Insólito Benjamin
 9788581280790

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INSÓLITO BENJAMIN EDUARDO REBUÁ

Rio de Janeiro 2019 SUMÁRIO PREFÁCIO O Insólito Benjamin diante do monte de ruínas que cresce à nossa frente Martha D’Angelo APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO Lembrar Benjamin MIRANTES DIALÉTICOS: ESTADO DE EXCEÇÃO, FANTASMAGORIA E CULTURA CAPITALISTA ENSAIO BENJAMINIANO: A EXPERIÊNCIA COMO CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS EXCEÇÕES E VEREDAS: AS OCUPAÇÕES COMO ACONTECIMENTO E EXPERIÊNCIA NO BRASIL DO NOSSO TEMPO A FASCISTIZAÇÃO À BRASILEIRA ENTRE CONFORMISMOS E EXPERIÊNCIAS: GRAMSCI E BENJAMIN COMO PRISMAS SUSTO NA “CONTRARRUA” POSFÁCIO Ronaldo Rosas Reis BIBLIOGRAFIA

SOBRE O AUTOR Para Leandro Konder, primeira passagem até Benjamin. PREFÁCIO O Insólito Benjamin diante do monte de ruínas que cresce à nossa frente Martha D’Angelo A sensibilidade e atualidade dos textos de Eduardo Rebuá neste livro me trouxeram à lembrança uma das treze técnicas sugeridas aos escritores por Walter Benjamin ¹ : “Não deixe nenhum pensamento passar incógnito e mantenha seu caderno de notas tão rigorosamente quanto a autoridade constituída mantém o registro de estrangeiros.” Em tempos de redobrada fiscalização aos imigrantes, essa recomendação adquire um tom mais grave e contundente. Em “Mirantes dialéticos: estado de exceção, fantasmagoria e cultura capitalista”, o leitor é surpreendido com uma articulação de conceitos, operada com a finalidade de dar nome à forma de democracia que se instalou entre nós. Nesse trabalho conceitual, o entendimento de estado de exceção como medida ilegal, mas perfeitamente jurídica e constitucional, se conjuga como o nosso ethos capitalista impactando toda a cultura. Emerge daí a expressão democracia fantasmagórica , construída através de uma aproximação entre o conceito marxista de fetichismo da mercadoria e o conceito de reificação de Lukács, que fundamentam a noção benjaminiana de fantasmagoria. Em seguida, no “Ensaio benjaminiano: a experiência como construção de sentidos”, o autor analisa o conceito de experiência ( Erfahrung ), considerando sua potência significativa e construtiva, a partir dos textos “Experiência e pobreza” e “O Narrador”, escritos por Benjamin em 1933 e 1936, respectivamente. Nesse texto, Rebuá também considera o trabalho e a função da memória, observando suas implicações filosóficas e históricas. Atento aos movimentos sociais ocorridos na sociedade brasileira desde as Jornadas de Junho de 2013, o autor discute, em “Exceções e veredas: as ocupações como acontecimento e experiência no Brasil de nosso tempo”, o significado político das ocupações nas escolas e universidades, vendo-as como tentativas de dissolução da democracia fantasmagórica que ganhou forma e se desenvolveu na dita Nova República. Uma das inquietações que perpassa as ousadas reflexões do livro manifestase com grande intensidade no texto final. Trata-se da compreensão do caráter histórico do fascismo, sua temporalidade e seus dispositivos. Rebuá especula de forma corajosa sobre as razões da obliteração desse fenômeno na sociedade brasileira, e a necessidade de bases explicativas para os processos de fascistização que vêm se acentuando nos últimos anos em todo o mundo e, principalmente, no Brasil. Demonstrações de ódio aos imigrantes na Europa, de racismo nos Estados Unidos, como aconteceu em Charlottesville, e o louvor à tortura e à ditadura no Brasil, feito em rede

nacional de televisão pelo atual presidente da República, em 2016, antes portanto de sua eleição, são sintomas de grave patologia social. A reflexão sobre essa forma de adoecimento e sobre as condições históricas que permitiram a sobrevivência do fascismo após a Segunda Guerra Mundial, nos remetem às revelações de Noam Chomsky ² sobre o recrutamento feito pelo Departamento de Estado Norte Americano de criminosos de guerra – como Walter Rauff, o criador das câmaras de gás, Reinhard Gehlen, o chefe do serviço de inteligência militar da Alemanha, e Klaus Barbie, o carniceiro de Lyon – colocados a seu serviço com o objetivo de destruir qualquer resistência antifascista no mundo e planejar golpes militares na América do Sul. O restabelecimento da ordem fascista na Itália pelos ingleses no pós-guerra, e a proteção dada aos criminosos fazem parte da geopolítica anglo-americana de restauração da ordem tradicional em todo o mundo ³ neste período. O alerta de Insólito Benjamin para o risco de supressão das liberdades políticas no atual momento é importante, pois ele se torna maior quando as instituições estão fragilizadas, como agora, e os parlamentos não são capazes de conciliar as contradições de classe. Exatamente nessa hora o fascismo cresce e assume sua função histórica, que é destruir, usando a violência física extrema se necessário, qualquer ameaça ao regime burguês. A luta contra o fascismo é uma luta política que pode chegar a uma luta física, confirmando a famosa afirmação de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Vivemos um momento de perigo com o crescimento da opressão e do ódio. Quando esse crescimento ultrapassa um certo limite, estamos próximos da situação descrita por Primo Levi ⁴ : “a capacidade de odiar, que ficou insatisfeita em relação aos opressores, cairá, injustificadamente, sobre os oprimidos: e sentir-se-á satisfeita ao descarregar sobre os seus subalternos a ofensa que recebeu dos que estão acima dele”. O diálogo de Rebuá com Benjamin e a tentativa de leitura do mundo apresentada no livro convidam a pensar e fazer justiça ao passado. Que sejamos estimulados por suas provocações nesta hora crucial em que a traição da memória pode levar, talvez, a uma exposição fatal ao perigo. Niterói, outono de 2019. Martha D’Angelo é Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora de Filosofia da Faculdade de Educação da UFF. Publicou Arte, política e educação em Walter Benjamin (Loyola, 2006), Walter Benjamin: arte e experiência (NAU Editora, 2009) e Educação estética e crítica de arte em Mário Pedrosa (NAU Editora, 2011). Organizou as coletâneas Filosofia da História (EdUFF, 2014), com o Prof. Giovanni Semeraro, e Interlocuções: estética, produção e crítica de arte (Apicuri, 2012), com o Prof. Luciano Vinhosa. 1 BENJAMIN, W. Rua de Mão Única . São Paulo: Brasiliense, 1995 (Obras escolhidas 2), p. 31. 2 Chomsky, N. Segredos, mentiras e democracia . Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

3 Chomsky discutiu profundamente essa questão no livro What Uncle Sam Really Wants . 4 LEVI, P. Se isto é um homem . Alfragide-Portugal : Editora Teorema, 10ª Edição, s.d., p. 97. APRESENTAÇÃO Não acredito em horóscopo, mas respeito o mistério. Dizem que os cancerianos gostam do drama – a sensibilidade extrema – e do romantismo, não necessariamente nesta ordem. Como filho deste signo, confesso tal miséria. Benjamin, canceriano de quinze de julho, encarnou como poucos o drama como algo sério. Não apenas sua obra mais elaborada, segundo Adorno, teria o drama no centro, mas a própria biografia, onde o adjetivo dramático era, concomitantemente, espírito e tempo de uma época. Como aluno de História na primeira década dos anos 2000 tive muito pouco contato com a obra benjaminiana, enquadrada por alguns cânones do marxismo como pós-moderna: sintoma de nossos limites e de nossas conversas adiadas ou mal resolvidas. Foi nas veredas mais solitárias do doutorado que pude conhecer o filósofo da melancolia , quando da necessidade de encontrar categorias de análise que de alguma maneira matizassem dialeticamente o movimento de elaboração da novidade e o de fenecimento da velharia, no esforço de interpretação das ações populares protagonizadas por universidades de movimentos sociais. A experiência em Benjamin significou para mim algo como a alegria de uma criança em encontrar moedas no bolso do casaco velho. Houve a sensação da descoberta misturada com um sabor de coisa já conhecida. Como não se apaixonar pela potência crítica de um catador de restos que se fez pesquisador, sendo preterido pelo Taj Mahal da pesquisa, a academia ? De que maneira tentar compreender através de outros olhos-mágicos, ou seja, sem nosso narrador berlinense, o nexo narrativa-memória-experiência no trato das questões contemporâneas? É possível antever a perda sem Benjamin após o encontro com ele? Com a trinca elencada acima, coadunada à leitura da hegemonia em Antonio Gramsci, tentei reconstruir para mim o diapasão do materialismo histórico como o compreendia e penso que depois de Benjamin algumas constelações dialéticas passaram a me visitar com alguma regularidade, não como iluminação, mas como deslocamento. Os seis textos de Insólito Benjamin , contando a Introdução, são imagens de um kaiserpanorama particular que serviu de bússola – sobretudo para compreender o Brasil nestes últimos seis anos, de 2013 a 2019. Nunca antes como nesta duração fez tanto sentido o resgate do pessimismo atento, a espessura das derrotas e a fisionomia dos vencidos para mim nos processos pessoais e para o país onde nasci em seus dramas sócio-históricos.

O amor como afeto central caminhou comigo nessas trilhas imprevistas. Amigas e amigos, família, alunas e alunos, colegas de universidades, mestras e mestres chegam comigo até esta passagem , coleção de memórias. Clairí, companheira de vida, ideias e amor tornado concretude, é a principal suspeita no movimento de captura, não do copo mais cheio ou mais vazio, mas do copo. Como um traço distintivo político, tenho predileção pelos intelectuais que enfrentaram o fascismo, este tempo que é também conformismo e experiência, capaz de educar para a catástrofe enquanto a engendra. Hoje, cabe urgentemente aos materialistas históricos revolucionários entenderem e impedirem a fascistização, permanência do fascismo na cultura, nas formas de sentir, no sofrimento, no humor, na ideia de governo. É com o impedimento da experiência histórica e com as fantasmagorias da dominação burguesa que tenho me preocupado ultimamente. E Walter Benjamin, como nenhum outro autor do século XX, é estrela eleita para a diagnose do tempo-corrosão. João Pessoa, outono de 2019. INTRODUÇÃO Lembrar Benjamin Eu vim do avesso, Reverso do que é aceito. ( Sinto Encanto, Paulinho Moska) Originalmente publicado no Blog da Boitempo em julho de 2017, sob mesmo título. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/27/lembrarbenjamin/ . Walter Benjamin foi o marxista que da maneira mais sensível buscou auscultar o mundo da experiência sob o capitalismo, imergindo nele – em nossa perspectiva – sob três morfologias: a do  flâneur , a do narrador e a do colecionador, que traduzimos como três prismas singulares de diagnose das catástrofes modernas, quais sejam a  experiência , a  rememoração  e a  permanência , esta última no sentido da preocupação com a coisa que se guarda para que não se perca. Nenhum outro intelectual da dialética materialista impregnou na temporalidade um baixo-alto relevo capaz de indicar, num  Jetztzeit  ainda mais fragmentado que aquele dos anos 1920 e 1930, o que vai mal na cultura, o que estamos perdendo a conta-gotas e o que existe apenas sob fenótipos fantasmagóricos. À tríade arquetípica apontada acima ousamos acoplar as esferas mais nítidas do pensar benjaminiano, discutidas por seus inúmeros intérpretes: o marxismo ( experienciar : a práxis), a teologia judaica ( rememorar : o rito) e o romantismo ( manter/guardar : a crítica). A própria articulação destes

campos é uma marca originalíssima legada pelo ensaísta alemão, ainda hoje debatida e de difícil leitura. Todavia, ainda que num arriscado passo – suscetível de ser compreendido como síntese apressada –, buscamos uma aproximação dos tipos humanos, das concepções de mundo e dos verbos no infinitivo aqui delineados, almejando, quem sabe, epigrafar Benjamin nos 125 anos de seu nascimento, completados em 15 de julho deste ano. Lembrar Benjamin significa admirá-lo. Não uma admiração contemplativa, mas como afeto e encantamento com a potência de seus escritos, atuais porque organicamente colados à cultura, ou melhor, à sua crítica. Adorno sinalizou o orgulho e a estima pelo amigo em cartas que trocaram, sobretudo na maturidade deste. Admiramos, muitas vezes, aquilo que nos impacta imprimindo uma dificuldade de classificação à primeira vista, como uma música de ritmo estranho, ou um filme que não entendemos, ainda, mas temos a sensação que entenderemos em breve, tamanho foi o impacto em nós. É recorrente a percepção da sedução de Benjamin em seus primeiros leitores e ouvintes, na arquitetura e na filosofia, na história e nas artes, nas epígrafes e nos textos mais densos: a enorme maioria gosta, mas é comum não saber narrar para alguém, de forma imediata, por que aquilo lhes tocou, por que querem ler o autor novamente, ou preferem parar ali, naquele exato ponto do primeiro contato, do primeiro flerte. O filósofo de difícil classificação nos exige, invariavelmente, um tempo de decantação. A perspectiva dos dominados e esquecidos, a ruptura com o tempo linearuniforme, a defesa da experiência como partilha e sentido, sua antevisão da perda na crítica radical do capitalismo como modo de vida, a percepção da crise, o cuidado com o diminuto e o fugidio, sua atenção para com as crianças compõem um mosaico intrigante que não é qualquer cor, forma e imagem, mas sim o movimento constante de uma nostalgia da totalidade, que mesmo ciente de sua corrosão simbólica e material, segue engajada no ânimo de sua busca. De volta à costura triangular que realizamos,  flâneur /marxismo; narrador/ teologia; colecionador/romantismo, refletimos: como é difícil experienciar, lembrar e manter/guardar no desenraizado mundo hodierno, onde a melancolia ganha matizes distintos a cada fração do instante. A psicanálise talvez seja o espaço do contemporâneo que mais se esmera na radiografia destas dores, perdas e nas suturas possíveis em seus tecidos:  para viver a modernidade é preciso uma constituição heroica , sinalizou Benjamin. Contudo, a melancolia para ele não é lamento, mas sintoma; não é patologia, mas uma antevisão da perda, visível nas narrativas das filosofias que compõem os pares que indicamos. Nestas três fontes da reflexão benjaminiana há a preocupação e a atenção com a dissolução, o ocaso, a metamorfose, o processo – o que explica em grande medida suas presenças marcantes na cultura e nas análises sociais do presente. O perfume trazido por Benjamin a estas miradas é, sem dúvida, a perspectiva a contrapelo vinculada à uma compreensão da História como abertura-possibilidade: uma história que não é inevitabilidade, nem do caos nem da emancipação; que não é progresso linear e inexorável, mas imprevisibilidade e constructo humano, seja da tragédia ou da revolução.

Em sociedades cada vez mais isoladas na conexão, reprodutibilizadas na expressão, emudecidas na profusão, enxergar nos escombros rotas de fuga oníricas e concretas significa agir e pensar de forma revolucionária, resistindo. O  flâneur , o narrador e o colecionador são os resistentes em Benjamin! O  flâneur  é aquele que só existe na multidão, sem se confundir com ela,  sentindo  as rugosidades do urbano, os laboratórios do capital e do consumo, as mutações do poeta em assalariado, do pequeno burguês em proletário, do homem em coisa (D’ANGELO, 2006, p. 242). O narrador é quem mantém viva em nós –  rememorando  – a certeza de que não há nada perdido definitivamente para a História: o tempo perdido para Benjamin não é o de Proust (o passado), mas o futuro, daí a relevância destes sujeitos sintonizados com a libertação da finitude, uma vez que o que rememoramos não tem limites, como ocorre com o que vivemos, encerrado na esfera do vivido. Por sua vez, o colecionador é o responsável por  manter/guardar  o fragmento, não como peça perfeita de um quebra-cabeças, mas como o agente que despe os objetos de seu caráter de mercadoria, tomando posse deles (KANG, 2009, p. 232), significando o tátil em certa oposição ao visual e enfatizando o valor de uso em relação ao valor de exibição. O colecionador é um investigador profano do mundo fantasmagórico, resultado do incremento da lógica da mercadoria como alicerce das relações sociais. Sentir, rememorar e preservar assumem cada vez mais, como seus arquétipos, o lugar de experiência ( Erfahrung ) – para além das três filosofias que citamos –, que em Benjamin lemos como construção de novos e outros sentidos; como a criação coletiva de pontes que nos conectam à cultura; como a elaboração de histórias e narrativas que significam algo por serem tecidas de forma partilhada pelos grandes-pequenos  criadores implacáveis , que recomeçam o ciclo do novo a despeito das bombas-relógio das novas formas de barbárie que amedrontam e dilaceram. Tomando por empréstimo as últimas palavras de  Experiência e pobreza  (1933), talvez o mais agudo de seus diminutos escritos: ficamos pobres sem Benjamin. Por isso lembrá-lo será sempre a reivindicação intransigente e otimista da inventividade, da radicalidade sensível e da capacidade humana de construir uma existência plena de sentido, na contramão (REBUÁ, 2015, p. 330). Num contexto de Brasil onde hegemonias, espectros e feridas escrevem e apagam projetos emancipadores e/ou conservadores, resgatar experiências de rosto humano em meio às ruínas de nossa gelatinosa democracia é tarefa para aqueles ainda não desprovidos de espírito, como escreveu Benjamin. M IRANTES DIALÉTICOS: ESTADO DE EXCEÇÃO, FANTASMAGORIA E CULTURA CAPITALISTA O estado de exceção [...] tornou-se a regra. (Walter Benjamin, Sobre o conceito de História ) Tudo está conectado com o restante e continuará sem mudar,

ou, então, o que é ainda mais provável, ficará ainda mais fechado, mais atento, mais restrito, mais malevolente. (Franz Kafka, O Processo ) Este artigo é o segundo de uma investigação composta por três escritos que condensam e articulam as três linhas de pesquisa do grupo vinculado ao CNPq que coordenamos, o Observatório de História, Educação e Cultura (HECO) atualmente localizado no Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (CE – UFPB). As três linhas se intitulam: 1) A Educação disputada: democracia e sentidos do público no Brasil contemporâneo, esta dando origem à Parte I da trilogia e assim sucessivamente; 2) Estado de exceção, fantasmagoria e cultura capitalista: medos e enredos; 3) Experiência e hegemonia.   Exceção e regra Nas primeiras e quase centenárias palavras de Joseph K. em O Processo (1925) lemos sobre a tensão entre a norma e sua quebra, sobre a dimensão jurídica e a vida, sobre a regra e a exceção, cada vez mais imbricados: “ele sabia que não tinha feito nada de errado, mas certa manhã foi preso”. A obra de Kafka aborda em toda sua complexidade o tema da violência e seus mecanismos estatais, particulares, psíquicos, físicos, sociais de ação. O século XX consagraria a exceção enquanto regra, com o estado permanente da guerra como frente de pacificação; com a espetacularização da política, cada vez mais área do marketing e menos da ciência e da práxis; com a sacralização da economia sob um capitalismo-religião que produz fiéis e sacrifícios em níveis colossais; com a estandardização da cultura via consumo, onde a negatividade amplia as fronteiras do fetiche com o nãosabor, o não-gozo, o não-trabalho, o não-pensamento, a não-utopia. Se a violência não é produto exclusivo das sociedades capitalistas, podemos afirmar sem hesitações que nenhum outro modo de vida se expandiu tornando-a uma dimensão efetivamente sistêmica, ou seja, modus de sua reprodução social. Nenhuma outra maneira de produzir logrou apartar as violências subjetiva e material da violência sistêmica ⁵ , exatamente a que mais retroalimenta aquelas, e alçar o caráter orgânico da violência-sistema aos patamares que vimos desde o final do XVIII, os quais continuamos a assistir neste novo século. Capital e violência são desde Marx o verdadeiro par do projeto de sociabilidade burguês, ao contrário do que disseminam seus ascetas com suas mortificações de sentido - o capitalismo em eternas núpcias com a democracia. A consecução do projeto hegemônico do capital somente foi possível pela gramática coercitiva do Estado-nação, vigia e vingador da propriedade burguesa na Modernidade. Já no dezoito temos a arquitetura da morfologia mais impiedosa do Estado burguês, qual seja o estado de exceção, feição dominante do Estado capitalista hoje. É Giorgio Agamben (2004) que retomando Carl Schmitt e Walter Benjamin na posição de balizas, mas retroagindo até o Direito Romano, vai enfatizar que o estado de exceção não é filho do Absolutismo, mas do mundo moderno, mais precisamente da tradição democrático-revolucionária francesa, substancializada no decreto

de 8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte, que distinguia estados ou formas do Estado de acordo com as condições de paz (état de paix ), guerra (état de guerre ) ou de sítio (état de siège ). O estado de exceção , o qual retomaremos mais à frente, é a uma intersecção entre o jurídico e o político, é o modelo de governo dominante na política contemporânea. A catástrofe do estado de exceção teve como laboratório a Primeira Guerra Mundial e os anos subsequentes, quando suas engrenagens foram experimentadas e aperfeiçoadas, sendo os doze anos do III Reich a expressão mais trágica desta indistinção, supostamente provisória, entre poder legislativo, executivo e judiciário. Diga-se: o Estado nazista foi um estado de exceção nunca revogado. A principal característica deste estado na cena política atual é exatamente aquilo que Benjamin anunciou como um alerta nas Teses : tornar-se regra e, exatamente por isso, cada vez menos visível. É necessário frisar que o Direito sempre será contraditório numa sociedade de classes, uma vez que deve, ao mesmo tempo, instituir e manter, adequar fins universais e situações particulares: “este sistema (o sistema jurídico), poderíamos dizer, contém em si seu próprio ‘estado de exceção’” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 28). No estado de exceção há o movimento de inserção da exceção na ordem jurídica, exatamente porque ele se torna concreto na criação de novas normas, ou seja, de uma nova ordem jurídica. Assim, o estado de exceção é uma medida ilegal, mas perfeitamente jurídica e constitucional. Para Agamben, ele representa uma absoluta indeterminação entre anomia e direito, uma total indiscernibilidade entre exceção e norma, um desequilíbrio entre direito público e fato político, até que a exceção assuma efetivamente o lugar de regra, com o estado de exceção sendo a forma legal do que não pode ter forma legal. Ele é fundamentalmente antidemocrático e primordialmente um sistema jurídico-político letal (AGAMBEN, 2004); é a forma da hegemonia que melhor representa a subsunção do consenso à coerção, resultado do permanente estado de crise do capitalismo, sob o manto das constituições, do Parlamento, das leis. Ele corresponde à legitimação e generalização da insegurança e do medo, onde ninguém está a salvo completamente sobretudo os subalternos - e todos podem sucumbir. A escolha pela expressão estado de exceção, nos lembra Agamben, representará sempre uma tomada de posição, o que entendemos como um convite a pensar o Brasil de nossa época e seus bonapartismos periféricos (SECCO, 2012), sua burguesia autocrática (MAZZEO, 2015), seu capitalismo dependente (FERNANDES, 1968) articulador sem igual de modernidade e atraso, suas incontáveis revoluções passivas (COUTINHO, 2007) ou revoluções sem revolução, traços que não apenas adiam, mas inviabilizam qualquer experiência democrática de longo alcance por aqui. Nosso país é uma forma de violência (SAFATLE, 2017). Em nível global nossa sociedade figura em todos os rankings de apagamentos sociais, das mulheres aos negros, dos favelados aos LGBT’s, das crianças aos movimentos sociais, das periferias às religiões outsiders , das democracias embrionárias às parcas conquistas históricas amealhadas pelos de baixo, dos linchamentos aos feminicídios e chacinas em favelas ou presídios, onde

figuramos nas cabeças das listas. Somos a nação dentre as maiores que mais abusou do termo tardio , principalmente por não conseguirmos sequer tirar vantagem, através dos grupos econômico-políticos dirigentes, de determinados atrasos, como o fizeram potências capitalistas, Alemanha e Japão por exemplo. O monstrengo social (SCHWARZ apud OLIVEIRA, 2003, p. 12) que somos, porque não antagonizamos atraso e modernidade, mas os conjugamos todos os dias e sem grandes culpas, recebeu nas duas últimas décadas arremedos cosméticos que não alteraram sua condição de monstro, mas tornaram-na menos horrenda. Em toda nossa Nova República permanecemos sendo uma das sociedades capitalistas mais desigualitárias e sem remissão, nas palavras de Chico de Oliveira, mesmo com o que conseguimos elaborar de pactos sociais novos-velhos, com fracos reformismos que não mexeram nos alicerces de nossas colonialidades (QUIJANO, 2005) do saber, do fazer e do sonhar. Não custa enfatizar que historicamente o maior violador de diretos humanos no país é o próprio Estado, cada vez mais militarizado, judicializado, gangsterizado, excepcional. O estado de exceção por aqui foi capaz de consolidar nosso capitalismo da margem sem abrir mão dos pactos oligárquicos, do coronelismo, do exclusivismo, do patrimonialismo de nossas elites; de normatizar a eliminação dos vencidos de toda sorte através de golpes e regimes edulcorados antes, durante e depois de sua ação; de manter um dos maiores contingentes de pobres do mundo sob controle, seja pelo sustentáculo discursivo-político da mídia – imagem mais bem acabada de nossa moral conservadora e de nosso ethos da Casa Grande – ou pela barbárie de nossas forças de contenção social (polícias, parlamento, judiciário), eufemismo incapaz de esconder que nossas instituições, junto à Espanha, são as que menos se despiram de mecanismos e dispositivos autoritários oriundos de suas ditaduras últimas. Na Educação Básica, dimensão cara às nossas pesquisas, conseguimos executar um projeto colossal de universalização do acesso com baixíssima qualidade (enquanto nos tornamos especialistas em ilhas de educação privada de ponta), permanência precária, comodificação das práticas escolares, proletarização de nossos quadros docentes, banalização da centralidade dos demais profissionais que atuam nas escolas (merendeiros, porteiros, auxiliares administrativos) e garantia nenhuma para aqueles que logram terminar sua formação. Podemos chamar de escola de exceção o resultado de décadas do projeto educacional hegemônico para com as classes populares, uma experiência de barbárie e norma, conjugadas sob a batuta de um dos estados mais antidemocráticos do Ocidente. Nossas elites conseguiram vertebrar um dualismo educacional exitoso, dado o tamanho do país, de sua população e suas complexidades. Este dualismo orgânico aos projetos hegemônicos do capitalismo à brasileira tem garantido historicamente as duas dimensões da hegemonia desenhadas por Gramsci nos Quaderni , o domínio e a direção moral/intelectual (GRAMSCI, 2002, p. 62). Regra e exceção são tão bem articulados historicamente no Brasil, sendo o Estado artífice basilar, que poderiam tomar o lugar dos dois substantivos

estampados em nosso pavilhão verde-e-amarelo. Como resultante das inflações da exceção como regra, em nosso tecido social esgarçado, temos o adiamento contínuo de garantias cidadãs mínimas, o conformismo generalizado da mudança somente realizável sendo manutenção e fantasmas que nos assombram à luz do dia, como o dos regimes autoritários e da democracia de rosto popular. Falaremos de espectros e fantasmagorias na parte que segue. Fantasmagoria E eu posso te dizer previamente que também aqui haverá no ponto central o desenvolvimento de um conceito tradicional. Se lá foi o conceito de drama trágico, aqui será o conceito do caráter de fetiche da mercadoria. (Walter Benjamin, Carta a Scholem ) O adjetivo fantasmagórico aparece usualmente, sobretudo no senso comum, mais enquanto sinônimo de fantasma do que de ilusão, falseamento. Em outras palavras, o termo – que também significa o que é relativo a fantasmas – ganhou pelo uso mais proximidade com seres espectrais, assombrados, mortos-vivos, de outro mundo, e menos relação com o significado de irreal, quimera, utopia, fabulação. Interessa-nos aqui justamente esta segunda acepção de fantasmagoria , notadamente porque pretendemos erigir o conceito de democracia fantasmagórica no esforço de compreensão, obviamente parcial e com limites, do Brasil da Nova República, com destaque para os últimos quinze anos (2003-2018), quando o lulismo – pacto social, campo político e conformismo – entra em cena. Nestes trabalhos a ênfase se desloca exatamente para o lulismo, sem no entanto articular este novo-velho fenômeno político-social com os processos históricos surgidos a partir do final do regime civil-militar, quando se dá a ampliação do Estado brasileiro (entendido gramscianamente enquanto Estado Ampliado ) no contexto nacional e internacional de implantação e aprofundamento do modelo societário neoliberal (NEVES, 2005, p. 15). Por isso o presente artigo representa uma antessala tardia para nossos empreendimentos teóricos sobre o lulismo, ainda que se configure como o primeiro momento de um estudo tripartite, como dito anteriormente em nota. Desta forma, não abordaremos aqui nosso entendimento acerca da crise da/na Nova República com atenção especial para o recorte apontado acima. Compreendemos que extrapolaria, em tamanho e fôlego, o que intentamos nestas páginas.

