Memórias de um educador / Paschoal Lemme (Estudos de educação e perfis de educadores) [3]

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Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Paschoal Lemme Memórias de um Educador Volume 1 Infância, Adolescência, Mocidade Volume 2 Formação Profissional e Opção Política Volume 3 Estudos de Educação e Perfis de Educadores Volume 4 Estudos de Educação, Participação em Conferências e Congressos. Documentos Volume 5 Estudos de Educação e Destaques da Correspondência

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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

PASCHOAL LEMME MEMÓRIAS DE UM EDUCADOR Estudos de educação e perfis de educadores

Volume 3

2ª edição

Apresentação de Jader de Medeiros Britto e Zaia Brandão Nota de Nelson Werneck Sodré

Brasília-DF 2004 Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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COORDENADORA-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAÇÕES Patrícia Barcelos COORDENADORA DE PRODUÇÃO EDITORIAL Rosa dos Anjos Oliveira COORDENADOR DE PROGRAMAÇÃO VISUAL F. Secchin EDITOR EXECUTIVO Jair Santana Moraes REVISÃO Maria A. Medeiros Lima Isabel Rebelo Roque NORMALIZAÇÃO Regina Helena Azevedo de Mello PROJETO GRÁFICO/CAPA/DIAGRAMAÇÃO/ARTE-FINAL Marcos Hartwich FOTOS DA CAPA E DO FRONTISPÍCIO Paschoal Lemme, 1988 e 1956, respectivamente. TIRAGEM 1.000 exemplares EDITORIA Inep/MEC - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 1, 4º Andar, Sala 418 CEP 70047-900 - Brasília-DF - Brasil Fones: (61) 2104-8438, (61) 2104-8042 Fax: (61) 2104-9812 [email protected] DISTRIBUIÇÃO Inep - Coordenação de Divulgação Institucional Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 2, 4º Andar, Sala 414 CEP 70047-900 - Brasília-DF - Brasil Fone: (61) 2104-9509 [email protected] http://www.inep.gov.br/pesquisa/publicacoes Lemme, Paschoal, 1904-1997 Memórias de um educador / Paschoal Lemme. – 2. ed. – Brasília: Inep, 2004. 5 v. : il. Conteúdo: v. 1. Infância, adolescência, mocidade – v. 2. Vida de família, formação profissional, opção política – v. 3. Estudos de educação e perfis de educadores – v. 4. Estudos de educação, participação em conferências e congressos, documentos – v. 5. Estudos de educação e destaques da correspondência. 1. Lemme, Paschoal, 1904-1997 - Biografia. 2. Escola pública. 3. Educação de adultos. 4. Lemme, Paschoal, 1904-1997 - Correspondência. 5. Azevedo, Fernando - Correspondência. I Título. CDU 92:37.011.31(81)

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SUMÁRIO Apresentação da 2ª Edição ................................................... 9 Apresentação .............................................................................. 13 Duas palavras ............................................................................ 17 PARTE I A educação no Brasil atual (À margem da X Conferência Nacional de Educação – 1950) Introdução ................................................................................... 23 Capítulo I Um velho sofisma ..................................................................... 27 Capítulo II "Progredir ou desaparecer"...................................................... 31 Capítulo III A situação do ensino ............................................................... 47 Capítulo IV As condições sociais e sanitárias ......................................... 53 Concluindo .................................................................................. 57 PARTE II Apresentação .............................................................................. 63 Capítulo I A problemática da educação brasileira ............................ 67 Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Capítulo II Analfabetismo e subdesenvolvimento ............................... 71 Capítulo III O ensino e a preparação para o trabalho ....................... 77 Capítulo IV O problema do ensino superior ........................................... 81 Capítulo V Que fazer?..................................................................................... 85 Capítulo VI A educação no plano trienal ............................................... 91 Capítulo VII A lição da lei................................................................................ 95 Capítulo VIII "Cadernos do povo brasileiro"............................................... 99 Capítulo IX Carta a estudantes do Paraná ............................................. 103 Capítulo X CGT – UNE – ISEB………………………………………………....... 107 Capítulo XI A escola regional de Meriti no 40° aniversário de sua fundação (Uma experiência brasileira de educação) ....................... 111 Capítulo XII A extinção do analfabetismo na União Soviética ....... 117 Capítulo XIII O valor do estudo da história ............................................. 121 Capítulo XIV A educação brasileira num momento crítico. Em defesa da escola pública ................................................ 135 PARTE III Explicação .................................................................................. 147 Capítulo I Discussão dos problemas de educação e ensino .......... 151 Capítulo II Sobre problemas de educação e ensino .......................... 157

Capítulo III Medida que não se justifica ................................................. 165 Capítulo IV Anísio Teixeira ........................................................................... 167 Capítulo V Fernando de Azevedo ............................................................. 169 Capítulo VI Heloísa Alberto Torres ............................................................. 171 Capítulo VII Humberto Mauro e o Instituto Nacional de Cinema Educativo......................................................... 175 Capítulo VIII O professor Sousa Silveira .................................................... 179 Capítulo IX Sobre a liberdade ..................................................................... 183 . Capítulo X Sobre a localização da Universidade Federal do Rio de Janeiro ..................................................................... 185 Capítulo XI Uma rua chamada Tieta ......................................................... 187 Capítulo XII A Associação Brasileira de Educação – 53 anos .................................................................................... 189 Capítulo XIII O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova .......................................................................... 193 Capítulo XIV Sobre o recenseamento escolar no Rio de Janeiro ..................................................................... 197 Capítulo XV Sobre comemorações ............................................................. 201 Capítulo XVI Educação e distribuição da renda ...................................... 203 Capítulo XVII Mensagem dirigida aos educadores reunidos na II Conferência Brasileira de Educação realizada em Belo Horizonte, de 10 a 13 de junho de 1982...... 207

ANEXOS I – Registro de Frota-Pessoa sobre Educação supletiva – Educação de adultos ................................. 219 II – Palavras de Fernando de Azevedo sobre Estudos de Educação........................................................ 220 III – Palavras de Roquete-Pinto sobre Estudos de Educação ............................................................................... 221 IV – Registro bibliográfico de Ensegnants du Monde .................................................................................... 222 V – Carta do professor Ivan Grivkov ................................ 223 VI – Registro bibliográfico .................................................... 224 VII – Registro bibliográfico ................................................... 225

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APRESENTAÇÃO DA 2ª EDIÇÃO PASCHOAL LEMME: SERVIDOR DA EDUCAÇÃO PÚBLICA Celebra-se, neste ano de 2004, o centenário do educador Paschoal Lemme. Nascido na cidade do Rio de Janeiro em 12 de novembro de 1904, no bairro do Méier, viveu numa família de classe média, sendo seu pai, de origem italiana, dentista de profissão e sua mãe, de berço português, professora, inteiramente dedicada à educação dos filhos (Memórias, v. 1). A formação de Paschoal, iniciada na família – foi alfabetizado por sua mãe – , desenvolveu-se na escola pública. Do primário ao superior, freqüentou sempre estabelecimentos da rede escolar do antigo Distrito Federal, passando pela Escola Visconde do Cairu, pela Escola Normal do Rio de Janeiro e pela Escola Politécnica da rede federal, na qual estudou engenharia até a 3ª série, pois já havia se definido pelo total engajamento no universo da educação. Disse a seu pai: "Se não for professor, não serei mais nada!" (Memórias, v. 1). Ativo colaborador das reformas do ensino no município do Rio de Janeiro, durante as gestões de Fernando de Azevedo (1928-1930) e Anísio Teixeira (1931-1935), Paschoal já havia ingressado na Associação Brasileira de Educação (ABE), familiarizando-se com os principais educadores de então (Memórias, v. 2). Membro atuante dessa Associação, foi o mais jovem signatário do emblemático Manifesto de 1932, dos Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Pioneiros da Educação Nova, e um de seus articuladores (Memórias, v. 4). Ainda que solidário com as idéias esposadas por esse Manifesto, nascido no âmbito da ABE, terá sido no Manifesto dos Inspetores de Ensino do Estado do Rio de Janeiro ao Magistério e à Sociedade Fluminense, de 1934 (Memórias, v. 4), que Paschoal, seu principal redator, ao lado de Valério Konder, esboçou uma definição mais pessoal em termos de política educacional, ao adotar a premissa de que a educação, para se tornar efetivamente democrática, pressupunha a transformação da própria sociedade, em termos de um real compromisso com a ascensão socioeconômica das classes menos favorecidas. Sua percepção objetiva da realidade vivida pelo operariado do Rio de Janeiro levou-o, durante a administração do Anísio Teixeira na Secretaria de Educação do Distrito Federal, a organizar os cursos noturnos supletivos da União Trabalhista, considerada de orientação marxista pela polícia fascista do capitão Felinto Müller, nos albores do Estado Novo. Ao lado de militantes socialistas como Graciliano Ramos e Nise da Silveira, pagou o tributo da fidelidade a suas aspirações de justiça social, recebendo o batismo do cárcere durante um ano e quatro meses (Memórias, v. 2). Dessa experiência com o ensino supletivo, originou-se sua tese sobre "Educação de Adultos", apresentada ao concurso para técnico de educação do Ministério da Educação e Saúde Pública (Memórias, v. 5). Estando entre os primeiros classificados, foi convocado para integrar a equipe de Lourenço Filho na organização do Inep, então Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, de início como chefe da Seção de Documentação e Intercâmbio e, mais tarde, da Seção de Inquéritos e Pesquisas. Ao longo do Estado Novo e, após sua queda, no período seguinte, denominado de Democracia Liberal, sob a égide da Constituição de 1946, Paschoal Lemme dedicou-se integralmente ao serviço público, sempre atuando no campo educativocultural, ora no Museu Nacional, ora no Instituto Nacional de Cinema Educativo. Justamente nessa fase, em que simultaneamente exercia o magistério na Escola Normal do Rio de Janeiro, foi divulgando suas idéias, por meio de livros como Educação democrática e progressista, síntese de seu pensamento, mediante artigos, ensaios, cartas, relatórios técnicos ou comunicações a congressos nacionais e internacionais de que participou. Em todos esses trabalhos, ressalta-se a absoluta coerência e fidelidade a seu ideário, consubstanciado no leitmotiv de sua reflexão: "Educação democrática somente numa sociedade democrática" (Memórias, v. 5). Seu apurado gosto pela epistolografia fica evidente em sua farta correspondência constante de seu arquivo, por ele doado ao Programa de Estudos e Documentação, Educação e Sociedade (Proedes), da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nela se destaca o intercâmbio com Fernando de Azevedo, dos anos de 1930 a 1960 (Memórias, v. 5), além das cartas aos jornais em que assume sempre a defesa da educação pública em todos os seus aspectos. É nessa perspectiva que se tornou um dos principais articuladores do Manifesto de 1959, dirigido ao povo e ao governo, da lavra de Fernando de Azevedo. Debatia-se, então, no Congresso, o Projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, marcado pela antinomia das correntes empenhadas na primazia ideológica a ser concedida ao ensino público e ao ensino privado.

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Ao reeditar os cinco volumes das Memórias, por ele estruturados, o Inep se associa às justas homenagens que lhe estão sendo prestadas na celebração de seu centenário, registrando o reconhecimento desse Instituto à relevante contribuição do educador Paschoal Lemme, um de seus primeiros e qualificados servidores. Para esta segunda edição, foram necessárias algumas alterações no título dos volumes, com base em consulta a sua família, prevalecendo o título geral Memórias de um educador para todo o conjunto, com pequenos ajustes nos subtítulos de cada volume. Acrescentou-se uma biobibliografia ao 5º, compreendendo a cronologia do educador, apoiada em seu curriculum vitae, por ele organizado, e sua bibliografia, presente na primeira edição. As idéias, reflexões e testemunhos de Paschoal Lemme reunidos nas suas Memórias, certamente, poderão inspirar as novas gerações a melhor alicerçar sua percepção dos caminhos para a educação brasileira.

Jader de Medeiros Britto Rio de Janeiro, junho de 2004

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APRESENTAÇÃO PASCHOAL LEMME: UM "PIONEIRO" ENTRE OS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA Esta segunda série dos Estudos de Educação, de Paschoal Lemme, poderá ser o começo do resgate, para a História da Educação Brasileira, de um autor e ator social que, por muito tempo, esteve nos bastidores dessa mesma história. Trazer à cena Paschoal Lemme é uma dívida dos educadores de hoje, comprometidos com a (re) construção da Escola Pública. Os textos – que o Inep e a Cortez Editora oferecem ao público interessado em educação e história – são a expressão da militância, na área, deste jovem professor de 84 anos. Ainda esta semana (a última, deste agosto de 1988), em mais um encontro com Paschoal, ele me passou dois recortes de jornais, dos dias anteriores. Um tratava da merenda escolar e o outro, da miséria na América Latina. Textos grifados pelo sempre atento leitor do cotidiano de nossa sociedade, que ainda se preocupa em grifar os seus problemas. O "alvoroço" em torno da merenda escolar... Paschoal, muito antes de todos nós, já assinalara que ele expressa um outro problema, muito maior, e bem mais básico: a miséria de um povo. Muito antes de todos nós – como estes textos provam – falava à sociedade, sem sofisticações, sem pretensões pessoais, mas com a marca de sua militância junto ao grande público, usuário da escola. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Seus textos são a expressão do esforço que empreendeu para divulgar um olhar mais amplo sobre as questões da educação. Paschoal não pôde desenvolver uma obra sistemática. Não por lhe faltarem as ferramentas para tanto. Mas, porque sempre teve que lutar pela sobrevivência, enquanto professor e servidor público: e porque sempre foi fiel às suas convicções, mesmo sabendo o custo que poderiam trazer, para a sua carreira. Ele não "fala", como muitos de nós, dos limites decorrentes das condições concretas de vida: ele os viveu... Profundamente comprometido com a luta por uma escola pública melhor, ele começou a construí-la com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, nas duas reformas do ensino do Distrito Federal, no final da década de 20 e no início da de 30. Não teorizou, como muitos de nós. Experimentou, e com muito garra, transformar a escola. Tinha 23 anos quando começou a trabalhar, na administração pública, com Fernando. Apesar de ter ocupado, desde então, vários cargos de confiança, nunca se beneficiou da proximidade do poder. Pelo contrário. Basta percorrer suas Memórias 1 e 2, para conferir. Quando tiveram limitadas as suas possibilidades de acesso à vida acadêmica – que seria a rota natural desse intelectual de esquerda, desde os anos 30 – não se transmutou em "funcionário público". Manteve-se servidor público. Depois de ter vivido e sofrido o desmantelamento do trabalho pioneiro, de organização da educação pública, que havia desenvolvido com tantos educadores que, como ele, agremiavam-se na Associação Brasileira de Educação (ABE), percebeu, com muita clareza, que a educação refletia problemas bem mais estruturais, da organização social. Lutou, então, em novas trincheiras, por uma educação melhor. Este livro é parte do resultado de seu trabalho, nesta nova frente de luta, articulado ao esforço dos grupos de esquerda. Compreendeu e expressou, neste e em outros estudos,* os limites da educação para a transformação da sociedade, quando seus companheiros do "Manifesto dos Pioneiros" ainda pareciam crer no papel propulsor da educação na democratização do social. Seu "pioneirismo" é bem expresso no "mote" de muitos de seus textos: não há educação democrática, a não ser em uma sociedade verdadeiramente democrática. Paschoal desenvolveu realmente uma práxis: trabalho e reflexão norteiam o seu itinerário. Foi, neste movimento, afastando-se do pensamento pedagógico que o tornara um dos Pioneiros da Educação Nova. Permaneceu, entretanto, fiel – quer como amigo, quer como avaliador – aos companheiros da primeira fase. Soube divergir, sem negar o caráter progressista do trabalho dos reformadores de 20 e de 30, como procura deixar claro no balanço que faz, em suas Memórias. Os textos do presente volume devem ser lidos no contexto do difícil trabalho de convencimento dos limites da educação, contra a ideologia dominante à época; devem ser entendidos no enquadramento histórico do pensamento e militância das esquerdas entre nós, do "tratamento jornalístico" dos temas e do público que quer atingir.

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Lemme, Paschoal. Estudos de educação. Rio de Janeiro: Livraria Tupã, 1953.

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Há um texto, neste volume, que evidencia as dificuldades que enfrentava para se "fazer ouvir" por seus companheiros na área da educação. É o "A educação no Brasil atual (À margem da X Conferência Nacional da Educação – 1950)". Este texto só pode ser entendido no "contexto". O leitor apressado arrisca-se a não captar o significado histórico, aí presente, dos embates que travou no campo da educação. A costura de várias falas (extensas citações) exprime a estratégia de um educador que, à época, já carregava o "estigma", nos meios educacionais, de "homem de esquerda". Há mais de um ano venho estudando e aprendendo com o itinerário de Paschoal Lemme. Ele advertiu-me, logo nos primeiros contatos, sobre as dificuldades que enfrentaria nesta tentativa de rever a história da educação, de um ângulo que o focalizasse mais nitidamente... De fato, não tem sido fácil desvencilhar-me de certas categorias da análise acadêmica, mesquinhas demais, ou pretensiosas demais, para captar o significado da vida e obra deste Militante da Educação. É ele, o jovem professor de 84 anos, quem fala que reconhecer os limites da educação [...] não significa, porém, que se deva ficar esperando as transformações sociais para que, automaticamente, as condições da educação e ensino também se transformem... Lutar por melhores condições de educação e ensino é uma das formas de levar educadores, professores, estudantes e o povo em geral a compreenderem justamente que, para conquistarem vitórias significativas nesse setor, é preciso que a luta se torne tão ampla que redunde em transformações da sociedade como um todo...

Foi esse o caminho que tentei seguir, a partir do momento em que comecei a compreender "verdades fundamentais" (do texto manuscrito entregue à autora deste prefácio em 30/8/1988).

Zaia Brandão

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DUAS PALAVRAS Parece paradoxal, mas não é, o fato de ser a área da educação, forma sistemática de transmissão da cultura, aquela em que o esforço para deter o progresso, o avanço, o esclarecimento seja o mais obstinado, particularmente em países, como o Brasil, em que técnicas, meios, processos, instituições ligadas à educação, mesmo em sua forma mais comum, as do ensino, estão submetidos a uma repressão continuada. Seria demasiado mencionar fatos, personagens e episódios em que isso se concretizou. Basta lembrar como foi tenaz, aqui, a resistência à reforma do ensino desenvolvida por Fernando de Azevedo, no antigo Distrito Federal, entre os anos de 1927 e 1930; demolidora a ofensiva contra a reforma empreendida por Anísio Teixeira, em 1935; terrível a repressão contra os grandes mestres da ciência, em todos os campos, a partir de 1964 e acentuadamente a partir de 1968. O ódio da reação à cultura repontou em todas essas manifestações de resistência e de repressão violenta, culminando com o arrasamento a que estamos ainda assistindo de todo o aparelho universitário e de órgãos de pesquisa, com a desoladora diáspora das maiores figuras do magistério e da ciência em nosso país. Isto não é mencionado aqui sem propósito. Pois o propósito consiste em ressaltar, precisamente, que só essa resistência bovina explica a marginalização de personalidades como a de Paschoal Lemme, dono de experiência insubstituível no processo Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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de desenvolvimento da educação no Brasil, participante de primeiro plano em todos os esforços realizados em favor daquele desenvolvimento, vítima, por isso mesmo, do fenômeno a que aludimos e que procurou destruir todos aqueles que pretenderam preservar e desenvolver a cultura brasileira no nível particular da educação. Esse homem, que deveria estar entre aqueles a que se teria de recorrer, a qualquer momento em que houvesse necessidade de discutir os problemas da educação, foi atirado ao ostracismo, perseguido, esquecido. Tudo como reflexo daquela obstinada resistência à mudança, característica das sociedades em que predominam ainda os traços mais retrógrados uma sociedade que destrói os seus valores mais altos. Acompanho a atividade de Paschoal Lemme desde os tempos, já muito distantes – distantes de meio século, na verdade – , em que Fernando de Azevedo, trazido de São Paulo por Antônio Prado Júnior, um dos grandes prefeitos do Rio de Janeiro, pregava e depois punha em execução a grande reforma do ensino no então Distrito Federal. Foram muitas as oportunidades em que o mestre paulista. hoje quase esquecido, me falou da ajuda que recebia do jovem professor que, ainda em início de carreira, já provava a sua compreensão do alcance daquela reforma. Referências que repetiu, ao longo de nossa amizade, que se interrompeu apenas com a sua morte, em 1974, referências importantes, pela sua origem e pela sua constância, desses galardões que, mais importantes do que os crachás oficiais, distinguem as pessoas realmente válidas. Quem correr os olhos pelos títulos que Paschoal Lemme pode exibir verificará da exatidão de observações como as que alinho aqui, no cumprimento do dever de reparar, na medida de minhas possibilidades individuais, o esquecimento, o ostracismo, a perseguição, a marginalização de uma sociedade em que as deformações culturais e as inversões de padrões de valor denunciam mazelas antigas e persistentes. Para dimensionar a importância do lugar de Paschoal Lemme na galeria dos nossos educadores é mais do que suficiente a leitura dos trabalhos enfeixados no presente volume. Ela comprova, realmente, a sua compreensão da essência do que se conhece como educação. Ele sabe que a escola, em todos os níveis, reproduz relações sociais, daí o caráter agudo da luta que se trava em torno de sua estrutura e funcionamento. Não se trata, aqui, no caso de Paschoal Lemme, de questões formais, de discussão acadêmica, da controvérsia sobre técnicas. Trata-se de situar os problemas da educação no contexto da sociedade em que ocorrem. Como escreve o autor: [...] reformas de educação e ensino não transformam a sociedade, mas, ao contrário, são as transformações sociais que, na medida em que se processam, impulsionadas por fatores básicos internos à própria sociedade, é que passam a exigir mudanças na orientação e na organização da educação e do ensino.

Assim, conclui: "cada período histórico típico produz formas de educação correspondentes à estrutura social respectiva". Está claro, sempre, que a educação faz com que "o indivíduo passe a compreender a própria estrutura da sociedade em que vive", isto é, torne-se consciente do que é e do que pode. Assim, preliminarmente, a

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educação é um processo estreita-mente ligado à sociedade. Não há educação desinteressada, neutra. Ela deve fazer do homem um participante e contribuir para que a alienação do homem tenha fim. Nos limites dessa compreensão é que Paschoal Lemme desenvolveu a sua atividade de educador, participando das grandes lutas pelo seu avanço, em nosso país. Pelo seu empenho nessas lutas é que foi marginalizado, omitido, esquecido. Mas também pelo seu empenho nelas se tornou a figura acatada por todos aqueles que o conheceram e que lhe acompanharam a incansável atividade e a constante dedicação. Nestas páginas, ele conta muito de sua experiência e relembra episódios e figuras. Elas contribuem para o conhecimento mais amplo e mais profundo da nossa época e marcam o lugar do autor nas lutas que essa época conheceu. Elas nos fazem conhecer melhor Paschoal Lemme, mas, sobretudo, fazem-nos conhecer melhor o Brasil do nosso tempo conturbado mas fecundo, quando se está forjando o amanhã. Nelson Werneck Sodré Novembro de 1979

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PARTE I

A EDUCAÇÃO NO BRASIL ATUAL (À MARGEM DA X CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO – 1950)

NOTA DO AUTOR Esta primeira parte é constituída por trabalho de mesmo título, publicado anteriormente no volume Estudos de educação (Rio de Janeiro, Livraria Tupã Ltda. 1953); teve, entretanto, muito pouca divulgação. A reedição desse estudo servirá não somente para esclarecer alguns pontos de vista do autor sobre vários problemas de educação e ensino, como também permitir o confronto entre dados e situações da época em que foi redigido e os dias de hoje.

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INTRODUÇÃO Durante os trabalhos da X Conferência Nacional de Educação, promovida pela Associação Brasileira de Educação e realizada no Rio de Janeiro, de 15 a 27 de novembro de 1950, o autor, como sócio e congressistaconvidado, teve a oportunidade de intervir nos debates, por várias vezes. Acontece, porém, que o regimento da Conferência não permitia a apresentação livre de contribuições e concedia apenas cinco minutos para as intervenções dos congressistas-convidados, depois de falarem os relatores e debatedores oficiais dos temas. Com o atraso quase sistemático com que se iniciavam as sessões, a oportunidade de esses congressistas se manifestarem verificavase sempre em horas avançadas, quando o número de assistentes era pequeno e a atenção, difícil de manter. Essas circunstâncias tornavam praticamente impossível aos congressistas, não-relatores ou debatedores, expressarem de modo cabal seu pensamento, em assuntos, todos eles, difíceis de serem resumidos, dada a complexidade dos temas em discussão. Compreendendo tal situação, os presidentes das mesas, por mais de uma vez, solicitaram ao autor apresentar por escrito seus pontos de vista, que seriam considerados no relatório final. Essa a origem do presente trabalho. Ao escrevê-lo, porém, e agora ao publicá-lo com alguns acréscimos, o autor não teve em vista unicamente essa finalidade. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Há muito tempo vinha sentindo a necessidade de definir claramente seus pontos de vista em relação aos aspectos fundamentais do problema da educação no Brasil. Em várias ocasiões já tivera a oportunidade de tratar de alguns deles, quer em trabalhos escritos, quer em debates orais. Recentemente, na série de palestras promovidas pelo Centro dos Técnicos de Educação do Ministério da Educação e Cultura, especialmente nas conferências pronunciadas pelos professores Joaquim Ribeiro, sobre "O problema central da educação brasileira" e Robert King Hall, sobre "Educação para o desenvolvimento econômico", o autor tomou parte nos debates, fazendo alguns comentários. Em relação à palestra do doutor Joaquim Ribeiro, o autor procurou acentuar apenas que estava convencido de que o problema da educação rural no Brasil só se resolveria dentro da solução do problema agrário, em geral, através da reforma agrária que não pode ser mais retardada, sob pena de continuarmos a sofrer o processo de "atraso progressivo" que o país vem vivendo. Entretanto, não deixava de concordar com o conferencista, quando achava necessária a criação de um departamento especializado no Ministério da Educação e Cultura, para se incumbir do estudo dos problemas da educação rural. Quanto ao professor Robert King Hall, a questão era muito mais séria. A palestra do atual professor de educação comparada da Universidade de Colúmbia girou em torno do que ele denominou "o famoso Ponto Quatro pelo qual", dizia ele, [...] o presidente Truman anunciou que o governo dos Estados Unidos está disposto a estudar sua assistência técnica e financeira aos governos dos países economicamente subdesenvolvidos, no intuito de cooperar para a elevação do padrão de vida desses países, assim promovendo a base econômica essencial às sociedades democráticas (em Educação e Cultura, órgão do Centro dos Técnicos de Educação do Ministério da Educação e Saúde, ano I, n. 1, p. 48, fevereiro de 1950).

Abordando dessa forma o tema em questão, o professor King Hall dava-nos a impressão de que os problemas básicos da educação no Brasil seriam agora solucionados com esse gesto de munificência de um chefe de Estado estrangeiro. A linha geral de seu trabalho, evidentemente, tinha que enaltecer as soluções dadas aos problemas econômicos, sociais, políticos, e portanto também educacionais, pelos países que ele denomina de "democráticos", pondo desde logo de lado, como utópicas e irrealizáveis, as soluções de muitas "ideologias revolucionárias" (sic), com argumentos verdadeiramente primários. Por outro lado, suas palavras eram bastante duras para com os governos desses miseráveis países que tinham agora no Ponto Quatro sua salvação... Dizia ele: A atitude de muitas nações amigas, de todo o mundo, pouca contribuição trouxe à solução do problema. A reação imediata, provocada pelo discurso do presidente Truman, foi de prazer. Para muitas nações – submetidas de geração a geração a um padrão de vida extremamente baixo, resultante de uma economia arcaica, organizada em eras coloniais ou mesmo bíblicas – o Ponto Quatro apresentava-se como uma solução imediata e segura. Quase todos os governos de nações subdesenvolvidas começaram a organizar planos para a utilização da prometida ajuda

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norte-americana. Muitos desses eram sinceros. Outros, aos olhos do observador não-oficial, afiguravam-se meras tentativas no sentido de obter a maior quantia possível – sem relação alguma com as necessidades ou potencialidades do país em causa. Quase todos – tanto os sinceros como os oportunistas – caracterizaram-se pelo seu tamanho. Países que, em três séculos de contato com a Revolução Industrial, não conseguiram criar uma economia nacional autosuficiente, subitamente demonstram o desejo de atingir uma industrialização completa. Tais, sonhos de súbita grandeza são todos pouco realísticos, embora, quando sinceros, inspirem simpatia. Os Estados Unidos não possuem uma varinha de condão que os habilite a transformar os povos vizinhos, da noite para o dia, numa completa economia mecanizada, com um padrão de vida muito superior ao que apresentavam até agora.

O professor King Hall, infelizmente, não explicou por que esses países, "em três séculos de contato com a Revolução Industrial, não conseguiram criar uma economia nacional auto-suficiente". Não disse que isso se deu justamente por causa da exploração colonial a que estavam submetidos pelas grandes potências que fizeram a Revolução Industrial, e agora oprimidos pelas nações imperialistas que, como os Estados Unidos da América do Norte, não permitem que se industrializem e criam um "famoso Ponto Quatro", para "ajudá-los" a continuarem como simples produtores de matérias-primas no interesse apenas dos parques industriais dessas nações. Evidentemente, não podíamos estar de acordo com esse tom de quase arrogância com que se expressava o educador norte-americano, apesar da gentileza no trato pessoal, e resultante, naturalmente, do papel que os Estados Unidos vêm assumindo de tutores do mundo (e isso o professor também não disse), no seu exclusivo interesse, ou melhor, em benefício do grupo de miliardários e militaristas que hoje dominam toda a política interna e exterior da grande nação americana. Na prática, o professor King Hall agia como porta-voz dessa política imperialista, agressiva, dos Estados Unidos da América do Norte, que está querendo conduzir o mundo a uma nova e mais tenebrosa carnificina, obrigando-nos a formar a seu lado, na defesa de uma pretensa "civilização ocidental e cristã", que já exterminou populações civis, arrasando cidades inteiras, na Coréia, e ameaça a humanidade com os terríveis engenhos atômicos. Manifestando-nos contra essa atitude do professor King Hall, não pudemos, entretanto, pela exigüidade do tempo, expressar completamente nosso pensamento. De passagem, queremos manifestar aqui nossa estranheza pelo fato de o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos entregar ao referido professor um curso para professoras rurais, pois, por maior que seja a competência do mesmo, os assuntos tratados nesse curso eram tão tipicamente nacionais que poderiam ser lecionados e discutidos com muito maior vantagem por técnicos brasileiros, sem o perigo dessas distorções a que hoje, até inconscientemente, estão sujeitos os norte-americanos, mesmo educadores, submetidos a uma desenfreada propaganda, verdadeira histeria, que procura insensibilizar o povo em relação aos crimes que seus líderes estão praticando, ou pretendem praticar, contra a liberdade, a paz e o progresso dos povos. Todos esses antecedentes decidiram o autor a elaborar, e, agora, a publicar o presente trabalho.

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Verdadeiramente, ele tem pouca coisa de original, e essa orientação foi propositada. A ignorância, a má-fé e a reação organizada, entre nós, criam tremendas dificuldades ao debate livre e à expressão honesta de pontos de vista não concordantes com os interesses da ordem dominante. Por isso mesmo, tínhamos que orientar nossa argumentação no sentido de mostrar, com opiniões e depoimentos insuspeitos, que as soluções propostas para os problemas fundamentais do Brasil não são invenções nossas, nem muito menos resultantes de um corpo de doutrina de caráter sectário. Qualquer um poderá chegar a elas, desde que estude, com honestidade, o desenvolvimento histórico da humanidade, a verdadeira história do desenvolvimento econômico, social e político dos povos em geral e do Brasil em particular, não se deixando levar pela "economia", "sociologia", "história", ou "filosofia" que vêm sendo ensinadas em nossas escolas e academias, ou divulgadas pela maioria de nossos "economistas", "sociólogos", "historiadores" ou "filósofos", que, em última análise, visam apenas à conservação da ordem vigente, no interesse dos grupos estrangeiros ou nacionais a que servem, consciente ou inconscientemente. Além disso, tivemos a preocupação de mostrar que, no Brasil, ao lado da traição de muitos brasileiros, sempre houve uma linha de pensamento e ação progressistas, é bem verdade que sempre esmagada, esquecida ou deturpada pela reação, pelo obscurantismo, a serviço de interesses antinacionais. Essa linha progressista e patriótica revela-se nas lutas sociais pela formação e independência da pátria, com bandeirantes, negros, índios e mestiços; em Tiradentes contra o domínio colonial; nos cabanos, balaios, praieiros; em 1817, 1824, 1835 a 1845 contra a opressão, contra o império escravocrata; nas campanhas abolicionistas e republicana; em 1922, 1924, 1932, 1935... Na literatura, de Gregório de Matos a Castro Alves e Euclides da Cunha. Na filosofia, com Tobias Barreto, Sílvio Romero. Em problemas econômicos e sociais, com Alberto Torres e poucos mais. Na imprensa, com um Cipriano Barata ou um Borges da Fonseca. E assim por diante. Em educação, infelizmente, a linha é fragílima: Manuel Bonfim está quase sozinho. Procurar o fio desse pensamento progressista, em todos os setores, e levá-lo para diante, nas atuais condições do país e do mundo, é hoje a tarefa dos verdadeiros patriotas. Aos educadores, nesse passo, cabe tremenda responsabilidade. Se não se dispuserem a procurar esse caminho progressista, rompendo com todos os interesses que não sejam os do povo brasileiro, estarão traindo sua missão, e nem mesmo poderão, legitimamente, intitular-se educadores. Publicando este trabalho, o autor pretende tomar posição clara em face dos problemas em questão e concitar seus colegas a agirem da mesma forma. Dedica-o aos milhares de professores obscuros e explorados que, nos mais longínquos recantos desta pátria imensa, sem qualquer conforto, sem estímulo, sem ajuda de qualquer espécie, cumprem, entretanto, na medida do possível, sua árdua e honrosa missão.

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CAPÍTULO I

UM VELHO SOFISMA

Convocada pela Associação Brasileira de Educação, reuniu-se no Rio de Janeiro, de 15 a 27 de novembro de 1950, a X Conferência Nacional de Educação. Conforme se verifica pelo artigo 1º do regimento aprovado pela respectiva Comissão Organizadora, o certame foi convocado para o fim expresso de "obter sugestões para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional", ora em discussão no Parlamento, e originada de um anteprojeto, enviado pelo Executivo, à Câmara dos Deputados, em princípios da legislatura de 1949. Tendo em vista essa finalidade, o artigo 4° do referido regimento determinou que as contribuições que serviriam de ponto de partida para os debates da Conferência e para os estudos da Comissão Geral versariam sobre os seguintes temas: a) A experiência nacional de distribuição de poderes em matéria de ensino. Os projetos de Rui Barbosa. b) A distribuição de poderes, em matéria de ensino, nas federações de origem ibero-americana. c) A distribuição de poderes, em matéria de ensino, nas federações de origem germânica e anglo-saxônica. d) Tipos de organização de ensino primário. e) Tipos de organização de ensino secundário. f) Tipos de organização de ensino profissional. g) Tipos de organização de ensino normal. h) Tipos de organização de ensino superior. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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i) A autonomia das universidades oficiais e particulares; seu escopo e limites. j) A ação dos poderes públicos no auxílio ao ensino privado e na sua fiscalização; seu escopo e limites. No conceito de "tipo de organização de ensino", a Comissão Organizadora da Conferência incluiu os seguintes assuntos: a) duração; b) currículo; e) seriação; d) processo de seleção dos professores; e) processo de verificação do aproveitamento dos alunos. Os relatores e debatedores desses temas foram previamente escolhidos pela Associação Brasileira de Educação, e os demais congressistas, especialmente convidados pela Comissão Organizadora da Conferência, sendo que estes últimos dispunham apenas de cinco minutos para participar das discussões de cada tema, após se terem manifestado os respectivos relatores e debatedores. Não houve, assim, possibilidade de apresentação livre de contribuições nem de discussão ampla dos temas. Tendo participado dos trabalhos, dentro desses limites muito estreitos permitidos pelo regimento, trouxe a impressão de que a Conferência não logrou atingir os objetivos colimados, por ter a Associação Brasileira de Educação, inexplicavelmente, ao menos para mim, quebrado de forma tão brusca a tradição da casa de Heitor Lira, para transformar o certame numa espécie de "seminário", de estilo americano, muito em voga atualmente, e especialmente utilizado quando há o propósito de cercear a discussão e a livre apresentação de pontos de vista, ou restringi-los a uma orientação previamente adotada. Além disso, a época em que foi realizada a Conferência não podia ser mais imprópria, em período de pleno funcionamento das aulas das instituições de ensino, em todo o país, o que concorreu, sem dúvida, para impedir a participação de um número maior de interessados. Assim é que figuras de grande relevo na educação nacional, lamentavelmente, estiveram ausentes ou participaram muito pouco dos trabalhos, justamente quando os temas propostos, pela grande importância de que se revestiam, estavam a exigir o mais amplo debate. E adiante, explicando melhor seu pensamento: "Sem dúvida: é indispensável que a massa da Nação Brasileira suba de nível – mental e social –, mediante sistemática educação. Mas tanto só se realizará quando o povo for senhor dos seus destinos" (Grifo nosso). E em seguida: No mesmo lance em que se esbocem as novas formas políticas e sociais com as instituições de legítima justiça, se definirá o ideal de educação, criar-se-ão os modelos e processos em correspondência com o mesmo ideal. Aqui não se dará nunca que os dominantes preparem a massa popular para ser a efetiva soberania da Nação. Equivaleria a realizar a própria revolução. Mesmo que a prática da democracia se faça com absoluta sinceridade, o grande número, absorvido pelo ganha-pão, não terá meios nem lazeres para o tirocínio de preparo geral. Destarte, os dirigentes democratas podem derrear-se em liberalismo, multiplicar os cuidados em prol da instrução e da educação sem que isto venha redimir a maioria os trabalhadores – da inferioridade em que se encontram, o que reflete os formidáveis privilégios econômicos e financeiros a que essa maioria tem de servir. A esperar que uma educação inicial nos leve à indispensável renovação, esperaremos eternidades numa expectativa que será necessariamente a agravação de misérias. No Império, protelava-se a democracia – porque não tínhamos povo educado para

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o regime... e setenta anos de realeza não preparou. Na República, elimina-se igualmente a democracia e condena-se a liberdade, também na alegação do despreparo do povo para a política de liberdade e de opinião. E nos trinta e sete anos de República mais nos afastamos da indispensável cultura das massas. Esperar ainda seria arriscar todo o futuro desta pátria e, ao mesmo tempo inverter a ordem necessária dos sucessos: a energia que lhe domine os destinos tem de ser a que dê o longo e intransigente esforço educativo (Bonfim, Manuel. O Brasil Nação, tomo II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1931. p. 339-340. Grifo nosso).

Não era outro também o pensamento de Alberto Torres, quando escrevia: Possuímos instituto de ensino superior e escolas primárias. Temos, enfim, todos os aparelhos e processos de governo, incolores, neutros, vagos, inadequados, que se encontram por toda parte; mas, por entre esta organização complicada e, por vezes, luxuosíssima, a vida do homem, a sua alimentação, os interesses da economia social, a distribuição da riqueza, a circulação comercial e monetária, a educação física, moral e cívica, debatem-se de encontro aos mesmos obstáculos das mais atrasadas sociedades, e vão encontrando maiores tropeços, nas próprias construções desta civilização.

E mais adiante: Não é nas escolas e nas academias que se cria este povo: é na educação pelos costumes, pela política, pela circulação de idéias práticas, pela legislação econômica e fiscal, pelo estímulo ao trabalho, pela segurança da remuneração, pela supressão dos incentivos à ociosidade e ao ganho fácil e ilegítimo de empregos e fortunas. A formação de uma sociedade e a seleção do seu caráter resultam do critério, nela dominante, sobre o valor do homem; dos modelos que ela apresenta de prestígio, de estima, de respeito. A vida de um povo é função da enxada do trabalhador, ou do bilhete de loteria (Torres, Alberto. O problema nacional brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914).

E em Rui Barbosa vamos surpreender conceito análogo quando defendia no parlamento do Império a lei de emancipação imediata dos escravos, propugnando pela fórmula certa: primeiro abolição... depois educação. E como libertar o cativo [dizia ele] antes de educá-lo? José de Alencar imprimia a este sofisma, em 1871, as formas sedutoras da sua palavra: "Nós queremos a redenção de nossos irmãos, como o queria o Cristo. Não basta dizerdes à criatura, tolhida na sua inteligência, abatida na sua consciência: ‘tu és livre; vai; percorre os campos como besta-fera!...’ Não, senhores: é preciso esclarecer a inteligência humilhada, para que um dia, no momento de conceder-lhe a liberdade, possamos dizer: ‘Vós sois homens, sois cidadãos. Nós vos remimos do cativeiro, como da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade, em que jazeis!’’’ Os que hoje rejuvenescem o velho sofisma [continua Rui] cerram os olhos à evidência de um erro palmar. Há 46 anos que Tocqueville o rebatia vitoriosamente perante a Câmara Francesa: "Os que se empenham", dizia ele, "em espaçar a época da emancipação, dizem que, antes de quebrar os grilhões do negro, importa aparelhá-lo para a independência. Esclarecei-lhe a religião, regularizai-lhe os costumes, constituí-lhe a família, ampliai-lhe e fortalecei-lhe o entendimento, habilitando-o a conceber a idéia e a adquirir a previdência do futuro; após tudo isso, então, não receeis libertá-lo. Bem, mas, se toda preparação é impossível no cativeiro, exigir que se consume, para que o cativeiro se extinga, não será, noutros termos, assentar que ele não se extinguirá nunca? Pretender infundir ao escravo as opiniões e os costumes do homem livre é condená-lo à escravidão para todo o sempre. Porque o tornamos nós mesmos indigno da liberdade, ser-nos-á lícito recusar-lhe eternamente, a ele e aos seus descendentes, o direito de fruíla?" (A. de Tocqueville. Rapport au nom de la comission, chargée d'examiner la proposition

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relative aux esclaves des ces colonies, 23 de junho de 1879. In: Barbosa, Rui. Parecer sobre a emancipação dos escravos, Obras Completas, v. XI, 1884, tomo I, p. 77-78. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945).

Nossos educadores, em 1950, pareceram-me lamentavelmente apegados ao velho sofisma escravagista: eduquemos até o último analfabeto e assim teremos um Brasil próspero e feliz. Para isso, basta remendar, com boa vontade, uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; descentralizar um pouco mais a administração dos serviços de educação; aumentar, até onde for possível, o auxílio do governo federal às comunidades assoladas por uma economia incipiente; intensificar as campanhas de alfabetização; distribuir bolsas aos adolescentes que, não dispondo de recursos, insistem em prosseguir sua educação em cursos de nível secundário; conceder mais autonomia às universidades; espalhar mais uns tantos prédios escolares para esse imenso e desolado interior brasileiro; melhorar, em cursos de aperfeiçoamento, o preparo técnico do professor primário, forçando-o entretanto, a permanecer nos ambientes tremendamente desencorajantes de onde provém, sob penas rigorosas; e tudo se encaminhará para o melhor dos mundos... Os milhões de brasileiros que continuarem, por largo tempo, a esperar pelos resultados dessas providências miríficas, se forem crianças em idade escolar, deverão se revestir da necessária paciência para se tornarem adultos e, então, receberem as graças das "campanhas de alfabetização"; os outros... devem esperar, pacientemente, a glorificação que descerá dos céus... E nós, os educadores, teremos cumprido o nosso dever...

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CAPÍTULO II

“PROGREDIR OU DESAPARECER”

Infelizmente, porém, o problema é complexo demais para ser resolvido com expedientes tão simples, de natureza puramente escolar, e um verdadeiro educador não pode lavar tão facilmente as mãos perante as classes dominantes e os governantes que não se disponham a ouvir-lhe os apelos. Porque a verdade dolorosa é que, parodiando Roquete-Pinto, poderíamos dizer que o Brasil já atingiu o máximo de educação e cultura compatível com sua estrutura econômica. Daí o verdadeiro impasse a que chegamos, o círculo vicioso que tem que ser rompido se quisermos sair pela ponta positiva do dilema dramático de Euclides da Cunha: Progredir ou desaparecer! Pois já não se trata mais de estagnação: o Brasil, em matéria de educação, de ensino e de cultura, vem sofrendo um processo de atraso progressivo, resultante das condições de atraso econômico que assolam o país e que determinam tal situação. Sem a modificação, pois, dessa estrutura econômica, política e social, atrasada de séculos, sem a extirpação das formas semifeudais, pré-capitalistas e semicoloniais que subsistem como um anacronismo e um flagelo na quase totalidade do território nacional, onde vivem 30 milhões de brasileiros, sujeitos à mais dura exploração, de que resultam as condições de miséria em que estão mergulhados, sem aspirações de cultura, e na impossibilidade material de recebê-la, nenhum progresso real será possível obter em matéria de extensão dos benefícios da educação para a maioria do povo brasileiro. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Um dos pontos de partida inelutáveis para a modificação dessa situação será, portanto, a liquidação dessas sobrevivências semifeudais que asfixiam 2/3 da população brasileira, espalhada em grandes áreas do território nacional, num processo de reforma agrária que dê ao homem do campo as condições necessárias para se elevar culturalmente. Nesse processo, a educação, a escola, será um componente necessário. A melhoria das condições econômicas dessas populações camponesas, que constituem a maioria absoluta do povo brasileiro, será assim acompanhada da elevação do nível cultural, o que, por sua vez, possibilitará a adoção de melhores técnicas de trabalho, e a melhoria do estado sanitário, o que redundará, em última análise, em cada vez maior produtividade, maior consumo, pela ampliação do mercado interno, resultando, pois, em melhores condições de vida geral para o país, mais saúde, em mais recursos na mão do povo, e, conseqüentemente, no aumento das rendas públicas, o que permitirá dedicar-se cada vez maiores recursos para os serviços de educação e cultura, de assistência social, ao mesmo tempo que cada vez maiores contingentes de população irão ficando em situação de se beneficiar com esses serviços. Isso que aí fica dito, de maneira muito esquemática, foi o que fizeram os países hoje considerados adiantados, que pretendemos copiar, e que há séculos liquidaram o feudalismo e implantaram as formas capitalistas de economia, num processo de revolução democrático-burguesa, de revolução industrial, que não assusta, hoje, nem professores nem simples estudiosos da história da humanidade, mas que parece causar verdadeiro terror e pânico aos nossos mais ilustres educadores. Assim, no Brasil, em pleno século do socialismo, afirmar-se que o país precisa recuperar, urgentemente, esse atraso de séculos em que jaz, para poder acompanhar aqueles países em matéria de organização de ensino, de educação e cultura, parece constituir gesto bastante arriscado, motivo de dúvidas e temores, pretexto para ladear-se a inevitável transformação, sem a qual jamais atingiremos o progresso, o desenvolvimento que todos desejamos. E o resultado dessa atitude é essa insistência em tratar sintomas com paliativos, que tem sido a ação da maioria dos educadores brasileiros, em vez de atacar os fundamentos verdadeiros da situação que a todos preocupa. O mais estranho, porém, é que os nossos educadores se esquecem de que tais afirmações já vêm sendo feitas em congressos de educação, mesmo em países latino-americanos apresentando problemas semelhantes aos nossos, e até em instituições como a Unesco, tão em voga atualmente, junto à qual certos educadores parecem querer abdicar de seus deveres perante o povo brasileiro, para se apegar a um cosmopolitismo estéril, que vai buscar as fontes de inspiração e de estímulo no exterior, em modelos sem aplicação entre nós, em vez de encontrá-las no contato vivificador dos nossos maiores, que lutaram com imensos sacrifícios para que o Brasil tivesse um futuro melhor, livre da miséria e da opressão colonial a que ainda está submetida a maioria do seu povo. Num congresso de educação rural realizado no Uruguai, em 1944, uma modesta professorinha primária rural assim afirmava em sua tese:

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Não adianta reformar a escola sem tocar na economia rural, que continua voltada para o passado. Por isso, reclamamos: lei agrária que dê ao homem a posse da terra em que trabalha. Descentralização industrial para a criação, nos campos, de fontes permanentes de trabalho. Limitação do latifúndio com a criação de estância pequena, racional e técnica, meio caminho para a granja-modelo. Legislação que considere: jornada de trabalho, salário, descanso semanal, seguro, aposentadoria, assistência médica etc. Numa palavra – Estatuto do Trabalhador Rural. Criação de centros de saúde e salas de primeiros socorros. Luta sistemática contra as enfermidades que assolam as populações camponesas. Cruzada sistemática médico-sanitária. Vivenda econômica e higiênica nos meios rurais. Realização imediata de um vasto plano de estradas e caminhos. Sobre esses alicerces, então, a criação de uma escola que preencha todas as necessidades da infância de tierra a dentro, para que, no futuro, não necessitem os filhos dos camponeses abandonar em massa o rincão natal em busca de uma vida melhor. A escola propriamente dita terá que ser muito diferente da de hoje, que está deslocada da natureza...

Ainda no Uruguai, no Congresso de Maestros Rurales, realizado em Piriápolis, de 2 a 6 de janeiro de 1949, vamos encontrar, nas conclusões, afirmações como estas: Quanto mais atrasado é um país em seu desenvolvimento, maior é a diferença entre a educação rural e a urbana. Essa diferença tende a nivelar-se à medida que o país evolui econômica, social e culturalmente. [...] A educação é um fato social condicionado por outros fatos que a determinam. A escola é capaz de influir nos processos de evolução. Entretanto, a crença de que as reformas educacionais podem transformar uma sociedade é antinatural e anti-histórica (Grifo nosso).

Das conclusões do Seminário de Educação promovido pela Unesco e realizado em Caracas, Venezuela, de 5 a 8 de setembro de 1948, transcrevemos os seguintes conceitos, que jamais vi citados ou divulgados pelos porta-vozes dessa instituição no Brasil, et pour cause. É impossível pensar que no meio analfabeto latino-americano, tão primitivo em todos os aspectos e caracterizado, além disso, pela miséria geral de sua população, a ação da escola possa alcançar um nível sequer medíocre. Enquanto subsistirem os métodos irracionais de exploração da terra e de produção geral, as enfermidades endêmicas e as que provêm da incapacidade defensiva do organismo devida à má alimentação, sua ação será necessariamente limitada. Em resumo, a escola primária, sem meios para realizar uma ampla tarefa, pobre, com professores mal remunerados e cheia de crianças famintas e seminuas, é atualmente, salvo notáveis exceções, uma instituição sem objetivos precisos, pois não pode escapar à influência dos fatores ambientais (Grifo nosso).

Nesse mesmo seminário da Unesco, o professor Miguel Leal, do México, assim definia os princípios, finalidades e diretrizes a serem recomendados para a escola rural na América Latina: Em tal sentido, a escola americana deve ser: Democrática, porque está destinada ao povo em geral, sem qualquer distinção de classe, raça ou credos, e porque prepara as coletividades rurais para conduzir-se, convenientemente, em um meio cuja organização social deve ser democrática. Gratuita e obrigatória, porque a educação que se ministra nos meios rurais americanos constitui um direito do povo e é uma obrigação do Estado, o qual, em conseqüência, a mantém, dirige e controla.

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Antiimperialista, porque luta para alcançar a emancipação social, econômica e política dos povos latino-americanos. Antifeudal, porque propugna pela divisão eqüitativa da terra e uma legislação adequada às necessidades progressivas dos meios rurais americanos. Orientadora da comunidade, porque sua característica é a de ser o eixo e o centro de suas atividades, insistindo especialmente na importância do papel da mulher no lar. Pacifista, porque fomenta a compreensão dos nexos de solidariedade humana, tanto dentro da própria comunidade rural como no plano nacional, continental e universal, como realizadora dos princípios sustentados pela Unesco em matéria de democracia, liberdade e justiça social. Progressista, porque procura implantar as melhores técnicas em sua missão educadora, preocupa-se e trabalha pelo melhoramento das comunidades rurais americanas, nos aspectos econômico, social e cultural, para lograr sua elevação a planos superiores de vida. Científica, porque fundamenta a aprendizagem no conhecimento das ciências, e não nos conceitos consagrados pelas superstições populares. Ativa, porque adota como norma o trabalho produtivo, social-mente útil, e o considera como fonte do conhecimento e como meio de disciplina na formação da personalidade do educando rural americano. Interamericana, porque respeita os direitos humanos contidos na Carta do Atlântico, na Carta de São Francisco e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, os quais defenderá com toda a amplitude, condição prévia para realizá-los.

Como disse, não vi tal programa, tão interessante, divulgado ou recomendado ao debate pelos porta-vozes da Unesco no Brasil, alguns dos quais terçaram lanças, muitas vezes de maneira violenta, com os que puseram em dúvida, por exemplo, que o célebre projeto da Hiléia Amazônica consultasse os interesses nacionais, ou sobre a própria eficiência das reuniões desse organismo e as despesas que acarretam para os depauperados cofres do país, em face dos resultados ínfimos que apresentam para a solução de nossos angustiantes problemas. Destaco entre aqueles temas, por considerá-los básicos, verdadeiras chaves para a solução de todos os outros que nos assoberbam, o antiimperialismo e o antifeudalismo, julgando que deveriam ser as bandeiras a serem empunhadas pelos educadores brasileiros verdadeiramente conscientes do papel que devem assumir, de luta pelos interesses do povo brasileiro, abandonando assim a atitude de meros propugnadores de "reformas", mais ou menos improdutivas, de medidas legislativas que nada resolvem. Luta contra a penetração imperialista, do capital colonizador, especialmente norte-americano, que nos explora e impede nosso desenvolvimento econômico, reduzindo-nos a simples produtores de matérias-primas, ou controlando por meio do capital monopolista as indústrias que nos permitem manter, e que não prejudicam sua posição, ameaçando todas as nossas fontes de riquezas naturais, reduzindo-nos cada vez mais à condição de simples colônia, apêndice de sua economia, para nos arrastar por fim a participar de uma carnificina, que preparam para esmagar povos pacíficos, que se esforçam para se subtrair a essa dominação, ao mesmo tempo que por esse meio, tentam manter formas de organização social, definitivamente condenadas pela história e procuram barrar os caminhos do progresso, da liberdade e da justiça social, pelos quais luta a humanidade.

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Como advertia Alberto Torres, a propósito da penetração imperialista, [...] a atitude que nos cumpre manter, nesta situação, não é a atitude vacilante, a posição tíbia, condescendente, de quem se propõe a negociar, a transigir. A diplomacia neste momento não seria a da negociação, mas a da repulsa, se pudéssemos admitir que a nação tivesse de negociar diplomaticamente com os particulares que formam as associações de seus invasores. [...] Não é na faixa da fronteira que está o nosso problema atual; não são pormenores de defesa militar, de política e de administração, que nos devem preocupar; não se trata de saber se carecemos ou não de capitais, se devemos ou não aceitar os capitais que nos oferecem. Com a forma que estas coisas revestem, dadas as condições do nosso estado social e econômico (pelas quais não somos responsáveis e que, em confronto com a situação moraI e política de outros países, não nos põe em posição de inferioridade) nada mais temos que fazer senão opor a empresas e sindicatos estrangeiros a recusa liminar do non possumos, varrer o território da intromissão inóspita e promover a nossa reorganização social e política de forma a preparar o Brasil para ser um cooperador da civilização, em vez de um logradouro internacional da especulação e do capitalismo ocioso (Torres, Alberto. O problema nacional brasileiro, p. 149).

E em outra passagem: Na economia – eis uma verdade que não temo submeter à contraprova das rigorosas e profundas investigações da estatística e da análise social – toda a nossa aparente vitalidade consta, de extremo a extremo do país, de extração de produtos e de limitado esforço de exploração extensiva, em que a nossa terra vai cedendo tudo quanto possui em riqueza natural, ao alcance da mão ou de rudimentaríssimos processos de trabalho, com vertiginosa desvalorização, ainda não atingida – a não ser no vale da Mesopotâmia – em regiões já exploradas há muitas dezenas de séculos. Nesta terra, assim saqueada, o comércio, o trabalho estrangeiro e o crédito de usura que possuímos, drenam, em capital, para o estrangeiro, quase todo o produto dessa inconsciente e brutal destruição, dando-nos, em troco, gêneros e objetos que, muitíssimo longe de representar o preço da ruína de que resultam, não deixam, entre nós, em obras e bens voluptuários, senão fração de seu valor.

