Nietzsche o humano como memória e como promessa
 9788532645692

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Este livro apresenta, num complexo mosaico, as linhas de força da crítica da cultura de Nietzsche, uma filosofia desprovida de um centro estável e fixo, organizando-se a partir de deslocamentos constantes, no ritmo de uma lógica dos antagonismos, que faz da fecundidade dos paradoxos um dispositivo de produção de sentidos. Partindo de uma perspectiva de antropologia cultural, o livro mostra como a plasticidade ontológica do homem dá lugar às formações sociais e culturais pelas quais essa impermanência se estabiliza, transitando daí, por meio de uma Filosofia do Direito e do Estâdo, para a história de proveniência dos - . valores cardinais que.·orie.otaran;i os · .·L··_ .._~-- _..,i~~-_.-...,;,;_· - ~ rumos do que cha_ mamos -.·,ii'•~;",;~-,.:i::,.:~ ·;. · --~--:.:•:•.Y'JW"..-:-~·r Ocidente, ou cultúra :ôdoe·ntál. . , ... t. Com base nu/n~i;2õr.istitLJiç.ão qa -.

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gêne$e do~ v_ ~l.é.~ reiíliisM , ~a~r•e•fl• e•xal-º l! I■-..s.e pergunta pelq],yâlor: âessa gênese, e procura re_ c§.ç5truir. a crítica nietzscheanâidáfreligião, ãa ar.te, . da moral, da· ciêº~çl~; ao direito e da política, explicit~'.Q.9.9 O .estatttto teórico e a função d~]1~!~'é!~J~!ª e · do sentido histórico comó·}~-::1,:'(~~t\-'~/ elementos estratégicos do \• : ...: i -~-~~~:•:'f pensamento de Nietzsche. Nas pegadas de Nietzsche, o livro se pergunta pela história de proveniência e pressuposições tácitas da metafísica, da ciência, da teoria do conhecimento, abrindo espaço para uma elucidação da "metafísica da arte", para ª ·,

01git.llizodo com C.lmSconncr

m 1ETZSCHE O HUMANO COMO I

MEMORIA E COMO PROMESSA

Oigitélliz~do com C~mSc Dnner

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Giacoia Junior, Oswaldo Nietzsche : o humano como memória e como promessa / Oswaldo Giacoia Junior. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2013. Bibliografia ISBN 978-85-326-4569-2 1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 I. Título. 13-03897

CDD-193

Índices para catálogo sistemático: 1. Nietzsche : Filosofia alemã 193

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Oswaldo Giacoia Junior

fflIETZSCHE O HUMANO COMO I MEMORIA E COMO PROMESSA

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SBD-FFLCH-USP

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IliY VOZES EDITORA Petrópolis

Digitílliz.:ido com ComSC-Dnner

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7-,,~D© 2013, Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.co1n.br Brasil

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer 1neios (eletrônico ou 1necânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

Diretor editorial

Frei Antônio Moser Editores

Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo

João Batista Kreuch

DEDALUS -Acervo - FFLCH

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Editoração: Fernando Sergio Olivetti da Rocha Projeto gráfico: Alex M. da Silva Capa: Renan Rivero

ISBN 978-85-326-4569-2 Editado conforme o novo acordo ortográfico. Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

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Para Sirlei, com amor e gratidão.

Sumário

Introdução, 9 Parte I. Humanidade, barbárie, civilização, 19 1 Notas sobre o conceito de natureza human a, 21

2 Violência e direito - Para uma genealogia da justiça, 60 3 Autossupressão como catástrofe da consciência moral, 118 Parte II. Sobre ressentin1ento, vingança e niilismo, 175

1 Saúde, doença e ressentimento, 177 2 Metafísica, platonismo e niilismo, 208 3 Niilismo e superação da metafísica, 222 Parte III. D evir-sujeito - Como tornar-se o que se é, 257

1 Ação e discurso - Considerações sobre subjetividade com um olhar sobre a política, 259 2 Teses sobre a ordenação ética do mundo e sua transvaloração, 278 3 Necessidade, liberdade e repetição - Eterno retorno e Samsara/ Nirvana, 297

