, uma atribuição simbólica feminina que se resolve no resultado esperado de uma atividade prática masculina. Isto é, dentro de urna seqüência de atos que realizam uma forma complexa de relação com a natureza, como a caça, a pesca e a agricultura (acrescentemos o criatório de animais de uso clornéstico e de venda, importante em nosso caso) e não fora cicia ou liminar a ela, estão seqüências sociais e simbólicas de ações de que dependem tanto o resultado efetivo da atividade produtiva, quanto a atribuição social de seu significado. Como algo que, reproduzindo fisicamente a vida biológica do grupo humano através de incorporar a ele o próprio mundo natural, constitui-se como a maneira mais "natural" e logicamente adequada de atribuição de sentido à própria 41

sociedade e à metáfora seus relacionamentos ininterrompidos com a natureza vivida e imaginada cotidianamente. Ao procurarmos compreender processos e divisões sociais de posições e papéis na cadeia dos atos do trabalho produtivo, resulta mais realista escaparmos dos limites da sua própria realidade mais visível e pensarmos o todo de uma ampla atividade, como a criação de gado leiteiro, em toda a sua complexa seqüência. Dentro dela estão o cuidado anual com o capim dos pastos, tanto quanto o trabalho do benzedor que, com gestos puramente simbólicos expulsa da propriedade as cobras venenosas. Estão os conhecimentos tecnológicos aprendidos com os veterinários da "Casa da lavoura", tanto quanto as antigas crenças, sempre reatualizaclas, que relacionam homens, santos, deuses e animais em um mesmo círculo de trocas e barganhas. Ao retornar dos Achuar ao mundo de Joanópolis, como que eu me defronto? Em primeiro lugar com a evidência de que, "aqui", o universo das atividades produtivas é bastante mais dividido entre homens e mulheres em alguns casos, e bastante menos em outros. Mas o trabalho sobre a natureza cada vez mais separa homens e mulheres nas atividades de menor importância, como a caça (hoje rigorosamente proibida e reprimida pela Polícia Federal), e a pesca, ao mesmo tempo em que os aproxima nas atividades de fato essenciais: a pecuária de gado leiteiro, o criatório de outros animais e a agricultura do grupo doméstico, seguida do beneficiamento caseiro de seus produtos destinados ao consumo familiar. Sem pretender tornar isto uma regra de separação absoluta, vejo que quase sempre as mulheres são poupadas do trabalho que implica o domínio e a destruição da natureza (derrubada de árvores, queimadas, perseguição e morte de animais) e convivem com ela através de modalidades de tarefas que sugerem mais a transformação de frações e seres do ambiente já parcialmente socializados, e a fecundação da natureza, pelo menos em seu sentido mais ancestralmente artesanal, mais individualizado e dotado de afetos e valores até mesmo religiosos. Os homens caçam. Na prática pública do passado, na prática furtiva e clandestina de agora, assim como no imaginário dos dois tempos, pouca coisa é mais "macha" do que a "caçada". Porque outras práticas deleitosas ou trabalhosas como a doma de um cavalo, a castração de touros, o jogo de futebol ou um rodeio de "Semana do Boiadeiro" podem e, em alguns casos, até devem ser realizadas diante de um público também de mulheres. Mas todo o ritual cia caçada é masculino e fora casos muito raros ele é integralmente realizado entre 42

grupos de homens e animais sem a presença de mulheres. Não conheço costumes ou rituais femininos sobre o assunto. Ao contrário, também nas montanhas cia Mantiqueira subsistem, aos fragmentos, algumas crenças antigas que relacionam o fracasso do caçador a poderes meléficos femininos, ao estilo descrito de forma admirável por Roberto Da Malta.3 De uma maneira geral, a caçada foi e segue sendo tão masculina que quase sempre os homens caçadores preferem eles próprios processar o corpo dos animais mortos, tratando da pele, quando interessa transformá-la e preservá-la, esquartejando o animal e, não raro, preparando a comida de suas carnes. Mas não era incomum que fosse dada às mulheres da casa a tarefa de preparar a comida da família com a carne de pequenos animais, principalmente as aves caçadas. Destarte, o trabalho de caçar reserva para os homens os campos mais distantes, as capoeiras e, sobretudo, as malas, como espaços masculinos, de maneira muito predominante. Em direção oposta a como acontece com a maioria das tribos indígenas das "terras baixas" das Américas, os homens do campo não "estão" na mata, não "vivem" nela e não obtêm dela (a não ser em casos muito raros em minhas regiões de pesquisa) nem bens importantes de uso e nem objetos de venda. Ao contrário, como eu descrevi em A partilha da vida, "viver no mato" qualifica desfavoravelmente o "bugre" (índio) ou o "sertanejo". Do mesmo modo como "viver do inato" desfavorece o homem do campo desocupado do trabalho doméstico produtivo e entregue, seja a um trabalho menos valorizado (coletar mel silvestre para a vencIa etc.) ou lúdico (caçar, pescar). Os homens cio campo, que se identificam como tal por viverem justamente no intervalo entre a mata (natureza plena onde as pessoas "vão', sem viver "lá") e a cidade (sociedade plena de uma natureza totalmente socializacia), invadem as florestas e "vão" a ela para o prazer da caça ou para a realização de um momento efêmero de trabalho fora dos pastos, fora cio campo e da lavoura. Os "matos", mesmo próximos e dentro do sítio camponês, não são tidos como um "lugar de mulher". Elas apenas se aproximam de suas bordas para "lenhar", "catar lenha"; isto é, apropriar-se de madeira seca e cm geral caída de árvores, para obter de sua combustão o alimento doméstico diário. A pesca é, menos cio ciuc a caça, uma atividade ainda masculina. A não ser sob certas circunstâncias, ela não é proibida como a 1

Roberto Da Mana, 'I'ariema" , in Ensaios de AntropolOgia Estrutural.

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caça e pode ser realizada em espaços muito próximos à própria casa da família, como um riacho vizinho ou, de preferência, um açude da propriedade. Menos aventureira e muito menos "macha" nos gestos e nas alternativas de perseguição e captura dos animais, a pesca é considerada mais útil, mas efetivamente produtiva. Tanto uma quanto a outra podem ser praticadas coletivamente ou de maneira solitária. Mas desde o passado da memória até hoje, a caça é mais coletiva e é vivida muito mais como um jogo entre vários atores do que a pesca. De outro lado, a pesca é uma prática bem mais simples e barata do que a caça e exige um conhecimento menos sofisticado, podendo ser resolvida de um momento para o outro. Não sei por que pelo menos a pesca caseira, de riachos e de açudes, nunca é pensada e exercida como uma atividade feminina, oposta à caça, ou, pelo menos, como um trabalho-deleite também feminino. Não falo da pesca dos grandes rios - raros na região - e nem de pescarias das canoas, mais distantes e mais aventureiramente perigosas e, portanto, mais associadas à caçada. Um simples olhar à tecnologia dos gestos de uma e da outra revelaria o quanto a pesca de anzol e mesmo a proibida pesca de tarrafa aproximam-se em quase tudo do domínio de conhecimentos e de manuseios que as mulheres exercitam em outras atividades da casa e, sobretudo, do quintal. A delicadeza do trato com os instrumentos e mesmo com o peixe que se captura; a quietude caseira do ambiente e a ausência de repentes de risco, que tornam a caça um jogo semelhante à guerra e fazem da pesca costumeira um silencioso combate entre seres - o peixe e a pessoa - que em geral somente se vêem quando o animal é capturado e posto fora da água, num breve rito de passagem fatal para o peixe. As mesmas mulheres camponesas que nunca caçam, raramente pescam. Poderão acompanhar 'os moços do lugar", quando moças também. Poderão ir a urna fácil pescaria próxima, acompanhando pais ou maridos. Mas afora situações em que o deleite do esporte campestre transforma-se no dever imediato de prover de carne a refeição da família, dificilmente uma mulher será vista pescando sozinha. Urna razão associada apenas ao risco da pessoa predadora pode valer para o caso da caçada, pois ela obriga ao uso de armas de fogo, ao deslocamento a locais distantes, nas florestas. Mas é difícil imaginar a mesma coisa para o caso da pesca, que fora os casos citados por mim (pesca de canoa, pesca à noite e pesca em locais perigosos de rios e lagos), não é sugerida na Mantiqueira como uma atividade de risco. 44

Um motivo vinculado à ética dos gêneros poderia caber melhor, pois sabemos todos que entre as pessoas do campo não há lugar à mulher nos espaços do mundo natural associados, ao mesmo tempo, ao lazer rústico e aos perigos da própria natureza. Uma esposa e suas filhas podem ir "lenhar" na beira dos matos e nas capoeiras de perto da casa; podem ir lavar roupas ou mesmo fazer uma pesca rápida e utilitária perto da casa e "à vista de todos". Mas assim corno os banhos de rios e açudes são apenas agora, nos últimos tempos, controladamente permitidos às moças dos sítios e interditos ainda às mulheres casadas ou solteiras adultas, do mesmo modo qualquer tipo de prática deleitosa nos domínios do mundo natural é bastante malvista e é interdita a qualquer "mulher de respeito". Mas uma outra razão pode e deve ser lembrada. Tal como provavelmente aconteça com os Achuar de Philippe Descola, ela é a menos respondida quando pergunto às pessoas sobre a ética dos espaços e das práticas da vida emJoanópolis. Por ser a mais esquecida, talvez seja a mais rigorosamente impositiva. Também na pesca, onde peixes fisgados no anzol ou "apanhados" na rede são mortos por asfixia (ou a porretaclas, quando maiores, mais inquietos na agonia e mais perigosos, como os peixes com dentes afiados) são as mulheres afastadas cia morte. São elas as pessoas desobrigadas dos gestos individuais que matam, e reservadas ao processamento 15ôstenor do animal morto, no todo ou em parte. Pois assim também acontece no caso da matança dos animais domésticos. Mais no passado do que hoje em dia, mulheres matavam as aves do quintal. Mas este rápido exercício da morte é deixado a um homem, se ele estiver por perto e disponível. Das aves um animal de propriedade feminina entre camponeses tradicionais, não esquecer - para todos os bichos de maior porte, a "matança" é sempre um trabalho dos homens da casa, quando não é dada a algum especialista convocado para isto pelo dono do animal a ser morto: um porco, um carneiro, uma cabra ou um bode (publicamente), um boi ou uma vaca (clandestinamente); ou de um animal a ser "sacrificado" (morto por causa de uma doença ou um acidente, e não comido): um cavalo de estimação, um cão, um gato. Nas matanças usuais do porco doméstico cabe ao homem, ou aos homens da casa, o ato de matar. Cabem a queima da pele com fogo, a sua limpeza com água fervente (mulheres podem ajudar nesta tarefa), a abertura do corpo, a separação inicial das partes e o tratamento direto das carnes. Não é difícil e nem inoportuno aproximar 45

esta seqüência de trabalhos de morte, aos que foram no passado e são ainda, muito raramente, executados para o primeiro preparo de um terreno de lavoura conquistado à floresta: derrubar árvores vivas, queimar a "mata em pé" ou depois de derrubada, destocar, limpar o terreno para o plantio. Enquanto os homens matam, queimam, esquartejam, as mulheres da casa limpam utensílios e preparam lugares para as operações seguintes, em que começam a intervir: o tratamento cia gordura animal a ser posta em caçarolas no fogo e transformada na banha caseira; a separação e tratamento das vísceras e o preparo de torresmo, também no fogo.' Voltemos dois parágrafos acima. No trabalho cia agricultura, os homens respondem pelas tarefas dos extremos. Cabe a eles todo o preparo cio terreno para o plantio. No passado, sobre terras "virgens" de florestas, vimos que isto implicava a sua destruição violenta, com as derrubadas, as queimadas e as clestocas, a fim de que sobre a terra "nua" o terreno fosse arado para a semeadura. Hoje, sobre terras já conquistadas à floresta, as operações iniciais tendem a ser cada vez mais mecanizadas, e depressa os tratores substituem os arados de tração animal. As mulheres, que muito raramente participariam das primeiras atividades de preparo cio terreno, podem, ao lado dos homens, 'ajudar" a semear os grãos de feijão ou milho, ou de outras plantas de cultivo. A semeadura é mesmo uma das tarefas, ao lado da colheita e cio beneficiamento posterior dos vegetais colhidos, em que mulheres intervêm com mais freqüência. Aos homens cabe, finalmente, õ trabalho de comercialização do produto. Ficam eles, portanto, com as duas pontas cio processo: a mais voltadt ao domínio da natureza e a mais associada às estratégias de relações com a sociedade. A metade feminina cio grupo doméstico participa da agricultura de lavouras como urna "ajuda" aos homens. Isto foi suficientemente descrito em estudos sobre a pequena produção no país, e as idéias a respeito em Joanópolis não são diferentes, Pode ser atribuída a ela a responsabiliciacie cio trato das hortas, quando de consumo preferentemente familiar. Mas também ali é esperado que o preparo cio terreno para o plantio e os cuidados do cultivo toquem aos homens da casa. Não há uma outra atividade camponesa na qual a complementaridade diferenciada seja tão visível quanto a pecuária leiteira. Antes de conviver com as pessoas e os dias cio Pretos de Baixo, eu imaginava Ver a respeito o trabalho de tara Cecilia Pimentel Rolim

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que o limite cio trabalho feminino com os animais era o mangueiro dos porcos, onde homens e mulheres se dividem entre tarefas de cuidado muito próximas. Mas o mesmo princípio estende-se ao trato do gado, cuja importância para a economia dos sítios cia Mantiqueira é muito maior do que a de todos os outros animais, a menos que se leve em conta algumas poucas granjas especializadas e os raros sítios de criação de suínos em escala comercial. Todo ,o trabalho cio trato dos pastos e cio cuidado cio gado, ali, é essencial ou preferentemente masculino, Cabe aos homens, vimos a seqüência dos ofícios "brutos" com o gado e outros animais de grande porte (cavalos e burros). Eles os domam, os transportam, os castram, "ferram", curam de feridas e pragas, matam e sacrificam, Mas em número muito crescente, as mulheres da casa incorporam-se à "lida cio gado" nos espaços cio curral e, mais ainda, cio mangueiro. Esposas e filhas levam para aí a extensão de suas práticas em outros domínios da casa e cio sítio. Elas "ajudam" os maridos no curral, cuidam dos bezerros novos e tratam deles em casos de doença. Elas parlicípam cia ordenha das vacas, respondem pela higiene cio mangueiro (onde a atenção masculina é sempre mais precária) e realizam tratamentos mais delicados nos animais. Separadas cia morte, da violência sobre os animais (como no domar, no castrar ou no marcar o sinal da posse com ferro em brasa), elas convivem com os bichos cio curral de uma inaneira não muito diferente a como se relacionam com as pessoas. Lidando com os mesmos animais, os homens se reconhecem sujeitos dos atos mais animalmente naturalizados e, veremos, estabelecem sobre esta imagem rústica e pretensamente heróica um ethos épico de seu trabalho e de sua identidade. Reconhecem nas mulheres uma prática mais liricamente humanizada. Reaproximemo-nos de Descola. Existem lugares cio sítio, do bairro rural, dos espaços vizinhos, próximos e remotos cia natureza incorporada ao cotidiano, da cidade Joanópoiis) e de outras cidades, que demarcam uma lógica de domínios e presenças masculinas e femininas. Mas, se as mulheres, ancestral e atualmente, estão mais na cozinha cio que na varanda, mais na horta cio que no pomar e mais no pomar cio que na lavoura de milho; se elas convivem mais com as aves cio galinheiro cio que com os porcos e mais com eles cio que com o gado do mangueiro e, mais ainda, cio pasto, um olhar um tanto mais arguto poderia sugerir duas coisas importantes. Homens e mulheres estão juntos nos mesmos lugares e em tempos iguais ou diferentes, participando desigual e complementarmente do mesmo 47

complexo de atividades que, no seu todo, realiza a vida produtiva do lugar: a agricultura de cereais e a pecuária leiteira. De outra parte, vistas em toda a sua amplitude, tanto a agricultura camponesa quanto a pecuária de produção familiar desdobram tipos de trabalhos que vão algo além da seqüência usualmente descrita. Os cuidados com o leite obtido da ordenha, a fabricação de queijos, o cuidadoso trato de um pequeno bezerro enfermo desdobram o trabalho mais visível da pecuária leiteira. De igual maneira, a debulha, o armazenamento e o trato dos grãos de feijão ou de milho no paiol estendem por vários meses uma agricultura iniciada a cada safra com o repreparo do terreno: a aração, o gradeamento, a correção do solo e a adubação, tarefas antecedentes ao momento da semeadura. Sabemos que fora pequenas exceções, cabem aos homens os atos das relações extremas: a doméstificação primária da natureza e a comercialização dos produtos do trabalho familiar. Em uma direção, trata-se de incorporar, por uma primeira vez, uma porção do mundo natural ao ambiente cultural de relacionamentos entre uma natureza socializada e uma sociedade ainda razoavelmente naturalizada, tal comb as pessoas do campo se imaginam a si próprias e ao seu mundo de cultura, quando se coinpamm com 'a gente da cidade", ou mesmo com os seus =vizinhos "de fora". Trata-se de atualiza r u ri tal domínio humano sobre o ambiente. Transformar o domínio da floresta, onde a atividade camponesa resume-se à caça, à pesca e à coleta, no que as pessoas do Pretos de Baixo se vêem em uma máxima proximidace dos" bugres" ou dos "sertanejos" do passado, em territórios de ambientes socializados, .ntre pastos, terrenos de lavouras, novas matas de domínio humano (eucaliptais e pinheirais) e outros terrenos de uso social. Em outra direção, muito próxima, trata-se de manter as porções do ambiente conquistadas à pura natureza em um estado de permanente domínio. A "limpa dos pastos", uma das tarefas mais indispensáveis e mais duras, enquanto um tipo de trabalho atual, por ser uma das mais resistentes à mecanização e por realizar-se através de golpes fortes de foices sobre as "pragas do campo", poderia ser um bom exemplo. Dela - resíduo do trabalho antigo de derrubada das matas, sua metáfora presentemente mais doméstica - as mulheres estão sempre excluídas.

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18 de janeiro O

TRUCO, O RODEIO E A CAÇADA

Lembrança da Galícia. Em um terreno perto de Santa Maria de Viceso, Benigno catava toxos com a gadanha e Amélia também, Eu aprendia deles e tentava fazer como eles, mas não conseguia. Conversávamos sobre o que fazíamos. Benigno comentava o serviço muito mais rápido feito ontem por Manolo, o filho de Amélia, com máquina elétrica de roçar. "É mais rápido", ele me dizia em bom galego, "mas com a gadanha o serviço fica melhor; fica mais bem feito". A descrição enfadonha sobre a divisão dos trabalhos e dos espaços e entre homens e mulheres não acrescenta muita coisa, se não for trabalhada, ela própria, um pouco mais a fundo. É preciso sair da lógica das estruturas das relações e chegar mais perto de uma simbólica dos gestos nos relacionamentos, Estarei eu sendo convincente em acreditar que não faço uma sociologia dos gêneros no trabalho camponês, mas um preâmbulo a um exercício de chegar mais perto na compreensão de como os homens da Mantiqueira pensam, legislam e agem sobre/através da natureia? Entre a caça, a pesca, a pecuária e a agricultura, estou diante de dois pares de opostos (até quando?). Duas atividades pensadas e vividas mais como "diversão" elo que como trabalho, francamente masculinas e sinalizadoras dc urna invasão efêmera da sociedade do domínio da natureza (pois o melhor para caçadores e pescadores, mentirosos contumazes ou não, é que as matas e os rios permaneçam exatamente como estão ou, melhor ainda, regridam a um tempo do passado, quando eram mais "virgens", mais selvagernente naturais) contrapõem-se a duas atividades vividas e pensadas muito mais corno um trabalho do que como uma diversão; francamente relacionais e complementares entre homens e mulheres, e sinalizacloras de urna socialização irreversível de porções cia natureza como um ambiente. Como algo que passa de selvagem e inútil a rural e útil, ao incorporar-se pelo trabalho ao domínio ela cultura. Tomadas as duas últimas, absolutamente essenciais, enquanto as duas primeiras são dispensáveis, e no caso da caça, furtiva e clandestina, há uma outra polaridade importante. Sendo ambas partilhadas por mulheres e homens, e sendo o seu trabalho considerado como

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de domínio masculino, onde as mulheres "ajudam" prestando "serviços" complementares, cabem aos homens, de uma maneira quase exclusiva, os atos de trabalho que sugerem a sujeição do ambiente. Que envolvem o domínio do poder cio homem, a destruição redutora cia natureza, a transformação necessária à sua socialização, a força viril e a morte. Cabem às mulheres, de uma maneira nunca exclusiva, os atos de trabalho que apontam para a fecundação de uma natureza pré-socializada, a troca generosa entre uma esfera e a outra de relações, a regeneração do ambiente e os cuidados de sua preservação, a transformação de seus dons em bens de consumo familiar, o uso cio poder da força controlado pela intenção afetuosa e, finalmente, o renascimento, a vida. Dito assim isto parece formal e é preciso estar atento a uma evidente variedade de gestos e motivos em que algumas partes e momentos deste jogo fácil de opostos se quebram e se transgridem. Mas não é nisto que me parece estarem os funciamentos de fato humanos de uma ética cio ambiente entre os agricultores e criadores do Pretos de Baixo. Eu estou mesmo convencido de que existem certas lógicas diferenciais cio afeto; certas visíveis éticas rústicas cio sentimento e cia expressão cultural dos sentimentos, cuja compreensão poderia ser bastante mais fecunda cio que a de uma análise de sistemas de classificação ou de códigos lógicos de tipos de relacionamentos. Me veio a idéia de aproximar três práticas muito presentes na vicia e sobretudo no imaginário cia "gente do campo" da Mantiqueira. De resto, das pessoas e comunidades rurais por onde andei e ando, em Goiás, Minas Gerais e São Paulo. Falo cio truco, cio rodeio e cia caçada. Eis-nos diante de três exemplos paraciigmáticos de relacionamentos "machos" entre sujeitos do campo. E no que eles são "bons para pensar"? Ora; em que passando por códigos aparentemente diversos de relacionamentos, eles põem numa mesma trama de trocas uma ética de jogos e uma lógica de afetos e sentimentos cuja aproximação é muito intrigante. O troco é um jogo de baralho entre parceiros humanos ; o rodeio é uma disputa entre homens por meio de animais; a caçada é um enfrentamento sinuoso e silencioso entre o homem e o animal. No truco, a assistência de outros é possível, mas dispensável. Quando existe, nas casas, bares e locais de intervalo cio trabalho, é predominantemente masculina e constituída por parceiros-assistentes que "entendem cio assunto". No rodeio, uma platéia é essencial e é para ela que tudo se faz. Ela tende a ser cada vez mais feminina e uma

fração cicia pode especializar-se em um corpo de jurados (masculinos em maioria) que qualificam o desempenho dos contendores na arena. Na caçada, uma assistência é impraticável e francamente indesejável. Por isso, o truco se joga, o rodeio se vê e a caçada se conta, Em um outro momento, pois isto, em absoluto, não interessa agora, poderia ser fecundo relacionar o imaginário da faia dos homens a respeito cia caçada e cio rodeio, àquela em que se comenta, nas rodas de jovens solteiros e casados furtivos, as atividades sedutoras da "conquista" e cia realização sexual de suas trocas com as mulheres. Ora, se existe um elemento comum nestes jogos entre homens, entre homens por meio de animais e entre homens e animais, ele me parece ser uma espécie de experiência individual e coletiva de um ethos de afetos e de identidades, e de uma ética de sentimentos cujo valor é a exaltação dos traços cio ser que se imagina qualificar () "homem macho" cio passado e sua preservação no presente. Quem assiste a um jogo camponês de truco e o compare coreograficamente com os silenciosos, contidos e pretensamente civilizados jogos urbanos "de salão", terá cio que eu sugiro aqui uma imagem representada muito convincente. O "jogo de truco" é mais um confronto de rápida vivacidade do que de cuidadosa inteligência. As partidas são muito ligeiras e cada embate pode durar apenas alguns segundos. Bons são os jogadores que associam a sorte a uma percepção imediata cio que está acontecendo e jogam na mesa as suas cartas no mais breve tempo possível. Nada pior do que um parceiro lento, pois ele quebra o ritmo vertiginoso cio jogo. As relações são ardilosas e as pessoas não se enfrentam apenas pela lógica das cartas, dentro cio código do jogo. Elas tramam olhares entre parceiros, gestos sutis de engano, o ocultamento cia verdade, a trapaça consentida que, em seu melhor momento, surge no grito de: truco! E no confronto entre alguém que engana ou não, e seu contendor que pode apanhá-lo na farsa e vencê-lo, ao mesmo tempo em que elesmascara, com o poder de suas cartas melhores e a inteligente percepção cia fraude, onde pode haver a verdade, um gesto de ardil descoberto. Uma carta melhor "mata" uma mais fraca; uma boa jogada "destrói" uma outra, mais débil; um bom par "arrasa" o adversário. Joga-se aos gritos, gesticula-se com exageros, e nas grandes partidas, nos campeonatos absorventes, não é raro que um vencedor suba na cadeira. Tiros de revólver com pólvora seca eram, no passado recente, uma boa maneira de se festejar uina vitória. Tudo se comenta de uma maneira liminarmente agressiva, e um embate

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verbal, coreográfico em tudo, soma-se ao confronto relacional cio engodo entre os contendores e o combate formal cio jogo cias cartas. "A graça cio truco não é o jogo", sentenciava um exímio "truqueiro" ciejoanópolis, "mas é a brincadeira!". Isto é, nele não interessa tanto, como num embate de bridge (que nunca assisti e nem sei como é), o que objetivamente acontece como jogo formai entre contendores rigorosamente submetidos ao duplo código cio jogo e cie suas relações sociais circunvizinhas, mas, ao contrário, o que importa é o que ritualmente se vive ao redor do acontecimento cio puro jogo. A simulação coreográfica do troco não é tanto a de uma batalha onde os contendores se destroem através cia observância de preceitos cie uma ética irrepreensível, vivida entre inimigos. Ao contrário, tudo ali é uma cerimônia ativa e agressiva, regida pelo desejo cie vencer através do engano. Através cia imposição de um estilo de ser característico cia matreirice macha (o exato oposto do como os homens cio campo imaginam os ardis cia sedução feminina), da demonstração cia força simbólica com que se vence o outro por meio de uma associação entre a sorte das cartas e o poder convincente dos gestos relacionais. De uma maneira muito semelhante procede-se no rodeio. Mas há uma diferença. Os antigos e novos rodeios cias festas "de peão de boiadeiro" apeiam para uma ética de herói desnecessária no truco e diferente na caçada. Aqui não há propriamente pares de parceiros que se enfrentam a um só tempo, em um mesmo efêmero embate cie sucessivos lances. Há contendores seqüentes que, cada um a sua vez e solitariamente sobre um animai, procuram vencer todos os outros por meio cia ciemonstração pública de um desempenho perigoso e irrepreensível, avaliado por um corpo de jurados, submetidos todos a uni rigoroso corpos de regras cuja transgressão é bastante diesqualificaciora. Trata-se de demonstrar um poder exercício não sobre e entre homens contenclores, mas sobre animais: bois, cavalos e burros. Os "peões" cios diversos tipos de "provas" devem dar uma demonstração de força e destreza. Nada há que sugira o jogo ardiloso conticio no código cio troco. Animal e cavaleiro devem aparecer investidos cie uma grandeza e respeito mútuo, e o homem na verdade não derrota o animal, não o subjuga, a não ser nas provas de laço, secunciárias. Por um tempo devido ele deve manter-se sobre o cavalo ou o touro. Elegante e eticamente honesto, ele deve vencer-se a si mesmo. Deve oferecer uma solitária pública demonstração de suas ha-

biliciades, e ganha aquele que da maneira mais adequada possível subjuga o animal ao poder do corpo cio cavaleiro, por mais tempo. O contrário do truco, onde o sério e a galhofa, a regra e a transgressão regrada da regra convivem ao mesmo tempo nos mesmos sujeitos, nos rodeios das festas rurais há urna tendência, como a observei em um deles, no bairro cio Cancan, a separar, entre momentos e tipos diferentes cie atores, o sério-épico cio jocoso-lírico. Ao lado das provas de coragem, força e destreza, sempre há algumas "brincadeiras", como o "futboi", um jogo de futebol hilariante, com contendores humanos e bois e vacas no campo, e a "mesa cia amargura", onde dois lares de adversários jogam o truco na arena, com bois soltos que sobre eles avançam, vencendo o último a cair cie sua cadeira. Tal como em outros rituais cio catolicismo camponês, alhures descritos por mim em outros trabalhos, equipes de atores claramente cômicos e desregrados intervêm na atuação de devotosartistas sérios, ou atuam em seus intervalos, como OS "palhaços" das Folias de Santos Reis ou os cias Cavalhadas de Cristãos e Mouros. Mas tanto nas atuações sérias dos "peões" quanto nas dos atores cômicos (não raro os mesmos peões travesticios), o que está em jogo é um desejo masculino de vitória sobre o outro e a demonstração dada aos outros não apenas de uma civahdladie pessoal reconhecida, mas a de seu uso para submeter o outro, animal ou humano, para subjugá-lo ao poder de sua astúcia, de sua coragem, destreza ou força. Ao prémio em troféus, prendas (até mesmo automóveis nos grandes torneios, como o cie Barretes, em São Paulo), ou dinheiro, junta-se para o vencedor o direito à bravata. Que outra palavra mais adequada para traduzir a expressão ufana no sentimento de vitória "macha" sobre o outro, do que esta? Comum no vocabulário dos homens cio campo, ela traduz ao mesmo tempo algo condenável, quando exercida sem motivo, ou quando pronunciada em lugar ou situação não conclizente, mas também aquilo que se faz por direito, quando cie fato se é senhor de um feito reconhecível de demonstração de superioridade, como um jogador de truco, como uni peão de rodeio, corno uni experiente pescador, corno um notável caçador. Na caçada o embate sempre é, vimos, entre uma pessoa e um animal, ou entre grupos de caçadores e agrupamentos de animais (bandos de patos selvagens, de capivaras, de porcos cio mato e assim por diante). Até onde tenho conhecimento, a caçada difere cio troco e do rodeio por não comportar uma competição pública com regras de desafios e avaliações de vitórias e de derrotas. Mas em boa

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medida o seu princípio é o mesmo. O jogo ardiloso entre um ator (o caçador) e outro (a caça), regido pelos mesmos sentimentos culturalmente valorizados de coragem, artimanha, paciência, força e disposição de vencer e matar. Tal como praticada no passado, ela oscila entre a perseguição pura e simples de animais, com a ajuda de cães de caça, e a atração enganadora da presa através de "pios", por exemplo. Fora do alcance direto de uma platéia - mas depois serão muitas, por muito tempo as dos ouvintes de caçadores bem sucedidos - subsiste nela o desejo do domínio sobre o outro e de sua morte. Desde cedo os meninos são, como as meninas, criteriosamente treinados para aprenderem a reconhecer e fugir dos perigos do mundo natural. Os cuidados paternos recaem sobretudo nos animais peçonhentos: aranhas, escorpiões e cobras. Todos eles são mortos sempre que possível, e mais de uma vez assisti a cena em que uma cobra não venenosa era morta a pedradas ou a pauladas, como uma cascavel, uma jararaca ou uma coral "verdadeira". Mas na socialização dos gêneros, cedo as condutas são culturalmente diferenciadas. As meninas são condicionadas a evitar os perigos naturais não indo aos lugares onde eles possam estar, ou fugindo deles. Claro, isto vale também para a educação dos meninos. Mas desde muito cedo eles convivem com os seres e perigos da natureza próxima e, mais tarde, mais distante. Grupos de meninos pequenos aprendem a "brincar" com os bichos da casa, subjugando-os, maltratandoos. De insetos e animais maiores, eles lidam com a vida natural como senhores de seu mundo. Ninhos são assaltados, pássaros são caçados com arapucas ou são mortos. Tudo, todo o tempo, os conduzem a uma disposição caçadora que, mesmo quando não exercida mais tarde, virá a ser uma motivação permanente na relação com o mundo natural. A caçada formal é apenas um intervalo cerimonial de toda uma persistente cadeia de atos e gestos individuais e coletivos de domínio cio homem sobre todos os animais: domésticos (cães e gatos, cavalos e burros, porcos, bodes, carneiros, aves e outros), silvestres (pássaros, tatus, lebres e outros bichos "naturais" próximos ao convívio humano) e selvagens (cobras, porcos-do-mato, onças e outros animais tidos como perigosos, ou moradores em regiões de matas distantes das terras próximas de pastas e terrenos de lavoura). O aprisionamento, a doma e a morte de um animal constituem três situações, não raro seqüentes, experimentadas como alguma coisa entre o desafio e o prazer cio domínio. Várias vezes em São José de Mossâmedes, em São Luís cio Paraitinga, ou mesmo em Joanõpolis, testemunhei situações

de domínio de animais (doma de cavalos), de redução à domesticidade (castração de touros) ou de morte (de porcos e, mais cio que tudo, de reses) assistidas com um expressivo prazer por grupos de crianças e de adolescentes, sempre meninos, raramente meninas. Estas últimas quando eventualmente presentes em alguma matança, mesclavam de uma maneira muito eloqüente o prazer cia partilha no gesto cie domínio, com um horror diante da violência e cia morte. Há diferenças e mudanças e terei que voltar a elas. Não se aprisionam, submetem e matam todos os animais, nas mesmas situações, de uma igual maneira e com os mesmos sentimentos. Por outro lado, entre as crianças e os adolescentes dos bairros rurais de Joanópolis, encontro agora um número muito menor de apetrechos de captura e de morte de animais. Muito raramente vi caçadores juvenis ou grupos furtivos de meninos em busca de pássaros, Creio que três fatores em princípio devem ser levados em conta para uma efetiva mudança de sentimentos e de disposições que acredito ser universal. Primeiro, os efeitos não propriamente de uma educação ambiental, inexistente ainda nas escolas rurais, mas de um outro tratamento das relações entre pessoas e a natureza incorporada ao imaginário dos professores e levada por eles e pelos livros escolares aos estudantes das gerações atuais. Segundo, uma visível alteração cie imagens e de idéias veiculadas tanto pela "mídia" quanto nos púlpitos de igrejas. Terceiro, o efeito repressivo cia legislação ambiental e a maneira como as proibições de caça, pesca e devastação têm sido internalizadas pelas pessoas do campo, com ênfase sobre as crianças e os adolescentes. Seria adequado falarmos de uma certa feminização dos sentimentos e das motivações nos relacionamentos entre os homens e os seres do mundo natural? Em princípio, eu quero acreditar que sim. Mas quero saber relativizar esta idéia. Meninos do Pretos de Baixo, adolescentes, jovens, adultos e velhos, todas as categorias etárias de homens cio lugar, parecem preservar sobre o assunto a mesma carta de princípios e o mesmo mapa de afetuosas disposições de seus pais e avós. Mesmo agora, quando as figuras de padrão heróico dos sujeitos cio campo desaparecem cia vicia de todos e cio imaginário dos jovens e adultos-jovens, uma identidade de "ser do lugar", eia boa medida ainda mescla sentimentos e imagens de si caracterizados por uma honra masculina cujos traços procurei descrever em algumas páginas de A partilha da vida. O respeito dado a um homem atravessa a responsabilidade familiar por meio

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do trabalho, a incorporação em si dos valores de uma ética relacional camponesa, e uma ativa defesa da honra pessoal e familiar, traduzida em atos violentos, se necessário e, na fronteira, sempre vizinha de uma aceita bravata dos gestos realizados e das intenções futuras. No entanto, mudam alguns sujeitos e algumas relações, e é provável que os seres da natureza sejam os mais agraciados com isto. Menos animais dos campos e das florestas são aprisionados e mantidos sob cativeiro. As caçadas furtivas tornam-se excepcionais e sobre elas pesa agora a mistura do antigo orgulho épico do caçador, com a suspeita do gesto infrator perante a lei' de fora'. Menos vezes, animais domésticos ou outros são dados em espetáculos através do sofrimento, como nas brigas de galos. Vimos que nos rodeios a norma é que muito mais os humanos, atores, sejam submetidos ao perigo e mesmo a ferimentos graves, do que os animais. Neste sentido o rodeio é a antítese da tourada. Nos sítios e fazendas menos animais são criados com mais cuidado e, desde os "antigos", pouca coisa comove tanto a sensibilidade de um homem camponês quanto uma música sertaneja em que uma pessoa e um animal querido (cavalo, cão ou boi, quase sempre) sofrem juntos e se sacrificain um pelo outro.1 Uma disposição de relações mais pacificadas entre a sociedade e a natureza aproxima o etl]os de trocas dos homens de um padrão claramente mais feminino. A idéia de propriedade aos poucos substitui o pleno domínio por uma desigualada reciprocidade. A freqüência da morte cios animaisdomésticos é a cada dia bastante menor. Aves são criadas para a produção de ovos e em muitas casas os frangos mortos no sítio alternam-se com os que são comprados congelados nos supermercados de Joanõpolis. A morte do outro, o animal selvagem, silvestre ou doméstico, torna-se proibida, malvista ou distanciada; levada à cidade, a outros lugares e entre pessoas especializadas em seus ofícios. Nenhuma razão prática para essa tendência a uma disposição menos dominadora e prazerosamente destrutiva da vida natural explica a fundo a lógica do seu sentido. Estou convencido de que tudo não é apenas porque os animais selvagens estão protegidos por lei e os domésticos estão mais caros. Mesmo que estes e outros motivos próximos sejam importantes - e de fato as pessoas do Pretos de Baixo dizem que continuariam caçando se agora a "caçada não 1

fosse reprimida pela "Florestal" - é preciso considerar que todos os fatores econômicos e políticos somente se integram como mapas e modos de disposições sociais de relacionamentos, na medida em que a cultura local incorpora e atua sobre eles, ao mesmo tempo em que retrabalha os sistemas cognitivos de uma lógica clã natureza e de seus relacionamentos com a sociedade dos humanos, e uma semiologia ética das sensibilidades e disposições envolvidas em tais tipos de reciprocidades.

19 de janeiro JOSÉ FALA DE BICHOS

Mas, afinal, quais são os bichos? José Fernandes em uma conversa só deu-me um quadro dos bichos de "quatro patas" antes caçáveis e comíveis. Refaço a lista com algumas palavras dele: 1) Anta: "não tem mais, tinha antes, é de rio grande". 2) Paca: "tem ainda, faz trilho no mato; se caça de noite, na espera; é pequena e não pesa mais do que uns dez quilos, quando muito; carne saborosa'. 3) Capivara: "tem muito ainda nos rios; é o que mais tem, agora que não se mata mais; ataca as plantações de beira dos rios e derruba os pés de cana só pra afiar os dentes; a carne é saborosa quando se sabe tirar o cheiro que ela tem por causa de uma planta amarga que ela come; a carne e a banha purificam o sangue". 4) Tatu: 'tem muito ainda pelas roças; ele só escuta se ficar de pé nos dois pés". 5) Coelho e lebre: "tem muito; a diferença deles está no tamanho das orelhas; tem gente que come". 6) Sauá (um mico que pelas descrições parece ser como os das matas da Gávea, na minha rua de adolescência): "Quando ele não pode fugir do caçador, coloca as mãos assim, como se fosse rezar. Quem haverá de matar um bichinho assim?"