E em seguida: O aumento das nossas exportações e importações não traduz senão a expressão da troca dos produtos e dos próprios elementos e forças produtivas das nossas terras virgens, por coisas fúteis, solicitadas pela nossa vaidade, ou que se fazem necessárias justamente por causa da nossa incúria. É um fato que se pode dar, e que se dá, na exploração de qualquer território selvagem por feitorias estrangeiras. Toda a nossa fictícia circulação econômica é obra, assim, de uma federação de feitorias que, desde as vendas do interior, até as casas de importação e de exportação, as estradas de ferro, as fábricas, o comércio intermediário e os bancos – em mãos, quase totalmente, de estrangeiros – não fazem senão remeter para o exterior, em produtos, lucros comerciais, industriais e bancários, rendas de várias naturezas, a quase totalidade dos frutos da nossa terra. As duas verbas da exportação e da importação equivalem para a nossa economia a verbas de passivp e de um passivo colossalmente precário, enormissimamente lesivo. É isto, e só isto, que está em progresso, entre nós, acarretando, com imensa perda para a terra, e com o abatimento e desmoralização do povo, o prolongamento, na vida mundial, da corrente de fenômenos que, havendo dado causa às guerras e revoluções do passado, provocarão daqui por diante, se não forem tolhidos, ainda maiores e mais desastrosos conflitos (Alberto Torres, op cit., p. 16-93).

O outro termo do binômio é a luta contra as sobrevivências feudais e précapitalistas, que reduzem a maioria absoluta de nosso povo àquela condição miserável, descrita pelo padre Joseph Lebret, eminente sacerdote francês, fundador do movimento denominado Economia e Humanismo, em entrevista concedida ao suplemento de A Manhã ("Letras e Artes", ano 3, n. 105, domingo, 14 de novembro de 1948), onde dizia:

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O que mais me impressionou no Brasil foram os contrastes. No Rio, o contraste entre as construções ultramodernas, de estilo americano, de grande ousadia, tão bem adaptadas à luta contra o sol, e as favelas, tão atrozmente miseráveis. Depois, nos campos, as conduções dos mais longínquos tempos, confrontando-se com os meios de locomoção mais modernos. A cabana dos sertanejos e o palácio dos senhores. Os "porões" e o quarteirão residencial do Jardim América ou do Jardim Paulista...

E adiante: Fiquei impressionado à minha chegada com as diferenças que notei entre o Brasil e a Europa. Levei algum tempo a compreender que havia no seu país três camadas de civilização diferentes: sobre um fundo de civilização medieval se vem acrescentar uma civilização capitalista, comercial, de tipo manchesteriano, e, após, uma série de elementos de civilização norteamericana. Assim, também não há no Brasil um campesinato como nós o compreendemos na Europa. Malgrado a liberdade de que goza o trabalhador rural de escolher o lugar de sua atividade, não está ele muito distanciado do estado selvagem. [...] Em relação ao proletariado, tanto quanto pude observar, pareceu-me estar ele mais próximo do que nós chamamos na Europa de subproletariado, essa camada da população que não pode viver de uma forma humana e não pode sair, por si mesma, de sua situação precária e infeliz. [...] Um dos paradoxos mais impressionantes que encontrei foi a subalimentação indiscutível de várias classes sociais vivendo num país de imensas possibilidades agrícolas. Esqueceu o sistema de produção intensiva, dirigido para os interesses da exportação, de produzir para a vida humana do povo brasileiro.

E, por fim, numa observação alarmante, que coincide exatamente com o sentimento que me assaltou durante a X Conferência Nacional de Educação: "Não tive a impressão que as elites tivessem a preocupação bastante viva desses problemas" (Grifo nosso). Não precisaríamos, aliás, nos louvar apenas nas observações de um estrangeiro, ainda que revestidas da mais insuspeita idoneidade, pois antes dele muitos brasileiros já tinham denunciado essa lamentável situação. Entre estes, Euclides da Cunha, em 1909, já nos dava um quadro impressionante das condições de vida da Amazônia, para não falar do libelo que constitui sua obra máxima, Os sertões, contra esse terrível abandono em que vivem as populações sertanejas, entregues ao mais completo misticismo, situação essa que, em linhas gerais, permanece praticamente a mesma, nestes dias em que se reúne a X Conferência Nacional de Educação... Em À margem da história, traça-nos ele este quadro trágico da vida do seringueiro da Amazônia, que ninguém terá coragem de contestar tenha se modificado sensivelmente nos dias de hoje: Como quer que seja, para a Amazônia de agora deverá restaurar-se integralmente, na definição da sua psicologia coletiva, o mesmo doloroso apótema – ultra iquinotiatem non peccavi – que Barléus engenhou para os desmandos da época colonial. Os mesmos amazonenses, espirituosamente, o perceberam. A entrada de Manaus existe a belíssima ilha de Marapatá – e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos – um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência... Meça-se o alcance deste prodígio da fantasia popular. A ilha que existe fronteira à boca do Purus perdeu o antigo nome geográfico e chama-se 'ilha da Consciência': e o mesmo acontece a uma outra, semelhante, na foz do Juruá. É uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica as melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável.

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É que, realmente, nas paragens exuberantes das héveas e castiloas, o aguarda a mais criminosa organização de trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo. De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão opulento, senão o freguês jungido à gleba das estradas, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se. Demonstra-se esta enormidade precintando-a com alguns cifrões secamente positivos e seguros. Vede esta conta de venda de um homem: No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem da proa até ao Pará (35$000) e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte, numa gaiola qualquer de Belém ao barracão longínquo a que se destina, e que é na média de 150$000. Aditem-se cerca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terçado, um riflo (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí temos o nosso homem no barracão senhorial, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é um brabo, isto é, ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve 1:135$000. Segue para o posto solitário encalçado de um comboio levando-lhe a bagagem e víveres, rigorosamente marcados, que lhe bastem para três meses: 3 peneiros de farinha de água, 1 saco de feijão, outro pequeno de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isto lhe custa cerca de 750$000. Ainda não deu um talho de machadinha, ainda é o brabo canhestro, de quem chasqueia o manso experimentado, e já tem o compromisso sério de 2:090$000. Admitamos agora uma série de condições favoráveis, que jamais concorrem: a) que seja solteiro; b) que chegue à barraca em maio quando começa o corte; c) que não adoeça e seja conduzido ao barracão, subordinado a uma despesa de 10$000 diários; d) que nada compre além daqueles víveres – e que seja sóbrio, tenaz, incorruptível; um estóico firmemente lançado no caminho da fortuna arrostando uma penitência dolorosa e longa. Vamos além – admitamos que, malgrado a sua inexperiência, consiga tirar logo 350 quilos de borracha fina a 100 sernambi, por ano, o que é difícil, ao menos no Purus. Pois bem, ultimada a safra, este tenaz, este estóico, este indivíduo raro ali, ainda deve. O patrão é, conforme o contrato mais geral, que lhe diz o preço da fazenda e lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a 5$000 rendem-lhe 1:750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total: 2:000$000. É ainda devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é manso: conhece os segredos do serviço e pode tirar de 600 a 700 quilos. Mas considere-se que permaneceu inativo durante todo o período da enchente, de novembro a maio – sete meses em que a simples subsistência lhe acarreta um excesso superior ao duplo do que trouxe em víveres, ou seja, em números redondos 1:500$000 - admitindo-se ainda que não precise renovar uma só peça de ferramenta ou de roupa ou que não teve a mais passageira enfermidade. É evidente que, mesmo neste caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz de emancipar-se pela fortuna. Agora vede o quadro real. Aquele tipo de lutador é excepcional. O homem de ordinário leva àqueles lugares a imprevidência característica da nossa raça; muitas vezes carrega a família, que lhe multiplica os encargos; e quase sempre adoece, mercê da incontinência generalizada. Adicional a isto o desastroso contrato unilateral que lhe impõe o patrão. Os "Regulamentos" dos seringais são a este propósito dolorosamente expressivos. Lendo-os, vê-se o renascer de um feudalismo acalcanhado e bronco. O patrão inflexível decreta, num emperramento gramatical estupendo, coisas assombrosas. Por exemplo: a pesada multa de 100$000 comina-se a estes crimes abomináveis: a) "fazer na árvore um corte inferior ao gume do machado"; b) "levantar o tampo da madeira na ocasião de ser cortada"; c) "sangrar com machadinha de cabo maior de quatro palmos". Além disto, o trabalhador só pode comprar no armazém do barracão, "não podendo comprar a qualquer outro, sob pena de passar pela multa de 50% sobre a importância comprada". Farpeiem-se de aspas estes dizeres brutos. Ante eles é quase harmoniosa a gagueira terrível de Caliban.

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É natural que ao fim de alguns anos o freguês esteja irremediavelmente perdido. A sua dívida avulta ameaçadoramente: três, quatro, cinco, dez contos, às vezes, que não pagará nunca. Queda, então, na mórbida impassibilidade de um felá desprotegido dobrando a cerviz à servidão completa. O "Regulamento" é impiedoso: "qualquer freguês ou aviado não poderá retirar-se sem que liquide todas as suas transações comerciais" [...] "Fugir". Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre os patrões acordo de não aceitarem uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas, e ainda há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizar-se essa aliança, criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes. Agora, dizei-me, que resta no fim de um qüinqüênio do aventuroso sertanejo que demanda aquelas paragens, ferreteado da ânsia de riqueza? Não o ligam sequer à terra. Um artigo do famoso "Regulamento" torna-o eterno hóspede dentro da própria casa. Citemo-lo com todo o grotesco de sua expressão imbecil e feroz: "Todas as benfeitorias que o liquidado tiver feito nesta propriedade perderá totalmente o direito uma vez que retire-se". Daí o quadro doloroso que patenteiam, de ordinário, as pequenas barracas. O viajante procura-as e mal descobre, entre os sororocas, a estreitíssima trilha que conduz à vivenda, meio afogada no mato. É que o morador não despende o mais ligeiro esforço em melhorar o sítio de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito à reclamação mais breve. Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorosos. Fora inútil apontá-los (Cunha, Euclides da. A margem da história. 5. ed. 1941. p. 22-26).

E adiante: Repitamos: o sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para escravizar-se. Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota fazenda de São Paulo paternalmente assistido pelos nossos poderes públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo desamparado,, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para sempre insolvente (op. cit., p. 58).

Poder-se-á, entretanto, imaginar que tal situação assim descrita por Euclides da Cunha deva ser considerada como pertencendo a um passado doloroso, que os quarenta anos decorridos tenham liquidado. Infelizmente, porém, o presente nada apresenta de menos trágico. Muito ao contrário. Não vamos relembrar aqui o que foi a chamada "batalha da borracha", onde, mais uma vez, o interesse ocasional levou a sacrifícios extremos, sem qualquer compensação, milhares de patrícios nossos que, atraídos pela miragem da Amazônia, foram depois abandonados à sua sorte, sem assistência, sem defesa, diante da monstruosa exploração. Numa reportagem de Vera Pacheco Jordão, publicada no Diário de Notícias de 27 de novembro de 1949, intitulada "Como se vive no interior do Pará", vamos encontrar a palavra insuspeita que comprova nossa afirmação: Da floresta debruçando-se sobre a água, não se vê terra, e sim lama, pois que a influência da maré oceânica estende-se por boa parte do Tocantins, os habitantes vivendo em casas erguidas sobre estacas como as habitações lacustres das idades primitivas. Diante de cada casa, um tronco de árvore jogado sobre a lama faz de ponte na maré baixa, e de desembarcadouro quando a água sobe. Que primitiva é a vida nas choças de folhas de palmeiras caprichosamente dobradas para dar certa espessura às paredes e telhado... Ao passar da lancha espiam os caboclinhos nus, as

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mulheres metidas num vestido de algodão informe e já sem cor, os homens trazendo apenas uma calça arregaçada sobre os pés descalços. De longe em longe, há "um comércio", isto é, o barracão de um habitante mais empreendedor, que compra em Belém mantimentos para revender. Mas são poucas as necessidades daquela população esparsa, vivendo da mandioca que planta num palmo de terra roubado à floresta, do açaí colhido na palmeira fina e flexível, do peixe que a maré vazante aprisiona no curral de estacas, do camarão que vai comer a isca de mandioca no fundo do macuru de taquara. Quando o príncipe da Prússia comparou o Tocantins ao Ganges, estaria se referindo apenas ao aspecto do rio ou à vida das populações marginais, semelhantes na miséria?

E não é somente na região amazônica que esse estado de atraso, de sobrevivências feudais, semifeudais, de pré-capitalismo, reduzem a um pária o brasileiro, homem que apesar de tudo luta, trabalha, até onde permitem suas condições físicas miseráveis. O drama das secas do Nordeste é bem conhecido, pois até a literatura já fixou-lhe os detalhes impressionantes, e agora mesmo se repete com os mesmos quadros de catástrofe. Ainda recentemente, uma reportagem publicada em O Globo (3/3/1952) mostra bem a que extremos chegou a situação, e que se resume nas frases registradas pelo repórter: "Falta é terra para a gente trabalhar, terra nossa", "Ninguém quer morrer de fome." Os nordestinos não respeitarão as ordens do governo, caso não lhes seja permitido emigrar. Eis o que se conclui do inquérito realizado pelo O Globo junto aos retirantes. Na palavra de José Nunes, paraibano das cercanias de Campina Grande, está sintetizada a reação dessa gente que não se deixa atemorizar pelos rumores de que serão obrigados a permanecer em suas terras a qualquer custo: – Ninguém quer morrer de fome. Quando as coisas ficam ruins, a gente tem de desabar. Proibir não adianta nada. Que arranjem a nossa vida e ninguém fugirá para o Sul.

"Desabar", eis como se referem às viagens em busca da esperança. E dizem "desabar" porque é como se sentem ao deixar a terra, porque é "como cair do colo da mãe da gente e ficar órfão com pai e mãe vivos". Em linguagem viva, esturricada como as terras que ficaram para trás, dura como os feitores de engenhos, o homem do Nordeste reclama: "Promessa não enche a barriga de ninguém. Falta tudo para a gente. Na cidade pelo menos se pode comer". O desastre e a tragédia – O desastre de Petrópolis reavivou a Consciência da capital para o drama do Nordeste. O nordestino, porém, não se deixa impressionar. Está habituado à curiosidade alheia. Foi observado pelos mais felizes, através das estradas que o separaram da roça. Em todos os cantos ouve as mesmas perguntas que, agora, dirige-lhe o repórter. Como foi? E a seca? A vida é dura, não é? E coisas semelhantes. E nos períodos eleitorais escuta as promessas dos candidatos. "São tantas as promessas que a gente até se esquece", diz-nos Antonio Nascimento, que voltou hoje para a Paraíba. O homem do Nordeste acusa o governo, todos os governos, pela sua tragédia. É um abandonado, um quase esquecido. Quando anunciam soluções nas capitais, julga-se que foram encontradas. Mas, não. A realidade é outra. Vejamos o que diz esse mesmo Antonio Nascimento, pai de três filhos: Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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– Na Paraíba o governo federal está construindo estradas que, andam falando, são para ajudar a gente. Ganhamos 14 cruzeiros para trabalhar na picareta de seis às seis. Passamos o dia todo batendo num barro vermelho, duro como pedra. E nem se pode descansar um minuto porque o feitor desconta logo no fim da semana.

Antonio não sabe por que está voltando. – A gente, porém, não perde a esperança. Volta muitas vezes para ver se as coisas melhoraram, volta para tentar de novo. É difícil a gente se acostumar com a idéia de que não se pode ganhar a vida na nossa terra.

O verdadeiro drama – Não é apenas a seca que afasta o nordestino da terra. A falta d'água é um fenômeno com o qual se habituou. O homem do Nordeste, com os anos, obteve a mesma resistência ao sol esturricador que a carnaúba. É rijo, como a árvore que resiste a tudo. "Falta é terra para a gente trabalhar, terra nossa" explica um "cor de jambo" de quase dois metros de altura, quando lhe falamos no campo de São Cristóvão, poucos minutos antes de o "pau-de-arara" tomar a estrada. – Que é que um homem pode fazer com 10 e 800 hoje em dia? Pois é o que pagam para a gente trabalhar no campo. A carne está a 27, um litro de feijão custa mais de 8, a farinha, nem se fala. Uma carestia infeliz, muito mais infeliz que na cidade. E por cima de tudo os impostos do Zé Américo. Tudo aumenta, menos os ganhos da gente.

Esse mesmo "cor de jambo" que prefere esconder o nome porque vai de volta e "a gente nunca sabe o que pode acontecer", acrescenta: – No campo, não temos nenhuma proteção. Na roça somos obrigados a trabalhar de meio. E quem deixa de trabalhar no campo do patrão perde tudo. Tem senhor de engenho que está pagando seis cruzeiros por dia!

E o mais grave, acusam os nordestinos, é que são obrigados a comprar nos armazéns da fazenda. – E mesmo da estrada. A gente trabalha e recebe a paga em gêneros. Nunca se sai das dívidas. Temos mesmo de "desabar", de "fugir".

Preguiçoso, não – De todos os nordestinos ouvimos os mesmos protestos: falta de assistência governamental eficiente, falta de fiscalização na pouca assistência que se presta. O drama do homem do Nordeste ainda não é conhecido pelos homens da capital. Na viagem de caminhão através das estradas não há romance e sim miséria. Morre-se de inanição por todos os cantos. A doença grassa entre os que ficam e os que fogem. Não há médicos nem assistentes sociais. Ouvem-se apenas as lamentações, as exclamações de pesar, as reclamações de líderes que nada realizam. "Promessas", diz José Nunes, promessas, dizem todos os Josés, Joãos e Marias que atravessam as estradas da esperança sem encontrá-la.

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Qual a solução? – Os próprios nordestinos responderiam se o governo lhes perguntasse qual a solução. Eis o que ouvimos de todas as bocas: – Com um pedaço de terra da gente e um pouquinho de ajuda ninguém vai fugir. Entre passar fome e tentar em outro lugar "a gente" escolhe a fuga. Desabamos para o Rio, para São Paulo ou para o Paraná porque nada mais há para fazer.

Alguns depoimentos recentes, tomados ao acaso, nos mostrarão que o problema é absolutamente geral e atinge todas as regiões do país. Em declarações feitas também a O Globo, o sr. Raimundo Pereira Brasil, [...] antigo jornalista, escritor, diretor-proprietário da revista Extremo-Norte, credenciado pela Associação Comercial de São Paulo, pela Associação Comercial de Santos e pela Federação das Indústrias de São Paulo para observar a situação econômica dos estados do Norte,

assim se expressava: Excluindo Recife, cujo porto demonstra a vitalidade de Pernambuco, o que se vê e sente nos demais estados é apenas abandono, miséria e desespero de populações que vão definhando, subnutridas, sem trabalho compensador, fugindo o mais que podem para São Paulo e o norte do Paraná. O que mais vivamente me impressionou, no entanto, foi a Amazônia, em relação à exploração de borracha e madeira. A pobreza ali é algo contristador. A madeira é explorada ainda de modo primitivo, sem qualquer espécie de organização cooperativa ou de sociedade anônima. O madeireiro não possui aparelhamento técnico nem econômico e daí o rendimento insignificante do seu trabalho. Mas o pior é que a produção de borracha vai decrescendo dia a dia pela carência de elementos humanos, de orientação técnica, de assistência econômica e financeira. Esse produto está sendo defendido apenas pelo Banco da Borracha e, assim mesmo, de maneira teórica e pouco enquadrada nas finalidades de fomentar a produção do látex. Os seringais nativos são dispersos e o seringueiro não pode, por isso, colher mais de dois quilos de látex por dia, percebendo dez cruzeiros por quilo. Produzimos, apenas, 1,5% da produção mundial de borracha e isso porque não nacionalizamos o seu cultivo como o fizeram os ingleses e holandeses em suas colônias, com sementes do Brasil (O Globo, 2/3/1951).

Em relação ao problema da pesca, à exploração desumana a que estão submetidos os nossos pescadores, em todo o imenso litoral do Brasil, assim se referia uma reportagem de A Notícia: Infelizmente, na atualidade o homem que vive da pesca não tem meios para sustentar sua família e educar seus filhos, ainda vive num odioso regime de semi-escravidão. Praticamente, esse diligente obreiro, cujo campo de atividade – o mar –, tantos perigos oferece, trabalha para o armador e os intermediários enriquecerem. Não recebem os pescadores os benefícios da assistência social nem são alcançados pelas vantagens das leis trabalhistas. Os salários que recebem são irrisórios, suas condições de vida as piores possíveis. [...] A esse respeito ouvimos, de um antigo pescador que não gosta de ser explorado pelos tubarões da pesca, os seguintes esclarecimentos: – Tomemos o caso de uma embarcação construída há cinco anos passados, cujo custo foi de Cr$ 400.000,00. Sua tripulação é de dez homens: o armador retira do apurado líquido quinze partes; dez partes são distribuídas pela tripulação, cabendo ao mestre e ao motorista uma parte. Ora, o resultado de uma pescaria de pequena monta é de aproximadamente Cr$ 64.000,00. Deduzidos desse total Cr$ 10.000,00 de despesas com óleo, rancho da tripulação, gelo, cota do IAPI fica um saldo de Cr$ 54.000,00 que, divididos por 27 partes, dá Cr$ 2.000,00 para cada

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parte, cabendo ao armador quinze vezes essa quantia. Leva o dono da embarcação Cr$ 30.000,00 líquidos, o pescador Cr$ 2.000,00 apenas e o mestre e o motorista Cr$ 3.000,00. Como se vê, numa pescaria relativamente pequena, cuja demora não vai além de oito dias, o lucro do armador atinge aquele montante, que representa quatro por cento sobre o capital empregado, enquanto que ao pescador toca o mínimo possível. – Essa demonstração – prosseguiu o velho pescador, enquanto tirava uma fumaçada de seu tosco cachimbo – é feita com algum pessimismo, pois, geralmente, o que se passa é bem diferente, bastando referir que uma traineira que transporta 400 caixas de sardinhas, pescadas no prazo curto de apenas 24 horas, obtém um resultado equivalente a Cr$ 80.000,00, pois o preço comum de venda dessa espécie é de Cr$ 200,00 a caixa, não havendo o menor respeito à tabela. Nesse tipo de pescaria as despesas são bem menores, pois o tripulante leva a "bóia" para bordo; para a pescaria em traineira a parte é fixada em Cr$ 2.900,00, reservando-se Cr$ 1.700,00 para óleo e gelo. Assim o senhor armador, no caso da pesca de sardinha, recebe, para uma produção de 400 caixas, Cr$ 43.000,00 líquidos! E os pobres pescadores apenas Cr$ 2.900,00 e o mestre e o motorista Cr$ 5.900,00. Por essa exposição do pescador verifica-se que a embarcação construída há cinco anos, na pior das hipóteses, dá uma média de Cr$ 20.000,00 por mês, ou seja, Cr$ 1.200.000,00. Fica assim provado que, enquanto o armador amontoa lucros polpudos, o desgraçado do pescador recebe salários de fome. O dono do barco dorme tranqüilo em seu colchão de molas e o pescador, muitas vezes, tem por travesseiro as cordas de amarração dos barcos (A Notícia, 20/1/1951).

A reportagem refere-se, como se vê, à pesca em embarcações relativamente grandes. Que se poderia dizer então da miséria, da exploração, do abandono em que vive o pequeno pescador das colônias espalhadas por esse litoral imenso? Para terminar, mais um depoimento referente à região mais rica do país, extraído do relatório apresentado ao secretário da Agricultura do Estado de São Paulo pela comissão incumbida do estudo do vale do rio Ribeira de Iguape, em setembro de 1947, composta dos técnicos Narciso de Medeiros, João Ferreira da Cunha e Renaldo Assi (Boletim de Agricultura, da Diretoria de Publicidade Agrícola da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, série 49, ano de 1948, número único, e transcrito pelo Boletim Geográfico do Conselho Nacional de Geografia, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ano VIII, n. 85, abril de 1950): A extensão territorial da região do vale do Ribeira é de 12.356 quilômetros quadrados, correspondentes à área de 511.166 alqueires ou a 1.237.020 ha. Conquanto o município de Cananéia não faça parte da região do vale do rio Ribeira, de vez que suas vertentes correm diretamente para o oceano, resolvemos incluí-lo no presente estudo em virtude do íntimo intercâmbio que mantém com os municípios da referida região, cujos interesses e necessidades são geralmente recíprocos. A julgar pelos índices demográficos que a região apresenta, talvez não encontremos, em todo o estado, região tão despovoada e em que a miséria e o atraso sejam tão chocantes como nesta de que tratamos (Grifo nosso).

A maior parte da população rural está localizada à beira dos rios e é constituída exclusivamente do elemento nacional. A moradia à beira d'água é perfeitamente justificável, porque os rios permitem navegação em canoas, que são os únicos veículos de comunicação e transporte de que os habitantes dispõem.

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A população ribeirinha vive exclusivamente do plantio do arroz; onde o terreno é mais firme e menos úmido plantam mandioca, milho e fazem alguma criação, como acontece com os moradores da parte superior do Ribeira, onde alguns apresentam indícios de certa prosperidade. Geralmente, nos bairros de maior aglomeração de habitantes, existe um negociante que faz adiantamentos aos lavradores em gêneros de subsistência, nas épocas de entressafra e de plantio e colheita, explorando-os desapiedadamente. A presença de negociantes, nas proximidades é, porém, providencial, porque se não existissem, a miséria dos lavradores, pelas dificuldades de aquisição de artigos essenciais à subsistência, seria maior e mais completa. Nas suas relações de troca com os comerciantes dos bairros ou das cidades, quase sempre os lavradores não vêem moeda corrente: estes entregam-lhe o produto das colheitas em pagamento do que já receberam em mercadorias. Se o tempo favorece colheitas de arroz relativamente abundantes, ainda tudo corre muito bem para o lavrador. Quando, porém, sobrevêm Contratempos – como as enchentes, que destroem as plantações – os negociantes cortam-lhes o crédito. A situação dos lavradores, em relação aos meios de subsistência, torna-se então pungente e dolorosa. Não tendo para onde apelar, porque não existe por ditas bandas órgão assistencial a que possam recorrer, abandonam a roça em demanda das cidades. Populações há na referida região, como as que se situam nas zonas do baixo Ribeira e seus afluentes Perupava, rio Pequeno, Una da Aldeia, Itinguçu e rio das Pedras, que não têm água doce e potável para beber, porque esses rios sofrem a influência das marés. Utilizam-se da de poço. Como, porém, em terras de tal natureza o lençol d'água subterrâneo está a pouca profundidade (mais ou menos 60 a 80 centímetros da superfície), a água que fornece é salobra, leitosa, e até viscosa em certas épocas do ano. O estado de saúde dos habitantes das zonas acima mencionadas é extremamente precário. As criaturas, sejam adultos ou crianças, apresentam-se pálidas, esverdeadas, raquíticas, com pernas finas e ventre volumoso, retratando fielmente os efeitos desastrosos que a desnutrição e as verminoses ocasionam no organismo humano. Não obstante o estado de depauperamento físico em que vive, o homem é trabalhador, inteligente, morigerado e profundamente pacífico. Erram, pois, e erram absurdamente, aqueles que, apenas com conhecimentos superficiais do meio em que vive o homem do litoral, jogam sobre aquela pobre gente a pecha de indolência. Como pode ser indolente o homem que bate de sol a sol a foice e o machado, ou se ocupa em outros duros misteres para garantir a subsistência da família, que em geral é numerosa? Como, a não ser em sentido pejorativo, podemos qualificar de indolente a população da faixa marítima, que com o produto de seu labor, seja escasso ou abundante, contribui para o sustento dos que vivem na cidade? Se examinássemos o assunto com o espírito imbuído do legítimo sentimento humano, como é o nosso propósito, verificaremos que estamos diante de uma população que vive completamente desprotegida e abandonada, largada ao esquecimento pelos passados governos em anos sucessivos de administração desinteressada e incapaz (Grifos nossos).

E adiante: De modo geral, os métodos de exploração agrícola, na região do vale do Ribeira, são os mais primitivos e rotineiros que existem. Obedecem ainda à orientação errada que sempre tivemos – uma agricultura extrativa!

E ainda: Encontram-se na região culturas feitas sem a menor técnica, no mais absoluto primitivismo: feita a queimada, sem outra qualquer operação, o arroz é plantado com chuço; raramente é carpido à enxada, sendo colhido a canivete! [...] No entanto, não adianta estarmos tratando de aumentar a produção agrícola da zona, quando a pequena produção existente não tem meios de escoamento.

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E com referência ao ensino: É simplesmente lastimável que se encontrem escolas em prédios adaptados, sem o menor conforto e sem higiene, tanto para os alunos como para a professora, que além de estar isolada da civilização, ainda tem de suportar uma vida primitiva, depois de conhecer e estar habituada ao conforto dos maiores centros.

E por fim: No Estado de São Paulo, estado líder da União, encontramos um município como Iporanga, que nos dias de hoje não tem nenhum meio de transporte regular, para qualquer município vizinho. Em Iporanga, no momento, nem correspondência chega. É sede do município, está ligado a Apiaí por 42 quilômetros de uma ótima estrada de rodagem, mas mesmo assim vive completamente isolada. Não tem médico, nem farmacêutico, nem barbeiro, nem açougueiro.

Nossa peregrinação seria interminável por essas vastidões do território nacional, a surpreender esses mesmos quadros de miséria, de abandono, de primitivismo, de impossibilidade de elevação dos padrões culturais: no litoral e no interior, garimpeiros e vaqueiros, nas zonas as mais remotas, como nas mais próximas dos centros urbanos. Nas cidades, principalmente nas maiores, nas capitais, além da miséria geral que vai atingindo as classes trabalhadoras, pelos baixos níveis de salários em relação ao sempre crescente custo de vida, despeja-se continuamente a sobrecarga daquelas populações rurais, em fuga para os centros urbanos, na ilusão de escaparem às condições insustentáveis a que chegaram. É o que já estão revelando os primeiros resultados do recenseamento de 1950, onde o crescimento excessivamente rápido das capitais traduz um sintoma de moléstia grave. A propósito, eis como se manifesta um comunicado do Serviço Nacional do Recenseamento, em publicação recente: Analisando o problema sob outro aspecto, verifica-se que a atual população concentrada nas capitais equivalerá a nada menos de 16% do total demográfico do país, estimado, com fortes Possibilidades de confirmação, em 50 milhões de habitantes. A quota proporcional em 1940 era, porém, de 13,7%; e baixava, em 1920, para 10,6%. Esclareça-se ademais que, agora, como em 1940, as quotas anunciadas não traduzem com rigor a realidade, por não corresponderem à totalidade demográfica das chamadas áreas metropolitanas, a que se incorporam, muitas vezes, os municípios limítrofes da capital, econômica e socialmente, simples prolongamentos delas.

E adiante: Não há que discutir a origem de tão pronunciada expansão metropolitana. O afluxo de populações do interior, que parece avolumar-se dia a dia, constitui sem dúvida o fator de maior relevância. Daí a impressionante proliferação dos grupos marginais, na população das grandes cidades brasileiras, a exemplo do espantoso contingente de favelados do Rio de Janeiro, de moradores de cortiços de São Paulo, de mucambeiros do Recife, de maloqueiros de Porto Alegre.

Não é, pois, sem razão que outro sacerdote, o padre jesuíta Gardjin, depois de percorrer vários países do continente sul-americano assim escrevia na revista Latino-Americana:

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É preciso ter visto a extrema miséria deste proletariado vivendo nas horrendas favelas [refere-se às do Rio de Janeiro], abrigos de lata, de papelão alcatroado e de madeira, que se sobrepõem vergonhosamente nos flancos dos morros e onde 300 mil trabalhadores e suas famílias se amontoam como animais. Terra de contrastes, de misérias e de extrema opulência. Aqui, nada de escolas para a massa. As ordens religiosas têm colégios e universidades reputadas – como as de Santiago de Lima – mas elas são reservadas aos ricos.

Evidentemente, há inúmeros outros depoimentos insuspeitos sobre as condições econômicas e sociais da América Latina. Entre eles quero citar ainda o transcrito pelo professor Josué de Castro em seu conhecido trabalho Geografia da fome – A fome no Brasil. Na página 32, depois das seguintes palavras: Na maioria dos países da América Latina, conforme podemos verificar em visitas locais e através de documentos estatísticos e informes científicos obtidos, as condições de vida são ou idênticas ou ainda mais precárias do que as do Brasil,

acrescenta em nota o seguinte: Temos uma confirmação destas palavras no resumo que, acerca das condições de vida da América Latina nos apresentam George Soule, David Efron e Norman T. Ness, no seu livro Latin América in the future world – 1945.

Como se trata de uma publicação dando conta dos resultados de minucioso inquérito levado a efeito através do continente por notáveis investigadores e peritos, supervisionados pela National Planning Association, cuja idoneidade técnica está acima de qualquer suspeita, parece-nos recomendável transcrever na íntegra os 13 itens em que os autores registraram os aspectos mais significativos da vida econômico-social desta larga porção do continente americano: A necessidade de encarar realisticamente os problemas da América Latina tornou-se urgente depois da guerra. A participação desses povos na reconstrução do novo mundo é imprescindível e valiosa. Como, porém, tornar possível essa participação? Quais são as condições existentes entre esses povos? O que se segue ajuda a compreender a situação desses países: 1º) Dois terços, talvez mais, das populações da América Latina são de subnutridos, apresentando-se mesmo as populações de certas regiões em estado de fome absoluta. A maioria é mal nutrida, mal vestida e mal alojada. 2°) Três quartos da população da maior parte dos países da América Latina são analfabetos; nos países restantes a proporção de analfabetos varia de 20 a 60%. 3º) A metade da população da América Latina sofre de doenças infecciosas ou carenciais. 4º) Dois terços da população da América Latina não gozam dos benefícios da assistência social. 5°) Cerca de um terço das populações (especialmente milhões de trabalhadores índios) continua sem participação alguma na vida econômica, social e cultural da comunidade latino-americana. O poder aquisitivo do índio é em muitas áreas, igual a zero. Com exceção do México, ele é, politicamente, um cidadão de segunda classe. 6°) Dois terços da população latino-americana vivem em condições semifeudais de trabalho. 7°) Uma surpreendente maioria da população rural não possui terra. Dois terços, senão mais, dos recursos agrícolas, florestais e do gado pertencem ou são controlados por uma minoria de senhores de terra nacionais e por organizações estrangeiras.

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8°) A maior parte das indústrias extrativas da América Latina pertence ou é controlada por organizações estrangeiras, sendo considerável parte dos lucros desviados dos vários países. Da mesma forma, muitas das instituições de produção e distribuição são controladas pelo capital estrangeiro ausente. 9°) As condições de vida da massa da população latino-americana são particularmente instáveis, dependendo das flutuações do mercado estrangeiro. A concentração numa espécie de indústria extrativa ou monocultura de produtos de 'sobremesa' (café, açúcar, cacau, banana etc.) para consumo externo, mais que para o consumo interno, arrastou várias regiões latino-americanas à beira da ruína econômica. 10º) O comércio interno e o intercâmbio comercial dos países latino-americanos são essencialmente rudimentares. Existe grande desequilíbrio econômico entre diferentes zonas de um mesmo país, como também entre os vários países. As limitadas oportunidades de intercâmbio comercial nos países latino-americanos são semelhantes às do século 16, quando a Espanha, por intermédio da Câmara de Contratos de Sevilha, proibia as colônias latino-americanas de negociar entre si. O intercâmbio latino-americano representa apenas 7% do comércio total da América Latina. 11º) A estrutura semicolonial da economia latino-americana reflete-se nos meios de transporte: as estradas de ferro e a navegação marítima destinam-se, na maior parte, ao transporte de matérias-primas do interior para os pontos de embarque para o estrangeiro e ocasionalmente para o desenvolvimento do mercado interno. Essa deficiência de transporte é fator importante do limitado intercâmbio latino-americano. 12º) Com exceção da Colômbia, Argentina, Brasil e Uruguai, a percentagem de indivíduos produtivos ou dos bem remunerados é muito mais baixa do que nos Estados Unidos ou na Europa (cerca de 31%, enquanto a dos Estados Unidos, no tempo do desemprego, era de 39,8, a da Europa, de 45% e da Austrália 43%). Essa alta proporção de população não aproveitada constitui um grande peso para a parte economicamente produtiva. 13º) A capacidade produtiva do trabalhador latino-americano é muito inferior à do americano ou à do europeu, pelas razões acima expostas – subnutrição, ignorância e falta de aparelhagem adequada.

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CAPÍTULO III

A SITUAÇÃO DO ENSINO

Em face desses dados, os educadores brasileiros não precisam fazer grande esforço para compreender que o panorama educacional e cultural de um país que vive nas condições descritas, onde 2/3, ou seja, mais de 30 milhões de seus habitantes se acham não muito distantes do "estado selvagem", e grande parte dos restantes "não podem viver de uma forma humana", nas palavras duras, mas tragicamente verdadeiras do padre Lebret, tem que ser necessariamente este, que nem os próprios documentos oficiais conseguem mais iludir. Para uma população estimada, em 1946, em 46.700.000 habitantes, os menores de 18 anos somavam aproximadamente a metade, ou seja, em números redondos, 23.200.000. "Sobre este amplo fundo demográfico" (diz a mensagem do então presidente da República, apresentada ao Congresso, em 15 de março de 1947, e da qual extraímos os dados que se seguem) "o quadro de nossas realidades culturais e educativas é ainda acanhado e diminuto." Senão vejamos: Para um contingente de 10 milhões de crianças em idade pré-escolar (de 0 a 5 anos), havia naquele ano (1946) apenas 64.502 matriculadas em estabelecimentos apropriados. Para 6 milhões, aproximadamente, de crianças em idade escolar primária (de 7 a 11 anos), das quais mais de 4 milhões vivendo nas zonas rurais, em cálculos muito Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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otimistas, apenas 3.300.000 matricularam-se em escolas primárias, concluindo os respectivos cursos que, em média, ainda hoje, não vão além de um ou, no máximo, dois anos, pouco mais de 260 mil. "Esses dados", comenta a referida mensagem presidencial, [...] que à primeira vista não parecem indicar uma situação muito desfavorável, estão longe de corresponder às necessidades reais de nossa população escolar e, o que é ainda mais grave, acusam um progressivo declínio nos últimos cinco anos. Assim, o total de unidades escolares, que em 1942 chegava a 43.975, vem geralmente diminuindo de ano para ano, com uma redução no último qüinqüênio de 3.740 unidades, fato estranhável ante o crescimento contínuo da população em idade escolar primária. Fenômeno idêntico se registra no movimento de matrículas em nível primário; este, que em 1941 atingira o total de 3.347.642, vem decrescendo, anualmente, até acusar, em 1945, a cifra de 3.295.291, isto é, com uma diminuição de 52.351 matrículas. A situação torna-se ainda mais grave ao verificarmos que, de 3.295.291 crianças matriculadas em nossas escolas primárias em 1945, apenas 2.333.696 tiveram uma freqüência média regular e somente 1.522.412 obtiveram aprovação nos exames de promoção.

Note-se que a mensagem não se refere às conclusões de cursos, que não foram, nesse ano, além de 250 mil. E, continua a mensagem presidencial: Tomando por base a freqüência real dos escolares e não os dados inseguros da matrícula, que muitas vezes não se positivam, temos que cerca de 3 milhões e 500 mil futuros cidadãos brasileiros estão privados dos benefícios de uma escolaridade sistemática e relegados ao analfabetismo ou ao semi-analfabetismo, justamente nos anos mais propícios à aprendizagem das técnicas e lastros fundamentais da cultura, isto é, dos 7 anos aos 11 anos (Grifo nosso).

Cumpre notar, de passagem, a surpresa que causaram essas revelações da mensagem em questão, pois vínhamos sendo iludidos com declarações reiteradas de autoridades, responsáveis em educação do país, sobre a expansão, jamais verificada, da rede do ensino primário brasileiro, justamente naqueles anos do Estado Novo... Em relação ao ensino de grau médio, para um contingente de 7 milhões e 200 mil adolescentes (de 12 a 18 anos) existentes em 1946, Registrou-se apenas a matrícula de 260 mil estudantes, no chamado ensino secundário, não indo além de 350 mil o total em todos os ramos desse grau de ensino. E a mensagem, apesar do otimismo de muitos educadores, manifestado mesmo na X Conferência Nacional de Educação, em face do crescimento desse grau de ensino, não pôde deixar de comentar com as seguintes palavras essa espantosa insuficiência da escola secundária brasileira: Entretanto, o nosso aparelhamento de educação secundária ainda se acha estruturado nos velhos moldes de um ensino clássico rígido e uniforme que lhe tolhe as possibilidades de fácil adaptação às novas realidades sociais.

E em seguida:

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Mesmo quantitativamente, está ele incapacitado de se tornar a escola das grandes massas adolescentes, em continuação à obra de lastreação da cultura realizada pela escola primária.

É de espantar, pois, que a Conferência, pelos relatores designados para tratar da questão do ensino secundário, que vai se agravando dia a dia, se limitasse a recomendar como solução cada vez maior liberdade para a iniciativa privada, que já enfeixa em suas mãos 93% dos estabelecimentos de ensino desse grau existentes no país, e da parte do Estado, uma política de concessão de bolsas aos estudantes mais necessitados. No ensino superior, ainda nesse mesmo ano de 1946, estavam matriculados pouco mais de 25 mil estudantes, com uma conclusão de cursos pouco acima de 5 mil. Acrescentem-se a esses números 12 milhões de analfabetos adultos, de 18 anos e mais de idade, que constituíram a "dolorosa revelação do recenseamento de 1940", na palavra patrioticamente emocionada de Teixeira de Freitas, e teremos um quadro-muito sumário, porque apenas quantitativo, das realidades educativas e culturais do país. Se quisermos, porém, num excesso de escrúpulo, utilizar dados mais recentes, na suposição de que algum passe de mágica tenha melhorado sensivelmente tal situação a partir de 1946, vamos encontrar na publicação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, intitulada Ensino primário no Brasil, e datada de julho de 1949, as seguintes afirmações, que só fazem reforçar os dados da mensagem presidencial de 1946: As estatísticas revelam a existência, nas zonas rurais do país, de uma população de quase 2 milhões e meio de crianças de 7 a 11 anos que não são atingidas ou atraídas pelo sistema escolar, que não buscam a escola, ou, se o fazem, encontram, na deficiência de instalações adequadas, o empecilho para a matrícula. De norte a sul, nas grandes cidades ou nos centros de fraca densidade demográfica, nos núcleos industriais ou nas regiões agropastoris, nas zonas de colonização ou fronteiriças, a população em idade escolar não é absorvida pela rede de sistema oficial ou particular. Fica, assim, de ano para ano, apesar dos esforços de educadores e administradores, aumentado o contingente de crianças que fazem parte do que se chama, usualmente, de déficit escolar, ou seja, a massa de alunos que não encontra oportunidade para aprender a ler, escrever e contar. Somando-se os dados referentes ao país inteiro, temos, num cálculo muito otimista, cerca de 6 milhões de crianças em idade escolar, das quais talvez apenas a metade tenha conseguido matricular-se (Grifos nossos).

E adiante: Segundo ainda as estatísticas, verifica-se que há unidades federadas que não atendem teoricamente a 75% de sua população em idade escolar; outras apresentam déficit teórico entre 60% e 70%, bem poucos estados apresentam déficit inferior a 50%. A verdade é que o quadro é realmente desolador no que diz respeito ao ensino primário. Será preciso, além disso, não deixar que os dados percentuais possam iludir. Os números absolutos são bem mais expressivos e demonstram o verdadeiro panorama da situação: Minas Gerais, por exemplo, teoricamente, apresenta quase 400 mil crianças fora das escolas; a Bahia, mais de 400 mil; Pernambuco, mais de 200 mil; Ceará e São Paulo cerca de 200 mil cada um. Pela análise do movimento de matrícula pelos municípios, verifica-se que a situação é bem mais séria e exige tempo e grande soma de recursos para o encaminhamento de solução apenas satisfatória. Contribui para isso, entre outros fatores, a fraca densidade demográfica de pelo menos qui-

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nhentos municípios. É exemplo frisante o fato de vinte deles apresentarem déficit superior a 90%; isto é, mais de 90% das crianças em idade escolar não estão matriculadas no curso primário; em 142 municípios, esse déficit varia de 80 a 90%; em 245, oscila entre 70 e 80%; em 220, entre 60 a 70%, em 180, entre 50 e 60%; e abaixo de 50% contamos 675 (Grifos nossos).

E em seguida, especialmente com referência à zona rural: Pelo exame da matrícula escolar, chega-se à conclusão pouco satisfatória de que a zona rural, por onde se distribuem cerca de 30 milhões de brasileiros, está sofrendo uma acentuada crise de Assistência educacional. Com efeito, apenas 38% das crianças matriculadas no curso primário pertencem aos núcleos rurais (sabe-se que 70% das crianças brasileiras ali se encontram), 50% às zonas urbanas e 12% às zonas distritais.

E sobre as condições dos prédios escolares: Citaria, por exemplo, que, de acordo com um inquérito realizado há pouco pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, ficou apurado que dos 28.302 prédios escolares destinados ao ensino primário, apenas 4.927 pertencem aos poderes públicos, e desses apenas 70% foram construídos especialmente para fins escolares. Mais ainda: 360 municípios não dispunham, até bem pouco, de um único prédio especialmente construído para o ensino primário.

No tocante à situação do professorado primário, informa a referida publicação: Bem significativa é a precária situação do professorado primário. Dos 78 mil professores em exercício em 1943, 31 mil não possuíam formação adequada. Nessa época, não eram portadores de diplomas de normalista 90% dos professores do Território do Acre, 74% de Santa Catarina, 65% do Rio Grande do Sul, 60% do Paraná, 59% do Maranhão, 58% do Pará, 57% do Rio Grande do Norte, 56% de Goiás e Ceará, 54% de Pernambuco, 51% do Piauí e Paraíba, 49% do Espírito Santo e 43,5% de Alagoas.

Se espíritos mais otimistas forem levados a imaginar que tal situação será ou está sendo resolvida com os planos de auxílios do governo federal aos estados, que vêm sendo tão trombeteados ultimamente e constituíram um dos leitmotivs da X Conferência Nacional de Educação, como medida capaz de tirar o país desse estado tremendamente deficitário em -matéria de ensino elementar para nos limitar à educação fundamental, aconselharia a leitura da contribuição do Estado de Sergipe, apresentada à Conferência e intitulada Sinopse estatística do ensino primário elementar em Sergipe (1943-1948) de autoria do respectivo diretor-geral de educação, e que é particularmente expressiva por ter sido essa unidade federada considerada como verdadeiro modelo da aplicação dos referidos planos em execução há três anos. Lê-se, na apresentação do referido trabalho, o seguinte: O trabalho em apreço – especialmente organizado para a Conferência Nacional de Educação, de 1950 – deverá ser lido unicamente com a preocupação estatística, isto é, com interesse de entender a linguagem dos números alinhados nas várias tabelas (sic).

Quatro problemas importantes esta Sinopse veio focalizar, dignos, portanto, da maior atenção de quantos tomarem parte da Conferência:

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1º) O considerável número de crianças de 7 a 14 anos de idade, infelizmente ainda fora da escola. 2°) O avultado número de "repetentes". 3º) A baixa matrícula no 4° ano ou período (final do curso primário). 4º) O reduzidíssimo número de "conclusões de curso". Se compulsarmos as tabelas constantes desse trabalho, vamos encontrar os seguintes dados, referentes ao ano de 1948:

O comentário a essa situação, em tom quase desesperado, é feito pelo próprio diretor do Departamento de Educação: Ao Estado compete realmente a educação primária. Mas queremos acreditar – sem uma ajuda supletiva e constante da União – como poderá o Estado arcar com o ônus da manutenção de mais de – um milhar de escolas isoladas (escolas singulares), destinadas a abrigar mais de 2/ 3 da sua população escolar, se lhe faltam os recursos financeiros devidos, dada a pequenez da sua receita, que não atinge, ainda, sequer, Cr$ 90.000.000,00 ânuos, o que se poderá constatar da última tabela desta "Sinopse"? Como poderá fazer, perguntamos, se o custo mínimo inicial com a instalação de uma escola isolada (aparelhamento, aluguel do prédio e vencimento do professor) é, atualmente, de cerca de Cr$ 14.000,00?!

Difícil compreender, em face desses dados, a estranha tranqüilidade da Conferência, em face da tese de que a solução do problema em foco está apenas ou principalmente na intensificação do auxílio financeiro da União aos Estados...

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CAPÍTULO IV

AS CONDIÇÕES SOCIAIS E SANITÁRIAS

Mas não é somente na parte referente ao ensino que a referida mensagem presidencial de 1947 nos informa sobre a situação lamentável do país, em que pese o aulicismo de autoridades responsáveis por certos setores da administração pública em quererem levar a crer no contrário. Também com relação à saúde pública, problema inseparável do da educação, e revelador do estado de miséria a que está reduzida a maioria do povo brasileiro, a mensagem é bastante elucidativa. Diz ela: Os resultados do censo de 1940 mostraram que a população brasileira está longe ainda de perder as características que apresentava no início deste século. Crescimento muito rápido, à custa principalmente de uma natalidade altíssima, a que se opõe um regime de mortalidade excepcional – eis, sumariamente, o quadro com que hoje nos defrontamos. Foi revelado pelo censo que 42,5% de nossa população é constituída de menores de 14 anos de idade. Dificilmente se encontrará outra nação em que pese sobre os adultos tão elevada proporção de infantes para sustentar. Lamentavelmente, as condições especiais de nossa organização social e de nossa estrutura econômica, a doença e a morte prematura privam a massa adulta ativa da capacidade de assistir convenientemente as proles numerosas, criando como conseqüência, entre outras, os problemas de alta mortalidade infantil, da infância abandonada e do baixo nível educativo.

E quanto à mortalidade:

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No primeiro ano de vida morrem em algumas regiões do país cerca de 20% das crianças. Na própria Capital Federal, aproximadamente 16% das crianças não chegam a completar o 1º ano de existência, taxa essa que é três a quatro vezes superior às que se verificam nos países mais adiantados em matéria de saúde. Em conjunto, estima-se em cerca de 300 mil o número de crianças brasileiras que morrem anualmente antes de atingir um ano de idade, sacrifício permanente de vidas, cuja razão reside na ignorância, no pauperismo, na saúde precária dos pais e em outros fatores de ordem social e econômica.

E ainda: De perto de 2 milhões de crianças que nascem anualmente no Brasil, cerca de 500 mil não chegam a completar um ano de idade. Entre as causas desse deplorável índice, algumas estão ligadas a problemas de organização social, somente removíveis a longo prazo. Outros, entretanto, são suscetíveis de se deixar influenciar por uma política de resultados imediatos, como as que se prendem à melhoria de condições sanitárias, à prestação de assistência pré e pós-natal, à educação maternal e à assistência alimentar.

Inúmeros outros índices poderíamos alinhar aqui para demonstrar a tese de que o Brasil vem percorrendo um processo de atraso progressivo em matéria de educação e de ensino, resultante das condições semifeudais, pré-capitalistas e semicoloniais, condições essas que vêm sendo seriamente agravadas pela pressão imperialista a que o Brasil está sendo submetido, por parte, especialmente, dos Estados Unidos da América do Norte, que nos vão reduzindo a simples fornecedores de matérias-primas para seu parque industrial. Enfrentando crise sem precedentes, resultante da perda de mercados, em extensas áreas do mundo que já conseguiram subtrair-se à sua influência, e a perspectiva da perda de outras, em zonas em que as populações se acham em franca revolta contra o colonialismo, volta-se para a América Latina, e procura envolver-nos em suas aventuras guerreiras, com que pretende firmar seu domínio mundial político e econômico. Citaremos mais alguns desses índices que reputamos significativos: Na Revista de Educação Pública, publicada pela Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal (v. 2, n. 7, jul./set. 1944) vamos encontrar a seguinte informação, tanto mais expressiva quanto se refere à capital do país: A precária situação econômica da população escolar do Distrito Federal é outro fator de alta relevância que vem dificultando a expansão do nosso sistema educativo. Mais de metade das crianças que freqüentam as escolas primárias públicas é indigente e 70% das mesmas vão receber nos referidos estabelecimentos a sua refeição básica (Grifo nosso).

Ainda com referência a esse problema da subalimentação crônica de nossas crianças, de seu estado de fome permanente, quero citar dois depoimentos. Do primeiro transcrevo o seguinte: Os exmos. srs. cavalos de corrida não dispensam os baldes cheios de precioso leite, logo pela manhã, depois da toalete caprichosa de alisamento do pêlo macio, do cabelo penteado, da crina e da cauda (desculpem-me a expressão) e das sobrancelhas (eles têm mesmo sobrancelhas?), etc.

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Por mera coincidência, o bairro em que vivem esses senhores de alta linhagem é justamente aquele em que milhares de crianças desprezíveis morrem porque não têm leite, nem tratamento adequado. Agora vamos dar a palavra ao dr. Mário Ramos, chefe, em 1941, do 4° Distrito de Puericultura da Prefeitura, que abrange os domínios do Jóquei Clube, Praia do Pinto etc. Os dados, as observações que fez referem-se àquele ano. Não acreditamos que hoje a situação tenha melhorado: Para 2.050 crianças nascidas vivas regularmente, faleceram 297 antes dos doze meses, que somadas às falecidas com doze meses completos, dão 367. Seguindo a elástica orientação, que considera a taxa de mortalidade infantil a relação matemática entre os óbitos abaixo de um ano (não incluídos os das crianças que já completaram doze meses) e mil nascidas vivas no mesmo período, encontramos que o índice de mortalidade infantil no 4.° Distrito de Puericultura da Prefeitura, em 1941, foi de 144,80 em mil. Essa assustadora mortalidade infantil é em Botafogo. Imaginem nas favelas, em Inhaúma, nos subúrbios da Leopoldina etc. Imaginem só! (De uma reportagem de A. R., no Correio da Manhã, 12/10/1947).

O segundo depoimento diz o seguinte: Nunca imaginei que no Brasil houvesse tanta fome! Eis uma que, por coincidência, foi pronunciada em ocasiões diferentes por um médico sueco e outro alemão, quando, em visita de estudos ao nosso país, tiveram oportunidade de observar o que se passa em nossas clínicas infantis. Esse fato nos foi contado pelo dr. Magalhães Carvalho, pediatra que vem dedicando especial atenção ao estudo das doenças infantis provocadas pela deficiência alimentar, tais como o raquitismo e as distrofias pluricarenciais. [...] A criança, principalmente em virtude das exigências do organismo para o crescimento, sente com mais evidência as conseqüências da alimentação. A ausência de um elemento nutritivo que pode ser suportado por um adulto, geralmente provoca conseqüências trágicas no organismo infantil, que não possui reservas. Assim, se levarmos em conta o baixo nível do consumo de alimentos fundamentais, é fácil compreender a tragédia dos clínicos infantis do Distrito Federal, onde a criança aparece como principal vítima da precária situação alimentar que atravessamos e que dia a dia se agrava. Eis um exemplo: em 1939, o consumo de leite no Brasil foi de 37 litros por habitante e, em 1949, esse consumo já insignificante baixou para 21,1 litros... Aqui, no Distrito Federal, o consumo de leite diário é inferior à oitava parte de um litro por pessoa. Se levarmos em conta que a parte da população que possui mais recursos bebe o precioso alimento em quantidade bem maior, conclui-se que o consumo nas camadas mais pobres é quase nulo. [...] O mesmo aconteceu com a carne e outros alimentos fundamentais. [...] Hoje em dia, infelizmente, a freqüência dos ambulatórios e clínicas de crianças são insuficientes para atender ao enorme número de vítimas da fome. E os números demonstram que a origem da grande maioria das enfermidades infantis reside na falta de alimentação suficiente ou adequada: 80% das crianças levadas aos médicos são vítimas, somente, de falta ou má alimentação; 15% são portadoras de outras doenças agravadas pela nutrição deficiente, e somente 5% são portadoras dos males comuns à infância. Trata-se, portanto, de um problema com aspecto nitidamente social, em cuja solução o médico pode, somente, colaborar em pequena escala. O máximo que podem fazer é curar as vítimas da fome quando se apresentam às suas clínicas em tempo de serem curadas, e, além disso, apontar as causas do mal. Isso não impede., porém, que a fome prossiga na sua tarefa de aumentar diariamente o número de suas vítimas. Estamos, portanto, diante de um problema social muito sério e que se agrava dia a dia – a alimentação. A solução não depende da medicina, mas sim da produção de alimentos em bases acessíveis a todas as camadas da população (De uma reportagem intitulada "A fome deforma e cega crianças", publicada no Diário Carioca, 30/5/1950. Grifos nossos).

Sobre o problema dos menores abandonados, declarava em entrevista recente o então diretor do Serviço de Assistência a Menores (SAM): Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Entretanto, o problema do menor abandonado no Brasil é amplo e complexo. O SAM com sua atual organização não poderá resolvê-lo. Basta lembrar que não possui capacidade para internar um número de menores superior a 7.500, no máximo, enquanto o número dos menores necessitados, só no Rio e em São Paulo, é de 180 mil (Diário Carioca, 21/7/1950).