Conclusão, 327 Referências, 337

Introdução

Numa conferência pronunciada em 8 de maio de 1953 no Clube de Bremen, Heidegger formulou a seguinte pergunta: Quem é

o Zaratustra de Nietzsche?1 E sua resposta foi: "Ele é o porta-voz (Fürsprecher) de Dioniso. Isso quer dizer: Zaratustra é o mestre que, em sua doutrina do Além-do-Homem (Übermensch) e para essa doutrina, ensina o eterno retorno do mesmo" 2• Se, com essa defini ção, Heidegger tem alguma razão, então o p ersonagem conceitua} Zaratustra e seu ensinamento do eterno retorno do m esmo estão essencialmente referidos, no pensamento de Nietzsche, à "doutrin á' do Além-do-Homem - de modo que nessa figura estaria encerrado o sentido profundo da mensagem de Zaratustra, que, com vistas a esse ensinamento, apregoa o eterno retorno do mesmo. O tom profético de Assim falou Zaratustra em relação ao Além-do-Homem, evocando deliberadamente uma conotação religiosa, provocou, desde sua primeira publicação, uma reação aversiva na delicada suscetibilidade de certos leitores, particularmente l O texto dessa conferência foi publicado com o título Wer ist Nietzsches Zarathustra? ln: Vortriige und Aufsiitze. 5. ed. Pfullingen: Günther Neske Verlag, 1985, p. 97-122. 2 HEIDEGGER, M. Wer ist Nietzsches Zarathustra? ln: Vortriige 1111d A11fsiitze. 5. ed. Pfullíngcn: Günthcr Neske Verlag, 1985, p. 119. Transpor em português Über111e11scl1 por Além-do-Homem resulta de uma escolha léxica feita por Rubens Rodrigues Torres Filho em sua tradução da coletânea de textos de Nietzsche selecionados por Gerard Lebrun, intitulada Obra incompleta, publicada na Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974. O termo substitui as traduções até então existentes, que vertiam o original alemão por Super-Homem. A versão de Rubens Torres Filho parece-me muito melhor, pelas razões que serão explicitadas ao longo deste texto.

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daqueles cuja sensibilidade estava desfavoravelmente predisposta para questões envolvendo o sagrado e o religioso. De modo similar, 0

título Obermensch (Superman, Super-Home1n, Surhomme, Supe-

ruomo) repercutíu nefastamente n a discussão ideológica do século passado a respeito de sub e sobre humanidade ( Untermenschentum e Obermenschentum), de infan1e me1nória no campo da filosofia política. De todo modo, tanto o eterno retorno do mesmo como o Além-do-Hon1em não se livraram, mesmo para os leitores de hoje, de um certo travo incômodo, desagradável, alguma coisa como uma

quaestio pudenda. D e minha parte, pretendo desenvolver aqui uma interpretação do "eterno retorno do mesmo" vinculando-o estreitamente ao Além-do-Homem - un1a interpretação que pretende fazer justiça à importância que tais filosofemas sempre conservaram aos olhos de seu pensador. Se essa interpretação demonstrar-se consistente, então estamos autorizados a afastar decididamente o

Übermensch de Nietzsche de sua apropriação indébita (a meu ver) pela ideologia nazi-fascista do Übennenschentum, que o interpreta como representante de uma raça pura superior; simetricamente, o pensamento do eterno retorno do 1nesmo refugiria ao campo hipotético das repetições cíclicas e cosmológicas, bem como das teorias físicas a respeito de leis de conservação de energia no universo, para conquistar um campo de significação ético-política sui generis, cuja relevância é inequívoca, ainda em nossos dias, no sentido em que o presente trabalho argu1nentará. Proponho situar o Além-do-Ho1nem e o eterno retorno do mesmo no horizonte constituído pela psicologia do ressentimento, tal como a desenvolve a filosofia 111adura de Nietzsche]() vín-



culo entre o "pensamento mais abissal" e o Além -do-Homem é o

transítus e a ponte que leva a uma configuração do ser humano 1

finalmente libertado do ressentunenlo venenoso; un1 homen1 des-

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pojado do espírito de vingança, gestado este na crônica impotência e sempiterna enfermidade do tipo-hometn que vicejou em todos os humanismos de nossa tradição.\§ além visado no conceito de

