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Portuguese Pages 74 [82] Year 1991
Alain Badiou
MANIFESTO pela filosofia
versão e nota MD Magno
ANGéLICA - junho 1991 (psicanálise & cia) Colégio Freudiano do Rio de Janeiro
Conselho Editorial: Chaim Sam.uel Katz, Emmanuel Carneiro Leão, Heloisa Buarque de Hollanda, Mareio Tavares D' Amaral, MD Magno e Muniz Sodré Editor: Potiguara Mendes da Silveira Jr. (Reg. prof.: 15.178 - RJ) Revisão da Tradução: Aluisio Menezes e PMSJr. Agradecimentos a: Olandina Monteiro Cruz de Assis Pacheco Capa: MO Magno (Dustração: Beardsley, 1896)
Composição: -digitação/arte final: Tiffany anes - revisão: André Praça Telles Título Original: Manifeste pour la philosophie
© Ediúons du Seuil, 1989 Todos os direitos desta edição reservados a: aoutra editora Av. Ataulfo de Paiva, 1079, subs. 118 - Leblon 22440 Rio de Janeiro- RJ Tels.: 259-5543 e 259-3694
SUMÁRIO
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.
10. 11.
Possibilidade, 1 Condições, 7 Modernidade, 13 Heidegger visto como lugar comum, 17 Nihilismo?, 23 Suturas, 29 A era dos poetas, 35 Eventos, 43 Questões, 51 Gesto platônico, 59 Genérico, 63
. Nota -
MD Magno, 69
1. Possibilidade
Os filósofos vivos, na França de hoje, não há muitos, embora haja, sem dúvida, mais do que em outros lugares. Digamos que os contamos, sem dificuldade, pelos tecido do esquecimento e deteve, preservou, não o próprio ser, cujo destino historiai se completa no desamparo do nosso tempo, mas a questllo do ser. Os poetas foram os pastores, os zeladores dessa questão que o reino da técnica torna universalmente impronunciável. 5) A filosofia tendo terminado, o que resta é somente re-pronunciar a questão da qual os poetas têm a guarda, e notar 19
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como essa questão ecoou no curso inteiro da história da filosofia desde suas origens gregas. O pensamento está hoje sob a condiçllo dos poetas. Sob esta condição, ele se volta para a interpretação das origens da filosofia. para os primeiros gestos da metafísica. Ele vai procurar as chaves de seu próprio destino, as chaves de seu próprio término efetivo, no primeiro passo do esquedmento. Este primeiro passo do esquecimento é Platão. A análise da "virada" platônica, quanto ao vínculo do ser e da verdade, comanda a apreensão do destino historiai do ser, o qual termina sob nossos olhos na provocação à nadificação. O coração dessa ''virada'' é a interpretação da verdade e do ser corno Idéia, quer dizer, a rescisão do poema em proveito do materna - como digo em minha linguagem. A interrupção platônica da narrativa poética e metafórica pelo paradigma ideal do materna, Heídegger a interpreta como a orientação inaugural do destino do ser no sentido do esquecimento de sua eclosão, quando ela se larga de sua apropriação inicial pela língua poética dos Gregos. Pode· -se então também dizer que remontar às origens, tal como isto recebe hoje sua condição do dizer dos poetas, retoma ao dizer dos poetas gregos, dos pensadores-poetas pré-platônicos que sustentavam então a tensão da abertura e da eclosão velada do ser. 6) O triplo movimento do pensamento é então: tomar a condição no dizer dos poetas, remontar interpretativarnente à virada platônica que comanda a época .metafísica do ser, fazer a exegese da origem pré-socrática do pensamento. Este triplo movimento permite enunciar a hipótese de um retorno dos Deuses, de um evemo no qual o perigo mortal ao qual o querer nadificante expõe o homem - esse funcionário da técnica - seria superado ou conjurado por urna espécie de abrigo do ser, uma re-exposição ao pensamento de seu destino como abertura e eclosão, e não como fundo sem fundo de disponibilidade do ente. Esta suposição de um retomo dos Deuses pode ser enunciada pelo pensamento que os poetas instruem, ela não pode evidentemente ser anu~ciada. Dizer que ''só um Déus pode nos sal20
HEIDEGGER VISTO COMO LUGAR COMUM
var.. tem por sentido: o pensamento instruído pelos .poetas, educado pelo conhecimento da virada platônica, renovado pela interpretação dos pré-socráticos gregos, pode sustentar, no coração do nihilismo, a possibilidade sem vias nem meios dizíveis de uma re-sacralização da Terra. "Salvar" não está aqui na acepção mole de um suplemento de alma. "Salvar" quer dizer: desviar o homem e a terra da nadificação, nadifiçação que na terminal figura técnica de seu destino o ser tem como ser o querer. O Deus de ·que se trata é aquele do desvio de um destino. Não se trata de salvar a alma, mas de salvar Q ser, e de salvá-lo daquilo que unicamente pode pô-lo em perigo, e que é ele próprio na implacável prescrição terminal de sua historicidade. Esta salvação no ser de si mesmo por si mesmo impõe que se vá ao cume do desamparo, portanto ao cume da técnica, para arriscar o desvio, pois é no extremo do perigo que cresce também o que salva.
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5. Nihilismo?
Nós não admitimos que o termo "técnica''. mesmo o fazendo ressoar com o grego tE'XV'l, seja capaz de designar a es· sência de nosso tempo, nem que haja alguma relação, útil ao pensamento, entre "reino planetário da técnica" e ''nihilismo". · As meditações, suputações e diatribes sobre a técnica, por mais disseminadas que sejam, não são menos uniformemente ridículas. E é preciso dizer bem alto o que muitos heideggerianos refinados pensam baixinho: os textos de Heidegger sobre este ponto não escapam de modo algum a essa ênfase. o "caminho do bosque", o olho claro do camponês, a devastação da Terra, o enraizamento no sítio natural , a eclosão da rosa, todo esse patos, desde Vigny ("nesse touro de ferro que fuma e resfolega, o homem montou cedo demais") até nossos publicitários, passando por Georges Duhamel e Gíono, só é tecido de nostalgia reacionária. O caráter estereotipado dessas ruminações que vêm disso que Marx chamava de "socialismo feudal", é de resto a melhor prova de seu pouco sentido pensável. Se eu fosse dizer algo sobre a técnica, cuja relação com as exigências contemporâneas da filosofia é tão magra, seria bem mais lamentar que ela seja ainda tão medíocre, tão tímida. Tantos instrumentos úteis ainda faltam, ou só existem em versões pesadas e incômodas! Tantas aventuras maiores não avançam, ou dependem do "a vida é muito devagar", vejam a exploração 23
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dos planetas, a energia por fusão termonuclear, a máquina voadora para todos, as imagens em relevo no espaço ... Sim, é preciso dizer: ''Senhores Técnicos, ainda mais um esforço, se querem verdadeiramente o reino planetário da técnica!'' Nada de técnica bastante, uma técnica ainda muito tosca~ esta é a verdadeira situação: o reino do capital freia e s!ímplífica a técnica, cujas virtualidades são infinitas. Aliás, é inteiramente inconveniente apresentar a ciência como do mesmo registro, quanto ao pensamento, que a técnica. Há certamente entre ciência e técnica uma relação de necessidade, mas esta relação não implica nenhuma comunidade de essência. Os enunciados que anunciam a "ciência moderna" como efeito, se não efeito principal, do reino da técnica, são indefe~ sáveis. Se consideramos, por exemplo, um grande teorema da matemática moderna, digamos, porque me interessa, o que demonstra a independência da hipótese do contínuo (Cohen, 1963~, encontramos nele uma concentração de pensamento, uma beleza inventiva, uma surpresa do conceito, uma ruptura arriscada, para dizer tudo: uma estética intelectual, que podemos, se quisermos, aproximar dos maiores poemas deste século, ou das audácias político-militares de um estratego revolucionário. ou das emoções mais intensas do encontro amoroso, mas não certamente de um moedor elétrico de café ou de uma televisão a cores, por mais úteis e engenhosos que sejam estes objetos. A ciência, enquanto ciência,.quer dizer. apreendida em seu procedimento de verdade, é de resto profundamente inútil, a não ser por afirmar o pensamento como tal, de maneira incondicionada. Este enunciado dos Gregos (a inutilidade da ciência, senão como exercício puro e condição genérica do pensamento), não há que revisá-lo, mesmo sob o pretexto falacioso de que a sociedade grega era escravagista. O dogma da utilidade acaba sempre como escusa para que não se queira verdadeiramente, o que se chama querer, a inutilidade para todos. No que diz respeito ao "nihilismo", admitiremos que nossa época é sua testemunha. na exata medida em que entendemos 24
NIHILISMO?
por nihilismo a ruptura da figura tradicional do vinculo, o desligamento como forma de ser de tudo que faz semblante de vín· cuJo. É indubitável que nosso tempo se sustenta numa espécie de atomística generalizada, porque nenhuma sanção simbólica do vínculo está em condições de resistir à potência abstrata do capital. Que tudo que é amarrado se verifica que, enquanto ser, é desligado, que o reino do múltiplo é o fundo sem fundo~ do que se apresenta sem exceção, que o Um é apenas o resultado de operações transitórias, eis o efeito inelutável da arrumação universal dos termos de nossa situação no movimento circulante do equivalente geral monetário. Como o que se apresenta tem sempre uma substância temporal, e o tempo nos é, no sentido . literal, contado, nada existe que seja intrinsecamente amarrado a outra coisa, pois que um ou outro termo dessa suposta ligação essencial são projetados indiferentemente na superfície neutra da conta. Não há nada absolutamente a retomar na descrição dada · deste estado coisas por Marx há cento e quarenta anos: "Por toda parte onde a burguesia conquistou o poder, ela espezinhou as relações feudais, patriarcais, idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal a seus superiores naturais, ela os rompeu sem piedade para não deixar subsistir outro vínculo, entre homem e homem, senão o frio interesse, as duras exigências do pagamento em dinheiro contado. Ela afogou os tremores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da sentimentalidade pequeno·burguesa, nas águas geladas do cálculo egoísta''. O que Marx põe em evidência é, muito particularmente; o fim das figuras sagradas do vínculo, a perempção da garantia simbólica acordada ao vínculo pela estagnação produtiva e monetária. O capital é o dissolvente universal das representações sacralizantes, que postulam a existência de· relações intrínsecas e essenciais (entre o homem e a natureza, entre os homens, entre os grupos e a Cidade, entre a vida mortal e a vida eterna, etc.). É muito característico que a denúncia do "nihilismo técnico" seja sempre correlata da nostalgia de tais relações. O desapare25
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cimento do sagrado é um tema recorreQ.te no próprio Heidegger. e a predição de seu retomo identifica-se ao tema, tomado de Hoelderlin, do "retorno dos Deuses". Se entendennos por "nihilismo" a dessacralização, o capital, cujo reino planetário não deixa dúvidas - mas "técnica" e "capital" só são emparelháveis numa seqüência histórica, e não no conceito -. é certamente a única potência nihilista da qual os homens conseguiram ser tanto os inventores quanto as vítimas. Contudo, para Marx como para nós, a dessacralização não é de modo algum nihilista, na medida em que "nihilismo,. deva significar o que pronuncia que o acesso ao ser e à verdade é impossível. Muito ao contrário, a dessacralização é uma condiçlJo necessária para que tal acesso se abra ao pensamentO. É evidentemente a única coisa que podemos e devemos saudar no capital: ele põe a descoberto o múltiplo puro como fundo da apresentação, denuncia todo efeito de Um como simples configuração precária, destitui as representações simbólicas nas quais o vínculo encontrava um semblante de ser. Que esta destituição opere na mais completa barbárie, não deve dissimular sua virtude propriamente ontológica. A que devemos nos ter livrado do mito da Presença, da garantia que ela oferece à substancialidade dos vínculos e à perenidade das relações essenciais, senão à automaticidade errante do capital? Para pensar além do capital e de sua prescrição medíocre (a conta geral do tempo), ainda é preciso panir daquilo que ele revelou: o ser é essencialmente múltiplo, a Presença sagrada é puro semblante, e a verdade, como qualquer coisa, se ela existe, não é uma revelação, menos ainda a proximidade do que se retira. Ela é um procedimento regrado, cujo resultado é um múltiplo suplementar. Nossa época não é nem técnica (porque o é mediocremente) . nem nihilista (pois é a primeira épOca que a destituição dos vínculos sagrados abre à genericidade do verdadeiro). Seu enigma próprio, ao contrário das especulações nostálgicas do socialismo feudal, cujo emblema mais perfeito certamente foi Hitler, reside primeiramente na manutenção local do sagrado que se tentou, 26
NIHILISMO?
mas que também se denegou pelos grandes poetas depois de Hoelderlin. E. em segundo lugar, nas reações anti-técnicas, arcaizantes, que ainda prendem nossos olhos a cacos de religião (do suplemento de alma ao islamismo). a políticas messiânicas (marxismo inclusive), a ciências ocultas (astrologia, plantas curativas, massagens telepáticas, terapias de grupo por futucações e borborigmos ... ), e toda. sorte de pseudo-vínculos cujo amor ao xarope das canções, amor sem amor, sem verdade nem encontro, constitui a mole matriz universal. A filosofia não acabou de modo algum. Mas a tenacidade desses resíduos do império do Um, os quais constituem, eles . sim, o nihilísmo anti-"nihilista .. , pois que se põem de través aos procedimentos de verdade, e designam o obstáculo recorrente oposto à ontologia subtrativa cujo -capital é o medium histórico, nos dá a pensar que a filosofia esteve por longo tempo suspensa. Adianto este paradoxo: a filosofia ainda não. soube, até muito recentemente, pensar~ altura do capital, pois deixou o campo livre, até o mais íntimo dela mesma, às vãs nostalgias do sagrado, à assombração der Presença, à dominação obscura do poema, à dúvida sobre sua própr:ia legitimidade. Ela não soube trocar em pensamento o fato de que o homem se tomou. irreversivelmente, "senhor e dono da natureza", e que não se trata aí nem de uma perda nem de um esquecimento, mas sim de sua mais alta destinação - entretanto figurada, ainda, na estupidez opaca do tempo contado. A filosofia deixou inacabada a "meditação cartesiana'', perdendo-se na estetização do querer e no patos do término, do destino do esquecimento, do traço perdido. Ela não quis reconhecer sem desvio a absolutidade do múltiplo e o não-ser do vínculo. Ela se agarrou à língua, à literatura, à escrita, como aos últimos representantes possíveis de uma determinação a priori da experiência, ou como ao lugar preservado de uma clareira do Ser. Ela declarou, depojs de Nietzsche, que o que havia começado com Platão entrava em seu crepúsculo, mas esta arrogante declaração encobria a impotência de continuar esse começo. A filosofia não denuncia nem incensao "ni27
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hilismo moderno" senão na medida de sua própria dificuldade de apreender por onde transita a positividade atual, e por falta de conceber que acabamos de entrar cegamente numa nova etapa da doutrina da verdade, que é a do múltiplo-sem-Um, ou das totalidades fragmentárias, infmitas e índiscemfveis...Nihilismo" é um significante tapa-buraco. A verdadeira questão permanece: o que áconteceu com a filosofia para que ela recuse friorentamente a liberdade e a potência que uma época dessacralizante lhe propõe?
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6. Suturas
Se a filosofia é, como estou sustentando, a configuração, como pensamento, do fato de que suas quatro condições genéricas (poema, materna, política e amor) são compossfveis na forma eventural que prescreve as verdades do tempo. uma suspensão da filosofia pode resultar do fato de que o livre jogo requisitado para que ela defina um regime de passagem, ou de circulação intelectual entre os procedimentos de verdade que a condicionam, se encontra restrito, ou bloqueado. A causa mais freqüente de tal bloqueio é que em vez de edificar um espaço de compossibilidade através do qual se exerça um pensamento do tempo, a filosofia delega suas funções a tal ou qual de suas. condições, ela entrega·o todo do pensamento a um procedimento genérico. A filosofia se efetua então no elemento de sua própria supressão em proveito desse procedimento. Chamarei de sutura esse tipo de situação. A filosofia é .posta em suspensão de cada vez que se apresenta como suturada a umá de suas condições, e se proibe por isso de edificar livremente um espaço sul generis onde as nomeações eventurais que indicam a novidade das quatro condições venham inscrever-se e afirmar, num exercício de pensamento que não se confunda com nenhuma delas, sua simultaneidade e, portanto, um certo estado configurável das verdades da époéa. 29
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O século dezenove, entre Hegel e Nietzsche, foi amplamente dominado por suturas, e é por isso que a filosofia parece nele sofrer um eclipse. A principal dessas suturas foi a sutura positivista, ou cientificista, que esperou da ciência, que ela configurasse por si mesma o sistema acabado das verdades do tempo. Esta sutura ainda domina, embora seu prestígio esteja abalado, ·a filosofia acadêmica anglo-saxônica. Seus efeitos mais visíveis caem naturalmente sobre o estatuto das outras condições. Tratand.o-se da condição política, ~la se vê retirada de todo estatuto eventural, e reduzida à defesa pragmática do regime liberal-parlamentar. O enunciado ao mesmo tempo latente e central é, de fato, que a polftíca nao depende de modo algum do pensamento: A condição poética é foracluída, registrada no suplemento cultural, ou proposta como objeto às análises linguísticas~ A condição amorosa é ignorada: devo a Jean-Luc Nancy esta profunda observação de que a essência dos USA é de ser um país onde o sentimentalismo e o sexo coexistem em detrimento do· amor. A surura da filosofia à sua condição científica a reduz progressivamente a não ser mais do que uma raciocinação analítica, cuja linguagem, em todos os sentidos do termo, paga as contas. Livre carreira é assim oferecida a uma religiosi~ade difusa que serve de algodão hidrófilo para as feridas e mossas da brutalidade capitalista. Em sua forma canônica dominante, o marxismo propôs ele próprio uma sutura, a da filosofia à ·sua condição polftica. É todo o equívoco da famosa tese sobre Feuerbach, que pretende substituir a "interpretação" do .mundo por sua transformação revolucionária. A política é aqui filosoficamente designada como só ela capaz de configurar praticamente o sistema geral do sentido, e a filosofia é votada a sua supressão realizante. Que a política, de resto amplamente identificada por Marx com o movimento real da História, seja a forma última da totalização da experiência, destitui simultaneamente as outras condições e a filosofia que pretendia inscrever sua compossibilidade com a política. Conhecemos os ressaibos de Marx e dos marxistas re30
SUTURAS
lativos a tudo que diz respeito à atividade artística, da qual não chegaram nem a pensar a singularidade nem a respeitar o rigor inventivo. Quanto aos efeitos de verdade da diferença dos sexos, eles sofreram, no fmal das contas, a dupla ocultação do puritanismo "socialista" e do desprezo no qual era mantida a psicanálise (a qual é, a meu ver, a única verdadeira tentativa moderna de fazer do amor um conceito). Quanto à condição científica, o negócio é mais complicado. Marx e seus sucessores, nisto tributários da sutura positivista dominante, sempre pretenderam elevar a política revolucionária à categoria de uma ciência. Eles mantiveram o equívoco entre "ciência da História" - o materialismo histórico - e o movimento dirigido da História pelo viés da política. Desde a origem, opuseram o socialismo deles, "cientffiço". aos diversos socialismos "utópicos". Podemos então afirmar que o marxismo cruzou duas suturas, com a política e com a ciência. De resto, é a rede complexa dessa dupla suturação que Stalin, particularmente, chama de "filosofia" - ou materialismo dialético. Disso resulta que a dita "filosofia" se apresenta sob a forma estranha de "leis", as "leis da dialética'\ equivocamente aplicáveis à Natureza e à História. Mas em última instância, como na visão "materialista" a ciência é remetida a suas condições técnico-históricas, a dupla sutura é articulada sob o domínio da política, a qual pode, sozinha, totalizar tamb~m a ciência, como se vê quando o mesmo Stalin se meteu a legiferar sobre a genética, a linguística ou a física relativista, em nome do proletariado e de seu Partido. Esta situação criou uma paralisia filosófica tão embrulhada que, quando Louis Althusser empreendeu, nos anos sessenta. pôr novamente em jogo o pensamento marxista. não viu outra saída senão reverter a articulação das duas suturas em proveito da ciência. e fazer do marxismo filosófico algo como a epistemologia do materialismo histórico. Em parte alguma a pregnâncía das suturas na filosofia dessa época é mais visível do que no esforço heróico com o qual Althusser empreendeu reverter o marxismo para o 31
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lado da sutura da filosofia à ciência, na justa consciência em que ele estava de que o domínio de sua sutura à condição política era ainda mais nocivo. O preço a pagar por esta operação de transferência foi o de manter a delegação da política a um órgão tão suspeito e deteriorado corno o Partido Comunista Francês, o que conseqüentemente proibia o pensamento de apreender isto. A investida filosófica, depois de alguns sucessos iniciais, veio fracassar no evento de Maio de 68, cuja nomeação no pensamento excedia, por todos os lados, os recursos da condição científica, e exibia cruelmente a perempção histórica do PCF. A tese que adianto é, em definitivo, a seguinte: se a filo· sofia está no círculo fechado de sua suspensão, talvez depois de Hegel, é porque ela está cativa de uma rede de suturas a suas condições, especialmente a suas condições científica e política, que a proíbem de configurar sua compossibilidade geral. É então exato· que algo do tempo, do nosso ·tempo, lhe escape, e que ela tenha dado de si mesma uma imagem desfeita e encolhida. Um signo infalível pelo qual se reconhece que a filosofia está sob o efeito dirimente de alguma sutura a uma de suas con- · dições genéricas é a monótona repetição do enunciado segundo o qual a "forma sistemática" da filosofia se tornou doravante impossível. Este axioma anti-sistemático é hoje em dia sistemático. Lembrei, no início deste livro. a forma que lhe dá Lyotard, mas, com exceção sem dúvida de Lardreau e Jambet, ele é comwn a todos os filósofos franceses contemporâneos e especialmente a todos aqueles que se iluminam por essa singular constelação típica onde encontramos os sofistas g~;egos, NietzSche, Heidegger e Wíttgenstein. Se entendemos por "sistema" uma figura enciclopédica, ela própria dotada de uma chave-mestra ou ocdenada por algum significante supremo, acho mesmo que a dessacralização·modema proíbe seu desenvol~imento. A filosofia, a não ser talvez Aristóteles e Hegel, terá ela, de resto, jamais sustent;ado tal ambição? Se entendemos por "sistematicidade", como devemos fazê-lo, o requisito de uma configuração completa das quatro cond.ições 32
SUTURAS
genéricàs da filosofia (o que, ainda uma vez, não exige de modo algum que os resultados dessas condições sejam exibidos ou mesmo mencionados), segundo urna exposição que exponha também· sua regra de exposição, então é da essência da filosofia ser sistemátiça, e nenhum filósofo jamais duvidou disto, de Platão até Hegel. De resto. é por isso que a recusa da ''sistematicidade" vai hoje em dia de par com o sentimento moroso, de que falei no começo deste texto, de uma "impossibilidade" da filosofia mesma. É a confissão de que ela não é de modo algum impossível, mas está entravada pela rede histórica das suturas. Não posso conceder a Lyotard sua defmição da filosofia: um discurso à procura de suas próprias regras. Há .pelo menos duas regras universais, na falta das quais não se tem mais nenhuma razão de falar de filosofia. A primeira é que ela deve dispor as nomeações eventurais de suas condições e, portanto, tomar possível o pensamento simultâneo, conceimalmente unificado do materna, do poema, da invenção política e do Dois do amor. A segunda é que o paradigma de percurso, ou de rigor. que estabelece esse espaço de pensamento, no qual os procedimentos ge-. néricos encontram abrigo e acolhimento, deve ser exibido no interior desse abrigo e desse acolhimento. É outra maneira de dizer que a filosofia s6 é des-suturada se ela é, por sua própria conta, sistemática. Se a contrario a filosofia declara a impossibilidade do sistema, é que ela está suturada, é que ela entrega o pensamento a uma só de suas condições. Se, no século dezenove e mais além, a filosofia sofreu a dupla sutura à sua condição política e· à sua condição científica, compreendemos muito bem que, especialmente depois de Nietzsche, se tenha exercido sobre ela a tentação de se entregar, pela sutura, a uma.outra condição. A arte estava inteiramente designada para isto. O que culmina com Heidegger é o esforço, anti-positivista e anti-marxista, de entregar a filosofia ao poema. Quando Heidegger designa como efeitos cruciais da técnica, de uma parte a ciência moderna. de outra parte o Estado totalitário, ele indica na realidade as duas suturas dominantes, das quais o 33
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pensamento só se salvará abandonando-as. A via que ele propõe não é a da filosofia, a seus olhos realizada na técnica, é aquela, pressentida por Nietzsche, mesmo pot Bergson, prolongada na Alemanha pelo culto filosófico dos poetas~ na França pelo fetichismo da literatura (Blanchot, Derrida, Deleuze também••.), que delega o vivo do pensamento à condição artística. Servidora a Oeste da ciência, a Leste da política, a filosofia tentou, na Europa ocidental, servir pelo menos ao outro Mestre, o poema. A situação atual da filosofia é: Arlequim servidor·de três senhores. Podemos mesmo acrescentar que um Levinas, à g\iisa da proposição dual sobre o Outro e seu rosto, sobre a Mulher, visualiza que .a filosofia possa também se tornar o valete de sua quarta condição, o amor. Adianto que é hoje possível, portanto exigível, romper todos esses contratos. O gesto que proponho é pura e simplesmente o da filosofia, o da des-sutura. Acontece que o desempenho principal, a dificuldade suprema, é a de des-suturar a filosofia de sua condição poética. Positivismo e marxismo dogmático não constituem mais do que posições ossificadas. São suturas puramente institucionais ou acadêmicas. Em contrapartida, o que deu poder à sutura poetizante, a Heidegger portanto, está longe de se desfazer, até por falta de ter sido examinado. O que foram e o que pensaram os poetas no tempo em que a filosofia perdia seu espaço próprio, suturada que estava ao materna ou à política revolucionária?
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7. A era dos poetas
No período que se abre, grosso modo, logo depois de Hegel, período no qual a fllosofia está o mais freqüentemente suturada seja à condição científica, seja à condição política, a poesia tomou para si certas funções da filosofia. E também todo mundo concorda em dizer que então se trata de um período excepcional para essa arte. Contudo, a poesia e os poetas de que falamos não são nem toda a poesia nem todos os poetas. Trata-se daqu~les cuja ob.i:a é imediatamente reconhecível como uma obra de pensamento, e para a qual o poema é, no lugar mesmo onde a filosofia desfalece, o lugar da língua onde se exerce uma proposição sobre o ser e sobre o tempo. Esses· poetas não decidiram substituírem-se aos filósofos, não escreveram na consciência clarificada de uma tal substituição. Melhor, é preciso imaginar que se exercia sobre eles uma espécie de pressão intelectual induzida pela ausência de livre jogo dentro da filosofia, pela necessidade de constituir, do interior de sua arte, esse espaço geral de acolhimento para o pensamento e para os procedimentos genéricos que~ suturada, a filosofia não conseguia mais estabelecer. Se a poesia foi singularmente designada para este ofício, foi, de uma parte, porque ela não figurava, pelo menos até Nietzsche e Heidegger, entre as condições a que, de maneira privilegiada, a filosofia se suturava; de outra parte, porque é uma vocação remota 35
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da..Jl(>eSia, arte..do_yínculo .entre.a...palavra..e...a..experiência, ter, como seu horizonte quimérico, o ideal da Presença tal como uma palavra pode fundá-la. A rivalidade do poeta com o filósofo é uma velha história, como vemos no exame especialmente severo ao qual Platão submete a poesia e os poetas. A desforra contra Platão, da qual Nietzsche foi o profeta, não podia não se ancorar na jurisdição do poema. Descartes, Leibniz, Kant ou Hegel bem podiam ser matemáticos, historiadores, físicos, se há uma coisa que eles não eram, era poetaS. Mas depois de Nietzsche todos pretendem isso, todos Invejam os poetas, todos são poetas fracassados ou aproximativos, ou notórios, como vemos com Heidegger, mas também com Derrida, ou Lacoue-Labarthe, e mesmo Jambet ou Lardreau saúdam a inelu~vel vertente poética das elevações metaffsicas do Oriente. É que houve, com efeito, uma era dns poetas, no tempo da sutura deserdada dos filósofos. Houve um tempo, entre Hoelderlin e Paul Celan, em que o sentido trêmulo do que fosse esse tempo mesmo, o modo de acesso mais aberto à questão do ser, o espaço de compossibilidade menos aprisionado em suturas brutas, a formulação mais alerta da experiência do homem modemo, foram desencadeados e sustentados pelo poema. Um tempo no qual o enigma do tempo foi tomado pelo enigma da metáfora poética, em que o próprio desligamento se enlaçou no "como" da imagem. Toda uma época se representou em curtas filosofias como uma época consistente e sobretudo orientada. Havia o progresso, o sentido da História, a fundação milenar, o advento de um outro mundo, e de outros homens. Mas o real dessa época era bem mais a inconsistência e a desorientação. A poesia, pelo menos a poesia Hmetaffsica", a poesia mais concentrada, a mais intelectualmente tensa, a mais obscura também, ela sozinha, designou e articulou-essa desorientação essencial. A poesia traçpu, nas representações orientadas é.la História, uma diagonal desorientadora. A secura cintilante desses poemas fez a cesura - pa·r a retomar um conceito de Lacoue-Labarthe, vindo de Hoelderlin - do patos histórico. · 36
A ERA DOS POETAS
Os representantes canônicos da era dos poetas são objeto, a partir do momento em que a filosofia tenta suturar-se à condição poética, de uma eleiç(J() filosófica. Michel Deguy chega a dizer- é verdade que ele é poeta - : ..A filosofia, para preparar para a poesia". Em todo caso, para preparar a lista dos poetas que a filosofia reconhece que se apossaram, por longo tempo, de suas funções ordinárias. · No que me conceme (mas. sustento que a era dos poetas acabou, e é do ponto desse fecho que enuncio minha própria lista, lista por conseqüente fechada), reconheço sete poetas cruciais, não que eles sejam forçosamente os "melhores poetas .. , impraticável distribuição de prêmios, mas que periodizaram, escandira.m, a era dos poetas. Trata-se de Hoelderlin, o profe~ deles, seu vigia antecipador, depois, todos posteriores à Comuna de Paris, que marcou a abertura da desorientação representada como sentido orientado, Mallanné, Rimbaud, Trakl, Pessoa, Mandeis- tam e Celan. Não se trata aqui de estudar o emaranhamento histórico, as reviravoltas, os poemas fundadores, as operações singulares (como O Livro de Mallarmé, o desregramento de Rimbaud, os heterônimos de Pessoa... ) que são tantas operações conceituais cujo total não alinhável compõe a era dos poetas como a era do pensamento. Algumas observações entretanto. 1) A linha fundamental seguida por nossos poetas e que lhes permite subtraírem-se aos efeitos das suturas filosóficas é a da destituiçlJo da categoria de objetq. Mais praticamente: a destituição da categoria de objeto, e da de objetividade, como formas necessárias da apresentação. O que tentam os p~ da era dos poetas é abrir um acesso ao ser, ali mesmo onde o ser não se ·pode sustentar pela categoria apresentativa do objeto. A poesia é, então, essencialmente desobjetivante. Isto não significa, de modo algum, que o sentido seja entregue ao sujeito, ou ao subjetivo. Muito pelo contrário, pois o de que a poesia tem uma consciência aguda, é do vínculo organizado pelas suturas entre 37
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"objeto" ou objetividade, e "sujeito". Esse vínculo é constitutivo do saber ou do conhecimento. Mas o acesso ao ser que a poesia tenta não é da ordem do conhecimentó. Ele é então diagonal à oposição sujeito/objeto. Quando Rimbaud enche de sarcasmo a ''poesia subjetiva'', ou quando Mallarmé estabelece que o poema só tem lugar se seu autor como sujeito é ausentado, eles entendem que a verdade do pema tem advento na medida em que o que ele enuncia não depende nem da objetividade nem da subjetividade. Pois, para todos os poetas da era dos poetas, se.a consistência da experiência está ligada à objetividade, como pretendem as filosofias suturadas ao se reclamarem de Kant, então é preciso sustentar audaciosamente que o ser inconsiste, o que Celan resumirá admiravelmente: "Sobre as inconsistências se apoiar" A poesia, que procura o traço, ou o limiar, da Presença,
nega que possamos nos manter em tal soleira ao mesmo tempo que conservando o tema da objetividade e, por via de conseqüência, também não é mais um sujeito - correlato obrigatório do objeto - que é o suporte de tal experiência. Se a poesia captou no obscuro a escuridão do tempo, é porque, qualquer que seja a diversidade e mesmo a dimensão inconciliável de seus procedimentos, ela destituiu o quadro "objetivante" sujeito/objeto dentro do qual, no elemento das suturas, se afirmava filosoficamente que esse tempo estava orientado. A desorientação poética é, de saída, sob a lei de uma verdade que fura e oblitera tooo conhecimento, que existe uma experiência subtraída simultaneamente à objetividade e à subjetividade. 2) O que deu força ao pensamento de Heidegger foi ele
cruzar a critica propriamente filosófica da objetividade com sua destituiç(U) poética. O golpe de gênio - só que ele jamais deixa de ser um modo de sutura. desta ~ez à condição poética - foi: 38
A ERA DOS POETAS