Em relação ao mesmo problema, um dos curadores do Juízo de Menores,1 dizia há pouco, em saudação ao respectivo juiz: Chegamos à situação tristíssima de estarmos trabalhando em pura perda, no preparo penoso de processos que consomem tempo, dinheiro e energia preciosos, para a inutilidade de decisões inócuas, determinando internações que não se cumprem, fingindo cooperar na recuperação de transviados que nunca se regeneram, porque não são encaminhados aos famosos "estabelecimentos adequados", que só existem no papel e nas verbas astronômicas dos orçamentos. [...] Não é o Juízo de Menores que o informa. É o próprio SAM que, reiterada e tranqüilamente, o confessa... Da antiga cadeia de instituições que o malsinado Código de Menores previa em 1924 para a reforma dos menores transviados, quando ainda não se tinha o falso pudor de não chamar de delinqüentes, que chegaram a existir durante a judicatura apostolar de Melo Matos, e ainda se ampliaram em sentidos diversos com as de Burle de Figueiredo e Sabóia Lima, tudo o que resta hoje é apenas o Abrigo Provisório Masculino, no pardieiro remendado da Rua Francisco Eugênio, que não se apresenta absolutamente em "condições capazes de razoavelmente oferecer oportunidade de trabalho e educação" aos menores, como anuncia o seu diretor, tão freqüentes se tornam as suas fugas que já há ofícios impressos para comunicá-las (Tribuna da Imprensa, 30/11/1950).

Para terminar, queremos nos referir a outro problema, índice dos mais expressivos da situação real do Brasil atual – as condições de alimentação do povo brasileiro –, citando para isso uma correspondência recente, em que se revelavam os resultados dos estudos da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, na qual se lia: "Comparados com os outros países latino-americanos, os padrões de nutrição do Brasil são desoladoramente baixos".

1

O promotor Carlos Süssekind de Mendonça.

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CONCLUINDO

Foi diante dessa situação que procuramos descrever, utilizando dados muito gerais, e cuja gravidade não é preciso exagerar, que nos sentimos profundamente chocados com a atitude tão pouco vigilante, direi mesmo displicente, dos educadores brasileiros reunidos na X Conferência Nacional de Educação, preferindo continuar agarrados a uma formalística legislativa, estéril e inoperante, pelo receio de alguns, ignorância e incompreensão de outros, de fazerem um esforço para descer ao fundo das questões, para penetrar-lhes o verdadeiro sentido, e, o que é mais importante, agir em conseqüência. Ao invés disso, mais uma vez limitaramse a arranhar a superfície dos problemas, sem chegar a qualquer conclusão decisiva que concorra realmente para melhorar o panorama sombrio da educação e da cultura do país, que procuramos delinear, com alguns índices e depoimentos insuspeitos e irrespondíveis. Profundamente lamentável, insistimos, que os educadores brasileiros, por algumas de suas figuras mais representativas nestes meados do século 20, quando, no mundo, povos até há pouco dominados e reduzidos à miséria e à ignorância pela dominação imperialista, colonizadora, a que secularmente estavam submetidos, levantam-se dispostos a trilhar os caminhos da paz, da liberdade e do progresso, ainda uma vez não quisessem se inspirar na advertência de Juarez, a grande figura de revolucionário mexicano, quando dizia: Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Ainda que se multipliquem as escolas e os professores sejam bem pagos, sempre haverá escassez de alunos enquanto exista a causa que impede a assistência à escola... Essa causa... é a miséria geral... O homem que não pode dar alimento à sua família, vê a educação de seus filhos como obstáculo à sua luta diária pela subsistência. Elimine-se a pobreza...e a educação seguirá em forma natural... (Citado pela Revista do Clube Militar do Rio de Janeiro, n. 89, p. 28, maio/ jun. 1948).

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PARTE II

NOTA DO AUTOR Os textos que constituem esta segunda parte foram entregues à Editora Civilização Brasileira, em março de 1964. Não puderam, entretanto, ser publicados em livro em conseqüência do terrorismo cultural que o regime instalado no país, a partir de 1º de abril de 1964, desencadeou sobre a nação brasileira. Mantenho-os sem qualquer alteração, apesar de algumas passagens já não corresponderem inteiramente ao meu pensamento atual.

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O povo, quase sempre sonolento, enfastiado, enigmático, é um vasto conglomerado com muitas bocas dizendo: – Ganho minha vida, mas só ganho o suficiente para me manter em pé, e nisso gasto todo o meu tempo. Se tivesse mais tempo, poderia ser mais útil a mim e até mesmo aos meus semelhantes. Poderia ler e estudar, discutir sobre os fatos e compreender as coisas... Mas isso exige tempo... E eu só queria era ter mais tempo!... O povo é um tragicômico boneco de duas faces: herói e vilão, fantasma e gorila, contorcendo-se a lastimar-se com uma bocarra de gárgula! – Eles me compram e me vendem... E isso é um escárnio... Mas um dia perderei a paciência... De The People Yes, de Carl Sandburg (1878-1967), poeta norte-americano.

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APRESENTAÇÃO

Quase tudo o que tenho escrito sobre educação, ao longo dos quarenta anos que nos dedicamos a essa atividade (1924-1964), tem tido caráter polêmico e militante. Por isso mesmo, não nos tem sobrado tempo para produzir obra sistemática, o que seria pessoalmente mais envaidecedor, mas, sem dúvida, muito menos útil para os objetivos que sempre perseguimos. Desde que compreendemos que o artífice das transformações sociais inelutáveis é o próprio povo devidamente esclarecido, e dessas transformações depende, em cada estágio, o aumento das oportunidades do gozo dos bens materiais e culturais, criados pelos próprios homens, nosso objetivo, ao escrever sobre educação e ensino, passou a ser muito mais o de tentar esclarecer o público em geral sobre os problemas em causa do que elaborar trabalhos de caráter técnico para serem discutidos por um reduzido número de especialistas. Nesse sentido, foram os aspectos políticos dos problemas de educação e ensino que estiveram sempre na mira de minhas preocupações principais, e dentre eles dedicamos especial atenção ao fundamental, que é o de procurar demonstrar que reformas de educação e ensino não transformam a sociedade, mas, ao contrário, são as transformações sociais que, na medida em que se processam, impulsionadas por fatores básicos internos à própria sociedade, é que passam a exigir mudanças na orientação e na organização da educação e do ensino Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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para atender às novas condições criadas. Assim, cada período histórico típico produz formas de educação correspondentes à estrutura social respectiva, e é o estudo dessas formas – conteúdo, instituições, organizações e métodos – que constitui a história da educação. Mas há sempre uma forma de educação que poderemos chamar de fundamental: é aquela que faz com que o indivíduo passe a compreender a própria estrutura da sociedade em que vive, o sentido das transformações que estão se processando nela, e assim, de mero protagonista inconsciente do processo social, passe a ser um membro atuante da sociedade, no sentido de favorecer sua transformação ou, ao contrário, a ela se opor, porque ela se dará em detrimento de seus interesses. Essa conscientização em relação aos problemas sociais – que é a educação política – não coincide, assim, nem é facilitada necessariamente pelo fato de o indivíduo ter a oportunidade de adquirir instrução ou ilustração, e é por isso mesmo que podemos encontrar até entre analfabetos pessoas muito mais esclarecidas ou suscetíveis de serem esclarecidas politicamente do que entre portadores de títulos universitários. É que estes últimos podem pertencer a setores parasitários da sociedade, improdutivos e alienados, que gozam de situação vantajosa sem darem a ela uma correspondente cota de esforço, de trabalho socialmente útil, enquanto que os primeiros, através das relações de trabalho cotidiano e realmente produtivo, se põem em contato com as verdadeiras realidades sociais, que pesam sobre eles, tornando-os mais interessados nas transformações da sociedade, que se processarão em seu benefício. Assim, por exemplo, camponeses incultos poderão ser mobilizados, isto é, esclarecidos, para apoiar correntes políticas que lutam pelas transformações, que aliviarão as duras condições em que vivem, mas também beneficiarão toda a sociedade, uma vez que podem julgar com exatidão o acerto das medidas propostas, pois são exatamente os protagonistas da situação existente. Assim, educar politicamente é revelar ao indivíduo a verdade sobre o contexto social em que vive e sua posição nele, para que essa verdade exerça todo o poder mobilizador que somente a verdade possui. É por isso justamente que os setores da sociedade interessados em manter as condições existentes, de que são beneficiários, fazem o maior esforço e empregam todo o seu poderio para manter sob seu domínio a formação das novas gerações e os meios de divulgação, através dos quais canalizam a "verdade" que lhes é favorável. Lutam, assim, encarniçadamente, para não perderem o controle sobre a escola, o ensino e a educação, domesticadores das consciências, deformadores da realidade, obliteradores dos caminhos de acesso à verdade. Para o especialista em educação, interessado na educação política do povo, a tarefa fundamental será pois a de esclarecê-lo sobre as razões pelas quais a maioria da população do país não consegue sequer deixar de ser analfabeta, enquanto que apenas uma ínfima minoria tem condições para atingir os mais altos estágios do ensino. As causas dessa situação, entre nós, residem na própria estrutura econômico-social do país, atrasada, subdesenvolvida, onde a maioria da população ainda vive ou apenas sobrevive de uma atividade agrária com as características de épocas ultrapassadas, onde não há, pois, condições para que

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floresçam aspirações culturais mais altas, onde uma simples escola primária é na realidade impossível de ser devidamente estabelecida, pois que não corresponde a qualquer necessidade realmente sentida por essas populações economicamente marginalizadas, que a não poderiam freqüentar regularmente, mesmo no caso de haver recursos disponíveis para estabelecê-la com eficiência. A falta de educação política leva também muitos administradores desavisados a se comprometerem com planos mirabolantes de alfabetização, que se tornam demagógicos, defraudadores das minguadas verbas existentes, uma vez que a estrutura econômico-social permanece inalterada. Nessa ordem de idéias, por exemplo, é importante alfabetizar, especialmente se a operação for acompanhada da necessária educação política, que revela as causas da situação em que se encontram as populações analfabetas. É claro que a reação, isto é, os interessados em manter as condições existentes, se lançará raivosa contra esse propósito, condenando, como vem fazendo entre nós, um método de alfabetização apenas porque ele procura se basear em dados da situação real dos educandos e no estudo dos grandes problemas nacionais. A reação, como dissemos, deseja manter a alfabetização sob seu controle, para ministrá-la de maneira formal, sem esclarecimento, para preparar eleitores de cabresto e leitores dóceis para as publicações dos Ibads, que não venham a ameaçar a estrutura social vigente. Muito mais importante, porém, é mobilizar os milhões de analfabetos para obterem o direito de voto, com que derrubarão as oligarquias opressoras e marcharão para uma organização social mais justa, que lhes permitirá ter aspirações culturais mais altas. Contra essa medida, a reação se levanta ainda com maior vigor, pois sabe o efeito desastroso que ela terá para o seu controle sobre grandes camadas das populações mais oprimidas. E até frases de efeito já foram cunhadas para embair fanáticos seguidores de chefes obscurantistas, como esta típica de um especialista em embustes literários dessa espécie: "Sou contra o voto ao analfabeto porque sou a favor da escola para o analfabeto". A participação imediata do analfabeto na vida política da nação apavora essa gente: o iletrado deve primeiro passar pela escola domesticadora da reação, o que lhe será concedido no devido tempo, a longo prazo evidentemente, para que a "ordem" constituída não seja abalada por essa incursão inopinada de bárbaros ignaros nos jogos florais do processo político nacional. No mesmo sentido, importante é lutar por uma lei básica de educação, o mais avançada possível, mas muito mais importante é mostrar por que se torna impossível obter uma lei nacional de educação verdadeiramente progressista com a estrutura social vigente, onde o atraso propicia o domínio do obscurantismo, do privatismo e do negocismo na educação e no ensino. Importante é conseguir melhores condições para o ensino superior, principalmente nos setores mais atrasados em relação às áreas de maior desenvolvimento do país, muito mais importante, porém, é fazer com que o estudante universitário compreenda que uma verdadeira reforma da universidade só será possível com a transformação da sociedade num sentido mais democrático, o que possibilitará ensino de melhor qualidade e o tornará acessível a um maior número. Assim esclarecidos, os setores sadios da mocidade se engajarão na luta de todos os patriotas pelas transformações sociais. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Essa tem sido a orientação de nossa pregação, nem sempre muito bem compreendida, até mesmo por colegas de ofício dos mais ilustres. Por isso mesmo, quase tudo o que temos escrito não figura nas publicações oficiais e só raramente aparece mencionado em bibliografias, apesar de termos feito toda a nossa carreira de professor e educador sempre dentro do ensino público, no curso da qual tivemos a oportunidade de exercer alguns cargos de relevo, na administração pública, municipal, estadual e federal. Isso, aliás, nunca nos preocupou ou surpreendeu, pois, como dissemos de início, nosso objetivo foi sempre mais o de nos dirigir ao público, para esclarecê-lo, e isso em linguagem necessariamente simples, e até mesmo popular, do que produzir trabalhos de cunho altamente técnico, para apreciação de um reduzido número de especialistas, com o destino final de figurar nos verdadeiros sarcófagos que são as revistas técnicas de educação. ••• É com esse mesmo propósito que reunimos agora em volume uma série de trabalhos, os quais, com exceção do Capítulo 13 ("O valor do estudo da história", tema aliás de grande relevância, mas que é tratado aqui tendo em vista apenas principiantes), já foram publicados em órgãos da imprensa não especializada.

Março de 1964 P. L.

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CAPÍTULO I

A PROBLEMÁTICA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

A problemática da educação brasileira (para usar a expressão em moda), assim como a dos países de estrutura econômico-social semelhante, pode ser esquematizada da seguinte maneira: 1. Nasce uma criança em zona rural longínqua, em família onde a miséria reduz as criaturas a condições subumanas, no limite da sobrevivência. Se essa criança não morre, pois as taxas de mortalidade nessas áreas são das maiores do mundo, vai engrossar, sem dúvida, os milhões de doentes, famintos e analfabetos, que constituem a maioria da população brasileira. 2. Nasce uma criança na cidade, numa família pobre, numa favela ou num mucambo, por exemplo. O alimento é escasso e a "moradia" péssima. O produto, que já nasce fraco, tende, naturalmente, a deteriorar ainda mais. As oportunidades são, desde o início, muito reduzidas: o meio inculto não estimula a educação e o ensino, ao contrário. O "orçamento doméstico", mera figura de retórica, exige o trabalho precoce das crianças, que ficam sem formação e sem profissão definida, abandonadas, resvalando, na maioria dos casos, para a delinqüência, para o crime, criando o grave Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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problema do "menor abandonado", que tanto amargura as pessoas caridosas. Na escola, quando elas as freqüentam, todas essas condições de inferioridade social explodem: freqüência esporádica, pouco aproveitamento, repetência, abandono dos estudos, mal alfabetizadas, pois o estudo regular é uma atividade acima de suas condições sociais, para desassossego, porém, das pobres professoras, para as quais essas crianças sujas, irrequietas, insubordinadas, são o terror das salas de aula. Certos "administradores" de ensino, porém, encontram no arsenal da "técnica" pedagógica a "solução" para o problema, com a chamada "promoção automática", fórmula milagrosa pela qual se "promove" quem não aprendeu... 3. Nasce uma criança numa família operária, onde todos têm que trabalhar para fazer face às despesas sempre crescentes) que não chegam a cobrir o mínimo das exigências da manutenção decente de uma vida humana. A criança é mandada à escola e aí mantida com grandes sacrifícios. Alfabetiza-se, mas deve trabalhar o mais cedo possível, e abandona a escola com um curso elementar precário. Às vezes, volta a estudar, talvez num curso noturno ou já como aprendiz, e consegue chegar até uma profissão semi-especializada. E volta a repetir o ciclo de vida dos pais, num trabalho duro, a vida inteira: sai de madrugada, de marmita fria, enfrenta uma condução cara e difícil, pois mora em subúrbios longínquos, e volta extenuado em horas tardias. Aos domingos, tem o futebol ou o cinema americano; e há também o samba no rádio de pilha e o carnaval. 4. Nasce uma criança em família de classe média. Com maior ou menor esforço, dependendo do nível econômico muito variável, a criança é mantida na escola até os mais altos estágios possíveis: pode chegar até o fim dos cursos médios e muitas vão mesmo até os cursos superiores. Cheias de preconceitos quanto ao trabalho, essas famílias procuram encaminhar os filhos, de preferência, para o funcionalismo, para as profissões de escritório ou para as carreiras militares, para as atividades de "mãos limpas", enfim; sempre, porém, sonhando com o diploma e o anel de doutor. De qualquer forma, o destino dessas crianças é executar "serviços" em profissões "leves e decentes" e consumir o produto do trabalho duro e pesado das outras famílias, que mal puderam se alfabetizar ou ficaram totalmente analfabetas, no campo e na cidade. Aferradas a uma vida limitada, cheia de ilusões, preconceitos, desenganos e frustrações, constituem a massa de manobra dócil às pregações dos demagogos retrógrados, de palavra fácil e idéias curtas, que prometem "moralizar" a vida pública, passar a limpo o país, ou até mesmo fazer "a revolução pela escola", livrando essas pessoas. decentes das arremetidas das hordas ignaras, dirigidas por "comunistas", que ameaçam sua tranqüilidade, seu Deus, sua pátria, sua família. 5. Nasce uma criança numa família da classe rica, dominante, detentora dos meios de produção. Bem, aí não há problema da espécie daqueles que

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esmagam as outras classes. Os cursos superiores são evidentemente privilégio dessas crianças, pois mesmo as que não se revelam capazes, são empurradas para obter os diplomas e os anéis, no país ou no estrangeiro, pelos mais variados métodos que á riqueza sabe usar, pois tudo é mercadoria e o realismo dessa classe não conhece preconceitos. E se alguns rebentos insistem, por esnobismo, em desprezar os diplomas e os anéis, há a qualificação do dinheiro, que é a mais sólida, há a gerência dos negócios da família, há os casamentos de conveniência. E há sempre a dolce vita, que é o objetivo final e mais alto dessas classes. O importante, porém, é conservar a riqueza e para isso é preciso manter o domínio sobre os que trabalham e a produzem: o dinheiro elege "representantes do povo", que fazem ou impedem que as leis se façam; o monopólio dos meios de informação e propaganda martelam continuamente que esta é a civilização "democrática, ocidental e cristã", que é preciso manter a todo o custo; para os que não se mostram suficientemente convencidos das virtudes dessa "civilização", há o aparelho de repressão, para os quais as verbas são sempre mais liberais do que as de educação. Antes diziam até que contavam também com o apoio incondicional das igrejas cristãs, mas hoje muitos dignitários delas já afirmam, cada vez mais decididamente, que não têm qualquer responsabilidade pelo cristianismo dessa "civilização". Assim, a uma pirâmide que tem por base os milhões dos sem-terra, famintos, doentes, esfarrapados, e que se continua por outros milhões de assalariados, terminando por um milhão e meio de capitalistas e fazendeiros, corresponde a pirâmide escolar que, deixando desde logo cerca de 50% sem qualquer possibilidade de ensino, permite apenas a ascensão de pouco mais de cem mil aos cursos superiores. Esse esquema não é teórico e ainda menos literário. Em pesquisa realizada recentemente sobre as condições de vida de 1.108.200 famílias da região denominada "Grande Rio" (compreendendo o Estado da Guanabara, Niterói, São Gonçalo, Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti), o Ibope apurou o seguinte, em resumo:

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Sobre a última categoria, diz a pesquisa: "Difícil é saber como sobrevive a classe chamada pobre inferior, pois sua única saída repousa no círculo vicioso de pequenos empréstimos que realiza" (Correio da Manhã, 11/8/1963). Observe-se que esta é uma das duas zonas mais ricas e, portanto, mais cultas do país. Evidentemente, já não é mais possível tentar fazer crer a essas pessoas que sua situação é obra da fatalidade, do destino de cada uma, traçado de fora e de cima, ou que decorre da incapacidade inata de cada indivíduo, ou ainda, simplesmente, que provém da sorte cega atuando ao acaso na distribuição da riqueza, da inteligência, da miséria ou das oportunidades. Cada vez é maior o número de pessoas inconformadas, insubmissas, que se fazem estas perguntas simples e incômodas: por que aqueles que trabalham e produzem, que constituem a maioria absoluta das pessoas, são justamente os que têm menores ou até mesmo oportunidades nulas de desfrutar os bens da vida, do progresso e da civilização por eles mesmos criados? Por que aqueles que simplesmente acumulam a riqueza, fruto do trabalho alheio, uma ínfima minoria, têm acesso ilimitado a todos esses bens que não criam? Reconhecemos que essas indagações são tremendamente "subversivas" para a minoria privilegiada. Mas, que fazer se o homem, como ser racional, diante de uma situação tão ilógica, teria, fatalmente, que encontrar a chave do mistério independentemente de qualquer filosofia? A conclusão é, pois, óbvia: tudo o que não visar à transformação da estrutura do sistema social que condiciona a distribuição das oportunidades de educação e ensino é atividade superficial, marginal, quando não conscientemente diversionista, criadora de ilusões ou grosseiramente demagógica, como a "revolução pela escola" de certos governadores eleitos pelos equívocos da classe média atemorizada. E, em certo sentido, mesmo que se queira ficar simplesmente no terreno da técnica pedagógica, que constitui os antolhos de muitos educadores, está-se apenas aumentando os privilégios dos já privilegiados, e ainda que isso possa repugnar à consciência dos educadores; na prática, estáse escarnecendo daqueles milhões de espoliados e servindo aos aproveitadores da "farsa democrática", que é o regime em que vivemos. E se certos educadores, até de grande responsabilidade, ainda têm dúvidas a respeito, e continuam sem saber quem nasceu primeiro, se a galinha ou o ovo, é só perguntar à sua lavadeira, que mora no morro, por que o filho, ao invés de estar na escola, vem trazer a trouxa de roupa para os nossos irem à universidade, e ela responderá irônica, com toda a simplicidade: "Ora, doutor, então o senhor não sabe que pobre não tem vez?".

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CAPÍTULO II

ANALFABETISMO E SUBDESENVOLVIMENTO

Se há um problema em que exista uma perfeita unanimidade de opinião entre pessoas das mais variadas condições sociais e níveis de cultura é o da educação, do ensino, da instrução, da escola. Não há quem não julgue, na maior boa fé, que o problema fundamental do país, chave para a solução de todos os outros, é o do ensino, da instrução escolar. Esse pensamento recebeu a expressão mais radical na célebre conferência feita por Miguel Couto, na Associação Brasileira de Educação, em 2 de julho de 1927, da qual resultou um folheto com este título: "No Brasil só há um problema nacional: a educação do povo". Na parte final, podiam-se ler estas ingenuidades: A educação do povo é o nosso primeiro problema nacional; primeiro, porque o mais urgente; primeiro, porque solve todos os outros; primeiro, porque, resolvido, colocará o Brasil a par das nações mais cultas, dando-lhe proventos e honrarias e lhe afiançando a prosperidade e a segurança; e, se assim faz-se o primeiro, na verdade se torna o único.

Não obstante tal unanimidade de opiniões, é estranho que ainda hoje estejamos tão longe, já não digo de proporcionar ensino primário à maioria das crianças na idade escolar própria, mas simplesmente de fazer baixar os índices de analfabetismo, de maneira significativa, na população em geral.

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É verdade que esses índices vêm decrescendo, na proporção do desenvolvimento do país, conforme demonstra o quadro abaixo, mas, como se vê, ainda estamos atualmente com taxas próximas de 50%, para o país em seu conjunto:

Muitas campanhas, cruzadas, movimentos etc. têm sido organizados, e agora mesmo lança-se uma "mobilização geral" contra o analfabetismo, pretendendo-se erradicar esse "flagelo", em prazo marcado, com dispêndio de bilhões de cruzeiros. Bastaria, porém, que essas pessoas de boa fé se dedicassem ao passatempo de alinhar as taxas de analfabetismo dos diversos países do mundo, na ordem de seu desenvolvimento econômico, avaliado por qualquer dos critérios geralmente utilizados para esse fim, e imediatamente descobririam a verdade simples de que instrução, oportunidades de educação, possibilidades de cultura, índices de saúde, taxas de mortalidade etc., guardam, como não poderia deixar de acontecer, uma perfeita correlação com os índices de desenvolvimento econômico. E nem precisaríamos sair do país para fazer tal constatação elementar: bastaria comparar esses mesmos índices relativos a Estados do Nordeste com os do Sul do Brasil, por exemplo. E assim teríamos, ante a verdade dos fatos, simplesmente de inverter a fórmula de Miguel Couto, por mais sedutora que pareça aos educadores: no Brasil, como em todos os países subdesenvolvidos, só há um problema – liquidar o subdesenvolvimento. Isso que os educadores, em geral, têm tanta dificuldade em compreender, naturalmente por uma deformação profissional, é conceito banal entre os economistas. Entre nós, um dos mais ilustres formulou de maneira muito clara esse problema, quando fazia incursões pelo campo da educação, apesar de que suas conclusões tiveram muito pouca influência sobre os educadores, aliás de grande nomeada, que o

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chamaram a colaborar na formulação de soluções para os problemas de ensino que os preocupavam. Refiro-me ao doutor Américo Barbosa de Oliveira, que num trabalho intitulado "Educação, um investimento a longo prazo", publicado na Revista Econômica Brasileira (v. 3, n. 3-4, 1957), diz o seguinte, colocando a questão de maneira singela e exata: O problema educacional do Brasil emerge do seu quadro demográfico e da condição de subdesenvolvimento da sua economia. País com 26% da população dentro da faixa da infância de 5 a 14 anos, quando os Estados Unidos têm apenas 16%, a Inglaterra e os principais da Europa 13%, é natural que sinta o drama da educação com maior intensidade, tanto mais que os recursos financeiros para atender a essa enorme massa infantil são muito mais escassos do que nos países desenvolvidos. É claro que o Brasil não está isolado nessa posição incômoda. Todos os países subdesenvolvidos encontram-se em situação semelhante, refletindo suas condições na estatística de analfabetos, na escolaridade insuficiente, na sobrecarga que pesa sobre o corpo docente, apesar de aplicarem em educação percentagem mais elevada da renda nacional do que os povos mais desenvolvidos. Com efeito, enquanto os países avançados não empregam mais de 12% do seu orçamento público em despesas com educação, há povos como o Ceilão, Filipinas e Guatemala que investem mais de 20% e nem por isso atingem o nível de qualidade e quantidade da instrução daqueles países líderes, pois a percentagem maior não impede que, em valores absolutos, per capita, os recursos ,a aplicar atinjam apenas a 1/5 ou 1/10 dos aplicados pelos países mais desenvolvidos. Vemos, pois, que as condições de instrução de um povo, como também as de saúde pública, são corolários do nível de vida, sendo este junção do desenvolvimento econômico da coletividade. Assim, o nível educacional e também sanitário de um povo depende do grau de desenvolvimento que tenha alcançado a sua economia. Como o problema do desenvolvimento está hoje satisfatoriamente estudado, os educadores e sanitaristas tomaram consciência, tanto quanto nós outros, de que sem promover o desenvolvimento econômico do país não se poderá solucionar o problema do setor específico em que atuam. Embora a educação ou a saúde pública sejam fatores necessários ao desenvolvimento econômico, isso não significa que constituam a mola desencadeadora do processo de desenvolvimento, a ponto de justificar a absorção de recursos excessivos em prejuízo de investimentos em indústrias, transportes, maquinaria agrícola, abastecimento de energia elétrica etc. A hierarquização de todos os elementos em jogo é objeto dos estudos de desenvolvimento de que se ocupam hoje todos os países, como um imperativo do progresso e do bem-estar dos povos. É necessário definir bem o papel da educação no processo de desenvolvimento para chegarmos a um ponto de vista comum quanto aos objetivos e às limitações de uma política nacional nessa importantíssima matéria. O problema fundamental da coletividade brasileira é o desenvolvimento. Se este marcha bem, os outros problemas vão encontrando solução. Se o desenvolvimento estanca, todos os problemas se agravam e a própria ordem social periga. [...] É sabido que os governos de Cuba, Porto Rico, Ceilão e outros foram induzidos [Por quem, seria interessante verificar...] a fazer grandes investimentos em saneamento e educação, desviando-se assim das inversões estatais em setores básicos que teriam sido a chave para o desenvolvimento de seus países. Existe um perigo constante de exagero dos investimentos em educação e saúde em prejuízo dos outros setores: isto porque, sendo praticamente ilimitadas as necessidades essenciais desse tipo nos países subdesenvolvidos, há campo emocional para cobrir a demagogia com a

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bandeira do interesse público, conferindo títulos de benemerência aos artífices voluntários ou involuntários da estagnação econômica (Grifos nossos).

Aí está a questão posta em termos claros, simples e precisos. A luta fundamental do povo brasileiro deve ser, no momento, contra o subdesenvolvimento, isto é, contra todas as forças internas e externas que querem manter o país na situação de miséria e atraso para a maioria da população, situação essa que conduz exatamente ao analfabetismo, à incultura, à subalimentação, à doença. Essas forças internas e externas que espoliam o nosso povo e impedem o desenvolvimento do país vão sendo aos poucos identificadas pelo povo, mesmo analfabeto, e cabe aos intelectuais, aos educadores, aos professores, ajudá-lo nessa tarefa e não se lançarem em campanhas diversionistas, que nada modificam a situação fundamental do país em conjunto e, o que é mais grave, desviam os recursos escassos com que o país conta para atender às despesas com a solução dos problemas básicos, tais como o da industrialização e da liquidação do latifúndio improdutivo. Não é por acaso que todos os programas de "ajuda" estrangeira, especialmente norte-americanos, tais como o Ponto IV e a chamada "Aliança para o Progresso", são meramente assistenciais e culturais, pois na realidade visam apenas dar ao nosso povo maior ânsia pelos bens de consumo, sem resolver qualquer problema de estrutura, o que nos libertaria dessa humilhante condição de eternos vendedores de produtos primários, cujos preços caem continuamente, e compradores de quinquilharias, de objetos de conforto, de máquinas, aparelhos e instrumentos, acima de nossas possibilidades reais, que nos são vendidos por preços sempre mais elevados. É uma "assistência" de construtores de latrinas, como muito bem definiu Ernesto Che Guevara na Conferência de Punta del Este. O problema fundamental do Brasil é, pois, a luta contra o imperialismo,contra os trustes e monopólios, que nos espoliam, é a luta contra o latifúndio e pelo acesso à terra aos que nela realmente queiram trabalhar. Essa é a grande obra de educação e esclarecimento que o nosso povo está a exigir de seus educadores e professores e não planos utópicos de "erradicação" do analfabetismo em prazo certo, com o dispêndio de bilhões, numa campanha demagógica e improdutiva que a nada conduzirá de efetivo. O analfabetismo, que tanto preocupa os nossos educadores e as pessoas simples, como uma verdadeira obsessão, por mais que isso os escandalize, não é, em absoluto, problema pedagógico. É problema econômico, social e político e que só poderá ir encontrando a solução que todos almejam à medida que se modificar a estrutura econômica do país, atrasada, subdesenvolvida, ou distorcida em seu desenvolvimento, o que impede exatamente que milhões de brasileiros possam aspirar aos benefícios da instrução e da cultura, possam ascender a um padrão de vida verdadeiramente adequado às condições de criaturas humanas. Aos educadores, ao contrário do que geralmente fazem, atendendo aos acenos para elaborar "planos de educação" sem qualquer base na realidade, cabe se recusarem a participar dessas farsas ingênuas e exigir que sejam verdadeiramente

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encaminhadas as soluções dos problemas básicos do país, para que possam honestamente colaborar nos setores que lhes dizem respeito e que dependem diretamente daquelas soluções, conforme vimos. Infelizmente, porém, a maioria dos nossos educadores, como representantes de uma classe média alienada, vive patinhando em seus probleminhas de metodologia ou em suas reforminhas utópicas, e, sob o domínio da ideologia das classes dominantes, interessadas em manter o país na situação em que se encontra para continuar a explorar tranqüilamente o nosso povo, dá-lhes ainda a cobertura para uma agitação demagógica, cujo fim e resultados exclusivos é enganar o povo e frear seu ímpeto e sua disposição de não mais aceitar a situação em que vive. Assim, poderíamos parodiar, às avessas, um conceito célebre de que educação, instrução, ensino, são problemas sérios demais para serem entregues à direção de educadores, pois estes, na sua quase totalidade, precisam, antes de tudo, ser educados... Educação será sim o nosso primeiro problema nacional, como queria Miguel Couto, se for compreendida como um grande movimento de esclarecimento do nosso povo, inclusive dos analfabetos, para que demonstrem seu inconformismo com a situação em que ainda vegetam milhões de brasileiros, no sentido de se unir para libertar o país dessa situação insustentável de miséria, de atraso, de subdesenvolvimento, enfim, causa única de todos os nossos males. E o povo brasileiro acaba de demonstrar que está maduro para isso e irá às últimas conseqüências para obter rapidamente sua completa libertação.

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CAPÍTULO III

O ENSINO E A PREPARAÇÃO PARA O TRABALHO

Depois do analfabetismo, o outro "cavalo de batalha" dos educadores e de outras pessoas desprevenidas e de boa fé, é o problema do "ensino profissional". O grande mal do Brasil, dizem, é não haver ensino profissional suficientemente difundido, para os filhos dos outros, naturalmente... Sem isso, não teremos progresso, não teremos indústria, pois, para essas pessoas simples, o ensino profissional é que faz a indústria, quando o que acontece é exatamente o contrário: só pode haver ensino profissional, em nível médio e superior, generalizado e devidamente organizado, quando a indústria está solidamente instituída. Tive a oportunidade de travar contato pessoal e direto com esse problema, já em 1928, quando fiz parte da equipe da Reforma Fernando de Azevedo no antigo Distrito Federal. Por essa reforma, o ensino profissional foi elevado ao nível médio e, como resultado, as antigas escolas profissionais não mais recebiam alunos: provindos das classes operárias e menores desamparados, mas passaram a formar os filhos das classes médias para atividade de nível mais alto, de escritório, funcionalismo público, civil e militar, para profissões white collar, enfim, apesar de obrigarmos os alunos a freqüentar oficinas em cerca de metade do horário escolar. O mesmo aconteceu mais tarde, na administração Pedro Ernesto-Anísio Teixeira (19311935), quando tentamos reorganizar essas escolas Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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como "escolas compreensivas", com todos os cursos de nível médio, inclusive com os chamados "cursos secundários", de preparação para o ensino superior, reformados pela lei Francisco Campos, de 1931. Ao lado disso, experimentavam extraordinário sucesso os cursos noturnos de continuação e aperfeiçoamento, que organizei e dirigi, nessa mesma época, os quais, recebendo alunos de todos os níveis, proporcionavam cursos de acordo com os interesses de cada um a partir dos conhecimentos que demonstravam, mesmo de grau primário, que, aliás, era o caso mais comum. Enquanto isso, o Ministério da Educação empenhava-se numa política de criar escolas técnicas ou industriais, de instalações caríssimas, e assinava convênios com os Estados Unidos para aperfeiçoamento de professores dessas escolas, através de um organismo especial (a CBAI), investindo nessas iniciativas amplos recursos. Os resultados dessa política inadequada foram ridículos, o que se demonstra pelos seguintes números relativos à matrícula nas várias modalidades de ensino médio:

Assim, praticamente, não há formação profissional em nível médio para a classe operária brasileira: ela é recrutada entre nós ainda entre os analfabetos e entre os que apenas freqüentam os primeiros anos do curso primário e o abandonam, na tremenda evasão escolar que é também uma das características dos países subdesenvolvidos – o treinamento é todo feito no próprio trabalho. Quanto ao trabalhador agrícola, é constituído na sua quase totalidade pela massa de analfabetos, que, não obstante sustentar toda a nossa incipiente estrutura agrária, está excluída da cidadania brasileira pois nem sequer goza do direito de voto. Num estudo de Conjuntura Econômica (ano IX, n. 10, outubro de 1955) intitulado "Mãode-obra de menores na atividade agrícola", mostra-se que a instrução escolar é incompatível com o estágio atual da economia agrária brasileira e

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[...] a intensidade da mão-de-obra de menores no meio rural é reflexo de um estágio econômico e não se pode pretender eliminá-lo substancialmente, na fase atual da economia brasileira, encaminhando-se os meninos e meninas, centenas de milhares de pequenos agricultores, exclusivamente para as escolas.

Refere ainda que um estudo da Sociedade Rural Brasileira que tentava conciliar o trabalho da criança com o comparecimento às escolas e um projeto de código rural sobre a questão do trabalho feminino de menores não puderam ser levados à prática. Paralelamente a tudo isso, o extraordinário sucesso do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) apesar de organizado no interesse patronal, demonstra que ainda não estamos, a não ser excepcionalmente, no estágio de formar operários em escolas de nível médio propriamente dito, e que constitui desperdício de recursos insistir nessa orientação. De passagem, cabe uma referência à "solução" verdadeiramente "genial" que a chamada "lei de diretrizes e bases da educação nacional" pretendeu dar ao problema, adotando a denominação de "ginásios industriais" para essas escolas profissionais de nível médio, numa espécie de técnica do sofá às avessas, pois a luminosa idéia é a de que com essa denominação os adolescentes procurarão em maior número essas escolas ao invés de se dirigirem para os "ginásios de letras"! Um educador que teve a oportunidade de baixar de suas altas elucubrações pedagógicas para um contato vivificador com a produção industrial concreta e que foi o verdadeiro consolidador da obra do Senai – o doutor Joaquim Faria Góes Filho - nos dá uma informação completa e definitiva sobre esse problema, através de um pequeno trabalho, depois do qual ninguém tem mais o direito de insistir nessa política errada, dilapidadora de recursos, que tem sido seguida até aqui pelo governo federal através de seu esclerosado Ministério da Educação e Cultura. Refiro-me ao opúsculo intitulado "Produtividade – Aspecto educacional" (Cadernos de Ciências Sociais, n. 3), editado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil (Rio de Janeiro, 1960). Diz ele, confirmando o que tivemos a oportunidade de verificar pessoalmente e vimos afirmando há muito tempo, em todas as ocasiões: O método que adotamos no passado, e em grande parte em nossos dias, na criação de órgãos de formação de mão-de-obra tem sido sentimental e político. Partimos do consenso de que uma escola de operários ou de engenheiros será sempre um agente de progresso e uma fonte de bem público. O pressuposto das antecipações transformadoras provou ser falso. É que a escola de tipo profissional é antes uma resultante imperiosa do processo de industrialização do que uma antecipação precursora. O equívoco da transposição é grave, entretanto, dado o elevado custo daquele tipo de ensino. É convencido de tais circunstâncias e fatos que defendemos, em matéria de formação de mão-de-obra, uma política estritamente realista.

Daí o autor parte para "o uso das empresas na formação de mão-de-obra", chegando a algumas conclusões simples e realistas, tais como: [...] 80% dos obreiros necessitam, como mostramos, de treinos em serviço de curta duração, cujo rendimento dependerá sobretudo do grau e da qualidade da escolaridade primária que

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tiver recebido anteriormente. [...] A escola que os deverá ensinar não é a profissional, mas a primária de longa duração. Por isso é que não temos dúvida em afirmar que a escola primária passou a ser uma das principais escolas de formação de operários dos nossos dias.

Essa é a política realista, porque certa, que temos que adotar na matéria, mais uma vez abandonando as utopias oriundas da falta de contato com o problema concreto. O caminho a seguir será o do desinteresse ostensivo do governo federal, no presente estágio de nosso desenvolvimento, pelo ensino médio tradicional, pois a freguesia desses cursos, pelo próprio fato de o ter atingido, não quer nada com o trabalho, não deseja "sujar as mãos" e dispõe de meios para fazer suas experiências de "ensino para nada", de "cuspe e giz", isto é, de saliva do professor e quadro-negro, como acertada e pitorescamente o definiu certa vez um professor no sindicato da classe. Os recursos disponíveis seriam então concentrados no verdadeiro ensino de preparação para o trabalho, a partir do nível primário, em cursos em cooperação com a indústria, com as empresas estatais e com os sindicatos operários, numa ampliação e aperfeiçoamento do sistema instituído pelo Senai e completado com um amplo serviço de assistência aos filhos das classes menos favorecidas. Tudo isso seria supervisionado por um Conselho Nacional de Preparação para o Trabalho, que funcionaria melhor junto ao Ministério do Planejamento Econômico do que no viciado Ministério da Educação e Cultura. Um exemplo concreto do que poderia ser feito imediatamente seria abrir a Escola Técnica Nacional aos cursos de continuação e aperfeiçoamento, de todos os níveis, saindo do formalismo dos exames de admissão tradicionais e dos cursos padronizados, para receber os adolescentes, especialmente em cursos vespertinos e noturnos, a partir do nível de conhecimento que apresentassem e dos interesses que demonstrassem, transformando-se numa verdadeira universidade operária, onde poderia ter sede o Conselho Nacional de Preparação para o Trabalho. Quando países de alto nível de desenvolvimento industrial voltam-se cada vez mais para uma educação mais ligada ao trabalho produtivo, que é a verdadeira educação, poderíamos desde já procurar trilhar o caminho certo, desestimulando, como dissemos, o "ensino" que visa apenas dar aos filhos das classes dominantes o direito de não participarem da produção, mas de se prepararem para explorar e gozar dos frutos do trabalho alheio, do esforço das classes trabalhadoras, que produzem a riqueza mas dela não participam ou participam em escala muito reduzida. Esta seria a política verdadeiramente popular e democrática em matéria de preparação para o trabalho.

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CAPÍTULO IV

O PROBLEMA DO ENSINO SUPERIOR

Para que o ensino superior saia do impasse em que mergulhou entre nós, é necessário, em primeiro lugar, que se livre o conceito de universidade de qualquer deformação de caráter metafísico ou mesmo místico. Universidade é uma instituição de ensino, da transmissão de cultura, como qualquer outra. Apenas, nela se ensina, transmite-se e deve-se aprender o conhecimento do mais alto nível existente no momento, e como os conhecimentos estão sempre em desenvolvimento, é indispensável colocar na base do ensino também a própria elaboração do conhecimento – a pesquisa –, para que a instituição não se fossilize. Além disso, faz-se nela a formação profissional de grau mais avançado. Essa trilogia – elaboração do conhecimento, transmissão e formação profissional – constitui uma unidade, pois o conhecimento provém da prática, evolui para a teoria e é verificado de novo pela aplicação (prática). Essas funções, porém, podem ser realizadas, até mesmo com vantagem, em institutos isolados; é essa, aliás, a tendência dominante atual, e nisso não há qualquer quebra de unidade na formação, que se realiza por outras maneiras na era da especialização. Não é a coexistência numa mesma área, num mesmo campus, de prédios e instalações, laboratórios e bibliotecas que faz brotar o espírito universitário. Pode haver tudo isso com extraordinária riqueza ao lado d uma pobreza chocante Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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quanto a uma concepção geral do mundo "universidades" que funcionam como riquíssimas empresas privadas onde se adquire o espírito individualista mais feroz. E entre nós, por exemplo, fazem-se mais e melhores pesquisas, com apurado espírito científico, no Museu Nacional, no Jardim Botânico, no Instituto Oswaldo Cruz, no Conselho Nacional de Pesquisas, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e em outras instituições semelhantes que funcionam em vários pontos do país, do que em nossas universidades. Essa idéia metafísica de espírito universitário provém da origem da instituição, na Idade Média, onde uma unidade relativamente simples, em face do pouco avanço dos conhecimentos, começou a s opor à camisa-de-força da escolástica, constituindo-se a universidade como uma corporação como as outras, apenas de professores e alunos – universitas scholarium et magistrorum –, e recebendo então denominação de studium generale, isto é, instituto de cultura geral e não local, para toda a cristandade. Somente no século 14 passou a denominar-se universitas e daí a confusão com a universalidade de cultura. Desde o início, como dissemos, em oposição à decadente escolástica medieval, as universidades incorporaram o ensino das ciências, que se desenvolviam por influência da cultura árabe, e a formação profissional, especialmente em medicina (Salerno), direito (Bolonha), artes liberais e teologia (Paris). Daí em diante, as universidades foram se transformando, ao impacto das transformações sociais, modificando-se em sua organização, corno se deu no Renascimento, na época das Luzes, e depois, com o desenvolvimento das ciências e das técnicas modernas. Assim, sem qualquer ranço medieval, a universidade é hoje apenas uma instituição de ensino superior, que se organiza de acordo com as conveniências da época e do país, e da situação concreta a que pretende servir. Como qualquer instituição de ensino, sua transformação é, porém, sempre mais lenta do que a que está se processando na sociedade a que serve, pois as instituições escolares tendem sempre a acentuar o papel de conservadoras da cultura estabelecida, que lhes determina a classe dominante, para sua tranqüilidade e defesa, pois seria suicídio criar e manter em seu seio "víboras" que ocasionassem sua própria destruição. E é nessa decalagem que está a origem de todo o mal-estar que os estudantes progressistas sentem em relação à instituição e a maioria de seus professores, que defendem naturalmente – em nome da classe que representam e que os nomeou guardiães – a cultura oficial, e os pune severamente se tentarem traí-la. A conseqüência disso é que é utópico pensar ser possível transformar de fond en coble a universidade sem que se dê primeiro a transformação social, que vai, esta sim, exigir a completa modificação da estrutura universitária. Mas o que acontece e sempre aconteceu é que, nos períodos de transição, nos quais a própria sociedade já adquiriu a consciência das transformações que estão se processando e o sentido para o qual tendem, é possível adotar soluções tópicas, parciais, que encaminham essas transformações. Como sempre se deu também, em todas as épocas, as idéias de transformação e seus pregoeiros não podem, naturalmente, de início, pretender a aceitação pacífica dentro das instituições tradicionais: são idéias "revolucionárias" de agentes "subversivos", como sempre foram considerados, em todos os tempos,

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pela ordem estabelecida, e para estes houve no passado fogueira medieval e há a polícia política dos nossos tempos. Mas, nessas soluções tópicas, parciais, as únicas que julgamos possíveis, é preciso ter em vista uma questão que é muito bem colocada no estudo que acompanha as "Bases fundamentais da reforma do ensino superior" de Cuba (em Informações de Cuba, n. 4, 1962), onde se lê: Convém advertir, para evitar errôneas interpretações por parte de nossos irmãos da América Latina, que os princípios da reforma universitária cubana partem da realidade de universidades saneadas, de cuja direção participam, como membros ativos, estudantes e professores. Algumas de nossas normas resultariam negativas ou prejudiciais em países onde as universidades não são atendidas e apoiadas eficazmente pelo Estado e em que os vícios próprios do regime capitalista, sobretudo a exploração colonialista, penetram os estabelecimentos de ensino. Professores e estudantes latino-americanos encontrarão em nossa reforma determinados princípios que contrariam atitudes ou palavras de ordem na luta de seus países. Devem compreender que tanto suas palavras de ordem como as nossas são justas, porque obedecem às realidades universitárias dos respectivos povos. Assim é que, por exemplo, não recomendamos o sistema de contratação do pessoal docente para a América Latina em geral, enquanto não se partir de uma situação e de um ambiente na vida universitária e extra-universitária como o que temos hoje em Cuba. A contratação de pessoal docente na forma por nós adotada é frutífera e o critério da eficiência professoral como norma de seleção se impõe pela realidade do ambiente em que se desenvolve a vida cultural e social do país. Estabelecer o sistema sem transformar a velha universidade seria contraproducente e absurdo, como estabelecer o processo dos concursos na nova universidade cubana seria uma absurda limitação. Aqui, o professor que não serve sai da universidade por sua própria incompetência e ninguém seria capaz de contratá-lo – por amiguismo ou favoritismo. Essas circunstâncias só se verificam na universidade de uma República depurada, em um país que está dependendo da honradez e capacidade de todos os seus profissionais e técnicos para construir seu futuro.

A advertência faz uma referência explícita ao problema da vitaliciedade das cátedras, que, entre nós, ainda é uma garantia para os professores progressistas contra as arbitrariedades da reação e, nesse sentido, é defensável, apesar de acobertar os professores incompetentes, o que talvez seja um mal menor, no momento. Sobre o problema da representação dos estudantes nos órgãos de direção universitária, pessoalmente, em nossa situação concreta, sempre me pareceu melhor ver a velha universidade bombardeada de fora pelos estudantes progressistas, sem quaisquer compromissos, pela participação na estrutura que consideram caduca. Quanto à democratização da universidade, isto é, quanto ao acesso de todos aos bancos acadêmicos, isso só se poderá verificar quando a própria sociedade se democratizar, e só então a igualdade de oportunidades que a caracteriza brilhará para todos. O que a meu ver os estudantes devem fazer na presente etapa é agir concretamente, dirigindo com precisão os tiros de sua artilharia – a partir de suas próprias organizações – sobre objetivos reais: onde houver uma cátedra obsoleta e um professor retrógrado, exigir a solução tópica da contratação imediata de uni outro elemento, em moldes modernos, sem vitaliciedade, com tempo integral para professores e alunos, mediante remuneração condigna para uns e bolsas de estudo para outros. E que, ao lado, a cátedra vitalícia caía de podre, com todos os seus direitos... Onde houver um curso desaparelhado, exigir seu imediato equipamento.

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Assim, os cursos de ciências da natureza, técnicos e profissionais poderão ir sendo rapidamente modernizados. Nas cadeiras de ciências sociais, onde o problema é mais grave, exigir o diálogo de todas as doutrinas e correntes de idéias: em filosofia, em história, em psicologia, em pedagogia, em sociologia... Nesta, por exemplo, é preciso sair imediatamente da sociologia descritiva norte-americana, que é para nós profundamente perniciosa, pois é elaborada na nação imperialista que nos explora, para a verdadeira sociologia. No ensino da economia, outra ciência social básica, não é possível que permaneçamos mais na situação apontada por Celso Furtado em seu mais recente trabalho – A pré-revolução brasileira (Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1962) –, quando diz: "A maneira mesma como se apresentam as teorias econômicas nas faculdades vem contribuindo para a alienação do estudante". E adiante: A segunda debilidade específica da Economia ensinada em nosso país tem sua raiz em que as teorias correntes, em sua generalidade, foram formuladas para explicar o comportamento de estruturas distintas das nossas.

Ao lado dessa atividade tópica e concreta, cabe à entidade máxima dos estudantes aprimorar, cada vez mais, sua ação política em seu tríplice aspecto de política escolar, política nacional e política internacional, com debates abertos a todos, como uma verdadeira universidade popular. E que não se amedrontem com os arreganhos da reação, pois eles são velhos como o mundo. Já nos meados do século passado, um ministro da Justiça, de um dos czares, dizia aos estudantes que insistiam em tomar parte nos movimentos democráticos e progressistas da Rússia desse tempo: Vocês podem se divertir à vontade, beber, jogar, fazer arruaças e mesmo seduzir as mulheres alheias... Mas não se metam em política porque os atirarei fora da universidade...

De outro lado, cumpre exigir o reaparelhamento imediato de uma instituição como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), que tantos serviços prestou ao Brasil e por isso tanto incomodou a reação. Com seus cursos de economia, sociologia, filosofia, história, inclusive a tentativa de uma renovação do estudo da história do Brasil, poderá continuar a neutralizar a obra de alienação e domesticação do ensino que vem sendo ministrado à nossa juventude universitária e a esclarecer outros setores da opinião brasileira quanto às causas e aos remédios para a situação que oprime e degrada amplas camadas do povo brasileiro.

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CAPÍTULO V

QUE FAZER?

Um pai e professor me diz, entre triste e alarmado, não compreender por que as coisas da educação e do ensino continuam entre nós mais ou menos na mesma situação, depois de tantas leis, discussões, reformas, planos, campanhas, mobilizações e, até mesmo, depois de o presidente da República ter sido induzido a proclamar o corrente ano (1962) como o Ano da Educação. Entra ministro, sai ministro, e de todos eles nada a objetar especificamente quanto à capacidade de realizar e o desejo de acertar, mas, sem perspectivas claras de melhoria, o ensino continua insuficiente e de má qualidade, em todos os níveis e modalidades, somente acessível, em seus graus médio e superior, a uma minoria privilegiada e já constituindo um sacrifício muito pesado até mesmo para as classes médias de situação econômica mais elevada. Respondo-lhe que nada a estranhar que as coisas se passem dessa maneira, desde que se considere a educação escolar, o ensino, como os fenômenos que realmente são, e não se insista em fazer deles a panacéia universal capaz de curar todos os nossos males, pois são apenas componentes do processo social geral e uma das formas pelas quais se manifesta o desenvolvimento de uma dada sociedade: a extensão e a qualidade da educação institucionalizada, escolar, do ensino, enfim, são muito mais resultantes do estágio de desenvolvimento de uma determinada área, de uma determinada sociedade, do que promotoras desse desenvolvimento. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Mas a confusão em torno desse problema, que perturba o bom entendimento para as pessoas simples, não é absolutamente de causar admiração, quando vemos um educador da responsabilidade de um Anísio Teixeira, por exemplo, pretender obscurecer a questão que está na raiz do problema da educação e do ensino, taxando-a depreciativamente de "monótona controvérsia": – A monótona controvérsia sobre educação como conseqüência do desenvolvimento e educação como sua condição – parlenga que lembra a velha questão de quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? - foi afinal afastada... (Entrevista ao Jornal do Brasil, em 30/12/1962, sobre o discurso do presidente da República na sede de O Cruzeiro).

Entretanto, decorridos seis meses do discurso e da entrevista, nem há alterações sensíveis na situação do ensino no Brasil, nem se vislumbram quaisquer perspectivas de melhorias substanciais para o mesmo. É que não há, em absoluto, "monótona controvérsia", mas uma realidade impossível de iludir: a expansão e a melhoria da qualidade do ensino dependem do desenvolvimento geral do país e somente na medida em que o país conseguir quebrar as estruturas obsoletas que jugulam sua economia e impedem o povo brasileiro de gozar dos benefícios da civilização moderna, sua escola e o ensino que nela se ministra irão melhorando, irão podendo atender às novas necessidades criadas pela sociedade brasileira e poderão ser usufruídos por um número cada vez maior de crianças e jovens. É esse o problema fundamental, produtor da crise geral em que o país está mergulhado, e, portanto, também da crise da escola, da educação e do ensino, que não se resolve ridicularizando os que vêm fazendo, há muito tempo, duros sacrifícios para esclarecer ao povo brasileiro (e essa é a melhor forma de ensino que se lhe pode proporcionar no momento) que seus problemas – inclusive os da educação e do ensino – só poderão começar a ser realmente resolvidos quando ele tomar em suas próprias mãos o destino do país, livrando-o da espoliação a que está submetido pelos interesses antinacionais e antipopulares; só a completa libertação nacional fará com que a educação e o ensino deixem de ser um privilégio de minorias e, mesmo, que o "ensino" que é ministrado a essas minorias deixe de ser quase meramente destinado a conferir graduação social para ser realmente um ensino de formação. Não há possibilidade de um ensino verdadeiramente democrático e progressista onde a organização social deixa à margem da civilização imensas massas, sujeitas à miséria e à fome, onde vigora a exploração do homem pelo homem, onde os interesses estrangeiros e de grupos privilegiados nacionais se apropriam dos resultados do trabalho da maioria do povo. É isso o que não querem compreender, em geral, os nossos mais destacados educadores, que preferem acusar ministros ou arquitetar planos, campanhas e mobilizações, onde são dilapidados os parcos recursos atribuídos à educação ou ainda semear algumas amostras luxuosas, impossíveis de serem generalizadas, pelo alto custo que representam, ou apenas generalizáveis quando as condições de desenvolvimento do país o permitirem, mas nesse caso confirmando a tese que vimos expondo. Não tem, pois, sentido a outra afirmação de Anísio Teixeira, na mesma entrevista, quando diz que "a escola brasileira terá de ser uma escola que em nada

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se envergonhe das escolas dos países desenvolvidos". Primeiro, porque o pobre não deve se envergonhar de seus farrapos, da condição que lhe é imposta pela exploração dos ricos, mas lutar contra essa situação; segundo, porque é óbvio que somente o desenvolvimento trará para o país a possibilidade de não mais se envergonhar de sua escola "subdesenvolvida", pois nesse caso não o será mais. Não há, pois, nenhuma boot-strap operation a realizar na educação brasileira, uma vez que ninguém nem nenhum povo jamais resolveu seus problemas "suspendendo-se pelos cordões dos próprios sapatos" – operação impraticável, só concebível pela obtusidade do raciocínio norte-americano; o que há, sim, é que alguns povos e muitos homens continuam a se "suspender" na vida através da manutenção de outros na miséria e na degradação, e é esse o problema que está na ordem do dia, aqui como no resto do mundo, pois é a questão crucial do nosso tempo. Enquanto há quem se divirta com essas boutades, são as estatísticas que informam, com toda a simplicidade, que onde há mais riqueza, a educação e o ensino apresentam melhores índices em extensão e qualidade, e vice-versa. Assim, num trabalho há pouco apresentado pelo Serviço de Estatística da Educação e Cultura, em resposta a informações solicitadas pela Câmara dos Deputados, podese ler o seguinte: Em 1960 estavam matriculadas 4.895.313 crianças de 7 a 11 anos de idade (em todo o país), o que representa 54% da população escolarizável, isto é, cerca de 4.200.000 permaneciam fora da escola. Dessas crianças, 72,3% encontravam-se matriculadas nas escolas da região Sul, enquanto que as regiões Norte-Oeste e Nordeste abrangiam, respectivamente, 8,5% e 19,2%. Mas o que ressalta aos olhos do pesquisador é o contraste acentuado existente entre a região Sul e as regiões Norte-Oeste e Nordeste no tocante à taxa de escolarização. Enquanto a primeira oferecia escolarização a cerca de 68% de crianças da região, na Região Norte-Oeste essa taxa caía para 32,5% e na Nordeste para 36,6%.