Vero notável artigo de José de Souza Martins, "Viola quebrada", in Capita115101) e tra (IICiOflZl 115100.

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Paulo estava roçando mato e clueimancio perto cia nascente de um riacho, quando foi" apanhado" e "multado no ato" pela "Florestal". O caso agravou-se. No ciia seguinte, os policiais voltaram com "ciois chefes" que constataram a infração e aumentaram a multa, muito alta e, de acordo com todos, ciada cie uma maneira muito arbitrária. "O castigo não demorou muito". No dia seguinte, passando de novo pela mesma estrada, o carro da "floresta" capotou e um dos policiais veio a falecer.., "e as pessoas daqui nem não queriam ajudar. Elas queriam mesmo que morressem os outros três, cie tanta raiva com o que eles fizeram com o Paulo". Parece certo que se proíba ciesmatar, derrubar os últimos "pinheiros araucária", matar os bichos da mata. Mas sucede que tal como aplicada, a "Lei cia Florestal" pune e prejudica as famílias de sitiantes e não molesta "os de fora". Há uma proliferação de capivaras e elas clizimam as plantações de beira-rio, porque a morte de uma

capivara é punida com uma tal multa "que um homem é mais castigado se matar hoje em dia um bicho do que a mulher dele". A natureza, em que e com a qual o homem do campo se sente convivendo diária e intensamente, é percebida como um contexto de espaços (urna mata, um rio, uma montanha); de lugares específicos e apropriáveis (um campo transformável em pastagem, uma beira cie rio fonte de pesca, urna nascente provedora cia água da casa); de seres (os animais e vegetais em suas espécies e em suas inclividualidades), e de situações (um tempo de chuvas, uma 'seca brava", uma tempestade) ao mesmo tempo benéfica e malévola. É a fonte da vida e do perigo. Sob condições historicamente diferentes (e seria muito interessante fazer com os cio Pretos de Baixo uma história cultural da natureza) eia sempre foi experimentada como dada aos homens: um "ciom de Deus" para todas as pessoas, ou uma dádiva de si mesma, ofertada aos humanos. Com poderes e sob condições diversas, os homens podiam vivenciar a natureza corno o lugar cio exercício legítimo de seu domínio. Podiam decidir sobre ela em "benefício próprio". Podiam lidar com os matos, campos e rios corno senhores, por direito divino ou natural. O mundo natural era, então, duplamente próximo dos humanos: ele os envolvia diretamente C ele lhes pertencia. De uns 20 anos para cá (as datas são variáveis), o mundo de natureza tornou-se uma espécie de "lugar retirado" em um duplo sentido. Foi deslocado para mais longe, desde que se o considere como a porção conhecida ou imaginada do ambiente ainda não incorporada à sociedade. Ele foi retirado, tomado dos homens cio lugar como um cenário de direitos, e tornouse um espaço dado ao dever de preservação por responsáveis agora não mais usuários, pelo menos no sentido tradicional dado às utilizações camponesas cio meio ambiente. Trabalho um pouco mais estas idéias. Quando os homens e as mulheres do bairro dos Pretos pensam o que sentem ou o como se vêem relacionando-se com plantas, animais, situações e cenários cie seu inundo natural, eles tendem a acreditar que as razões compreensíveis desses relacionamentos -- muitos deles rotineiramente cotidianos e parte da experiência corriqueira "de qualquer um diaqui" - estão contidas neles próprios, os seres humanos. Estão contidas nos seres dia natureza, sujeitos de trocas não humanamente sociais, mas culturalmente socializáveis. Estão, finalmente, no próprio acontecimento das relações, no seu todo e em cada caso, estabelecicias entre tipos de pessoas e categorias de indivíduos dia natureza.

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20 de janeiro A

LEI DOS OUTROS

Vilário, velho manco de chapéu de comandante de navios, perguntou-me a hora, da beira da estrada. Caminhamos um trecho do caminho acima. Ele conta que nasceu na Fazenda cia Laje, divisa de Minas Gerais, de um tal coronel Figueira. Mora um pouco para cima cio bar cio João Batista. No caminho do Salto dos Pretos, pouco depois de deixar Vilário e passar pela venda cio Pretos do Meio, topo com Paulo, criador de vacas. Sob os meus olhos ele vende nesta manhã 58 litros de leite. Conversamos quase uma hora e ele contou de uma multa que "tomou" cia Polícia Florestal por haver sido "apanhado" roçando capoeira e queimando o capim e as pragas das margens de um riacho perto cia casa. "Como não roçar? Como não queimar?" ele me pergunta, "se aquilo ali é lugar de criame de cobras, bem perto da minha casa?" E diz: "Deste último presidente que saiu pra cá, a lei é muito dura e foi endurecida." Mas ele, a esposa e muitos falarão cie "um homem, Lúcio, não sei, ciono de 500 alqueires cie terra; rico e influente. Ele está desmatando 16 alqueires de mata virgem pra plantar o eucalipto. E com ele ninguém faz nada". A um desvairado amante de matos como eu, a história cia "muita cio Paulo" foi contada cie maneira mais completa, na mesma noite, na vencia cio bairro.

Não se mata um porco na Quinta-Feira Santa e não se come a sua carne na Sexta-Feira Maior porque, de um ponto de vista da religião acreditada, esses não são dias apropriados para isto. Não se deve poluir a água de um riacho porque ela é útil a todos em seu estado de natural pureza, e os direitos de "todos os vizinhos" devem ser por igual respeitados. Não se mata um filhote de animal selvagem (fora os peçonhentos e de maneira especial as cobras e os escorpiões) porque ele é pequeno, um pequeno ser vivo, sujeito dc uma família animal que merece viver e crescer. Não se mata um sauá (saá, sagüi) porque diante do perigo iminente ele junta as mãos como em prece e parece implorar, como os humanos, pela sua vida. Não se deve caçar capivara porque isto, "de uns tempos para cá", é proibido por lei e é severamente punido, embora ela dizime os milharais. Nunca se mata um boi ou um porco, a não ser por precisão de transformá-lo em alimento ou mercadoria e, de modo geral, o mesmo princípio deveria ser estendido aos animais de caça. Não se abusa de um burro ou de uin boi de carro porque, tanto quanto um cavalo ou um cão, eles são animais úteis aos homens e entre eles e os humanos que os utilizam devem existir afetos e éticas de trocas que transcendem a própria utilidade. As pessoas dos sítios acreditam também que com o passar dos vários tempos do tempo - o tempo da história, conhecido através clã escola, da televisão e de outros meios coletivos de informação; o tempo da história vivida "do lugar"; o tempo experimentado como a própria biografia de cada pessoa - as condições sociais e algumas normas dos códigos das trocas entre sociedade e ambiente mudaram: algumas cm muito pouco; outras de uma maneira perceptível e com desdobramentos efetivos; outras, na sua quase totalidade. Um mundo envolvente de unia natureza antes mais selvagem e hostil, mas, igualmente, de uma maneira generosa mais próxima e ofertada a todos, tornou-se no decorrer dos últimos anos mais distante, mais desigualmente desfrutável e mais restrita, do ponto de vista dos direitos de apropriação de parte de seus mais eminentes e tradicionais agentes de significação e de transformação útil e adequada: as pessoas do campo, "a gente da roça". Ora, em parte tudo isto se deve a mudanças em diversos domínios da própria natureza. Não faltam citações bíblicas em que as perdas de qualidade do mundo natural são profeticamente antecipadas. Em parte, em partes maiores e mais claramente identificadas e definidas, isto se deve ao efeito desastroso de modalidades de ações inadequadas do trabalho

humano sobre o mundo natural. Finalmente, em parte, as mudanças são compreendidas como francamente sociais (políticas, jurídicas, pedagógicas, policiais) e, estabelecidas como novos códigos entre os homens, elas atingem os princípios de direitos-deveres de categorias de pessoas sobre a natureza. Assim, em toda a região de serra-acima, houve um tempo em que, "naturalmente", havia uma concentração muito maior de pinheiros araucárias. Havia um livre acesso a eles e havia também um conjunto muito maior e mais imediato de utilizações da madeira dos pinheiros. Havia um sistema de preceitos exclusivamente interno para o usufruto dos pinheiros e as questões a respeito eram resolvidas entre as diferentes pessoas do lugar, o que não significa um esquecimento da diferença de direitos de propriedade, de acesso e de determinação dos princípios locais de relações de direito-dever na apropriação da natureza. Havia uma tecnologia rústica difundida que se associava a uma vasta disponibilidade de recursos naturais para sugerir uma visão cultural da natureza fundada sobre a abundância disponível de recursos, em face das limitações sociais e tecnológicas para a sua apropriação. Mais do que apenas um pacto social entre diferentes categorias culturalmente aproximadas de sujeitos de vida rural, regido por teias e tramas de regras e princípios de socialização do mundo natural, houve, no passado, de uma maneira reconhecida como muito mais consistente do que nos dias de hoje, todo um sistema complexo de classificação de seus seres, de significação da natureza e mesmo da sociedade por meio dela, como =sistema de interpretação do significado da vida e da natureza composto de vários princípios aceitos não porque eram impostos, ainda que os seus valores e preceitos fossem uma parte substantiva de uma endoeducação camponesa, mas porque podiam ser consistentemente acreditados. Não há de ser o objetivo de meus estudos um mergulho em tais sistemas culturais de classificação de domínios e de interpretação camponesa do mundo natural, pois o meu propósito aqui é muito mais a compreensão de alguns princípios de uma ética do ambiente entre camponeses. Compreende-se que nos dias de hoje alguns termos nucleares das relações natureza—sociedade foram muito mudados e, em certos casos, invertidos mesmo. Os recursos naturais necessários à reprodução da vicia rústica estão sendo esgotados ou estão tornandlo-se menos adequados (mais fracos, menos férteis, mais poluídos), diante de uma tecnologia de domínio e de apropriação muito mais poderosa

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e avassaladora: a reconhecida utilidade da "motosserra", o horror camponês diante dela, considerada por muitos como "a pior arma que existe,, . Unia vertiginosa tecnologia de controle cio mundo na tuial associada na cronologia dos últimos anos e uma múltipla e evidente piore das condições naturais de prociuço camponesa e. de leprociuçio social de um modo de vida tradicional, associa-se 'eincl'e a Lima compreensão de que. 'e lógica juriclico politic-e cii sociedade envolvente conspira em urna dupla direção contra as pessoas cio mundo rural. ei Primeiro ela soma aos problemas sociais da piociuçio clã agricultura e. da pecuária familiar, Lima série de neov'eiores e códigos externos que estendem de uma m'enell'e no compreensível es proibições de acesso e uso dos recursos cia natureza 'e limites inaceitáveis. Segundo: ela reinaugura uma desigualdade de direitos e deveres aincia mais inaceitável, pois enquanto, de uma maneira sentida como crescente, acrescenta interdições e invade o mundo rural de punições e de agentes de controle arbitrários, parece dar aos "de fora", aos "ricos", os direitos outrora percebidos como "de todos" e hoje proibidos aos homens cio campo. Existe um vago e confessado sentimento de que, em boa me~ clicia, novas regras de controle cio domínio humano sobre o ambiente natural são justas e mesmo necessárias. Há uma clara consciência de que elas podem servir ao controle de atos que, em sua seqüência costumeira, colocariam de fato em risco o equilíbrio de poder de dádiva da natureza. Mas o que as pessoas do Pretos de Baixo questionam é a cviciência, cio Ponto de vista de suas experiências e cia interpretação que eles fazem cicia, cie que, em nome cia reconquista de um estado de harmonia entre a sociedade e a natureza (de que uma neo-abundiãncia de recursos é apenas uma entre outras promessas) seja reforçada uma desarmonia de direitos entre categorias de agentes tradicionais, rústicos, camponeses e, de outra parte, antigos e novos "chegantes de fora", vistos, vimos, como ricos e poderosos. Sujeitos, que amparados pelo banco, pelos políticos, juízes e a polícia, são percebidos como invasores não éticos destinados ao sucesso e ao progresso, porque chegam com o poder que justifica uma ética de trocas entre pessoas e entre as pessoas e o mundo natural, fundada em princípios ilegítimos, segundo uma leitura dos homens traclicionais do campo, ou interdita a eles:

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21 de janeiro O

AFETO DA TERRA

Não sei se mais nos "antigos" do que nos de agora, o fato é que preciso submeter toda a disposição simbólica e socialmente ativa .e demonstração agressiva de "macheza" entre os homens do cam o, a pelo menos um dos seus opostos. Eu não encontrei um nome elhor para ele do que o que acabou dando o nome a este dia e ao latório de campo em joanópohs no seu todo: o afeto cia terra. Chamo Ze. Tonha não claque mas de C etuç eb'e cm São Luis cio eraiting e na serra do Mar, para o testemunho desse afeto, Muitas ezes durante todo o tempo da pesquisa de A parti/lia da vicia, eu ia onversar com ele na sua casa de beira de estrada, na saída cia vila m direção ao bairro do Chapéu Grande. Ou nos encontrávamos em igum dos bares de Catuçaba onde ele, pouco dado à bebida, ia nas irdes de sempre em busca de uma mesa de truco. Quando uma vez erguntei por que ele, já aposentado cio FIJNIWRAL e a caminho cia elhice, dedicava horas do dia a trabalhar no quintal ou mesmo em :erreno dos outros" com a enxada, ele respondeu de uma maneira iferente. Não deu a razão econômica, subsistente, usual. Planta-se uando se pode porque, mesmo quando o dinheiro que se recebe e. outras fontes e. bastante para a vicia do grupo doméstico, i co eicl e (o mantimento) obtida cio plantio direto economiza o dinhe.i ) que se poupa, ou que pode ser empregado em outros bens. Ele spondle u que plantava porque havia feito isto a vida inteira e tocai e gosto pelo oficio Lu já havia ouvido a mesma coisa dita por utros vários velhos. Mas ele disse mais. Ele disse: "é que eu sou euito amoroso com a terra, eu tenho um grande afeto por ela". Os Kemplos que ele foi dando foram deixando claro que a sua imam cia terra era muito concreta. A "terra" cio afeto de Zé Tonhá é a rra próxima, física, qualificável segundo um código de atributos aturais avaliados pelo seu poder de produção, A terra real sobre a Leal se trabalha; a terra em que se planta. Muitos anos depois o velho José Fernandes andava comigo nos orros do sítio no Pretos cie Baixo, e repetia, de outra maneira, a esma coisa. Ele me mostrava a vitalidade das plantações consorciaas, fazia considerações sobre a qualidade invejável das terras de seus orros, pois as lavouras eram em locais íngremes, estabelecia presões muito favoráveis sobre as colheitas esperadas e afirmava, 63

enfim, um sentimento motivador da disposição de "lidar com a terra" todos os anos, que ele mesmo reconhecia estar além da necessidade de prover de alimentos o paiol do sítio e a dispensa de dona Bernardina, e cia obrigação camponesa de transformar em mercadoria o restante das safras e transformar em reserva de dinheiro e compra de outros bens o produto sazonal cia agricultura familiar. Há um prazer fecundante que torna parceiros de uma relação amorosa o lavrador e a terra. Eu reconheço que neste enlace de afeto está o desejo de tornar "culturalmente" culto o inculto, civilizado o selvagem, socializado e útil aquilo que, dado pela natureza ao homem, somente parece completar o ciclo de seu valor quando transformado de floresta em campo, de campo em terra de lavoura, de terra de lavoura em lavoura plantada e colhida. Isto repetiram os autores de história, ingleses e franceses que me têm acompanhado até aqui, e esta idéia é bastante clara em Keith Thomas, Há um visível enunciado de vocação judaico-cristã, que sugere ao homem de trabalho o próprio trabalho como o complemento humano da 'obra da criação". Mais cio que o castigo imposto pelo deus acreditado no campo ao inocente pecador Adão e a todas as suas gerações de homens de lodos os tempos, a razão do domínio agropastoril sobre o mundo natural é ao mesmo tempo a forma mais humanamente nobre e essencial de trabalho e o espelho mais visivelmente verciacieiro cia evidência de que o homem toma a seu cargo e completa uma ciornestificação cio mundo iniciada pelo deus de todas as coisas, entregue a homens e mulheres. Pois nesta empresa de tornar trabalhosarneite fecundo o que é naturalmente fecunciãvel, desde que o homem faça a sua parte, participam ele, como o autor cuja ação devolve a própria terra a Deus, o mundo de natureza com todos os seus elementos e, entre todos, a água, e, mais cio que tudo, a própria terra, o chão cia vida, o palco OU o solo cio palco onde tudo e todos firmam os pés e o corpo dos gestos cio drama da humanização cio mundo natural. Mas há um terceiro autor-ator e me espanta que ele não seja incorporado à carta de sujeitos e trocas cio trabalho agropasioril, uma vez que no imaginário de seus atores humanos ele em momento algum é esquecido, seja como poder invocado, seja como força personalizadi2l e seguidamente enunciada nas respostas a unia entrevista : a própria clivinclacle. Pois a não ser em situações muito raras, a natureza é percebicia como agindo por conta própria, como se suas energias e matérias postas em comunicação com os humanos através do trabalho e

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de suas variantes, não estivessem subordinadas a uma vontade onipotente e em tudo externa a eia mesma. As faces e pessoas do deus cristão estão sempre sendo associadas não apenas a um momento inicial de criação "de todas as coisas", culminadas no próprio casal primevo de humanos, mas a todos os acontecimentos de atualização da ordem natural do universo reconhecido corno existente e dado ao homem. É estranho, mas compreensível, que o lado de pecado das pessoas seja associado à trama de seus defeitos e à sempre possível atuação de forças e pessoas extraterrenas demoníacas. Não esquecer que, entre os pentecostais, a presença intensa e ferozmente motivada cio demônio e seus sequazes (eles são "multidão"), sobre os homens, individual e coletivamente, tem sido de novo muito acentuada e, entre outras críticas feitas por eles aos católicos, é o perigoso esquecimento dos poderes infernais no mundo e sobre as pessoas um dos maiores erros convertidos à igreja das comunidades de base e da teologia cia libertação. Mas não quanto ao mundo natural. Dele as forças cio inferno são retiradas. Ainda ciue uma grande seca ou enchente desastrosa possam ser associadas a um castigo divino por causa de erros humanos, todo o mal imposto aos homens através cia natureza é, no varejo, resultante de desequilíbrio cio próprio ambiente e, no atacado, o resultado cia vontade de Deus corno um momento de aviso dado aos homens através cio mundo natural apropriável ou circundante a ele. De uma maneira vizinha, a quebra de harmonia cio mundo natural e o crescente e visível deterioro cia fertiiiclacie cia terra, são o resultado de ações inadequadas motivadas pela ambição dos humanos e não corrigidas historicamente pelo poder de Deus, pois elas próprias são um sinal visível de uma antecipação prevista cio "final dos tempos". Sei que preciso tomar cuidado para não escrever sobre isto de uma maneira subjetiva e piegas. Mas, ao pensar o lado de dentro dos modos de ser e imaginar um mundo de trocas através cio trabalho, se a face cio afeto, das sensibilidades ditas e vividas no coticliano não for levada em conta, o lado talvez menos sociologicamente reconhecível, mas o também mais socialmente vivo, poderá ficar não revelado. Como esconder que entre os velhos homens cio campo a terra é amacia? Como não dizer que eles dizem isto, e subordinam as respostas às perguntas mais operativamente práticas e consensuais a este estofo interno; a esta face nunca facilmente confessável do lado inferior das lógicas e das éticas cio mundo rural? Somente entre

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os produtores já muito modernizados, já bastante separados de um contato corporal e rusticamente rítualizado entre a pessoa do produtor agropastoril e a terra, e a água, e as pedras, ventos e árvores, entre ele próprio e os "seus bichos", urna carga de sentimentos para além cia utilidade e interesse começa a ser, também eia, pragmaticamente relativizacia e substituída por um sistema de valores regido por uma lógica que retira da natureza para o mercado e das trocas entre os homens e seus seres para os homens e as suas coisas, a tessitura dos afetos, o poderoso mistério das lembranças e a força dos sentidos das virtudes rústicas que costumam compor a épica cia cultura e a lírica cia vida cio campesinato. Vejo e verei ainda, dias seguidos, que o entorno cio ambiente é de fato vivido e representado sempre em função de suas diferentes alternativas de apropriação, transformação e utilidade, na socialização motivada do mundo natural. Mas também tudo isto passa por um sutil tecido de sentidos e de sensibilidades a que até mesmo as regras dos ganhos econômicos se subordina, pelo menos em parte. Às vezes, em urna boa parte. Lavrador "na meia" em terra alheia, Zé Tonhá tinha pela terra em si e, a cada vez, pela terra onde plantava, um afeto que na prática transformava o trabalho cio lavrador em uma mescla entre ele e o deleite. Arar a terra limpa, "nua"; ver saírem cios grãos as mudas de milho, de feijão; espreitar no céu os sinais cia chuva e alegrar-se de vê-Ia quando regrada, "em boa hora"; estabelecer a ordem da lavoura em cada "limpa" e, como um ser de supremo poder, separar com ela "o bem cio mal"; realizar na colheita, para si mesmo, para os cia família, para os "outros", o instante entre o milagre e o esforço bruto, de urna síntese quase perfeita dos tempos entre a semeadura e ela. A pequena e invejável glória de uma ancestral Cumplicidade entre o homem e a natureza próxima, entre a inteligência cio trabalho rústico e a sábia resposta cia planta através das virtudes cia terra. Não vejo concessão alguma à retórica no que estou escrevendo. Em uma outra linguagem, toda esta seqüência de momentos fecuncios cio trabalho com a terra é dita e redita pelos homens do campo. Claro, com mais ênfases de afeto quando a terra é "própria". Mais ainda quando é um "bem de raiz" e atravessa gerações de homens, seus donos e seus amorosos cúmplices e servos. "O trabalho de meu avô e o cie meu pai estão enterrados nesta mesma terra onde agora eu planto", dizia um homem de Catuçaba. A frase poética é civase um lugar comum no campo.

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Não é somente isto. Como o bom artista que sabe de seu valor juando vende os seus quadros a troco de pratos de comida e cles.Ienha com um justo orgulho o empresário imbecil que recusa os seus rabaihos, o trabalhador do campo - sitiante, arrendatário, parceiro DU camarada - reconhece sempre que, mesmo relegado a um cies.endente lugar de pequena importância social e econômica, o seu rabalho e o cia terra geram o único bem de trocas verdadeiramente nclispensável. Há um ethos camponês cuja encruzilhada simbólica atravessada pelo reconhecimento de um menos-valor atribuído pelos outros versus um inquestionável mais-valor de auto-atribuição. De todos os trabalhos feitos com a sensibihciade, a inteligência a as mãos, nenhum é mais essencial e também mais sagrado (por que motivo evitar esta palavra aqui?) cio que o ofício de lavrar. As imagens com que compara os seus dias e ofícios com os cios outros, trazem para o lado dos seus labores uma das únicas experiências ativas em que seres vivos e vívificadores de lado a lado interagem para recriar não menos cio que isto: a vicia. O pedreiro, o carpinteiro, o serralheiro, os outros ofícios vizinhos e reconhecíveis, são vistos como realizados entre um artífice e frações de matéria viva tornada inerte, dada a ser transformada. Mas o homem CIO campo sabe que lida com espécies de forças e matérias vivas. A própria terra é percebida como um campo benévolo de seres vivos e materiais revivificaciores. Algo que não apenas se clã ao homem e é apropriado por ele para os seus usos, mas que reage a ele. Que interage com o trabalho do lavrador e exige cicie mais do que apenas o próprio trabalho. Uma parte importante cia idéia de que em princípio a terra como a vida - é um dom de Deus e, por isso, possuíla como um bem de troca vazio de uso amoroso é um erro que a sociedade aprendeu a suportar e, depois, a reproduzir, como tantos outros, tem a ver também com esta compreensão) de ser a terra e serem as variantes e os habitantes naturais cia terra, entidades dotadas de uma disposição a urna variável tessitura de trocas, de diálogos entre eles e os homens, sem outro paralelo em todos os planos por onde o homem se move por meio do seu trabalho.

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22 de janeiro MALHAR O TRIGO, MALHAR O FEIJÃO

Do mesmo modo como em Orns, em Santa Maria de Oms, na Galícia, aqui no Prelos de Baixo uma equipe de homens e mulheres atrela a máquina ao trator e bate" o feijão das águas. Lá "malhavase o trigo' e eu participei deste trabalho-efesta mais de uma vez. No morro à beira da estrada e do rio Cachoeira, cujo alto salto daqui quase se avista, todos fazem um mesmo trabalho coletivo destinado a um mesmo fim: separar cia cápsula natural do feijão os seus grãos secos e ensacá-los, completando o processo da colheita. Tomando a máquina como um elemento de separação, uma meia equipe trabalha cio andaime de feijão ao chão a seu lado; outra meia equipe trabalha cio chão à máquina e cicia ao saco. A primeira tem a seu cargo uni trabalho de força bruta: arrancar do andaime de madeiras e bambus, como se fosse um imenso ouldoor da natureza, molhos de pés completos e secos de feijão colhido de 8 a 15 dias antes e Postos ao sol para secar, trazê-los para perto da máquina atrelada ao trator, colocá-los no chão pronto a serem processados A metade complementar cio trabalho realiza a sua parte à volta ou mesmo sobre a máquina, ruidosa, áspera. Trepado junto ao banco cio trator o dono de safra recebe das mãos de um outro os molhos da planta. Ele os introduz na boca cia máquina voraz e os empurra com um pau seco, rijo. A máquina de debulhar traga os pés cia planta e separa no seu interior os grãos claros de sua casca e do restante cio pé ressecluicio. Tudo o que não são os grãos sai com força de uma chaminé horizontal na ponta cio aparelho, como uma nuvem de partes e detritos. Os grãos úteis saem por uma espécie de boca invertida, que delicada e depressa os vomita até a borda de um saco que uma outra moça uma das filhas do dono - parceiro cia roça de um alqueire de feijão apara com cuidado. A outra irmã trabalha com os rapazes no andaime e as duas, com os cabelos escondidos sob bonés, parecem de longe rapazes, elas mesmas. Quando quase se completa uma saca que, cheia, chega a pesar 70 quilos, a moça avisa ao homem que levanta do chão ao que está na máquina os molhos da planta, e ele ajuda-a com rapidez a trocar os sacos. Uma outra dcciica-se a costurar com uma (lura agulha de aço a boca dos sacos que por perto vão sendo espalhados a um dos lados do trator.

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Da mesma maneira como em Oms, o barulho infernal cia máquina profana um delicado, mas coletivamente apressado rito com que o grupo familiar e seus vizinhos e parentes convidados ou convocados, encerram um ciclo de trabalho com a terra. Mas lá como aqui, há nos gestos, na brincadeira das falas, nos olhares, um pequeno ar de festa. Resíduo de que ritos com cine em outros tempos, aqui corno lá, comemorava-se durante e depois o trabalho vitorioso cia colheita, a evidência de que uma natureza cúmplice devolve aos homens não o que ela produziu, mas o que eles fizeram com que ela produzisse? Vindo de lá há poucos dias mais cio que um mês, se eu fecho os olhos para o que vejo, revejo então o que vi. Na "maila cio trigo", assim como no "ensillacio cio milho", os detalhes cio cenário e o drama doméstico dos personagens são quase iguais às cenas dos homens e mulheres do feijão aqui no bairro dos Pretos. Também aqui uma máquina devora, vomita e separa com gritos de fúria os grãos do resto, menos no caso do "ensiliacio cio millo", quando a planta toda é picada e empilhada sob a terra e uma lona negra para ser, depois, aos poucos, dada ao gado de leite. Os galegos não comem nada do milho e destinam todo ele, verde e moído, seco e em grãos, ao trato dos animais. Quando não há máquinas que ciebulhem ou triturem, aqui como lá - mas com muito mais freqüência aqui cio que lá - "batia-se" o feijão e "malhava-se" o trigo com as mãos, a golpes de varas e macieiras. Era então um tempo em que acluele era um trabalho de ritos com cantos e gestos entre o ofício e o bailado.

23 de janeiro SOBRE DÓ, TER DÓ, TER PENA, TER PENA DE

Foi quando uma mulher falou dos graus de "dó" que ela sente pelos diversos bichos, que eu despertei para uma outra maneira cie pensar o valor cio sentimento nos poderes, usos e destinos entre as pessoas e os outros seres vivos cie seus mundos; de suas vicias. Dado que a caça hoje é um desejo reprimido e um "malfeito", havendo sido antes livre e enobrecedora e sendo agora interdita e ambígua, pois eis que preserva sua figura épica e aventureira, mas 69

hoje associada a alguma coisa esquiva e, tal como as fugas amorosas dos homens casados, algo de que um homem se gloria em um círculo restrito de comparsas, mas se envergonha, se o feito for tornado público, pouco a pouco os caçadores tornam-se outros, 'uns outros", "eles", um sujeito impessoal, genérico quase. Artimanhas com que o camponês disfarça para o verdadeiro outro a intimidade de seu mundo. "Tem uma gente aí que caça". "Ainda tem uns por aqui que usam caçar". "Eu conheço umas pessoas aí pra cima que caçam até hoje". A proibição oficial e as punições jurídicas e policiais da infração da caçada parecem tornar os homens do Pretos de Baixo cúmplices das razões ambientais cia interdição vinda de fora. Já que a caça ficou sendo proibida e há motivos conhecidos - mas nunca inteiramente compreendidos, considerados plausíveis e aceitos para tanto, agora ela também separa, pelo menos na conversa com as pessoas "de fora", os "bons" e os "maus". Os maus ainda caçam, os bons já não mais. Ou nunca foram caçadores. Sebastião diz sem receios que conhece segredos da caçada, mas nunca quis praticá-la e, menos ainda, o quer agora. Não porque seja proibido, mas porque ele nunca gostou de matar a esmo os "bichos do mato", os "bichinhos", a "criação da natureza". Ele não gosta de praticar "esse mal pros outros", porque "tem pena", "tem dó". Numa entrevista depois com José, ele que também se nega um praticante furtivo da caça, a conversa sobre o assunto resulta em uma intrigante classificação cia morte, e ela vale para os humanos, tanto quanto para os animais domésticos ou selvagens. Eu não sei até que ponto ele usa a classificação para si mesmo, mas ela é a seguinte: a morte necessíria dos animais existentes e criados para isto pelos homens: a morte dispensável dos animais cio campo e das florestas, criados por Deus e não pelos homens e que somente deveriam ser mortos pelos homens quando eles não dispusessem de animais de morte necessária e necessitassem de carne para alimentar-se ; a morte natural dada por Deus e a natureza dos seres, a todos os vivos, humanos ou não, por velhice, doença ou acidente (neste último caso a idéia de morte natural é relativizacia). Na relação entre os homens e os outros seres vivos da natureza pois por extensão José pensa assim também a morte das plantas - a primeira morte é um direito dos homens sobre os bichos, autorizada por Deus e legitimacia pela posição dos seres humanos e animais no código de suas relações e pelo "trabalho" que os homens têm com o criá-los para o seu uso. A segunda é uma morte dúbia, porquanto os seres animais 70

não criados pelos homens são uma criação divina e cia natureza e pertencem a eles, estando em princípio fora cio direito de uso dos seres humanos, a não ser em casos especiais. A terceira é a morte dada apenas por Deus aos seres humanos e aos seres animais, ainda que os seus destinos posr-mortem sejam muito diferentes. A partir desta classificação das mortes dos seres, posso seguir uma boa trilha para pensar outros passos de uma ética camponesa nas relações entre os homens e os outros sujeitos do mundo natural. Prossigo por agora as idéias de José Fernandes e de Sebastião, morador no sítio ao lado cia capela do Pretos de Baixo. Parece ser normal que crianças, cães e cavalos sofram castigos físicos de seus pais ou donos. Vários pais "batem" nos filhos, especialmente nos meninos. Isto é sempre dito: "para aprender", "para tomar juízo", "para aprender a obedecer", "para respeitar", 'para se educar". Gestos semelhantes e explicações não muito diferentes justificam atos de violência contra animais domésticos Mas não todos: espantam-se gaios e galinhas, mas não se bate neles. Nem mesmo em porcos, a não ser uma pancada rápida, de aviso. Castiga-se menos os gatos cio que os cães e menos os bois e vacas cio que cavalos e éguas. No entanto, todos reconhecem a diferença entre "bater" em um cavalo arisco, ou durante a doma, e espancar indiscriminadamente o animal ou, pior ainda, "sangrar" uma égua "a poder cia espora". Esta diferença é igual à que existe entre "bater" em um filho, ou mesmo "dar uma surra", e espancar sem piedade e com sinais de ódio uma criança, o que transforma o gesto justo de uma autoridade legítima no ato de despotismo, e o desejo amoroso ou cheio de respeito cio proprietário, em um ato devasso, francamente condenável. Quando no Pretos de Baixo se condena um homem violento pela agressão feita a filhos ou mesmo a animais, não se trata de julgar somente a "fraqueza" de quem não "tem controle dos seus atos', de quem "perde o controle" e se "deixa dominar pelos nervos". Trata-se de uma avaliação das intenções; do sinal de valor dado ao gesto de punição. Pois, furiosos ambos, um pode ser ainda justo e o outro abertamente injusto, opressor mesmo. Para além dos critérios de valor ético, "ter dó" e 'sentir pena' podem ser uma boa chave para compreendermos o lado de dentro dos gestos de propriedade e poder das pessoas sobre os seres naturais. Quando José justifica por que mesmo antes "da Florestal" ele já não "usava de caçar nos matos", as suas razões não têm, para ele mesmo, um motivo social. Não é sequer o peso cio olho cio outro,

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Pois vimos, em momentos anteriores, que nas rodas de homens a caçada é um dos trabalhos do prazer mais epicamente valorizados no universo do imaginário camponês. Nem mesmo uma razão religiosa, dentro cio âmbito cheio de metáforas muito interpessoalmente afetuosas cio catolicismo popular, onde ao jumento se sugere um tratamento especial apenas porque "carregou a Virgem e o Menino na fuga Pró Egito" e porque conduziu Cristo poucos dias antes de sua morte, na "entrada triunfal em Jerusalém" Talvez um motivo evangélico pudesse ser o mais próximo, mas ele ainda é outro. De algum modo José o coloca na própria relação entre ele e os seres naturais. Entre a sua pessoa a individualidade dos animais cia casa, cio quintal e cio pasto, que ele evita "maltratar" (e eu sou testemunha de muitos dias disto), e os bichos cio campo e dos matos que ele não caça e não mata, a não ser quando perigosos. Há um nome adequado para os seus motivos? Digo por agora que eles são naturalínen te relacionais. Na fttla dos não caçadores do campo, o sujeito da recusa da caça é o próprio animal, todos eles e cada um. Do que ouvi faço a síntese de três motivos: a) eles são sujeitos, individualidad e de seres vivos, "filhos de Deus como nós" (expressão usual) e merecem as suas vicias tanto quanto "nós"; h) por esta razão, do mesmo modo como o homem do campo tem o direito de matar para a alimentação ou um outro uso os animais que ele cria para isto, em um momento de suas vicias, ele não tem o direito legal de tirar a vida de um animal não criado por ele, a menos que tenha uma razão justificável de necessidade vital, até mesmo a defesa de sua própria vida; c) animais vivos sugerem "pena", "dó", "piedade" (esta última palavra, freqüente em orações cristãs, é pouco usada no caso). Em direção oposta, é também isto o que justifica a morte de animais como os seguintes, mais ou menos em ordem: uma cobra venenosa, um escorpião, uma aranha Peçonhenta, uma onça devoraciora de animais de criação, a capivara destruidora de plantações, Sendo como os outros, "criaturas cie Deus", sujeitos da vicia e mas não todos, como cobras e aranhas, por exemplo atores de relacionamentos e agentes de afetos, logo, seres sobre quem o mal "dá pena", eles podem perder o direito à piedade do homem quando o antecedem na Possibilidade ou na realização do mal. Animais ameaçadores ou muito malévolos como espécie, são ética e afetivamente destituídos cio direito à vicia. São mortos sempre que possível e entende-se que matá-los é um "bem" e é mes-

mo um dever cia pessoa. Animais potencialmente malévolos, mas não individualmente ameaçadores da integridade direta dos humanos, podem ser mortos em circunstâncias em que a sua existência próxima e as suas ações constituem um dano às pessoas, aos animais domésticos (predadores que atacam aves do quintal) ou às plantações. Animais não ameaçadores e nem danosos são aqueles cuja morte não se justifica, a não ser nos mesmos casos e para os mesmos usos em ,que se mata um porco ou um frango. Eis a distribuição dos animais segundo estes critérios, em uma lista muito incompleta. -dó

1

± dó

+dó - direito de morte

onça, predadores do mato, animais prejudiciais à pecuária/agricultura, capivara etc.

paca, tatu, cotia, grandes aves, passarinhos, macacos etc.

+ direito de morte

É1

cobra venenosa, escorpião, outros peçonhentos, aranhas, formigas cortadeiras etc.

Mas os critérios de periculosiclacle para os humanos ou os bens dos humanos, e de morte justificável para a satisfação de necessiciacles das pessoas não São OS únicos. É claro que um caçador matará um nhambú para comer e poupará um urubu, e matará uma inofensiva paca, deixando com vicia um gavião predador. Na minha lista provisória e incompleta, na coluna cia esquerda estão os animais que sempre podem matar ou ferir seriamente os seres humanos (os animais também); na cio meio, os que em geral não atacam os humanos (as onças sim), mas podem causar danos às criações e lavouras; na cia direita estão os animais que, mesmo sendo predaclos pelos últimos caçadores, não são reconhecidos como fazendo mal algum, embora tatus e pássaros, aqui e ali, ataquem algumas plantações, nunca com a voracidade de um bando de capivaras. Quando a imensa maioria das pessoas cio campo não caçadoras diz por que não caça, o sentimento de piedade para com os seres naturais organiza os outros motivos de teor menos afetivamente ético. Mesmo quando um homem afirme que não mata animais desnecessariamente porque reconhece que eles têm, como ele, direito à vida,

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isto adquire a força de uma decisão penosa porque se acompanha de um sentimento de "dó", de consideração para com os bichos da natureza em suas individualidades. Destarte, num grau máximo de "dó" para com os bichos, estão aqueles que: não ameaçam as pessoas, não fazem mal aos bens das pessoas, não são vistos como bichos ruins sequer para outros animais silvestres ou selvagens, não possuem qualquer utilidade quando mortos e, principalmente, não são comestíveis. São bichos belos, frágeis, capazes de gestos afetivos que sugerem respostas afetuosas. Uma mistura da qualidade natural do animal com o sentido relacional do bicho para com o homem, sugere o direito à vida, a familiaridade afetiva e o sentimento de "dó".