A fantasmagoria foi uma categoria central para as análises de Walter Benjamin no projeto das Passagens (1927-1940), já presente nos textos mais maduros da década de 1930, profundamente vinculados ao materialismo histórico, ao qual adere paulatinamente a partir da leitura de Lukács ( História e consciência de classe , de 1923), em 1924. Nestes escritos Benjamin começa a conferir mais atenção à teoria marxista da cultura da mercadoria com lastro no conceito de fetichismo ⁶ . Para uma primeira aproximação entendemos ser crucial demarcar a fantasmagoria no pensador alemão estando vinculada tanto ao fetichismo quanto à ideologia, relacionados ao se investigar os efeitos do crescimento vertiginoso da lógica da mercadoria como sentido e direção das relações sociais na modernidade capitalista. Em Parque Central (1939-1940), na parte 35, Benjamin utiliza o termo fantasmagoria sendo sinônimo de “ideia especulativa” (BENJAMIN, 2015, p. 181), antes de se valer da expressão “fantasmagoria da modernidade” ao contrapor Baudelaire a Nietzsche. Em Paris, capital do século XIX (1935), nome que receberiam as Passagens a partir de então, Benjamin admite para o amigo Scholem o desejo de compreensão do XIX, nesta grande obra que construía, a partir de um espaço, de um lugar (Paris), assim como fizera em Origem do Drama Trágico Alemão (1928), ao utilizar a Alemanha na condição de prisma para a compreensão do XVII (ORTIZ, 2000, p. 12). Neste texto que reúne escritos diversos e dispersos, com uma densidade aberta, Benjamin chama de fantasmagórica a cultura capitalista, o interior (das casas burguesas), a história da cultura, o espaço, o tempo dentre outros. O diminuto texto tem na fantasmagoria uma costura destacada, partindo da crítica radical ao capitalismo e seus modos de reificação, de fetichização. Assim, todas essas relações passam a se transformar de acordo com a ótica mercantil, reificadora da vida. Em Benjamin, a fantasmagoria indica também um declínio na comunicabilidade e na transmissibilidade da experiência perceptível na expansão da informação e na corrosão da narrativa (KANG, 2009, p. 228). Na experiência da fantasmagoria torna-se questionável a mirada cartesiana que estabelece uma clivagem entre mundo da subjetividade e mundo objetivo. Para Kang, a fantasmagoria de Benjamin não indica um modo parcial, tampouco transitório, da experiência, mas sim geral, oriundo exatamente da transformação de todas as relações sociais segundo a lógica da mercadoria. Nossa investigação propõe mostrar como, enquanto consequência dessa representação reificadora da civilização, as novas formas de comportamento e as novas criações econômicas e tecnológicas que devemos ao século XIX entram no universo de uma fantasmagoria. (...) Elas se manifestam como fantasmagorias (BENJAMIN apud KANG, 2009, p. 227). De maneira sintética podemos afirmar que o núcleo da crítica radical e original de Benjamin à modernidade capitalista se encontra na incorporação da problemática do fetichismo da mercadoria (QUERIDO, 2013, p. 221), sob a utilização da noção de fantasmagoria , com grande presença em seus últimos escritos, com destaque para Das Passagen-Werk , de 1937 a 1940. Benjamin amplia o escopo marxiano acerca do fetichismo – a partir da contribuição decisiva de Lukács sobre a reificação - pois busca compreender

o fenômeno dentro da crítica mais alargada e histórica da modernidade capitalista, a partir do estudo da epidêmica expansão da forma-mercadoria para além das fábricas e do comércio, atingindo a cultura ao acertar em cheio as formas da subjetividade humana. O termo fantasmagoria, presente nos trabalhos de diversos escritores românticos – Edgard Allan Poe, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud –, se encontra em Marx no Livro I de O Capital (1867), no primeiro capítulo, quando trata da mercadoria, especificamente de seu caráter fetichista e seu segredo ⁷ . Diz Marx: Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [ dinglichen ] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (MARX, 2013, p. 147. Grifo nosso.). A depender da tradução, em outro trecho da mesma parte – com o termo assombração podendo ser entendido no sentido de fantasmagoria –, salienta: Por isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção (Ibidem, p. 151. Grifo nosso.). Em Marx o valor, a despeito de sua racionalidade, é um ente fantasmagórico: “na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social” (Ibidem, p. 149). O fetiche mercantil separa, oculta a forma-mercadoria em relação à verdadeira fonte de valor, o trabalho humano, mascarando as relações de exploração e garantindo a supremacia dos vencedores e seu cortejo triunfal(ista). As fantasmagorias se apresentam, com o suporte da ideologia dominante, como a mais fidedigna representação da realidade (KONDER, 1999, p. 52). Em uma carta para Gretel Adorno datada de 23 de março de 1939, Benjamin admite o movimento de centralização, de destaque, de uma das concepções presentes nas Passagens , qual seja o entendimento da “cultura da sociedade produtora de mercadorias como fantasmagoria” (ADORNO; BENJAMIN, 2011, p. 388-396). O fetichismo em Marx e a reificação em Lukács ganham em Benjamin um novo vigor, traduzido no uso da fantasmagoria enquanto instrumento de investigação da cultura fantasmagórica do capitalismo. A perspectiva da totalidade e o manejo dialético acompanham esta vereda benjaminiana, atenta aos detalhes. As observações do filósofo são fragmentárias, mas não por abdicar da perspectiva da totalidade e sim por empreender sua busca nos detalhes quase invisíveis (SARLO, 2013, p. 35). Tal cultura (capitalista-fantasmagórica) seria para Benjamin uma autoimagem desta sociedade, uma construção que esconde a memória da forma em que as mercadorias aparecem na vida social, quem as produziu, como produziram, quando o fizeram. De acordo com Querido (2013, p. 225)

as mercadorias se transmutam em objetos mágicos, que para além de “revelar uma reificação do produtor em relação ao objeto produzido, elevase como representação fetichizada da própria cultura hegemônica em suas variadas formas de expressão concreta”. O mergulho de Benjamin na teoria marxiana tem mais a ver com a oferta original de conceitos radicais por parte desta escola de pensamento – porque visando a crítica e a superação do capitalismo – do que com o fato do materialismo histórico se constituir num possível sistema conceitual consagrado, sólido (KONDER apud QUERIDO, 2013, p. 233). Para Fabio Mascaro Querido, que dedica especial atenção ao tema em destaque, a noção da fantasmagoria em Benjamin, ainda que não proponha uma outra (nova) abordagem do fetichismo e da fantasmagoria em relação a Marx e Lukács, focaliza especialmente na representação crítica da experiência (em seu processo moderno de declínio, erosão e até mesmo impossibilidade) resultante das modificações tanto nas relações quanto nas percepções sociais elaboradas no/pelo capitalismo e seus fantasmas reais. E mais: reivindica a imperiosa renovação e/ou atualização das formas de representação estética e de crítica política, tendo em vista os múltiplos limites impostos à crítica racionalista num momento histórico de colapso dos meios clássicos de representação (Ibidem, p. 234). Segundo José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, tradutores da obra Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo (1989) , Benjamin considerava fantasmagórico todo produto da cultura que hesita um pouco antes de se transformar em mercadoria pura e simples. Para eles cada inovação técnica que rivaliza com uma arte antiga assume durante algum tempo a forma... da fantasmagoria: os métodos de construção modernos dão origem à fantasmagoria das galerias, a fotografia faz nascer a fantasmagoria dos panoramas, ... o urbanismo de Haussmann... se opõe à flanêrie fantasmagórica...” (BARBOSA e BAPTISTA apud BENJAMIN, 1989, p. 62-63, n. 13). Numa carta a Adorno datada de 23 de fevereiro de 1939, nosso ensaísta enfatiza, tratando da mercadoria, que “a economia mercantil arma a fantasmagoria ⁸ do igual que, como atributo da embriaguez, se patenteia simultaneamente como figura central da ilusão. O preço iguala a mercadoria a todas aquelas que podem ser compradas pelo mesmo preço” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 437). O marxismo em Benjamin não representava axiomas vazios ou uma teoria determinista, dogmática: exatamente pela heterodoxia de seus escritos ele conseguiu trabalhar com esta perspectiva ontológica enquanto um “parâmetro aberto” (QUERIDO, 2013, p. 234) oriundo do XIX, mas fornecedor de pistas significativas em suas investigações sobre o capitalismo no/do XX. Ao compreender as fantasmagorias sendo obstáculos concretos à interrupção da barbárie, à percepção de catástrofes iminentes e dos vencedores do momento presente, Benjamin estabelece um cordão-memorial exitoso em articular lutas pretéritas e do tempo-de-agora numa mesma perspectiva de resistência, entendendo, a contrapelo, que a opressão dá

origem a tradições tanto dos algozes quanto dos derrotados. Apontando para o vínculo inapagável entre passado, presente e futuro, sob a perspectiva de um tempo não linear, porque descontínuo, e de uma temporalidade não uniforme, porque sentido e conflito, tece uma História que é abertura, sempre imprevisível e passível de ser reescrita, narrada novamente. Se “toda reificação é um esquecimento”, como diz Adorno, a rememoração dos ancestrais subjugados de outrora, por parte dos oprimidos do presente, cumpre uma função libertadora, na contramão da produção do esquecimento imposta pelo “progresso” da forma-mercadoria, cuja necessidade de ocultar a verdadeira fonte do valor (o trabalho) é apenas uma maneira de ocultar as relações de exploração e de dominação (a luta de classes) que, no passado e no agora, condicionam o desenvolvimento da história dos vencedores (Ibidem, p. 236). C apitalismo e Cultura Marx expõe a conexão causal entre economia e cultura. Está em questão aqui uma conexão expressiva. Não se trata de expor a origem econômica da cultura, mas a expressão da economia na cultura. (Walter Benjamin, Passagens ) Na obra Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX (2013), publicada no Brasil um ano após sua morte, Eric Hobsbawm admite que o capitalismo tardio tem garantido “uma boa vida para um maior número de pessoas criativas do que em qualquer outra época, mas felizmente não as tornou satisfeitas nem com sua situação nem com a sociedade” (HOBSBAWM, 2013, p. 23). Nunca falamos, vimos, escrevemos ou ouvimos tanto sobre a cultura, tampouco acessamos, até o século passado, tantos de seus elementos em espaços e tempos tão amplos e com tamanha celeridade. Ainda assim, na dimensão que podemos chamar de Pensamento Crítico – os estudos científicos voltados para a compreensão do real e de suas dinâmicas societárias globais –, na tríade economia/política/cultura, esta última, a mais ampla em termos de passos a serem trilhados, permanece como a mais problemática em relação às sínteses dialéticas, em sentido amplo ou diminuto. São enormes as distâncias ainda vigentes entre sentir e executar, saber e fazer, expressar e construir, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz, dimensões dicotomizadas em larga escala no dia a dia dos sujeitos sob o capitalismo, esta máquina de tornar pessoas insatisfeitas. Eagleton (2005) assume que no contemporâneo estamos cada vez mais encarcerados – defendendo que a ideia de cultura sempre esteve em crise –, entre uma noção de cultura dilatada (o que ele chama de “Cultura” ou o domínio da subjetividade social, o desafio do universalismo) e outra restrita (a “cultura” enquanto identidade, a defesa do particularismo). O intelectual britânico sinaliza que existe uma política e uma história ocultas na palavra cultura. Citando Schiller pontua que a cultura é exatamente o mecanismo daquilo que mais tarde será chamado de hegemonia (Ibidem, p. 19). Desta forma, compreender o capitalismo como cultura representa, para nós, o passo mais significativo das investigações teóricas acerca do Jetztzeit

. Até hoje nenhuma tradição foi tão aguda quanto o marxismo no entendimento do capitalismo enquanto modo de vida (WILLIAMS, 1969, 1979, 2007; EAGLETON 2005), como a cultura humana mais heterogênea da História. No materialismo histórico a cultura é sem dúvida um campo extenso de conceitos, interpretações, categorias, com incursões de distintos intérpretes e/ou porta-vozes do legado marxiano. Porém, se ela encarna um rico laboratório de estudos, também materializa um dos grandes silêncios de Marx, da forma que enxergava e afirmava E.P. Thompson em muitos de seus escritos. Mesmo com a pouca maturidade dos estudos antropológicos e sobre a cultura de uma forma geral, não há muitos dissensos quando se afirma que os aspectos culturais ocuparam um segundo plano na obra de Marx e também de Engels. Contudo, a existência do silêncio não significa a impossibilidade de sua superação a partir do próprio marxismo. Especificamente em relação à abordagem de Williams sobre a cultura ⁹ , Thompson se posicionou contrário à ideia de sua compreensão como todo um modo de vida , defendendo que esta representava uma tentativa infeliz de substituir as noções de sociedade e de história, uma perspectiva evolucionista (de evolução cultural), entendendo a cultura como crescimento, identificada com a ideia de progresso. Preferia defender a cultura encarnando todo um modo de conflito , enquanto luta, recuperando radicalmente a perspectiva de Marx: Os dois polos, de “cultura” e “ não cultura”, ao qual eu fiz referência, foram descritos por Marx como “consciência social” e “ser social” (ou existência). Embora os dois sejam vistos em relação inter-relação dialética, a visão de Marx foi que em sociedades de classe “o ser social determina a consciência social”. Não o “padrão de cultura”, mas sim as relações de classe foram o determinante final dessa “organização distinta” a qual os sr. Williams chama de “modo de vida”: e por esse motivo nós temos que ver a história como um modo de conflito (THOMPSON, 1961, p. 39). Teórico da luta de classes, Thompson esteve atento às manifestações da cultura popular, expressão que também se submeteu a seu crivo rigoroso, recusando (principalmente nos estudos sobre os embates entre a gentry e a plebe na Inglaterra do XVIII) concepções mais corriqueiras tanto do termo cultur a quanto da cultura popular . Numa aproximação frutífera com a antropologia, explicita a preferência pelo termo costume , que apesar do caráter mais restrito oferece grandes possibilidades teórico-epistemológicas. Segundo o historiador o costume seria “uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes” (THOMPSON, 1998, p. 17). A cultura, com toda sua invocação confortável de um consenso poderia distrair a atenção dos estudiosos das contradições socioculturais, dos descompassos e oposições que existem no todo, no conjunto. A atenção especial às contradições e embates de classe, oposta às noções que valorizam em demasia o consenso, impeliu Thompson a definir de maneira mais clara os vínculos entre cultura e classe (BADARÓ, 2012, p. 194). Sua abordagem sobre o século XVIII inglês materializa este intento porque, como demonstra, a ausência de uma classe trabalhadora vigorosa,

madura, não inviabilizava a existência de uma cultura plebeia que ele tentava recuperar. Thompson vai afirmar categoricamente que hesitaria antes de definir esta cultura plebeia como sendo uma cultura de classe: só é possível falar em uma cultura da classe trabalhadora no XIX, não antes. Os operários, defende, tiveram nascimento tardio, não podendo ser considerados de maneira mecânica filhos primogênitos da Revolução Industrial. Em outras palavras, havia na sociedade inglesa do XVIII uma luta de classes sem classes, em relação ao lado subalterno do embate classista. Entretanto, mesmo utilizando a expressão cultura plebeia, Thompson reafirma o caráter limitado/limitador da cultura, admitindo usá-la como um termo descritivo vago, como é perceptível em outros largamente empregados – economia, sociedade e política. Talvez o grande tsunami do capital sobre a cultura contemporânea, perceptível num almoço de domingo com a família ou numa ida ao estádio de futebol, seja a subsunção da experiência ao valor de troca, compreendendo a experiência no sentido benjaminiano da Erfahrung : a experiência enquanto partilha. No capitalismo do cidadão-consumidor, com o apagamento paulatino do primeiro, generalizou-se a compra/venda não mais de objetos que trazem experiências culturais, afetivas, mas a oferta/procura diretamente das experiências fugazes (ŽIŽEK, 2011, p. 118). Consumir não o vinho italiano, mas a experiência de pisar com os próprios pés as uvas das vinícolas produtoras; relacionar-se sexualmente não com uma pessoa (ou mais) integralmente, fisicamente, mas provar através das tecnologias digitais de ponta “tipos” de sexo os mais variados, valendo-se de uns óculos simuladores que transferem para a tela, sob estímulos vários do lado de fora da aventura, a experiência do prazer sexual com quem ou com o quê quiser. Badiou (2017, p. 23 e p. 41) planteia que o real tem sempre a forma de um exílio, uma vez que sendo o real o semblante de que é preciso arrancar a máscara, ter acesso a ele – para desmascará-lo – supõe que nos distanciemos da vida ordinária, comum. No mesmo sentido aponta Sennett (2011, p. 176), quando observa que os novos senhores do mundo do trabalho flexível e empreendedor rejeitaram carreiras no velho sentido inglês do termo (profissão/caminho para toda a vida), pois os rumos de ação duráveis e constantes são “territórios estrangeiros”. Nenhum modelo de sociedade, tal qual o capitalismo, conseguiu com tanto êxito metamorfosear-se em cultura, em cotidiano, a ponto de se invisibilizar quando imperioso e se materializar quando necessário. A profusão da reificação da vida depende inexoravelmente da absorção acrítica e consensual – uma hegemonia eficaz – de uma lógica subjacente às relações sociais, dotada do poder de comodificar o tecido da sociedade a ponto de ela ser habitada cada vez mais por fantasmagorias e cada vez menos por elementos, temporalidades, sentidos concretos. A generalização da “lógica” capitalista e monopolista no plano da cultura provoca um espontâneo privilegiamento do valor de troca sobre o valor de uso dos objetos culturais, o que abre caminho para a criação e difusão de uma pseudocultura de massas que, transmitindo valores alienados, serve como instrumento de manipulação das consciências a serviço da reprodução do existente (COUTINHO, 2011, p. 64).

Benjamin e sua melancolia ¹⁰ engajada, este telescópio-sismógrafo que captura o longínquo e traduz o local, entendeu de forma singular o fetiche do progresso e da mercadoria, a fantasmagoria da modernidade e da cidade, a permanência diuturna do capitalismo e seus milagres. Sua crítica revolucionária do progresso significando catástrofe e da experiência representando corrosão permitiram a leitura sempre atual do capitalismo sendo uma forma de religião sem altar, uma arma dos usurpadores da História sobre os vencidos de todos as esferas, engendrando narrativas e experiências fantasmagóricas – e por isso alienantes – e difundindo-as como a boa nova, “a resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta” (BENJAMIN, 2013c, p. 21). Em O capitalismo como religião (1921) Benjamin alarga Weber, ao defender que na modernidade a religião não é mais a reforma, é o seu esfacelamento (Ibidem , p. 21). Também dilata Weber ao afirmar que a estrutura religiosa do capitalismo não é apenas uma formação condicionada pela religião (o cristianismo), mas um fenômeno religioso na essência. Em suma, a religiãocapitalismo ou o capitalismo-religião é uma forma de culto permanente e culpabilizador, é a “expansão do desespero”. Ele não busca a expiação de seus fiéis, pois almeja a culpa, esta fantasmagoria que atormenta crianças, pobres, mulheres, velhos, empresários, religiosos, doentes, intelectuais etc. No capitalismo como religião as mercadorias ganham uma dimensão ainda mais fantasmagórica, com a expansão desta fé fetichista – um “fétichismo”? – capaz de transmutar a produção cultural em produção de valor de troca, tornando cada vez mais difícil precisar onde termina o reino da necessidade e onde se inicia o reino da liberdade (EAGLETON, 2005, p. 58). A cultura enquanto legitimação do poder, ou seja, ideologia, torna epidêmica a atomização dos sujeitos, efeito dos fatiamentos modernos, avessos à totalidade, à dialética, aos modos de vida e de luta que amalgamam. O próprio Eagleton resgata, sem citá-lo, a potência de Gramsci e seu conceito de hegemonia enquanto processo instável, articulação fina entre coerção e consenso, com proeminência do último quando se almeja a supremacia ou minimamente a garantia hegemônica em períodos de crise: Há finalmente outro vínculo entre cultura e poder. Nenhum poder político pode se manter satisfatoriamente por meio de pura e simples coerção. Ele perderá credibilidade ideológica demais e, assim, mostrar-se-á perigosamente vulnerável em tempos de crise. Porém, a fim de assegurar o consentimento daqueles que governa, precisa conhecê-los mais intimamente do que sob a forma de um conjunto de gráficos ou tabelas estatísticas. Já que a verdadeira autoridade envolve a internalização ¹¹ da lei, é na própria subjetividade humana, em toda a sua aparente liberdade e privacidade, que o poder procura se incutir. Para governar com sucesso, portanto, precisa compreender os homens e mulheres no que diz respeito a seus desejos e aversões secretos, não apenas seus hábitos eleitorais ou aspirações sociais. Se pretende regulá-los a partir de dentro, precisa também imaginá-los a partir de dentro (Ibidem, p. 76). Retomando o estado de exceção, é imprescindível associá-lo aos debates sobre cultura hoje, movimento ainda incipiente em nossa avaliação. Se ele é

a face mais incisiva do Estado burguês em nosso tempo, de que maneira dissociá-lo das questões que vimos tecendo até aqui? Os modos de vida/luta tem em si as digitais desta morfologia da hegemonia e sua guerra permanente contra os antagonistas, sua espetacularização da política, seu apassivamento via coerção de amplos setores sociais, sua condição de excepcionalidade tornada regra, seu lugar de indefinição entre norma e anomia, sua subversão do direito com a criação de um sistema jurídicopolítico agente da morte, sua negação da democracia, banida na própria exceção que encarna, e finalmente, sua legitimação da sociedade do capital enquanto limite concreto aos projetos dos subalternos, em suas experiências de cultura e na cultura, cada vez mais um circuito pré-estabelecido de padronização, homogeneização, esterilização e silêncios. Alienação e fetichismo – fantasmagorias da modernidade burguesa – imprimem suas digitais nos modos de subjetivação do/no agora, onde os sujeitos históricos sob o capitalismo sentem-se cada vez mais perdidos, deslocados, adoecidos. A sociedade burguesa capitalista nos reduziu a todos a uma situação de pobreza cultural atroz, quando falamos da cultura à exaustão, porém não conseguimos impregnar o tecido de nossas existências com os valores culturais proferidos em nossos discursos (KONDER, 1999, 80). Em outras palavras, de nada serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela (BENJAMIN, 2012a, 86). Estes dois elementos (alienação e fetichismo) explicam em grande medida a perda da Erfahrung , encarnando bloqueios da experiência (DUNKER, 2015, p. 274) que ampliam as “patologias do social” que incidem sobre formas de vida específicas, tal qual a “vida em condomínio”, cada vez mais comum nas cidades. No modus capitalista do presente há a necessidade de quebra da experiência prenhe de sentido, da temporalidade como sensibilidade, da espacialidade enquanto afeto, do tempo como abertura, do espaço sendo presença. Os sujeitos exigidos pelo deus ex machina da religião capitalista são seres do eterno presente, da flexibilidade célere e dos resultados préprogramados: Sujeitos esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo, portanto disponíveis para responder aos objetos e imagens que os convocam; sujeitos ligados ao puro “aqui e agora” de um presente veloz, incapazes de imaginar um devir que não seja apenas a reprodução da temporalidade encurtada característica do capitalismo contemporâneo (KEHL, 2015, p. 96). Se a temporalidade depende da experiência, e o contrário também, com a destruição das formas de subjetividade vinculadas à partilha, à elaboração coletiva de sentidos, que exigem outras sociabilidades, novas práxis, temos o desgaste da cultura enquanto espaço de experiência, modo de luta. Tornada muitas vezes souvenir ou memória distante, no shopping center amorfo que é a modernidade, falamos cada vez mais da cultura sem uma Erfahrung que nos conecte a ela, nos termos de Benjamin. Da relação cultura, democracia e capitalismo devem surgir articulações críticas objetivando sobretudo a superação daquele último, origem da catástrofe moderna e dos condicionantes históricos que determinam os matizes da luta de classes no presente e seus modos de subjetivação. Falar