A conclusão desses números é óbvia: áreas de maior desenvolvimento correspondem a áreas de maior escolarização. Se tomarmos as taxas de escolarização do Brasil como um todo, correspondentes aos últimos anos, teremos:

Isso quer dizer, o que também é óbvio, que, à proporção em que o país se desenvolve, aumenta igualmente a taxa de escolarização, e isso vem se dando sem dependência importante de campanhas ou mobilizações, mas em correlação muito regular com as taxas de desenvolvimento do país como um todo. Não há nisso, pois, qualquer "controvérsia monótona", "parlenga de galinha e ovo" ou boot-strap operation, mas uma realidade insofismável, com expressão matemática, que indica uma correlação positiva entre os índices de desenvolvimento e índices de escolarização. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Mas, se quisermos insistir no assunto, poderemos ver, através da escola, a situação real de nosso povo, tal como nos revela uma outra pesquisa oficial, esta agora referente à área mais desenvolvida do país: o Estado da Guanabara. Assistentes sociais da Secretaria de Educação (do Estado da Guanabara) acabam de comprovar, em inquérito feito entre as 371.000 crianças matriculadas na rede escolar da Guanabara, que 125.000 do total freqüentam as aulas simplesmente para poder comer a merenda que é servida diariamente. (...) No desenvolvimento de um projeto-piloto apresentado pela Secretaria da Educação há menos de um ano, foram construídas cinco escolas-modelo na Tijuca e Engenho Novo, numa área que tem ao seu redor 13 favelas. Matricularam-se 3.067 crianças e os resultados dos exames médicos constataram: 76% com anemia por carência de ferro; 78,1% com focos dentários e amigdalianos; 87,6% sem a quantidade mínima de proteínas; 76,5% atacadas por verminoses; e 57,4% sem déficit visual. Nos testes de inteligência, 94% demonstraram não possuir raciocínio lógico e amadurecimento para as atividades escolares. O peso médio de crianças de 7 anos era de 19 quilos. Perto de 580 eram consideradas retardadas mentais.

Esse o quadro de miséria, fome, de doença, que incide numa das áreas mais ricas do país, e que tem que ser removido para que a educação e o ensino "sigam seu caminho natural", como dizia Juarez, o grande revolucionário mexicano. Enquanto isso, os educadores de maior responsabilidade fazem blagues ou substituem a denúncia veemente de uma tal situação pela construção de amostras luxuosas de escolas e universidades, para seu gozo e glória pessoais. Quanto a estas últimas e ao ensino técnico e científico que tanto preocupam esses nossos educadores, que na sua maioria nunca pregaram um prego ou olharam através das lentes de um microscópio, é preciso recordar-lhes o que dizia Engels em célebre carta a Starkenburg (25/1/1894): Se a técnica, como dizeis, depende em sua maior parte do estado da ciência, esta, por sua vez, depende ainda mais do estado e das necessidades da técnica. Quando a sociedade tem necessidades técnicas, a ciência recebe uma ajuda maior do que de dez universidades. Toda a hidrostática (Torricelli, etc.) originou-se da necessidade da regularização das torrentes das montanhas da Itália, nos séculos 16 e 17; somente sabemos alguma coisa de raciocinal sobre a eletricidade depois que se descobriu sua utilização técnica.

Mas, então, poder-se-á dizer: não há nada a fazer senão esperar o "desenvolvimento" para que a educação e o ensino possam melhorar? Não. Mas o que há a fazer nada tem de espetacular, nem se enquadra em campanhas demagógicas ou providências miríficas, que invertem o problema e obscurecem a compreensão verdadeira da questão em jogo. O que há a fazer é simples e completamente desprovido de interesse eleitoreiro, como se vem fazendo no Estado da Guanabara, onde a obrigação estrita e normal do governo de dar escolas e assistência à população em idade escolar é transformada numa questão que deve provocar reconhecimentos especiais, compromissos e dedicações dessa mesma população, para efeitos eleitorais futuros, quando o povo está sendo escorchado como nunca com o pagamento de impostos e taxas, que devem reverter exatamente na prestação desses serviços, como cumprimento normal do dever do governo. E, mais do que isso, o que se está pretendendo com essa demagogia e publicidade desenfreadas é exatamente embair a opinião pública com uma pretensa

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revolução pela escola, que resolveria todos os nossos problemas, impedindo a verdadeira revolução, contra os privilégios, a miséria e a fome. O que é mais lamentável, porém, é que essa mistificação dos representantes mais graduados da reação acaba coincidindo com a posição de muitos dos nossos educadores que se consideram progressistas... Que fazer então? Tudo muito simples: 1º) Em relação ao ensino primário e médio, que são especialmente de responsabilidade dos estados, que cada unidade federada faça o maior esforço compatível com suas condições e recursos, para estender ao máximo as redes escolares respectivas. O governo federal prestará a cada uma o auxílio financeiro e técnico, através dos Fundos Nacionais respectivos e de seu pessoal técnico. Para isso, cada unidade federada organizará, com a assistência dos técnicos do MEC, seu plano de educação, para o período julgado conveniente em cada caso, recebendo o auxílio financeiro possível e sendo a execução do plano assistida e fiscalizada pela comissão de técnicos do MEC para isso especialmente designada. 2°) A rede do ensino superior, quase toda mantida pelo governo federal, respeitada a autonomia universitária, receberá igualmente a ajuda financeira através do respectivo Fundo Nacional, no sentido de melhor aparelhar e desenvolver os setores julgados mais necessários ao desenvolvimento técnico e científico nacional. 3°) O aperfeiçoamento do professor, que representa o fator básico da melhoria qualitativa do ensino, será feito respectivamente no nível das Secretarias de Educação e das universidades, com a cooperação do governo federal, sem necessidade da criação de novos órgãos, que só servem para encarecer e tumultuar o problema. 4°) Evidentemente, essas providências tão simples e óbvias, praticamente de estímulo à iniciativa dos governos locais e das universidades, redundaria na cessação de toda essa agitação centralizadora e improdutiva do MEC e na extinção de todas essas campanhas, mobilizações e institutos, que nada produzem de efetivo e apenas consomem os escassos recursos disponíveis. 5°) O Ministério da Educação e Cultura, agora que está em andamento uma reforma administrativa, desempenharia muito melhor seu papel de coordenador geral da política e das atividades de educação do país apenas com os órgãos indispensáveis, dentro de uma estrutura muito simples: a) Um departamento de ensino primário e normal, com os órgãos de pesquisa, de estudo dos pianos apresentados pelos estados e de distribuição Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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dos recursos do Fundo Nacional respectivo. Seu corpo volante de técnicos atuaria junto às Secretarias de Educação dos estados, prestando assistência técnica permanente e fiscalizando a aplicação dos recursos federais concedidos dentro do plano de educação organizado para cada um. b) Um departamento de ensino médio, com as mesmas atribuições relativas ao ensino desse nível, de todas as modalidades. c) Um departamento de ensino superior, cuja função seria quase que exclusivamente distribuir os recursos respectivos e fiscalizar sua aplicação, especialmente nos setores mais reclamados pelo desenvolvimento nacional. Organizaria ainda o registro geral dos diplomados para efeito de credenciar os respectivos titulares ao exercício das profissões de nível superior. d) O Instituto Nacional do Livro seria transformado num órgão da produção do livro e do material escolar, no sentido de melhorar o padrão desse material e minorar um dos maiores entraves à difusão do ensino e da cultura, que é o encarecimento, a níveis já insuportáveis, desse material. e) O Conselho Federal de Educação continuaria, como órgão de cúpula, a dar assessoria ao ministro da Educação em todos os problemas que interessam à educação nacional. E é só. Quanto ao resto, bem, o resto está se passando fora da escola, nessa congregação e união cada vez maior de todas as forças democráticas e progressistas – políticos nacionalistas, trabalhadores, camponeses, militares e estudantes – para, num movimento incoercível, que vença todas as resistências das minorias privilegiadas e dos grupos antinacionais e antipopulares, quebrar as estruturas arcaicas, obsoletas, que ainda mantêm nosso povo na submissão, na miséria, na fome e no analfabetismo. À medida que isso for sendo conseguido, os educadores poderão ir vendo realizados seus sonhos de disporem de uma escola rica e progressista, onde poderão exercer sua profissão com dignidade e eficiência, em benefício de uma infância e uma adolescência para as quais, afinal, estarão abertos todos os caminhos da educação e da cultura, em igualdade de oportunidades para todos, comas únicas restrições da capacidade, do desejo e da vocação de cada um.

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CAPÍTULO VI

A EDUCAÇÃO NO PLANO TRIENAL

Quase tudo que tenho escrito sobre educação constitui uma verdadeira pregação no sentido de convencer os educadores brasileiros, meus colegas, de que seu esforço para reformar a educação e o ensino do país tem tido e terá um resultado muito pequeno, ou mesmo nulo, se as reformas preconizadas não se inserirem no quadro das transformações gerais do país como um todo. Em outras palavras, o que tenho procurado fazer é chamar a atenção de educadores, professores, estudantes e demais interessados, que educação e ensino são fenômenos de caráter social, cujas transformações profundas dependem das modificações que se estiverem processando na estrutura da sociedade, se bem que tais fenômenos constituam, dialeticamente, processos de fixação dessas mesmas transformações depois de desencadeadas. Assim, reformas e planos de educação só têm condições de se efetivarem realmente quando forem parte de planos gerais de desenvolvimento de uma região ou de um país. Propõe agora o governo federal um Plano Trienal de desenvolvimento global do país, incluindo nele um capítulo dedicado ao Fator Humano, onde se encontra uma referência a um Plano Nacional de Educação. Tal orientação coincide com o que tenho pregado até aqui, e, assim, não posso deixar de trazer para ela meu apoio e meu aplauso, no pressuposto de que se trata de uma iniciativa séria e com o propósito de ser realmente levada à prática. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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No resumo do Plano Trienal divulgado pela imprensa, e é o que dele unicamente conheço, são fixados os objetivos a serem alcançados no triênio, na parte referente à educação e ao ensino. Naturalmente, tais objetivos finais devem ter sido baseados em estudos realistas e dados fidedignos e sua discussão aprofundada só poderá ser feita à vista desse material que serviu à elaboração desse Plano. São os seguintes esses objetivos, de acordo com o referido resumo (Diário de Notícias, sexta-feira, 4/1/1963, p. 6): 1º) Oferecer seis anos de educação primária a todos os brasileiros da zona urbana, na faixa da educação compulsória. 2°) Na zona rural, o objetivo a atingir é a escolaridade média de 4 anos. 3°) Em relação à educação média, oferecer oportunidade de educação ginasial a 40% da população na faixa de idade compreendida entre 12 e 15 anos e de educação colegial a 20% da faixa de 16 a 18 anos. 4°) Para alcançar tais objetivos serão feitos grandes investimentos, em cooperação com os governos dos estados e municípios, em construções e em ampliação e aperfeiçoamento do magistério. 5°) Serão criados Centros de Treinamento do Magistério, com os quais deverá ser institucionalizado o esforço pelo aperfeiçoamento do magistério primário e médio e criada definitivamente (sic) a figura do professor-supervisor. Cada um desses professores-supervisores terá a seu cargo de trabalho escolar até o máximo de dez classes primárias, cujos mestres serão por eles assistidos e treinados. Espera-se, por esse método, aperfeiçoar 75.000 professores no triênio 1963-1965. 6°) Serão criadas classes para adolescentes e adultos analfabetos e pretende-se erradicar o analfabetismo, com prioridade, nas idades entre 14 e 20 anos. 7°) No ensino superior, objetiva-se um rápido incremento da matrícula, a instituição progressiva do tempo integral e a diversidade e flexibilidade dos cursos para a plena utilização dos recursos humanos e instalações das escolas existentes.

Conforme dissemos, não conhecemos o material que serviu de base à fixação desses objetivos para poder analisá-los em profundidade, mas desde logo devo dizer que me parecem bem lançados, cobrindo os três níveis do ensino comum em suas necessidades fundamentais e prevendo o correlativo treinamento e aperfeiçoamento dos professores necessários. Neste primeiro registro, vamos fazer apenas algumas pequenas observações que se situam especialmente no campo da execução. É certo que, no capítulo final do resumo do Plano ("XII – Reformas de base requeridas"), lê-se que: O desenvolvimento exige modificações do tipo estrutural que podem ser preparadas pelo planejamento mas que estão acima de seu alcance, pois exigem modificações de tipo institucional.

E adiante fala-se em

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[...] reforma administrativa que, sendo uma das que dependem de legislação do Congresso Nacional, serão objeto de mensagens a serem imediatamente encaminhadas, dentro das diretrizes gerais incluídas no Plano Trienal de Governo.

Suponho, assim, que o Ministério da Educação e Cultura estará incluído nessa reforma administrativa, para adaptá-lo, já não digo às novas exigências das realizações planejadas, mas para colocá-lo simplesmente à altura da legislação já existente, como, por exemplo, à orientação já traçada pela chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. É fato notório que, sendo um dos mais novos, o Ministério da Educação e Cultura entrou rapidamente num processo de verdadeiro esclerosamento e, portanto, de completa inoperância, isso, naturalmente, porque na realidade o país, até agora, não conseguira adotar nada que se pudesse denominar de uma política de educação nacional; assim, o órgão destinado a executá-la teria que entrar nesse processo de degenerescência e atrofia, por falta de exercício da função específica para a qual foi criado. Evidentemente, um dos aspectos mais importantes da execução de uma política de educação, num país como o Brasil, de enorme extensão territorial e grandes diferenças regionais e de tradições, é a fixação do tipo de relações do poder central com as autoridades locais, estaduais e municipais. Concretamente, trata-se da controvertida questão da centralização e descentralização, já bastante debatida entre nós, no tocante à educação e dos quais muitos aspectos já estão resolvidos na própria Constituição ou foram recentemente regulamentados pela chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A existência, por exemplo, dos sistemas estaduais autônomos de educação e a delimitação da ação do governo federal como supletiva são pontos pacíficos. E é aí que incide o primeiro comentário que desejamos fazer ao que está previsto no resumo divulgado do Plano Trienal do governo, na parte referente à educação. Prevêem, como vimos, a criação de Centros de Treinamento do Magistério, "a serem mantidos pela União", e a instituição de uma nova figura, de um professor-supervisor, em caráter definitivo. Ora, a experiência de iniciativas desse tipo do governo federal parece-me que tem sido negativa. Assim, por exemplo, os Centros Brasileiros de Pesquisas Educacionais creio que não têm proporcionado qualquer resultado realmente compensador em relação aos recursos que consomem, e essa inoperância, penso, provém do vício original de sua organização. As pesquisas educacionais devem ser feitas em sistemas ou instituições escolares concretas e por quem tem a responsabilidade de executá-las e até mesmo testá-las na prática. Isso quer dizer que, na organização administrativa da educação brasileira, tais atividades devem ser realizadas precipuamente pelas Secretarias de Educação das unidades federadas e pelas universidades, cabendo ao governo federal assisti-las técnica e financeiramente. É assim que não vejo por que repetir uma experiência que reputo negativa, com a criação de Centros Federais de Treinamento do Magistério e a instituição, em caráter definitivo (?) dessa nova figura, padronizada, do professor-supervisor. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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O treinamento e o aperfeiçoamento de professores primários devem ser feitos pelas Secretarias de Educação de cada unidade federada, com a assistência técnica e financeira do governo federal, quando for o caso (li, por exemplo, que o governo do Estado de São Paulo dispensava tal ajuda e até mesmo se propõe a auxiliar outros estados para esse fim). O aperfeiçoamento dos professores de ensino superior deve ser feito pelas próprias universidades, nas mesmas condições. Quanto a essa nova figura do professor-supervisor, penso que cada estado, e até mesmo cada município, deve ter a liberdade de cumprir esse aspecto do plano dentro de suas condições peculiares e com o tipo de pessoal que for julgado mais interessante em cada caso. Parece-me, pois, que é tempo de liquidar todas essas campanhas e iniciativas centralizadoras do Ministério da Educação e Cultura, que se revelaram inoperantes, coercitivas das iniciativas locais criadoras e, até mesmo, em muitos casos, fontes de corrupção e demagogia, com desvio de recursos substanciais. Assim, como dizíamos, é necessário que o Ministério de Educação e Cultura, através da anunciada reforma administrativa, seja colocado nas suas verdadeiras funções de orientador da política nacional de educação, o que exigirá também drásticas modificações nos seus quadros de pessoal, viciado nessas práticas inoperantes, pois, do contrário, estarão certamente votadas ao fracasso todas as boas intenções do Plano Trienal de governo, na parte referente à educação, para gáudio dos que não desejam que o Brasil dê os passos decisivos que estão a exigir as necessidades do povo brasileiro e que já não podem ser mais adiados.

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CAPÍTULO VII

A LIÇÃO DA LEI

Conforme era perfeitamente previsível, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nas condições em que foi elaborada e votada, não trouxe nem trará qualquer modificação significativa na situação geral do ensino no país. Sua inocuidade é mesmo tão flagrante que o próprio Ministério da Educação e Cultura, a quem cabe, naturalmente, adotar as providências para sua execução, parece que não sentiu a necessidade de apressar sua divulgação, através de uma publicação oficial; assim é que, passados mais de dois meses da apreciação pelo Congresso Nacional dos inúmeros vetos presidenciais que incidiram sobre a mesma, os possíveis interessados ainda não dispõem, com facilidade, da versão final do respectivo texto. É certo que, durante a última fase da elaboração dessa lei, travou-se uma áspera controvérsia entre os que desejavam se aproveitar da oportunidade para dar expressão "legal" a uma situação quase de fato, ou seja, tirar o ensino privado e sectário da marginalidade em que muito justamente o colocou a Constituição em vigor, especialmente através do artigo 167 ("O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos poderes públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem"), e os que, ao contrário, procuravam tornar, na lei ordinária em discussão, ainda mais explícito o princípio de que o ensino democrático e popular e o ministrado pela escola pública e, por isso, somente ela pode merecer todas as atenções e cuidados especiais do poder público, Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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devendo nela ser empregados todos os recursos que lhe sejam destinados, obtidos pela taxação que recai indiscriminadamente sobre toda a população. Quanto ao ensino privado e sectário é um problema particular, do interesse apenas de setores minoritários, e o Estado só deve tomar conhecimento dele para assegurar-lhe a liberdade, nos termos do referido artigo 167 da Constituição, para fins de fiscalização e, em situação de emergência, para delegar-lhe certas atribuições, precisas e limitadas. Entretanto, numa demonstração de força, organização e vigilância, esses setores mais retrógrados da sociedade brasileira, através de uma inédita e ostensiva pressão sobre o Congresso Nacional, conseguiram "legalizar" a existência de uma rede de ensino privado e sectário, reconhecida "para todos os fins" e equiparada, portanto, à do ensino público, com infringência frontal ao artigo 167 da Constituição, acima transcrito; lograram, além disso, intrometer-se "legalmente" na direção da política de educação e ensino do país, através dos dispositivos que tratam da composição dos Conselhos Federal e Estaduais de Educação (Artigos 5° e 8°); e, ainda mais, subvertendo totalmente a intenção clara dos artigos 169 e 171 da Constituição Federal, fizeram introduzir no artigo 93 da lei um solerte "preferencialmente", o que permitirá desviar recursos do Estado para o ensino particular. Mas, não satisfeitos com essas "medidas", que impedirão que o país estruture um sistema de ensino público verdadeiramente democrático e popular, quiseram deixar perfeitamente claro que essa lei constitui uma vitória indiscutível de minorias privilegiadas sobre os milhões de desprotegidos que habitam este país, e sem qualquer constrangimento fizeram constar explicitamente a oposição entre pobreza e possibilidade de receber ensino: o estado de pobreza da família justifica o fato dos dependentes não estarem recebendo ensino (alínea a do § único do artigo 30), apesar de o ensino primário dever ser obrigatório, nos termos do item 1 do artigo 168 da Constituição Federal. Quanto ao mais, além de inúmeras incongruências de fundo e de forma, essa lei apenas introduziu algumas "novidades", especialmente no que se refere à descentralização da orientação e da fiscalização do ensino de nível médio, e uma certa flexibilidade nos respectivos currículos, "novidades" essas que podem ser discutidas sob muitos pontos de vista, mas que no caso concreto do ensino brasileiro estão longe de representar providências de natureza positiva. E isso pela existência, entre nós, dessa anomalia berrante que é o fato de o ensino médio estar entregue a particulares em cerca de 70% dos respectivos estabelecimentos, servindo, pois, em última análise, de objeto de comércio ou a interesses sectários; assim, quaisquer que sejam as intenções dos que o ministrem, torna-se evidente que, no primeiro caso, o lucro comercial é que comandará a organização dos estabelecimentos e, no segundo, serão os objetivos sectários, resultando daí que tudo o que não for obrigatório será naturalmente evitado em benefício de melhores resultados financeiros e a orientação do ensino tenderá a se vincular a esses interesses sectários. E, assim, o nosso já tão precário ensino de grau médio empobrecerá ainda mais e se afastará cada vez mais das verdadeiras necessidades da maioria a que deveria servir. Tudo isso, como dissemos de início, era perfeitamente previsível e apenas constitui mais uma demonstração do princípio por assim dizer óbvio de que o ensino e a educação só avançam, só progridem realmente quando as respectivas

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reformas resultam de transformações reais ocorridas na estrutura da sociedade, quando são impulsionadas e realizadas pelas forças progressistas vitoriosas na luta pelo poder político. Conforme temos procurado demonstrar, numa pregação de muitos anos, uma das ilusões mais ingênuas dos educadores é a crença de que reformas educacionais transformam a sociedade, quando o que se dá é exatamente o contrário. Assim, as exigências que ultimamente vêm sendo feitas, com maior insistência, no sentido de que o ensino brasileiro se adapte melhor às necessidades de certos setores da população do país resultam de transformações que se vêm verificando na sociedade brasileira, sendo a mais importante, sem dúvida, a aceleração do processo de industrialização que vem ocorrendo, especialmente, na última década. Esse processo, entretanto, ainda não é nem suficientemente intenso nem coerentemente dirigido em benefício da maioria do povo brasileiro, redundando num desenvolvimento deformado da economia nacional, que favorece principalmente grupos minoritários. E isso por que as forças realmente empenhadas em promover o desenvolvimento que interessa ao conjunto do povo brasileiro ainda não conseguiram suficiente poder político para impor as transformações de estrutura indispensáveis para a consecução desse objetivo. E a elaboração e a promulgação de uma lei básica de educação nacional retrógrada, ou pelo menos inócua em seu conjunto, vêm apenas confirmar essas constatações. É isso que me parece deva ser compreendido especialmente pelos educadores e estudantes universitários brasileiros: educação e ensino são questões fundamentalmente políticas e, como tais, problemas de poder. Somente com a ascensão ao poder das forças realmente interessadas no progresso, no desenvolvimento do país, sem distorções, em benefício da maioria do povo brasileiro, é que serão criadas condições para a efetivação de reformas de educação e ensino que atendam aos interesses e necessidades dessa maioria. O encarniçamento com que os setores mais retrógrados da sociedade brasileira, os mesmos que conseguiram a "vitória" na elaboração dessa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, combatem a participação dos estudantes na discussão e solução dos problemas econômicos, sociais e políticos que preocupam a nação é apenas mais uma demonstração de que esses setores têm perfeita consciência da ameaça que isso representa para a manutenção de suas posições e privilégios contra a maioria do povo brasileiro. Desejam, por isso, que os estudantes restrinjam sua ação às atividades escolares, bem-comportados, disciplinados, domesticados pelo "ensino", pela "educação" que lhes são impostos e contra os quais não devem ter o direito de reclamar, especialmente quando lhes são ministrados gratuitamente. Esses setores sabem perfeitamente que a questão decisiva é a do poder político, que os estudantes estão minando quando deixam os bancos escolares para participar na luta pelas transformações de estrutura que a nação está exigindo cada vez com maior vigor. E nisso são plenamente coerentes; jamais se viu na história dos povos o abandono voluntário do poder político pelas forças que o exercem sem que surjam novas suficientemente poderosas pura substituí-las. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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É essa, segundo me parece, a maior lição que devemos tirar desse episódio legislativo que redundou na elaboração e promulgação da chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

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CAPÍTULO VIII

CADERNOS DO POVO BRASILEIRO

Um dos espetáculos mais desoladores de nossa sociedade atual é a demonstração de ignorância maciça das classes médias alfabetizadas, e mesmo consideradas cultas, em relação aos problemas fundamentais do país. Daí essa confrangedora resultante de comportamento político que é, de um lado, ter como único objetivo uma primaríssima "moralização de costumes", como fórmula milagrosa de solução de todos os nossos angustiantes problemas, e, de outro, o terror ao "comunismo", que faz com que se rendam fanaticamente à pregação das mais perniciosas figuras do cenário nacional – demagogos e agitadores retrógrados, que empunham solertemente as bandeiras do "moralismo" e do "anticomunismo" –, largamente financiadas pelos interesses antinacionais, alienígenas e estrangeiros, no sentido de manter nosso povo submetido ao processo de espoliação que está na raiz de todos os nossos males. Essa classe média, assim despreparada para compreender as verdadeiras soluções dos nossos mais graves problemas, está, em geral, sinceramente convencida de que assim pensando e agindo defende seus pequeninos interesses individuais, seus mesquinhos privilégios e sua tranqüilidade, contra as arremetidas e as justas reivindicações das camadas populares, que consideram como "subversivas". Guardadas as diferenças óbvias das situações históricas, foi esse o caminho da ascensão do fascismo e do nazismo ao poder: o terror pânico das classes Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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médias dos fantasmas colocados à sua frente pela pregação intensa e continuada, subvencionada pela alta finança nacional e internacional, inclusive pelos monopólios dos chamados países democráticos, cujos filhos tiveram que derramar depois muito "sangue, suor e lágrimas" para destruir os mitos monstruosos que ajudaram a criar, para a defesa de uma ordem social desumana e insustentável. Submetidas ao bombardeio de uma propaganda desenfreada e sistemática, que começa na infância com os gibis; continua na adolescência com os X-9, as Queridas e outras publicações desnacionalizantes, de brutalidade, ódio racial e exacerbação do sexo; com o cinema, o rádio e a televisão, e um ensino sem qualquer interesse ou utilidade para a juventude; prossegue nos cursos superiores, onde o conhecimento é deformado e desatualizado, e atinge os adultos através de uma "imprensa" onde praticamente todos os grandes órgãos defendem pontos de vista que não coincidem com os interesses da grande maioria do povo brasileiro e enaltecem determinados sistemas econômicos e "estilos de vida", usando para caracterizá-los expressões vazias de sentido que nada têm de comum com a prática real desses regimes – democracia, liberdade, civilização ocidental e cristã –, atacando, de outro lado, sistematicamente outros, de maneira parcial e sem objetividade, num trabalho permanente de deturpação grosseira dos fatos. Essas classes são assim impedidas de pensar livremente e iludidas na sua ânsia de se salvarem de uma inexorável proletarização, pela manutenção de estruturas sociais arcaicas, constituindo-se em dócil massa de manobra para a reação. Ainda há pouco, nas últimas eleições, viu-se o imenso poder desses interesses antinacionais, agora ostensivamente institucionalizados em organismos de corrupção, nessa obra de anestesiar a consciência de nosso povo, especialmente de suas classes médias alfabetizadas, que são exatamente aquelas que fornecem os maiores contingentes eleitorais, pelas próprias características do processo eleitoral entre nós e porque as classes populares estão excluídas desse processo, mantidas que são no analfabetismo, impedidas assim de se manifestarem legalmente no sentido da mudança da ordem social injusta que as oprime e degrada. Tal situação chegou mesmo a alarmar uma figura proeminente e insuspeita dos nossos meios intelectuais – Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) – que, ao deixar o país para participar do Concílio Ecumênico, em Roma, escreveu palavras que devem ser largamente divulgadas pelo conteúdo de verdade e de advertência que encerram ("Polarizações", Jornal do Brasil, 19/10/1962): E surge então, ou se agrava, o perigo da radicalização que se transforma facilmente em fanatismo. É o que está ocorrendo entre nós com a alta sociedade. Essa mesma que a bordo vai ao night club, mas não vai à missa, nem no domingo... O pânico do comunismo violentamente dela se apodera. O que era considerado apenas como flor exótica, que jamais floresceria em nossas plagas, surge de repente como um fantasma ou antes como um cardume de submarinos soviéticos que já transpuseram a barra do Rio ou como um esquadrão de Migs, pronto para bombardear São Paulo. Dá-se então o "salve-se quem puder" e apegam-se com a Igreja. Abrem-se as comportas da alta pecúnia. Mobiliza-se a grande imprensa. Proclama-se a iminência do golpe militar na esperança de um contragolpe de tipo argentino ou peruano. Promovem-se atentados terroristas. Organiza-se o MAC. As senhoras do café society alarmam-se e saem em campo. Uma delas diz a uma amiga "que não vote em JT porque pertence ao PDC, que havia incluído um comunista

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entre seus candidatos, o jovem AAF". Outra refere-se ao rabiscador destas linhas: "Era o nosso esteio. Infelizmente está hoje envenenado pelo comunismo". Jovens alunas do Colégio Sion ouvem, de um sacerdote que ali fora fazer uma conferência, a advertência de não lerem o Jornal do Brasil, "pois era um jornal comunista". E quando este jornal, durante a última crise, se insurgiu, como há um ano, contra todo o golpe ou contragolpe militar, começaram a chover as cartas à redação, louvando o jornal por sua atual (sic) atitude democrática, como se antes, ao defender a política internacional do Sr. J. Quadros ou do Sr. San Tiago Dantas tivesse traído a honra da democracia... E até a Dom Helder Câmara se escrevem cartas insultuosas. Em São Paulo, um jovem aluno do Colégio São Bento procura um monge e indaga alarmado o que estavam fazendo contra o comunismo, porque seu pai dissera em casa "que os comunistas iam tomar o Rio de Janeiro como refém para daí tomarem conta do Brasil". Tudo isso é rigorosamente exato. E é também profundamente triste. E mesmo inquietante. Pois essa radicalização das elites é a melhor preparação para a radicalização das massas. Como está sucedendo com a massa dos estudantes superiores e até mesmo secundários.

A transcrição é longa, mas necessária, data venia, pois a técnica da chamada grande imprensa é obscurecer ou mesmo sonegar os grandes pronunciamentos, mesmo os mais insuspeitos, desde que contrários aos interesses antinacionais e antipopulares que defendem. E como essas grandes empresas detêm praticamente o monopólio dos meios de informação, essa ação continuada de deformação dos fatos e mesmo de escamoteação pura e simples da informação fidedigna tem um efeito desastroso sobre a formação da opinião pública atuante, que se concentra sobretudo nas classes médias. Essas considerações vêm a propósito de uma das melhores iniciativas dos últimos tempos levadas a efeito neste país, qual seja, o lançamento pela Livraria Civilização Brasileira Editora, sob a direção de Ênio Silveira e do professor Álvaro Vieira Pinto, dos Cadernos do Povo Brasileiro. Dedicado até então, especialmente, à edição de livros escolares, onde o conhecimento tem que vir comportado, constrangido, devidamente policiado, enlatado, para servir à mediocridade do consumo didático, Ênio Silveira lança-se agora numa obra de educação popular sistemática, como não se fizera antes no Brasil. E tão importante que já recebeu a honra dos ataques raivosos da "internacional" da reação instalada no país, através de seus órgãos "nacionais" mais conspícuos... Os educadores democratas e progressistas devem receber esses Cadernos como uma ajuda inestimável, como um precioso material de educação escolar e extra-escolar, dando corpo a uma pregação que antes só podia ser verbal ou baseada em textos esparsos, nem sempre fáceis de reunir, e ao alcance das classes médias, alienadas, impedidas do acesso à informação autêntica sobre os problemas cruciais que envolvem os próprios destinos da nacionalidade, pelas razões que expusemos anteriormente. Que Ênio Silveira continue a cobrir com os seus Cadernos os intermináveis temas que estão na base da solução das grandes questões nacionais, de modo que, com a formação de uma poderosa opinião pública esclarecida que arrase as cidadelas da corrupção, da mistificação e da mentira, o povo brasileiro possa encontrar os verdadeiros caminhos do desenvolvimento harmônico, do progresso, da justiça social.

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CAPÍTULO IX

CARTA A ESTUDANTES DO PARANÁ

Dirigem-se vocês a mim, por intermédio de um representante da União Paranaense dos Estudantes, solicitando uma palavra de apoio para a luta em que estão empenhados no sentido de obter melhores condições para o ensino superior no estado. Como é notório, minha opinião foi sempre muito clara sobre a participação dos estudantes, especialmente universitários, em todas as lutas e movimentos que dizem respeito aos destinos da pátria, ao progresso econômico, social, político, cultural, espiritual e moral do país. Muito mais do que o simples exercício do direito de cidadão, que o estudante também é, sempre julguei ser um dever primordial da mocidade estudantil colocar-se na primeira linha dos que lutam contra tudo o que é retrógrado, tudo o que entrava o desenvolvimento do país, tudo o que concorre para manter a grande maioria do povo brasileiro nas condições de miséria e atraso em que, lamentavelmente, ainda vive. Seria, aliás, profundamente desalentador para a nação se a parte mais esclarecida de sua juventude, constituída pelo contingente de seus estudantes universitários – verdadeira minoria privilegiada em face dos milhões de analfabetos e de outros tantos milhões de brasileiros que mal conseguem obter, com enormes sacrifícios, uma precária instrução elementar – , se entregasse ao comodismo, à descrença, à omissão, ou mesmo, simplesmente, à abstenção ou à indiferença, Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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perante os problemas fundamentais que envolvem os próprios destinos da nacionalidade. Um povo que não possa contar com sua mocidade acadêmica para formar, com decisão, na vanguarda dos que lutam por uma pátria verdadeiramente livre, independente e próspera, da qual sejam banidos todos os privilégios e onde venha a imperar, realmente, a igualdade de oportunidades para todos, não será digno dessa independência nem do respeito dos outros povos, e não poderá, portanto, contribuir para que as normas de convivência pacífica venham a reinar, um dia, entre todas as nações, que é, sem dúvida, a aspiração máxima dos homens simples e honestos de todo o mundo. Um tal comportamento negativo dos estudantes brasileiros representaria também um lamentável rompimento com as mais nobres tradições de nossa juventude universitária que, desde os tempos coloniais, nunca cedeu seu lugar nas primeiras filas dos combatentes em defesa de todos os legítimos interesses e mais caras aspirações de liberdade e justiça do povo brasileiro. Mas, além de todas essas, há uma razão que, mais que qualquer outra, torna por assim dizer obrigatória a participação de todos os estudantes conscientes na luta que hoje se trava no país no sentido de promover as transformações de estrutura exigidas por todos os setores mais responsáveis e progressistas da nação brasileira: é que somente no processo dessas transformações será possível a efetivação de verdadeiras reformas educacionais e, portanto, também da chamada Reforma Universitária, que se constituiu, muito justamente, em bandeira das reivindicações específicas dos estudantes universitários brasileiros. Isso não significa, entretanto, que tal bandeira deva ser enrolada provisoriamente ou o ardor dessa luta diminuído, enquanto não se conclui o processo das referidas transformações. Significa apenas que os estudantes não se devem deixar arrastar pela idéia simplista de que poderão conseguir a almejada e indispensável Reforma Universitária unicamente por meio de campanhas travadas no âmbito da própria universidade e nos meios do ensino do país; significa que os estudantes devem conduzir sua luta específica sempre com a perfeita compreensão de que as deficiências e o atraso do ensino e da organização escolar brasileiros, em todos os seus ramos e níveis, são apenas um dos aspectos da situação geral do país e que somente com a remoção das causas fundamentais que condicionam tal situação é que será possível lograr plena satisfação das reivindicações particulares, consubstanciadas, por exemplo, na chamada Reforma Universitária. Essas considerações, porém, não alteram o fato óbvio de que, mais do que um direito e um dever, é um imperativo da própria condição de estudante e de seu mais, elementar interesse, lutar contra o mau ensino que lhe está sendo ministrado, contra as falhas da organização escolar, contra a precariedade das instalações e do equipamento das escolas, faculdades e institutos, contra o descaso das administrações, contra os atentados às liberdades acadêmicas, por uma representação condigna nos órgãos da direção universitária, e, infelizmente, também, contra a desídia, a incompetência e a incompreensão dos maus professores. E, nesse sentido, poder-se-á mesmo afirmar, sem exagero, que o estudante de ensino superior, que já atingiu, naturalmente, a maturidade necessária para compreender suas responsabilidades, e que não luta permanentemente para obter o melhor ensino possível, de acordo com as condições e as exigências da época em que está vivendo, nem mesmo é digno de ocupar um lugar nos bancos

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acadêmicos, que são, como se sabe, em número muito reduzido entre nós em face das necessidades atuais do país. É certo que nada é mais deplorável do que ver estudantes se voltarem contra seus professores, pois o normal e desejável seria que se unissem na luta comum para conseguir, em cada momento, as condições mais favoráveis para o melhor funcionamento possível dos respectivos cursos e estabelecimentos. Mas o professor que é pouco rigoroso no cumprimento de seus deveres, que não faz o esforço permanente a que está obrigado pelas funções que exerce, no sentido de seu constante aperfeiçoamento cultural e profissional, para manter o ensino que ministra sempre à altura dos progressos contínuos das ciências, das técnicas, das artes, inclusive da arte de ensinar; o professor que se recusa a tomar conhecimento dos grandes problemas do tempo em que vive, os quais, naturalmente, exercem a maior influência justamente sobre a juventude; o professor que não anima ou até mesmo despreza, repele ou teme a convivência amiga com seus alunos, para sentir-lhes as necessidades, as preocupações e as aspirações; o professor que nega aos seus jovens discípulos o calor humano de sua experiência, de sua assistência e de sua compreensão; o professor que, encastelado em suas idéias, convicções e métodos retrógrados e obscurantistas, torna-se intolerante e usa o argumento de autoridade ou a violência para impedir o livre debate das novas correntes de pensamento, que é justamente uma das funções mais importantes da universidade; enfim, o professor mesquinho, vingativo, sem visão e sem grandeza para interpretar os legítimos anseios da juventude, de cuja formação está encarregado; um tal professor está enganando e decepcionando os moços que são obrigados a freqüentar suas aulas, está traindo sua missão de ensinar, de educar e de orientar, e, o que é pior, está instilando no espírito em desenvolvimento dos jovens os germes da descrença e da indiferença, justamente no período da vida em que tudo deve ser confiança, entusiasmo, idealismo. O professor que assim se conduz, nem mesmo pode ser considerado como um verdadeiro mestre e muito menos como um educador e, conseqüentemente, não pode pretender se impor ao respeito de seus alunos. Em conclusão: nenhuma luta é, pois, mais justa e legítima do que a do estudante por um ensino melhor, porque através dela está cumprindo seu dever fundamental que é o de procurar se preparar, da melhor maneira possível, no ramo de conhecimentos que escolheu, em benefício próprio, mas também em benefício da cultura e do progresso da pátria; e, mais do que isso, só assim poderá resgatar, no exercício eficiente e consciencioso de suas futuras atividades profissionais, socialmente úteis, sejam técnicas, científicas, políticas ou artísticas, a dívida que contraiu para com o país e seu povo, que com seu trabalho e sacrifício, dadas as condições infra-humanas em que a maior parte ainda vive, mantém a organização de ensino precária, é certo, mas que só pode ser utilizada por uma escassa minoria, como um verdadeiro privilégio. Fazendo, pois, os melhores votos para que obtenham todo o êxito na campanha que empreenderam e que consigam para ela o apoio e a compreensão dos professores, educadores, autoridades e de todas as pessoas honestas e esclarecidas, sirvo-me do ensejo para apresentar-lhes minhas saudações mais cordiais. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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CAPÍTULO X

CGT – UNE – ISEB

Quando a confusão é geral, quando as palavras, as expressões, os conceitos perdem a significação normal (por exemplo: IBAD é órgão de defesa da democracia; CGT, UNE, ISEB são entidades para a subversão da ordem democrática...), até um educador é levado a invadir searas alheias para tentar, com seus cacoetes didáticos, fazer um pouco de luz em cabeças ingênuas, desprevenidas, obstinadas ou por demais exaltadas. Vejamos, por exemplo, o que significam realmente essas três entidades que estão sob o fogo da reação, como se fossem elas as causadoras de todas as nossas dificuldades. CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) – Faz parte do processo histórico e ninguém mais discute que os trabalhadores devem ter suas entidades de classe para a defesa de seus interesses e formulação de suas reivindicações. Tal fato já está consagrado, há muito tempo, em lei, e a organização sindical tem hoje uma extensa legislação disciplinadora. E o direito de greve, a forma típica de ação da classe operária no regime capitalista, pois é a única que tem efeito constrangedor sobre os detentores do capital, está inscrito na Constituição. A alegação mais corriqueira de que a greve causa prejuízos, é infantil, pois é exatamente porque causa prejuízos ao capitalista que ela é o argumento decisivo do trabalhador. Tudo isso, aliás, é perfeitamente Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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sabido dos próprios homens de empresa, mas sua atitude lógica tem que ser sempre a da defesa de seus lucros, ou não seriam capitalistas; e como, afinal, dispõem de todos os meios de publicidade, que são hoje também grandes organizações comerciais, podem perfeitamente manter toda essa propaganda mentirosa contra a classe operária e seus movimentos, pretendendo jogar contra eles a opinião pública. Para as pessoas sensatas, porém, a luta dos homens que trabalham por melhores condições de vida é, ao contrário do que querem fazer crer, benéfica ao país, pois impede que amplos setores da população caiam em maior pauperismo, aumentando ainda mais os milhões que já se acham nessas condições, especialmente nas áreas rurais. Em última análise, a greve, defendendo o padrão de vida do operário e suas famílias, dentro de certos limites, beneficia também a indústria, pois aumenta o poder aquisitivo de milhões de consumidores. No regime inflacionário em que vivemos, a greve é apenas um mecanismo de reajuste de salários, sempre muito aquém do desgaste produzido pela inflação. E não poderíamos considerar também que a situação, que se diz explosiva entre os camponeses de certas zonas do país, ganharia uma válvula de escape se, organizados em sindicatos, esses milhões de trabalhadores rurais pudessem propor e discutir com os senhores de terra e o governo suas reivindicações? Mas há os que, aceitando a greve como instrumento de defesa econômica, não a toleram como meio de ação política. Aqui também há muita confusão e incompreensão. A greve política é apenas um grau mais avançado da greve econômica, e, freqüentemente, é difícil estabelecer a distinção entre uma e outra. Quando a classe operária se declara disposta a decretar uma greve geral para levar o Congresso, por exemplo, a votar as reformas das estruturas que o país reclama, está trazendo, com seus métodos próprios, sua colaboração ao desenvolvimento do país, o que redundará em benefício de todo o povo. Da mesma forma quando ameaça com a greve geral para manter a Constituição ou o governo legalmente constituído, contra os golpes de minorias. Para os educadores, porém, os sindicatos, as organizações da classe trabalhadora têm, além dessas, uma outra significação mais profunda: essas entidades são a escola dos que não tiveram escola, fazem a auto-educação, na prática, daqueles a quem se negaram todas as oportunidades de educação e ensino. E como aprende a classe operária através de suas próprias lutas! Basta comparar a serenidade, o conteúdo e a elevação de seus manifestos e proclamações com as diatribes de muitos doutores e até professores enfurecidos. E o CGT? Bem, o CGT, para nós, é apenas resultado das escolas de liderança que são os sindicatos das classes trabalhadoras na seleção de seus melhores elementos. Para verificar isso, basta conversar com seus dirigentes e não apenas querer julgá-los de longe, pela "interpretação" de fotografias, tal como uma recentemente divulgada, da qual se dizia que um dirigente do CGT, de "casaco aberto" (que horror!), fala "arrogantemente" (vejam só!) ao ministro da Justiça, que o ouve "submisso"... Em resumo: nas condições atuais do Brasil, um governo realmente democrático e progressista não pode deixar de ter como um dos seus sustentáculos os representantes dos homens do trabalho, congregados nesse tão malsinado CGT.

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UNE (União Nacional dos Estudantes) – Se os nossos estudantes universitários, ao receberem do governo o casarão do antigo Clube Germânia, onde os alemães nazistas e brasileiros traidores comemoravam ruidosamente as vitórias de Hitler, inclusive o afundamento dos nossos navios, o tivessem mantido apenas como entidade recreativa-dançante, ganhariam todos os aplausos dos nossos mais ilustres reacionários. Estariam eles cumprindo uma célebre determinação de um ministro da Justiça da Rússia czarista no século passado, quando ameaçava os estudantes que insistiam em tomar parte nos movimentos progressistas do império russo daquela época: Vocês podem se divertir à vontade, beber, jogar, e até mesmo seduzir as mulheres alheias; mas não se metam em política, pois senão os jogarei fora da Universidade!...

Mas nossa juventude achou que, naquela hora de magnífica afirmação democrática, em que as forças progressistas de todo o mundo, sem distinção de ideologias, e com a participação dos nossos pracinhas, acabavam de derrotar o nazifascismo, era o momento também de mostrar ao povo brasileiro que a luta não fora travada em vão e que o sacrifício da mocidade em todo o mundo tinha que se continuar por uma luta interna até a democratização efetiva do nosso país. Essa a significação da UNE, que tem, assim, desde seu nascimento, um inequívoco e necessário conteúdo político, no melhor sentido da palavra, pois nem se compreenderia que fosse de outra maneira. Nos meus pequenos contatos com a entidade máxima dos nossos estudantes universitários, saí sempre admirado e orgulhoso, como brasileiro e educador, pela consciência que demonstravam em relação aos problemas nacionais e não somente aos de ensino, essa verdadeira elite da juventude brasileira. Foi assim por ocasião dos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; foi assim em todas as ocasiões em que esses jovens me procuraram para me pedir a opinião ou a colaboração em problemas de educação e ensino. Não é de estranhar, pois, que a reação se encarnice contra a UNE, principalmente aqueles que foram derrotados com o nazismo e ainda sobrevivem como fantasmas de Nürenberg. Mas um ministro da Educação realmente consciente de suas funções e dos deveres de seu cargo não poderá deixar de se apoiar na entidade máxima dos estudantes para o desenvolvimento de uma política de educação que corresponda verdadeiramente aos interesses do povo brasileiro. Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) – Como é notório, os cursos de História, Sociologia, Economia e Filosofia ministrados em nossas universidades são tão precários, tão alienados e, por isso, tão inúteis, que só esse fato justificaria a criação de um instituto superior, pós-universitário, para corrigir as enormes deficiências do ensino dessas matérias básicas para a compreensão real do que se está passando no mundo e no país, e para a orientação do que é preciso fazer para transformar estruturas econômicas e sociais já insustentáveis. Mas, segundo creio, não foi essa a razão principal que presidiu à criação do Iseb. O governo Juscelino Kubitschek, qualquer que seja a opinião que se tenha Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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sobre ele, marcou, objetivamente, uma mudança na forma de abordar as soluções dos problemas nacionais ao traçar um programa de "metas" para o desenvolvimento econômico e social do país. Essa mudança teria que provocar uma intensa controvérsia sobre o caráter das diretrizes dessas metas, colocando na ordem do dia a questão da política que mais conviria ao país para alcançar sua plena emancipação econômica. Em breve, a discussão dos temas do nacionalismo e do desenvolvimento empolgavam o país, que, não obstante, não dispunha de centros de estudos específicos e sistemáticos das matérias em causa. O Iseb pretendeu preencher essa lacuna. Colocado, assim, na vanguarda da luta contra o subdesenvolvimento do país e realizando um trabalho pertinaz de esclarecimento, especialmente, de nossa juventude, mas também de muitos setores de outras classes, inclusive o militar, teria que atrair contra ele a animosidade dos mais altos e raivosos representantes dos grupos nacionais e estrangeiros, comprometidos com a espoliação a que o país está submetido. Mas, não obstante todas as falhas e mesmo com as crises internas em que se debateu, o Iseb vem cumprindo sua missão, na medida de seus recursos materiais e humanos. Os trabalhos que já publicou constituem um valioso acervo de estudos sobre os nossos problemas fundamentais. Mas bastariam os cursos e as obras de um Álvaro Vieira Pinto ou de um Nelson Werneck Sodré, sem diminuir o valor de outros, para justificar a existência do Iseb. Parece-me que a atitude decente dos discordantes deveria ser, por exemplo, a de tomar os volumes Consciência e realidade nacional, de Álvaro Vieira Pinto, ou Formação histórica do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e analisá-los exaustivamente para demonstrar seus erros. Mas isso, é claro, exige alto nível cultural e muito trabalho e são sempre mais fáceis e cômodas as invectivas gratuitas e as acusações infundadas. ••• Reconheço que são muito elementares as observações que acabo de fazer sobre as três entidades, atualmente os "cavalos de batalha" da reação. Mas suas diatribes são tão primárias que não merecem mais.

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CAPÍTULO XI

A ESCOLA REGIONAL DE MERITI NO 40º ANIVERSÁRIO DE SUA FUNDAÇÃO (UMA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO)*

Nada mais fácil e agradável do que falar de uma instituição como a Escola Regional de Meriti, porque é uma realização concreta vitoriosa, porque já tem um passado pelo qual pode ser julgada, porque é fruto da dedicação e da inteligência de um grupo de amigos queridos, tendo à frente essa figura singular de dona Armanda Álvaro Alberto, que já se inscreveu definitivamente nos quadros da pedagogia brasileira. Conheço outros casos de grandes dedicações dessa natureza e quero citar aqui apenas alguns que apreciei de perto, dos quais até sofri a influência, e que tiveram por ambiente o Rio de Janeiro, onde nasci e fiz minha formação, pois haverá muitos outros, evidentemente, por esse Brasil imenso: Corinto da Fonseca, Benevenuta Ribeiro e Teófilo Moreira da Costa, meu professor. Corinto da Fonseca (cuja morte se dava exatamente nesse dia 8 de outubro de 1961 quando escrevia estas linhas, mas de que somente no dia seguinte tomava conhecimento), na Escola Sousa Aguiar, e depois em outras iniciativas, viveu sua vida a pregar e a procurar realizar uma escola média que se antecipava a tudo o que temos tentado para atender às necessidades

* Saudação feita, por designação do Conselho Diretor da Associação Brasileira de Educação, nas solenidades comemorativas da passagem do 40° aniversário da fundação da Escola Regional de Meriti, em 23/10/1961.

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do país; diretor de Heitor Lira da Silva, naquela escola e na antiga Escola Venceslau Brás, talvez tenha sido até o inspirador de lutas semelhantes a que se dedicou nosso insigne fundador; sua obra, porém, sofreu as vicissitudes das flutuações e das incompreensões das administrações que se sucediam, levando-o quase ao desespero e tornando-o uma criatura áspera e sarcástica, de trato difícil; seu trabalho, intitulado A escola ativa e os trabalhos manuais, deve, entretanto, ser relido pelos velhos e estudada pelos jovens educadores, com grande proveito, Benevenuta Ribeiro batia-se pelo seu sonho de uma escola para a educação integral de moças; "sua" escola foi-lhe entregue na fundação e dela saiu para morrer; agressiva contra os que impediam a completa realização de seu ideal, teve sua obra várias vezes interrompida e deturpada pelas mesmas flutuações e incompreensões das administrações. Teófilo Moreira da Costa, meu professor, que me fez professor, tomou uma escola primária comum e a foi transformando, com enorme esforço e grandes sacrifícios, no tipo de escola que andamos agora a procurar: uma escola primária e intermediária de 7 anos, com oficinas para dar aos jovens a iniciação ao trabalho, com finalidade prática e como formação geral. De aluno, tinha me tornado, sob sua orientação, professor dessa escola; e um dia tive que levá-lo para casa, atacado de violenta hemoptise, que o vitimara, pelo esforço, pelo trabalho continuado por longos anos, pelas lutas sem descanso para realizar seu sonho; e nunca mais pôde voltar a subir o Morro do Vintém, no Meier, onde "sua" escola se transformou depois na Escola Secundária Visconde de Cairu... O caso de dona Armanda Álvaro Alberto, porém, é único: fundadora da Escola Regional de Meriti, manteve-se até hoje na direção dela, insistiu em seus ideais, realizou seus sonhos. As alterações que a instituição sofreu, e vem sofrendo, são resultantes das modificações do próprio meio ambiente em que se instalou e vive. Antes era um meio rural; hoje, a escola quase desaparece no burburinho de um dos maiores centros industriais do país: Caxias, no Estado do Rio de Janeiro. Mas ficou fiel às suas características de servir à população tal como ela é: acrescentou oficinas e desenvolveu as atividades artesanais, aumentou a biblioteca e o museu; cresceu organicamente, diferenciou-se quase que biologicamente e criou novos órgãos para o desempenho de novas funções. E isso salvou a instituição de qualquer artificialismo, não se transformando, como muitas vezes acontece em casos semelhantes, numa simples teimosia de iluminado. Que influências teriam levado dona Armanda a idealizar e a realizar uma obra tão sólida, tão orgânica, ela, uma simples pessoa particular, sem qualquer curso especializado, sem ser diplomada "em nada", sem ter o bafejo oficial? Foi esse o problema que mais me preocupou quando recebi a honrosa incumbência de meus companheiros do Conselho Diretor da Associação Brasileira de Educação de saudá-la pelo transcurso desse evento raro, que é a comemoração de 40 anos de existência continuada de uma instituição como essa e tendo à frente ainda sua própria idealizadora e fundadora. Creio que três influências principais levaram dona Armanda a empreender sua grande obra. Naturalmente, a primeira foi a origem, a família, onde nasceu e se educou: seu pai, o ilustre médico doutor Álvaro Alberto, profundamente devotado à sua

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profissão e de largo espírito humanitário e a quem a filha era intimamente ligada; sua mãe, que lhe deu sempre o mais carinhoso apoio em suas aspirações e iniciativas. Em Angra dos Reis, conheceu a miséria tremenda dos pequenos brasileiros que ali viviam, cuja condição pôde observar ainda muito jovem e onde começaram suas atividades de educadora. A questão social não lhe foi estranha, assim, desde muito cedo, e essa foi, certamente, a segunda influência, decisiva. Por fim, a ciência, as ciências naturais, a que se dedicou desde cedo e que ensinou posteriormente no Colégio Jacobina; a ciência pedagógica, que hauriu especialmente em Montessori. E foi assim que, a 13 de fevereiro de 1921, fundava a Escola Proletária de Meriti, que passou a denominar-se depois Escola Regional de Meriti. Ouçamos a própria fundadora, em palavras que transcrevo de uma conferência do doutor C. A. Barbosa de Oliveira, pronunciada durante a IV Semana Nacional de Educação, realizada de 13 a 18 de maio de 1931, e que aparece reproduzida no livrinho intitulado A Escola Regional, editado pela nossa Associação Brasileira de Educação. Tendo observado de perto, em convivência longa, vários grupos de população do Centro e do Nordeste do país, sempre interessada pelos problemas de educação no Brasil, aproveitei uma estada de muitos meses numa praia de Angra dos Reis, em 1919, a primeira oportunidade que se me oferecia para ensaiar uma escola. Apareceram prontamente cerca de cinqüenta crianças, para as quais não existia escola pública ou particular por toda a redondeza. Não tendo coragem para rejeitar nenhum desses alunos, que iam dos 3 aos 16 anos, organizei as turmas com a homogeneidade possível em tais circunstâncias e pus-me a praticar o que estudara nos livros de Montessori. Era pouco, por causa dos alunos mais velhos. Enfim, experiências, tropeços, não é mister recordá-los aqui, bastando acentuar que lidava com crianças, adolescentes, verdes e maduros, que ignoravam sua condição de brasileiros, que dos engenhos da civilização moderna apenas conheciam os vapores costeiros e os navios de guerra, de vez em quando ancorados na baía... Os desenhos espontâneos que ainda conservo são documentos fiéis daquela mentalidade. Para a compreensão de tanto atraso é preciso lembrar que o impaludismo, a opilação e o alcoolismo degradavam a população da Ponta da Cidade, tal qual a de Meriti. Além da pesca, ocupação de todos os homens, existia uma indústria: a de aguardente; lavoura única, a da cana, e a da bananeira, em escala reduzida. Aquela escola ao ar livre, à sombra dos bambus, cujo mobiliário constava de uma mesa, uma cadeira e esteiras pelo chão, onde as manhãs eram consagradas à distribuição de remédios, e muito material escolar improvisado ali mesmo, do que pudesse ser aproveitado, foi a escola que iniciou alguns patriciozinhos nas coisas primordiais da vida, foi também nossa própria escola, a que preparou essa outra, a de Meriti, fundada menos de um ano depois. Eram propósitos ao fundar-se a então Escola Proletária de Meriti continuar o que fora interrompido em Angra: um ensaio de escola moderna, regional, criada e mantida por iniciativa particular. Não tendo sob os olhos nenhum modelo a seguir, foi inaugurada a 13 de fevereiro de 1921, sem um só programa escrito; tomou, desde o começo, a feição de um lar-escola, embora externato, com número limitado de alunos, a quem não se dão notas, prêmios ou castigos. A orientação geral apresentava-se resumida em quatro cartazes, com os dizeres: Saúde – Alegria – Trabalho – Solidariedade. Juntamente com a escola, inaugurava-se a Biblioteca "Euclides da Cunha", repartida em três seções, para alunos, professores e moradores de Meriti. Um museu escolar foi logo organizado, em parte com as contribuições trazidas pelos próprios alunos, da natureza local.