24 de janeiro AINDA SOBRE A LÓGICA DOS SENTIMENTOS

Há urna disposição de trocas entre os seres do campo e dos matos e os homens e mulheres que vai além ainda das classificações e relatos feitos ontem. Não estamos acostumados a falar sobre isto, porque pensamos que códigos inflexíveis e mapas de teias de significados dominam as motivações e disposições de todos os gestos. E, mais adiante, descobrimos que uma densa semiologia dos sentimentos subexiste a tudo, como o Id nunca claramente identificado por uma antropologia motivada a decifrar os sentidos das culturas em algum lugar sempre o seu ego social e o seu implacável superego jurídico. Mas, mais cio que classificáveis segundo relações de perigo e utilidade, os animais sugerem sentimentos pela figura cio que são, ou pela metáfora cio que foram em urna outra dimensão de suas próprias imagens e idéias para uma dada cultura. Sabemos que entre os domésticos, gatos são "cia casa", mas cães são "das pessoas"; cavalos são possuídos, usados, exibidos, tratados e mesmo amados; bois, mesmo os de corte e muito mais os de "carro", são nobres animais de respeito; porcos e cabritos não, e embora haja uma pequena familiaridade com ovelhas e cordeiros, eles sugerem uma gama cristã de afetos, porque são a melhor metáfora da paz e cia ternura nas palavras de Jesus Cristo. Agora que as crianças são mais instadas em casas e, principalmente, na escola, a um tratamento menos violento contra os animais, 74

há uma disposição bastante mais difundida de proteção dos passarinhos. Mas mesmo quando eles eram caçados por meninos e rapazes, tendia-se a considerar uma maldade a morte dos filhotes. De um modo geral, as "crias" de todas as espécies são afetivamente protegidas e todas as pessoas dizem sempre que somente se deve matar adultos, ou, quando filhotes, só os de animais muito perigosos, mesmo quando pequenos. Até um caçador inveterado dificilmente mataria um filhotinho de onça ou de capivara, mas uma pequenina cobra venenosa é morta tal qual os seus país, adultos. Se eu volto a uma oposição entre os gêneros, é porque uma vez mais ela é importante aqui. A "dó" é entendida como um afeto feminino, mais ativo nas mulheres, cio mesmo modo corno a coragem é masculina e mais ativa e proclamada entre os homens. De uma maneira muito generalizada, as meninas, moças, mulheres adultas e velhas, são os atores sociais da piedade. São elas as que a demonstram de uma maneira mais usual e aberta e são elas as pessoas que tomam o "sentir 'dó" como o motivo declarado de uma grande parte dos seus atos de proteção cia vicia, especialmente cia integridade dos humanos (quantas mães desafiam maridos para protegê-los de um momento de fúria dos pais) e cio direito à vicia e à liberdade dos animais. São elas as que se comovem, sem esconder o gesto cio sentimento, com o sofrimento de um animal ou com um ato macho de violência contra um bicho qualquer. Aos seus cuidados ficam as pequenas crias domésticas feridas ou enfermas. Apiedar-se em demasia parece sugerir nos homens um enfraquecimento do ethos viril e via de regra eles se protegem de demonstrar, como as mulheres, uma coreografia de afetuosa piedade.

25 de janeiro SOBRE ESTILOS DE FORÇA E VIOLÊNCIA

Mas eles sabem bem estabelecer as chferenças. Quando o mesmo Sebastião, na mesma conversa de anteontem, saltou de caçadas - que ele não pratica, lembro - para o futebol pelo qual "é fanático" - uma diferença importante entre categorias de força e violência segundo as suas disposições merece ser escrita. Ele me disse que no bairro dos Pretos "tem uns 60 jogadores e tem mais de um time de futebol". E disse a seguir que "as pessoas 75

daqui preferem jogar com time do mato". Atenção! Ele não disse "time da roça", "do campo". Os do mato, isto é, dos Sítios e dos bairros rurais e não os cia cidade, são mais "civilizados", já que ao seu ver há um estilo ético de jogar "do mato" e, um outro, "da cidade". "Mais civilizados", os "limes do mato" são mais "mansos", "mais respeitosos', enquanto os da cidade são "mais selvagens", "mais violentos" e, em boa linguagem cio futebol, "mais botinudos", Sendo "mais inocentes", as pessoas de esporte dos bairros são menos capazes do "malfeito", gratuito, da "pura maldade". Por isso "eles sofrem com os cia cidade", que são culturalmente "mais ruins", mais predispostos à "maldade". Vejamos, A virilidade é um atributo muito positivo e um jogador covarde e não viril é tão desqualificado quanto um "ruim de bola". De algum modo, entre os homens é quase impossível se ver um bom jogador de futebol sem ele ser motivado e coreograficamente "macho', viril. Saber defender-se sem fugir "do outro"; saber atacar com força e determinação; no limite, saber mesmo "matar uma jogada" com uma falta justa, necessária, são boas virtucles. Mas isto nada tem a ver com o ser "maldoso", "malvado", "ruim", "desleal", "grosso", "estúpido", "sem consideração", tudo aquilo, enfim, que sobre o qualificador "macho" desqualifica a pessoa que submete os seus motivos a gestos de deslealdade maldosa e uma intenção onde a coragem determinada do homem dissolve-se no interesse perverso cio ganho, qualquer que ele seja. O covarde (não o que foge cio outro, mas o que o enfrenta com violência desleal) aplica uma dualidade natural do homem em um sentido desumanjzador. Eis em que o homem honrado possui e preserva a sua honra no ser lealmente forte e determinado, enquanto o "maldoso" se desonra ao dar á virilidade um sentido francamente perverso. A diferença que Sebastião estabelece é entre "bater" honestamente num adversário de igual para igual ("tomou, levou"), sobretucio quando se é um "jogador de defesa", e ser deslealmente "hotinuclo", o que equivale a sobrepor-se a um duplo código: o das regras universais cio futebol e o ela lealdade entre parceiros e adversários, iguais. O que equivale, também, a abdicar cio exercício habilidoso onde se trocam demonstrações desejáveis de hábil macheza esportiva, em nome de submetera sua prática à "pura violência".

26 de janeiro AINDA SOBRE

"a

DÓ"

(Complemento de outro caderno de campo durante uma Função de São Gonçalo) Em O homem e o inundo natural, Keith Thomas aponta como um dos fatores de mudanças importantes nas disposições de relacionamentos entre pessoas inglesas e bichos e plantas, o afloramento de "novas sensibilidades".' Eu acho que isto é ainda dizer pouco, embora a sugestão seja muito importante e dê um sentido mais completo aos outros fatores que ele apresenta. Há uma subjetivação dos seres naturais que os aproxima, sob outros sentidos e afetos, das pessoas e famílias, e por causa dessa nova aproximação, novos afetos e sentidos requalificam relacionamentos homem—natureza. Será preciso lembrar a Keith Thomas algumas observações intrigantes de Phiiipe Ariés, quando ele descreve o lento acesso das crianças cia aristocracia e da nobreza européia a uma proximidade subjetiva e a uin relacionamento mais presente e mais afetuoso de seus pais e, especialmente, do sujeito "pai". O que começa a acontecer para com os animais e, mais do que com todos, com os peis, acontece também e por volta dos mesmos anos com as pessoas cia casa e cia família não integralmente incorporadas, até então, aos círculos sociais cio sentido e cia sensibilidade ativa e pública de vida familiar. Crianças, cachorros e rosas surgem no palco cio centro da casa e dão-se a ver como um novo centro de atenções e afetos mais ou menos da mesma maneira, e ao mesmo tempo. EmJoanópoliS, o que torna possível uma distribuição desigual do sentimento de "dó" e do direito afetivo à vicia e à preservação da liherdade (relativa, porque alguns animais são aprisionados e são "criados" justamente porque são belos, sonoros e podem ser individualmente "amados") entre categorias igualmente desiguais de pessoas (homens versus mulheres; caçadores verstis não caçadores, cristãos fervorosos verses não fervorosos etc.) parece ser uma maneira cultural de pensá-los e senti-los como mais ou menos homólogos não propriamente aos homens, mas ao que é reconhecido como "bom" ou "um bem" nos humanos. Afinal, tipos e indivíduos de animais podem ser como os humanos, ou de uma maneira aproximada à cicies: Keith Thomas, O 11o111c17, e o inundo natural.

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1) Mais ou menos amorosos, confiáveis, traiçoeiros, repugnantes, comoventes, perigosos, úteis, enternecedores, horripilantes etc. 2) Prototípicos de virtudes humanas derivadas dos animais ou correlacionadas com elas: a passividade do boi, a nobreza do cavalo, a humildade do burro, a ferocidade da onça, o traiçoeiro da cobra, a mansidão da pomba, a tagarelice do papagaio, a fidelidade de um cão, as artimanhas de um gato etc. 3) Caracterizadores de relacionamentos especiais ou de situações notáveis, prototípicas: a utilidade do boi, o prejuízo da capivara viva e a sua utilidade morta (partes comestíveis e medicinais de seu corpo), os pássaros que embelezam todo um ambiente, a onça que torna terrivelmente ameaçadora toda urna floresta. 4) Seres metaforicamente associados a uma imagem cultural a partir de sugestão da imagem real de seu modo de ser, tomada como um modelo para os humanos: a formiga laboriosa (embora destruidora), a cigarra artista (embora preguiçosa), a ovelha mansa, a pomba pacífica, os bons animais dos evangelhos.

27 de janeiro SOBRE ÁRVORES E HOMENS

Passei quase todo o dia de hoje com José e seu pai, Antônio Fernancles. De manhã cedinho íamos subir para urna lavoura de milho a carpir, no alto cio morro, nos limites cio "sítio". Mas eu os encontrei ainda em casa, bem depois da hora em que Giovanni, o filho de José, deveria ter ido me acordar. Um garrote preto havia quebrado uma perna e caído no córrego de cima, na divisa com o pequeno sítio de Sebastião Claro (o único preto cio Pretos de Baixo). Eles já haviam ido lá com Zé Roberto, marido de Cinira, pedreiro e ministro da eucaristia na capela do bairro. Com a ameaça cia morte do garrote ferido, os planos foram mudados. Subimos juntos, José, o pai, Antônio, Barroso (marido de Maria, a ervateira cio lugar), OS dois filhos de José e eu. Mais tarde o filho de Tião Claro juntou-se a nós.

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Um longo trabalho de veterinária popular teria salvado o tourinho? Foram três horas de amarrar, ali mesmo ao lado das pedras cio córrego, com panos e tiras de taquara verde, a perna quebrada cio animal. José derramou nos panos cio curativo o mesmo espesso líquido verde, mistura de água com capim que foi macerado dias antes por Penha, a sua esposa, e usado para curar uma ferida na perna cicie. Findo o trabalho José e Antônio Fernandes não sabem ainda avaliar se o garrote conseguirá levantar-se do chão e se curar. Mas ele valeu uma manhã de trabalho de cinco homens. Na boa safra cio ano de 1992, uma roça de milho na encosta dos morros da fazenda rendeu a José 400 sacos, e o dinheiro do trabalho com a safra cio semestre rendeu o bastante para a família ensaiar a compra de um carro novo e uma outra moto para José (com que ele leva Penha, professora, à sua escola em joanópolis). Com o "dinheiro da terra" eles estão também terminando uma casa na entrada de Joanópolis. "Mas as sicupiras vão acabar cio mundo", sentencia José, cio alto da roça cio morro. Na verdade, só nos pastos por onde a vista alcança eu contei dez cicias, grandes e clueimacias, atingidas por raios nas tempestades cia Mantiqueira. "Campo tem vez que queima inteiro por poder dos raios", ele diz. E as pessoas do lugar plantam à volta cia casa árvores de Santa Bárbara (sina momo), pois ela tem a virtude rara de espantar raios. De fato nunca se vê uma Santa Bárbara atingida por raios. Conversando comigo na cozinha cia casa, seu Antônio Fernandes interrompia a "prosa" a cada trovão, para murmurar em outro tom: "Santa Bárbara!". Valem as árvores o quê? A quem vale uma árvore? Vale uma floresta o quê? Esta pergunta eu me faço e fiz a eles. Uma vez, algumas. Quando voltei da viagem à Itália e à Espanha trouxe comigo, afora livros e outros bens, mil e quatrocentos dólares. Seis dias depois de haver chegado, quando retornei ao Sul de Minas, entreguei ao Batista dez notas de cem dólares em troca de um pedaço de mata fechada de menos de seis mil metros quadrados. Bom negócio para ele, pois este era mais ou menos o preço de um alqueire de chão de morro, de pasto. Mas eu pensava no valor puramente simbólico de cada árvore, de cada conjunto de plantas e pedras que acrescentava à floresta de meio alqueire que havia comprado dele dois meses antes de viajar. Na UNICAMP, brinquei com os colegas de departamento e com os alunos: "com o dinheiro de um "micro" comprei um "mato". E era verdade.

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1 Na subida do morro íngreme de suas terras, José dizia que se uma pessoa lhe der um alqueire de mato em pé, ele não quer. "Eu agradeço, mas enjeito. Mato nem dado não vale e não paga a pena". Tal como a floresta existe, ele é "de muito pouca serventia". Uma árvore abatida pode resultar em uma multa de valor desproporcional. Ele me conta isso apontando, aqui e ali, árvores de jacarandá e de jequitibá espalhadas pelo campo ou na orla de matos e cujo valor para fabricar móveis é muito grande. Eu quis sentir com ele que a razão de um certo desprezo pelas matas cia Mantiqueira não é apenas utilitária. Todos sabem, e eu já havia aprendido em São Luís cio Paraitinga, que, dependendo do lugar e da qualiciade cia terra, um hectare de pasto ou de terreno de lavoura pode valer até dez vezes mais o valor de uma igual porção "de mata virgem". O lugar natural trabalhado ganha o valor econômico do trabalho. Ganha o valor também estratégico de ser e reproduzir-se por muito tempo como um espaço de terra incorporado de uma vez por todas à produção. Com ele se pode contar; ele é contabilizado como um valor que gera continuamente bens. Mas o lugar de natureza trabalhado conquista igualmente um valor de afeto. O que João Cabral de Mello Neto diz sobre o modo hostil e descuidoso de plantar cio semeador vale somente para quem planta "em terra alheia" e não fica sequer na terra onde semeou para ver pelo menos o nascimento das primeiras folhas saídas do seu gesto. José me apontava com largos afagos de dono e senhor cio direito de colher o que plantou, as lavouras de milho consorciadas com o feijão. De longe, apontando com as mãos, cia janela cia cozinha cia fazenda, Antônio Fernandes havia feito antes a mesma coisa. Havia dito também, cie algum modo, as mesmas palavras. Primeiro José comentou a boa qualidade cia terra. A fertilidade de um solo de morro íngreme que, entanto, mal "precisa cie aciubo nele". Depois calculou de antemão o valor dos gastos havidos e por haver e os ganhos esperados. Depois concluiu. "Tá certo, todo muncio fala contra a lavoura hoje em dia. Difícil tá mesmo e vai ficando cada dia pior. Mas olha só (e apontava de novo a roça, pertinho) dá pra não plantar?" Zé Tonhá, de Catuçaba, plantador na meia e no meio arrendo, algumas vezes disse algo semelhante. Também assim o velho Marcolino, quando comentava com a memória do orgulho roceiro o trabalho cicIe e da "leva de mineiros" que abriu roças e tornou produtivo e habitável um bom pedaço cio Sertão do Palmitai. Falando comigo José dava a entender que no ofício de plantar há uma vocação. há um prazer que vai muito além cio puro desejo do EM

ganho em dinheiro. Antes mesmo cia colheita, durante todas as etapas, cio chão arado aos grãos maduros, prontos para a safra, há um cenário efêmero e dado a ver, há uma transparência fotografável do trabalho realizado. O espelho do trabalho agrícola fica deixado sobre a terra, colocado em algo vivo, crescendo ali a cada momento, o que não acontece com os domínios do ambiente não socializado, que apenas parecem reproduzir ciclos e regenerar perdas sazonais. Há um rústico desejo narcisista de entrever-se e dar-se ao outro como uma indiscutível manifestação de poder de fertilidade. De saber e fhzer com que a vida se regenere cio que é em si mesma viva, mas apenas possível de recriação através cia persistente dobra cia natureza não só ao trabalho, mas ao arbítrio cia vontade cio homem. Como a lavoura que cresce e produz algo que ademais de vivo e belo é entre todos o mais útil bem, pois garante a vida e retarda a morte da melhor maneira possível. Assim como os pastos de capim brachiara, caros e custosos de semear, mas que aos poucos disputam os morros com os pastos naturais, menos produtivos para o sustento cio gado depois da praga e da quebra do "capim gordura", entre alqueires destinados nos campos ao sustento cio gado de leite. O pasto "plantado" e a lavoura sazonal são o exato oposto da mata, um excesso de fertilidade inútil cio poder reprodutivo dado pela natureza, agora mais a si mesma do que à sociedade, desde quando interdita por força cia lei a ser utilizada segundo os moldes camponeses. Vista com os olhos dos homens e mulheres cio Pretos de Baixo, os primeiros a reconhecerem a sua "bondade" e a sua beleza natural "dadas por Deus pra todo mundo", as florestas cia serra tornaram-se um duplo sinal da fragilidade cio poder dos produtores rurais. Pois agora a proximidade do poder de uma lei justa à distância, mas perversa na prática, tal como se aplica, potencializa o poder cia natureza, desde quando os seus bens podem ser vividos sem poderem ser culturalmente apropriados e socialmente partilhados.

28 de janeiro AINDA SOBRE MATAS E PESSOAS

Revejo algumas anotações cio dia passado com os Fernandes e completo as observações sobre os relacionamentos homem—mato.

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A

N

Tudo o que é natural é dado aos homens e resiste a eles, pois c próprio do mundo da natureza resistir ao trabalho, exigi-lo árdua persistentemente Tentar sempre reinvad ir os domínios, dele, co nqwstac os pela frente de sociedade invasora, eis a vocação do "mato" natural. No entanto, dos domínios naturais dados aos homens, a fioresta c uma das mais vencíveis e as pessoas do trabalho agropastoril cio bairro dos Pretos dizem isto seguidamente e se reconhecem os homens muito mais do que as mulheres testemunhas e agentes disto. Mesmo os mais velhos, que nunca foram "ao mar" sabem que nao há como dominá-lo, como se faz com um campo ou com uma larga porção de terra. Mais fácil de derrubar do que uma PCcireira, ou lidar com o bairro das olarias, desviar um rio e fazer uma represa, as florestas cio lugar podiam ser e foram seguiciarnente dominadas e destruídas pelo trabalho dos agricultores antecedentes e pelo trabalho cicies próprios. Ao contrário dos espaços considerados como não produtivos cia natureza, a floresta virgem ou "um capoeirao" podem ser plenamente socializa socializados: medidos tornados de "sujo" um "limpo", roçados, carpidos,* queimados em suas sobras não utilizáveis, abertos pelo trabalho à reprodução dos frutos cio trabalho,

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Assim, os homens cio Pretos de Baixo vêem-se nela e vêem a lógica logica e. o sentido dos afetos de uma perene, difícil e ardilosa relaentre duas diversas dimensões cio trabalho. Pois tudo o que se reconhece reconhece que existe aqui, dos pastos às casas e capelas, é considecomo resultante de um antigo e contínuo vencimento. Um triunfo obtido aos poucos, ao longo de gerações de iguais destino e vocaçao, por meio cio trabalho da sociedade sobre o trabalho da natureza. Nos termos em que os relacionamentos entre os dois pólos são vividos de lado a lado por este amoroso par de opostos em luta perene, parece que o trabalho agropastoril nunca vence por inteiro o das forças cio mundo natural, 1-lá uma revanche e um direito de retorno que obriga os homens a urna reiteração quase inesgotável de seu esforço de domínio, Por isso estranha o desejo diletante que as pessoas daqui reconhecem em mi m mesmo de que os seres e recursos cia natoreza sejam deixados como estão; sejam não dominados e postos cio sujo" ao "limpo", cio infertil ao fértil e fertilizado; do improdutivo

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Carpiré roçar com a enxada, deixando limpa a terra; roçar é com foice, pelo ala), você "carpe' urna roça de milho "na limpa", mas você 'apen roça um

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ao produtivo e entregue à multiplicação social dos ganhos de seus prodito5' de uma beleza virgem mas existente ali de uma maneira excessiva, a uma outra beleza, criada, pacientemente conquistada. Resposta também como lugar social de fruição de todos a serviço das pessoas

29 d''i nciro

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ANTONIO TEI,LIs

Faz tempo que nós nos conhecemos. Volto da "Função de São Gonçalo" cuja ladainha cio começo, cantarolada em um já não compreensível "latim sertanejo", eu reescuto aqui na "casa verde" do Pretos de Baixo, No meio da madrugada,, pois a "função" dura urna exata noite inteira, o filho dele veio me perguntar desde quando eu conhecia o seu pai. Disse que fazia anos, desde quando, em 1978, eu havia andado por Piracaia e Batatuba gravando festas e rituais cio catolicismo popular. Meses antes, eu havia mandado por jntei'méclio de Thaís, que a sua pesquisa de campo em Piracaia com lavradores "cal-)odos" cios" e "japoneses", algumas fotos-estampas e postais de São Gonçaio que eu havia comprado para ele em Amarante, no Norte de Portugai. Quando voltei à sua casa ele havia escrito em dois cadernos de espiral, à tinta e à mão, dois longos trechos de uma "bíblia em versos sertanejos". Ele veio me mostrar logo no começo de nossa conversa, na sala de sua casa em Batatuba. Li algumas passagens C comentei. Devolvi os cadernos a ele e percebi um certo constrangimento. Lilian e lara vieram depois dizer que ele havia escrito as mais de 100 páginas para iTliiTl e que, sem cópias, aquilo era um presente.

-30 de janeiro SOBRE INDICADORES, MARCADORES DO TEMPO

Adianta de muito pouco fazer um calendário das atividades agropastoris. Elas se distribuem como em outros lugares cio Centro-Sul do Brasil. Outros já fizeram isto e há bons exemplos por toda a parte. 83

Aqui valem de pouca coisa as "folhinhas" e as previsões do tempo dadas pela televisão. Verdade que a cada dia elas invadem mais e se inscrevem neste cenário montanhoso de matas e rios, de bichos criados e soltos, de plantas naturais, de lavouras perenes (que o censo cio I13GE chamará de "permanente") e, mais do que tudo, de lavouras temporárias com os seus ciclos próximos ou desiguais, elas sim e tudo o que muda à sua volta com influência importante sobre elas, os verdadeiros marcadores do tempo, aqui. As pessoas não olham no bairro dos Pretos para o céu com tantas perguntas como eu ou os Kaiapó. Elas possuem vagas idéias sobre os jogos dos planetas e das estrelas e não os consideram importantes para a sua orientação. Lidam com presenças da natureza mais vizinhas à vida e ao trabalho. Mas aos seus sinais são muito sensíveis. José lembrava ontem que "não tem agosto sem trovoada". A atenção é dirigida para a variação de frio e calor, a chegada cio "tempo das águas" e a vizinhança do "tempo de seca". A transição múltipla cia floração das plantas cia casa, cias lavouras, pastos e florestas, com muitos detalhes de suas características. Não basta a uma antropologia cognitiva listar apenas classificações de espécies vegetais ou animais. Pois também a respeito cicias os homens cio campo nos dão boas lições de "pensamento camponês". O que importa não é tanto o que cada ser clã natureza é em si mesmo, mas a maneira conheciclã e imaginada de como ele varia; de como a terra e as plantas, as plantas entre elas, elas e os animais, se relacionam. Este tipo de sutil conhecimento ainda em parte oculto à antropologia e que os pescadores e os caçadores, os lavradores e criadores possuem e utilizam cie maneiras muito oportunas. Sinais no tempo, 'no clima", na variação de composições de nuvens nos céus de setembro e outubro, associam-se a mudanças visíveis nos vegetais, pois este é o recomeço cio tempo em que as árvores recuperam folhas, reverdecem e sugam as águas do solo e cios pequenos rios. Este pequeno conjunto de indicadores vinculase a outros, observáveis não apenas nas mudanças cio todo, como uma floresta ou "as águas', e na "temperatura", mas em detalhes peculiares aa!gumas espécies vegetais e animais. A floração dos ipês, a lenta frutificação cie árvores que nesta ocasião atraem certos tipos de animais. Acasalamentos cie pássaros, o provisório reaparecimento de outros "bichos do inato". A articulada alteração de condutas de tipos reconhecidos cie interações entre bichos e plantas entre eles e as sutis mudanças do ambiente. 84

Se uma lógica externa, regida pelas oportunidades do mercado, cada vez mais marca os tempos cio trabalho e os momentos adequados cia produção, os indicadores traciicionais da passagem natural do tempo e de estabelecimento de ciclos de relacionamentos entre a sociedade e o ambiente, por meio cio trabalho com a lavoura e o criatório, possuem ainda um peso muito forte. Em seu estudo sobre agricultores de Piracaia, fazendo a comparação entre "caboclos" e "japoneses", Thaís Martins Echeverria ciemonstra como uma das diferenças mais relevantes é justamente uma diversidade cio uso de critérios internos ou externos, tradicionalmente culturais ou inovadoramente importados de outras fontes de conhecimento sobre o assunto. Mas eia chama a atenção para como, mesmo entre os floricultores japoneses ou niseis fortemente influenciados pelas regras do mercado na orientação de suas estratégias de produção, um código ainda fortemente simbólico e muito tradicional de marcação ritual dos tempos da vicia e cio trabalho organiza a experiência familiar e comunitária das relações, inclusive com e através cia natureza,' Ao observar com atenção os movimentos costumeiros das pessoas cio Pretos de Baixo, começo a crer que a síntese de toda esta convivência com um mundo de vicias ao mesmo tempo tão ilusoriamente estável e tão estavelmente mutável, é uma percepção de tudo segundo critérios e sensibilidades, a uma só vez, de imutabilidade e de fugacidade. Êi-ios, às voltas com Parmênicies e Ileráchto ao mesmo tempo, todos os dias. É sobre a veraz ilusão de que tudo "ali" é real e sólido, como as montanhas cia Mantiqueira na divisa entre Minas e São Paulo, os montes de matos, pastos e lavouras de um lado e do outro cio rio Cachoeira, o próprio rio, corrediço, variável ele mesmo, mas solidamente sempre e o mesmo, e mais as grandes árvores, os últimos jacarandás cias inatas, os hoje raros antigos pinheiros cuja idade a memória cias pessoas gosta de exagerar, que os homens e as mulheres experimentam o fluir incessante cie todas as coisas. Elas vivem isto com um sentimento traduzido cie muitos modos, de que tal como a vida delas próprias, de seus pais e seus filhos, tudo flui e é breve, movente e transitório. Todos os anos, as lavouras de milho (uma, às vezes duas no ano, mais raras), cio feijão (duas: o "cias águas" e o "cia seca"), do arroz e das plantas caseiras cia horta, são semeacias, Unia vez mais, remeto o leitor ao trabalho de Thaís Martins Echeverria, Caipiras e saia ui'ais modernos, cap. 4.

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nascidas, tratadas, colhidas, vendidas e consumidas no intervalo de apenas alguns meses. E os seus breves ciclos são o melhor marcador da passagem do tempo que social e simbolicamente conta para as pessoas do campo. Estes tempos breves, anualmente retornados, são mais importantes do que os ciclos mais longos das mandiocas ou os da lenta espera da frutificação anual de mangueiras ou abacateiros. Depois, o tempo medido nos anos em que uma bezerra torna-se uma "vaca parida", produtora de leite e crias. Os anos em que um bezerro vira um "boi eirado" e pode ser vendido para o abate. Uma vida mais longa do que as dos porcos do chiqueiro, que são criados e mortos dentro de um único ano, ou um pouco mais. Mais longa ainda do que a vida das aves do quintal, que nas granjas modernas são vistas surgindo dos ovos e embarcando em engradados de caminhões para uma morte distante em menos de meses. Uma vicia menor do que a de bois de carro, raros hoje, guardados para a vida muito mais anos do que os outros, porque são mais úteis vivos do que mortos. Mais curta ainda do que a vida de cavalos de estimação e os criados para o trabalho, o orgulho do dono; o deleite e a afeição. Seres da natureza socializada que, como os humanos, são deixados viver a vida inteira e dados à morte apenas quando completam o seu ciclo, ou "por vontade de Deus", antes, por doença ou acidente. Penso que, entre movimentos ela "natureza cio ambiente" nos ciclos de vida e utilidade de vegetais e animais, as pessoas cio Pretos de Baixo parecem lidar com oito dimensões de temporalidade na experiência do cotidiano camponês. Acrescento aos exemplos até aqui outros, e faço a seguinte síntese aproximada: Primeiro ciclo: a experiência do mais breve, do mais efêmero; o tempo dos minutos de um amanhecer, de um pôr-de-sol; a duração intensa de uma tempestade rápida, antes da bonança; um tempo que vai de um minuto, um momento-que-passa-depressa, a alguns minutos e enquadra entre os que não são instantâneos - e que por isso mesmo excluo de uma escala que mede na cultura rural o sentimento coletivo do fluir da vida - os instantes de uma fuga da lentidão sentida da natureza; o quanto se leva para ordenhar uma vaca, para carpir alguns metros próximos de pasto, para rezar "as ave-marias" ou para finalizar uma "mão" de truco.

entre o amanhecer e o anoitecer de um dia; o tempo necessário para que alguns animais ela casa doem aos homens o ovo ou o leite; a medida da existência efêmera de algumas flores, de alguns insetos; a duração de "uma noite inteira"; a medida de uma chuva mais longa, de "um dia todo"; as horas de uma manhã "no leito"; as horas em que a esposa lava a roupa cia família; o sentimento nos homens e nas mulheres do que foi" mais um dia" de trabalho; a medida "ajustada" da jornada de um camarada; o tempo de uma festa de padroeiro no domingo cia capela do bairro. Terceiro ciclo: a duração estendida de algo como o dia a algo como uma semana; uma das fases cia lua; o tempo necessário para que algumas plantas de ciclo breve germinem; mais ou menos o tempo em que se espera que uma doença sare, quando tratada; a história breve de vicia de algumas flores e o tempo cia floração de outras, desde o botão; um tempo em geral indicado para a realização de algumas tarefas de ciclo breve (para o caso), como o carpir de um pasto, o roçar uma lavoura de milho: uma seqüência de dias de festividades religiosas (a Semana Santa, a festa cio padroeiro, com a novena de orações). Quarto ciclo: o tempo aproximado a um mês lunar, com as suas quatro fases; o tempo em que todas as plantas de ciclo curto germinam (feijão, arroz, milho, batata, outras) e exigem os primeiros trabalhos de "limpa", a duração necessária para que os animais de quintal e pasto sobrevivam como crias (o pinto de um mês, o leitãozinho, o potrinho, o bezerrinho); a marcação social dos meses com suas características simbólicas de bastante valor no mundo camponês: a "quaresma", o "mês de Maria", o "mês do Sagrado Coração de Jesus"; o período entre o Advento e os festejos dos Três Reis Magos; um tempo de significações sociais crescentes, com a modernização cia vida dos bairros, a escolarização quase plena das crianças (praticamente todas cursam pelo menos até a 4 série) e os compromissos sociais urbanos, estenchclos ao campo.

Segundo ciclo: o tempo com que se mede o que cabe de uma hora a um dia e é, portanto, uma duração muito marcada; o que fluir

Quinto ciclo: ele faz a fronteira entre os ciclos de movimento de breve a médio cio tempo, e os movimentos de médio a longo. A duração de alguns meses, marcada pela troca das estações, mas, mais aincia, com o período sazonal completo das principais lavouras: feijão e milho, que definem a parte mais motivada e intensa cio ciclo anual

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dos trabalhos agrícolas e o ciclo comercial derivado das colheitas dos grãos; a passagem do tempo que torna os animais domésticos "adolescentes" (o frango, o leitão, o garrote, a novilha em seus começos); o período médio das transições marcadas do mundo natural, com o trânsito do calor com chuvas, para a meia estação dos meses entre abril e junho, daí para os meses de frio e seca e deles para os meses entre o frio seco e o retorno cio calor e das chuvas; dentro de um intervalo de tempo aproximado entre três e quatro meses, os principais ciclos cia natureza local são percebidos e as principais sucessões de períodos de trabalho intenso e de vacâncias (mais comum no passado cio que hoje em dia) são realizadas. Sexto ciclo: o tempo civil de um ano e o tempo natural de pouco mais de um ano; o período necessário para o aproveitamento de vegetais de ciclo médio, como a mandioca, a mandioquinha, salsa e outros; o período sazonal de algumas grandes atividades, como a "limpa de pastos", a vacinação do gado, o preparo do terreno para grandes lavouras; a frutificação anual de frutas como a manga, as laranjas, a uva, o abacate e várias outras; tudo o que se faz ou acontece "uma vez por ano"; o retorno marcado de períodos da seca e cia chuva cada um em seu "tempo no ano"; a realização ritualizada de "mais um ano de vicia", do "aniversário de casamento", da "passagem de ano" na experiência de todos. Sétimo ciclo: ao contrário cio sexto, um ciclo de sensibilidade do tempo percebido mais nas passagens do mundo natural cio que nos marcadores da cultura; a duração de alguns anos, fases da e na vida dos seres humanos e dos outros seres vivos cia natureza; o tempo em que uma "criancinha" vira um menino apto a ajudar nos primeiros trabalhos cia casa ou cio sítio, em que o menino torna-se "um rapaz", um "homem feito, pronto para casar"; a mesma medida em que os animais domésticos de grande porte vivem as fases, mais breves do que os humanos, de suas vidas, do mesmo modo corno se imagina que aconteça com os animais selvagens de igual tamanho: cães (mais que os gatos), bois e vacas, cavalos e éguas, jumentos, mulas, onças, capivaras, antas; a longa duração da passagem do tempo natural em que algumas medidas de diferenças ganham sentido ("chovia mais até uns 15 anos atrás, agora chove menos") e em que os seus acontecimentos se inscrevem: "a geada brava de 76", "a seca medonha de 94"; o tempo em que mudanças de maior importância

em uma propriedade rural são realizadas através cia soma do trabalho de anos seguidos: a "formação" das pastagens, a formação de uma boiada, o ponto em que um eucaliptal está "pronto pro corte" (bois ficam "eirados", e eucaliptos adultos para o corte em um tempo que varia de quatro anos a sete anos, conforme o caso); tempos sociais completos: os anos de estudo de urna pessoa (no passado raramente mais de três, hoje até quatro, oito ou nove); o trânsito entre o namoro de dois jovens cio bairro, o noivado, o casamento e o nascimento do primeiro par de filhos; o intervalo entre as "copas cio mundo" de futebol. Oitavo ciclo: os anos de uma vicia, mais curta nos "bichos", um pouco mais alongada nas "gentes", de todos, o tempo mais dramaticamente biográfico, o demarcador de urna existência pessoal ("a minha vicia") e o importante período de existência cultural de uma geração de pessoas; os muitos e poucos anos de trajetória de uma família: sua formação, o crescimento e casamento dos filhos, a velhice e a morte dos "velhos", a repartição dos bens e dos sentidos... Uma outra mesma história que se irá repetir achante.