- apreender, especialmente através do exame de K.ant, que o que separava a "ontologia fundamental" da doutrina do conhecimento era a manutenção, na segunda, da categoria de objeto, fio condutor e limite absoluto da crítica kantiana; - não cair, nem por isso, no subjetivismo, ou numa filosofia radical da consciência, via seguida em defmitivo por Husserl, mas, bem ao contrário, pronunciar a desconstrução dó tema do sujeito, considerado como último avatar da metafísica e correlato forçoso da objetividade; - manter assim firmemente a distinção capital entre saber e verdade, ·ou entre conhecimento e pensamento, distinção que é o fundamento latente do empreendimento poético; - chegar assim ao ponto onde é possível entregar a filosofia ~ poesfa. Esta sutura aparece como· uma garantia de força, pois é verdade que houve uma era dos poetas. A existência dos poetas deu ao pensamento de Heidegger, sem ela aporético e desesperado, um solo de historicidade, de efetividade, capaz de lhe conferir - uma vez que a miragem de uma historicidade política se concretizou e se dissolveu no horror nazista - o que devia ser sua única ocorrência real. Até hoje, o pensamento de Heidegger mantém seu pader de persuasão por ter sido o único a captar o que estava em jogo no poema, nomeadamente a destituição do fetichismo do objeto, a oposição da verdade ao saber e, finalmente, a desorientação essencial de nossa época. É por isso que não poderia existir crítica fundamental de Heidegger senão esta: a era dos poetas acabou, é preciso .des-suturar também a filosofia de sua condição poéti.dema: ser, sujeito, verdade. Do ser-enquanto-ser, diremos que as matemáticas constituem historicamente o único pensamento possível, porque elas são, n_~ potência vazia da letra, a inscrição infinita do múltiplo puro, do múltiplo sem predicado, e que este é o fundo do que é dado, apreendido em sua apresentação. As matemáticas são a ontologia efetiva. Da verdade, diremos que ela está suspensa a essa suplementação singular que é o evento, e que seu ser, múltiplo como o ser de tudo que é, é o de uma parte genérica, indiscemível, qualquer, a qual, efetuando o múltiplo no anonimato de sua multiplicidade, pronuncia seu ser. Do sujeito, enfim, diremos que ele é um momento finito do procedimento genérico. Neste sentido, é notável ter que concluir que só existe sujeito na ordem própria de um dos quatro tipos de genericidade. Todo sujeito é artístico, científico, político ou amoroso. O que, de resto, cada um sabe por experiência, pois fora destes registros não há senão a existência, ou a individualidade, mas nenhum sujeito. A genericidade, no coração conceitual de um gesto platônico voltado para o múltiplo, funda a inscrição e a compossibilidade das condições contemporâneas da filosofia. Da política · inventada, quando ela existe, nós sabemos, pelo menos desde
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1793, que ela só pode ser hoje igualitária, anti-estatal, traçando na espessura histórica e social a genericidade da humanidade e a desconstrução dos estratos, a ruína das representações diferenciais ou hierárquicas, a assunção de um comunismo das singularidades. Da poesia, sabemos que ela explora uma língua inseparada, oferecida a todos, não instrumental, uma palavra que · funda a genericidade da própria palavra. Do materna, sabemos que ele apreende o múltiplo despojado de qualquer distinção apresentativa, a genericidade do ser-múltiplo. Do amor, enfim, sabemos que, para além do encontro, ele se declara fiel ao puro Dois que ele funda, e que ele faz verdade genérica disso de haver homens e mulheres. A filosofia é hoje o pensamento do genérico como tal, que começa, que já começou, pois "Uma magnificência se desfraldará, qualquer, análoga à Sombra de outrora".
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Nota MD Magno
Depois de lido este Manifesto, seria melhor relê-lo à luz de pelo menos quatro outros volumes do autor, nomeadamente: Théorie du sujet. teoria do sujeito (1982), Peut-on penser la politique?, podemos pensar a polftica? (1985), mas, principalmente, L ·~rre etl'événement. o ser e o evento (1988) eLe Nombre et les nombres, o Número e os números (1990) - todos publicados pela Seuil, de Paris. Não deixem também de ler Rhapsodie pour le thNitre, rapsódia para o teatro (1990), pela Imprimerie Nationale. Os leitores advertidos hão de notar, flagrantemente, que o Ba~iou que ora se apresenta já não é mais aquele, então reconhecível pelo público brasileiro (anos sessenta). Mas ele não deixa de ser, por outro lado, o mesmo insistente nessa antiga questão com que já freqüentava os (entre nós de boa fortuna) hoje quase que esquecidos Cahiers pour l'analyse. Mais próximo, por exemplo, de mim - sob a égide do mesm(ssimo Mestre - depois do seu percurso de meditação e militância. chega a paragens algo desérticas que não pude deixar de freqüentar na aventura de certas incursões psicanalíticas. E tudo isto para melhor, como eu aposto. 69
MANIFESTO PElA FILOSOFIA
O lacanismo decadente, já tão cedo, tanto por redução pura e simples à normal banalidade da papagaia palração da frase feita (pelo Mestre, naturalmente), quanto pelo maJentendido genera.:. lizado ou ocasionais erros mesmo