da luta de classes nos dias atuais significa a retomada dos debates acerca da democracia, com destaque para suas fantasmagorias epidêmicas. Democracia fantasmagórica e estado de exceção Ainda vão me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente que pensa que a rua é a parte principal da cidade. (Paulo Leminski, Quarenta clics em Curitiba) Pensar o mundo contemporâneo histórica e politicamente tem sido, mesmo para muitos não marxistas, a constatação do divórcio inexorável entre capitalismo e democracia, com ênfase nos eventos pós 11 de Setembro, catástrofe que inaugura, reafirmando continuidades, o século XXI, este território que aprofunda o estado de exceção enquanto conteúdo real de nossa democracia ( AGAMBEN apud RANCIÈRE, 2014, p. 27). Conforme apresentamos, Benjamin estava certo há cerca de oito décadas: o estado de exceção era e ainda é uma regra. A figura da exceção materializando um elemento político e teórico-metodológico é conceito central que atravessa o pensamento de nosso crítico (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 25). O século passado, em uma fotografia política, foi estado de exceção e democracia, ora mais hibridizados, ora mostrando-se com mais pedigree . A fronteira entre ambos foi quase sempre difusa, imprecisa, tendo o capitalismo como junção orgânica e estrutura socioespacial e econômicotemporal. Conforme a análise de Matos (2010, p. 77), Benjamin entende o capitalismo contemporâneo como sendo estado de emergência (de exceção) exatamente pelo fato dele constituir uma área de delimitação incerta entre democracia e absolutismo, entre direito e exceção ou Estado de Direito e estado de exceção. É ainda urgente compreender a relação estado de exceção / democracia encarnando um campo que continua a exigir prospecção, principalmente pelo marxismo caudatário das elaborações mais radicais do século XX, de onde figura a contribuição pontiaguda de Benjamin. Sua oitava tese não nos parece inadequada aqui, por mais recorrente que seja nos estudos sobre o pensador: A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de os seus

opositores o verem como uma norma histórica, em nome do progresso. O espanto por as coisas a que assistimos “ainda” poderem ser assim no século vinte não é um espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de conhecimento, a não ser o de que a ideia de história de onde provém não é sustentável (BENJAMIN, 2012b, p. 13). Primeiramente, sempre nos chamou a atenção o caráter antifascista desta tese. Muitas vezes iniciada, por distintos analistas, a partir do tema do estado de exceção, ou das concepções da (sobre a) História, sua oitava reflexão no último escrito elabora uma crítica ontológica radical do fascismo – porque compreendendo-o enquanto uma práxis capitalista –, antes mesmo de seu momento mais apocalíptico, de 1941 até o final da Guerra, a fase do extermínio em massa nos campos de concentração. É de um Benjamin materialista que estamos falando, que ao se aproximar nunca mais se distanciou muito de Marx em seus caminhos pela dialética. Ele estabeleceu com seu antepassado uma relação como pedra de toque do intelectual preocupado com sua concepção de mundo e com a condição social de sua época, conforme admitiu Lukács (2011, p. 37) em Meu caminho para Marx , produzido sete anos antes das Teses. Em síntese, combater o fascismo para Benjamin correspondia, antes de qualquer coisa, ao combate sabedor de seu oponente, portanto, que o compreende ou, ao menos, não o subestima. Era primordial melhorar a posição do antifascismo, política e teórica. Tanto para a socialdemocracia alemã, que o lia como expressão do passado, uma velharia anacrônica e avessa à modernidade/modernização, quanto para o comunismo de rosto e corpo stalinistas, que rebaixou as potencialidades do Reich a ponto de considerar efêmera a vitória de Hitler em 1933, o fascismo encarnou a incompreensão trágica que corroborou as derrotas antifascistas anteriores aos embates bélicos globais e durante eles. A outra frente benjaminiana na Tese VIII é exatamente a crítica filosóficohistórica do fascismo, reivindicadora de uma concepção dos vencidos e por isso nova, capaz de desmascarar o inimigo naquilo que o fortalece sobremaneira: a elaboração de uma temporalidade falsamente inovadora, calcada no progresso industrial e técnico moderno, anunciador de um tempo outro que não existe, pois não há rupturas e sim a consolidação da barbárie capitalista. Em Benjamin a temporalidade é sentido e conflito. Disputar os sentidos políticos das formas de significação do tempo, logo, da experiência humana, era efetivamente uma batalha vencida rapidamente pelos fascistas e suas durações lineares, vazias, homogêneas ¹² . A temporalidade para ele era também descontinuidade. A partir de uma temporalidade não contínua, lastreada por diversos elementos, dentre eles a teologia e a apropriação que ele faz da temporalidade proustiana, o (s) sentido (s) do mundo contemporâneo desvenda(m)-se num trabalho efetivado no presente, sob marcante responsabilidade da memória. Os fascistas lograram escrever a História dando fisionomia às datas (BENJAMIN apud DOSSE, 2012, p. 183) e, assim, às experiências. Não ser fascista na Alemanha dos anos 1920-1930 não era apenas uma condição ou posição, mas representava também entender o tempo, aquele ente que nos permite identificar, em maior ou menor grau, o que é regra e o que é exceção, o que se mantém e o que se altera. Não à toa é com esta perspectiva que a tese em tela é iniciada.

E qual é o desafio posto? Enfrentar as concepções progressistas e o estado de exceção permanente, à imagem e semelhança da sociedade fantasmagórica do capital, forjando o verdadeiro estado de exceção, ou diriam os vencidos, o nosso estado de exceção. Significa acabar com a dominação de classe também de forma permanente, numa retomada de outras exceções utópicas que impediram, mesmo que por pouco tempo, o cortejo dos vencedores (LÖWY, 2005, p. 85). Para os materialistas históricos o passado e suas derrotas-catástrofes materializam o alarme (aviso) e a bússola (sentido) no “momento do perigo” (Tese VI). Seligmann-Silva (2005, p. 36) nos ajuda neste movimento de ler o sonho benjaminiano de uma nova práxis, ao salientar que ao estado de exceção como norma “Benjamin opõe uma sociedade inteiramente outra (...). Olhando suas ideias hoje, mais de meio século depois, só podemos constatar consternados o quanto ele estava certo em sua descrição da nossa sociedade - e também em seus sonhos de libertação”. Por fim, é notável a percepção dialética do autor das Teses, esta iniciação metodológica às Passagens , um dos principais documentos políticos materialistas, de dentro para dentro, desde as Teses sobre Feuerbach , a respeito da conjugação da permanência com a mudança no processo histórico. O “ainda”, em aspas no original, demarca de que forma para o materialista histórico, para sua concepção de história, o passado coloca o presente numa situação crítica ao mesmo tempo em que o presente atualiza constantemente o que passou. Este espanto, que não é filosófico, ou seja, exclusividade da crítica da/na Filosofia, continua no XX sob a forma de eco, menos pela repetição e mais pelo vestígio, um eco oriundo sobretudo da incompreensão do fenômeno do fascismo, mãe de sua subestimação, filha das distorções temporais e das dissoluções da Erfahrung. O advérbio ainda , aquele que impede o então no agora , demarca a dialética presente tanto em Leminski, na epígrafe que utilizamos, quanto em Benjamin, na oitava tese . O ainda indica a multiplicidade de tempos, a temporalidade aberta, incubadora das mudanças ou garantidora das hegemonias. Retomando a tensão entre capitalismo e democracia, compreendemos que uma das chaves interpretativas para uma crítica ontológica radical do capitalismo seja exatamente a radiografia deste ainda , sobretudo no Brasil, lugar de adiamentos e exceções normatizados e de projetos de vir a ser taxidermizados. O advérbio em tela, sociológica e historicamente falando, assumiu a condição de mantra social, destacadamente quando o tema é a democracia por aqui. Esta Ave Maria entoada tanto pelas elites quanto pelos estratos médios e subalternos brasileiros tem sido capaz de erigir fantasmagorias difíceis de serem identificadas, e logo capturadas/eliminadas. Principalmente sob um estado de exceção enraizado na colonialidade e no escravismo, em outras palavras, violento em níveis colossais. Novamente de volta à fantasmagoria é possível apontarmos múltiplos elementos fantasmagóricos do/no tempo-de-agora : o mercado (invisível), o gozo (insaciável), a justiça (inacessível), a liberdade (inexistente), o amor (impedido), o medo (inacabável), o Estado de Direito (excepcional) e finalmente, a democracia (impossível). Focalizando nela, recuperamos mais enfaticamente a noção de fantasmagoria em Benjamin, ampliação original

do fetichismo em Marx e da reificação em Lukács, para reivindicarmos um novo conceito, ou ao menos um esforço de atualização: o que chamamos de democracia fantasmagórica. O Brasil seria uma das mais bem acabadas expressões deste “tipo” de democracia, que é ao mesmo tempo o (i) resultado da cultura e da política do/no capitalismo (uma democracia-fetiche, fetichizada), onde somos expressão tardia, periférica e exemplarmente violenta, antidemocrática e de conciliações pelo alto, sendo nosso estado de exceção um dos mais bárbaros do mundo; e o (ii) efeito de uma sociedade oriunda da colonização e da escravidão, cujos traumas, dívidas e (des)identidades impossibilitam até hoje a junção das peças de nosso quebra-cabeças, sob o forte signo do bovarismo brasileiro (KEHL, 2018), este autoengano coletivo – para o qual estiveram atentos Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Buarque de Holanda, Noel Rosa e tantos outros analisados pela psicanalista – que é uma das condições que definem o sujeito moderno. O bovarismo, conceito ou noção cunhado pelo filósofo e psicólogo Jules de Gaultier em 1892 foi usado amplamente pela psiquiatria na diagnose da paranoia, sobretudo. O nome deriva da obra seminal de Gustave Flaubert, Madame Bovary (1857), que aborda, em breves linhas, a capacidade humana de se conceber diferente do que se é, de se tornar outro. Nosso estado de exceção se encaixa perfeitamente na teoria do bovarismo: é chamado diuturnamente, dos especialistas da academia ao senso comum, de Estado Democrático de Direito , sendo um dos raros que ainda se valem do foro privilegiado, um dos poucos que não puniram protagonistas de suas ditaduras, um dos maiores exemplos de conivência com formas de trabalho escravas ou similares à escravidão, um caso quase sem cura de manutenção cínica da figura masculina, branca e rentista à frente de funções públicas, e uma forma de poder historicamente permeável aos coronelismos, familismos e gangsterismos de toda sorte. Parafraseando Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936), Kehl enfatiza que o bovarismo nacional, grotesco e enfadonho, é um mal que “não diminuiu com o tempo; o que diminuiu, talvez, foi apenas nossa sensibilidade a seus efeitos” (HOLANDA apud KEHL, 2018, p. 27). A tese de Kehl é a de que o bovarismo representa um sintoma social brasileiro, onde o fazer-se passar por um outro não é um delírio epidêmico, mas um modo de aceitação (ser aceito pelos grupos, notadamente pelos mais poderosos) e, ao mesmo tempo, uma negação/mascaramento de uma condição de “atraso” em inúmeras dimensões da vida social – o provincianismo, o racismo, o patriarcalismo, o fisiologismo, o elitismo, o patrimonialismo etc. Entendemos que sua análise dialoga com a perspectiva da fantasmagoria em Benjamin, pois o bovarismo também é o nome para uma forma de fantasia ou convicção delirante (Ibidem, p. 29), nítida tanto na personagem Emma Bovary quanto em Rubião, de Machado, em Quincas Borba . A fantasmagoria benjaminiana, lembramos, tem profunda conexão com o fetiche e com a ideologia, portanto, comportando-se como uma noção advinda da percepção da transformação das formas de subjetividade (relações e percepções) em valores de troca, sob o capital. Ora, o bovarismo nos parece em sintonia com esta leitura, já que trata da transmutação simbólica, psíquica, subjetiva, de um sujeito em outro ou em outros. E isso

vale para classes, grupos e, no limite, para uma sociedade do nosso tipo, que em consonância com o termo “ Belíndia”, cunhado por Edmar Bacha (1974), faz conviver, com relativos baixos índices de tensão social, uma pobreza padrão Índia com uma vida de ricos à la Bélgica. Nossa democracia fantasmagórica, então, seria uma democracia que é (repetindo o item i) mercadoria – porque nela se impõe o valor de troca material e simbólico: “o que ganho com ela?” – e também uma (repetindo o item ii) projeção enganosa, uma democracia cuja resultante, quase que invariavelmente, é o par invisibilidade/impossibilidade. Neste ponto, principalmente em relação ao primeiro eixo, vale uma releitura de Marx ainda em Das Kapital , na parte sobre o caráter fetichista da mercadoria (e seu segredo): Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total. Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 2013, p. 148. Grifos nossos.). Numa aproximação que obviamente tenta evitar anacronismos, mas propor uma interpretação crítica, compreendemos como esclarecedora a dupla consideração marxiana acerca da 1) troca enquanto espaço-tempo da visibilidade dos produtores-produtos, e da 2) transformação dos “objetos de uso” em mercadorias quando produzidos privadamente, independentemente. Na democracia modelo-Brasil, alicerçada nos favores, numa temporalidade definida a priori (eleições de dois em dois anos), cujas regras só se alteram para manter o jogo previsível, referenciada em modelos exógenos, esvaziada de sentidos e práticas populares, formatada por uma burguesia retrógrada, autocrática e amesquinhada, as relações entre os sujeitos e seus produtos (voto, apoio, adesão, vista-grossa ) também é visível no momento da troca , ou seja, quando da ocorrência dos pleitos em seus mais diversos níveis e expressões. Da mesma maneira esta democracia fraturada é o resultado de experimentos democráticos privados – quando existentes –, que se dão na esfera que definimos enquanto tal: a família, a igreja, o condomínio, o clube etc. A democracia sem CEP e CPF não caminha nem dois quarteirões sozinha, no Brasil, sem suspeição e vigilância. Nas sociedades da periferia do capitalismo, que se modernizaram tomando como referência as revoluções industrial e burguesa europeias sem, no entanto, realizar num uma nem outra, a relação com os ideais passa forçosamente pela fantasia de “tornar-se um outro”. Só que esse outro é, por definição, inatingível, na medida em que o momento histórico que favoreceu a modernização, a expansão e o enriquecimento dos impérios coloniais não

se repetirá. O bovarismo dos países periféricos não favoreceu sua modernização; pelo contrário, sempre inibiu a obscureceu a busca de caminhos próprios, emancipatórios, capazes de resolver as contradições próprias de sua posição no cenário internacional – a começar pela dependência em relação aos países ricos (KEHL, 2018, p. 30-31). O bovarismo à brasileira tem na escravidão talvez sua síntese mais explícita, pois é provavelmente nossa maior negação do que não é possível negligenciar; é o apagamento cotidiano do mais absoluto massacre de negros-escravos da história, imprensado entre a ainda atual admiração das elites nacionais pelos padrões de cultura e sociabilidade dos países desenvolvidos do capitalismo e a vergonha das origens multirraciais e da herança negra em nossa cultura popular (Ibidem, p. 48). Após a abolição pactuada e farsesca formou-se uma trama social dependente - para os de baixo – de favores, filantropias, abusos, toma lá dá cá, proteções, privilégios, tramoias, a fim de que a inserção e a ascensão fossem ao menos alcançadas. Para Kehl, nesta tensão do esconder e mostrar , assumir e negar, houve sempre a preservação do mais estratégico para a hegemonia da burguesia destas terras: evitar rupturas radicais. Os projetos de liberdade e emancipação não passam da segunda página, até o ponto onde os de fora podem começar a perceber nossos massacres consentidos, usurpações cotidianas e violências sem limite, hoje menos silenciosas. A autora indica uma questão de fundo que em nosso entendimento arrasta consigo não apenas a psicanálise e a sociologia, mas também a história, a economia, a antropologia, a religião: Cabe perguntar que tipo de cisão do eu permite que o brasileiro ria das feridas sociais do país em que vive, como se estivesse sempre do lado de quem segura o cabo do chicote – como se não percebesse as lambadas e a humilhação que também o atingem. Será o nosso bovarismo social efeito de uma identificação com o opressor não em suas características avançadas (em termos de valores republicanos, lutas igualitárias etc.), mas sim como arremedo das aparências da civilização, conciliadas com a manutenção da versão contemporânea do escravismo em uma sociedade que continua criminosamente desigual? (Ibidem, p. 52). Há na reflexão de Kehl elementos que nos autorizam a continuar na associação entre estado de exceção e bovarismo (e estado de exceção e fetiche), no movimento de desenho da noção de democracia fantasmagórica . Segurar o cabo do chicote – e por aqui o chicote nunca foi pequeno – como um não privilégio das elites, num país absurdamente violento. Uma sociedade nascida dela e que soube com maestria incorporá-la às relações familiares, institucionais, políticas, religiosas, sociais, a ponto de seus sujeitos não identificarem/assimilarem as opressões que sofrem e, no limite, defenderem o próprio agressor. A negação recente, no Brasil pós e pré 2014 (cinquentenário do Golpe de 1964), por amplas camadas sociais e orquestradas por um candidato obscuro filofascista e por think tanks ¹³ , do período mais atroz de nossa fraca democracia no XX é apenas mais uma expressão deste sintoma bovarista que cinde o eu e impede identificações críticas, (auto)enfrentamentos e rupturas.

O estado de exceção brasileiro , definidor das fronteiras entre norma e anomia, entre direito público e fato político, entre regra e quebra de regra, age sob a morfologia de guarda-noturno desta democracia fantasmagórica que deve ter um cadinho de existência, por suposto, a fim de que acreditemos que ela é real. O semblante da democracia é real (BADIOU, 2017). E tem de sê-lo para que a fantasmagórica democracia (que é coisa e autoengano, mercadoria e bovarismo) não perca seu caráter de algo sempre à mão. Sem dúvida a democracia no Brasil tem rostos hegemônicos: o do arranjo e do bovarismo (KEHL, 2018), o da conciliação pelo alto (COUTINHO, 2011), o da inclusão forçada (FONTES, 1996), da blindagem (DEMIER, 2017), de baixa intensidade (ARANTES, 2015; LÖWY, 2016), o da modernização excludente (COUTINHO), do consenso, ativo ou passivo (BRAGA, 2012), da violência (SAFATLE, 2017), da modernização conservadora (IANNI, 2004b), da falta de dúvida (FREIRE, 2005), do esvaziamento de conteúdos sociais e públicos (SEMERARO, 2002). Partilha-se por aqui, sobretudo em tempos golpistas, a impressão de que nossa democracia existe plenamente e é madura, melhor do que já foi, arduamente tecida, quando na verdade somos fragilíssimos, (re)elaborando estes arremedos democráticos que fetichizam a autonomia e “bovarizam” as relações sociais, gambiarras homicidas e generosa, autoritárias e cordiais, arrivistas e ufanistas. Bastam momentos de crise, provocadas ou não, para que se colapse mesmo os reformismos fracos na sociedade política, o que atestam os trágicos eventos recentes no Brasil do lulismo, quando em poucos meses foi possível depor um governo democraticamente eleito (Dilma Roussef, 2016), dissolver um pacto construído molecularmente (desde 2003), sequestrar os sentidos mais radicais dos movimentos e sujeitos que foram às ruas ( Junho de 2013) e afundar a sociedade num ringue onde a única regra é tornar a clandestinidade parte da regra, assim como no estado de exceção, forma legal do que não pode jamais tê-la. Vale ressaltar que a frente responsável pelo Golpe de nova roupagem, jurídicomidiático-parlamentar, inclui latifundiários, representantes das igrejas cristãs (com destaque para os evangélicos neopentecostais fundamentalistas) e empresários do ramo de armas, a famosa Bancada BBB (bala, boi e bíblia), numa sinergia conhecida nesta terra de golpes também bovaristas, ou seja, que não se reconhecem como tal, mas tornam-se outra coisa: revolução, reação, ação democrática, salvaguarda nacional. Na modernidade brasileira não nos parece clichê utilizar o termo espectro , imortalizado no Manifesto há cento e setenta anos, para dizermos que o espectro da democracia assombra o país historicamente e, dramaticamente, nos eventos pós- Junho . Exatamente por ser uma fantasmagoria, um escondimento de coisas, dito ao debatermos a noção em Benjamin, permanece sendo eterno mal-entendido, a depender de que lado do chicote as classes se posicionam. Nossa democracia fantasmagórica precisa da exceção da mesma forma que a exceção precisa da democracia, não a odiada, imprevisível e de feições populares de Rancière (2014), mas aquela que pode e deve ser evocada como um divindade exógena todas as vezes em que a Casa Grande , o parlamento, as famílias proprietárias, a tradição, a Igreja, as corporações, os nichos rentistas se sentirem ameaçados.

“Mais democracia” no pós-Abertura não significou menos desconfiança, menor medo de espectros (da ditadura, da democracia popular, da anarquia, do sumiço do chicote). Frisamos novamente: a democracia fantasmagórica é efeito da generalização da lógica da mercadoria enquanto sentido das relações sociais e também resultado de processos coletivos e individuais de autoengano, onde se projeta para si e para os seus uma imagem que não condiz com o real, como estar desempregado e se tornar instantaneamente empreendedor , facilitador , ou dirigir um transporte por aplicativo e se imaginar dono daquele trabalho, em que o carro, o seguro, a multa, a revisão, o plano de celular, o aparelho de celular é custeado apenas por você. A uberização (FONTES, 2017) é exemplo do amálgama entre mercadoria-fetiche e bovarismo: parece táxi, mas não é; parece trabalho autônomo, mas não é; parece empreendedorismo, mas não é; parece, mas não é. É desafio urgente o enfrentamento de nossas fantasmagorias democráticas com a consequente decupagem crítica da democracia fantasmagórica brasileira, no movimento de identificação e superação de aparências democráticas para estruturas e sentidos profundamente brutais. 5 V. Žižek (2014). 6 Em carta de 05/06/1935, Adorno diz a Benjamin que “ o fetichismo é o verdadeiro correlato da reificação ” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 162). 7 Adorno sugere a Benjamin, em carta de 01/02/1939, que ele dedique uma devota atenção à teoria da mercadoria e do valor de troca confrontando-as sobretudo com o capítulo de Marx sobre fetiche no primeiro volume de O Capital (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 431). 8 Nesta obra, onde as cartas entre Benjamin, Adorno e Gretel Adorno são compiladas (documentos escritos entre 1928 e 1940), o termo fantasmagoria aparece pelo menos uma dezena de vezes. Adorno insiste, sobretudo nas Cartas de número 110 (10/11/1938) e 112 (01/02/1939), na necessidade de explicações mais detidas sobre o caráter histórico-filosófico desta categoria objetiva que é a fantasmagoria (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 401 e 424). 9 Resumidamente, Williams apresenta cinco significados diferentes para cultura: (i) uma disposição mental do indivíduo; (ii) o estado de crescimento intelectual de uma sociedade em sua integralidade; (iii) as artes; (iv) como o modo de vida total de uma comunidade de pessoas (EAGLETON, 2005, p. 56), e finalmente, (v) como “estrutura de sentimento”, práticas e sentimentos que se encontram dispersos e ainda não-articulados; padrões de impulsos, inibições, tons. Para ele a cultura é “o sistema significante através do qual... uma ordem social é comunicada, reproduzida, experienciada e explorada” (WILLIAMS, 1981, p. 13). 10 Entendida não no sentido de patologia, mas enquanto sensibilidade ao mesmo tempo incapaz de se adaptar e capaz de captar/sofrer, sinalizando aquilo que não vai bem na cultura, no mundo real, conforme afirmou Maria Rita Kehl num debate realizado em São Paulo (outubro de 2013), em parceria com Michael Löwy e organizado pela Boitempo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=51&v=4st9V8wnayY .