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Assim como para aquém cio tempo cio primeiro ciclo os instantes cio dia são segundos, frações de momentos fugazes o bastante para serem a medida brevíssima dos gestos, mas difíceis de serem uma boa medida do fluir cia vicia na experiência sensibilizada e pensada do cotidiano, assim também, para além das percepções de fluir e dos sentidos cia passagem cia duração dos anos de vicias pessoais, naturais e sociais do oitavo ciclo, não é fácil imaginar os sentimentos do tempo. Mas fala-se muito dos amplos períodos vividos como uma história que se sabe, mais cio que como uma vicia que se vive, de ciclos de gerações: "a minha gente, os meus avós, quando vieram de Minas pra cá"; "no tempo dos antigos", "ah, moço, essa dança vem cio começo do mundo"; "isso é coisa dos tempos de Adão"; "contam que antes dos brancos, gente como nós, aqui era um lugar dos índios, de bugres"; "nos primeiros tempos aqui era só mata, mata mesmo, esse tempo ninguém aqui alcançou, só os antigos". É como se um grande relógio de sentimentos e significados, um destes complicados aparelhos cie medida cio tempo pregados no pulso vivo da cultura cio bairro, com ponteiros que vão de segundos fugazes à medida cio passar dos anos de uma vicia, estivesse sempre sob os olhos de todos. As pessoas do Pretos cie Baixo o olham e enten89

dem espiando os sinais cia vida natural à sua volta: a que lhes é dada e os envolve, a que eles transformam com os seus gestos de trabalho, inscritos no tempo, corno uma sua boa medida. Repito. É preciso compreender que o sentimento do tempo vivido como imaginário, conhecimento, preceito e gramática cia vida inclivídual e coletiva, nunca é medido por meio de uma esfera única de indicadores: os cia natureza cósmica (o fluxo das estrelas, as fases da lua, o caminhar diário cio sol); os do ambiente próximo (a chegada das chuvas, a floração dos ipês, o acasalamento das siriernas, a invasão de pragas na lavoura de milho, o amadurecimento das mangas); os dos efeitos do trabalho cia cultura sobre a natureza incorporada à sociedade (o aumento cio leite das vacas, a colheita cio feijão da seca, o momento de arar os campos, a lenta seca sazonal dos pastos e a hora de roçar e/ou queimar as pragas e o capim seco); os das relações entre momentos cio mundo natural e a seqüência anualmente rotineira dos trabalhos e "serviços" dos homens e das mulheres na casa e no quintal (a hora cie matar o "capado" e produzir a banha para um longo período de consumo, o melhor momento cie fazer alguns doces e compotas, o período adequado para lidar com as madeiras e reparar ou fazer cercas, estábulos, utensílios cio trabalho); os cio calendário dos dias e festas do grupo doméstico e de suas pessoas (o aniversário de casamento de cada par de "velho" ou "filhos", o de cada pessoa, os batizados e crismas, o festejo cio padroeiro cio sítio); os das festas comunitárias em seus vários círculos de relações e significados de identidade e aliança: a novena e festa da "Nossa Senhora" padroeira cio Pretos de Baixo, do bairro dos Pretos, os grandes festejos anuaisde São João, protetor clejoanópolis, as festas juninas, a Semana Santa e o ciclo cio Natal, celebrações vividas à volta cia mesa em casa, à volta cia fogueira cio sítio, na capela e no terreiro do bairro, na praça cia cidade, na viagem peregrina a Aparecida. Da mesma maneira como, em outra escala, festeja-se nas escolas e fora cicias o "Dia cia Independência" e o de Tiracientes. Espera-se que a última grande chuva cia temporada venha por volta de 19 de março, com a "enchente de São José", ou a "chuva das goiabas". Certas festas de santos populares são marcadores observados até hoje para o começo ou o término de atividades cia agricultura, como o preparo cio solo para o plantio do milho, a sua semeaclura, o começo das limpas, o momento da colheita. Alguns tipos de relacionamentos sociais (como as festas religiosas ou profanas), interpessoais (corno as trocas de sexo no casal), pessoais (corno 90

o jejum das sextas e a abstinência de carne) ou de relações com o ambiente (como a caça, a morte de animais domésticos) são até hoje reduzidas ou mesmo interditas durante os 40 dias da quaresma. Imagine o leitor um vetor formado por duas linhas em ângulo reto e posto de cabeça para baixo. Disponha em 12 intervalos na linha de cima os meses do ano. Outras combinações de meses mais apropriadas ao ciclo dos tempos no mundo rural poderiam ser observadas. Disponha nos intervalos da linha vertical a distribuição dos indicadores que sugeri: 1) as variações cotidianas ou cíclicas dos sinais cósmicos da natureza; 2) as da atmosfera e do ambiente próximo, relativamente manipulável; 3) as relações entre os dois primeiros e as seqüências anuais dos grandes trabalhos da agricultura e da pecuária (pesca, caça e coleta poderiam entrar, de maneira complementar, dada a sua reduzida e decrescente relevância hoje); 4) os serviços e trabalhos "miúdos" cio cotidiano; 5) os das celebrações familiares das "datas" do grupo doméstico, os festejos religiosos e profanos que estendem a família à parentela ampla, à vizinhança da fração de bairro (Prelos de Baixo), do bairro rural (bairro dos Pretos, Sabiá Una, Maria Alferes, Cancan), à cidade Joanópolis) e a outras, vizinhas (Piracaia, Bragança Paulista, Atibaia), a universos sociais e ampliados (Aparecida cio Norte, São Paulo, "O Brasil", a "Santa Madre Igreja", a Assembléia de Deus, o Coríntians). Ao traçar linhas e colunas, o resultado seria uma quantidade de quadrículas onde os acontecimentos ocorridos em cada uma das esferas de marcadores culturais cio tempo se distribuiriam através de um fluxo de fluir cio tempo de um ano. As "folhinhas' comuns pregadas nas paredes de todas as casas - não raro duas ou três, dadas por lojas das cidades, em uma mesma parede - apontam mês a mês os dias das semanas, os fins-desemana, os dias de feriados. As folhinhas católicas "cio Sagrado Coração de Jesus" marcam o passar do tempo dia a dia e acrescentam aos dados "úteis" do calendário "profano' detalhadas marcações cia igreja (festas de santos, os santos cio dia, os tempos litúrgicos, as comemorações especiais, como o "dia das mães" e outros). Alguns calendários de produtos agropecuários acentuam os momentos dos trabalhos com a terra e seus seres. Eu imagino um grande calendário com o desenho da mistura de tudo isto e mais os tempos da natureza, tal como eles aparecem, seguidos de instruções e conselhos, nas agendas ecológicas, lunares ou esotérico-espiritualistas. Um calendário inscrito na tradição cia cultura e nunca escrito para ser pregado nas paredes, onde o entrecruzamento entre os ciclos cósmicos, "na91

turais" e do ambiente pudessem ser lidas - como as pessoas cio Pretos de Baixo fazem cotidianamente - nas suas relações com os tempos dos trabalhos e os das festas. Colhido o milho seco, o feijão das águas e o da seca, colhidos outros produtos de iguais períodos e menores importâncias, depois da breve vacância entre as festas juninas e os frios de julho, com os primeiros dias mais quentes de agosto, começas de setembro, o tempo seco sugere os prenúncios das chuvas. 1-lá quem diga que quando a lua cheia de setembro vem com chuva, outras sete luas cheias seguintes serão "trovejadas". Os olhos vêem nos céus, acima das montanhas, as primeiras nuvens "carregadas" e, mesmo antes cicias, as árvores que perderam folhas nas florestas, campos e pomares recuperam depressa o seu verde. É quando as raízes "chupam com mais força as águas da terra e dos riachos" e elas baixam ao menor nível, mesmo depois das primeiras chuvas. Os que ainda não limparam os pastas fazem-no agora com pressa, e os terrenos de cultivo devem estar sendo arados e gradeados. As pastagens naturais secas, primeiro com o frio e, depois, com os meses sem chuva, são queimadas, ou, ao contrário, são cuidadosamente protegidas com aceros das queimadas "dos outros", o que acontece mais com os pastas artificiais. Com a passagem cio frio ao calor e cio seco à água, inúmeros sinais entre os bichos e as plantas assinalam mudanças e regularidades esperadas todas os anos. O reaparecimento de tipos de insetos e de pássaros, uma atividade maior entre animais da floresta e do pasto. O surgimento de flores e frutos cia época, após a floração dos ipês amarelos e roxos. É preciso ler na soma e na lógica de todos e de cada um dos sinais da natureza os presságios dos dias e meses seguintes. Pois, a cada vez, há sempre um risco em se plantar logo após as primeiras chuvas, ou esperar que elas "firmem", para que não se perca urna semeadura de milho, de feijão ou de arroz. Enquanto urna dependência bastante grande da variação cio clima persiste nas atividades da agricultura e da pecuária, a decifração dos inúmeros sinais cio ambiente a cada período do ano continua a ser uma chave quase única nas estratégias de orientação familiar do trabalho, principalmente na agricultura de lavouras temporárias. Como este jogo cultural de conhecimento acumulado e decifração costumeira cios sinais cruzados da natureza para a orientação dos tempos e das estratégias cia intervenção cio trabalhador rural sobre

Ia não sugere possuir a elegância gramatical dos seus equivalentes ntre as culturas tribais, não encontrei até hoje um "pensamento arnponês" aproximado ao "selvagem" em tudo o que li sobre o ssunto. Depois de incontáveis anotações sobre ciclos agropecuários seus cruzamentos com outros ciclos e tempos das várias interações ossíveis entre uma comunidade camponesa e seu meio ambiente, u mesmo nunca me senti tentado - seria melhor dizer, capacitao, empírica e teoricamente - a rascunhar pelo menos uma sua lassificação mais simples. E não duvido de que haja, aqui como lá, ma intrigante e densa gramática de estruturas lógicas do pensarnena sobre elas. De resto, mesmo nas culturas indígenas, algumas cionografias sobre o assunto têm chamado a atenção para o fato de 1ue também os índios, mais do que se imagina, usam as relações práicas e simbólicas entre as variações cio mundo natural e as respos.s sociais por meio cio trabalho, corno um indicador essencial cio fluxo tos tempos e da própria ordem de ambos os mundos, pensados um )elo outro: o cia sociedade e o cia natureza. A classificação provisória dos ciclos cio fluxo cio tempo e a su,estão de um quadro de entrecruzamentoS entre as diferentes cateorias de dimensões naturais e sociais por onde flui o tempo de tais ;iclos, não me parece algo subterrâneo e vago para a vida cotidiana bom para os exercícios do antropólogo. Elas estão presentes em nuitos momentos de todos os dias. Os sinais cio tempo, a sua varia:ão, a leitura de mudanças de frações cia natureza sensíveis nos rios terras, nos bichos e plantas, fazem parte cia conversa de todas as ioras. E a relação entre eles e a lógica da prática cio trabalho agro)astoril é, por centro, o assunto mais importante entre os homens du1tos, responsáveis domésticos pelo trabalho produtivo cia família ;itiante. Eu mesmo, depois de alguns dias no campo, pouco fala sobre utroS assuntos, mesmo civanciO não estou propriamente "pesuisando", o que, afortunadamente, acontece muitas vezes.

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31 de janeiro Souiu

HOMENS, PORCOS E OUTROS BICHOS

Alguns pensamentos a partir de duas matanças de porcos, uma na casa de dona Aparecida e seu Chico e outra na casa de Roberto e Cinira, ajudados por dona Joaninha e seu Joaquim.

Um Começo repetindo assuntos, até mesmo de A partilha da vida. Opostos aos cavalos e aos cães - animais úteis e amorosos, relacionais, possuídos por uma pessoa e nominados, sempre, seres de músicas sertanejas e, os cavalos, de histórias de pequena epopéia rústica - os porcos, como os gatos, são bichos caseiros do quintal. São seres alheios, mesmo quando fisicamente próximos, possuídos como um bem de uso ou troca e nunca como um ser de reações afetuosas (mais os porcos do que os gatos) e não são nominados e nunca pensados como animais de relacionamentos com os humanos. O porco morto ontem com um golpe certeiro de faca no coração havia fugido do chiqueiro dois dias antes. Era mesmo a hora de matá-lo, mas Cinira acrescentou à necessidade de banha caseira uma razão pessoal. E me falou que disse ao porco, com raiva: "Amanhã você já não foge mais!" Durante quase todo o dia da matança há uma atividade inusitada na casa e no quintal. O trabalho é cansativo e em alguns momentos quase perigoso. "É um dia inteiro de trabalho", dizia Roberto, enquanto abria a pele e as carnes cio bicho morto. "E cansa mais do que carpir de enxada a roça". Mas apenas em parte isso é verdadeiro. Tal como eu vi acontecer nas aldeias de Oms, na Galícia, o dia de matar o porco é "o dia de matar o porco", e os seus atos solenizam cada etapa do trabalho familiar, não raro, lá como aqui, auxiliacio por vizinhos ou outros parentes hábeis no assunto. Toda a aldeia, todo o bairro sabem de antemão em que casa se vai sacrificar um porco, e mesmo sendo uma atividade conhecida por todos, as pequenas peripécias cio acontecimento são comentadas. Na Galícia, uma comida ritual de partes cio porco para os que ajudaram e para outros parentes encerra os dois dias de trabalho cia matança, preparo de banha e salga das carnes e vísceras. Em Joanópolis não se usa deixar o animal morto dependurado uma noite inteira a "esfriar", para ser esquartejado na manhã cio dia seguinte. Não há comilanças festivas, mas partes boas das carnes são repartidas cruas, como se verá a seguir. As mortes são diferentes e cada uma sela de maneira mais eloqüente possível o tipo de valor que o animal representa para a pessoa. Lembro que cães e cavalos não são mortos para um uso. Morrem com o tempo e, se necessário, são sacrificados pelo dono com sinais de pesar, e são enterrados. Músicas sertanejas comentam o sacrifício doloroso de cavalos e de éguas de estimação. Como gatos e passari94

nhos engaiolados, cujas mortes naturais são muito lembradas e pranteadas, cães e cavalos são bichos cujos seres valem em vida e cujos corpos não servem, mortos, a não ser como símbolo de estima e passagem por um tempo social, o que os aproxima dos humanos. Dos animais mortos para o uso do corpo, as reses (bois e vacas) são os de morte mais complexa. Nos sítios e bairros são mortos apenas de maneira clandestina (rara hoje em dia) ou em tempos de festas comunitárias, quando a morte cio animal faz parte dos próprios ritos dos festejos. No extremo oposto, a morte de um frango ou de uma galinha é um rápido gesto individual. Uma mulher ou um homem cia casa matam-no em um momento, segurando na mão fechada a cabeça e rodando o corpo cia ave sobre si mesma, do que resulta a morte "com o pescoço quebrado". Sozinha, uma mulher ferve, depena, abre e "limpa" um frango, deixando-o em minutos "pronto para a panela". Quase sempre o bicho morto é preparado de imediato e comido na refeição seguinte. Entre as aves, individuais demais, e os bois, extrafamiliares em suas mortes, os porcos têm uma morte doméstica, familiar. Ela é a que envolve durante mais tempo o trabalho conjugado de homens e mulheres. Os participantes do sacrifício preparam-se de antemão; os convocados extragrupo doméstico são avisados com antecedência; os utensílios da morte e dos tratos cio corpo são deixados prontos e limpos. Na mesma manhã do dia há uma atividade controlaciamente feérica. Prepara-se o local e o porco. Mata-se com uma facada no coração, desferida por debaixo das patas dianteiras. O animal reage e tarda a morrer, morre com estardalhaço e avisa, aos berros, o bairro de sua morte. Morto, de imediato o corpo é queimado para que a pele e os cascos das patas fiquem totalmente tostados. Enquanto as mulheres preparam recipientes, os homens abrem em seguida o bicho. Dois Não me lembro exatamente onde Bachelard faia duas ou três vezes cio sadismo profissional cio cirurgião. Pois o prazer dos cortes é muito mais desbragado em um porco sacrificado. Entre os presentes há uma cumplicidade de satisfação prazerosa do desejo cia morte e cio esquartejamento. Afinal, são poucas e questionáveis as outras situações em que um grupo ele pacíficos homens cio campo pode se reunir à volta de um ato legítimo de uma 95

tão justificável violência partilhada: matar, esgotar o sangue, queimar o corpo, abrir o animal e separar as suas partes, desossar e descarnar, trabalho dos homens; limpar as vísceras, cortar a gordura, fazer no fogo a banha, limpar os utensílios e o local da matança, trabalho das mulheres. É no momento em que o corpo do porco é aberto, antes de 'Ser picado", que o animal morto se dá a ver por dentro e mostra o que importa. Há nos olhos dos donos um ar de intensa expectativa. Manolo, em Fonteparedes, Oms, não conseguia deixar de clemonstrar uma decepção, pois o seu porco tinha banha demais. Roberto, no Pretos de Baixo, alegrava-se pelo mesmo motivo. Lá vale a carne, e a gordura é o seu excesso; aqui vale a banha, e a carne é o seu partilhável complemento. Aberto o animal, primeiro pelas costas (torresmo) e, depois, pela frente (banha), o momento duplo de "arrancar a barrigada" e de separar a espinha com a cabeça (suã) cio resto do corpo é também a imediata passagem simbólica do animal ao alimento. Em poucos instantes, a "pessoa" física do bicho morto desaparece e ele começa a ser nominaclo pela qualidade de suas partes. Couro e quase todos OS 05505 são inúteis; as entranhas cia barrigada são levadas para serem lavadas. Rins, fígado, coração e outras partes são comidos; as tripas utilizam-nas para fazer a lingüiça, o derivado mais importante depois cia banha; a gordura principal é derretida e vira a preciosa banha, as gorduras das entranhas servem para fazer sabão; as carnes nobres são guardadas para serem comidas. Um número crescente de casas começa a congelá-las. Voltemos por um momento a considerar os seres do animal um pouco antes, durante e depois cio momento cia morte. Até o instante cio escluartejamento, mesmo depois de morto e queimacio, o porco ainda é um indivíduo. É de sua peculiar identidade que Cinira falava. Inteiro, mesmo morto, o bicho ainda é um sujeito animal. Descarnado, ciespelado, sangrado, desentranhado e separada a cabeça com a espinha cio restante do corpo, depressa o animal abandona a sua breve existência de bicho morto. Ele se torna as suas partes e se multiplica nas frações de matéria em que se decompõe. E elas têm mais nomes estimados do que ele próprio. Os ossos e as diversas qualidades de carnes, entre as quais se sobressaem o "lombo" e o "pernil", as gorduras cia "banha", do "torresmo" e do "sabão", já nominadas segundo os seus usos; as entranhas, de muito menor valor.

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Eis o que se passa. Picar as carnes, separar as porções de gorduras e levar as melhores para serem de imediato derretidas no fogo. Ali o seu líquido claro, quase transparente, C) que surge como o mais limpo e quase diáfano do animal, é coado e posto em latas umpíssimas de 18 quilos. Morto,dividido e processado em suas partes, eis quando um animal, em geral criado em urna única casa (alguns são vendidos a vizinhos e transitam), torna-se pela primeira vez na vicia - ou na morte - um ser uno e múltiplo, atiçador de redes sociais de dom e contradom. Mareei Mauss não veria novidade alguma em tudo aquilo. Três Consideremos ciclos. A menos que seja uma "cria cia casa", nascida ali, o porco, o "capado" cevado para ser morto, será objeto de uma primeira troca comercial. O porco cio Roberto foi" parido aqui mesmo", mas Tião Claro comprou um leitão de Roberto Iara "capar-e-cevar". Quando estive lá uma primeira vez, ele comia, plácido, palha cia milho no chiqueiro. Em mais quatro meses será gordura guardada e carne circulada e comida. Não é costume que se salgue a carne cio porco. Disse acima que cada vez mais há mais gente congelando algumas porções, mas este costume novo serra-acima ainda não é generalizado. O usual é que partes da carne utilizáveis como alimento cio grupo doméstico em breves dias, seja guardada na geladeira, enquanto outras porções são divididas e levadas a pessoas cio círculo familiar ou da vizinhança. Um caso especial é o da lingüiça, ponto de encontro entre a carne, a gordura e as entranhas. Brincando, o pai de Roberto dizia para mim, enquanto cortava o animal, que se mata "o bicho e se lira a lingüiça cia tripa, para depois se pôr o porco dentro cia lingUiça. Pois ela é feita 'de tripa" cia qual se esvaziam os conteúdos dos intestinos e que se enche com carne picada ou moída, partes de banha e até pedaços da cabeça (mais usados no chouriço). Raramente porções de lingüiça são distribuídas, o que sempre acontece com as carnes nobres. Partes do lombo, cio pernil, das costelas e outras frações cio "dianteiro" e cio "traseiro" são cortadas para serem levadas a outras casas. N o mesmo dia da morte, algum homem da casa, ou mais de um, quando há destinatários distantes, levam em sacos plásticos partes cia carne trocada. Fui com Roberto a algumas entregas. No sítio cio Tião Claro, ele simplesmente 97

estendeu o pacote que foi recebido com um meio riso e um breve cumprimento. Não há cerimônia alguma e se entende que a carne doada de um para o outro é um momento de um círculo de trocas em que parentes (nem sempre familiares e nem sempre consangüíneos) se obrigam a receber porções de carne de um animal morto mediante a obrigação de retribuírem ao doador na ocasião em que sacrificarem o seu porco. De antemão, a família destinatária sabe que, em urna casa de doador contratuado, foi morto "um capado" e espera dela receber uma porção de carne. Seu Joãozinho dizia para mim: Só de ouvir de longe a gritaria cio bicho morrendo a gente já sabe quem vai comer carne de capado naquele dia." Fecho por onde comecei. O porco, que, como um animal transacionável, pode ser nascido na casa de sua morte ou comprado entre vizinhos (mais raramente fora do círculo de bairros, a menos que haja acordos entre parentes ou amigos, conhecidos de outras paragens), deve sempre, já na qualidade de carne e alimento, realizar uma última transação social, ao ser repartido dentro de círculo restrito de trocas. Não quero esquecer que algumas vezes partes da carne são vendidas dentro ou fora do âmbito do bairro. Roberto vendeu 15 quilos para o Dito Mariano, o homem que nos alugou a casa na beira da estrada, no Pretos de Baixo. Faço alguns esquemas.

6) Porco comercializado.

5) Partes destinadas. (ho) envio de carnes doadas; (1w + mu) preparo de lingüiças; (ho + mu) preparo das carnes da família ; (mu) preparo das vísceras; (mu) processamento da gordura; (mu) realização de comida com gordura, vísceras e carnes.

(1w) comercialização de partes de carne; (1w) compra eventual de um novo leitão.

"-

Agentes do ato: ho mu

= =

homem

Maria Lúcia/Nel so n (irmã da esposa)

JOSé/SilVS irmã da esposa

Isabel (viúva) (avó do maridJ

Joaquim/O razilha (pais da esp)sa)

[ José/Joanin ha 1 (pais do marid o)

Tião Claro/Benedita (vizinhos)

Penha/José (irmã do maridJ

[7nio/Bernadina (vizinhos)

Tbastião/Cleide1 (irmão da espj

[isabel (Viúva) (mãe da esposa)

J

mulher

1) Leitão inteiro nascido e criado na casa (mu) ou resultado de um ato de compra entre parentes e/ou vi-

zinhos (ho).

.ir F: 2) Leitão transformado em capado castrado para a en-

gorda (1w) e cevado (alimentado preso para ser morto (inu + ho)).

3) Porco morto, qUeima cio e esquar-

4) Partes separadas do animal

tejado. Passagem de animal e varienades de alimento. Matar, queimar, esquartejar (1w), higiene do lugar e dos utensílios (mu).

morto. Separação das partes: ossos, carnes, vísceras e gorduras. Ossos, sangue e carnes (ho) vísceras e gorduras (mu).

Lucé1ia/Wa1d (filha)

Altair/Lucimara (filha, mora em Bragança)

Be nedita (Viúva) (irmã do marido)

Joana/José -*[acY/Antônio ( f ilha) y orma/Aris t id es izinhos, 'gente pobre")

_____________________

F An tónio/Be,n~a~rdin a ncisco/Aparecid-*ais da espsa)

Be ndito/Geralda =

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ucinéia/Ail on (filha)

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1

11~' de fevereiro O

HOMEM QUE ABENÇOAVA OS EUCAL1ITOS

Quereis conhecer uma família de sitiantes inimigos da floresta? Ide procurar a gente do Dantas, um mineiro dono de 120 alqueires vindo de Cambuí, do outro lado da Mantiqueira, com urna tropa de burros e outra de filhos, dos quais quatro moram aqui para cima do Pretos de Baixo, antes do Plínio, bem antes do Salto. Ele apareceu na varanda de nossa casa, em urna manhã, em busca de abrigo por causa da chuva que os encontrou na estrada, vinha com um filho "de 5-- série". Havia descido a Joanópolis para "brigar por uma vaga na escola", pois o menino completara a "quarta" e nos bairros "não tem mais estudo". Ele disse: Esse pinheiro que tem ai, esse pinheiro natural, "araucara", Como chamam ele, desse a gente torou tudo o que tinha ai nas terras do pai. Tinha muito, demais mesmo. Cortamos tudo e deixamos limpo. Agora tem um ou outro que eu vou mostrar pro senhor. Mas, o que tinha, e era muito mesmo, a gente derrubou mesmo. A gente ia, os irmãos de motosserra e derrubava tudo no chão. Aproveitamos a madeira e deixamos o pasto limpo. Plantamos eucalipto, mas não foi muito. Aquilo (o pinheiro) não presta pra nada no sitio. Só pra derrubar mesmo, limpar os campos e vender a madeira, Pinheiro desse não presta pra nada. Se esse menino aqui (e ele aponta pra cabeça do filho de oito a dez anos) plantar um pinheiro desse, ele não vai tá vivo na hora do corte. Com 20 anos ele tá assim, alho (ele aponta a altura de uns dois metros), mais baixo ainda que eu. O tronco assinzinho, olha (e ele faz Com OS dedos uma rodela cio tamanho do espaço entre o indicador e o) polegar das duas mãos), cresce devagar e ocupa o pasto. Dá um pinhãozinho de pouca serventia e nem gado fica debaixo dele (em busca de sombra). Aí pra cima (e aponta na direção do Salto dos Pretos) tem gente plantando esse pinheiro novo, o elioti". Esse cresce mais depressa que o Outro. Ele quase acompanha o eucalipto, mas a madeira é branca, fraquinha mesmo e não presta mesmo pra nada. Quase não tem serventia. Eles cortam lá quando está assim, com quatro, cinco anos (ele faz de novo um círculo com quatro dedos, dois indicadores e dois polegares), mas a madeira é fraca. Eles toram ele em montão de tadluinho) assim, enche caminhão e leva aí pra Juncliaí. Vende por um dinheirão. Tem gente dldiC gosta dele.

Eu procuro saber se o "pau da mata" não vale mais do que o eucalipto e aponto uma árvore molhada da chuva com um enorme

tronco e vários grandes galhos, uma casa de deuses e pássaros, sozinha, no meio do pasto encharcado. Antes de responder, ele fala do "homem de fora, um advogado de Campinas, um tal de Lino, homem rico, poderoso", que está derrubando 80 alqueires de pura mata virgem para plantar eucalipto. Dois dias antes, Penha, esposa de José, ainda falava de um homem que ela encontrou ali, "na beira do desastre". E ele dizia para nós três: "Mais isso é um crime! Onde é que está a Florestal que não acaba com isso, que não prende essa homem?" E mais uma vez - e foram muitas - os da volta da conversa começaram a lembrar que os "homens de fora, poderosos", chegam a derrubar matas, abrem pastos e plantações de eucaliptos sem nenhuma punição "da Florestal". E um outro dizia (não lembro o nome): Porque lei aqui não é aplicada pra rico, só pra pobre. E se um de nós derrubar uma arvrinha assim vai preso, ou caçar um tatu, vai pra cadeia e paga um dinheirão de multa. Porque aí a Florestal não perdoa. Enquanto esses homens ricos, eles derrubam matão enorme, milhares de árvores e com eles acaba sempre não acontecendo nada, porque eles é rico, tem gente influente cm Bragança, em São) Paulo, em Campinas e acaba mesmo não acontecendo nada.

E sucede que na conversa cia chuva eu comentava sobre o "advogado dos 80 alqueires" para o filho do Duta, e ele dizia: Ele O derrubando é muitos alqueires de terra. Nós mesmos trabalhamos pra ele. Não cicie a gente precise disso, mas ele vinha, chamava, e nós ia trabalhar pra ele uns tempos lá. Nós ia de motosserra. Que ele lá tem seis, sete máquina novinhas, cicie ele comprou pra derrubar esse mato) aí, cicie são muitos alqueires: 80, sei lá. E a gente vinha de motosserra, cci e mais irmãos, e chegamos a ser uns seis de motosserras. E pcinlni tudo no chão; abria aquele limpo. Ele é um homem rico lá de Campinas, um advogacio, e ele tá limpando o inato pra entrar o eucalipto.

Eu: Mas a Florestal não embarga, já que parece que não se pode derrubar nem uma árvore? Embarga! Eles vêm aí, vem de Bragança, de São Paulo, Atibaia, eu sei lá. Chega e proíbe. Põe aquela coisa, como é cicie chama? Pois é "lacre". E põe aquilo e diz cicie se tocar corri as mácicunas e voltar na clerrcihacla vai wolo preso. E aí pára o serviço por dois dias, por cim mês. Mas ele tem influência. É cim homem de conhecimento, de poder. Ele vai lá na sede cia Florestal, lá em São) Paulo, vai no governo), explica, e volta de lá com cima autorização. Agora ele

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está autorizado. Está deixando só uma base de 20 alqueire na beira do rio, na beira da cachoeira. E o resto está autorizado (a desmatar). Porque é rico. É isso mesmo, Ele vai desmatar aquele mato inútil e vai deixar no limpo. Aí joga eucalipto que tem que ter hoje muito dinheiro pra formar um "calipital". E daquele mato sem serventia nenhuma nasce o eucalipto, e o senhor me diz, daqui quatro, cinco anos, quanta madeira não tem lá pra Cortar? Um despropósito de madeira! Porque essa madeira aí (e então ele aponta pra árvore solitária do pasto), um pau desses serve pra quê? É só nó. É só só. E madeira quando dá nó é fraca; é desse tamanho assim, ó (e ele faz com as duas mão um tamanho de meio metro) e é depois nó e um outro pedacinho, e é assim. Serve pra nada, só pra sombra do gado. E esse mato aí (ele aponta pra uma mata de vertente no morro), o senhor me diga, qual é a serventia que ele tens? Madeira aí não presta; é fraca e é só nó. O senhor quer entrar numa mata dessa aí e ela presta pra quê? Nem pra entrar não dá, que não dá mesmo. Pra coisa nenhuma tem serventia, nem pra entrar. Agora o senhor veja, um eucalipto desses aí (e ele aponta para um altíssimo eucalipto não muito longe de minha árvore "inútil") ele é de uns 20 anos, se tanto, se muito. Aí é planta de todo uso. O senhor planta na terra; quatro, cinco anos depois já dá corte, porque ele já está dum tamanho assim (e ele faz o círculo com os quatro dedos, bem largo), e já dá corte e o senhor vende ele bem vendido. Aquilo dá cerca pra nsourão, pra esteio da casa, dá táboa, dá madeira pra tudo. Uma madeira lisa, de nem um nó, de muita serventia pra tudo (dá papel" eu lembro cúmplice, timidamente, e ele:) Pois então, dá pra muita coisa. E tem uma: o pinheiro, mesmo esses "elioti", o senhor derruba e acabou; não dá mais nada, Tem que plantar de novo e é um outro gasto. Mas esse aí (o eucalipto), não. Ele, o senhor derruba e pouco de tempo depois vem e rebrota. Vem com cinco, até com mais broto e vem com mai força ainda. Daí o senhor tem que podar e deixar só com três. E onde na primeira deu um pau, na segunda e nas outras vem com três ou mais. E então é onde se vê o lucro que a pessoa tem, a serventia. Dá uma vez, dá duas, dá três, dá muitas vezes no mesmo pé. O sujeito gasta aquele dinheiro pra formar um alqueire de eucalipto, ou mais, mas depois é só esperar que chegue o lucro, chegue o ganho. Porque o eucalipto dá mesmo. É só plantar ali o pezinho e esperar. Depois de uns tamanho assim (ele aponta uma altura de um metro), já não dá mais trabalho nenhum, nem limpa e nem nada. É deixar crescer, porque vem mesmo.

Falo sobre a "Florestal". Ele se exalta. Trabalhou em Camanducaja por conta própria com os irmãos cortando pinheiro araucária. "Que lá é do outro lado da serra, já é em Minas e tem muito mais do pinheiro, que aqui pra joanópolis já cortaram muito dele; deixaram no limpo". Ele e os irmãos cortaram araucária "pra um homem lá". A Florestal

chegava e ordenava que suspendessem o corte. Mandava parar o corte e chamava o dono na oficina. Ele voltava de lá com o corte liberacio, e o filho de Duta faz a cara de quem imagina alguma tramóia. E me diz confidente: "Então a gente pode confiar numa gente assim? Eles usam lá a autoridade deles pra quê? Pra prejudicar a gente e se encher de dinheiro. Tem uma lei nisso aí? Este homem com quem conversei alguns minutos, entre o começo e o final de uma chuva de verão, é o ponto limite cia maneira como, em número crescente, as pessoas do campo por aqui pensam: a) o sentido e o valor cia natureza e das variações cio ambiente socializável; b) uma lógica fragmentaclamente utilitária e regida por leis de mercado que, reconhecem todos, vêm "do fora", são recentes algumas e são, em boa parte, pouco éticas e até mesmo prejudiciais, mas impositivas; c) as relações sociojuríclicas entre as pessoas que trabalham no campo, aqueles que chegam "de fora" para enriquecerem nele, as autoridades jurídicas e policiais de controle do meio ambiente. O sujeito oposto deste patético mineiro destruidor de florestas e cúmplice cia mesma lógica das relações sociais que critica poderia ser o seu Chico Amaro, cia família dos Amaro e marido de dona Aparecida, filha de seu Antônio Fernandes e de dona Bernarclina, igualmente mineiros de Cachoeira de Minas e de Cambuí. Tal como os mineiros filhos do Duta, ele em alguma medida vive da vencia de madeira. Mas, ão contrário, em tudo parece ser um homem do campo amoroso cia terra. Ele me aponta no terreiro cia fazenda pés de cedro e me diz que gosta de fincar "paus de cedro" no chão. Isso se faz nos dias dos santos juninos, 13, 24 e 29 de junho, pois os paus fincados às vezes brotam e viram árvores. E a madeira de cedro é boa para ser guardada no fogão, pois em dias de tempestade ela afasta raios e trovões. Os perigos cio mundo. Na véspera de nossa conversa ele havia levado "um homem" no "calipital" que possui suas terras, mais acima, onde moram Lucinéia e Airton. Não chegava a "uma quarta", um pouco mais. "Não chegava num alqueire, mas tinha eucalipto ali de 30 anos." Ele pediu '70 milhões" e o homem "fechou em 40". O negócio não foi feito. Ao fazer a lógica das contas, Chico Amaro em tudo se parece ao filho Duta: "Eucalipto, se o senhor planta nele, o senhor vai ter lucro. Pinheiro, o senhor vai ter algum lucrinho. Agora, se plantar mato (macieiras de lei), não vai ter nenhum." Com esta fala singela, um quase silogismo rústico, Chico Amaro repete um tipo de pensamento gerador de disposições e estratégias

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de escolhas de investimentos tornadas comuns na região. Do ponto de vista dos valores de ganho, há uma relação exatamente oposta às proporções tomadas de um ponto de vista de valor da natureza. O eucalipto é a escolha quase absoluta, o pinheiro (elioti mais, araucária muito menos) é uma escolha secundária e rara hoje, as macieiras nativas não são mais plantadas, a não ser por pessoas e por motivos de franca exceção. Plantado em terra ruim e com exigência de mínimo "trato" após o primeiro ano de plantio, o eucalipto "pede corte" entre três, quatro e cinco anos. Dá "rebrota" de "três troncos" na segunda vez e, segundo alguns, pode chegar a produzir madeira em mais quatro ou cinco "cortes", em intervalos de quatro anos. De acordo com as contas cio Pretos de Baixo, o araucária leva 30 a 50 anos para dar um corte produtivo, e ele produz uma única vez. Agora, madeira do mato é só pela boniteza. Sempre o senhor pode plantar aí delas: um cedro, um jacarandi. Aquilo fica bonito e um dia é bom pros netos saberem como era. Mas vai levar de 50 anos pra mais, pra dar úrvore, Pra negócio ninguém planta nlo. Pra formar uma mata, isso nSo se planta.

quando uma então natureza degradada exercerá, pela falta de si mesma aos humanos, a sua vingança. As pessoas "de mais idade" gostam de lembrar "o tempo dos antigos", quando as florestas, densas e livres "da lei da Florestal", ofereciam recursos de madeiras de que eram feitas as casas, os currais, cercas e muito mais. Ralas, tenclentes a serem raras, interditas aos "do lugar" e mafiosamente abertas à destruição ordenada pelos interesses dos "de fora", os "ricos e poderosos" de Bragança Paulista, Campinas e São Paulo, as florestas e as árvores 'naturais" terminaram por ser, ao mesmo tempo, um valor natural perene e um nãovalor social imediato. Tentemos um breve esquema. As árvores de (IUC se fala são três, com o desdobramento de uma delas: as árvores naturais cia mata e do campo (jacarandá, jec1uitihá, sucupira, cedro, ipê, peroba, guatambú, cabreúva, entre as mais lembradas); os pinheiros (araucária = natural versus elioti = artificial) e o eucalipto (cujas espécies e diferenças somente são conhecidas entre os seus cultivadores). Dispostas segundo as suas qualidades, elas distribuem-se assim: + + +

2 de fevereiro AINDA SOBRE ÁRVORES E VALORES DO MUNDO NATURAL

-

naturais naturalmente úteis legalmente interditas socialmente úteis

árvores nativas das florestas

+ + + +

artificiais naturalmente danosas legalmente livres Socialmente úteis

pinheiro natural pinheiro elioti

eucalipto

O sinamomo, a 'Santa Bárbara", afugenta da volta da casa os relâmpagos funestos. A macieira de cedro queimada no fogão, também. A casca cio Ipê roxo possui virtudes curativas, e outras árvores nativas as possuem também. Todas as pessoas cio Pretos de Baixo reconhecem que certas variações desfavoráveis no "clima" e, de maneira especial, no regime das chuvas, têm uma relação histórica direta com a derrubada das matas, a destruição das florestas e a construção de grandes barragens. Sempre se associa um deterioro profeticamente irreversível das condições ambientais da produção de bens e reprodução cia dualidade de vida das pessoas à quebra social de uma antiga relação mais harmoniosa entre os homens e a natureza. Reconhecem também que as condições indesejáveis tendem a chegar a extremos, e é muito comum que certas terríveis passagens cia Bíblia sejam lembradas como um prenúncio de desgraças sobre a sociedade de que os homens são os culpados e serão as vítimas,

Tento imaginar o que Chico Amaro não fala abertamente para mim, mas o ele, quem sabe? Pensaria, ao dizer para ele mesmo os seus sentimentos. "Bendita é a terra e bendita a água! Elas são o dom de Deus por meio cia natureza aos homens." Não tanto a mata, "o mato", seu exagero, mas a terra tomada pelos homens à natureza por intermédio cio trabalho, tal como os seus ancestrais e os pais fizeram, tal como eles fazem. Pois, quando de uma maneira muito tímida Chico Amaro fala cia terra, ele usa metáforas cio sagrado. Fala de Deus como um agrônomo cia Casa cia Agricultura não o faria, e de uma Irlaneira muito diferente de como falaria dela um praticante da ecologia espiritual. Não sendo um "crente" e nem um especialista católicó cio lugar, como Antônio Telles, de Batatuba, ele não cita a Bíblia como um localizador

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de acreditada legitimidade das suas afirmações, mas é no ar de sua fala que um imaginário de fé católica camponesa envolve a esfera menos pública, especialmente diante de estranhos, mas mais eloqüente cio que se acredita saber sobre mistérios do mundo e da vida, até mesmo das vicias destruídas e recriadas nos seus próprios atos de trabalho agropecuário. Claro, isto não será dito se você forçar perguntas sobre uma tão visível prática econômica do trabalho camponês, que elas próprias contenham um sutil inibidor de respostas porventura provindas de uma região aberta a uma conversa entre pai e filho, entre iguais adultos ou, melhor ainda, entre velhos de "outros tempos", mas silenciadas diante de quem se acredita não partilhar das mesmas crenças, do mesmo imaginário. Os marcadores dos tempos e os indicadores de uma ética e de uma lógica de trabalho, assim como algumas interpretações importantes de tudo isto, têm a ver com metáforas provindas diretamente do Antigo e, mais ainda, cio Novo Testamento. Deles e das versões camponesas da tradição católica. Eu tenho certeza de que se a crença comum fosse, por exemplo, o candomblé como o imaginário de uma lógica rústica cIa natureza e de uma ética camponesa das trocas entre os homens e o ambiente, ela seria em boa medida diferente. Basta ver como os "crentes" exageram a submissão de incontáveis passagens do Antigo (em que são bastante mais versados do que os católicos) e do Novo Testamento, para referendarem como uma espécie de "última palavra sobre o assunto" todas as suas observações de fundo e, sobretudo, todas as avaliações sobre mudanças e transformações eloqüentes em qualquer plano de cenários e atores em que elas se realizem e possam ser pensadas. Não hasta lembrar, como em Keith Thomas e em Alain Corbin, que durante séculos a leitura católica e protestante do Gênesis, de algumas passagens motivadas dos dois testamentos e de algumas frases dos Atos dos Apóstolos, acrescidas de trechos de cartas de Paulo, forneceram à teologia erudita, bem como aos diversos imaginários cristãos populares, as bases para uma crença não questionável de que os homens são os senhores de tudo o que foi criado. De que todos 05 seres vivos cio mundo natural têm a sua razão de existência na submissão à humanidade e no serviço aos humanos. De que o trabalho socializacior da natureza não apenas não é culposo, mas além de nobre e enobrecedor é Remeto o leitor a passagens dc) trabalho de Regina Reyes Novaes, Os escolhidos de Deus, um dos poucos estudos em que o imaginário cio homem do campo não católico é descrito,

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a vocação dada de Deus aos homens, continuadores na Terra e sobre a terra de sua completa, mas inacabada, obra de criação. É preciso ir um pouco além de algumas conclusões de caráter ético e jurídico na interpretação científica das várias leituras legitimadoras cia supremacia do homem sobre toda a criação, e de seus direitos plenos à sua apropriação social. Se os deuses gregos e latinos que se antecedem aos cio cristianismo ordenam cio caos original um cosmos pronto a se converter na Terra, morada dos humanos, a pessoa do "pai" cristão cria cio nada, a poder da emissão do verbo, todos os mundos, inclusive a Terra. Se os deuses anteriores, assim como os orixás do candomblé, habitam ao mesmo tempo paragens infinitas de uma outra dimensão e os lugares naturais da Terra, com o que até mesmo se identificam e desde onde geram o sentido de seu próprio ser e a razão de sua existência, as pessoas do deus cristão estão em todas as partes, mas essencialmente num céu além e acima cio mundo natural. E quando estão nele, como a pessoa do "Filho", o deus encarnado, a sua experiência mais eloqüente de presença entre os humanos realiza-se nas cidades, nas aldeias, ou nos lugares de uma natureza socializada.