Obermensch acena para a superação do niilismo, que se nutre na n1esma impotência da vontade humana, a qual toma vingança contra aquilo que não pode vencer, e que torna patente sua debilidade: a direção exclusivamente unívoca da seta do temp~ Em seu extrato básico e elementar, a debilidade dos fracos a impotência da vontade - é de natureza ontológica, e nada tem a ver com força física, nem com dominação lastreada em riqueza econômica, situação de classe social ou poder político. Trata-se, essencialmente, de uma enfermidade ou indisposição da vontade, uma debilidade que se expressa como aversão voltada contra um obstáculo intransponível, que ultrapassa suas forças e poderes. Esse elemento aversivo não é mais do que o tempo e a experiência do passar no tempo. O escoar, a impermanência do fluxo, o perene diluir-se de todo presente num "foi': esse é o granito contra o qual se partem todas as garras com as quais a vontade luta por aferrar-se ao rochedo do estável, a qualquer porto seguro, ao ponto fixo anelado por Arquimedes, e que Descartes reedita ao instaurar filosoficamente a modernidade cultural.~ finitude é o inimigo odiado pela v,.o ntade impotente, que por isso se vinga do passar no tempo, fic9_sm_anQo além~n1~ndos, fortale~a~_metafísi_cas imaginárias, consolos na eternidade a que só a ascese pode conduzir, protegidas e asseguradas contra a corrente deletéria do vir-a-ser, contra a instabilidade dos _desej9s, dos sentidos, das constringentes pressões do corpo, das mazelas do mundi} Visto a partir dessa ótica, o_homem não é tanto o animal racional quanto o animal doente. Sua patologia consiste num paradoxal querer o Nada, que assume uma positividade ilusória nas figuras do Ideal, e1n especial nos ideais da ascese: ~enúncia a si1 abandono

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do-mundo, obe.diência jncondicionaLa.JJ..m-ª..regra, mortificação do Ego, jejum voluntário, martírio, castidade autoimpost{Nada é 0 nome dessa figura diáfana do Ideal, valores eternos e absolutos, porém vácuos, sejam eles chamados Deus, Bem, Verdade, Justiça, Lei Moral, Dever, Progresso, Paz Perpétua, Fim da História, Sociedade

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Sem Classes. _,-;A ascese é o caminho que a eles conduz, pela denegação da fi. nitude, e da morte, por meio da interpretação do sofrimento como culpa a ser expiada. Por sua vez, o niilismo é a lógica que preside essa forma de valoração; a vontade de Nada (Wille zum Nichts) aflora como tal à superfície da consciência no momento em que tais valores são confrontados com suas últimas e catastróficas consequên cias; estas manifestam a verdade do tipo humano que o processo civilizatório ocidental plasmou e consolidou historicamente.

É por isso que na teoria do niilismo, entendida como a extração das mais extremas consequências por parte dos valores cardinais de nossa cultura, encontramos a grade de leitura para os ensinamentos do Além-do-Homem e do Eterno Retorno do Mesmo. Mais precisamente, ao fio condutor do niilismo (como lógica de uma catástrofe epocal), tento alternar e integrar diferentes perspectivas filosóficas, que ganham corpo nos experimentos nietzscheanos com o pensamento do eterno retorno, do Além-do-Homem, da vontade de nada ( Wille zum Nichts) e da vontade de poder ( Wille

zur Macht). O niilismo e os ideais ascéticos dão voz e forma a uma vontade debilitada e impotente - uma vontade vingativa, ressentida e rancorosa - e constituem, assim, a medula espinhal da humanidade que historicamente conhecemos, a dynamis e te/os do processo ocidental de civilização. Esta conjunção articulada em torno do negativo é o alvo anelado pelo pauperismo vital, pela indigência e penúria daqueles que não têm nenhuma outra escolha além da mera e nua sobrevivência.