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A obra de dona Armanda, nascida sob a inspiração de Euclides da Cunha, e isso já era todo um programa de seriedade, devoção, de profunda compreensão das condições do homem brasileiro, sadio nacionalismo, pôde, como era natural, interessar as maiores figuras, os verdadeiros apóstolos dessas causas. Dona Armanda, merecedora, pela autenticidade de sua obra, soube atrair e teve a felicidade de ver desfilar pela Escola, para levar-lhe o apoio, o ânimo, os ensinamentos, figuras como as de Heitor Lira, que se emocionava até às lágrimas com os concursos das "janelas floridas", que projetava a ação da Escola até os lares; de Belisário Pena, que era um dos maiores amigos da instituição e que fazia conferências sobre defesa da saúde para a população local; Roquete-Pinto, o grande cientista, que deixou como marco de sua passagem o "pau-brasil", plantado durante uma festa da árvore; Venâncio Filho, o amigo número um de dona Armanda e da Escola e que tinha aquele dom de nos fazer conhecer e colaborar em todas as iniciativas pelas quais se interessava; e, por fim, esse admirável Edgar Süssekind de Mendonça, depois companheiro de dona Armanda e secretário da Escola, que pelos fins de sua vida tão fecunda, como que encabulado pela espécie de paternidade que assumira da instituição, "repreendia" dona Armanda diante de amigos comuns: – Mas, Armandinha, não é possível: você está se tornando "cacete" com essa história interminável da Escola Regional de Meriti... Você deve entregá-la a alguém de sua confiança que possa levar para diante a obra e passar de mãe a avó... Você já não tem mais saúde para continuar na direção efetiva da Escola...

Eram a persistência e a versatilidade, ambas admiráveis, desses dois grandes espíritos que se uniram e que se chocavam freqüentemente, produzindo aquele equilíbrio que manteve a Escola em condições excepcionais, entre a diretora-fundadora e o secretário-perpétuo. Dona Armanda viu tombarem, um a um, todos esses amigos queridos, deixando, cada um, um pouco de sua vida e de sua lembrança na obra admirável, como um fermento magnífico... E ela, resistindo a tudo, prosseguiu sem esmorecimentos. Um deles, talvez o primeiro a compreender todo o valor e alcance da obra, e que também é o fundador desta casa – Heitor Lira da Silva –, para que se veja até que ponto as duas iniciativas se entrelaçam, assim se expressava, por ocasião do lançamento da pedra fundamental do novo prédio da Escola, em Meriti: O que acabamos de entregar ao solo não é uma pedra, mas uma semente. Ela há de germinar, a planta crescerá, transformar-se-á em árvore frondosa, capaz de abrigar em sua sombra acolhedora todos os que a procurarem, vizinhos deste lugar, e capaz de atrair pelo seu porte majestoso, pela beleza de seus ramos erguidos para o céu, a atenção dos que passarem, céticos ou distraídos. Aquilo que um pequeno grupo de vontades esclarecidas empreendeu aqui realizar – posso dizê-lo livremente porque não pertenço ao número dos iniciadores – é ao mesmo tempo uma obra de inteligência e de coração. Comoveu-os o espetáculo de miséria, de incultura, de imprevidência que rodeia, num doloroso contraste, a nossa grande, bela e luxuosa capital, contraste a que só espíritos desatentos e sensibilidades embotadas podem ficar indiferentes, quando ele deveria gritar violentamente na consciência de todos os que têm em mãos uma parcela de poder ou um elemento qualquer de ação prática.

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Não é raro, entretanto, empregar tais recursos em serviços exclusivamente materiais, em trabalhos suntuários, que se uma ou outra vez se harmonizam com o ambiente, muito mais freqüentemente o deformam e são quase sempre adiáveis, ao menos diante do dever primordial de cuidar antes de tudo da criatura humana. Por isso, já tivemos um visitante estrangeiro ilustre que, ao defrontar o fausto arrogante de um dos nossos edifícios públicos, não se pôde impedir de perguntar a quem o acompanhava qual era o número de escolas que a administração da cidade mantinha. A Escola Regional de Meriti pretende realizar mais uma missão de educação do que de simples instrução! Estamos aqui felizmente emancipados do preconceito de que o mero conhecimento da leitura, da escrita e das contas possui virtudes intrínsecas, capazes de transformar cada indivíduo em fator social útil, de elevá-lo moralmente, de fornecer-lhe melhores elementos de conforto e de felicidade. Sabemos, ao contrário, que a instrução pura e simples é arma, e, como toda a arma, perigosa. Sabemos que incumbe, a quem a entregar, o dever estrito de preparar quem a recebe para manejá-la, benfazejamente, para si, e para os outros. A Escola Regional de Meriti quer evitar que uma instrução mal-orientada possa vir a agir como fator de dispersão, quer ligar intima-mente a instrução ao trabalho, quer afeiçoar e não escravizar à terra a população infantil que nela vai labutar, quer que essa população saiba viver mais racionalmente, ajudando a sanear o meio e conhecendo os recursos de higiene individual e coletiva; quer que ela possa executar um trabalho mais eficiente e portanto mais remunerador, conseguindo assim materialmente viver melhor; finalmente, quer que ela aprenda a discernir no ambiente que a cerca, nas coisas mais simples e aparentemente mais banais, assim como na solidariedade humana, todo o tesouro de beleza que encerram, elevando as almas e enobrecendo a vida. Não nos iludimos, contudo, os fundadores desta instituição de bondade e de justiça, que não é uma esmola, mas uma reparação, nem os que a eles viemos nos juntar com o nosso entusiasmo refletido, que desde o início os caracterizou sempre; não nos iludimos acerca das dificuldades que teremos de vencer. Para não descer a minúcias, basta dizer que compreendemos bem que nunca será possível realizar neste meio uma verdadeira obra de educação, sem que ela se apóie na franca melhoria da saúde pública e numa organização estável do trabalho. Temos fé, porém; estamos animados desse idealismo fecundo que não esquece a necessidade de pisar em solo firme, quando se quer caminhar erguendo os olhos para o alto. A casa que esperamos erguer aqui não será um palácio que humilha a pobreza; será modesta, clara, alegre, hospitaleira e franca; será a casa que pertencerá a todos e que precisará do apoio e do carinho de toda a população que vive em volta, e a que ela deseja servir. E só assim estará realizando o sonho dos trabalhadores que a idealizaram, porque só assim a Escola Regional de Meriti terá adquirido a força material de que ainda carece, sem perder nada da pureza do espírito que a anima desde o primeiro instante e que, temos confiança, a animará sempre.

Poderíamos dizer hoje a Heitor Lira, passados esses quarenta anos: A semente germinou, a planta cresceu e se transformou em árvore frondosa, como ele desejava e previu, sem nada perder da pureza do espírito que a animou desde o primeiro instante... Sobre ela rolaram quatro décadas, desenvolvendo-a, fortificando-a; durante essa longa e fecunda existência, realizou um notável trabalho de educação das crianças e da população que recebeu sua influência, escrevendo com suas experiências e atividades páginas notáveis da pedagogia brasileira. Os caderninhos de dona Armanda e os relatórios anuais, infalíveis, da diretoria, contam toda a sua história, de lutas, de vitórias, de desenganos, de presenças grandiosas e de saudades imensas... Caderninhos e relatórios esses que mereceriam ser, um dia, divulgados pelas magníficas lições que encerram, lições para professores, educadores, autoridades de ensino. E Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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veríamos então que os modelos de instituições que ansiosamente andamos a procurar alhures ou a arquitetar, muitas vezes, no vazio, já existem bem perto de nós, graças à visão, ao esforço e à tenacidade de brasileiros como essa admirável dona Armanda Álvaro Alberto e seus companheiros de ideal. Mas uma dívida maior tem que ser paga à Escola Regional de Meriti – uma legítima experiência brasileira de educação. Tal como a barraca de Euclides da Cunha, à beira do rio Pardo, onde o monumento de Os sertões foi concebido e escrito, e que o governo envolveu com sua proteção carinhosa, pelo muito que representa para a nacionalidade, também a Escola Regional de Meriti está a merecer a atenção das autoridades, não para rodeá-la de cristal ou para transformá-la em museu, como a Iasnáia Poliana de Tolstoi, mas para aproveitá-la, em toda a sua plenitude, fornecendo-lhe todos os recursos para sua expansão, para completar seus planos, para transformá-la numa verdadeira instituição de caráter experimental e de demonstração, onde o professorado vá receber a inspiração de métodos progressistas de ensino e educação, adaptados às reais necessidades de nosso povo. Quanto à sua ilustre fundadora, dona Armanda Álvaro Alberto, constitui uma falta imperdoável de nossas autoridades de educação que seu nome ainda não esteja inscrito na Ordem do Mérito Educacional. ••• Certa vez, na sede da Escola, creio que quando comemorava 35 anos de fundação, lembrava, numa saudação a dona Armanda Álvaro Alberto, o exemplo de um grande educador soviético – Anton S. Makarenko –, autor do Poema pedagógico, uma das mais notáveis obras da pedagogia e da literatura contemporâneas, que ao ter vencido a maior parte das terríveis dificuldades de sua atividade de recuperação de crianças e jovens abandonados, degradados pela guerra, pela fome, pela contra-revolução, explicava o título da última parte de sua obra, em que relatava os tempos mais felizes, da colheita dos frutos de seus ingentes esforços – "Bandeiras sobre as torres": – Quando ocorrem os fracassos, que se toque o rebate para que sejam rapidamente corrigidos. Mas quando surgem as vitórias, que se desfraldem as bandeiras sobre as torres!

Aqui também se pode dizer a dona Armanda Álvaro Alberto: – É hora de içar no mastro da Escola Regional de Meriti a bandeira da vitória incontestável!

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CAPÍTULO XII

A EXTINÇÃO DO ANALFABETISMO NA UNIÃO SOVIÉTICA

A Rússia czarista era um país culturalmente atrasado, no qual havia regiões com populações totalmente analfabetas e até mesmo povos que não dispunham de alfabeto e, portanto, da linguagem escrita. Assim, a primeira grande tarefa com que se defrontou a Revolução Socialista (1917), no campo cultural, foi a liquidação do analfabetismo, o que se realizou ao longo do processo da construção do novo regime econômico e social. Em 26 de dezembro de 1919, foi promulgado o famoso decreto "Sobre a liquidação do analfabetismo na população da República Soviética Russa", o qual determinava que "todos os habitantes da República, dos 8 aos 50 anos, que não soubessem ler ou escrever, eram obrigados a aprender as primeiras letras em sua língua materna ou em língua russa, à sua escolha". Foi criada então a "Comissão Extraordinária de toda a Rússia para a liquidação do analfabetismo", sendo mobilizadas todas as forças culturais do país e criando nas cidades e nas aldeias grande número de escolas de alfabetização, círculos, grupos e centros de liquidação do analfabetismo. Segundo dados incompletos, em 1920, em 41 províncias da Rússia já funcionavam mais de 12 mil dessas escolas e centros, e nos três primeiros anos da implantação do regime socialista, cerca de 7 milhões de pessoas aprenderam a ler e a escrever. Ao mesmo tempo, era tornada obrigatória a instrução técnico-profissional e Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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difundidas outras normas de instrução escolar e extra-escolar, tais como cursos noturnos, círculos, grupos, centros etc. Em 1923, o recenseamento da população analfabeta, de 11 a 40 anos, demonstrou que era necessário alfabetizar ainda 27 milhões de pessoas, sendo criada nesse ano a associação voluntária de massas denominada "Abaixo o Analfabetismo". Em 1924, o XI Congresso dos Sovietes de toda a Rússia aprovou a resolução do Conselho dos Comissários do Povo, na qual eram tomadas providências para a erradicação do analfabetismo em todo o país até o 10º aniversário da Revolução Socialista. À base dessa resolução, o governo soviético adotou as medidas para a consecução desse objetivo, entre as quais a de facilitar a freqüência dos trabalhadores aos centros de liquidação do analfabetismo, sem qualquer desconto nos salários, e a de prover tais centros com todo o material necessário. Com essas providências, em muitas concentrações operárias, nos fins de 1925, a alfabetização já era total. Nas zonas rurais, entretanto, os índices de analfabetismo eram muito mais altos e também muito mais difícil o trabalho da edificação cultural. Graças, porém, aos esforços feitos durante os anos de 1925 e 1926, foram alfabetizados, em toda a União Soviética, cerca de 3 milhões de pessoas adultas, das quais aproximadamente 90% nas zonas rurais. Nas várias nacionalidades não-russas que faziam parte da URSS foram também obtidos os primeiros êxitos, inclusive com a criação de alfabetos para os povos que os não possuíam, sendo agora o ensino ministrado nas línguas nacionais desses povos. Tudo isso, porém, representava apenas o início de um imenso trabalho, pois, na realidade, a solução plena da tarefa de erradicação do analfabetismo só poderia ser realizada com a industrialização nas cidades e a coletivização nos campos. Paralelamente à liquidação progressiva do analfabetismo entre as populações adultas, ia sendo construído o novo sistema de instrução pública, no qual, gradativamente, iam ingressando as crianças e os adolescentes em idade escolar normal, para receberem o ensino comum, geral e profissional, de todos os níveis. Somente assim as novas gerações poderiam se livrar, definitivamente, do analfabetismo. Em 1927, ao ser comemorado o 10º aniversário da Revolução Soviética Socialista, o Comitê Executivo da União Soviética, ao mesmo tempo que registrava os grandes êxitos da edificação cultural do país, dizia na resolução então aprovada que, "em comparação com os grandiosos objetivos perseguidos pela Revolução e com a fome insaciável de cultura demonstrada pelas massas, o que foi conseguido sob esse aspecto está muito longe de ser satisfatório". E concluía: Nos umbrais do segundo decênio da Revolução Socialista, o Comitê considera necessário vincular diretamente e de modo mais estreito a edificação cultural com as tarefas de industrialização, já que é parte inseparável do plano socialista único de reconstrução do país.

Em 1928, com o início da execução do Primeiro Plano Qüinqüenal (19281932), o desenvolvimento material e cultural da União Soviética passa a ser realizado de maneira coordenada e ininterrupta – planificadamente –, caracterizando esse fato, definitivamente, o regime socialista, em oposição aos regimes capitalistas, que não podem ser totalmente planificados.

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Na parte referente à liquidação do analfabetismo ainda existente, foi lançada a palavra de ordem de "Ensinar a ler e a escrever a quem não sabe". Em 1930, o número de instrutores e voluntários dessa campanha atingia 1 milhão de pessoas. De 1930 a 1932, mais de 30 milhões de pessoas freqüentavam as diversas escolas e centros de liquidação do analfabetismo. Ao mesmo tempo, era implantado em toda a União Soviética o ensino primário obrigatório e gratuito para as crianças de 8, 9 e 10 anos, em escolas primárias com a extensão de quatro anos, e criados cursos, de um a dois anos, para adolescentes de 11 a 15 anos que não tivessem feito estudos primários regulares. Nas cidades e nas áreas fabris, foi estabelecida a passagem obrigatória para o ensino de sete anos para os alunos que concluíssem a escola primária de quatro anos. Esse desenvolvimento do ensino e da cultura continuou de maneira ininterrupta, como parte do desenvolvimento econômico e social geral do país, previsto e consubstanciado nos planos qüinqüenais seguintes. Em 1939, o recenseamento geral do país apurou que a alfabetização na União Soviética atingia, em números redondos, 82% da população de 9 anos de idade em diante, sendo, separadamente, de 89% nas áreas urbanas e de 76% nas zonas rurais. Em algumas repúblicas e regiões autônomas longínquas esses índices de alfabetização eram um pouco mais baixos, mas mesmo para isso as populações respectivas tiveram que fazer um esforço muito maior para vencer o atraso em que viviam, pois, em muitos casos, como vimos, não dispunham sequer de linguagem escrita. Assim, às vésperas da deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939), a União Soviética tinha praticamente superado o problema do analfabetismo e criado um completo sistema de instrução pública, gratuito e progressivamente obrigatório, cuja extensão se exprimia pelas seguintes cifras gerais: para uma população de 170 milhões e 600 mil habitantes, mais de 34 milhões de pessoas cursavam escolas de diferentes níveis e modalidades, sendo que cerca de 600 mil faziam cursos superiores; além disso, mais de 13 milhões de pessoas, de todas as idades, freqüentavam diversas espécies de cursos de tempo parcial, isto é, sem abandonar o trabalho. Isso quer dizer que, em 1939, estudavam na União Soviética cerca de 47 milhões de pessoas, ou 28% da população total do país. A guerra causou grandes danos à vida cultural da União Soviética, pois os invasores fascistas destruíram, entre outras instituições de ensino e cultura, 82 mil escolas em que estudavam 15 milhões de alunos, 334 estabelecimentos de ensino superior freqüentados por 233 mil estudantes, 505 institutos de investigação científica, 44 mil teatros e clubes, 43 mil bibliotecas com mais de 100 milhões de volumes e 427 museus. Fazendo um esforço sobre-humano, o povo soviético, com grande rapidez, restaurou os estragos produzidos pela guerra e, dentro em pouco, seu sistema de educação e ensino voltava a se expandir extraordinariamente. Ao comemorar, em 1957, o 40° aniversário da Revolução Soviética Socialista, foram divulgadas as seguintes informações oficiais, que resumimos em seguida. Antes da Revolução, uma grande maioria da população da Rússia czarista era analfabeta. Segundo os dados disponíveis do (único censo geral do país anterior à Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Revolução, 76% das pessoas maiores de 9 anos eram analfabetas; entre as mulheres, 88%. Muitos povos da Ásia Central e de outras regiões periféricas da Rússia eram totalmente analfabetos. No ano letivo de 1956-1957 estudavam na URSS, em todos os tipos de escolas, 50,4 milhões de pessoas, isto é, de cada quatro pessoas, uma freqüentava escola. Na Rússia czarista, o ensino era feito fundamentalmente na língua russa, sendo impedido o desenvolvimento das línguas e das culturas dos inúmeros povos que viviam sob o domínio do império russo. Agora o ensino é feito em 59 línguas das várias nacionalidades que constituem a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e, inclusive, mais de quarenta povos que antes não possuíam alfabeto recebem agora a instrução em suas próprias línguas, tendo podido assim desenvolver plenamente suas culturas nacionais. Além do sistema de instrução pública comum, que inclui instituições de ensino de todas as modalidades e níveis, desde o jardim da infância à universidade, ampliou-se extraordinariamente a rede de instituições de educação extra-escolar e de cultura. Nos princípios de 1957, havia na União Soviética 394 mil bibliotecas com 1 bilhão e meio de volumes; 127 mil clubes e casas de cultura para o povo; a tiragem diária de periódicas (jornais e revistas) alcançou a cifra de 53,5 milhões de exemplares; cresceu enormemente o número de teatros, cinemas, museus, emissoras e aparelhos de rádio e televisão. Em 24 de dezembro de 1958, depois de prolongadas discussões, foi promulgada uma nova lei de ensino, visando, conforme diz a respectiva ementa, o "fortalecimento dos vínculos entre a escola e a prática e o desenvolvimento do sistema de instrução pública na URSS". Entre outras medidas, essa lei prevê a passagem de sete para oito anos do período de ensino geral obrigatório, torna compulsória para todos os jovens, a partir dos 15 anos, a conjugação dos estudos com o trabalho na produção e reorganiza o ensino médio, profissional e superior. Finalmente, o Plano Septenal de desenvolvimento geral do país (1959-1965), afirmando que a revolução cultural a que se propôs a Revolução Socialista foi realizada e que a União Soviética é hoje um país de alto nível cultural, com sua população totalmente alfabetizada, prevê medidas para transformar a URSS no país de maior desenvolvimento da instrução, da ciência e da cultura.

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CAPÍTULO XIII

O VALOR DO ESTUDO DA HISTÓRIA

A introdução da história como matéria dos currículos escolares dos vários níveis do ensino parece-nos hoje tão óbvia que pouco se tem debatido o valor real do seu estudo. De outro lado, o valor do conhecimento da história, em si, é considerado tão indiscutível, desde que foi resumido na célebre máxima de Cícero "a história é a mestra da vida" –, que não tem havido maior preocupação de aprofundar o problema. Já é tempo, porém, de se procurar analisar essa questão entre nós, principalmente agora, quando a administração superior do ensino tem que justificar a inclusão ou a supressão desta ou daquela disciplina dos vários cursos e níveis do ensino e os professores devem poder explicar cabalmente aos seus alunos o valor dos conhecimentos que lhes são impostos obrigatoriamente ou oferecidos à sua escolha como matérias optativas. Em três perspectivas gerais, parece-nos, poderão ser resumidas as várias maneiras de encarar a história. A primeira seria aquela em que se considera que a humanidade está cumprindo na Terra desígnios extraterrenos, traçados pelo Criador de todas as coisas, por Deus e, assim, tudo o que o homem tem a fazer é se submeter a essa determinação, usando de seu livre-arbítrio para cumprir ou deixar de cumprir a lei divina, obtendo correlativamente as recompensas ou os castigos, na verdadeira vida, que é a vida do além. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Nessa perspectiva, que poderemos denominar de religiosa, a rigor, o estudo da história torna-se dispensável por falta de objetivo, porque já não seria a "mestra da vida". Não interessaria ao homem buscar no passado explicações sobre a vida na Terra, mas apenas procurar cumprir todos os preceitos da vida religiosa, estabelecidos pelos intérpretes autorizados da divindade, ou, num plano mais alto, tentar haurir os exemplos no estudo dos grandes mestres, nas palavras dos profetas, dos santos, na interpretação das escrituras sagradas. A história do homem, da humanidade, estaria traçada "de cima", e a expressão popular dessa concepção é que "Deus escreve direito por linhas tortas". Todas as complicações e incidentes que têm se verificado com o homem, com a humanidade, são as "linhas tortas", que acabarão um dia num "fim direito": a integração de todas as almas no seio do Criador, salvo aquelas que pelos seus pecados forem condenadas às penas eternas. Valerá a pena sobrecarregar crianças e adolescentes com o estudo do que será apenas mera descrição dessas "linhas tortas"? Serva da teologia, a única história cujo estudo se justificaria nesse caso seria a "história sagrada", com o objetivo de demonstrar que "fora da Igreja não há salvação", confundindo-se assim com o próprio ensino religioso. Tudo o mais seria perfeitamente inútil. Numa segunda perspectiva com que se encararia a história, os fatos que acontecem com os homens, com os povos, com a humanidade, são considerados como resultantes do acaso, da ação deste ou daquele acontecimento, desta ou daquela figura destacada de guerreiro, chefe político, herói ou santo, que também nascem por acaso, aqui ou ali, e às descobertas de qualquer natureza, técnicas ou científicas, igualmente ocasionais. Os acontecimentos históricos, pois, não teriam ligações, relações de causa e efeito, senão dentro de âmbito muito limitado. Nessa perspectiva, então, o máximo que se pode fazer, e é o que geralmente se faz, é considerar as civilizações ou as culturas como todos isolados, coexistindo ou se sucedendo umas às outras, sem qualquer interdependência, e estudar as características e as produções mais importantes de cada uma. Assim, por exemplo, os egípcios distinguiam-se pelos métodos de regularizar o curso de um rio em seu benefício e por construir colossais monumentos, as pirâmides etc.; os gregos nos legaram suas magníficas manifestações da arte, criaram a filosofia, lançaram os fundamentos da ciência política; os romanos imortalizaram-se com o direito; a Idade Média nos dá o exemplo máximo da fé religiosa e nos maravilha com suas catedrais etc. E assim vão se sucedendo as manifestações mais grandiosas da atividade humana, características de cada época, de situações diferentes: a Renascença, a Reforma, o humanismo, o conhecimento científico, o pensamento político, a Revolução Industrial, o nacionalismo, o colonialismo, imperialismo, socialismo... É, pois, uma história de legados. Poderá haver, dentro de certos limites, relações de causa e efeito: os egípcios foram levados a resolver problemas da regularização do curso do Nilo e da irrigação pelas necessidades concretas com que se defrontaram e daí nasceram também a agrimensura e a geometria; as grandes navegações e descobrimentos do século 16 fizeram afluir à Europa grandes riquezas e daí resultaram grandes modificações de caráter econômico e político; o nacionalismo resultou da necessidade da unificação do mercado interno dos vários países, no interesse da

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burguesia; o colonialismo foi conseqüência da expansão industrial, pela necessidade de obter matérias-primas e mão-de-obra mais baratas, etc. Essas explicações são limitadas a determinados fenômenos e acontecimentos, não se pensando nunca numa concepção de conjunto da história da humanidade e muito menos em leis gerais que condicionam as transformações evidentes das sociedades humanas, que a história registra. Segundo esse ponto de vista, essas civilizações ou culturas, esses acontecimentos foram se sucedendo ou coexistindo sem saber por que ou para quê. Assimila-se a evolução histórica à evolução biológica dos organismos vivos: as sociedades, as civilizações, as culturas nascem, desenvolvem-se, declinam e morrem, em conseqüência de uma fatalidade. O valor do estudo da história assim considerada estará na apreciação das realizações mais significativas dessas civilizações e das expressões mais altas dessas culturas, naquilo em que elas puderem servir aos tempos atuais, ou simplesmente para o gozo de prazeres estéticos, no caso das manifestações artísticas. Também a ação, os exemplos e a experiência dos heróis, dos guerreiros, dos descobridores, dos cientistas, dos filósofos etc., pelo valor pragmático que encerram, deverão ser cuidadosamente estudados. O nível dos estudos vai desde a simples história anedótica e edificante, para as crianças das primeiras idades, com o objetivo de formação moral ou patriótica, continuando com a descrição dos fatos principais ocorridos em cada período, com cada povo, e na história pátria, para os cursos de nível médio, concluindo-se, nos cursos superiores, pelo estudo exaustivo das minúcias de cada época histórica, de cada fato, de cada personalidade. Dentro desse critério, o maior conhecedor de história, o maior especialista, o professor mais competente, será aquele que tiver a capacidade de memorizar o maior número de fatos, de nomes e de datas, de tricas e minúcias históricas. É a história-erudição. O "valor" dela, além daquelas explicações limitadas de causa e efeito e da formação moral e patriótica, está em que se convencionou que o homem "culto" não pode ignorar quem foi Ramsés III, Alexandre Magno, Maomé, Napoleão ou Leão XIII e deve, ao menos, ter ouvido falar na Guerra dos Cem Anos, no Manifesto Comunista ou na Retirada da Laguna. A terceira perspectiva será aquela em que se aceita que nem o homem está cumprindo na Terra desígnios extraterrenos, nem as coisas acontecem por acaso, não obstante poder haver "acasos" de conseqüências muito importantes. Na história da humanidade há fatores básicos que condicionaram o que tem ocorrido com as sociedades humanas, que condicionam o que está acontecendo e o que ainda deverá acontecer. Conhecendo esses fatores, subordinando-se a eles, o homem pode agir, dentro de limites determinados, sobre o processo histórico, acelerando-o ou o retardando, de maneira semelhante, mas não idêntica, ao que se verifica em relação aos fenômenos naturais, sobre os quais o homem pode influir, transformando a natureza e pondo-a a seu serviço, desde que obedeça às suas leis, conforme o preceito de Bacon, o fundador do método científico. Assim, ao lado das leis naturais, há leis sociais, históricas: o homem é uma parte inseparável da natureza, mas, tendo chegado a um determinado grau de evolução, seus agrupamentos – as sociedades humanas – regem-se por leis próprias, que podem ser conhecidas. A história das sociedades humanas é então a história Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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do desenvolvimento da humanidade de estágios inferiores para outros cada vez mais aperfeiçoados. Essa evolução processa-se pela ação de fatores internos, que podem ser conhecidos, estudados e dirigidos, dentro de certos limites. Nessa perspectiva, o estudo da história tem um valor real, positivo, ou melhor, o conhecimento da história é o de maior importância, indispensável, na formação do indivíduo, pois que será a chave não somente para a compreensão e a interpretação da vida do homem em sociedade, no passado e no presente, como também para a direção do processo de transformação inelutável das sociedades humanas. Essa perspectiva é a única que poderá ser denominada de história científica e somente ela justificará plenamente a introdução dos estudos históricos nos currículos escolares como matéria obrigatória. Contrapondo-se diretamente à primeira perspectiva, o conhecimento da história assim considerada é que daria ao homem a certeza e a clareza de objetivos na consecução de sua "salvação" aqui mesmo na Terra. Mas uma questão se impõe desde logo: existe essa história científica em condições de ser ensinada? Essas leis básicas da evolução histórica já foram formuladas? Vamos tentar responder a essas perguntas fundamentais, que deverão tornar válida essa terceira perspectiva, sem introduzir nenhum conceito a priori, mas partindo diretamente do exame das linhas gerais da evolução da humanidade e induzindo daí as leis gerais que a regem. Tomemos as sociedades primitivas. Pondo de lado todos os aspectos acessórios que tanto preocupam os etnógrafos, vejamos o substrato de sua organização social. Dispondo de instrumentos de trabalho muito rudimentares para sobreviverem, isto é, para obterem da natureza a alimentação, o vestuário, a habitação, os homens primitivos tinham que se entregar a um trabalho em comum, cujas diferenças eram puramente as de caráter biológico existentes entre homens, mulheres e crianças. Não havia excedentes de produção e, portanto, acumulação, e o trabalho em comum correspondia à propriedade comum dos meios de produção. A função de direção desses agrupamentos primitivos era coletiva ou, no caso de guerra, confiada aos mais capazes. Reinava, pois, na economia, um comunismo primitivo, e na organização política, uma democracia rudimentar. Aos poucos, porém, os homens, no trato com a natureza, vão descobrindo novos elementos e aprendendo a trabalhar com eles e pô-los a seu serviço: os metais e sua fundição. E aqui é que se pode falar da influência do acaso e da importância do meio geográfico. A descoberta dessas novas técnicas melhorou a eficiência do trabalho pelo aperfeiçoamento dos respectivos instrumentos. Em breve produz-se uma divisão social do trabalho; a agricultura separa-se da criação do gado, ao mesmo tempo que vão aparecendo indivíduos que se dedicam especialmente a certas atividades artesanais: fundidores, oleiros, etc. O aumento da produção derivado desse aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho e da especialização traz como resultado os excedentes de produção e, em conseqüência, a troca, o comércio primitivo: as comunidades primitivas já podiam produzir mais do que o necessário para o consumo imediato. Alguns indivíduos ou famílias passaram a se

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apropriar desses excedentes da produção e, como resultado das guerras e, provavelmente, da maior capacidade física dos povos pastores em relação aos agricultores, estabeleceu-se o domínio de uns indivíduos sobre outros; os prisioneiros de guerra, que antes eram sacrificados, agora são escravizados e obrigados a trabalhar para os senhores, o mesmo acontecendo, mais tarde, com os devedores insolventes. Assim, o desenvolvimento da produção, das forças produtivas, resultou numa completa transformação social, com o aparecimento da propriedade privada e da divisão da sociedade em classes antagônicas. A necessidade de submeter pela força as classes dominadas deu origem ao aparecimento de uma organização especial – o Estado – a serviço das classes dominantes. Daí em diante, um novo fator intervém – a luta de classes – como motor do desenvolvimento histórico e social. O novo regime social – o escravagismo – , que imperou em todas as sociedades antigas e culminou na Grécia e em Roma, trouxe uma grande expansão de todas as atividades, uma especialização cada vez maior, o aparecimento das grandes concentrações humanas – as cidades – , e, por fim, liberando as classes dominantes do trabalho físico, permitiu que elas se dedicassem às ciências e às artes, que se desenvolveram extraordinariamente, resultando em maravilhosas produções, especialmente na Grécia e em Roma, que constituem patrimônios imorredouros da humanidade. Mas, dentro em pouco, o regime escravagista 'começava a pôr entraves a um maior desenvolvimento das forças produtivas, pois os senhores não podiam demonstrar muito interesse pelo aperfeiçoamento dos meios de produção, uma vez que dispunham de um manancial inesgotável de força de trabalho – o braço escravo. De outro lado, o escravo não podia utilizar instrumentos mais aperfeiçoados, nem estava interessado em fazê-lo. Essa situação objetiva e a luta que cada vez mais se acirrava entre a classe dominante (os senhores de escravos) e as classes submetidas (os escravos e outras camadas empobrecidas da população) levaram ao desmoronamento o último grande império escravagista – o Império Romano – que, além disso, era atacado do exterior, e mesmo do interior, cada vez mais fortemente, pelas incursões dos chamados povos bárbaros. Depois de uma longa gestação, foi se delineando, em seguida, especialmente no território do que é hoje a Europa ocidental, um novo tipo de formação histórica ou organização social: o feudalismo. Agora, ao invés de um poder centralizado, a fragmentação do mesmo entre os senhores feudais, possuidores de grandes extensões de terra – os latifúndios; nesses latifúndios trabalhavam servos, ligados à terra, mas com maior liberdade do que os escravos, e possuidores dos seus instrumentos de trabalho. Os latifundiários, que constituíam a classe dominante, já que dominavam o principal meio de produção, a terra, tinham direito à parte principal do trabalho dos servos. Nessa organização, havia maior interesse dos servos pela produção e pelos instrumentos de trabalho, de modo que a agricultura experimenta maior expansão e aperfeiçoamento. Ao lado da produção rural, desenvolve-se o trabalho artesanal, que proporcionava instrumentos e utensílios para as atividades agrícolas, objetos de utilidade e de luxo para os senhores feudais, transformando os latifúndios em unidades completas de produção, que se bastavam a si próprios. Aos poucos, porém, o excesso de produção desses bens em relação ao consumo provoca Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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o incremento do comércio entre os feudos e o desenvolvimento de núcleos de população urbana – os burgos – que, em breve, e de acordo com as condições geográficas favoráveis, transformam-se em grandes centros econômicos, políticos e culturais – as cidades. Ao lado dos latifúndios, os mosteiros, os conventos e, mais tarde, as grandes catedrais, ou seja, as instituições da Igreja Católica Romana dominam o panorama cultural da Idade Média, como cúpula ideológica do feudalismo. Grandes progressos técnicos realizam-se também nesse período, tais como o aproveitamento do vento como fonte de energia, a roda d'água, os barcos a vela para viagens longas, etc. Entretanto, a exploração dos senhores feudais, se bem que menos feroz do que a dos senhores de escravos, era dura, implacável, e isso provoca a reação cada vez maior dos servos, dos camponeses, até se transformar em grandes guerras camponesas, que vão do século 12 ao século 16, na Europa Ocidental, até o século 18, na Rússia, o mesmo ocorrendo em outras regiões do mundo, na Índia, na China etc., quando chegaram a estágio semelhante de desenvolvimento econômico e social. Além disso, nas cidades, em que aos poucos foram se transformando os burgos, o trabalho artesanal e o comércio expandem-se grandemente: aparecem as manufaturas, onde se concentram grande número de artesãos, ocasionando a dissolução dos antigos grêmios e corporações. Os mercadores ampliam extraordinariamente o comércio, o qual, graças a novas descobertas da técnica de navegação e a invenções diversas, torna-se ultramarino. Uma nova classe dominante vai surgindo gradativamente – a burguesia – que luta contra todas as restrições que o regime feudal impõe às suas atividades e à sua expansão: quer homens livres para empregar como assalariados em seus estabelecimentos fabris; quer livre trânsito para suas mercadorias, a unificação dos mercados nacionais, a padronização dos impostos e das medidas; quer, enfim, a liquidação dos privilégios, da nobreza e da camisa-de-força ideológica imposta pela Igreja Católica, que cerceava o desenvolvimento de seus negócios, seja do ponto de vista prático, seja do ponto de vista moral. Com os grandes progressos técnicos, tais como, entre outros, a invenção da máquina a vapor, a do tear mecânico e a conseqüente revolução nos transportes terrestres e marítimos e o aperfeiçoamento das armas de fogo, essa nova classe – a burguesia – pode assestar os golpes finais no feudalismo, cuja estrutura já não permitia a plena expansão das forças produtivas, desencadeadas por todos esses fatores. Começa então o período das revoluções burguesas que, nos planos político e ideológico, atacavam ao mesmo tempo o absolutismo dos reis e o jugo espiritual da Igreja Romana, criando as novas formas de pensamento liberal-burguês, deflagrando a Reforma protestante, trazendo a renovação das artes e lançando as bases para o desenvolvimento das ciências naturais e do pensamento racional. Em breve, estava instalado o novo regime econômico-social – o capitalismo – com seu arcabouço político e jurídico, consubstanciado na chamada declaração dos direitos do homem e do cidadão, inscrevendo como princípio a igualdade teórica entre todos os cidadãos e instaurando a chamada democracia representativa e o Estado liberal-burguês.

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Uma enorme expansão das forças produtivas verifica-se, então, com o nascimento da grande indústria mecanizada, pela aplicação dos enormes progressos técnicos e científicos, tais como a utilização do carvão e, depois, do petróleo e da eletricidade como fontes de energia. O capitalismo, que de início era apenas mercantilista, comercial, passa a ser industrial com o predomínio da grande indústria. Depois da unificação dos mercados internos e da criação das nações modernas, as necessidades de obtenção de matérias-primas para as indústrias que se expandiam cada vez mais e a busca de mercados para a venda dos produtos industriais, que se produziam em quantidades sempre crescentes, geravam dentro em pouco um sistema mundial de economia. Muitos povos e países são subjugados e reduzidos a colônias das grandes potências industriais, de onde eram arrancadas as matérias-primas e os produtos agrícolas e para onde eram vendidos os produtos manufaturados, mantendo-se assim grandes áreas do mundo em atraso econômico e cultural, em benefício das grandes potências capitalistas. No último terço do século 19 e princípios do século 20, o capitalismo sofre nova transformação, produzida principalmente pelos extraordinários progressos técnicos e científicos verificados então, especialmente a invenção do motor de explosão, que revolucionou os sistemas de transporte, o emprego da eletricidade como fonte de energia, a descoberta de novos métodos para a produção do aço, do petróleo e o florescimento da indústria química. O aperfeiçoamento desses novos meios de produção leva a uma enorme concentração da produção em grandes empresas, pela reunião ou o desaparecimento das menores e a formação dos grandes cartéis, trustes ou monopólios, que passam a dominar ramos inteiros de produção. Por fim, o capital industrial transforma-se em capital financeiro e os grandes bancos não somente passam a controlar as indústrias, mas também os países menos desenvolvidos e as colônias através de empréstimos e da montagem em seus territórios de subsidiárias das empresas industriais para aproveitar a mão-de-obra mais barata. As fontes de energia – o carvão, o petróleo, a eletricidade –, a produção do aço e das máquinas-ferramentas são monopolizados por esses trustes internacionais, cujos produtos são impostos aos países menos desenvolvidos por preços sempre crescentes, enquanto que as matérias-primas são adquiridas por preços sempre mais baixos. Essa nova etapa do capitalismo, denominada imperialismo, conduz, em breve, ao choque entre as grandes potências por uma nova divisão do mundo, pois as que chegaram mais tarde ao pleno desenvolvimento – tal como a Alemanha – já encontraram o mundo dominado pelas outras. Daí resultaram, além de conflitos locais e guerras coloniais, as grandes guerras mundiais. Entretanto, com o capitalismo e como conseqüência dele, surgia a nova classe dominada - o proletariado - que, não dispondo dos meios de produção, era obrigado a vender sua força de trabalho ao capitalista, como único meio de se manter. A luta entre as duas novas classes do novo regime econômico-social dentro em pouco tornava-se violenta, com a transformação dos movimentos de reivindicações de melhores condições de vida da classe operária em ações revolucionárias e, por fim, em revoluções sociais visando a derrubada do regime capitalista e sua substituição por um regime econômico-social mais justo. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Paschoal Lemme ao lado da professora Helena Antipoff e de Bandeira Duarte, em visita oficial do INCE à Sociedade Pestalozzi, Fazenda do Rosário, Minas Gerais, onde funcionava o Instituto Superior de Educação Rural e também a formação de professores para educação especial, atendimento a jovens portadores de necessidades especiais, 1956.

É que o regime capitalista, apesar da enorme expansão da produção de bens de consumo e da elevação geral do nível de vida, ao menos nos países em que se desenvolveu plenamente, não resolveu o problema fundamental de afastar as contradições internas e liquidar a exploração do homem pelo homem. Ao contrário, a essência do capitalismo é a existência, de um lado, de uma minoria proprietária dos meios de produção, gozando de todos os privilégios, e, de outro, da imensa maioria, que é obrigada, para viver, a vender sua força de trabalho ao capitalista. Estabelece-se assim a contradição fundamental do regime: o trabalho é social, mas a apropriação e o gozo dos resultados do trabalho é individual. A luta de classes continuou, pois, em novas condições, mas não com menor acirramento entre capitalistas e proletários. Aproveitando-se das franquias da democracia burguesa, o proletariado vai obtendo uma série de conquistas em suas condições de trabalho e na própria organização como classe (limitação das horas diárias de trabalho, sindicalização, contratos de trabalho, assistência social, etc.), mas tais conquistas não resolvem a contradição fundamental do regime apontaEstudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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da e, assim, foi ficando cada vez mais claro que somente um novo regime econômico-social poderia eliminar o sistema de exploração do capitalismo e criar a igualdade entre todos os homens no uso dos bens e riquezas criados pelos próprios homens. Esse novo regime – o socialismo –, que foi por muito tempo uma aspiração utópica, teórica, acabou por se concretizar através da Revolução Socialista de outubro de 1917, na Rússia czarista, estendendo-se, depois da Segunda Guerra Mundial, a alguns outros países da Europa e da Ásia e, recentemente, até a América, com a revolução cubana. Nesse novo regime, todos os homens são obrigados a dar à sociedade uma contribuição de trabalho socialmente útil, de acordo com sua capacidade, recebendo em troca, da sociedade, o necessário para satisfazer suas necessidades. À proporção que a produção vai se expandindo por meio do trabalho de todos, todos terão também aumentada sua participação na riqueza gerada, nos bens materiais e culturais produzidos. Nesse regime, pois, o caráter social da produção corresponde à propriedade social dos meios de produção. ••• Examinada, assim, de maneira muito sumária e simplificada, a linha geral do desenvolvimento da história da humanidade, verifica-se que duas forças principais agem para produzir o movimento da história, as transformações sociais: 1ª) Um fator interno intrínseco, que são as forças de produção e as relações que se estabelecem entre os homens, independentemente de sua vontade, em cada uma das formações econômico-sociais. Chegadas a um certo grau de desenvolvimento, essas forças de produção entram em choque com as relações de produção dentro das quais se desenvolviam até então, porque essas relações passam a constituir um entrave à expansão daquelas forças. As forças de produção (instrumentos de trabalho, as máquinas e os homens que os manejam), sendo a parte mais dinâmica da vida social, desenvolvendo-se permanentemente através da invenção e da descoberta de novos recursos técnicos – da tecnologia –, acabam por forçar a transformação das relações de produção e, com elas, toda a superestrutura da sociedade: as idéias, o direito, as artes e até a religião e a moral. 2ª) Esse fator intrínseco não age, porém, de maneira mecânica e espontânea. As contradições que se estabelecem entre os homens nas sociedades divididas em classes fazem com que uns lutem pela permanência da situação que lhes é favorável, enquanto que outros procuram transformar a ordem reinante, mudar a organização da sociedade que os oprime e prejudica. A luta de classes torna-se assim o outro fator decisivo na evolução histórica da humanidade. Essa atividade consciente dos homens é a característica das leis históricas, porque corresponde ao grau de evolução do homem, que é capaz de agir, intencionalmente, com objetivos

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definidos, em vista da obtenção de resultados previamente planejados. São leis justamente porque permitem a previsão, não obstante os acontecimentos históricos não poderem ser reproduzidos para estudo em laboratório, tal como acontece com os fenômenos naturais. ••• Definida assim a história como ciência social, pois permite, dentro de certos limites, a previsão e induzido daí seu valor insubstituível como matéria de estudo e ensino, dois problemas se levantam imediatamente: 1º) Refere-se à forma pela qual tais conhecimentos devem ser ministrados e em que níveis de ensino devem aparecer. Evidentemente a história ensinada com tal orientação não está em todos os seus aspectos ao alcance de crianças de nível primário, nem mesmo dos primeiros anos dos cursos de nível médio. Deve-se então continuar a ensinar nesses níveis uma história de fatos e vultos, com vistas à formação moral e patriótica? Parece-nos que sim, desde que os fatos e vultos sejam selecionados dentre os que contribuíram realmente para o progresso da humanidade e de forma a que o conhecimento adquirido não venha mais tarde a entrar em contradição com o que se vier a aprender no curso sistemático de história, ministrado com a orientação a que nos referimos, dentro da perspectiva de uma história verdadeiramente científica. Realmente, não se poderia deixar as crianças, até uma idade avançada, na ignorância dos acontecimentos mais significativos da história pátria e da humanidade. Mas isso pode ser feito sem a necessidade de uma grande especialização, isto é, sem a existência no currículo de uma disciplina especial, e caberia melhor nas séries mais adiantadas do curso primário e nas primeiras dos cursos médios, em conjunto com outras noções sobre a organização política e administrativa do país e o funcionamento das instituições nacionais. Principalmente entre nós, onde a maioria absoluta das classes populares ainda não consegue permanecer na escola primária senão nos primeiros anos dos cursos, seria de grande valor receber na escola esses conhecimentos elementares de história pátria, em conjunto com a formação cívica e política elementar, de noções da organização administrativa e política do país, de direitos e deveres etc. Um curso sistemático de história, com a orientação que preconizamos, só poderá ser dado com proveito nas séries superiores dos cursos de nível médio e aí será imprescindível, e constituirá mesmo matéria básica, conforme expusemos de início. 2°) O outro problema, e também o mais delicado, diz respeito ao professor. Não nos referimos à sua formação nos cursos superiores. porque admitimos desde logo que essa se fizesse dentro do critério do estudo da históEstudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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ria com a orientação que apontamos. Tal problema é definido pela seguinte questão: uma sociedade permitirá um ensino em que se demonstre que sua estrutura é essencialmente injusta e que preveja sua transformação inelutável? É esse o drama do professor de história que chegou a essa compreensão do caráter de sua matéria e deseja ficar fiel aos seus conhecimentos. O mesmo se dará com os professores de economia, sociologia e filosofia, mas essas disciplinas estão, geralmente, colocadas apenas nos currículos dos cursos superiores, onde há muito maior liberdade de ação, através da liberdade de cátedra e da vitaliciedade, assegurados dentro de limites relativamente amplos. É claro que essas garantias são relativas e deixam de funcionar nos momentos de crises políticas e sociais agudas, mas, de qualquer forma, um professor universitário está sempre muito mais protegido do que o seu colega de ensino médio. A questão é daquelas que poderiam ser colocadas logo de início e respondidas pela negativa, tornando inútil pretender definir uma história de caráter científico, que não pode ser devidamente ensinada porque contraria os interesses das classes dominantes. É esse fato, aliás, que não nos deixa fazer esquecer que a educação e o ensino são manifestações da superestrutura de uma dada sociedade, dirigidos com grande cuidado pelas classes dominantes, que não poderiam permitir, com seu consentimento, e até em caráter oficial, o ensino de matérias que ministrariam teorias sobre sua inevitável destruição. Não é outra a razão da pobreza lamentável do ensino das ciências sociais e mesmo naturais nos estabelecimentos de formação de professores, especialmente de ensino primário: a orientação reacionária domina soberana. Nesse drama, o professor consciente tem que se colocar numa posição realista, transmitindo conhecimentos compatíveis com a situação concreta, sem nunca se confundir, porém, com um agitador ou ativista político. Atualmente, o desempenho de sua missão com honestidade está bastante facilitado, não somente porque os fatos sociais são muito eloqüentes e não podem ser totalmente sonegados ou permanentemente distorcidos, como também porque uma série de noções fundamentais já entraram, por assim dizer, no domínio público. Os conceitos, por exemplo, de regimes políticos e sociais mais ou menos justos, de luta de classes, das categorias econômicas como forças produtivas, força de trabalho, mais-valia, lucro e superlucro, exploração do homem pelo homem, colonialismo, imperialismo, socialismo, países subdesenvolvidos etc., são de uso corrente e aparecem freqüentemente até na imprensa diária, obrigando o professor a se preparar para poder responder às indagações dos alunos. A avidez da juventude na procura de respostas e explicações para o que está acontecendo à sua volta ou em outras regiões do mundo, e que a atinge mais ou menos diretamente, é outro fator que facilita muito o trabalho do professor progressista, e boas e honestas explicações podem sempre ser dadas. Por fim, a mudança de posição de certas forças conservadoras, especialmente dos vários credos religiosos, que são as guardiãs máximas da ordem existente, em relação a muitos problemas fundamentais que assoberbam a humanidade atualmente, proporcionam aos professores de história melhores condições para

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ministrar um ensino dentro de uma orientação científica. Dentre as inúmeras manifestações de representantes da Igreja de Roma podese selecionar, por exemplo, uma como esta do dominicano francês Jacques Loew, que trabalhou como estivador em Marselha, de 1951 a 1954, e que diz: "No meu trabalho como estivador vi diante de meus olhos, como se assiste a um filme de longa-metragem, como a estrutura capitalista liberal deforma e esmaga o homem..." Mas é a própria autoridade máxima da Igreja Católica, na já célebre e tão discutida encíclica Mater et Magistra, que se refere com a maior naturalidade ao fenômeno da socialização, na qual vê vantagens evidentes para a humanidade: Ninguém põe em dúvida que desse desenvolvimento da socialização decorrem grandes vantagens. Com efeito, torna viável a satisfação de muitos direitos da pessoa, sobretudo nas questões econômico-sociais, como, principalmente, nas referentes ao sustento da vida, ao tratamento da saúde, à elevação do nível cultural, à formação profissional mais adequada, à habitação, ao trabalho, a um repouso conveniente e a uma honesta recreação.

Assim, na situação atual do mundo e do país, e com tais exemplos e apoios, mesmo nos ambientes mais retrógrados, como infelizmente ainda os são a maioria de nossas escolas de todos os níveis, o professor honesto e progressista poderá restabelecer a história na sua dignidade e verdadeira função de instrumento da criação do futuro pelo estudo do passado e a compreensão do presente.

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CAPÍTULO XIV

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NUM MOMENTO CRÍTICO. EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA*

Tal como o que se dá em outros setores da vida nacional, a inquietação e mesmo a agitação que vem se verificando, há algum tempo, no campo da educação e do ensino no Brasil é um sinal inequívoco de que atingimos também aqui um ponto crítico, fazendo-se mister adotar medidas drásticas para encaminhar os problemas respectivos pelos rumos que a Nação está a exigir. Vale a pena insistir, mais uma vez, no caráter dos fenômenos educação e ensino, para tentarmos estabelecer, ao menos em suas linhas gerais, esses novos rumos, cuja adoção já não pode mais ser protelada. Educação é um fenômeno que apresenta dois aspectos distintos, se bem que correlatos. Educação é um fenômeno de caráter permanente, ligado à própria natureza humana e mesmo à de alguns animais, resultante da capacidade de aprender, isto é, de se adaptar às condições do meio físico e social e reagir sobre esse meio, constituindo essa verdadeira viagem que cada indivíduo faz, do nascimento à morte, sua história individual, que só é possível, evidentemente, no quadro da vida social, que é o ambiente, o elemento, no qual e por meio do qual se processa essa grande aventura de cada vida humana. E, pois, inútil querer estabelecer predominância

*

Publicado na Revista Brasiliense, n. 25, p. 95-109, set./out. de 1959.

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entre valores individuais ou sociais, pois uns não se adquirem sem os outros, porque "De la même façon que la société produit elle même l'homme comme homme, elle est produit par lui" .1 Ou: La vie individuelle et la vie générique de l'homme ne sont pas différentes, bien que le mode d'existence de la vie individuelle soit – et cela nécessairement – une mode plus particulière ou plus générale de la vie générique, ou que la vie individuelle plus particulière et plus générale.