3 de fevereiro SOBRE DEUSES, HOMENS, BICHOS E PLANTAS, AINDA

Devo haver lembrado em algum lugar que nas passagens de quando Cristo andou no Mundo", tão fortemente gravadas no imaginário do cotidiano camponês, os animais cio "bem" são os domésticos, como o jumento, o boi, o galo, a ovelha, o cordeiro. Os do "mal" são sempre os selvagens, à exceção das pombas, a meio caminho entre um domínio e o outro: as serpentes, os lobos. O deus celestial criador cio mundo natural está fora dele e não pode ser identificado, em qualquer uma de suas pessoas, em qualquer lugar específico (rios, montes, cachoeiras, florestas) ou mesmo em um amplo cenário. Relembro que o deus encarnado, Jesus Cristo, com muita força sugerido pela docência da Igreja como um deus amoroso e um homem-exemplo para todos os outros, não revela identidade alguma eloqüente com o mundo da natureza. Ele é um sujeito cia polis, da aldeia rural e dos cenários campestres de seu mundo.

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Ainda quando urna "virtude" da natureza considerada em si mesma, ou de alguns seres naturais, é avaliada, há sempre uma tendência de valor, no sentido de associar o "bem natura" à "glória de Deus." (Insiste-se muito nisto nas orações e ensinos da Igreja, onde tudo o que existe e é bom, belo ou verdadeiro, sai de si mesmo para honrar e glorificar a divindade.) Agindo sobre o ambiente com a voracidade desarmônica, os homens ambiciosos (sempre mais os "de fora" do que os "daqui", ou os que seguem"os costumes antigos") conspiram contra um plano clivino de dar aos humanos a primazia sobre tudo o que existe. De os destinarem a continuar a sua obra de criação e realizar isto em seu proveito pessoal e imediato, mas também em nome de fundarem "aqui na Terra" um mundo feliz e harmonioso. No entanto, em direção oposta, conformarem-se os homens com as regras cia natureza, deixando de dominar as florestas e de reproduzir nos campos e nas terras de lavouras o trabalho inesgotável de socialização cio mundo natural, é também uma perigosa fuga cio plano divino. Pois é o que reaproxima os homens do campo cia condição cio "bugre", dos que haviam nos matos antes "dos nossos antigos", heróis civilizadores, mesmo quando os nomes dos primeiros já tenham sido esquecidos. Para Chico Amaro, o rio Cachoeira é menos importante cio que as três nascentes de água cio seu sítio. No outro sítio cia família (herança cia esposa?), cio outro lado cio rio, "lá nas montanhas", há um ribeirão de águas límpidas, cristalinas. Elas são tão boas, conta Chico Amaro, que duas pessoas cio lugar, antes de morrerem, pediram que alguém trouxesse "daquelas águas pra beber". E ele completa: "eu, quando vejo uma nascente assim de água tão límpida e boa, eu penso que ela é uma coisa sagrada". Muito raramente Chico Amaro e as pessoas de sua família vão até "no Salto dos Pretos", a menos de seis quilômetros de seu sítio. Não há o que ver naquele excelente lugar conhecido, reservado ao deleite dos "de fora". Porque não qualquer água, em qualquer lugar do mundo, mas as águas regradas das nascentes, das ribeiras e dos pequenos córregos, e mais a terra livre dos 'matos" e das "pragas", posta para o pasto e a lavoura, eis o que é a "benção de Deus" dada à vicia social. Na conversa de sempre, a terra de cultivo e de alimento cio gado é um bem, assim como a água "de serventia" é uma benção, um "dom". A união das duas torna possível a vicia das pessoas, a existência camponesa das famílias e a perpetuação das comunidacies, Mas nisto elas são associadas a um terceiro elemento,

ausente do imaginário dos turistas e dos contemplativos como eu, e tão presente nas falas de Chico Amaro, Sebastião Claro e Antônio Fernandes. E qual é este terceiro elemento vivificacior? Alguma coisa mais cio mundo natural? Não exatamente, a não ser em termos, pois medido também em palavras cio essência e sentido natural, ele é a ponte entre o mundo "criado" e dado e o mundo transformado e incorporado à vicia partilhável ela sociedade: o trabalho cotidiano dos homens e das mulheres. Recordemos idéias. É o trabalho rústico com a terra e a água aquilo que transforma um dom de Deus em um bem produzido pelos homens, por meio de ações que de uma maneira inevitável combinam e alteram a vida e a morte, a destruição e a regeneração, a apropriação cio ambiente e a devolução a ele de condições artificiais ou não (adubo químico versus fertilizantes naturais), mas necessárias desde quando o efeito residual e perverso cio próprio trabalho produtivo é o empobrecimento e o envenenamento cia terra. Mas os camponeses de Joanópolis, ao mesmo tempo em que se vêem como agentes diretos de uma ação dúbia sobre o meio ambiente, vêem-se, até mesmo na dupla face cia seqüência de seus atos de trabalho agropastoril e nos seus efeitos, como os continuadores sociais cio código de reproclução cia vida na própria natureza e, por quê não, das próprias regras com que a divindade cria e recria os seles cio mundo e da vicia? Pois também "das mãos de Deus" ou "cia própria natureza" o bem e o mal se alternam. A vida nasce da morte e a morte da vicia, a flor gera-se cio apodrecimento e ela tende à podridão, terminado o seu ciclo de vigor e maravilha. Da queima de um pasto por efeito de um raio ou de uma "queimada" provocada, surge a brota das plantas. E cia morte dos bichos cia floresta deriva o equilíbrio dos seus seres, assim como dia matança de porcos sai o alimento, a troca e a festa. Chico Amaro reconhece valores dentro, aquém e além da utilidade. Colocando os planos de tudo em uma ordem variável, de acordo com cada caso, ele avalia uma mesma relação ou um acontecimento com critérios: domésticos, comerciais, ecológicos e ético-estéticos. Haverá outros? No "aproveitar" um terreno ocioso de morro para plantar meio alqueire de eucalipto, o que se perde? Quais os ganhos? Há um ganho financeiro seguro, mas o terreno dado ao eucalipto pode ser depois aproveitado para outras coisas? Penemos com eles: Chico Amaro e o eucalipto. Sei que corro o risco de me repetir aqui

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e ali, mas em parte será porque nestes dias ouvi as mesmas histórias, as mesmas avaliações e as mesmas certezas e dúvidas várias vezes. Entre as plantas cultivadas pelo homem, nem todas possuem um mesmo valor ético. Um mesmo qualificador dos gestos e dos motivos de quem as planta. Quem colocaria em questão o milho, vegetal múltiplo, sagrado? E o feijão? E a mandioca? Mas duas culturas recentes existem que sempre precisam ser explicadas: a batata e o eucalipto. A troco de um lucro fácil, em meses no caso da batata e em poucos anos, no do eucalipto, ambas exigem a terra que degradam. A batata por causa ela quantidade exagerada de herbicidas, pesticidas e outras "químicas" que o seu crescimento pede. Não raro ao longo de toda a serra e, mais ainda, nas "terras frias", de Minas Gerais, elas são cultivadas por "batateiros" arrendatários de "terra alheia" e nunca interessados no seu cuidado ambiental. O plantador de batata traz ao campo tradicional a figura de um novo tipo de empreendedor de lavouras vegetais. Aventureiro ávido de lucros fáceis, ele alastra batatais por alqueires de morros e terras planas, "carrega na química", esgota as terras e parte em direção a outras. Creio haver dito alhures que mesmo entre eles há urna crença de que o plantador comercial de batatas acaba sempre pobre. Assim também é o eucalipto. O seu simples cultivo rompe com a gramática costumeira dos relacionamentos entre o homem do campo e a terra. Não se o planta para reproduzir com os seus frutos diretos a vida dos grupos domésticos e de seus animais "de criação". Ele não é cultivado para propiciar trocas comerciais entre parceiros de bairro, sujeitos de um mesmo destino. Tal como a batata, ele vale a pura mercadoria. Caminhões encostam ao lado do terreno de cultivo, trabalhadores volantes em horas, em dias, arrancam da terra as batatas ou derrubam os 'pés de eucalipto" e o fruto da terra, depressa tornado pura mercadoria, é levado dali com a rapidez e a impessoalidade de tratos e relações que, ao olhar de Chico Amaro, caracterizam as transações perversas de bens e valores entre as pessoas da cidade. Afinal, não é apenas a terra o que se degrada com o eucalipto e a batata. Degradam-se motivos, princípios de trocas com a natureza, preceitos de reciprocidade entre as pessoas. Vejamos isto com os detalhes ditos por Chico Amaro. Falo por ele e faço a síntese de seu pensamento em nossa longa conversa. A troco de um lucro fácil, raramente ameaçado por fatores naturais - o que não acontece no caso da frágil batata - o seu plantador sabe que se abre a urna planta invasora, vinda de fora. 110

(De onde? Da África, da distante Austrália que no Pretos de Baixo nem se imagina onde fica?) Ela em pouco tempo rouba das plantas e bichos alqueires de matas furtivamente derrubadas e queimadas; pastos onde nunca compensou, ou não compensa agora, substituir o capim nativo, exaurido, pelo caríssimo 'capim brachiara"; roças cansadas depois de muitos anos de milho e feijão. Invasor convidado, agora com patrocínio de uma quase cruzada ela "Casa da Lavoura", ele é percebido pelos mais velhos como um destruidor irreversível das condições naturais de fertilidade da terra e da vida. Ele retira do solo os últimos ingredientes de fertilidade: seca as águas e por isso mesmo deve ser plantado sempre a pelo menos 30 metros das nascentes e beiras de rios, torna um "deserto verde" o lugar onde está, pois esgota de uma vez a biodiversidade dos alqueires que ocupa, e expulsa de sua ilusória floresta estéril toda a vida animal. Por isso, quem o planta se explica, como quem se sente um emissário do "progresso" contra o "atraso", como o filho do Dantas, mineiro amante das motosserras, ou como um homem ao mesmo tempo justo e com remorsos, como Chico Amaro. A opção pelo eucalipto é sempre dúbia e se fala dela como uma espécie de última saída frente à "crise do gado" e aos tropeços da economia de cereais na região. Alguns donos de Sítios falam mesmo cia "lavoura de eucalipto" como "a salvação do homem cio campo". Mas como os custos iniciais são altos e como sempre se teme o esgotamento da terra para outras futuras lavouras, as pessoas do lugar nunca se arriscam a plantar a floresta estéril em grandes porções de seus Sítios e nunca arrendam terra "dos outros" para isto. Escolhem "manchas", terrenos de má serventia, subidas de morros de um alqueire a dez alqueires. Condenam os "de fora" que "abrem calipitais" de mais de 100 alqueires. Mas, diante de mim, o marido de dona Cicia se arrepende por não haver plantado muito mais pés de eucaliptos quando teve condições de terras e financiamentos para tanto. "Eu era pra estar rico agora." Ele sabe que os ricos são "outros". Não são reconhecidos homens muito ricos entre os nativos dos bairros, cia serra. "Eles" são ricos por serem "de fora". E enriquecem ainda mais porque entram nas terras de morro acima com o poder do capital e com idéias e projetos que não são apenas "modernos", mas são modernamente não éticos, degradadores. Quando Chico Amaro ou um outro dono de sítio "clã no arrendo" porções de terra para um "batateiro" estender as suas lavouras, há um reconhecimento culposo cio um ato duplamente ruim, ainda que inevitável em muitos casos e, por isso, torna111

do liminarmente legítimo. Em primeiro lugar, ele é a evidência de que o próprio 'dono" não é capaz de realizar por sua conta aquela lavoura ou outras em suas terras. Em segundo lugar, ele representa a entrega da terra a um destruidor coletivo de sua fertilidade. Assim também acontece quando um sitiante planta por conta própria eucaliptais ou batatais. Eis uma ação do tipo "não tem outro jeito", e o simples enunciado da fatalidade aí inscrita já diz tudo. Mudase uma linha de trabalho e cultivo "dos antigos". Abandona-se o que se sabe em nome cio que se aprende "com gente de fora" (o pessoal da Casa da Lavoura incluído) porque "os tempos mudaram", as condições são outras e é preciso render-se, pelo menos em parte, à gramática do inimigo quando você não pode mais dialogar com o mundo usando a sua. Render-se, porque "não tem outro jeito", às lavouras de lucro rápido e fácil, torna possível a reprodução cia pequena economia e cia vida social sitiante. Mas retira dos usos e dos pensamentos um certo signo de nobreza e uma cumplicidade de trocas com a natureza que mesmo depois das críticas dos ambientalistas - uma outra estranha e incompreensível classe de "outros" - ainda fazia com que os lavradores de terras do Pretos de Baixo se sentissem em relativa harmonia com o mundo natural. Pois vistos com os olhos Postos no resultado dos "outros", o eucalipto e a batata são, depois cio "fracasso cio leite", a "única saída" presente, não apenas cio buraco cia "crise", mas até mesmo em direção a uma desejada mudança de vicia através de um, quem sabe? Enriquecimento. A repetida expressão, "bem de vida", ciue torna aceitável o "enriquecimento" por diluí-lo a um nível coletivamente suportável entre os sitiantes dos bairros cia Mantiqueira, ao traduzir o mínimo da aspiração comum, não é mais imaginada como um resultado do trabalho agropecuário restrito ao gado de leite e às lavouras costumeiras, na escala em que, uns mais, outros menos, todos 05 sitiantes dos bairros rurais de joanópolis a podem praticar. As escolhas possíveis de passagem cia "crise" (em que todos se reconhecem envolvidos, por oposição à "gente de fora" que chega próspera e prospera) para o "bem de vicia" exigem tipos de investimentos não abertos a todos os sitiantes, Exigem ainda a submissão a uma lógica de trabalho e a uma ética cie produção a que as pessoas cio Pretos de Baixo se rendem apenas quando reconhecem, em seu próprio caso cem termos imediatos, que "não tem mais outro jeito", 112

4 de fevereiro Euc1\LlP'r'o, PINHEIRO, ÁRVORES NATIVAS

Faço apenas um quadro resumo do valor-árvore. Associo-as aos bichos do sítio, dos campos e dos matos, de que falei aqui e ali, Eucaliptos,

Pinheiros,

Árvores nativas,

pouco reconhecidos CITI suas variedades;

- poucas variedades "araucária"e ''elioti'";

- muitas variedades reconhecidas principalmente p01' meio de SLIaS utilidades;

- naturalmente distante (veio de fora), socialmente próximo (plantado e colhido livremente);

- naturalmente próximo e distante: araucária versas clioti, socialmente distante e próximo: araucária (proibido) vclaus elioti (plantado e colhido livremente);

- naturalmente próximas (são "do lugar" e reconhecidas de todos), socialmente distantes (raramente plantadas e proibidas para o corte);

- útil como fonte seguia de lucros versas perversa como clegra dadora (Ia terra e secadora das águas;

menos útil como fonte de lucros vei'sus adequada como não degradadora da terra e das águas;

- inúteis como possibilidade de apropriacão e utilidade i'ersus muito úteis como fertilizadoras da terra e equiiibradoras do cliala;

- sem o mesmo valor de perversão natural, são associadas aos animais da casa e do pasto, do mesmo mudo criados para LISO e lucro: gado, porcos e aves;

- rrtais (itt menos associados aos animais de criação mais "ariscos' ou aos animais nativos próximos LItilizãveis ou não como alimento: gansos, perus, galinhas-d'angola, ponl)is, tatus, pacas, capivaras;

mais ou menos associadas aos animais distantes e, hoje em dia, francamente interditos à caça e LISO; veados, capivaras, antas, onças, grandes pássaros da floresta;

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-associações comuns: - associações comuns: —associações Comuns: batata, batateiro, ser meio termo entre o na- beleza e pujança natugente 'de Ibra", "cader- tural e o artificial; o da- ral versus interdição neta de poupança", qui" e o 'de fora". Lu- social injusta; equiliCasa da Lavoura, mo- cro lento e duvidoso, brio e harmonia da naeternidade, possibili- preservação da nature- tureza; inutilidade sodade de enriquecimen- za (araucária) versus cial presente. Policial to, "bem de vida", rup- empobrecimento da Florestal, punição arbilura com a ética e "os natureza (elioti). Tem- trária, caça clandestina, costumes dos antigos". pos antigos. turismo.

5 de fevereiro A

HISTÓRIA DOS CAPINS

Em "O sítio camponês", Elien Woortmann conta a história dos capins, contada pelos sitiantes de Sergipe. Ela tem razão e eles também, pois mesmo os capins do pasto têm histórias e elas servem, como as de outros seres vivos do ambiente, como marcadores das idades próximas dos tempos naturais e sociais, assim como servem também de indicadores da própria história das famílias, dos sítios, dos bairros e de toda a região considerada como o mundo das pessoas de um lugar rural. Houve um "tempo antigo" de muitas matas e poucos pastos. Mas quase ninguém associa a sua própria biografia a esta era clistante. Quando vieram os p215105 com a derrubada das matas para a abertura dos locais cio gado e dos terrenos de "roças", os primeiros capins eram "cia natureza", Havia já algumas pastagens antecedentes, e algumas pessoas acreditam que mesmo nos anos muito antigos cio domínio das florestas sobre montes e montanhas já existiriam manchas de pastos, cio campos. Seria então a época de uma ocupação invertida: territórios contínuos de florestas abririam-se, aqui e ali, para "manchas" de pastagens naturais. Os bons pastos, os situados nas terras mais férteis, eram muito mais férteis também, e havia neles uma variedade de capins de muito boa qualidade para "o sustento cio gado". Os mais velhos gostam de Ver as primeiras páginas (mas vale a pena ler todo o artigo) de: Ellen Woortmann, "O Sítio camponês", Anuário Antropológico.

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contar e repetir passagens de uma biografia cia natureza em que as pastagens eram naturalmente boas de alimento para os animais e eram também um lugar saudável: o gado forte e resistente quase nunca contraía enfermidades, e o uso de remédios veterinários era desconhecido ou muito limitado. Vários nomes de capins eram repetidos entre todos e mesmo quando algum criador abria matas, e sobre o seu solo queimado estabelecia uma pastagem, o capim semeado ou transplantado era "ciaqui mesmo" e, portanto, considerado "naturai". Dentre todos os tipos de capim, por muitos anos - isto atravessa gerações "dos antigos", segundo Antônio Fernandes -, preclo1imtv2t o "capim gorciura". Ele era uma planta muito nutritiva e especialmente indicado para a melhoria cio teor de gordura cio leite das vacas. Ele ocupava uma parte muito grande das pastagens e se reproduzia com muita facilidade, "abafando" espécies de capim menos vigorosas. Quero lembrar que em várias músicas sertanejas mais antigas UM sinônimo de fertilidade natural e fartura na criação de gado era o "capim gordura", o "gorciurão". Em meados dos anos 70 (1976, segundo alguns, um POUCO antes ou depois, segundo outros), as geadas e mais algum tipo de praga nunca definidamente identificada "deram fim no gordura". Em poucos anos, ele desapareceu por completo cio muitas pastagens e, em outras, resta em pequenas "manchas", em meio a outros, muito menos nutritivos. Nenhum outro tipo de cobertura vegetal reconhecida como "natural" e propícia ao alimento de bovinos e eqüinos surgiu "naturalmente" desde então. Nos últimos anos têm aparecido pelos pastos e se alastrado em alguns um tipo de grama típica dos jardins urbanos. Algumas pessoas cio bairro dos Pretos lembram cicie "esse capim grama" sempre existiu, mas nunca teve o poder de se alastrar, dado o vigor de conquista cio "gordura". Agora, tom a "quebra cio gordura", em alguns pastos ela toma conta cio extensões crescentes, sem substituir o gordura em suas qualidades como alimento. Aumentados cio pragas e revestidos cio formas mais fracas e menos nutritivas cio cobertura vegetal, OS pastos naturais sustentam cada vez um número menor cio reses p01' alqueire. Surge uma também crescente necessidade cio complementar a nutrição das vacas cio leite com rações fabricadas com cana-de-açúcar e outros vegetais, ou compradas em Joanópolis e em outras cidades. E nestes termos que pessoas como Chico Amaro, Piínio, Duta, Antônio Fernandes, avaliam a história presente das pastagens cia região.

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A melhor solução é também recente e coincide com os anos da perda do capim gordura. A introdução de espécies forâneas de pastagens "artificiais" (num duplo sentido agora: porque são plantadas sobre os "pastos naturais" e porque são usadas espécies de capim "que não são daqui") surge como "a única solução" para os criadores que não querem "desistir do gado". Dentre todos os tipos de capins acabou por predominar o "brachiara" ("brachiara", "brachiarinha", "brachiarão", outros nomes). Os criadores de gado leiteiro dos sítios vêem os de fora fazendo com o capim o mesmo que outros forâneos fazem com a batata e o eucalipto. Eles plantam grandes extensões de suas terras "com o brachiara" e muitos acabam por "formar de brachiara" todas as suas pastagens. Dentre os sitiantes tradicionais, os criadores com algum poder de inversão, desde pelo menos uns cinco anos, começaram a plantar "um pouquinho do brachiara", mesclando fracas pastagens de "capim do lugar" com pequenas porções de pasto artificial. Os seus custos são muito altos, embora com uma "boa pastagem formada em brachiara" seja possível sustentar um número compensador de vacas de leite. O verbo "brachiarar" tem siclo incorporado à fala dos sitiantes. Como o eucalipto e menos cio que a batata, o brachiara é dúbio. já de longe, do passar pela estrada, as suas manchas verde-claras denunciam o criador de posses pelo menos médias e de espírito empreendedor. Sugerem o sítio de gado "em cuidado", com maquinário moderno e condições de higiene superiores às dos sítios francamente tradicionais. Mas ele associa-se ao eucalipto e à batata em ser visto como uma nova espécie de mal necessário; de invasor inevitável numa "crise' em que pode ser suspeitado como uma solução parcial. Mais fraco cio que os "naturais", ele "pragueja" com mais facilidade, e durante tempos se acreditava que em determinadas condições podia envenenar o gado. Eis completo o "ciclo dos invasores". Temos um produto de lucro destinado com exclusividade ao consumo dos humanos (a batata), um outro para o alimento dos animais e, finalmente, uma árvore de múltiplos usos locais e externos. Já se viveu sem eles no passado. Seria bom reproduzir as condições em que se vivesse sem eles agora. Mas cada vez é menos possível manter vigentes as mínimas alternativas de reprodução cia vida e cia economia familiar sem se subordinar à introdução de um cicies, de dois, ou de todos.

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6 de fevereiro

Nos

MONTES,

com

GASTON BAGILELARD

Gaston Bachelarcl sobe os montes da Mantiqueira comigo. Acompanho, de novo, José Fernandes e sua turma da "capina" até nas roças de milho, nos morros mais altos cia fazenda. Há um tão forte prazer rústico no trabalho cia capina, nos gestos do corpo arcado para a frente, em quem "limpa" das pragas a roça de milho! O primeiro efeito cio esforço é muito imediato e pode ser avaliado em seguida. Antes a lavoura estava "tomada de pragas", mas com a passagem dos homens e enxadas logo as filas retilíneas do milho ficam limpas e a terra, de um lado e cio outro de cada fileira, fica de novo sem nada, marrom e macia. Nem sempre eu vi esta atividade sendo feita com tanta energia, mas aqui nesses altos, a força bruta, regrada, ritmada e a rapidez sincronizada dos gestos de capina dão à cena um quase ar de fúria e festa. Pois trata-se de invadir, de arrancar vigorosa e certeiramente tudo o que não seja os pés de milho. Sem tempo de pensar no que faz, pois tudo é muito ligeiro, os homens revisitam o evangelho e separam "o joio cio trigo". Nada cia placidez molenga, da incerteza preguiçosa cio roceirojeca Tatu. Nenhum dos gestos de tipo Mazzaropi, jocosos e inteligentemente cretinos. A terra da Mantiqueira inclinada morro abaixo, desnudada e com vergonha de haver perdido as florestas de que se recobria, vizinha dos últimos capões de mato aqui e ali, ou de matos ralos na vertente de riachos morro abaixo em busca do rio Cachoeira, rodeada de pastos de capins pobres ou entrecortada de pequenos alqueires onde brilha sob o sol de fevereiro o vigoroso brachiara, não é áspera e nem consegue ser mais resistente aos gestos cio lavrador, a ele e ao ferro agudo cia ferramenta de carpir, com o tempo gasto pelo uso freqüente e pela maneira de ser manejada com invejável destreza. Quero retomar aqui algo de que falei em algum dia passado. Mas de novo, e revendo a mesma equipe camponesa, no mesmo cenário, eia me volta e eu a retomo. Quase todo o trabalho agropastoril é árduo, seja ele o ordenhar vacas de madrugada, seja roçar um pasto horas a fio, sob o sol. Quando as atividades agropastoris são realizadas, como aqui, com o recurso muito limitado de uma, pelo menos, média mecanização, cabe ao puro esforço dos homens e das mulheres toda uma seqüência de gestos brutos que, no dizer das pessoas, "gasta o corpo", como em algum momento eu procurei eles~ 117

crever em A partilha da vida. Carpir urna roça de milho, roçar um pasto, rachar a lenha de troncos grossos de madeira, lidar com o gado no pasto e no curral, "esticar" uma cerca de arame farpado, fazer a colheita cia batata, derrubar e depois limpar e cortar um pé de eucalipto, preparar no fogão de lenha a comida diária da família pelo menos duas vezes ao dia, lavara roupa grossa, suja de terra e suor dos "homens da casa", no pequeno tanque ao ar livre ou, pior, na beira cio rio, eis uma seqüência costumeira de atividades camponesas onde o esforço do trabalho nunca é pequeno. De resto, hasta ler na grossura dos dedos fortes na mão já calosa de um homem adulto, no corpo arcado das mulheres mais velhas, nos pés sempre grosseiros dos velhos, no tostado ressecado cia pele escurecida, os sinais eloqüentes cio "estrago" no corpo cio 'eito cia vida". Duro, rústico, apressado, bruto mesmo, o trabalho cia capina cio milho poderia aparecer aos olhos estranhos como uma quase antesaia cio sofrimento. Mas nada custo transparece aqui, onde quatro pessoas - das quais uma é "dona" cia terra e cio trabalho e as outras três são "camaradas" - vivem o trabalho árduo como se ele fosse, entre eles e entre eles e a terra e as plantas, um desafio, uma experiência vivida e pensada cio trabalho e cio jogo. Os homens conversam, brincam animadamente uns com os outros, avaliam contra a dos outros a dualidade cio seu "serviço", comentam os fatos cie ontem e os resultados dos jogos de futebol cio sábado. É possível que a minha presença tenha incentivado o lado "bom" cia cena que eu descrevo, pois as pessoas não estão acostumadas a trabalhar diante de pessoas de fora, e quando isto acontece via de regra é sob os olhos controladores de um "patrão", dono cia terra que se carpe ou do "serviço" que se faz. A própria evidente demonstração de destreza poderia ter sido aumentada, pois na subida José me falava dos tipos de "serviços na roça" (em outros momentos chamados "trabalhos") e cia maneira muito eficiente como ele e sua "turma" os desempenhavam. Antes cia fadiga, que demora a chegar nestes corpos acostumados a oito horas diárias "de eito", os gestos jovens sugerem muito mais uma euforia cio prazer de ver o resultado de seu esforço realizar-se ali, de imediato: arrancar cia terra os capins e os "matos"; cieixálos vencidos, estendidos sobre a terra nos vãos limpos entre uma fileira e outra de plantas úteis; tornar a terra, à volta dos pés, fofa e arejada, receptível ao ar e à água das chuvas; fazer chegar até junto dos pés cia planta uma porção a mais de terra fofa, trazida na pá de

Claro. Em tudo isto devem existir muitas imagens, metáforas cia Bíblia, da vida e do trabalho com a terra. Símbolos de há muito eles próprios trabalhados entre imaginários camponeses. Pois me espanta que nenhum detalhe cio que se faz, nenhuma seqüência de operações, como a que eu acabo de descrever, esteja vazia de conhecimentos consolidados, de interpretações, algumas cicias argutas, de histórias e memórias de casos, de seus pequenos mitos de origem, de seus breves ritos propiciatórios. O princípio de tudo parece ser a idéia persistente de que a natureza pródiga, e aos poucos empobrecida "pela ambição dos homens", é também resistente, e, desde a expulsão cio primeiro casal de humanos cio paraíso terreno, ela cobra dos homens um trabalho que não é tão "duro" porque a cada dia da vicia ele é pesado, penoso, mas porque é preciso sempre renová-lo. Infinitamente, geração após geração, repartir os mesmos gestos todos os anos, nas mesmas seqüências dos meses e entre as fases da lua. Ao explicar as razões cia necessidade cia "capina", José toma como um bom exemplo a "luta" entre o milho e o feijão, inimigos e rivais irmanados, semeados na mesma cova, destinados a crescerem um agarrado ao outro. Diz ele. A força da terra é sempre limitada. Mesmo uma terra "virgem", ainda muito fértil, roubada cia mata derrubada e queima-

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enxada em movimentos agora suaves quase como um apressado aconchego que o homem faz à natureza. Os cia equipe procuram trabalhar em um mesmo ritmo, à exceção de um cicies, bem mais jovem e menos experiente. Conversam depois de terem o corpo aquecido e ninguém arfa, ninguém entrecorta a fala brincalhona com os sinais do esforço que está sendo feito. Quando todos param para comer o almoço, a grande lavoura de milho morro abaixo está dividida em duas metades iguais: cio alto ao meio ela já está "limpa", "capinada" e só ficaram de verde os pés de milho, militares; cia metade para baixo eia está ainda "suja". Toda ela estará "limpa" quando descermos antes cio pôr-cio-sol,

7 de fevereiro ALGUMAS IDÉIAS ECOLÓGICAS DO PONTO DE VISTA CAMPONÊS

da, tem os seus limites. Mesmo a terra adubada "a poder de "química" tem limites de fertilidade e nela eles são mais graves, pois o mesmo adubo que fertiliza cada semeadura, resseca a terra e retira dela a sua "força da natureza". Por isso, ao se plantar o feijão e o milho, primeiro se carpe com a atenção posta no feijão, cujo crescimento é mais rápido e que, em razão disto, precisa da "força da terra" mais depressa. Deixado de lado, o milho perde a força que o feijão, roçado junto ao pé, "rouba dele". A expressão completa de José é: "O feijão rouba a força do milho." Colhido o feijão das águas, é sempre bom que se faça uma nova capina para devolver ao milho, já então "bem mais crescido", a força ela terra roubada dele antes. 'Então a gente chega terra no pé do milho pra ele ganhar a força que era do feijão e recuperar." Trabalha-se com tempo, entre tempos semelhantes e desiguais. E parecendo que se lida rápido com a exterioridade - pois parece ser apenas um campo de plantio de cereais que "fica limpo na capina" - o que importa é o cjie está sob a terra, escondido na alquimia pouco conhecida, mas sabiamente entrevista e adivinhada, do jogo de alianças e conflitos entre raízes e minerais. Parecendo também que se "lida" com apenas alguns vegetais simples, dividido entre "planta" e "praga", e mais os elementos da primeira física pré-socrática, como o ar, o fogo, a água e a terra, o que na verdade as pessoas sabem que movimentam são fluxos de forças e energias. Sem lhes saber os nomes, pretendem conhecer e manipular com eficácia os seus mistérios. Sabem que tudo flui e é fluxo, e o fluir de tudo em que tocam são as trocas do todo em que os homens do campo e o seu trabalho interferem em apenas uma muito limitada dimensão. Mas ela realiza o que importa, quando manipula com instrumentos grosseiros e saberes ditos por meio de muitas metáforas as forças e as energias sempre em movimento, nunca em repouso, que são, tanto pela própria múltipla natureza quanto por eles, homens, retidas e ofertadas, disputadas, capturadas, divididas e entretrocadas, Antônio Fernandes sentenciava: "sem o devido saber o trabalho em cima da natureza não produz nada". Vejamos. As plantas nativas, 'naturais" e compreendidas como "do lugar", são "pragas", e mesmo elas possuem vários nomes entre as espécies mais conhecidas. São, sendo anteriores às lavouras, invasoras, quando rebrotam e renascem no campo arado onde as plantas semeaclas pela mão cio homem são tornadas seres vegetais "cio lugar", com direito à terra e à água roubadas das plantas nativas, "pra~

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gas", vegetais não simbolicamente sociais e nem culturalmente socializáveis. Por si próprias as plantas úteis não nasceriam "ali", não sendo "nativas cio lugar", mas trazidas "de fora". As plantas plantadas conquistam o direito roubado das cia natureza e, ademais do "trato" que vai da "aração da terra" às vésperas da colheita, são objeto de ritos, sujeitos de orações, de cuidados também simbólicos. Reza-se por uma "roça de milho', benze-se um animal ou uma lavoura recém-plantacia. Faz-se promessa e lava-se com água limpa "o pé da cruz" quando a chuva do tempo falta e as lavouras ameaçam morrer. Sabe-se - e mais os raizeiros, e as ervateiras, como dona Maria, conhecidíssima mulher de ervas cio bairro da Maria Alferes - que todas as plantas cia natureza, em suas raízes, paus, folhas, flores, em alguns casos, e frutos, possuem poderes naturais para 'o lado do bem" ou 'cio mal". há um conhecimento a respeito bastante comum entre os homens e mulheres dos bairros, e espera-se que os especialistas locais no assunto tenham um conhecimento bastante mais aprofundado. No entanto, mesmo as "plantas de remédios" mais freqüentadas são aquelas que as mulheres cultivam em casa, na beira próxima do quintal, não raro misturadas com as de um minúsculo jardim de flores: o alecrim (rosmaninho), a arruda (que cia casa e das pessoas afasta "o mal"), a melissa, a cosna, a carqueja, a arnica (há uma modalidade "cia serra" e outra doméstica), a erva-doce, o capim-limão. Estas plantas de uso medicinal caseiro São cultivadas e compreendidas como "de fora", à exceção de algumas, como a carqueja e a arnica. A sua relação com as pessoas é classificatoriamente semelhante à das aves, plantas cio jardim e da horta. Temos visto seguidamente que em momento algum nega-se o valor imperecível - ainda que historicamente decadente, por efeito de ações humanas desastrosas - cio poder e cio "benefício" cia natureza. Dela tudo provém e as suas energias conhecidas e imaginadas são das pessoas também e são o fundamento social ela possibilidade da vida social e de sua cultura. Mas isto se clã desde que ela, a natureza, esteja sendo todo o tempo intencionada e motivadamente reordenada pelo trabalho humano. A mesma força dos elementos materializacia de maneira visível na terra, no ar e na água que faz nascerem e frutificarem as plantas cia vicia dos animais e das pessoas, germina e faz crescerem as pragas dos matos e campos, as serpentes venenosas, as moscas e os escorpiões. De outra parte, ainda que malévola quando empregada de forma inocente, por ignorância dos princípios naturais de parte cio agente, ou mal-intencionada, por am-

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bição, por desejo de submissão da natureza aos interesses de ganhos exagerados ou indevidos, a ação socializadora realizada pelos agricultores, criadores e seus sujeitos derivados não faz mais do que trazer para um outro plano, o da sociedade, da consciência e da cultura, tudo aquilo que já, antes e à margem delas, acontece e sempre aconteceu nos relacionamentos que entre si sempre trocaram os seres e as forças do mundo natural, de que o próprio corpo das pessoas - um dia "nascido de mulher" e a ser um dia "dado à terra" é uma parte. Pois o raio queima os matos e mata as árvores nos campos; as enchentes dos rios destroem enormes porções de terreno plantado e matam animais aos montes; os animais "de Deus" devoram frutas, folhas; os bichos matam-se uns aos outros e assim por diante, em muitos exemplos e metáforas. Alguns, mais velhos, chegam mesmo a dizer que o mundo natural caminharia para a absoluta desordem e a provável destruição de seus elementos, não fosse a ação ordenaclora dos humanos, ainda que isto pareça acontecer sob a forma de destruição. As próprias florestas que, vimos, tornaram-se inúteis como ser-do-ambiente, mas continuam a serem indispensáveis como ser-de-natureza, são úteis e boas no entremeio dos espaços naturais tornados domínio social.

Sejamos românticos, mas não tanto. Todo o tempo da pesquisa conversei com homens e mulheres de diferentes categorias, ainda que na maior parte dos casos com proprietários "sitiantes", produtores familiares ancorados em grupos domésticos no mais estrito sentido camponês da palavra. Deixei de lado em meu trabalho os "donos de sítios" forâneos, e principalmente deixei de lado os odiosos grandes investidores na pecuária leiteira modernizada ou no "reflorestamento". Pocleria ter ido visitar alguns dos neoprodutores, introdutores de produtos e idéias de tipo "naturalista", como os criadores de abelhas dos "bairros de cima", para além do Salto dos Pretos. Conversei com a "gente pobre" do lugar, não proprietários divididos entre "camaradas" e/ou parceiros de pequena escala e mínimas posses. Mesmo havendo sido até aqui precária a minha diversidade de interlocutores locais, entendo que em tudo o que tenho escrito exis-

tem uniformidades de imaginário cultural mesclado com diferenças sociais de interpretação do conhecimento e de motivação a ênfases de idéias ou de falas dadas a mim, de acordo com as categorias de produtor local. De que maneira falaria das roças que carpiu José Fernandes, se ele fosse um camarada pago "a jornal"? Seria seu pai, Antônio Fernandes, tão "amoroso cia terra' se ela não fosse dele? Acho que de um modo não muito diferente de como acontece, coletiva e tribaimente, com uma nação indígena e seu território, em outros, mas próximos termos de dimensão, propriedade e sentido, toda a terra demarca uma relação e marca uma identidade estabelecida através ela qualidade de reciprocidade entre um tipo de ator frente a ela e o feixe de outros relacionamentos que ela e seus frutos geram e determinam. Esta diferença dita cm uma conversa comigo e até mesmo entrevista no mínimo varejo dos gestos cio trabalho, separa diante dela em uma mesma equipe de "capina": O "dono", o "parceiro" e o "camarada diarista". Descendo o morro íngreme, José me mostra as suas lavouras, e não as cio pai, cultivadas nas terras do pai, e não ainda suas. Há um duplo ar de pequeno orgulho camponês. Primeiro, vimos, aquilo é o produto de seu áspero trabalho direto, ora realizado perigosamente com o trator, arando em encostas muito inclinadas dos morros, ora "no cabo cio guatambu". Segundo, aquilo é o resultado de seu poder de exercer um tipo especial de controle sobre o trabalho de outros, segundo os seus motivos e interesses. O pequeno grupo de "camaraclas" cia capina que nos acompanhou morro abaixo nada tinha a dizer sobre o assunto. Uma vez entre muitas havia realizado um "bom trabalho" e provavelmente o "dono" terá ficado satisfeito. Amanhã se recomeça. Em geral, uma antropologia cio mundo rural classifica categorias de sujeitos que vão cio sitiante proprietário ao trabalhador volante. Se olharmos por um momento, deslocando o foco das pessoas para os cenários do trabalho, creio que estamos considerando relações que se distribuem cia seguinte ordem: 1) ELI e urna terra qualquer, como o caso cio "bóia-fria" pago por um "(jato" agenciador para trabalhar por dois dias em terras de uma fazenda de café cujos donos e história ele não conhece; 2) Eu e urna terra de alguém, como no caso do trabalhador "camarada", diarista ou mensalista, em terras de "um outro", parente ou não, mas onde um vínculo interpessoal, realizado também por meio de uma terra de trabalho se estabelece; 3) Eu e a terra de minha lavoura, como no caso cio agricultor parceiro

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8 de fevereiro MAS QUEM FALA O QUÊ?