Acesso em: ago. 2019. Nas Teses , o objeto perdido da melancolia em Benjamin são as multidões de derrotados nas lutas sociais (KEHL, 2015, p. 86) pelos vencedores que não cessam de vencer. 11 V. Mészáros (2008, p. 47-59). 12 Na Tese XV sentencia Benjamin: “(...) destruir o contínuo da história” (BENJAMIN, 2012b, p. 18). 13 Expressão polissêmica de origem inglesa que designa aparelhos privados de hegemonia elaboradores de políticas, pesquisas, pedagogias, estratégias. De origem militar, o nome dilatou-se a partir do uso mais corrente, sobretudo a partir dos anos 1970, com a profusão de instituições da sociedade civil, supostamente autônomas e de “interesse social”, focalizadas na elaboração de consensos nas esferas política, econômica, cultural, institucional, científica, em estreito vínculo com espaços de hegemonia. ENSAIO BENJAMINIANO: A EXPERIÊNCIA COMO CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS Falamos exaustivamente de cultura, mas não conseguimos impregnar a rudeza das nossas vidas, nem o mundo em que vivemos, com os valores culturais a que se referem os nossos discursos. (Leandro Konder) Walter Benjamin talvez seja o pensador marxista mais impertinente de todos, porque indefinível. Um intelectual marginal e um estudioso do misticismo judaico, um outsider da Escola de Frankfurt, um romântico materialista, um ensaísta subversivo. Benjamin produziu uma obra fragmentada, porém originalíssima, que ainda hoje nos ajuda a pensar o mundo concretamente, sob a perspectiva dos vencidos, sem mecanicismos ou fórmulas, num pessimismo revolucionário e sobretudo organizado, fonte do método revolucionário de Marx. Benjamin foi capaz de alçar a cultura a um patamar de destaque no marxismo, extrapolando as fronteiras da filosofia e elaborando um rico mosaico, onde a arquitetura, o cinema, a literatura, o judaísmo, a psicanálise estão imbricados caleidoscopicamente. Deste mosaico benjaminiano, destacamos o que para nós representa a cor mais pujante, a forma mais refinada, a textura mais sensível no trato da relação objetividadesubjetividade: a experiência. Conforme cita Gagnebin (1999, p. 8), o conceito de experiência “atravessa toda a sua obra”. D’Angelo (2014, p. 75) corrobora a autora quando diz que “o tema é abordado de várias maneiras em textos de diferentes épocas” . Na grande maioria dos estudos (GAGNEBIN, 1999; KONDER, 1999; LÖWY, 2005; AGAMBEN, 2007; MEINERZ, 2008; MITROVITCH, 2011; QUERIDO, 2013; D’ANGELO, 2014, dentre outros) sobre o conceito de experiência em Benjamin – dos mais específicos aos mais gerais – três textos são

unanimidade, sendo considerados clássicos: Experiência e pobreza (1933), O narrador (1936) e Sobre alguns temas em Baudelaire (1939). Meinerz (2008, p. 12) e Mitrovitch (2011, p. 64) convergem quanto à defesa de que o texto de juventude Experiência ( Erfahrung ) , de 1913, representa o primeiro escrito de Benjamin sobre o tema. Para Gagnebin (op. cit., p. 8-9), antes dos textos fundamentais dos anos 1930 há um outro texto onde Benjamin tece comentários a respeito da experiência: Sobre um programa da filosofia do futuro , de 1918. Para ela, as Teses de 1940 finalizam este pentateuco benjaminiano da experiência. Nossa escolha de análise se centrará nos textos de 1933 e 1936, por entendermos que são mais conhecidos do grande público, mais didáticos no que se refere ao debate sobre a experiência, e finalmente, por já terem sido cotejados, com destaque para as considerações de Jeanne Marie. Experiência e pobreza , junto às teses Sobre o conceito de História, representam, em nossa opinião, a obraprima de Benjamin. Por sua vez, Jameson (KONDER, op. cit., p. 81) defende que O narrador é o escrito fundamental da obra benjaminiana. Trataremos dos dois a seguir, para em seguida adentrarmos naquilo que entendemos como uma interpretação original nossa: a experiência como construção de sentidos. O empobrecimento e o isolamento da experiência Experiência e pobreza e O narrador¸ em uma frase, podem ser definidos como dois tratados distintos porém complementares sobre a experiência: enquanto o primeiro, mais detido ao tema, aborda o empobrecimento da experiência enquanto legado e partilha (BENJAMIN, 2012, p. 85-86), o segundo cuida do isolamento entre os sujeitos históricos, com a paulatina extinção da arte de narrar (BENJAMIN, 1987, p. 197). Produzidos com uma diferença de três anos, os dois escritos, que juntos não passam de trinta páginas, diagnosticam de forma precisa um dos males de nosso tempo – para além da primeira metade do século passado, ampliando cada vez mais o conceito de experiência, contra seu uso redutor. De acordo com Konder (1999, p. 83) Benjamin utilizava Erfahrung para falar do conhecimento adquirido através de uma experiência acumulada, prolongada, desdobrada, num sentido próximo à “viagem” (que em alemão é fahren ). Por sua vez, nos textos dos anos 1930, o filósofo marxista retoma a questão da experiência sob uma nova perspectiva: a Erfahrung em oposição à Erlebnis , que corresponde à vivência do indivíduo solitário, privado, isolado. A Erlebnis - e cabe ressaltar que a Erfahrung não a exclui, mas a pressupõe e ultrapassa - é a forte impressão, que exige uma assimilação às pressas e que produz efeitos instantâneos. Nos dois escritos, a observação de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, uma vez que há, como dissemos, um vínculo semânticoideológico entre ambos, mas sobretudo, porque há uma dialética fina entre eles: a sociedade capitalista moderna anula as condições de realização da transmissão plena de experiências, o que afeta diretamente a capacidade (arte) de narrar, que não pode prescindir desta transmissão. Com isso, menos narrativas resultam em menos intercâmbio de experiências, e logo, de menos Erfahrung .

Publicado em Praga em dezembro de 1933, alguns meses após os eventos que alçaram o nazismo às rédeas do Estado alemão, Experiência e pobreza lança um aviso de incêndio que ecoaria pelo século XX. Estamos, cada vez mais pobres de experiência! “É uma questão de honra confessar hoje nossa pobreza. Temos de admiti-lo: esta pobreza de experiência não se manifesta apenas no plano privado, mas no de toda a humanidade. Transforma-se assim numa espécie de nova barbárie” (BENJAMIN, 2012, p. 86). A sociedade burguesa capitalista moderna nos reduziu a todos a uma situação de pobreza cultural extrema, quando “falamos exaustivamente de cultura, mas não conseguimos impregnar a rudeza das nossas vidas, nem o mundo em que vivemos, com os valores culturais a que se referem os nossos discursos” (KONDER, op. cit., p. 80). Em outras palavras, de nada serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos “ligue” a ela (BENJAMIN, op. cit., p. 86). Em nossa leitura, Experiência e Pobreza possui três grandes eixos: a parábola do velho em seu leito de morte, a narrativa da monstruosidade da Primeira Guerra e a positividade desta nova barbárie, que nos leva a começar tudo de novo, nos impelindo a construirmos as coisas do início. Transmissão, dissolução, recomeço. Os três distintos momentos dialéticos do texto de 1933 conformam uma sequência de sentido que, ainda que não intencional, impregna no leitor um movimento bastante característico da obra benjaminiana que é o manejo da temporalidade: o que passou, o agora, o que virá. Tratando especificamente de cada um destes eixos, talvez fique mais nítida esta variedade temporal-semântica. A fábula que abre o texto é a de Esopo, intitulada “O velho vinhateiro” , ainda que Benjamin não faça referência direta a ela. Surge nos livros escolares alemães desde 1882 e narra a história de um velho pai que em seu leito de morte reúne seus filhos e revela que existe um tesouro escondido em sua vinha, cabendo a eles cavar bem fundo para encontr á -lo. Os filhos do vinhateiro cavam dias e noites a fio e não encontram nada. Todavia, quando o outono se apresenta, a vinha os presenteia com a maior colheita que a região havia visto: “e foi então que os filhos perceberam que o pai lhes legara uma experiência: a bênção não está no ouro, mas no trabalho” (BENJAMIN, op. cit., p. 85). Diz Benjamin, em seguida, que a todos nós foram contadas histórias semelhantes e transmitidas experiências como esta, de forma branda ou ameaçadora. Sabia-se perfeitamente o que era a experiência, geralmente com as pessoas mais velhas transmitindo seus conhecimentos e vivências para os mais jovens, através de provérbios, contos, ditados, antes de dormir ou ao redor da mesa, antes ou depois das refeições. Pergunta Benjamin: Para onde isto tudo foi? Onde estão as pessoas capazes de contar uma história de verdade? Um provérbio tem alguma utilidade hoje? A experiência ainda consegue mobilizar a juventude nos dias em que vivemos? A transmissão da experiência é a preocupação basilar de Benjamin na abertura do texto. Imediatamente após a história de Esopo, o filósofo alemão, em apenas um parágrafo, constrói um relato preciso dos efeitos da Grande Guerra de 1914

sobre a geração que a vivenciou, bem como dos episódios do período Entreguerras, como a Crise de 1929 e seus efeitos devastadores na Alemanha – bem como a ascensão dos regimes nazifascistas pela Europa. O que chama a atenção na abordagem de Benjamin sobre a dissolução da experiência (cuja “cotação baixou”) a partir da barbárie é o fato de destacar a mudez dos soldados que voltavam do front , mais pobres de experiências que pudessem ser compartilhadas. Os relatos – e aqui é fundamental a diferença que implicitamente o autor estabelece entre contar algo e partilhar experiências - dos livros do pós-guerra eram “tudo menos experiência contada e ouvida” (Ibidem , p. 86). Experiência que nunca fora mais desmentida: a experiência da estratégia pela guerra de trincheiras, as experiências econômicas pela inflação, as experiências do corpo pela fome, as experiências morais pelos donos do poder. O desenvolvimento maiúsculo da técnica, que forjou a fábrica e o tanque de guerra e fraturou profundamente toda uma geração que, poucos anos antes, quando estudantes, ia à escola de carroça; pessoas cuja capacidade de conferir sentido (partilhar experiências) às coisas foi massacrada impetuosamente num lapso de tempo, não lhes restando quase nenhuma referência (pessoas, lugares, histórias), como ilustra Benjamin ao falar das nuvens do céu, única parte da paisagem que se manteve inalterada – uma parte que, todavia, se altera constantemente, não servindo de boa referência, ao contrário das estrelas. Após a dissolução da experiência na Guerra, identificamos em Experiência e Pobreza um elogio ao recomeço da experiência, quando Benjamin afirma que esta nova barbárie (resultado da pobreza de experiência a nível global) ou nova pobreza impele o bárbaro a ter que “começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber viver com pouco, a construir algo com esse pouco, sem olhar nem à esquerda nem à direita” (Ibidem , p. 87). A partir de então, Benjamin passa a reivindicar fervorosamente os grandes criadores implacáveis, não os grandes criadores comuns, mas aqueles que começaram de uma prancheta limpa, fazendo tábula rasa; aqueles que foram verdadeiros construtores. Três grandes são citados por Benjamin nesta passagem: Descartes, que na máxima cogito ergo sum compartimentou toda sua filosofia numa única certeza; Einstein, que entendeu que as equações de Newton e as experiências da Astronomia eram os dois “ombros de gigantes” – para nos valermos da famosa frase do cientista inglês se referindo à Galileu e Kepler –, de onde se erguia sua teoria para vislumbrar novas possibilidades no campo da Física; e finalmente Klee, por quem Benjamin nutria grande admiração, que assim como os cubistas, se apoiou nos matemáticos para forjar o mundo a partir de formas estereométricas. Klee se inspirou nos engenheiros, salienta Benjamin, e suas figuras, assim como num “bom automóvel” (onde carroceria e motor atuam juntos como numa sinfonia), obedecem, sobretudo, ao que existe em seu interior, mais que na sua interioridade. Em O narrador , que como dissemos anteriormente, está umbilicalmente vinculado à Experiência e pobreza ¹⁴ , o diagnóstico de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, ainda que varie sua forma de abordar o tema. A arte de narrar é cada vez mais rara, uma vez que ela depende da transmissão de uma experiência, no sentido pleno. Todavia, as condições para esta transmissão estão cada vez mais escassas na sociedade capitalista

de nossa época. Para Benjamin, o escritor russo Nikolai Leskov (1831-1895) representaria o modelo ¹⁵ de narrador sobre o qual se dedica a descrever no texto de 1936. Um escritor que seria fiel à verdade, atento ao cotidiano e sensível à dimensão prática da existência, um coletador de histórias e experiências em suas viagens pela “Rússia profunda” (aqui vale lembrar a associação entre fahren e Erfahrung ). Este tipo de narrador está cada vez mais distante de nós e descrever um Leskov não significa aproximá-lo de nós, mas distanciá-lo, resultado da crise da experiência na modernidade. Em O narrador identificamos sete momentos-chave da reflexão benjaminiana, especificamente relacionados ao tema da experiência, que nos interessa: (i) o declínio da narrativa como o declínio da faculdade de intercambiar experiências; (ii) a narrativa como uma rede que une as pessoas (e aqui têm destaque os poderosos arquétipos do marinheiro, do camponês e do artífice); (iii) a afirmação da dimensão utilitária da verdadeira narrativa: o narrador como quem aconselha; (iv) a queda na cotação da narrativa como um processo lento e gradual e o romance/ informação como formas de comunicação “anti-experiência” (BENJAMIN, 1987, p. 201); (v) a sociedade burguesa capitalista e a inviabilização da arte de contar; (vi) a memória como a mais épica de todas as faculdades, como a musa da narrativa, dimensão que diminui com a diminuição da narrativa, uma vez que mantém com ela um vínculo profundo; e finalmente, (vii) a profunda ligação entre a narrativa e o elemento popular, entre o narrador e o povo, entre narrativa e experiência (Ibidem, p. 214). A perda da capacidade de trocar experiências (primeiro momento importante do texto) é um ponto de convergência explícito entre O narrador e Experiência e pobreza . Para Benjamin, há uma ligação estreita entre narrar e compartilhar experiências, sendo o narrador, ao mesmo tempo, um “conservador” de histórias e um “compartilhador” de experiências: a “fonte” dos narradores é a experiência que passa de pessoa para pessoa. Assim, a morte da narrativa explica a morte da experiência, assim como seu contrário. Como apontamos, em Benjamin, a narrativa aparece como uma rede que, quando tecida, aproxima os sujeitos (segundo momento-chave de O narrador ), onde a repetição (contar as histórias de novo) – numa alusão direta à arte de fiar, de tecer materiais – desempenha um papel primordial na composição do ritmo e na garantia da conservação/permanência daquelas histórias no tempo, histórias forjadas artesanalmente, uma vez que a narrativa corresponde a uma forma artesanal de comunicação. Os tipos arcaicos fundamentais da narrativa, para o pensador marxista, eram o marinheiro comerciante, que viaja por lugares vários e coleta histórias e impressões as mais diversas; o camponês sedentário, que não conhece outros lugares fora de seu mundo, e que, por isso, maneja a tradição e os costumes como ninguém; e finalmente, aquele arquétipo que provoca a interpenetração dos outros dois: o artífice – oriundo do sistema corporativo medieval –, “artista da mão” (artesão), que apara as arestas e burila a narrativa nascida de seus dois pais, o marinheiro e o camponês. O filme Narradores de Javé ¹⁶ (2003), de Eliane Caffé, retrata bem o caráter artesanal da verdadeira narrativa, que é sempre uma obra coletiva, em aberto e fundamentalmente oral, como diz Benjamin, quando afirma que entre as narrativas escritas, as melhores

são as que menos se distinguem das histórias orais. No filme, o personagem Antônio Biá, um mentiroso patife incumbido pelo povoado ameaçado de extinção de escrever a história de Javé (por ser o único alfabetizado), ao coletar as histórias e “causos” das pessoas daquela vila pobre do Nordeste, afirma: “uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito”. E acrescentaríamos, atualizando Biá para a perspectiva benjaminiana, que uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato narrado e “experenciado” pelo ouvinte, um reprodutor em potencial daquilo que ouviu, ou como diz Benjamin, aquele que tem interesse em conservar o que foi narrado. Ainda que entre o acontecido e o narrado, como o dito popular, existam outros tantos contos. O terceiro momento-chave de O narrador está na afirmação da dimensão utilitária da narrativa, que sempre tem algo a dizer – seja através de um ensinamento moral, de uma sugestão prática ou de um provérbio –, ou em outras palavras, alguma sabedoria para ser transmitida. O narrador é quem aconselha, logo, a morte da narrativa sepulta consigo o conselho, a experiência comunicável, a sabedoria: “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (BENJAMIN, 1987, p. 200). O provérbio, ideograma da narrativa e/ou ruína de alguma, segundo Benjamin, é um termômetro importante para medirmos a decadência da sabedoria narrativa e da narrativa da sabedoria. Na contemporaneidade o provérbio é substituído pelo slogan , “provérbio de uma humanidade que perdeu a experiência” (AGAMBEN, 2005, p. 10). Em O narrador, Benjamin utiliza a metáfora da transformação da crosta terrestre (lenta, gradual, de longa duração) para analisar o processo de nascimento, desenvolvimento e ocaso da narrativa, desde a Antiguidade até os nossos dias (momento-chave IV). Para o crítico alemão, a queda na cotação da narrativa não foi algo abrupto, nem isolado, ou seja, sem o florescimento de outras formas de comunicação que concorreram, desigual e combinadamente (na epopeia, por exemplo, onde não há uma indiferenciação entre narrativa e romance) com a narrativa, tendo destaque para o romance, filho da Idade Moderna, e a informação, filha da Idade Contemporânea, formas de comunicação que, diferentemente da narrativa, não têm na experiência sua fonte fundamental. O romance está profundamente vinculado ao livro e sua difusão só é possível com a invenção da imprensa. Ele não procede da oralidade (tampouco a alimenta) como os contos, lendas, sagas, fábulas e novelas, e segrega – sua origem é o indivíduo isolado, que não recebe conselhos, solitário –, ao contrário da narrativa, que é um processo coletivo onde quem escuta uma história está em companhia do narrador. O romance é avesso à sabedoria ¹⁷ e corresponde aos anseios e expressões artísticas da ascendente burguesia europeia, sendo até hoje hegemônico como expressão estética da narrativa escrita. Ele é repleto de conotações psicologizantes, do escritor e do leitor, enquanto a narrativa é simples e direta. Tem como preocupação principal a busca do sentido (da vida, da morte, da história), separando o sentido e a vida, o essencial e o temporal, enquanto a narrativa tem como núcleo central a moral da história. Norteado pela tensão (a necessidade de devorar a substância lida), o romance tem um final (materializado no “The End”)

característico dos finais de livros e/ou filmes, enquanto na narrativa o desfecho não se encerra num final imediato. A informação jornalística ameaça o romance, provocando nele uma crise. Sua rotina é falar de acontecimentos diminutos, de microfatos, de assuntos desconexos, descontextualizados, autoexplicativos, assépticos, que exigem uma verificação instantânea, no exato momento em que são lidos. A informação é ré no processo que trata da extinção da arte da narrativa. Uma história de mil anos não importa mais que um atropelamento na esquina de nossas casas; uma revolução tem menos importância que o próximo escândalo envolvendo aquele deputado corrupto; uma biografia ou um povo não têm condições de competir com as manchetes do noticiário policial, que funcionam como numa linha de montagem fordista; o novo de hoje é apenas o obsoleto da manhã seguinte. Benjamin, a partir de Valéry, vai dizer que o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado, fazendo com a narrativa o mesmo. O romance se apresenta, junto à informação jornalística, no momento em que a experiência coletiva entra em ruína, como formas narrativas que se colocam como hegemônicas: “os dois têm em comum a necessidade de encontrar uma explicação para o acontecimento, real ou ficcional. A informação deve ser plausível e controlável; já o romance parte da procura do sentido (...)” (GAGNEBIN, 1987, p. 14). O quinto momento significativo da argumentação de Benjamin no texto que analisamos diz respeito à reflexão sobre a consolidação da sociedade burguesa capitalista e o consequente sepultamento, sempre inconcluso, da arte de contar. As condições de realização do processo de transmissão de experiências na contemporaneidade são extremamente adversas, dada a velocidade de expansão do capitalismo e do desenvolvimento da técnica, que alteram rapidamente as condições de vida dos seres humanos e, logo, sua capacidade de assimilação. De acordo com Gagnebin (op. cit., p. 10), Benjamin distingue, dentre estas condições, três principais: a inviabilidade da comunidade (de discurso e de vida) – condição imprescindível para a comunhão de experiências (entre narrador e ouvinte) –, somada a uma separação cada vez mais impetuosa entre os grupos humanos (sobretudo entre as gerações, a despeito das tecnologias, que nos aproximaram nos separando); a decadência do trabalho manual (o artesanato em especial, com seus ritmos orgânicos e mais lentos), por conta do avanço impetuoso do industrialismo, que acelera a produção e a vida, sedimentando as experiências e afastando os sujeitos da possibilidade de intercambiar suas impressões, sonhos, vivências; e finalmente, o fim dos conselhos, da moral da história de cada biografia, individual e/ou coletiva, da sabedoria como legado e como substância da vida social – o indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado vai buscar o seu duplo no herói do romance, solitário como ele. Outro ponto importante da argumentação de Benjamin no texto é seu olhar sobre a memória (sexto momento-chave), que seria a mais épica de todas as faculdades. Com o ocaso do intercâmbio de experiências, uma das consequências mais imediatas é a supressão da memória, individual e coletiva, e a perda do sentido da história (MEINERZ, 2008, p. 42). Como

dissemos anteriormente, o que mantém narrador (que é capaz de guardar e contar muitas histórias pois as conhece integralmente, uma vez que as viveu e/ou ouviu) e ouvinte é o interesse em conservar o que foi narrado. Por sua vez, o romancista, com sua experiência fragmentada, está impedido de conhecer histórias e, logo, de guardar a memória. Em Benjamin, memória e experiência estão intimamente imbricados, porque mantêm entre si uma relação de interdependência. Só é possível reviver, restabelecer experiências passadas através da memória (fixando-as, retendoas, reconhecendo-as, evocando-as), e esta só se fixa através da experiência, no sentido da Erfahrung e não da Erlebnis – sem vínculos com o passado, efêmera, desconexa, isolada –, tônica do cotidiano que vivenciamos. Um mundo sem experiências partilháveis, fragmentado, mudo, norteado pela efemeridade do instantâneo, não precisa da memória, pois não há o que ser revivido. Se perece a experiência, perece também a memória e, por conseguinte, a tradição. Meinerz (op. cit., p. 70) compara dois escritos de dois escritores latinoamericanos fundamentais, Borges e Gabriel García Márquez. O conto Funes, o memorioso, que narra a história de Irineu Funes, um jovem que ficara paralítico e que após o trauma desenvolve uma memória prodigiosa, que catalogava todas as imagens da memória; e Cem anos de solidão, que narra a história de um mítico povoado colombiano onde em um dado momento todos os habitantes são acometidos por um esquecimento coletivo, provocado por um surto de insônia que se alastrou como uma peste. Para a autora, a comparação é um aviso sobre o perigo do excesso e da falta. A memória em demasia de Funes tornava o jovem escravo dos acontecimentos vividos e incapaz de pensar; a falta de memória em Macondo originava uma idiotice sem passado, apagando as marcas construídas por aquelas pessoas no tempo. Esquecer e lembrar – e o esquecimento é correlato da experiência – deve ser um jogo salutar entre reter e deixar partir, entre guardar e apagar, permitindo que memórias continuem seu ciclo de nascimento e morte, parteiro da experiência. Num mundo cada vez mais veloz, há pouco espaço para a memória, para contar, para experenciar coisas, onde a informação jornalística representa exemplo paradigmático. Tudo se torna antiquado em pouco tempo: o jornal estampado na banca hoje embrulhará o peixe na feira de amanhã. Finalizando, para o filósofo, um acontecimento vivido é finito, terminado na esfera do vivenciado, enquanto que o que é lembrado é sem limites, uma vez que é uma chave para tudo que o antecede e que o sucede (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 1987, p. 15). Em outras palavras, podemos dizer que a Erfahrung é mais que a Erlebnis , pois a experiência, profundamente vinculada à memória, fixa aquilo que a vivência deixa passar. Finalmente, o sétimo e último momento-chave da reflexão de Benjamin em O narrador corresponde à explicitação, presente em todo o texto, da forte ligação entre a narrativa e o popular, entre narrador e povo, ou numa mirada ampla, entre narrativa e experiência, nosso foco neste garimpo pelo famoso escrito de 1936 sobre Leskov e a narrativa. Parafraseando Gorki, Benjamin afirma que Leskov é o escritor enraizado no povo de forma mais profunda, sendo o mais “puro” de influências vindas de fora da Rússia: “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas

camadas artesanais” (BENJAMIN, 1987, p. 214). Estar enraizado no povo significa nutrir-se de uma fonte inesgotável de experiência, viva porque compartilhada, tangível porque fixada na memória individual e coletiva. Significa também mover-se para cima e para baixo, do global ao local, com destreza, galgando os degraus da experiência. A partir da metáfora do artesanato (lembrando o artífice como unificador dos arquétipos do marinheiro viajante e do camponês sedentário) é possível dizermos que a oralidade está para o artesanato, assim como a narrativa escrita está para a atividade fabril. Enquanto o primeiro se alicerça na prática e parte dela, num movimento contínuo onde o tédio, como rotina, é o “chocador dos ovos da experiência”, o segundo tem na fragmentação e na perspectiva do isolamento individual (quem não ouve não é capaz de contar) seu substrato. A metáfora da narrativa como artesanato – tratando especificamente de Leskov e sua narrativa verdadeira - também busca dar conta da dimensão prática da autêntica narrativa, rica em sua concretude, repleta de significado, porque parte dos contornos e dos sentidos forjados no real e a partir dele. O próprio Leskov entendia a narrativa, esta arte artesanal, como um ofício manual, chegando a afirmar numa carta que a literatura não era para ele uma arte, mas um trabalho manual. Não à toa, salienta Benjamin, Leskov sentia-se atraído pelo trabalho manual e avesso à técnica fabril. Todavia, no final do texto, o filósofo salienta numa passagem belíssima, a partir de Valéry, que a narração não é produto exclusivo da mão, mas é uma coordenação sensível da alma, do olhar e da mão, assim como o trabalho do artífice, que não se resume simplesmente ao manual. Paripassu com o desaparecimento da mão no trabalho produtivo, ocorre seu desparecimento na narração. De acordo com Benjamin é possível ir além e perguntar: a relação entre o narrador e sua matéria, a vida humana, não seria também uma relação artesanal? “Não seria sua tarefa trabalhar a matéria prima da existência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único?” (BENJAMIN, op. cit., p. 221). A seguir, retomaremos a questão central para nós: a compreensão da experiência como construção de sentidos. Antes, numa imagem de pensamento ( Denkbild ) livre, inspirada no marxista da melancolia, defendemos que na tessitura coletiva dos fios da experiência, a agulha da narrativa – que tem no tempo da memória sua costura - forja um tecido cuja matéria é a vida humana. A experiência como construção de sentidos