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-abolir também o grosseiro e imperioso "reino das necessidades", as urgências da conservação da existência e a consequente necessidade do trabalho. Tambén1 a esse respeito, para Nietzsche, o homem moderno, ao contrário do antigo heleno, é dissimulado e fragmentário, condição de onde resulta a contradição entre suas aspirações e valores, por um lado, e suas necessidades, por outro. Nele convivem tanto a necessidade da luta pela sobrevivência como o nobre anseio de elevação artística. De modo que ocorre com frequência que, no mesmo homem, "mostra-se a avidez da luta pela sobrevivência e a avidez da necessidade de arte, de cuja fusão não natural surgiu a carência de desculpar e santificar aquela primeira avidez perante a necessidade de arte. Por causa disso acredita-se na 'dignidade do homem' e na 'dignidade do trabalho"' 47• Estamos, portanto, em face de uma sociedade e cultura em que se fundem a avidez da necessidade artística de justificação da existência com a miséria inexorável da luta pela subsistência. Colhida nessa contradição, essa cultura tem que plasmar sua autoconsciência na denegação do caráter infamante de uma atividade simplesmente ligada à esfera da nua existência (que, em si mesma, não tem nenhum valor), ressignificando humanitariamente essa condição, travestindo-a em valores superiores como "dignidade do homem" e "dignidade do trabalho". Trata-se, portanto, de uma escravidão disfarçada sob o manto ideológico de fantasmas conceituais como igualdade de direitos e direitos fundamentais do homem: o que os antigos admitiam com espantosa abertura, os modernos denegam com pusilânime hipocrisia. Daí a contradição convulsiva, a corroer as entranhas da modernidade política, como o abutre a dilacerar o fígado de Prometeu: também a moderna sociedade ocidental não pode prescindir 47 lbid., p. 765.

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da escravidão, un1a vez que esta integra a essência de toda cultura. Mas ela tem que encobri-la con1 o 1nanto da dignidade do trabalho e, portanto, queda paralisada, torna-se iinpotente perante a sublevação das massas de escravizados, que vem à luz nos movimentos sociais reivindicatórios, de caráter revolucionário, com sua exigência de justiça e igualdade de direitos - tal como se materializa, por exemplo, no socialismo e comunismo modernos. O que estaria em jogo aqui é a conversão da crença na possibilidade de uma cultura universal na ameaçadora exigência de semelhante felicidade terrestre para todos, o que exige a conjuração de um deus ex machina euripidiano, de acordo com a tese de O nascimento da tragédia. Trata-se, como se pode perceber, de uma variante da mesma tese de crítica cultural desenvolvida nesse livro: uma cultura científica sucumbe quando começa a se tornar ilógica; do mesmo modo, uma cultura dependente da escravidão que ela própria denega perece pela lógica de seus próprios valores, quando a crença em seus valores se converte em exigência de sua realização, quando tem que transfigurar a escravidão com a parole da dignidade do trabalho. Nesse processo, ela é tomada de pânico quando a promessa de justiça e igualdade universal de direitos começa a ser cobrada pelas massas dos novos escravos rebelados. Como circunstância agravante nesse quadro de contradições em que se enredou a modernidade política, Nietzsche diagnostica também, em O Estado grego, como fenômeno preocupante em seu t~~po, uma singular atrofia da esfera política, produzida por ind1v1duos que se situam fora dos instintos populares e do Estado e que, por isso mesmo, não sendo dominados pelos instintos ligados ao Estado e à política, têm, an tes pe1o contrano, , . uma visão e uma prática instrumental do Estad o, cons1'd erando-o um 111eio para a consecução de seus fins part'1culares. Trata-se de un1a deterioração daquele impulso para O Est ad o, que se desnatura em "tendência ao

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dinheiro" pela atuação de ccinternacionais e apátridas eremitas do dinheiro que, por sua carência do instinto do estado, aprenderam a desvirtuar a política em meio para a bolsa e O Estado e a sociedade em aparelhos de enriquecimentd'48. São eles que desfiguram a obra de arte do gênio político, colocando-a a serviço do egoísmo de uma aristocracia das finanças, materializada pelos interesses mercantis das bolsas internacionais. Este desvirtuamento e exploração instrumental do Estado tem como condição o feneciinento da raiz pulsional de onde brotaram tanto o Estado quanto o gênio político e militar: a guerra e a emulação agonística, de onde surge a excelência individual, com a inevitável clivagem e as diferenciações e hierarquias, com uma extensa base anônima sobre a qual se elevam aqueles que se singularizam e imortalizam pelos grandes feitos. São sintomas daquele egoísmo dos partidários das finanças internacionais, segundo Nietzsche, o enfraquecimento do instinto monárquico, a extensão inaudita da cosmovisão liberal-otimista oriunda da Aufkléirung e da Revolução Francesa, com seu corolário do sufrágio universal. Nietzsche interpreta tais sintomas como «perigoso Charakteristikum da atualidade política, a utilização do pensamento revolucionário a serviço de uma egoísta, apátrida aristocracia financeira'' 49 • Daí decorre a generalização dos meios intuídos pelos gestores dessa aristocracia do dinheiro, sem ligação com pátria e Estado, para conjurar a guerra, promovendo uma conjuntura internacional lastreada na formação de grandes corpos estatais em equilíbrio de forças, garantindo-se a segurança recíproca, graças ao equilíbrio de potência; assim, a obra de arte do Estado, ao qual se devotavam os indivíduos, com o sacrifício de suas vidas, transcendendo a mesquinhez de seus egoísmos privados numa finalidade superior, aca48 lbi e sempre O foi A fi · gura esclarecida e moderna da vontade de verdade é apenas O sucedâ. neo científico> laicizado e moralmente sacramentado do a . ' nse10 religioso pela pátria originária do incondicionado, na qual Platão localizara a habitação originária da alma, ou do que nela há de aparentado com o divino. 1

Por essa razão> o sacrílego> o ímpio e assassino escrutínio crítico-genealógico da vontade de verdade (essa autovivissecação que a moderna consciência científica não pode elidir, para ser fiel à sua própria origem) é também o último resíduo de sua devoção ancestral. "Mas já terão compreendido onde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica, que também nós> que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicas, ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu> aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade> de que a verdade é divina»' 83 • O resultado da crítica> pois> não consi'ste no acesso a uma veracidade mais verdadeira> ou veraz, do que a da racionalidade tradicional, que transporia o velho ideal num nível ou patamar ainda superior. O resultado é a autossupressão da vontade de verdade, ª • Sio pau183 NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Aforismo 344. Trad. Paulo César 19italizado com CamScanner

. , lo de outro modo, importa propriamente ao p . , Para d1zesico. terpretar O inteiro âtnbito dos pensamentos, sentim logo nato 111 en. crenças ações e estados de uma pessoa - mas tamb , tos deseJOS, , ern ' . de un1 povO, de mna cultura - êomo sintoma e transfiguraça·o de

. 1sose afetos gerados a partir de energias fisiopsicológicas que, 1mpu por sua vez, estão ~ujeitas a um jogo permanente de elevação ou desfalecimento de sua potência, de tonificação e enfraquecimento. Para tal psicólogo, nada do que diz respeito ao domínio dos processos mentais, tanto aqueles de natureza cognitiva quanto afetiva, ou volitiva, está imune à influência da alternância entre estados de saúde e doença, responsáveis pelo incremento ou debilitação das energias somáticas e psíquicas; nem sequer a atmosfera espiritual mais rarefeita dos pensamentos lógicos e matemáticos. Sendo assim, também os pensamentos que constituem uma filosofia partilham dessa condição de sintoma, e traduzirão justamente a filosofia dos estados de uma pessoa. Aliás, se esse intérprete de sintomas é, além disso, também um filósofo e decifrador de enigmas - justamente como é o caso do Sr. Nietzsche -, então para ele "poucas questões são tão atraentes como a da relação entre filosofia e saúde"; pois a ele importará saber se um~ dada filosofia e, com ela, a pessoa de que ela constitui a memória involuntária, são sintomas de saúde, ou de doença; e, mais importante que isso, "no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a sua curiosidade científica para a doença"3• Interpretada como sintoma, uma filosofia poderá significar, então, "apoio, tranq~ilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si"4, ou seja, narcótico de que necessita a pessoa enferma e deficiente. Inversamente, no caso da pessoa saudável e inteira, a filosofia será a transfiguração em conceitos do sentimento 3 NIETZSCHE, F. A gaia ciência - Prólogo. Op. cit., p. 10. 4 lbid.

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de gratidão por essa plenitude alcançada, um luxo, um adorno e uma gratificação a mais. Caso tome por objeto de seu minucioso escrutínio a história da filosofia, o psicólogo não poderá evitar a suspeita e a curiosidade de saber se nela predominaram os pensamentos que expressam a indigência ou a abundância, a patologia ou a saúde transbordante. E, na hipótese de o resultado do exame tornar plausível a suspeita de que na história da filosofia predominam os pensamentos ·e os pensadores enfermos, então aquela curiosidade científica pode mesmo se aprofundar e assumir a forma de uma questão mais incisiva: ((que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressão da doençá'5• O que ocorre com o pensamento quando adoece o pensador? "Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é possível"6• Condições gerais do experimento

Aquilo que nos interessa no presente trabalho é tomar a sério, na devida medida, justamente essa questão. Partindo dela, perguntaremos, por nossa vez, por que precisamente essa é, para o psicólogo Nietzsche, a questão que interessa? Por que razão é aqui, como ele o afirma, que o experimento se torna possível? Além disso, e mais propriamente, de que experimento se trata? A título provisório, adiantamos as seguintes respostas: essa é a questão que interessa porque é por meio da solução que dermos a ela que se poderá explicitar o problema mais intrincado até então posto pela filosofia, o problema ancestral da própria filosofia: a relação do pensamento (mente, intelecto, sentimento, alma) com o corpo, na medida em que a doença e a pressão que ela exerce afetam fundamentalmente o corpo, suas energias e seus regimes.

S lbid., p. 11 . 6 lbid.

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. A resposta, mesmo provisória, envolve necessariamente tam. •to e O obieto do experimento; quanto a eles, digamos: bém o su1e1 , ber O que acontece ao pensamento sob a press~ d trata-se de Sa ao a o esta constitui como que a matéria do experi·..n-.,endoença. Log , tO. Este, enquanto tentativa. de responder àquela questão cruc·Ia1, torna~se possível num âmbito determinado: na própria pessoa do aludido Sr. Nietzsche, na medida em que nela vemos reunidas as três condições indispensáveis para tanto: Em primeiro lugar, trata-se de um filósofo, portanto de um homem do pensamento; além disso, também de um psicólogo, cuja curiosidade científica é mobilizada pela doença até sua máxima intensificação, no sentido de adquirir o esclarecimento, por experiência própria, sobre o que acontece ao pensamento sob a pressão da doença; e, por fim, temos, na pessoa dele, um paciente de epocais enfermidades. O experimento é, pois, o caminho sui generis que conduz a esse tipo de saber: não por introspecção, por autoexame de uma consciência clarividente, mas por um esforço de reflexão de que não estão excluídos vários ~ovimentos e processos inconscientes. Vemos, pois, que as condições impostas pelo sujeito e pelo objeto de tal experimento exigem que o contraste, acima mencionado, entre a constituição saudável e a doentia da pessoa, seja transformado numa oposição dinâmica entre distintas perspectivas sobre a doença existentes no interior de uma mesma pessoa, "de uma mesma alma doente': pois que somente dessa maneira se poderia decifrar o sentido da doença para o conhecimento. Tenhamos claro, desde logo, que o "Eu" dessa pessoa não se identifica com a unidade simples e pretensamente autárquica da tradicional consciência de si; esse "Eu" só pode ser pensado como unidade de organização, cuja lábil e sempre ameaçada estabilidade resulta da integração de seus estados, dos con1promissos, combates, 180

Digit oliz;:ido com ComSconner

·anças e oposições entre suas forças fisiopsicológicas . all , unicamente relação às quais pode-se falar em estados mais ou e1n menos saudáveis ou patológicos do "Eu".

o experilnento que descrevemos tem também seu caractens, tico modus operandi. O procedimento em questão parte de uma suspeita e tem pronunciada semelhança com aquele de quem se coloca à espreita - à "caça" - de alguém que, por·sua vez, está fazendo alguma coisa escusa; semelhança com a atitude de quem se obstina em apanhar alguém de surpresa, "no ato': Para ilustrar esse modo de proceder, Nietzsche recorre a um sugestivo paralelo entre os personagens do viajante e do filósofo com dotes de psicólogo nato. Traço comum aos dois personagens é que ambos simbolizam a errância, a transitividade, o estar sempre a caminho (Wanderung), a curiosidade, o périplo por novas e desconhecidas paragens. O viajante - aquele que vaga pelos mais remotos paradeiros. O filo-psicólogo: aquele que transita pelos recônditos labirínticos da alma humana. Nessa alegoria, Nietzsche chama a atenção para a frequente experiência do viajante que, fatigado das andanças, porém obrigando-se a despertar em hora determinada, entrega-se confiantemente ao sono, pois está seguro de que algo o despertará no momento necessário. Analogamente, "nós filósofos, quando adoecemos, nos sujeitamos à doença de corpo e alma por algum tempo - como que fechamos os olhos para nós mesmos. E tal como ele sabe que alguma coisa não dorme, que algo conta as horas e o despertará, também 7 nós sabemos que o momento decisivo nos encontrara' despertos" . O paralelo entre o sono e a enfermidade permite desdobrar a analogia entre o viajante e o filósofo sob um ponto de vista que nos descortina um novo problema fundamental. O sono embota no ,, 1 viajante a vigilância da consciência - de seu "pequeno eu ; e e, po7 lbid.

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em que algo maior do que esse "eu "da consciêncr·a . , rém, con fia . ira { lo momento certo. Te1nos aqui, portanto, uma aleg . desper ta- 110 . ona ., do ab.an do00 ou defecção da consc1encia. Entregar-se a incons c1en.. . ei·der os sentidos, são estados associados ao desfalecimentO, Cl,l, p a alhear-se de si, mergulhar no torpor, ou perder-se no delírio do A



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sonho, enfim desligar-se do real, adoecer. Porém, o viajante sabe também que alguma coisa nele não dorme; que essa alguma coisa é suficientemente poderosa para, resgatando as horas, despertá-lo '

mesmo sem consciência, no momento preciso.

Se, para O viajante, o sono pode ser aproximado de processos doentios, para o filósofo, inversamente, é doença que constitui uma espécie de sono, de sedativo, ou delírio entorpecente, que leva à perda temporária (quiçá permanente) de si, à alienação; e, nesse sentido, reencontram-se novamente as experiências dos dois andarilhos: adormecer significa perder força, lucidez, alienar-se. Porém, para o filósofo, cuja missão consiste precisamente em "permanecer desperto"8, toda a forma de desgarramento é, em sentido enfático, doença. Nos termos do experimento que investigamos, isso implica que todas as vezes que o filósofo "adormece" e sonha, como ocorre quando se "sujeita de corpo e alma a algum tipo de doença': com isso ele se sujeita a "ser pego em flagrante': pois, no caso do filósofo, o torpor do sono, ou a ilusão onírica, denunciam uma condição doentia do espírito. Por isso, escreve Nietzsche, assim como o viajante, "também nós sabemos que o momento decisivo nos encontrará despertos, que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito em flagrante"9•

8 Precisamente essa 1·,, 1•1 , 1 . 1 ,·•·t:, do •. . . • . · ' ' • gcrn eo estar