Em resumo: "L'individu est l'être social"2 Mas a educação e o ensino são também fenômenos de caráter histórico, isto é, variam através do desenrolar do processo histórico e na mesma época variam de acordo com as características de desenvolvimento e das tradições particulares de cada região de cada país. Assim, a educação nas sociedades primitivas era muito diferente da educação nas sociedades de classe, que apareceram posteriormente. Conforme diz o professor J. E. Lips, Chez les peuples que nous nous complaisons à dire sauvages, les connaissances héritées de la tradition sont le lot de tous; l'enseignement en est donné à chaque membre de la tribu et dans des conditions telles qu'à cet égard tout le monde se trouve armé pour la vie sur une pied d'égalité. [...] Dans les cultures primitives, l'obligation de vouloir et recevoir l'instruction traditionnelle est imposée à tous. Il ne s'y trouve point "d'illettrés" – pour autant qu'on puisse appliquer ce terme même à des peuples sans écriture – alors que notre propre système d'enseignement obligatoire n'a été consacré, appliqué légalement qu'en 1642 en Allemagne, en 1806 en France, en 1876 en Grand-Bretagne et demeure pratiquement inexistant dans un certain nombre de nations "civilisées".3

A educação, a instrução, a cultura, nas sociedades primitivas, eram transmitidas igualmente a todos, havendo apenas as diferenciações naturais quanto ao sexo e à idade. É o que observa Aníbal Ponce, em seu conhecido livro: Nas sociedades primitivas la educación no estaba confiada a nadie en especial sino a la vigilancia difusa del ambiente. Gracias a una insensible y espontánea asimilación de su contorno, el niño se iba conformando poco a poco dentro de los moldes reverenciados por el grupo. La diaria convivencia con el adulto le introducia en las creencias y las practicas que su medio social tenia por mejores.4

Com a passagem das sociedades primitivas sem classe para as sociedades de classe em que os homens se dividiram em dominadores e dominados, escravistas

1

Marx, Karl. Économie politique et philosophie. Oeuvres Philosophiques, v. VI, p. 25-26. Paris: Alfred Costes, 1937. Ibidem, p. 27-28. Lips, J. E. Les origines de la culture humaine. Paris: Payot, 1951. p. 213. 4 Ponce, Aníbal. Educación y lucha de clases. Buenos Aires: J. Hector Matera, 1951. p. 13-14. 2 3

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e escravos, senhores e servos, capitalistas e proletários, deu-se também a grande ruptura no processo educativo, que deixou de ser homogêneo, agindo democraticamente sobre todos, em igualdade de oportunidades, para constituir um privilégio de castas ou de classes. Assim foi nas grandes culturas da Antigüidade, na Grécia e em Roma, na Idade Média, e com o advento do capitalismo. E, atualmente, mesmo na civilização capitalista mais avançada – a norte-americana – a verdadeira igualdade de oportunidades para todos, em matéria de acesso à educação e à cultura, continua sendo o "grande sonho" da "democracia" americana, uma vez que a desigualdade econômica traz, necessariamente, como conseqüência, a desigualdade de acesso à educação, à instrução e à cultura. Essa é pois a primeira ilusão de muitos educadores que é preciso desde logo esclarecer: somente uma sociedade verdadeiramente democrática pode proporcionar educação completamente democrática, ou melhor, não há educação democrática sem sociedade democrática. O caráter da educação resulta do caráter da sociedade que a ministra e não o contrário, como ainda hoje pensam muitos educadores e pessoas mais ou menos desprevenidas. A educação, a instrução, a cultura são funções da sociedade, e não o contrário. Assim, chegamos ao ponto que nos interessa aqui particular-mente. As transformações sociais impõem transformações no caráter da educação. Esse reflexo da infra-estrutura sobre a superestrutura não é, porém, mecânico, imediato. A superestrutura, depois de constituída, erige-se numa força própria, com seus mantenedores especializados, cria uma ideologia que é racionalizada, tornando-se uma força conservadora, que resiste por todas as formas às modificações ocasionadas pelo impacto das transformações que vão se verificando na infra-estrutura da sociedade. Assim, há sempre uma decalagem entre o que a sociedade está exigindo da educação institucionalizada – ministrada nas escolas, por exemplo – e aquilo que se cristalizou, para atender a necessidades anteriores, como qualidade e quantidade de conhecimentos, como método e como organização, no aparelhamento escolar. A França e a Inglaterra, por exemplo, sofrem, ainda hoje, em sua organização escolar, os efeitos da tradição da dualidade, do ensino para as elites e para as massas, e não conseguiram, até agora, unificar o ensino médio. Os próprios Estados Unidos foram apanhados de surpresa em face do atraso de seu ensino para atender à nova era do desenvolvimento da ciência e da técnica. Seu sistema de educação, que praticamente atinge a totalidade da população em idade escolar, deixou-se modelar excessivamente por uma formação demasiadamente praticista, e embebeu-se dos métodos pragmáticos de uma indústria enormemente diversificada. A União Soviética, no momento, procura também ajustar melhor a formação das novas gerações para as exigências de uma sociedade inteiramente sem classes, onde o trabalho é a base de todo o progresso social, e onde cada um tem de se formar, de se educar, estreitamente vinculado com as atividades produtivas, que deve obrigatoriamente exercer na sociedade. Nos países subdesenvolvidos, como o nosso, ao lado do enorme peso das tradições e da luta das elites, muito reduzidas, para manter os enormes privilégios que sustentam sua posição perante uma enorme massa inculta, há paradoxalmente Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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o chamado efeito de demonstração, que nos faz procurar modelos de educação e de organização escolar, considerados superiores, nos países mais avançados, cujas ideologias chegam até nós, permanentemente, através dos extraordinários meios modernos de divulgação e de transmissão do pensamento. Assim, ao invés de nos voltarmos para nossas verdadeiras necessidades, estabelecemos como ideais organizações e métodos das nações que seguiram um processo histórico inteiramente diferente do nosso, e exportam hoje sua cultura, sua organização escolar e seus métodos de ensino para os países subdesenvolvidos como um meio de dominação ideológica, e não de ajuda para resolver nossos problemas reais. No caso particular do Brasil, teríamos que respigar longamente o que tem sido para nós de pernicioso a influência dos métodos norte-americanos de educação, com o aspecto ainda mais grave de os recebermos aqui, com atraso, e quando já estão superados na própria fonte, como inadequados. A propósito, teríamos muito que dizer sobre os métodos dos testes, o chamado método de projetos, o sistema de créditos no ensino secundário e superior, a flexibilidade dos currículos, a descentralização excessiva da administração da educação. Isso não envolve, evidentemente, qualquer idéia obscurantista e primária de fecharmos o País às influências sadias da cultura universal e deixarmos de buscar a colaboração da ciência e da técnica estrangeiras, onde ela nos possa ser útil, sem qualquer discriminação. Aqui chegamos ao ponto que abordamos no início e cujo esclarecimento é o objetivo principal do presente trabalho. Dizíamos que atingimos um momento crítico em matéria de educação e ensino, e que já não pode ser mais protelada a adoção de novos rumos que verdadeiramente convenham ao nosso estágio de desenvolvimento e aos interesses do progresso e do bem-estar do povo brasileiro. Três fatores negativos principais, a nosso ver, pesam sobre nossa organização escolar, confundindo os termos do problema e dificultando o encontro das verdadeiras soluções. O primeiro e fundamental é resultante, como dissemos, do próprio subdesenvolvimento que ainda caracteriza o País, que incide sobre nosso aparelhamento de ensino, voltado até há pouco para a formação de uma "elite" ociosa, ou condutora dos negócios do Estado, no seu exclusivo interesse. A técnica e a ciência eram importadas quase todas do estrangeiro; uma economia predominantemente agrário-escravista, exigindo uma preparação muito rudimentar para o trabalho; daí uma educação elementar muito reduzida, uma instrução das massas muito restrita, e uma cultura ornamental para a classe dominante, primordialmente latifundiária e consumidora de produtos industriais estrangeiros. Uma economia com tais características teria que manter, como manteve até há pouco, a fisionomia própria dos países coloniais e subdesenvolvidos, com altos índices de analfabetismo e uma "elite" mais ou menos ociosa, absorvendo uma cultura predominantemente importada, desenraizada, alienada, como se tornou moda dizer atualmente, desprezando os valores culturais nacionais, cujas raízes estão nas massas populares. Um segundo fator de atraso do nosso ambiente cultural foi a influência predominante da Igreja Romana e do ensino jesuítico sobre a educação, fenômeno

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comum, aliás, a todos os países latino-americanos, que tiveram a Ordem Inaciana como sua primeira diretora cultural. Até aqui não chegaram os embates da luta da Reforma e do Iluminismo, que correspondiam, no plano ideológico, aos esforços da burguesia nascente para romper a camisa-de-força do medievalismo, em cuja cúpula pairava dominadora a Igreja Católica Romana.5 Assim, enquanto a Europa Ocidental, salvo a Espanha e Portugal, marchavam decididamente para o liberalismo e o Estado Nacional, para o capitalismo, enfim, criando como sua filha dileta e sustentáculo ideológico a escola pública, leiga, obrigatória e gratuita, que veio substituir a estreiteza e o sectarismo da educação dirigida pelo clero católico, nós sofríamos todo o ônus do ensino jesuítico e do medievalismo cultural, que correspondiam às formas latifundiárias de produção e de atraso econômico em que nos mantínhamos. Não é, pois, de estranhar que, no momento em que o País se lança, pelas suas forças mais progressistas, na procura de novos padrões de educação, que correspondam ao estágio de desenvolvimento para o qual vamos penosamente nos encaminhando, encontre pela frente todo o peso da tradição da Igreja Romana e seus aliados a impedir essa limpeza do caminho, o que só pode ser feito, evidentemente, em detrimento de seu predomínio secular obscurantista. O esforço desses elementos mais reacionários, que passaram a uma ofensiva violenta, consubstanciada concretamente no substitutivo do projeto de lei que traça as novas diretrizes e bases da educação nacional, apresentado à Câmara dos Deputados pelo deputado Carlos Lacerda, explica-se perfeitamente dentro desse quadro da luta do novo contra o velho, pois este nunca se retira do cenário da história sem embates árduos, e até sangrentos, tais como os que caracterizaram as lutas religiosas que marcaram o advento da burguesia liberal. Nessa luta, todos os recursos são jogados, pois se trata, em definitivo, de liquidar a supremacia de uma casta, e de uma ideologia que manteve seu poderio incontrastável durante mais de um milênio, e se acolheu na América Latina, erigida em último baluarte de seu predomínio no Ocidente. Não é, pois, absolutamente de espantar que, nessa luta áspera, os termos da questão sejam completamente invertidos e o Estado seja acusado de exercer um monopólio sobre a educação e o ensino, através da escola pública, quando esta é, como dissemos, uma criação do Estado liberal-democrático, o esteio em que ele teve que se apoiar para se manter e cumprir os seus deveres para com o povo. A Igreja, sim, é que exerceu o monopólio absoluto da educação e do ensino, e sempre lutou, quando o viu perdido, para reconquistá-lo.

5

Engels caracteriza muito bem os aspectos dessa luta quando diz: "Les remarques qui procèdent, bien qu'elles ne touchent que deux des points sur lesqueis la classe moyenne ascendante etait vouée à entrer en conflit avec la religion établie, suffiront à montrer, premiêrement que la classe la plus directement interessée à la lutte contre les pretentions de l'Eglise romaine était la bourgesie et, secondement, que toute lutte contre la féodalité à cette époque devait revêtir un déguisement religieux, devait être, en premier bien dirigée contre 1'Eglise. Mais si le cri fut d'abord poussé par les universités et les marchands de villes, il devait recontrer, et rencontra, un puissant écho dans es masses de la population rurale, chez les paysans que devaient lutter partout pour leur existence même, avec leurs seigneurs féodaux, spirituels et temporeis". Engels, F. Le Matérialisme historique. In: Études Philosophiques. Paris: Éditions Sociales, 1947. p. 92.

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No Brasil, podem ser lembrados dois momentos recentes dessa luta pela reconquista de posições. O primeiro foi a campanha pela introdução do ensino religioso nas escolas, travada em torno da Constituição de 1934. O sábio princípio da neutralidade da escola em face de todos os credos, adotado pela Constituição de 1891, e que nos deu muitos anos de tranqüilidade nesse terreno, foi derrogado, e a escola pública brasileira passou a servir a interesses estranhos aos seus verdadeiros objetivos específicos, o que, além de outros malefícios facilmente compreensíveis, rouba o já tão escasso dia escolar para uma preparação que não cabe à escola pública proporcionar. O outro momento foi a introdução maciça do latim em todos os anos do currículo da escola secundária geral, não como resultado de um amplo debate em que tivesse vencido o ponto de vista dos educadores que acreditam honestamente nas virtudes miríficas da língua medieval como formadora humanista por excelência, mas como resultado de uma campanha violenta, sectária, unilateral, encabeçada pelo célebre padre jesuíta Arlindo Vieira, cujo lema era fora do latim não há salvação. Estávamos em pleno Estado Novo, no período de ascensão do fascismo no mundo, e ser contra o latim era muito perigoso... Elementos obscurantistas e ultramontanos aproveitaram-se desse momento de reação e colapso das liberdades democráticas e deram mais um passo à frente no domínio da escola: o latim substituiu a ciência, e ao invés de tendermos para uma maior unificação do ensino médio, em busca de sua maior democratização, tivemos a acentuação das desigualdades de oportunidades, através da desigualdade de vários planos estanques de ensino secundário. Estamos agora em pleno desenvolvimento de uma terceira e mais ampla tentativa de conquista da escola por essas forças mais retrógradas que querem impedir, por todos os meios, o passo à frente que o País já não poderá deixar de dar em direção ao seu desenvolvimento material e cultural. E este se reveste de aspectos mais graves, pois faz parte de uma ofensiva geral que já produziu choques sangrentos na Bélgica e na Argentina e agita a França e o Chile, para citar somente os países em que a campanha assumiu aspectos mais ostensivos. O pretexto é sempre o mesmo, a estafada defesa da "liberdade do ensino", que estaria sendo lesada pelo monopólio odioso que o Estado quer exercer sobre a educação e o ensino. Assim, o que é dever precípuo do Estado democrático, o de organizar a educação pública, leiga, gratuita, obrigatória, para corresponder aos direitos imprescritíveis dos cidadãos, numa repetição de argumentos serôdios, já há mais de um século definitivamente destruídos pelas figuras mais representativas da democracia liberal, é apresentado como uma usurpação contra o direito sagrado das famílias, dos pais, de escolherem, livremente, a espécie de educação que desejam dar aos filhos.6

6

Há quase um século, quando a reação clerical, na França, pretendeu golpear todas as grandes conquistas liberais e democráticas em matéria de educação, através da célebre Lei Failoux, Victor Hugo advertia dramaticamente, em discurso na Assembléia Legislativa: "Votre loi est une loi qui a um masque. ElIe dit une chose et elle en fait une autre. C'est une pensée d'asservissement que prend les allures de la liberté; c'est une confiscation intitulée donation. Je n'en veux pas. Du reste, c'est votre habitude: toutes les fois que vous forges une chame, vous dites: voilà une liberté. La liberté que vous reclamez c'est Ia liberté de ne pas enseigner".

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Tem-se, pois, a impressão de se proceder a uma verdadeira operação arqueológica de pesquisa de documentos obsoletos e bolorentos, quando se depara com o esforço inglório e inútil de procurar justificar a ação obscurantista dessas forças, feito, por exemplo, por um dos porta-vozes mais graduados, da defesa de pretensos "direitos" da Igreja Romana sobre a educação dos cidadãos: Os direitos da Igreja em matéria de educação derivam da subordinação da vida pela ordem natural à ordem sobrenatural. A Igreja participa, simultaneamente, dos dois planos. É uma instituição de ordem sobrenatural, mas atua no plano natural. Como instituição de ordem sobrenatural, seus direitos precedem todos os que derivam de sua condição natural. Dois títulos de ordem sobrenatural possui a Igreja pela natureza das coisas: O primeiro título reside na missão expressa e na autoridade suprema magisterial que lhe deu o seu divino fundador: Data est mihi omnis potestas in coelo et in terra (Mat 25, 18)... O segundo título é a maternidade sobrenatural pela qual a Igreja, Esposa Imaculada de Cristo, gera, alimenta e educa as almas na vida divina, na graça pelos seus sacramentos e pelos seus ensinamentos (Divini Illius Magiotri –Encíclica Papal de 31/ 12/1929). É como instituição de ordem sobrenatural, portanto, que a Igreja reivindica para si – não como privilégio temporal, mas como imperativo ontológico, contra todas as usurpações dos homens e dos governos – o direito primacial a todos de educar a humanidade para Deus. Isso implica, necessariamente, um dever de medir todas as forças dos indivíduos, das famílias e dos Estados, segundo as exigências desse destino final de toda tarefa educativa, baseada na lei da perfectibilidade que rege toda a criação e é o fundamento de toda a tarefa educativa.7

Nessas afirmações, em que a Igreja Católica Romana faz de sua finalidade específica a finalidade da educação de toda a humanidade, ela não se contenta com a mais completa liberdade de pregar e de ensinar, de fundar e manter livremente quantos estabelecimentos queira, de fazer, livremente, seu proselitismo, nos templos, no recesso da família, na sociedade em geral, direito imprescritível que lhe assiste, apenas, e naturalmente, em igualdade com as outras igrejas de todos os outros credos, pois cada uma tem seus próprios objetivos e caminhos de preparação para Deus e para a vida sobrenatural, para a salvação eterna, e cabe ao homem particular decidir qual o preferido. Não. Quer tudo e quer com exclusividade, pois considera a sua verdade como a única Verdade. Quer para si o monopólio, quer, e isso é o mais grave, dominar a instituição que combateu tenazmente, criada pelo Estado liberal-democrático, em luta contra a velha escola clerical, medieval, e para seus fins especiais de sustentáculo do Estado Nacional, de formação do cidadão para o novo regime social que se estabeleceu no mundo com o advento da burguesia. A Igreja Romana, com seu característico oportunismo, quer conquistar agora a instituição típica do Estado Nacional, sua filha dileta, que reúne as crianças e os jovens, disciplinados e organizados pelo Estado democrático, no cumprimento do dever primordial de preparar o cidadão para a vida cívica, do trabalho e da cultura, para a vida democrática, para, introduzir nela a preparação para objetivos extraterrenos, sobrenaturais, pois isso é mais cômodo e produtivo do que disputar a salvação das almas na sociedade em geral, através da preparação no recesso dos lares e dos templos, em leal competição com todos os outros credos.

7

LIMA, Alceu Amoroso. O Estado e a Educação. Síntese, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, p. 16-17, jan./mar. 1959. Órgão oficial do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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E assim estamos assistindo a esse fenômeno profundamente estranho: a Igreja Romana que combateu obstinadamente a escola pública, em seu nascimento, quer agora utilizá-la para seus próprios fins específicos, fins esses que, como dissemos, todas as igrejas, todas as religiões têm o direito absoluto de perseguir pelos meios que julgarem mais adequados. Para isso, invertem-se solertemente os termos da questão: o que é um dever (o do Estado) de proporcionar a todos os cidadãos, em igualdade de oportunidades, educação, instrução, cultura, acusa-se de ser um monopólio; quem já teve e quer recuperar o monopólio (a Igreja), para os fins particulares e sectários, alega que está sendo coartada em sua liberdade... Para isso, diz-se investida na representação dos direitos das famílias, quando se sabe que as famílias ou os pais são representados, legitimamente, pelo Estado democrático. As posições estão agora, porém, muito bem definidas: a Igreja Católica, instituição respeitável, lamentavelmente mancomunada com os negocistas do ensino e esquecida daquela advertência contida em recente manifesto de eminentes personalidades católicas francesas: "Recusamo-nos a ser considerados cúmplices de uma eventual 'operação clerical' contra a República",8 entrega a defesa de suas teses e o comando de sua audaciosa investida contra a educação pública ao portavoz e líder de tudo que é reacionário, obscurantista e antiprogressista neste País: o autor ostensivo do substitutivo apresentado à Câmara dos Deputados ao projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. De outro lado, o mais representativo grupo de educadores brasileiros, democratas e progressistas, em novo manifesto dirigido ao Povo e ao Governo define a posição de todos quantos estão verdadeiramente empenhados no progresso e no bem-estar do povo brasileiro. Nesse documento, no qual temos a honra de figurar como um dos signatários, lê-se a certa altura: Essa nova investida que irrompeu contra a interferência do Estado em matéria de ensino, e com ares de reação contra um suposto monopólio, parece ignorar que a educação pública – a grande conquista da democracia liberal no século 19 – já adquiriu tal prestígio e solidez em todos os países e, entre nós mesmos, com mais de um século de tradição, que, se for desmantelada, será para ressurgir mais cedo ou mais tarde, com maior força de expansão. De fato (permitimo-nos recorrer, ainda uma vez, à mesma e importante nota de O Estado de S. Paulo), [...] foi no decurso do referido século que o Estado moderno veio chamando a si, progressivamente, a iniciativa de criar e manter escolas de todos os graus e, principalmente, de estender de ano em ano a rede escolar primária, destinada a formar, ainda que de modo incipiente, o cidadão das comunidades nacionais – comunidades que se expandiam e se diversificavam em todos os sentidos e que, por isso mesmo, precisavam apoiar-se sobre uma base efetiva e cultural comum, se quisessem viver em paz e governar-se democraticamente. Toda a história do ensino nos tempos modernos é a história de sua inversão em serviço público. É que a educação pública é a única que se compadece com o espírito e as instituições democráticas, cujos progressos acompanha e reflete, e que ela concorre, por sua vez, para fortalecer e alargar com seu próprio desenvolvimento. Não há outro meio de subtrair a educação

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Esse importante documento pode ser obtido com Mlle. J. Bourbon, 73. Rue das Morillons, Paris, 15e.

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aos antagonismos e conflitos de grupos de pressão que tendem a arrastá-la dessa para aquela ideologia, desses para aqueles interesses, que eles representam. A escola pública, cujas portas, por ser escola gratuita, se franqueiam a todos, sem distinção de classes, de situações, de raças e de crenças, é, por definição, contrária e a única que está em condições de se subtrair a imposições de qualquer pensamento sectário, político ou religioso. A democratização progressiva de nossa sociedade (e com que dificuldades se processa ao longo da história republicana) exige, pois, não a abolição - o que seria um desatino - mas o aperfeiçoamento e a transformação constante de nosso sistema de ensino público. A escola e particular-mente a escola pública estende e tende a estender cada vez mais, queiram ou não queiram, o seu campo de ação na medida em que a família retrai o seu, por suas novas condições de vida e por ser o ensino cada vez mais especializado e em que a sociedade se diferencia e se complica na sua estrutura com o desenvolvimento do processo da urbanização e industrialização.9

Dizíamos que três fatores negativos principais pesam sobre a nossa organização escolar, entravando o seu desenvolvimento. Queremos agora nos referir, ligeiramente, ao terceiro fator, que é a própria ação dos educadores brasileiros. Estes, na sua quase totalidade, assumem uma atitude de absenteísmo na luta política, temendo "contaminar-se" com os métodos que consideram menos puros e comprometedores de seus ideais, das forças partidárias características do panorama nacional. É verdade que tivemos um vigoroso movimento educacional, cujo marco inicial pode ser colocado na fundação da Associação Brasileira de Educação, em 1924, seguido depois pelas reformas encabeçadas pelos líderes dos movimentos educacionais progressistas brasileiros, Carneiro Leão, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira. Com a vitória da reação, após o levante revolucionário de 1935, esse movimento sofreu uma violenta solução de continuidade, desmantelando-se, passando os educadores à defensiva e muitos ao desânimo e até à capitulação. Antes, por volta de 1933-1934, houve a ruptura entre os da corrente progressista e os da clerical-reacionária, tendo esta, como dissemos, sua primeira vitória, com a introdução na escola pública do ensino religioso, através da Constituição de 1934. Os educadores, em geral, assumem a atitude de portadores de uma "panacéia" que, aplicada à sociedade, com a necessária técnica pedagógica, seria o fator fundamental da transformação social. Isolam-se, assim, das outras forças progressistas que atuam na sociedade, especialmente as mais organizadas, ou seja, os partidos políticos, as organizações sindicais e estudantis, estas últimas que, como se sabe, desempenham um importantíssimo papel nas lutas pela liberdade e pelo desenvolvimento dos países coloniais e subdesenvolvidos. Entre nós, os estudantes figuram como força atuante de primeira grandeza em todos os episódios marcantes da história do Brasil. Tal atitude revela um desconhecimento lamentável de um princípio elementar e fundamental, assim expresso, de maneira muito feliz, por Georges Cogniot: Le mouvement pédagogique est lié au mouvement politique. On ne peut faire de progrès dans le domaine de l'éducation sans s'appuyer sur les elements progressifs du milieu social.10

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Diário de Notícias, 2/7/1959. Jornal do Comércio, 5/7/1959. Cogniot, Georges. La question scolaire en 1848 et la Loi Failloux. Paris: Editions Hier et Aujourd'hui: Paris, 1948. p. 10.

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Uma revisão radical dessa posição dos educadores brasileiros e sua participação no movimento nacionalista e progressista que cresce, dia a dia, no País, estamos certos, será um elemento muito significativo no encaminhamento das soluções que a educação brasileira está a exigir nessa nova fase da vida nacional em que vamos penetrando. Ao fim dessa análise muito sumária dos fatores que condicionam o panorama educacional brasileiro no momento atual, teríamos que avançar em algumas direções, que, segundo julgamos, deveriam ser impressas à organização da educação e ao seu aparelhamento administrativo, para melhor atender às necessidades do povo brasileiro e do País, em plena transformação. Deixaremos porém para outra oportunidade a enumeração e o estudo detalhado das medidas fundamentais que, segundo nos parece, deveriam ser imediatamente postas em prática para vencer o momento crítico que a educação brasileira atravessa e romper o aparente círculo vicioso de que não temos a educação de que necessitamos porque somos um país subdesenvolvido e somos um país subdesenvolvido porque não temos a educação que se faz necessária.

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EXPLICAÇÃO A partir de 1º de abril de 1964, o Brasil se viu mergulhado num regime de violências generalizadas, repressão bárbara e espoliação econômica que, segundo creio, o país não conheceu em qualquer outro período de sua história, pois a opressão e exploração exercidas pela metrópole sobre a colônia e o controle do pensamento feito pela Inquisição podiam ser considerados como normais para a época. Sobre a vida intelectual e cultural do país desabou o que Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) denominou, com muita exatidão, terrorismo cultural. E, como se sabe, por meio dele foram silenciados, demitidos, exilados e sacrificados mesmo até a morte grande número de professores, educadores, cientistas e intelectuais, e uma censura férrea e obscurantista impediu ou mutilou gravemente todas as manifestações culturais brasileiras. A partir de certo momento, porém, começou a se evidenciar o fracasso do chamado milagre brasileiro, criação da propaganda do regime, e a se intensificar a resistência do povo brasileiro a todas as barbaridades e erros que vinham sendo praticados em nome do combate a uma pretensa corrupção e subversão. Foram então sendo revelados os nefastos resultados da monstruosa concentração da renda nacional nas mãos de uma minoria, enquanto que a maioria do povo era levado a uma progressiva pauperização, com o aumento espantoso da miséria, com suas conseqüências, a degradação da vida Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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familiar, o abandono de menores, que chegou a cifras calamitosas, a elevação dos índices de criminalidade a níveis jamais imaginados e ao desespero das classes médias, que foram tendo seu nível de vida corroído pelo constante aumento dos preços de todas as utilidades e serviços. Com o afrouxamento da repressão, graças a essa resistência crescente do povo brasileiro, foi possível voltar, aos poucos, a se debater, com um pouco mais de liberdade, alguns problemas de importância fundamental para o país. tais corno os da educação e do ensino. E essa chamada "abertura" permitiu até que um dos mais conspícuos responsáveis por toda aquela dramática situação a que foi conduzida a nação brasileira – o ex-ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto – fosse levado a vir de público confessar: – O mecanismo de expansão da economia que adotamos pressupõe uma pequena participação social. E um fato verdadeiro: a escolha e a forma de desenvolvimento da organização econômica se firmou quase em separado da Nação brasileira. Nós, execráveis tecnocratas, fazíamos o desenvolvimento sem permitir, entretanto, que as pessoas participassem desse desenvolvimento (Jornal do Brasil, terça-feira, 17/10/1978, p. 17).

E em seguida, com certo cinismo profissional: – Para nós, economistas, a eficiência econômica é uma espécie de Deus, pelo qual sacrificamos tudo. Nós queremos a eficácia, mas o mundo não deseja só eficácia, o mundo quer a eficácia com um pouco de festa... (sic).

E o ministro do Interior de então, senhor Rangel Reis, era obrigado a defender [...] uma maior aceleração do processo de redistribuição da renda no país, de forma direta e indireta, o que se tornou uma necessidade premente diante da responsabilidade social que o Governo assumiu.

E mais: [...] que não se pode mais aguardar pelo desdobramento a longo prazo, da renda per capita, pois nos defrontamos hoje com determinadas questões sociais sérias e urgentes (Jornal do Brasil, quarta-feira, 18/1/1978, p. 23).

E, mais recentemente, o senhor Frederico Kautz, representante do presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE), em comunicação feita perante o II Curso sobre Política, Programas e Projetos de Alimentação e Nutrição, realizado no Rio de Janeiro, declarava que: O modelo econômico voltado para o mercado externo está esgotado e, por isso, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico está agora tentando adequar sua estratégia de ação para suprir os estrangulamentos desse modelo.

E adiante:

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Agora [sic] é fácil identificar que o estrangulamento maior do modelo econômico encontra-se na má distribuição da renda nacional, pois está muito mais concentrada que há dez anos atrás. 10% da população concentram 51,4% da renda, enquanto aos 10% mais pobres cabe a parcela de 0,87%. Setenta milhões de brasileiros, ou seja, 60% da população, auferem rendimentos mensais inferiores a dois salários mínimos. O gasto em alimentação eleva-se a 70% dos rendimentos da população de mais baixa renda (Tribuna da Imprensa, 16-17/12/1978).

Diante dessa chamada "abertura" e dos mea culpa de tantos tecnocratas infalíveis e intocáveis, também este velho escrevinhador, que se iniciou há mais de cinqüenta anos (1924) no trato dos problemas de educação e de ensino, pôde, aos poucos, voltar ao antigo ofício, sem entretanto dispor de muitos meios para fazêlo. Optou, por isso, em várias oportunidades, quando lhe pareceu que os problemas chegavam a um ponto crítico, por dirigir comentários referentes às questões de sua especialidade, em forma de cartas dirigidas aos dois principais jornais diários do Rio de Janeiro: o Jornal do Brasil e O Globo. Todos sabemos, porém, que os grandes jornais, premidos pela falta de espaço, ou alegando essa circunstância, raramente reproduzem na íntegra as colaborações não solicitadas: selecionam a matéria segundo um critério próprio ou a resumem de modo drástico, freqüentemente prejudicando as idéias expostas na correspondência recebida. Resolvi, por isso, incluir nessa terceira parte do presente volume o que me pareceu mais importante do que pude produzir durante esse período trágico de nossa história, quase tudo em forma de correspondência dirigida àqueles dois grandes jornais.

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CAPÍTULO I

DISCUSSÃO DOS PROBLEMAS DE EDUCAÇÃO E ENSINO*

Venho acompanhando, com o mais vivo interesse, os debates que se travam no momento, através da imprensa não-especializada (e essa possibilidade de discutir todos os problemas é, sem dúvida, o maior valor da liberdade plena de que ela deve gozar), sobre as questões mais relevantes referentes à educação, ao ensino e à cultura do país. E, como velho professor e técnico de educação (aposentado) do Ministério da Educação e Cultura ocorreu-me, a propósito, rever alguns textos e iniciativas, nas quais foram pesquisadas e experimentadas tais questões pelo mais alto cenáculo da especialidade, que tem sido, sem dúvida, a Associação Brasileira de Educação, desde sua fundação, em 1924. Dentre o enorme acervo desses estudos, em que se destacam os realizados pelas Conferências Nacionais de Educação convocadas pela ABE, quero aqui lembrar apenas o que foi publicado, em 1929, sob o título O problema brasileiro da escola secundária, que serviu de base para os trabalhos da III Conferência Nacional de Educação, reunida em São Paulo, naquele mesmo ano. Tal trabalho tomou a forma inicial de um amplo inquérito, no qual foram ouvidos cerca de cinqüenta dos mais destacados professores, educadores, homens

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 10/6/1975.

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de cultura e autoridades, convidados a responder a um questionário sobre o referido tema. E, entre os já falecidos, lembro os nomes do padre Leonel Franca, Antenor Nascentes, Fernando de Magalhães, Lúcio José dos Santos, Francisco Venâncio Filho, Cândido de Melo Leitão, Isabel Jacobina Lacombe, Branca Fialho, Barbosa de Oliveira, Euclides Roxo. E, como exemplificação até mesmo da atualidade das respostas dadas ao referido inquérito, gostaríamos que o Jornal do Brasil pudesse transcrever alguns dos trechos mais significativos da que foi dada pelo saudoso educador, professor, sociólogo e jornalista – Antônio Carneiro Leão – justamente considerado como um dos pioneiros dos grandes movimentos de reforma da educação e do ensino no Brasil, na década de 20, movimentos esses que acompanharam, muito significativamente, os outros, de caráter político-social (cujo marco histórico costuma-se considerar a sublevação militar de 1922) e cultural-artístico (assinalado pela Semana de Arte Moderna, também de 1922). Como se sabe, Antônio Carneiro Leão, chegando ao Rio de Janeiro bastante jovem (creio que trazido pelo conde Pereira Carneiro, que exerceu entre nós a rara missão de um mecenas esclarecido), foi diretor da Instrução Pública no antigo Distrito Federal, a capital do país, de 1923 a 1926, num dos períodos talvez dos mais tumultuosos de nossa história republicana; em seguida, foi secretário da Educação de seu Estado natal, Pernambuco; e sua carreira brilhante de homem de cultura prosseguiu até chegar à Academia Brasileira de Letras, que o elegeu graças à obra que já produzira e que continuou a produzir, até sua morte. Eis os trechos do estudo de A. Carneiro Leão, que selecionei e que, como disse, penso seria de grande oportunidade reproduzir, como subsídio aos debates atuais: O curso secundário no Brasil é uma deformação. Deformação física, mental, moral e social. Física, porque durante o curso não se cuida convenientemente da educação física, nem da higiene, bases da saúde e condições indispensáveis ao bem-estar individual e coletivo. Mental, porque as noções que se ministram são, de ordinário, aprendidas de cor, conservadas de memória, despersonalizadoras. A atividade espontânea, a iniciativa, o trabalho criador, não só não são exigidos, mas são até repelidos como perturbadores. Não há nem trabalhos manuais, nem pesquisas, mas moldes preestabelecidos e carunchosos. Moral, porque cria uma caricatura de saber e um luxo de frases feitas, além do regime alarmante, mais ou menos generalizado, da cola. Social, porque volta acintosamente as costas às realidades sociais presentes. Se o homem vivesse isolado, somente para si, a educação poderia ser feita como cada qual a entendesse. Como a realidade é, porém, outra, devemos estudar a organização educativa pensando nos problemas de cada dia: agrícolas, industriais, comerciais, econômicos, culturais, estéticos, sociais, políticos. E há de ser pensando neles e entregando-os ao estudo dos moços, preparados segundo as próprias tendências e no contato direto com a vida, que teremos de organizar a educação. Essas verdades não são novas e já constituem elemento orientador da educação pré-escolar, nos jardins da infância e da educação primária, nas escolas primárias, criadas com o intuito da aplicação gradativa dos métodos ativos. E o que o nosso país ensaia com êxito diverso, em vários pontos de seu território. O que ainda não se tentou, porém, aqui, foi a adaptação desses métodos ao curso secundário. E é por isso que a Associação Brasileira de Educação, como estudo preliminar para a III Conferência Nacional de Educação, a reunir-se em São Paulo, nos apresenta os seguintes quesitos.[Deixo de transcrevê-los por ser desnecessário à compreensão do pensamento do autor. P. L.].

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A verdadeira finalidade de um curso secundário deve ser a de educar para a vida. Sua função de preparador para o acesso à universidade tefn de ser uma conseqüência de sua missão de formador do espírito, de preparador de uma mentalidade capaz de atingir a altitude precisa à educação universitária. A universidade é uma parte apenas de sua preocupação. A educação secundária não deve esquecer o homem interior, ao contrário, necessita atender e guiar a psicologia complicada do adolescente, nessa época da vida em que as modificações de sentimento e de caráter são tão profundas. Precisa fazê-lo capaz de crescer sadio, de pensar, de sentir, de agir e nunca de apenas repetir idéias repetidas, postulados, cuja autoridade decorre exclusivamente de maior ou menor ancianidade. E mister não esquecer o trabalho, para não termos, dentro em breve, o espetáculo de um povo que entrega ao estrangeiro o solo, as fontes nacionais de riqueza, preocupado apenas com o mandarinato intelectual, de uma intelectualidade demagógica, vazia e inoportuna. Se é esta a finalidade do curso secundário, é preciso que, ao lado da preocupação verdadeiramente educativa, se lhe abram as portas de par em par, ao ar livre da vida real. – Como organizar o ensino para atender a tal finalidade? Antes de tudo criemos o mestre para o curso secundário, que não existe no Brasil. Onde aprenderam os mestres de nossos ginásios, liceus, ateneus, colégios e das escolas normais, as cadeiras técnicas, que lhes ensinariam a ensinar? Onde estudaram a psicologia do adolescente? Onde fizeram estudos de psicologia experimental, de pedagogia, de didática? Os poucos bons professores que possuímos são autodidatas. Daí a urgência da fundação da Escola Normal Superior. [Essa sugestão já foi de certa forma concretizada com a criação dos cursos de nível superior de preparação de professores para o ensino secundário, médio ou de 2° grau. P. L.] Conseguido o mestre capaz, a medida que se impõe é, então, dentro das realidades ambientes, a educação e a cultura de acordo com as aptidões individuais. A busca dessas aptidões tem portanto de representar papel primacial na educação secundária. Desde a escola primária será possível, principalmente com a tendência de ministrar um ensino dentro das realidades, observar as inclinações, as tendências, as disposições dos escolares. Os testes, as fichas pedagógicas e de aptidão vão preparando o terreno para os Institutos de Seleção e Orientação completarem o trabalho depois. O regime das molduras preestabelecidas para todas as modalidades de inteligência não pode mais prevalecer. O curso secundário deve ter flexibilidade bastante para oferecer, aos moços, novos planos de estudo. Nada no gênero nos poderia ser mais útil do que examinarmos um dos modelos americanos. Vejamos o da Union High School, em Mount Vernon, Washington. [Segue-se a transcrição dos vários planos dos cursos dessa escola secundária norte-americana, que deixo de repetir aqui por ser desnecessário à compreensão do pensamento do autor. P. L.] A rigor, apenas o latim não figura em todos os planos. Todas as demais disciplinas são comuns. E na colocação, na importância dada a cada uma delas, assim como na orientação do ensino, no desdobramento dos programas, em cada plano, que está a solução inteligente do problema. Evidentemente, não podemos aspirar à adaptação imediata desse regime. Ele seria, aliás, magnífico. O estudante da academia de comércio, da escola superior de agricultura, de qualquer estabelecimento técnico-profissional [de nível superior, P. L.] ou das faculdades de direito, medicina, ou engenharia, encontrariam, segundo cada especialidade, o plano adequado a seus futuros estudos. Entretanto, a transição, como quer o plano da ABE, estabelecendo um tronco comum de 4 anos e 3 ramos, A, B, C, para as diversas escolas superiores a seguir (salvo questões de importância relativa), é, a meu ver, uma solução feliz e preparação metódica para a conquista de maior flexibilidade mais tarde.

– Deve ser adotado o ensino clássico? O moderno? Ou outro tipo que melhor consulte a finalidade colimada? A cultura clássica é apenas uma parte do mundo aberta à curiosidade humana.

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A tradição anacrônica, o estudo absorvente das civilizações mortas não podem ser alvo supremo da educação. O passado vale como um estádio da evolução humana para as épocas atuais e futuras. Jamais deverá constituir um elemento fascinador para amoldar o presente e o porvir. Querer estabelecer como norma da formação geral do espírito, imposta a toda a gente e a todas as aptidões, um ensino secundário de base clássica é uma aberração. Esse ensino, num regime de completa flexibilidade, deve ser um dos planos a ser escolhido, aconselhado e ministrado, segundo a aptidão individual e as exigências sociais. E nada mais. – Ou deve ser adotado o ensino secundário moderno? Que quer dizer ensino secundário moderno? Se é impor a todos um ensino baseado no estudo das línguas modernas e de ciência, certamente não. A providência a recomendar, repito, é a variedade de planos, visando aptidões individuais e as necessidades da vida presente. – Como garantir em todo o território nacional o ensino secundário com a necessária eficiência? Pela criação da Escola Normal Superior nos moldes acima descritos e pela adoção de planos flexíveis. – Qual o caráter que deve ter o ensino das diversas disciplinas e qual a extensão dos respectivos programas? As disciplinas devem ser aprendidas, tanto quanto possível, experimentalmente, dentro de um regime em que se apliquem gradativamente métodos ativos, não excedendo nunca os limites traçados pelas necessidades da vida. Os programas, entretanto, não podem deixar de ter plasticidade bastante para variarem segundo as exigências dos diferentes meios sociais. É preciso, contudo, que o número de matérias não seja excessivo, pois, nesse caso, mataria o interesse – , ponto central de toda a aquisição de cultura – , comprometendo não só a formação do espírito, mas o próprio conhecimento. O conhecimento é uma espécie de produto residual; a verdadeira finalidade da educação secundária é o desenvolvimento natural e harmônico do indivíduo físico, mental e moral, a formação de seu espírito e sua integração social. – Como corrigir os defeitos da atual legislação relativos à organização de mesas examinadoras e processos de exames? O problema é complexo. Não creio que a mera modificação no processo de exames traga a solução desejada. A situação a que chegamos é a resultante não só da péssima organização do curso secundário, no Brasil – ponte de passagem para as escolas superiores –, mas da própria mentalidade nacional. Contribuem poderosamente para o atual estado de coisas, de um lado, a complacência dos pais que não compreendem bem o valor da educação e da cultura e, sem investigações a respeito das aptidões dos filhos, os destinam ao bacharelado, e, de outro, a displicência de mestres sem vocação e sem habilidade técnica. Talvez, porém, a situação melhorasse logo com a substituição dos exames de provas pela realização de uma soma determinada de trabalho, durante o ano letivo. – Qual o modo de articular o ensino secundário com o Primário e o Profissional? No Grau Elementar e Superior? Um curso primário de 5 anos, em média, parece-me suficiente para preparar o jovem (de 7 a 12 anos) para o acesso ao curso secundário. Quanto a sua articulação com o profissional (superior), sou pelo exame vestibular

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– Como formar a opinião pública sobre a vantagem de um Curso Secundário, base da cultura média do País? Mostrando a utilidade da educação secundária e facilitando-a a todos os capazes. Quando o povo compreender que o curso secundário dá outra coisa além do certificado para a matrícula na Academia, que prepara o indivíduo com uma base sólida, integrando-o no seu tempo, tornando-o apto a julgar as questões postas a seu estudo, a resolver problemas da vida corrente, a viver, em suma, então a opinião pública começará a interessar-se naturalmente por ele. Mas isso não é ainda tudo. E necessário que ao curso secundário possam ascender todos os capazes. Esse curso deve ser gratuito, reservando-se ainda as bolsas necessárias a todos aqueles (moços e moças) que, embora inteligentes e capazes, não possam, pela escassez de recursos, aspirar a tal educação. Assim orientado, o curso secundário, a propaganda pela imprensa, pela tribuna, nas próprias escolas, nas Associações de Pais e Professores, nas Associações de Educação, ultimará eficientemente a obra renovadora.

••• Esses são os trechos que selecionei entre as sugestões apresentadas por Antônio Carneiro Leão à Associação Brasileira de Educação, em 1929, sobre o ensino secundário, atualmente denominado de 2° grau. Concluindo, parece-me que professores, educadores, sociólogos, publicistas, legisladores, homens de cultura, estudantes, autoridades, enfim, quantos se interessam por tais questões, poderiam ou até mesmo deveriam dedicar algum tempo mais a pesquisar o muito que já se disse e se realizou neste país, no tocante a essas questões, ao menos em passado mais ou menos recente. E quero insistir em que, no caso em apreço, há um enorme repositório especializado, cuidadosamente preservado pela Associação Brasileira de Educação. Do contrário, fica-se com a impressão de que se está despendendo um enorme esforço inútil para abrir portas de há muito já abertas, ou se perdendo muito tempo precioso em exercícios, extremamente cansativos, para os que os praticam e para os que os assistem, de prolixas variações sobre o óbvio. S. M. J.

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CAPÍTULO II

SOBRE PROBLEMAS DE EDUCAÇÃO E ENSINO*

Agora, que parece passado o período dos "milagres" e que as próprias autoridades responsáveis, aliás muito sadiamente, discutem, entre si, a validade e a eficácia de muitas das medidas adotadas com referência ao ensino no país, creio que é chegado o momento de quantos julgam poder trazer alguma contribuição à melhor compreensão e solução dos problemas envolvidos, cumprirem esse dever. E o que pretendo fazer, com as credenciais que penso possuir, com os cinqüenta anos (1924-1974) de serviços prestados ao país, nas áreas da educação e do ensino, enviando a esse prestigioso jornal as reflexões que se seguem, para serem divulgadas, se forem consideradas úteis e oportunas. 1. Para educadores e humanistas, em geral, educação é, essencialmente, o processo que visa desenvolver no indivíduo todas as potencialidades de sua condição humana. 2. Para economistas, planejadores e tecnocratas, educação é, primordialmente, uma área de investimento que visa preparar mão-de-obra para a produção.

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 17/10/1975.

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3. O trabalho é que produz riqueza e não a escola. Se não estou enganado, foi o trabalho do escravo analfabeto que sustentou a economia deste país durante o período colonial e no Império. E, ainda hoje, a percentagem de iletrados que contribuem para a produção e o desenvolvimento no país é bastante elevada. E a de letrados improdutivos não deve ser pequena. 4. A questão de saber se o resultado do trabalho e o conseqüente acesso à cultura e ao lazer devem reverter, integralmente, em benefício de quem realmente trabalha e produz, é um tema explosivo, que leva diretamente à avaliação dos regimes econômicos, políticos e sociais, cuja discussão não cabe aqui. 5. A escola é uma instituição de finalidades precisas, que exige condições mínimas para sua instalação e funcionamento eficiente. Obviamente, é necessário que o aluno a que se destina possa freqüentá-la em situação e pelo tempo suficiente para receber o ensino e a educação que ela se propõe a dar, em cada caso, e que o professor, por seu lado, tenha o preparo e as condições e disponha dos recursos indispensáveis para se desincumbir de sua tarefa. 6. Responsabilizar ou recriminar a escola pelo que a organização social geral não proporciona, como deveria, à população que deve ser ensinada ou educada, é um erro de visão, e uma clamorosa injustiça. A professorinha desassistida e desestimulada ou o professor de qualquer grau, sem os recursos suficientes e sem o preparo conveniente, que não lhe foram fornecidos, e sem, ao menos, a célebre "remuneração condigna", inscrita nas leis, mas nunca alcançada na prática, não podem substituir a desorganização social, a falência da família, a miséria, a fome, a doença, resultantes de fatores estranhos à escola. Ao contrário, são vítimas também dessas circunstâncias (como exemplo, vejam-se as reportagens recentes do Jornal do Brasil sobre as condições do ensino no Estado do Rio de Janeiro). 7. Merenda escolar é um paliativo que pretende suprir a situação em que as famílias não ganham o suficiente para dar a alimentação necessária aos filhos, de modo a torná-los aptos a freqüentar as escolas e delas tirarem o proveito esperado. Se a intenção não é dissimular esse fato, se não é demagógica, se a medida é adotada de boa fé, nem por isso deixa de ser um remendo aplicado a uma situação que não se consegue resolver, na prática. Com outras conotações, o mesmo se poderia dizer dos serviços médicos e dentários escolares. A propósito, lembro-me sempre do comentário de meu professor de administração de sistemas de educação pública, do curso que fiz, em 1939-1940, na Universidade de Michigan, EUA, reconhecidamente uma das maiores autoridades na matéria, quando dizia que "penduraram"

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tantas coisas espúrias nas escolas, que elas acabaram por ter dificuldade em cumprir sua finalidade específica, que é simplesmente a de ensinar as coisas que a família e a sociedade, em geral, não têm mais condições para fazer. 8. Não só os educadores e professores, mas também os médicos, constatam fato semelhante em relação à saúde nas populações em que as doenças carenciais (diga-se de fome) que incidem, em altas percentagens, até mesmo em nossas zonas urbanas, tornam vão qualquer "tratamento" médico. 9. Semelhante também a esses problemas da alimentação e do tratamento médico é o do fornecimento de remédios gratuitos às pessoas de baixa renda, providência recentemente adotada e que motivou o comentário de um senador, no qual diz: Dar o remédio a quem trabalha, admitindo que ele precisa do remédio gratuito porque tem baixa renda, é confessar que quem trabalha não está podendo viver às suas custas. [...] E uma ignomínia que não tem precedentes na história da nação; a própria autoridade federal compreende que aquele de renda mais baixa, o assalariado, enfim, não pode comprar seus remédios (Crítica, 15 a 21/9/1975).

10. Sobre campanhas de alfabetização com prazos marcados para a extinção do "flagelo", da "nódoa" do analfabetismo que "envergonha" a nação, não posso ser otimista. Nesses cinqüenta anos em que me dedico aos problemas de educação e ensino, tenho visto repetirem-se essas campanhas, sempre com o esquecimento da avaliação precisa dos resultados reais da penúltima e o enaltecimento grandiloqüente dos resultados "definitivos" da última. Agora vejo, espantado, que as mais altas autoridades do país empenham-se numa discussão veemente sobre aspectos secundários da questão (idades das pessoas que a campanha deve atingir, etc.), quando o problema principal continua em estado lastimável, segundo as estatísticas oficiais (os enormes contingentes de crianças que não conseguem ir além da 1ª série da escola-elementar). Creio que seria muito mais produtivo que, no lugar dessas campanhas espetaculares, em que se fazem grandes despesas com a propaganda, até de pessoas, se voltasse simplesmente ao regime tradicional em que cada Estado ou município mantivesse, como sempre procuraram fazer, sua rede permanente de ensino vespertino e noturno, de madureza, supletivo, de continuação e aperfeiçoamento, que iria desde a alfabetização até cursos de extensão, mesmo, em certos casos, de nível superior, de acordo com os recursos de que pudessem dispor em cada caso, sem nada de espetacular ou de provisório, mas atendendo, de maneira contínua, a quantos que, não tendo podido receber ensino nas idades próprias, se dispusessem a fazê-lo em outras oportunidades. (A propósito, sem Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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falsa modéstia, lembro a tese pioneira que apresentei sob o título "Educação de Adultos" ao l Concurso para a seleção de técnicos de educação, realizado no Brasil, pelo MEC, em 1938). 11. E difícil compreender, diante da brutal evasão escolar que incide logo sobre a 1ª série da escola elementar brasileira, em razão de fatores fundamentalmente de caráter econômico-sociais, se pensasse em estender a obrigatoriedade escolar desse grau de ensino para oito anos, copiando a organização escolar de países desenvolvidos. E verdade que, quase sempre, as leis desse tipo representam metas a atingir, sem prazo, mas, no caso, parece que se levou muito longe a distância entre o país legal e o país real. Quatro ou cinco anos de ensino de 1º grau obrigatórios, creio, seria o máximo que o desenvolvimento atual do país comporta, mesmo nos centros urbanos. Mas isso mesmo, sem nada de mobilizar a polícia para perseguir as famílias das classes pobres que não possam enviar os filhos às escolas ou nelas mantê-los regularmente. Há entre o povo uma tal mística pela escola, que somente a absoluta impossibilidade material impede de matricular os filhos nas escolas disponíveis. Não há quem não conheça os casos de sacrifícios heróicos de empregadas domésticas para educar os filhos; e as filas nas portas das escolas pela disputa das escassas vagas existentes anualmente atestam a iniqüidade da medida policial para obrigar a freqüência às escolas sugerida por certos administradores. 12. É no ensino de 2° grau, como se sabe, que o impacto da situação econômico-social se faz sentir com mais crueza: é o "ponto nevrálgico da questão", conforme dizia o Manifesto dos Pioneiros de 1932 (de que tenho a honra e a sorte de ser um dos signatários ainda vivos). Aí as ilusões se perdem: a grande maioria de jovens tem que ir diretamente para o mercado de trabalho; uma minoria, apenas, pode aspirar ao ensino superior. É inútil, pois, o pernosticismo das "terminalidades", dos cursos "profissionalizantes", etc., etc. Os fatos são crus e não adianta encobrilos com um palavreado pomposo, vezo muito comum entre nós. 13. Ainda quanto ao ensino de 2° grau, prefiro ouvir o realismo de um empresário às elucubrações de muitos administradores de ensino, técnicos e filósofos de educação. Leio na oração feita pelo senhor Aprígio Lopes Xavier (das Casas Sendas) perante uma recente Convenção Nacional de Empresas de Supermercados, citando Peter Drucker, "famoso autor americano" em administração, em seu livro A era da descontinuidade: A tecnologia do século 20 abrange e se alimenta da ampla gama de conhecimentos oriundos tanto das ciências exatas como das ciências humanas. [...] Exige-se do técnico que se torne um humanista, pois de outra forma lhe faltará o conhecimento e a percepção para tornar sua ciência eficaz. Exige-se do humanista conhecimento científico ou sua ciência será também irrelevante e ineficaz.

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14. Ou ainda, da mesma oração, essa bela imagem sobre o preparo do homem para o trabalho: É bom que se frise que o investimento no homem nunca pode ser considerado em termos de uma indústria onde se coloca a matéria-prima na máquina e, automaticamente, é gerada uma peça, mas sim, em termos agrícolas, em cujo plano há necessidade de se arar a terra, de se adubar o solo, semeá-lo, irrigá-lo, para, após o período imposto pela natureza, ver-se-lhe nascer o fruto que, por sua vez, não pode ser abandonado à sua própria sorte, mas tem que ser cuidado e mantido segundo suas características e peculiaridades, pois que, do contrário, perecerá (Jornal do Brasil, Suplemento Especial, terça-feira, 26/8/1975, p. 11).

15. Com relação a esse mesmo problema, prefiro também afirmações como as do secretário-geral do Ministério do Trabalho, senhor Jorge Alberto Jacobus Furtado quando, em reportagem à revista Manchete (n. 1.219, p. 120-121): Esclarece que, pessoalmente, não é favorável à obrigatoriedade da profissionalização em nível de 2° grau. A atenuação da exigência de profissionalização, seja pela maior abrangência de habilitações básicas, seja pela preparação em campos multifacetados que conduzem a um posterior aprofundamento especializado no trabalho, é caminho indispensável para contornar o risco de oferecer uma opção profissionalizante não desejada, mas apenas consentida para cumprir a lei.

O senhor Jorge Furtado pergunta adiante qual a importância que convém dar ao ensino escolar (anterior ou concomitante ao ingresso na vida profissional) e à formação do emprego. E ele próprio responde citando Harbison (Planificação da educação e desenvolvimento dos recursos humanos, Unesco), que afirma [...] estar amplamente provado que, na maior parte dos países, não é absolutamente rentável formar futuros operários qualificados em escolas profissionais; é muito mais vantajoso dar-lhes primeiramente uma instrução secundária geral e formá-los, em seguida, profissionalmente no próprio emprego.

Lembro-me, a propósito, em anos passados, das afirmações que industriais faziam a autoridades do Ministério da Educação, encarregadas do setor de ensino profissional: – Dêem os senhores, do Ministério da Educação, o preparo geral aos adolescentes e jovens, em escolas comuns, e nós lhes daremos o necessário preparo profissional, nas próprias empresas ou em organizações por nós dirigidas (tipo Senai).

Essa solução, além de mais barata, é muito mais eficaz, como facilmente se compreende. As escolas técnicas, mantidas pelo governo, além de muito dispendiosas, rapidamente se tornam obsoletas, pela impossibilidade de acompanhar o progresso da tecnologia. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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16. O ensino superior só se entende como alta especialização, como qualidade. Não tem sentido aí a discussão entre qualidade e quantidade: ou tem o nível que deve ter em cada caso eu não é ensino superior. Falar em seu baixo nível como caso de somenos importância e apelar para a pósgraduação para corrigi-lo, é um contra-senso. Se há baixo nível, é preciso conduzi-lo ao nível que deve ter. Nenhuma outra medida é aceitável. 17. Enaltecer a expansão estatística desse grau de ensino, encobrindo sua situação real, não me parece comportamento digno de educadores. A expansão desordenada da matrícula, todos reconhecem, fez baixar o nível do ensino superior e isso não é admissível, em nenhum grau, e muito menos nesse, como vimos. 18. Eliminar, aparentemente, com métodos estatísticos, a existência dos chamados "excedentes" no ensino superior é outro expediente também inadmissível. Se o "excedente" é considerado incapaz, então não é excedente, é simplesmente incapaz, e não pode ter acesso às escolas superiores. Se é capaz e não consegue vaga no curso que deseja seguir, é porque o país não dispõe de recursos ou estes não foram devidamente mobilizados para proporcionar o aumento real de oportunidades nesse grau de ensino, necessariamente caro. Creio que a juventude, até porque está sendo educada, merece a verdade de seus educadores. 19. Parece que o ensino superior lucraria com o restabelecimento do sistema tradicional que dava aos respectivos estabelecimentos a responsabilidade de fixarem os critérios e organizaram as provas de ingresso de candidatos aos seus cursos, rigorosamente de acordo com suas possibilidades de matrícula. Acredito na superior capacidade e no critério dos respectivos corpos docentes e administrativos para se desincumbirem, com melhor conhecimento de causa, dessa tarefa. São eles os maiores interessados em receber em seus cursos estudantes devidamente preparados e amadurecidos para aproveitarem o ensino que lhes deve ser ministrado. 20. Não consigo vislumbrar qualquer vantagem em transferir tal incumbência para um órgão burocrático centralizado, que se cerca de todo um aparato pretensamente científico, onde as despesas não devem ser pequenas, para realizar uma operação anual, de rotina, que não lucra nada em se ver alvo de uma propaganda de tipo espetacular-comercial, em termos quase circenses. Que esse não é o melhor caminho parece comprovado pela eliminação da prova escrita dos chamados exames vestibulares, em nome da obtenção da finalidade marginal da mecanização e conseqüente pretensa objetividade das provas, agora considerada como uma das graves falhas da seleção que se pretende realizar. Em matéria de computadores ainda prefiro ficar com Norbert Wiener, o criador da cibernética, quando diz:

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Dai ao homem o que é do homem e ao computador o que é do computador. Essa seria a orientação inteligente a adotar, quando homem e computador são usados lado a lado em tarefas executadas em conjunto (Wiener, N. Deus, Golem & Cia. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 76).

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CAPÍTULO III

MEDIDA QUE NÃO SE JUSTIFICA*

Como velho professor aposentado, que já não tem filhos nem outros dependentes em idade escolar primária, não posso entretanto deixar de estranhar a medida recentemente adotada pelo governo municipal do Rio de Janeiro que prevê a suspensão do pagamento dos vencimentos dos servidores municipais que não comprovarem a matrícula de seus dependentes, de 7 a 14 anos, em escolas primárias. Parece-me que salário é coisa sagrada porque corresponde a serviços prestados e não pode ficar sujeito ao arbítrio de ninguém. Além disso, creio que nenhum funcionário deixe de providenciar pelo menos educação primária para seus dependentes, desde que haja escolas e recursos suficientes. E algum mais humilde que, eventualmente, por dificuldades intransponíveis, deixar de fazê-lo, sofrerá uma punição extra que agravará sua situação, se cumprida a determinação acima referida. Cumpra o município ou o Estado seu dever de assegurar educação, ao menos elementar, para todos, e ajude os carentes de recursos a poder freqüentar as escolas com proveito (o recenseamento escolar, recentemente realizado, deve ter indicado onde estão essas crianças e suas condições econômicas e sociais), e não

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 20/2/1976.

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haverá necessidade de adotar tais medidas coercitivas e outras até de caráter policial, há tempos sugeridas. Obrigatoriedade escolar existe sim nos países desenvolvidos, que já cumprem integralmente esse dever elementar de proporcionar ensino, até mesmo secundário, a todos, mas assim mesmo o problema ainda permanece em áreas mais pobres ou longínquas. Caso semelhante é o que se verifica com relação ao Imposto de Renda: o governo, que ainda não conseguiu realizar a operação banal de entregar aos interessados em tempo útil os formulários e os comprovantes de pagamento (deveriam estar à disposição dos mesmos no dia 2 de janeiro de cada ano), estabelece prazos improrrogáveis para a entrega das declarações, sob pena de sanções rigorosas. E ainda pune duplamente os servidores com a suspensão do pagamento de seus salários ou proventos, se não comprovarem a entrega da declaração. O Estado do Rio, por exemplo, está entregando os comprovantes dos pagamentos feitos em 1975 a seus servidores, anexados ao contracheque relativo ao mês de fevereiro (!). E não fornece cópia dos mesmos, obrigando a uma despesa extra com um xerox, pois é sempre bom estar prevenido, dada a filosofia das repartições arrecadadoras de imposto, que consideram o contribuinte como um relapso em potencial, até prova em contrário, e muitas vezes mesmo com a apresentação dela...