Na análise de dois dos escritos mais importantes de Benjamin – Experiência e pobreza e O narrador – buscamos identificar como aparece o conceito de experiência, com quais categorias se conjuga, quais os diagnósticos que apresenta sobre nosso tempo e em que medida fornece pistas para aqueles que insistem em não aceitar a extinção da Erfahrung e a legitimação inexorável da Erlebnis . Não é novidade a discussão do conceito de experiência na obra benjaminiana. Destacamos dois, dedicados especificamente ao tema: Concepção de experiência em Walter Benjamin , dissertação de mestrado de Andréia Meinerz, e Experiência e formação em Walter Benjamin, obra de Caroline Mitrovitch, resultado de sua dissertação de mestrado, de mesmo título. Analisando os diversos trabalhos que de forma mais detida ou menos interessada abordam o tema da experiência em Benjamin, identificamos de forma implícita, em alguns textos, indícios de/para uma possível releitura do conceito, que a despeito de não estar presente nos autores estudados – mesmo em seus intérpretes mais importantes, como Jean Marie Gagnebin (1999) e Leandro Konder (1999) –, é perfeitamente sintonizada com a perspectiva benjaminiana da Erfahrung. Tais indícios nos levaram a defender que a experiência em Benjamin pode ser compreendida como um processo, complexo, dinâmico, dialeticamente individual e coletivo, de construção de sentidos. O mundo tal como se apresentava no início do século passado, herdeiro do XIX e reflexo das transformações no mundo da produção e da vida cotidiana sob a direção e o domínio da burguesia capitalista, representava, na visão de Benjamin, uma catástrofe em permanência, descrita no mais conhecido e citado texto do filósofo, a IX Tese Sobre o conceito de História (1940). Em meio às ruínas – diria Benjamin – está o escombro da experiência, o que restou dela. A catástrofe permanente sepulta não apenas os homens e mulheres, os jovens e os velhos, o passado e o presente, mas leva consigo também a capacidade de partilharmos saberes, práticas, subjetividades, sentimentos, mas sobretudo, nossa capacidade de conferir sentido ao que nos acontece. Nossa pobreza, efeito direto da “nova barbárie” cotidiana do mundo forjado pela burguesia à sua imagem e semelhança, é principalmente uma pobreza da experiência, da capacidade de construir sentidos sobre o real. Mais uma vez, é a frase paradigmática de Benjamin a fotografia precisa de nossa época: “Na verdade, de que nos serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela?” (BENJAMIN, 2012a, p. 86) . E acrescentaríamos: de que vale toda a cultura se ela não fizer sentido? “Experienciar” em Benjamin significa construir, partilhar e recuperar sentidos sobre a própria existência e sobre o mundo. Em sua abordagem sobre a educação, Mitrovitch (2011, p. 22) defende que é possível pensar no par “experiência/sentido” quando da análise e do uso deste conceito tão caro ao pensamento benjaminiano. Por sua vez, Konder (1999, p. 26) entende que para Benjamin era imperioso desenvolver um conceito superior de experiência, capaz de fugir da abstratividade da oposição entre sujeito e objeto; “um conceito de experiência capaz de corresponder às necessidades humanas de uma existência plena de sentido”. Em seus escritos sobre Goethe, o próprio Benjamin aborda o vínculo entre experiência e sentido,

quando afirma que “a experiência é carente de sentido e espírito apenas para aquele já desprovido de espírito” (BENJAMIN, 2009, p. 23). É importante frisar que a experiência benjaminiana está voltada para o coletivo (MITROVITCH, op. cit., p. 126-127), numa dialética entre o homem e o mundo, norteada pelo contexto social e pelas condições materiais e subjetivas de cada época histórica. E se a experiência é coletiva, logo, a construção de sentidos é, fundamentalmente, também um processo coletivo, assim como difuso, irregular, multifacetado e histórico. A experiência legada pelo velho vinhateiro à sua prole ou a mudez diante da monstruosidade da Grande Guerra em Experiência e pobreza , bem como a transmissão da experiência pelos artífices das palavras ou das coisas em O narrador , representam processos coletivos de partilha/rememoração de experiências, de construção de sentidos – no plural, uma vez que não são representações unívocas, singulares sobre o mundo – forjados a partir da alteridade e das contradições do real concreto. Defendemos que “sentido”, no singular, pode dar a ideia do sentido unívoco do romance, ou seja, da busca de “uma” explicação para a vida, a morte, a história: o sentido como fim. Falamos de sentidos, no plural, como significações, individuais e/ou coletivas, concepções de mundo, impressões sobre o mundo, forjadas e ressignificadas cotidianamente a partir da (s) experiência (s) partilhada com o (s) outro (s), mas abertas e não fechadas como fim: o sentido como o “sendo” (processo). Os ensaios dos anos 1930 ( Sobre alguns temas em Baudelaire também poderia constar nesta lista), de uma maneira geral, constituem uma tentativa de pensar o fim da experiência e a possibilidade de sua reconstrução a partir da ruína. Este resgate do sobrevivente em meio aos escombros indica que há esperança de um novo hoje, num tempo-de-agora ( Jetztzeit ) – ponto de partida benjaminiano, o momento do despertar – que se articule com a retomada crítica do passado e aponte para um futuro que não está escrito e que por isso não consagrou de forma definitiva a barbárie. Resgatar o corpo da experiência com vida significa garantir, através da “dialética da ruína benjaminiana” (MITROVITCH, op. cit., p. 166), o mergulho no caos da cultura moderna em busca de novos sentidos para o cotidiano em frangalhos. A história a contrapelo de Benjamin legitima uma concepção de história que é abertura (LÖWY, 2005, p. 147) – onde o “novo” é possível – e não fechamento; que é imprevisibilidade e não fatalismo; uma história não de uma temporalidade uniforme, mas de múltiplos tempos, interpretações e sentidos, atravessada pelo conflito. No que Löwy chama de marxismo da imprevisibilidade, Benjamin apresenta uma história aberta que significa, num viés político, possibilidade e não inevitabilidade, tanto da hecatombe quanto da emancipação. Esta última representa uma aposta do pensador, ainda que o termo não esteja presente em seus escritos. Aposta que traduz a incerteza de um futuro que não seja a barbárie, mas que ao mesmo tempo explicita que o trem que ruma para o abismo ainda não chegou lá, podendo ser freado pela ação emancipadora-revolucionária, que aparece no autor muitas vezes como um intento desesperado para evitar o despenhadeiro. O intelectual que conferiu um sentido político para a melancolia ¹⁸ lançou um aviso de incêndio que pode ser traduzido no axioma “a catástrofe é

possível – se não provável – a não ser que (...)” (LÖWY, op. cit., p. 152) . Se a história é abertura e não fechamento e se a experiência não desapareceu da face da Terra, a despeito de sua cotação cada vez mais baixa, é possível afirmarmos que há em Benjamin a defesa intransigente da abertura de sentido sobre as temporalidades humanas (passado, presente e futuro) e, logo, das novas significações sobre o mundo. Impertinências Finais Reconstruir a Erfahrung em meio a um cotidiano fragmentário e caótico é obrigatoriamente restituir a capacidade de dar sentido e acrescentar significação à existência, tendo em vista que a História “é construção de sentidos que se entrecruzam com as urgências do presente” (MITROVITCH, 2005, p. 4), sentidos que não se localizam apenas nos sujeitos isolados, na realidade concreta ou no imaginário/simbólico, mas nesta articulação. Compreender a experiência como construção de novos/outros sentidos; como a elaboração coletiva de pontes que nos liguem à cultura; como a forja de histórias/narrativas que significam algo porque são tecidas de forma partilhada, pelos grandes-pequenos criadores implacáveis, que recomeçam o ciclo do novo a despeito das bombas-relógio das novas formas de barbárie que amedrontam e dilaceram. Tudo isso representa a defesa intransigente e otimista da inventividade, da capacidade humana de construir uma existência plena de sentido, mesmo na contramão. Passadas mais de sete décadas da morte de Benjamin, o panorama cultural, político, econômico e social do século XX e do agora só confirma a sensibilidade e a radicalidade de seu pensamento, capaz de identificar, em meio a tantas outras interpretações (filosóficas, históricas, religiosas, psicológicas etc.), um “outro sintoma” ¹⁹ (ŽIŽEK, 2010, p. 57) de nossa época, de longa permanência e, por isso, assustadoramente atual: somos cada vez menos capazes de partilhar experiências, de contar histórias de verdade, de conferir sentidos à vida. A depressão, também chamada de “doença do século”, se entendida como um “sentimento social mais geral”, como afirma a psicanalista Maria Rita Kehl ²⁰ , vincula-se profundamente com a perda de sentido – das coisas, do trabalho, das relações, da vida, do mundo – num processo quase epidêmico de vazio interior que, em nosso entendimento, está estreitamente ligado à perda da experiência, compreendida como construção coletiva de sentidos. 14 Em O narrador, texto escrito três anos após Experiência e Pobreza, Benjamin reproduz um trecho inteiro, quando afirma a baixa cotação da experiência nos dias atuais e analisa os impactos da Primeira Guerra sobre a geração que a vivenciou. 15 Franz Kafka (1883-1924), escritor tcheco, representa outra grande referência de Benjamin no estudo da narrativa, sendo para ele o maior narrador da modernidade, tendo escrito sobre o autor o ensaio Franz Kafka, Beim Bau der Chinesischen Mauer ( Durante a construção da Grande Muralha ) (GAGNEBIN, 1987, p. 18). 16 NARRADORES DE JAVÉ. Direção: Eliane Caffé. Produção: Lumiere/ Vídeofilmes, 2003. 102 min. Son, Color, Formato: 16 mm.

17 Dom Quixote indicaria que a grandeza de caráter, a coragem e a generosidade do cavaleiro mambembe são profundamente refratárias ao conselho e despossuídas de sabedoria, com o herói comovendo pelo riso e pela pena, mas não sendo capaz de transmitir sabedoria e experiência com seus feitos. 18 Entendida não como patologia, mas como sensibilidade ao mesmo tempo incapaz de se adaptar e capaz de captar/sofrer, sinalizando aquilo que não vai bem na cultura, no mundo real, como afirma Maria Rita Kehl em debate realizado em São Paulo (outubro de 2013), em parceria com Michael Löwy e organizado pela Boitempo. Disponível em: http://acasadevidro.com/ 2014/01/25/maria-rita-kehl-e-michael-lowy-debatem-walter-benjamin-e-ocapitalismo-como-religiao/ . Acesso em: dez. 2015. 19 De acordo com Žižek , a partir de Lacan é possível compreender que Marx é o “pai” do sintoma, cuja descoberta deve ser buscada na maneira como o filósofo alemão concebeu a transição do feudalismo para o capitalismo: o estabelecimento da sociedade de matiz burguesa “recalcou” as relações de dominação/servidão, fazendo com que formalmente pareçamos estar lidando somente com sujeitos livres, “isentos” de fetichismo. A permanência do par dominação/servidão emerge num sintoma que subverte a aparência ideológica de liberdade, igualdade e outros “universalismos” burgueses: “Esse sintoma, o ponto de emergência da verdade sobre as relações sociais, são precisamente as ‘relações sociais entre as coisas’: ‘Em vez de aparecer em quaisquer circunstâncias como suas próprias relações mútuas, as relações sociais entre os indivíduos disfarçam-se sob a forma de relações sociais entre as coisas’ (...)” ( Ibidem ). 20 Palestra no programa Café Filosófico CPFL, gravada no dia 24 de junho de 2009, em São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=gGjPmVTIiCk . Acesso em: dez. 2015. EXCEÇÕES E VEREDAS: AS OCUPAÇÕES COMO ACONTECIMENTO E EXPERIÊNCIA NO BRASIL DO NOSSO TEMPO Publicado originalmente na Revista Educação, da Universidade Federal de Santa Maria, no segundo semestre de 2017. Morfologias da resistência: pensar as ocupações Há uma passagem de Saramago em O ano da morte de Ricardo Reis (1984), que diz que o mundo esquece tanto que nem percebe a falta do que esqueceu . Estamos a quatro anos dos eventos chamados de Jornadas de Junho , sendo que a impressão é que o mês que à época parecia não acabar, perdeu força no sentido da permanência e do legado, sobretudo em relação à construção de pautas progressistas. Junho de 2013 hibridizou demandas por direitos sociais (transportes, educação, saúde, moradia etc.) e pautas seletivas anticorrupção, além de bandeiras de matiz conservador (algumas flertando com símbolos e práticas fascistizantes), mas foi capaz também de ser um termômetro das dinâmicas sociais do/no Estado e da/na sociedade civil brasileiros.

Após treze anos do heterogêneo e molecular pacto social lulista, capaz de articular, contraditoriamente, reconfigurações hegemônicas regressivas e transformismos, com positivações do popular e atendimento de demandas sociais há muito adiadas, nos deparamos com um tecido societário ainda esgarçado pelas desigualdades, pelas expressões históricas da questão social, pela lógica da condominização (DUNKER, 2015, p. 47) da existência cotidiana e pelas posturas sintomaticamente apáticas diante das novasvelhas morfologias de golpes (parlamentar, jurídico, midiático, econômico), capazes de remodelar o estado de exceção brasileiro. Com Agamben (2004, p. 12) lemos tal estado enquanto forma legal daquilo que não pode(ria) ter uma forma legal e resposta histórica das elites nacionais aos conflitos sociais mais agudos, sob faces pseudodemocráticas. O estado de exceção , que na acepção benjaminiana, em sua oitava tese sobre o conceito de história (BENJAMIN, 2012b, p. 13), caracteriza-se como uma das regras gerais do contemporâneo, desde os episódios de 2016 ²¹ , tem sido capaz de imprimir derrotas substantivas e velozes em diversas esferas da vida social no país, notadamente naquelas que se vinculam intimamente aos direitos sociais apontados acima e às éticas democráticas. Não custa lembrar, ainda sobre as amnésias, que nos últimos anos do Brasil dos anos 2000 temos ouvido, lido e visto, como nenhuma outra vez desde o final da década de 1980, clamores pelo retorno da ditadura e da repressão de Estado, no país que encabeça as listas dos que mais matam mulheres, lincham, prendem pessoas e dilaceram toda e qualquer forma de direitos humanos. Dentre estas esferas, destacamos o campo da Educação, em seus solos mais amplos e mais restritos, como aquele que reúne talvez a maior fragilidade e também a maior capacidade de assimilação de recentes e antigas gramáticas de luta que emergiram do caldeirão da hegemonia, de onde enfatizamos as Jornadas de Junho . Destas formas de ação, defendemos que as ocupações são as mais importantes e com maior capacidade de difusão no espectro das resistências aos processos de comodificação, alienação e esterilização dos espaços de saber. A ocupação das ruas como tática central das Jornadas talvez tenha sido o principal legado daquele mês que ainda não findou . Como reverberações desta forma de luta – tão utilizada pelos movimentos sociais no pós-ditadura, principalmente pelo MST ²² – tivemos a greve dos garis (2014) na cidade do Rio de Janeiro; as greves dos rodoviários em distintas partes do país, no mesmo ano; a enorme presença do MTST ²³ e de suas ocupações após 2013. Como antídoto para uma ruptura de novo tipo (o Golpe sem Golpe) têm ocorrido também ações de nova roupagem, como as mais de mil (BAVA, 2016, p. 3) ocupações de escolas ²⁴ Brasil afora por secundaristas, aqueles que muitas vezes passavam ao largo das análises acadêmicas e políticas sobre espaços combativos da sociedade civil. É imperioso, da mesma forma, citar as ocupações nas universidades em várias partes do país, ligadas também às ações empreendidas nas escolas. No governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB) – de baixíssima popularidade, explícito envolvimento com sujeitos e práticas corruptas, e impetuoso ódio à democracia de rosto popular –, ao mesmo tempo em que se

investiu de forma voraz contra símbolos, lutas e conquistas democráticas, defendeu-se a mobilização da apatia em prol da “boa democracia”, aquela que é capaz de controlar e agir coercitivamente contra a catástrofe da civilização democrática (RANCIÈRE, 2014, p. 11). Infelizmente, a partir da memória enquanto crítica, importa afirmar que o lulismo também se mostrou incapaz, ainda que de formas bem distintas, de lidar com o problema democrático de maneiras inventivas, frescas e críticas. Em grande medida, o Golpe de 2016 emergiu das contradições não resolvidas do/no lulismo e de suas metamorfoses, que acabaram por engendrar em profusão antíteses do que um dia fora o projeto do Partido dos Trabalhadores: O governo democrático, diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas. Em compensação, é bom quando mobiliza os indivíduos apáticos da sociedade democrática para a energia da guerra em defesa dos valores da civilização, aqueles das lutas das civilizações (Ibidem). Secundaristas e universitários, ao demarcarem posição nos espaços que são seus, a despeito da usurpação cotidiana; ao promoverem novas epistemes e sentidos, assim como uma nova práxis político-pedagógica; ao reafirmarem e ressignificarem o caráter público da escola e da universidade, espaços de precariedade, controle, mercantilização, mas também de inventividade e resistência; ao indicarem para a sociedade e para si mesmos que todos(as) são intelectuais, colocando-se publicamente em defesa de seus direitos, dilatam criticamente a esfera pública, em suas múltiplas tonalidades, conferindo um sopro de jovialidade à política enquanto elaboração coletiva permanente. Um frescor trazido justamente por jovens majoritariamente não brancos e das classes populares. O MTST, junto ao MST, que, todavia, diminuiu seu ímpeto durante os anos do lulismo, é talvez o principal movimento social do Brasil em termos de ocupações de espaços públicos, sobretudo para moradias destinadas aos mais pobres. Em Por que ocupamos? o movimento assim afirma: “os semteto, quando fazem uma ocupação, pretendem a construção de casas para aqueles que precisam. Mas acabam por construir outras coisas também. (...) constroem uma referência de organização coletiva e poder popular” (MTST, 2012, p. 59-60). Talvez possamos afirmar, no calor mesmo desta conjuntura, que o alívio das carências via reformismo fraco (SINGER, 2016, p. 12) e o avanço do par “neo-neo” – neoliberalismo/(neo)conservadorismo – em distintos campos sociais, nesta última década, se por um lado desarmou grandes setores das classes populares, também provocou um retorno aos clássicos da luta social no Brasil, tão (re)visitados na década de 1990, quando a primeira onda neoliberal saqueou o Estado e reprimiu com extrema violência trabalhadores e estudantes do campo e da cidade: a ocupação (como a principal tática de muitos movimentos e coletivos); as passeatas (quase que rebatizadas pelo MST nos anos 1990 e que ainda não saíram de cena); os fóruns (é obrigatória a lembrança dos Fóruns Sociais Mundiais por aqui) pela moradia, pela educação; os escrachos públicos (que ganharam energias novas com o cinquentenário de Golpe de 1964), as frentes populares (como as atuais Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo) etc.

Se em Junho foram as ruas que apontaram e suscitaram caminhos, progressistas e conservadores, hoje parecem ser as recentes ocupações nas escolas (na maior ocupação de espaços escolares da história no país) e universidades, além das ações do MTST, que num movimento amplo e heterogêneo, sob a liderança ora frágil, ora gigante, de jovens de quatorze, quinze, dezesseis anos, de analfabetos, desempregados, precariados (BRAGA, 2012), que apontam para os problemas da democracia de baixa intensidade (LÖWY, 2016, p. 61) de nossa combalida e frágil república, numa construção plural, aberta e complexa, porque imprevisível. O que chama a atenção nestas experiências são as veredas democráticas que os sujeitos inesperados, que existem aos milhares em qualquer parte do país, têm forjado num contexto de aliança maiúscula entre o liberalismo econômico e o (neo)conservadorismo ²⁵ cultural. A ampliação da esfera pública, na defesa concreta dos lugares, sentidos, epistemes e éticas que devem ser de todos, talvez seja o espaço de debate e práxis mais estratégico nestes tempos de ataques à luz do dia contra as classes populares. É preciso que os sujeitos políticos disputem os sentidos públicos de Junho (BRAGA, 2015), que ainda pulsa; disputem os significados das lutas históricas por uma educação pública, gratuita, laica, de qualidade, não homogeneizadora; disputem as experiências educacionais gestadas em espaços acadêmicos formais e/ou populares, que têm se dedicado à elaboração de novas perguntas para antigas questões, sobretudo em relação ao lugar da educação pública hoje; disputem os debates em torno da dimensão pública da vida em sociedade – com destaque para temas como moradia, direitos humanos, saúde, direito à cidade e à cultura –, que não é uma chancela do Estado stricto sensu tampouco algo que se elabora com manuais e regras pré-concebidas; e finalmente, que disputem o direito de disputar tudo isso que elencamos, lugar que nunca é de chegada, mas sempre processo e devir, ancorados diuturnamente na memória, que não se apaga como letra no papel. Veredas democráticas: a ocupação como acontecimento Antes de sair dali senti pena, fechei bem a porta de entrada e joguei a chave num bueiro. Sabe-se lá se algum pobre diabo não cismava de roubar e se metia dentro da casa, a essa hora e com a casa tomada. (Cortázar, Casa tomada ) Nos esforços de disputas políticas e culturais no Brasil de agora, contra um real utilizado como intimidação e submissão, um real verdadeiro e autêntico como o rotulam os sujeitos da hegemonia do capital, devemos opor aquilo que Badiou (2017, p. 9) chama de concreto como bandeira . Antes mesmo da erosão explícita ²⁶ do impopular e autoritário governo de Temer, o movimento massivo de ocupações por secundaristas/universitários e por movimentos sociais renovou a temperatura das lutas nos espaços públicos – enfraquecida depois de Junho – como quem circunda com as mãos as velas de um bolo de aniversário que começam a se apagar.

Nossa hipótese, a partir da original reflexão de Žižek (2017), é que Junho e a recente retomada de ocupações representam acontecimentos , entendidos como guinada, como intervenção radical, no sentido mesmo de afetar a raiz das relações sociais, da suposta normalidade do cotidiano, do inexorável. Como todo acontecimento – ou evento prenhe de singularidade e potência –, em cada momento, é em si mesmo sua própria narrativa (Ibidem, p. 135), é possível lermos estes quatro anos que separam as Jornadas das ocupações de 2016/2017 como uma incubadora de reenquadramentos (Ibidem, p. 175), onde a defesa concreta do espaço público figura como o mais incisivo, sem dúvida. As ruas de 2013, no processo de desgaste e crise do governo de Roussef, passaram a ser disputadas, política e discursivamente, por setores sociais os mais variados, desde militantes e intelectuais até amplas fatias da classe média, numa polarização binária do espectro político onde “tomar” o espaço do outro parecia anteceder a garantia de seu próprio. Contudo, em comparação com os episódios de Junho , no processo massivo de ocupação das escolas públicas e universidades assistimos todos a um protagonismo de grupos subalternos, com maior ou menor apoio institucional (partidos, sindicatos, grêmios estudantis, diretórios acadêmicos etc.), o que indica uma luta contra as blindagens democráticas materializadas no controle da dimensão pública, sobretudo na escola. Ainda hoje as narrativas e a amplitude destes dois marcos que apontamos permanecem sendo tensionadas, talvez por ainda encarnarem enigma e potência política, concomitantemente. O mesmo nexo do enigmático com o político pode ser encontrado na literatura fantástica latino-americana, mais precisamente em Casa tomada (1944), um dos textos mais paradigmáticos escritos por Cortázar. Nele é retratado o cotidiano imutável de um casal de irmãos que habitam permanentemente um casarão de Buenos Aires, herança da família rentista, dona de propriedades e negócios rurais, porém, decadente. Fazer tricô, comer sempre pontualmente, fumar cachimbo, contar o dinheiro guardado: a repetição diuturna amalgamava os dois sob a aura de uma casa que, preteritamente, fora mais que isso. O clímax do texto se dá quando estranhos invadem uma parte significativa da enorme residência, obrigando seus donos a viverem na parte que isolam do recinto que passam a ocupar. O(s) outro(s) que invade(m) não são definidos pelo autor, mas identificados como perigosos e ameaçadores, numa casa com feições fantasmagóricas para muitos. No trato da casa como coisa, Cortázar elabora uma narrativa obscura que permite ao leitor diversas interpretações. Em nossa mirada benjaminiana, trata-se de um olhar sobre a modernidade como um mundo norteado por fantasmagorias: o crescimento da transmutação de todas as relações sociais sob a lógica da mercadoria. Ou ainda, em uma perspectiva complementar, o declínio da experiência. A casa-propriedade consome as pessoas que ali residem, com suas vidas repetitivas e sem sentido, ao mesmo tempo em que estes moradores consomem a casa-coisa pela reclusão que ali encarnam. A casa tomada, sob os barulhos e a ameaça constante do que vinha do outro lado, muda e não muda a rotina dos irmãos, até o ponto em que decidem, quase à meia-noite, abandonar o imóvel (aceitando sua ocupação), fechando a porta e jogando a chave no bueiro, pois era deveras perigosa a

propriedade de feições fantásticas, de tamanho maior que o de seus habitantes e que continuava sendo casa (para os irmãos), ainda que tomada. A ameaçadora casa do centro portenho ameaça até mesmo quem a toma, sejam eles ladrões, pobres, espectros, inimigos, familiares. Aceitar a tomada da casa, jogando a chave fora, é impedir o quê ou quem? A epígrafe que utilizamos há pouco é exatamente a forma como o conto termina. O sentimento de pena – pela perda da casa ou dos desconhecidos? – e a referência aos pobres diabos , permitiu a diversos intérpretes, além de outros trechos, análises mais políticas do escrito cortazariano que não serão reproduzidas neste diminuto trabalho. Entretanto, valemo-nos da imagem dialética da casa como espaço disputado, privado ou público, para retomar o tema das ocupações e de sua centralidade nas dinâmicas sociais e educacionais no Brasil contemporâneo. Em qual parte do texto podemos (re)enquadrar as lutas sociais contra-hegemônicas no Brasil dos anos dois mil? A casa amorfa e inalcançável? A casa invadida e disputada de formas distintas e em espaços vários? A casa tomada, sem a chave e desabitada por seus antigos proprietários? Uma casa tomada sob a forma leminskiana ²⁷ do beco com saída, ainda que com uma porta sem chave? Como acontecimento político, as ocupações têm sido capazes de tomar não apenas espaços públicos taxidermizados, mas também narrativas e comunicabilidades da experiência, não expulsando seus tradicionais moradores, mas incomodando-os a ponto de se deslocarem para outros cômodos isolados da casa. A repressão sobre os secundaristas foi muito menor do que se costuma ver nas universidades, nas passeatas ou mesmo nas ações do MTST. Mesmo estes últimos, se estabelecemos uma rápida comparação com a violência perpetrada contra as ocupações e passeatas do MST nos anos 1990, ápice destas ações, têm sido capazes de resistir de formas inventivas e constrangedoras para os representantes da burguesia nacional via sociedade política ou sociedade civil. Retirar os sem-teto de um prédio abandonado no centro de SP é muito mais desgastante e socialmente problemático que expulsar trabalhadores sem-terra de propriedades agrárias no interior do país. Quem rouba e quem toma uma propriedade? Jovensestudantes e pessoas destituídas do direito à moradia preenchem de sentido, dúvidas e de uma práxis político-pedagógica estas casas vazias do espaço público, cada vez mais privatizado, cindido e invisível aos rostos humanos. Fortalecendo a experiência da partilha – no sentido rancieriano de comunidade – e trasladando o par perigo/ameaça da casa tomada, dos sujeitos que a tomam, para aqueles que a concentram, esterilizam e fenecem, assim como para a lógica da reificação, os artífices das ocupações do público em todo o país elaboram outras alteridades e renovam a política enquanto experiência do sensível. Lutas e sentidos: a ocupação como experiência Na tessitura empreendida até aqui objetivamos articular dois grandes eixos teórico-analíticos da sociedade brasileira hodierna: (i) as hegemonias vigentes e as (ii) alternativas de resistência democráticas sintonizadas com a dinâmica do tempo histórico e das classes subalternas. No centro de nossa abordagem, identificamos um contexto extremamente adverso para as lutas

sociais contra-hegemônicas que ensaiam novas formas ético-políticas (...) novas iniciativas (GRAMSCI, 2006, p. 314), como as ocupações: a) o par neoliberalismo-neoconservadorismo, antigos parceiros hegemônicos reoxigenados numa onda conservadora (BOULOS, 2016, p. 29) sem precedentes no pós-ditadura; e (b) o incremento da democracia blindada (DEMIER, 2017, p. 40), face da democracia liberal que regula seus núcleos políticos de decisão (parlamento, mídia, judiciário, ong’s, partidos, think tanks ²⁸ ) quase que impermeáveis às demandas populares. Como novas-velhas formas de enfretamento político, as ocupações, que ganham novo ímpeto a partir dos eventos de Junho e das recentes ações de estudantes secundaristas/universitários (com destaque para os primeiros), são analisadas nestes escritos, sendo a materialização da política como forma de experiência (RANCIÈRE, 2009, p. 16), mas não a experiência como conjunto de vidas ou vivências – Erlebnis –, mas como construção coletiva de sentidos, a Erfahrung benjaminiana que analisamos anteriormente nesta obra: aquilo que nos afeta profundamente, que nos significa, nos sensibiliza, articulando memória, narrativa e temporalidade com uma potência única. Há um corpo insepulto sob os escombros das catástrofes modernas, naturais e ontológicas. Trata-se da experiência, que em Benjamin não desaparece, mas dá início ao processo de morte em vida, ou seja, que não ocorre de forma abrupta. Cada vez mais conectados via tecnologias da informação e da comunicação, somos drasticamente (sobretudo nos últimos cem anos) e cotidianamente corroídos pelas formas de (anti)sociabilidade do/no capitalismo, impetuosas quanto à alienação dos sujeitos e à destruição dos sentidos sobre a existência, sejam eles “bons” ou “ruins”. Gourmetizou-se a comida e também as maneiras de se enterrar um morto e/ou de se celebrar o casamento; acessamos mais conteúdos e desconhecemos por completo nossos vizinhos e o professor que convive com nossa prole mais que nós próprios; estamos mais sós a despeito das câmeras, redes e algoritmos; adiamos aceleradamente afetos imprevisíveis e modos de sentir que nos vulnerabilizem diante do outro, este ser que devemos evitar e pesquisar sobre a vida antes de nos relacionarmos; nossa temporalidade é aquela que não chega : o passado na obsolescência célere, o presente como hiato do tempo-de-agora e o porvir que não é devir, mas dever. Onde estão as experiências como amálgama entre nós e aquilo que ainda é chamado de Cultura? Como indicamos, compreendemos que para Benjamin viver a experiência representa elaborar, partilhar e recuperar sentidos sobre a própria existência e sobre o mundo. A experiência benjaminiana é sobretudo dialética, ou seja, é processo do vir-a-ser já sendo e não uma meta ou uma seta apontando para a frente. Os sentidos , no plural, em aberto, porque sintonizados com a utopia e a liberdade, talvez sejam aquela dimensão da vida humana que se existisse como pílula mágica – uma vez que impossíveis no capitalismo – aliviaria as patologias da sensibilidade e tornaria a escola um espaço mais agradável; conferiria fisionomia aos acontecimentos mais pueris, objetificados em progressão geométrica, e musculatura às ideologias mais revolucionárias; aproximaria mais as pessoas, com ou sem Facebook e Instagram, bem como as relações sujeito-objeto, teoria-prática, políticaeconomia-cultura.

As ocupações de espaços públicos em seu encontro com o real, experimentado e medido pela subjetividade, constituem experiências do sensível que, de muitas maneiras, atingem as angústias dos sujeitos históricos no capitalismo periférico brasileiro, neste processo de crise do pacto social lulista e do reforço das hegemonias neo-neo. Parafraseando Badiou (2017, p. 14), “essa experiência toca tanto mais no real na medida em que assume o risco da angústia que se sente se ele vem a faltar ou, pelo contrário, a superabundar” . Para o filósofo francês, a angústia encarna um encontro com o real, que só é alcançado na medida em que é desmascarado (Ibidem, p. 23). O real é sempre algo que desmascaramos. Arrancar a máscara representa, para Badiou, um acontecimento (Ibidem, p. 28), indo ao encontro da categoria žižekiana aqui apresentada. No capitalismo, o semblant mais vigoroso é a democracia liberal, de tal modo que saídas e bandeiras democráticas (as democracias odiadas) em momentos de crise, como ocupar uma praça ou uma prefeitura, têm sempre sua linguagem e forma de ação rotuladas como violentas. Costurando Badiou (Ibidem) e Benjamin (2013), o rótulo traduz efetivamente o que a ocupação representa para as hegemonias vigentes sob o capitalismo: o acesso ao real via subtração de sua face mascarada será sempre uma práxis violenta, tendo em vista que é a violência quem instaura o direito dominante, que dialeticamente é a violência dominante materializada. Temos esquecido da centralidade das ocupações em muitas de nossas elucubrações acadêmicas e diagnósticos político-sociais. Notar a falta do que temos esquecido, como na reflexão de Saramago, significa, no caso das ocupações, resgatar talvez a experiência mais robusta enquanto criação de sentidos coletivos e de partilha da política. As lutas no capitalismo tardio não podem ser sintetizadas em uma única esfera, tampouco em uma só espacialidade/temporalidade. Todavia, há que se focalizar nos acontecimentos e experiências mais capazes de provocar um curto-circuito nas formas éticas, estéticas e políticas da hegemonia enquanto equilíbrio instável. Tomar a casa pode ser o primeiro passo para impelir seus donos ao movimento imprevisível – mas nunca inesperado – antes da chave ser jogada no bueiro. Começar pelos fundos, por onde os invasores acessam o imóvel no conto de Cortázar, pode ser a maneira mais inventiva de desmascaramento do real capitalista, tantas vezes invisível porque ainda não ficcionado. Considerações Finais Ainda que a exiguidade deste espaço para uma conclusão, dada a ênfase que optamos em conferir ao debate, acabe nos impelindo, de forma positiva, para considerações finais em caráter de abertura, entendemos que é possível apresentar, numa aproximação ao mesmo tempo panorâmica e minuciosa, que a preocupação com a experiência enquanto elaboração imprevisível, complexa e coletiva de sentidos, corresponde à marca mais sensível que objetivamos imprimir ao tratar dos processos recentes de ocupação de espaços públicos no país: as ruas heterogêneas de Junho , ainda um ponto cego para muitos analistas e teorias; as escolas, que trouxeram à cena política jovens que só costumam aparecer nos mass media

quando em preparação para o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) ou em seus conflitos existenciais; os espaços tomados pelo MTST em todo o país, aqueles lugares que só se tornam visíveis quando escandalizados, compreendendo o escândalo como o revelar de um pedacinho do real (BADIOU, op. cit., p. 15). Os sujeitos de Junho, os jovens secundaristas/universitários brasileiros e os sem-teto, talvez no contexto mais dramático da dimensão pública da vida social brasileira desde o final do regime civil-militar, quando maiúsculas hegemonias disputam pujantemente os rumos políticos, econômicos, pedagógicos e filosóficos dos espaços de poder, de saber, de morar, têm sido capazes de criar e recuperar morfologias de lutas, derrotadas ou vitoriosas; discursos políticos que ensaiam novidades em meio à velharia que a juventude costuma entender como outsider (carros de som com jingles cristalizados ou jograis, por exemplo); práticas democráticas comumente exógenas ao ambiente escolar público, como os coletivos de cultura, as rodas de debate, as ocupações, passeatas, os fóruns; e finalmente, as experiências que não são apenas vivências de algo fugaz, transitório, mas ações prenhes de sentido e de dúvidas, outro visitante cotidianamente indesejado nas salas de aula, nos grêmios estudantis, nos diretórios e centros acadêmicos, nas formações (des)continuadas, nos departamentos da universidade. Experiências políticas nos termos da Erfahrung , capazes de promover partilhas-comunidade, frear as fragmentações e a mudez, promover permanências e engendrar memórias plenas de significado, porque organicamente vinculadas à práxis humana. Na dinâmica multifacetada da periférica e complexa sociedade brasileira destes anos dois mil, capaz de misturar demandas e sentidos novos com bandeiras e símbolos de temporalidades em preto-e-branco, num perigoso jogo dicotômico e dicotomizador entre o agora e o ontem, cuja síntese tem sido majoritariamente mais à direita do espectro político, é imprescindível partir, como afirmou o próprio Benjamin em relação à obra brechtiana, não das boas coisas velhas, mas sim das más coisas novas. Más porque nos interpelam, deslocam e provocam reflexões impertinentes e, por isso, inadiáveis. 21 Que culminaram na deposição da presidenta Dilma Roussef, sob o pano de fundo do combate parcial, logo supostamente implacável, da corrupção e seus efeitos. 22 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. 23 Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. 24 Provocadas, sobretudo, pelas medidas antipopulares empreendidas pelo governo Temer (2016-2017), com destaque para a PEC 241-55 (que congela por duas décadas os investimentos públicos em educação e saúde) e a MP 746/2016 (reforma do ensino médio que flexibiliza e precariza a oferta de disciplinas e o trabalho do professor, além de permitir que notórios saber ganhem centralidade no exercício da docência), que atingem diretamente a estrutura educacional pública brasileira.

25 Com inúmeros projetos de lei tramitando no Congresso e em Assembleias Legislativas estaduais e municipais. Destacamos o projeto Escola Sem Partido (PL 867/2015) e o projeto que trata do assédio ideológico em sala de aula (PL 1411/2015), profundamente vinculados. Chama a atenção a profusão destas ações nos últimos três anos. 26 A partir sobretudo do espetáculo das delações da Operação Lava-Jato , com destaque para o famoso episódio divulgado na grande mídia (17/05/2017) envolvendo os donos/gestores da megacorporação JBS, maior produtora de proteína animal do mundo, e o presidente Michel Temer. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/dono-da-jbs-grava-temerdando-aval-para-compra-de-silencio-de-cunha-21353935 . Acesso em: jun. 2017. 27 “Achar a porta que esqueceram de fechar. O beco com saída. A porta sem chave. A vida.” (Leminski, 2013, p. 13) 28 Expressão polissêmica de origem inglesa que designa aparelhos privados de hegemonia elaboradores de políticas, pesquisas, pedagogias, estratégias. De origem militar, o nome dilatou-se a partir do uso mais corrente, sobretudo a partir dos anos 1970, com a profusão de instituições da sociedade civil, supostamente autônomas e de “interesse social”, focalizadas na elaboração de consensos nas esferas política, econômica, cultural, institucional, científica, em estreito vínculo com espaços de hegemonia. A FASCISTIZAÇÃO À BRASILEIRA ENTRE CONFORMISMOS E EXPERIÊNCIAS: GRAMSCI E BENJAMIN COMO PRISMAS Há coisas que me encerram ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto. ( Nalgum Lugar, Zeca Baleiro) Se nos perguntassem daqui a cem anos quais as imagens relativas às formas da vida social que o último século foi capaz de materializar, talvez o campo de concentração (primeira metade do século XX), a corporação capitalista neoliberal (segunda metade do XX) e o condomínio ²⁹ (duas primeiras décadas do XXI) sejam expressões paradigmáticas. Tais fotografias assumem o lugar de arquétipos poderosos, numa leitura macro, daquilo que fomos capazes de elaborar coletivamente num lastro de cerca de cento e vinte e

cinco anos. Objetivamos nesta tessitura enfatizar a violência como modo de vida e mecanismo de reprodução ampliada do capital, em distintos níveis, espacialidades e temporalidades. A articulação de violência e capitalismo, ao tratarmos deste recorte, não pode prescindir jamais da análise do fenômeno do fascismo, grau máximo da barbárie político-cultural, modelo inconteste do estado de exceção (BENJAMIN, 2012b) hodierno e mobilização de processos irracionais e regressivos. Retomaremos as três imagens mais à frente. Desde o surgimento do fascismo na Europa do entreguerras que o Brasil é território potencialmente fértil para esta forma de experiência que é também e sempre uma concepção de história. Abatedouro escravista dos mais longevos e monstruosos da modernidade, aqui se elaborou um tipo de sociedade capaz de fazer conviver a destruição completa de qualquer forma de alteridade com o verniz bovarista ³⁰ , presente nas obras de Machado de Assis e Lima Barreto, ou seja, o movimento de se compreender diferente do que se é, enquanto sujeito, povo, nação; um autoengano presente tanto nos de baixo quanto nas elites reacionárias, quase como um amálgama para menos que não se constrange em ser vil e santo, cínico e moralista, desumano e humano em demasia, estúpido e esperto, uma e outra coisa. O Brasil de hoje é o do colapso de pactos sociais hibridizadores de sentidos e demandas populares com estruturas intocáveis e intocadas. A crise do lulismo (BRAGA, 2012; SINGER; LOUREIRO, 2016) é ao mesmo tempo o ato final do processo de corrosão da Nova República, portadora de revoluções passivas e garantias burguesas ativas. A crise do pacto acelera dinâmicas sociais de elaboração difusa de vontades coletivas neofascistas ( fascistização ), sob os auspícios de torturadores de bem, milicianos da verdade e profetas da antidemocracia. O negacionismo de vanguarda, capaz de inserir o nazismo na esquerda, a ditadura de 1964 no vazio e a Guerra Fria na ordem do dia, trinta anos após sua débâcle , são episódios de uma narrativa obscurantista que não foi parida com a eleição de Bolsonaro. Graciliano Ramos em Vidas Secas assim descrevia o pensamento do vaqueiro Fabiano ao ouvir seus dois filhos duvidando das coisas do mundo: “E eles estavam perguntadores, insuportáveis” (RAMOS, 2008). Parecemos hoje o filho mais velho e o filho mais novo da saga nordestina. Inclusive com uma unidade mínima entre gerações quando se trata da diagnose do que foram os treze anos de governos do PT, leitura traduzida nas eleições de outubro de 2018. Há que se mudar tudo e se houve culpados não éramos nós, mas nossos inimigos, os professores da escola e da universidade, a comunidade LGBT, o próprio PT, os nordestinos, o Foro de São Paulo, os artistas drogados da televisão, o “kit gay”, os pedófilos comunistas, os não cristãos. Jair Bolsonaro (PSL) seria o artífice desta agressiva caçada aos que não consentem, um candidato que no início do ano eleitoral era mais impossibilidade que viabilidade, mesmo após o Golpe de 2016 e suas três veredas, jurídicas, parlamentares e nos mass media . Alguns momentos devem ser lembrados: a prisão de Lula em abril; o arrefecimento das candidaturas no espectro da direita, com destaque para Alckmin e o PSDB; a sintonia fina, por dentro de nossa democracia fantasmagórica ³¹ , do trio

citado, no silenciamento dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, sendo o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes o exemplo mais evidente; o atentado contra Bolsonaro em Juiz de Fora, no início de setembro; a avalanche de fake news via redes sociais, notadamente no WhatsApp , pró-Bolsonaro e com a participação direta de empresários e corporações contando com robôs disparadores de mensagens; a adesão de Edir Macedo e de sua Igreja Universal do Reino de Deus à candidatura do capitão da reserva, em 29 de setembro, ou seja, um mês antes do segundo turno; as ações coercitivas da Justiça Eleitoral nas universidades públicas de todo o país, inéditas se levarmos em conta a truculência e a sincronia, a poucos dias das eleições. Estas etapas, que não de maneira cronológica aprofundam o Golpe de dois anos antes, têm sido interpretadas de múltiplas formas, na academia, nas colunas jornalísticas, nos balanços políticos de partidos, militantes, organizações. Chama a atenção o fato de que a maioria destas análises obliteram consideravelmente a compreensão do fenômeno do fascismo no Brasil, presente em todo o século XX, com maior ou menor visibilidade e organização, bem como no início deste. Esta obstrução age em três direções: refutar o fascismo no Brasil ³² , debatendo a emergência de uma onda conservadora exógena e endógena; admitir elementos fascistas em nosso tecido societário, lançando mão de no máximo termos como protofascismo , filofascismo , neofascismo , por insegurança política, negação teórica; reafirmar o fascismo enquanto processo histórico e pragmatismo radical (KONDER, 1977), num país de maiúsculas brutalidades. Interessa-nos aqui demarcar a terceira vereda, ou seja, o fascismo como cultura: tempo, ideologia, conformismo, experiência, o que não significa que refutemos a concepção marxista defendida por Borón (2019), que compreende o fascismo enquanto uma forma excepcional do Estado capitalista. Endossamos esta perspectiva, mas entendemos que ela não dá conta, sozinha, da radiografia do fenômeno fascista, principalmente quando um autor, por exemplo Borón no texto em tela, é categórico ao dizer que as características do fascismo são “absolutamente únicas e irrepetíveis”. Desconsidera-se a recomendação de Konder ainda no final dos anos 1970, acerca do caráter histórico do fascismo, das “dimensões mundiais com que o fenômeno fascista pode reaparecer, modificado, em nossa época, no interior do capitalismo (...)” (KONDER, 1977, p. 107-108). o sistema se recusa a deixá-lo morrer, porque precisa dele: dá-lhe injeções, reanima-o, sugere-lhe sucedâneos para os alimentos que lhe faltam, guerras ‘localizadas’, guerras ‘intestinas’, ‘agressões internas’, etc. Se não é possível vendê-lo por atacado, tenta-se vende-lo no varejo, a prestações (Ibidem, p. 111-112). Nossas pesquisas recentes caminharam da segunda à terceira direção no esforço de entender o fascismo como um conformismo (ideologia tendente à homogeneização, de corte autoritário e reacionário) e ao mesmo tempo uma experiência (sentido comum, algo que nos afeta e aproxima de outros sujeitos semelhantes em termos de concepção de mundo). Antonio Gramsci e Walter Benjamin correspondem às objetivas da câmera que trazemos na bolsa e que este ensaio tenta enquadrar. Ambos foram incisivos adversários

do fascismo, mortos por ele. Vivendo na mesma época, teorizaram sobre a crise (da cultura, do marxismo, do capital, das esquerdas) e foram debatedores da cultura com críticas para dentro do materialismo histórico à altura dos desafios daquele tempo. A partir de suas reflexões planteamos que Bolsonaro – podemos já falar de bolsonarismo e bolsonarização? – representa um sentimento que compreende o antipetismo, mas o extrapola, manejando elementos fascistas – o pragmatismo da violência e a violência pragmática, o ufanismo raso, a eliminação de adversários comuns, a tutela de um líder (Bolsonaro como mito que possui até coreografias e marchas em sua homenagem), a defesa de uma ditadura constitucional, uma feroz cultura política, o irracionalismo, dentre outros. Löwy (2019), num artigo que merece matizes atualizados a cada dia novo deste ano, considera que o novo presidente, a despeito de não ter raízes com o fascismo integralista, dentre outras especificidades, é o político da conjuntura mundial que “parece o mais próximo do fascismo clássico”. Na última parte deste escrito tratamos de forma detida do caráter sui generis de nossa fascistização. Diferentemente de Plínio Salgado, dos militares do Regime, Jair Messias é nosso primeiro candidato efetivamente de massas da extrema-direita ³³ , com enorme capilaridade social, da burguesia até as classes populares, e uma plataforma resumida na tríade armas – defesa da família e da moral cristãs – nacionalismo tosco e entreguista. Da conexão entre distintos elementos de nosso autoritarismo histórico, num momento de descrença da política e suas instituições, forjou-se a imagem antissistema, outsider , inauguradora da nova política, sendo o partido de aluguel da vez, o PSL, o principal vitorioso em termos eleitorais. Obviamente, some-se a esta matéria-prima o caldo de cultura no Brasil contemporâneo que ao menos desde 2008, com a crise mundial, explicita a marca do avanço crescente do ódio enquanto política e dos ataques a grupos específicos identificados como apagáveis . Dos nove traços da personalidade autoritária vinculados à concepção fascista da vida, desenvolvidos por Theodor Adorno em 1950, temos na Escala F ³⁴ (de potencial fascista) cinco elementos que destacamos: 1) o cinismo; 2) a preocupação com o comportamento sexual; 3) a agressividade autoritária; 4) o poder e a rudeza; 5) a submissão à autoridade (1965). Neste pentateuco se encontram itens bastante perceptíveis no Brasil que pretende varrer a corrupção ao mudar tudo isso que está aí , mantendo tudo aquilo que sempre esteve lá onde se erige e se garante a hegemonia das classes dirigentes. Também Umberto Eco, na abordagem do Ur-Fascismo ou Fascismo Eterno (2019) elenca características históricas do fascismo e por isso recorrentes, para além do século XX e sob formas ainda por serem identificadas e investigadas. Dentre elas destaca o pensador italiano: o tradicionalismo ou recusa da modernidade; o medo da diferença e do diferente; o antipacifismo ou o constante estado de guerra; o elitismo que traduz o desprezo pelos fracos; o machismo que vilipendia mulheres e os grupos desviantes , como os homossexuais; o nacionalismo dentre outros. Bolsonaro é a síntese do processo de fascistização periférica que tem nascedouro no neoliberalismo e sua crise-condição . Octavio Ianni foi

certeiro em apontar que o nazi-fascismo é a religião do neoliberalismo (IANNI, 2004a). Com ele frisamos que os dogmas dessa religião são diretamente proporcionais à potência destrutiva da razão neoliberal, que nos anos 2000 ampliou sobremaneira sua capacidade de despossessão via espoliação. Temos assim uma junção de violências, com o desencantamento epidêmico do mundo, pavimentando processos massivos de alienação, adoecimento físico e psíquico, desmonte de políticas e dimensões públicas, aniquilação de resistências e sujeitos. Dois marcadores temporais são importantes aqui. A crise, no final do segundo governo de Lula da Silva, mas cujos efeitos recairiam sobre o período Dilma, e as Jornadas de Junho ³⁵ (2013), que colocaram na rua, sob diferentes vozes, a defesa de direitos sociais expressa na maiúscula insatisfação com os investimentos públicos em transporte, educação e saúde, e a crítica (heterogênea, seletiva, tendencialmente de matiz conservador e sob forte influência da conjuntura) da corrupção da/na sociedade política. O que se deu entre eles e também no imediato pós Junho merece a atenção de analistas, estudiosos. Elencamos neste breve texto alguns pontos a serem considerados. A profusão de programas policiais televisivos com forte apelo fascista (a datenização ); o crescimento exponencial das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, assim como da renovação carismática católica; o filme Tropa de Elite I (2007), laboratório do Brasil que passava a clamar, quase em catarse, por um estado de exceção capaz de matar ainda mais; a publicação da obra de Edir Macedo Plano de Poder: Deus, os cristãos e a política (2008), cristalina colocação da agenda da IURD e de seus apoiadores em termos de espaços no Estado; o Programa CQC ( Custe o Que Custar , de 2008 a 2015), na Tevê Bandeirantes, vanguarda da mitificação do então deputado Jair Bolsonaro; o Massacre de Pinheirinho, em São José dos Campos, em 2012, sob efusivo apoio de vários sujeitos e setores; o Programa Pânico , na Bandeirantes e Rádio Jovem Pan, de 2012 a 2017, com o quadro “Mitadas do Bolsonabo” e, finalmente, a Operação Lava-Jato (2014), judicialização da política em um novo patamar. Nosso processo de fascistização, com raízes mais ou menos profundas, é fruto do processo de fascistização no Estado Ampliado (COUTINHO, 2007) brasileiro, possuindo características singulares as quais compreendemos como marcas históricas de questões adiadas, não resolvidas ou acertadas de cima para baixo. O ódio ao pobre, explicitado na segregação socioespacial maiúscula, no genocídio diário de jovens de pele preta, na legitimação social das chacinas, limpezas sociais via milícias, nos números assombrosos do país em linchamentos e assassinatos de LGBT’s e mulheres; o luto e o trauma não vividos e partilhados da ditadura civil-militar, perceptíveis no boicote à Comissão da Verdade e às iniciativas políticas de reparação histórica às vítimas dos anos de chumbo; o adesismo de setores religiosos fundamentalistas e vinculados à teologia da prosperidade, com destaque para as igrejas evangélicas, com forte disseminação social, midiática, cultural, política, tendo nos Estados Unidos a referência primeva. Não é preciso muito para observar na família Bolsonaro o lugar do modelo estadunidense de sociedade, sobretudo na Era Trump, quando a identidade WASP ³⁶ é colocada em novo nível.

O presidente, discípulo de Olavo de Carvalho, representante do neofascismo em portadoras da internet, logrou colar os três arquétipos que citamos no início, a partir do trato de uma lógica tripartite emanada da sociedade civil brasileira, sensivelmente de seus setores dominantes. A lógica da morte (o campo), a lógica do capital (a corporação) e a lógica do inimigo (o condomínio). Não à toa a escola, que é alvo central das cruzadas do Escola Sem Partido, e a família de modelo único, preocupação dos fundamentalistas cristãos, garantiu a este projeto de violência-justiçamento uma vitória acachapante. Chamamos de ethos (neo)pentecostal-corporativo este sentimento que o Brasil tem sido capaz de fomentar, com marcas nossas, sobretudo o bovarismo e a subalternidade, a ponto dele ser um mantra social norteador na escolha de nosso chanceler, um conspirador cruzadista; nossa ministra das Mulheres, Família e Direitos Humanos, além dos índios, pastora que parece uma líder da Gilead da série The Handmaid’s Tail ³⁷ , e nosso ministro da Fazenda, um jogador do sistema financeiro e nato vendedor de varejo e atacado nos leilões da coisa pública. O pragmatismo da pequena política, triste legado dos anos petistas à frente da presidência, logrou efetivamente, com o fã do Cel. Brilhante Ustra, aquilo que Walter Benjamin apontou em 1921, em Para a crítica da violência : a autorização para uma violência administrada (BENJAMIN, 2013a), mantenedora do direito e, logo, legitimadora de experiências fascistas à luz do dia, atenuadas por justificativas várias desde as divinas até as de nosso pai, mãe, amigos em grupos de aplicativos de mensagens. Se somarmos às lógicas que descrevemos os atos do sacrifício (religioso ou capitalista) e da salvação (material ou transcendental) temos um fascismo à brasileira recheado de símbolos a exortar novos estudos e sensibilidades políticas. Na véspera da votação do segundo turno Bolsonaro apareceu num vídeo em sua casa, ao lado de seu negro de estimação, este com uma camisa com os dizeres “Minha cor é o Brasil” e na mesa uma caneca do BOPE. Não há gente, não há música, não há livros, não há pessoas representativas de lutas sociais, não há Deus. O homem negro não fala. É o vazio preenchido pelo medo, outro ingrediente que não pode faltar nos fascismos e que neste país tem superávit. A obscuridade narrada em primeira pessoa e com patente militar. Após a vitória uma oração. Festa na Barra da Tijuca, o bairro sem bairro. O apolítico que é político. A democracia antidemocrática que ama odiar. O Fascismo como Conformismo, Experiência e Tempo Quem fica com o tempo. Eu faço dele meu. ( Horizonte Distante , Los Hermanos) Entendemos o fascismo como um fenômeno de três dimensões dialeticamente vinculadas – o conformismo , a partir de Gramsci, a experiência em Benjamin e o tempo. Nossa hipótese, em breves linhas, é a de que o fascismo é articulação de experiência (sentido) e conformismo (homogeneização), numa ligação sensível com a temporalidade. Em estudos

recentes vimos trabalhando com estas noções, numa interpretação dos dois autores centrada num binômio para o qual estiveram atentos em suas intervenções políticas, em seus escritos fragmentados, em suas biografias marcadas pela violência fascista: crise-violência . Uma outra hipótese que trazemos, conectada à primeira, defende que o estado de exceção articula, engendra e refuta conformismos e experiências, encarnando o rosto hegemônico do Estado capitalista no tempo contemporâneo. O estado de exceção é condição-limite da sociedade burguesa e conteúdo real de nossa democracia, sendo exatamente, e não paradoxalmente, antidemocracia e um sistema jurídico-político violento e letal (AGAMBEN, 2004). Retomamos aqui as imagens que abriram o texto – o campo de concentração, a corporação capitalista neoliberal e o condomínio – no movimento da defesa do conformismo e da experiência enquanto fronteiras entre os dois filósofos marxistas, contemporâneos, e por diversas vezes domesticados em suas potências críticas, intra e extra materialismo histórico. Os três símbolos substanciam efeitos ou resultados diretos de crises políticas, sociais, econômicas, institucionais, culturais, da socialidade, da experiência. Ao mesmo tempo, traduzem experimentações da violência no século XX, expressões da guerra, dos mercados, das formas de territorialidade. Gramsci e Benjamin não viveram o neoliberalismo, tampouco acompanharam o processo chamado de condominização da vida social, pelo menos com a força e a morfologia do presente. Contudo, suas elaborações apontaram para o fascismo tanto como forma histórica de dominação burguesa quanto uma maneira de sentir, ou uma canalização do sentir, que precisam do nacionalismo, do irracionalismo, do autoritarismo, do cinismo, da desconstrução, da metamorfose via desencantamento do mundo. Daí decorre a defesa de que o conformismo em Gramsci, entendido enquanto socialidade e conformação do indivíduo à sociabilidade burguesa (GRAMSCI, 2006), e a experiência em Benjamin no sentido da Erfahrung , que interpretamos como partilha, elaboração coletiva de sentidos sobre o mundo (BENJAMIN, 1987, 2012a), representam chaves interpretativas válidas para o estudo do fascismo, uma vez que permitem interpelar aspectos das subjetividades que em muitos estudos são tratados de maneira secundária. Se o fascismo é ideologia, ele é hegemonia de sentido (BARRETO, 2009, p. 22) ³⁸ , ou seja, uma concepção de mundo vertebrada pela luta de classes, organicamente amalgamada aos sujeitos históricos e seus sentimentos. Em relação à dupla crise-violência, nenhum outro modo de vida total (EAGLETON, 2005, p. 56) como o capitalismo logrou manejar numa courte durée , com êxitos robustos, os dois elementos. O estado de exceção, regra na modernidade segundo a notável sentença de Benjamin na Tese VIII (BENJAMIN, 2012b, p. 13), é agente primordial na expansão ampliada do capital e no controle dos corpos e sonhos, sendo o fascismo-nazismo seus emblemas. Sobre o conformismo gramsciano é lapidar sua colocação no Quaderni 11 : “Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte?” (GRAMSCI, 2006,

p. 94). Gramsci tratou o conformismo de muitas formas. Destacamos seu entendimento enquanto um produto social garantidor da ordem hegemônica, como uma relação educativa entre as classes dominantes e subalternas. Manacorda intitula sua obra O princípio educativo em Gramsci: americanismo e conformismo (2008) numa direta referência ao texto Americanismo e fordismo de Gramsci, em seu Caderno 22 (GRAMSCI, 2007). Para o filólogo italiano, o par americanismo-fordismo corresponde ao par industrialismo-antiespontaneísmo, ao binômio técnica-moral, sem a qual a hegemonia não se erige nem se mantém no tempo. Segundo Manacorda, a dupla do vigésimo segundo caderno, sustentada pelo conceito de trabalho humano, é o ponto de chegada da busca gramsciana do princípio educativo . Os industriais norte-americanos compreenderam muito bem esta dialética presente nos novos métodos industriais. Compreenderam que “gorila amestrado” é uma frase, que o operário “infelizmente” continua homem e até mesmo que, durante o trabalho, pensa mais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, pelo menos quando superou a crise de adaptação e não foi eliminado: e não só pensa, mas o fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, e que ele compreenda que se quer reduzilo a gorila amestrado, pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas. Que uma tal preocupação exista entre os industriais é algo que se deduz de toda uma série de cautelas e iniciativas “educacionais”, que podem ser encontradas nos livros de Ford e na obra de Philip (GRAMSCI, 2007, p. 272). Benjamin se preocupou com a experiência desde seus escritos de juventude. Tal noção atravessaria sua obra culminando nos escritos dos anos 1930, quando o trato do empobrecimento e do isolamento da experiência na modernidade capitalista ganharia um patamar mais denso de discussão. Preocupou-se sobremaneira com a relação sensível entre narrativa, experiência e memória, numa análise da oxidação das formas de subjetividade tornada condição na sociedade burguesa. Benjamin soube observar as perdas consumadas, aquelas em processo e, sobretudo, antever as perdas vindouras. O fascismo não sem motivo foi alvo de suas inquietudes teóricas, de seus aforismos e a marca última de suas reflexões, nas Teses de 1940, onde fala para os materialistas históricos e tenta forjar, com as armas possíveis naquela hora escura, um mapa para o enfrentamento da barbárie normatizada: “Na verdade, de que nos serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela?” (BENJAMIN, 2012a, p. 86). São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1987, p. 197-198). Ao tratarmos o fascismo enquanto conformismo e experiência reivindicamos o par experiência/sentido burilado por Mitrovitch (2011), compreendendo que o fascismo demonstrou e ainda o faz, que não são precisos muitos ingredientes para que ação e ideologia marginais, alicerçadas no ódio e na crise e pouco elaboradas consigam criar condições para fissuras na represa das democracias burguesas, sobretudo na periferia do capitalismo ou onde

as cicatrizes históricas continuam ardendo. Por suposto o fascismo é sentido, é experiência, ainda que estes sejam portadores da catástrofe. O mesmo se dá em relação ao conformismo gramsciano e à experiência benjaminiana da maneira como as deciframos no agora. Defendemos que Gramsci não valorou o conformismo na sua obra em termos de positividade ou negatividade, e que Benjamin não dicotomizou ou rivalizou as duas formas de experiência ³⁹ com as quais trabalhou em seus textos da maturidade, por exemplo Experiência e Pobreza (1933), O narrador (1936) e Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire (1939). Em outras palavras, para o pensador sardo, a elaboração do conformismo poderia se dar de maneira autoritária, reacionária, gramatical, social etc. (LIGUORI, 2017, p. 138-139). Benjamin abordou o processo moderno de inflação da Erlebnis – uma experiência efêmera, fragmentada e sem vínculos com o passado – concomitante à corrosão da Erfahrung (BENJAMIN, 2012a, 2015) – formas de experiência prenhes de sentido, mais plenas, fixadas e marcadas pela memória – sem tratá-las como um jogo de soma zero onde mais experiência é necessariamente menos vivência . Em nossa interpretação, no interregno (não hiato ou vazio, mas durante, concomitante ), no processo histórico e por isso dinâmico de desvalorização da experiência e de mais volume do signo da vivência (KONDER, 1988) há terra fértil para uma experiência fascista , capaz de misturar passado e presente, isolamento e coletividade – comumente sob a forma do militarismo –, pedaços e unidade, sobretudo quando a desumanização está ainda em elaboração . O crítico alemão trata do vínculo entre experiência e sentido quando afirma que “a experiência é carente de sentido e espírito apenas para aquele já desprovido de espírito” (BENJAMIN, 2009, p. 23). Entendemos que se o fascismo não fosse experiência – existe experiência irracionalista? , perguntaríamos a Adorno – não atingiria e mobilizaria modos de subjetivação vários: o do desempregado que busca um bode expiatório para sua condição; o do desajustado socialmente que almeja ser aceito por algum grupo; o do “odiador”, os haters da atualidade, geralmente escondidos no mundo virtual, mas ansiando por colocar suas pulsões nas ruas e nas telas; o dos oprimidos e desamparados que de maneira comumente inconsciente demandam um Clube da Luta ⁴⁰ onde possam extrapolar suas energias; o dos sujeitos autoritários que passam a exigir um Estado que autorize sua agressão e seja ele mesmo seu exercício; o da classe burguesa e suas frações, seus preconceitos e seus privilégios, caminhantes das veredas antidemocráticas desde há muito. O medo enquanto afeto burila experiências que, no limite, encorpam sentidos e práticas fascistas, lembrando que o fascismo é capitalismo em sua veste mais autoritária. Retomando Benjamin e a experiência, mediação necessária para falarmos do fascismo como tempo, afirmamos que tal fenômeno e ncarna uma temporalidade que age, sob determinadas condições históricas e sociais, entre a corrosão da Erfahrung , autêntica experiência (LÖWY, 2005, p. 28), e a profusão da Erlebnis , a vivência imediata (Ibidem), um tempo ligado ao capitalismo, ao continuum da História, à uma modernidade do atraso, ao vazio e à homogeneidade, à brutalização. Essa temporalidade fascista pode ser exatamente aquilo que confere o caráter de experiência à emergência

(começo, protofascismo ) do fenômeno do fascismo. Então talvez esta cola entre temporalidade e o movimento duplo de crise de um tipo de experiência ( Erfahrung ) e de reforço de outro ( Erlebnis ) confira ao fascismo seu caráter histórico. Dizendo de outra forma é da junção heterogênea entre um tempo específico, que não são apenas os anos 1920 – o tempo fascista , do progresso, dos vencedores, da guerra –, com os resultados da equação experiência decadente/experiência ascendente – a potencial experiência fascista dos contextos de crise, que se cria condições para que o fascismo enquanto tempo-ação e patologia social surja. Seria esta experiência fascista a antessala do campo de concentração enquanto biopoder (FOUCAULT, 2010), este espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar regra (AGAMBEN, 2008)? Da violência oriunda da corporação capitalista neoliberal em seus processos de acumulação flexível e espoliação rígida teríamos elementos para uma racionalização instrumental (organizar, planejar, administrar, informar, comunicar, controlar) do caos com pontes possíveis para a experiência fascista ? A condominização da vida social em escala planetária não nos permite pinçar elementos da experiência fascista , por exemplo a definição de territórios e sujeitos inimigos, a decadência da comunidade, a vigilância constante e impiedosa sobre o outro, o controle dos corpos via organização forçada do espaço, da espacialidade? Nem todo ódio e nem toda violência são de corte fascista, obviamente, mas todo fascismo se vale destes dispositivos bélicos, seja na Alemanha hitlerista, na Hungria da Cruz Flechada, na Espanha de Franco, no que vemos hoje com Marine Le Pen na França, Rodrigo Duterte nas Filipinas e Jair Bolsonaro no Brasil. Lembrando Robert Paxton, o elemento normalidade deve ser considerado sempre ao se pensar no fascismo hoje, ou seja, se ele ainda é um corpus graditur isso se deve aos “movimentos de extrema-direita que aprenderam a moderar sua linguagem, a abandonar o simbolismo do fascismo clássico e a parecerem ‘normais’” (PAXTON, 2007, p. 334-335). Sentido, socialidade e temporalidade. Uma trinca comumente dissociada ou mesmo defenestrada nas análises sobre o fascismo, com destaque para o Jetztzeit e para os lugares da periferia do capitalismo, por diversas vezes subestimada por analistas e estigmatizada por especialistas, notadamente os de fora desta margem. O condomínio, a corporação neoliberal e o campo de concentração encontram exatamente nestas periferias do mundo capitalista experimentações que nos exortam ao estudo a contrapelo dotado da capacidade de atualização histórica. Brasil, Nigéria e Israel, por exemplo, são casos concretos, respectivamente, de cada um destes espaços arquetípicos. Sendo política e cultura, o fascismo é também tempo, concepção de história. Cada época tem seu fascismo, asseverou Primo Levi (2016). Trataremos a seguir, e como última parte do ensaio, do caso brasileiro nos dias atuais. A fascistização à brasileira ou O medo de dar nome ao boi como sintoma Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente. Quantos não foram os argumentos bem fundamentados com que

os judeus negaram as chances de Hitler chegar ao poder, quando sua ascensão já estava clara como o dia! Tenho na lembrança uma conversa com um economista em que ele provava, com base nos interesses dos cervejeiros bávaros, a impossibilidade da uniformização da Alemanha. Depois, os inteligentes disseram que o fascismo era impossível no Ocidente. Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros, porque são tão estúpidos. São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados na estatística e na experiência, as declarações começando com as palavras: “Afinal de contas, disso eu entendo”, são os statements conclusivos e s ólidos que são falsos. (Adorno; Horkheimer, Dialética do Esclarecimento) Porque mistério sempre há de pintar por aí. ( Esotérico , Gilberto Gil) Tanto o neoliberalismo quanto o neofascismo são resultados da fermentação político-cultural do capitalismo global em seus processos de reprodução, notadamente nos períodos mais agudos de crise. Nos últimos trinta anos, houve em distintas partes do mundo uma junção de violências, onde estes dois projetos moedores de gente e lutas reduzem as fronteiras hegemonicamente construídas entre economia, política e cultura. Enquanto a razão neoliberal incrementa o desencantamento, a reificação e o barbarismo via espoliação e despossessão, a História nos ensina, surge como solução à mão da burguesia exatamente mais violência, de onde o neofascismo se reproduz com menos constrangimentos. Podemos exemplificar, apontando ações bem na moda no Brasil que enterra a Nova República com a eleição de Jair Bolsonaro: fazer justiça quando a justiça não funciona, cobrando por isso (as milícias ou grupos paramilitares começaram em diversas regiões com esta insígnia); atacar e aniquilar supostos inimigos; privatizar as esferas públicas da vida; atacar a democracia, mesmo a liberal, reforçando exatamente suas carcomidas bases de sustentação; defender as limpezas sociais dos que não consentem, notadamente as minorias: negras e negros, mulheres, nordestinas e nordestinos, sem-teto, sem-terra e população LGBT. O Brasil do fim dos anos 2010 aprofundou suas tragédias resgatando um passado ideal que não existiu, negando as violências traumáticas sem luto de nossos últimos cinquenta anos, revigorando os guetos – mesmo com as inclusões via consumo e crédito do período lulista, que positivou demandas populares, porém não rompeu com as velhas estruturas de poder – e as caçadas de vingança que dão inveja aos filmes de Quentin Tarantino, hegemonizando o ethos neopentecostal-corporativo de forte matiz estadunidense, mas com a nossa cara na arte final. Finalmente, no processo de fenecimento da Nova República tivemos confirmado o estado de exceção como conteúdo real de nossa democracia (AGAMBEN apud RANCIÈRE, 2014, p. 27), que em 2016 alcançou a marca recorde de 61.619 pessoas mortas, 727.000 encarceradas ⁴¹ , dois anos após eleger o Congresso mais conservador desde 1964. Nos últimos dez anos, de acordo com o Atlas da Violência 2018 do IPEA ⁴² , 553.000 mortes intencionais ocorreram aqui, mais do que a Síria ⁴³ em quase uma década de guerra.

Em 2018, ano em que o gesto de uma arma atirando virou coreografia e quase um pavilhão do novo governo, tivemos a extrema-direita burilando a normalidade de Paxton, que citamos anteriormente, e adicionando doses maiúsculas de firehosing ⁴⁴ ou mentiras em fluxo contínuo e intenso, um verdadeiro vírus competindo com as matérias jornalísticas, pesquisas acadêmicas e tensionando o senso comum. Nossa defesa não é a da violência, solitariamente, sendo vetor explicativo do molecular, contraditório, complexo e multifacetado processo de fascistização na sociedade brasileira, mas a cultura da violência ou a violência-cultura, melhor dizendo. Esta é a dimensão mais problemática, historicamente, nos estudos sobre fascismos, majoritariamente centrados na política e na economia. Chamamos a atenção, no aprofundamento da fascistização no Brasil, para a cultura fascista ou o fascismo como cultura (STERNHELL, 1994; IANNI, 2004a ⁴⁵ ; GRIFFIN; FELDMANN, 2004; ECO, 2019), uma ativa e agressiva cultura política de origem burguesa e permeável a outras classes e estratos de classe. Observamos que Adorno (1995) em Educação após Auschwitz , ainda que não empregue tal expressão demarca a centralidade do fortalecimento de uma cultura crítica (uma cultura da crítica?) no esforço de criação de uma educação contra o fascismo. Benjamin, em Rua de mão única, enfatiza que “a crítica é uma questão de distância certa” (BENJAMIN, 2013b, p. 50). Qual nossa distância em relação ao fascismo no Brasil? Para além do integralismo ⁴⁶ ? Permanece presa ao séc. XX ou consegue ajustar seu foco para interpretar fenômenos novos-velhos do XXI? Materializando uma pujante conexão entre poder econômico e poder cultural (SEMERARO, 1999, p. 42), o fascismo é um tipo de estado de exceção, ainda que nem todo estado de exceção signifique fascismo. Atualizando a conexão de Semeraro para a crítica da fascistização brasileira atual, entendemos que em relação ao poder econômico a empresa capitalista neoliberal encontra um locus privilegiado, enquanto no que concerne ao poder cultural a práxis neopentecostal evangélica fundamentalista erige horizontes políticos e modos de subjetivação imprescindíveis no país onde religião e corporação mantêm relações profundas. Por aqui a democracia fantasmagórica é o resultado da cultura e da política do/no capitalismo (uma democracia-fetiche, fetichizada), onde somos expressão tardia, periférica e exemplarmente violenta, antidemocrática e de conciliações pelo alto, sendo nosso estado de exceção um dos mais bárbaros do mundo; e o efeito de uma sociedade nascida da colonização e da escravidão, cujos traumas, dívidas e (des)identidades nos bagunçam enquanto país sempre em obras, sob a marca do bovarismo brasileiro (KEHL, 2018), este autoengano coletivo que é uma das condições que definem o sujeito moderno. Nesta democracia, colapsada celeremente desde 2013, o ethos neopentecostal-corporativo , esta dimensão central do conservadorismo de direita por aqui ⁴⁷ , tem protagonizado processos de fascistização. Como sinalizou Leandro Konder nas últimas considerações de Introdução ao fascismo , “o conservadorismo tradicional era levado a se ‘fascistizar’, dentro de certos limites” (KONDER, 1977, p. 102). E continua: “os possíveis modelos de um regime fascista, neofascista ou fascistóide, nas condições atuais, não poderão ser desencavados do passado: precisarão ser inventados” (Ibidem, p. 103).

Frisamos que não defendemos a vigência de um regime fascista, tampouco de um governo fascista. O que vimos articulando neste escrito é a existência, bem anterior à eleição de Bolsonaro, de uma molecular fascistização no Estado Ampliado brasileiro, notadamente em suas esferas jurídicorepressivas. O capitão reformado do Exército assumiu o lugar de artífice desta vontade coletiva difusa, imprevisível e complexa, tendo no generalato ⁴⁸ (oito no início do governo, para o primeiro e o segundo escalões, em vinte e uma áreas ⁴⁹ ), na figura do juiz Sérgio Moro e na onipresença do economista Paulo Guedes, ambos com poderes de superministros, pilares inegáveis. Perguntamos com Konder: “a utilização do conceito de fascismo nos ajudará a compreender efetivamente alguma coisa de essencial nos movimentos conservadores ‘autoritários’ de que o mundo, nos últimos anos, tem sido tão rico?” (Ibidem, p. 106). Coerentemente respondemos também com ele: não se pode expulsar o conceito de fascismo da história que está sendo feita em nossos dias, exilando-o no pretérito, confundindo e desarmando as forças antifascistas (Ibidem, p. 107) exatamente nas horas mais decisivas da luta de classes, quando ondas conservadoras se tornam fascismos atualizados e sem manuais de instrução. O medo de nomear bois em Pindorama, sintoma histórico, arrastou consigo muita tragédia e arrasou incontáveis memórias. Nossa leitura da ditadura civil-militar de 1964 só permanece sendo piada em potencial porque hegemonizada pelo conservadorismo de direita e pela historiografia negacionista que estabelecem uma costura entre as classes sociais. Espalhando-se pela cidade, pelos subúrbios, a fascistização da vida social no Brasil alcançou seu ápice em 2018, após os processos de Junho e o Golpe de 2016, com a legitimação via urnas de um Estado policial democrático (SECCO, 2018). O bolsonarismo concretiza dramaticamente as inúmeras derrotas dos setores populares e da esquerda na Nova República, a despeito dos avanços democráticos duramente conquistados. Talvez a mais difícil de ser admitida seja a derrota da práxis ético-política, que marcou por tanto tempo a trajetória do PT, do MST, de setores progressistas da Igreja Católica e de tantos outros sujeitos coletivos de nosso tecido social. Uma derrota para a mentira tosca e manipuladora, alicerçada em nossos medos, preconceitos e alimentada pelo ódio como política. Talvez a mais catastrófica destas derrotas esteja no tipo de fascistização sui generis que estamos sendo capazes de erigir: antinacional, cristã neopentecostal e ultraneoliberal, destruidora de parques industriais, da ciência, da tecnologia e do território do Estado. Ocorre que, sem uma esquerda que represente um ser social reconhecível e uma herança histórica aceitável, a direita pode finalmente abandonar discursos universalizantes e se valer simplesmente da mentira. Tanto faz se seu sistema político não mobilize ninguém e que suas mensagens não tenham nenhuma credibilidade. Basta que apareçam por uma semana e depois sejam apagadas e substituídas por outra. Nesse quesito, o Brasil foi pioneiro. Sem um passado real de lutas nacionais coletivas, o conservadorismo não teve aqui nada a evocar, e as ladainhas da batalha de

Guararapes ou do genocídio no Paraguai jamais teceram uma memória de lutas igualitárias e republicanas. Um capitão do Exército, ainda que de carreira pouco exemplar, conseguiu ser o primeiro fascista antinacional, e as Forças Armadas apoiaram um golpe que pode desmontar a unidade territorial do Estado (Ibidem). Some-se a este processo um neoliberalismo já conhecido na América Latina, mas propulsionado pela crise e pelas ressacas à direita, após um início de século de governos mais progressistas, e temos um modo de vida neo-neo, com neoliberais e neofascistas – um fascismo ultraliberal e um neofascismo bolsonariano (SEMERARO, 2019) – assumindo o lugar de cola dos fragmentos oriundos da corrosão das experiência democrática e de incremento do conformismo burguês, num país que permanece de mal com o luto, com o trauma e com a crítica, mantendo nas valas sem identificação, do senso comum e do pensamento reacionário, a escravidão, a colonialidade, o terrorismo de Estado, os fascismos, o controle dos corpos não masculinos e héteros, a dizimação dos índios, favelados, trabalhadores organizados, daqueles que resistem às “imundícies cuidadosamente escolhidas” (BAUDELAIRE apud ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 24). O estado de exceção e sua democracia fantasmagórica forjou no Brasil um desencantamento profundo com sentidos comuns não violentos ou, em outras palavras, elaboramos em looping perspectivas de futuro que agem como pás na areia. A cada giro, cavamos mais fundo um (des)caminho de desencontro com a história dos vencidos, a geografia dos despossuídos, a economia dos sem nome, a sociologia da miséria, a política das classes. Nossa memória coletiva, atrofiada e atropelada, explicita também o abissal individualismo e a perda de sentido histórico burilados pelo capitalismo periférico (FERNANDES, 1968; 1973), pelas revoluções passivas (COUTINHO, 2007) e por nossa burguesia autocrática (MAZZEO, 2015). Todos estes fatores reforçam a existência de uma democracia fantasmagórica que todos os dias nos desprepara para o dissenso e nos educa para o conformismo alienado, majoritariamente através de pedagogias da violência corrosivas da experiência. Do conformismo de molde burguês e da impossibilidade da experiência enquanto partilha tem-se uma terra adubada para narrativas e práticas fascistas e fascistizantes, sob características impressas na/pela temporalidade, agravadas em um país campo-condomínio-empresa. O governo de Bolsonaro foi preparado por uma sociedade ultraviolenta a demandar mais armas ⁵⁰ , mais ingerência sobre a escola – para além do Escola sem Partido o “Universidade Sem Partido” -, mais controle sobre os corpos e liberdades de mulheres e LGBT’s, mais estetização da política, mais ódio ao pobre, mais passado pela frente. O fascismo enquanto cultura, recuperando o que citamos de Konder, é quando um novo modo de sentir passa a prevalecer. Em relação ao país dos nossos dias talvez seja arriscado dizer que a fascistização prevalece em termos de dominância, mas não é problemático apontá-la como uma patologia social a crescer num ritmo acelerado. Estamos mais pobres de democracia no Brasil ao mesmo tempo em que nunca ela ocupou tanto espaço no debate público. A experiência da violência se conecta diretamente

ao capitalismo – periférico, neoliberal, prenhe de colonialidades e carente de contrapontos – enquanto modo de vida. Safatle, ao analisar a obra de Christian Dunker (2015), colabora com este debate ao citar a experiência nacional e a proliferação de patologias sociais e mentais organicamente ligadas ao sistema social. Aceita, pois, a natureza indissociável da relação entre sofrimento e sistemas sociais, nada mais lógico do que perguntar como a experiência nacional e suas formas de sociabilidade fornecem quadros de circulação dos desejos e dos afetos, definindo especificidades das patologias mentais, que, afinal, são, ao mesmo tempo, modalidades de sofrimento que impõem restrições a formas almejadas de vida, mas têm também uma profunda dimensão de “patologia social”. (...) Na verdade trata-se de mostrar como o sofrimento psíquico é a expressão de um social ainda não reconhecido, ou não mais reconhecido, que continua a insistir como carta não entregue, promessa não cumprida (SAFATLE apud DUNKER, 2015, p. 10-11). As pessoas estão sempre despreparadas , disse Kafka em O Processo. Preparemo-nos para as tarefas inadiáveis do tempo-de-agora e para os mistérios que têm surgido por aqui há bastante tempo. Com ou sem nome, mas tendo sempre como endereço o capitalismo e suas fantasmagorias (des)encantadoras. 29 Os condomínios existem desde antes do XXI, mas de acordo com Dunker (2015) há uma epidemia dos chamados modernos condomínios , sobretudo nas últimas décadas. Para ele o condomínio expressa uma nova política de articulação das relações de alteridade e dos antagonismos sociais. 30 A obra O bovarismo brasileiro: ensaios (2018), de Maria Rita Kehl, é referência obrigatória para o trato da temática. 31 Uma democracia que é mercadoria (moeda de troca) e ao mesmo tempo uma projeção enganosa: um tipo de democracia cuja resultante, historicamente, é o par invisibilidade/impossibilidade. 32 Como na análise recente (janeiro de 2019) de Atilio Borón, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-caracterizar-ogoverno-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-grave/ . Acesso em: jun. 2019. 33 O breve artigo de Löwy (2019) recentemente publicado contextualiza os governos de extrema-direita (reacionária, autoritária e fascista) e elucida pontos importantes do governo Bolsonaro. 34 Em Educação após Auschwitz , de 1965, Adorno afirma que o estudo, de evidente caráter psicológico-social, não dava conta do fenômeno do fascismo tampouco o determinava, principalmente em relação à sua reincidência no tempo. Segundo ele era necessário deixar claro que a volta ou não do fascismo não era uma questão de ordem psicológica, mas de ordem social (ADORNO, 1995). 35 Se o espectro de Junho ainda existe para ser psicografado ou exorcizado teórica e socialmente, não restam dúvidas de que ali se deu um ponto de

virada importante no que tem sido chamado de fim da pacificação social (ARANTES, 2015) que caracterizou os governos de Lula (2003-2010). Os episódios daquele mês demarcaram politicamente a crise do pacto social lulista, que não foi completamente extinto, mesmo com o final do ciclo petista na presidência. 36 Sigla que significa White, Anglo-Saxon, Protestant . Identidade majoritariamente vinculada a uma concepção supremacista de sociedade. 37 Série estadunidense de 2016 baseada no livro de mesmo nome, de Margaret Atwood (1985). No Brasil a obra recebeu o nome O Conto de Aia. Gilead é uma sociedade teocrático-militar nascida de um golpe, nos Estados Unidos. Nela as minorias e toda forma de oposição são destruídas, com a exceção de centenas de mulheres escravizadas (como reprodutoras via estupro, domésticas, sacerdotisas etc.) pelo regime totalitário, controladas por mulheres fanáticas que assumem o papel de guardiãs da palavra de Deus se utilizando de violências física e psicológica. 38 No que diz respeito à ideologia, Barreto (2009, p. 22), a partir da contribuição de Norman Fairclough e da concepção gramsciana de hegemonia, defende que “em meio aos sentidos historicamente possíveis, um tende a ser mais ‘lido’ que os outros: é formalizado e legitimado, enquanto os demais sequer chegam a ser cogitados”. Em outras palavras, para a autora, na perspectiva histórico-discursiva, ideologia corresponde à hegemonia de sentido. 39 De acordo com Mitrovitch (2011, p. 79), em Benjamin a experiência não exclui a vivência, “mas a pressupõe e a ultrapassa”. 40 Referência ao paradigmático filme de David Fincher, Fight Club (1999, 151min, EUA), baseado no romance homônimo de Chuck Palahniuk (1996) e estrelado por Edward Norton e Brad Pitt. 41 Ambos são dados da Anistia Internacional disponíveis no Informe de 2017/2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/ 2018/02/informe2017-18-online1.pdf . Acesso em: jun. 2019. 42 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/ relatorioinstitucional/180604atlasdaviolencia_2018.pdf . Acesso em: jun. 2019. 43 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/total-demortes-violentas-no-brasil-e-maior-do-que-o-da-guerra-na-siria.shtml . Acesso em: jun. 2019. 44 Deriva da palavra em inglês firehose (mangueira de incêndio), por conta da intensidade e do volume de informações/dados falsos que são disseminados, principalmente nas redes sociais. Não é novidade em termos de tática, tendo sido chamada, por exemplo, de marketing de guerrilha por publicitários. 45 O sociólogo brasileiro trata de cultura nazi-fascista (IANNI, 2004a, p. 333).

46 Leitura fundamental no tocante à temática é a robusta tese de Gilberto Calil (2005), intitulada O integralismo no processo político brasileiro – O PRP entre 1945 e 1965: cães de guarda da ordem burguesa . 47 Unindo em torno de pautas distintas, mas alinhadas em termos de consensos à direita, Igreja Universal (Edir Macedo), Bancada Agro, economistas ultraliberais da Escola de Chicago, Assembleia de Deus Vitória em Cristo (Silas Malafaia), CEO’s de empresas como Riachuelo, Havan, Centauro, Magazine Luiza, Habib’s. 48 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/12/16/osgenerais-de-bolsonaro-quem-sao-os-militares-de-mais-alta-patente-nocirculo-do-presidente-eleito.ghtml . Acesso em: jun. 2019. 49 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/militares-jase-espalham-por-21-areas-do-governo-bolsonaro-de-banco-estatal-aeducacao.shtml?loggedpaywall . Acesso em: jun. 2019. Na matéria há um detalhamento preciso da presença militar das três forças na composição do governo Bolsonaro. 50 Bolsonaro, no décimo quinto dia de governo, assinou o decreto que cria facilidades para a aquisição e o registro de armas de fogo. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/15/posse-de-armas-saiba-o-quemuda-com-o-decreto-assinado-por-bolsonaro.ghtml . Acesso em: jun. 2019. SUSTO NA “CONTRARRUA” Quando Benjamin morreu, Brecht disse que aquela era a primeira perda séria que Hitler tinha conseguido infligir à cultura alemã. E fez um poema ( O rol das perdas) no qual falava de Benjamin como “O interlocutor / que sabia muito / e buscava o novo” (der Widersprecher / Vieles wissende / Neues suchende). (Leandro Konder, Walter Benjamin: o marxismo da melancolia ) • Publicado no Le Monde Diplomatique Brasil (internet) em setembro de 2018, sob o título Fantasmagoria e Susto. Disponível em: https:// diplomatique.org.br/fantasmagoria-e-susto/ . Acesso em: abr. 2019. O Brasil não é avesso à rua, historicamente falando. Desde a colônia, quando cidade era vila, fazenda era cidade e quase nada era público, a rua ou o não palácio, não igreja, não casa foi o lugar de lutas e a rugosidade concretoimagética de um tecido social sempre esgarçado. A parte principal da cidade no Império, aquela forjada como limite e não lugar, era exatamente ela, a rua, muitas vezes o espaço do possível porque ainda não reificada. A rua era o supermercado da escravidão, com seus pretos e pretas pintando com a carne mais em conta na feira cada metro quadrado que se abria nesta nação sempre em obras. Na rua ou na praça, esta rua de pausa, morreram mártires e anônimos, verteram-se memórias em silêncio. Ainda hoje a porta

da rua continua sendo a serventia da casa (de quem a tem). Na República a rua ganhou, supostamente, mais conotação de vereda da cidade que é de todos, ainda que leve para destinos sempre com donos e muros, placas, campainhas. Nela se deram inúmeros fatos, sociais ou não, mantendo-a, como diz Leminski, como a principal parte da cidade. Não citamos aqui casos ou personagens específicos, pois a mirada que objetivamos é breve, mas ampla. Contraditoriamente, a rua também é, na perspectiva histórica, a materialização da aversão brasileira aos ares democráticos, mesmo os de desenho liberal, liberalismo que por aqui é quase um filho bastardo do conservadorismo, um herdeiro que estudou na Europa e voltou para a propriedade de café do pai. Temos uma das maiores populações de rua do mundo, somos a nação que mais lincha no planeta (majoritariamente na rua), das que mais condenam o aborto e assassinam mulheres e jovens (negros sobretudo), quase sempre no que entendemos como rua: o lado de lá do aqui de onde estamos/falamos. Usamos a rua, mas não em sua profundidade. Não chegamos em seu fundo. Em Rua de mão única (1928), livro de apontamentos filosóficos livres já publicados em jornais e revistas, Benjamin empreende uma guinada em sua estrutura de pensar e escrever, sob forte influência de Paris, como a primeira tentativa, como ele mesmo afirma, de traduzir a relação com aquela cidade. Em uma carta a Scholem, afirma: “Os meus ‘aforismos’ resultaram numa curiosa organização, ou construção: uma rua que permite descobrir uma perspectiva de uma profundidade tão imprevista – e uso o termo em sentido não metafórico! (...)” (BENJAMIN, 2013b, p. 123). Em Eisenbahnstraße Benjamin erige a ponte para as Passagens (sua obra-prima), essa que chamamos de fundo, o limite extremo. Conseguir conferir concreticidade extrema (à uma época, no caso de Rua de mão única ), como aponta Benjamin a Scholem, em outra parte da carta, nos parece um mapa. Das coisas mais concretas que conhecemos, o susto talvez seja aquele que narramos com mais atenção aos detalhes. O susto e possivelmente o sonho. Sobre o primeiro, em “Rua” ( Artigos de armarinho ), Benjamin sentencia que ser feliz é poder tomar consciência de si sem levar um susto. Nos falta, ainda, o susto com nossa democracia fantasmagórica e fantasmagorizante, com nosso estado de exceção , com todos os tipos de bovarismos, com a cultura do arremedo de avanço com atraso, quase sempre tendo a violência nas duas pontas. Não o susto como percepção individual (“a democracia no Brasil não funciona!”), mas um susto que podemos chamar, bejaminianamente, de susto melancólico : uma antevisão da perda (total), um sintoma social, não um lamento. O spleen em nosso filósofo, assim como em Baudelaire no século XIX, é o sentimento que representa a permanência da catástrofe. Assustar-se melancolicamente, então, seria uma tomada de posição porque uma identificação coletiva, sintomática socialmente, que obviamente exige a crítica radical como dínamo. Identificação do quê? De uma democraciafantasmagoria, irreal, fantasmagórica, portadora de uma falsa aura (positiva), exatamente por ser uma ideia especulativa (Benjamin), uma assombração (Marx), um obstáculo à construção da democracia odiável e sem máscaras sobre a qual trabalham Rancière e Badiou, respectivamente.

Odiável quando com o rosto popular; mascarada quando com a face dominante historicamente imposta. Não há dúvidas de que aqui falamos de possibilidades, entendendo também o spleen benjaminiano como um duplo movimento, tanto de desenraizamento – anomia, corrosão da experiência –, quanto de resistência – as novas barbáries exigem ações numa temporalidade agudamente do presente, uma vez que o futuro existe como impossibilidade e o passado não mais retorna como foi. O susto também pode ser a antessala do movimento antifetiche/ antibovarismo/antialienação, fantasmagorias encontradas em qualquer esquina da cidade capitalista, capaz de provocar a leitura a contrapelo mais urgente, qual seja a percepção da democracia que temos como mercadoria e engano, brutalidade tornada cotidiana pela sociabilidade burguesa, uma brutalidade que no Brasil é ainda mais avessa ao susto, de tão acostumados com nosso bovarismo social de rótulo cordial e higiênico. No Brasil nos assustamos mais com a inclusão do que com a exclusão, com a democracia popular do que com as exceções dos mesmos, com a cor da pele do que com o crime, com as expressões populares do que com a heteronomia cultural, com as rupturas do que com as dependências, com a fome do que com o novo shopping vazio do bairro, com as ruas do que com as casas, com a ética do que com suas corruptelas e metamorfoses para menos, com o espectro do que com a coisa em si. Aqui há majoritariamente o susto de quem se perde no exato lugar onde está ⁵¹ [1]. Como não citarmos o susto aceito com o governo Bolsonaro (2019), lastreado no medo com afeto político, na agressão às classes populares, na insanidade obscurantista? O processo de fascistização no Brasil foi elevado a um novo patamar desde os processos que desaguaram em  Junho , no Golpe de 2016, na prisão de Lula, na judicialização da vingança, na militarização ainda maior da vida social, no olavismo como campo, no fundamentalismo de corte neopentecostal transmutado em política pública, no ódio talvez nunca antes experimentado em tão curto intervalo de tempo. O fascismo, por ser tempo, é experiência. Anda na rua, bebe nos bares, comunga nos cultos, vota nos pleitos, afaga e condena, hibridiza ordem e desordem, confere sentido aos desencantos, corrói a vivência democrática. Com ou sem placas de sinalização ele está na rua, que deve voltar a ser lugar de balbúrdia e metamorfose para mais. 51 Como no poema leminskiano Diversonagens suspersas , de “ais ou menos” (LEMINSKI, 2013, p. 220). POSFÁCIO Ronaldo Rosas Reis Uma das coisas mais extraordinárias e arriscadas da vida acadêmica é a possibilidade ampliada de conhecermos pessoas, as quais em algum momento te convidam para a honrosa, porém insólita tarefa de escrever o posfácio de uma obra de sua autoria sobre um pensador o qual ele, o nosso Autor, qualificou como... . Insólito . Talvez compreendendo minha aflição de aposentado, menos mal que o Rebuá tomou o cuidado de prescrever – no convite feito – liberdade para o tamanho e o espírito do texto. Sendo assim,

contando que os demais convidados darão conta da riqueza desta magnífica obra, e, sobretudo, obedecendo ao que foi solicitado, assumi a liberdade como palavra de ordem para comentar dois aspectos pouco usuais num posfácio: o título e a dedicatória. Um misto de surpresa e admiração me acercou quando tomei ciência do título do livro. Nenhuma exclamação, nenhum subtítulo, nada, enfim, se não a crua e franca afirmação: Insólito Benjamin . De início especulei sobre suas intenções (boas ou não). Estaria ele qualificando o conjunto da obra benjaminiana? Fosse isso, pensei no contexto histórico das revoluções europeias (nas artes, na Hungria, na Alemanha, na Rússia etc.) e nas circunstâncias particulares em que se encontrava o filósofo (um judeu de esquerda numa Alemanha em processo de fascistização) e assenti que insólito se adequava com perfeição aos ensaios de Walter Benjamin. Não obstante, a leitura dos textos que compõem esta magnífica coletânea de reflexões sobre a realidade presente a partir de Benjamin levaram as minhas especulações noutra direção, muito embora sem abandonar o pressuposto primeiro. Pensei então na sempre entusiasmada perspectiva histórica de Rebuá: “guardar algo para que não se perca”, no sentido mesmo do que ele atribui à Benjamin como qualidade, isto é, a permanência (junto da experiência e da rememoração) como um dos “três prismas singulares de diagnose das catástrofes modernas”. Atraído pelo incomum – como torcer pelo Botafogo, por exemplo –, Eduardo, longe de ser um cético, mas sem ser exatamente um otimista (nesse caso ele seria condenado pela torcida alvinegra!), guarda na sua memória político-afetiva aquilo que Walter Benjamin soube extrair como poucos em meio à barbárie do seu tempo, ou seja, nos dizeres de Miguel Vedda, “o exame consciente dos pressupostos de sua própria atividade” ⁵² . Nessa ocasião, Benjamin tinha seus olhos voltados para a crise do humanismo e da liberdade dos anos 1930, na qual apreendia com preocupação a crescente onda niilista que afetava os intelectuais europeus, criando uma situação em que para estes já não era possível “atuar de maneira espontânea” (Ibidem). Diante da dedicatória a Leandro Konder, passei da especulação inicial à quase certeza de que não foi por outro motivo que tanto o título como o tributo ao pensador marxista brasileiro se encaixam no espírito singular do guardar para não perder . Lendo a dedicatória, pensei nas gerações que chegaram ao pensamento marxista orientadas pelas publicações e traduções daquele que, como disse Antonio Cândido certa feita, “aborda o marxismo como uma filosofia em movimento” ⁵³ . Sendo jovem há muito mais tempo do que o fraterno amigo Rebuá, e tendo antes de mim outros jovens há mais tempo do que eu, calculo que, em mais de cinco décadas de militância filosófica, Leandro Konder abriu para uma multidão a primeira passagem para os textos de Benjamin, Lukács, Gramsci e outros mais, além dos escritos originais de Marx e de Engels. Num outro sentido, também apreendo na dedicatória desta obra uma preocupação semelhante a uma não muito antiga crônica de Luis Fernando Veríssimo: “Epa” ⁵⁴ . Nela Veríssimo especula como seria ser um judeu nas décadas de 1920 e 1930 na Alemanha, perguntando-se “em que ponto o

inimaginável se tornaria imaginável?”. Isto é, no momento em que a pregação nacionalista e as primeiras manifestações fascistas deixassem de ser um distúrbio passageiro na paisagem política e se materializassem na barbárie consagrada pela história. É nesse sentido de uma chamada à memória e à consciência que vejo na dedicatória de Rebuá o “Epa pessoal”, o reconhecimento da existência de um espectro funesto instalado no Brasil a exigir que reconheçamos o ponto imaginável em que, das trocas de insultos nas redes sociais e das ofensas em lugares públicos a autoridades e exautoridades, passaremos às vias de fato com as armas liberadas pela ignóbil família presidencial e seus asseclas mistificadores. Gostaria de concluir estes brevíssimos comentários sobre o Insólito Benjamin do fraterno alvinegro, com a expectativa de um presente algo mais ensolarado do que estamos experimentando no século de agora. Como suponho que parte dos leitores que, como eu, experimenta o privilégio de estar vivendo entre dois séculos, acho que ainda é um pouco cedo para dizer se o presente está ou vai ficar pior do que o século passado. Todavia, isso nada tem a ver com niilismo, sendo apenas uma forma de lembrar, com o nosso Autor, que para estancarmos o crescimento acelerado da patologia social encarnada na forma cultural do fascismo é necessário darmos nomes aos bois se não quisermos ser arrastados à tragédia que arrasou incontáveis memórias. Rio de Janeiro, outono de 2019. Ronaldo Rosas Reis é professor titular aposentado, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Comunicação e Cultura (UFRJ), com estudos pósdoutorais em Filosofia na Universidade de Buenos Aires e em Educação na UFMG. 52 VEDDA, Miguel. La irrealidad de la desesperación . Estudios sobre Siegfried Kracauer y Walter Benjamín. Buenos Aires: Editorial Gorla, 2011, p. 22-23. 53 Orelha do livro de Leandro Konder, Walter Benjamin . O marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Campus (1988). 54 VERÍSSIMO, Luis Fernando. “Epa”. O Globo . Rio de Janeiro, 2015. BIBLIOGRAFIA ADORNO, Gretel; BENJAMIN, Walter. Gretel Adorno y Walter Benjamin. Correspondência 1930-1940. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2011. ADORNO, Theodor W. et alii. La personalidad autoritária . Buenos Aires, Editorial Proyeccíon, 1965. ADORNO, Theodor; BENJAMIN, Walter. Correspondência, 1928-1940. São Paulo: Editora Unesp, 2012. __. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1995. p. 119-154.

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Eduardo Rebuá é professor adjunto de Educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor adjunto credenciado do Programa de PósGraduação (mestrado / doutorado) em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGE-UFF). Doutor em Educação pela UFF. Mestre em Educação pela UERJ. Bacharel e licenciado em História pela UFF. Coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UFPB (HECO -CNPq). Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (Nufipe-UFF). Organizador das obras “Gramsci nos Trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos” (2014); “Educação e Filosofia da Práxis: reflexões de início de século” (2016), em parceria com Pedro Silva, e “Pensamento Social Brasileiro: matrizes nacionais-populares”, em parceria com Rodrigo Gomes, Giovanni Semeraro e Martha D’Angelo (2017). Possui escritos sobre Benjamin e sua teoria, sendo o mais recente a organização do Dossiê Walter Benjamin da Revista CULT, de maio de 2019. © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ) Tel.: (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br [email protected] Coordenação editorial: Simone Rodrigues Revisão de textos: Júlia Vilhena Rodrigues e Renato de Souza Andrade Projeto gráfico e editoração: Estúdio Arteônica Capa: Portrait of Walter Benjamin Copyright © 2007 by Maira Kalman Used with permission of the Charlotte Sheedy Literary Agency, Inc. Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte (UFRRJ) Claudia Saldanha (Paço Imperial) Francisco Portugal (UFRJ) Ivana Stolze Lima (Casa de Rui Barbosa) Maria Cristina Louro Berbara (UERJ) Pedro Hussak (UFRRJ) Vladimir Menezes Vieira (UFF)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R243i Rebuá, Eduardo Insólito Benjamin / Eduardo Rebuá. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2019. 160 p. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8128-079-0 (Ebook) 1. Benjamin, Walter, 1892-1940 - Crítica e interpretação. 2. Capitalismo Aspectos sociais. 3. Filosofia alemã. I. Título. 19-60721 CDD: 193 CDU: 1(430) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. 1a. edição – 2019