(meeiro ou arrendatário) que, urna única vez ou em ocasiões sazonais seqüentes, cultiva a sua "roça" na terra de um outro; 4) Eu e a terra de um meu... Em geral parente, como no caso freqüente de filhos cultivando nas terras de pais, genros nas de sogros (casos em que em princípio "aquela" ou outra terra vizinha será herdada pelo sujeite)) ou na de irmãos ou cunhados plantando na terra de irmãos ou cunhados; 5) Eu e a minha terríi, como no caso principal de minha pesquisa no Pretos de Baixo, entre proprietários sitiantes de terras herdadas e/ou compradas (herdadas e acrescidas de outras, confrontantes, compradas); 6) Eu e a terra dos meus, como no caso, também muito freqüente, em que ademais de haver sido herdada, uma porção de terra de trabalho vale por estar acrescida do esforço e de vivências de ancestrais, raramente identificados além de um bisavô. Basta por um momento considerar os dois extremos, o da primeira alternativa e o cia sexta, para compreender como um mesmo espaço-cenário de terra de agropecuária ganha significados e estabelece vínculos carregados ou não de motivações, de afetos e de sentidos segundo pesos e valores quase opostos. Pois se o traba!haclor volante trabalha o valor-de-um-tempo (Seis horas? Oito horas? 12 horas? Dois dias de oito horas cada?) sobre um espaço qualquer, um sitiante de terras ancestrais herdadas trabalha sobre um valor-espaço que o seu tempo de esforço ciensifica-se através de uma história de parentes, cuja realidade não se dá apenas "naquele lugar", mas é e se faz "naquele lugar". É quase a história cicie: um velho sítio, uma antiquíssima fazenda - através das pessoas e da sucessão das pessoas nele,.. Através dele.

9 de fevereiro AINDA O MESMO, DE NOVO

Talvez a diferença das motivações cio teor de trocas com o mundo natural, por meio cio trabalho com/na terra, seja mesmo estabelecida sobre valores de tempo. Sobre os sentimentos decorrentes da experiência de qualidades de momentos biográficos de tempo. A não ser em raros casos, trabalhadores volantes são reunidos e postos "no eito" para as colheitas: o "corte da cana", a "panha do café" e a cio algodão. Às vezes são chamados também para atividades de plantio e quase nunca participam das atividades interme124

diárias. Como o operário em Marx, são pontos de uma linha de montagem a cuja inteireza não são convidados e cujo produto final nem é seu, nem é de seu conhecimento. Vivem, repito, um breve tempo de um dia ou um pouco mais "no canavial cia Usina Nova Louzã", "nas terras de um tal de seu Lourenço", "numa fazenda pros lados de Machado", em espaços de meio ambiente socializado de que se retiram com a mesma indiferença com que entraram. Ao contrário, o "camarada", trabalhador diarista, jornaleiro, mensalista, morador ou não, experimenta seqüências completas cio efeito tempo de seu trabalho. João Batista, parente de José e seu Antônio, morador em um sítio vizinho, veio "trabalhar na roça de milho cio primo". Ele poderá ter ajudado rio plantio, participa ativamente cia capina e é provável que venha a estar presente na colheita. Se a terra e a roça não são suas, o ciclo dos tempos que o obriga a um investimento diferenciado sobre algo em cuja breve história está pessoalmente metido estabelece um tipo de vínculo cúmplice. Ainda que o seu "orgulho" seja bem diferente cio de José, de quem a "roça" plantada nas terras que virá a herdar pertencem, e que terá sobre ela o controle pleno cio destino. Haverá de tê-lo, a menos que o pai a tenha vendido no todo ou em parte antecipadamente, o que não é o caso. João Batista de alguma maneira participa do "orgulho" do feito como um dos visíveis responsáveis pelos resultados claqueia lavoura. Mas ele ainda trabalha "debaixo de ordens" para um outro, e cumpre o que ele determina para realizar algo que, tendo "a minha marca", não é meu. Isto dá à sua presença. "ali", uma qualiclade de afetos diferente do que sucede acontecer numa "troca de dias", quando em momentos sucessivos "donos" trabalham na "roça" cio outro e, reciprocamente, recebem o trabalho cio outro na sua. O mutirão que descrevi com pormenores em A partilha da vida leva a extremos o caráter interpessoal e festivamente ritual cio trabalho coletivo em terras de um "dono". Pois ele é um tempo de todos, vivido "no eito e na festa" e, a seu modo, sacraliza um espaço do ambiente. Nele se vive algo que em alguns casos passa a ser a lembrança afetivamente recordada por muitos anos. "Você lembra, foi naquele mutirão nas terras cio Zé Leite, faz muitos anos..." O parceiro é meio dono cia lavoura, não sendo o dono das terras onde planta e colhe. Quando José, depois de anteceder aos meus, com os seus desmedidos elogios sobre as suas roças cie milho e feijão, diz que aquelas são lavouras dele e não cio pai, ele insiste em marcar a diferença e afirmar a sua plena autoria. As terras são por

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agora do pai e cabe a ele, em última instância, a decisão sobre o seu futuro sazonal ou de longo prazo. São "cedidas" ao filho a troco "de nada", pois José co-administra a fazenda e "ajuda" o pai todos os dias, principalmente no "trato do gado dele" razão pela qual "o pai me dá dado e não cobra de mim arrendo nenhum". O parceiro "lida no seu", "a meias". Recebendo uma "terra pronta" do dono, ele é um provisórib senhor vigiado pelo outro. Ele trabalha "combinado" e, por isso, como Odilon de Catuçaba, os "que podem pagar o arrendo" preferem-no, pois compram de antemão a liberdade do seu pleno trabalho de um outro. Não ser vigiado, não ter contas do trabalho em terras a prestar, pois em dinheiro elas foram ou serão pagas. "A terra é do Laurinho, irias aroça é minha, até na colheita", dizia Odilon, Se derrubar uma mata "de pouco uso" para "abrir" nela lavouras ou pastos é uma iniciativa equilibrada e inteligente, pois isto torna produtiva a terra e adequados os seus usos, tudo aquilo que a degenera é visto como um malfeito, mesmo quando necessário. Por isso, vimos, o batateiro arrendatário é o ator social mais desqualificado entre todos os que investem na agricultura. Pois ele não parece ter amor algum à terra e usa-a com voracidade, preocupado apenas com a rapidez de seu lucro Seu oposto é o dono zeloso que usa a terra de que trata; que busca fertilizá-la, CIUC a deixa em repouso quando o poisio é possível. Que sobrepõe ao seu interesse de ganhos uma espécie de nem sempre confessado direito natural da terra a manter-se fértil, se possível para as gerações seguintes de outros donos, seus herdeiros. Nada dá mais valor a um sítio ou a uma fazenda do que a qualidade de suas terras e, em segundo lugar, de suas águas, sobretudo, quando há delas em bastante disponibilidade para os usos da casa, do quintal, dos animais (aguadas) e de possíveis futuras irrigações (muito raras por agora e em geral empregadas em sítios de forâneos). Mas este valor, aritmeticamente traduzido no momento de uma transação comercial, possui para o "dono" e seus familiares outros significados, Como uma "boa mina de água límpida" e muito mais do que uma bela cachoeira ou uma grande mata dentro da propriedade, uma "terra de cultura", um "culturáo" são um bem que se preza com a virtude principal da porção de natureza que se possui. Este "bem" de valor efêmero, uma vez única ou algumas vezes sazonais no caso de parceiros e arrendatários, é o grande bem da posse do dono.

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10 de fevereiro ALGUNS MOMENTOS À VOLTA DOS BICHOS

1) Do lado de dentro da casa de dona Cicia, as mulheres cortam e beneficiam as partes cio porco. A cabeça inteira ferve em uma panela, Dela, do fígado e do sangue, batidos e moídos, faz-se o chouriço. A banha é preciosa. O porco morto foi capado e criado solto, "Porco novo, de menos de um ano, engorda melhor solto; porco velho é melhor preso no chiqueiro". 2) "A banha não faz mal pra ninguém sacho, se ela é sacha". As carnes são boas também e se come todas elas. "O coração é bom pra por na lingüiça". A filha foi na bica lavar as tripas para fazer a lingüiça. "Mas eu ia morrer de vergonha de vocês irem lá ver eu fazendo aquilo". O sujo do animal suja a pessoa e o porco emporcalha um momento de seus donos. Mata-se com prazer e se aproveita com usura, mas com remorso. 3) "Matar os bichos é ruim", sentencia o marido de dona Orazilha, na tarde em que estivemos lá para uma "reza de terço". A gente cria e inata por necessidade, porque precisa. Mas sempre a gente tem dó, porque os bichos são criação de Deus. Agora, se a gente cria OS bichos de comer e tem deles com fartura, então pra quê matar os bichos soltos no mato? Aí é que é maldade mes.no ; eles não têm culpa e não precisa de matar, pois Deus deu pra gente os que a gente cria. Matar um bicho do inato, mesmo um tatu, como tem muita gente que faz, que mata e come, isso ai é malvadeza. Igual tem gente que caça e vai esperar (na tocaia) os passarinhos. O senhor já viu maldade maior? Os bicliinhos não sabem de nada, Descem pra comer aquilo (a comida posta como isca) e a pessoa ali com a espingarda. Pra quê?

4) Mas no Salto dos Pretos algumas pessoas no bar me convidavam para uma caçada escondida de capivaras no rio Cachoeira. "Elas tão acabando com os milhos."

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11 de fevereiro VELHOS SiMBOLOS?

Da casa da tia de Roberto, urna casa de campo, de taipa, antiga, em ruínas, eu voltei com uma coleção de objetos inúteis que seu João me deu de presente, Estavam lá pelo chão, em restos de estantes, um estribo de couro puído, uma enxada roída de ferrugem, uma sobra de pá, uns ferros que ninguém soube para o que seriam. Um dia eu darei o estribo de couro a alguém da UNICAMP, que fará dele um adorno na parede. Em alguma parede da casa, eu mesmo colocarei a pá e a enxada ou, pelo menos, o que sobrou delas. Úteis um dia, muitas vezes abandonados depois, eis que eles renascem de outras mãos, em outros lugares, para outros fins. Será assim que as coisas viram símbolos? Ou já eram antes?

12 de fevereiro O DESEJO Do ÉPICO?

Quero falar sobre as grandes queimadas que já não acontecem mais. Mas ainda há na Galícia, onde todos os anos - agora menos cio que há poucos anos atrás - os fogos cia seca devoram enormes porções de "montes", o nome que dão aos bosques nativos, aos de pinheiros, ou aos matos de eucaliptos. há uma diferença grande entre Antônio Fernandes e o filho, José. Haverá provavelmente uma menor entre José e os filhos, Giovanni e Gustavo. É que vindo de Minas Gerais em anos que já são cio passado e comprando terras abundantes, revestidas de matas, Antônio precisou transformar aquilo "numa fazenda": derrubar o mato, queimar, destocar, abrir pastos, terrenos e lavouras, controlar o crescimento anual dos matos, das pragas. Há nele um eihos de desbravador para quem o sítio de agora é o resultado de uma distante, pequena epopéia vivida sem sair de suas terras. Terras recentemente "arrancadas do mato". Por isso Antônio Fernancles se gaba diante cio filho, que era então pequeno para participar da "luta", de ser também um orcienaclor cio mundo à volta. Pois de terrenos por igual cobertos de florestas, sulcados de 128

pequenos rios margeados pelo "Cachoeira", ele acrescentou a ordem da cultura camponesa. Estabeleceu o local da casa e a fez construir quase toda com os recursos do lugar. Distribuiu os espaços de guarda de equipamentos e de trabalho próximo à volta cia casa. Determinou o tamanho das pastagens, os lugares das roças, abriu as estradas internas entre as partes, entre o seu sítio e o mundo do bairro. Submeteu o "sujo" ao "limpo" e estabeleceu o primado da ordem produtiva onde havia antes uma ordenação de natureza que ele se recusa a reconhecer como a melhor. Lá na Galícia de onde venho há tão pouco tempo, um sentimento de vida épica é mais distante. Ele foi um dos ancestrais pioneiros recordados pelas velhas vestidas de negro. Era o tempo da farne, quando levas de rapazes e homens deixaram as aldeias do "país" em busca "da América". Mas terá antes havido, como aqui, um tempo de conquista cia terra, de edificação das primeiras aldeias, das casas de pedras, dos hórreos e das estradas entre a casa e o campo, entre as aldeias, entre elas e o mundo das vilas e cidades? Esta já é uma história não contada, pouco conhecida a não ser pelos estudiosos locais especialmente interessados no assunto. Em Santa Maria de Oms, um senticio de epopéia "dos nossos" parece existir como uma história feita e plenamente realizada num tempo anterior à memória dos adultos, e mesmo dos velhos mais moços. Enquanto no Pretos de Baixo, do mesmo modo como cm Catuçaba, um igual sentido épico existe como uma memória recente, urna história acabada de se fazer, quente ainda, lembrada com nomes e feitos próximos. Pois aqui os heróis fomos nós: eu mesmo, velho, mas "no meu tempo..."; meus pais, meus avós desbravadores, vindos de Minas Gerais. Por isso também dói neles, homens cio campo de sertões de ontem, e lhes é difícil acreditar que as suas ações e a de seus antepassados sobre o ambiente foram destruidoras. Os velhos cio Pretos de Baixo não têm o menor sentimento disto. Degraciadlores do ambiente são os de agora, os que chegam de um outro "fora": rio tempo, no sentido das intenções e no espaço. Repito imagens de outros momentos de meus escritos. O tempo das demoradas derrubadas de matas, a machado, a foices, a golpeões, para se obter a madeira das casas. O das queimadas dionisíacas das florestas, horrendas e puníveis aos nossos olhos ambientahstas e aos olhos arbitrários cia lei recente, que foram por muitos anos, de geração a geração, um privilegiado intervalo de demonstração de poder épico e quase divinamente orcienador do mundo. 129

Não se tratava de destruir pura e simplesmente, embora todos soubessem da morte mil vezes coletiva de pequenos e de grandes animais nativos. Trata-se de um primeiro e último gesto social de submissão da natureza, pois do efeito imediato cio fogo sobrevinha não propriamente a morte, mas a ordem, e não a destruição, mas o lugar escolhido para uma nova fecundação. E eu, que corto as madeiras de um telhado novo de casa de chácara, para que ele não' estorve o crescimento de um galho de cedro, preciso compreender isto cio ponto de vista deles e cio sentido dado por eles à memória de seus primeiros feitos e dos de seus "antigos".

13 de fevereiro Ui

VELHO ENTRE PÉS DE MILHO

Quando ele falava cio milho, "a melhor lavoura", ele exaltava uma "bondade" que em tudo o que é planta existe, mas no milho, mais ainda. Certo, uma gramática cia "bondade" pode ser aí também comercial, mas ele está longe de ser apenas isto. "O senhor veja, de tudo ele aproveita, pra gente, as pessoas, de muitas maneiras, pras criações, os grãos, todas elas: o gado, os porcos, as aves, as folhas, tudo. Até um cigarrinho de palha, de onde é que a gente faz ele?" Outras lavouras poderiam "dar mais" dinheiro do que o milho, como a batatinha, "que é abençoada e maldita, que faz o rico e depois faz ele pobre". Podendo ganhar dinheiro fácil com o arrendo de suas poucas terras para os "batateiros", o que até "podia ser uma coisa boa" de UM ponto de vista puramente utilitário, ele prefere abster-se deste lucro imediato com prejuízo de suas terras: "pois o dinheiro avoa, mas a terra cia gente fica". Ele não me fala, mas eu adivinho que o milho que ele planta é o oposto da batata que ele se recusa a "dar pros outros plantarem". Do mesmo modo como o "porco" é a suprema "bondade" entre os animais, mais mesmo cio que o gado, pois até tempos recentes vivia-se cia carne e dos subprodutos cio porco, em muito pouco comencio-se cia carne de gado, criado sempre mais para o "negócio do leite". Assim como o milho, dos excessos de seu corpo tudo se aproveita durante todo o ano. 130

Um terceiro elemento de máxima "bondade", e este, a origem de todos os outros, é a própria terra. Já falei bastante sobre ela. Teríamos então um triângulo básico assim; forçado ou não? Porco Animal

Milho Vegetal Terra Elemento natural primordial

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de fevereiro

SOBRE A TERRA, TERRAS

Ora, é dentro da mata, no seu escuro interior, e gerada por um tipo de fertilidade natural, cia qual o trabalho humano em absoluto não participa, que as forças contidas na natureza e concentradas na floresta regeneram a melhor futura "terra de cultura". Comparada com outros tipos de terras disponíveis para os efeitos cio trabalho dos homens e dos animais dominados por eles, como os bois e burros dos arados, é ela fértil, forte, nutritiva por excelência, equilibrada, perfeita mesmo. Sendo derrubada a mata, o seu solo agora desprotegido cio manto bom das árvores oferece ao trabalho a excelência da terra: "a boa terra". Quando uma terra "de cultura" incorporada à cultura é muito "boa", ela por muitos anos manterá quase todas as suas qualidades nutritivas e se dirá dela que "quase não precisa de química". Eis um ponto onde nós, teóricos e práticos de um ambientalismo militante, e eles, os homens do campo, "da terra", nos separamos de uma maneira pouco conciliável. A destruição cia mata é a apropriação cia terra, pois a floresta que a fertiliza, como mãe zelosa e avarenta de sua cria, guarda-a para si mesma protegida dos usos dos homens. A necessária destruição dia forma mais acabada de realização dia natureza: a floresta faz a passagem de uni dom da natureza, em princípio como tudo o mais dado ao homem, para um bern natural conquistacio, incorporado à vida social. Este é o momento em que por meio cia matéria cia terra e de seu poder de re-criação cia vida, agora apropriacio pela sociedade, um dom bom, mas socialmente inútil, torna-se um 131

bem útil; um dom humanamente utilizável. Eis quando a terra - cujas entranhas próximas, nos 'sete palmos do chão" a todos um dia nos abrigará, não esquecer - mostra e dá aos homens a sua "bondade". Ela provém cia oferta aberta de alternativas boas de usos de uma terra fértil, sem a mata que por muito tempo a fertilizou, O sobreuso ou o uso indevido de qualquer terra tomada para o trabalho e para a produção resultará no seu empobrecimento. Irá pouco a pouco - ou depressa, no caso das terras "pobres" - esgotá-la de suas propriedades naturais de fertilização. Algo não recomponível por meio cia adição de fertilizantes "químicos" que, ao contrário, roubam cicia a sua força de vida á força de acrescentarem a ela nutrientes artificiais. Algo dificilmente recomponível, mesmo com o poisio e a adição de fertilizantes naturais, ainda a melhor saída, ainda que esteja sendo, cada vez mais, a menos utilizada. Eis uma síntese ela seqüência de que falam as pessoas do Pretos de Baixo. Maio, mato, fioresia natural.

Arca de la Voura sobre terra de cultura.

Terra de cultura tiliza da para a lavoura e a Pecuária.

Terra de cultura esgotada por sobreuso ou uso indevido.

Bondade do dom da terra oculto e não utilizado.

Excelência máxima do dom cia terra Posta à disposição cio homem.

Dom natural ela terra empobrecido e parcialmente recuperável por meios naturais.

Dom destruído não mais recuperável para uso dos homens ou cia natureza.

Li

É na mata e no mais alto, nos montes (idéia de localização com que penso não concordarão os agricultores de planícies, cie terras de vargens, como as de Piracaia), que está a melhor terra fértil e a mais saudável água cristalina, um excelente par de opostos complementares dados pela natureza e, até onde isto é possível, escondidos, nela, deles. A água "pura" está oculta na terra e visível nas matas. No "limpo", perto dos lugares sociais da vicia e sob o efeito de seus dejetos, ela se degrada: "se suja", polui-se. Estranho intervalo de idéias que chama o lugar mais puramente natural, a floresta, de "sujo", por oposição ao seu lugar devastado, o campo, o "limpo", mas que reconhece que a força da terra e a pureza das águas provêm da reprodução adequada cio "sujo", das matas naturais. Sobre uma e a outra,

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a terra e a água, os homens do campo reconhecem-se os clegradadores: cia terra por esgotamento devido ao uso necessário; da água por poluição derivada cio uso indevido das sobras humanas cia produção gerada pelo trabalho. 15 de fevereiro UMA ÉTICA DE HOMENS E BICHOS

Chico Amaro tem um cavalo pampa claro. Meio velho, já existem gerações de suas crias. Ele o comprou por "200 mil" em Batatuba, o que era, segundo o seu pensamento, "um dinheirão naquele tempo". Agora ele pasta o seu outono nos campos do verão da Mantiqueira ao lado de uma de suas filhas, uma égua clara, mansa. "Tem gente que cruza (o cavalo pai com a égua filha). Mas isso eu não faço não. Ele é o pai dela e até nos bichos a gente tem que pôr o respeito. Respeitar. Eu respeito mesmo!" Em alguns momentos de dias antes, andei escrevendo sobre uma ética dos relacionamentos não apenas entre os homens através dos animais, algo no estilo do " Cuin parentes não se negticeia", do Klaas Woortmann, mas também entre os homens e os animais. Começo por um esquema provisório. Homens

Deus

Animais

Código da natureza me- Código da natureza com Código cia religião, prindiatizacio pelo código alguns princípios sensi- cípio funclante cio cócia sociedade/família, veia do código da socie- digo da sociedade/família. tornado legítimo pelo dade/família. código cia religião. da natureza

de criação

Este desenho de duvidosa utilidade quer sugerir o Seguinte: pai cavalo não deve ser cruzado com égua filha porque "se deve respeitar". 1) Pais humanos não devem gerar filhos com filhas humanas. 2) Há um código de Deus, traduzido na religião vivida pelos homens em sociedade e "ensinado pela Igreja", que proíbe isto; é 133

um pecado abominável perante Deus e urna absoluta falta de respeito entre pessoas humanas, 3) Os animais domésticos e mesmo os selvagens, embora não gerem e possuam famílias no sentido humano, isto é, culturalmente social, possuem relações naturais entre eles regidas por códigos de relacionamentos análogos aos da família humana: cavalos são pais e filhas; entre os humanos, irmãos e irmãs, pais e filhas não se cruzam; cavalos pais e éguas filhas, cavalos e éguas irmãs (mais permitido) não devem ser postos a se cruzarem. Mesmo que isto possa ser feito "naturalmente" e até "apure a raça", em certos casos, deve ser socialmente evitado por princípios éticos de fundamento religioso e de sensibilidade humana. 4) Os animais não pecam contra "a Lei de Deus", mas os seres humanos podem pecar através dos animais; isto acontece não apenas nas relações indevidas entre humanos e animais, mas igualmente nas relações erradas entre os próprios animais, permitidas ou induzidas pelos humanos; em urna boa medida, os homens não devem querer e não devem deixar que os animais realizem entre eles o que não é devido entre os humanos. 5) Finalmente, a quem se respeita ao não se permitir que um cavalo pai cruze com uma égua filha? Há momentos em que o "ele" da frase dá a entender que o seu sujeito é o animal ; é ele, em si, nas suas relações com outros animais que deve ser respeitado: 'porque também é filho de Deus"; "porque até mesmo os animais têm que ser respeitados pelos homens, mesmo que sejam deles". Induzi-los a que se cruzem, mesmo a que se desejem, é deixar que se desrespeitem e é socialmente desrespeitá-los. Mas há momentos em que parece que o respeito é unia ação entre seres humanos estendida aos animais, para que as pessoas não se desrespeitem através dos bichos domésticos, já que os "do mato" fazem lá o que querem, fora, parcial ou plenamente, do domínio humano. Pois há em tudo uma gramática de parentesco e regras de paternidade que se estendem a todos os planos cia existência. Pois mesmo muito diferentes em suas dimensões de existência e de consciência, e mesmo que os seus poderes sobre os outros sejam muito desiguais, uma coisa a todos aproxima: cada um em seu plano de 134

trocas e alguns podendo estendê-los aos outros, todos existem como seres de famílias, ancorados na vicia por laços de afeto, por uma sensibiliclacle de relacionamentos de que o efeito é a própria vida; a sua criação, a sua multiplicação. Deus e os seres de seu plano, de uma maneira imorrecloura, perfeita e eterna, mesnio quando constituída em um momento) humano da história de nosso mundo terreno (Deus Pai, Filho e Espírito Santo, a mãe, Virgem Maria, seu esposo José, o filho Jesus, seu padrinho João) nós, humanos, de urna maneira transitória, realizada em um tão breve momento ela história, mas passível de ser recomposta e eternizada "na Glória de Deus"; os bichos, de um modo natural, em alguns ainda mais efêmero, mas igualmente dentro cio corpo dos laços bons de uma breve família. Eis um motivo poderoso em nome cio qual os mesmos princípios e os seus preceitos derivados de urna polissêrnica ética das relações devem aplicar-se desde deus, entre os homens e sobre os animais. Uma analogia de motivos, laços, afetos e gestos cuja gramática é imutável e perfeita em seu plano celestial, incompleta e imperfeita no seu plano social e muito cliferenciaclamente natural entre os bichos e, quem sabe? as próprias plantas. Entre a vaca e a cobra, os bichos cio mundo são pensados pelo que parecem repartir com os humanos. Acaso poderia ser de uma outra maneira? São e estão iróxilllos "social" e simbolicamente os que traduzem no gesto cia troca afidelidade de um cão, a prolongada mansa utilidade de uin boi-cie-carro, a nobreza, que ao próprio dono enobrece, de um "bom cavalo". Mesmo entre os 'selvagens", a pequenina peca que se caça é mais amacia cio que a cobra cie °in' se foge ou que se mata para que não exista e não "faça o mal". Mas não somente pelo grau de perigo aos humanos, e sim, também, pelo que entre todos, segundo estilos de ser diferentes, os bichos são singular e familiarmente tal como as pessoas, eis que os animais possuem a metáfora cio exagero das virtudes e dos defeitos que as mulheres e os homens possuem, ou deveriam possuir ou evitar. Se outros seres cia natureza são relacionais como nós, se entre os mais próximos há laços de paternidade familiar, então eles são também sujeitos-atores de relações que os tornam, animais, pais e mães, filhos e irmãos. A seu modo, entre eles e através dos humanos, estão inscritos e devem ser diferentemente tratados dentro de um código cia família. No dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro de minha cidade natal, as pessoas dos sítios vieram à capela do bairro pedir ao santo a bênção aos animais. 135

Família Sagrada Terrena Jesus Cristo (filho de Deus)

16 de fevereiro A MÃE VAtA PIANOS DE FAMILIA

José (homem, pai e humano santificado)*

Maria (Virgem, mãe e mulher humana santificada)

Família Sagrada Divina

Irmãos de Cristo (não indicados e de existência discutível)

João Batista (padrinho de Cristo, homem santificado) João Batista (padrinho de Cristo, homem santificado)

Deus

Deus Pai

Joaquim e Ana (avós de Cristo, humanos santificados)**

Deus Filho

Deus Espírito Santo

Anjos de Deus

Santos de Deus

Todos os humanos (Filhos de Deus, irmãos entre nós, filhos-irmãos de Cristo, filhos e afilhados de Maria)""

Todos os outros seres vivos da natureza em maior grau alguns animais (como os benevolentes citados nos evangelhos) do que outros?

Em grau muito menos do que a "Virgem Maria, Nossa mãe c Senhora'. Em grau muito menor de culto e lembrança cio que Maria e mesmo José No pensamento do catolicismo popular, as relações de parentesco deste tipo são o fundamento e o modelo de todas as outras.

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Famílias Terrenas 17 de fevereiro "ATÉ

1-10 manas/Soe ia is Ascendentes divinos

Pai

Ascendentes santificados

Mãe Filhos

Colaterais

Afins

Irmãos

Padrinhos

Afilhados

Todos os humanos (por parte de Adão e Eva)

Animais/Naturais Sem ascendência divina Sem ascendência santificada Ascendentes naturais pouco reco n h cci dos Mãe

Pai Filhos Sem colatera is

Irmãos

Sem afins

(de uma mesma "cria' ou de várias) Sem compadrio

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QUE A MORTE OS SEPARE"

Mas se o poder de criar, de gerar filhos, descendentes e estabelecer laços, de deus à cobra, passando pelos humanos, a todos aproxima e estabelece homologias de destinos e preceitos, o seu oposto, o poder de arrancar da vida, de matar, de separar dos seus, de decidir sobre o destino do outro, nos separa. Pois afora Deus, externo ao tempo e eterno, e afora os seres desde sempre (como os anjos) ou desde a morte do corpo, como os humanos, destinados à experiência divina da eternidade, todos os seres estão fadados a um fim em todos os planos, como os animais, no plano "terreno", como as pessoas humanas. Afora Deus, senhor absoluto de seu destino e de todos os outros, todos os seres - mesmo os anjos e santos - têm e "cumprem" um destino, uma "sina". Mas a respeito disto me lembro de haver escrito linhas de A partilha da vida. Trata-se aqui de outra coisa. Supremo "bem", "senhor de todas as coisas", Deus, obrigado a ser sumamente bom e exemplarmente justo, é, ao mesmo tempo, o doador da vicia e o senhor de extingui-la. Algumas pessoas do campo chegam mesmo a acreditar que "cada um de nós nasce com um destino traçado, e ela hora ela nossa morte só Deus sabe". Esta idéia é muito discutida e matizada, mas existe um amplo acordo de sentidos e de significados sobre a idéia de que, sendo livre em seus atos e motivações, a pessoa cumpre por meio cicies e cio feixe de respostas em vários planos e entre vários tipos de sujeitos que eles suscitam, um destino terreno cujo princípio (o nascimento de um pai e uma mãe humanos) e fim estão fora cio seu alcance, a não ser no caso condenável cio suicida, na morte como um ato extremo dado sobre a pessoa por ela mesma. Pois entre os humanos a morte cio outro é o limite cio pecado contra "as leis de Deus" e é o limite da contravenção, segundo "a lei dos homens". Não quero entrar nos detalhes das diferenças de razões de morte cio outro e nem falar das situações liminares em que uma morte exemplar de um outro contraventor pode ser até justificada, como no caso cia punição de uma honra ultrajada. Em momentos de conversas que provoquei, as pessoas lembram com horror histórias contadas de senhores de escravos que dispunham de plenos direitos sobre os corpos e as vicias de seus escra139

vos. Podiam vendê-los e comprá-los; separar marido de esposa, mães e filhos, castigá-los e até mandá-los matar. Alguns sugerem que é, também, o limite anteposto a isto o que nos separa dos "bugres", dos índios de antes, do começo cio "tempo dos antigos". Pois é costume que se os imagine guerreando-se e matando-se como costume de vicia. Pior. Às vezes, "comendo uns aos outros", o que os afasta cia humanidade dos 'brancos" e os aproxima dos animais, mas não de todos, pois os bichos domésticos também não se matam. Esta é uma diferença importante entre o código da domesticidade e o da selvageria. Os animais criados pelos homens aproximam-se de sua civilidade. Fora situações muito raras, cães, gatos, aves cio quintal, touros, cavalos e carneiros não se matam uns aos outros. Em uma briga de muitas fúrias, isto pode fortuitamente acontecer entre cães e entre touros. De uma maneira mais freqüente pode acontecer mesmo no caso de uma espécie sobre as outras, cães e, mais do que todos, gatos são predadores e, em alguns casos, são criados por causa disto. Matar o outro de uma outra espécie animal é o que os aproxima dos "bichos cio mato", nos quais, mas não em todos, esta é a regra, não a exceção. Enquanto cavalos e éguas, vacas e bois, porcos e porcas, galos e galinhas, estão situados fora cio poder cia morte do outro (aves comem insetos), os predadores selvagens fazem cia morte de outros bichos a sua própria vicia. Entre Deus e os bichos, os homens do campo se reconhecem como proibidos cia morte de seus iguais e senhores da vida dos animais de sua criação. Todos estão dentro de ciclos de tempo e cumprem nele uma existência de vida cujo fim pertence a Deus. Mas o próprio Deus estendeu aos homens o poder de dar a morte aos animais: todos, em uma concepção mais ampla e, vimos, discutível ; apenas os criados socialmente para servirem aos homens, seja por meio da presença afetuosa (um animal de estimação), seja do trabalho (um cavalo), ou seja como alimento (uma galinha). Dos animais selvagens predadores, os homens se aproximam no poder cia morte súbita de um bicho. O golpe rápido cia foice ou cio facão que mata a cobra, no gesto súbito de defesa - "ali era eia OU eu" - o "tiro de misericórdia" com que o dono "sacrifica" um cavalo ferido de maneira irremediável o tiro no animal abatido durante a caçada. Mas, diferentes dos animais que matam e vivem cia morte, os homens, que também reconhecem viverem cia morte quando explicam, por exemplo, por que devem matar "as criações" para a produção cio alimento - levam a própria morte para um 140

código cultural, porque previsível, com data marcada e realizada sobre um ser vivo nascido ou comprado, criado, "tratado" para sei' morto e utilizado após a morte: galinhas, perus, cabritos, carneiros, porcos, bois e vacas. Mas, vimos, mesmo nos animais "de criação" os destinos da morte são muito diferentes. Resumo assim as diferenças.

Animais de criação e companhia com morte natural, como a dos humanos:

Animais de cria- Animais de cria- Animais de criação e dados ao ção e dados ao tra- ção utilizados atrabalho com/co- balho com morte penas depois de mo os humanos, provocada após a mortos com morte antecipada: com morte nato- vida estendida: rai:

a) sempre do- a) cavalos, ju- a) vacas de leite, a) frangos, perus, méSticoS: cachor- mentos, cachor- bois de carro, ca- porcos, bois de corte. ros, gatos; ros bras de leite,

h) selvagens capturados: passarioh os, Papagaios, micos,

Vejamos. Os animais de criação e, menos, os "bichos cio mato" são, como os homens e os vegetais, seres de ciclos de trocas de que faz parte o poder humano de atribuir destinos: deixar em liberdade, aprisionar, matar em defesa ou quando prejudiciais (a "cobra traiçoeira" e a capivara devastadora); utilizar deixando em liberdade (gatos e cães); utilizar aprisionando (bois cie carro, cavalos); utilizar e dar a morte ao final do ciclo de utilidade; criar para matar e utilizar. Quase divinos em seus poderes sobre o outro, os homens cio campo se reconhecem senhores de conceder aos animais tempos de vicia e qualidade de morte cujos critérios, ademais de utilitários, so tidos sempre como incluídos em padrões de autodefesa ou utilidade justificável, o que torna legítimo o ato de violência e o inscreve nas pautas da normativiclade cotidiana cia vida camponesa. Os destinos animais de vicia e morte ciepenciem, também, de uma variedade de significados dados ao ser do animal ("pra criar", "pra matar", "pra sa-

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crificar", "pra exterminar') e de atributos simbólicos e afetivos determinantes da qualidade interpessoal da relação súbita ou biográfica entre um indivíduo animal e uma pessoa: uma fêmea criando os seus filhotinhos; um animal de estimação, mas irremediavelmente enfermo; um bezerro dado a uma filha ou a um santo padroeiro para a sua festa; um bicho que estabelece com uma pessoa ou urna família uma afetiva relação especial (a moda sertaneja de "O boi soberano" é sempre lembrada, no caso), O poder da morte sobre a vida é muito pouco acompanhado de algum sentimento de culpa, quando no caso dos vegetais. Interrompe-se o ciclo de vida de um "pé de alface" ou de três alqueires de batatas; abate-se uma grande árvore 'mais velha do que eu" com uma primorosa naturalidade (e com "medo da Floresta!", no caso das árvores). É a morte dos animais que se acompanha de sentimentos às vezes intensamente vividos e comentados nas conversas do dia, Eles oscilam entre o prazer e o peso da culpa. Falei sobre isto ao descrever a matança de porcos. É que, provavelmente, no campo, a morte do outro realizada no animal é o espelho do limite, ao mesmo tempo, do absoluto poder sobre a pessoa de um outro, um ser vivo (Ah, as bravatas das antigas caçadas!) e da absoluta fragilidade de si mesmo ante a morte. Nas orações cantadas das Funções de São Gonçalo, as mulheres e os homens rezam: "Perdoai Senhor, que a morte virá,/ ninguém sabe quando nem como será."

18 dc fevereiro DEUSES HOMENS E BICHOS.., REVISITADOS

Certa feita, pesquisando o imaginário rios brancos da cidade goiana de Pienópo!isa respeito dos negros do passado e de hoje, eu me dei conta de que ao pensarmos categorias de sujeitos sociais, nós as diferenciamos muito pouco ainda. O meu próprio exemplo serve para demonstrar isto. Pois falamos de pares simples de opostos: negros verses brancos; senhores verses escravos; cativos verses livres; escravos cia lavoura verses escravos rias minas verses escravos cia casa. Ao tentar entender o que afinal os meus documentos cio passado mostravam e os meus entrevistados diziam, compre endi que eles procediam de maneira mais densamente classificatória. Por debaixo cia capa apressada de "todos escravos" do passado, e de 142

Família/criação Familiaridade

Jesus Cristo/Maria sagrada família, padroeiros, protetores, mortos, familiares

Deus Pai Espírito Santo, padroeiros no bairro, santos de devoção coletiva.

Outros santos comuns, padroeiros distantes, seres sagrados pouco conhecidos e pouco vivenciados.

Seres santificados conhecidos, mas não vivenciados.

Seres santificados suposto, imaginados, mas sem um reconhecimento costumeiro Santos "dos outros", desconfiados ou sabidos como existentes, mas não nominados. Seres demoníacos não identificados; forças abstratas "do mal".

Família "da casa", grupo doméstico, Outros parentes sempre "na casa" (uma mãe da esposa, Irmão do pai).

Parentes em outras casas, compadres, afilhados do bairro, vizinhos de sitio, bairro, colegas de equipe de trabalho, vizinhos, amigos próximos, membros da mesma comunidade no bairro.

Parentes mais distantes, compadres etc., fora yizinhos de outros bairros, Pessoas conhecidas de Joanópolis.

Não parentes conhecidos, distantes de lugares não próximos. Pessoas e famílias "no bairro", mas "de fora".

conhecidos "de longe", pessoas cuja existência é sabida, sem uma identidade reconhecível. Pessoas desconhecidas, pessoas a evitar, seres mitificados do lugar, no passado ou no presente (ermitãos, loucos, bandidos, foragidos). Desconhecidos. Estranhos no lugar. Pessoas "de passagem".

"Aqui", "daqui", "este lugar", a casa, o sítio.

"Aqui", "ali", "daqui", "desse lugar". Os sítios do bairro, o bairro,

"Ali", o próximo, "desse", "daquele lugar". Os bairros próximos.

"Lá", "tora daqui", "aquele lugar", "o longe", regiões distantes, outras cidades além de Joanópolis, Bragança Paulista e outras,

"Lá" distante, lugar sem vivência ou de uma muito rara e ocasional vivência, cidades para além da região: Bragança Paulista, campinas. que fica de São Paulo para "lá". O restante do Brasil, do mundo.

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A casa/o jardim/a horta/o pomar/o quintal.

A lavoura/o pasto próximo, o riacho ou rio perto, na propriedade,

Lavouras, pastos, estradas, riachos, rios mais longe, no bairro, em bairro vizinho,

Matas, florestas e rios distantes, não utilizados ou desconhecidos.

Matos, florestas outros lugares ermos, muito longe da região. A floresta Amazónica, o oceano, lugares sabidos "de escola", de TV, de jornais e revistas, mas considerados como de uma natureza para além dos limites do mundo natural regional.

Animais "da casa" e do "quintal", de "estimação": cães, gatos, passarinhos presos, aves, porcos,

Animais domésticos da propriedade: cavalos, burros, vacas e bois.

Animais "do campo", mansos e próximos, tatus, passarinhos soltos, siriemas.

Animais "do mato", distantes, pouco conhecidos, objeto de caça: veados, antas.

Animais de Outras florestas, de outros ermos não locais e não regionais: do deserto, da América, do Oceano. Animais de outros lugares muito distantes (África), animais imaginados.

Plantas da casa e do quintal; do jardim, horta e pomar: margarida, alface, laranja, mandioca.

Plantas de lavoura: milho, feijão, arroz, batata,

Capins dos pastos, árvores plantadas: eucaliptos, pinheiros.

Plantas pouco conhecidas, "do mato", árvores naturais: jequitibá, jatobá

Plantas reconhecidas como existentes em outros mundos, em outras regiões distantes. Raras ou inexistentes em toda a região. Plantas do lugar, mas que já não existem mais.

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"todos negros" de agora, havia uma polissemia de sujeitos e atores vistos por meio cio conhecimento, cia consciência e cia sensibilidade de meus interlocutores, que impunha uma atitude igual de minha parte. A menos que por uma razão intencionada, eu não a quisesse traduzir em meu texto, por querer de propósito escrever sobre apenas escravos cio passado e os negros de agora. Outra coisa. Observei que a qualidade das relações entre os negros e os brancos, ontem e hoje, e os atributos estendidos pelos brancos aos negros, obedeciam a uma certa inevitável homologia onde os tipos de sujeitos e os planos dos seres (divinos, infernais, humanos índios, brancos "civilizados", negros, animais selvagens, domésticos) ordenavam-se e ordenadamente embaralhavam-se em mapas mentais cuja complexidade é muito mais intrigante e densa cio que uma antropologia ávida em trabalhar classifjcatoriamente um único domínio cio real imaginado o faz. Ela, essa grande iludida.' Creio haver traduzido fragmentaciamente esta idéia aqui e ali. Entre os homens e mulheres cio Pretos de Baixo é muito difícil estabelecer classificações, pensar e viver mapas simbólicos de planos, de posições e de relações e, finalmente, propor a si mesmos gramáticas sociais de relacionamentos, separando, no imaginário, dimensões do real talvez mais facilmente isoláveis na realidade da vicia cotidiana cio que nas teias de conhecimentos e atribuição de valores, entretecidas com tanta força com as sensibilidades e os significados dados a elas por qualquer pessoa. Se tão próximos ("somos seus filhos") e tão distantes cicie ("que estais nos céus", existes?), os homens são "a imagem e semelhança de Deus", vimos que, em muitas feições e gestos de trocas, eles se reconhecem mais próximos e identificáveis com os seres do mundo natural do que com aqueles que se crê ou imagina que existam nas esferas celestes.., ou infernais. Se "no fundo tudo são trocas", é porque, entre todos os planos cio que existe e se vive socialmente e cio que sobreexiste e se pensa culturalmente, tudo são mesclas. Volto aos meus homens e mulheres, aos meus bichos e plantas, aos lugares onde eles trocam, e procuro dispô-los todos em um quadro final que melhor ficaria se eu conseguisse desenhá-lo como um grande mapa, com trilhas e rios, cachoeiras, casas e capelas, cores e afetos. Que Leach me perdoe.

Remeto o leitor ao artigo: luChos, l)lSOCOS e negros em Pirenápolis" Publicado na Revista de Antropologia cia US P.

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Alguns anúncios dirigidos aos "de fora" insistem justamente no que tem o menor valor para os "cio lugar": "Cenário belíssimo com linda vista para as montanhas e a represa. Cachoeira, muita água boa, floresta nativa de sete alqueires". E com o olhar pousado sobre o destino de glórias de Campos doJorclão, não muito longe serra-acima, por estradas de perigo e maravilha, a antiga São João do Curralinho, hoje Joanópolis, faz esforços de pequena publicidade local para tornar conhecido "para fora daqui" o título que ela própria se deu: "a jóia cia Mantiqueira". Mas aos do lugar, pessoas para quem o turismo nascente ainda não aportou vantagem alguma, e que olham para os forâneos com placas de "São Paulo" e "Campinas", mais como uma ameaça do que

como uma presença de fato desejada, as florestas nativas, as cachoeiras e as águas frias e límpidas dizem muito pouco. Entre a cidade e a floresta, eles reconhecem e dizem sem culpas que vivem no campo - "na-roça", no "sítio", "no bairro" - a melhor vida. Entre eles é muito viva a idéia de que a sua existência rural é um intervalo entre a cidade e a seiva (o "sertão"), dois pólos aos seus olhos extremos e, de algum tempo para cá, tornados estranhamente próximos por causa das pessoas "de fora". Desde os seus ancestrais desbravadores eles sabem e dizem, seguidamente, que o "campo" e a "vida do campo nos sítios" é uma conquista realizaria sobre as matas; tomada dela. E é um encurralamento das florestas a limites considerados adequados e que seriam ainda maiores não fossem as recentes leis de proteção do meio ambiente e as ações indesejadas cia "Florestal". Para as pessoas que não são "empregadas dos outros", nem dentro e nem fora dos bairros, aqueles que "bem ou mal" (expressão comum para adjetivar o estado atual da qualidade de vicia dos sitiantes) conseguem viver nas suas terras, no seu sítio, com a sua família e do seu trabalho, eis um modelo de vicia camponesa considerada: "livre", autônoma, "sadia", "dura, mas digna", harmoniosa, "tranqüila", socialmente solidária e "feliz". Os adjetivos entre aspas são palavras usadas com freqüência para descrever a "vicia cia roça", vivida e/ou idealizada tal como eles se representam experimentando-a e, pouco a pouco, vendo perderem-se as condições oportunas de sua reprodução. Eis adjetivos que eles opõem, os homens e as mulheres do Pretos de Baixo, à cidade e à "vicia cia cidade", cujos acontecimentos e comentários tornaram-se crescentemente presentes por meio cia televisão. Ela representa um excesso de domínio da sociedade sobre a natureza, do mesmo modo como a floresta e todos os lugares impraticáveis para a excelência cia "vida cia roça', "no campo", representam uma falta de domínio da sociedade sobre a natureza. Ao se sentirem injustiçacias pelas pessoas da cidade, que as consideram "brutas", "ignorantes", "rústicas" (palavra usada como um depreciador), "atrasadas" e que sobre elas impõem de maneira arbitrária: impostos, expropriações, enganos, controles jurídicos e policiais, as pessoas dos sítios respondem que a seu modo criaram com um trabalho derivado do saber e dos princípios de uma exemplar ética camponesa, o melhor lugar e o estilo de vida mais humano. Livre da "má influência" da maior parte dos poderes e modelos de ser "cia cidade" e deixada a si mesma, a vida camponesa tradicional, realizada entre o

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20 de fevereiro O

CAMPO, O MELHOR LUGAR

Dos que ficaram pelos matos há sempre mitos. Os que foram e estão indo para a cidade, joanópolis, ou para outras cidades, de Piracaia para mais longe, em direção a Bragança Paulista, têm sempre histórias que sugerem razões para a mudança. Os dos matos são as pessoas mais estranhas: os índios, "bugres" selvagens do passado; um que outro evasivo ermitão de quem, às vezes, se contam casos assombrosos ou carregados de renúncia e piedade cristã; alguma rara pessoa ou família do lugar que, diferente dos outros, preferiu ficar pelos sertões, que "civilizou" pouco o seu lugar de morada, o seu sítio; uma "gente roceira" parecida com "os primeiros moradores dessas paragens de serra". Hoje em dia são eles também as pessoas como eu: uma gente da cidade que vem ao "campo" em busca do "mato". Que fala das florestas naturais uma linguagem nova, a de quem nunca precisou viver no campo do "trabalho na roça". As pessoas cia única pequena imobiliária da cidade sabem disto. Conversam comigo assuntos de venda de frações do Paraíso: "Dez alqueires de mata virgem, na encosta da montanha. Difícil de chegar lá, mas com estradas que dá pra melhorar bem. De difícil cultivo, mas não é isso o que interessa pra alguém como o senhor, que vem praqui em busca do ar puro, da beleza da natureza virgem. São matas nativas, de muita madeira boa; águas limpíssimas. Se o senhor ver, vai apaixonar!"

grupo doméstico dos sítios e as teias de parentes e/ou vizinho dos bairros e entre bairros, é a melhor parábola concreta do bem. São os seus atores, é o exercício cultural da identidade deles e é a trama de tudo em um modo de vida próprio e reconhecido como autônomo, no que ele tem de melhor, ainda que dependente; aquilo que pessoas como Tião Claro, Chico Amaro e Antônio Fernandes consideram como o melhor fruto do trabalho regido pelo afeto da terra. Não se trata, agora, cia questão da utilidade dos produtos camponeses do trabalho, de que falei antes em um ou dois dias passados. Sabemos já desse reconhecimento repetido insistidas vezes, em que "a cidade depende cio campo' e as pessoas urbanas - muitas cicias percebidas fora de trabalhos de utilidade, competência e moralidade adequadas - "vivem do que a gente do campo produz". É de uma outra coisa que eles falam. A maneira como de uma forma ao mesmo tempo frágil e persistente, ancestral e desafortunadamente em mudança, a cultura camponesa tradicional estabeleceu saberes e consolidou gramáticas de relacionamentos com a natureza, entre os homens e entre eles, seus símbolos, outros bens tidos como "bons" e "um bem". Pois ela gerou e logrou reproduzir, até tempos muito próximos, uma maneira de ser cujas qualidades são incomparáveis. Ela atualiza nas pessoas "cia roça" e nos seus estilos costumeiros de existência a proximidade mais legítima das virtudes preconizadas pelos atores centrais cio cristianismo, a começar por Jesus Cristo, seus pais e apóstolos, sempre reconhecidos como sujeitos rústicos de campos e de aldeias, vimos já, e perseguidos e malvistos entre "os cia cidade" (Cristo foi morto em Jerusalém, Pedro e Paulo em Roma). Como nos quadros muito antigos dos "dois caminhos", esquecidos hoje em dia dos católicos e retomados com ênfase pelos "crentes", onde o "caminho cia virtude" não é nunca natural, a não ser em algumas imagens cósmicas, e nem, muito menos, urbano. Todos os vícios do "caminho cio pecado" passam por ruas e estradas que vão de uma cena urbana à outra. De igual maneira, todo o lado da virtude atravessa cenas de convivência familiar, da prática devocional, "das boas obras" e cio trabalho camponês associado aos ofícios do artesão. Com o "mal" e a "perdição", ficam o ócio urbano, o jogo, a dissolução familiar e a profanação cio sagrado, no "mal feito" aos outros ou na impiedade para com o divino. Mesmo para um pouco além dos limites e das metáforas dos ensinos piedosos e exemplares cios "quatro evangelhos", uma õpo-

sição entre a "bondade" cia vida e dos espaços da experiência camponesa e da persistente prática pessoal, familiar e coletiva em prol de sua reprodução, verses as formas de vida antecedentes e naturais demais dos "bugres", ou posteriores e artificiais demais, dos "cia cidade", preserva-se e faz parte cio quadro de valores mais eticamente convincente com que as pessoas cio campo vêem-se a si mesmas e qualificam os "de fora". Desde os tempos dos pais de dona Bernarciina, a família Fernandes possui uma casa ampla na praça principal de joanópolis. Mas ela só é usada uma vez ou outra, quando se vem de passagem à cidade, quando alguém cia família passa por Joanópolis a caminho de uma cidade maior, por ocasião das festas cia cidade, como "no São João". Com as economias das últimas lavouras de feijão e milho, José e Penha conseguiram "guardar na poupança" o bastante para estarem agora acabando uma casa nova na entrada morro acima da cidade, melhor ainda do que a dos pais de José. Mas a idéia de "mudar pra Joanópolis" ainda é remota e todos resistem a ela o quanto podem. Até mesmo uma cidade pequenina, distante dos grandes centros dos ricos, dos poderosos e dos "ruins", rouba das pessoas do campo "a tranqüilidade e a paz que a gente não eleve vender por qualquer preço". É provável que uma mudança futura venha a ser inevitável. Além da esposa de José e "mulher de sítio", Penha é professora na cidade (lecionava antes no Pretos de Baixo) e sonha uma carreira "de magistério" alguns degraus acima cia que alcançou até aqui. Gustavo e Giovanni em breve não terão mais "estudo no bairro". Como é muito desejável que sigam estudando até muito além de seus pais e avós, certamente irão completar a escolarização primeiro em Joanópolis e, depois, até mesmo fora, em Bragança ou Campinas. Um destino urbano definitivo parece ser o horizonte mais visível e todos sabem que a mesma coisa acontece agora com os jovens "dos bairros" e acontecerá mais ainda nos anos próximos. Será quando "o campo vai ficar vazio cia gente" e virá a ser invadido, de uma vez por todas, por aqueles que não o tendo criado, não saberão preservar o que até aqui o fez ser, para os Fernandes e outros, "d melhor lugar".

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21 de fevereiro Eu...

VINDO "DE FORA"

Não quero fazer exercício algum de perplexidade da antropologia pós-moderna. Quero apenas contar algumas coisas que aconteciam durante os dias em que, com duas alunas de graduação da UNLCAMP, participantes cio projeto Homem, Saber e Natureza, estive vivendo e realizando esta breve e muito intensa pesquisa de campo no lugar do Pretos de Baixo, do bairro dos Pretos, emJoanópolis. Um dia, depois da chuva, eu dizia para José e seu Antônio Fernandes como eu sempre quis viver num lugar como o deles: rural, perto de rios, à volta das montanhas. Os dois já conheciam de alguns dias os meus devaneios, e as pessoas do Pretos de Baixo já se haviam acostumadas a me verem entre a estrada do Salto dos Pretos e algumas trilhas fáceis dos campos e dos matos próximos. Já sabiam também que ao lado das perguntas obrigatórias de um antropólogo, eu os interrogava sobre as coisas da natureza, quase sempre com mais desejos de poeta cio que com a curiosidade cio naturalista. Este meu estilo de presença por certo marcou mesmo uma linha cúmplice de respostas que pacientemente as mulheres e os homens me davam em nossas conversas. Quase todos sabiam, como eu, subir a um certo "ar profissional" quando sentiam que a questão sugerida tinha a ver com "o trabalho do professor". Fazíamos mapas juntos, estabelecíamos calendários agropastoris, organizávamos quadros de nomes e lugares. Algumas vezes isto era feito ao mesmo tempo por Lilian e lara. Havia entre os homens do lugar um ar cúmplice e mais pessoalmente próximo, quando de um lado e do outro cio momento cia relação sabíamos todos que "a coisa" girava, agora, entre assuntos que interessavam por igual, como os do futebol, e os de minhas muitas perguntas sobre a natureza cio lugar. Pois naquela vez Antônio Fernandes perguntou por que eu não me resolvia a "vir morar aqui com a gente", já que era "tão do seu gosto" viver em um lugar como aquelas serras. E entre brincalhão e sério, ele disse: "quem sabe eu vendo um pedaço aí desse mato, até no rio, pro senhor fazer uma chácara?" Havíamos andado por lá, José e eu. Era uma pequena mata que acompanhava um riacho paralelo ao "cia onça", morro abaixo e cujo nome eu sempre esqueço.

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Um ano antes eu havia comprado de um sitiante cie Caldas, em Minas Gerais, "um pouquinho mais de um alqueire" de uma terra cie matos, muitas pedras e uma paisagem maior cio que os sonhos. Foi uma compra mineira, quase uma barganha. Sem ter nas mãos a quantia exata pedida por ele - e nem era muito, diante do imenso valor afetivo que aquela "terra" tem para mim até hoje - troquei "o terreno" por alguns dólares recebidos de um artigo escrito, uma outra parte em "dinheiro vivo", um Passat usado e dois rádios de automóvel. Onze meses mais tarde paguei mais caro cio que devia - desta vez sim - por mais seis mil metros quadrados de "puro mato", na orla de seu pasto, e inútil para o seu gado. Comprei-os apenas para que a cerca de nossas divisas deixasse o campo de seu lado e toda a mata do meu. Em nosso acordo final de compra, acertamos o seguinte: "o pasto é seu, o mato é meu", o que cio ponto cie vista do vendedor foi um duplo ganho: o bom dinheiro da venda fácil e a manutenção da posse de terra que de fato vale. Depois, algumas vezes andando pelas estradas de Joanópolis eu aproveitava breves metros retos e "no piaino" (raro) para medir com a conta incerta de meus passos porções imaginadas de meu terreno em Minas, onde um dia eu faria "isto e aquilo". Assim foi. Quando historiadores como Raymoncl Williams, Keith Thomas ou Alain Corbin discutem as mudanças havidas no imaginário do homem europeu a respeito cio mundo natural, de seus ambientes, cenários e seres, o homem de quem falam ainda é alguém como eu. Não são o homem do campo, a "plebe", a "gentalha", que nos textos surgem no palco do olhar da história como uma espécie difusa de coral complementar dos miserandos, Os que falam, decidem visões, impõem idéias e estabelecem éticas são os homens "de pensamento". Os escritores eruditos, os filósofos e teólogos, os cientistas naturais e os aristocratas viajantes. São os nobres que viviam"no campo" com suas famílias, servos e empregados, ou os que séculos depois começaram a construir residências de fuga e veraneio, quando o ar das cidades industriais começou a ficar insuportável. Como eu, seriam também os rousseaunianos inveterados, mas quantas vezes alheios aos homens "naturais" do campo, para quem um retorno provisório ou, se possível, perene à proximidade intima do mundo natural é alguma coisa mais cio que um deleite. É uma vocação de destino, o anúncio dos tempos cia salvação da própria sociedade, na volta tão completa quando civilizacioramente radical ao "homem natural". Não é por acaso que os livros que trouxe para 149

ler nos momentos "de folga" dos dias de pesquisa foram Devaneios de um caminhante solitário, e a coleção quase completa dos escritos do Gaston Bachelard "noturno", a respeito a primazia do devaneio com a mais excelente fonte de conhecimento humano sobre as coisas. Sobre a sua plena-realização no voltar-se ao imaginário da natureza e recosmicizar tudo e todos a partir cia contemplação poética cio significado afetivo, afetuoso, de todas as relações. Eu os vejo aqui, à minha volta. Eu os vejo em mim. O jovem casal que nos altos terrenos, já perto de São Francisco Xavier, empenha-se em criar um pequeno centro artesanal de agricultura orgânica. Os que se insurgem contra a Casa cia Agricultura por causa do projeto de expansão acelerada dos eucaliptais, com a doação ou vencia de mudas por um preço irrisório, acompanhadas de todos os incentivos para o seu plantio nas terras dos sítios de serra-acima. Os que vieram de fora e compraram terras, pequenos lotes caros nos condomínios novos "na beira da represa cio Jaguari", pedaços de sítios ou sítios inteiros, "com muita mata e água limpa" nos bairros mais altos, onde o que os favorece não raro foi o mesmo que empobreceu uma última geração de sitiantes cujo destino após "a venda cio sítio" é uma "casinha" ao redor dejoanópolis ou de Bragança Paulista. Se deixarmos de lado entre os invasores forâneos os veranistas donos de sítios "de recreio" ou os neo-investidores empresários em gado leiteiro e reflorestamento, restam os tipos de chegantes moradores de que falei muitas páginas atrás: os naturalistas práticos desejosos de experiências campestres de vicia comunitária e/ou agriculturas de pequena escala sugeridas por teorias Gaia ou espiritualidades ambientalistas. Quando, como eu, eles são "compradores de terra" e criadores de novos estilos de construção cie espaços, assim corno de ocupação e uso de cenários naturais e de atribuição de outros símbolos e significados ao "viver no campo", uma diferença marcada se estabelece de maneira inevitável entre eles e os que "sempre viveram aqui", como sitiantes ou outras variações de modo de vida camponês. Certa vez, para dar um bom exemplo ela oposição entre a fazencIa da agropecuária tradicional e os novos sítios e chácaras de moradores urbanos, um lavrador de Goiás, apontando com o dedo ora a distância longa de uma cidade imaginária ou real, ora o chão onde estávamos os dois, me disso isto: "a diferença é que na fazenda o senhor ganha cá e gasta lá, enquanto na chácara o senhor ganha lá e gasta cá" O que não poderia ser mais verdadeiro. Urna fórmula menos brincalhona dessa oposição essencial, motivadora sem dúvida da desigual150

clade de sentidos e sentimentos dados ao mundo de natureza à volta deles e de nós mesmos, está em viver-do-que-é-daqui versus vir-aquipara-viver, cujo equivalente mais geográfico e menos econômico corresponderia a: o-lugar-de-onde-eu-sou versus o-lugar-para-onde-euvim. Pois desde a maneira como se aprecia desigualmente o canto de um sabiá no meio do dia até o modo como se pretende ordenar os espaços de terra à volta da casa, tudo parece derivar desta oposição de projetos e de sensibilidades sobre o lugar onde se está e a relação entre ele, o meu destino, e o "cia minha gente". Convoco, daqui em diante, o depoimento de três orientados meus cio doutorado em Ciências Sociais cia UNcAN1I'. A menos de 40 minutos de carro, nas margens da represa do rio Atibaia e de frente para a cidade de Nazaré Paulista, a "Comunidade de Nazaré" recebe há vários anos hóspedes e visitantes de "fins-de-semana" para um exercício de dois dias, ou de vários meses, com "vivências" de au toco nhecimento, onde a essência de tudo é regida por uma outra sensibilidade de si mesmo por meio do aprendizado de uma nova afetividade para com o mundo da natureza. Dentre as "oficinas" possíveis de trabalho de Si mesmo, uma das mais procuradas envolve o adensamento de contatos com os seres próximos do ambiente, caminho prático de uma extensão desejada cio eu mesmo à amplitude de toda a vida, cio todas as energias do Cosmos. Um dos criadores cia Comunidade de Nazaré é João Luis. Ele ingressou há quatro anos no doutorado de ciências sociais e é professor da Universidade São Francisco, trabalhando no Campus de Bragança Paulista (há outros dois, um em São Paulo e outro em Itatiba) juntamente com Rosa Maria, uma outra participante de nosso doutorado, ele desenvolve, ao mesmo tempo, um programa de curso de especialização e de pós-graduação "latu-sensu" em questões ambientais e, para professores da rede escolar de cidades da região, uma série de cursos e treinamentos em educação ambiental: Bragança Paulista, Atibaia, Pedra Bela, Nazaré Paulista, Piracaia e Joanópolis. A menos de outros 40 minutos, em direção a São Francisco Xavier, não muito longe de São José dos Campos e cIo Campos do Jordão (o paraíso próximo dos sedentos de ares de inverno no Brasil), pequenos grupos de naturalistas fugidos das cidades buscam algo não muito diverso do que se procura, vivendo ou indo passar "uns tempos" na Comunidade de Nazaré. A melhor fórmula que eles usam e que bem pode ser sugerida aqui seria "a busca cio novas experiências". 151

Os complementos desta fórmula muito antiga e muito renovada são vários estilos "de autoconhecimento", "de relacionamentos com a natureza e o ambiente.."; "de compreensão cia vida e de sensibilização"; "de novos paradigmas de existência". Eu nem preciso recordar que existe uma diferença muito importante entre essas comunidades de neovicia rural e de acolhida, e os incontáveis grupos e pequenas agências urbanas de "cuidado de si" por meio de antigos (como a yoga), modernos (como a psicanálise) ou muito recentes filosofias, teorias terapêuticas ou práticas do corpo e/ou do espírito (como a hipótese gaia ou a atualização ocidental de tal chi). É que em nosso caso (e com que grau de pluralidade ou cumplicidade digo "nosso", agora?) todo o processo pessoal de soLici de sol e/ou de aprofundamento de experiências de compreensão, sensibilidade e relacionamento passa pela definitiva, sazonal ou efêmera da cidade e de seus estilos de ser e de vicia por outros: "rurais", "campestres", "ecológicos", "naturais", Uma redefinição de todo um "sentido de vida" atravessa de uma maneira nuclear e inevitável uma moderada ou radical naturalização de cotidiano". Esta naturalização mais cio que rousseauniana, esta "busca" que emaranha um voltar-se "para dentro de si mesmo" com um "abrir-se a todas as energias cio cosmos", obrigando, no limite, o seu adepto ao vegetarianismo, à ruptura com uma tornada inimiga "economia de mercado" e seus "produtos industrializados, que gera militantes ambientalístas e quase monges de "vida alternativa", aqui e ali espalha-se por lugares de natureza pródiga, de Nazaré Paulista a São Tomé das Letras, para lembrar limites apenas próximos cia Mantiqueira e ciejoanópolis. Ela pouco a pouco se dissemina, quase sempre, vimos, à margem cia vicia camponesa tradicional, com a qual, muitas vezes, os seus sítios e suas comunidades de "novas experiências" limitam-se por meio de cercas de arame ou de riachos de águas claras. Com os professores da rede escolar dos cursos dados pela "São Françisco", os da universidade têm chegado a uma mesma conclusão. Em termos de "educação ambiental" pouca coisa pode ser feita com os adultos, com os "mais velhos", homens e mulheres rurais criados "no costume antigo" e resistentes a qualquer mudança relevante. Por isso quase toda a ênfase do trabalho é reduzida à escola e aos filhos e filhas que, em número crescente, quando por sua vez "adultos", não estarão mais vivendo "no campo". Esses homens e mulheres velhos em l'iracaia, ou transitando na estrada entre a "Dom Pedro" e as cidades de serra-acima, avistam 152

dos dois lados das janelas do ônibus, nas margens cio rio Cachoeira, os tabuleiros das culturas de hortaliças raras e das flores dos agricultores "japoneses" Todos sabem que uma qualidade de vida bastante "melhor que a nossa", obtida com o trabalho familiar sobre terras de poucos hectares, é devida a uma modernização devastadora cia agricultura, associada a uma inteligente estratégia de comercialização pela qual cooperativas respondem. Mas, como bem o demonstrou em sua dissertação de mestrado Thaís Martins Echeverria, uma oportuna modernização da prática produtiva e os seus ganhos servem a recriar as bases familiares e comunitárias de uma vida tradicional, uma vida de pequenos costumes cotidianos e ritos sazonais de celebração da mais oriental ancestralidade. A meio caminho entre antigos descendentes de orientais (quando não japoneses eles próprios, os mais velhos) e neonaturalistas com vocações de ressignificar a vicia e suas trocas com modelos do oriente, os homens e mulheres cio Pretos de Baixo sonham preservar um modo camponês tradicional, o único pelo qual, em nome da família, vale uma vida de trabalho "duro no eito". A mesma vida que ninguém pelos bairros acredita que os forâneos, "alternativos" ou não, vivam, no trabalho ou fora cicie. Caminhamos juntos morro acima, José Fernandes e eu. A sirierna canta no pasto do campo por onde vamos. A fêmea responde ao longe. Andando lado a lado nós a escutamos ao mesmo tempo. Esses cantos ásperos, esses gritos como uma gargalhada nervosa e festivamente estridente, dados ao ar para serem ouvidos muito longe, me trazem muitas evocações. De onde? De quando? De iodos os tempos, os lugares e cenários rurais vividos'antes e longe dejoanópolis, das montanhas e morros cio bairro dos Pretos. Lembro as primeiras vezes, o menino carioca ouvindo siriemas nos pastos de Itatiaia. O delicioso espanto! Desde então, esse diálogo animal me acompanha e uma seqüência de cantos em algum lugar maravilha o momento de escuta e evoca outros, em outros lugares, alguns distantes agora, como os pastos de bois e vacas de Mossâmecles, Diolância, Goiás Velha e Pirenópolis, em Goiás. Como agora - e é um salto no tempo - aqui em Pocinhos do Rio Verde, quando me encanta vê-Ias e ouvi-ias piarem à volta cia "minha chácara". Dessas pequenas teias de lembranças de cenários e vivências trazidas com o vento de um canto de pássaro nos pastos, eu sou capaz de imaginar o palpitar da vida natural à minha volta e estendê-los em círculos de uma finitude invisível, em planos mais amplos e mais distantes de mim. E deles sou capaz 153

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Afim

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de "viajar" (com os antigos e novos sentidos entranhados nesta palavra de muitas trilhas) da natureza vizinha, dos cenários vividos dos meus ambientes d.e agora e cia memória, a um mundo cosmos, vivo, holisticarnente perfeito, entrelaçado de tudo e enredador fecundo e generoso de todas as coisas, cuja silenciosa sonoridade dos fundos da vida pode, por um momento, tomar a forma exagerada que um canto-grito de siriemas, José Fernandes sabe que o macho cantou nos morros das terras de seu pai, perto das roças de milho de onde viemos. Sabe que a outra respondeu dos morros em frente, do outro lado do rio, nas terras onde moram Roberto e Cinira. Sabe que é fevereiro, e o canto, agora, não quer dizer a mesma coisa que dizia em setembro, quando "elas se acasalam", e "canta pelos campos o macho buscando a fêmea". Sabe distinguir os muitos cantos dos pássaros cujos nomes e qualidades eu não conheço, sabe quando é o tempo de cada ser de espécie de passarinhos "aparecer", cantar, fazer os ninhos, criar os filhotes e ficar ou partir por meses, sabe quando cada um canta e qual a razão de ser de cada canto. E as teias que tecem com seus gestos ligam nomes de bichos às suas qualidades, e o lugar de onde cantam aos seus donos, e os tempos em que cantam aos acontecimentos múltiplos da natureza cio campo, dos momentos cio gado, dos breves períodos marcados da vicia dos vegetais "cio mato" e 'cia lavoura", O devaneio dele, se não vai tão fantasiosamente longe quanto o meu, vai mais a fundo, solidariamente ancorado no mundo de sua vicia real. Quantas vezes observei esta mesma diferença, que vai das categorias lógicas do conhecimento e cio imaginário da natureza, até a mescla delas com as sensibilidades carregadas de afeto de uma verdadeira ética do ambiente, em várias outras situações. Janeiro de 1993 foi um tempo de muitas chuvas. Algumas tempestades fortes jogaram para fora do leito por alguns instantes as águas cio rio Cachoeira, As "chuvas de verão", às vezes de urna quase noite inteira, sugeriam em mim um moderado temor pelos seus efeitos imediatos. Mas convidavam também a uma contemplação amorosa, pois as tempestades de verão sempre foram para mim um dos espetáculos naturais mais queridos e, finalmente, traziam urna série de evocações, pois, a cada urna caída no Pretos de Baixo, eu tinha outras, muitas outras de vários lugares e tempos da vida a recordar. Como esquecer as tempestades cariocas chegando dos altos dos morros Dois Irmãos e se espalhando pelas matas cia Gávea, onde, ao pé de uma está até hoje, com outros donos, a casa onde eu morei 16 anos? E as 154

grandes chuvas que nos surpreendiam nas trilhas das florestas do Rio de Janeiro, de Teresópohs, de Itatiaia, ou as que nos apanhavam dentro das barracas de algum acampamento de montanha ou de beira de rio ou, pior ainda, as raras, mas inesquecíveis, tempestades que nos ameaçaram durante alguma escalada de montanha, como uma vez, entre perigos, descendo as prateleiras, em pleno Planalto do Itatiaia, num outro janeiro há muitos anos atrás. Antônio Fernandes - creio já haver lembrado isto, alguns dias de diário atrás - interrompia o fio de nossa conversa nos dias de tempestade para murmurar uma "Santa Bárbara", no clarão de cada relâmpago e antes de ouvirmos, ecoando pelos morros, o rugido de seu trovão. Dentro de um múltiplo plano de conhecimentos e memórias, tão prático quanto poético, uma geografia das chuvas e uma rústica meteorologia dos seus sinais e de outros, de outros tempos, dava ao seu chover um sentido distante do meu. A cada "época" do ano agropastoril são esperados e lidos - ora com o sentimento da regularidade dos elementos próximos do cosmos, ora com o espanto da ruptura ameaçadora de sua ordem - os pequenos e grandes sinais das mudanças do clima. A chegada prematura de alguns pássaros e o seu canto, assim corno as variações do comportamento dos animais de criação. O desenho e a coloração das nuvens no céu da Mantiqueira, a direção de onde vinham, a passagem fresca dos ventos, a alteração do volume e da temperatura das águas dos riachos, a atividade dos insetos e a mistura de tons de crepúsculos e da aurora. Tudo se lê e tudo se mistura em fórmulas camponesas de previsão próxima ou antecipada dos acontecimentos da natureza. Quando as chuvas chegam, cada uma representa algo que eu desconheço e que fui aprendendo parcialmente aos poucos. As que vêm "dos lados de São Paulo", pelos piamos das represas; as que chegam atravessando a Mantiqueira, vindas de Minas Gerais; as que aparecem do Sul, também das serras; e as que vem cio Norte, dos lugares mais altos, entre as paragens de Monte Verde, em Minas Gerais e Campos do Jordão, em São Paulo. Algumas passam breve, molhando pouco; outras são tempestades ferozes; outras demoradas e mansas, as melhores chuvas para os pastos e as lavouras. É porque o eixo do saber de minhas sensibilidades da natureza de que sou filho, parte e pensador, está muito centrado em mim mesmo, em meus motivos e meus desejos pessoais e nas alquimias do espírito errante com que associo cada imagem ou idéia a outras, de outros distantes tempos e planos da vida e cia "ordem natural das

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coisas", que eu me permito uma individualização extrema de minhas experiências relacionais com os cenários e os seres coletivos ou individuais cio mundo natural. É porque de uma maneira há muitos anos motivada eu faço o aprendizado teórico e vivenciado das relações entre cada acontecimento de minhas trocas - discípulo sempre incompleto de Rousseau, Gandhi, Tourreau e Teilharci de Chardin que eu me concedo, aqui no Pretos de Baixo, o prazer de associar o pio dos pássaros, o vento e a chuva de janeiro aos mistérios da dupla ordem da vida e cio cosmos, saltando de mim mesmo à vizinhança de "todas as coisas". Os homens com quem convivi estes dias, não. E imaginar que só por isto eles são menos poéticos e mais utilitários do que eu, é não saber que onde eu imagino (iludido ou não?) operar com um sistema do tipo: eu-natureza-cosmos-eu, eles operam com um sistema de múltiplos relacionamentos. Um operador de saberes, valores e sensibilidades que articula, dentro de um mundo geográfico e socialmente quase tribal, feixes e pianos naturais, sociais e simbólicos cuja complexa lógica fica ainda à espera de um decifrador oportuno do "pensamento camponês". Pois a mesma chuva brava de janeiro que me faz viajar "pra longe daqui", ancora Antônio e José Fernandes, filho e pai, num multicênio universo daqui mesmo. Ela vem de lugares bem conhecidos, passa por terras de matos, pastos e lavouras de pessoas e trabalhos, chega às suas terras e rega o feijão, a mandioca e o milho cujas histórias sazonais são, estas sim, fecundas e verdadeiras para eles. Cujo trabalho até então e depois, ano após ano, ordena, ele sim, toda a arquitetura de um cosmos onde, apesar dos "de fora", ainda é bom viver.

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Dados Rio

22 de fevereiro VOLTAMOS PARA CASA Hoje é um dia de voltar, um outro dia de voltar. Devo lembrar quantas vezes reuni as minhas coisas, arrumei a casa onde estava vivendo por algum tempo, longe de Goiânia, longe de Campinas, e voltei para minha casa. Mas corno esta pode ser a última vez que faço uma pesquisa de campo com urna prolongada moradia no lugar, não consigo deixar de sentir que a despedida do Pretos de Baixo e de Joanópolis tem um ar mais denso, quase mais solene. De qualquer modo, em uma escala menor e menos emocionada, o dia de hoje lembra a manhã cedo de 9 de dezembro - e nem faz tanto tempo assim - quando me despedi dos de Santa Maria de Oms, e no carro de Luciano deixei Brión, na Galícia, e viajei para Santiago de Compostela. Um outro ritual completo de mais uma "pesquisa de campo" estava chegando ao fim e era preciso chegar a tempo para pegar o trem da tarde de Santiago a Madri. Acordei cedo e caminhei a pé na estrada do Salto dos Pretos. Amoroso infatigável dos montes, das estradas, rios e cachoeiras, esperava chegar até no "salto" a tempo de na hora combinada retornar com Lilian e lara. Não tinha muito tempo e desisti da "viagem" completa. Fui apenas até o ponto entre as duas árvores tornadas familiares, um pouco acima do curral do Plínio de onde se avista as águas caindo cio Salto dos Pretos. Os cabelos brancos do rio Cachoeira despencando morro abaixo. Despedi das pessoas do "bairro", especialmente dos amigos da Fazenda São José. Deixei Tara e Lilian e desci sozinho para Joanópolis. Uma vez mais, eu aproveitava a carona do caminhão leiteiro, e a viagem que deveria ser quase solene e meio triste, acabou jocosa. Eu me equilibrava sentado em cima da tampa de um latão de leite e 158

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viajava esvoaçante, frágil, assustado com a pressa da descida do caminhão em busca cia cidade. Rei por um momento de urna aventura de menino, senhor cio susto e do sonho, pois eis corno se viaja na garupa de um caminhão. Em Joanópolis, fui à casa de João Egíclio, o rezador das santas cruzes e folgazão do São Gonçalo. Conversamos, gravei uma última fita e num derradeiro momento tive a fortuna de ouvir cicie urna estória, uma quase parábola tão encantadoramente associada a tudo o que estive procurando conhecer emjoanópolis nestes dias todos, que não resisto transcrevê-la no começo do que imagino ser a conclusão deste diário com vocação a relatório. Agora, na estação do ônibus, começo a ler Fiuginentos de urna Poética do fogo. Do prefácio escrito pela filha, descubro que Gaston Bachelard, este companheiro distante e próximo dos dias do Pretos de Baixo, morreu em 16 de outubro de 1962. Onde e vivendo o quê estaria eu, um estudante carioca prestes a concluir o primeiro ano CIO curso de psicologia?

—. 23 de fevereiro Em CASA, LONGE DO BAIRRO DOS PRETOS... PERTO

a) Como se pensa o que se troca: o Boi de São Gonçalo.

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João Egícho, o folgazão de São Gonçalo, rezador de Joanópolis, gosta de apresentar-se também como um penitente, Faz muitos anos, ele tem o costume de sair cedo nas segundas-feiras e rezar em toas capelas de "santa-cruzes", na direção de estradas entre morros a que ele se aponta naquele dia. Na quase hora de ir embora, ele me conta a estória cio Boi de São Gonçalo. Eu a gravei por inteiro, mas como transcrita ficaria longa demais para abrir uma conclusão, faço apenas a síntese dos pontos mais importantes. Não faz muito tempo um homem do lugar começou a ver o seu gado morrendo praguejado. São Gonçalo não é propriamente um santo especialista no assunto, mas como ele tinha uma "fé especial com o santinho" fez a ele a promessa. Ele foi, até mesmo, consultar o próprio João Egíclio, que sugeriu como voto cima Função de São Gonçalo e a doação de um boi de seu rebanho para o santo. Feita a promessa, em pouco tempo o gado sarou e parou de morrer; Com o milagre o dono do gado "parou de ter prejuízo". 160

Tal como acontece com muita freqüência, ele não se sentiu obrigado a cumprir logo a promessa, pois "o santo é paciente, desde que um dia a pessoa se lembre e cumpra". Passou o tempo e então foi o próprio promesseiro quem morreu, sem tempo sequer de comunicar aos familiares a promessa feita a São Gonçalo. Da mesma maneira como vi ser contado em vários outros casos, meses depois a alma do promesseiro morto aparece em sonhos à esposa e conta, com detalhes, a dívida para com o Santo. Ele lembra que "não pode entrar no céu" encluanto não for cumprida pelos familiares a promessa feita a São Gonçalo. a "obrigação" contraída pelo promesseiro e por costume deixada por herança aos herdeiros. Pouco tempo depois afamília organiza uma Função de São Gonçalo com todos os demorados ritos de praxe, cia noite de um dia à manhã de outro. Reza-se, canta-se e dança-se ao santo diante do altar,, onde também por costume antigo deve ser colocado um retrato do morto em um quadro com uma tarja de pano preto à volta. No intervalo da dança, no meio da noite, a família oferece, aos "folgazões" e a assistentes e participantes, a comida de praxe. Mas, atenção, ele não sacrifica um boi do rebanho e não oferece ao santo e a todos a sua carne. Dias mais tarde, a alma do morto aparece cie novo em sonhos à esposa. Eia aparece brava "de verdade" e protesta com veemência. A família cumpriu a metade costumeira da promessa cio morto, mas não cumpriu a outra metade, mais cara e original, pois raramente a São Gonçalo se promete a morte e a doação cie carne de uma "criação". O resultado foi que sem "o voto cumpre" por inteiro, a alma do morto devente não podia "entrar na glória de Deus". Por causa do egoísmo dos familiares "em não gastar com o santo", a dívida não foi acertada e "o homem não teve as portas abertas pra entrar na Glória" . Pois "São Gonçalo é bom, é uni santo milagreiro, e ele atende mesmo. Mas depois cobra e quer a promessa cumprida do jeito como ela foi feita". E assim foi feito. A família, sob ordens da viúva, marcou uma nova Festa de São Gonçalo; matou um boi escolhido no rebanho e distribuiu a sua carne entre os presentes na noite da dança votiva. Como o espírito cio marido morto nunca mais apareceu aos familiares vivos, a crença é que, "cumprido o voto, ele entrou no céu". Eis como bichos, homens e santos se misturam entre promessas e trocas para que algo aconteça entre vivos e mortos.

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b) Família, trabalho, terra e troca Tal como o relato do "Boi de São Gonçalo", o que escrevo daqui cm diante, como se fosse urna conclusão, começa pela revisita elas anot içocs de meu caderno de campo, no di i 27 de fevereiro, e segue com o acréscimo de algumas ideias Estas ideias quero que sejam um dialogo com Kia is Wortmann 1 quem juntamente com Fllen dediquei estas paginas de confidencias e anotações sobre os homens do campo com quem eles e eu, cada um a seu tempo, cada qual em seus lugares, dedicamos um bom espaço de nossas vidas. Do caderno de campo. Não sei por que, uma vez mais, a oposição entre oclever da dívida e o direito ao dom, alhures lidos algum dia em l'ierre Clastres, forma a primeira im mgcm de ideias que me chegam neste momento. Mas essas duas expressões são mesmo cici e ou eu as cunhei para compreendê-lo? Tudo o que eu estive vivenciando, ouvindo, dialogando, lendo e escrevendo até aqui tem um substrato ético evidente. Um ou mais? Alguns ou vários? Trata-se de pensar uma ética, trata-se de fundar uma ética. Tratase de compreender este fundamento moral que, mais do que uma ideologia (e o que seria, hoje, aqui, "uma ideologia"?): ordena motivações, explica emicamente motivos e conduz a ponta que unifica o intervalo entre uma lógica da natureza e uma ética cio ambiente. Afinal, se, com os meus companheiros de antropologia, eu estive interessado em compreender algo a respeito de como os homens se relacionam, estabelecendo códigos sociais de trocas de bens naturais socializados através cio trabalho, em vários momentos eu me vi solitário, dando um pequeno salto além e perguntando sobre como uma mesma ética, companheira de uma lógica de classificações ampliada, funda o campo simbólico e concretamente relacional das trocas entre as pessoas sociais c seres da natureza Seres de algum modo tornados, então, subjetivamente e actancialmente, sujeitos de trocas, co-atores, autores de relações. De relacionamentos que encontrei carregados de significados de sentidos e de sensibilidades Você sabe como os vegetarianos, resumem tudo isto para dizer em poucas palavras por que não comem carne? "Os animais são meus amigos, e eu não como os meus amigos". A frase imagino ser de Bertrand Russel e, por certo, Lévi-Strauss, é mais uma fala sobre a comida, boa para se pensar. Relendo o que escrevi, acredito haver levado uma vocação conhecida dos antropólogos a um talvez exagero. Se isto é verdade, 162

eu devo me penitenciar de saída. Mas não creio que, percorrendo de novo o mesmo caminho de meus dias, encontros e idéias, eu escrevesse muita coisa diferente. E onde está este possível exagero? Em que eu me ocupei bastante em acentuar a dimensão não cliretamente pragmática, não imediatamente dirigida a uma lógica utilitária, nos sentimentos, nos imaginários, nos códigos relacionais e nas ações diretas de meus interlocutores. Unia feliz dupla de expressões de Klaas Wortmann, quando ele passa de uma economia de explicações para uma ética de compreensões, acompanhou-me todo O tempo. Terei sabido pensá-la e colocála em prática com os mesmos acertos dele? O jogo de opostos é a passagem do valor de uso para o uso como valor. Em boa medida, aqui também todo o tempo estarei falando a partir disto. Um outro aspecto em que posso ter praticado um exagero motivado, claramente intencional, seria o de que não perco o costume de misturar, muito mais do que os meus companheiros de profissão e os meus autores de textos, o natural, o social e o sobrenatural; o sagrado e o profano;a fala técnica, processual com que os meus sitiantes dizem uma coisa em um momento ver,su,s a fala mítica, mística, processional, com que eles dizem a mesma coisa em outro momento de um outro contexto. O caso cio Boi de São Gonçalo é bem um exemplo. E as pessoas que o contam e que crêem nele são as mesmas que assistem nos domingos ao Globo Rural e as que procuram, quando podem, o veterinário ela Casa da Lavoura e os meios mais modernos de cura de um gado enfermo. Seja, pois, por aí, o lugar cio começo destas reflexões de fim de pesquisa. Sobre a intromissão do sagrado, do sub e elo sobrenatural na prática cotidiana da vicia, regida pelo trabalho de socialização cia natureza, há uma relação de opostos entre cenário, seres e gestos que chama muito a atenção. Tal como aconteceu com os homens do campo do passado inglês, ontem e hoje descritos por Marx, E. P. Thompson ou Keith Thomas, um referente cio sagrado na experiência cia vicia não está para os meus sitiantes cio Pretos de Baixo como ele está para os Guayaki de Pierre Ciastres ou para os Achuar de Philippe Descola. Até onde é possível aproximar e separar domínios de reciprocidades e sustos humanos, como o fazem os etnólogos ou os estudiosos cio afro-brasileiro, entre os agricultores e criadores camponeses do bairro dos Pretos, o santo, o santificável, o sagrado benévolo não estão na natureza. Não habitam "ali", não podem ser encontrados ali, não 163

procedem dali ali. Mesmo na ordem imaginada cio cosmos em que se supõe eles vivam tanto quanto no coração do homem fiel e santo estão francamente em urna sociedade santificada, etérea, eterna. E o cenário privilegiado das transações entre o sagrado santificado e os humanos é sempre ou é preferentemente um lugar social, no limite, UM cenário cio intervalo entre o mundo natural e a sociedade. Aqui e ali, eu lembrei que a natureza em si não é o lugar cio bem. Deus a fez, Cristo a evita quando habita a história humana, embora seguidamente tome seus seres corno atores de suas parábolas, e o poder divino a preserva e regenera para devolvê-la, continuamente reconstituída, aos homens,., que a cada dia mais a utilizam interesseiramente e a degraclam. Deus não vive nela e sim sobre eia, nos céus; ou fora cicia, no sacrário, nas igrejas, na congregação social dos fiéis. Mesmo quando na 'Vida dos Santos" se lê que vários deles, sobretudo "nos primeiros tempos", buscaram a solidão dos desertos e das grutas para viverem, entrea oração e a penitência, o absoluto de suas santidades, adivinha-se ou se crê que o lugar acertado da experiência cristã é a convivência social nos cenários socializados plenamente cia natureza. A natureza-cenário é um lugar dividido entre o interdito e o trabalho, e, sendo uma bênção de Deus, sem ser algo sagrado, em si mesmo não deve ser tratado como tal. Em princípio, os homens não devem à natureza ou a uma divindade guardiã o sacrilizá-la e nem o preservá-la, por uma razão externa a eles mesmos e aos interesses cia vida social, presente e futura, quando porventura alguém se preocupa em pensar os direitos das futuras gerações. Se ele deve proceder com parcimônia e cautela diante cicia e seus seres, é porque ela é um dom dado aos homens mais cio que um bem em si; porqqe ela pertence em última instância a Deus (como a terra mesma, que sequer deveria ser objeto de compra e venda); porqie eia serve aos homens e perde condições de ofertar a eles o melhor de si mesma (fertilidade, pureza etc.) quando degradada pelo uso indevido. De alguma maneira o eixo lógico e afetivo das relações não é eticamente "mágico" (porque eu terei posto esta palavra entre aspas?), mas moralmente religioso. De uma maneira mais simples, digamos que os homens do campo são herdeiros. em linha direta de uma tradição cristã e ocidental. Uma tradição que tende a desencantar a natureza e a naturalizar o ambiente, com valores e princípios diferentes dos que orientam a lógict social do trabalho com a terra e os códigos culturais de relacio-

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namentos com o mundo natural de outros tipos de camponeses. Naturalizá-lo no sentido em que, mesmo tomando-o como obra e dom de uma divindade amorosa, toma-o também como um cenário vazio de deuses, esvaziado de poderes e de energias cósmicas, de qualquer outra coisa afetiva além da imanência de si mesmo e de seus seres naturais. Um cenário e um campo de relações onde na prática e apesar dos caiporas e das mães d'água, o que acontece é devido às relações entre o trabalho humano de socialização cia natureza e a insistência desta em continuamente renaturalizar-se. O sujeito cia dádiva da natureza é exterior a ela: Deus. Ao ofertála como um dom de si mesmo aos homens - a sua última criação natural - e ao reescrever, após o pecado original, os princípios da vocação humana sobre e com a terra, ele destina ao homem o dever cio trabalho, mas também o poder de dominam' a terra e completar, entre o dom e a dívida, a própria obra divina cia criação de todas as coisas. Mas se o mundo natural está desencantado de seres e de relações entre seres, em uma medida em que ele não está na religião dos druidas ou entre praticantes ortodoxos cio candomblé, nem por isto ele deixa de estar: a) magicamente impregnado de seres e poderes benévolos e malévolos, como em todo o imaginário cio catolicismo popular camponês; b) religiosamente impregnado do poder, do amor e cio dom de um Deus criador. Pois enquanto uma pessoa de um culto de tradição afro-brasileira vai a uma cachoeira ofertar a um orixá algo como um sacrifício, em nome de um pedido claramente social, como o casamento de uma filha ou o sucesso cio marido em uma nova empreitada comercial, o camponês católico refugia-se na capela do bairro para pedir, através de uma novena a São Sebastião, que ele interceda miraculosamente sobre uma questão natural, como a falta de chuvas que lhe mata o milho. Não sei por meio de que jogos estranhos da memória, ao chegar a este ponto, talvez por recordar a presença de seu Antônio Fernandes, o mineiro migrante , e rusticamente próspero em Joanópolis, eu me lembrei de associar estas idéias aalguns trechos das observações de Auguste de Saint-Ililaire. Farão elas sentido aqui? Ele está retornando de Goiás e Minas Gerais a São Paulo. Passa por Farinha Podre (Uberaba) e atravessando o Rio Grande reentra em São Paulo. Antirousseaunianameflte, ele desloca o homem do campo mineiro para o lugar cia natureza adequadamente dominada 165

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e incorporada à cultura por meio de uma ética de relações regidas por um trabalho que, transformando, civiliza. E ele compara este civilizador oportuno aos 'pobres paulistas", francamente naturalizados. Homens e mulheres infelizes, semi-famintos e quase indigentes, cujos ranchos de palha ele observa dos dois lados da estrada. Homens de pés descalços que cobrem o corpo com a roupa um dia posta pelos paclres jesuítas sobre os índios das Missões, e que tem no jeito do Mazaroppi a sua melhor figura. Lavradores precários e preguiçosos que lidam com a terra apenas na mínima medida de obterem dela o suficiente para a comida escassa de cada refeição. A meio caminho entre o branco rurícola "civilizado", segundo o modelo exemplar cio sitiante mineiro deixado cio outro lado cio Rio Grande e o índio, este lavrador caboclo e indigente quase reúne os defeitos dos dois lados, preservando, em contra partida, muito pouco das suas virtudes. Ele se apresenta como um ser imerso na natureza e a ela submetido, pois o seu trabalho pouco mais faz cio que apropriar-se furtivamente cio que a natureza produz por conta própria, e é o que se caça, pesca e coleta. Decaído a um estado natural de não-trabalho, o lavrador caboclo reflete o lado obscuro cia própria "naturalidade", e a sua situação é a caricatura cia do índio, em quem a plena naturalidade é constitutiva de seu ser. É como se o lado bruto cia natureza não dominada imprimisse no corpo, no estilo de vida e na identidade do homem "bruto", não a marca de suas Virtudes naturais, mas a de sua exata carência. Se a cultura é uma linguagem, o que ela traduz entre e para os homens são sistemas de mensagens onde núcleos de comunicação se entrelaçam uns com os outros econformam redes de significados. Núcleos que não apenas significam algo em seu próprio domínio de representação, mas que intersignificam alguma coisa além destes mesmos domínios, ao se darem à representação uns pelos outros, uns por meio dos outros. Kiaas Woortmann lembra com acerto, em pelo menos dois de seus artigos, que entre os homens cio campo um feixe quase nuclear de significados fundadores de uma ética peculiar ao campesinato, e de um tipo original de modo de vicia e de representação da vicia a de uma campesinidade - está montado sobre um tripé composto pelas categorias: trabalho, família e terra. Ora, aquilo que Saint-Hilaire acusa na indigência do lavrador rústico de São Paulo cio começo do século XVIII, quando o compara com os "industriosos mineiros", envolve uma inadequação nas trocas en-

tre estes três elementos. Ao não saber lidar de maneira fecunda e civilizadora com a terra (dado na natureza) por meio do trabalho (dado cultural da relação entre a sociedade e a natureza), o grupo social mínimo perde as virtudes de sua própria sociabilidade e se naturaliza perversamente. Eis porque as suas descrições sobre a maneira como parentes e vizinhos se relacionam é regida por uma violência primária, dominada pelo primado bruto do interesse mcliviclual. Observo que, quando Maria Sylvia de Carvalho Franco' reconstrói através de documentos jurídicos cio passado os códigos de famílias, de parentelas e de vizinhanças dos homens livres rurais cio vale do Paraíba, algumas descrições de acontecimentos violentos coincidem com o que escreveu Saint-Hilaire. Também entre os sitiantes do bairro dos Pretos o efeito do trabalho com que o homem cio campo subjuga a natureza dada e a incorpora à economia, à sociabilidade (quando ela própria pode ser sujeito e objeto de transações com a sociedade e entre os seus atores sociais) e aos significados cia cultura, reflete-se sobre o próprio ser humano. Reflete-se sobre a humanização de sua identidade mclividual e sobre a extensão cIcIa à experiência coletiva de uma cultura cotidianamente realizada através de trocas e reciprocidades vividas na e como a sociedade camponesa soc;iahzadora exemplar do mundo natural, e ainda não pervertida pelo modo de ser do código da cidade. Ali, onde as regras e os efeitos cio processo cio trabalho excedem os seus limites e geram uma quebra de harmonia em que o próprio trabalho humano como um valor, resta submetido aos interesses dos vícios desagregadores cio seu significado original: prover os humanos de bens em uma solidária medida adequada; subjugar com equilíbrio o mundo natural ao cia sociedade; completar em termos humanos a obra incompleta cia divindade amorosa, devolvendo a ela, como um ato igualmente amoroso, a sua própria imagem. Deixar o mundo natural entregue a si mesmo e negar-se ao trabalho de ir além cio apropriar-se efemeramente cicie (como entre os índios e os caipiras "atrasados"), transformá-lo humanizando-o, contém pelo lado cia falta a mesma falha de uma vocação que, ao exercer sobre ela uma ação egoísta, devastadora, e, contém pelo lado de excesso, ao ser regida pelo interesse cIa acumulação dos lucros e, não, pelo da repartição dos bens entre todos.

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Ver Homens livres na ordem escravoc'rata, especialmente os capítulos 1 e 2.

Quando aqueles com quem estive dialogando nestes dias passam comigo de urna lógica de ordem econômica (a do valor de uso) para a de urna ordem ética (a do uso como um valor) é sobre estes fundamentos que eles parecem falar. Concordo com Klaas Woortmann que mais do que uma referência a um permanente sagrado (na verdade subsurnido nas linguagens do cotidiano, embora sempre presente no substrato de praticamente todos os feixes de seus significados), urna ética camponesa de meus sitiantes do Pretos de Baixo a todo momento relaciona de muitas maneiras mediações de transações vividas intensamente dentro de um micro universo cotidiano em que o eixo social é a família, cujos membros na prática quase tudo fazem e em nome de quem a cada dia quase tudo se faz. Mas ao pensar uma ética de relações entre pessoas e entre suas categorias de sujeitos e as do mundo natural, dentro de um contexto local visivelmente regido agora pelo ingresso de "outros" e pélo que isto ocasiona sobre a família camponesa, sobre a terra de trabalho e sobre o trabalho com a terra, o pensamento camponês aos poucos passa da explicação costumeira de uma espécie de "estado das coisas", para a interpretação difícil das bases sociais e da lógica de sua transformação Em vários momentos estive atento à forma como para descrever quase tudo o que existe e acontece ao redor da casa, do sítio e do bairro, os homens e as mulheres recorrem a uma oposição de tempos, um "antes" e um "agora", que se refere continuamente a uma outra oposição, a de espaços e sujeitos, regidos pelo par: "os daqui" versus os "de fora". Acaso poderia ser de outra maneira? Mas para não repetir o que escrevi antes sobre isto, quero anteceder o que teria a dizer conclusivamente sobre o assunto com uma visita fugazmente teórica à maneira como penso e me aproprio de velhas categorias também antropológicas, tal como as encontrei revisitadas em Klaas Woortmann. 2 c) Troca . reciprocidade' dever e dom. Ao passar de categorias empíricas que organizam o corpo das idéias dos sujeitos camponeses para categorias antropológicas que permitam saltar da particularidade à teoria, ele passa de "família" e "liberdade" para "reciprocidade", "honra" e "hierarquia". A seguir ele lembra que nos casos de suas próprias pesquisas e nas suas leituras 2

Cf. Klaas Woortmann "Com parente não se neguccia".

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sobre o assunto, "O sítio, a colônia, a comunidade da Amazônia e mesmo a fazenda, são territórios de reciprocidade, na medida em que 11 são o espaço da troca, em sua oposição ao negócio e ao cativeir0 . 3 troca e o negócio, ele difeDepois de opor empiricamente a rencia com Geertz a troca e a reciprocidade, pois a dimensão teórica das duas é desigual e a idéia de reciprocidade, mesmo que tenha como paradigma a de troca, não se confunde com ela por ser mais abrangente como matriz de significados e por não se restringir a modalidades de transação entre "objetos concretos". Parafraseandoa indevida, mas intrigantemente, quase se poderia dizer que a troca tem a ver com o que se pode fazer com o valor de uso, enquanto a reciprocidade envolve transações onde o próprio uso é pensado com um valor. O que ressaltei neste trabalho foi o que se poderia chamar de espinto de reciprocidade, em oposição ao que a modernidade individualizante constitui como o espírito da mercadoria, ou o fetiche da mercadoria. O espírito da reciprocidade se afirma pela negação do negócio, ainda que nada seja trocado. Se a troca articula categorias culturais num campo semântico unificado, a reciprocidade, como conceito antropológico, articula-se com outros conceitos - a honra e a hierarquia - constituindo o campo teórico da ordem moral. Onde se troca comida, e quem troca comida? Onde o valor de uso se sobrepõe ao espírito cio lucro?

Ora, quero tomar aqui as perguntas sobre a comida a estabelecer, a partir de seu cardápio, os princípios de minha proximidade e de meu afastamento deste paralelo tão fecundo proposto por Klaas Woortmann. Vejamos. No Pretos de Baixo íamos com freqüência à venda de beira de estrada do João Baptista, onde telefonávamos (era o único telefone das redondezas) e fazíamos algumas compras de ocasião. Ele nos vendia a prazo e cobrava, imagino, o mesmo preço pedido a outros fregueses do local. Nas raras vezes em que fui à sua casa, o cafezinho me foi oferecido "de graça" e nem ele e nem eu imaginaríamos que pudesse ser de outra maneira. Assim também almoçamos e jantamos na casa de dona Bernarclina e de Antônio Fernandes várias vezes. Comemos em outras ocasiões em casa de outros casais que nos obrigavam não raro por uma manhã inteira, às vezes, por Klaas Woortmann, op. cit., p. 78. Klaas Woortmann, op. cit., pp. 78-9.

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quase todo um dia. É evidente que isto nunca nos foi cobrado, embora aqui e ali tivéssemos a oportunidade de "devolver o dom" levando balas e biscoitos para as crianças da casa ou deixando alguns presentes no dia da despedida. Quando eu pedia algumas espigas de milho ao José ou ao Roberto para cozinhar "em casa", elas nunca foram negadas e, ao contrário, o doador sempre protestava que havia "apanhado muito pouco". Isto não ocorreu, mas estou certo de que se fosse pedir a um deles todo um "cargueiro de milho", um preço seria ajustado e eu deveria pagar. Mesmo entre estranhos, mesmo entre conhecidos não parentes, há bens de dom, troca e venda (negócio), assim como há situações e proporções em que um mesmo bem de troca passa a uma mercadoria de negócio entre as mesmas pessoas ou, com maior facilidade, entre pessoas desiguais. De fato o campo da reciprocidade, onde o produto vale como um bem e o bem tem valor como dom, a ordem da troca é puramente ética. É afetivamente moral. Ela está toda dentro do campo da honra, onde até mesmo as categorias sociais regidas pela hierarquia da família, da parentela, da sociabilidade, comunitária ou externa ou bairro rural, são fortemente marcadas por uni sobre valor visivelmente afetivo. Lembro-me de haver discutido algo a este respeito em A partilha cia vida. Pois eu respeito e sirvo a um pai que amo. E nada mais doloroso na experiência camponesa, do que dever respeito a um parente sem o amar, ou o seu reverso; amar uma pessoa da família "doe não merece o meu respeito". Que outro motivo faz com que em quase todas as músicas sertanejas cujos sujeitos centrais são familiares aos pares (marido e esposa, pai e filho, par de irmãos, afilhado e padrinho), o respeito e o amor, a honra e o afeto estejam juntos e sejam enunciados um pelo outro? Se a honestidade rege a lógica do negócio, mesmo em se considerando que o lucro devido à esperteza é bastante louvável, a honra rege a reciprocidade. De uma outra maneira, podemos pensar que na relação social do negócio o que está em questão é a circulação de bens realizados como mercadoria através de pessoas vividas como parceiros de um jogo cujas regras regulam o dever da honestidade. Assim como na relação social da reciprocidade, o que está em jogo é uma circulação de pessoas através de bens realizados como dádivas trocadas entre sujeitos de um rito cujas regras regulam o direito à honra. Pois enquanto no negócio o dever da honestidade entre os parceiros da troca comercial serve a um jogo de barganhas onde o interesse primordial é o lucro, na reciprocidade o que se nega é o lucro comer170

ial, para que se afirme entre os sujeitos da troca afetuosa o puro pórnado da gratuidade. O que ocorre é que entre familiares, entre parentes incluídos au não dentro de um mesmo grupo doméstico, entre pessoas dis:antemente "aparentadas", entre vizinhos de bairros ou entre bairos, entre confrades de grupos religiosos, sociais, políticos ou esporavos, entre parceiros de trabalho, sócios, amigos, conhecidos ou estranhos de transações de vários tipos, há uma teia complexa de luxos efêmeros ou continuados de transações de bens (mercadorias au dons materiais), serviços (trabalho remunerado, trocado por traaiho ou doado a outro) e sentidos (deferência, respeito, aliança, nclusão em, exclusão de, hostilidade, conflito) que atravessam qualquer domínio social, socionatural ou sociossobrenatural em que pes;oas ou grupos de pessoas se reconheçam em relação entre elas, entre elas e seres-e-cenários da natureza, entre elas e seres-e-cenáios do sobrenatural religioso (Deus Pai, Jesus Cristo, A Virgem Ma'ia, São Gonçalo, as almas cio purgatório, Satanás) ou mágico (lobi;omem, mula-sem-cabeça, Uiara). O que eu quero dizer é óbvio, mas importante de ser lembrado iqui. Os sujeitos da campesinidadle a tecto momento estão, se pen;am, se reconhecem e se identificam dentro e através de círculos e :ircuitos de transações. Elas valem para os códigos dos jogos e esão inscritas nas brincadeiras infantis, nas mesas de truco que nos icompanharam em algumas páginas aqui e nas caçadas furtivas. Iaiem de igual maneira nas trocas de "ajudas", "serviços" e trabahos realizados entre as pessoas da casa, cio sítio, cio bairro e de fora. ) que as distingue, e Klaas Woortmann percebeu isto admiravelmene, não é tanto o que está circulando, mas em que circuito circula, mtre que categorias de sujeitos e sola a atribuição de que sentidos, lentro de que códigos de transações e de que sistemas de significa;ões de tudo isso. Sistemas que, eles próprios, atribuem nomes, osições e direitos - deveres a tipos de sujeitos (da sociedade, da atureza, do sagrado celestial) em função de quem, como e sol) que ,alores aquilo que pode ser transacionado circula entre eles. Já que, maussianamente, entre a dádiva e o lucro tudo são tro:as, quero misturar conceitos êmicos e éticos e propor uma divisão m três categorias de transações, ali onde Klaas aponta duas. Por não mcontrar palavras mais adequadas revisito os termos com que temos rabalhando até aqui separando-os como: negócio, trbca e reciprociJade. Isto me permitirá aceitar que "cum parente não se neguceia...", 171

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mas se troca, ainda que a relação preferencial entre pessoas da mesma casa e do mesmo sítio seja a pura reciprocidade, vivida dentro do campo ético cia honra e co-significada entre seus atores por meio de sentidos e sentimentos de deferência e afetividade. Vimos que o negócio, ainda quando vivido entre amigos de um mesmo bairro rural, implica uma relação entre pessoas onde o que importa está no valor da mercadoria. Uma lógica de interesse financeiro explícita ou disfarçada constitui a relação e o seu próprio código submete a interação aos interesses e princípios do mercado. As pessoas compram e vendem produtos de seu trabalho ou de negócios anteriores; trocam bens por serviços e serviços por bens; alugam instrumentos de trabalho e, no limite (para o mundo rural), transferem entre elas tipos de conhecimentos, recebendo de uma maneira interessada outros bens, outros serviços ou outros tipos de conhecimentos. No pólo oposto, tudo o que a reciprocidade nega corno gesto, como código e como valor, é o que o negócio transforma em valor e realiza, Ela está circunscrita na sociedade camponesa ao círculo cia família, cia parentela e cia confraria (muito importante agora, quancio dentro de um crescente aumento de convertidos ao pentecostalismo, há uma tendência a sobrepor uma família de 'irmãos de fé"e uma outra, de "irmãos de sangue") e é realizada como e por meio de uma moralidade regida pela honra e a solidariedade afetuosa, Sendo algo cujo primeiro princípio é o não se obter valor de uso, em troca do valor cio outro, a experiência social e imaginária cia reciprocidade na ética campesina conspira em tudo contra o lucro, em nome de uma perda econômica que instaura para uma pessoa, ou entre pessoas, um 'bem" socialmente ético e afetuosamente relacional. No entanto, mineiramente, uma grande quantidade de transações entre as pessoas cio universo da campesiniclade costuma ser vivida no intervalo que torna um contínuo o oposto discreto entre o negócio e a ieciprocídacie; entre o circuito do lucro e o círculo cia gratuidade; entre a lógica cio mercado de bens através das pessoas e a ética cia sociabilidade entre pessoas por meio dos bens. Lembro exemplos comuns na comunidade camponesa, deixando de lado os casos conhecidos em que uma prestação de serviços de filhos a pais antecede o momento em que pais cedem a filhos porções de terra, ou deixam em herança às famílias de filhos, a terra trabalhada por ele e seus filhos ao longo dos anos. Entre parentes se "neguceia", e nos círculos sociais camponeses, onde com muita fredlüência dentro de um mesmo bairro rural ou de um mesmo arraial

lineiro "todo mundo é parente", é entre pessoas de uma mesma arentela, mas não necessariamente de uma família moradora em m mesmo sítio, que está sempre negociando, Apenas aqui, a meio aminho entre o puro "negócio", reservado às transações com os "ou-os", os "de fora", e a reciprocidade generosamente gratuita, realiada não apenas entre parentes, mas entre tipos de atores em que or um momento ou por um longo tempo as regras da deferência terpessoaI submetem as cio interesse extra-relacional, tais transaões são vividas como quero aclui denominar de troca. Que outro orne mais devido eu poderia conseguir para qualificar uma transaão de heris (cargueiros de milho, sacos de feijão, capados, bois e acas, de Lisos) (direito à utilização de pasto mediante aluguel, parcrias de plantio ou criatório feitas entre parentes ou comparsas etc.) serviços (trocas de dias entre vizinhos, prestação de ajudas entre arentes, em troca de futuras contra-ajudas, trabalho remunerado em ondições especiais, quando vivido entre parentes ou parceiros), nele de uma visível e até mesmo alardeada maneira misturam-se os teresses propriamente econômicos e o rol de seus preceitos e feitos com os critérios éticos e eticamente afetuosos? É justamente a possibilidade de uma situação de intervalos, a "oca entre sujeitos que são e se reconhecem reciprocamente cri~ olvidos em feixes de relacionamentos mútuos nunca restritos à lóica econômica, o que torna viável todo um conjunto muito variado e transações entre as pessoas cio mundo camponês ou, se quiseros com Klaas, cio universo da campesiniciade. Mais cio que isto, se eu pudesse acrescentar algo às observaões sobre o que caracteriza este modo de ser e viver, mais do que implesmente uma ética de relações, eu diria que a sua característia principal está em resistir contínua e persistentemente a se clissoler em uma lógica de relacionamnentos na qual o dom se submeta o lucro, a reciprocidade ao negócio e a deferência-a feto entre as essoas à manipulação comercial. Uma estratégia realista para torar isto possível, consiste justamente não tanto em opor códigos e onclutas, mas em contamninar de um modo eticamente oportuno um ólc com os valores e preceitos cio outro, de uma tal maneira que a ciprociclacie seja, direta ou indiretamente, em alguma medida tamém produtiva (vide a circulação cia carne de porcos entre parentes o Pretos de Baixo) e os negócios, quando realizados entre paren5 ou parceiros, pareça estar sempre submetendo o lucro a uru ganho ocial maior cio que ele.

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d) de volta aos bichos e homens Não creio ter amadurecido bastante a minha pesquisa e as minhas idéias para saber, pensar mais a fundo até onde o que foi sumariamente exposto acima pode ser transferido a relacionamentos cio tipo homem/natureza. Mas alguns pontos parecem ser claros e dignos de uma lembrança aqui. Vimos que, como os humanos, os seres do mundo natural e, em especial, os animais, são pensados e são vividos segundo uma lógica camponesa da natureza e através de urna ética cio ambiente que, em boa medida, os aproxima diferencialmente da maneira corno as pessoas se classificam, se pensam e se relacionam. Com uma diferença essencial, no entanto. Todas as pessoas, quaisquer que sejam, estão dentro de um campo humano e culturalmente social de subjetividade. Não apenas por razões de cultura (porque falam uma mesma língua, porque se comunicam inteligentemente, porque podem estabelecer entre elas teias de símbolos e de significados) mas por motivos de fato ontológicos (porque são seres humanos, porque 'somos todos filhos de Deus") as pessoas humanas estão dentro do âmbito do contrato social. Elas fazem parte cio campo ético dos direitos e cio círculo de sentimentos, conhecimentos e valores de que todos os outros "seres do mundo" estão "naturalmente" excluídos, Mesmo quando um cavalo é da mais extrema "estimação", sempre se subentende que o seu dono pode matá-lo se ele se ferir e não puder mais ser utilizado, ou pode vendêlo, se isto for necessário. Pode-se amar um cão com urna grande ternura, mas mesmo as crianças sabem que ele não possui direitos sociais que a mais execrável pessoa humana possui. Vimos antes momentos de uma leitura camponesa dos princípios religiosos cio cristianismo, em sua versão dominantemente tridentina, constitui tal como ela o eixo de como se pensa e vivencia a relação sociedade-natureza, e os múltiplos relacionamentos do tipo eu vcIsus seres indiivicivaljzados cio mundo natural. Tudo o que "existe na natureza" não está excluído da "promessa" católica "cia salvação" e cio contrato camponês de sociabilidade, como também existe para submeter-se em sua dimensão, e servir às pessoas, às famílias e a outros agrupamentos sociais. No entanto, creio haver observado algumas mudanças relevantes. Mesmo quando se diz que na maior parte dos casos o que se preserva hoje em dia é por causa "das leis da Florestal", na verdade há uma tendência entre as pessoas do campo a repensarem o teor de seu próprio poder sobre o ambiente. Uma destruição mais in174

discriminada, das queimadas de florestas às matanças das caçadas, parece dar lugar a uma atitude mais preservacionista. Uma explicação poderia estar, como vimos em vários momentos, no fato de que todos vêem à sua volta as ameaças imediatas dos efeitos de devastação e poluição do ambiente próximo. Mas eu acredito em uma outra razão. Os camponeses tradicionais olham-se no duplo espelho que têm em urna das faces os seus ancestrais, desbravadores de terras e interventores por atacado sobre os recursos naturais. Na outra face ele vê o moderno investidor "no campo" "abrindo pastagens" e destruindo matas naturais para "plantar o eucalipto". Entre a visão de si mesmos nos ancestrais e a cios "de fora", eles tendem a construir uma identidade que a cada dia incorpora, como um valor, uma auto-imagem de preservadores rústicos da natureza. Pois não é mais necessário e nem é oportuno fazer agora O que fizeram "os antigos" e de maneira nenhuma eles desejariam estar fazendo o que fazem "os de fora", modernos demais para serem éticos, ambiciosos demais para serem bons.

23 de fevereiro Ua

E1ÍL0G0 COM

Oc'ravio Paz

A imaginação não está no homem, ela é o espírito cio lugar e do momento; não é apenas a potência pela qual vemos a realidade visível e a oculta, é também o meio através cio qual a natureza, pelo olhar do poeta, se olha. Pela imaginação, a natureza nos fala, e fala consigo mesma. Os Filhos do Barro

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CADERNO DE FOTOS

Os altos ermos. AS encostas da serra da Mantklueira na regra() XO rio bairro dos Pretos.

Cio

['retos ore nai-

Cenas de seres ci sid de II tb 11h11 cotidi 101) \knll7Os tocam i1,ini dc propriedade familiar nas terras do avô, seu Antônio Fernandes.

15

Icscs

Parte cia área mais urbana cio Pretos de Baixo A ca pela e a casa cio ea ló" Casa de fazenda, matas restantes, pastos, lavoura de milho

R

Avo, genro e neti; um tinigo (le todos no cas ato de tras. Cena de fim de clit no Pretos de J3ai\o,

Matança de capado. Pai e filho começam a abrir e descarnar Cl.) recém-morto e queimado, para soltar a pele.

11111

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LÀi : -

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Ma ri do e esposa batem feijão" n(-) quintii de casa.

()s trabalhos da roça no "estilo dos antigos". Ferver a calda da cana para fazer a rapadura catar com as mãos os grãos de café postos a secar.

IIII!

17

IL

_

No sítio de Nôro, orna Elba es pia, o ni amigo a rida Ele prepara o tacho de rapadura. Na loto de hai'o, pai e filha trabalham na 1 oenda da cana.

Trabalho das mulheres: moendo o milho.

Lrá

Gaiteiro dc leite entre os

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xv

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xvii

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