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CAPÍTULO IV

ANÍSIO TEIXEIRA*

A 12 de julho próximo passado, Anísio Teixeira completaria 76 anos, se não tivesse desaparecido, e de maneira tão trágica, em março de 1971. Relembrar, nessa oportunidade, sua vida extremamente fecunda, em que soube aliar, com rara propriedade, atividades de caráter prático, como administrador, a estudos teóricos do mais alto valor, na especialidade a que se dedicou – a educação –, é sem dúvida um dever de quantos tiveram o privilégio de privar de perto com essa admirável figura humana. Afrânio Peixoto expressava, com sua verve habitual, uma verdade que estava na consciência de todos nós, amigos, colegas, colaboradores e admiradores de Anísio Teixeira, quando dizia que ele, juntamente com Carneiro Leão, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho eram os "cardeais da educação brasileira". E de Monteiro Lobato ouvi repetir o ditado popular que diz ser nos menores frascos que se contêm as mais raras essências, para definir a brilhante inteligência de Anísio, que brotava de um corpo fisicamente tão franzino. Como todo homem que se antecipa de muito à sua época, Anísio foi alvo de tremendas incompreensões e perseguições mesquinhas. Em 1935, quando estava à

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 19/7/1976.

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frente da Secretaria de Educação e Cultura da antiga capital da República, onde continuava e ampliava a obra pioneira de Fernando de Azevedo, foi acusado maliciosamente de veicular idéias e de desenvolver atividades com as quais sua formação humanista e democrática jamais poderia concordar. Em anos mais recentes, segundo creio, imputações do mesmo teor voltaram a lhe ser feitas, talvez um pouco mais veladamente, mas que resultaram em que o país se viu privado de sua insubstituível colaboração, num setor em que era um mestre consagrado e onde há tanta carência de verdadeiros valores. Sem desânimo ou recriminações, porém, até sua morte trágica, continuou a elaborar trabalhos da mais alta qualidade, os quais, como todos os que produziu, constituem, sem dúvida, matéria de estudo obrigatório para quantos desejam compreender melhor toda a complexa problemática da vida brasileira e encontrar valiosas indicações para a solução de muitos aspectos das questões mais difíceis referentes à educação, ao ensino e à cultura, no Brasil e até mesmo fora dele. Com a compreensão que estou certo merecer do Jornal do Brasil, a divulgação destas palavras representará modesta homenagem que desejo prestar ao eminente mestre e amigo, com quem tive a felicidade de colaborar em dias bastante difíceis (1931-1935), na magnífica obra que realizou na chefia da educação pública do antigo Distrito Federal.

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CAPÍTULO V

FERNANDO DE AZEVEDO*

A 18 de setembro de 1974 falecia, em São Paulo, Fernando de Azevedo (1894-1974), que foi, sem dúvida, uma das mais altas expressões da inteligência e da cultura do Brasil moderno. Evidentemente, não cabe numa simples carta relembrar toda a sua imensa obra nos campos do jornalismo, da crítica literária, da literatura clássica, da educação, do ensino, da sociologia, da história, da biografia, do ensaio ou das atividades na administração do ensino nos dois mais adiantados centros do país: a antiga capital da República e o Estado de São Paulo. Quero, porém, assinalar aqui apenas três dos momentos mais significativos dessa vida extraordinariamente fecunda, os quais, segundo penso, são os seguintes: 1º) A grande reforma do ensino no antigo Distrito Federal (1927-1930), da qual Fernando de Azevedo foi o líder, como diretor da Instrução Pública, reforma essa que, segundo as opiniões mais autorizadas, foi o marco inicial do processo de modernização do ensino no Brasil. 2°) O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), redigido por Fernando de Azevedo,

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 17/9/1976.

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documento único da história da educação brasileira, no qual se traçavam as diretrizes para a educação e o ensino no país, a serem adotadas pela Revolução de 1930. Subscrito por um grupo dos mais eminentes educadores e intelectuais, mantém até hoje sua validade. 3°) A monumental obra A cultura brasileira, redigida inicialmente para servir de introdução ao recenseamento de 1940, tornou-se de consulta obrigatória para quem deseje conhecer a evolução da cultura nacional, em todos os seus aspectos. Mas o objetivo desta carta, além de registrar a data em que se completam dois anos da morte do eminente educador, é lembrar que o atual município do Rio de Janeiro tem, para com Fernando de Azevedo, uma dívida ainda não resgatada. E, segundo me parece, o mínimo que as autoridades que atualmente governam o município ou o Estado do Rio de Janeiro poderiam fazer para saldá-la, seria dar a uma de suas instituições de educação mais importantes o nome do grande reformador do ensino. E entre essas instituições há uma – o Instituto de Educação do Rio de Janeiro – que foi fruto exclusivo da ação de Fernando de Azevedo quando imprimiu à formação dos professores primários cariocas uma nova orientação, para que esses futuros mestres pudessem ficar à altura de suas mais complexas responsabilidades traçadas pela reforma. E para que a antiga Escola Normal passasse a dispor de uma base física condizente com os novos objetivos, Fernando de Azevedo providenciou a edificação do belo conjunto arquitetônico da Rua Mariz e Barros, planejado, construído, instalado e inaugurado em tempo recorde. Como um dos auxiliares diretos de Fernando de Azevedo na grande reforma de ensino na antiga capital do país, fui testemunha pessoal do carinho com que acompanhava a construção e do entusiasmo com que reunia seus colaboradores para lhes mostrar e comentar as plantas e as fotografias que documentavam o desenvolvimento da magnífica obra, cuja conclusão só foi possível graças à sua visão e tenacidade, tal a soma de dificuldades que teve que enfrentar. Nada mais justo, pois, que o Instituto de Educação do Rio de Janeiro venha a se denominar Instituto de Educação Fernando de Azevedo, o que, além de consagrar o nome de seu criador, consagraria também o de um dos maiores educadores brasileiros.

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CAPÍTULO VI

HELOÍSA ALBERTO TORRES*

Ausente do Rio de Janeiro, foi com a maior consternação que li na edição de O Globo, de 1º de março corrente, o anúncio da missa de 7º dia por alma de Heloísa Alberto Torres. Havia muito tempo que não tinha notícias dela, não a sabia doente e também não tive conhecimento das circunstâncias em que se deu sua morte. Muito me surpreendeu também não encontrar em nenhum jornal qualquer registro da morte dessa extraordinária mulher e cientista (Já estavam escritas essas palavras quando leio a crônica, sempre original e muito carinhosa, de Carlos Drummond de Andrade, que, como chefe de gabinete do ministro Capanema, privou muito de perto com a ilustre desaparecida). Antropóloga de renome, conhecida especialmente pelos estudos que realizou sobre a civilização marajoara, tive o privilégio de colaborar com essa dileta filha de Alberto Torres, quando ela ascendera à direção do Museu Nacional. Essa notável instituição científica, a mais antiga e conceituada do país, atravessava então uma grave crise. A desacumulação demagógica de cargos públicos, sem remuneração reparadora, determinada pela

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Carta dirigida a O Globo em 7/3/1977.

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carta constitucional do Estado Novo, resultara em que, inopinadamente, o Museu Nacional e todas as outras instituições da mesma importância, se vissem privadas da atividade de seus maiores valores, no caso do Museu, de um Roquete-Pinto, um Meio Leitão, entre tantos outros. Havia ainda a precariedade das instalações, já de si impróprias para uma casa dedicada à pesquisa em ciências naturais e antropológicas. Só mesmo a coragem dessa mulher extraordinária poderia enfrentar uma situação dessa natureza. Assumiu a responsabilidade de fechar o Museu à visitação pública e, com energia invulgar, lançou-se à tarefa de sua reorganização. Por meio de concursos públicos procurou recrutar um grupo de jovens que viesse, no futuro, preencher os claros deixados pelos velhos mestres. Com a ajuda de Rodrigo de Melo Franco, então diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pois o prédio era tombado, atacou a obra imensa de restaurar o velho e enorme edifício imperial, cujo estado era dos mais precários, ameaçando até a integridade física dos visitantes que se acumulavam nos salões das exposições, especialmente aos domingos, pois o madeiramento secular ameaçava ruir. Foi nessa oportunidade (1942) que travei conhecimento pessoal com Heloísa Alberto Torres e passei a colaborar em sua obra. Convidado por ela, assumi a direção da Seção de Extensão Cultural, para reorganizá-la, de acordo com o novo regulamento que lhe conferia funções complexas, tais como manter as exposições para o público, dar cursos de aperfeiçoamento para professores de ciências naturais e antropológicas, editar as publicações científicas e de divulgação cultural, entre outras. As obras se arrastavam com a lentidão característica, dados os conhecidos estrangulamentos dos canais burocráticos e a tradicional exigüidade das verbas, quando se trata de problemas culturais e científicos. E a reabertura do Museu Nacional era assim protelada de ano para ano, apesar dos esforços ingentes da diretora. Chegou-se assim ao fim do Estado Novo (1945) e aí tentou-se, solertemente, responsabilizar a direção da instituição, acusando-a até de incompetência e incapacidade. Tratava-se, porém, apenas de um jogo de ambições recalcadas num momento de confusão. A tudo Heloísa Alberto Torres resistiu e, apoiada pelos colegas da Divisão de Antropologia, conseguiu reabrir as exposições das vinte salas dessa especialidade, em moldes modernos, dentro dos recursos existentes. Em seguida, as outras divisões, de zoologia, de botânica, de mineralogia e geologia, seguiram o exemplo. O Museu Nacional reabriu bastante melhorado e a missão da diretora estava cumprida. Amargurada pelas injustiças que sofrera e cansada pela enorme tarefa que realizara, pouco depois deixava a direção da instituição onde se formara, desde muito jovem, sob a direção de seu mestre e amigo Roquete-Pinto. E passou a integrar o Conselho Nacional do Índio, cujo estudo e defesa era a sua paixão. Heloísa Alberto Torres, como Berta Lutz, sua colega ilustre naquela casa de ciência, são exemplos de que, em havendo oportunidades e condições, nenhuma diferença existe entre homens e mulheres para galgarem os mais altos níveis da cultura e da ciência, em qualquer de seus aspectos.

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Com a morte de Heloísa Alberto Torres a ciência brasileira sofre, sem dúvida, uma grande perda, e eu uma excelente amiga. Dela recebi a carta mais honrosa de toda a minha longa carreira de educador, pelos serviços que julgou que eu lhe havia prestado, quando deixei o cargo que me confiara, mas também dela recebi apoio inexcedível em momento muito difícil de minha vida.

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CAPÍTULO VII

HUMBERTO MAURO E O INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA EDUCATIVO

A morte de Humberto Mauro, a 5 de novembro de 1983, fez-me recordar aqueles tempos (1947-1960) em que trabalhamos juntos no Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) do Ministério da Educação e Cultura. A criação desse Instituto, em 1936, foi uma feliz iniciativa do ministro Gustavo Capanema. E não se poderia desejar escolha mais acertada para organizar e dirigir esse novo órgão do MEC do que a de uma das mais altas expressões da ciência e da cultura brasileiras, tal como foi Roquete-Pinto. Não sei quem teria sugerido a Roquete-Pinto a entrega da produção do Ince à competência, à vocação artística e à dedicação do cineasta-pioneiro Humberto Mauro, mas essa foi uma providência de rara inspiração e que assegurou, sem dúvida, o sucesso da obra que ia ser tentada. O Instituto Nacional de Cinema Educativo tinha por finalidade principal produzir filmes, especialmente documentários, de caráter artístico, científico, cultural, técnico, educativo e didático, para serem utilizados no ensino de todos os níveis e modalidades e também como veículos de difusão cultural. E, apesar de Humberto Mauro ter seu nome consagrado como pioneiro do cinema-espetáculo, em filmes de grande metragem, ele considerava o documentário como o verdadeiro filme, ou melhor, julgava que todo filme deve ser sempre, basicamente, um Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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documentário, seja dos sentimentos e das emoções humanas, seja da arte, da ciência ou da técnica. E no Ince, a capacidade técnica e a excepcional sensibilidade artística do cineasta mineiro uniram-se à vasta e multiforme cultura de Roquete-Pinto, numa fecunda conjugação de duas personalidades de temperamentos, caracteres, formação e educação completamente diferentes, mas com resultados admiráveis. No fim de algum tempo, depois de um indispensável ajustamento entre essas duas notáveis figuras humanas, começaram a aparecer os primeiros frutos dessa feliz convergência de esforços e criatividade, na forma de excelentes curtametragens. Entre elas, destacavam-se algumas verdadeiras jóias de sensibilidade e beleza, tais como, por exemplo, Casinha pequenina e Azulão, este, uma interpretação cinematográfica da conhecida canção de Jaime Ovale, que Mauro dizia, com a verve habitual, ser o menor filme do mundo... Ele era um terrível humorista, sempre ágil em surpreender os aspectos mais caricaturáveis do comportamento das pessoas, inclusive dele próprio ou dos acontecimentos. E foi assim que a produção do Ince alcançou a cifra extraordinária de mais de 800 documentários, entre artísticos, biográficos, científicos, culturais, técnicos, educativos e didáticos, que eram fornecidos às escolas e às instituições de caráter científico ou cultural para complementação do ensino comum e especializado ou como meios de divulgação da arte e da cultura. Em 1942, se bem me lembro, estando Roquete-Pinto em vésperas de se aposentar, convidou-me para substituí-lo na direção do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Não pude, entretanto, aceitar tão honroso convite, feito diretamente pelo próprio diretor do Ince, porque, na ocasião, realizava trabalho importante como chefe de uma das seções técnicas do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, dirigido, na época, por Lourenço Filho. Roquete-Pinto não gostou de minha recusa e pediu-me então que indicasse alguém de minha confiança para sucedê-lo na direção do Ince. Sugeri-lhe o nome do doutor Pedro Gouvêa Filho, médico, meu colega como inspetor de ensino do Estado do Rio de Janeiro, professor de ciências naturais e, como eu próprio, técnico de educação do MEC, o qual me parecia ser pessoa capaz de dar continuidade à obra notável que Roquete-Pinto e Humberto Mauro realizavam no Ince Minha sugestão foi aceita e dentro de algum tempo o doutor Pedro Gouvêa Filho assumia a direção do Instituto (que só deixou em 1960), continuando a bela obra que ali se realizava, sempre com a indispensável colaboração de Humberto Mauro. Em 1947, Pedro Gouvêa Filho, por sua vez, chamava-me para dirigir a Seção de Orientação Educacional do Ince. E foi então que tive a rara oportunidade de conhecer pessoalmente Humberto Mauro. E isso foi para mim uma verdadeira revelação, pois até então eu apenas sabia que se tratava de um pioneiro do cinema brasileiro, e de sua produção só tivera a oportunidade de apreciar aquela belíssima Favela dos meus amores. Como chefe da Seção de Orientação Educacional eu era o encarregado de elaborar os roteiros dos filmes a serem editados e de preparar os textos a serem gravados, os quais deveriam ter o caráter de verdadeiras aulas, com todos os indispensáveis requisitos educativos e didáticos, adaptados, porém, à linguagem cinematográfica.

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Recordo-me bem de que, ao assumir minhas funções no Ince, Humberto Mauro estava preparando um documentário sobre a vida e a obra de Castro Alves. Como freqüentemente fazia, ele já tinha providenciado a filmagem do que restava de mais importante na Bahia, no Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo que pudesse documentar a vida dramática do grande poeta dos escravos. Tratava-se, em seguida, de redigir o texto a ser gravado na trilha sonora, com as características apontadas. E foi aí que iniciei minha estreita colaboração com Humberto Mauro. Com a malícia, que era também um dos traços marcantes de sua extraordinária personalidade, Mauro dirigiu-se a mim, ainda com alguma cerimônia, dizendo-me mais ou menos o seguinte: "Antes, era o próprio doutor Roquete-Pinto quem fazia esse trabalho. Agora há no Ince somente uma pessoa capaz de substituí-lo nessa tarefa... Essa pessoa só pode ser você..." Era ao mesmo tempo um desafio e uma prova de confiança... Respondi-lhe que nunca me dedicara antes a tal atividade, mas com o auxílio dele, Mauro, enfrentaria a tarefa com a melhor aplicação e boa vontade. E assim completamos o primeiro documentário da série de biografias, resultado de minha colaboração com Humberto Mauro. Daí em diante, continuamos a trabalhar em perfeita harmonia e, sob a orientação do grande cineasta, ganhava eu cada vez maior desembaraço nesse tipo de atividade, antes completamente alheio às minhas cogitações de professor de história e filosofia da educação, de administrador de ensino e, principalmente, de política de educação. Nesses treze anos de convívio diuturno com Humberto Mauro, fui descobrindo as múltiplas facetas de sua riquíssima personalidade: artista de profunda sensibilidade; técnico dos mais completos na arte cinematográfica; agudíssima inteligência com que supria, de certa forma, suas falhas culturais, que ele próprio reconhecia; um homem de rara integridade moral, católico praticante, profundamente ligado à família, devotando um verdadeiro culto à companheira de toda a vida, de todas as glórias e vicissitudes – dona Baby – e aos filhos, dois dos quais – o Luís e o Zequinha – orientados por ele tornaram-se bons profissionais na técnica da cinematografia. Mas acima de tudo, Humberto Mauro era um ser verdadeiramente telúrico, que hauria toda a sua extraordinária vitalidade e sensibilidade ao contato com a natureza de sua Minas Gerais e, especialmente, de sua querida Volta Grande, de que nunca se separou e onde se inspirava para realizar suas melhores produções. Ali repousa agora, no solo sagrado, depois de uma vida fecunda de amor à terra, à arte, e à sua gente. 1984

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CAPÍTULO VIII

O PROFESSOR SOUSA SILVEIRA

Em meio de toda essa exibição de tantas ambições desenfreadas pela conquista e desfrute do poder, com desprezo das mais profundas aspirações e prementes necessidades do povo brasileiro, é reconfortante verificar que ainda haja espaço para se relembrar o centenário de um simples professor que dedicou toda a sua vida a formar a juventude na apreciação e no conhecimento de nossa língua nacional. Refiro-me ao professor Álvaro Ferdinando de Sousa Silveira, cujo centenário de nascimento transcorreu a 11 de maio de 1983. O artigo de Antônio Carlos Vilaça, publicado no Jornal do Brasil (14/5/1983, p. 12), intitulado "Sousa Silveira, 100 anos. Engenheiro, poeta e mestre da língua portuguesa" e também o de O Globo, sem menção do autor, "Sousa Silveira, o centenário de um cultor da língua portuguesa" (17/5/1983, p. 26), transportaram-me aos anos de minha juventude, quando, na Escola Normal do antigo Distrito Federal, em 1922, naquele casarão do Largo do Estácio, fui aluno do professor Sousa Silveira. Chamava, desde logo, nossa atenção nas aulas do professor Sousa Silveira, além de sua cultura e erudição, um trato extremamente educado e atencioso conosco, seus alunos; a maioria, aliás, constituída de moças, quase sempre irrequietas, pouco atentas às excelentes lições que recebíamos e nem sempre mantendo a desejável disciplina, correspondente às atenções que nos dispensava o paciente mestre. Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Causava-nos, depois, estranheza seu sotaque característico da pronúncia lusitana, pois desconhecíamos então que, além de pai português, o professor Sousa Silveira tivera prolongada residência na Europa, especialmente em Portugal. Por fim, não compreendíamos sua dedicação tão fervorosa ao culto e ao ensino da língua pátria, quando viemos a saber que o nosso professor era engenheiro civil, diplomado pela tradicional Escola Politécnica do Largo de São Francisco. Suas aulas eram extremamente fecundas. Através delas era-nos dado penetrar até as origens da nossa língua e compreender como, aos poucos, ela foi se destacando do tronco comum – o latim – e ganhando autonomia entre suas irmãs – as neolatinas – e, por fim, no Brasil, adquirindo características próprias, do que se pode, com razão, denominar – língua brasileira. O curso a cargo do professor Sousa Silveira era de Português e Literatura e, assim, depois de nos fazer percorrer e apreciar o que havia de mais significativo na literatura portuguesa, desde os primórdios de sua formação, mostrava-nos como, aos poucos, nossa literatura nacional foi se constituindo e ganhando independência e importância. Entretanto, demorava-se em nos fazer compreender e admirar as belezas do maior poema épico da língua – Os Lusíadas – cujas passagens principais eram analisadas, quer do ponto de vista literário, quer em seus aspectos lingüísticos e gramaticais. Freqüentemente, aquelas tortuosidades características do poema faziam com que o professor percorresse toda a turma à procura de quem lhe desse a interpretação certa do trecho em questão, e como nem sempre obtivesse resposta satisfatória, dirigia-se a mim, meio encolhido lá no fundo cia sala, pois percebera que eu devia ter tido na matéria boa iniciação. Realmente, graças ao meu outro grande mestre – Teófilo Moreira da Costa – que me preparara para os exames do Colégio Pedro II e também para o concurso de admissão ao curso da antiga Escola Normal, eu já adquirira um conhecimento razoável do poema de Camões, que era texto obrigatório no exame final de português no tempo dos chamados "preparatórios", e assim, muitas vezes, pude corresponder às expectativas do professor. Aquele ano de 1922 era, para nós, o último do curso da Escola Normal, e ao chegar ao final veio a hora das despedidas e das tradicionais homenagens aos professores. Em nossa turma, se bem me lembro, somente o professor Sousa Silveira recebeu de nós um adeus comovido de reconhecimento. Fui eu o encarregado pelos colegas de saudá-lo e de entregar-lhe, em nome da turma, uma lembrança. Guardo até hoje, passados mais de 60 anos, as seis tiras de papel almaço em que, num estilo rebuscado, muito próprio de quem mal saía da adolescência, mas repassado de grande emoção e sinceridade, patenteava ao mestre todo o nosso apreço e reconhecimento pelos valiosos ensinamentos que nos proporcionara e, ao mesmo tempo, augurava-lhe "um futuro glorioso". Nossos votos realizaram-se plenamente. A carreira do professor Álvaro Ferdinando de Sousa Silveira levou-o aos mais altos estágios na especialidade a que se devotou durante toda a sua vida. É, pois, com inteira razão que Antônio Carlos Vilaça termina o artigo citado com estas palavras, que resumem muito bem a vida e a obra desse homem culto e cordial "que seria professor a vida inteira", "apaixonadamente professor":

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Probidade intelectual e atividade docente exemplar, disseram todos quando, a 5 de setembro de 1967, Sousa Silveira morreu na sua casa do Cosme Velho, cercado pela veneração dos discípulos, aos oitenta e quatro anos de idade. Foi um dos maiores filólogos do Brasil.

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CAPÍTULO IX

SOBRE A LIBERDADE*

Todos nós, professores, escritores, cientistas, jornalistas, artistas, e, digamos sem modéstia, intelectuais, de modo geral, evidentemente, só podemos trabalhar, produzir e assumir plena responsabilidade de nossas atividades num ambiente completamente arejado, definido por essa palavra mágica, que foi, em todos os tempos, a bandeira mais nobre de luta da criatura humana pela afirmação exata de sua humanidade – a liberdade. Adonias Filho diz com muita propriedade: Historicamente, quando a liberdade não o protege, o intelectual não perde apenas a autenticidade do seu trabalho. Transfigura-se em servidor do poder público, que o deforma ou emudece para morrer em solidão. O que se prova, e a partir de Sócrates, é que, temido em conseqüência da receptividade, clima algum será possível para seu trabalho autêntico, fora da liberdade (em O bloqueio cultural. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1964, p. 9).

E, no mesmo folheto, à p. 14, ele lembra que Jacob Boehme já dizia "que a liberdade é o primeiro fundamento do homem". Por isso mesmo, é óbvio que não podemos nos conformar com qualquer restrição a essa "condição

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 3/8/1976.

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humana", qualquer que sejam os argumentos dos que pretendem opor-lhe qualquer forma espúria de limitação. A luta pela liberdade, em todos os seus aspectos, ao contrário do que muitos pensam, representou sempre os momentos mais significativos e mesmo mais dramáticos de nossa história. E agora, quando se avoluma o debate em torno da censura, em suas variadas formas e justificativas, entre tantos outros exemplos, parece-me vir muito a propósito relembrar uma passagem de nossa crônica colonial, constituída pela resposta a um inquérito mandado realizar pelo conde da Ponte, governador e capitão-general da Bahia, em 12 de maio de 1807, para saber da situação da lavoura, da pecuária e do comércio, que eram as principais atividades da Colônia, e informar o príncipe-regente D. João, conforme solicitação deste, que recebia muitas e sérias reclamações referentes a esses sustentáculos da economia daqueles tempos. A resposta é do desembargador João Rodrigues de Brito, datada de 28 de maio de 1807, e se refere ao quesito assim formulado: Das causas nocivas à lavoura provenientes da falta de instrução. E na parte final de sua longa e atualíssima (!) resposta, dizia ele: Mas todas essas benéficas instituições [de ensino, educação e cultura, que propunha criar ou desenvolver. P. L.] e outras semelhantes, de pouco aproveitarão para espalhar os conhecimentos humanos, sem a liberdade de pensar e publicar os pensamentos, por todos os meios conhecidos, principalmente o da imprensa. Essa preciosa liberdade habilita o Filósofo a instruir a um tempo o gênero humano todo nos mais recônditos lugares do Globo. Espalhando as luzes como o Sol, descobre todas as manchas e põe à vergonha os velhacos e os empregados públicos prevaricadores, que por isso tremem dela, pintando-a sempre em feias cores, como perturbadora do sossego público e com razão, porque ela põe os espíritos em movimento, rasga as cortinas e as máscaras dos cortesãos e as vendas que tapam os olhos dos Monarcas, deixando penetrar a luz da verdade onde sem aquela liberdade ela jamais entrou. O povo que lograr essa ventura não pode retrogradar: porque a mesma difusão das luzes descobre os perigos apenas aparecem e, ao mesmo tempo, os remédios. Sem ela, o Monarca não pode conhecer o espírito público de seu povo. É a cabra-cega, que anda às apalpadelas sem ver os precipícios, é um piloto sem carta nem bússola do Oceano (Rodrigues de Brito. A economia brasileira no alvorecer do século 19. Salvador: Livraria Progresso Editora, s/d. Coleção de Estudos Brasileiros. Série 1ª, v. 2, p. 132-133.).

Como se sabe, pouco depois o príncipe D. João chegava ao Brasil, e assessorado principalmente por José da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, abria os portos brasileiros ao comércio internacional, liberava a indústria, o comércio, a imprensa, criava as primeiras instituições de cultura no país, e sem ter talvez a consciência muito clara do que fazia, preparava com essas medidas o Brasil para a independência, que não tardou muito a se realizar, coroando o processo de luta do povo brasileiro, que vinha desde os chamados movimentos nativistas, mas que esbarravam sempre na repressão sangrenta da metrópole, como sempre acontece na epopéia da libertação dos povos.

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CAPÍTULO X

SOBRE A LOCALIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO*

Quero de público expressar meus aplausos ao professor Afrânio Coutinho pelos artigos que vem escrevendo sobre os problemas do ensino superior no Brasil. Assunto complexo, desejo aqui me referir apenas à questão da localização da antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ, pois sempre reputei um grave erro a "solução" que, depois de longas controvérsias, acabou por ser adotada. Como contribuição histórica, devo lembrar que lá pelos idos da década de 40, na qualidade de assessor parlamentar ocasional, veio às minhas mãos um projeto dando autorização ao Executivo para fixar em definitivo o local em que deveria ser construído o campus da então Universidade do Brasil. Contrariando a maioria das opiniões da época, condenei a desnecessária e ultrapassada reunião das várias unidades universitárias que constituíam o estabelecimento e principalmente a localização que já então se pretendia dar às mesmas. Sugeri que o grupo das ciências biológicas, encabeçado pela tradicional Escola de Medicina, fosse mantido em definitivo na Praia Vermelha, onde o governo federal dispunha de uma enorme área, que se estendia

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 8/3/1977.

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desde aquela praia até o velho edifício do antigo Hospício Nacional, onde aliás, posteriormente, funcionou, por muito tempo, a reitoria da Universidade. A Escola de Agronomia e Veterinária já estava muito bem instalada no km 47 da antiga estrada Rio-São Paulo. E as outras unidades do grupo poderiam ser construídas, com vantagem e economia, nessa área. Quanto ao grupo das escolas destinadas ao ensino das ciências físicas e matemáticas e tecnologia, que era encabeçado pela velha Escola Politécnica, muito mal instalada no histórico Largo de São Francisco, opinava que fossem construídas exatamente na área da chamada Favela do Esqueleto, onde posterior-mente foram erguidos os prédios da Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). A proximidade da Escola Técnica Nacional, da mesma modalidade de estudos, em nível médio; a construção posterior do Estádio do Maracanã, que serviria para a prática da educação física e dos esportes; e a vizinhança da Quinta da Boa Vista, que seria ligada ao restante da área universitária por amplo viaduto sobre a Estrada de Ferro, completaria um magnífico campus para esse setor. Quanto às Escolas de Direito, Filosofia, Letras, Educação e semelhantes, continuariam instaladas no centro da cidade, próximo às bibliotecas, tribunais, arquivos e outras instituições, que são seus principais instrumentos de trabalho e de prática. A nada porém se quis atender, e as autoridades da época, inebriadas pela grandiosidade de um futuro campus faraônico erguido às suas vaidades, acabaram por decidir pela pior das "soluções", com imensas despesas de aterrar ilhotas, à entrada da Ilha do Governador, para se conseguir uma área contínua, numa localização de evidente difícil acesso, agora tornada completamente inadequada pela proximidade do também faraônico aeroporto internacional, que nenhum país colocou tão dentro da cidade, com graves inconvenientes para tudo e para todos. Os resultados de toda essa teimosia e falta de visão estão aí a ressaltar da observação mais superficial. Digo tudo isso apenas para lembrar que houve na época quem, com a responsabilidade de seu cargo, opinasse contra essa solução que reputava insensata e oferecia a alternativa completa, que reputava perfeitamente exeqüível, com todas as vantagens. E isso sem prejuízo da admiração que dedicava ao doutor Hildebrando Horta Barbosa, companheiro de lutas na Associação Brasileira de Educação, a quem foi entregue a direção do escritório encarregado da construção da Universidade, e que se desincumbiu, com a probidade e eficiência que o caracterizavam, da tarefa, uma vez que era a resolução final adotada pela autoridade superior. Aqui, como em tantos outros casos, em que as resoluções são adotadas em círculos fechados, que se consideram oniscientes, na minha opinião, cometeu-se erro grave, com dissipação de recursos públicos, pelo que, como sempre acontece também, ninguém é responsabilizado. Sacrificou-se o essencial, que no ensino e na educação é a qualidade, em benefício de aparências enganadoras, monumento à incompetência e à vaidade dos ocasionais detentores do poder.

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CAPÍTULO XI

UMA RUA CHAMADA TIETA*

Tenho lido cartas de leitores, endereçadas a esse jornal, protestando contra o fato de o prefeito desta outrora cidade maravilhosa ter dado a uma rua o nome do último livro de Jorge Amado – Tieta do Agreste. Alega-se que a personagem principal, cujo apelido dá título ao romance, é uma prostituta, ficando assim constrangedor explicar, a quem indagar da significação do nome dessa rua, principalmente se se tratar de uma criança, além de ser de mau gosto e profundamente deseducativo. De minha parte, penso o contrário, e como educador confesso honestamente que não sentiria qualquer constrangimento nem dificuldade se uma criança ou qualquer outra pessoa me perguntar: – Mas, afinal, quem é essa Tieta cujo nome foi dado à rua em que moro? É o de alguma heroína, de alguma pessoa importante, alguma Ana Néri ou Joana d'Arc, que sirva de exemplo para nós?

E eu responderia: – É o título de uma obra literária de um dos maiores escritores brasileiros vivos – Jorge Amado. – Mas como personagem do livro, quem é ela afinal?

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil e a O Globo em 3/10/1977.

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– Ora, trata-se de uma pobre menina sonhadora e inocente que pastoreava cabras lá longe numa povoaçãozinha à beira-mar, no Estado da Bahia. Certo dia, um caixeiro-viajante violentou-a e o pai, preso às tradições, expulsou-a de casa. Desamparada, sem saber o que fazer para continuar vivendo, como quer todo o ser vivo, acabou indo para São Paulo, a cidade grande, e ali se prostituiu completamente, vítima de todas as maldades e injustiças que sempre costumam sofrer os pobres e desprotegidos. Mas ela era bonita, forte, ambiciosa, e resolve lutar muito até se tornar muito rica, usando o corpo com inteligência, que é explorado pelo dinheiro, pelos vícios dos donos da vida, de figurões importantes, políticos, homens de negócio, etc., etc., etc. Mas ela sempre sonha em voltar um dia ao seu belo vilarejo natal, à beira-mar, lá longe, na sua querida Bahia, para descansar um pouco das desgraças e das agressões da vida que levava. E um dia volta, reencontra a família, os amigos, toda aquela gente simples, e com seu dinheiro impuro e o prestígio advindo dele, faz bem a todo mundo, sem ódios ou recriminações. Por fim, salva a sua vilazinha de pescadores da ação nefasta de malvados internacionais que, mancomunados com malvados nacionais corruptos, queriam instalar ali, onde ela nascera e criara as suas cabrinhas, uma indústria de um produto químico perigosíssimo, que nenhum outro lugar do mundo aceitou, pois destrói plantas, bichos da terra, do ar e da água, as crianças, as mulheres, os homens, enfim, tudo aquilo que Deus criou, para a beleza, para o amor e para a vida. Tudo para que os malvados ficassem cada vez mais ricos, para melhor satisfazer seus vícios e comprar outras Tietas pobres e inocentes. E assim se redime de todos os pecados que a ignorância, o desamparo e a vida dura a fizeram cometer. E é quase adorada como santa, tal como tantos outros que foram antes grandes pecadores, sendo um dos maiores, Santo Agostinho, um dos pais da Igreja Católica Apostólica Romana.

Segundo me parece, essas pessoas que tão honestamente se estão escandalizando com o nome da rua, talvez empregassem melhor sua veemência e vigilância protestando contra essas empresas "moralistas" que maculam, que violentam nossas crianças, metendo-lhes pelos lares adentro essas tais "mulheres maravilhas" e outras coisas semelhantes, a violência dos enlatados estrangeiros, os anúncios que cantam as excelências dos vícios do sexo, do fumo e da bebida, e não encontram qualquer restrição por parte do governo tão forte e truculento, que maneja a censura contra todas as formas de manifestação da arte e da inteligência. Penso que o livro de Jorge Amado talvez venha a fazer mais pela defesa de nossa natureza, em benefício das futuras gerações, e que está sendo devastada pela cupidez do lucro de empresas nacionais e estrangeiras, do que todos esses institutos e outros órgãos que existem por aí, em sua inoperância burocrática. E talvez por isso mesmo o livro venha sendo alvo dessa campanha de desmoralização...

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CAPÍTULO XII

A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO – 53 ANOS*

Em outubro de 1924, um grupo de destacados professores, educadores, intelectuais e cientistas fundava, no Rio de Janeiro, a Associação Brasileira de Educação (ABE). Dentro em pouco, a novel agremiação recebia a adesão dos mais capazes e responsáveis elementos que, em todo o país, se dedicavam à prática, aos estudos e à pesquisa no campo da educação e do ensino, de todos os graus e modalidades. Entre os notáveis serviços que a ABE prestou ao país, nesses 53 anos de atividades, contam-se a organização das Conferências Nacionais de Educação, a primeira das quais foi realizada em Curitiba, em 1927. Entretanto, talvez a de resultados mais produtivos foi a 5ª, convocada para Niterói e realizada de 26 de dezembro de 1932 a 8 de janeiro de 1933. Seu objetivo principal era preparar sugestões que seriam oferecidas ao governo, para serem submetidas à Assembléia Constituinte, que deveria se reunir a partir de 1933, para votar a nova Carta Constitucional brasileira. Nessa oportunidade, uma áspera controvérsia dividiu os educadores brasileiros, principalmente no tocante aos problemas da introdução do ensino religioso nas escolas, em caráter obrigatório, e na definição da participação do Estado e dos particulares na orientação e na manutenção do ensino.

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil e a O Globo em 10/10/1977.

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Os constituintes de 1933 souberam, porém, encontrar, para essas graves questões, uma fórmula bastante equilibrada, que representou a média das opiniões em choques e que foi consubstanciada no capítulo intitulado "Da família, da educação e da cultura", o qual, pela primeira vez, aparecia em nossa Lei Magna. Mas, o ponto mais alto das realizações da ABE foi, para mim, a convocação da IX Conferência Nacional pela Educação Democrática, realizada de 22 a 28 de junho de 1945, quando o nazismo acabava de ser derrotado na Europa, e a queda do nosso fascismo caboclo - o Estado Novo - era iminente. Creio que é digno de ser reproduzido aqui, pelo seu alto valor e evidente oportunidade, o manifesto de convocação dessa Conferência, que é o seguinte: Moção aprovada pelo Conselho Diretor da Associação Brasileira de Educação, na sessão realizada em 19 de março de 1945: Considerando que somente sob um regime democrático pode ser empreendida a educação do povo, porque é de falsidade evidente toda a doutrina educacional ou política que pretende formar bons cidadãos onde foi anulado o exercício dos deveres cívicos elementares, como o de escolher os representantes da Nação e o de discutir e fiscalizar os atos dos detentores do poder; Considerando que a ABE foi fundada sob a inspiração dos mais puros ideais democráticos e, desde então, em todas as ocasiões necessárias, 'tem cumprindo a tarefa sagrada de oferecer aos poderes públicos a sua crítica construtiva e as sugestões de seus estudos, procurando manter essa diretriz, apesar das dificuldades oferecidas pelas suspensões de franquias constitucionais: Considerando que a essência do regime democrático está no respeito à majestade da Constituição e das Leis, emanadas dos legítimos representantes da Nação e no respeito aos direitos constitucionais consagrados pela Civilização: Resolve: a) exprimir seu voto pelo retorno do país ao regime democrático, no mais breve prazo possível; b) felicitar calorosamente a legião de escritores, professores, estudantes, jornalistas e homens públicos que acabam de reconquistar para a Nação o direito de ser ouvida quanto aos seus destinos; c) convocar, o mais breve possível, um Congresso de Educação, a fim de reafirmar os princípios e corolários da educação democrática e sugerir as medidas necessárias para sua aplicação à atualidade brasileira.

Infelizmente, por ser muito extenso, não será possível reproduzir na íntegra o notável documento aprovado como conclusão dos trabalhos dessa Conferência, denominado Carta Brasileira de Educação Democrática. Transcreverei, entretanto, o item 1º, intitulado "Conceito e objetivos da educação democrática", que é o seguinte: Educação democrática é aquela que, fundada no princípio da liberdade à pessoa humana, assegura a expansão e a expressão da personalidade, proporcionando a todos igualdade de oportunidades, sem distinção de raças, classes ou crenças, na base da justiça social e da fraternidade humana, indispensáveis a uma sociedade informada pelo espírito de cooperação e do consentimento. Por isso mesmo, a educação democrática exige, além de uma concepção democrática de vida, uma organização social em que a distribuição do poder econômico não estabeleça nem antagonismos nem privilégios.

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Esperando que esse importante órgão da imprensa brasileira possa dar aos problemas que levanto nesta carta o mesmo destaque que dedica ao relato de minúcias de crimes bárbaros, profundamente deseducativas, com os meus agradecimentos, os protestos de estima e consideração com que me subscrevo.

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CAPÍTULO XIII

O MANIFESTO DOS PIONEIROS DA ESCOLA NOVA*

Em 1932, há 45 anos pois, um grupo de professores, educadores, cientistas e intelectuais em geral, bastante representativo da cultura brasileira, dirigia "ao povo e ao governo" um documento intitulado "A reconstrução educacional no Brasil" e ao qual denominaram Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Tinha por objetivo principal indicar rumos que, segundo entendiam os seus signatários, a Revolução de 1930 deveria adotar para consolidar a obra de renovação que pretendia realizar em todos os setores da vida nacional. Era subscrito pelos seguintes nomes, na ordem em que aparecem na publicação feita posteriormente em volume (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1932): 1. Fernando de Azevedo (redator principal); 2. Afrânio Peixoto; 3. Sampaio Dória; 4. Anísio Teixeira; 5. Lourenço Filho; 6. Roquete-Pinto; 7. Frota Pessoa; 8. Júlio de Mesquita Filho; 9. Raul Briquet; 10. Mário Casassanta; 11. Delgado de Carvalho; 12. Almeida Junior; 13. J. P. Fontenele; 14. Roldão Lopes de Barros; 15. Noemi Silveira; 16. Hermes Lima; 17. Atílio Vivaqua; 18. Francisco Venâncio Filho; 19. Paulo Maranhão; 20. Cecília Meireles; 21. Edgar Süssekind de Mendonça; 22. Armanda Álvaro Alberto; 23. Garcia de Rezende; 24. Nóbrega da Cunha; 25. Paschoal Lemme; 26. Raul Gomes.

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil e a O Globo em 19/9/1977.

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O documento compunha-se de uma introdução e dos seguintes capítulos, abrangendo todos os aspectos dos problemas da educação e do ensino no Brasil da época: I – Movimento de renovação educacional; II – Diretrizes que se esclarecem; III – Reformas e a Reforma; IV – Finalidades da educação; V – Valores mutáveis e valores permanentes; VI – O Estado em face da educação: a) a educação, uma função essencialmente pública; b) a questão da escola única; c) a laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação. VII – A função educacional: a) a unidade da função educacional; b) a autonomia da função educacional; c) a descentralização. VIII – O processo educativo; O conceito e os fundamentos da educação nova; IX – Plano de reconstrução educacional: a) as linhas gerais do plano; b) o ponto nevrálgico da questão; c) o conceito moderno de universidade e o problema universitário no Brasil; d) o problema dos melhores. X – A unidade da formação de professores e a unidade de espírito; XI – O papel da escola na vida e sua função social; XII – A democracia – um programa de longos deveres. Como tantos outros documentos semelhantes, teria que ser e foi taxado, na ocasião de seu lançamento, de romântico, utópico, irrealista, faccioso e, até mesmo, de subversivo, pelos que, sempre e em todas as épocas e lugares, abominam ou temem as mudanças, a renovação vivificadora, o advento inevitável de novos tempos. Mas esses retrógrados impenitentes, timoratos ou apenas oportunistas, sempre foram e continuarão a ser superados pelo próprio processo histórico, que inclui sempre a possibilidade da transformação de sonhos ideais, utopias, vagas aspirações de poucos, no presente, em realidades vivas, no amanhã, para muitos. E a humanidade não teria futuro se essa mais fecunda lição da história não armasse e sustentasse os povos, as nações, os homens na luta por dias melhores, ainda que para isso tenha que ser derramado, como já tem acontecido tantas vezes, muito sangue, suor e lágrimas. Quando, mais uma vez, nos dias atuais, uma sadia inquietação e promissor espírito de resistência vai penetrando nos mais amplos setores da vida nacional na ânsia de procurar o caminho que conduza o povo brasileiro a um futuro melhor, creio ser oportuno lembrar o transcurso desses quarenta e cinco anos do lançamento desse documento, já incorporado na história da educação no Brasil, com o qual um grupo de brasileiros procurou cumprir seu dever de esclarecer o povo e o

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governo sobre seus pontos de vista referentes à especialidade a que se dedicavam: os problemas da educação e do ensino.

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CAPÍTULO XIV

SOBRE O RECENSEAMENTO ESCOLAR NO RIO DE JANEIRO*

Com relação ao censo escolar que se pretende realizar na área do atual município do Rio de Janeiro, o que todos desejam, evidentemente, é que ele se efetue da maneira mais eficiente possível e, principalmente, o que é óbvio, que seus resultados sirvam efetivamente para que sejam tomadas as medidas decorrentes de suas conclusões, que se façam necessárias. Parece-me, entretanto, que em se tratando de órgão de imprensa tão merecidamente conceituado como é o Jornal do Brasil a verdade histórica não é questão desprezível. No editorial de 11/9/1975 desse jornal lê-se que: Temos conhecimento de apenas dois censos escolares realizados no país: o primeiro, em 1920, no Estado de São Paulo, quando era Presidente da República Washington Luís, e o segundo aqui mesmo no Rio, em maio de 1964.

Por um lapso, estou certo, ficou esquecido nesse comentário talvez o recenseamento escolar mais importante, realizado sob a direção de Fernando de Azevedo como preparação para a Grande Reforma do Ensino no antigo Distrito Federal (1927-1930), a qual, como todos reconhecem, constituiu o ponto de partida para o movimento de renovação do ensino no país.

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil e a O Globo em 11/9/1975.

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Como um dos elementos que tiveram o privilégio de ser um dos colaboradores do eminente educador brasileiro, poderia dar meu testemunho pessoal sobre esse 1.0 Censo Escolar da antiga capital da República. Prefiro, porém, utilizar as palavras do próprio reformador, tiradas de seu livro de memórias (História de minha vida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1971). À página 89, diz ele: Pronto o projeto e dada por mim sua redação final eu o devia levar, como o levei, ao Prefeito Prado Junior para que, aprovado, fosse encaminhado ao Conselho Municipal. Foi o que se fez. O que submeti à aprovação do Prefeito foi um projeto de reformas radicais que apresentei com uma larga e bem fundada exposição de motivos. O senhor Prefeito o aprovou sem restrições e o encaminhou ao Conselho Municipal, que devia sobre ele pronunciar-se. E, enquanto se passavam os dias de estudos, investigações e expectativas, a Diretoria Geral de Ensino tomava iniciativas de toda ordem. Uma delas, senão a principal, o Recenseamento Escolar do Distrito Federal. Para se executar com maior segurança uma reforma radical era indispensável um conhecimento, tão exato quanto possível, da população em idade escolar, e de quantos, atingida essa idade, freqüentavam escolas, e quantos, todos os anos, seriam postos à margem por não haver, em número suficiente, classes em escolas. O resultado desse recenseamento escolar que se planejou, se realizou, e se aprovou em menos de dois meses, foi desolador, o Distrito Federal não dava ensino primário senão a pouco mais de metade das crianças em idade escolar.

Assim escrevia Fernando de Azevedo sobre o recenseamento escolar realizado no Distrito Federal, em 1927. Creio não ser também despropositado aproveitar a oportunidade para lembrar que, exatamente há um ano, a 18 de setembro de 1974, falecia em São Paulo o grande educador, tendo o Jornal do Brasil registrado sua morte com uma nota sob o seguinte título: "Fernando de Azevedo morre em São Paulo e deixa vasta contribuição à sociologia", na qual dizia: O sociólogo Fernando de Azevedo, último representante vivo do chamado Movimento dos Educadores e autor de volumosa bagagem literária nas áreas da educação e da sociologia, morreu ontem em sua casa no Bairro do Pacaembu, na capital de São Paulo, aos 84 anos (Jornal do Brasil, quinta-feira, 19/9/1974, p. 3).

E, no dia seguinte (20/9/1974), no caderno B, p. 1, publicava excelente estudo intitulado "Fernando de Azevedo – A memória de uma revolução na escola brasileira", no qual se lia: Com a morte do sociólogo e educador Fernando de Azevedo, em São Paulo, desaparece o último representante do grupo de educadores que, a partir da década de 20, empreenderia verdadeira revolução na educação brasileira, rompendo com os velhos métodos herdados do Império e procurando adaptá-los às exigências de uma sociedade industrial que começava a emergir naquela época. Desse grupo, centralizador de uma polêmica que duraria anos, faziam parte Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Francisco Campos, e seus princípios estão expressos num documento historicamente tão importante para a educação no Brasil como o é para as nossas artes e literatura a Semana da Arte Moderna de 1922: o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que fixava as "Diretrizes de uma política escolar inspirada em novos ideais pedagógicos e sociais e planejada para uma civilização urbana e industrial".

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O atual Município do Rio de Janeiro, o antigo Distrito Federal e capital da República, segundo me parece, ainda não resgatou uma dívida para com essa figura notável de professor, educador e sociólogo, que foi, sem dúvida, um expoente da cultura brasileira. E há no Rio de Janeiro uma instituição, fruto exclusivo de sua dedicação à causa da educação e do ensino – Instituto de Educação do Rio de Janeiro –, que funciona naquele belo edifício à Rua Mariz e Barros, que Fernando de Azevedo planejou, fez construir e instalou com um carinho, um entusiasmo, um verdadeiro amor, raros na administração pública. Com ele, a formação dos professores da antiga capital da República passou a se fazer de maneira condigna, à altura das novas missões e responsabilidades que passaram a caber aos mestres cariocas, de acordo com a grande reforma do ensino de 1927-1930. Somente com aquela magnífica base física que encontraram, puderam, posteriormente, Anísio Teixeira e Lourenço Filho transformar o Instituto de Educação na instituição moderna e modelar que passou a ser. Não seria o caso de reparar essa lacuna, dando ao notável estabelecimento de formação de professores o nome de seu criador: Instituto de Educação Fernando de Azevedo?

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CAPÍTULO XV

SOBRE COMEMORAÇÕES*

A 12 de outubro comemora-se o Dia da Criança, a 15, o Dia do Professor, a 5 de novembro o Dia da Cultura, este último instituído pela Lei n° 5.579, de 15 de maio de 1970, na data do nascimento de Rui Barbosa. E a 13 de maio dever-se-ia comemorar o Dia da Abolição da Escravidão, cuja campanha foi "a mais generosa, a mais entusiástica e a mais popular de quantas até hoje se tem pelejado no Brasil", no dizer de Osório Duque Estrada em seu livro hoje raro, A Abolição (1918), prefaciado por Rui Barbosa. Causa estranheza, entretanto, que nessas e em outras datas semelhantes, da maior significação para a nacionalidade, o Ministério da Educação e Cultura não promova comemorações condignas. Enquanto isso, as Forças Armadas, muito apropriadamente, não deixam passar qualquer data, até mesmo da simples criação de unidades militares (dia da artilharia, da infantaria, da cavalaria, etc.), sem festividades comemorativas apropriadas que se estendem, às vezes, por semanas inteiras, com farta utilização dos meios de comunicação para que esses eventos ganhem a devida significação junto ao povo.

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil e a O Globo, mas que não chegou a ser remetida.

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E nessas festividades há sempre farta distribuição de condecorações a membros das várias corporações militares e a civis. Existe, entretanto, por força de lei, uma Ordem do Mérito Educativo. Será que neste país não há um professor, um educador, um intelectual, um cientista que mereça receber em seu dia as homenagens que a lei permite outorgar a quem se distingue, por suas atividades, nessas áreas do saber? Recentemente, até Pelé recebeu, aliás muito justamente, das mãos do Presidente da República, por indicação do Ministério da Educação e Cultura, a Cruz do Mérito Desportivo.

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CAPÍTULO XVI

EDUCAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DA RENDA*

Com bastante atraso, por motivos alheios à minha vontade, venho expressar ao Jornal do Brasil minhas calorosas felicitações pela excelente contribuição que vem dando ao esclarecimento dos problemas referentes à educação e ao ensino no país, talvez inédita na imprensa nãoespecializada, através de repetidas reportagens (algumas até premiadas), entrevistas, noticiário crítico e também em freqüentes editoriais, cuja veemência, em várias oportunidades, exprime bem as preocupações, não somente do Jornal do Brasil, mas também, estou certo, de grande número de brasileiros, em face da crise crônica em que se debate esse setor básico da vida nacional. A meu ver, um trecho do editorial de 12 de abril de 1976, intitulado "Perseguindo números", resume muito bem a questão quando diz: No Brasil a situação é aparentemente tão insolúvel quanto em qualquer outro lugar, excetuando-se países mais desenvolvidos. A crise educacional alicerça-se em deficiências estruturais, envolve problemas de saneamento básico, saúde pública, transporte, má distribuição da renda, subalimentação.

Realmente, o quadro geral da escolarização brasileira, em todos os graus e modalidades, não poderia

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Carta dirigida ao Jornal do Brasil em 5/5/1978.

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senão corresponder a essas deficiências estruturais, econômicas, sociais e políticas. E um dos aspectos mais graves dessa situação é, sem dúvida, aquele apontado pelo Jornal do Brasil em uma de suas reportagens mais dramáticas: a existência de uma maioria de deserdados que não consegue chegar à escola ou dela tirar algum proveito, quando acaso se matricula. Mesmo antes de iniciar a escolaridade, um grande número já está condenado ao fracasso pelas deficiências orgânicas e de meio social que apresenta e em que vive, pois não pôde receber os cuidados alimentares e higiênicos indispensáveis a um desenvolvimento normal, desde o nascimento, e até mesmo antes, e cresce ou vegeta em ambientes culturais desprovidos de quaisquer estímulos (veja-se, a propósito, o trabalho do professor Nelson Chaves, A nutrição, o cérebro e a mente. Rio de Janeiro: Edições Cruzeiro, 1971). Assim, a simples observação nos mostra que educação, instrução, e especialmente ensino sistemático, escolar, só podem ser adquiridos e desfrutados, com proveito e de maneira progressiva, a partir de um mínimo inicial de condições materiais e culturais. E, por sua vez, a instrução geral e profissional e a cultura, na medida em que são adquiridas, passam a constituir fatores de melhoria dessas mesmas condições materiais, profissionais e culturais. E esse ponto de partida está, é claro, diretamente relacionado com os recursos de que disponham as famílias para atender às suas necessidades materiais e culturais. E aí se insere o problema da distribuição da renda que, segundo penso, é a mais decisiva daquelas deficiências estruturais apontadas pelo Jornal do Brasil no editorial citado, e que condicionam a possibilidade de acesso proveitoso à educação e ao ensino. Assim, pode-se afirmar que o perfil da distribuição da renda, aqui como em qualquer outro lugar, molda a pirâmide educacional que, no Brasil, como se sabe, apresenta, além de uma base pouco ampla um afunilamento rápido, o que significa que apenas um reduzido número de brasileiros consegue atingir os mais altos níveis de educação e ensino. O mais grave, porém, é que essa situação da distribuição da renda vem piorando nos últimos anos, conforme demonstram os dados coletados pelos recenseamentos de 1960 e 1970, e os disponíveis posteriormente, isto é, nesse período "aumentou ainda mais a distância que separa os brasileiros mais ricos dos mais pobres". E, com o surto inflacionário que vem recrudescendo nos últimos anos, a situação deve estar se deteriorando ainda mais. A propósito, em conferência realizada em 5/10/1976, na Faculdade de Direito de São Paulo, em comemoração ao sesquicentenário da criação dos cursos jurídicos no Brasil, o então ministro da Indústria e Comércio, senhor Severo Gomes, era obrigado a reconhecer que, [...] em termos sociais, não se pode negar que a largueza da liberdade econômica em que vivemos tem provocado acumulação e concentração de riqueza em segmentos privilegiados da sociedade brasileira, reforçando-lhes, em espiral, o poder de reivindicação e a capacidade de conquistar mais benefícios em detrimento da grande parcela que também contribui na produção da riqueza, mas que se distancia cada vez mais na hora de participar dos resultados.

Mas não é só esse ex-ministro e muitos outros brasileiros que pensam dessa forma sobre essa controvertida questão da distribuição da renda. Também técnicos

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estrangeiros opinam no mesmo sentido. E entre eles pode ser citado o sr. John Adier, do Banco Mundial (Bird), que, segundo notícia publicada no Jornal do Brasil (12/2/1977, p. 21), dizia: O crescimento da renda e do produto interno bruto (PIB) da América Latina nos últimos 30 anos, atestando o desenvolvimento de um grupo de países do continente, só terá significação real na medida em que os benefícios do progresso forem repartidos com todos.

E adiante: Crescer não é tudo e, por isso, torna-se necessário um amplo progresso político e social que exige que todos os membros da comunidade dele participem.

E ainda: Ressaltando acreditar ser a sua opinião a mesma de organismos internacionais como a ONU, o técnico do Banco Mundial declarou que, apesar de um grupo de nações da América Latina haver emergido nas últimas três décadas de desenvolvimento pleno para um estágio de semi-industrialização, os benefícios dessa evolução, infelizmente, não foram estendidos às camadas mais pobres da população. [...] O orçamento não deve ser utilizado apenas para aumentar a eficácia do setor público, mas também para se obter o progresso no sentido mais amplo de distribuição eqüitativa da renda e justiça social.

Segundo me parece, a situação torna-se insolúvel entre nós, conforme diz o Jornal do Brasil no editorial citado, em face do "modelo" de desenvolvimento que estamos adotando, o qual gera essa injusta distribuição da renda. Ele, entretanto, vem sendo defendido pelos técnicos oficiais como o mais adequado às nossas condições. Creio que esses técnicos têm perfeita consciência dos efeitos, a curto prazo, da aplicação desse "modelo", mas, segundo dizem, esperam com ele preparar o país para um radioso futuro remoto de "grande potência". Para isso, porém, são necessários grandes sacrifícios da parte da maioria, sacrifícios esses que podem chegar mesmo, conforme vem acontecendo, a situações de verdadeiras tragédias. É a história do "bolo" que deve primeiro crescer suficientemente para poder ser dividido no futuro de modo satisfatório, com a maioria. Antes, porém, as maiores fatias devem caber obrigatoriamente à minoria que, segundo se afirma, por suas atividades consideradas essenciais, comanda e promove o crescimento do "bolo". Para tentar corrigir os efeitos dessa política econômica, o governo adota medidas de caráter paternalista e assistencial, tais como merenda escolar, serviços médicos e dentários escolares, livros a preços reduzidos, remédios gratuitos, bolsas de estudo, crédito educativo e outras, o que constitui o reconhecimento de que a maioria das famílias brasileiras não está podendo alimentar e educar os filhos, com a dignidade e a eficiência necessárias, com os recursos obtidos com o próprio trabalho. E se acrescentarmos a esse panorama econômico-social os aspectos propriamente políticos, ou seja, os referentes à repressão e à censura, principalmente onde sempre se considerou como o local apropriado para o livre debate de todas as idéias – o ambiente universitário –, teremos a explicação para muito da alienação, do pragmatismo rasteiro, do hedonismo, da incultura, do tédio, do desinteresse, do Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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apelo a práticas desviantes, de grandes contingentes de nossa juventude das classes de maiores recursos; e para as camadas mais pobres – a maioria – está resultando no assustador aumento do abandono e da criminalidade de crianças e jovens, submetida que está essa maioria a essa dieta paupérrima de corpo e de espírito. E nesse ambiente de tantas restrições econômicas, sociais e políticas destaca-se, com enorme eficácia e recursos praticamente inesgotáveis, a propaganda comercial, especialmente estrangeira, que bombardeia e "instrui" incessantemente nossa infância e juventude sobre os "métodos" mais fáceis e eficazes de obter rapidamente "sucesso" na vida e que parece resumir-se na tetralogia: sexo – violência – fumo – bebida. Não quero concluir essas ligeiras considerações com uma paródia a uma frase de efeito fácil, dizendo que os problemas de educação, ensino e cultura são complexos demais para serem tratados apenas por professores, educadores, técnicos de educação ou até mesmo por autoridades de educação, qualquer que seja sua hierarquia. Desejo apenas acentuar que se a discussão se limitar aos aspectos puramente escolares e pedagógicos dos problemas em questão, como vem sendo feito, entre nós, sem a abordagem das deficiências estruturais que lhes servem de base e os condicionam, pouco esclarecimento real obteremos para as questões envolvidas. Pois até mesmo o simples desempenho escolar, ou seja, o aproveitamento no ensino ministrado nas escolas, está na dependência dos antecedentes sócio-econômicos dos estudantes. E para quem aprecia como decisivas as achegas da pesquisa, especialmente de origem estrangeira, para alicerçar opiniões mais ou menos óbvias, duas referências: na Inglaterra, o chamado Relatório Plowden (1967), que investigou os aspectos sociais e educacionais das escolas primárias, verificou que, entre as escolas, a variação no desempenho educacional (aproveitamento escolar dos alunos), que era significativo, devia-se em grande parte a fatores não-educacionais (escolares). Nos Estados Unidos, o Relatório Coleman (1966) chegou a conclusões semelhantes: [...] independentemente da composição social e racial da amostra, os antecedentes sócio-econômicos dos estudantes constituíram a influência mais importante nas diferenças verificadas no desempenho escolar; em seguida veio a qualidade dos professores e, finalmente, a qualidade e a quantidade dos outros recursos existentes nas escolas (citado por John Sheehan in: The economics of education, Londres, 1973).

Creio, pois, que os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo acertaram em cheio ao convidarem um ministro da área econômica para lhes falar nas comemorações da data da criação dos cursos jurídicos no Brasil. E parece que o convidado correspondeu plenamente às expectativas, pois levou para dentro das arcadas históricas o debate de problemas cruciais da sociedade brasileira e entregou a professores e estudantes indagações e dúvidas sobre as quais seria ilógico que não tivessem plena liberdade de discutir. Releve-me, senhor diretor, mais uma vez, estas considerações sobre os problemas da especialidade que me vem preocupando, sem exagero, por cerca de cinqüenta anos. E dada a complexidade desses problemas e o temor de sacrificar demasiadamente a clareza na exposição de meus pontos de vista, não pude sequer atender ao sábio conselho do fidalgo D. Quixote de la Mancha ao seu fiel escudeiro Sancho Pança: "Sê breve en tus razonamientos que ninguno hay gustoso si es largo".

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CAPÍTULO XVII

MENSAGEM DIRIGIDA AOS EDUCADORES REUNIDOS NA II CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO REALIZADA EM BELO HORIZONTE, DE 10 A 13 DE JUNHO DE 1982

Prezados colegas, Recebi o convite que me foi insistentemente dirigido pelos organizadores da II Conferência Brasileira da Educação, a realizar-se em Belo Horizonte, durante os dias 10 a 13 de junho deste ano de 1982, como a expressão de uma homenagem a um velho educador, não por qualquer mérito especial e pessoal que pudesse distingui-lo, mas simplesmente como a maneira prática e possível de significar o apreço das novas gerações de educadores por aquelas figuras que já ilustram as páginas da história da educação do Brasil, pois que, durante mais de meio século, devotaram suas vidas à luta, sem tréguas e sem desfalecimentos, para assegurar ao povo brasileiro o direito fundamental de acesso à educação, ao ensino e à cultura, sem privilégios ou discriminações, requisito indispensável e característica definidora de uma sociedade verdadeiramente democrática. Infelizmente, razões de ordem particular, que não me foi possível contornar, entre as quais avultam problemas de saúde, impediram-me de comparecer pessoalmente, ao menos à abertura dos trabalhos deste importante conclave, que reúne jovens colegas de ofício e de preocupações. E é certo que senti profundamente tais circunstâncias, pois nada me seria mais gratificante e honroso, nesta altura de minha vida, do que gozar desse convívio direto, sem dúvida carinhoso e perpassado de Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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todo o calor humano que seria, por certo, proporcionado ao velho professor. Além disso, não seria menos reconfortante verificar que a tocha que iluminara, durante tanto tempo, os mais altos ideais de todo aquele pugilo de insignes educadores brasileiros, que os fados, sempre imprevisíveis, dessa aventura que é a vida humana, me designava agora como representante e intérprete ocasional, fora transmitida e empunhada com firmeza e decisão, e, certamente, com maior sabedoria, pelos novos cruzados dessa campanha sem fim, que cada vez se torna mais áspera e complexa, mercê dos entrechoques, necessariamente sempre mais violentos e agudos, que caracterizam os tempos que prenunciam um fim de civilização, em que os donos do poder, as minorias acuadas, que se encanzinam na defesa de seus privilégios iníquos e insustentáveis, não escolhem meios nem métodos para manter submissas as imensas massas dos explorados, humilhados e oprimidos. Esta II Conferência Brasileira de Educação reúne-se num momento que tem sido considerado por muitas das mais altas expressões da intelectualidade brasileira como dos mais graves períodos do desenrolar do processo histórico da nacionalidade. E creio ser difícil discordar desse ponto de vista. Há cerca de duas décadas, o país foi vítima de um rude golpe em suas instituições democráticas e republicanas e toda a inteligência brasileira era posta sob suspeita; a repressão, com requintes de violência até então desconhecidos no país, atingia todas as instituições onde se exercia o livre pensamento criador, necessariamente não conformista, voltado para o estudo e a pregação das transformações que se faziam urgentes para livrar o país do atraso, da ignorância, da dependência, pela subordinação de sua economia e até mesmo muitos aspectos de sua cultura a interesses antinacionais. Esse processo de repressão violenta recebeu de um dos mais ilustres representantes da cultura brasileira a denominação que passará à história desse período como um estigma sombrio: terrorismo cultural. E em artigo desse mesmo mês de maio de 1964, era ainda esse mesmo Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), que com tão rara propriedade definira os tempos trágicos que o país atravessava, com o mesmo brilhantismo e precisão de sempre, sintetizava a significação que a chamada Revolução de 1 .° de abril de 1964 tivera para as três classes em que se poderia, grosso modo, dividir a sociedade brasileira da época. Dizia ele então: [...] as classes altas da sociedade receberam o movimento com uma euforia transbordante e até, de certo modo, indiscreta. As classes médias o consideraram com uma alegria inegável, mas discreta, e sobretudo com desafogo e esperança. Quanto ao povo, o que se viu foi o mais absoluto silêncio. Como interpretar essa tríplice repercussão tão diversa do mesmo acontecimento? É que a camada do alto viu o movimento a garantia da permanência de seus privilégios, de sua vida farta, senão de sua dolce vita cosmopolita. Viu nele o afastamento "definitivo" de todas as reformas sociais que pudessem alterar o gozo tranqüilo do status quo político e sobretudo econômico. Deliciou-se com a supressão provável de toda a liberdade de pregar, por palavras ou atos, qualquer idéia que de perto ou de longe tivesse qualquer semelhança com socialismo, ou com "t'esconjuro"... As classes médias receberam o movimento com alívio e esperança. Alívio, porque o governo passado não conseguira resolver os problemas fundamentais do custo de vida e a inflação corroía todas as forças econômicas dos remediados e desenvolvia o mais catastrófico espírito de especulação e luxo fácil. Viram no movimento a esperança de uma vida melhor e por isso sentiram renascer aquela pequenina flor que é sempre a última a murchar em botão! o

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povo, porém, esse se conservou num mutismo terrível. As poucas e raras expansões que ousou ter morreram à flor dos lábios ou por medo do terror policial.

E adiante: "O povo viu apenas, nessa guinada à direita, a Revolução dos Ricos. Nada mais. E emudeceu. Emudeceu tragicamente". Os tempos se passaram. As graves acusações que se faziam ao regime deposto, que com todos os defeitos e deficiências, por todos reconhecidos, representava entretanto a continuidade da experiência republicana e democrática que o país, a duras penas, vinha tentando realizar, eram principalmente a desordem, a incompetência, a corrupção e a subversão. E qual foi o resultado do combate a ferro e fogo e, em muitos casos, com uma violência que jamais o país conhecera anteriormente, a essas "pragas" que infestavam e corroíam o organismo nacional? Aos historiadores, economistas e sociólogos caberá a resposta minuciosa a essa pergunta e ela já tem sido dada através de um grande número de trabalhos do mais alto valor científico e técnico. Entretanto, para o desenvolvimento das considerações que pretendo fazer em seguida, desejo destacar apenas um dos aspectos da situação trágica a que foi conduzido o país; para isso utilizo os dados colhidos nas próprias fontes oficiais e que confirmam a eficiência e a competência com que foi realizada a "Revolução dos Ricos". Pesquisa realizada recentemente pelo Ministério do Trabalho constatou que [...] num período de 20 anos (entre 1960 e 1980), cresceu a desigualdade de renda no país. Os 5% mais ricos da população economicamente ativa – 2 milhões e 150 mil pessoas – tiveram aumentada tanto sua renda média mensal, como sua participação no total da renda. [...] Assim, 1% da população mais rica (400 mil pessoas) teve uma evolução de sua renda, no mesmo período, de 2,95% para 16,34%; enquanto isso, 60% dos mais pobres (25 milhões e 800 mil pessoas) diminuíram sua participação relativa na renda nacional, caindo de 23,41%, em 1960, para 18,38%, em 1980 [...] "Essa situação" [comenta o encarregado da pesquisa] "é preocupante, uma vez que nesses 20 anos o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi muito elevado e, mesmo assim, os 60% mais pobres têm uma renda que não supera o salário mínimo vigente". [E concluindo:] "Quando o crescimento da desigualdade da renda coexiste com um nível de pobreza absoluta, a desigualdade torna-se uma distorção social contundente e, às vezes, desagregadora da ordem social existente" (Jornal do Brasil, domingo, 11/4/1982, p. 24).

Em outras palavras: nos últimos vinte anos, a minoria ínfima dos mais ricos tornou-se ainda mais rica, enquanto que a grande maioria da população mais pobre, empobreceu ainda mais. Dessa situação vem resultando, evidentemente, índices alarmantes de mortalidade infantil, de milhões de crianças desnutridas, subalimentadas, vítimas de lesões cerebrais irreversíveis, abandonadas, carentes (como se diz hoje), elevando a níveis assustadores a delinqüência juvenil e até mesmo infantil. Ainda há pouco, o chefe do Setor de Nutrição da Organização Mundial de Saúde afirmava que o índice de mortalidade infantil no Brasil é dez vezes maior do que nos países desenvolvidos: segundo ele, morrem cem de cada mil crianças que nascem no Brasil, enquanto que nos países desenvolvidos morrem apenas dez no primeiro ano de vida. (Jornal do Brasil, quinta-feira, 8/4/1982, p. 8). E o representante da Unicef, no Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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Encontro Latino-Americano sobre a Criança Maltratada e Negligenciada, realizado recentemente em Belo Horizonte, revelava que, dos 40 milhões de menores abandonados existentes na América Latina, 20 milhões vivem no Brasil, dos quais 2 a 3 milhões são totalmente abandonados. Criticou também a ineficácia das tentativas oficiais feitas no Brasil para tentar solucionar o problema (Jornal do Brasil, quinta-feira, 8/4/1982, p. 2). E ainda, segundo o presidente do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), do Ministério da Saúde, [...] dois terços das famílias brasileiras – aproximadamente 50 milhões de pessoas – não ingerem o mínimo de alimentos calóricos recomendados. E, de acordo com os estudos realizados pelo Inan, o estado nutricional em que se encontra o brasileiro é fruto principalmente dos níveis de renda.

E acrescenta: No primeiro ano de vida, o cérebro cresce dois terços do tamanho total que ele terá quando a pessoa já for adulta. Para isso, ele necessita de grande quantidade de proteína, que, quando não é fornecida pela alimentação, provoca danos irreversíveis. O indivíduo pode não ficar débil mental, mas terá dificuldade em raciocinar e servirá apenas para executar trabalhos manuais (O Globo, domingo, 14/3/82, p. 12).

Sobre tão grave problema que correlaciona inexoravelmente o nível de renda das famílias, como a miséria, a desnutrição, e as lesões cerebrais irreversíveis, que tornam impossível a aprendizagem normal das crianças, não se pode deixar de fazer aqui uma referência às pesquisas pioneiras realizadas no Brasil pelo professor Nelson Chaves, da Universidade Federal de Pernambuco, esse batalhador incansável em defesa de nossa criança desvalida e cuja morte recente constituiu, sem dúvida, uma perda irreparável para o país. Seu livrinho intitulado A nutrição, o cérebro e a mente é desses trabalhos que deveriam estar nas mãos de cada educador, de cada brasileiro interessado no futuro desta nação. E de que forma esse lamentável quadro político, econômico e social vem repercutindo no setor da vida nacional que interessa diretamente a professores e educadores em sua atividade profissional? A situação chegou a condições de tal gravidade que já não pode ser mais dissimulada e obriga o próprio atual ministro da Educação (general Rubem Ludwig) a revelar, perante o país estarrecido, os dados que a configuram. Em discurso pronunciado em outubro de 1981 perante o Simpósio sobre Educação realizado na sede da Associação Comercial do Rio de Janeiro, dizia essa autoridade máxima responsável pelos problemas do ensino brasileiro: [...] De 24 milhões de crianças de menos de 7 anos, 23 milhões não têm atendimento de nível pré-escolar; do total de crianças de 7 a 14 anos, 7 milhões estão à margem do ensino de 1º grau; os índices de evasão e repetência chegam a mais de 60% nas duas primeiras séries do 1º grau; de cada 100 alunos que entram na 1ª série apenas 27 chegam à 4ª série e apenas 17 à oitava; no ensino do 2ª grau, de cada 100 alunos formados no 1º, 8 apenas entram no 2° e milhares de jovens em idade escolar estão buscando o ensino supletivo, originariamente destinado a pessoas adultas.

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Acrescentem-se a esse quadro as seguintes informações prestadas pelo coordenador do Programa de Ensino Pré-Escolar do Ministério da Educação, Vital Didonet, perante o Seminário sobre Educação Pré-Escolar, recentemente realizado em São Luís do Maranhão: [...] de cada 100 crianças matriculadas na 1ª série do 1º grau, apenas 67 passam para a 2ª; as demais saem da escola, ou repetem o ano, e das 47 aprovadas na 2ª série, somente 12 chegam ao fim do 1º grau.

Para ele, a razão desses quatro índices alarmantes [...] são fatores internos e externos. Os internos estão na escola, na deficiência de material didático, no ambiente escolar inadequado, nos professores com qualificação insuficiente ou com remuneração baixíssima e no nível de desenvolvimento físico e mental da criança, abaixo do esperado para a respectiva idade. [...] [Entre os fatores externos] estão a desnutrição, os problemas de saúde, de habitação, de saneamento básico e o ambiente sócio-econômico carente. [...] Nessas condições está a maioria das crianças brasileiras; daí o alto índice de evasão e repetência nas escolas. E a confirmação está no fato de que dos 10 milhões de crianças de 4 a 6 anos existentes no Brasil, 7 milhões são de famílias de baixa renda...

E concluiu o coordenador do MEC "ser muito difícil educar crianças de estômago vazio, como difícil é para os adultos trabalhar com fome..." (O Globo, domingo, 13/12/1981, p. 26). O que me causa espanto é a tranqüilidade com que essas autoridades superiores, responsáveis pela educação do povo brasileiro, alinham esses dados estarrecedores, depois de transcorridos cerca de vinte anos da deflagração do movimento "revolucionário" que se intitulava de "redentor" e que foi imposto ao país com pesados sacrifícios, justamente sob o pretexto de corrigir a incompetência, a ineficiência, a corrupção e a subversão que minavam o regime deposto em 1964. E que medidas são propostas agora, depois de decorridos tantos anos durante os quais nenhuma providência efetiva foi adotada com seriedade, para ao menos minorar essa situação que veio se deteriorando gradativamente, conforme retratam os números revelados pelas próprias repartições oficiais que existem exatamente para resolver os problemas e não para simplesmente expô-los perante a nação atônita, traumatizada pela crueza dos dados revelados? As "providências" são sempre as mesmas, de caráter paliativo, assistencialistas, paternalistas e agora, até mesmo, demagógicas e eleitoreiras, que nada resolvem em definitivo, porque tratam superficialmente os efeitos sem atingir as causas profundas que produzem a situação que se pretende eliminar: merenda escolar, bolsas de estudo, crédito educativo e outros expedientes da mesma natureza, votados a inevitável fracasso. Tudo, menos descer às raízes do problema, que se localizam claramente no modelo de desenvolvimento econômico imposto ao país e adotado em benefício exclusivamente das minorias privilegiadas, nacionais e estrangeiras, e que gera a drástica concentração da renda nacional, deixando a maioria das famílias sem as condições mínimas para atender, com dignidade, às necessidades básicas de todo o ser humano, para que possa atingir um desenvolvimento, dentro de padrões Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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aceitáveis de normalidade, isto é: alimentação apropriada e suficiente, moradia decente, vestuário conveniente, saúde, educação e lazer. E eu me pergunto: se o poder público responsável não demonstrou competência ou disposição para enfrentar e resolver, no transcurso desses quase vinte anos, essa calamitosa situação antes referida, da existência de 7 milhões de crianças fora das escolas de 1º grau e de uma evasão e repetência que atinge a espantosa cifra de 60% nas duas primeiras séries desse mesmo 1º grau, como emprestar qualquer credibilidade às providências anunciadas agora, com requintes de publicidade, como a nova prioridade a ser adotada pelo Ministério da Educação de atendimento aos 23 milhões de crianças até agora privadas de qualquer assistência de caráter pré-escolar, e que, de repente, os tecnoburocratas descobrem que é nesse fato que reside a causa do fracasso das crianças que ainda conseguem se matricular na 1ª série do 1º grau do ensino? Para confundir ainda mais o problema, provoca-se uma controvérsia sem qualquer sentido sobre a importância relativa dos vários graus e modalidades de ensino, para levar à conclusão absurda de que, até agora, o governo tinha sido induzido a adotar falsas prioridades na alocação dos parcos recursos de que dispõe para atender às despesas com o ensino público e que devem ser corrigidas sem mais demora: gasta-se, afirma-se, demasiadamente com o ensino superior, em detrimento especialmente do ensino de 1º grau, que é o ensino popular por excelência e cuja manutenção é o primeiro dever do Estado. Entretanto, essa comparação sobre a importância relativa dos vários graus e modalidades de ensino e entre as percentagens das despesas respectivas é uma falácia; primeiro, porque não são entidades comparáveis, pois cada grau ou modalidade de ensino tem sua importância específica, intransferível, porque atendem a finalidades totalmente diferentes; segundo, porque os recursos destinados à manutenção de cada grau ou modalidade de ensino devem provir de fontes diferentes. Para isso, é preciso que seja corrigida, isso sim, e com a maior urgência, a grave distorção de caráter institucional que consiste na má distribuição das rendas públicas pelas várias esferas administrativas – União, estados e municípios. Como se sabe, o governo federal vem se apropriando da maior parte dos recursos gerados nos estados e municípios, deixando-os sem os meios necessários para atender à manutenção dos serviços de sua competência, em benefício das populações de seus territórios, que afinal pagam tudo, em forma de impostos e taxas, diretos e indiretos, e entre esses serviços estão, evidentemente, os referentes à educação e ao ensino. Assim, normalmente, a educação pré-escolar e o ensino de 1º grau (de quatro séries, pelo menos) deveriam ficar a cargo dos governos municipais e locais, pois devem estar adaptados, com a devida flexibilidade, às características de cada comunidade e dela receber apoio e inspiração. Aos estados caberia prover, prioritariamente, as séries mais adiantadas do 1º grau (se mantida a atual organização) e o ensino do 2° grau, de todas as modalidades. Entretanto, não dispondo de recursos suficientes, os estados e municípios, evidentemente, não podem atender a essas e a outras necessidades básicas de suas populações.

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O governo federal, nos últimos tempos, para dissimular essa distorção, tem repassado algumas verbas aos estados e municípios, sempre insuficientes, e criado órgãos centralizadores, autoritários e até eleitoreiros (Mobral, etc.), o que só agrava o problema, pois leva as comunidades ao desânimo e à passividade, fazendo com que continuem a esperar tudo do poder central longínquo, tal como no período colonial aguardavam as "ordenações" da Coroa portuguesa distante. À União, isto é, ao Ministério da Educação cabe, isto sim, e prioritariamente, a manutenção e o financiamento do ensino superior, que tem âmbito nacional, devendo fornecer-lhe todos os recursos necessários para seu eficiente funcionamento, ressalvada entretanto a plena autonomia universitária na gestão dos recursos recebidos e na organização administrativa e didática dos respectivos estabelecimentos. O ensino superior, em sua tríplice finalidade de preparação profissional, realização de pesquisas originais e transmissor da cultura do mais alto nível, é sempre relativamente mais caro, pela obrigatória atualização permanente de instalações, aparelhagem e o aperfeiçoamento contínuo dos professores, que devem receber remuneração condizente com suas responsabilidades, sempre crescentes. E somente o governo federal pode atender a essas exigências, sem prejuízo, porém, da autonomia universitária, que se exercerá no sentido de que os estabelecimentos de ensino superior assumam plena responsabilidade para: a) constituírem livremente seus órgãos de direção e organizarem seus quadros de pessoal docente, técnico e administrativo; b) organizarem seus cursos regulares de graduação, pós-graduação, extensão e quaisquer outros julgados necessários; c) selecionarem seus professores pelos métodos mais adequados, estabelecer-lhes as carreiras, a remuneração e providenciarem seu aperfeiçoamento e atualização constante de conhecimentos, por meio da contratação de especialistas estrangeiros ou de viagens de estudo ao exterior; d) selecionar os estudantes que se candidatarem a freqüentar seus cursos, pelos métodos mais convenientes, em cada caso. Órgãos centralizadores, autoritários e aplicadores de métodos de seleção pretensamente científicos, tais como o Cesgranrio e semelhantes, são criações espúrias, que desmoralizam a comunidade universitária, passando-lhes um atestado de incapacidade de selecionar os próprios alunos e criando, todos os anos, um ambiente de espetáculo circense em torno de um acontecimento que deveria decorrer normalmente, com a maior simplicidade e seriedade, como rotina dos fatos escolares, que são os exames de admissão aos estabelecimentos de ensino superior. Tais órgãos já deveriam ter sido extintos há muito tempo, revertendo seus largos orçamentos em benefício do ensino superior; e) estabelecerem e cobrarem dos alunos, quando for o caso, as taxas que forem consideradas justas, em cada estabelecimento, cada curso e em cada região do país, pois elas não podem ser uniformes nem fixadas autoritariamente pelo Ministério da Educação para todo o território nacional: e essa é uma matéria típica da competência privativa dos órgãos universitários; Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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f) concederem bolsas de estudo e outros benefícios aos estudantes carentes e aos que fizerem jus pelo excepcional desempenho nos estudos ou nas pesquisas; g) fornecerem aos estudantes alimentação e outros serviços julgados necessários, mediante contribuição justa. Não cabe ao Ministério da Educação fixar autoritariamente o preço desses serviços, que variarão em cada caso, e em cada região do país, devendo ser por isso, também, atribuição dos órgãos universitários; h) expedirem os diplomas e certificados de conclusão dos cursos, com plena validade para todos os efeitos legais. Quanto ao Ministério da Educação, deveria se ater às suas funções normais, cujas principais são: a) de órgão superior de formulação da política nacional de educação e do ensino do país, de acordo com o que estiver estabelecido na Constituição e nas leis complementares respectivas; b) de órgão supervisor, estimulador e fiscalizador da execução dessa política; e) de instância superior para a solução de questões e conflitos que ocorrerem nos sistemas, organizações ou estabelecimentos de ensino; d) de fornecedor de recursos suplementares para a educação e o ensino. Nesse sentido, seria medida aconselhável o restabelecimento dos Fundos Nacionais de Educação, previstos já na Constituição de 1934; e) de órgão de pesquisas educacionais e assistência técnica, especialmente às Secretarias de Educação dos estados; f) de órgão fiscalizador, especialmente do ensino superior mantido por particulares, para que ele mantenha os padrões que devem ser exigidos desse grau de ensino. Não deve, porém, caber ao Ministério da Educação fixar os valores das contribuições que os estabelecimentos particulares de ensino devam cobrar de seus alunos: essa é atribuição dos próprios estabelecimentos, que devem ter toda a liberdade para determinar as taxas que consideram necessárias para cobrirem as despesas com o ensino que ministram, que são muito variáveis, dependendo de inúmeros fatores, entre os quais avulta a qualidade do ensino. Ao governo cabe, ao contrário, subvencionar e proporcionar facilidades aos estabelecimentos particulares de ensino que se dispuserem a colaborar com o poder público no cumprimento de suas obrigações de prover educação e ensino para todos. Caros amigos e colegas, Ao atender ao apelo que me foi dirigido para proferir algumas palavras de saudações, apoio e agradecimento ao ensejo da sessão de abertura da II Conferência Brasileira de Educação, tinha a intenção de me limitar estritamente aos termos do convite com que fui distinguido e que me foi transmitido por representantes autorizados da Comissão Coordenadora do certam.

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Traiu-me, porém, a consciência profissional ou talvez a manifestação insopitável de um traço de minha personalidade, que sempre me caracterizou ao longo de uma vida de lutas, algumas bastante ásperas, e que consiste num sentimento agudo de inconformismo em face da injustiça social, da exploração do homem pelo homem, dos atentados à livre manifestação de opiniões, idéias e pensamentos ou aos direitos imprescritíveis da pessoa humana. Fui levado assim a estender-me demasiadamente em minhas considerações, invadindo áreas que deverão ser tratadas, certamente com mais propriedade e competência, pelos expositores e debatedores designados para abordarem os assuntos constantes do temário da Conferência. Conto, porém, com a compreensão dos colegas, que me relevarão a falta e darão às opiniões que fui levado a expender, e que são de minha exclusiva responsabilidade, o destino que julgarem mais adequado. Um aspecto, porém, desejava ainda acentuar como conclusão do que fui levado a expor, sem qualquer intenção preconcebida. O momento difícil que atravessamos, segundo me parece, está a exigir que professores e educadores dirijam suas preocupações fundamentais para os aspectos da educação e do ensino como problemas de caráter político-social e não como questões de natureza apenas pedagógica, de didática, de metodologia ou de técnica de ensino. O que o povo brasileiro está a exigir e espera de seus professores e educadores em geral, é que eles assumam a liderança de suas reivindicações e o esclareçam sobre as formas de luta mais apropriadas, em cada caso, para a conquista efetiva dos direitos fundamentais de acesso à educação e ao ensino de que devem gozar todos os cidadãos numa democracia. As autoridades responsáveis e, lamentavelmente, até mesmo alguns elementos do próprio magistério ou pesquisadores ligados às áreas do ensino, em várias oportunidades, têm tentado explicar os fracassos da criança carente na escola, na aprendizagem, a partir de certas deficiências que adquirem no meio social em que vivem ou pela falta de preparo técnico ou de interesse por parte do professor. Criam-se assim "teorias" absurdas, como a que há pouco vi exposta por alguns professores, de que esse fracasso das crianças oriundas de famílias que vivem, por exemplo, nas "favelas" ou na periferia das grandes cidades, no mais absoluto abandono, se originava, primordialmente, no fato de pertencerem a uma "cultura" diferente daquela de seus professores, necessariamente membros da classe média urbana, e que por isso nem mesmo conseguem se entender, por se exprimirem em linguagens diferentes!... Assim, o ensino deveria ser ministrado naquela linguagem estranha, adquirida nos meios desprovidos de quaisquer estímulos culturais, como se tais crianças e suas famílias vivessem num território estrangeiro onde outros seriam os meios de comunicação, uma espécie de "patuá" da fome, da miséria e do abandono. Então, não é exatamente a função fundamental da escola popular a e integrar a criança na cultura comum de sua época e da maioria de sua gente, e isso só pode ser conseguido basicamente pela elevação dos padrões da linguagem falada e escrita e nunca pelo rebaixamento desses padrões a níveis que estigmatizem essas crianças, a quem todos os direitos de pessoas humanas foram negados? Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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O que se espera do educador consciente de sua missão é exatamente o contrário: explicar e denunciar que o fracasso dessas crianças na escola, no ensino, é o resultado direto das condições subumanas em que vivem suas famílias, obrigadas a se amontoarem em habitações desprovidas de condições mínimas para abrigarem seres humanos, tangidas que foram, na maioria dos casos, pela exploração a que estavam submetidas nas regiões em que viviam, e buscando a sobrevivência nas cidades, na ilusão de virem a desfrutar de uma vida melhor. E a única solução possível para essa situação é a união dos interessados para exigir do poder público seus direitos como cidadãos e trabalhadores que concorrem com seu esforço para o progresso do país, apesar de todas as carências e da exploração violenta a que estão submetidos. Uma outra abordagem do problema da educação e do ensino que, segundo me parece, a nada conduz de produtivo e mobilizador, é a insistência repetitiva na discussão em torno do caráter da escola como reforçadora da manutenção da sociedade de classes, veículo que é da inoculação da ideologia das classes dominantes. Além de estarmos assim patinhando no domínio do óbvio, a observação mais superficial da realidade social concreta, entretanto, nos leva à conclusão de que o povo não chega nem a tomar conhecimento dessas elucubrações sociológicas inoperantes e continua a fazer os maiores sacrifícios para tentar a conquista de uma vaga, mesmo na escolinha mais desprovida de qualquer atrativo pedagógico, pois a intuição lhe dá a certeza de que, qualquer que seja o grau e a qualidade dos conhecimentos que conseguir adquirir pela freqüência a essa instituição, que para ele é a "casa do saber", maiores serão as probabilidades de melhoria de suas condições de vida, que é o objetivo imediato que persegue. E não importa que essa crença quase mítica nas virtudes da freqüência escolar quase sempre venha a engrossar o rol das "ilusões perdidas" que é ali uma constante para esses milhões de criaturas, para quem a vida não passa de uma sucessão dolorosa de fracassos e frustrações, que as tornam prisioneiras de um misticismo fanático e de um fatalismo amargo e ressentido. Mas não se pode deixar de admitir que essa "crença" na ascensão social pela escola afinal tem uma base lógica, dificilmente contestável: não é o sucesso o apanágio das "pessoas instruídas", daquelas que conseguem ascender até os mais altos píncaros dos sistemas de ensino? A esses "sociólogos" que acabam por desmobilizar o povo em sua luta pela tão decantada "democratização o ensino" e que afinal justificam o desinteresse das classes dominantes pela extensão do ensino e da cultura como um direito de todos os cidadãos, em face da alegada inutilidade e até da periculosidade da transmissão dessa cultura "capitalista" e "burguesa", gostaria de reproduzir aqui uma passagem que colho na obra magnífica de Ernesto Sábato, o conhecido escritor argentino, que acaba de aparecer em tradução brasileira sob o título de O escritor e seus fantasmas, onde ele faz essa advertência inspiradora: Acho que o sinal mais sutil de que uma sociedade já está madura para uma transformação social é que seus revolucionários se revelem capazes de compreender e recolher a herança espiritual da sociedade que termina. Se isso não ocorre, a revolução não está madura.

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Felizmente, para o desenvolvimento do processo democrático pelo qual todos lutamos, já vem se verificando uma auspiciosa mobilização da chamada "sociedade civil", que se congrega em associações e entidades, das mais variadas espécies e objetivos, para exigir sua participação nos estudos, planos e soluções dos problemas que dizem respeito às suas vidas e de suas comunidades. Da parte dos professores e de outras categorias profissionais, constituídas principalmente de elementos das chamadas "classes médias", também vem se verificando uma arregimentação que em tempos não muito recuados pareceria fato de ocorrência dificilmente imaginável: especialmente os professores, sempre submissos, trabalhados pela falsa ideologia do exercício de suas atividades profissionais como um "sacerdócio", o que os fazia suportar todas as humilhações, sem protestos ou gestos de rebeldia, começam a despertar para exigir o tratamento correspondente à importância de suas responsabilidades, inclusive uma remuneração condigna e condições de trabalho que lhes permitam um desempenho eficiente de sua missão. Desgastados em sua vida profissional e pessoal pelo aumento constante do custo de vida, resultante do processo inflacionário incontrolável, dada a incompetência e insistência num modelo econômico contrário aos interesses do povo brasileiro por parte das autoridades responsáveis, sofrendo a deterioração violenta de suas condições de trabalho e a perda gradativa do status de que sempre desfrutaram, esse processo de proletarização dessas categorias profissionais de formação em nível superior acabou por conduzi-las ao recurso extremo do protesto, pela paralisação de suas atividades, da greve, fenômeno inédito na vida dessas classes, levando-as a enfrentar, com firmeza e determinação, todos os riscos, ameaças e represálias por parte do poder público e desmoralizando as alegações de ilegalidade desses movimentos pelas autoridades repressoras, que levaram o país a essa situação caótica nesses anos em que agiram livres de qualquer controle e que menos poderiam agora se apresentar perante o país como legítimos guardiães da lei e da ordem... Pela primeira vez, nesses sessenta anos em que venho participando, direta ou indiretamente, de tudo o que neste país se tentou realizar de mais significativo e progressista em matéria de educação e ensino, verifico que os educadores brasileiros vão adquirindo cada vez maior consciência dessa verdade elementar de que somente numa sociedade democraticamente organizada torna-se possível o florescimento de uma verdadeira educação de caráter democrático, aquela que é posta a serviço de todo o povo e que tem como pressuposto, ainda que em caráter de um ideal a ser conquistado palmo a palmo por uma luta sem tréguas, a igualdade de oportunidades para todos. E foi essa espécie de educação que, em memorável congresso convocado pela Associação Brasileira de Educação, que se reuniu no Rio de Janeiro de 22 a 28 de junho de 1945, quando o mundo ia tentando se recuperar depois da vitória contra as forças obscurantistas do nazifascismo, recebia esta definição inspiradora: Educação democrática é aquela que, fundada no princípio da liberdade e no respeito à pessoa humana, assegura a expansão da personalidade, proporcionando a todos igualdade de

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oportunidades, sem distinção de raças, classes ou crenças, na base da justiça social e da fraternidade humana, indispensáveis a uma sociedade informada pelo espírito de cooperação e consentimento. Por isso mesmo, a educação democrática exige, além de uma concepção democrática de vida, uma organização social em que a distribuição do poder econômico não estabeleça nem antagonismos nem privilégios.

Estou certo de que os educadores, reunidos nesta II Conferência Brasileira de Educação, sem desprezar os ensinamentos e os esforços dos velhos colegas, infelizmente a maioria já desaparecida, saberão dirigir seus trabalhos de acordo com os novos tempos e os novos reclamos do povo brasileiro. E não tenho qualquer dúvida de que os debates que se travarão no decorrer das atividades desta Conferência, que ora se inaugura e que serão conduzidos certamente de acordo com os melhores padrões da mais completa liberdade de expressão e espírito democrático, produzirão, no final, um acervo precioso de sugestões, diretrizes e conclusões, nas quais os educadores encontrarão a inspiração e as bases seguras para o desenvolvimento de suas atividades criadoras, dentro e fora da escola. São esses os meus votos mais sinceros, ao mesmo tempo que expresso, ainda uma vez, meus mais calorosos agradecimentos pelas atenções com que fui distinguido, e que guardarei no mais íntimo do meu ser, como uma homenagem, repito, menos dirigida a mim como pessoa particular, mas como representante ocasional de toda uma geração de educadores que dedicaram todo o esforço que sua consciência profissional e seu patriotismo lhes impuseram como um dever perante seu país e seu povo.

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ANEXOS REGISTRO DE FROTA-PESSOA SOBRE * EDUCAÇÃO SUPLETIVA – EDUCAÇÃO DE ADULTOS Candidato ao cargo de técnico de educação em que foi provido por concurso, o professor Paschoal Lemme apresentou como tese a presente monografia sobre educação supletiva, e especialmente sobre a educação de adultos. O assunto é dos que têm preocupado nestes últimos anos nossa administração escolar, que não lhe tem, todavia, dado a atenção merecida. A educação de adultos, mesmo nos países onde não há quase analfabetos, como os Estados Unidos, é um dos mais importantes pontos de qualquer programa educacional. Sempre existe por toda a parte uma grande massa de indivíduos, já evadidos, por sua idade, da escola comum que se vêem na contingência de continuar ou aperfeiçoar sua aprendizagem, para melhor rendimento de suas atividades. No Brasil o problema se complica, porque o número de analfabetos adultos é muito grande e a estes é necessário proporcionar os conhecimentos mais rudimentares. O professor Paschoal Lemme não ofereceu com este estudo apenas uma exposição doutrinária do problema, mas ao mesmo tempo a súmula de suas experiências de administrador, quando no Distrito Federal esteve encarregado de orientar o ensino de adultos durante alguns anos.

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Frota Pessoa na página "Educação e Ensino" do Jornal do Brasil, de 24/10/1940, comenta o trabalho do Autor – Tese de conclusão – , publicada pelos Serviços Gráficos do Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 1940. 61 p.

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Ao tratar dos fundamentos sociais desse ensino, ele chega às seguintes conclusões: 1ª) A educação de adultos tem profundas raízes nas condições sociais verificadas no mundo com o advento da revolução industrial e suas conseqüências; 2ª) sua importância cresceu, porém, extraordinariamente, a partir da grande guerra, porque foi sendo considerada como um dos meios capazes de corrigir ou atenuar os efeitos desastrosos produzidos por esse acontecimento, na humanidade; 3ª) veio assim ganhando rapidamente uma grande unidade do ponto de vista da compreensão geral do problema, apesar da extraordinária diversidade dos meios de ação de que se utiliza e se colocando quase no mesmo pé de igualdade com as organizações incumbidas da educação sistemática. Outro capítulo aprecia os fundamentos psicológicos da educação de adultos para contestar, com os pareceres e investigações de Thorndike, W. James e outros, que a aprendizagem de adultos tenha escasso rendimento, do que resultaria não haver compensação para o esforço empreendido para difundi-la. Nos Estados Unidos compreendeu-se a tempo o erro dessa presunção e partir de então o ensino de adultos desenvolveu-se extraordinariamente. O problema da educação de adultos, diz o autor, nas condições em que ficou definido, está ainda quase inteiramente para ser atacado entre nós. Mais grave, porém, do que isso é a verificação de que estamos ainda grandemente distanciados de uma compreensão mais justa da questão. Durante os anos de 1934 e 1935 o professor Paschoal Lemme organizou no Distrito Federal cursos de continuação, aperfeiçoamento e oportunidade, que logo adquiriram um grande êxito. A matrícula que em 1934 foi nesses cursos de 1.366 alunos, subiu a 5.174 em 1935. Mas a experiência cessou em 1936, antes mesmo do início do ano letivo, por falta de recursos. O depoimento do autor é de grande expressão. Nossos administradores escolares ainda não se aperceberam da relação necessária entre a educação e o progresso social. Por isso extinguem um serviço dessa importância, como quem adia a execução de obras suntuárias. O trabalho do professor Paschoal Lemme é um interessante subsídio ao nosso problema educacional e será consultado, quando nossos governos se convencerem de que há alguma coisa a realizar em educação além dos passos da rotina.

II PALAVRAS DE FERNANDO DE AZEVEDO SOBRE ESTUDOS DE EDUCAÇÃO

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[...] já me faltavam notícias suas desde dezembro quando me chegou às mãos o exemplar que me reservou, de seu livro Estudos de Educação. No mesmo dia em que me foi entregue pelo

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Em carta particular ao Autor, de 3/3/1953.

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correio, comecei a leitura do volume com que V. traz uma contribuição de primeira ordem para o estudo e solução de alguns de nossos problemas fundamentais. Embora constituído de trabalhos "elaborados em várias épocas, para atender a finalidades diferentes", a unidade de pensamento lhe imprime uma coerência e solidez que não seriam maiores se V. o tivesse escrito dentro de um plano traçado com unidade de concepção. Desde as primeiras páginas, o seu livro impressiona pelo tom de verdade, pelo espírito objetivo e pela coragem das afirmações. As idéias, claras; as análises, severas, mas exatas; os golpes, certeiros e implacáveis. A sua visão realista das coisas e o gosto de atacar os problemas, sem rodeios, e ir direito ao essencial, levam-no a descer ao fundo das questões, apanhadas na sua dura realidade concreta, e a examiná-las à luz fria dos dados estatísticos. Nada dessa superficialidade (tão comum entre nós) que se compraz em deslizar pela superfície das coisas e que deixou mesmo de ser "brilhante" como em outros tempos se costumava qualificá-la, para cair na mais grosseira vulgaridade; nada desse diletantismo, com que tantos ainda se divertem em passear pelos assuntos, sem se deter em nenhum deles, ou em dissipar-se em generalidades pela inaptidão de se aprofundar em qualquer domínio de estudos. É desses dois graves pecados contra o espírito que vem marcado, com tanta freqüência, o que se escreve ou se diz sobre a educação no país. Mas deles não se encontra sinal nessas páginas, excelentes pela lucidez e sinceridade radical. É realmente uma satisfação ver como V. arrancou esses problemas aos castelos de nuvens, em que flutuam, para os renovar no áspero contato com a terra e com tudo o que o país oferece de mais específico, e é preciso ter presente para lhes dar soluções adequadas. Se não me engano (pois é sempre precário o juízo sobre nós mesmos), nunca deixei de manter o contato necessário com a experiência para ver as coisas como se apresentam na realidade e repousar, à luz crua dos fatos, as mais clássicas das teorias da educação. Ressalvadas as divergências na apreciação desse ou daquele problema, essa tem sido também a atitude assumida em face dessas questões por outros educadores, igualmente sinceros e, por certo, com maior autoridade, que têm abordado alguns dos problemas mais importantes da educação nacional. O seu livro é desses que se impõem e fazem refletir. Ele fará seu caminho, mais coberto de espinhos do que de flores. Pois é sempre rude, áspero e desigual o caminho dos pioneiros. É o que venho percorrendo, desde a mocidade já distante, através de incompreensões e hostilidades. Com um abraço muito cordial, Fernando de Azevedo.

III PALAVRAS DE ROQUETTE PINTO SOBRE ESTUDOS DE EDUCAÇÃO

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Vi, certa manhã, em 1940, na bela avenida de La Reforma, na Capital do México, uma longa fila de caminhões cobertos, preparados para servir de bibliotecas populares ambulantes.

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Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de março de 1953.

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Seguiam em busca de cidades e vilas do interior, com leitura para o povo. A idéia me pareceu excelente, até porque o mesmo veículo pode levar os seus volumes cheios de ciências, letras e artes cada dia noutra direção. Isso e muitas outras coisas permitiram avaliar o esforço das classes dirigentes no sentido de elevar o nível cultural do país. Agora encontro, entre muitas páginas de valor, num livro publicado há dias pelo professor Paschoal Lemme – Estudos de Educação – informações sobre o Departamento de Escuelas Rurales do México e sobre as denominadas Missiones Culturales. Teria remorsos se não deixasse algumas notas a respeito. Chegando aos povoados, os Missioneiros – fala um deles – iniciam seus trabalhos promovendo a limpeza geral da vila, queimando o lixo, animando os moradores a caiar de novo as casas, organizando festivais de cultura, promovendo a vacinação antivariólica, etc. Em alguns povoados tratam logo da água potável aconselhando as medidas de higiene indicadas, ensinando o que é preciso para o uso dos poços e das fontes. Como anexo à Escola Rural do lugar organizam demonstrações práticas referentes ao ensino em geral e particularmente aos melhores métodos agrícolas cabíveis. Uma trabajadora social, outra de cultura física, outra de pequenas indústrias, outra de artes populares etc. logo atraem a atenção da gente da vila. Senhoras, senhoritas, homens do povo, bem depressa se chegam à Escola Rural. Tudo aprendem... Depois as Missiones Culturales se desenvolveram e o governo proporcionou pequenos centros técnicos e oficinas de carpintaria, fábrica de sabão, conserva de frutas, curtume, medicina doméstica etc, No Brasil há Leis, Decretos, Regulamentos sobre Aprendizes Artífices, Educação Extra-Escolar etc. Mas não sei de nada que se pareça com as Missiones Culturales. E. Roquette Pinto

IV REGISTRO BIBLIOGRÁFICO DE ENSEGNANTS DU MONDE SOBRE * ESTUDOS DE EDUCAÇÃO

Le professeur Lemme présente un recueil de travaux qui sont le fruit d'une longue expérience pédagogique. Les quatre parties essentielles de l'ouvrage sont: l'éducation des adultes, les problèmes de l'éducation, la situation de l'enseignement au Brésil et la littérature pour la jeunesse et l'enfance. Le professeur Lemme part du principe de Juarez, le libérateur mexicain, c'est-à-dire que la misère est la cause des malheurs de l'école; il faut en finir avec la faim et la misère pour développer l'école. C'est dans cet esprit qu'il étudie notamment les problèmes de la lutte contre l'analphabétisme, démasquant le mirage des "campagnes contre l'analphabétisme", sans essayer de toucher la structure semicoloniale et semi féodale de son pays. Pour le professeur Lemme, la question primaire est de briser cette structure et de donner la terre aux paysans; c'est alors que les conditions seront créés pour liquider l'analphabétisme qui, d'aprés les chiffres qu'il apporte, atteint 50% de la population brésilienne majeure de 18 ans.

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Ensignants du Monde, Revue trimestrelle. Publication internationale, syndicale et pédagogique. Paris, n. 12, juillet, 1954.

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L'étude, très solide et documentée, sur la situation de l'enseignement montre que, dans le département fédéral de Rio, 120.000 enfants seulement restent sans école. L'espace nous manque pour parler d'autres questions abordées par le professeur Lemme (mortalité infantile, etc.) avec un sérieux qui fait de ce livre un document indispensable pour celui qui veut connaitre la situation de l'enseignement au Brésil. Enfin, les pages sur la littérature pour la jeunesse et l'enfance constituent un bel exemple de défense de la formation patriotique de la jeunesse contre le déferlement de "comic books" et "magazines" venant de l'Amérique du Nord, propagateurs de la guerre, du gangstérisme et de la pornographie. Le professeur Lemme souligne le rôle que est dévolu aux éducateurs pour s'opposer à cet empoisonnement des consciences enfantines.

V CARTA DO PROFESSOR IVAN GRIVKOV

Al Profesor Paschoal Lemme Rio de Janeiro BRASIL De mi estima: Con sumo placer he leído su carta, que lamento haber recibido con gran retraso. Me alegra sobremanera de que el libro de Ud acerca de la enseñanza en la Unión Soviética tenga gran éxito en el Brasil y que se esté preparando su segunda edición. Esto demuestra el gran interés del magisterio brasileño por la Unión Soviética y testimonia el valor del libro de Ud. A mi entender, el objetivo que Ud se proponía al escribir el libro era exponer la verdad sobre la Unión Soviética, sobre los hombres soviéticos y sobre la escuela soviética, ha sido plenamente alcanzado. Creo que no tiene razón al decir que no ha podido dar la característica exacta sobre la instrucción en la URSS. Desde luego, el libro contiene algunas afirmaciones que no responden a la situación actual de las cosas. Mas no es por culpa suya: la causa reside en el impetuoso desarrollo de la instrucción que se observa en nuestro país. Así, Ud dice en su libro que, al terminar los 10 grados, todos los alumnos ingresan en las instituciones de enseñanza superior. Esto ocurría, realmente, en 1953, pero ahora, cuando de hecho se va pasando a la enseñanza secundaria general, muchos alumnos, una vez terminados los 10 grados, se marchan directamente a trabajar en las fábricas, en los koljoses, en las obras en construcción, continuando, en la mayoria de los casos sus estudios en instituciones de enseñanza superior y en escuelas medias especiales por correspondencia. O bien tomemos otro hecho: en su libro Ud pone de una manera completamente justa los objetivos de la enseñanza politécnica que actualmente se realiza en la escuela soviética; mas, al mismo tiempo, Ud, naturalmente, no dice nada de formas tan importantes de la enseñanza politécnica como la práctica de los alumnos en lar fábricas y koljoses, como el trabajo en los talleres escolares, formas que fueron ampliamente introducidas en los años escolares, de 1954-1955 y 1955-1956. Han cambiado también los planos de enseñanza en las escuelas. Ud dice en su libro que en las ciudades de la URSS se practica la enseñanza por

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separado, mientras que en la realidad la enseñanza conjunta se practica en nuestro país desde 1954. Sin embargo, a pesar de estas pequeñas fallas, Ud en su libro da en forma absolutamente justa los rasgos característicos de la escuela soviética, describe sus objetivos y los métodos de su trabajo, su espíritu, ilustra correctamente toda a realidad soviética lo que es lo más importante. De todo corazón deseamos a Ud grandes éxitos en su noble actividad en cuanto a la difusión de la verdad sobre la Unión Soviética y la escuela soviética. Hemos pedido a la biblioteca "Ushinski", la que posee una coiección de todos los materiales concernientes a los problemas pedagógicos, ponerse en contacto con el Instituto Pedagógico Nacional del Ministerio de Instrucción y Cultura del Brasil para que envie a este Instituto todos los materiales que lhe interesen. Me es grato señalar el hecho de que en estos últimos tiempos se van ampliando las relaciones entre nuestros países. Son cada vez más frecuentes las visitas a Moscú de artistas, de hombres de ciencia y cultura del Brasil. Así, recientemente ha visitado la Unión Soviética la delegación parlamentaria del Brasil. Confío sinceramente que estas relaciones se irán entendiendo y afianzando. Con saludos cordiales, Ivan Grivkov Presidente del CC del Sindicato de losTrabajadores de la Educación de la Unión Soviética

VI *

REGISTRO BIBLIOGRÁFICO

Han llegado a nuestro país ejemplares del libro Educación en la URSS, cuyo autor es el distinguido educador brasileño, Paschoal Lemme, técnico de elevado prestígio del Ministerio de Educación y profesor de Historia y Filosofía de su país. Nos tocó la suerte de conocer y tratar al profesor Lemme en Europa; primeiro en Viena, en la Conferencia Mundial de Educadores, convocada por Fise, en 1953, y luego en la Unión Soviética a donde fuímos invitados por el Comité Central del Sindicato de Maestros Soviéticos. Es el profesor Lemme un profundo estudioso y un agudo observador de los problemas educacionales; es, además, un valiente propulsor de la educación democrática y un honesto defensor de la verdad. En la URSS, el profesor Lemme recorrió los establecimentos de enseñanza, desde los jardines infantiles hasta las universidades y se puso en contacto con aquella rica gama de instituciones educativas como los Jóvenes Naturalistas, los Palacios Pioneros, etc.; constató que la atención a la infancia, a la niñez y a la juventud es cuestión primordial del régimen soviético. Asistió, además, a reuniones con las autoridades educacionales, con organismos técnicos, con la organización sindical del profesorado, visitó las fábricas, los koljós; en una palabra, estuvo en contacto con el desarrollo multifacético de la vida del pueblo soviético.

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Sobre Educación en la URSS. Publicado em Educadores del Mundo, Santiago de Chile, junho, 1956. p. 23.

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Una tarde de fines del mes de agosto del 53 encontré al profesor Lemme en Moscú. Venía él llegando de Leningrado y yo desde Viena. Estaba emocionadamente feliz de haber visitado el país socialista. "Escribiré un libro sobre lo que he visto" – declaró con entusiasmo. "Hay que responder con la verdad a la propaganda insidiosa" – agregó con enfática convicción. El libro que comentamos es la materialización de aquel deseo. Es una información objetiva y documental recogida directamente de la realidad. Expone en sus páginas principios doctrinarios, objetivos, estructura orgánica, rigurosidad científica y modalidades técnicas del proceso educativo soviético. Demuestra cómo – él mismo lo dice – que "el proceso educativo soviéticó ha forjado un tipo humano enteramente nuevo". El profesor Lemme subo penetrar en la realidad educacional soviética, porque subo penetrar ia realidad de la vida social soviética. En el prefacio de su libro expresa el profesor P. Lemme: Brasil, con problemas inmensos que resolver en materia de educación, no puede ignorar las experiencias y realizaciones de los educadores e investigadores soviéticos. Es necesario, pues, que sean restablecidas, a la mayor brevedad posible, las relaciones entre estos dos países, pues el pueblo brasileño no debe por más tiempo estar privado de los beneficios que esas relaciones le pueden proporcionar, tanto desde el punto de vista económico, como desde el punto de vista cultural.

Las anteriores palabras del distinguido educador brasileño constituyen una verdadera acusación para quienes son culpables del aislamiento en que permanecen la casi totalidad de los pueblos de América Latina respecto del mundo socialista y son, al mismo tiempo, un vibrante llamado a estos pueblos a luchar para romper tan artificial aislamiento. El libro Educación en la URSS es una valiosa contribución, ya se le considere desde un punto estrictamente técnico o desde el ángulo de la amistad entre todos los pueblos de la tierra. L. Saavedra Sánchez

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REGISTRO BIBLIOGRÁFICO

Les lecteurs d' Enseignants du Monde connaissent la personalité du professeur brésilien Paschoal Lemme, conseilier technique du Ministère de l'Éducation et de la Culture de son pays. Il vient d'ajouter une nouvelle réalisation à ses nombreuses oeuvres, grâce à la publication du livre A Educação na URSS (L'Éducation en URSS). Le livre part du grand rassemblement que fut la Conférence Mondiale des Enseignants de Vienne (1953) puís, c'est le séjour en URSS. Ce n'est pas un livre de voyage. La rigueur scientifique et l'esprit systématique du professeur Lemme ont réussi à brosser un tableau complet, bien que sommaire, des différents degrés de l'enseignement en URSS, ainsi que de la vie des enseignants, des enfants, et sur quelques aspects vraiment passionants tel que les recherches pédagogiques et l'épanouissement des cultures nationales. Ce n'est pas un manuel schématique non plus, il

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Sobre Educación en la URSS. Publicado em Enseignants du Monde, n. 19, dezembro de 1956.

Estudos de Educação e Perfis de Educadores | Volume 3

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est émaillé d'impressions vivants, de conversations tenues par l'auteur avec des autorités académiques de l'Union Soviétique avec des enseignants. L'auteur place les problèmes de l'éducation dans le cadre de l'activité créatice, du travail quotidien du peuple soviétique, ainsi que leurs rapports avec d'autres manifestations ayant trait à la difusion culturelle. Pour cette raison, des pages concernant, par exemple, l'effort accompli à Stalingrad ne sont nuilement déplacées. Bien au contraire, elles élargissent le centre d'interêt et aident à mieux comprendre la place de l'éducation dans la société socialiste.

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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador