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Portuguese Pages [216] Year 2001
Habermas Organizadores: Barbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet Coordenador: Florestan Fernandes
GRANDES CIENTISTAS SOCIAIS Textos básicos de Ciências Sociais, selecionados com a supervisão geral do Prof. Florestan Fernandes. Abrangendo seis disciplinas fundamentais da ciência social - Sociologia, História, Economia, Psicologia, Política e Antropologia a coleção apresenta os autores modernos e contemporâneos de maior destaque mundial, focalizados através de introdução crítica e biobibliográfica, assinada por especialistas da universidade brasileira. A essa introdução crítica segue-se uma coletânea dos textos mais representativos de cada autor. pode ser conside rado o último re presentante da Es cola de Frankfurt, com a morte de Adorno, Horkheimer e Marcuse. Não se limita, contudo, a continuar a tradição da teoria crítica. Influen ciado pelo pensamento anglo-saxônico bem como pelas grandes correntes da filosofia ale mã, tenta estabelecer uma ponte entre esses dois mundos aparentemente incomunicáveis. Assim, continuou a crítica ao positivismo, ini ciada pelos frankfurtianos, através de uma lei tura imanente dos principais autores anglosaxônicos. Da mesma forma, prosseguiu a crítica da cultura. Mas em vez de limitar-se a denunciar a unidimensionalização e a indústria cultural, Habermas tentou inserir essa crítica no contexto mais geral de uma teoria do capi talismo tardio. A seleção de textos, ao mesmo tempo que elu cida o pensamento de autores como H. Arendt, Scholem, Adorno, Marcuse, Bloch e Benjamin, situa-se com relação a eles, num movimento reflexo pelo qual a temática habermasiana ilu mina a reflexão desses pensadores, e estes, por sua vez, põem em evidência o pensamento de Habermas.
ISBN 85-08-03550-0
9788508035502
SUMÁRIO INTRODUÇÃO (por Barbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet),
9
PREFÁCIO AO LEITOR BRASILEIRO (por J. Habermas),
68
TEXTOS DE HABERMAS 1. 0 idealismo alemão dos filósofos judeus,
77
2. 0 conceito de poder de Hannah Arendt,
100
3. A Tora camuflada — Conferência comemorativa 119 do 80.° aniversário de Gershom Scholem,
4. Arte e revolução em Herbert Marcuse,
132
5. Theodor W. Adorno — Pré-história da subjetividade e auto-afirmação selvagem,
139
6. Ernst Bloch — Um Schelling marxista,
151
7. Crítica conscientizante ou salvadora — A atualidade de Walter Benjamin,
169
ÍNDICE ANALÍTICO E ONOMÁSTICO,
207
EDITORA AFILIADA
■> EDIÇÃO
Tradução'. Barbara Freitag, Sérgio Paulo Rouanet Copidesque'. Danilo Q. Morales e Marlene P. Crespo Coordenação Editorial: t Paulo S. M. Machado e M. Carolina de A. Boschi
Consultoria Geral: Prof. Florestan Fernandes ARTE
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Yangraf
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1SBN 85 08 035500
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“Para que um texto se torne audível numa língua estrangeira, é necessário, muitas vezes, produzir um novo texto, mais que uma tradução, no sentido habitual do termo.”
(Hab ermas)
© Textos para esta edição extraídos de:
Jürgen Habermas: Th. W. Adorno. Urgeschichten der Subjektivitãt— 1969. In: Phllosophisch-politische Profile. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1971. p. 184-99.
Bewusstmachende oder rettende kritik. Zur Aktualitãt Walter Benjamins — 1972. In: Kultur und kritik. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973. p. 302-44.
Herbert Marcuse: Über Kunst und Revolution •—• 1973. In: Kultur und kritik. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973. p. 345-52.
Hannah Arendts Begriff der Macht. Merkur, n. 371, dez. 1976, p. 946-60. Die verkleidete Tora. Rede zum 80. Geburtstag von Gershom Scholem. Merkur, jan. 1978, p. 96-104. Der deutsche Idealismus der jüdischen Philosophen — 1961. In: Philosophisch-politische Profile. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973, p. 37-66. Ernst Bloch — ein marxistischer Schelling — 1960. In: Philosòphisch-politische Profile. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973, p.'147^67.
Foto: Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main.
Barbara Freitag (Doutora em Sociologia pela Universidade Técnica de Berlim) Professora de Sociologia e Psicologia Social: Universidade Técnica de Berlim (1968-72) Universidade de Brasília (1972-1976) Universidade de Zurique (1978-1979) Universidade de Freiburg/i.Br. (1979)
Sérgio Paulo Rouanet (Doutor em Ciência Política pela USPJ Professor de Relações Internacionais e Sociologia Política: Academia Diplomática de Viena (1964) Instituto Rio Branco (1964-1965) Pontifícia Universidade Católica do Rio (1965)
Localização do autor
I Jürgen Habermas nasceu em 18 de junho de 1929, em Düsseldorf. De 1949 a 1954 estudou Filosofia, História, Psi cologia, Economia e Literatura alemã nas universidades de Gõttingen, Zurique e Bonn. Doutorou-se nesta última cidade, em 1954, com uma tese sobre “O Abso luto na História- — um Estudo sobre a Filosofia das Idades do Mundo, de Schelling”. Em 1961, conquistou a livre-do cência pela Universidade de Marburgo, com uma tese sobre “Mudanças estrutu rais do espaço público”. Desde que assumiu o cargo de assis tente de pesquisa no Instituto para Pes quisas Sociais, de Frankfurt (1956-59), Habermas tem-se dedicado intensamente a atividades acadêmicas. Entre 1961 e 1964 foi Professor de Filosofia e Sociologia da Universidade de Frankfurt. Em 1971, exerceu as fun ções de Professor Visitante da Universidade de Princeton.
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Habermas, que recebeu várias distinções acadêmicas (em 1976 foi laureado com o prêmio Sigmund Freud, da Academia Alemã de Lin guagem e Prosa, em Darmstadt), ocupa atualmente o cargo de Diretor do Instituto Max Planck, em Starnberg, que se_ propõe pesquisar as condições de vida do homem na__civilização técnica e industrial.
O non^e de Habermas está intimamente associado ao da Escola de Frankfurt. Com a morte dos seus fundadores — em especial, Adorno, Horkheimer e Marcuse •— PIabermas_é _considerad o o _últim.Q-Represen tante da teoria crítica da sociedadeí Esta introdução e os textos incluídos nesta colefaneaTTarão ao leitor os elementos para julgar até que ponto essa classificação é verdadeira, ou até que ponto as modifi cações por ele introduzidas nos postulados da teoria crítica são sufi cientemente decisivas para colocar em dúvida tal classificação. De qualquer modo, nascido em 1929, seis anos depois da fundação do Instituí für Sozialforschung, Habermas não pertence _à^mesma geração .de Adorno e Horkheimer. Não0partilhou, assim, a experiência do exílio — em Genebra, Paris e Nova York — que marcaria com alguns dos seus traços a atividade intelectual dos seus fundadores. Seu primeiro contato pessoal com eles ocorreu depois da guerra, quando retornaram à Alemanha. Em 1954, foi convidado pelo Instituí a participar de uma discussão sobre Habermas, como teórico crítico, está em pleno andamento na Alemanha, França, Estados Unidos e mesmo no Brasil. Ao leitor interessado em seguir estes debates, citaremos alguns títulos selecionados: Na Alemanha', cf. Wellmer, A. Kritische und analytische Theorie [Teoria crítica e ciência analítica]. In: Marxismusstiidieii [Estudos sobre o marxismo], v. VI, 1969. p. 187-239; Apel, C.-O. Wissenschaft ais Emanzipation? Eine kritische Würdigung der “Kritischen Theorie” [Ciência como emancipação? Uma avaliação crítica da “Teoria Crítica”]. Zeitschrift für allgemeine Wissenschaftstheorie [Revista de teoria geral do conhecimento], v. I, 1970, p. 173-95,\Hahn, E. Die Frankfurter Schule im Lichte des Marxismus — Zur Kritik der Philosophie und Soziologie von Horkhe imer, Adorno, Marcuse, Habermas. Frankfurt/M., Verlag Marxistische Blãtter GmbH, 1970. Na França', cf. Étude: Du concept à la contestation: 1’École de Frankfort. (Aqui, especial mente: Les recherches actuelles: J. Habermas, de G. Hohn.) Le Monde, 25 out. 1974, p. 21; Zima, P. I/Êcole de Frankfort. Paris, 1974 (Col. Citoyens). Nos Estados Unidos'. Schroyer, T. The dialectical foundations of criticai theory. Telos, n. 12, 1972, p. 93-114. No Brasil: Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969. Escola de Frankfurt (com um suplemento ilustrado sobre a vida e obra de Benjamin, Adorno, Horkheimer e Habermas). São Paulo, Abril Cultural, 1975 (Os Pensadores, XLVIII). Freitag, B. A Sociologia na Alemanha de hoje. Debate & Crítica, n. 2. 1974. p. 60-89; Chacon, V. História das idéias sociológicas no Brasil. São Paulo, EDUSP & Grijalbo. p. 131 et seqs.
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pesquisa sobre os estudantes e a política2. Sua vinculação formal ao Institui limitou-se ao período do. magistério em Frankfurt, entre 1964 e 1971.
n Em seu prefácio a este volume, Habermas esclarece as razoes que motivaram a escolha dos textos aqui reunidos. Parece-nos que um autor, como Habermas, cujo pensamento se foi cristaliz&ndo no confronto crítico com outros autores, pode se revelar de uma forma mais rica precisamente em textos que incorporam essa reflexão.
Os autores escolhidos •—■ H. Arendt, Scholem, Marcuse, Adorno, Bloch e Benjamin — são especialmente apropriados para ilustrar esse jogo de espelhos ’ em. que o pensamento de Habermas se toma mais inteligível à luz de sua confrontação com outros, e estes adquirem con tornos mais diferenciados a partir da reflexão com que Habermas tenta pensá-los, pensando-se, com isso, a si próprio. Como ponto de partida para o exame desses pensadores — todos judeus —, os organizadores tomaram a iniciativa de colocar como primeiro texto da coletânea um artigo sobre a influência da mística judaica na filosofia alemã, artigo que pode proporcionar um marco genérico para compreender a relação desses pensadores entre si, e de Habermas com cada um deles e com o conjunto da tradição cultural em que estão inseridos. A escolha desses textos impôs aos organizadores um método muito especial para elaborar a apresentação da obra de Habermas. Tomou-se necessário, em outras palavras, defini-la em dois níveis: um nível des critivo, em que essa obra é resumida em traços muito gerais, e outro nível, mais dialético, em que ela será situada em termos relacionais, num diálogo, muitas vezes polêmico, mas sempre revelador, com os diferentes pensadores. 2 Student und Politik. Eine soziologische Untersuchung zum politischen Bewusstsein Frankfurter Studenten [Estudante e Política. Um estudo sociológico sobre__a_CQnsciêncía política_dos_e&tudantes^de Frankfurt]. Obra coletiva de J. Habermas, L. v. Friedeburg, C. Oehler e F. Weltz, Neuwied-Berlin, Luchterhand Verlag, 1961. Trata-se de uma continuação, na Alemanha de pós-guerra, da “Authoritarian Personality”.
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A obra: características gerais O ponto de partida para a apresentação sistemática da obra de Habermas pode ser o tema, que unifica os seus diferentes momentos, da mediação entre a teoria e a prática. Esse tema é tratado (1) numa perspectiva epistemológica e (2) numa perspectiva político-cultural, am bas integradas (3) numa teoria da competência comunicativa. É em tomo desses três complexos temáticos que organizaremos nossa exposição.
1. A perspectiva epistemológica
A abordagem epistemológica é explicitada em vários livros e arti gos, entre os quais sua conferência inaugural em Frankfurt, intitulada “Conhecimento e Interesse” 8, em um livro com o mesmo título 34, e em vários ensaios nos quais polemiza com diferentes correntes do positi vismo, como a teoria sistêmica de Luhmann5, e a filosofia de Popper6. O traço comum desses trabalhos é a crítica do positivismo, que assume sua forma mais metódica em Lógica das Ciências Sociais7, no qual reconstitui a história da reflexão metodológica sobre as ciências humanas, mostrando como as insuficiências do empirismo puro (Nagel, Carnap) vão dando lugar a tipos de reflexão, como a hermenêutica, de Gadamer, que tentam sub^tituimo^ejjíoflue^jahj^iw se situa como um ohser_vador_neutr.o_diante^dQ«semobieto^.p.elQ_Egz^teh.gn< a compreensão, que supõe a imersão do interprete_.,e.in .seu objeto j— cultura — que ele consegue captar, na medida em que dela participa. 3 Habermas, I. Erkenucnis und Interesse [Conhecimento e interesse. In: Escola de Frankfurt, São Paulo, Abril Cultural, 1975]. In: — . Technik und Wissenschaft ais Ideologie [Técnica e ciência como ideologia]. Frankfurt/M-, Suhrkamp Verlag, 1973. p. 146-68 (ed. brasileira pela Inter-Livros, Belo Horizonte). 4 Habermas, J. Erkenntnis und Interesse, Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1968 (2. ed., 1973, com post-scriptuni), 5 Habermas, J. e Lijhmann, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie — Was leístet die Systemforschung? [Teoria da sociedade ou tecnologia social — Qual a contribuição da teoria sistêmica?]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1971. 6 Habermas, J. Analystiche Wissenschaftstheorie und Dialektik [A teoria da ciência analítica e a dialética]; Gegen einen positivistisch halbierten Rationalismus [Contra üm racionalismo dividido pelo positivismo]. In: Adorno, Th. W. et alii. Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie [A disputa do positivismo na sociologia alemã]. Neuwied-Berlim, Luchterhand Verlag, 1969. p. 155-92 e 235-66, respecti vamente. O primeiro dos artigos citados está contido em Escola de Frankfurt (Os Pensadores, XLVIII). 7 Habermas, J. Zur Logik der Sozialwissenschaften [Lógica das Ciências Sociais]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1970 (1. ed., 1967).
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Mas é em Conhecimento e interesse q_ue_Elabermas leva mais longe sua reflexão epistemológica. É neste livro que ele desenvolve os funda mentos de sua teoria dos interesses cognitivos. Aqui, ele postula a unidade indissociável de conhecimento e interesse, tanto para as ciências naturais quanto para as ciências histórico-hermenêuticas. Habermas procura demonstrar que a neutralidade das, ciências, enfaticamente exi gida por Weber Utambém^p.axa^as-ciências„so.ciais?_é._uma_exigên.cia que não resiste, ao exame_críti£o_das condições do conhecimento como tal. Este sempre está, arraigado _em certos interesses (erkenntnisleitende Interessen) que assumem, tanto para as ciências naturais quanto para as histórico-hermenêuticas, a função de a prioris do conhecimento. Habermas desmascara, assim, a aparente “neutralidade” das ciências naturais, revelando o “interesse” que orienta o processo do conhecimento das mesmas como ^Interesse, técnico de dominação da natureza. Em con trapartida, o interesse que orienta o processo de "conhecimento das ciências histórico-hermenêuticas é o da comunicação. O interesse técnico se enraíza nas estruturas da ação instrumental, baseada em regras técni cas, pelas quais o homem se relaciona com a natureza, submetendo-a ao seu controle. O interesse comunicativo se enraíza nas estruturas da ação comunicativa, pela qual os homens se relacionam entre si, por meio de normas lingüisticamente articuladas, e cujo objetivo é o entendimento mútuo. Ambas as formas de conhecimento, geradas pelos respectivos interesses, servem a um interesse mais fundamental: o da emancipação da espécie. O conhecimento instrumental permite ao homem satisfazer as suas necessidades ajudando-o a libertar-se da natureza exterior (por meio da produção); o conhecimento comunicativo o_ impele a emanci par-se de.loda^asJformas^d£Lj^pressão_s.o.cial (ou de seus representantes intrapsíquicos). Ambos estão, portanto, a serviço da emancipação. Esta é ao mesmo tempo um fim em si e um marco dentro do qual a teoria crítica consegue perceber as demais ciências, e a si própria, como interessadas. É na intenção de desvendar e recuperar estes pressupostos do conhecimento que Habermas procura, em Conhecimento e interesse, fazer uma pré-história do positivismo (da mesma forma que fizera sua história, na Lógica das Ciências Sociais8.) Pois, somente através da
os momeutp.s^repiimidos, ocultos, distorcidos,_pelo processo históxjco-do-. conhecimento, podem....ser_recuperados, reelaborados e conscientizados, permitindo redes cobrir o interesse fundamental, o da__emançipação.* &. 8 Cf. Freitag, B. Habermas e a teoria do conhecimento como teoria social. Debate &. Crítica, n. 4, 1974, p. 61-82. Este artigo faz uma resenha dos dois livros.
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Interrogando os diversos autores, a partir de Hegel, Habermas mostra como a intuição fundamental de Kant — a de que a objetividade do conhecimento é constituída e condicionada por princípios e catego rias a priori — foi sendo obliterada, com isso abrindo caminho para a ilusão objetivista, pela qual a ciência acredita na existência de uma relação não-mediatizada entre a consciência e o real. Mas essa mesma interrogação ~leva-o a distinguir, em Peirce e Dilthey, a latência, não de todo perdida, da reflexão transcendental, e com isso consegue reconsti tuir, no primeiro, um a priori fundador das ciências naturais, e no segundo, um a priori fundador das ciências histórico-hermenêuticas. Situando esse a priori, não nas estruturas de uma subjetividade transcen dental, como para Kant, mas no processo de autoformação de uma espécie humana que se produz e se reproduz no duplo contexto da ação instrumental e da ação comunicativa (ou interação), Habermas chega à teoria dos interesses cognitivos. Essa teoria toma-se mais precisa quando Habermas descobre, em Freud, última etapa de sua auto-reflexão fenomenológica, o paradigma de uma ciência crítica, que assume explici tamente seu enraizamento num interesse: o da dissolução das estruturas patológicas que inibem a livre comunicação do sujeito consigo mesmo e com os outros.
2. A perspectiva político-cultural Admitindo-se que a crítica ao positivismo tenha constituído o fio vermelho que traspassa, todos os trabalhos de cunho epistemológico, a crítica do Estado e da sociedade é o fio condutor dos estudos que, de uma perspectiva político-cultural, procuram elucidar a relação de teoria e prática. Inserem-se neste contexto os trabalhos do “jovem” Habermas.,^4. mudanças estruturais—do^espaço .públicoQ e a introdução teórica ao estudo sobre o Estudante e a política, anteriormente citado. O “espaço público” aqui é visto como aquela instância na qual se forma a opinião (nos salões, durante 0 século XVIII,__o.u _através de livros, e jornais), opinião que tinha no Jnício funções criticas .com relação ao poder, e mais tarde foi refun.clojaa]iz;ada_pAra^,. canalizar o assentimento dos governados-^—--» Dentro dessa perspectiva político-cultural adquirem, porém, maior peso os trabalhos sobre o Estado e as modernas formas de legitimação 9 Habermas, J. Strukturwandei der Ôffentlichkeit. Neuwied-Berlin, Luchterhand Verlag, 1962.
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adotadas pela sua variante tecnocrática. Neste contexto, cabe mencionar especialmente os seguintes trabalhos: Técnica e ciência como ideologia 10, 11 Os problemas de legitimação do capitalismo tardio13-, alguns ensaios contidos na coletânea Cultura e crítica 12 e em Reconstrução do mate rialismo histórico 13. O tema central em todos esses trabalhos é a carac terização do capitalismo tardio. A sobrevivência__das sociedades do capitalismoJtardi(ijdeip^ndeJ|a crescente intervenção do Estado na estru tura .econômica. Esta se dá sob a forma da manutenção e da ampliação da infra-estrutura material e social (setor de transportes, comunicações, sistema de saúde, educacional, etc.) como sob a forma de investimentos diretos em empresas de alto custo e baixo rendimento, cuja funpão principal consiste em manter a competitividade das indústrias nacionais no mercado internacional (como é o caso da indústria espacial e_-de aviação, atômica e de armamento, _etc.). Grande ênfase é dada sobre tudo à criação de grandes centros de pesquisa estatais (big science e developmental research) que permitem a socialização dos altos custos do desenvolvimento da pesquisa e da tecnologia, consideradas funda mentais para a manutenção e o crescimento da reprodução ampliada. O Estado apodera-se aqui de um instrumento do qual vai favorecer-se duplamente. Q fato de a ciência e a tecnologia hoje assumirem o papel de verdadeiras.forças-pxodutivas, sem as quais o crescimento • econômico dentro do quadro de referência do capitalismo não poderia ser mantido, significa que um Estado que as controla, manipula e promove, trançforma-se, ele mesmo..__no_ “promotor” do progresso, e do bem-estar coletivO—Ao mesmo tempo que sua política de mobilização destas forças produtivas (ciência e técnica) é coroada de êxito, dando-se o crescimento econômico, ele encontra uma nova forma de legitimação. A ideologia da troca de eqüivalent-es, que legitimava a existência do Estado liberal, pode agora ser abandonada em favor da ciência e da técnica. Essas assumem, assim, também o papel de ideologia. Toda ideologia (como__veremos a seguir) tem como função impedir a tematização _dos_ fundamentos do,_poder. As normas vigentes não são discutidas porque são apresentadas como legítimas pelas diferentes visões do mundo que se sucederam na História, desde as grandes religiões até 10 O artigo publicado na coletânea de Habermas de mesmo nome (cf. nota 3) está contido em Escola de Frankfurt (Os Pensadores, XLVUI). 11 Habermas, J. Legitimationsprobleme im Spatkapitalismus. Frankfurt/M., Suhr kamp Verlag, 1973. 12 Habermas, J. Kultur und Kritik. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1973. 13 Habermas, J. Rekonstruktion des historisçhen Materialismus, Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1976 (especialmente a parte IV sobre legitimação).
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certas construções baseadas no direito natural, das quais a doutrina da justa troca, fundamento do capitalismo liberal, constitui um exemplo, A ideologia tecnocrática partilha com as demais ideologias a caracterís tica de tentar impedir a problematização do poder existente. Mas dis tingue-se radicalmente de todas as outras ideologias do passado porque é a única que visa esse resultado, hão através da legitimação das normas, mas através da sua supressão: o_poder não é legítimo por obedeceria normas legítimas, e sim por obedecer a regras, técnicas.,_das quais, não se exige que sejam justas, e sim que sejam .eficazes. Se os fundamentos do poder não precisam ser tematizados, não é porque repousam sobre uma normatividade legítima, e sim porque não existe, a rigor, o que legitimar: a lógica das coisas, sendo o que é, não pode ser alterada por decisões políticas. A ideologia tecnocrática é muito mais indevassável que as do passado, porque ela' está negando, na verdade, a própria estrutura da ação comunicativa, assimilando-a à ação instrumental. Pois enquanto aquela, como vimos, se baseia numa intersubjetividade fundada ém. normas, que precisam ser justificadas (mesmo que tal justificação se baseie em falsas legitimações), esta se baseia em regras, que não exigem qualquer justificação. O que está em jogo, assim, é algo de muito radical, que é nada menos que uma tentativa de sabotar a pró pria estrutura de interesses da espécie, que inclui, ao lado do interesse instrumental, também o interesse comunicativo. A consequência da nova constelação é que as decisões práticas que afetam a coletividade são agora transformadas em problemas técnicos, resolvidos por uma minoria de experts, que têm o know-how necessário. Impõe-se uma despolitização das massas. Esta passa a ser consequência e requisito da nova forma de dominação, legitimada pelo poder de coação (JSachzwãnge) da racionalidade técnica. A redução das decisões políticas a uma minoria (a nova elite dos tecnocratas) .significa ao mesmo tempo um esvaziamento da atividade prática em todas as ins tâncias da sociedade (política, social e mesmo econômica) e a penetra ção do Estado (instância política) nas duas outras, submetidas a uma crescente administração 14. 14 Cabe mencionar neste contexto ainda um grupo de trabalhos de Habermas, nos quais ele procura analisar como esse impacto da ciência e da tecnologia nas esferas política e econômica repercute, por sua vez, sobre a organização da ciência e da educação, institucionalizadas na instância da sociedade civil. Cf. Habermas, J. Praktische Folgen des wissenschaftlich-technischen Fortschritts [Consequências prá ticas do progresso científico-técnicoj. In: — . Theorie und Praxis [Teoria e prática]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1972 (4. ed. ampliada com um novo prefácio do autor), p. 336-58: Habermas, J. Protestbewegimg und Hochschulreform [Movimento
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A crítica da cultura, com que Habermas completa sua crítica do conhecimento, tem com ela parentescos evidentes. A autocompreensão objetivista da ciência, pela qual ela reprime â estrutura de interesses que condiciona a objetividade dos seus enunciados, tem como correlato a autocompreensão tecnoçrática do poder, pela qual ele reprime o subs trato político de ações praticadas em nome de uma racionalidade técnica. Em um e outro caso, trata-se de trazer à tona esses momentos reprimi dos, e nesse processo a crítica contribuirá para revelar, não somente a interpenetração da falsa teoria e da falsa práxis (positivismo ,e capitalisr mo tardio) como a' interpenetração, em geral, da teoriai e da práxis. Essa vinculação, até então meramente postulada, sem receber estatuto teórico, vai agora ser conceptualizada numa teoria dcí competência comu nicativa 15 16. -
3. A teoria da competência comunicativa
Essa terminologia sugere uma semelhança com a teoria da compe tência lingüística, de Chomski. Mas, enquanto este tenta reconstituir o conjunto de regras abstratas que permitem a um locutor construir sen tenças, Habermas tenta reconstituir as condições universais para a pro dução de enunciados, isto é, não unidades lingüísticas, mas ações lingüísticas. Na situação da fala entre dois interlocutores, Ego só consegue se comunicar com Alter sobre conteúdos específicos no momento em que cria, ao mesmo tempo, pelo uso de determinados verbos, uma intersubjetividade específica, em cujo quadro esses conteúdos são transmitidos e compreendidos. A mesma sentença p tem um sentido intersubjetivo (pragmático) distinto, conforme seja enunciada sob a forma de promessa, de ordem, de afirmação, etc. É por isso que Habermas diz que toda cpmunicação lingüística (transmissão de conteúdos proposicionais) é ao de protesto e reforma universitária]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1969; e, final mente, a Introdução à coletânea: Habermas, J. Politische Profile [Perfis políticos]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1971. 15 Os trabalhos mais importantes, nos quais Habermas desenvolve essa teoria, sao: Habermas, J. Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz [Notas preparatórias para uma teoria da competência comunicativa]. In: —. e Luhmann, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. p. 101-41; Habermas, J. Universalitãtsanspruch der Hermeneutik. In: — . Kultur und Kritik, p. 264-301; e Habermas, J. Wahrheitstheorien [Teorias da verdade]. In: Wirklichkeit und Reflexion — Walter Schulz zum 60. Geburtstag [Realidade e reflexão — Homenagem ao 60.° aniversário de Walter Schulz]. Organizado por H. Fahrenbach. Pfullingen, Neske Verlag, 1973. p. 211-66.
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mesmo tempo metacomunicação (especificação das condições pragmá ticas de aplicação dessas proposições). Em cada situação da fala, exis tem quatro “expectativas de validade” (Geltungsansprüche): a de que os conteúdos transmitidos são compreensíveis, a de que os interlocuto res são verazes, a de que os conteúdos proposicionais são verdadeiros, e a de que o locutor, ao praticar o atp linguístico em questão (afirmando, prometendo, ordenando), tinha razões válidas para fazê-lo, isto é, agia de acordo com normas que lhe pareciam justificadas. A interação espon tânea é estável quando existe um consenso com relação a essas quatro expectativas de validade. Esse consenso é perturbado quando qualquer delas é contestada de uma forma fundamental. As duas primeiras podem ser problematizadas e resolvidas no próprio contexto da interação: por exemplo, a dúvida quanto à inteligibilidade dos conteúdos por meio de certas convenções lingüísticas, e a dúvida quanto à veracidade do inter locutor pela própria experiência da interação, que mostrará em que medida o interlocutor, que parecia estar sendo transparente consigo e com os outros, estava*ou não sendo verídico. Mas a problematização do conteúdo proposicional — o que está sendo dito — e da norma Subjacente ao comportamento só pode ocorrer fora do contexto intera tivo, numa forma de comunicação sui generis, que Habermas chama de discurso. No discurso, todos os Geltungsansprüche ficam suspensos, até que a afirmação seja confirmada ou refutada, e até que a norma seja considerada legítima ou ilegítima. No discurso, ficam postos fora do circuito — “virtualizados” —• todos os interesses e motivos caracterís ticos da interação normal. Nele, o único motivo admitido é a busca cooperativa da verdade, à base do melhor argumento. A afirmação, problematizada, é debatida num discurso teórico} a norma, problematizada, é debatida num discurso prático. A afirmação é considerada verdadeira (ou falsa) quando o discurso teórico conduzir a um consenso quanto à sua verdade ou falsidade; a norma é considerada legítima (ou ilegítima) quando o discurso prático desembocar num consenso quanto a tal legitimidade ou ilegitimidade. Como se verifica, o conceito de justificação discursiva elimina o abismo entre questões teóricas e questões normativas, que desde Hume mas especialmente em Weber e nos positivistas modernos considera unica mente as proposições descritivas como suscetíveis de validação; as pro posições prescritivas, ou relativas a valores, pertencem à esfera da mera opinião, e não são, a rigor, nem verdadeiras nem falsas. Com sua teoria da'validação consensual de afirmações e recomendações (proposições normativas) Habermas tenta revogar esse interdito positivista, voltando à tradição grega, para a qual as questões relativas à vida desejável eram,
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mais que quaisquer outras, suscetíveis de serem verdadeiras. A teoria consensual de Habermas pretende elevar tais questões à dignidade da Wahrheitsfãhigkeit (literalmente, capacidade de serem verdadeiras), mostrando como a lógica do discurso prático, no qual elas são debatidas, é idêntica à lógica do discurso teórico, no‘qual são debatidas as propor sições descritivas. A dificuldade dessa proposta é óbvia, e vem -do problema de distinguir o falso consenso do verdadeiro. Os, consensos -fatuais são frequentemente distorcidos por influências externas ou por deformações inerentes ao próprio processo de comunicação. Os participantes do discurso podem julgar que o consenso obtido foi válido, e não obstante tal convicção pode revelar-se ilusória.
Habermas acredita que, se for possível descrever uma' situação tal que os discursos nela realizados possam ser considerados automatica mente verdadeiros, e se tal descrição não for arbitrária, nem sujeita, por sua vez à argumentação discursiva (porque nesse caso estaríamos nos movendo em círculos), seria possível distinguir o verdadeiro consenso do consenso ilusório. Tal situação, para ele, é a situação linguística ideal, pela qual “a comunicação não é perturbada nem por efeitos externos contingentes, nem por coações resultantes da própria estrutura da comunicação. A situação lingüística ideal exclui deformações siste máticas da comunicação” le. Essa descrição, segundo Habermas, não é arbitrária, porque em cada djscurso ela é pressuposta como real. Ela supõe para ser atingida que, em princípio, todos os interessados possam participar do discurso e que todos eles tenham oportunidades idênticas de argumentar, dentro dos sistemas conceituais existentes ou transcen dendo-os, e chances simétricas de fazer e refutar afirmações, interpre tações e recomendações. Mas, supõe também que só são admitidos aò discurso aqueles participantes que, como atores, agiam de acordo com normas que lhes pareciam justificáveis, e não movidos pela coação, e satisfaziam o pressuposto da veracidade, não mentindo nem intencional mente, nem inconscientemente (neurose ou falsa consciência).' Essas duas condições configuram o modelo da ação comunicativa pura: uma forma de interação (e de organização social) caracterizada pela elimi nação de todas as formas de coação externa e interna. 16 Habermas, I. Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz. In: — . e Luhmann, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. p. 137.
20 O modelo da ação comunicativa pura e a situação linguística ideal são duas pressuposições (JJnterstellungen) mutuamente vinculadas. Am bas podem ser contrafatuais, e quase sempre o são: o modelo da comu nicação pura constitui um telos (utópico) da comunicação normal, que remete a uma ordem social ainda inexistente; a situação linguística ideal constitui um telos (igualmente utópico) que, uma vez alcançado, tomaria possível o discurso perfeito em condições também inexistentes. Ao mesmo tempo, ambos têm que ser pressupostos como já reais: sem essa presunção, a interação e o discurso seriam impossíveis. Nesse sen tido, a utopia da vida perfeita e a do conhecimento total têm que ser vistas como de certa forma já reais; ao mesmo tempo, proporcionam paradigmas críticos que permitem'criticar formas existentes de interação e discurso. Em ambos os casos, trata-se de uma Unterstellung que é também um Vorgriff: uma antecipação. Com essas duas construções, Habermas recoloca a questão da interpenetração da teoria e da prática também ao nível da utopia. A interação pressupõe o discurso, porque somente a argumentação discursiva permite resolver as problematizaçoes quanto à validade das afirmações ou a legitimidade das normas; e o discurso pressupõe a interação, porque somente podem ser admitidos ao nível do discurso aqueles participantes que, como atores, preenchiam as condições do modelo da comunicação pura. --Em suma, os homens não podem nem interagir, nem comunicar-se discursivamente senão na perspectiva de uma ordem social não-repressiva (caracterizada pela comunicação e pela situação lingüística ideal), a qual, precisamente, não existe, mas que tais antecipações nos autorizam a definir como. possíyel. A teoria da competência comunicativa permite retomar a crítica do conhecimento e a crítica da cultura e do Estado, agora na óptica do discurso teórico e do discurso prático. Em seus* primeiros trabalhos epistemológicos, Habermas tentara definir as condições transcendentais para a objetividade do saber. Em sua teoria consensual da verdade, não se trata mais de investigar- a gênese do domínio dos objetos dos quais se ocupam as ciências naturais e as histórico-hermenêuticas, mas de examinar as condições sob as quais as proposições relativas a tais objetos podem ser validadas. A investigação transcendental examinava a objetividade da experiência; a teoria comuni cativa, a validade das proposições construídas para dar conta dessa experiência, e que podem ou não ser verdadeiras, o que só é determi nável num discurso teórico. Habermas chega a falar em dois a prioris'. ò da experiência (Erfahrung) e o da argumentação. Os dois são inde pendentes, mas ambos são necessários para o processo do conhecimento.
21 Com sua teoria consensual da verdade, Habermas se distancia mais ainda da epistemologia positivista, que postula uma relação não-proble mática com o real. Verdadeira não é uma afirmação que corresponde a um objeto ou a uma relação real, mas uma afirmação considerada válida num processo de argumentação discursiva. A verdade não tem que ver com conteúdos, e sim com procedimentos: aqueles que permitem estabe lecer um consenso fundado. A verdade, num certo sentido, confunde-se com as condições formais para alcançá-la.
Quanto à crítica da cultura, ela pode agora ser cònceptualizada com mais rigor. Se é certo que a estrutura da comunicação implica a possibilidade da justificação discursiva de normas (e das instituições que lhes correspondem), podemos dizer que a característica de todas as socie dades que efetivamente se constituíram na História é a de ter obstruído esse processo, seja pela violência física, seja pelas legitimações ideoló gicas. A função da ideologia, assim, é a de impedir a abertura de discursos práticos: as normas e instituições são objeto de pseudolegitimações (visões do mundo religiosas ou metafísicas) que cumprem a dupla função de impedir que tais normas e instituições sejam tematizadas discursivamente e de se protegerem, elas próprias, contra essa tematização. O processo de comunicação, cujo desfecho normal deveria ser a problematização discursiva, pára a meio caminho. A comunicação se obstrui. Todas as sociedades se caracterizaram por essa deformação sistemática do processo de comunicação, que Habermas descreve como um processo análogo ao da neurose, também ela caracterizada pela inibição da comunicação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, e que preenche, ao nível intrapsíquico, uma função complementar à da legitimação ideológica. As ideologias alcançam seu objetivo de impedir a tematização discursiva, excluindo da comunicação pública certos temas e motivos inconvenientes para o sistema de poder, e que poderiam, precisamente, levar os indivíduos a promoverem a abertura de discursos problematizadores. Esses temas censurados são retirados da linguagem pública e, literalmente, excomungados (excomunicados), e transferidos para o inconsciente, sob a forma de conteúdos alingüísticos, ou expressos numa linguagem privatizada, incompreensível para o próprio sujeito. Ê assim que Habermas concebe a terapia como a tentativa de re-simbolizar esses conteúdos banidos, reintegrando-os na linguagem pública. *E é também à base do modelo psicanalítico que concebe o papel da teoria crítica, enquanto instrumento de elucidação pedagógica: ela deve propor interpretações que levem os sujeitos, imersos na falsa consciên-
22 jia, a reconhecer-se em tais construções, por processos autônomos de auto-reflexão, assim como o analista propõe interpretações que,, se ver dadeiras, são apropriadas autonomamente pelo paciente, que com isso reconstrói fragmentos perdidos de sua autobiografia. A crítica da ideo logia é uma espécie de “discurso terapêutico”. A relação conscientizadora é no início assimétrica, porque supõe que o analista sabe o que o paciente não sabe; mas seu objetivo é estimular processos de auto-reflexão que levem o paciente a assumir livremente seu destino} adqui rindo, com isso, a capacidade de participar de discursos práticos, capa cidade a princípio inexistente, porque a neurose implica a ausência de uma característica essencial para a competência discursiva, que é a veracidade. O neurótico, por definição, ilude-se,' e ilude os outros, característica clássica da “falsa consciência”.
É óbvio que, na medida em que a sociedade atual incorpora relações de violência, a luta não pode restringir-se a essa moldura discursiva. Ao lado da argumentação comunicativa, a ação estratégica continua sendo necessária: aquela que visa, não ao entendimento mútuo, mas. à competição pelo poder, travada entre grupos cujos interesses são tão antagônicos que não estão dadas as condições para uma tematização discursiva. Mas, o objetivo tendencial de uma ação política desse tipo deveria ser o advento de um estado de coisas tal que todos os interes sados possam, finalmente, participar de contextos discursivos. Nas condições do capitalismo tardio, portanto, a luta política se desdobra em vários planos: o da ação estratégica; o da elucidação peda gógica (discurso “terapêutico”), a fim de neutralizar uma ideologia — a tecnocrática — que tenta legitimar o poder com a estratégia, historica mente nova, de negar a existência de um poder a ser legitimado; e o dos discursos práticos a serem conduzidos entre todos aqueles que sejam “discursivamente .competentes”, e que deveriam, idealmente, incluir todos os interessados. Tais ações poderiam, aos poucos, lançar as bases de um novo consenso, distinto do consenso deformado de hoje, utilizando, para isso, as vulnerabilidades específicas do capitalismo tardio (que não mais se situam na contradição entre as forças produtivas e as relações de produção) e que Habermas investiga em seus “teoremas da crise”. Tais, crises incluem, por exemplo, a crise da racionalidade, que ocorre quando o Estado intervencionista não consegue realizar as tarefas técni cas qúe ele se atribui; a crise da motivação, que estaria se gerando nas contraculturas engendradas pelo próprio sistema, e que contestam os valores funcionais para a sobrevivência do capitalismo; e a crise da
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legitimação, na medida em que a ideologia da ciência e da técnica revelar-se incapaz de dissimular o substrato político das regras aparentemente técnicas que orientam a ação do Estado. É óbvio que uma ação desse tipo, baseada em tais pressupostos, é muito distinta da ação revolucio nária clássica. Em vez disso, Habermas propõe a estratégia do “refor mismo radical” que implica em “promover .reformas em torno de objetivos claros e publicamente discutidos, mesmo, e especialmente quando suas consequências são incompatíveis com o modo de produção vigente” 17 - Ç- ■
A obra: confrontos e contrastes Passando agora à perspectiva que chamamos de “relacional”, tenta remos retomar o exame da obra de Habermas através do seu confronto com os diferentes autores aqui estudados. Cada um deles destaca um tema central, que de uma ou outra forma encontra ecos no pensamento do próprio Habermas. Ao mesmo tempo, todos esses temas se entrecruzam nos diferentes autores. Mas nada nos impede de isolar, metodo logicamente, esses temas centrais, desde que não se perca a visão dos entrelaçamentos. Sob essas reservas, é lícito dizer que em H. Arendt o tema central é o poder\ em Scholem, a hermenêutica', em Marcuse, a arte', em Adorno, a categoria da não-identidade', em BToch, a utopia', enquanto em Benjamin encontramos, num certo sentido, um contraponto entre todos esses temas.
1. Hannah Arendt O interesse de Habermas pelo pensamento de H. Arendt vem do fato de que para ambos o poder só é legítimo quando resulta de um consenso. H. Arendt concebe o poder como “aquela capacidade humana não somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com eles” 18. O poder não é visto aqui como uma modalidade da violência, como para Jouvenel ou Weber, mas como algo 17 Habermas, J. Introdução. In: ■—• . Protestbewegung und Hochschulreform. [Mo vimento de protesto e reforma universitária], p. 49. 18 Arendt, H. Macht und Gewalt [Poder e violência]. München, Piper & Co. Verlag, 1970.-p. 45.
24 visceralmente distinto dela. Ele também não decorre de uma ação ins trumental, mas sim de uma ação humana solidária. Para H. Arendt, o poder que emana de leis e instituições decorre do apoio integral da comunidade e este apoio pressupõe um consenso original™.
Ê óbvia a afinidade entre essa concepção e a de Habermas. Vimos que para ele o consenso universal dos integrantes de um discurso (neste caso, de um discurso prático) fundamenta a validade das normas e instituições, conferindo-lhes legitimidade. Mas, o que para H. Arendt constitui o ponto de partida (consenso original que confere poder) é para Habermas um estado terminal. Para ele, o consenso universal pressupõe um contexto livre de violência e coação, em que todos os integrantes de um discurso possam participar em pé de igualdade. O consenso perfeito só pode ser alcançado, portanto, quando as instituições que canalizam e asseguram a comunicação já estiverem liberadas de seus momentos repressivos. Nas sociedades modernas, pelo contrário, as ins tituições impedem a formação de um consenso livre: constituem barreiras externas à comunicação desinibida, comparáveis às barreiras internas das estruturas patológicas individuais, segundo o modelo freudiano. Para H. Arendt, por outro lado, as instituições são decorrentes de um consenso original que posteriormente pode ser minado e refuncionalizado no in teresse de grupos e indivíduos, mas nesse caso não haveria poder e sim violência, isto é, a capacidade de influenciar autoritariamente a vontade dos liderados, em contextos pão-consensuais. A própria existência das instituições é, portanto, a prova de que em um certo momento houve consenso; Este desaparecendo, as leis e instituições ainda podem ser mantidas por algum tempo (à base da violência), mas a longo prazo a falta de consenso conduzirá ao seu desmoronamento. A crítica fundamental de Habermas é que H. Arendt adere a um conceito aristotélico do político, incompatível com as condições do Estado moderno, e que no fundo. tem implicações conservadoras. Con servadoras, em primeiro lugar; porque na polis grega somente os cidadãos participavam da formação do consenso, idéia retomada por H. Arendt quando diz que devem participar do debate político somente os que tiverem especial interesse em temas públicos. Os demais estão excluídos. Revela-se, aqui, o lado elitista da autora, que Habermas não pode e não quer, de forma alguma, partilhar. Todo poder efetivo precisa funda mentar-se, em princípio, no consenso universal: todos os integrantes da sociedade devem participar do discurso, pelo menos tendencialmente.* 30 id., ibid., p. 42.
25 Em segundo lugar, porque ao reduzir o político à esfera exclusiva da ação comunicativa — aquela instância em que os cidadãos agem em conjunto e conyersam entre si, com vistas a formarem convicções comuns —■ H. Arendt exclui do sistema político a ação estratégica, que visa, não ao entendimento mútuo, mas à competição pelo poder. Como para os gre gos, a ação estratégica se desenvolve somente fora dos muros da cidade, na guerra com outras cidades, enquanto intramuros somente a ação comunicativa é admitida. Habermas, no entanto, vê na ação estratégica um momento fundamental da ação política. Pois, na medida em que as condições para um discurso prático não estão dadas, por não haver de maneira alguma um interesse em comum, a argumentação discursiva como forma de ação política fica excluída, e torna-se necessária a ação estratégica (como seria o caso da luta de classes). Implicações conser vadoras em terceiro lugar, porque a concepção de poder comunicativo, na versão de H. Arendt, não permite distinguir o falso consenso do verdadeiro, pois a diferença entre poder, violência e comunicação, em sociedades concretas, não é nunca tão nítida como súpÕe H. Arendt: a função das ideologias consiste justamente em apresentar a violência sob a forma de poder, tomando, assim, plausíveis para os governados siste mas de dominação que excluem, de fato, a formação discursiva da vontade. As ideologias, para Habermas, têm como função subtrair à justificação discursiva normas e instituições que materializam, em sua substância mais íntima, relações de violência. Mas H. Arendt não podo sequer colocar esse problema, porque adere à distinção clássica entre a teoria e a prática, segundo a qual somente a primeira é suscetível jle verdade (yvahrheitsfahig'), enquanto a práxis é a esfera dás opiniões (íZám), o que significa que não existe qualquer critério para julgar a validade dos consensos fatualmente alcançados, que exprimem sempre opiniões “em tomo das quais muitos se puseram de acordo”. Com isso, H. Arendt fica impotente diante do fenômeno mais característico das sociedades de massa, que consiste na formação, entre os participantes, de “convicções subjetivamente não-coercitivas, mas ilusórias”20. Em contraposição, vimos que para Habermas as questões praticas são yvahrheitsfãhig, o que lhe dá instrumentos para distinguir os falsos consensos dos verdadeiros, e permite fundar uma crítica da ideologia (Ideologiekritik') destinada a solapar as pseudolegitimações que masca ram a violência estrutural embutida nas instituições. Mas, como podem os homens libertar-se dessas convicções ilusórias, tomando-se capazes de participar da gestação comunicativa do poder? Como podem eles 20 V. p. 115-6 desta coletânea.
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chegar a um consenso em condições de simetria, se a assimetria está institucionalmente fundada e assegurada? Habermas recorre aqui, como sabemos, ao modelo psicanalítico. A situação terapêutica também não é uma situação simétrica. No contexto da intersubjetividade terapêutica, o paciente é, por definição, incapaz de consciência lúcida, e tem que submeter-se à autoridade conscientizadora do analista. Mas ambos .têm um mesmo interesse: o da cura da neurose. Poderíamos imaginar , que certos grupos de intelectuais, líderes políticos e mesmo partidos (cf. o Príncipe moderno, de Gramsci) assumissem como próprio o interesse emancipatório das grandes massas oprimidas. Seu papel seria seme lhante ao do analista, oferecendo modelos de interpretação da sociedade, das normas, das instituições vigentes e de alternativas possíveis, análogos aos modelos interpretativos que o analista constrói para o paciente e que somente podem ser considerados válidos quando este se reconhece em tais construções. A grande maioria discutiria estes modelos, aceitando-os ou rejeitando-os, da mesma forma que o paciente aceita ou rejeita as interpretações do analista no tratamento psicanalítico. O discurso tera pêutico (ainda assimétrico) poderia transformar-se, assim, gradativa mente em um, discurso prático em que todos pudessem participar sime tricamente na formação do consenso. Sem dúvida, toda e qualquer situação lingüística contém, como vimos, os elementos para transformar-se em um discurso de iguais, praticado em um contexto livre de violência.' A comunicação distorcida contém em si o prenúncio da comunicação livre. Mas, para que o. apelo à autonomia (Mündigkeit) implícito em cada ato comunicativo possa tornar-se efetivo, é necessário partir da realidade, e a realidade, em todas as sociedades históricas, é a da comunicação sistematicamente deformada que inibe a formação de um consenso, segundo as exigências da situação lingüística ideal. Assim, se H. Arendt tem razão contra Weber e Parsons — o poder não é, ou não é apenas, a capacidade de dispor sobre a vontade dos’ governados —, estes tem razão contra H. Arendt, ao proporem um conceito de poder que de fato corresponde à experiência concreta de todas as organizações políticas que se sucederam na História. Habermas acredita que pode unificar o conceito descritivo, pro posto pela teoria sistêmica, com o conceito normativo, proposto por H. Arendt, por meio de uma teoria que dê conta tanto da realidade empírica da dominação autoritária, como do modelo normativo implícito na concepção comunicativa do poder: uma teoria que inclua tanto a realidade histórica da comunicação deformada, como o ideal paradigmá tico da comunicação (tendencialmente) livre de violência.
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2. Gershom Scholem À decifração e interpretação dos textos da Tora e da Cabala, segundo a descrição de Scholem, segue uma lógica semelhante ao que Habermas compreende como hermenêutica. Para ele, a hermenêutica “refere-se tanto a uma ‘capacidade’ que adquirimos na medida em que aprendemos a ‘dominar’ uma língua natural, como à arte de compreen der o significado lingüisticamente comunicável e tomá-lo compreensível em caso de uma comunicação perturbada. A compreensão do significado está voltada para o conteúdo semântico da fala, mas também para os significados fixados por escrito ou transmitidos por sistemas, simbólicos não-verbais, desde que sejam basicamente ‘capturáveis’ pela fala” 21.
Também Scholem, ao analisar o significado da Tora no misticismo judaico, procura desvendar o enigma do relacionamento de conheci mento e vida. A Tora, como expressão do Divino, permanece em sua essência oculta aos homens (Princípio da Tora como organismo vivo). O que se lhes tomou acessível foi uma versão escrita da Tora que traduz a palavra de Deus aos homens (Princípio do nome de Deus) e uma versão oral que inclui as infinitas interpretações possíveis da Tora (Princípio do significado infinito da palavra divina). Se Deus expressou na Tora “Seu ser transcendente, ou ao menos aquela parte, ou. aspecto, do Seu ser que pode ser revelado à Criação e através da Criação” 22, então tanto a Tora escrita, como as várias formas de transmissão da. Tora oral são diferentes emanações do poder e da verdade divina, mas nunca a forma do seu Ser absoluto. A verdade divina revela-se parcial mente em cada uma das versões; todas elas encerram um momento da Criação, mas nenhuma dessas formas capta integralmente a essência. Esta somente se revelará no Dia da Salvação. Neste momento, a essência e as manifestações orais e escritas restabelecerão a síntese e a Tora se revelará ao mesmo tempo organismo e palavra de Deus, em seus signifi cados infinitos. E Scholem cita um dos grandes cabalistas: “O conheci mento do homem então aumentará, e todos, grandes e pequenos, conhece rão a Deus em virtude da luz que se acenderá no mistério do pensamento 21 Habermas, J. Universalitãtsanspruch der Hermeneutik. In: —- . Kultur und Kritik. p. 264. 22 Scholem, G. A Cabala e seu simbolismo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1978. p. 20.
28 divino à véspera do sábado cósmiço” 28. A revelação divina, a partir de então, dispensa a Tora. Pois, “a anulação da Tora é sua realização” *24. O processo do conhecimento parece percorrer, para Habermas, um caminho análogo. A verdade não se revela de forma absoluta em um ou outro texto teórico, interpretativo da realidade objetiva. Cada inter pretação contém uma faísca de verdade, que, devidamente recolhida através de um processo contínuo de releitura e reinterpretação dos textos, contribui para construir, no final do caminho, o conceito universal da verdade. A hermenêutica habermasiana assumiria, assim, função análoga à exegese dos textos divinos. Devidamente recuperados, esses textos permitiriam uma reconstrução que se aproximaria da verdade absoluta. Segundo essa óptica, também para Habermas toda produção teórica no campo da ciência é um “documento” que, devidamente interpretado e depurado de suas distorções, seria assimilado ao processo do conheci mento, contribuindo, assim, para a “revelação”.
De fato, em livros como Conhecimento e interesse e Lógica das Ciências Sociais, Habermas está muito próximo desse modelo hermenêu tico. Os diferentes autores são lidos com a preocupação de desprender de cada contribuição parcial os seus momentos verdadeiros, revelando, atrás dos silêncios e das deformações dos textos, um texto latente, em 'que o dito se articula ao não-dito, e cujo encadeamento diacrônico constitui a trajetória do conhecimento. No entanto, os paralelos sugeridos pela leitura de Scholem não devem ser exagerados. A hermenêutica cabalista, partindo do princípio de que a voz de Deus é no fundo inacessível aos homens, renuncia, de fato, a um critério de verdade que permita distinguir as verdadeiras e as falsas interpretações, admitindo que todas elas possam conter cen telhas da verdade divina. Habermas, ao contrário, não é relativista nem em sua prática da atividade hermenêutica nem ao teorizar sobre ela.
Tal como praticada em Conhecimento e interesse, por exemplo, a hermenêutica é essencialmente crítica: se ela tenta recuperar os momen tos de verdade contidos nas diferentes etapas da reflexão teórica, é sob a condição de admitir a existência de critérios que permitam, precisa mente, separar esses momentos dos não-verdadeiros. Cada texto é lido tão radicalmente, que ele acaba revelando o não-dito e o não-pensado; a interrogação hermenêutica leva cada autor a dizer o que não sabia 28 Schaare Gan Eden. Os 'portais do paraíso. Cracóvia 1880, 12 c, citado em Scholem. A-.Cabala e seu simbolismo, p. 103. 24 id., ibid., p.' 103.
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que sabia. É assim que a leitura de Peirce permite exumar o interesse instrumental, implícito mas não conscientizado, enquanto a leitura de Dilthey revela o interesse comunicativo, também não-consciente, mas virtual. Mas esse trabalho supõe, de qualquer forma, a existência de um saber prévio, que fornece um critério para distinguir, na autocompreensão positivista de Peirce e Dilthey, os conteúdos implícitos que permitiríam romper o invólucro positivista. A prática hermenêutica em Conhecimento e interesse é uma Ideologiekritik;. uma crítica da falsa consciência objetivista, que supõe à existência de uma relação' não-mediatizada entre o saber e o seu domínio de objetos. O verdadeiro paralelo seria, não com os cabalistas, mas com Hegel. Também. Hegel via no “calvário do espírito”, neste trabalho incessante da consciência fenomenológica, englobando o núcleo de verdade contido em cada figura do espírito em sínteses cada vez mais ricas, desde a certeza sensível até o saber absoluto, um caminho necessário para o conhecimento, e que como tal já era, em si, o conhecimento. Como para Habermas,a consciência se reconhece em seus erros, em suas omissões, no reprimido e no negado. O trabalho do conceito, em Hegel, não é a mesma coisa que a decifração da tradição, para os cabalistas. Porque, enquanto esta não permite uma verdadeira crítica das diferentes cor rentes da tradição — pois a voz de Deus está muda, e só se tornará audíyel no fim da História ■—, a consciência fenomenológica pode julgar soberanamente a validade dôs diversos momentos da evolução do espí rito, na perspectiva de um saber absoluto já alcançado, e que se projeta, retrospectivamente, em seu próprio passado. Igual preocupação de distinguir os conteúdos verdadeiros dos não-verdadeiros revela-se quando Habermas teoriza sobre a hermenêutica. Ele parte do modelo da metapsicologia de Freud, que supõe a existência de uma deformação sistemática da compreensão, e não da hermenêutica de .Dilthey ou Gadamer, que acreditam na possibilidade de retificar lapsos e lacunas do texto, sem perceber o caráter sistemático das defor mações. Os equívocos e omissões não decorrem das circunstâncias mais ou menos fortuitas do processo de transmissão histórica, mas de uma estrutura sistemática que comanda, de forma não-contingente, a natureza e o conteúdo das distorções. A interpretação exige, portanto, para seu exercício, a compreensão das estruturas da deturpação sistemática da comunicação, e nesse sentido é uma meta-hermenêutica, que compreende a tradição através de um Verstehen que ao mesmo tempo está inscrito na tradição e a transcende criticamente. É essa a essência da drítica à hermenêutica de Gadamer: se o intérprete, para ele, é capaz de com
30 preender a tradição lingüisticamente mediatizada por.fazer parte dessa tradição e dessa comunidade linguística, sem poder jamais desprender-se dá estrutura de valores que constitui essa tradição, segue-se que uma perspectiva radicalmente crítica é impossível. Ora, vimos que para Habermas a cultura está, a priori, sob suspeita de incorporar relações de violência, que se tomam invisíveis quando as legitimações ideológicas impedem sua tematização discursiva. O consenso, no qual se funda a tradição, pode ser, e o é habitualmente, um falso consenso. Somente a meta-hermenêutica pode ir além do Verstehen ingênuo, que aceita inquestionadamente a tradição, permitindo o acesso a um Verstehen crítico.
Em suma, tanto em sua concepção teórica da hermenêutica como ao exercê-la em investigações concretas, Habermas distancia-se de uma concepção hermenêutica, como a dos cab alistas, que não dispõe de cri térios seguros para distinguir os textos verídicos dos inverídicos, e é im potente, portanto, para exercer uma crítica da deturpação sistemática, pois tal crítica exigiria a capacidade de elevar-se acima da tradição, em vez de deixar-se envolver por ela, e suporia, de alguma forma, acesso ao verdadeiro saber: o da Tora escrita, que contém a palavra de Deus. Existe, no entanto, uma analogia importante entre o pensamento de Habermas e o dos cabalistas: a teoria messiânica da verdade. Como vimos, na perspectiva da teoria consensual da verdade, de Habermas, toda verdade, alcançada consensualmente, está sempre, de certa forma, sub ]udice\ é uma verdade provisória, resultante de um consenso fatual sempre mais ou menos distanciado do consenso, tal como resultaria da vigência das condições da situação linguística ideal. O princípio defini tivo. da validação de qualquer norma ou afirmação èstá no tetos futuro, em que uma nova forma de vida social criaria as condições para um consenso perfeito e, portanto, para o conhecimento total. Ora, a leitura de Scholem mostra a afinidade dessa tese com a concepção cabalística da verdade messiânica; somente no Dia do Juízo Final, as diferentes inter pretações revelarão sua unidade última. Assim, como para Habermas a verdade coincide com as condições formais para alcançá-la (é um processo mais que um conteúdo), também para o pensamento cabalístico “a revelação é.. . o próprio processo da tradição” 25 e, de certa forma, confunde-se com as. condições de sua transmissão. Com efeito, "tudo é Tora oral; a Tora escrita é um conceito místico, que remete à condição messiânica demm conhecimento futuro”26. Apenas, para Habermas, o 25 V. p. 125 desta coletânea. 26 V. p. 125; desta coletânea.
31 caráter provisório da verdade não a relativiza, pois o modelo da .situação linguística ideal, pressuposto (unterstellf) em cada ato comunicativo, fornece os critérios para diferenciar entre o falso consenso e o verdadeiro. Se; a verdade está sub judice, até o advento do Juízo Final, ela não se torna por isso necessariamente relativa: em cada etapa do desenvolvi mento histórico, a Unterstellung da condição messiânica proporciona um paradigma que autoriza a distinção entre a verdade e o erro.
3. Herbert Marcuse • Em julho de 1977, Marcuse visitou Habermaá^ em Stamberg. O protocolo dos debates então havidos acaba de ser publicado, como uma homenagem ao último sobrevivente dos fundadores da teoria crítica, por ocasião do seu octogésimo aniversário 27.
Um dos temas debatidos foi a teoria estética. Durante o diálogo, Marcuse defendeu e aprofundou os pontos de vista criticados por Habermas no ensaio publicado nesta coletânea. No diálogo, como no livro Contra-revolução e revolta, objeto do ensaio habermasiano, Marcuse defende enfaticamente a tese de que a arte não pode ser absorvida pela vida: constitui uma ilusão necessária, um Schein objetivo, uma alienação que deve ser preservada enquanto alienação, porque somente assim pode oferecer uma “promesse de bonheur”, radicalmente incompatível com o princípio de realidade vigente. Qualquer tentativa de de-sublimá-la, incorporando-a à esfera da vida, como em certas manifestações vanguardistas, implicaria na assimilação desse Schein crítico à ordem unidimen sional. Essa posição de Marcuse é recente. Em um dos seus, primeiros ensaios, publicados na Zeitschrijt jür Sozialforschiing em 1937, sobre o “Caráter afirmativo da cultura” 28, ele prevJLoJümLda arte, com q advento de uma revolução bem sucedida. O objeto de arte, enquanto arte bur guesa, não expressava_p_ara_ele_.de maneira apropriada a condição real, e estabelecia um corte com a realidade, criando uma beleza ilusória de ordem e harmonia artística que “reconciliam o irreconciliável”. A recon ciliação ilusória paralisa e reprime as energias vitais, a sensualidade do 27 Cf. Theorie und Politik [Teoria e política]. In: Habermas, J. et alii. Gesprãche mit H. Marcuse [Diálogos com H. Marcuse]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag-. p. 9-62. • 28 Marcuse, H. Über den affirmativen Charakter der KuLtur. In: Zeitschrift filr Sozialforschung, Paris, VI/3, 1937; versão em inglês na coletânea de Marcuse: Nègations. Essays ín criticai theory. Boston, Beacon Press, 1968.
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corpo, a criatividade, impedindo assim a luta pela verdadeira reconcilia ção. A forma estética do objeto de arte havia-se transformado, assim, em um fator estabilizador das estruturas. Marcuse admitia, porém, que esse caráter afirmativo continha sua própria dialética. Pois, aojnesmo atempo que cada objeto de arte (música, poema, romance^escultura, pintura) refletia as cohdí^oe^'dF~^a7epoca~~êl^ê'refletia também _suas aspirações emancipatórias: constituía a transfiguração dos desejos não satisfeitos, dos sonhos não realizados, das angústias que. não^adroitem consolo. Esta dimensão representava para Marcuse o “poder da negatividade”, aquela força, inerente à obra de arte, de denunciar com sua própria existência as mutilações do real. Mas, enquanto obra de arte burguesa, este poder da negatividade permanecia vinculado ao mundo ilusório da arte, sem força para modificar a realidade. Xorno, Th. W. e Horkheimer, M. Dialekiik der Aufkldrung [Dialética do Iluminismo]. Frankfurt/M., Fischer, 1973. p. 120 e 133.
51 a polis, na linguagem de Bloch, está para ele irreparavelmente corrom pido pela dominação, pela opressão, pelo mito — verdadeiramente uma superestrutura. Somente o que foi rejeitado contém potencial daquilo que lhe é superior. É por isso que ele busca no kitsch aquela transcen dência que a imanência da cultura exclui” 33.
Mas se Adorno é tolerante com relação a esse aspecto do pensamento de Bloch, é muito mais severo num ponto fundamental: a tentativa de fundar a esperança utópica no próprio Ser. Pois o possível, real, para Adorno, caracteriza-se muito mais pela possibilidade do desastre que pela possibilidade da redenção. O presente não oferece nenhuma anco ragem objetiva para a esperança, que está condenada ou a ser meramente subjetiva, ou a deixar de existir, cooptada por um Ser que exclui a utopia, assimilando-a. “O pensamento de Bloch se confronta com a realidade amarga de que no momento presente a passagem filosófica do subjetivo para o objetivo retrocede de fato ao pré-subjetivo, em benefício de uma ordem coletiva na qual a subjetividade não é cancelada (aufgehoberi), mas meramente reprimida por pressões heterônomas.” 54
É contra essa mesma ontologização da utopia que se insurge Habermas, no artigo incluído nesta coletânea. Ele atribui a Bloch a tendência a tratar a história humana numa perspectiva cosmológica e a história da natureza numa perspectiva antropomórfica, o que acaba dissolvendo as fronteiras entre história e natureza. A matéria seria um substrato comum a ambas: o homem, enquanto parte da matéria e a matéria, enquanto processo em direção a um fim, se emancipariam num mesmo movimento simultaneamente material e histórico, pela qual as duas alienações — a da natureza decaída e a do homem exilado -—seriam superadas na harmonia final da reconciliação utópica. Reduzida ao essencial, a crítica de Habermas é de que “Bloch deixa de lado a investigação sociológico-histórica das possibili dades objetivas dialeticamente originárias do processo social, para referir-se imediatamente a seu substrato geral no próprio processo do mundo: à matéria” 55. 33 Adorno, Th. W. Blochs Spuren [Os traços de Bloch]. In: — . Npten zur Literatur II [Notas sobre literatura II]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1973. p. 139. 54 Id., ibid., p. 145. 55 V. p. 160-1 desta coletânea.
52 É certo que Bloch não realiza uma investigação autônoma do processo social — para ele, essa análise já fora feita por Marx. Mas não seria exato supor que para Bloch o processo histórico se enraíza na natureza, pela simples razão de que a matéria, para Bloch, é sempre mediatizada pela história, através do trabalho. Em sua análise das “Teses sobre Feuerbach”, Bloch afirma que a contribuição decisiva de Marx foi ter deixado claro que pelo trabalho a coisa em si se transforma em coisa para nós. Se o materialismo histórico afirma, como todos os materia lismos, o primado do Ser sobre a consciência, distingue-se do materia lismo mecanicista pela tese de que este Ser por sua vez contém um momento subjetivo: o objeto ao qual se opõe o Sujeito é sempre um objeto mediatizado pela história. “É por isso que Marx, justamente por ser materialista, insiste no fato de que o fator subjetivo da atividade produtora é, no seio do Ser, um fator objetivo ao mesmo título que o objeto. . . O sujeito no Mundo é também parte do mundo.” 56 57 58
A idéia da matéria em movimento se torna assim menos aristotélica; não se ktrata, tampouco, de uma natura naturans panteísta, com uma teleologia própria e uma produtividade própria, independentemente da história humana, mas de uma matéria trabalhada pela história, e dela dependente, como o próprio Habermas deixa claro: “A matéria é o Ser-em-Possibilidade, mas de tal forma que a his tória da natureza se apóie na história da humanidade, que dependa da própria humanidade. . . O potencial subjetivo reage sobre o potencial objetivo, mas sem arbitrariedade, permanecendo, ao contrário, media tizado: em primeiro lugar, pelas tendências objetivas do desenvolvimento social, e em seguida pelo que a natureza, inacabada, torna possível ou impossível” ÕT.
Essa descrição, substancialmente exata, da doutrina blochiana da maté ria, não êomprova a tese de um “Schelling marxista” 38 mas sugere, ao contrário, que Bloch é um marxista muito mais ortodoxo que seus críticos do Leste e do Oeste estão dispostos a admitir. Se a matéria, para Bloch, é mediatizada pela história, a doutrina da possibilidade real coincide com 56 Bloch, E. Das Prinzip Hoffming. v. 1, p. 303. 57 V. p. 161 desta coletânea. 58 A analogia com Schelling se «funda na tese central da Nafurphilosophie segundo a qual o Espírito é parte da natureza, e esta é concebida como um organismo universal, dotado de algo como uma ‘‘alma do mundo” platônica. Em seu sistema de idealismo transcendental, Schelling afirma que existe um substrato comum sub jacente ao Espírito e à Natureza: se a Natureza é um Espírito ainda inconsciente de si mesmo, o Espírito é um tornar-se consciente da Natureza.
53 a tese clássica de que a produção social do novo depende do estágio de desenvolvimento das forças produtivas, tanto na perspectiva do Ser-Segundo-a-Possibilidade (o novo não pode emergir enquanto não ama durecerem as condições objetivas) como na perspectiva do Ser-em-Possibilidade (o novo pode emergir, dadas essas condições, independente mente dos obstáculos e retrocessos do presente). Ppde-se supor, assim, que o verdadeiro foco da crítica contra Bloch é outro. Ele não é criticado por ter desenvolvido uma ontologia a-histórica, enraizando a Esperança na matéria, mas por ter desenvolvido uma ontologia histórica, enraizando a Esperança no social. Na verdade, Blgçh não é criticado por seu aristotelismo, mas por seu marxismo. O que parecia, no início, uma defesa do materialismo histórico contra uma deformação neoplatônica, acaba revelando-se um ataque contra a dimensão ontológica desse mesmo materialismo histórico, e uma tentativa de negar a legitimi dade de qualquer ontologia, mesmo, e sobretudo, quando o Ser é conce bido em termos de história. É o que fica muito evidente quando Habermas diz que a utopia de Bloch “concebe de forma também utópica a dialética de sua própria realização” 50, ou quando afirma que a utopia realmente concreta deve-se legitimar pela prova científica de que as necessidades que ela aponta sao reais, e de que sua realização é possível* 60, ou quando diz que “a utopia... deve ser igualmente rigorosa contra si mesma, desenvol vendo uma consciência de suas próprias fronteiras... Uma utopia que vai se dissolvendo à medida que se realiza, poderia fazer surgir uma situação que escape, por princípio, à previsão utópica: novos obstáculos, novas dificuldades, novos ônus poderiam apresentar-se, que difiram com pletamente -de tudo quanto conhecemos.. . A utopia realizada seria ‘outra’ ” 61.
O que Habermas está contestando, através de todas essas fórmulas, é o direito do marxismo a buscar na própria dinâmica da realidade a lei imanente do desenvolvimento social. O futuro não está predeterminado no Ser, não está inscrito nem na história da natureza nem na história universal: somente a ação humana, independentemente de qualquer teleologia, pode construir um destino humano, e esse destino será sempre imprevisto — pois não há nenhum modelo, no fim da história — e sempre relativo, pois dependerá, em cada momento, do estágio de eman c0 V. p. 165 desta coletânea. 60 V. p. 166 desta coletânea. 01 V. p. 167 desta coletânea.
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cipação alcançado pela espécie, medido pelo paradigma da comunicação pura. Em si mesmas, as críticas de Habermas são frágeis. Uma utopia que conceba sua realização de forma não-utópica, como exige Habermas, não é mais uma utopia, e sim um programa político. A tese de que a utopia precisa demonstrar que as necessidades que ela aponta são obje tivas e realizáveis ignora o conceito capital do “excedente utópico”, o fato de que por definição ela não pode ser julgada pelo aqui-e-agora, de que ela remete, não a necessidades reais, mas a necessidades virtuais, não ao realizável no presente mas, precisamente, ao que não pode ser realizado no presente, e de que, enfim, não é o presente que legitima ou invalida a utopia, mas é ele, ao contrário, que se torna legível na pers pectiva da utopia. A exigência da refutabilidade da utopia pela realidade é atípica, dentro da tradição frankfurtiána: para ela, o discurso verídico não pode ser refutado pela “prova da realidade”, como pretende o posi tivismo, pois tal discurso, precisamente,’' nega a tal realidade, corrompida pelo Iluminismo, seu direito à existência. É por isso que Bloch está, nesse ponto, muito' mais próximo dos grandes postulados da teoria crítica do que Habermas: “enquanto a realidade não estiver completamente determinada... a mera realidade dos fatos não pode opor um veto absoluto à utopia. . . Se se conceder esse direito de crítica a qualquer realismo dos fatos no mundo exterior, o Existente e o Atual (Gewordenes') se petrificam, e sao elevados ao plano da realidade absoluta” ü2.
Sem esse “excedente” com relação a todas as realizações históricas da utopia, o conceito perderia sua corrosividade crítica, e se transformaria numa ideologia apologética. Enfim, a idéia de que a utopia deveria autolimitar-se, aceitando, de antemão, sua própria transformação no curso do processo de realização — “a utopia realizada seria outra” — é obviamente correta, mas não vale como crítica a Bloch, que jamais disse outra coisa. Para ele, a utopia é uma “forma experimental” (Versuchsgestalt), cujo conteúdo preciso não pode ser antecipado, e não o mapa de um futuro já previamente conhecido. Bloch faz a cartografia do passado e do presente, dos caminhos para a utopia, mas não da própria utopia; descreve a Sehnsucht, a nostalgia da pátria, objetivada na cultura, o desejo de “chegar em casa”, mas não descreve esse chegar em casa, nem especifica a geografia da “Heimat”: lugar tendencial da identi dade, cujas fronteiras, contudo, não podem ser determinadas no presente. 62 Bloch, E. Das Prinzip Hoffnung. v. 1, p. 226.
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Mas se as críticas de Habermas são pouco úteis para a compreensão de Bloch, são importantes para a compreensão do próprio Habermas. Através delas, Habermas está situando sua própria relação com a utopia. Na perspectiva da ação comunicativa, qualquer proposta de transforma ção política é de fato refutável, desde que os participantes do discurso prático no qual essa proposta é debatida a rejeitem, por intermédio de um consenso fundado. Se nas condições atuais os pressupostos do con senso fundado inexistem, a validade de qualquer projeto político está sempre sub judice, podendo, a qualquer momento, ser refutado, quando tais pressupostos se concretizarem. Nenhuma teoria pode substituir-se a esse consenso: somente ele pode legitimar o novo,te não uma suposta tendência imanente ao real. A legitimação não está inscrita no Ser — ela adere às próprias estruturas da comunicação humana e da intersubjetividade lingüisticamente mediatizada. É por isso que para Haber mas a utopia tem de ser extraída do Ser, e transposta para a interação humana. Qualquer ontologia, mesmo uma ontologia do Ainda-Não-Ser, como a de Bloch, é sempre reificante, na medida em que atribui às leis do real um dinamismo que na verdade é privilégio da organização intersubjetiva dos homens que agem e interagem, à base, não de leis objetivas, mas de normas sujeitas à revisão. A utopia é pensada por Habermas sob a forma de um telos — o da comunicação perfeita — inerente à estrutura da interação e do discurso. Não se trata mais de uma utopia vista como possibilidade real; enquanto projeto de uma vida nova, a utopia não pode ter suas raízes na esfera da razão instrumental, e sim na esfera da razão comunicativa. Ao mesmo tempo, a utopia não é, como para Adorno, apenas o ponto de fuga da dialética negativa, aquele fim ausente que não pode ser alcançado historicamente, sem capitulação diante da realidade repressiva. Como para Bloch, a utopia é possível; e ao contrário de Adorno, a utopia é necessária. A solução de Habermas é inscrever a utopia na esfera da razão comunicativa, como virtualidade num certo sentido já real, ou como realidade, ainda virtual: real,- como pressuposto de toda comunicação possível; virtual, porque a vida nova que ela supõe permanece, apesar de tudo, irrealizada. Cada ato linguís tico já representa em si um elemento mediador com a práxis, e ao mesmo tempo uma remissão a outra práxis, uma práxis utópica, baseada na comunicação livre de violência, uma utopia que é ao mesmo tempo um ponto de partida e um ponto de chegada, o telos de uma autonomia futura, e o gesto inaugural de autonomia, sem o qual toda comunicação é impossível, e esse telos não poderá ser alcançado. Para ele, como vimos, a comunicação exige a Unterstellung dessa condição messiânica, e ao mesmo tempo a consciência de que tal condição ainda não se
56 concretizou. Habermas não pode renunciar à grande tradição .escatológica que atravessa de ponta ■ a ponta o pensamento judaico-hegeliano-marxista; mas não se resigna, tampouco, à esperança desesperada de Adorno, que situa a utopia na própria negação, adiando, infinitamente, a realização de uma vida nova. É nesse ponto extremo, em que o reformismo radical de Habermas parece se distanciar mais da esperança messiânica de Bloch, que as duas reflexões se cruzam. Para Bloch como para Habermas — como para Marcuse — essa utopia negativa não basta. A esperança exige a felicidade aqui e agora. ' Pois “nada é mais contrário à certeza utópica que uma utopia condenada a uma corrida sem fim. Assim como é necessário que termine a su cessão dos instantes fugitivos e dos prazeres momentâneos, é também necessário que o presente tome o lugar da utopia, ou pelo mecos que este encerre um presente in spe, um presente utópico; é preciso atingir, no. final, quando nenhuma utopia for necessária, um Ser semelhante à utopia. O conteúdo essencial da esperança nao é a esperança; é exata mente por sua recusa de ver tal esperança frustrada que esse conteúdo é o Estar-Ali nao distanciado, o presente” 63.
A utopia realizada é a posse do instante —• quando o momento vivido, o gelebter Augenblick, até agora opaco, porque sempre inscrito nessa fluidez indefinida que se estende entre o passado e o futuro, tomar-se enfim transparente, na certeza final de um presente que libera o futuro truncado, prisioneiro do passado, e anula a Esperança, porque constitui a Esperança realizada. Mas para Habermas a posse do instante não está prefigurada no Ser: ela é uma conquista, e essa conquista exige a ação imediata, num presente que não corresponde necessariamente à descrição marxista, e onde o “gelebter Augenblick” não é somente o momento da stasis e da contemplação, mas também o da luta, mesmo reformista, aprofundando contradições que não se reduzem necessariamente à con tradição entre as forças produtivas e as relações de produção.
Numa de suas passagens mais visionárias, Bloch recorda umâ versão não-homérica da lenda de Helena, recolhida por Eurípides. Terminada a guerra de Tróia, Menelau volta para Esparta, com Helena a bordo, arrancada ao poder do inimigo, e aborda uma ilha egípcia. Subitamente, percebe, vindo a seu encontro, Helena — a verdadeira, a que nunca foi raptada por Páris, a que durante todo o cerco de Tróia aguardou, no Egito, a volta do marido. A outra, a Helena responsável pela guerra, 63 Bloch, E. Das Prinzip Hoffnung. v. 1, p. 366.
57 a que lançou mil naves ao mar, era um fantasma, inventado peia perfídia de Hera. Menelau se recusa a crer em seus olhos, até que um mensa geiro, vindo do navio, revela que a Helena que ficara a bordo se eva porara numa coluna de fogo. Mas a Helena verdadeira, a egípcia, parecia menos real que a de Tróia: porque a miragem tinha todo o peso, que a realidade não tinha, do sofrimento e da morte, da guerra e da aventura, da ilusão concreta, da história real. “Um excedente onírico subsiste e continua a fulgurar, resta" essa coluna de chamas, resta essa miragem que adquiriu vida própria... Foi a Helena troiana e não a egípcia que caminhou atrás de bandeiras, que se identificou com a nostalgia dos dez anos utópicos, com a dor amarga e o amor-ódio do marido traído, com todas essas noites passadas longe da pátria, com a vida selvagem dos acampamentos e com o prenúncio da vitória. . . A inconstante sereia de Tróia, à qual' se associa todo um mundo de crimes, de sofrimentos, mas sobretudo de esperança, assume nessa estranha aporia uma consistência quase real, enquanto a realidade por assim dizer se transforma em miragem.” 04
E no entanto a Helena de sonho já devia estar presente, de alguma forma, na Helena real; o fantasma não era outra coisa senão uma imago que se irradiava da Helena do Egito. Essa imago, já virtualmente presente no objeto, impulsionará Menelau em sua busca da verdadeira Helena,, que não é nem a de Tróia (onírica) nem a do Egito (realidade ainda virtual) mas uma fusão das duas: a identidade. “O repouso não será possível senão quando a Helena egípcia cintilar com o fulgor que aureolava outrora a de Tróia.” 05 Num certo sentido, é essa a utopia de Habermas: a fusão da imago e do corpo como telos tendencial, mas um telos que (ao contrário de Adorno) não é impossível, nem (ao contrário de Bloch) embutido no Ser como possibilidade real. Cada ato linguístico supõe que a coincidência entre sonho e realidade já ocorreu, ao mesmo tempo que as imperfeições do presente documentam da forma mais inequívoca que' esse encontro é ilusório °6. Mas se Menelau quiser manter viva a esperança de reencontrar, um dia, na mulher carnal a presença mais forte da mulher onírica, terá que inscrever essa esperança na estrutura da intersubjetividade. Pois a verdadeira miragem não é o fantasma troiano, e sim a idéia de uma utopia concreta habitando o Ser: é esta miragem, e não a outra, que bloqueia o acesso à utopia possível.* * * 04 Id„ ibid., p. 212. os Id„ ibid., p. 213. 66 V. p. 17 et seqs. desta coletânea.
58 6, Walter Benjamin No prefácio a este volume, Habermas recorda o papel de divisor de águas exercido por Benjamin com relação aos demais autores nele estu dados, e pelo qual tais pensadores se demarcam entre si. Podemos levar mais longe essa idéia, e dizer que em Benjamin os diferentes temas que consideramos exemplares —■ o do poder, o da hermenêutica, o da arte, o da não-identidade e o da utopia ■—• se cruzam, elucidando-se mutua mente. Estaríamos tentados a usar uma analogia espacial, tão ao gosto do próprio Benjamin, e dizer que todos esses temas convergem para um centro, como em Paris — “capital do século XIX” — em que todas as avenidas convergem para a Êtoile 67. O artigo de Habermas é suficientemente abrangente para dispensar-nos de insistir nesse contraponto. Nosso interesse, nesta introdução, é outro: trata-se de mostrar de que forma o próprio Habermas se situa com relação a tais temas, no contexto da obra de Benjamin. Podemos ser sintéticos, porque todos esses temas já foram mencionados antes, às vezes de forma exaustiva, e em todo caso são desenvolvidos nos diferen tes textos desta coletânea.
Em nenhum ponto, as posições de Habermas se opõem mais pro fundamente às de Benjamin que no conceito de poder. O tratamento dado por Habermas à concepção de Benjamin obscurece essa diferença. Vimos que para H. Arendt (e para Habermas) existe uma distinção básica entre violência e poder. Enquanto a primeira implica tratar os governados numa perspectiva objetivante, transformando-os em sujeitos passivos de uma vontade alheia, a segunda implica fundar a autoridade política num entendimento mútuo original, que gera poder e assegura sua durabilidade. Na linguagem de Habermas, o primeiro conceito incorpora relações de força, que se tornam invisíveis quando legitimadas pela ideologia, e o segundo se basearia num consenso válido, obtido em condições próximas da situação lingüística ideal. Essa distinção, para Benjamin, é substituída por outra, entre a violência geradora de direito e a violência conservadora de direito. Ao contrário de Habermas e H. Arendt, que acreditam na possibilidade de um poder fundado na não-violência, todo direito e todo Estado repousam, para Benjamin, na violência — seja na origem, seja na forma de exercício do poder. Ambas são repressivas, e estão sujeitas à lei da alternância, característica do 67 Cf. Adorno, Th. W. Charakteristik Walter Benjamins [Característica de Walter Benjamin]. In: — . Prismen. [Prismas]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1976. p. 295.
59 destino mítico, e pela qual uma ordem existente só é derrubada para ser substituída por outra, que será, por sua vez, derrubada por uma nova violência. Para quebrar a circularidade do mito, em que estão envoltas as duas modalidades de violência, Benjamin introduz o conceito de violência divina, que quebra o continuum da História, abolindo o direito. Não se trata nem de criar nem de conservar o direito, mas de fundar uma ordem (antimítica) além do direito. A violência divina (e aqui é visível a influência de G. Sorel) é idêntica à violência revolu cionária. Mais tarde, convertido ao materialismo histórico,’ Benjamin desenfatizaria os traços anarquistas dessa concepção, mas não para admitir a possibilidade de um poder fundado no Sonsenso, e sim em nome da eficácia política. É por isso que a citação feita por Habermas no fim do seu artigo: “Existe uma esfera de compreensão recíproca entre os homens, livre de violência, na medida em que é completamente ina cessível a ela —• a esfera autêntica do entendimento mútuo — a lin guagem” 68 69 é falaciosa. Se reintegrarmos em seu contexto essa citação extraída do ensaio “Sobre a crítica da violência” ’ verificamos que nessa passagem Benjamin admite que, de fato, existem possibilidades de um acordo não-violento, exemplificado na “conversa”, preliminar à con clusão de um contrato civil. Mas, Benjamin acrescenta a reserva crucial de que “a exclusão da violência, nesse caso, baseia-se expressamente numa circunstância significativa, que é a impunidade da mentira” 80. Ora, entre as condições do consenso fundado, apontadas por Habermas, figura a da veracidade, pela qual o sujeito não ilude aos outros, nem a si mesmo (falsa consciência). Sem dúvida, Habermas poderia alegar que a violência divina, indispensável quando inexistem condições para o diálogo, criaria, justamente, condições para um verdadeiro discurso: ela permitiria, pela primeira vez, a vigência da situação lingüística ideal, e, portanto, para um consenso fundado, além da lógica da violência. Essa interpretação, contudo, tem de ser vista com cautela, se levarmos em conta as considerações de Habermas sobre o “reformismo radical”.
As divergências são menos importantes no tema seguinte, que é o da hermenêutica. Habermas assinala a influência exercida por Scholem sobre Benjamin. Na tradição da cabala e do comentário talmúdico, Benjamin examina os monumentos da cultura como se fossem textos a 68 V. p. 206 desta coletânea. 69 Benjamin, W. Zur Kritik der Gewalt [Sobre a crítica da violência]. In: — . Zur Kritik der Gewalt unâ andere Aufsdtze. [Sobre a crítica da violência e outros ensaios]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1971. p. 48.
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serem decifrados, embora tal exegese seja secularizada. Nas palavras de Adorno, “seu ensaísmo consiste em tratar textos profanos como se fossem sa grados. . . (apesar de) encarar a profanação como a única oportunidade de salvar o patrimônio teológico... A faculdade exegética transformou-se no poder de desvendar as manifestações e enunciados dá cultura burguesa como hieróglifos do seu segredo mais impenetrável — como ideologias” 70.
Essa idéia está ligada à concepção benjaminiana da linguagem como manifestação, pela qual os homens e as coisas revelam sua verdadeira essência, que embora em si mesma inefável, pode ser parcialmente decifrada através de um trabalho de interpretação. Vimos que a herme nêutica de Habermas (especialmente em trabalhos como Conhecimento e interesse') conserva traços dessa esperança de chegar à verdade, através da interrogação dos textos. Ao mesmo tempo, vimos também os limites dessa analogia. Apesar da citação acima de Adorno (e nesse ponto o artigo de Habermas é muito enfático), a crítica de Benjamin não é uma crítica da ideologia. Ela não está voltada para a desmistificação dos textos da tradição, e sim para a redenção dos seus momentos verda deiros, ameaçados de se perderem para sempre, sucumbindo à sucção do mito. Habermas, ao contrário, embora totalmente atento à impor tância de preservar a tradição, preocupa-se em distinguir nela os verda deiros e os falsos conteúdos. Sua hermenêutica transforma-se em crítica da ideologia quando se confronta com falsas objetivaçoes, tanto na esfera do conhecimento (falsa consciência objetivista) como na esfera da cultura (legitimações destinadas a impedir a tematização discursiva, distorcendo o consenso). Diferença, mais uma vez, ilustrada no tema da linguagem. Para ele, linguagem não é primariamente manifestação, mas veículo de entendimento mútuo, no contexto da ação comunicativa; não se trata, portanto, de salvar potenciais semânticos ameaçados, como para Benjamin, mas de desmascarar as deformações sistemáticas da comuni cação lingüisticamente mediatizada, criando condições para uma situação lingüística ideal. Podemos ser mais sucintos no próximo tema — a arte — que, embora o mais central para Benjamin, é bastante periférico para Haber mas. Basta recordar que é nesse ponto que a distância entre ambos é a mais reduzida. Habermas, como vimos, não partilha o temor dos demais frankfurtianos quanto à dissolução da arte autônoma. Mais 70 Adorno, Th. W. Charakteristik Walter Benjamins. In: •— . Prismen. p. 291-2. r
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sensível que eles às tendências negadoras embutidas na modernidade, Hãbermas não considera a de-sublimação da arte, iniciada com a perda da aura e radicalizada com sua incorporação à vida pelo surrealismo e seus sucessores, como o prenúncio de uma nova barbárie, e como o indício de sua absorção pela ordem iluminista. Se sua atitude com relação ao desaparecimento da aura contém, apesar de tudo, elemen tos de ambivalência, é também esse o caso de Benjamin, como ele próprio assinala em seu ensaio. O tema da não-identidade assume, em Benjamin, a forma de uma recusa de qualquer visão sistemática, que anule o particular e.o frag mentário numa totalização abstrata. Como em Adornór a não-identidade é parte de uma atitude teórica hostil à síntese. Mas enquanto em Adorno essa atitude tem o sentido em última análise político de salva guardar o pensamento em sua dialética viva, evitando uma cooptação possível pelo presente, dominado por uma identidade repressiva, tal atitude, para Benjamin, não tem o estatuto de uma ascese do Espírito, que se recolhe em si mesmo para manter sua negatividade, e sim o de um estilo cognitivo adaptado a um real em si fragmentário. O mundo não é a totalização fechada descrita pelos frankfurtianos, mas uma superfície descontínua de objetos particulares, suscetíveis de decifração. “Benjamin estabelece sua relação com o Absoluto não a partir do conceito, mas.por meio de uma imersão sensorial nas substâncias. Tudo aquilo que resiste à experiência poderá ser absorvido por ela, desde que ela insista em sua própria concreção, em vez de dissolver essa con creção — sua parte imortal — submetendo-a ao esquema dc universal abstrato. . . [Manteve toda a sua vida] a concepção do fragmento como forma filosófica, que exatamente por seu caráter descontínuo e incom pleto conserva algo daquela força do universal, que se evapora nos sistemas abrangentes.” 71
Também Adorno sustenta o primado do particular — pois “o todo é o inverídico” — e defende o que chama de “método imanente” — a imersão tão radical no particular que ele acaba revelando o universal — contra o “método topológico”, que se limita a situar o objeto no espaço social, anulando-o 72. Mas a diferença é que para Benjamin o real conserva sua natureza fragmentária, enquanto para Adorno o par71 Adorno, Th. W. Einleitung zu Benjamins Schriften [Introdução aos escritos de Benjamin]. In: — . Ueber Walter Benjamin [Sobre Walter Benjamin]. Frankfurt/ M., Suhrkamp Verlag, 1970. p. 35-7. 72 Adorno, Th. W. Kulturkritik und Gesellschaft [Crítica da cultura e sociedade]. In: — . Prismen.
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ticular já foi virtualmente absorvido pela totalização iluminista. Para Benjamin, a crítica da cultura se resume, de certa forma, na leitura de uma realidade fragmentária visível a céu aberto. Sem dúvida, para essa leitura é necessário um “olhar alegórico”, no sentido que Benjamin dá ao termo alegoria: a figura que, ao contrário do símbolo, não exprime a harmonia, mas o declínio, não a transfiguração estética do sofrimento, mas o próprio sofrimento, como substrato inalterável da história humana. “Enquanto no símbolo, como metamorfose do declínio, o rosto trans figurado da natureza se revela, à luz da redenção, num clarão efê mero, a alegoria confronta o observador com a fácies hippocratica da história, sob a forma de uma paisagem primordial, ' petrificada.. . A história, em tudo o que ela comporta de abortado, de sofrido, de malo grado, se exprime num rosto — não, numa caveira. . . Este é o cerne da perspectiva alegórica, a expqsição mundana, barroca, da história como a história mundial do sofrimento . . . A imagem no campo da intui ção alegórica é o fragmento, a ruína. Sua beleza simbólica se evapora. . . O falso brilho da totalidade se extingue. . . .A história se apresenta. . . não como um processo de vida eterna, mas um processo de decom posição irresistível. Com isso, a alegoria se situa além do Belo. As alegorias constituem, no reino do pensamento, o que as ruínas cons tituem, no reino das coisas... O que está reduzido a escombros, o destroço significativo, o fragmento: tudo isso constitui a matéria mais nobre da criação barroca.” 73
Também Adorno quer recapturar, no presente, a memória do sofrimento passado. Mas para ele essa tarefa é especialmehte difícil, pois o presente assume a fachada de uma paisagem contínua, sem contradições, sem sofrimento, sem mutilações: uma caricatura da estética do símbolo. Mas para Benjamin a fácies hippocratica já é visível. Atrás dos edifícios, as ruínas da velha ordem já se acumulam. Para ele, a alegoria, num certo sentido, já está inscrita na realidade. As construções nas quais a burguesia objetivou suas fantasias, por exemplo, já começam a ruir, antes mesmo de sua destruição efetiva. “Balzac foi o primeiro a mencionar as ruínas da burguesia. . . Mas so mente o surrealismo permitiu discerni-las. . . O reino da mercadoria já está abalado, e por essa razão começamos a reconhecer os monumentos da burguesia como ruínas, antes mesmo do seu desabamento.” 74 73 Benjamin, Walter. Ursprung des Deutschen Trauerspiels [Origem da tragédia alemã]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1978. p. .145, 154-6. 74 Benjamin, Walter. Paris, die Hauptstadt des XIX Jahrhunderts [Paris, a capital do século XIX]. In: — . Illuminationen [Iluminações]. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag, 1977. p. 183-4.
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Para Benjamin, o olhar alegórico consegue perceber o mundo como ruína porque o presente já tem o potencial para destruir efetivamente a ordem antiga: estão dadas as condições para uma iluminação profana, para uma percepção da história do mundo como história mundial do sofrimento, para essa “imobilização messiânica” do fluxo histórico, pela qual uma classe revolucionária interrompe o continuum do tempo e redime o pas sado oprimido.
É esse, para Benjamin, o sentido da não-identidade: recusa de qualquer- totalização, ao nível do pensamento — pois só o' fragmento dá acesso à verdade — e visão do mundo objetivo como um mundo intrinsecamente fragmentário, e que por isso mesmo nab pode sucumbir a nenhuma totalização histórica definitiva. Desse duplo ponto de vista, a posição de Habermas se aproxima da de Benjamin. Do ponto de vista cognitivo, porque qualquer pretensão totalizante é excluída por um tipo de pensamento, como o de Habermas, cuja validade é sempre condicionada pela estrutura de interesses inva riantes em que ele se enraíza. A aspiração sistemática implica a supo sição de que os conceitos possam captar, sem deixar resíduos, a totali dade do real: ora, a teoria dos interesses cognitivos exclui, de início, qualquer contato não-mediatizado com o real. Por outro lado, esse saber mediatizado precisa ainda legitimar-se por um processo de eluci dação discursiva, o que contribui mais ainda para desqualificar qualquer utopia cognitiva: a de um saber fáustico, em que a consciência e o real possam finalmente coincidir. E do ponto de vista histórico-filosófico, porque também para Habermas o presente é móvel, e comporta uma abertura para o novo, aspecto já suficientemente estudado no confronto entre Habermas e Adorno. Somente, essa abertura não está predeter minada por tendências objetivas. A validade do olhar alegórico — que descobre atrás da harmonia a catástrofe — e a do olhar utópico — que descobre no velho e no sempre-igual a latência do novo — não depen dem, primariamente, do desenvolvimento das forças produtivas. São os homens que, agindo e interagindo num processo de comunicação tendencialmente livre de violência, acabam produzindo interpretações em que podem objetivar-se tanto a visão crítica como a utópica, tanto a consciência alegórica, que aponta para o sofrimento, como a consciência antecipante, impulsionada pela esperança.
Finalmente, o último tema — o da utopia — pode ser introduzido com a citação de um texto capital, em que Benjamin descreve um quadro de: Kiee, o Angélus Novusx
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“Ele representa um anjo, que parece querer afastar-se de algo, que encara com temor... Seu rosto está voltado para o passado... Este é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da História. Nos lugares em que para nós emerge uma seqüência de acontecimentos, ele percebe uma única catástrofe.. . Ele gostaria de permanecer, para ressuscitar os mortos e reparar as ruínas. Mas, uma tempestade vinda do paraíso... o impele incessantemente em direção ao futuro, para o qual dá as costas... A tempestade é o que chamamos de progresso” 75.
A concepção do progresso, subjacente tanto ao otimismo burguês como ao reformismo social-democrata, tem como substrato uma con-. cepção otimista da História, para a qual a humanidade caminha em direção a um objetivo futuro. Mas a verdadeira salvação não está no futuro, e sim, de certa forma, no passado. O papel da revolução está em dar “um salto de tigre em direção ao passado” 76, a fim de liberar os diversos presentes cativos, e que aguardam de nós a sua redenção. Pois a nós, como a cada geração, foi concedida uma “frágil força mes siânica” que nos permitiria, em cumplicidade com os mortos — as gerações incontáveis dos oprimidos ao longo de todo o passado humano —• corrigir os desastres da história e recompor os escombros acumulados por essa “tempestade a que chamamos progresso”. Essa concepção “barroca” da história, em que ela é vista alegoricamente, no sentido preciso que Benjamin dá ao termo — a história do mundo como um acúmulo de ruínas — tem, sob certos aspectos, algumas analogias com a concepção de Bloch. Convém lembrar que se Benjamin conhecia O espírito da utopia, publicado em 1919, Bloch certamente conhecia as teses sobre a filosofia da História, das quais extraímos os fragmentos acima, e que foram publicadas em 1942 por Horkheimer e Adorno. Ê o que explica a forte presença em Bloch de motivos benjaminianos. A frase de O princípio esperança, já citada: “o futuro não-realizado se toma visível no passado, enquanto o passado, vingado e recolhido como uma herança, toma-se visível no futuro” 77, é praticamente uma paráfrase daquelas teses. A concepção do sonho prospectivo, de Bloch — o Trâumen nach Vorwãrts — já está prefigu rada na tese de Benjamin de que “cada época sonha não somente a próxima, mas ao sonhá-la força-a a acordar” 78. Mesmo a concepção da 75 Benjamin, W.- Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito de História — muitas vezes também citado como Teses sobre a filosofia da História]. In: — . Illuminationen. p. 255 (a passagem citada provém da IX tese). 78Id., ibid., p. 259. 77 V. p. 47 desta coletânea. 78 Benjamin, W. Paris, die Hautpstadt des XIX Jahrhunderts. Op. cit. p. 184.
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utopia tem alguns elementos comuns: é totalmente benjaminiana a idéia de que os monumentos da cultura, desde as vitrinas até as exposições universais, contêm momentos utópicos: “as experiências [arcaicas] que se depositam no inconsciente coletivo, impregnando-se do novo, produzem a utopia, que deixa seus vestígios em mil configurações da vida, desde os edifícios duráveis até as modas efêmeras’" 79.
Dito isto, contudo, é óbvio que no essencial a “utopia retrospectiva” de Benjamin tem muito pouco em comum com a utopia decididamente prospectiva de Bloch. A epígrafe de Karl Kraus que Benjamin coloca no pórtico de sua XIV Tese — Ursprung ist das Ziel (A origem é o alvo) — reflete um pensamento que está nos antípodas do pensamento de Bloch. Essa citação poderia resumir, para ele, todos os equívocos da filosofia passada, para a qual o novo é um mero desdobramento da origem, e que desde Platão e Hegel está, sob o signo de uma teoria do conhecimento baseada na anâmnesis. Para Bloch, o Anjo da História está de face para o futuro, e não para o passado. Sem dúvida, ele também pode olhar para trás: mas nessa visão retrospectiva, o panorama não é o de uma sucessão de ruínas, e sim o de uma sequência de monumentos, que em sua imperfeição mesma constituem a objetivação de uma grande esperança utópica.
A concepção benjaminiana da utopia não é de todo estranha ao pensamento de Habermas. Em sua discussão do freudismo, por exemplo, ele vê na cultura a sedimentação dos fantasmas projetivos da humani dade, ao longo de toda a sua história. Esses fantasmas são o produto de uma repressão pulsional, e nesse sentido documentam o sofrimento acumulado na cultura; mas são também a objetivação de um desejo emancipatório, e nesse sentido deixam manifesta a dimensão libertadora da cultura. Por isso, a reestruturação da vida, sob a impulsão do inte resse emancipatório, em direção ao modelo da comunicação pura, pres supõe que esses momentos cativos no passado venham a ser liberados: organizar comunicativamente a vida nova, significa “tornar reais partes da tradição .cultural que no início só tinham um conteúdo projetivo. . . as ilusões. . . também encerram a utopia” 80. Além disso, Habermas concordaria com Benjamin da forma mais enfática na repulsa à filosofia do progresso automático, segundo a lógica do desenvolvimento das forças produtivas. A crítica de Benjamin ao economismo social-democrático, 79 Id„ ibid., p. 172. 80 Habermas', J. Erkenntnis und Interesse, p. 340.
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que acredita que “a classe operária nada com a corrente”, e que eco desenvolvimento técnico é a escala para medir essa corrente, com a qual julga nadar” 81 corresponde à posição de Habermas, contrária à inscrição da utopia na lei imanente do real.
Mas tais, analogias se tomam artificiais, âe levarmos em conta uma diferença capital, que salta aos olhos: Habermas não aceita a estranha concepção antievolucionista da história, que leva Benjamin a identificar progresso com catástrofe. Se não concorda necessariamente com o evolucionismo marxista, que escande a história humana segundo linhas de partilha correspondentes à sucessão dos modos de produção, afirma, apesar de tudo, a existência de um progresso, não somente na infra-estrutura como também na ordem da cultura e do poder. Seu otimismo com relação ao presente não é o otimismo apocalíptico de Benjamin, que valoriza esse presente somente na medida em que ele permite, explo dir o continuúm da história. O otimismo de Habermas inclui uma avaliação positiva das conquistas graduais da humanidade em direção à sua auto-emancipação. Em sua fase atual, a humanidade teria condições de começar a construir discursivamente seu destino, com vistas a tomar possível uma intersubjetividade livre, baseada numa comunicação que não seja nem inibida pela força, nem deformada pelas falsas legitimações. Para ele, os ganhos do progresso, que levaram a esse estágio, não podem ser considerados meros escombros, produzidos por essa “tempestade a que chamamos progresso”. E, no entanto, cõm todo esse otimismo, que o distingue tão visce ralmente de Adorno, Habermas, no ensaio sobre Benjamin, parece fazer uma curiosa autocrítica, que não encontramos em nenhum outro traba lho. Ele se pergunta: e se, chegado o momento de organizar discursiva mente a vontade dos homens, estes tivessem perdido a capacidade de interpretar a vida justa? Se, chegado o momento em que os homens, emancipados de todas as repressões, pudessem, enfim, conversar uns com os outros, eles descobrissem que não têm, afinal, nada a se dizerem? E se Benjamin tivesse razão? E se, com a falência da crítica redentora, o passado que Benjamin queria salvar tivesse sido tragado, para sempre, pelo abismo sem fundo do mito, perdendo-se, irremediavelmente, os conteúdos semânticos da tradição, além de qualquer possibilidade mes siânica de “colagem dos vasos”?
Com essas perguntas, Habermas se reaproxima da grande tradição da teoria crítica. Como seus predecessores, seu otimismo se tinge de 81 Benjamin, W. Über den Begriff der Geschichte. Op. cít. p. 256.
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melancolia. Todo o seu esforço teórico consistira em dar à esperança uma base estável, inscrevendo-a na estrutura da ação comunicativa: salvando-a do “aristotelismo” de Bloch, que a confinara numa natureza historicizada; do determinismo de Marcuse, que funda o advento do reino de Orfeu e Narciso no desenvolvimento das forças produtivas; e da indeterminação absoluta de Adorno, que se recusa a dar à esperança qualquer ancoragem, seja no sujeito, seja no objeto. Concluído esse esforço, Habermas parece perguntar-se se a esperança pode, afinal, ser fundada teoricamente. A melhor fórmula talvez seja ainda' a de Benjamin: a esperança existe porque não podemos deixar de esperar. Pois “é somente por causa do desesperado que a espei-ança nos foi con cedida” 82
S2 Benjamin, W. Goethes Wahlverwandtschaften [As afinidades eletivas de Goethe]. In: — . Illuminationeh. p. 135.
PREFÁCIO AO LEITOR BRASILEIRO
Foram escolhidos, para este volume, seis ensaios escritos em dife rentes ocasiões, e que no entanto, apesar dos seus traços circunstanciais, vinculam-se entre si, tantó do ponto de vista formal como temático. Tecnicamente, trata-se de duas resenhas (Marcuse e Bloch), de dois necrológios (Adorno, Hannah Arendt) e de dois discursos comemo rativos (Benjamin, Scholem). Do ponto de vista da forma, estes trabalhos pertencem ao gênero do ensaísmo filosófico, ao qual os próprios autores tratados neste volume deram contribuições brilhantes. Refiro-me ao essay, que vive da circuns tância que lhe deu origem e de uma temática atual e não ao tratado, filosoficamente maduro, o qual, como nos casos famosos de um Locke, Leibniz ou Hume, é caracterizado, com algum understatement, como ensaio, O ensaio filosófico paga por suas vantagens o preço de ser menos rigoroso \ mas essas vantagens, apesar de tudo, são reais, em confronto com as formas mais sistemáticas de apresentação que predominam hoje na Alemanha Federal, sob a influência da filosofia analítica. Graças a seu caráter literário, o ensaio tem acesso mais fácil à consciência pública 1 Sobre o rigor específico à forma ensaística, cf. Adorno, Th. W. Der Essay ais Form [O ensaio como forma]. In: —. Noten zur Literatur [Notas sobre a litera tura]. Berlin-Frankfurt/M. 1958. v. 1, p. 9-49.
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e, portanto, maior eficácia do ponto de vista publicístico. Permite, além disso, uma tomada de posição mais aberta e associações mais flexíveis, e exprime a tensão entre os diferentes pontos de vista com maior natu ralidade que uma apresentação sistemática, que aprofunda uma deter minada posição sem tornar visíveis as suas limitações. E, finalmente, o ensaio não se limita à esfera de uma única disciplina, e assim o pensamento filosófico em sua forma ensaística pode comunicar-se de maneira mais fácil com a política, a arte e a religião. Ê especialmente essa circunstância que adquire em nosso contexto, como veremos, uma importância particular. Este louvor do ensaísmo não deve, entretanto, ser interpretado como se não fosse possível apreender de tais autores nada que seja significativo para a solução de questões sistemáticas. Naturalmente, meu interesse em seus trabalhos se justifica pelo fato de que utilizo seus argumentos para os meus próprios trabalhos. É o que pode ser comprovado naquelas passagens em que me refiro a esses autores 2. * * * * * A afinidade entre os cinco filósofos, à qual me refiro (peço a indulgência de Scholem por incluí-lo entre os filósofos), precisa ser justificada. Todos conheceram-se pessoalmente; . suas relações intelec tuais foram muitas vezes tensas, chegando ao ponto da polêmica. Mas essas tensões, das quais a crítica de Scholem contra o livro de Hannah Arendt sobre Eichmann8 é exemplar, não tiveram grande importância teórica. A rede complexa de suas inter-relações tornou-se teoricamente fecunda, na medida em que os participantes definiram-se reciprocamente a partir de Benjamin. O fato de o ensaio sobre Benjamin ser o mais extenso de todos é fruto do acaso, mas adquire sentido simbólico se levarmos em conta que Benjamin, tão cedo desaparecido, transformou-se em um foco secreto, em tomo do qual os outros formaram involunta riamente um círculo. Adorno, H. Arendt e Scholem escreveram mono2 Sobre H. Arendt: Strukturwandei der Ôffentlichkeit. p. 13 et seqs.; Die Geschichte von den zwei Revolutionen [A história das duas revoluções]. In: Habermas, J. Kultur ünd Kritik. p. 365-70. Sobre Th. W. Adorno: Theorie und Praxis. p. 435 et seqs.; Ein philosophierender Intellekíueller [Um . intelectual filosófico]. In: Habermas, I. Philosophisch-politische Profile. p. 176-83. Sobre Ernst Bloch: Theorie und Praxis. p. 267. et seqs. Sobre H. Marcuse: Technik und Wissenschaft ais Ideologie. p. 48 et seqs.; Einleitung zu einer Anti-Festschrift [Introdução a uma anticomemoração]. In: Philosophisch-politische Profile. p. 168-75. Sobre G Scholem: Theorie und Praxis. p. 184 et seqs. 8 Reimpressa em: Scholem:, G. On jews and judaism. New York, 1976. p. 298-306.
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grafias sobre Benjamin 4, enquanto os incentivos intelectuais de Benjamin são sensíveis nos trabalhos estéticos de Bloch e Marcuse. As afinidades também transparecem sobre o pano de fundo de outras filosofias. Em contraste com Heidegger, Jaspers e Gehlen, os seis filósofos aqui estudados deixaram a Alemanha, regressando depois da guerra, senão em pessoa, pelo menos através de publicações prestigiosas. São representativos da posição intelectual virtualmente hegemônica assumida pela inteligência judaico-alemã, depois que o fascismo compro metera quase todo o resto. Analisei em outro artigo o fenômeno do “idealismo alemão dos filósofos judeus” do ponto de vista da história das idéias, e se se quiser, da política das idéias B. A este contexto per tencem Ernst Bloch, Max Horkheimer, Karl Lõwith, Georg Lukács, Helmut Plessner, Eric Voegelin e um pouco mais tarde, Norbert Elias. Eles se distinguem, por sua vez, de emigrantes voltados para a filosofia analítica, como Ludwig Wittgenstein, Karl Popper e Rudolf Carnap, por sua orientação continental, arraigada às tradições alemãs. Os pensadores ligados àquelas tradições alemãs mantiveram uma distância salutar com relação a esta última corrente.
Na fase da restauração econômica e social que se seguiu ao inter regno entre 1945 e 1948, foram rapidamente traçados os rumos que poderiam facilmente levar a falsas positividades. Nesse clima, o desen volvimento cultural da Alemanha Federal teria assumido uma direção diferente e em minha opinião mais perigosa se o espírito judaico-alemão não tivesse desenvolvido uma produtividade tão eminentemente eficaz. São os olhares de Marx, Freud e Kafka, aguçados com as experiências históricas do exílio e da opressão, que desnudam os fragmentos (social mente alienados, psiquicamente reprimidos e, num sentido ao mesmo tempo metafísico e clínico, petrificados) de contextos vitais compulsiva mente integrados e mutilados. São esses olhares que dirigem a força iluminadora da reflexão para as camadas mais profundas. Cada um dos seis autores com que me ocupo demonstra, à sua maneira, uma extrema sensibilidade por tudo aquilo que se desvia da norma ou é subterranea mente anarquista — certamente não são pensadores da ordem. A sen sibilidade por tudo o que permanece incompleto na integração social e psíquica, nas vitórias históricas e culturais, nos êxitos aparentes da 4 Adorno, Th. W. Über Walter Benjamin [Sobre Walter Benjamin]. Frankfurt/M., 1970; Arendt, H. Benjamin-Brecht. München, 1971; Scholem, G. Walter Benjamin — Die Geschichte einer Freundschaft [Walter Benjamin — a história de uma amizade]. Frankfurt/M., 1975. sHabermas, J. [O artigo está contido nesta coletânea, p. 77-99].
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práxis e mesmo da teoria, manifesta-se de diferentes formas: no interesse de Benjamin pelas rupturas da continuidade histórica; na profissão de fé de Adorno pelo fragmentário como forma de conhecimento, e em sua rejeição do sistemático; na busca das forças inovadoras da religio sidade não oficial segundo Scholem; na sensibilidade de Bloch em fastrear o utópico, mesmo nas produções mais banais; na esperança marcuseana na produtividade política dos grupos marginais; na paixão de Hannah Arendt por aqueles raros momentos históriços em que a massa, da qual se formam as instituições, ainda4iguarda, sua fluidez.
Essa receptividade para os elementos expelidos e. despercebidos da História (e por isso mesmo necessitados de salvação; anima o pensa mento crítico, em suas intenções práticas. Por isso, a filosofia não é para esses pensadores algo de puro e intocável, remoto do cotidiano político. A significação de Marcuse para o movimento estudantil é conhecida. A filosofia de Bloch se deixou impregnar por seu jornalismo político desde o início da Primeira Guerra Mundial6. O engajamento político de Hannah Arendt revela-se em seus livros sobre totalitarismo, sobre Rahel Varnhagen e sobre a revolução, assim como em seus artigos controvertidos sobre o processo de Eichmann, sobre o Vietnã, sobre a contestação estudantil, etc. 7 Scholem defendeu toda'sua vida a causa do sionismo, em uma versão muito própria8. Somente Benjamin e Adorno reagiram politicamente, de modo mais discreto, alcançando impacto político indiretamente, em especial por meio da crítica estética. Todos eles, porém, mantêm-se próximos da atualidade do momento histórico; não são especialistas em lógica, metafísica, ética, não são filó sofos acadêmicos; amalgamam conceitos extraídos do cerne da tradição filosófica — isto é válido mesmo para o filólogo e historiador Scholem — com. o aparentemente efêmero, com as contingências diárias, com as experiências biográficas fugidias, com as inflexões do espírito do Tempo, que se refletem tanto nas rupturas estilísticas, nas novas tendências e nas modas, como nos riscos que se acumulam lentamente e nas catás trofes históricas. Seu espírito está contido em membranas absorventes; é essa estimulação, essa excitabilidade (Reizbarkeit), que transforma os sábios em intelectuais. 6 Cf. Bloch, Ernst. Politische Messungen, Pestzeit, Vormãrz [Avaliações, O tempo de peste, O pré-março]. Frankfurt/M., 1970. 7 Arendt, H. Crisis of the Republic. New York, 1969. 8 Um excelente exemplo é proporcionado pela entrevista de Ben Ezer com Scholem, em 1970: Zionism-dialectic of continuity and rebellion. In: Unease in Zion. New York, 1974. p. 263-96.
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Tal excitabilidade intelectual explica a facilidade com que na obra desses autores o pensamento filosófico comunica-se com experiências de outras áreas: política, arte e religião. Essa comunicação, que trans cende os limites outrora claramente definidos, adquire um valor “sismo gráfico” surpreendente, porque as relações entre a política, a arte e a religião modificaram-se, hoje, de forma significativa. Não posso, aqui, aprofundar-me nos processos históricos comple xos que permitiram que entre os séculos XVI e XVIII, na Europa, a economia fosse definida no contexto das relações de mercado dos pro prietários de mercadorias; a política, no contexto do Estado moderno; a arte, no contexto de uma atividade artística autonomizada, e de uma fruição estética individual; e a religião, no contexto de uma adminis tração despolitizada dos bens de salvação (Heilsgütef) e de uma atitude subjetiva dos crentes. Nos livros-textos sobre sociologia, a divisão em subsistemas — economia e política; sociedade e cultura; ciência, arte e religião — facilmente adquire um ar de eternidade; ela faz esquecer que nessas subdivisões a “esfera dos valores” espelha uma constelação histórica que — como bem sabia Max Weber •— possui um significado reduzido. Ê verdade que mudanças de grande repercussão histórica, mas ainda imprecisas, não podem ser percebidas com clareza, enquanto estão se processando; os indicadores, em que tais mudanças estruturais se manifestam, permitem múltiplas interpretações. Os sociólogos só reformulam seus conceitos quando a percepção se torna inequívoca; entrementes, podemos aprender muito com os pensadores mais ades trados na arte de captar os sintomas.
Marcuse e H. Arendt, partindo de posições quase que diametral mente opostas, chegam a um diagnóstico semelhante quanto à “desestatização da política”. As formas clássicas da política estatal estão sendo questionadas tanto por uma burocracia que penetra todas as esferas da vida, como por movimentos democráticos radicais que surgem esponta neamente, reagindo contra essa burocratização. Benjamin e Adorno, partindo de posições análogas, assumem pontos de vista contrários em sua avaliação 'da “desestetização”. (JEntkunstung} da arte, essa mesma arte que se cristalizou, no período moderno, como uma esfera autônoma. O desenvolvimento da vanguarda, que despe a obra de arte de sua aura, desemboca para Benjamin, de maneira surrealista, em um estado de coisas em que a cultura permeia a práxis da vida e nela se dissolve, enquanto Adorno reconhece na arte da propaganda e da contracultura os traços da cultura de massas, contrapondo-lhe uma abstração tornada
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completamente esotérica. Bloch e Scholem, finalmente, aproximam-se, um de forma materialista e o outro de forma idealista, do mesmo fenô meno, ou seja, a religiosidade que transcende sua mera secularização. Ambos percebem que a inserção da tradição religiosa na consciência histórica profana transmite a essa consciência uma tensão nova entre recordação e antecipação, tradição e utopia.
Espero que essas alusões sumárias tomem compreensível a sele ção feita. Considero essa escolha tanto mais acertada, quanto os autores por mim analisados já são conhecidos no Brasil, através de' uma série de traduções. Seria um grande prazer para mim se minhas contribuições pudessem animar e reforçar o debate que nos últimos tempos se instau rou no Brasil, em tomo, especialmente, de Adorno, Benjamin e Marcuse. JÜRGEN HABERMAS
Starnberg, setembro de 1978
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TEXTOS DE HABERMAS
Seleção e Tradução: Barbara Freitag Sérgio Paulo Rouanet
1. O IDEALISMO ALEMÃO DOS FILÓSOFOS JUDEUS *
“O judeu nao pode desempenhar qualquer papel criador na vida alemã, nem para o bem nem para o mal.”
Essa frase de Ernst Jünger sobreviveu ao anti-semitismo dos “con servadores-revolucionários”, em cujo nome foi escrita há uma geração. Ouvi a mesma afirmação há poucos anos no seminário filosófico de uma das nossas grandes universidades. Os judeus, dizia-se, podem tomar-se no máximo estrelas de segunda grandeza. Na época, ainda estudante, não refleti sobre essa frase; certamente já havia lido Husserl e Wittgenstein, Scheler e Simmel, sem me ter dado conta da origem desses pensadores. Mas o famoso professor de Filosofia que negava a seus colegas judeus qualquer criatividade, conhecia essa origem. Os elementos de tal ideologia, cujo absurdo pode ser demonstrado por qual quer enciclopédia, permaneceram estranhamente fixos e incontestados. Se se quisesse analisar uma constelação intelectual como a da Filosofia alemã do século XX, dissecá-la em seus elementos constitutivos e avaliá-la, seria necessário destacar a hegemonia, exatamente no domínio supostamente reservado à profundidade filosófica alemã, daqueles que tal preconceito pretendia relegar às antecâmaras do gênio, atribuindo-lhes um talento meramente crítico. * Reproduzido de Habernías, J. Der deutsche Idealismus der jüdischen Philosophen — 1961. In: ■—. Philosophisch-politische Profile. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973. p. 37-66.
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Buber, vinculado à última fase da mística judaica. O hassidismo polonês e ucraniano do século XVIII extrai suas idéias dos escritos cabalísticos, mas a doutrina assume uma posição tão secundária com relação à perso nalidade dos santos hassídicos, que a figura ideal, transmitida pela tra dição, do rabino erudito se apaga diante do Zaddík popular, cuja exis tência se identifica com a Tora viva e integral. No zelo de Buber contra a doutrina racionalisticamente petrificada dos rabinos, em sua apropria ção da religião do povo, cheia de fabulações míticas e visões místicas, surge a centelha de um novo pathos, que se exprime numa forma exis tencial de filosofar: ■t' ,vCom a destruição da comunidade judaica, reduziu-se a fecundidade da luta espiritual. Todas as forças espirituais passaram a concentrar-se na preservação do povo contra as influências externas, na rigorosa delimitação do próprio domínio, para impedir a penetração de tendências estranhas, na purificação dos valores, para prevenir todos os desvios, e numa formulação religiosa capaz de afastar qualquer mal-entendido e toda interpretação divergente, isto é, uma formulação racionalmente coerente. Em vez do elemento exigente, criador, impregnado de Deus, afirmou-se o elemento rígido do judaísmo oficial, voltado para a mera conservação, para a mera continuação, para a mera autodefesa. Tal judaísmo voltou-se cada vez mais contra tudo o que é criador, que por sua audácia e liberdade parecia ameaçar a existência do povo judeu, tornou-se inquisitorial e inimigo da vida". O impulso hassídico, no entanto, só encontrou sua linguagem filosó fica na obra de Franz Rosenzweig. Rosenzweig, que traduziu a Bíblia para o alemão, juntamente com o seu amigo Buber, trabalhara como discípulo de Friedrich Meinecke na Filosofia de Estado, de Hegei. Em seu grande esboço, tenta, como já indicado no título do seu livro em três volumes ■— A estrela da redenção —, uma interpretação do pensa mento idealista a partir das profundidades do misticismo judaico. Não somente é um dos primeiros a vincular-se ao'pensamento de Kierkegaard, como incorpora’ motivos do chamado idealismo tardio, sobretudo da última Filosofia de Schelling, revelando assim a genealogia da Filosofia existencial décadas antes de sua laboriosa redescoberta pela historiografia filosófica oficial. A questão fundamental que destrói a autoconfiança idealista na força do conceito é a seguinte: "Como pode o mundo ser contingente, embora deva ser pensado como necessário?” O pensamento se debate em vão no dilema impenetrável de que as coisas são assim e não outras, isto é, pura e simplesmente contingentes, e de que a exis tência histórica do homem mergulha tão profundamente num arbítrio enigmático:
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“Ao negar esse obscuro pressuposto de toda a vida, ao considerar a morte algo de inexistente e não algo de real, a Filosofia alimenta a ilusão de ser isenta de pressupostos. . . Mas se a Filosofia se abstivesse de fechar os ouvidos ao grito da humanidade angustiada, teria que aceitar que o Nada da morte é um Algo, que cada novo Nada da morte é um novo Algo, sempre terrível, incapaz de ser exorcizado pela palavra ou pela escrita. . . O Nada não é um nada, é Algo. . . Não queremos nenhuma Filosofia que pela sonoridade e harmonia de sua dança nos iluda quanto à dominação contínua da morte. Não queremos nenhuma ilusão”.
O desmascaramento dessa ilusão leva-nos a compreender que o mundo, em que ainda existem risos e lágrimas, só pode ser captado em seu fieri — os fenômenos em busca de sua essência. No acontecer visível da natureza delineia-se um reino invisível, no qual o próprio Deus aguarda sua redenção: “Deus se redime através da redenção do mundo pelo homem e do homem pelo mundo”.
O idealismo limitava-se a competir com a teologia da criação; pri sioneiro ainda da Filosofia grega, não olhava o mundo irreconciliável na perspectiva da salvação possível. Sua lógica aderia ao passado: “O que é autenticamente durável prende-se ao futuro. Durável não é nem o que sempre foi nem o que sempre se renova, mas apenas o que chega: o Reino”.
Este sentido somente é acessível a uma lógica que, ao contrário da lógica idealista, não renega seu invólucro linguístico; ela deve consi derar os subentendidos que a lógica deposita na linguagem, o que cons titui um eco da velha idéia cabalística de que a linguagem alcança Deus porque é enviada por Deus. O idealismo rejeitou a linguagem como órganon do conhecimento, substituindo-a por uma arte deificada. Atra vés dessa reflexão sui generis um judeu antecipou-se a Heidegger, o philosophus teutonicus. Em sua correspondência enviada do front, Rosenzweig remeteu para casa .este livro, no final da Primeira Guerra Mundial. A forma com que compreendeu a vocação messiânica do exílio judaico é documentada pelo trecho seguinte, contido numa carta que enviou do front balcânico: “Porque o povo judeu já se situa além da contradição (que constitui a verdadeira força motriz na vida dos povos) entre a especificidade e a História mundial, entre a pátria e a fé, entre a terra e o céu, o povo judeu não conhece a guerra”.
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Outro filósofo judeu tentara convencer os jovens estudantes que durante o natal de 1914 partiam para a guerra, de que a paz eterna era a expressão política da idéia messiânica: “Como os profetas, políticos mundiais, não localizavam o mal nem exclusiva nem primariamente nos indivíduos, e sim nos povos, para eles o desaparecimento das guerras e a paz eterna entre as nações cons tituíam o símbolo da moralidade terrestre”.
Hermann Cohen, que faz remontar ao Velho Testamento, de forma tão original, a idéia da paz perpétua, está num campo diverso do ocupado por Buber e Rosenzweig. Representa a tradição liberal dos intelectuais judeus, tão intimamente vinculados ao Iluminismo alemão, e que julga vam poder identificar-se espiritualmente com a nação. Imediatamente após o início da guerra, Cohen faz uma conferência singular, na Socie dade Kantiana de Berlim, “Sobre a especificidade do espírito alemão”. Nela confere à Alemanha imperialista de Guilherme II e à sua assessoria militar o certificado de origem do humanismo alemão. Rejeita com indignação a idéia “desprezível” que pretende diferenciar entre o povo dos poetas e pensadores, por um lado, e o dos guerreiros e estadistas por outro: . “A Alemanha é e permanece, na continuidade do século XVIII e do seu humanismo cosmopolita”.
Menos cosmopolita é o tom em que formula sua apologia. “Em nós luta a originalidade de uma nação à qual nenhuma outra pode equiparar-se.”
’ Esse gênero de lealdade para com o Estado expôs mais tarde aque les que num orgulho cego se declaravam judeus e nacionalistas alemães, à ironia trágica de uma identificação com os seus agressores.
Cohen era o principal representante da famosa Escola de Marburg. Para ela conflui a sabedoria judaica de uma geração que filosofava no espírito de Kant, transformando a doutrina do mestre numa epistemologia das Ciências Naturais modernas. O próprio Kant (que de resto admirava de tal maneira a força lingüística de Mendelssohn que confes sou: “Se a musa da Filosofia tivesse que escolher uma linguagem, esco lheria esta”) indicou, como interlocutor no debate acadêmico sobre sua tese de livre-docência, outro judeu, o ex-médico Marcus Herz. Como o fazia Lazarus Bendavit em Viena, Herz, em Berlim, consagrava todos os seus esforços à difusão da Filosofia kantiana. O primeiro a apro-
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priar-se criadoramente do novo criticismo, ultrapassando seus próprios pressupostos, foi o genial Salomon Maimon, inspirado em sua juventude por Spinoza; transformou-se, de mendigo e vagabundo, num sábio pro tegido pelos mecenas, de quem Fichte, que certamente nada tinha de modesto, reconheceu a superioridade. Maimon revolucionara a Filosofia kantiana, escreveu Fichte a Reinhold: “FeZ tudo isso sem que ninguém se desse conta de nada. Acho que os séculos futuros vão zombar amargamente de nós”.
Mas os historiadores alemães não se comoveram. Essa primeira geração de kantianos judeus caiu no esquecimento, como aliás o próprio Kant. Somente o panfleto polêmico de outro judeu, Otto Liebmann, “É preciso voltar a Kant”, abriu o caminho para um segundo kantismo, a partir de meados do século XIX. Cohen podia voltar à problemática elaborada por Maimon. O grande discípulo de Cohen, Ernst Cassirer, resumiu à beira do túmulo do mestre as suas intenções: “A primazia da atividade sobre a passividade, do autônomo e do espi ritual sobre o sensorial e reificado, tin,ha que ser consolidada clara e completamente. Qualquer referência ao meramente dado devia ser omitida: em vez de todos os supostos fundamentos nas coisas, tinha que ser relegado a segundo plano pelas fundações puras do' pensamento, da vontade, e da consciência artística e religiosa. A lógica de Cohen se transformava numa lógica da origem”.
Mas ao lado da "Linha de Marburg”, eruditos judeus como Arthur Liebert, Emil Lask> Jonas Cohn e Richard FfdnígwaM participaram de cisivamente na formação da Epistemologia, de cunho kantiano, caracte rística do início do século. Max Adler e Otto Bauer desenvolveram uma versão kantiana do próprio marxismo. Nesse clima, florescia lu/uri antemente aquela argúcia voltada para o comentário e para a análise que um julgamento de valor ambivalente considera uma qualidade natural dos judeus, os quais de resto até um Martin Buber suspeita de “espiritualidade descarnada”: “Uma espiritualidade desvinculada das raízes da vida natural e das funções da verdadeira batalha espiritual, neutra, privada de substância, dialética, capaz de dedicar-se a todos os objetos, inclusive os mais indiferentes, a fim de dissecá-los conceituadamente ou colocá-los em relação mútua, sem se deixar absorver de forma realmente sensorial e instintiva por nenhum deles".
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É possível que uma análise baseada na Epistemologia e na Teorià da Ciência, que se julga a-histórica e isenta de pressupostos, corres pondesse efetivamente às inclinações daqueles judeus que precisaram conquistar sua liberdade de pensamento ao preço da renúncia à tradição. As gerações egressas do gueto só conseguiram vincular-se à cultura iluminista rompendo com as normas tradicionais e mergulhando numa História alheia: Moses Mendelssohn precisou ocultar dos seus correli gionários sua familiaridade com a literatura alemã! Talvez a fisionomia do pensamento judaico também tenha sido marcada pelo .fato de que •nele se conserva ainda o distanciamento de um olhar originalmente estrangeiro. Assim como o emigrante que volta à páiria depois de um longo período vê em toda a sua nudez o que antes fora familiar, também o assimilado dispõe de uma agudeza visual sui generis. Falta-lhe a intimidade com aquilo que os nativos consideram óbvio e que, por ele apropriado, revela, por isso mesmo, suas verdadeiras estruturas. Por outro lado, foi a,própria hermenêutica rabínica e principal mente a hermenêutica cabalística das Santas Escrituras que durante séculos adestrou o pensamento judaico nas virtudes exegéticas do comentário e da análise. Tal pensamento sente-se atraído pela Episte mologia possivelmente porque o método dessa ciência confere uma forma racionalizada a um tipo de investigação mística,-a que aquele-pensamento, já está habituado. Pois o místico adquire o conhecimento dos estágios da teogonia, da história da divindade in fieri, por meio de uma inflexão de sua alma para Deus; seu saber está, portanto, sempre mediatizado por uma espécie de reflexão transcendental sobre as formas de sua própria experiência. Não é por acaso que Simmel, em sua Introdução à Filosofia, utiliza a mística do mestre Eckart como chave para a compreensão da revolução copérnica de Kant. A influência de Kant sobre o espírito judaico explica-se natural mente, antes de mais nada, pela circunstância de que, com exceção de Goethe, foi nele que a atitude livre, caracterizada pela crítica razoável e pelo humanitarismo cosmopolita, atingiu sua plenitude mais luminosa e mais autêntica. Seu humanismo marcou aquele meio social, em que uma assimilação sem humilhações viveu seu momento inicial e único: nos salões de Berlim, no início do século XIX. O criticismo foi também instrumento da emancipação judaica com relação ao próprio judaísmo. Não se limitou a assegurar, entre os cristãos, uma atitude civilizada e uma tolerância ampla; ofereceu também, a ferramenta filosófica com cujo auxílio o grande movimento do espírito judaico procurou apropriar-se do seu destino religioso e social. A Filosofia judaica permane ceu, em todas as suas versões, uma Filosofia crítica.
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Mas é óbvio que a sociedade não permitia uma „ emancipação con tínua. Porque a assimilação comportava elementos de sujeição, muitos assumiam em suas vidas privadas atitudes tanto mais judaicas quanto o meio ambiente exigia, em sua vida pública, uma identificação mais rigo rosa com expectativas que excluíam qualquer outro comportamento que não fosse o do alemão integral. É a essa tensão, tão transparente em termos de Psicologia social, que devemos uma obra póstuma de Cohen, por ele dedicada à memória de seu pai ortodoxo. Seu título é A religião da razão à luz das fontes do judaísmo. O racionalismo kantiano perdera, com a Escola de Marburg, o pathos específico que devia à sua origem luterana; a teoria fora, por assim dizer, novamente secularizada. Mas finalmente rompe-se o revestimento de “civilização” no qual os judeus civilizados, como eram denominados, pareciam ter-se alienado tão com pletamente. A questão da obrigatoriedade da lei mosaica leva o velho Cohen até- os limites extremos do seu sistema. Na medida em que a humanização dos povos os conduziu ao apogeu de uma civilização puri ficada pela Filosofia e pela Ciência, todos eles partilham efetivamente a mesma religião da razão. Mas o conceito da razão, que pode ser ilus trado pela imagem de uma fonte primordial, só se tornou transparente, do ponto de vista histórico, graças ao testemunho dos profetas judeus* Cohen procura salvar, com esforços inauditos, a autonomia da razão em face à positividade da revelação. Sua consciência filosófica tranqüiliza-se enfim com esse pensamento tortuoso: “Se é certo que para o conceito da religião preciso recorrer às fontes literárias dos profetas, não é menos certo que esses permanecem mudos e cegos se eu não me aproximo deles (instruído, por eles, mas não orientado pura e simplesmente por sua autoridade) com um conceito que pressupõe o ensinamento desses mesmos profetas”. Mas a teoria do conhecimento e da ciência, em nosso tempo, não foi determinada por Cohen, mas por dois outros pensadores judeus. Na Alemanha, a fenomenologia de Edmund Husserl encontrou ampla res sonância, enquanto o positivismo lógico, inaugurado por Ludwig Wittgenstein, impôs-se internacionalmente. São essas as teorias filosóficas mais influentes do nosso tempo.
No mesmo ano em que morreu Hermann Cohen, aparece o famoso Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgçnstein, que se inicia com a fórmula lapidar: “O mundo é tudo o que ocorre”. Sob sua influência surgiu o chamado “Círculo de Viena”, no qual judeus como Otto Neurath e Friedrich Waismann desempenharam um papel importante. Mais tarde,
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vários emigrantes judeus ajudaram a nova doutrina a alcançar a sua vitória mundial; nos Estados Unidos, trabalhou sobretudo Hans Reichenbach, e na Grã-Bretanha o próprio Wittgenstein. Este levou em Cambridge a vida de um livre-docente discreto. Sem nada publicar, completou, na tranquilidade de seus colóquios com um pequeno círculo de estudantes, a passagem da análise lógica para a lingüística. Esta não se interessa fundamentalmente pela análise e formação sistemática de uma linguagem universal capaz de refletir os fatos. Não yisa essencial mente um objetivo sistemático, mas o fim terapêutico de investigar lingüisticamente formulações arbitrárias e exprimij; seu sentido com “completa clareza”. As respostas filosóficas limitam-se à recomendação de uma ou outra expressão linguística e terminam na estética dos jogos lingüísticos, que se esgotam em si mesmos.
Quando, depois de um silêncio de duas décadas e meia, pouco antes de sua morte, Wittgenstein cede à pressão dos seus amigos e discípulos, e publica suas Investigações filosóficas, escreve resignadamente em seu prefácio: “Até pouco tempo havia renunciado a publicar meu trabalho durante minha vida. .. É com sentimentos ambivalentes que entrego ao público as minhas observações. Não é impossível que este trabalho, apesar de sua precariedade e dos tempos sombrios que vivemos, lance alguma luz numa ou noutra mente; mas não é provável”. Wittgenstein acredita que sua verdadeira descoberta consiste em permitir-nos interromper em qualquer ponto a reflexão filosófica. A Filosofia deve atingir o repouso, para que nenhum novo problema possa colocá-la em questão. Já no Tractatus esse impulso mais profundo transparecia na frase: •
“Sentimos que mesmo que todas as questões científicas possíveis ve nham a ser elucidadas, nossos problemas vitais não serão sequer aflo rados. Sem dúvida, nenhuma questão ficará em aberto; e é esta exata mente a resposta. A solução do problema da vida se torna perceptível com o desaparecimento deste problema. Não é por essa razão que os homens que depois de muitas dúvidas compreenderam o sentido da vida são incapazes de dizer em que consiste este sentido?”
Wittgenstein não hesita em aplicar essa intuição a seu próprio pensamento: “Minhas sentenças elucidam na medida em que aquele que me com preende as reconhece, no final, como privadas de sentido, quando ele
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se elevou através • delas — sobre elas — fora delas.. .Deve, por assim dizer, jogar fora a escada depois de haver subido... É preciso manter o silêncio sobre aquilo de que não se pode falar”.
Tal silêncio tem um sentido transitivo. Mesmo o que já foi dito precisa ser retirado quando o silêncio se rompe. A observação seguinte de Rosenzweig ecoa como um comentário: “Não existe nada mais profundamente judaico que uma desconfiança extrema contra o poder da palavra e uma confiança íntima no poder do silêncio”. Porque seu próprio idioma, o hebraico, não é o idioma do quoti diano, mas enquanto idioma sagrado dele se distancia, o judeu é privado do que existe de mais óbvio e espontâneo na vida, da capacidade de, atormentado, verbalizar o seu sofrimento:
“Por isso nao pode nica-se melhor com silêncio e nos sinais do judeu se concilia giosas”.
absolutamente conversar com seu irmão, e comuele pelo olhar que pela palavra... É devido ao silenciosos do diálogo que a linguagem quotidiana com. a linguagem sagrada de suas solenidades reli
A cabala se distingue das tradições místicas de' outras origens por uma diferença característica: a tradição escrita é escassa e a autobiografia mística é completamente ausente. Gershom Scholem, historiador do misticismo judeu, assinala a estranha autocensura dos cabalistas, que os obrigava ao silêncio ou a uma simples tradição oral; os manuscritos eram destruídos, e quando conservados, eram raramente impressos. Desse ponto de vista a linguagem de Wittgenstein ao falar do misticismo é inteiramente rigorosa: “Existe certamente o inefável. Este se mostra, é o elemento místico”.
Husserl, pelo contrário, tentou fundar a Filosofia como ciência exata precisamente na descrição rigorosa daqueles fenômenos, que se revelam “por si mesmos”, que são “dados” intuitivamente numa evidên cia imediata. A fenomenologia transcendental partilha com o positivismo lógico essa intenção, mas segue outro caminho. Ambos mantêm-se fiéis ao princípio cartesiano de umá dúvida que nunca duvida de si mesma; mas as “coisas” para as quais Husserl deseja encaminhar-se não são as sentenças semântica e sintaticamente analisáveis da linguagem natural ou científica, mas as operações da consciência a partir das quais se
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constituem as correlações significativas de nosso mundo vivido. (Lebenswelt). Husserl não queria deduzir essas intenções e suas “realizações”, mas torná-las visíveis a partir de um “ponto de vista experimental últi mo”, distinguindo-se nisso claramente dos neokantianos e do antigo idealismo em geral. Plessner acompanhou um dia seu mestre Husserl até a sua casa, depois de um seminário;
“Quando chegamos ao portão do jardim, seu profundo mau humor explodiu: ‘Todo o idealismo alemão sempre me deu vontade de vo mitar. Durante toda a minha vida procurei a realidade’ — e ao dizer isto brandia sua fina bengala com castão de prata e, reclinando-se, tocava com ela a moldura da porta. A bengala representada de forma incom paravelmente plástica o ato intencional, e a porta, sua realização”.
Husserl se isolou crescentemente em sua residência em Friburgo, à medida que o horizonte político se tornava mais sombrio. Só pôde divulgar suas últimas reflexões filosóficas — morreu em 1937 — fora das fronteiras alemãs, em Viena e Praga. Ao contrário de Wittgenstein, não renunciou à ambição sistemática na autocomplacência dos “jogos de vidrilhos” (Glasperlenspiele') lingüísticos ou mesmo no silêncio do inefável místico. Tentou, mais uma vez, realizar um último esboço que contribuísse para compreender e superar a crise das ciências européias enquanto crise da humanidade européia. Husserl queria opor à vaga do irracionalismo fascista o dique de um racionalismo renovado; pois: “A causa do fracasso de uma cultura racional não reside na essência do próprio racionalismo, mas em sua alienação, em seu envolvimento pelo naturalismo e objetivismo”.
• Num estilo autenticamente idealista, acredita que a catástrofe seria evitável se fosse possível fundar as Ciências Humanas (Geisteswissenschaften) de uma forma fenomenologicamente rigorosa. A crise para ele provinha de um racionalismo alienado, que procurava seu fundamento de uma forma errônea e perigosa, ou seja, pela redução, baseada nas Ciências Naturais, de todos os fenômenos espirituais a um substrato fisicalista. Em vez disso, o espírito deveria retornar a si mesmo e elucidar as operações da consciência que lhe são desconhecidas. Husserl confia na força dessa “atitude teórica”, capaz de mover o mundo: “Não se trata somente de uma nova atitude cognitiva. Graças à exi gência de submeter todo o mundo empírico a normas ideais, ou seja, às da verdade incondicionáda, resulta de imediato uma transformação profunda em toda a prática da existência humana, e portanto de toda a vida da cultura”.
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Segundo uma expressão questionável, Husserl desejaria convocar os filósofos a desempenharem o papel de “funcionários da humanidade”. Já em seus primeiros trabalhos, elaborara um processo graças ao qual os fenomenólogos podiam assegurar-se da justeza de sua atitude cogni tiva. Uma espécie de desrealização da realidade deveria dissolver o entrelaçamento entre a estrutura dos interesses e os processos reais da vida, a fim de possibilitar uma teoria pura. Nessa suspensão, nessa epoché, segundo sua terminologia, Husserl se exercitou diariamente, através de uma ascese admirável, em meditações que se estenderam por vários anos, e das notas estenográficas de tais meditações resultaram montanhas de manuscritos de investigações póstumas, testemunhas de uma filosofia in actti, que Husserl não divulgou nem em aulas nem em livros. Exercitou-se essencialmente numa forma metódica de apresen tação, ■ à qual o velho filósofo deu um substrato histórico-filosófico, quando a política o arrancou à sua contemplação. A teoria, brotada num solo cuja característica era a suspensão de qualquer relação com a práxis, deveria afinal possibilitar a “no^a práxis” de uma política orien tada pela ciência:
"Uma prática que visa educar a humanidade segundo as normas da verdade, em todas as suas modalidades, através da razão científica uni versal, e, transformá-la num gênero humano totalmente novo, dotado de auto-responsabilidade, à base de intuições teóricas absolutas”. O manto da Filosofia da História já estava esgarçado quando Husserl com ele revestiu sua doutrina, no furído a-histórica. Contudo, a sua atitude é sedutora: defendendo posições perdidas, mantém-se fjel ao pathos e à ilusão da teoria pura.
Até que ponto essas posições já estavam perdidas ficou patente no ano de 1929, quando ocorreu, em Davos, a famosa polêmica entre Cassirer e Heidegger. O tema era Kant; na verdade o que estava em discussão era o fim de uma época. O contraste das escolas tornou-se secundário, comparado com o confronto das gerações: Cassirer repre sentava o mundo a que também pertencia Husserl, contra o do seu grande discípulo; o mundo culto do humanismo europeu contra um decisionismo que invocava o caráter originário do pensamento; e cuja radicalidade atacava de fato a civilização de Goethe em suas raízes. Não foi por acaso que o culto de Goethe foi criado, no início do século XIX, no salão de Rahel Vamhagen. Pois o modelo de “Wilhelm Meister”, que concebia a “formação da personalidade”, de forma tão particular e tão enganadora, como uma assimilação do elemento burguês
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ao aristocrático, foi imitado intensamente pelos judeus, que “a cultura transformava em exceções” (Ausnahmejuden der Bildung'), Simmel exprimiu o que eles esperavam dessa cultura: “Talvez ninguém tenha vivido uma vida tão simbólica como Goethe, que deu a cada um somente um fragmento e alguns aspectos de sua personalidade e ao mesmo tempo deu ‘o todo a todos’. A única forma de não ser comediante e de não usar qualquer máscara é^ viver dessa maneira simbólica”.
Essa interiorização do espírito goethiano não oferecia somente um caminho para a assimilação, mas também um alívio para o sofrimento que ela acarretava — a obrigação de representar constantemente um papel, e a impossibilidade de ser idêntico a si mesmo. Desse duplo ponto de vista, a cultura do Classicismo alemão foi para os judeus, socialmente, uma necessidade vital. É talvez por essa razão que devemos a eles as mais finas reflexões estéticas: de Rosenkranz e Simmel a Benjamin, Lukács e Adorno.
Durante esse Colóquio em Davos, um estudante dirigiu três pergun tas a Cassirer. Cada uma das suas respostas terminou com uma citação de Goethe. Heidegger, por outro lado, polemizava contra a atitude preguiçosa que consiste em limitar-se a utilizar as obras do espírito; ele, Heidegger, preferia “enfrentar a dureza do destino”. A discussão termi nou quando Heidegger recusou-se a. apertar a mão que lhe estendia seu interlocutor. Podemos ler hoje, como uma espécie de continuação desse debate, a declaração de Heidegger, quatro anos mais tarde, pronunciada em nome do partido hitlerista, em Leipzig, por ocasião do Congresso da Ciência Alemã: “Libertamo-nos da idolatria de um pensamento desenraizado e impo tente. Vemos o fim da Filosofia que estava., a seu serviço... A co ragem original necessária para, no confronto com o Ente (Seienden), dominá-lo ou perecer, é a motivação mais profunda que anima as inves tigações de uma ciência nacional (yolkische Wissenschaft). Porque a coragem impulsiona para a frente, a coragem rompe com o passado, a coragem corre o risco do insólito e do incalculável”. No mesmo momento, Cassirer tentava escapar a esse incalculável. A emigração o levou primeiro à Suécia e à Inglaterra e finalmente aos Estados Unidos. Ali escreveu sua última obra sobre O mito do Estado, cujo capítulo final trata da técnica dos mitos políticos modernos. Ter mina com um comentário a uma lenda babilónica:
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“O mundo da civilização humana não podia surgir antes que as trevas do mito fossem vencidas e superadas. Mas os monstros míticos não foram definitivamente destruídos”. A vitória de Heidegger sobre a espiritualidade humanitária de um Cassirer, por questionável que seja, adquire um caráter implacável pelo fato de que Heidegger revela uma fraqueza real na posição iluminista: em seu confronto com um pensamento que se considera “radical”, -as raízes do século XVIII não são suficientemente profundas. Mas antes do século XVIII não existe nenhum Ocidente judaico e sim a Idade Média do gueto. Um retorno aos gregos, sempre que tentado pelos intelectuais judeus, comportou sempre um elemento de impotência. So mente a profundidade da sua própria tradição — a cabala ■—• encerrava a força necessária. Os cabalistas já haviam elaborado durante séculos a técnica da interpretação alegórica, antes que Walter Benjamin redescobrisse a ale goria como chave do conhecimento. A alegoria é a antítese do símbolo. Cassirer compreendera todos os conteúdos do mito, da Filosofia, da arte e da linguagem, como- um universo de formas simbólicas, em cujo espírito objetivo os homens se comunicam entre si e sem o qual não podem existir; pois Cassirer pensava poder dizer, juntamente com Goethe, que na forma simbólica o inapreensível era captado, o inefável era dito e a essência se tornava manifesta. Mas Benjamin nos adverte que a História, em tudo o que ela comporta, desde o início, de prematuro, de sofrido e de fracassado, fecha-se à expressão simbólica e à harmonia da forma clássica. Somente a representação alegórica pode expor a História universal como história do sofrimento. As alegorias constituem, no reino do pensamento, o que as ruínas constituem, no reino das coisas:
“O Classicismo era, em sua essência, incapaz de perceber as servidões, imperfeições e fraturas da bela physis sensorial. Estas se exprimem nas alegorias do barroco, dissimuladas sob seu fausto extravagante, com uma intensidade até então desconhecida”. Face ao olhar exercitado na contemplação alegórica, desaparece a inocência de uma filosofia das formas simbólicas; esse olhar desmascara a fragilidade do fundamento de uma cultura iluminista do Belo, que Kant e Goethe haviam estruturado de uma forma aparentemente defini tiva. Não que Benjamin tivesse abandonado a idéia dessa cultura; mas percebia a ambigüidade desses “valores culturais” e “bens da civilização”, dos quais falavam os judeus tão ingenuamente. Na verdade, a História é o cortejo vitorioso dos dominadores sobre os que estão prostrados no chão:
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“O saque é conduzido no cortejo triunfal, como sempre ocorreu; é o que denominamos ‘bens culturais’.. . Nunca houve um documento da cultura que não fosse também um documento da barbárie. E assim como esse documento não está isento de barbárie, nao o está tampouco o processo da tradição, que o transmite de uns a outros”.
Benjamin suicidou-se em 1940, quando, depois de uma fuga através do sul da França, as autoridades aduaneiras espanholas ameaçaram entregá-lo à Gestapo. Deixou teses sobre a Filosofia da História que constituem um dos testemunhos mais comoventes do espírito judeu. Nelas está contida, sob a forma da interpretação alegórica, a Dialética do Iluminismo, que se manifesta no progresso interrompido de uma História ainda em aberto. A nona tese é a seguinte: “Existe um quadro de Klee, chamado Angelus Novus. ‘Ele representa um anjo que parece querer afastar-se de algo, encarado com temor. Os olhos estão arregalados, a boca está aberta e as asas, estendidas. Este é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da História.’ Seu rosto está voltado para o passado. Nos lugares em que para nós emerge uma seqüência de acontecimentos, ele percebe uma só catástrofe, que acu mula ruínas sobre ruínas jogando-as a seus pés. Ele gostaria de perma necer, para ressuscitar os mortos e recompor as ruínas. Mas uma tem pestade vinda do Paraíso retém suas asas e é tão forte que o impede de fechá-las. Essa tempestade o impele incessantemente em direção ao futuro, para o qual dá as costas, enquanto a montanha de ruínas cresce, em sua frente, até o céu. A essa tempestade é que chamamos pro gresso”.
Mas Benjamin não foi o primeiro a quebrar o círculo do pensa mento judeu, até então voltado para a Teoria do Conhecimento e da Ciência, reorientando-o para uma audaciosa exploração da Filosofia da História. Já Simrnel, amigo de George e de Rilke assim como de Bergson e de Rodin, ultrapassara os limites das filosofias acadêmicas então hegemônicas: “Há três categorias de filósofos: uns escutam pulsar o coração das coisas, outros o dos homens, e os terceiros o dos conceitos. Há ainda um quarto grupo (o dos professores de Filosofia) —• que só escutam o coração dos textos”. A obra póstuma de Simmel contém um fragmento característico sobre a arte dramática. Ele reflete sobre aquela experiência típica do judeu assimilado, que confere tão freqüentemente à sua existência pri vada os traços do dinamismo neurótico. Hannah Arendt, a sutil histo
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riadora do anti-semitismo, ilustrou com o exemplo do fin dii siècle parisiense a forma com que os círculos pró-semitas acolhiam em seu seio os judeus cultos, fazendo-lhes o estranho cumprimento de que sua origem judaica não era mais perceptível: deviam ser judeus, mas não comportar-se como judeus. “Esse vaivém equívoco fazia de cada um dos indivíduos em questão um ator experiente, com a diferença de que o pano que devia terminar com a representação não caía nunca, e de que os homens que haviam transformado toda a vida num papel teatral não sabiam mais quem ver dadeiramente eram, mesmo na solidão. Quando freqüentavam uma reu nião social, pressentiam instintivamente os seus iguais, reconheciam-se automaticamente pela mescla insólita de arrogância e medo que deter minava e fixava cada um de seus gestos. Daí aquele sorriso cúmplice, tão minuciosamente descrito por Proust, que anunciava de forma enig mática o que todos os outros presentes já sabiam há muito tempo, ou seja, que em cada canto do salão da condessa X estava sentado mais um judeu, que não podia nunca admitir sua identidade, mas que sem essa circunstância, em si irrelevante, não poderia jamais (e nisso estava o absurdo da situação) ter sido admitido no salão que ambicionava frequentar.”-
Os judeus, que além de tudo eram pessoalmente responsabilizados pela intransigência desse ambiente (ela constituiria uma reação à facili dade com que os judeus “mudavam de máscaras”, o que assumia um caráter secretamente demoníaco), tinham que ser especialmente sensíveis ao aspecto teatral da existência humana em geral. Um comentário de Simmel confirma a tese dessa sensibilidade sui generisx “Não fazemos unicamente coisas a que a civilização e o destino nos compelem exterior mente, mas representamos inevitavelmente algo que não somos de fato. . . Ê muito raro que um homem determine seu comportamento exclusivamente a partir de sua própria existência; em geral, confrontamo-nos com um molde preexistente, que preenchemos com nosso comportamento individual. A arte teatral tem o seu protó tipo no fato de que o homem vive ou representa algo que lhe é exterior, transformando-o em qualquer coisa de seu, dotada de um desenvolvi mento autônomo, sem com isso abandonar sua própria individualidade, mas preenchendo com ela aquele elemento exterior, e canalizando as correntes do seu ser por ramificações múltiplas, cujos caminhos, embora predeterminados, acabam sendo absorvidos por esse ser, reestruturando completamente seu interior... É precisamente neste sentido que somos todos atores”.
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Também Helmut Plessner desenvolveu, a partir de sua Antropo logia do ator, uma antropologia em geral. O homem não vive apenas, como animal, no centro do seu corpo, mas sem poder superar essa centração, escapa a ela; deve sempre representar para si e para os outros, levar uma vida auto-encenada de acordo com as indicações de um diretor que é a própria sociedade:
“Em sua relação consigo mesmo, o ator é o personagem de um papel, para si e para o espectador. Nesse relacionamento, contudo^ ator e espectador repetem somente a distância entre o homem é si mesmo e entre o homem e os outros, que permeia sua vida quotidiana. . . Pois, o que significa, em última análise, essa seriedade do ^quotidiano, senão o fato de se saber comprometido com um papel que desejamos repre sentar na sociedade? Sem dúvida, essa representação quer ser mais que uma representação,... a tradição em que nascemos nos dispensa do esforço de ter que esboçar a imagem de nosso próprio papel social. Apesar de tudo, devemos, enquanto espectadores virtuais de nós mesmos e do mundo, olhar o mundo como se fosse uma cena”.
Uma antropologia que compreende o homem a partir da obrigação de desempenhar um papel não pode deixar de prolongar-se na Socio logia. Simmel e Plessner escreveram sobre temas sociológicos, assim como Max Scheler, o verdadeiro fundador da Antropologia filosófica. Durante seus últimos anos Scheler lecionou na Universidade de Frankfurt, que adquirira reputação no campo da pesquisa sociológica graças à eficácia de Franz Oppenheimer e Gottfried Salomon, de Cari Grünberg e Karl Mannheim. Max Horkheimer acumulou seu cargo de catedrático em Filosofia com a direção do Instituto de Pesquisa Social. E mesmo um Martin Buber transformou-se, naquela cidade, em soció logo. Como em toda parte, o espírito judeu dominou também na Socio logia alemã, a partir de um Ludwig Gumplowicz. Os judeus tiveram necessariamente que experimentar a sociedade como um obstáculo contra o qual a colisão é inevitável, e dessa maneira estavam armados, por assim dizer desde o nascimento, com um olhar sociológico. Também nas ciências afins foram eles os primeiros que aprenderam a considerar seu objeto numa perspectiva sociológica. Eugen Ehrlich e Hugo Sinzheimer criaram a Sociologia do Direito. Ludwig Goldscheid e Herbert Sultan foram os iniciadores da Sociologia financeira. A imaginação dos pensadores judeus inflamou-se, em geral, com o poder do dinheiro. Marx, especialmente o jovem Marx, constitui um exemplo. A esse propósito, a hostilidade íntima dos “judeus cultos” contra os “judeus ricos” pode ter sido um motivo para o anti-semitismo sutil pelo qual certos judeus
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se opunham àquela outra espécie de judeus, cujo protótipo era Rothschild. Simmel, ele próprió filho de um comerciante, escreveu uma Filosofia do dinheiro. Já em Simmel, contudo, aparece, além do interesse socio lógico, outro, tipicamente judaico, por uma Filosofia da Natureza de inspiração mística. Anotou certa vez em seu diário: “Tratar não somente todos os homens, mas também todas as coisas como se fossem fins em si -— seria uma ética cósmica”. A relação mística entre a Moral e a Física é formulada, numa terminologia ainda kantiana. Um amigo de Simmel, Karl Joêl, escreveu sobre A Filosofia da Natureza e sua origem no espírito da mística, E nos anos vinte David Baumgardt tentou reparar a alegada injustiça cometida contra Baader, que uma época positivista esquecera tão com pletamente. Ê portanto um judeu que nessa investigação sobre Franz von Baader e o Romantismo filosófico, encontra o fio daquelas especula ções sobre as Idades do mundo, impregnadas de Filosofia da Natureza, que conduz de Jakob Bõhme, através do pietismo suábio, até os semi naristas de Tübingen: Schelling, Hegel e Hõlderlin. Anteriormente Richard Unger já havia reconhecido, na relação tensa de Hamann com o Iluminismo, o “traço realista” da mística protestante, que se distingue da mística espiritualista da Idade Média pela aceitação de um funda mento natural em Deus. Mesmo as Filosofias da Natureza esboçadas por Scheler e Plessner traem uma certa influência dessa tradição. Apesar do sóbrio trabalho de elaboração com que assimilaram os conteúdos das ciências individuais, esses pensadores revelam uma dimensão especula tiva que provém do misticismo da natureza; a cosmologia de Scheler chega ao ponto de voltar expressamente à idéia do Deus in fieri. Mas todos esses intelectuais judeus parecem ter uma consciência muito imperfeita da força motriz sui generis que os conduziu a essa tra dição. Esqueceram o que ainda era geralmente conhecido no fim do século XVII: nessa época, Johann Jakob Spaeth, adepto da mística de Bõhme, impressionado com as afinidades dessa doutrina com a teo sofia de Isaac Luria, converteu-se. ao judaísmo. E quando, inversamente, o pastor protestante Friedrich Christoph Oetinger, cujos escritos tinham sido lido„s tanto por Hegel e Schelling como por Baader, visitou poucos anos depois o cabalista Koppel Hecht no gueto de Frankfurt, para ser iniciado na mística judaica, este lhe respondeu: “Os cristãos têm um livro que fala da cabala mais claramente que o Sohar”.
Estava aludindo a Jakob Bõhme.
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É nesse tipo de “Teologia” que Walter Benjamin devia estar pen sando quando fez sua sutil observação de que o materialismo histórico poderia sem dificuldade enfrentar qualquer adversário contanto que tomasse a Teologia a seu serviço. Isto ocorreu através de Ernst Bloch. Bloch unifica, graças a um misticismo judaico apropriado pelo marxismo, o interesse sociológico com o da Filosofia da Natureza, elaborando um sistema que como nenhum outro é impulsionado pelo grande sopro do idealismo alemão. No verão de 1918 apareceu O espírito da utopia, que acusa o marxismo economicista de ser uma espécie de Crítica da razão pura para a qual não existe ainda uma Crítica da razão prática.
“A economia está nele superada, mas faltam a alma,% crença, às quais deve-se reservar um espaço; o olhar ativo da inteligência destruiu tudo, em muitos casos com razão. . . Também o socialismo excessivamente arcádico, baseado numa racionalidade utópica, foi legitimamente rejei tado, um socialismo que desde a Renascença vem ressurgindo sob a forma de uma versão secularizada do Reino de Mil Anos, muitas vezes como simples camuflagem ideológica para revoluções econômicas e para objetivos de classe eminentemente utilitários. Mas com isso a tendência utópica implícita em tais movimentos não foi compreendida, a subs tância de suas imagens-desejos (Wunschbilder) não foi afetada, e o desejo religioso primordial não foi expulso. . . realizar-se em Deus, incorporar-se finalmente na consumação quiüástica do Bem, da Liber dade, e da luz do Telos.” A mística luriana concebe a origem do mundo a partir de um processo de contração e de concentração; Deus contrai-se em si mesmo e por assim dizer se exila em si mesmo. Ê o que explica a impenetra bilidade e a força original da matéria, assim como a positividade do Mal, que não se pode mais fazer desaparecer, classificando-o como um matiz do Bem. Por outro lado esse fundamento obscuro permanece uma natureza em Deus, permanece a natureza de Deus, ela própria uma potencialidade divina — a alma do mundo ou a natura naturans. O conceito com que Bloch fundamenta seu materialismo especulativo desce até esses abismos. A matéria necessita de redenção: porque desde aquela catástrofe teológica que o Sohar descreve com a imagem da “ruptura dos vasos”, todas as coisas trazem em si uma fratura, consti tuem, segundo a expressão de Bloch, fragmentos de si mesmas. O pro cesso de reconstituição já estava quase terminado, quando a desobediên cia de Adão precipitou o mundo numa nova queda, frustrando-se o progresso já alcançado, e o próprio Deus foi obrigado a voltar ao exílio. Nessa nova era, a antiga tarefa de redimir a humanidade e a natureza,
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e mesmo Deus destronado, é confiada ao homem. A mística se trans forma numa magia' da interioridade; pois o mais exterior passa a de pender agora do mais interior. Uma velha fórmula do Sohar garante a salvação desde que uma única comunidade tenha feito uma penitência completa. A prece se transforma numa manipulação que se toma significativa para a Filosofia da História. Em Bloch, a práxis política assume o lugar da religiosa. O capítulo sobre “Marx, a morte e o Apocalipse” traz ainda o subtítulo: “Sobre os caminhos do mundo, pelos quais a interioridade se transforma em exte rioridade”. Nele encontramos a seguinte passagem:
“A matéria constituiu sempre im estorvo, não somente para o conheci mento, mas um estorvo em si mesmq; é a casa desmoronada, em que nenhum lugar foi previsto para o homem, é um monte de escombros, composto de vidas traídas, assassinadas, corrompidas e perdidas. . . So mente o homem bom, que pensa, que guarda as chaves, pode introduzir a aurora nessa noite do aniquilamento, desde que os que permaneceram impuros não o enfraqueçam, e desde que seu apelo ao Messias seja suficientemente iluminado para impulsionar as mãos redentoras, para assegurar a graça do advento, pada despertar em. Deus as forças que atraem a nós e a Ele próprio, as forças que trazem o sopro e a graça do reino do Sabbat, e portanto para dissolver e superar, na vitória, a dimensão brutal, satânica, asfixiante e incendiária do Apocalipse”. Em seu livro, dividido em cinco partes, sobre O princípio esperança, Bloch esclareceu filosoficamente essa visão precoce, que revela suas afinidades espirituais com mais clareza que todos os seus trabalhos posteriores. Nesta obra ele transcende o Scheíling das Idades do mundo através do Marx dos Manuscritos de Paris:
“A riqueza humana juntamente com a da natureza..., a gênese autên tica não está no início, mas no fim, e só pode concretizar-se quando a sociedade e a existência se tornarem radicais, isto é, se compreenderem pela raiz. Mas a raiz da História é o homem que trabalha, produz, trans forma o dado e o transcende. No momento em que o homem se assume e recolhe o que lhe pertence, além de todas as alienações e todas as reificações, surge no mundo um lugar que todos entrevêem na infância, mas onde ninguém habitou ainda: a pátria”.
Se Bloch retorna a Scheíling, e se Scheíling recolheu, a partir do espírito do Romantismo, a herança da cabala na Filosofia protestante do idealismo alemão, podemos concluir — na medida em que tais categorias têm algum sentido —- que os elementos judaicos da Filosofia de Bloch são ao mesmo tempo os autenticamente alemães. Mas essa interpretação de influências demonstra o absurdo de tais distinções.
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Assim como Bloch assimilou o idealismo alemão a partir de Schelling, e Plessner a partir de Fichte, confirmando suas intuições precursoras à luz do estado atual das ciências, também foram pensadores judeus, amigos de Walter Benjamin, que pensaram até o fim — na medida em que um começo permanente autoriza a olhar um fim ainda inalcançado — a dialética do Iluminismo, de Hegel. Foram eles: Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, assim como o jovem Georg Lukács, que os precedeu.
Mas onde começa a reflexão filosófica, termina a mera descrição; e nesta se resumia a minha tarefa1. Hesitei em assumi-la. Tal inicia tiva, por mais generosa que fosse, não redundaria em4narcar novamente com a estrela de Davi os exilados e os massacrados? Há 15 ou 16 anos estávamos sentados junto aos aparelhos de rádio e escutávamos o que se dizia» no Tribunal de Nuremberg. Neste momento, em que outros, em vez de silenciarem diante do horror, começaram a disputar sobre a legalidade do tribunal e sobre questões de procedimento e de compe tência, surgiu em nosso país aquele primeiro fosso, que até hoje per manece aberto. Sem dúvida, se nossa geração se fechou menos que a anterior ao fato da desumanidade coletiva, o mérito dessa atitude cabe exclusivamente à vulnerabilidade- e à impressionabilidade de nossa juven tude. Pela mesma razão, a chamada questão judaica permaneceu para nós um passado muito presente, mas não uma realidade presente em si mesma. Havia uma clara barreira contra a mais leve tentativa de distin guir judeus de não-judeus, o judaico do não-judaico, mesmo ao nível da nomenclatura: embora eu tivesse estudado Filosofia durante anos, não tinha consciência, até o momento de começar este trabalho, da origem judaica de metade dos pensadores nele mencionados. Não mais considero permissível essa ingenuidade. Há apenas 25 anos o mais arguto e significativo constitucionalista alemão —■ não um nazista qual quer, mas Cari Schmitt — podia permitir-se inaugurar um congresso científico com essas palavras monstruosas: “Devemos liberar o espírito alemão de todas as falsificações judaicas, falsificações do conceito de Espírito, que permitiram que emigrantes judeus pudessem qualificar de anti-espiritual (Ungeistiges) a luta gran diosa do Gauleiter Julius Streicher”. i Escrevi este trabalho para uma sequência radiofônica, patrocinada pelo Norddeutscher Rundfunk sobre “Perfis da história intelectual teuto-judaica”. Thilo Koch, autor dessa iniciativa, solicitara que cada colaborador registrasse, no final, o que tinha sentido ao elaborar seu tema.
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Suponho que se saiba quem foi Julius Streicher*. Nessa época, Hugo Sinzheimer contestara essa afirmação, em seu exílio holandês, com um livro sobre os clássicos judeus no campo da ciência jurídica alemã. Em sua conclusão, dirige-se precisamente a Cari Schmitt: “Se se leva em conta a origem da atividade científica dos judeus no período da emancipação, não se pode falar da influência do espírito judaico sobre o trabalho científico alemão... Talvez em nenhum outro momento a vida intelectual alemã tenha celebrado triunfos mundiais mais completos que precisamente naquele período em que o gueto se abriu, e as forças espirituais judaicas, há tanto represadas, se encon traram com as manifestações mais elevadas da civilização alemã da época. É o espírito alemão que está na base da influência judaica”. Sem dúvida, é importante repetir essa verdade e confirmá-la mais uma vez, face ao destino da Filosofia judaicà. Mas essa verdade con tém ainda os termos com que o adversário formulou o problema; no meio tempo, a questão do anti-semitismo resolveu-se por si mesma — nós a resolvemos pelo aniquilamento físico. Por isso não se trata mais, em nossos esforços, da vida ou da sobrevivência dos 'judeus, de influên cias numa ou outra direção; não se trata mais senão de nós mesmos. Em outras palavras: a herança judaica procedente do espírito alemão tornou-se indispensável para a nossa própria vida e sobrevivência. No mesmo momento em que os filósofos e cientistas alemães começaram a “erradicar” essa herança, desvendava-se a profunda ambigüidade, que sob a forma de uma ameaça universal de barbárie, dava uma coloração tão assustadora ao subsolo obscuro do espírito alemão. Ernst Jünger, Martin Heidegger e Cari Schmitt são representantes desse espírito em sua grandeza, mas também em seus perigos. Não é nenhum acaso que em 1930, 1933 e 1936 tenham falado desta forma. E a circunstância de que a tomada de consciência desse fato ainda não se tenha realizado, um quarto de século depois, demonstra a urgência de uma reflexão que penetre até o fundo deste subsolo. . . Tal reflexão deve constituir uma unidade com esse fatídico espírito alemão e ao mesmo tempo, dentro dele, cindir-se dele, a fim de confrontá-lo com o veredicto: ele está proibido de atravessar uma segunda vez o Rubicon. Se não houvesse uína tradição teuto-judaica, deveríamos, por nossa causa, inventá-la * Além de Gauleiter da Francônia, Julius Streicher foi diretor do periódico nazista Der Stürmer. O anti-semitismo deste jornal não recuava diante da obscenidade mais crua, em sua descrição- dos supostos delitos perpetrados pelos judeus. J. Streicher, torturador especialmente sádico, foi condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg e executado em outubro de 1946. (N. do Org.)
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hoje. Mas essa tradição existe. E porque aniquilamos fisicamente seus porta-vozes, ou os mutilamos; e porque estamos empenhados, sob, o signo de uma reconciliação fácil, a tudo perdoar e a tudo esquecer, alcançando assim o que não fora alcançado pelo anti-semitismo —■ a ironia da História nos força a recolocar, sem os judeus, a questão judaica. O idealismo alemão dos judeus produz o fermento de uma utopia crítica; sua intenção não encontra expressão mais exata, mais digna e mais bela que o último fragmento, muito kafkiano, das Mínima Moralia'. “A única filosofia ainda responsável em face do desespero seria uma tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam na perspectiva da redenção. O conhecimento não tem outra luz que aquela que a redenção irradia sobre o mundo; todo resto se esgota na mera reprodução e permanece um fragmento da técnica. Seria pre ciso abrir perspectivas nas quais o mundo se mostrasse, em suas aliena ções, em suas descontinuidades e em suas fraturas, da mesma forma que aparecerá, um dia, carente e deformado, sob a luz do messianismo. O que importa antes de mais nada ao pensador é abrir tais perspectivas sem arbítrio e sem violência, derivando-as do contato sensível com os objetos. É o mais simples, porque a situação reclama imperiosamente tal conhecimento, e porque a negatividade consumada, vista em seu conjunto, coincide com a imagem especular do seu contrário. Mas é também algo de totalmente impossível, porque pressupõe um lugar, subtraído à gravitação do existente, ainda que de forma infinitesimal, ao passo que todo conhecimento possível, se quiser ser rigoroso, deve ser arrancado pela violência ao que é, e está afetado precisamente por essa razão, pela mesma deformação e pela mesma insuficiência daquilo a que pretende escapar. Quanto mais apaixonadamente o pensamento quer isolar-se de seus condicionamentos, em sua busca do incondicionado, tanto mais inconsciente e portanto mais fatídica é sua absorção pelo mundo. Precisa compreender sua própria impossibilidade, a fim de salvaguardar sua possibilidade. Más tendo em vista as exigências que daí decorrem para o pensamento, a questão da realidade ou irrea lidade da redenção se toma quase indiferente”.
2. O CONCEITO DE> PODER DE HANNAH ARENDT *
Max Weber definiu o poder como a possibilidade de impor a própria vontade ao comportamento alheio. Hannah Arendt, ao con trário, concebe o poder como a faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum, no contexto da comunicação livre de violência. Ambos vêem no poder um potencial que se atualiza em ações, mas cada um se baseia num modelo de ação distinto.
O “poder” em M. Weber, T. Parsons e H. Arendt Max Weber parte do modelo teleológico da ação: um sujeito individual (ou um grupo, que pode ser considerado como um indivíduo) se propõe um objetivo e escolhe os meios apropriados para realizá-lo. O sucesso da ação consiste em provocar no mundo um estado de coisas que corresponda ao objetivo proposto. Na medida em que tàl sucesso depende do comportamento de outro sujeito, deve o ator ter à sua dis posição meios que induzam no outro o comportamento desejado. Ê essa capacidade de disposição sobre meios que permitem influenciar a vontade de outrem que Max Weber chama de poder. H. Arendt reserva para tal caso o conceito de violência. Porque o sujeito de ações instru* Reproduzido de Habermas, J. Hannah Arendts Begriff der Macht. Merkur, n. 371, dez. 1976, p. 946-60. V'
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mentais (zweckrational Handelnder), interessado exclusivamente . no êxito de sua ação, deve dispor de meios graças aos quais pode forçar um sujeito com capacidade decisória, seja pela ameaça de sanções, seja pela persuasão, seja por uma manipulação hábil das alternativas de ação: “O poder significa aquela probabilidade de realizar a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo em face de resistência” \ A única alternativa à compulsão é o entendimento voluntário dos participantes entre si. ’ O modelo teleológico da ação, entretanto, apenas^ considera atores orientados para o próprio sucesso e não para o entendimento mútuo. Somente admite processos de entendimento mútuo na medida em que os participantes os vêem como funcionalmente necessários ao próprio sucesso. Más ;tal' entendimento, buscado de forma unilateral sob a reserva da instrumentalização para o próprio êxito, não pode ser levado a sério: não preenche as condições de um consenso alcançado de forma não-coercitiva. H. Arendt parte de outro modelo de ação — o comunicativo: “O poder resulta da capacidade humana, não somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com eles” *2. O fenômeno fundamental do poder não consiste na instrumentalização de uma vontade alheia para os próprios fins, mas na formação de uma vontade comum, numa comunicação orientada para o entendimento recíproco.
Naturalmente, esta tese poderia ser interpretada como se o “poder” e a “violência” constituíssem dois aspectos distintos do exercício da mesma dominação política. O “poder” significaria, então, o assentimento dos participantes mobilizados para fins coletivos e, portanto, sua dispo sição de apoiar a liderança política; enquanto a “violência” significaria a faculdade de dispor sobre os recursos e meios de coação, graças aos quais uma liderança política toma decisões obrigatórias e as executa, a fim de realizar objetivos coletivos. Tal concepção inspirou, de fato, o conceito sistêmico de poder. Talcott Parsons concebe como poder a I-Weber, Max. Wirtschaft und Gesellschaft [Economia e sociedade], v. 1, cap. I, § 16 e v. 2, cap. IX, § 1. T. Parsons diferencia quatro formas de exercício do poder: persuasion [persuasão], activation of commitments [ativação de compromissos], inducement [incentivo], coercion [coação]. Cf. On the concept of power [Sobre o conceito depoder]. In: Parsons, T. Sociological íheory and modem society [Teoria sociológica e sociedade moderna]. New York, 1967. p. 310-1. 2 Arendt, H. Macht und Gewalt [Poder e violência]. Munique, 1970. p. 45.
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capacidade geral de um sistema “to get things done in the interest of collective goals” 8 A mobilização do consentimento produz o poder, que através da utilização dos recursos sociais transforma-se em decisões obrigatórias. Parsons pode reunir num conceito unitário de poder os dois fenômenos que Hannah Arendt contrastava sob as formas do poder de violência, porque concebe o poder como a propriedade de um sistema que se com porta com relação às próprias partes integrantes, segundo o mesmo esquema que o sujeito da ação instrumental com relação ao mundo exterior: “I have defined power as the capacity of a social system to mobilize ressources to attain collective goals” **. * * Repete, assim, ao nível do conceituai sistêmico, a mesma concepção teleológica do poder (poder como potencial para a realização de fins), que Max Weber utilizara ao nível da teoria da ação. Em ambos os casos, perde-se a diferenciação específica que distingue entre o poder inerente à comunicação lingüística unificadora e a violência exercida instrumentalmente. A capacidade de gerar consenso de uma comunicação voltada para o entendimento mútuo contrapõe-se a essa violência, porque um acordo genuíno constitui um fim em si mesmo, não podendo ser instrumentalizado para outros fins.
O entendimento recíproco daqueles que deliberam entre si com vistas a uma ação comum ■—• “a opinião em torno da qual muitos se puseram publicamente de acordo” 4 ■—• significa o poder,.na medida em que este repousa sobre a persuasão e, portanto, naquela imposição sin gularmente não-impositiva através da qual as intuições (Einsichteri) se concretizam. Elucidemos essa idéia. A efetividade de um consenso obtido numa comunicação livre de violência não se avalia pelo êxito, seja este qual for, mas na aspiração à validade razoável, imanente à fala. Sem dúvida, também uma convicção publicamente produzida através da fala e da contrafala pode ser manipulada: mas mesmo a manipulação bem sucedida deve levar em conta as exigênciàs da racionalidade. Somos convencidos pela verdade de uma proposição, pela adequacidade de uma norma e pela veracidade de um enunciado; a autenticidade de nossa 3 Authority, legitimation and political action [Autoridade, legitimidade e ação polí tica]. In: Parsons, T. Structure and process in modem societies [Estrutura'e pro cesso nas sociedades modernas]. New York, 1960. p. 181. * “fazer com que se realize o necessário, no interesse d.os objetivos coletivos”. (N. do Org.) ** “Defino o poder como a capacidade que tem um sistema social de mobilizar recursos para atingir objetivos coletivos.” (N. do Org.) 4 Arendt, H. Ueber die Revolution [Sobre a revolução]. Munique, 1965. p. 96.
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convicção depende da consciência de que essas exigências de validade são reconhecidas racionalmente, ou seja, são motivadas. As convicções são manipuladas, mas não a exigência de racionalidade da qual elas derivam a sua força subjetiva. Em suma: o poder (comunicativamente produzido) das convicções comuns origina-se dó fato de que os participantes orientam-se para o entendimento recíproco e não para o seu próprio sucesso. Não utilizam a linguagem “perlocuto ri amente”, isto é, visando instigar outros sujeitos para um comportamento desejado, mas “ilocutori amente”, isto é, com vistas ao estabelecimento não-coercitivo de relações iptersubjetivas. H. Arendt desprende o conceito de poder do modelo teleológico da ação; o poder se constitui na ação comunicativa, é um efeito coletivo da fala, na qual o entendimento mútuo é um fim em si para todos os partici pantes. Se, porém, o poder não é mais concebido como um potencial para a realização de fins, e se não mais se atualiza em ações instrumentais — como se manifesta ele e para que serve? H. Arendt considera o poder um fim em si mesmo. O poder serve para preservar a práxis, da qual se originou. Consolida-se em poder político, através de instituições que asseguram formas de vida baseadas na fala recíproca. O poder manifesta-se em: a') ordenamentos que garantem a liberdade política; b) na resistência contra as forças que ameaçam a liberdade política, tanto exterior como interiormente; c) na queles atos revolucionários que fundam as novas* instituições da liberdade:
“O qué investe de poder as instituições e as leis de um país, é o apoio do povo, que por sua vez é a continuação daquele consenso original que produziu as instituições e as leis. . . Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e desa gregam no momento em que a força viva do povo deixa de apoiá-las. É o que Madison quis dizer quando afirmou que todos os governos se fundam, em última instância, na ‘opinião’ ” 5.
Aqui se toma claro que o conceito comunicativo do poder comporta também um conteúdo normativo. É tal conceito cientificamente útil e é apropriado para fins descritivos? Tentarei responder a essa pergunta de forma gradativa. Mostrarei primeiro como H. Arendt introduz e funda menta o conceito. Em seguida, recordarei como ela o aplica. Enfim, apontarei alguns dos seus pontos vulneráveis, os quais em minha opinião 5 Arendt, H. Macht und Gewalt. p. 42.
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não se localizam tanto em seu estatuto normativo, como no fato de que H. Arendt permanece vinculada à constelação histórica e conceituai do pensamento aristotélico.
As estruturas de intersubjetividade intata A obra filosófica principal de H. Arendt (The human condition, 1958) propõe-se a renovação sistemática do conceito aristotélico de práxis. A autora não se limita à exegese de textos clássicos, e esboça uma antropologia da ação lingüística, como contrapartida da antropo logia da ação instrumental (zwecktaetigen Hcmdeln) de Amold Gehlen (Der Mensch [O homem], — 1940-1950). Enquanto Gehlen investiga o circuito da ação instrumental como o mais importante mecanismo de reprodução da espécie, H. Arendt analisa a forma de intersubjetividade gerada na práxis lingüística como a característica fundamental da vida culturalmente reproduzida. A ação comunicativa é o meio em que se forma um mundo vital (Lebenswelt) intersubjetivamente partilhado. Esse é o “espaço de manifestação” (Erscheinungsraum) em que os atores aparecem, se encontram, são vistos e ouvidos. A dimensão espacial do mundo da vida é determinada pelo “fato da pluralidade humana”: cada interação unificà a multiplicidade das perspectivas de percepção e ação dos presentes, que assumem como indivíduos um ponto de vista incon fundível. A dimensão temporal do mundo da vida é determinada pelo “fato da natalidade humana”. O nascimento de cada indivíduo significa a possibilidade de um novo começo; agir significa poder tomar uma iniciativa e fazer algo de imprevisto. De resto, o mundo da vida é determinado pela tarefa de assegurar a identidade dos indivíduos e grupos no espaço social e no tempo histórico. Na ação comunicativa os indivíduos aparecem ativamente como seres únicos, revelando-se em sua subjetividade. Ao mesmo tempo, devem reconhecer-se reciproca mente como seres responsáveis, isto é, capazes de entendimento intersubjetivo — a exigência de racionalidade imanente à fala funda uma igualdade radical. Finalmente, o próprio mundo da vida é preenchido, por assim dizer, pela práxis, pela “teia das relações humanas” (Bezugsgewebe menschlicher Angelegenheiten); trata-se das histórias em que os atores se envolvem na atividade e no sofrimento. Pode-se considerar insuficiente o método fenomenológico com o qual essa filosofia prática'é elaborada. Mas, a intenção é clara: pretende deduzir das propriedades formais da ação ou da práxis comunicativa as estruturas gerais de uma intersubjetividade não-mutilada. Tais estruturas
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definem as condições de normalidade da existência humana e digna. Devido a seu potencial inovador, a esfera da práxis é, em grande parte, instável e necessitada de proteção. Nas sociedades organizadas sob forma estatal, essa tarefa compete às instituições. Estas são alimentadas pelo poder que emana das estruturas intatas da intersubjetividade; e devem, por sua vez, proteger as frágeis estruturas intersubjetivas contra deformações, se não quiserem elas próprias atrofiar-se. Daí resulta a hipótese central que H. Arendt repete infatigavelmente: nenhuma lide rança política pode substituir impunemente o poder pela violência; e só pode obter o poder através de um espaço público (Oeffentlichkeit') não-deformado. H. Arendt não é a única que considera esse espaço como uma fonte, senão do poder, pelo menos da legitimação do poder; mas, H. Arendt insiste em que essa esfera só pode engendrar poder legítimo, enquanto exprimir as estruturas de uma comunicação não-deformada: “O que preserva um agrupamento político é o seu potencial de poder, e o que provoca a extinção das comunidades políticas é a perda de poder e finalmente a impotência. O processo como tal é dificilmente concretizável, porque o potencial de poder, ao contrário dos meios da violência, que podem ser armazenados para serem mobilizados, intatos, em casos de emergência, somente existe na medida em que se realiza. Onde o poder não se realiza, mas é tratado como algo a que se pode recorrer em momentos de necessidade, ele sucumbe, e a História está cheia de exemplos que demonstram que nenhuma riqueza do mundo, materialmente tangível, pode compensar essa perda de poder” (Vita Activa. Stuttgart, 1960. p. 193).
Algumas aplicações do conceito comunicativo de poder H. Arendt não tentou verificar sua hipótese através do exemplo da queda dos grandes impérios. Suas pesquisas históricas giram, de prefe rência, em torno de dois casos extremos: o aniquilamento da liberdade política em regimes totalitários e a fundamentação revolucionária da liberdade política. Seus dois trabalhos Elemente imd Urspruenge totaler Herrschajt (1955) [Elementos e origens da dominação total] e Ueber die Revolution (1960) [Sobre a revolução] aplicam o conceito comunica tivo do poder, permitindo assim que as deformações das democracias de massa do Ocidente sejam focalizadas a partir de perspectivas opostas.
Toda ordem estatal degenera numa dominação baseada na violên cia, quando isola, por desconfiança, os cidadãos entre si, proibindo o
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intercâmbio público de opiniões. Essa ordem destrói as estruturas comu nicativas, as únicas nas quais o poder pode surgir. O medo, radicalizado em terror, força cada um a fechar-se em si'mesmo, contra todos os outros; anula, ao mesmo tempo, as distâncias entre os indivíduos. Tira-lhes a força de iniciativa e priva todas as interações lingüísticas da capacidade de unificar espontaneamente o que está separado: “Aglome rando-se com todos os outros, cada um se isola completamente dos demais” 6. Naturalmente a dominação totalitária que H. Arendt inves tiga, tomando como exemplo o regime nazista e o stalinismo, não é apenas uma forma moderna da tirania. Se assim fosse, limitar-se-ia a paralisar o movimento comunicativo do espaço político. Sua caracterís tica específica consiste exatamente na mobilização das massas despolitizadas. O Estado total “destrói, por um lado, todas as relações intersubjetivas que ainda sub sistem depois do desaparecimento da esfera político-pública, e obriga, por outro lado, os indivíduos completamente isolados e abandonados uns pelos outros a executarem novamente ações políticas (embora, é claro, nao a genuína ação política...” (Ibid., p. 749). Somente por razões tipológicas pode a dominação totalitária do regime nazista ser concebida como uma forma radicalizada de tirania; historicamente, ela brotou no solo de uma democracia de massas. Tal circunstância induz H. Arendt a uma crítica veemente do privatismo inerente às sociedades modernas. Enquanto os teóricos do elitismo democrático (seguindo Schumpeter) valorizam o governo e os partidos representativos, por canalizarem de forma restritiva a participação polí tica de uma população despolitizada, H. Arendt vê o perigo exatamente nisso. A mediatização da população através de administrações públicas, partidos, associações e parlamentos, alfamente burocratizados, completa e consolida as formas de vida privatistas, que possibilitam a mobilização do apolítico, ou seja, que fornece as condições sócio-psicológicas da dominação totalitária 7. Jefferson, o radical-democrata entre os pais da constituição americana, já 6 Arendt, H. Elemente und Vrspruenge totàler Herrschaft [Elementos e origens da dominação total). Frankfurt, p. 745. 7 É nessa idéia que se baseia a tese da “Banalitaet des Boesen” [Banalidade do mal], que H. Arendt exemplificou com Eichmann (Eichmann in Jerusalem. Muenchen, 1964). Ela já se encontra num ensaio escrito em 1944 e publicado imediatamente depois da guerra em Wandlung [Mudança] sobre “Organisierte Schuld” [Culpa orga nizada]: “Heinrich Himmler não pertence àqueles intelectuais que se originam da sombria terra-de-ninguém entre a existência boêmia e a lumpent cuja significação
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“suspeitava que poderia ser perigoso limitar ao processo eleitoral a par ticipação do povo na vida política, restringindo suas possibilidades de exercer influência nos temas públicos ao anonimato do voto. O que ele percebeu como perigo mortal para a república foi que a constituição outorgara todo poder aos cidadãos, sem lhes outorgar a oportunidade de serem e de agirem como cidadãos. Em outras palavras, o perigo estava no fato de que todo poder fora dado ao povo como entidade priva da, sem que fosse criado um espaço em que os indivíduos pudessem atuar como cidadãos” (Ueber die Revolution. p. 324).
Aqui se manifesta o tema que inspirou HannahtArendt em suas investigações sobre as revoluções burguesas do século XVIII, a insurrei ção húngara de 1956, a desobediência civil e o movimento de protesto estudantil dos anos 60. O que lhe interessa nos movimentos emancipatórios é o poder da convicção comum: a desobediência com relação a instituições que perderam sua força legitimatória; a confrontação do poder, gerado pela livre união dos indivíduos, com os instrumentos coer citivos de um aparelho estatal violento mas impotente; o surgimento de uma nova ordem política e a tentativa de estabilizar o novo começo, a situação revolucionária original, e de perpetuar institucionalmente a gestação comunicativa do poder. Ê fascinante observar como H. Arendt para a elite nazista tem sido freqüentemente apontada. Não é nem um boêmio como Goebbels, nem um criminoso sexual como Streicher, nem um fanático per vertido como Hitler, nem um aventureiro como Gõring. Ele é um pequeno-burguês, com todas as aparências da respeitabilidade, com todos os hábitos de bom pai de família, que não engana a sua mulher e deseja assegurar para os seus filhos um futuro decente. Construiu conscientemente sua organização terrorista, englobando o país inteiro, no pressuposto de que a maior parte dos homens nao são nem boê mios, nem fanáticos, nem aventureiros, nem criminosos sexuais, nem sádicos mas, antes de mais nada, ‘jobholders’ e bons pais de família. Creio que foi Péguy quem chamou o pai de família o ‘grand aventurier du 20e siècle’; mas morreu cedo demais para perceber que ele era também o grande criminoso do século. De tal maneira nos habituamos a admirar ou observar com um sorriso no pai de família sua solici tude benevolente, sua preocupação com o bem-estar da família e sua solene resolu ção de dedicar sua vida à mulher e aos filhos, que mal percebemos como o pai de família providente, obcecado primordialmente pela segurança, transformou-se, sob a pressão das circunstâncias econômicas caóticas do nosso tempo, num aventureiro involuntário que, apesar de todas as suas preocupações, nunca podia ter certeza, do dia seguinte. Sua docilidade comprovou-se desde as homogeneizações (Gleichschaltimgeri) do início do regime. Ficara evidente que ele estava totalmente disposto a abrir mão de sua convicção, de sua honra, de sua dignidade humana, para gaíantir a aposentadoria, o seguro de vida e a existência da mulher e dos filhos” (Die ver-
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percebe em diferentes ocasiões o mesmo fenômeno. Quando os revolu cionários se apropriam do poder que está nas ruas; quando a população que optou pela resistência passiva enfrenta tanques estrangeiros, com mãos desarmadas; quando minorias convictas disputam a legitimidade das leis existentes e organizam a resistência civil; quando, no movimento de protesto dos estudantes, “o puro desejo de ação” se manifesta —- em todos esses momentos parece confirmar-se a tese de que “ninguém possui verdadeiramente o poder; ele surge entre os homens que atuam em con junto, e desaparece quando eles novamente se dispersam” (Vita Activa, p. 194). Esse conceito enfático da práxis é mais marxista que aristotélico; Marx o denominava “atividade crítico-revolucionária”. borgene Tradition [A tradição oculta]. Frankfurt, 1976. p. 40-1). Foi essa per cepção* que transformou H. Arendt, assim como seu mestre Karl Jaspers apesar de sua inequívoca mentalidade elitista, em corajosos radical-democratas. H. Arendt exprime na seguinte passagem a forma pela qual concebe o nexo sul generis entre a democracia participativa e as estruturas elitistas que ela con sidera necessárias: “Quem pensa, com Kant, que é ‘agradável imaginar constitui ções políticas* não resistirá à tentação de seguir esboçando tais formas de estado (H. Arendt refere-se aqui aos conselhos operários), que somente conhecemos in statu nascendi. Mas, seria mais prudente dizer aqui o que Jefferson diz com relação às repúblicas elementares: ‘Deve dar-se início a elas, não importa para que fim; logo ficará claro para que outros fins elas são úteis’. Entre esses fins, se incluiria, hoje em dia, por exemplo, a liquidação da sociedade de massas e da perigosa tendência, que lhe é imanente, de gerar movimentos da massa pseudopolíticos, juntamente com as formações elitistas que lhes correspondem, que ninguém elegeu e que não se constituíram por si sós. A liberdade pública e a responsabilidade por assuntos públicos caberiam àqueles poucos, que podem ser encontrados em todas as camadas sociais e ocupacionais, e que se comprazem nessas questões. Eles constituem, de qualquer forma, a elite política de um país, e nenhum estado pode afirmar que realiza sua missão, ou aspirar a ser uma verdadeira república se não utiliza tais elites, pondo à sua disposição o espaço público que lhes corresponde. É possível que tal forma de estado — no sentido mais autêntico da palavra, uma aristocracia — não mais recorresse ao instrumento das eleições gerais, pois somente os membros voluntários de uma ‘república elementar’ teriam provado que estão preocupados com algo que vá além de seu bem-estar privado e dos seus interesses privados legí timos. Somente quem está realmente interessado no mundo, tem direito de participar no andamento do mundo. Ser excluído da política não significa, de forma alguma, algo de vergonhoso, como é o caso hoje com a cassação dos direitos civis; se aqueles que participam se. escolheram a si mesmos, aqueles que estão excluídos também se excluíram a si mesmos. Esse afastamento institucionalizado da esfera pública daria substância e realidade a uma das liberdades negativas essenciais, ou seja, a liberdade com relação à política, que conhecemos desde o fim da Antiguidade, que era desconhecida em Roma e Atenas, e que talvez constitua a parte política mais significativa de nosso patrimônio cristão” (JJeber die Revolution, p. 359-60).
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Limites da teoria clássica Já houve tentativas de institucionalizar a democracia imediata: os townhall meetings americanos em 1776, as sociétés populaires em Paris entre 1789 e 1793, as sessões da Comuna Parisiense em 1871, os sovietes na Rússia em 1905 e 1917, e os conselhos revolucionários na Alemanha de 1918. Nessas diferentes formas de democracia direta ve, H. Arendt, as únicas tentativas de constituição da liberdade nas condições da socie dade moderna de massas. Seu fracasso nos séculos XIX e XX é atri buído às derrotas políticas do movimento operário revolucionário e ao sucesso econômico dos sindicatos e dos partidos trabalhistas:
“Pois hoje em dia, numa época em que uma renda anual garantida ocupará em breve o lugar do salário diário ou semanal, os trabalhadores não se acham mais fora da sociedade; são não somente cidadãos de* pleno direito, mas estão a caminho dê transformar-se em membros inte grais da sociedade e jobholders como todos os demais. Com isso, o movimento operário esvazia-se necessariamente de sua significação polí tica e converte-se num dos grupos de pressão que regulam essa socie dade” (Ibid., p. 213).
Essa tese, no contexto em que é formulada, é demasiadamente fácil; não decorre de pesquisas equilibradas, mas de uma construção filosófica. É porque Arendt estiliza a imagem da polis grega, transformando-a na essência do político, que constrói dicotomias conceituais rígidas entre “público” e “privado”, Estado e economia, liberdade e bem-estar, ativi dade político-prática e produção, não-aplicáveis à moderna sociedade burguesa e ao Estado moderno. Assim, para ela, o mero fato de que com o modo de produção capitalista produz-sé uma relação caracteristicamente nova e complementar entre o Estado e a economia, é visto como um sintoma patológico e como o indício de uma confusão des trutiva: “Essa funcionalização da política faz com que se tome difícil até mesmo perceber a distância que separa o político do social” (Ibid., p. 34-5). H. Arendt insiste com razão em que a superação técnico-econômica da pobreza não significa de forma alguma que a liberdade pública esteja assegurada, em termos prático-políticos. Mas, ela torna-se vítima de um conceito de política inaplicável às condições modernas quando afirma que “a intrusão de questões sociais e econômicas na esfera pública, a trans formação do governo em administração, na qual a dominação pessoal
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é substituída por. medidas burocráticas e anônimas, e as leis sao substi tuídas por regulamentos” (Ueber die Revoluüon. p. 115-6),
frustram necessariamente qualquer tentativa de fundar um espaço político ativo e uma democracia radical. É nessa perspectiva sombria que viu também a Revolução Francesa, enquanto acredita que na América a fun dação da liberdade foi inicialmente bem sucedida, porque “não havia o obstáculo de uma questão social, politicamente insolúvel” (Ibid., p. 85). Não posso aprofundar aqui essa interpretação 8; desejo somente recordar a perspectiva sui generis adotada por H. Arendt: um Estado, exonerado da- elaboração administrativa de matérias sociais; uma política, depurada das questões relativas à política social; uma institucionalização da liber dade pública, que independe da organização do bem-estar; um processo radical de formação democrática da vontade, que se abstém em face da repressão social — este não é um caminho viável para nenhuma socie dade moderna. Confrontamo-nos, assim, com um dilema. Por um lado, o conceito comunicativo do poder desvenda certos fenômenos-limite do mundo moderno, para os quais a ciência política se tomou em grande parte insensível; por outro lado, tal conceito define uma concepção do político que leva a contra-sensos, quando aplicada a sociedades modernas. Vol temos, por isso, à análise do conceito do poder. O conceito do poder comunicativamente produzido, de H. Arendt, só pode transformar-se num instrumento válido se o desvincularmos de uma teoria da ação inspirada em Aristóteles. H. Arendt faz remontar o poder político exclusivamente à práxis, à fala recíproca e à ação con junta dos indivíduos, porque delimita a práxis, por um lado com relação às atividades apolíticas da produção e do trabalho e, por outro lado, com relação ao pensamento. Face à produção de objetos e ao conhecimento teórico, a ação comunicativa aparece como a única categoria política. Essa limitação conceituai do político ao prático permite, por um efeito de contraste, ilustrar a situação contemporânea, caracterizada pela eli minação de conteúdos essencialmente práticos do processo político. Com isso, entretanto, H. Arendt tem que pagar o preço de: a) excluir da esfera política todos os elementos estratégicos, definindo-os como violên 8 Cf. minha recensão: “Die Geschichte von den zwei Revolutionen” [A história das duas revoluções]. In: Habermas, I. Kultur und Kritik [Cultura e crítica]. Frankfurt, 1973. p. 365-70.
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cia; h).de isolar a política dos contextos econômicos e sociais em que está embutida através do sistema administrativo; c) de não poder com preender as manifestações da violência estrutural.
Competição estratégica e poder político A condução da guerra é o modelo clássico da ação estratégica. Para os gregos, a guerra era algo que acontecia fora dós muros da cidade. Também para H. Arendt, a ação estratégica é essencialmente apolítica, um tema para os especialistas. Esse exemplo é apropriado para demonstrar o contraste entre o poder político e a violência. A atividade bélica envolve manifestamente a utilização calculada de meios de violência; seja com fins de ameaça, seja para derrotar fisicamente o adversário. Mas, a acumulação de meios de aniquilamento não toma as superpotências mais poderosas — a força militar é frequentemente (como demonstrou a Guerra do Vietnã) a contrapartida da impotência interna. Além disso, o exemplo da estratégia é adequado para englobar a ação estratégica na categoria da ação instrumental. Na Vita Activa, somente as atividades essencialmente não-sociais da produção e do trabalho são previstas, além da ação comunicativa. E como a utilização instrumental de meios militares parece ter a mesma estrutura que a manipulação de instrumentos para a produção de objetos ou a transformação da natureza, H. Arendt equipara pura e simplesmente a ação estratégica à instru mental. Graças ao exemplo da guerra, ela demonstra que a ação estra tégica é, ao mesmo tempo, violenta e instrumental; uma ação deste tipo situa-se fora da esfera do político. A situação apresenta-se de forma distinta se confrontarmos com a ação comunicativa a ação estratégica entre protagonistas quê competem entre si, participando de uma forma de interação social orientada não para o entendimento mútuo, mas para o êxito; e se a contrastarmos com a ação instrumental, realizável, como uma ação não-social, por um sujeito isolado. Torna-se claro, assim, que a ação estratégica também se realiza dentro dos muros .da cidade; ela se manifesta nas lutas pelo poder, na concorrência por posições vinculadas ao exercício do poder legítimo. Devemos distinguir a dominação, ou seja, o exercício do poder político, tanto da aquisição e preservação desse poder, como da sua gestação. Nesse último caso, e somente nele, o conceito de práxis pode auxiliar-nos. Nenhum detentor de posições de dominação pode exercer
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o poder, e ninguém poderá disputá-lo, se tais posições não estiverem ancoradas nas leis e instituições políticas, cuja sobrevivência repousa, em última instância, sobre as convicções comuns, sobre a opinião “em torno da qual muitos se puseram publicamente de acordo”.
Sem dúvida, os elementos da ação estratégica ganharam em volume e em amplitude nas sociedades modernas. Esse tipo de ação, que nas sociedades pré-modernas predominaram sobretudo nas relações exterio res, é admitido como o caso normal, também no interior, com o desen volvimento do modo de produção capitalista. O direito privado moderno concede a todos os proprietários de mercadorias esferas de ação estra tégica formalmente iguais. No Estado moderno, que completa essa socie dade econômica, a luta pelo poder político é normalizada, além disso, pela institucionalização da ação estratégica (admitindo uma oposição, a concorrência de partidos e associações, a legalização de lutas operá rias, etc.). Esses fenômenos da aquisição e da preservação de poder induziram teóricos políticos, de Hobbes a Schumpeter, ao erro de con fundir o poder com um potencial para a ação estratégica bem sucedida. Contra essa tradição, em que também se inscreve Max Weber, pode H. Arendt fazer valer' com razão o argumento de que as confrontações estratégicas em torno do poder político nem produziram nem preservam as instituições nas quais esse poder está enraizado. As instituições polí ticas não vivem da violência, mas do reconhecimento. Não obstante, não podemos excluir do conceito do político o ele mento da ação estratégica. Definiremos a violência exercida por meio da ação estratégica como a capacidade de impedir outros indivíduos ou grupos de defender os seus próprios interesses 9.
Nesse sentido, a violência sempre foi parte integrante dos meios para a aquisição e preservação do poder. Essa luta pelo poder político foi mesmo institucionalizada no Estado moderno, tornando-se, portanto, um elemento normal do sistema político. Por outro lado, não é de forma alguma evidente que alguém possa ter condições de gerar poder legítimo, somente por estar habilitado a impedir outros- de realizarem os seus interesses. O poder legítimo só se origina entre aqueles que formam convicções comuns num processo dç comunicação não-coercitiva. 9 Çf. sobre esse conceito minhas observações em: Habermas, I. e Luhmann, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie [Teoria da sociedade ou tecnologia social]. Frankfurt, 1971. p. 250-7. V'
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Aplicação do poder no sistema político A gestação- comunicativa do poder e a competição estratégica em tomo do poder político podem ser compreendidas em termos da teoria da ação; mas, para o exercício do poder legítimo as estruturas de ação nas quais ele ocorre não são essenciais. O poder legítimo autoriza os detentores das posições de dominação a tomarem decisões vinculantes. Essa utilização do poder é de maior interesse numa perspectiva sistêmica que do ponto de vista da teoria da ação. Questões como as' atividades organizacionais do Estado e as funções que elas exercem com relação aos vários “ambientes” do sistema político, podem ser formuladas e investigadas adequadamente num quadro de referência parsoniano. H. Arendt resiste, naturalmente, à idéia de abandonar o quadro conceituai da teoria da ação, introduzindo nele uma análise funcionalista. A esfera das preocupações humanas não pode ser reificada à base dos critérios objetivantes das ciências sociais, porque os conhecimentos obtidos se gundo essa ótica não podem refluir para a práxis dos interessados. Nesse sentido, H. Arendt não distinguiria entre Hegel e Parsons: ambos inves tigam processos históricos e sociais que se desenrolam sem a partici pação dos interessados (über die Koepfe der Beteiligten hinweg')1Q. Ela própria tenta reintroduzir esse aspecto processual da vida social no marco de uma teoria da ação, diferenciando, na ação instrumental, entre produção e trabalho. O trabalho distingue-se da produção, não nas estruturas da ação, mas pela circunstância de que ò conceito de “trabalho” concebe a atividade produtiva como um dispêndio de força de trabalho reproduzível, integrando-o, assim, no contexto funcional da produção, consumo e reprodução. Com todas essas reservas, e com seu aparelho conceituai restrito à teoria da ação, ela se coloca em uma posição inutilmente desvantajosa com relação às análises sistêmicas, habituais hoje em dia. Por outro lado, sua desconfiança revela-se justificada, na medida em que, por sua vez, a teoria sistêmica se autonomiza com relação à teoria da ação. Isto fica evidente em Parsons, quando ele polemiza contra o conceito de poder, baseado na categoria do jogo de soma-zero, de C. W. Mills. Parsons concebe o poder, à semelhança do crédito ou da capacidade aquisitiva, como um bem multiplicável. Quando uma parte ganha poder político, a outra não precisa perdê-lo. Só ocorre um jogo de soma-zero quando vários protagonistas disputam a aquisição de posições existentes, mas não quando se trata do surgimento e da desagregação do poder das 10 Arendt, H. Ueber die Revolution. p. 63 et seqs.
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instituições políticas. Nisso coincidem Parsons e H. Arendt. Mas, ambos têm concepções extremamente divergentes do processo de ampliação do poder (enhancement of power). Parsons considera esse processo como uma intensificação do nível de atividade, o que significa que o “raio de ação” do sistema administrativo deve ser ampliado, para que o output das atividades organizacionais do Estado possa crescer. Isto, por sua vez, exige uni input crescente de respaldos inespecíficos, isto é, lealdade de massa. Por isso, o processo de ampliação do poder inicia-se do lado do input. Os líderes políticos devem suscitar em seus eleitores novas necessidades, para que surjam necessidades crescentes, somente gratificá veis por meio de atividades estatais crescentes n.
Numa perspectiva sistêmica, a gestação do poder apresenta-se como um problema que pode ser solucionado na medida em que a liderança política exerce maior influência sobre a vontade da população. Mas, se isto ocorresse graças a meios de coação psíquica e à manipulação das convicções, tratar-se-ia, segundo H. Arendt, de um aumento de violência, mas não de um crescimento do poder do sistema político. Porque, segundo a sua hipótese, o poder só pode surgir nas estruturas da comu nicação não-coercitiva; não pode ser “gerado de cima”. Parsons con testaria essa hipótese; dados certos valores culturais, não podem surgir para ele limites estruturais à gestação do poder. Por outro lado, Parsons distingue, com relação a casos concretos de inflação e deflação de poder, entre os créditos de poder (Marktkredite) sérios e não-sérios:
“There is a fine line between solid, responsible and constructive political leadership which in fact commits the collectivity beyond its capacities for instantaneous fulfillment of all obligations, and reckless overextendedness, just as there is a fine line between responsible banking and ‘wildcatting’” * * (Ibid., p. 342).
Somente é difícil imaginar como tal diferença possa exprimir-se por meio de conceitos sistêmicos. H. Arendt oferece uma solução para esse pro blema preciso. Ela tenta derivar das estruturas da intersubjetividade intata as condições que o espaço político precisa preencher para que o poder possa ser comunicativamente gerado ou ampliado. 11 Cf. Parsons, T. On the concept of power [Sobre o conceito de poder], p. 340. * “Existe uma diferença importante entre uma liderança sólida, responsável e cons trutiva que compromete a coletividade além da sua capacidade de cumprir instan taneamente todas as suas obrigações, e uma liberalidade extravagante, assim como existe uma diferença importante entre atividades bancárias judiciosas e especulações irresponsáveis.” (N. do Org.)
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Gestação comunicativa do poder — uma variante Resumamos nossas reflexões. O conceito do político deve esten der-se para abranger também a competição estratégica em torno do poder político e a aplicação do poder ao sistema político. A política não pode ser idêntica, como supõe H. Arendt, à práxis daqueles que conversam entre si, a fim de agirem em comum. Inversamente, a teoria dominante restringe esse conceito aos fenômenos da concorrência em torno do poder e da alocação do poder, sem fazer justiça ao fenômeno específico da gestação do poder. Aqui a diferença entre pçder e vio lência toma-se nítida. Ela toma visível o fato de que^o sistema político não pode dispor arbitrariamente sobre o poder. O poder é um bem disputado pelos grupos políticos e graças ao qual uma liderança política administra; mas, nos dois casos, este poder preexiste, e não é produzido por tais grupos e lideranças. Esta é a impotência dos poderosos — eles precisam derivar seu poder dos produtores do poder. Eis o credo de H. Arendt. A objeção é óbvia. Se nas democracias modernas a liderança é obrigada a legitimar-se periodicamente, a História oferece provas esma gadoras de que a dominação política deve ter funcionado diferentemente do que é afirmado por H. Arendt, e que, de fato, funciona diferentemente. A favor de sua tese, há o argumento de que a dominação política só é duradoura quando é reconhecida como legítima; contra ela testemunha a experiência de que as relações sociais estabilizadas através da domi nação política somente em casos muito raros fundam-se numa opinião “em torno da qual muitos se puseram publicamente de acordo”. Pelo menos se concordarmos com o conceito ambicioso que H. Arendt tem do espaço público. Os dois fatos só se deixam reduzir a um denominador comum, quando se pressupõe que a violência estrutural está embutida nas instituições políticas (e não somente nelas). A violência estrutural não se manifesta como violência] ela bloqueia, imperceptivelmente, aqueles processos comunicativos nos quais se formam e se reproduzem as convicções dotadas de eficácia legitimadora. Tal hipótese sobre os bloqueios, inobservados mas eficazes, do processo comunicativo, pode explicar a formação da ideologia; pode esclarecer como se formam as convicções graças às quais os sujeitos se iludem sobre si mesmos e sobre a sua situação. O que chamamos ideologias são exatamente as ilusões dotadas do poder das convicções comuns. Essa proposta procura dar uma versão realista da idéia da gestação comunicativa do poder. Em processos comunicativos sistematicamente limitados, os participantes formam convicções subjetivamente não-coerci-
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tivas, mas ilusórias; com isso, geram comunicativamente um poder que pode ser usado contra esses mesmos participantes, no momento em que se institucionaliza. Para podermos aceitar essa proposta, entretanto, te ríamos que especificar um critério crítico que nos permita distinguir entre as convicções ilusórias e as não-ilusórias.
É exatamente essa possibilidade que H. Arendt contesta. Ela man tém a distinção clássica entre a teoria e a prática — esta se baseia em opiniões e convicções insuscetíveis, stricto sensu, de serem verdadeiras (wah rh eitsfaehig): “No opinion is self-evident. In matters of opinion, but not in matters of truth, our thinking is truly discursive, running as it were, from place to place, from one part of the world to the other through all kinds of conflicting views, until it finally ascends from all these particularities to some impartial generality” 12 **. * * * *
Um conceito hoje ultrapassado de conhecimento teórico, baseado nas evidências últimas, impede H. Arendt de compreender o acordo sobre questões práticas como uma formação racional da vontade. Se, ao con trário, “o pensamento representativo” (segundo a sua concepção),18 12 Arendt, H. Truth and Politics [Verdade e política]. In: Laslett, P. e Runciman, W. G. Philosophy, politics and society III [Filosofia, política e sociedade]. Oxford, 1969. p. 115-6. * “Nenhuma opinião é evidente por si mesma. Em questões de opinião, mas não nas relativas à verdade, nosso pensamento é verdadeiramente discursivo, deslocan do-se, por assim dizer, de um ponto para o outro, de uma parte do mundo para outra, passando por todos os pontos de vista antagônicos, até ascender, finalmente, desses particulares a uma generalidade imparcial.” (N. do Org.) 18 “Political thought is representative. I form an opinion by considering a given issue from different viewpoints, by making present to my mind the standpoints of those who are absent, that is, I represent them. This process of representation does not blindly adopt the actual views of those who stand somewhere else and hence^ look upon the world from a different perspective; this is a question neither of empathy, as though I tried to be or feel like somebody else, nor of counting noses and joining a majority, but of being and thinking in my own identity where actually I am not. The more people’s standpoints I have present in my mind while pondering a gíven issue and the better I can imagine how I would feel and think if I were in their place, the stronger will be my capacity for representative thinking and the more valid my final conclusions, my opinion. (It is this capacity for an ‘enlarged mentality’ that enables men to judge as such, it was discovered by Kant — in the first part of his Critique of Judgement — who, however, did not recognize the political and moral implications of his discovery.) The very process of opinionformation is determined by those in whose places somebody thinks and used his own mind, and the only condition for this exertion of imagination is disinterestedness, the liberation from one’s own private interests. Hence, even if I shun all
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que investiga a capacidade de generalização de pontos de vista práticos, ou seja, a justeza (Richtigkeif) de normas, não é separado da argumen tação, como por um abismo, pode-se reivindicar um fundamento cogni tivo também para o poder das convicções comuns. Nesse caso, o poder estaria radicado no reconhecimento fatual de expectativas de validade, concretizáveis de forma discursiva, fundamentalmente criticáveis. No entanto, H. Arendt vê entre o conhecimento e a opinião um abismo que não pode ser preenchido por meio de argumentos. Ela procura outro fundamento para o poder da opinião •— e o encontra company or am completely isolated while forming an opinion, I am not simply together only with myself in the solitude of philosophic thought; I remain in this world of mutual interdependence where I can make myself the representative of everybody else. To be sure, I can refuse to do this and form an opinion that takes only my own interest, or the interests of the group to which I belong, into account; nothing indeed is more common, even among highly sophisticated people, than this blind obstinacy which becomes manifest in lack of imagination and failure to judge. But the very quality of an opinion as of a judgement depends upon its degree of impartiality” (Ibid., p. 115). “O pensamento político é representativo. Formo uma opinião quando consi dero uma questão de vários pontos de vista, fazendo presentes as opiniões dos ausentes, isto é, representando-os. Esse processo de representação não adota cega mente as opiniões efetivas dos que estão em outro lugar e que olham, portanto, o mundo a partir de uma perspectiva diferente; não se trata de empatia, como se eu tentasse ser ou sentir como outros, nem de somar-me a uma maioria, m^s de ser e pensar com minha própria identidade, onde de fato não estou. Quanto mais numerosos os pontos de vista que tenho presentes em meu espírito, no momento em que pondero uma questão, e quanto melhor posso imaginar de que forma eu sentiria e pensaria se estivesse no lugar desses outros, tanto mais forte será minha capacidade de pensamento representativo e tanto mais válidas minhas conclusões finais — minha opinião. (É essa capacidade de dispor de uma ‘mentalidade mais ampla’ que permite aos homens o julgamento;* como tal, ela foi descoberta por Kant, na primeira parte de sua Crítica do Juízo, mas este não recoiiheceu as implicações políticas e morais de sua descoberta.) O próprio processo de formação da opinião é determinado por aqueles em cujo lugar alguém pensa e usa a sua própria mente, e a única condição para esse exercício de imaginação é o desinteresse, a libertação com relação a nossos interesses privados. Portanto, mesmo se evito toda companhia ou se permaneço completamente isolada ao formar uma opinião, não estou, sim plesmente, junto a mim mesma na solidão do pensamento filosófico; permaneço nesse mundo de interdependência mútua, no qual posso tornar-me a representante de todos os demais. Sem dúvida, posso me recusar a fazê-lo, formando uma opinião que só leve em cohta os meus próprios interesses, ou os interesses do grupo ao qual pertenço; na verdade, nada é mais comum, mesmo entre pessoas altamente refina das, do que essa obstinação cega que se torna manifesta na falta de imaginação e na incapacidade de julgar. Mas a própria qualidade da opinião e do julgamento dependem do seu grau de imparcialidade.” (N. do Org.J
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na faculdade que têm os sujeitos, capazes de linguagem e de ação, de fazerem promessas e as cumprirem: “Já mencionamos que o poder se origina sempre que os homens se reúnem e agem em comum, e desaparece quando eles se dispersam. A força que mantém unidos esses indivíduos. . . é a força vinculante das promessas mútuas que, em última análise, manifestam-se no con trato” (Vita Activa, p. 240).
Na base do poder está o contrato concluído entre sujeitos livres e iguais, graças ao qual as partes se obrigam mutuamente, A fim de assegurar q núcleo normativo de uma equivalência original entre o poder e a liber dade, ela prefere recorrer, em última análise, à figura venerável do con trato,, que ao seu próprio conceito de práxis comunicativa.
Retrocede, assim, até a- tradição do direito natural.
3. A TORA CAMUFLADA — CONFERÊNCIA COMEMORATIVA DO 80.° ANIVERSÁRIO DE GERSHOM SCHOLEM * Querido e venerável Senhor Scholem: A convite da Embaixada Alemã, viemos a Israel, nós, cidadãos da República Federal, para festejá-lo. Mesmo contando com a compreensão amistosa do homenageado, não podemos contornar a questão delicada de debater o que nos autoriza a dar esse passo. A quem ocorreria enviar uma delegação semelhante a Paris, para celebrar, digamos, o 80.° ani versário de Jean-Paul Sartre? Se no caso de Scholem podemos arrogar mos o direito, sem qualquer presunção, de felicitá-lo dessa maneira espe cial, isto só pode fundar-se num simples fato. Hoje possuímos, e não hesito em usar essa formulação possessiva, nove livros escritos por Scholem em idioma alemão; o caráter magistral de sua impecável prosa científica demonstra que o seu autor esteve intimamente vinculado a essa língua desde o seu nascimento.
Este fato, contudo, somente seria simples se a língua que nos é comum significasse que partilhamos a mesma cultura, as mesmas tradições e as mesmas experiências históricas. Sem dúvida, os judeus e os alemães viveram em comum um fragmento da História. Mas os riscos, o sofri mento e o sacrifício não foram co-partilhados e sim repartidos, e repar tidos de forma extremamente desigual, mesmo antes que a violência * Reproduzido ‘ de Habermas, J. Die verkleidete Tora. Rede Zum 80. Çteburtstag von Gershom Scholem. Merkur, jan. 1978/p. 96-104.
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física de uns contra os outros extinguisse qualquer pensamento comu nitário. É o que o Senhor deixou claro, a mim e a nós.
Permita que lhe fale um momento de “nós”, isto é, da geração cujo desenvolvimento intelectual teve início, no após-guerra, com a recordação da catástrofe. Sua conferência de 1966, em que o Senhor tornou mani festas as profundas ‘assimetrias nas relações entre alemães e judeus, foi para nós um choque. Não tínhamos reconhecido há pouco, nas melhores tradições, as únicas que sobreviveram à corrupção, correntes de produti vidade judia, aceitando-as pela primeira vez, sem quaisquer reservas? Não estávamos sob a influência intelectualmente hegemônica de um Marx, de um Freud, de um Kafka? Não fôramos aceitos como alunos por aque les que como Bloch, Horkheimer, Adorno, Plessner, Lõwith, haviam regressado da emigração? Não tínhamos descoberto Walter Benjamin, graças à ajuda de Adorno e à sua? E esse foi apenas-o caso mais dra mático. Outros fios conduziam a H. Arendt, Norbert Elias, E. H. Erikson, H. Marcuse, A. Schütz, remontando até Karl Kraus, Franz Rosenzweig, Georg Simmel, os freudo-marxistas dos anos 20. Além disso, chegara-me às mãos um livro singular sobre as grandes correntes da mística judaica 1 que me surpreendeu com as relações de parentesco entre a teosofia de Jacob Bõhme e a doutrina de um homem chamado Isaak Luria. Atrás das Idades do Mundo de Schelling e da Lógica de Hegel, atrás de Baader, encontravam-se não somente, como tínhamos aprendido, os antepassados espirituais sábios, não somente o pietismo e o misticismo protestante, mas graças à mediação de Knorr von Rosenroth, aquela versão da Cabala, em cujas conseqüências antinômicas se prefiguravam mais cla ramente que em qualquer outro texto as figuras de pensamento e os impulsos da grande filosofia dialética. O autor que me abrirá essas perspectivas chamava-se Scholem2; e desse Scholem lemos alguns anos mais tarde que a assimilação dos judeus à cultura alemã, à qual devíamos todos esses impulsos, fora “desde o começo uma falsa partida”: “A emancipação trouxe consigo a negação decidida da nacionalidade judaica como um dos pólos da confrontação entre judeus e alemães, 1 Scholem, G. Die Juedische Mystik in ihren Hauptstroemungen. [A mística ju daica em suas grandes correntes]. Zurique, 1957, Frankfurt, 1967. 2 Cf. meu ensaio sobre: “Dialektischer Idealismus im Uebergang zum Materialismus — Geschichtsphilosophische Folgerungen aus Schellings Idee einer Kontraktion Gottes”, [O idealismo dialético na transição para o materialismo — conseqüên cias histórico-filosóficas da idéia de Schelling . sobre a contração de Deus]. In: Habermas, J. Theorie und Praxis [Teoria e prática]. Frankfurt, 1971. p. 172-227. V'
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uma negação ao mesmo tempo promovida pelos alemães e tolerada pela vanguarda judia” 3. Essa verdade suscita em mim, ainda hoje, uma reação de defesa, mas é uma verdade, a verdade histórica da qual a obra de sua vida deriva sua justificação. Hoje, acredito ver ambos os lados. Depois que tudo havia passado, uma última geração de eruditos, filósofos, escritores e artistas judeus regressou à Alemanha, exercendo uma influência inte lectual mais intensa que em qualquer momento anterior. Adquiriremos um direito a essas tradições teuto-judaicas, mesmo depois e precisamente depois de Auschwitz, na medida em que conseguirmos prolongá-las pro dutivamente e utilizá-las de tal forma que possamos dirigir sobre nós mesmos o olhar desses exilados, mais penetrante graças a Marx, Freud e Kafka, a fim de identificar em nós, como algo destacado da vida, os fragmentos alienados, reprimidos, e petrificados, de nosso próprio ser. Este é o futuro da assimilação, hoje convertida em passado, do espírito judeu ao alemão. Mas, o futuro que o Senhor propugna, Senhor Scholem, é outro. Em Johann Peter Hebel, o Senhor encontra a grande exceção, aquele que valorizou o judeu enquanto judeu, que “viu no judeu aquilo que ele tinha a oferecer e não aquilo a que ele devia renunciar” 4. Faz parte das suas convicções mais profundas que a simetria do dar e do receber somente possa ser constituída pelo retomo do espírito e da -nação judaica à sua própria história.
Nisso o Senhor se empenhou de tal forma que hoje o mundo do misticismo judeu, tesouros que os judeus recolheram de fontes profundas e que eles têm a distribuir como algo de próprio, estão expostos a todos os olhares. Com isso, o Senhor esclareceu a situação do dar e do receber. Minha tarefa, por conseqüência, não é, como prevê o protocolo, fazer um panegírico, mas exprimir-lhe nosso agradecimento. Quem agradece, deve saber dizer por que agradece. É o que tentarei fazer, mas a tarefa não é tão simples. •
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O discurso erudito de Scholem só à primeira vista é transparente; sua apresentação histórico-filosófica tem vários estratos., Sou incapaz de avaliar o filólogo e historiador Scholem; mas, quem se aprofunda nos escritos de Scholem, observa atrás do cientista outros tipos de filólogo: 3 Scholem, G. Judaica II. Frankfurt, 1970. p. 25. 4 Scholem, G. Judaica II. p. 40.
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o amante, o descobridor, o sionista militante e, finalmente, o filólogo que na reflexão sobre seu objeto se transforma em teórico. Não é necessário, Senhor Scholem, tê-lo acompanhado à Casa Ackermann, 'especializada em livros usados, que há cinqüenta anos o Senhor freqüenta em cada uma de suas visitas a Munique, para reco nhecer no Senhor um apaixonado da Filologia. O “rato de biblioteca” oculto no octogenário Scholem recorda que aos dezessete anos encontrou, numa tenda de livros, perto da Universidade de Berlim, a sátira de Lichtenberg à tentativa de Lavater de converter Moses Mendelson, com prando-a por cinqüenta fênignes; e acrescenta, sorrindo maliciosamente, que no ano passado um exemplar desse texto foi oferecido por mil e quinhentos marcos53. * A paixão do descobridor filológico transparece quando Scholem se recorda daquele manuscrito que encontrou em 1938, no seminário de teologia judaica em Nova York, graças ao qual conseguiu esclarecer um enigma, que durava há várias gerações, sobre a obra de Reuchlin: “Foi uma verdadeira festa para mim quando percorri essas páginas, que continham praticamente todas as citações incluídas na obra de Reuch lin” 6. 7
Não se sabia até então como Reuchlin conseguira chegar, às numerosas e muitas vezes erroneamente citadas fontes da Cabala. No entanto, para que Scholem pudesse, na tradição da ciência judaica, transformar-se num descobridor, num pesquisador imparcial do universo simbólico do misti cismo judeu, eram ainda necessários impulsos adicionais. No esforço incansável deste grande filólogo revelam-se o dinamismo intelectual, a experiência histórica e a sensibilidade da geração anterior à Primeira Guerra Mundial, influenciada pelo Movimento da Juventude (Jugendbewegung')*. A nova direção que Scholem imprimiu aos estudos da Cabala foi inspirada pela consciência nele despertada pelo movimento sionista. Ele próprio vê a revelação da mística judaica como parte da quele “movimento orientado para o renascimento do povo judeu, através do qual uma nova visão da história judaica se tomou possível” v. Mais ainda que o cientista incorruptível, o amante excêntrico, o descobridor apaixonado, o educador do povo, historicamente consciente, 3 Scholem, G. Von Berlin nach Jerusalem [De Berlim a Jerusalém]. Frankfurt, 1967. p. 69. 6 Scholem, G. Judaica III. Frankfurt, 1973. p. 252. * V. N. do Org. sobre este movimento na p. 169-70. 7 Scholem, G. Judaica III. p. 261.
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fascina-me, porém, o teórico, que Scholem não deseja ser e que se en trincheira atrás de muitos muros filológicos.
Os filólogos também precisam entender os objetos aos quais se refere um texto, pois, do contrário, não podem tomá-lo compreensível. Quanto mais esses objetos se distanciam da consciência quotidiana, tornando impossível uma utilização meramente instrumental da técnica filológica, tanto mais deve o filólogo transformar-se também em um especialista do seu domínio de objetos. Assim, os grandes filólogos e historiadores das ciências humanas {Geisteswissenschaften) sempre toma ram-se também um pouco juristas, teólogos ou filósofos. Como se com porta, porém, o filólogo que lida com textos místicos? 'Ele precisa vencer uma dupla distância. Já os próprios textos exprimem uma certa ironia sobre a qual os românticos, até Kierkegaard, refletiram: esses textos pretendem dizer o inefável e comunicar o que é considerado incomuni cável. Essa distância ainda seria superável se o intérprete dessas comu nicações indiretas se transformasse num especialista religioso, num místico. Mas, isso não depende dele, e Scholem não é ele próprio místico. Por isso, deve o filólogo aproximar-se do seu objeto através de uma teoria do objeto. A apropriação teórica do conteúdo das tradições místicas é a porite que a filologia da mística deve atravessar se ela quiser com preender e tomar compreensível seja o que for. Pelo que conheço dos seus escritos, Scholem, contudo, só se exprimiu uma unica vez como teórico, de resto sob um título que trai uma certa má consciência, histó rico-filológica; refiro-me às “Dez proposições a-históricas sobre a Cabala” 8.
Esse breve texto distingue-se dos outros escritos de Scholem em que nele a clareza cartesiana cede lugar à linguagem do conceituai dialético e quase a imagens dialéticas. Nessa única passagem, Scholem utiliza aquele estilo enigmático-revelador que admirara em seu amigo Benjamin. O texto começa com uma alusão ao elemento irônico inerente à filologia de uma disciplina mística como a. Cabala: “Permanece visível no filólogo algo da lei da própria coisa, ou desaparece justamente o essencial nessa projeção do histórico?” A resposta e ambivalente. Somente uma tradição decadente pode tomar-se objeto da Filologia, e dela ne cessita; mas, também, a"grandeza de uma tradição só é visível por meio de uma apropriação objetivante — “a verdadeira tradição permanece oculta”. 8 Scholem, G. Judaica III. p. 264 et seqs.
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Nos nove itens que se seguem, Scholem enumera todos os motivos teóricos que reencontram-se em seus trabalhos materiais como articulações sistemáticas da interpretação. Permito-me destacar pelo menos dois desses motivos, um relacionado com a teoria do conhecimento e o outro com a filosofia da História. •
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O primeiro motivo pode ser circunscrito pelos conceitos de reve lação, tradição, doutrina. Um ponto de partida é oferecido pela parábola rabínica, segundo a qual as Sagradas Escrituras se assemelham a uma grande casa com muitos aposentos, em cada um dos quais existe uma chave — que, no entanto, não é a certa. Todas as chaves estão trocadas A tradição é vista aqui numa perspectiva kafkiana. Pois, o que significa a tradição? Em primeiro lugar: doutrina. A doutrina da palavra profética é o instrumento da transmissão do saber que se originou com as grandes religiões universais. O judaísmo rabínico levou à perfeição a prática da doutrina, a exegese dos Textos Sagrados. É nessa forma que Scholem a conheceu, aos dezesseis anos de idade, quando realizou seus estudos hebraicos com o rabino Isaak Bleichrode e “aprendeu o Talmude” 910. 11 Mas isto ainda era doutrina, ainda tradição, em sua forma intata?
No século XIX, as ciências humanas tinham-se desenvolvido. Pro duto ambíguo do Iluminismo, constituíam as comportas modernas que represaram as correntes da tradição. A estrutura da tradição fora herme ticamente conscientizada, a doutrina fora desnudada como uma forma dogmática do pensamento. Por outro lado, era do interesse das ciências humanas que aquelas tradições das quais eram um prolongamento, ainda que reflexivo, não se dissolvessem em puras opiniões. Assim, moviam-se elas naquela singular ambivalência entre a elucidação de documentos, dos quais podemos ainda aprender algo de vitalmente importante, e o “desencantamento” de suas pretensões dogmáticas. Tal ambivalência perturba, até hoje, uma filologia que participa dos seus objetos. De Schleiermacher a Gadamer, a hermenêutica filosófica tenta resolver esse dilema, procurando preservar aquilo que ao mesmo tempo é possibili tado e aniquilado pela metodologia das ciências humanas, ou seja, a apropriação da tradição 1X. Esse mesmo problema se coloca também para 9 Scholem, G. Zur Kabbala und ihrer Symbolik. Frankfurt, 1973. p. 22-3. [Edição brasileira: A Cabala e seu simbolismo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1978. p. 20]. Scholem-, G. Von Berlin nach Jerusalem [De Berlim a Jerusalém], p. 63. 11 Gadamer,. H. G. Wahrheit und Methode [Verdade e método]. Tuebingen, 1960.
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Scholem, mas não o intranqüiliza. Ele pode enfrentar o problema do historicismo, ao qual me refiro aqui, com um conceito de tradição inspi rado e refinado na Cabala. Explico-me. O místico que recorre a iluminações, ou seja, um acesso imediato e intuitivo ao divino, é o concorrente natural do administrador da palavra autêntica de Deus, do sacerdote — ainda que o misticismo judaico até o século XVII tenha se apresentado como amante da ordem e atuado predominantemente como uma força conservadora. Os cabalistas têm um interesse natural em valorizar a Tora oral com relação à Bíblia; atribuem aos comentários, graças aos quais cada geração se reapropria da revelação, uma alta importância. Não mais identificam a revelação com a Tora escrita. Para eles, a verdade não está fixada, não se exprime positivamente numa série delimitada de proposições, de tal forma que a tradição se1 esgotasse numa reprodução, tanto quanto possível, fiel. A revelação é, em vez disso, o próprio processo da tradição; ela necessita o comentário criador. A Tora escrita somente se completa com a oral; a voz de Deus fala através das interpretações contraditórias dos eruditos de todas as gerações, até o Juízo Final12. Com essa disputa, a própria fonte divina se esgotaria. Mais tarde, essa concepção cabalística é ainda radicalizada. A própria Tora escrita é agora considerada uma tradução da palavra de Deus na linguagem dos homens, constituindo, assim, uma simples interpretação, e como tal contestável. Tudo é Tora oral; a Tora escrita é um conceito místico, que remete à condição messiânica de um conhecimento futuro 12 13. O que sabemos vem da revelação, mas suas chaves estão todas trocadas. Em tomo desse tema, que o misticismo judeu trata por meio de diferentes símbolos e símiles, gira constantemente o pensamento de Scholem 14. É aqui 'que ele parece buscar a solução do problema de como a falibilidade do conhecimento humano e a multiplicidade histó rica das interpretações podem se conciliar com a aspiração incondicionada e universal à verdade. A Tora oferece, na plenitude transbordante cje sua significação, um rosto novo a cada geração e mesmo a cada indivíduo e, no entanto, permanece a mesma. A Tora da árvore do conhecimento é uma Tora velada. Ela muda suas vestes, e essas vestes são a tradição. Somente 12 Scholem, G. Ueber einige Grundbegriffe des Judentums [Sobre alguns conceitos básicos do judaísmo]. Frankfurt, 1970. p. 90 et seqs. 13 Scholem, G. Zur Kabbala und ihrer Symbolik. p. 71. 14 Scholem, G. Judaica III. p. 67, 187 e 265; Grundbegriffe.... p. 90-120; Zur Kabbala.... p. 46-50.
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no momento da salvação, quando estiverem unificadas a teoria e a prática, a árvore do conhecimento e a árvore da vida, virá à luz a Tora desvendada. Somente nessa , luz a multiplicidade das interpretações con traditórias revelará a sua unidade oculta. O conceito místico da tradição inclui, portanto, um conceito messiânico da verdade, capaz de enfrentar o historicismo. A dimensão do tempo, os séculos, durante os quais o ensinamento não se interrompeu, e que visam o ponto de fuga de um consenso finalmente alcançado (“m the long run” é a fórmula secularizada com que Peirce designa esse processo), permite reconciliar a falibilidade do processo do conhecimento com a perspectiva do conheci mento absoluto. Nessa ótica, a relativização universàl introduzida pelas ciências humanas objetivantes perde o seu caráter ameaçador. Como conhecimento humano em geral, partilham elas, com as tradições de que se apropriam, o estatuto ambíguo de uma Tora camuflada, que abriga as centelhas da. verdade, sem conceder a luz da certeza, antes do advento do Juízo Final. No entanto, essa teoria da verdade não se baseia apenas num conceito retrospectivo de tradição. A tradição não é mais a extra polação e a renovação das antigas verdades; como na iluminação mística, a verdade pode irromper na tradição e quebrar a sua continuidade. A tradição não se funda num conhecimento evidente e inequívoco, mas numa idéia do conhecimento, cuja realização messiânica ainda está por acontecer; por isso, a tradição vive da tensão entre seus conteúdos con servadores e os utópicos. Esse conceito de tradição encerra tanto as revoluções como as restaurações; ele remove o caráter dogmático do que outrora chamávamos tradição.
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Aqui se interpenetram os dois motivos — o da teoria do conheci mento e o da filosofia da História. Da mesma forma que o complexo temático constituído pelo conhecimento, pela tradição e pela doutrina, também a idéia da força criadora da negação, da autonegação de Deus, pode constituir um exemplo adicional do resultado sistemático de uma leitura “a-histórica” da Cabala. Entre as “Dez proposições a-históricas” de Scholem, encontra-se a seguinte: “A linguagem materialista da Cabala luriana, especialmente em sua de dução do Zimzum (a autocontraçao de Deus), sugere a hipótese de que o simbolismo que se serve de tais imagens e palavras poderia eventual mente confundir-se com a própria coisa” 15.
15 Scholem, G. Judaica III. p. 266. '
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Enquanto o processo da Criação é pensado pelo pensamento mís tico e pelo metafísico como úma criação a partir de algo, a partir do caos ou de uma matéria .preexistente aos .princípios criadores, entra em jogo com a fórmula judaico-cristã da creatiõ ex nihilo um pensamento radicalmente novo: o nada, a partir do qual a vontade absoluta cria o mundo, não pode mais ser representado como uma potência exterior à força criadora. Ê exatamente o pensamento místico, que mergulha no processo vital do divino, que permanece mais inflexivelmente .preso a essa fórmula16. < Isaak Luria (como também Jakob Bõhme) pode aderir ao conceito de que Deus mergulha nas profundezas abissais de si mesmo, criando-se a partir delas; esse conceito permite-lhe pensar a Criação a partir do nada, segundo a imagem dialética de um Deus que se recolhe ou se contrai, com isso gerando em si mesmo um abismo, no qual mergulha e se refugia, e dessa forma libera o espaço que pode ser assumido pelas criaturas. O primeiro ato da Criação é uma autonegação, através dà qual Deus, por assim dizer, produz o nada — doutrina que contrasta, radicalmente com as concepções neoplatônicas da emanação. Esse mo delo oferece a única solução coerente do problema da teodicéia: “Não é possível criar um mundo perfeito, pois nesse caso este mundo seria idêntico ao próprio Deus, que não pode duplicar-se, mas somente limitar-se. A concepção ingênua de que Deus possa reproduzir-se é alheia aos cabalistas. É precisamente porque Deus nao pode repetir-se nunca, que a Criação está sujeita a uma alienação — por assim dizer hegeliana •—• na qual aquela, para ser ela mesma, precisa expelir de si o Mal” 17.
A auto-alienação de Deus é a forma arquetípica do exílio, do autobanimento, que explica “por que todo Ser desde aquele ato original é um Ser exilado, que precisa ser repatriado e salvo” 18. Dessa concepção do abismo, ou da matéria ou da cólera, ao qual se recolhe um Deus em seu egoísmo (em seu sentido literal), partem várias linhas, de Schelling a Hegel até Marx. Uma primeira linha termina na dialética materialista da natureza: porque já para o místico luriano a criação permanente 16Scholem, G. Grundbegriffe... . p. 53 et seqs. 17Scholem, G. Von der mystischen Gestalt der Gottheit [Da forma mística d' divindade]. Frankfurt, 1977. p. 79. fs Scholem, G. Zur Kabbala und ihre Syníbólik. p. 151.
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significa que a contração de Deus se renova em cada processo natural, que em cada processo da vida se repete o contato com o nada. Outra linha conduz à teoria revolucionária da História e uma terceira ao niilis mo de um iluminismo pós-revolucionário. Scholem ocupou-se de forma intensiva com estes dois últimos motivos19. É evidente que a concepção de um. Deus que se exila a si mesmo atribui uma especial significação às experiências históricas do exílio. Tal significação assume um caráter apocalíptico ali onde a violência do negativo, o sofrimento com as catástrofes da expulsão, da opressão e do isolamento foram interpretados como prenúncios da força criadora do negativo, de uma guinada para o melhor. As palavras de Hoelderlin sobre o perigo máximo, no qual se prefigura a salvação, são aqui ante cipadas. Quando a própria Criação começa com o auto-exílio de Deus, o momento da catástrofe suprema já anuncia a perspectiva da salvação: “Quando tiverdes caído na condição mais degradada, nesta hora eu vos salvarei” 20. Naturalmente, o universo mental de Isaak Luria foi utilizado mais para fundamentar o messianismo dos que queriam “forçar” a salvação, que por aqueles que sustentavam as concepções apocalípticas da espon taneidade e da imprevisibilidade da salvação. O ato do autobanimento significa também que Deus se retira, concedendo a outros um espaço de liberdade e de responsabilidade. Sua retirada é a condição das catás trofes que .se iniciam, com a “ruptura dos vasos” *, no próprio processo vital do divino, e que a partir da queda de Adão se repetem na história dos povos. Sim, de tal forma Deus se retirou que a restituição das coisas a seu lugar original foi confiada aos homens. Assim como cada pecado repete o evento primordial do auto-exílio divino, cada boa ação con tribui para o retomo dos banidos: “A vinda do Messias não significa para Luria outra coisa que a assinatura num documento que nós mes mos escrevemos” 21. O misticismo estava familiarizado com o pensamento de uma força mágica da contemplação, capaz de sensibilizar o coração da divindade e de preparar no âmago do mundo o processo de redenção da natureza decaída. Mais tarde, a Cabala exterioriza esse movimento interno, trans Scholem, G. Grundbegriffe .... p. 84; Judaica III. p. 198-217; Zur Kabbala .... p. 135; Von der mystischen Gestalt. p. 77 et seqs. 20 Scholem, G, Grundbegriffe.... p. 135. * V. na Introdução desta coletânea a passagem das p. 27-31. (N. do Org.) 21 Scholem, G. Zur Kabbala und ihrer Symbolik. p. 156-7.
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formando-o num ativismo messiânico, que finalmente adquire o sentido profano de uma libertação política da condição do exílio. Isso significa, do jovem Marx até Bloch e o último Benjamin, que é impossível ressus citar a natureza sem revolucionar a sociedade. Sabbatai Zwi e Nathan Gaza, seu profeta, utilizaram, porém, tais idéias num sentido não somente messiânico, mas também antlnomístico 22, Sabbatai Zwi foi colocado pelo sultão diante da alternativa de sofrer o martírio ou converter-se ao Islã. Ele se decidiu pela apostasia, e essa renúncia ao Messias foi compreendida e justificada, segundo o modelo do Zimzum, como um ato criador, comparável ao mergulho na escuridão. A -apostasia é um capítulo trágico da missão que consiste em triunfar sobre o poder do antideus, a partir do seu próprio âmago. Scholem estudou nas seitas franquísticas as conseqüências niilistas dessa doutrina. Ele rastreou as ■ manifestações do niilismo religioso, por meio da história das heresias, desde os taboritas e adamitas, as beguinas e os begardos **, os irmãos e irmãs do Espírito Livre, até as primeiras seitas gnósticas ** 23. Todos esses movimentos pretendiam preservar, através de uma prática transgressora da lei, o sentido verdadeiro e messiânico da lei. O modelo da descida de Deus ao abismo abrangia, no messianismo herético dos sabatanos, visões colossais da força liberadora do subversivo, assim como os rituais correspondentes, encarregados de manifestar, através de ações ao mesmo tempo destruidoras e libertadoras, a força da negação.
Quando se lê hoje a descrição, feita por Scholem, do niilismo reli gioso no século XVIII, impõem-se paralelos, que obviamente não podem ser traçados sem uma grande prudência. Scholem acentua e documenta com exemplos biográficos a tendência à transformação da mística em Iluminismo. O niilismo de um Jakob Frank parece radicalizar o misti cismo judaico até o ponto em que o invólucro religioso explode de dentro, permitindo a fusão dos seus impulsos mais profundos com as 22 Scholem, G. Hauptstroemungen der juedischen Mystik. p. 315-55. * Taboritas (da cidade de Tabor, na Boêmia): corrente mais radical dos hussitas, seita ligada ao reformador religioso lohn Huss. Adamitas: seita cristã herética, que floresceu no norte da África entre os séculos II e IV. Beguinas: mulheres que durante a Idade Média viviam em comunidades piedosas, os béguinages. Begardos: eram sua contrapartida masculina. ** Gnosticismo: movimento religioso da Antiguidade, que influenciou certas corren tes cristãs e judaicas. 23 Scholem, G. Der Nihilismus ais religioeses Phaenomen [O niilismo como fenô meno religioso]. In: Eranos Jahrbuch 1974. Leiden, 1977. p. 1-50.
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novas idéias da Revolução Francesa. Essa transformação de conteúdos religiosos em políticos ocorreu com tanta freqüência, mesmo sem aquela mediação específica, que é lícito perguntar se o antinomismo * não reage à decadência do elemento religioso da mesma forma que o sur realismo à decadência da arte aurática no período moderno. O interesse de Benjamin pelo surrealismo é conhecido; existiriam paralelos para o interesse de Scholem no antinomismo? O niilismo religioso e o artístico têm de semelhante a idéia de que o conteúdo autêntico da religião e da arte, de que a substância dessas esferas axiológicas (como dizia Max Weber) deveriam ser salvas, no momento de sua desagregação, por intermédio da superação radical ou destruição. Isto explica o caráter de espetáculo das ações que se esgotam em si mesmas e do efeito de choque que elas tentam produzir. Carac terísticas semelhantes manifestam-se numa versão atual do terrorismo, que do ponto de vista dos participantes poderia visar à salvação do verdadeiro conteúdo revolucionário através de espetáculos de choque, puramente destrutivos, num momento em que nos países desenvolvidos a revolução se toma praticamente impossível, em que o Estado moderno e a práxis revolucionária que lhe corresponde se desagregam, ou pelo menos se transformam de um modo ainda difícil de avaliar. •
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Limitei-me a extrair esses dois motivos —• o vinculado à teoria do conhecimento e o relativo à filosofia da História — do pensamento de Scholem, tão cheio de ramificações. Ambos influenciam sua avaliação do sionismo e do judaísmo contemporâneo. A energia política e espiri tual de muitas gerações de intelectuais judeus manifestou-se nos valores universalistas dos movimentos de emancipação, tanto os burgueses quanto os socialistas. Contrapondo-se a essa tendência, Scholem insiste que esse universalismo necessita uma concretização. Ele valoriza no sionis mo o fato de que não constitui um movimento messiânico, e sim um movimento consciente das -limitações da existência histórico-política. Por outro lado, Scholem não identifica o judaísmo nem com a organi zação política de Israel, nem com a estrutura de sua tradição religiosa. Para ele, o judaísmo é fundamentalmente uma questão moral, um pro jeto histórico que não pode ser definido de uma vez por todas. Ê um * Antinomismo (ou antinomianismo) •—• (etimologicamente, anti — contra; nomos — lei): doutrina segundo a qual os cristãos estavam dispensados de obedecer a lei mosaica, e que rejeita, em geral, a. própria noção de obediência, considerando-a formalista.
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empreendimento espiritual; vive de suas origens religiosas, mas pode sobreviver à sua secularização. Esse conceito de judaísmo é vago. Está ligado a uma particularidade histórica. E, contudo, nele se exprime um problema mais geral: como pode um povo preservar sua identidade nas condições modernas? Numa entrevista em 1970, Senhor Scholem, foi-lhe dirigida uma pergunta sobre a significação atual do pensamento cabalístico para o judaísmo. Naquela ocasião, o Senhor duvidou de que a Cabala pudesse encontrar uma resposta vital para a nossa situação. Ao mesmo tempo, o Senhor utilizou em sua resposta uma figura do pensamento cabalístico: “God will appear as non-God. All the divine and symbolic things can also appear in the garb of atheistic mysticism” *. Depois que a autori dade da voz que diz: “Sou o Senhor, teu Deus” não é mais reconhecida como'incontestavelmente válida, subsiste somente uma tradição, modi ficada segundo seu conceito imanente, que não conhece senão um crime: o de cortar o nexo vivo entre as gerações. Entre as sociedades modernas, somente aquelas capazes de introduzir na esfera profana os conteúdos essenciais de sua tradição religiosa, transcendendo o meramente humano, podem salvar a substância do humano. Scholem coloca da seguinte forma a questão da identidade do juda ísmo e de Israel: “A paisagem ardente da Salvação atraiu como um ponto focal o olhar histórico do judaísmo. Não é de surpreender, portanto, que a capa cidade de intervir irrevogavelmente no concreto (um concreto que recusa qualquer consolo), capacidade nascida da crueldade e do desastre, que a história judaica somente encontrou em nossa geração, no mo mento em que iniciava o seu retorno utópico a Sion, seja acompanhada de matizes messiânicos. Ao mesmo tempo, nao é possível entregar-se ao messianismo, pois o compromisso assumido é com a História e nao com a meta-história. A questão, originária do seu grande e perigoso passado, que o judeu do nosso tempo tem que enfrentar em seu presente e em seu futuro, é a de saber se essa capacidade de agir sobre o con creto poderá ser preservada, sem vir a sucumbir em face da crise da aspiração messiânica, que ela provocou, pelo menos virtualmente”*24.
* “Deus aparecerá como nao-Deus, Todas as coisas divinas e simbólicas podem igualmente aparecer sob a forma do misticismo ateu.” (N. do Org.) 24Scholem, G. Grundbegriffe.... p. 167.
4. ARTE E REVOLUÇÃO EM HERBERT MARCUSE *
O penúltimo livro de Herbert Marcuse, Sobre a libertação, apareceu quando o movimento de protesto havia ultrapassado seu zénite: 1968 nos Estados Unidos, e um ano depois em tradução alemã. O título paradoxal do novo livro ** reflete uma situação fundamentalmente mo dificada; o tema, agora, é a “revolta”, porque Marcuse vê a revolução futura como um processo que deverá estender-se por gerações, ao passo que o contramovimento, tão maciço em suas características, assume a forma irônica de uma contra-revolução preventiva. Mesmo na Repú blica Federal Alemã, em que essa descrição nã.o parece convir, apesar do “Decreto anti-radical” ***, pode-se encontrar uma confirmação para * Reproduzido de Habermas, J.'Herbert Marcuse: Über Kunst und Revolution — 1973. In: — . Kultur und Kritik. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973. p. 345-52. ** Habermas refere-se aqui a: Marcuse, H. Konterrevolution und Revolte. Frankfurt/M., 1973. (Tradução alemã de Counter-revolutioji and revolt. Beacon Press, Boston, 1972. Edição brasileira: Contra-revolução e revolta. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1973.) (N. do Org.) *** Habermas usa aqui a expressão “RadÍkalen-ErZa55” (literalmente: Decreto contra os radicais). Em verdade, trata-se de um “Radikalen-Be^c/i/MJí’” (literal mente: Resolução sobre os radicais) assinado em 1972 pelo então Chanceler da República Federal da Alemanha, Willy Brand, e os Governadores {Ministerprãsidenterí) das diferentes unidades da Federação (Lãnder) pelo qual os respectivos governos locais {dos Laander) comprometiam-se a combater o radicalismo na Alemanha, impedindo a entrada de membros de organizações radicais no serviço público. Essa resolução foi aplicada de forma bastante divergente nas respectivas
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tal diagnóstico: é possível interpretar, dessa forma, z a comovente preci pitação com que o governo e a oposição encamparam á auto-imagem de um grupúsculo que tenta apresentar-se como um poderoso partido de quadros. A auto-estilização arrogante é rotulada, por via das dúvidas, como real.
O livro de Marcuse surgiu nos anos 70-71, já durante o refluxo do movimento de protesto. Contém uma dura crítica da ortodoxia pseudomarxista, que também nas fileiras da Nova Esquerda havia res surgido. Tal ortodoxia se exprimiria num aparelho conceituai ritualizado e levaria a uma fetichização da classe operária —-ao que Marcuse observa, secamente, que se trata de um novo aspecto do fetichismo da mercadoria. Por outro lado, a crítica dirige-se também contra o com ponente histriónico e a displicência, assim como contra a leviandade do jogo com a violência (Gewaltspielerei') e da tese do “suicídio revolu cionário” — este apelo ao autocontrole dos militantes introduz um novo tom.
Mas o tema do livro não consiste nessas observações táticas. Desde ós anos 30, Marcuse não deixou de lado um problema, que agora é visto sob outra luz, face às experiências dos anos 60 — a relação entre a arte e a revolução, ou mais exatamente o papel que a arte pode desempenhar para a transformação revolucionária de uma sensibilidade amortecida e uma estrutura pulsional repressiva. Porque a sociedade existente não se reproduz apenas na consciência dos homens, mas tam bém em seus sentidos, a emancipação da consciência deve acompanhar a dos sentidos —■ a familiaridade repressiva com o mundo, objetai dado deve ser dissolvida. Não é por acaso que o heideggeriano de outrora serve-se da lin guagem da fenomenologia quando postula uma alteração radical da “constituição preconsciente do mundo que é objeto da experiência”. Subjacente a tal linguagem existe um.pressuposto empírico. É exatamente a capacidade produtiva do capitalismo, o dinamismo sem precedentes de uma sociedade voltada para o consumo e para o bem-estar, que traz unidades da Federação. Em Lãnder com governos conservadores passou-se a com bater e impedir a entrada de membros do PC (partido legalmente reconhecido) e de outras organizações de esquerda no serviço público, o mesmo não ocorrendo com os radicais de direita. Por essa razão, a resolução passou a ser criticada como “Radikalen-Erlass” ou mesmo como “Berufsverbot” (proibição de exercer a pro fissão) pelos estudantes e certos grupos de intelectuais. (N. do Org.)
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à tona as necessidades “transcendentes”, não-materiais, que o próprio capitalismo tardio não tem condições de satisfazer. As novas necessi dades manifestam-se em valores e formas de comportamento de con traculturas subversivas, que liberam o potencial da arte e da experiência estéticas, transformando-as em forças políticas. Nova nessas teses é a. ênfase com que Marcuse denuncia a tensão entre arte e revolução. Travamos conhecimento com um Marcuse que se assusta com as consequências de uma assimilação (Entdifferenzierung') da arte à vida. A arte não pode dobrar-se ao imperativo surrealista e ingressar na vida, sob uma forma de-sublimada. Somente como arte pode ela exprimir seu potencial radical. A verdade subversiva da arte somente se manifesta na transformação da realidade em ilusão (Scheiri). Se até agora Marcuse criticara o caráter afirmativo da “bela ilusão” {des schõnen Scheins') como elemento ideológico da arte burguesa, vê agora na força afirmativa de um universo simbólico desprendido da vida a fonte da negação do existente. Diante de uma antiarte que poderia apoiar-se em teses marcusianas anteriores sobre a dissolução da arte, Marcuse revoga sua antiga acusação: “Se é verdade que estamos confrontados com uma decomposição da cultura burguesa, resultante do dinamismo interno do capitalismo con temporâneo e da adaptação da cultura às suas exigências, não coincide, então, a revolução cultural com essa adaptação e reestruturação capita lista da cultura, na medida em que ela propõe-se destruir a cultura burguesa?”
Marcuse está próximo das posições fundamentais da estética de Adorno. Critica a tese outrora divulgada no “Kursbuch” * sobre o fim da arte: também no socialismo, a arte deve manter a sua transcen dência. “O fim da arte somente é concebível quando os homens não mais pude rem distinguir entre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o. belo e o feio, o presente e o futuro. Seria uma condição de absoluta barbárie, no auge da civilização.”
* Trata-se de uma reedição de um artigo de Marcuse já citado na Introdução: Uber den affirmativen Charakter der Kultur, originalmente publicado na Zeitschrift für Sozialforschung) VI/3, Paris, 1937. A reedição na revista editada por H.-M. Enzensberger Kursbuch: “Krltik der Warenesthetik” (Berlim) é de 1970. (N. do Org.)
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Marcuse repete aqui antigos pesadelos de Vico e Nietzsche. Nessa guinada contra o anarquismo cultural pode ocultar-se um resíduo de antimodemismo. Não estou certo de que Marcuse faça justiça à lógica experimental daquela vanguarda artística, que na seqüela do surrealismo demascara as formas petrificadas da linguagem e da comunicação com meios extremos que chegam ao ponto do silêncio ostensivo, isto é, que negam a arte até o limite da autonegaçao. O confronto com autores como Benjamin e Adorno demonstra como a sensibilidade de-Marcuse enraíza-se nas tradições do romantismo alemão, pois esses pensadores, apesar de todo seu anticlassicismo, guardavam vestígkrdessas tradições. Não obstante, seria um erro de avaliação considerar a advertência de Marcuse contra a destruição da arte, enquanto universo auto-suficiente, como, um simples retrocesso a posições culturais conservadoras. Marcuse não pode contar com uma recepção favorável na Alema nha nem entre os seus adversários de sempre, nem entre aqueles que se tornaram seus adversários ou que dele se afastaram com indiferença. Os restos desorganizados da nova esquerda, junto aos quais poderia haver alguma ressonância, não dispõem mais de um grande raio de ação. O palco, que Marcuse e o movimento de protesto deixou atrás de si, caracteriza-se, se abstrairmos dos comunistas leais ao partido e dos mili tantes que oscilam entre Mao e Stalin, por dois novos campos de força. Por um lado, formaram-se subculturas jovens, difusas e mais ou menos despolitizadas, cujo estado de espírito, de novo comercializado, é defi nido pela palavra da moda — nostalgia. Um novo historicismo procura em vão numa modernidade rapidamente envelhecida os estímulos e cenários adequados ao gozo privado de contravalores e experiências complementares ao quotidiano da sociedade de consumo. Depois que o art nouveau, uma verdadeira câmara de tesouros, foi saqueado comple tamente, a busca prossegue em direção aos anos 20 ou 30, ou retrocede em direção ao romantismo tardio, de Visconti. Por outro lado, os jovens socialistas (Jusos) * criaram uma oposição taticamente bem sucedida, que provocou, pela primeira vez na Ale manha do após-guerra, um debate político significativo sobre a teoria social do socialismo. Marcuse não acredita que a democracia compe * Jusos é a condensação de Jung-Sozialisten, os membros do Partido Social-demo crata, abaixo de trinta anos. Eles, nos últimos anos, assumiram uma posição crítica em relação à orientação reformista dos dirigentes do partido, advogando uma volta aos princípios socialistas, originalmente preponderantes. (N. do Org.)
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titiva existente proporcione um campo de operações apropriado para a passagem ao socialismo democrático. Em contraste, tentam os jovens socialistas deixar claro, para o establishment do partido, que a capaci dade de desempenho do sistema econômico do capitalismo tardio tem que ser posta à prova em. vista da maior ou menor aptidão de obedecer às prioridades politicamente formuladas e, caso, como é de se esperar, não o consiga, deverá esse sistema ser abandonado. Veem eles que as reformas radicais não podem ser iniciadas antes que o Estado demo crático disponha dos meios legais para defender-se contra a previsível política obstrucionista que seria preventivamente executada pelas grandes empresas, graças à sua liberdade de investimentos. O que, no entanto, aproxima os jovens socialistas de Marcuse é a sua “dupla estratégia”: a única maneira de evitar a diluição burocrática dos êxitos obtidos dentro das instituições existentes é criar através da politização simultânea da consciência de grandes camadas da população aquelas necessidades novas suscetíveis de justificar, realizar e manter as novas prioridades sociais. Se o palco em que aparece o novo livro de Marcuse, neste país, é de fato ocupado pelos vestígios não-organizados da nova esquerda, pres sionada entre um consumo cultural nostálgico e a concorrência bem sucedida dos jovens socialistas, não é de se esperar que ele desperte grande ressonância, mas a essência do pensamento marcusiano destaca-se com nitidez sobre esse pano de fundo.
Desde o advento do Estado moderno a esfera política tem sido delimitada por guerras civis e internacionais e ocupada .pela rotina das burocracias públicas. A esse conceito de política, que se limita aos pro blemas da distribuição do poder e ao processamento administrativo das questões sociais, Marcuse e a Nova Esquerda contrapuseram o conceito de uma politização contínua e abrangente, que deveria permear a cons ciência e a • sensibilidade dos próprios indivíduos e modificar a estru tura de valores da sociedade. Isto significa um deslocamento decisivo da ação política. Na medida em que as necessidades não-materiais, vinculadas a novas relações solidárias entre os grupos, as gerações e os sexos, e entre os sujeitos e a natureza, fossem incluídas num processo de formação coletiva da vontade (kollektive Willensbildiing').) a política e a práxis vital deveriam ingressar em uma nova constelação. Essa desestatização da política já se anuncia, por exemplo, em alguns pro cessos de planejamento público. Uma tal fusão de dimensões até agora distintas apresenta-se sempre sob a forma da destruição de uma esfera relativamente autônoma. A revolução cultural tomou visível o entrela
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çamento de vários processos de fusão (Enídifferenzierungsprozesse'): as fronteiras bem definidas entre a doença e a normalidade, entre a arte e a vida, entre a política e a arte, entre conflitos privados e públicos, entre a adaptação e a criminalidade, deslocaram-se simultaneamente. Começa a configurar-se para a política estatal e para o sistema político um processo que já está em pleno andamento em outras áreas. Em sua contribuição ao quarto volume da Nova Antropologia (editada por Gadamer), recentemente aparecido, Peter Gorsen trata de foripa instru tiva de dois desses deslocamentos: a desestetização da arte,-'através de jogos de ação e ab-reação, mixed media, concept art, land art, happening e science fiction, equiparação do kitsch à literatura, etc.; e a despatologização da enfermidade, através do novo movimento da antipsiquiatria (Basaglia, Cooper), através da dissolução da autonomia compulsiva da normalidade burguesa face à loucura (Foucault) e através da reinterpretação política da recusa do real, característica do esquizofrênico, como um distanciamento construtivo, face às relações existenciais repressivas (Laing). Marcuse foi um dos primeiros a analisar a questionável autonomia da “bela ilusão” {des schonen ScheinsY, argumentou brilhantemente a favor de uma nova práxis política, aberta à dimensão da sensualidade, da fantasia e do desejo: desses temas trata, de novo, o capítulo sobre a natureza e a revolução. Sobre este pano de fundo, a guinada de Marcuse contra a destruição da transcendência do belo e contra a dis solução da ação política no ativismo adquire um peso especial. Marcuse insiste em que essa fusão das antigas articulações culturais não deve conduzir à de-sublimação da razão apaixonada {leidenschaftliche Vemunff) e da criatividade.
As configurações da cultura burguesa, inquestionadas durante três ou quatro séculos, tornarâm-se móveis; mas, essa mobilidade não deve alterar o fato, que só pode ser ignorado ao preço do sacrifício da própria humanidade, de que mesmo num novo universo social a arte, a política e a vida devem permanecer diferenciadas entre si.
Essa mensagem defensiva está à primeira vista em contradição com a pura retórica revolucionária. Marcuse continua defendendo a rebelião contra o “todo”, o salto qualitativo, a ruptura com o con^ tinuum da História. Seu discurso continua afirmativo; mas, seu con teúdo teórico é algo mais magro. O livro contém somente a hipótese de que a satisfação das necessidades elementares cria necessidades de
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uni novo tipo que o capitalismo, tardio não pode satisfazer. Poder-se-ia alegar com razão que essa hipótese não é justificada e sim antecipada como válida. Mas objeções desse nível não seriam adequadas. Porque o objetivo não é investigar hipóteses de teoria social. Os argumentos de Marcuse devem ser vistos de preferência como partes de um grande discurso prático, no qual não se trata de examinar a validade de afir mações empíricas, mas de identificar e justificar interesses generalizá veis. Trata-se de uma reinterpretação radical das necessidades, e da questão de saber se a massa da população encontra nessa interpretação o que ela realmente deseja, e pode com ela identificar-se.
5. THEODOR W. ADORNO — PRÉ-HISTÓRIA DA SUBJETIVIDADE E AUTO-AFIRMAÇÃO SELVAGEMEm nosso último encontro, há algumas semanas, Adorno contou uma história sobre o talento inimitável de Chaplin. Foi depois da guerra, em Hollywood, numa recepção para o ator principal do filme “Os melhores anos de nossa vida”, um inválido de guerra que havia perdido suas duas mãos. Adorno, o único que não sabia disso, estendeu a mão ao festejado herói e estremeceu, quando sentiu a garra metá lica do braço protético. Chaplin reagiu ihstantaneamente, traduzindo em pantomima o horror instintivo de Adorno, assim como sua tentativa inútil de dissimulá-lo. Naturalmente, essa história sobre Chaplin é de fato uma história sobre Adorno. Para ele, a frieza representava o princípio da subjetividade bur guesa, sem o qual Auschwitz não teria sido possível. Decifrou, mesmo na normalidade mais insuspeita, a presença de uma vida sem calor. Nessa hipersensibilidade, desenvolvida até o virtuosismo, não se anuncia, como suspeitara Bloch, o olhar malévolo do misantropo, mas o resíduo de uma ingenuidade não-exteriorizada e constantemente mobilizável. No meio da reunião, que havia sido conyocada exatamente para que todos pudessem contemplar o membro sem vida, o frio do metal colhera Adorno desprevenido. O que a mímica silenciosa do grande cômico conseguira naquele instante, ou seja, desfazer a tensão de um * Reproduzido de Habermas, J. Th. W. Adorno. Urgeschichten der Subjektivitât — 1969. In: Philosophisch-politische Profile. Frankfurt am Main, Suhrkatnp Verlag, 1971. p. 184-99.
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homem que se assustara, e que tentava recuperar o autocontrole, cons tituiu um tema permanente do discurso de Adorno e de suas penetrantes análises. Na última obra filosófica de Adorno, a Dialética negativa,'encon tra-se uma frase difícil, que sintetiza o pensamento central da Dialética do Iluminismo: “Que a razão é distinta da natureza e no entanto parte dela, constitui sua pré-história e, ao mesmo tempo, sua determinação imanente. Ela é natureza enquanto força psíquica que se diferenciou para fins de autopreservação; mas, uma vez autonomizando-se çom relação à natu reza" e a ela contrapondo-se, transforma-se no seu outro. Brotando, efêmera, da natureza, a razão é idêntica a ela e ao mesmo tempo não-jdêntica, segundo uma dialética imanente ao seu próprio conceito. Quanto mais irrestritamente a razão naquela dialética se contrapõe à natureza como seu contrário absoluto e se esquece da presença dela em si, mais ela regride à natureza, sob a forma de uma autopreservação sel vagem; somente como sua reflexão a razão poderia ascender à con dição de sobrenatureza”.
Adorno utilizou a Odisséia para descobrir os rastros quase perdidos de uma pré-história da subjetividade. Os episódios da peregrinação do astuto herói, afastado de sua rota *, revelam as crises que o ego, no processo de formação da própria identidade, experimenta em si e con sigo mesmo, O astucioso Odisseus escapa dos encantamentos animísticos e da’s forças míticas, assim como dos sacrifícios rituais exigidos, simulando submeter-se a eles. A fraude perpetrada contra aquelas instituições que ainda mantêm a conexão entre uma natureza onipotente e um ego difuso, aderindo mimeticamente a ela, já é, originalmente, o Iluminismo. Com este ato forma-se um eu ** durável, idêntico a si mesmo, que se apodera de uma natureza privada de alma. O eu adquire sua organização interna na medida em que, para controlar a natureza externa, coage o amorfo em si mesmo, a natureza interna. A autoconsciência triunfante do Iluminismo insiste nessa relação de autonomia e dominação da natureza. Essa certeza-de-si (antidialética) do Iluminismo é questionada por Adorno. Se a submissão da natureza externa somente pode ser alcançada na medida em que a interna é oprimida, a crescente capacidade de mani* Jogo de palavras intraduzível. A palavra Verschlagener significa, por um lado,. banido, afastado de sua rota, etc. e por outro, astucioso. (N. do Org.) ** Selbst foi traduzido como ego e Ich como eu. (N. do Org.)
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púlação técnica reage sobre a subjetividade formada nessa atividade dominadora. A constituição original de um eu identificando-se constantemente consigo mesmo, resulta, segundo Adorno, da dissolução daquele vínculo simpático (e, ao mesmo tempo, homicida) com a natureza, que ô sacrifício ritual do ego prometia conservar. A história da civili zação emerge assim de um ato de violência praticado ao mesmo tempo contra o homem e a natureza. A vitória do espírito instrumental é a história da introversão do sacrifício, isto é, da privação, tanto quanto da história do desdobramento das forças produtivas. Na metáfora do controle sobre a natureza ressoa esse nexo entre o poder de manipula ção técnica e a dominação institucionalizada: o controle da natureza está ligado à violência introjetada dos homens sobre os homens, à violência dò sujeito sobre sua própria natureza. Assim, a confiança de Marx no desenvolvimento das forças produtivas como tais foi prema tura. Ó espaço de liberdade aberto pelo crescimento do poder de manipulação técnica não pode mais ser utilizado para revolucionar as relações sociais, se entrementes os sujeitos foram mutilados por aquele mesmo espírito instrumental que criou o potencial para a libertação. Nisso reside a irracionalidade de um Iluminismo que não reflete sobre si mesmo: “Com a negação da natureza dentro do homem, não somente o telos do controle externo sobre a natureza como o feto da própria vida torna-se confuso e intransparente”.
A consciência comum do positivismo não pode nem quer perceber hoje em dia a dimensão em que a subjetividade se transforma histori camente: como se os homens das cavernas de Altamira e das cápsulas lunares fossem os mesmos. A mudez específica daqueles que, concreti zando uma gigantesca aventura, chegaram finalmente à lua e o eco igualmente silencioso dos espectadores mostraram uma coisa: que aquilo que Hegel chamava “a experiência da consciência’’ foi reduzido à imobilidade. Os astronautas (e nós com eles) não mais pertencem à linhagem dos descendentes de Odisseus. Mas, o destino do herói pros seguirá seu curso, enquanto a reprodução da vida não romper o softilégio da mera auto-afirmação, especialmente onde a auto-afirmação floresce mais vigorosamente. A nova transcendência de um progresso técnico-científico autonomizado com relação a necessidades comunicá veis é uma “auto-afirmação selvagem”. Se é exato o diagnóstico que Adorno e Horkheimer aplicam ao mundo contemporâneo em sua Dialética do Iluminismo. surge a questão
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do privilégio da experiência, que os autores invocam com relação a subjetividade atrofiada do nosso tempo. Na introdução às Minima Moralia, que podem ser entendidas, sem ironia, como uma doutrina da vida correta, Adorno tentou dar uma resposta a esta questão. A expe riência individual apóia-se necessariamente no antigo sujeito — histo ricamente já condenado — “que ainda é para si, mas não é mais em si”. Se considerarmos, com Hegel, essencial o evanescente; em si mes mo, então a subjetividade burguesa evanescente é a essência, que expe rimenta a decomposição da sua própria substância no sofrimento provocado pela objetividade avassaladora da coação social. Psicologicamente, essa interpretação aplica-se ao próprio Adorno. O gênio incomparavelmente brilhante de Adorno sempre deixou trans parecer algo da posição oblíqua e frágil de um sujeito ainda para si, mas não mais em si. Adorno recusou sempre a alternativa de perma necei* criança ou tomar-se adulto; nem aceitou o infantilismo, nem quis pagar o preço de uma blindagem rígida contra a regressão, ainda que fosse a “serviço do ego”. Nele permaneceu viva uma camada de expe riências e atitudes da infância. Essa camada funcionava como uma caixa de ressonância que reagia de uma forma ultra-sensível às resistências do real: desvendando o estridente, o cortante e o humilhante embutidos na própria realidade. Esse complexo de qualidades primárias manifestava-se ocasionalmente de forma isolada em seu comportamento, mas encon trava-se sempre em livre comunicação com o pensamento, por assim dizer aberto à inteligência. A vulnerabilidade dos sentidos e a intrepidez de um pensamento isento de medo pertenciam à mesma estrutura. Essa graça, que não foi meramente um dom, exigiu, não obstante, um tributo.
Se Adorno era indefeso, não o foi por ter sido perseguido por um cestino especialmente amargo. Essa afirmação não é fácil de sustentar, tendo em vista o fato muito real de sua proscrição pelo anti-semitismo e de um período de exílio certamente difícil. Mas, aquelas qualidades primárias só poderiam ter sobrevivido em condições relativamente pro tegidas, num espaço de serenidade criado primeiro pela mãe e pela tia, e mais tarde por Gretei, sua mulher e colaboradora. Adorno era inde feso por uma outra razão: com relação a “Teddie” era sempre possível desempenhar o papel do adulto “integral”. Pois Adorno jamais con seguiu aprender as estratégias de imunização e adaptação, adequadas à realidade, características do adulto. Em todas, as instituições perma neceu um estranho, embora contra seu próprio desejo. Se essa genera lização é lícita, podemos dizer que sua universidade nunca se sèntiu
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inteiramente à vontade com este colega insólito, quando não decidida-, mente suspeito. A filosofia acadêmica, se é que essa palavra é exata, jamais reconheceu inteiramente esse intelectual pouco comum. E mes mo no mundo literário, que ele influenciou mais que qualquer outro durante uma década e meia, Adorno não recebeu nenhum dos prêmios oficiais. Assim, sua alegria foi desmedida, quando foi designado presi dente da Sociedade Alemã de Sociologia. Adorno era indefeso no meio dos adultos integrais, em situações, portanto, em que os experientes aproveitavam suas fraquezas, porque não sabiam ou não queriam saber que as fraquezas específicas de Adorno estavam profundamente entre laçadas com as suas qualidades mais eminentes. Egses “experientes” existiam mesmo entre seus alunos. Certamente, nos últimos tempos, muitas outras coisas pesaram sobre Adorno, inclusive acusações que com poucas palavras poderiam ter sido refutadas. Mencionarei aqui somente a crítica, vinda de vários lados, à edição de Benjamin, organizada por Adorno. Essa crítica baseia-se na tese de que Adorno teria reprimido o Benjamin materialista e parti dário do marxismo. A acusação consiste especialmente no fato de que Adorno criticou e recusou, na época, um trabalho em três partes de Benjamin sobre Baudelaire. A versão subsequentemente reelaborada por Benjamin da parte intermediária foi publicada em 1940 na Zeitschrift juer Sozialforschung e retomada mais tarde na coletânea em dois volu mes. A versão original do ensaio aparece, de resto, neste outono. No entanto, as cartas que por essa ocasião foram trocadas entre Benjamin. e Adorno, em novembro-dezembro de 1938, confirmam, para qualquer leitor imparcial, o que seria de esperar em qualquer hipótese e que nunca teria sido contestado pelo próprio Benjamin, ou seja, que também nesta questão controvertida, Adorno fora teoricamente mais refletido e sobretudo um marxista mais bem informado e mais seguro. Sua argu mentação é decisiva exatamente dentro dos pressupostos marxistas. Qualquer que seja a avaliação sobre o mérito intrínseco dos argumentos utilizados, a acusação de uma falsificação antimarxista de Benjamin pertence ao nível da mera agitação demagógica. Adorno, depois de Sçholem, foi quem mais próximo esteve de Benjamin; Adorno comunicou-se com ele, dele aprendeu, e, por sua vez, o estimulou. Com a edição de Benjamin e suas interpretações de Benjamin, e mais ainda com a utilização inesgotável de temas benjaminianos em seus próprios escri tos, Adorno, e somente ele, transformou o pensamento de seu amigo num elemento infalsificável e insubstituível do debate intelectual alemão. Por isso, a polêmica ridícula daqueles que conheceram Benjamin através dele o atingiu tão profundamente.
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Um dos. discípulos de Adorno censurou o mestre num discurso fúnebre, por ter criticado de forma irrefutável o indivíduo burguês, sem ter podido libertar-se do fascínio desse mesmo indivíduo que ele contri buíra para destruir. Num certo sentido, isto é verdade. Mas pretender em seguida, com o gesto familiar ilustrado na frase “Quem cai deve ser empurrado”, que Adorno também tivesse tido a força de desnudar-se do último invólucro de “burguesia radicalizada” (empunhando a bandeira dos ativistas), não demonstra somente, o que não nos interessa aqui, estupidez política e psicológica, mas principalmente incompreensão filosófica. Porque a forma historicamente consti tuída do indivíduo burguês só poderia ser abandonada voluntariamente e com boa consciência, e não com melancolia, se da dissolução do antigo sujeito já tivesse brotado um novo. Mas, Adorno nunca teria se atrevido a fazer fabulações sobre o “novo sujeito”. De uma coisa estava seguro: uma liberdade que aspirasse a constituir a antiimagem polêmica do sofri mento provocado pelas coações sociais, não deveria limitar-se a anular a repressividade do princípio do ego, mas conservar também a força de resistência deste princípio contra a dissolução no amorfo da própria natureza e do coletivo. Em um texto, que de resto em seu rigor satisfaz os próprios critérios da filosofia acadêmica, Adorno mostrou a interde pendência dos dois momentos. Nesse texto, desenvolve ele as aporias do conceito kantiano do caráter inteligível e define a “liberdade” da se guinte maneira:
“Os sujeitos são livres, segundo o modelo kantiano, na medida em que são conscientes de si mesmos e idênticos consigo; e são em tal identi dade também não-livres, na medida em que estão sujeitos ao jugo dessa identidade e o perpetuam. São não-iivres como natureza difusa e não-idêntica e, contudo, livres como tal porque nos impulsos que eles subjugam, libertam-se também do caráter coercitivo da identidade. A aporia funda-se no fato de que a verdade além da coação da identidade não seria pura e simplesmente distinta dela, mas seria por ela medializada”.
Essa frase traduz os direitos que a subjetividade burguesa inverídica, mesmo em sua fase de extinção, conserva com relação à sua falsa negação. Sabendo disso, Adorno considerou impossível abandonar essa subjetividade, como é impossível para um corpo saltar sobre sua própria sombra. O impulso que animava a Dialética do Iluminismo foi retomado por Adorno na Dialética negativa, que se tornou agora o seu testamento
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filosófico: salvar o que o Espírito, obcecado pela produção do idêntico, elimina do objeto — o não-idêntico. O conceito do não-idêntico já está prefigurado na interpretação do mito de Odisseus. Ele descrevia ali a desagregação do ego amorfo, pré-histórico, e sua submissão à disciplina de um eu idêntico a si mesmo e, portanto, apto para o pensamento identificante. Agora, entretanto, a não-identidade representa aquelas dimensões da verdade, “captadas através dos conceitos, mas transcendendo o seu alcance abstrato... A .utopia do conhecimento consistiria em tomar manifesto o não-conceitual através dos conceitos, sem equiparar a eles esse não-conceitual , Adorno retoma, assim, a dialética do universal e do particular, outrora desenvolvida por Hegel. Ela deriva do modelo da comunicação em linguagem comum, podendo ser explicitada, graças a esse mesmo modelo.
O fato de que numa fala explícita não podemos jamais descrever completamente objetos concretos, é uma constatação trivial. Quando fazemos uma afirmação sobre um objeto particular — coisa, aconteci mento ou pessoa — esse particular é apreendido através de uma deter minação universal; contudo, a significação desse particular não se esgota ao ser continuamente subsumido sob esses universais. Quando os sujeitos conversam entre si (e não somente sobre fatos objetivados), confron tam-se mutuamente com a exigência de serem reconhecidos em sua determinação absoluta como indivíduos insubstituíveis. Esse reconheci mento impõe a necessidade paradoxal de captar, com o auxílio de deter minações obrigatoriamente universais e, por assim dizer, através delas, a plena concreção daquilo que precisamente não é idêntico a tais cate gorias universais. Este momento de não-identidade nas identificações inevitáveis é invocado por Adorno contra a tirania da lógica formal, que determina de forma antidialétiça a relação entre universal e particular.
Nesse sentido, renova ele, a crítica de Hegel contra os limites do entendimento, sem os quais no entanto o pensamento seria em princípio impossível. Adorno aplica, entretahto, essa crítica ainda uma vez contra o próprio Hegel. Também a dialética hegeliana revela-se, em última análise, indiferente com relação à-especificidade do indivíduo. Hegel, em outras palavras, não compreende de forma alguma a totalidade (como por exemplo uma sociedade, que mediatiza o particular —- os indivíduos relacionando-se entre si — por, intermédio do universal —- as categorias do trabalho social, da dominaçãp política e das suas legitimações), como um contexto baseado na violência. Ele não viu, por isso, que a força de reconstrução da dialética somente pode tornar manifestas aquelas relações que resultaram da supressão da. "comunicação livre: ou seja, as
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relações de violência da comunicação sistematicamente deformada, nas quais os indivíduos não se reconhecem entre si como produtos de um contexto alienante. A sociedade é, nas palavras de Adorno, ao mesmo tempo a essência dos sujeitos e sua negação. Se não o fosse mais, estaria dissolvido o contexto coercitivo, em cujo interior a dialética atua, para anulá-lo. Nesse sentido, é para Adorno o Todo, que o pensamento dialético tenta decifrar, o inverídico — embora, nesse caso, a categoria hegeliana da inverdade precisasse ser pensada contra Hegel nuní sentido irônico. A expressão-chave da Dialética negativa é o ''predomínio do obje tivo”. Adorno atribui a essa expressão quatro acepções. Em primeiro lugar, a objetividade designa o caráter coercitivo de um complexo his tórico, sujeito à causalidade do destino. Esse complexo pode ser rompido pela auto-reflexão e é, no conjunto, contingente. Em segundo lugar, o predomínio do objetivo significa o sofrimento que pesa sobre o sujeito. O conhecimento do contexto objetivo resulta, portanto, do interesse em afastar o sofrimento. Em terceiro lugar, a palavra significa a prioridade da natureza diante de toda a subjetividade que ela expulsa de si. O eu puro, na linguagem de Kant, é mediatizado pelo eu empírico. Enfim, esse predomínio materialista do objetivo é inconciliável com uma aspi ração cognitiva ÇErkenntnisanspruch) absolutista. A auto-reflexão é uma força finita, porque pertence ao contexto objetivo que ela penetra. Essa falibilidade essencial leva Adorno a advogar mais tolerância: “Mesmo o mais crítico seria diferente, em condições de plena liber dade, da mesma forma que aqueles que ele. deseja modificar. Prova velmente todo cidadão de um mundo imperfeito acharia insu portável um mundo perfeito: ele estaria mutilado demais para viver em tal mundo. Este fato deveria tornar um pouco mais tolerantes aqueles intelectuais, que em sua resistência não simpatizam com o Es pírito do Tempo”. Também a faculdade do conhecimento não está isenta da fragilidade do sujeito e .de sua mutilação. Se é assim, ressurge a questão de como é possível justificar o pensamento crítico. Nossa resposta psicológica não basta para responder a tal questão. Ela exige que indiquemos os títulos de legitimidade da crítica. Adorno recusou-se tenazmente a propor uma solução afirmativa. Contestou, igualmente, que a negação do sofrimento vivido constituísse um critério de validade dessa crítica. Tal negação não teria qualquer referente, no sentido exigido pela negação determinada de Hegel. E, no entanto, Adorno está sujeito à compulsão sistemática de recorrer à idéia F
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da reconciliação. Não pode livrar-se dela: pois, quando o sofrimento é sublimado de forma a transcender a dor física imediata, ele só pode ser negado quando ficar manifesto, ao mesmo tempo, tudo o que foi reprimido pela objetividade da coação social. Isto foi feito uma única vez por Adorno, comentando Eichendorff que em seu texto A bela estrangeira elevou-se acima do sofrimento sentimental com a alienação e acima do próprio romantismo: “O mundo reconciliado não anexaria através de um imperialismo filosó fico o estranho, mas sua felicidade consistiria em manter esse estranho, na proximidade alcançada, como distante e como ^distinto, mais além do heterogêneo e do próximo”.
Quem refletir sobre essa sentença perceberá que a condição descrita, embora nunca real, é, para nós, a mais próxima e a mais conhecida. Ela tem a estrutura da convivência em condições de comunicação livre de violência. Antecipamos sempre tal estrutura cada vez que queremos dizer algo de verdadeiro. A idéia da verdade, já implicada no primeiro enunciado, constrói-se sobre o modelo do consenso idealizado, obtido- na comunicação isenta de violência. Nesse sentido, a verdade das propo sições está vinculada à intenção de uma vida verdadeira. A crítica não pressupõe mais do que isto, já implicado na linguagem cotidiana, mas também não pressupõe menos. Também Adorno não pressupõe nem mais nem menos que essa antecipação forma? da vida correta, quando critica, com Hegel, o pensamento identificante do entendimento e, em Hegel, a compulsão da identidade, inerente à razão idealista. Não obstan te, Adorno não teria concordado com essa conclusão e teria insistido que é somente sob a forma de uma metáfora que é possível aludir à reconciliação, e assim mesmo porque essa metáfora obedece à proibição da imagem e, por assim dizer, anula-se a si mesma. O totalmente outro, em condições de negação indeterminada, só pode ser designado, mas não conhecido. Essa inconseqüência, que expõe a filosofia de Adorno a uma objeção evitável, tem um motivo profundo. Se a idéia da reconciliação se redu zisse à idéia da autonomia (Muendigkeit), da vida em comum num processo de comunicação livre de violência e pudesse ser desenvolvida sob a forma de uma lógica da linguagem comum, ainda por elaborar, então essa reconciliação não seria universal \ Não incluiria a exigência 1 Cf. meu ensaio sobre Teoria da competência comunicativa. In: Habermas, J. e Luhmann, N. Teoria da Sociedade ou Tecnologia Social. Frankfurt/M., 1971.
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de que a natureza deveria abrir os olhos, e de que teríamos que falar com animais, plantas e pedras, numa ordem reconciliada. Também Marx sustentou essa idéia, em nome da humanização da natureza. Como ele, Adorno e um círculo de pensadores como Benjamin, Horkheimer, Marcuse e naturalmente Bloch, duvidam da possibilidade de uma eman cipação dos homens sem a ressurreição da natureza. Poderiam os ho mens conversar entre si num contexto isento de repressão e de medo, sem que ao mesmo tempo mantivessem com a natureza relações fraternas? A Dialética do Iluminismo permanece indecisa diante de duas- hipóteses contrárias: a de que é necessário recompor, pela reconciliação, o vínculo simpático rompido por aquele ato original de auto-afirmação violenta que produziu ao mesmo tempo o controle da natureza exterior e a re pressão da natureza interna; e a de que a reconciliação com o universal seria uma idéia; excessivamente otimista.
Pode-se talvez afirmar que nós, num certo sentido, “oprimimos” a natureza com a atitude metódica da ciência e da técnica, porque só permitimos que ela se exteriorize à luz de nossos próprios imperativos, em vez de apreendê-la e com ela nos relacionarmos na perspectiva da própria natureza. A dor decorrente dessa opressão foi silenciada por uma tradição judaico-cristã milenar, embora ela tenha deixado vestígios nos subterrâneos apócrifos dessa tradição. Imperturbavelmente, trans formamos em vassalos a terra e um universo privado de segredos. Contra essa tradição, a Dialética do Iluminismo pode argumentar que, somente se recordarmos a tristeza, tão persistentemente reprimida, resultante da violência cometida contra a natureza tecnicamente dominada, poderemos tornar-nos conscientes da repressão exercida contra a nossa própria natureza, isto é, contra as deformações impostas à subjetividade. É evi dente, contudo, que se quisermos anular as repressões socialmente evi táveis, não poderemos renunciar à exploração, necessária à preservação da vida, da natureza externa. O conceito de uma ciência e de uma técnica categoricamente distintas é tão vazio quanto à idéia da reconciliação universal é sem fundamento. Essa idéia deriva da necessidade da conso lação e da serenidade com. relação à morte, que não pode ser atendida pela crítica, por mais penetrante que seja. Essa dor não pode ser con solada sem a teologia, mas mesmo tal dor não pode permanecer indife rente com relação a uma sociedade, cuja reprodução não mais exigisse a exploração de nossas angústias reprimidas. Adorno, apesar de inequivocamente ateu, hesitou contudo em atenuar a idéia da reconciliação, transformando-a na idéia da maturidade
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(MuendigkeiT). Ele teria receado obscurecer a luz do Iluminismo, porque “nenhuma luz pode ser projetada sobre homens e coisas, em que não se reflita a transcendência*'.
Acrescente-se a isso o fato conexo de que Adorno, para quem o esforço teórico constituía uma segunda natureza, desconfiava, não obstan te, das pretensões de quaisquer teorias construídas ortodoxamente. Adorno contentou-se com- simples “esboços". Um jovem crítico, ainda muito seguro do seu Hegel, argumentou que a teoria adorniàna de que o todo social é o inverídico, constituía, de fato, uma teoria da impos sibilidade da teoria. O conteúdo material da teoria \da sociedade seria, então, relativamente magro: uma simples repetição da doutrina marxista. Essa tese não pode sustentar-se depois da conferência introdutória de Adorno ao 16.° Congresso de Sociólogos Alemães sobre “O Capitalismo Tardio ou a Sociedade Industrial". Num ponto, entretanto, essa crítica é pertinente.
Adorno estava convencido de que o princípio da identidade tornou-se universalmente hegemônico na medida em que a sociedade burguesa foi submetida ao princípio da troca: "A troca é o seu modelo social; através dela, indivíduos e ações nào-idênticos tornam-se comensuráveis e idênticos. A. utilização do prin cípio da troca vincula o mundo inteiro ao idêntico, à totalidade”. A troca executa a operação da abstràção de uma maneira tangivelmente real. Nessa “afinidade original" (Urverwandtschaft), entre pen samento identificante e o princípio da troca, viu Adorno o traço de união entre a crítica do espírito instrumental e a teoria da sociedade burguesa. Essa conexão, como tal, bastou-lhe, um pouco prematura mente, para que julgasse possível utilizar as análises tradicionais de Marx. Adorno não se ocupou com a Economia Política. Albrecht Wellmer chamou atenção, em seu livro recentemente aparecido sobre a Teoria social crítica e‘o positivismo, para o perigo que surge quando a dialética do Iluminismo é concebida equivocadamente como uma generalização, na perspectiva da filosofia da História, da crítica da Economia Política, e tacitamente colocada em lugar desta. Nesse caso, a crítica do espírito instrumental pode servir de chave para uma crítica da ideologia, para uma hermenêutica profunda, dirigida contra quaisquer objetivações da vida mutilada (hermenêutica), que se basta a si mesma, e não mais neces sita do progresso empírico da teoria social, Adorno jamais cometeu esse equívoco. Mas o ativismo de alguns dos seus discípulos faz supor que a
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decifração crítica do espírito objetivo, a que Adorno consagrou todas as suas energias, de forma admirável, possa ser confundida simplesmente com uma teoria do capitalismo tardio. A falência da práxis não pode ser atribuída apenas ao momento histórico. Contribui para esse fato a circunstância de que os ativistas impacientes não têm um conceito claro do caráter incompleto da teoria. Eles não sabem tudo aquilo que não é possível saber, nas condições presentes. Nisso, o auxílio de Adorno era indispensável. Sua morte nos priva de tal ajuda. Para ela não existe substituto.
6. ERNST BLOCH — UM SCHELLING MARXISTA *
Se a prodigalidade com que Bloch utiliza a epígrafe não nos intimi dasse um pouco, estaríamos tentados a escolher a seguinte:
“A razão não pode florescer sem a esperança, a esperança nao pode falar sem a razaó, ambas convergem para uma unidade marxista — nenhuma outra ciência tem futuro, nenhum outro futuro tem ciência”.
Este é um dos poucos epigramas’ do pensador épico, cuja força —apesar dos “traços” (Spuren) e das suas próprias inclinações — não se revela sempre no gênero breve, nos aforismos e na parábola. Bloch deixa-se arrastar, devido à amplitude do seu pensamento, à prolixidade da narrativa. O volumoso compêndio do filósofo de Leipzig, escrito nos Estados Unidos, revisto e completado na parte oriental do nosso país, publicado integralmente pela primeira vez em sua parte ocidentalx, já reflete sua história interna na externa — a odisséia de um espírito a partir do espírito do êxodo. O pensamento que peregrina e acumula experiências pondera, e se consagra, no escuro fundamento do mundo, àquela “incubação” (Brüten) mencionada por Jakob Bõhme. “O Nada está faminto de Algo”, escreve este, “e a fome é o desejo enquanto verbo * Reproduzido de Habermas, J. Ernst Bloch — ein marxistischer Schelling — 1960. ín: Philosophisch-politische Profile, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973. p. 147-67. . 1 Bloch, Ernst. Das Prinzip Hoffnung [O princípio esperança]. Frankfurt/M., 1959, 5 partes em 2 volumes.
primordial, enquanto fiat”. Bloch re.toma o mesmo tema quando opõe à libido freudiana a fome enquanto pulsão fundamental. A fome sempre renovada impulsiona os homens, determina a autoconservação e a auto-expansão; e se transforma, quando iluminada pela razão, em energia explosiva contra os cárceres da privação em geral. A “fome instruída”, outra forma da docta spes, desemboca na decisão de dissolver todas as condições sob as quais os homens arrastam anonimamente a sua existência. A fome aparece como a energia elementar da esperança. Na própria obra que Bloch dedica à esperança ainda subsiste algo de faminto. Tendo partido de uma sistematização grandiosa de esperanças recolhidas, essa obra ainda está a caminho do sistema que visa — a esperança transformada em conceito (begriffenen Hoffnung}. Quando o positivista ouve que a razão sem a esperança não poderá florescer, objetará que a função da razão é compreender (begreifen), Mas Bloch se apropria, de uma forma síngularmente positiva, daquilo que para os positivistas sucumbe à 'pseudo-realidade das questões mal colocadas. Como estes, critica ele também os mitos, as religiões e as filosofias como simples aparências (Schein), mas os leva a sério como prenúncios (Vor-schein) de uma ordem a ser instaurada no futuro. Seguindo uma distinção formulada pela moderna lógica científica, extrai dos fatos, de alguma forma, um momento normativo, não como um dado ontológico, e sim como uma configuração de experiências inten cionais, que se irradiam a partir do existente. Bloch não acusa a filosofia passada por seü zelo de transcender, mas por sua falsa consciência desse processo: como se ela ao transcender se limitasse a desvendar algo que existiu outrora ou existe desde sempre. Assim Aristóteles compreendia o Ser (Wesenheit) como um Já-Sido (Ge-wesenheit); assim, Heidegger compreende a presença ausente do ser como o retorno iminente do já ocorrido na origem. O conhecimento, que desde a anámnesis platônica até a psicanálise freudiana parece seguir o caminho de um retomo e de uma reminiscência,- refere-se em verdade também a um advento, a algo que só agora se torna objetivamente possível. Esse possível traça os contornos da vérité à faire, de uma verdade em via de realização que ainda não é real em “nenhum lugar”, podendo portanto ser definida como utópica. Sem dúvida, desde a época em que Thomas Morus, meditando sobre a “nova insula utopia”, deu à utopia o seu nome, ela só teve condições de chegar ao estágio da utopia concreta depois que a análise do desenvolvimento histórico e das forças motrizes do processo social começou a revelar as condições de uma realização possível. Bloch não se ocupa de tal análise, supondo-a já concluída. pelo materialismo histórico. O grave perigo de que, no próprio campo do socialismo, qs
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“esquematizadores armados com um repertório de citações5' e os “prag máticos improvisadores” atraiçoem a utopia, tentando realizá-la, pare ce-lhe exigir um esforço proporcional: captar as dimensões da própria utopia, conservando-a intacta para as gerações seguintes 2. Bloch quer conservar para o socialismo, que vive da crítica da tradição, a tradição do criticado. Em contraste com. o procedimento anti-histórico de uma crítica da ideologia à Feuerbach, que retirou do conceito hegeliano da “superação” (Aufhebung') metade do seu sentido, mantendo o tollere em detrimento do elevare, Bloch pretende extrair das ideologias as idéias e salvar na falsa consciência a verdadeira: “Até agora toda grande civilização foi o prenúncio (Vorschein) de uma realização (Gelungenen)} na medida em que esta, bem ou mal, pode ser incorporada nas imagens e pensamentos mais elevados e clari videntes de cada época”. A própria crítica da religião, que Marx resume nas teses sobre Feuerbach, recebe assim a sua interpretação retrospectiva. Deus está morto, mas seu “lugar” lhe sobreviveu; o espaço em que a humanidade imaginara Deus e os deuses, subsiste, depois da desagregação dessas entidades hipostasiadas, sob a forma de um espaço vazio; as “sondagens” realizadas neste espaço, pelo ateísmo finalmente compreendido; revelam o esboço de um futuro reino da liberdade. Com um aceno cúmplice a Leibniz (que por sua vez se baseara em Locke), Bloch força o economismo de um Marx reinterpretado pelo Diamat ** a liberar o “excedente cultural”, a verdade codificada que ainda subsiste nos mitologemas: nada existe na superestrutura que já não esteja na base, com exceção da própria superestrutura **. Uma ortodoxia salomônica aqui, como em toda parte. Mas não um retrocesso, como poderia, parecer, de Marx a Hegel. A fenomenologia da Esperança não segue, como a do Espírito, as suas figuras envelhecidas se a com paração for lícita. Para Bloch, as figuras do Espírito derivam da validade experimental de um Novo antecipado à objetividade de suas manifesta ções. A filosofia até agora não traiu seu incógnito, nem deixou entrever a possibilidade objetiva de um reino da liberdade: 2 Este ensaio foi escrito antes que Bloch transferisse sua residência para a Alema nha Federal. * Abreviação de “materialismo dialético", em sua versão soviética, (bl. do Org.) ** Para Locke. nada existe na inteligência que não tivesse estado pr.eviamente nos sentidos: “Nihil est in intellectu quin prius fuerit in sensu”. Leibniz completou a fórmula: Cpm exceção da própria inteligência “Nisi ipsè intellectus”. (N. do Org.)
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“Em última análise, foi sempre o véu da anámnesis platônica sobre um Eros dialeticamente aberto que segregou toda a Filosofia passada, inclusive a Filosofia de Hegel. . ., numa prisão contemplativa, voltada para o passado”.
Voltada para o passado — porque dissimulou o futuro no já transcorri do; contemplativa — porque uma génesis assim, projetada no começo, a partir de um fim ainda não alcançado, confia erroneamente ao tra balho de reprodução teórica o que só pode ser realizado por uma práxis responsável, depois de uma preparação crítica.
Resistências literárias e psicológicas à utopia Na conjuntura atual, a cotação da utopia está baixa. Desde que Karl. Mannheim diagnosticou há décadas, na perspectiva da Sociologia do conhecimento, que o impulso utópico estava moribundo, acumulam-se os sintomas que confirmam este diagnóstico. Quanto mais a longo prazo se realiza a planificação militar, tanto mais solidamente o mundo ocidental se entrincheira contra o futuro. Na Alemanha Ocidental a re volução de direita, embora abortada, festeja postumamente sucessos lite rários contra a revolução de esquerda. A partir de Nietzsche, podem ser mobilizados argumentos contra os devaneios de cará ter histórico e filosófico, o que não é possível a partir de Hegel, que apesar de sua especial severidade contra as meras opiniões, tomou partido pelo progresso, mesmo se tratando de um progresso facilmente subjetizável, tal como ele se manifesta na consciência da liberdade. Na cruzada contra a utopia delineiam-se duas linhas estratégicas 3. Por um lado, uma espécie de negação direta da História. Nela desem boca aquele platonismo antropológico que fornece os padrões constantes a partir dos quais é possível definir as condições ótimas da sobrevivência, ou diferenciar entre uma vida intensa e uma vida degenerada. Ele coinci de nisso com o platonismo estético, aparentemente criado para lhe servir de complemento, que promete eternidade em um mundo das formas puras, àquelas cristalizações formadas pelos grandes indivíduos em mo mentos privilegiados. Nos dois casos, secam-se as nascentes da História; 3 Acréscimo de 1977: As observações abaixo tentam delimitar as posições de Bloch em relação àquelas, predominantes no fim dos anos 50, de Gehlen e Benn de um lado, e de Heidegger e Jünger por outro.
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o que nelas aparece como realização de sentido, evapora-se no ciclo cego da natureza. — Mas a História mundial tende visivelmente a cesuras epocais; diante delas a imutabilidade de uma natureza humana conside rada subjacente a essa História se reduz a uma ficção, da mesma maneira que a negação de um possível sentido da História diante da dialética da racionalização progressiva. A outra linha de argumentação leva esse fato em consideração: em vez da negação direta da História, ela é ultra passada indiretamente. O pensamento escatológico aposta no retomo de uma era mitológica, e pretende acelerar esse retorno, seja 'através da piedosa evocação de um destino do Ser, seja através de úma filosofia botanizante da história da terra. A Filosofia da Histeria é transcendida meta-historicamente; e a situação histórica observável não mais precisa submeter-se à análise racional de suas possibilidades objetivas. Tal pensamento utiliza uma consciência voltada para os efeitos da crise exclusivamente para integrar a História como um. todo aos ciclos de uma Sobre-História; desvia o processo histórico aberto de sua autodetermina ção possível e o faz retroceder às proporções de um acontecimento natural: o livro da História é retraduzido num livro sobre a mineralogia das idades do mundo. O princípio conservador da manutenção e do equilíbrio da energia, que conduz metafisicamente a Física e a Moral ao mesmo denominador, exclui a inovação e progresso possível, mesmo nas menores doses, como por exemplo no sonho diurno. Bloch, pelo contrário, registra os impulsos mais efêmeros como as células de um grande sonho voltado para a frente, como o núcleo daquela esperança cujo princípio colocará a humanidade “nos eixos”. Ernst Jünger rejeita, com um gesto, essa atitude, e nessa rejeição representa toda uma cor rente: “Hoje em.dia chegamos a ouvir os pensadores dizerem: ‘Se não fossem tais e tais coisas tudo estaria em ordem.’ É provável, contudo, que se isto ou aquilo não existissem, as coisas se apresentariam de uma forma ainda mais assustadora •— independentemente do fato de que quando uma visão de horror se dissipa, outra ocupa imediatamente o seu lugar. Essas teses e outras semelhantes se nutrem da equiparação da razão à moral. Õ mundo é povoado por seres razoáveis que censuram mutua mente a sua desrazão. As coisas seguem, não obstante, o seu curso, e mesmo um curso visivelmente distinto do visado. Aquele que observa esse curso está mais próximo das fontes que se pertencesse aos partidos, pouco importando se estes consideram a situação separadamente ou fn pleno”,
Bloch reconheceria nessa frase a linguagem dos guardiães que, apa rentemente com razão, fecham a porta à abertura do mundo, que em
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qualquer hipótese, enquanto mundo administrado, já está cada vez mais fechado. Poderia reagir a esse novo romantismo invocando seu ante cessor ilustre, Franz Baader:
“É um preconceito fundamental dos homens acreditar que aquilo que denominam de mundo futuro constitua uma coisa completa e criada para o homem, e capaz de subsistir sem ele como uma casa já construída, na qual só precisa entrar, quando, pelo contrário, aquele mundo é uma construção cujo arquiteto é esse mesmo homem e que só com ele pode crescer” 4. Nietzsche redescobriu o velho pensamento do eterno retomo, a fim de sacralizar “o instante”. No amor fati a vontade de poder, visarçdo as culminâncias, alcança a crista do alto meio-dia. Somente quando mesmo o momento mais frágil recebe, no vaivém inquieto das energias vitais finitas, a garantia de um retomo, e com ele a eternidade, o peso da significação, por assim dizer a indestrutibilidade na fugacidade das aparências, e finalmente um valor equivalente a todos os outros momen tos — então, e somente então, pode a consciência desiludida ter acesso a toda felicidade contida num instante, a felicidade do instante inteiro. O esforço da vontade final anula, com efeito, o seu próprio projeto futuro, e não somente aceita o presente tal como é, como o afirma no mais profundo do seu ser. Bloch se deixa conduzir pelo mesmo tema:
“A vontade final é a de estar verdadeiramente presente. O homem quer penetrar ele próprio no aqui e no agora, e em sua própria vida, sem distância e sem adiamento”.
Mas a sua palavra-chave, a Esperança, opõe-se ao eterno retomo. A escuridão do momento vivido se tomaria ainda mais impenetrável com uma simples reforma da consciência moral, com uma transvalori zação que acabasse consolidando ainda mais os antigos valores. É por isso que os grilhões do eterno retomo devem ser rompidos e as saídas para o espaço ainda inexplorado devem ser conquistadas utopicamente: “O impulso não tem somente seu momento de expansão ou de liberdade ali onde ainda se pode ir, escolher e decidir, onde se pode ainda, optar por um caminho ou abri-lo: ele está presente, também, fora de qualquer caminho, presente no objetivamente possível, onde existe algo que talvez nos corresponda, algo graças ao qual o impulso não permanecerá inde finidamente insatisfeito”. 4 Baader, Franz. Sâmtliche Werke [Obras completas]. Aalen, 1963. v. VII, p. 17 et seqs. Reimpressão da edição de Leipzig, de 1851 a 1860.
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O carpe diem só se tomará real quando o selo do àmor jati for dissolvido — quando se romper a anámnesis platônica, que envolve o Eros dialético e abertò. Essa relação com Nietzsche situa Bloch nos antípodas da posição daqueles antiiluministas, que, cada um à sua moda, pretendem descender de Nietzsche e desviar o vento da vela da utopia 5. Independentemente de tais resistências, a recepção da obra pode ser dificultada por suas próprias características. A corrente representada na literatura por Gottfried Benn e na pintura por Schmidt-Rottluff, atin ge agora em Bloch sua expressão filosófica: o expressionismo tardio, sobrevivência do estilo que marcou as primeiras décadas do século, estendendo-se até sua. metade, um estilo envelhecido com sinais de depuração, mas também de esgotamento. Os fragmentos de uma termi nologia construída com o auxílio de hifens, a proliferação selvagem de pleonasmos, a superabundância de ressonâncias ditirâmbicas, uma esco lha de metáforas que muitas vezes lembram Bõcklin, mais que Benjamin —.tudo isso revela ainda força e fôlego, mas se tomou obsoleto. Além disso, a irradiação da utopia recebe sua coloração no espectro de expe riências geracionais que perderam hoje, em grande parte, a sua evidência. O movimento da juventude (Jugendbewegung') * não pode aspirar a um tipo de obsolescência que tenha a mesma seriedade que a do período Biedermeier. A fuga na natureza e a nostalgia da vida errante, o senti mentalismo com o circo e a prostituição, sofreram üm processo de envelhecimento que nada tem a ver, especificamente, com a obsoles cência do novo sob a influência da modernidade. A psicologia da juventude, dos “Wandervogel”, também deixou seus “traços” ** no conceito da esperança. Não é sem razão que a juventude de hoje recebeu a qualificação de geração cética ***; e pode-se perguntar se nesse ceticismo não se mani festam legitimamente as experiências geracionais de uma juventude que transcendeu o romantismo dos escoteiros, experiências incompatíveis, não com a utopia, mas com a introdução à utopia, nos moldes de Bloch. 5 Acréscimo de 1977: Não suprimí essa passagem porque se configuram hoje, tendo em vista as novas tendências, paralelos com a situação intelectual e política dos anos 50. * V. N. do Org. na p. 169-70. ** Alusão ao título de um livro de Bloch: Spuren. Frankfurt/M., Suhrkamp, 1968. (N. do Org.) *** Alusão ao livro de Schelsky, Helmut. Die skeptische Generation, Eine Soziologie der deutschen Jugend [A geração cética. Uma sociologia da juventude alemã], Düsseldorf-Kõln, Diederichs, 1963. (N. do Org.)
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A herança da mística judaica Bloch surgiu no horizonte de Bonn inesperadamente, modificando radicalmente a topografia habitual. Quando o marxismo se apropria da tradição filosófica européia, sem fundi-la no cadinho da crítica transcendental, produz, pelo menos na medida em que Bloch participou desse processo, uma mediação espantosa das tradições até agora separadas por linhas confessionais dentro da própria Filosofia, e sobretudo da alemã. O elemento judaico do marxismo, com efeito, produz uma sensibilidade especial para pers pectivas preservadas pela Cabala e pelo misticismo, assim como para as tradições pitagóricas e herméticas, incessantemente interrompidas e que raramente ascenderam ao nível da Filosofia oficial. O novelo helenístico não foi efetivamente desembaraçado pela filosofia cristã durante a Idade Média. Sob a etiqueta do neoplatonismo, essa velha tradição dos tempos novos, por mais turva que fosse, se tomou consciente, num processo ocorrido na Renascença e justamente na alemã, na qual Paracelsus ocupou o ponto nodal de suas amplas ramificações. Mantida viva em Bõhme, transmitida através do pietismo suábio de Oetinger aos seminaristas de Tübingen — Hegel, Schelling e Hõlderlin, essa tradição, depois de ter matizado a monadologia de Leibniz, somente cruzou verdadeiramente o limiar da alta especulação com a Filosofia natural de Schelling, alcançando sua plenitude com a doutrina das Idades do mundo, deste filósofo. Já as designações de Filosofia da Natureza e das Idades do mundo mostram como o pensamento marcado por essa origem gravita eliticamente em tomo de dois pólos, a matéria e o processo histórico — no conjunto, é uma tradição apócrifa do mate rialismo histórico, que Marx tangenciou certa vez numa alusão expressa a Jacob Bõhme, por ocasião de uma polêmica contra o materialismo mecanicista do século XVII na Inglaterra e do século XVIII na França. Essa passagem se encontra em A sagrada família °.
Se se considera, por um lado, que na Alemanha a Filosofia vive a tal ponto do espírito protestante, que os católicos, para filosofarem, quase precisam tomar-se protestantes, e que, por outro lado, o pensa6 “Entre as propriedades inatas da matéria se encontra o movimento, a primeira e a mais eminente, não somente enquanto movimento mecânico e matemático, mas também como pulsão, espírito da vida, força expansiva, tormento da matéria — para usar a expressão de Jakob Bõhme” (Marx e Engels. Werke [Obras], v. 2, p. 135).
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mento católico nunca abandonou de fato a torre de marfim do tomismo, a não ser sob uma forma não filosófica, compreende-se que uma filosofia como a de Bloch (que de resto concebe Cristo, bem no espírito do Velho Testamento, como profeta deste mundo) tenha assumido singu lares funções mediadoras no próprio terreno tradicional da Filosofia. A percepção do logos divino na História, por meio da escuta e da obe diência, alienou da natureza a Filosofia protestante, da mesma forma que a percepção do logos divino na natureza, através da contemplação, alienou da História o pensamento católico — um fato facilmente expli cável do ponto de vista sociológico. Na tradição acima mencionada, pelo contrário, convergem desde o início as duas idéia^: a autolibertação do gênero humano no curso da História, juntamente com a restauração de uma natureza decaída. Nos Manuscritos de Paris, Bloch encontra a fórmula para uma reinterpretação racional dessa utopia, ainda prisio neira do mito: o socialismo promete, simultaneamente com a naturaliza ção do homem, a humanização da natureza. A natureza, enfim chegada à plenitude, coexiste com a História, finalmente consumada no horizonte do futuro, e
“é por isso que a natureza, que nao passa, que nos circunda, e que nos engloba, encerrando em si tantas coisas incubadas, inconclusas e indecifradas, constitui, nao um paraíso perdido, mas uma terra pro metida”. A sonoridade dessa frase já remete à melodia que emana da Filo sofia de Schelling 7. A experiência fundamental de Bloch é a dimensão escura, inexplorada e nostálgica do instante vivido, aquele Nada que, segundo os místicos, tem fome de Algo e cujo reflexo abstrato trans parece ainda no início da lógica de Hégel. Nessa fome original, o nó gófdio do mundo aspira à sua resolução, e, não resolvido, reconduz a vida, a cada momento, de volta à sua origem:
“Cada momento vivido seria, pois, se tivesse olhos, testemunha do co meço do mundo, que, nele, sempre acontece de novo; cada momento está, enquanto ainda não surgido, no ano zero do começo do mundo”.
Essa formulação poderia ter sido extraída do primeiro fragmento de Schelling sobre as Idades do mundo, na passagem em que aquele filósofo investiga o conceito do “tempo integral”. Iguais ressonâncias tem a seguinte frase: 7 Cf. meu ensaio sobre Cari Lõwith em: Habermas, J. Pliilosophisch-politisçhe Profile [Perfis filosófico-políticos]. Frankfurt/M., 1971.
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“O Nada enquanto Ainda-Nao atravessa o Já-Sido e o ultrapassa; a fome èe transforma em força produtiva na frente sempre renovada de um mundo incompleto. É por isso que o mundo como processo é, ele próprio, o gigantesco teste de sua solução saturada, ou seja: o reino de sua saturação", E assim como o “inconsciente” no Sistema do idealismo transcen dental, de Schelling, revekte a dupla significação de um subconsciente pulsional no “escuro fundo da natureza”, e também a de um superconsciente alado procedente da “graça gratuita de uma natureza mais elevada” -— assim Bloch diferencia entre o inconsciente do sonho no turno e o do sonho diurno, entre o Não-Mais-Consçiente oriundo do passado, e o Ainda-Não-Consciente voltado para o futuro. O pathos romântico de uma perspectiva arcaizante é incapaz de perceber, segundo este ponto de vista, toda uma esfera de cifras, símbolos e elementos, míticos, não somente no mito,'mas também na contemplação da natu reza e da arte, nos sonhos e nas visões, na poesia e na Filosofia. Bloch submete esses elementos a um “tratamento utópico”, na medida em que neles, se manifestam forças ainda ativas, o que permite sua interpretação como emblemas do, futuro 8. A partir da consciência antecipante, que utiliza, invertendo-os, os próprios “arquétipos” de Jung e as “imagens” diluvianas de Klages, parece destacar-se um núcleo, que é o reino da liberdade, no qual a humanidade se libera da auto-alienação e passa a conduzir livremente seu destino. Somente com o fim da dominação dos homens sobre os homens poderá esse reino ser edificado, ou seja, no socialismo; pois só então a felicidade de uns não precisará ser obtida à custa da infelicidade dos outros, somente então a felicidade não precisará ser medida pelo padrão da infelicidade.
A matéria como alma do mundo e a técnica sem violência Mas qualquer sonho de uma vida melhor estaria limitado a um “enclave interno, misteriosamente isolado”, se um potencial inscrito na História não viesse ao encontro de sua antecipação. Bloch deixa de lado a investigação sociológico-histórica das possibilidades objetivas dialeticamente originárias do processo social, para referir-se imediata8 Cf. por exemplo a grandiosa interpretação da doutrina de Bachofen em: Bloch, Ernst. Naturrecht tind menschliche Wlirde [Direito natural e dignidade humanaj Frankfurt/M., 1961. p. 115 et seqs. ►
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mente a seu substrato geral no próprio processo do mundo — à matéria; pois “a possibilidade real não é outra coisa que a matéria dialética”. O momento da “potência”, já implícito no conceito aristotélico da ma téria, enriqueceu-se, até que Schelling adotasse o termo, nas correntes subterrâneas do neoplatonismo, transformando-se num conceito rico de substância. A matéria, ou a natura naturans, não mais necessita das formas-enteléquias; na medida em que constitui o Um e o Todo, produz e gera, a partir de si mesma, as figuras da sua fecundidade9. A ma téria é o Ser-em-Possibilidade, mas de tal forma que a . História da natureza se apoie na História da humanidade, que dependa da própria humanidade. Esta comporta a capacidade de um poder-fazer e de um poder-fazer-diferentemente, que, no intercâmbio com a natu reza, nela libera um potencial de vir-a-ser e de vir-a-ser-diferentemente. O potencial subjetivo reage sobre o potencial objetivo, mas sem arbi trariedade, permanecendo, ao contrário, mediatizado: em primeiro lugar, pelas tendências objetivas do desenvolvimento social, e em seguida pelo que a natureza, inacabada, torna possível ou impossível. O essencial no mundo ainda está por vir, espera, “no medo do fracasso, na esperança do sucesso”, poder realizar-se através do trabalho do homem socializado — através do trabalho das suas mãos, no sentido literal. A doutrina da potência, .de Schelling, é reinterpretada em termos marxistas:
“A potência subjetiva não coincide somente com o que vem a ser, mas também com o que se realiza na História, e quanto mais a coin cidência entre eles é completa, tanto mais os homens se transformam em autores conscientes da História. A potencialidade objetiva não coin cide. apenas com o transformável, mas também com o realizável na História,., e quanto mais a coincidência entre eles é completa, tanto mais o mundo exterior independente do homem cresce e com ele se mediatiza”.
Na harmonia utopicamente esboçada entre o objeto não reificado e o sujeito que se manifesta, entre o sujeito não reificado e o objeto que se manifesta, acredita essa nova Filosofia poder decifrar o eco de uma antiga identidade. Bloch não recua diante da utilização da faculdade do julgamento, $egundo Kant, ampliada por meio da Filosofia da Ratureza, de Schelling. Aõ mesmo tempo que o homem socializado se alienou, também a natureza “se perdeu”, e exige, na perspectiva do projeto malogrado do a ch o estudo de Bloch sobre Avicenna and die Aristotelisclie Llnke [Avicena e a esquerda aristotélica]. Frankfurt/M., 1963.
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seu “sujeito” oculto, ser interpretada como natura naturans e ser levada a seu termo por intermédio da intervenção humana. A atitude “me cânica”, que desemboca no controle técnico sobre as forças naturais, é incapaz de perceber que a natureza necessita voltar à pátria. É somente quando a atitude “teleológica” apreende as coisas sob a forma de abstra ções de si mesmas, que as seqüências dos fins subjetivos das ações humanas deixam de flutuar no vazio, vinculando-se, ao contrário, a uma finalidade objetivamente inscrita na natureza. Bloch retoma a polêmica de Goethe contra Newton e, recorrendo à herança mais profunda do simbolismo pitagórico dos números, da doutrina cabalística dos signos, da fisionômica hermética, da alquimia e da astrologia, opõe às ciências da natureza uma teoria expressiva da natureza, enquanto configuração simpática. Mas o fato de que Bloch alude, novamente a partir de Schelling, ao conhecimento da beleza natural, tal como ela nos é trans mitida pela experiência, a uma espécie de conhecimento da natureza, radicado nas próprias obras de arte, dissimula com dificuldade o em baraço decorrente da circunstância de que não dispomos, justamente, de uma introdução metódica à “doutrina da natureza como expressão”; todas as tentativas anteriores se apoiam numa extrapolação inutilizável, na analogia entre microcosmo e macrocosmo, entre homem e universo.
De qualquer forma, Bloch se depara, nessas reflexões, com a importante questão de uma “técnica sem violentação”. As teorias cien tíficas da natureza e suas aplicações técnicas são, na verdade, “hostis d. natureza”. Ambas dispõem da natureza segundo as leis fixas do seu comportamento ‘“para nós”. As correlações funcionais incorporadas nas leis se desinteressam do que a natureza possa ser “em si”, numa igno rância criadora com relação à sua “essência”. A técnica, que deve proceder segundo tais leis, não dispõe portanto de qualquer “vínculo” originário com a natureza, com “o velho mundo, produto de um cresci mento orgânico”. Bloch vê nessa técnica uma desvinculação com a terra, que ele atribui a uma artificialidade excessiva, assim como à miséria específica e à hediondez específica do “mundo burguês da má quina”. O epíteto de “burguês”, hoje tão banalizado, aparece nessa passagem porque a técnica não somente surgiu no marco das relações de produção capitalistas, como foi por elas deformada. Assim cofno na circulação das mercadorias as relações abstratas correspondentes aó valor de troca permaneciam externas ao valor de uso, nas ciências natu rais as leis abstratas permanecem externas ao substrato natural. Essa analogia, já há décadas desenvolvida por Lukács em sua História e cons ciência de classe, e que Bloch menciona superficialmente, o encoraja >
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a esperar que as forças produtivas técnicas perderão, sob o socialismo, sua forma abstrata, concretizando-se sob a forma de uma “coprodutividade com a natureza”. A liberdade, conquistada num quadro social e político, prosseguiria no quadro de uma política da natureza: “Assim como o marxismo descobriu no homem que trabalha o sujeito real da História que se auto-engendra, e assim como ele somente pode revelar-se e realizar-se completamente numa perspectiva socialista, assim é provável que o marxismo avance até encontrar, na técnica, um sujeito dos processos naturais, ainda desconhecido e em si mesmo ainda não manifesto, e que opere uma mediação entre os homens e esse sujeito e entre esse sujeito e os homens”.
Segundo a concepção original de Marx, as forças produtivas, in clusive a técnica, constituíam o verdadeiro suporte da riqueza social; a transformação revolucionária das relações de produção envelhecidas e insuficientes limitavam-se a liberar essas forças produtivas. Mais ainda: a irracionalidade de uma ordem que inibe um progresso objetivamente possível em direção a um nível mais elevado do desenvolvimento, é imputada exclusivamente às relações de produção. Quando Bloch, pelo contrário, questiona a inocência, garantida pela Filosofia da História, das forças produtivas, a isso é levado visivelmente por determinadas experiências. Certos indícios sugerem que os dinamismos sociais no Leste e no Oeste convergem tendencialmente para um estágio comum, independentemente do conflito, que se perpetua. Em qualquer hipótese, multiplicam-se, aqui e ali, fenômenos explicáveis por uma interpretação sociológica comum, sob o título “Sociedade industrial”. Sem dúvida, esse ponto de vista levou alguns analistas ocidentais a negligenciar perigosamente as tendências divergentes, que resultam, apesar de tudo, dos diferentes sistemas de propriedade. Mas o desenvolvimento técnico parece criar por si mesmo um marco organizacional mais independente das relações de produção, do que os marxistas jamais puderam aceitar. Contudo essas instituições especificamente geradas pela técnica não são, pelo menos por enquanto, menos alienántes que as especificamente capitalistas. Bloch preserva a utopia, ao prometer, não somente ao càpitalismo, mas também à técnica por ele gerada, uma ressurreição socialista. A natureza por assim dizer capitalista dos instrumentos téc nicos aplicados nos países socialistas e das formas sociais de organização que lhes correspondem, se explicaria, assim, meramente como uma espécie de Cultural lag.
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Exuberância da utopia e melancolia da realização Esse pensamento não deve ser confundido com o elemento afetivo que a ele se vincula. E contudo esse elemento intervém, por assim dizer à revelia de Bloch, sob a forma de um ressentimento crítico-cultu ral e de um romantismo social. Ele se revela claramente, por exemplo, na polêmica contra Gropius e Corbusier, contra a arte industrial dos arquitetos do concreto, contra os móveis de aço e os tetos planos; a maldição da técnica abstrata parece pesar também sobre as linhas arqui tetônicas: “O efeito é tanto mais frio, quanto menos aconchego essas linhas su gerem; não existe nelas senão uma espécie de kitsch luminoso”,
Como Lukács, Bloch não critica a arte moderna apenas por sentimento de dever: a afinidade com a estética clássica transparece em sua apro vação do “realismo”. Como em Hègel, a arte é interpretada segundo o modelo do simbólico. Na bela aparência reflete-se a luz que as coisas e formas projetam antecipadamente sobre aquilo que poderiam ser um dia, matéria que pré-aparece (vorscheinende), em vez da idéia que aparece (erscheinende'). Essa estética se relaciona com a dé Adorno de uma forma complementar: a arte não deve demonstrar sua verdade baseando-se nas contradições existentes. O problema estético traz-nos de volta ao problema político — Bloch é cidadão de outra República10. Seu pensamento se dirige a outros destinatários; é o que se torna evidente quando tenta fundir um materialismo dialético ao mesmo tempo dogmático e empiricamente congelado, sob o sol de sua origem utópica. Sua arte de escrever obedece .a outras convenções; assim, quando fornece seu contingente de jargão, quando parte em guerra contra a fenomenologia animal-pequeno-burguesa vivencial de Heidegger, quando agride Klages por sua “filo sofia de Tarzan” e descarta D. H. Lawrence como um poeta sentimental do pênis — a imprecisão dessas acusações tem algo de irritante. Invectivas semelhantes contra Jaspers podem-se explicar como reação contra o estúpido chavão que designa Bloch, de uma forma impensada, como o “Jaspers do Leste”; tal comparação se julga a si mesma. Mas a verdade é que Bloch formula sua polêmica de maneira tal que muitas publicações folhetinescas, deste lado da Alemanha, poderiam retribuir seus ataques na mesma moeda, com alguma aparência de razão. Não 10 V. nota 2.
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teme colocar-se num nível em que o anticomunismo local possa, por sua vez, apresentar-lhe a conta. Mas nem a denúncia de Bloch a partir da atualidade política, nem a tentativa complementar de confinar este agnóstico nas regiões longínquas da teologia, devem desviar-nos da tarefa de identificar a dimensão em que essa filosofia mergulha as suas raízes políticas: Bloch se limita a revestir sob um disfarce gótico a relação íntima entre a estratégia leninista e a violência. “Não é sem razão que vive no marxismo, além do elemento, de tole rância, que se exprime no reino da liberdade, um elemento por assim dizer catedralesco (kathedralisch) que se exprime no reino da liber dade, da liberdade como Reino. Os caminhos que a Ceie conduzem não são tampouco liberais; sao a conquista do poder estatal, são a disci plina, a autoridade, a planificação central, a linha geral, a ortodo xia . . . é precisamente a liberdade total que evita perder-se num amon toado de caprichos arbitrários e no desespero sem substância, em que eles desembocam, mas triunfa exclusivamente na vontade de ortodoxia.”
Aqui esse pensamento poderia invocar suas afinidades com profundas tradições da Filosofia alemã; mas ao mesmo tempo, a idéia de “Reino” (Reichshaftè), da “essência da ordem” sofre uma santificação que, com todo respeito, tangencia o totalitário. “A ordem em todos os campos e esferas possíveis, da limpeza e da pontualidade, até a visão geral do viril e do magistral, desde o ceri monial até o estilo arquitetônico, desde a série dos números até a siste matização filosófica.”
A violência prática dos. meios vai além dos seus fins, obscurecendo a sua própria antecipação teórica. Sem dúvida, Bloch conhece bem “A melancolia da realização” e alude a um fragmento de não-chegada, mesmo no instante do advento, de um resíduo amargo na realização. Pois não se pode abstrair da realização a ação dos realizadores, e estes só podem realizar-se de forma gradual, à medida que. a sua causa vai se realizando. O círculo constituído pelo problema da educação e dos educadores reaparece no nível da utopiah. Mas também aqui a fórmula da automediação crescente do homem e da natureza oferece sedutora mente uma solução já pronta. Uma utopia que concebe de forma também utópica a dialética de sua própria realização, não é tão concreta quanto pretende. Talvez a imagem do reino da liberdade deva aquele enrijecimento dos seus traços e sua ênfase na idéia de Reino (Reichshafte') à exuberância do seu projeto inicial. Esta, por sua vez, poderia ter seu fundamento nessa
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espécie de materialismo especulativo que extrai do materialismo a pró pria especulação. Marx fundamentou certa vez a tese famosa de que não é possível realizar a Filosofia sem suprimi-la (aufheben), formulada numa polêmica contra a Filosofia dos jovens hegelianos, com o seguinte argumento: Tal Filosofia só levava em consideração a luta crítica da Filosofia contra o mundo, sem se dar conta de que “a Filosofia, tal qual existiu até hoje, pertence ela própria a este mundo e constitui seu complemento, ainda que ideal”n. Bloch conclui que a negação da Filosofia se refere “à que existiu até hoje”, e não a “toda e qualquer Filosofia possível e futura”. Marx, no entanto, sustenta, sem equívoco possível, a tese oposta. Continua, com efeito, na mesma passagem: a Filosofia jovem-hegeliana situa-se de uma forma acrítica em relação a si mesma, “na medida em que parte dos pressupostos da Filosofia, satisfazendo-se com os resultados que ela propõe. . . embora estes — mesmo supondo que sejam fundados — só possam sustentar-se, pelo contrário, com base nos pressupostos da Filosofia até agora existente, da Filosofia enquanto Filosofia”.
Entre os pressupostos da Filosofia figura a consciência de sua autono mia: a consciência de que o espírito que filosofa, pode fundar-se a si mesmo. Uma Filosofia, contudo, que tem uma atitude crítica em rela ção a seus pressupostos, e que tenha se transformado ela própria em crítica, compreende-se como parte do objeto criticado, como uma ex pressão de alienação e ao mesmo tempo uma forma de ultrapassá-la. É somente na' medida em que a Filosofia se cancela, numa superação (Aufhebung) compreendida como realização, que ela chega à maturi dade, e poderá ter um acesso não-mistificado àquele conhecimento que a especulação desde sempre imaginou possuir. O erro de interpretação de Bloch é mais grave ainda: ele rejeita a validade meramente experimental da utopia. Com isso a relação da crítica filosófica com as ciências permanece não elucidada, como é em geral o caso no Diamat. Se a utopia pretende compreender teoricamente, a partir da experiência das contradições existentes, a necessidade prá tica de sua abolição, precisará legitimar cientificamente seu interesse cognitivo (erkenntnisleitendes Interesse) de um duplo ponto de vista, ou seja, como uma necessidade objetivamente real e como uma neces sidade cuja realização é objetivamente possível. A modéstia hipotética do pensamento utópico se distingue da crença em sua autonomia, que li Marx e Engels. Werke [Obras]. Berlim, 1957. v. I, p. 384.
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caracteriza o pensamento especulativo. Aquele considera o projeto filo sófico refutável pela análise científica das condições da sua realização possível, sem dela esperar, inversamente, qualquer comprovação defini tiva — porque a práxis revolucionária ultrapassa a própria teoria antecipante. O pensamento especulativo, pelo contrário, acredita poder prolongar a Filosofia pela pesquisa, acredita que esta pode comprová-lo, mas não refutá-lo. Bloch explora 'um terceiro caminho; pretende con servar a especulação, modificando-a utopicamente. A garantia da salva ção desaparece, mas a antecipação da salvação conserva uni caráter de segurança: as coisas irão assim ou não irão de todo, tudo será alcançado ou nada, a esperança se realizará enfim seguâdo as imagens antecipadas da realização, ou será o caos. Se a utopia retira sua força da experiência de que os limites aparentemente naturais se revelaram sempre alteráveis historicamente, deve ela ser igualmente rigorosa contra si mesma, desenvolvendo uma consciência de suas próprias fronteiras. É certo que uma análise dialé tica que não procura simplesmente. aproximar-se das totalidades, mas opera através de uma antecipação dessas totalidades, não pode razoa velmente degradar-se numa análise diferencial, assim como o conceito de utopia não pode degradar-se num feixe de idéias reguladoras. Deve, contudo, conservar a consciência da possibilidade de tais transforma ções, pelas quais poderia ela própria ser imprevisivelmente absorvida. Uma utopia que vai se dissolvendo à medida que se realiza, poderia fazer surgir uma situação que escape, por princípio, à previsão utópica: novos obstáculos, novas dificuldades, novos ônus poderiam apresentar-se, que difiram completamente de tudo quanto conhecemos e que sejam tão diversos dos problemas que encontramos hoje, que não seriam sequer percebidos como problemáticos, por mais utópico que seja o posto de observação em que nos situemos. A utopia realizada seria “outra”. Essa4 consciência dos seus limites não suprime, contudo, a consciência utópica, nem justifica o abandono antiiluminista da utopia como tal. A propaganda contra as consequências jacobinas das origens utópicas, a pregação moralista contra os horrores da moralidade, não fazem senão aumentar os perigos que elas impedem de ver.
O materialismo de Bloch permanece especulativo, sua dialética do Iluminismo ultrapassa a dialética e se transforma em doutrina da potência. Usando uma linguagem metafórica — e um resíduo de metá fora adere- sempre à utopia — poderíamos dizer que Bloch orienta seu pensamento muito mais para o desenvolvimento de um mundo que ele supõe genericamente em gestação que para a solução das contradições
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sociais existentes. A Filosofia da Natureza se converte na natureza de sua Filosofia. Para os filósofos que ainda se movem dentro da tradição européia, no espaço estreito que subsiste entre o positivismo anglo-saxônico e o materialismo soviético, constitui um fato irritante o aparecimento de uma Filosofia, que lhes vem ao encontro do outro lado do Elba e que (apesar de sua virtual omissão de Kant, o que faz dela um pensamento por assim dizer pré-crítico) é impulsionada pelo grande sopro do idea lismo alemão. O pensamento abre suas asas; e é obrigado a fazê-lo, mesmo que o tempo dos auspícios tenha passado.
7. CRÍTICA CONSCIENTIZANTE OU SALVADORA — A ATUALIDADE DE WALTER BENJAMIN *
A atualidade de Benjamin é evidente mesmo num sentido trivial: nele, separam-se as principais correntes intelectuais de hoje. As frentes que se formaram, desde o aparecimento dos Escritos* 1, durante uma curta e quase eruptiva trajetória na Alemanha Federal, já estão prefi guradas na biografia de Benjamin. A constelação Scholem, Adorno e Brecht foi determinante na vida de Benjamin, assim como a influência juvenil exercida por Gustáv Wyneken **, o reformador escolar, e mais tarde pelos surrealistas. Scholem, o mentor e. amigo mais próximo, é hoje representado pelo próprio Scholem, defensor não-polêmico, infle* Reproduzido de Habermas, J. Bewusstmachende oder rettende Kritik. Zur Aktualitãt Walter Benjamins — 1972. In: Kultur und Kritik. Frankfurt am Main, 1973. p. 302-44. 1Benjamin, W. Schriften [Escritos]. Frankfurt, 1955. 2 v. Cito, a seguir, a partir dos seguintes textos: Ausgewaehlte Schriften (A. S.) [Textos escolhidos], v. 1: Illuminationen [Iluminações]. Frankfurt,. 1961 e v. 2: Angelus Novus. Frankfurt, 1966; Ursprung des deutschen Trauèrspiels [Origem da tragédia burguesa]. Frank furt, 1963; Versuche ueber Brecht [Ensaios sobre Brecht]. Frankfurt, 1966; Char les Baudelaire. Frankfurt, 1969. *♦ Gustav Adolph Wyneken (1875-1964), pedagogo alemão que com sua “Comuni dade Escolar Livre” (criada em 1906), quis influenciar a reforma do ensino na Alemanha. Suas idéias encontraram certa concretização na Jugendbewègung, o movimento da‘ juventude da segunda década do século XX. Este movimento pre gava a volta romântica à natureza e a rejeição das manifestações da moderna sociedade industrial. Propunha-se voltar à simplicidade da vida, à vida natural, às origens germânicas (fogueiras, acampamentos ao ar livre, caminhadas e cantos
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xível e superior daquela dimensão de Benjamin impregnada pelas tradi ções da mística judaica2. 3 Adorno, herdeiro, interlocutor crítico e precursor numa só pessoa, não somente iniciou, mas também marcou decisivamente a vaga inicial da recepção póstuma de Benjamin 8; depois da morte de Peter Szondi * (que sem nenhuma dúvida deveria, hoje, estar em meu lugar), a posição de Adorno é representada sobretudo pelos editores de Benjamin, Tiedemann e Schweppenhaeuser4. Brecht levou Benjamin, para quem ele constituiu uma espécie de princípio de realidade, a romper com o esoterismo do estilo e do pensamento; na tradição de Brecht, teóricos marxistas da arte, como H. Brenner, Lethen e Scharang interpretam a obra posterior de Benjamin na perspectiva da luta de classes 5. * *Gustav Wyneken, de quem o Benjamin que atuara pelas florestas, etc.). A Primeira Guerra Mundial interrompeu este movimento que, retomado depois de 1918, dividiu-se, sendo absorvido por duas correntes mais fortes: o socialismo democrático e o fascismo. As idéias pedagógicas de Wyneken (fortemente pervertidas) foram aproveitadas pela organização da HJ (juventude hitleriana). (N. do Org.) 2 Scholem, G. Walter Benjamin. In: Ueber W. Benjamin [Sobre W. Benjamin]. Frankfurt, 1968. p. 132-64. Nachwort zu: W. Benjamin [Posfácio a Walter Ben jamin]. In: Berliner Chronik [Crônica de Berlim]. Frankfurt, 1970. p. 125-35; Zum Verstaendnis der messianischen Idee im Judentum [Para a compreensão da idéia messiânica no judaísmo]. In: Scholem, G. Ueber einigè Grundbegriffe des Judentums [Sobre alguns conceitos fundamentais no judaísmo]. Frankfurt, 1970. p. 121-67. 3 Adorno, T. W. Ueber W. Benjamin [Sobre W. Benjamin]. Frankfurt, 1970. * Peter Szondi, teórico e crítico literário, tinha mais de uma afinidade com Walter Benjamin. Era também de origem judaica e passou algum tempo de sua infância em campos de concentração alemães. Escreveu: A teoria do drama moderno, En saio sobre o trágico, Estudos sobre Hõlderlin, Estudos sobre Celan e muitos outros trabalhos na área da teoria estética. Era amigo pessoal de Adorno. Ocupdu até a sua morte a Cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade Livre de Berlim. Em outubro de 1971, suicidou-se. (N. do Org.) 4 Szondi, P. Nachwort zu: W. Benjamin [Posfácio a W. Benjamin]. In: Staedtebilder [Quadros de uma cidade], Frankfurt, 1963. p. 79-99. Tiedemann, R. Studien zur Philosophie W. Benjamins [Estudos sobre a filosofia de W. Benjamin]. Frankfurt, 1965; Nachwort zu: W. Benjamin [Posfácio a W. Benjamin]. In: Charles Baudelaire. Frankfurt, 1969. p. 165-91; Nachwort zu: W. Benjamin [Posfácio a W. Benjamin]. In: Versuche ueber Brecht [Ensaios sobre Brecht]. Frankfurt, 1966. p. 117-38. Schweppenhaeuser, H. Einleitung zu: W. Benjamin [Introdução a W. Benjamin]. In: Ueber Haschisch [Sobre o Haschisch]..'. Frankfurt, 1972. p. 7-30. 5 Brenner, H. Die Lesbarkeit der Bilder. Skizzen zum Passagenentwurf [A legibi lidade das imagens. Notas para o esboço sobre as passagens]. In: Alternative [Alternativa], n. 59/60, 1968, p. 48 et seqs. Lethen, H. Zur materialistischen Kunsttheorie Benjamins [Sobre a teoria materialista da arte de Benjamin]. In: Alternative, n. 56/57, 1967, p. 225-34. Scharang, M.. Zur Emanzipation der Kunst
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no movimento da “Comunidade Escolar Livre5’ emancipou-se 6 durante seus tempos de estudante, assinala nele a persistência dos vínculos e impulsos originais; esse lado “jovem conservador” em Benjamin encon trou hoje uma defensora inteligente e combativa em H. Arendt, que defende o esteta sensível e vulnerável, o colecionador e o erudito contra as reivindicações dos seus amigos marxistas e sionistas 7. As afinidades de Benjamin com o surrealismo, finalmente, voltaram à tona com a segunda vaga da recepção de Benjamin, estimulada pela revolta estu dantil, o que é documentado, entre outros, pelos trabalhos de Bohrer e Buerger8. 9 Entre essas frentes, surge uma filologia benjaminiana, que trata seu objeto com erudição e anuncia com grande respeitabilidade aos incautos que essa área deixou de ser terra inexplorada °. O tratamento acadêmico do tema oferece à luta dos partidos, na qual a imagem de Benjamin foi virtualmente despedaçada, possivelmente um corretivo, mas não uma alternativa. Além disso, essas interpretações concorrentes, apesar de unilaterais, contêm todas um elemento de verdade. Não foi por nenhum amor ao segredo, conforme relata Adorno, que Benjamin manteve seus amigos afastados uns dos outros. Somente numa cena surrealista, poderíamos imaginar Scholem, Adorno e Brecht reunidos num simpósio amistoso em torno de uma mesa redonda, debaixo da qual Breton ou Aragon agacham-se, enquanto Wyneken permanece junto à porta, para debaterem sobre o “espírito da utopià” ou o “espírito como antagonista da alma”. A existência intelectual de Benjamin con tém tantos elementos surrealistas que não deveríamos confrontá-los [Sobre a emancipação da arte]. Neuwied, 1971. Holz, H. H. Vom Kunstwerk zur Ware [Da obra de arte à mercadoria]. Neuwied, 1972. 6 Benjamin, W. Briefe [Cartas]. Frankfurt, 1966. v. 1, p. 120 et seqs. 7 Arendt, H. Benjamin, Brecht. Zwei Essays [Dois ensaios]. München, 1971. 8 Buerger, P. Der franzoesische Surrealismus [O surrealismo francês]. Frankfurt, 1971. Bohrer, K. H. Die gefaehrdete Phantasie oder Surrealismus und Terror [A imaginação ameaçada ou o surrealismo e o terror]. München, 1970. Lenk, E. Der springende Narziss [O Narciso dançante]. München, 1971. Steinwachs, G. Mythologie des Surrealismus oder die Rueckverwandlung von Kultur in Natur [A mitologia do surrealismo ou a volta da cultura à natureza]. Neuwied, 1971. A crí tica de Adorno ao surrealismo encontra-se em: Nofen zur Literatur I [Notas para a literatura]. Frankfurt, 1958. p. 153-60; ele é seguido por: Enzensberger, H. M. Die Aporien der Avantgarde [As aporias da avantgarde']. In: Einzelheiten [Minú cias]. Frankfurt, 1962, p. 290-315. Quanto à literatura secundária o leitor pode informar-se em: Rubin, W. S. The D-S Expedition. In: The New York Review of Books, v. XVIII, 9/10, 1972. 9 Cf. na revista Text und Kritik [Texto e crítica], n. 31/32, 1970, dedicada a Ben jamin as contribuições de B. Lindner, L. Wiesenthal, P. Krumme e uma bibliografia comentada (p. 85 et seqs.) com indicações de teses sobre Benjamin, em elaboração.
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com imperativos de coerência cujo custo poderia ser excessivamente elevado. Benjamin entrelaçou temas divergentes, sem unificá-los; e se os tivesse unificado, seria sob a forma de muitas unidades que pene tradas pelo olhar interessado de intérpretes posteriores, revelassem sob uma crosta superficial o minério ainda vivo, Benjamin pertence àqueles autores inclassificáveis, cuja obra está predestinada a produzir efeitos heterogêneos; encontramos esses autores somente na atualidade fulmi nante de um pensamento que se torna, durante alguns segundos histó ricos, hegemônico. Benjamin costumava ilustrar o sentido da atuali dade com a lenda talmúdica segundo a qual “os anjos •— renovando-se a cada momento em legiões inumeráveis •—são criados para que, depois de terem cantado seu hino diante de Deus, silenciem e desapareçam no nada” (A. S. v. 2, p. 374).
Gostaria de partir de uma frase que Benjamin usou contra o pro cedimento da história da cultura: * “Ela (a história da cultura) aumenta o fardo dos tesouros, que se acumulam nas costas da humanidade. Mas, não lhe dá a força de livrar-se deles, para poder apanhá-los com as mãos” (Ibid., p.;-,312-).
É exatamente nisso que Benjamin vê a tarefa da crítica. Não contempla os documentos da cultura, que são também os da barbárie, sob o ponto de vista histórico dos bens culturais acumulados, mas sob o ponto de vista crítico, segundo sua formulação incisiva, da decomposição da cultura “em bens que podem tomar-se um objeto de propriedade para a espécie humana”. No entanto, Benjamin não fala da “dissolução da cultura” (Aufhebung der Kultur).
I Quem fala da dissolução da cultura é Herbert Marcuse, num ensaio publicado em 1937 sobre o caráter afirmativo da cultura10. Ele critica na arte burguesa clássica o caráter duplo de um mundo da “bela ilusão”, constituído como esfera autônoma, isto é, além da luta competitiva burguesa e do trabalho social. Essa autonomia é ilusória, porque a arte somente aceita como válida a aspiração dos indivíduos à felicidade no terreno da ficção, mascarando a miséria quotidiana; ao 10 Marcuse, H. Kultur und Gesellschaft 1 [Cultura e sociedade I). Frankfurt, 1965. p. 56-101.
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mesmo tempo, a autonomia da arte contém igualmente algo de verda deiro, porque' o içléal do belo exprime o desejo de uma vida mais feliz, de uma ordem humana, cordial e solidária, inexistente na vida quoti diana e, dessa forma, transcende o existente: “A cultura afirmativa foi a forma histórica em que ficaram preservadas as necessidades humanas que iam além da mera reprodução da exis tência. E, como tal, é também legítima, assip como a forma da reali dade social que lhe corresponde. Sem dúvida, ela exonerou as.‘condições externas’ da responsabilidade pela 'determinação do homem’; — e, nesse sentido, perpetua a injustiça de tais condições —, mas ela as confronta também com a imagem de uma ordem melhor, cuja concretização é tarefa da ordem atual” (Ibid., p. 88).
Com relação a essa arte, Marcuse faz valer a reivindicação ima nente à crítica da ideologia e toma ao “pé da letra” a verdade expressa nos ideais burgueses, mas reservada à esfera da “bela ilusão”, ou seja, dissolver a arte como uma esfera destacada da realidade. Se a “bela ilusão” é o veículo no qual a sociedade burguesa exprime os seus próprios ideais, ao mesmo tempo que mascara a sua não-reali zação concreta, a crítica ideológica da arte inclui a exigência de dissolver a arte autônoma e reconduzir a cultura em geral aos processos da vida material. Revolucionar as relações sociais burguesas significa dissolver a cultura: “Na medida em que a cultura configura os desejos e aspirações reali záveis, mas de fato irrealizados da humanidade, ela perderá seu objeto. . . O belo se materializará de outra forma, quando não mais for apresen tado como ilusão real, mas quando exprimir a realidade e a alegria dentro da realidade” (Ibid., p. 98-9).
Marcuse não pode ter se iludido, em face da arte fascista de massas, sobre a possibilidade de uma falsa dissolução da cultura. Contrapôs a ela um outro estilo de politização da arte, que por um momento pareceu assumir uma forma concreta trinta anos mais tarde nas barri cadas, ornadas de flores, dos estudantes de'Paris. Em seu ensaio sobre a libertação, Marcuse interpretou a práxis surrealista da revolta estu-. dantil como a dissolução da cultura (Aufhebung), com a qual a arte penetra na vida 11. 11 Marcuse, H. Versuch líber Befreiung [Ensaio sobre a libertação]. Frankfurt, 1969, especialmente cap. II, p. 43 et seqs. Marcuse desenvolveu e modificou par cialmente essa perspectiva em seu livro mais recente Coiiiiter-revolufion and revolf. Boston, 1972. cap. III: Arte e revolução.
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Um ano antes do ensaio de Marcuse sobre o caráter afirmativo da cultura, fora pubíicado o artigo de Benjamin sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (A. S. v. 2, p. 148-8-5), também na Zeitschrift fuer Sozialforschung. Marcuse parece ter retido das obser vações de Benjamin, na verdade mais sutis, somente os aspectos relevan tes para a crítica da ideologia. O tema novamente é a dissolução da arte autônoma. O culto profano da beleza constitui-se durante a renas cença e manteve sua validade durante três séculos (Ibid., p. 155). Na medida em que a arte se destaca dos seus fundamentos religiosos, extingue-se a ilusão de sua autonomia (Ibid., p. 159). Benjamin justi fica a sua tese de que í!a arte escapou à esfera da ‘bela ilusão’ ” com o novo estatuto da obra de arte e sua nova forma de recepção. Com a destruição da aura, desloca-se a estrutura simbólica interna da obra de arte de forma a dissolver a esfera subtraída ao processo da vida material e a ele contraposta.
A obra de arte renuncia à sua pretensão ambivalente de autenti cidade e intangibilidade radicais. Ela abre mão, tanto de sua função de testemunho histórico quanto da diferença de nível com que se situava com relação ao observador. Já em 1927 notara Benjamin: “Aquilo que chamávamos arte, só começava a uma distância 3e dois metros do corpo” (A. S. v; 2, p. 160). A obra de arte banalizada adquire valor “de exposição” em detrimento do seu “valor de culto” 12. À nova estrutura da obra de arte corresponde uma nova organi zação da percepção e recepção da arte. Enquanto autônoma, a arte estava voltada para a fruição estética individual, e depois da perda de sua aura para a recepção de massa. Benjamin contrapõe à atitude contemplativa do observador individual a dispersão no coletivo, provo cada pela multiplicidade dos novos estímulos: “À absorção na obra de arte, que na fase da degenerescência da bur guesia transformou-se numa escola de comportamento a-social, contrapoe-se a distração, como uma modalidade do comportamento social” (A. S. v. 1, p. 171).
Na recepção coletiva vê Benjamin, além disso, um prazer estético que é ao mesmo tempo instrutivo e crítico. 12 “Certas imagens da Madona permanecem cobertas durante quase todo o ano, certas esculturas em catedrais medievais não são visíveis para o observador no solo. Com a emancipação das expressões artísticas individualizadas, liberando-se da matriz do ritual, aumentam as ocasiões para a exposição de seus produtos.” r
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Dessas formulações, nem sempre consistentes, creio poder extrair o conceito de uma forma de recepção, que Benjamin elaborou a partir das reações de um público cinematográfico descontraído, mas atento: “Comparemos a tela em que o filme é projetado com a tela do quadro. Este convida o observador a uma atitude contemplativa; diante dele, pode abandonar-se à seqüência de suas associações. O mesmo não é possível no cinema. *•. Com efeito, a cadeia associativa de quem con templa as imagens cinematográficas é quebrada imediatamente, pela mu dança das cenas. Nisso reside o efeito de choque do filme, que como todo efeito de choque precisa ser neutralizado por uma atenção inten sificada. Graças à sua estrutura técnica conseguiu òx filme, por assim dizer, libertar de sua embalagem o choque físico, que ó dadaísmo ainda mantivera envolto em seu invólucro moral” (Ibid., p. 171-2).
A arte privada de aura liberta, numa seqüência discreta de choques,
experiências que até então estavam encerradas no estilo esotérico. Ben jamin vê na elaboração psíquica desse choque a dissolução exotérica daquele fascínio religioso, no qual a cultura burguesa mantinha cativo o observador solitário, graças ao seu caráter afirmativo. Benjamin compreende a mudança de função da arte, que intervém no momento da emancipação da obra de arte “de sua existência parasi tária no ritual” como uma politização da arte: “Em lugar de basear-se no ritual, baseia-se numa outra práxis: baseia-se, em outras palavras, na política” (Ibid., p. 156). Sem dúvida Benjamin, como Marcuse, vê na arte de massa do fascismo, que surge com a pretensão de ser política, o perigo de uma falsa dissolução da arte autônoma. Essa arte propagandística dos nazistas liquida efetivamente a arte como uma esfera autônoma, mas atrás do véu da politização ela está a serviço, na verdade, da estetização do poder político bruto. Ela substitui o valor de culto da arte burguesa pelo valor produzido por intermédio da mera manipu lação. O fascínio religioso só é rompido para ser sinteticamente reno vado: a recepção de massa transforma-se em sugestão de massa13. A teoria estética de Benjamin recorre a um conceito de cultura baseado na crítica da ideologia, que Marcuse retomaria um ano depois. Mas, os paralelos iludem. Vejo quatro diferenças essenciais: 18 “A arte fascista não é executada somente para as massas, mas também pelas massas... (Ela) coloca os executores tanto quanto os receptores num círculo má gico, no qual eles aparecem a si mesmos como monumentais, isto é, incapazes de ações refletidas e autônomas . . Com o comportamento que esse sortilégio lhes impõe podem finalmente as massas atingir sua auto-expressao segundo os ensina mentos do fascismo” (yí..V. v. 2. p. 509-10)..
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a) Marcuse procede com as figuras exemplares da arte burguesa através de uma crítica da ideologia, na medida em que constata, a con tradição entre ideal e realidade; resulta dessa crítica que a dissolução da arte autônoma é vista meramente como a consequência do pensa mento. Benjamin, ao contrário, não critica uma cultura que em sua substância ainda se mantivesse intata. Descreve, em vez disso, o pro cesso efetivo de desaparecimento da aura, na qual a arte burguesa fundava a ilusão de sua autonomia. Procede descritivamente. Observa uma mudança de função da arte que Marcuse só antecipa como possível no momento da transformação revolucionária das condições de vida.
b) Merece destaque o fato de que Marcuse, como a estética idealista em geral, limita-se aos períodos definidos como clássicos pela própria consciência burguesa. Orienta-se em função de um conceito do belo artístico deduzido da esfera do simbólico, em que a essência se manifesta. As obras de arte clássicas — na literatura, principalmente o romance e a tragédia burguesa — são objetos adequados para a crítica da ideologia exatamente por seu caráter afirmativo, da mesma forma que o são as construções do direito natural racional, no campo da filosofia política. - O interesse de Benjamin, porém, incide sobre as formas não-afirmativas da arte; em sua investigação sobre a tragédia burguesa, construiu o conceito da alegoria como uma categoria que contrasta com a totalidade individual da obra de arte transfiguradora14. A alegoria, que exprime a experiência do sofrimento, da opressão, da irreconciliabilidade e do malogro, que exprime, em suma, a experiência do negativo, -contrapõe-se à arte simbólica, que promete e antecipa a felicidade, a liberdade, a reconciliação e a realização. Enquanto esta necessita, para a sua decifração e superação, a crítica da ideologia, aquela é ela mesma crítica ■—■ ou, pelo menos, remete à crítica: “O que é durável é o estranho detalhe das referências alegóricas: um objeto do saber que se aninha em ruínas trabalhadas pelo pensamento. A crítica é a mortificação das obras. Nisso, mais que em quaisquer outras produções, reside sua essência” (Origem da tragédia alemã. p. 202).
14 “Enquanto no símbolo, com a transfiguração do desastre revela-se fugazmente o rosto metamorfoseado à luz da Salvação, a alegoria apresenta à visão a fácies hippocratica como uma paisagem primordial, petrificada... Este é o núcleo da perspectiva alegórica, da exposição barroca, mundana, da história como a história do sofrimento do mundo; esta só é significativa nos momentos de sua decompo sição” (Ursprung des deutschen Trauerspiels [Origem da tragédia alemã], p. 182-3).
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c) Nesse contexto, é digno de nota que Marcuse deixa de examinar as transformações vanguardistas da arte burguesa, não acessíveis de forma direta à crítica da ideologia, enquanto Benjamin comprova a superação da arte autônoma precisamente na História Moderna. Bem jamin, que vê no aparecimento das grandes massas urbanas a matriz “a partir da qual se renovam as atitudes habituais com relação à obra de arte” (A.S. v. 1, p. 172), descobre a influência desse fenômeno exatamente nas obras que a ele parecem fechar-se hermeticamente: “A massa é de tal forma imanente a Baudelaire, que seria .inútil pro curá-la nele” (Baudelaire, Ch. Um poeta lírico na fase do apogeu do capitalismo, p. 128)1B. Benjamin segue os rastros da nfõdemidade, por que eles conduzem ao ponto em que “a esfera da poesia explode por dentro” (A. S. v. 2, p. 201). A visão da necessidade de superar a arte autônoma decorre da reconstrução daquilo que a arte de vanguarda, ao transformar a arte burguesa, nela negligenciou.
d) Finalmente, a diferença decisiva com relação a Marcuse con siste em que Benjamin vê a dissolução da arte autônoma como o resultado de uma revolução das, técnicas de reprodução. Em confronto com as funções da pintura e da fotografia, Benjamin mostra exemplar mente as conseqüências das novas técnicas introduzidas no século XIX, que em contraste com os processos tradicionais de reprodução, como a fundição, a impressão, a xilogravura, a litogravura e a gravura em cobre, representam um estágio novo, comparável à invenção da im prensa. Em sua época, Benjamin já podia observar no disco, no filme e no rádio, uma tendência que se acelerou depois com os media ele trônicos. As técnicas de reprodução penetram na estrutura interna da obra de arte. A obra perde, por um lado, em individualidade espacial-temporal, mas ganha, por outro lado, em autenticidade documental. A estrutura temporal do efêmero e do reproduzível, que substitui a estrutura temporal típica da arte autônoma ■— a unicidade e a durabi lidade — destrói a aura, “o aparecimento único de um longínquo” e agudiza “o sentido do igual no mundo”. As coisas, privadas de sua aura, aproximam-se, além disso, das massas, também pelo fato de que o veículo técnico que se interpõe entre os órgãos sensoriais e o objeto,* 15 Por isso, volta-se Benjamin contra a interpretação superficial da arte pela arte: “Seria este o momento para examinar uma obra que como nenhuma outra poderia elucidar a crise da arte, da qual somos testemunhas: uma história da poesia esoté rica ... Em sua última página, encontraríamos a radiografia do surrealismo” (A.S. v. 2, p. 207).
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o copiam de forma mais exata e realista. Sem dúvida, a autenticidade das coisas impõe um uso criador dos meios realistas de reprodução e, portanto, a montagem e a interpretação literária (legendas sobre a fotografia) 16.
n Benjamin não se deixa conduzir, como demonstram essas diferen ças, por um conceito da arte baseado na crítica da ideologia; tem em mente, com a idéia da dissolução da arte autônoma, algo de muito distinto da exigência marcusiana da superação da cultura. Enquanto Marcuse confronta o ideal com a realidade e torna consciente o con teúdo inconsciente da arte burguesa, que ao mesmo tempo justifica a realidade burguesa e involuntariamente a denuncia, a análise de Ben jamin renuncia à forma da auto-reflexão. Enquanto Marcuse pretende, através da decomposição analítica de uma ilusão (Scheiri) objetiva preparar a transformação das relações materiais da vida, assim desven dadas, e abrir caminho para a superação (Aufhebung) da cultura em que essas relações se estabilizam, Benjamin não pode ver a sua tarefa num ataque contra uma arte já compreendida como em processo de dissolução. Sua crítica estética assume uma posição conservadora com relação ao seu objeto, quer se trate da tragédia burguesa, das Afinidades Eletivas, de Goethe, das Fleurs du Mal de Baudelaire, ou do cinema soviético dos inícios dos anos 20; sem dúvida, ela visa “a mortificação das obras” {Origem da tragédia alemã, p. 212), mas se a crítica pratica contra a obra tal mortificação, é para transpor aquilo que merece tornar-se objeto do saber, da esfera do belo para a esfera do verda deiro, e com isso salvá-lo. 16 Também aqui vê Benjamin o dadaísmo como um precursor das artes técnicas, com outros meios: “A força revolucionária do dadaísmo consistia em investigar na arte a sua autenticidade. Os artistas compunham naturezas mortas a partir de bilhetes, carretéis, ponta de cigarro, unidos entre si por elementos pictóricos. Todo este conjunto era posto numa moldura. E, com isso, dizia-se ao público: Vê, tua moldura rompe com o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária é mais eloqüente que a pintura, assim como a impressão digital ensangüentada de um assassino sobre a página de um livro é mais eloqüente que o texto. Grande parte deste conteúdo revolucionário ficou preservada na fotomontagem” {Ensaios sobre Brecht. p. 206).
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Esse desejo de salvação pode ser explicado pela singular concépção que Benjamin tem da História 17. Uma causalidade mística governa a História, de tal forma que “existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e as nossas . . . Foi-nos concedida, como a gerações anteriores, uma frágil força messiânica sobre a qual o passado tenta exercer seus direitos’’ (Teses de filosofia da História — A. S. v. 1, p. 269).
Essa aspiração só pode concretizar-se por meio de um renovado esforço crítico que a visão histórica deve exercer sobre um passado ávido de salvação; e esse esforço é, num sentido eminente, conservador, “porque cada vez que uma época presente não se reconhece numa ima gem irreprodutível do passado nem se concebe como tendo sido visada por essa imagem, ela está ameaçada de desaparecer para sempre” (Ibid., p. 270).
Se tal aspiração se malogra, estão ameaçados “não somente a sobrevi vência da tradição como a dos que a recebem” 18. O continuum da História consiste, para Benjamin, na permanência do intolerável; o progresso é o eterno retomo da catástrofe: “O conceito do progresso funda-se na idéia da catástrofe”, nota Benjamin num esboço do trabalho sobre Baudelaire, “que ‘as coisas continuam como são’ — nisso consiste a catástrofe”. Por isso, “a Salvação deve ser procurada no pequeno salto em direção à catástrofe” (A.S. v. 1, p. 260). O conceito de um presente, em que o tempo se detém e se imobiliza, pertence às mais antigas intuições de Benjamin. Entre as “Teses sobre a filosofia da História”, pouco antes de sua morte, encontra-se a frase fundamental: 17Tiedemann, Studien [Estudos], p. 103 et seqs.; Kittsteiner, H. D. Die geschichtsphilosophischen Thesen [As teses da filosofia da História]. Alternativa n. 55/56, p. 243-51. 38 A força salvadora da crítica retrospectiva não deve ser confundida com a empatia (Elnfuehlung) & a pós-vivência (Nacherleben), que o historicismo herdou do romantismo: “Com o romantismo, começa a busca das falsas riquezas, a incorpo ração de todos os passados, não através da emancipação progressiva do gênero humano, graças a qual ele se confronta com a sua própria história de maneira cada, vez mais lúcida, dela derivando orientações sempre renovadas, mas pela imitação e pela pilhagem de todas as obras de épocas e culturas extintas” (A. S. v. 2. p. 360-1). Isto não implica, por outro lado, nenhuma recomendação no sentido de compreénder hermeneuticamente a História como um continuum ou de reconstruí-la como um processo de autoformaçao da espécie. Sua concepção da História, profundamente antievolucionista, se oporia a tais interpretações.
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“A História é objeto de uma construção, cujo lugar não é constituído por um tempo homogêneo e vazio, mas por um tempo preenchido por todos os 'agoras' (Jetztzeit). Assim, para Robespierre, a Roma Antiga era um passado carregado com todo o peso do presente, quê ele extraiu do continuam da História” (A. S. v. 1, p. 276).
Um dos seus primeiros ensaios, sobre- “A vida dos estudantes”, começa no mesmo sentido: "Existe uma concepção da História que, confiante na infinitude do tempo, somente diferencia o ritmo dos homens e das épocas, que cami nham depressa ou devagar na estrada do progresso. . . Este trabalho, ao contrário, busca um estado de coisas determinado, em que a História repousa como num ponto focal, como que recolhida em si mesma, da mesma forma que nas imagens utópicas dos pensadores. Os elementos da condição terminal não estão expostos à luz do dia como tendências amorfas do progresso, mas embutidas em cada presente, como criações e pensamentos ameaçados, denegridos e ridicularizados” (Ibid., p. 9).
Sem dúvida, desde a doutrina das idéias, contida no livro sobre a tragédia, desloca-se a interpretação da intervenção salvadora no passado. O olhar retrospectivo tinha como função, naquela fase, guardar no refúgio das idéias o fenômeno que ele salvara, originário da esfera do vir-a-ser e do deixar-de-ser: "ingressando na eternidade, o acontecimento original despe-se de sua pré e pós-história, agora virtuais, como de uma roupagem enraizada na história da natureza” (Origem da tragédia alemã, p. 28-33).
Essa constelação de história da natureza e de eternidade cede mais tarde à constelação de História e tempo presente (Jetztzeit). A imobilização messiânica do acontecer usurpa o lugar da origem 10. O inimigo, contudo, que, quando a crítica salvadora se omite e o esquecido assume o poder, ameaça tanto os mortos como os vivos, esse inimigo permaneceu o mesmo, ou seja, a hegemonia do destino mítico. O mito caracteriza um gênero humano irremissivelmente frustrado da sua vocação natural para a vida correta e justa, e que permanece acorrentado ao ciclo da mera reprodução da vida e da sobrevivência bruta * 20. O destino mítico 30Lindner, B. "Natur-Geschichte” -—• eine Geschichtphilosophie und Welterfahrungin Benjamins Schriften [A ‘história da natureza’ — uma filosofia da Histó ria e uma experiência do mundo nos escritos de Benjamin]. In: Text und Kritik. p. 56. 20 Nesse sentido, ciências como a teoria sistêmica e a psicologia do comportamento, vinculadas ao Iluminismo, concebem o homem como um ser mítico. r
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só pôde ser imobilizado durante um frágil minuto. Os fragmentos da experiência, que nesses momentos são roubados ao destino, ao continuum do tempo vazio, em benefício da atualidade do aqui e do agora, asseguram a permanência da tradição ameaçada; a ela pertence a história da arte, Tiedemann cita da obra sobre as Passagens a seguinte frase: “Em cada obra de arte autêntica existe um lugar, em que aquele que nele se introduz sente como que a brisa de uma alvorada, próxima. Daí resulta que a arte, freqüentemente vista como refratária' a qualquer relação com o progresso, pode de fato estar a serviço dele. z O pro gresso não se sente à vontade na continuidade do tefripo, mas em suas interferências: ali onde o verdadeiramente novo torna-se pela primeira vez perceptível na sobriedade das auroras” (Tiedemann. Studien. p. 103-4);
É nesse contexto qqe deve ser visto o plano de Benjamin, cuja execução permaneceu fragmentária, de elaborar uma pré-história da humanidade. Baudelaire tornou-se central para Benjamin porque a sua poesia exprime “o novo no’ sempre igual e o sempre igual no novo” (Zentralpark — Schriften I. p. 482). A crítica de Benjamin descobre nos processos acelerados de en velhecimento, que se concebem còmo progresso, num auto-entendimento que é também um mal-entendido, a coincidência com o imemorial (Unvordenklichè). Ela identifica na modernização das formas- de vida, provocada pelo desenvolvimento das forças produtivas, a compulsão de repetição do universo mítico, que continua a manifestar-se sob o capi talismo — o sempre igual no novo. Mas ao fazê-lo, visa essa crítica, distinguindo-se nisso da crítica da ideologia, à salvação de um passado impregnado de presente (Jetztzeit') \ ela assegura-se dos momentos em que a sensibilidade artística interrompe a marcha do destino, camuflado de progresso, e codifica a experiência utópica contida na imagem dialé tica — o novo no sempre-igual. A transformação do moderno no pré-histórico tem, em Benjamin, um duplo sentido. Pré-históricos são o mito assim como o conteúdo das imagens extraídas do mito, e que precisam ser renovadas criticamente num outro presente, por assim dizer antecipado, e tomadas legíveis, para que possam ser preservadas para o verdadeiro progresso, sob a forma-de tradição21. A concepção histó21 “Com efeito, esse tornar-se legível constitui um ponto crítico determinado em seu interior (das imagens dialéticas). Cada presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é-o agora de uma determinada cognoscibilidade. Neste agora, a verdade está sobrecarregada com a dimensão temporal, até o limiar da ruptura” (Apud Tiedemann. Studien. p. 310).
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rica antievolucionista de Benjamin, segundo a qual o agora (Jetztzeii) se cruza co.ni o continuam da História, não é inteiramente cega com relação aos progressos na emancipação do gênero humano. Mas, avalia de uma maneira profundamente pessimista a probabilidade de que as irrupções ocasionais que solapam o sempre-igual se estabilizem em uma tradição em vez de sucumbir ao esquecimento. Paralelamente a isso, no entanto, Benjamin admite a existência de uma continuidade, que rompe o circuito linear da História e, não obs tante, põe em risco a tradição. É a continuidade do “desencantamento”, cujo último estágio Benjamin caracteriza como a perda da aura:
“Assim como em épocas primitivas a obra de arte foi vista em primeiro lugar como um instrumento mágico, devido à importância absoluta conferida ao seu ‘valor de culto’, de tal forma que ela, num certo sen tido, somente mais tarde, veio a ser reconhecida como obra de arte, assim hoje a obra de arte, devido à importância absoluta conferida ao seu ‘valor de exposição’, transforma-se numa configuração com funções inteiramente outras, entre as quais se destaca a por nós conhecida — a artística — que mais tarde poderá ser interpretada como secun dária” (A. 5. v. 1, p. 157). Benjamin não explica essa desritualização da arte; ela deve ser com preendida como parte daquele processo histórico de racionalização que o desenvolvimento das forças produtivas introduz nas formas sociais de vida, com as transformações do modo de produção —• também Max Weber usa o termo “desencantamento”. A arte autônoma só se instaura na medida. em que, com o aparecimento da sociedade burguesa, o sistema político e o econômico se destacam do sistema cultural e as visões do mundo tradicionalistas, solapadas pela ideologia básica da justa troca, liberam as artes dos seus contextos de utilização ritual22. 23 A arte deve fundamentalmente ao seu caráter de mercadoria sua libe ração para o prazer privado do público burguês, literário e teatral, frequentador de exposições e concertos, que constituiu-se nos séculos XVII e XVIII28. A’continuação do mesmo processo, ao qual a arte 22 “Autonomia” significa aqui auto-suficiência da obra de arte com relação às inten ções de uso externas à arte; a autonomia da produção da obra de arte pode desenvolver-se mais cedo, ou seja, no contexto do mecenato. 23Hauser, A. Sozialgeschichte der Kunst [História social da arte], Munique, 1953. 2 v. e Hab ermas, J. ’ Strukiurw.andel der Oeffentlichkeit [Mudança estrutural do espaço público]. 5. ed. Neuwied, 1971. p. 46 et seqs.
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deve a sua autonomia, leva também à sua liquidação. Já no século XIX configura-se o fato de que o público privado burguês cede lugar à população trabalhadora das grandes coletividades urbanas. Por isso, Benjamin concentra-se em Paris, como a metrópole por excelência, e no fenômeno da arte de massas, pois — assim termina Benjamin a passa gem acima citada sobre a desritualização da arte, “Uma coisa é certa: no momento atual a fotografia e o cinema proporcionam os instrumentos mais úteis para esse conhecimento” (Ibid.).
III Em nenhum ponto, Adorno contradisse Benjamin tão energicamente como neste. Adorno compreende a arte de massas, surgida com as novas técnicas de reprodução, como uma degenerescência da arte. O mercado, que inicialmente tornou possível a autonomia da arte burguesa, faz surgir uma indústria cultural que se infiltra nos poros da obra de arte e impõe ao observador, devido ao caráter de mercadoria da arte, a atitude padronizada de um consumidor. Adorno desenvolveu essa crítica, em primeiro lugar, tomando como exemplo o jazz em seu ensaio de 1938 sobre “O fetichismo na música e a regressão na audição” (Adorno. Dissonanzen. p. 9-45). Essa crítica, desde então aplicada a uma série de objetos, foi generalizada e resumida por Adorno no volume póstumo sobre a teoria estética (Gesammelte Sçhrijten, v. 7) sob o título de “A perda do artístico na arte” (“Entkunstung der Kunst”): “Da autonomia das obras de arte, que deixa indignados os clientes da cultura, por ser considerada algo de superior, só resta o fetichismo da mercadoria. . . Enquanto tábula rasa de projeções subjetivas, a obra de arte é desqualificada. Os pólos dessa desqualificação são, por um 4ado, sua transformação em coisa entre coisas e, por outro, sua transformação em veículo do observador. O que as obras de arte reificadas-não dizem mais, o observador substitui pelo eco padronizado de si mesmo, que delas ressoa. A indústria cultural poe em marcha esse mecanismo e o explora” (Ibid., p. 33). A experiência histórica incorporada nessa crítica da indústria cultu ral é a desilusão, não tanto com a história da decadência da arte, da religião e da filosofia, quanto com a história das paródias de sua supe ração. A constelação da cultura burguesa na fase do seu desenvolvi-
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mento clássico foi caracterizada, se é permitida uma generalização algo simplificada, pela dissolução de visões do mundo tradicionalistas, em primeiro lugar através da metamorfose da religião num complexo de crenças privatizadas, em segundo lugar através da aliança de uma filoso fia empirista e de uma filosofia racionalista com a nova física, e, final mente, através de uma arte tornada autônoma que assume, complementarmente, posições de retaguarda para abrigar as vítimas da racionalização burguesa. A arte é o território reservado para a satisfação, ainda que virtual, daquelas necessidades, que no processo material de vida da sociedade burguesa, por assim dizer, tomaram-se ilegais: quero dizer com isso, a necessidade de um convívio mimético com a natureza, tanto a externa quanto a do próprio corpo; a necessidade de uma vida em comum solidária, e de modo mais geral a aspiração à felicidade prome tida por uma experiência comunicativa alheia aos imperativos da racio nalidade instrumental e que deixa um espaço livre tanto para a imagina ção como para a espontaneidade do comportamento. Essa constelação da cultura burguesa não era, de forma alguma, estável; ela durou, como o próprio liberalismo, por assim dizer somente um momento e sucumbiu então à dialética do Iluminismo (ouv antes, ao capitalismo como seu veículo irresistível).
Já Hegel havia anunciado em suas conferências sobre a estética24 a perda da aura, artística. Ao conceber a arte e a religião como formas ‘limitadas do saber absoluto, reveladas como tal pela filosofia, enquanto livre pensamento do Espírito Absoluto, Hegel põe em movimento a dialética de uma superação (Aufhebung)} que ultrapassa, de imediato, os limites de sua própria lógica. Os discípulos de Hegel realizam uma crítica profana, primeiro da religião e depois da filosofia, para finalmente concluir com a superação da filosofia e sua realização, coincidindo com a superação do poder político: é aqui que nasce a crítica da ideologia de Marx. O que na construção hegeliana ainda estava velado, aparece agora com clareza: o lugar privilegiado que a arte assume entre as figuras do Espírito Absoluto, na medida em que não assume funções 24 “A arte em seus primórdios deixa um resíduo de mistério, um pressentimento e uma nostalgia secreta ... Se, porém, o conteúdo integral se exterioriza integral mente nas formas artísticas, o espírito, olhando adiante, afasta-se dessa’ objetivi dade, volta-se para o seu interior e a expulsa de si mesma. Tal é o nosso tempo. Pode-se esperar que a arte se eleve e se torne cada vez mais completa, mas sua forma deixou de ser a suprema necessidade do espírito. Podemos achar as imagens divinas dos gregos extraordinárias, e ver Deus, Cristo e Maria representados de forma digna e perfeita •— é inútil, nossos joelhos não se dobram mais” (Theorie Werkausgabe. v. 13, p. 142).
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para o sistema econômico e político, como a religião subjetivada e uma filosofia cientificizada, mas preserva necessidades residuais que não podem ser satisfeitas no “sistema das necessid.ades”, as da sociedade burguesa. Por isso, a esfera da arte permaneceu singularmente invulne rável contra a crítica da ideologia — até o nosso século. Quando tam bém ela sucumbiu à crítica da ideologia, a superação irônica da religião e da filosofia já estavam diante dos nossos olhos.’
Hoje em dia, a religião não é mais nem sequer um assunto privado; mas, no ateísmo das massas também se extinguiram os conteúdos utó picos da tradição. A filosofia perdeu suas pretensões gietafísicas, mas com o cientificismo dominante desagregaràm-se também as construções perante as quais uma realidade imperfeita precisava justificar-se. No meio tempo, já está eminente uma “superação da ciência” que, na verdade, destrói a ilusão da autonomia, mas menos para sujeitar a ciência a um processo de direção discursiva que para funcionalizá-la com vistas a interesses imediatos^3. É também nesse contexto que deve ser vista a crítica de Adorno a uma falsa superação da arte, que sem dúvida destrói a aura, mas que ao liquidar a 'organização autoritária (herrschaftliche Organisatiori) da obra de arte liquida também a sua aspiração à verdade. A desilusão com as falsas superações, seja da religião, da filosofia ou da arte, pode provocar uma reação de pausa, senão de hesitação, a tal ponto que se torna preferível desconfiar da transformação em práxis do Espírito Absoluto que concordar com sua liquidação. A isso, vincula-se uma opção pela salvação esotérica dos momentos verdadeiros. Isso diferencia Adorno de Benjamin, o qual insiste em que os momentos verdadeiros da tradição só podem ser salvos para a condição messiânica por meios exotéricos, ou não poderão, simplesmente, ser salvos. Contra a falsa superação da religião, Adorno, ateu como Benjamin (embora não da mesma forma), faz valer os conteúdos utópicos como fermentos de um inflexível pensamento crítico, mas não sob a forma de uma iluminação profana generalizada. À falsa superação da filosofia, Adorno, antipositivista como Benjamin, contrapõe um pensamento que introduz o impulso transcendente numa crítica de certa forma autárquica, mas que não penetra nas ciências positivas, para tornar-se geral sob a forma de uma auto-reflexão da ciência. À falsa superação da arte autônoma, Adorno contrapõe Kafka e Schoenberg, a modernidade hermética, mas25 25 Essa tese é defendida por Behrmann, J.; Boehme, G.; Daele, W. van den e Krohn, W. Alternativen in der Wissenschafí [Alternativas na ciência], manuscrito.
não a arte de massas, que torna públicas as experiências envoltas na aura. Depois da leitura do manuscrito do ensaio sobre a obra de arte, Adorno objeta a Benjamin (numa carta de 18 de março de 1936: Adorno. Ueber Walter Benjamin. p. 126-34) “que o centro da obra de arte autônoma não pertence ele próprio à dimensão mítica . . . Por mais dialético que seja o seu trabalho, ele não o é tanto quanto a própria obra de arte autônoma; ele negligencia a experiência elementar, e para mim, em minha própria experiência musical, cada vez mais evidente, de que exatamente a tenacidade mais extrema em levar às últimas consequências a lei tecnológica da arte autônoma, transforma essa arte, e em vez de tabuizá-la e fetichizá-la, aproxima-a da condição da liberdade, e do conscientemente produzível e factível” (Ibid., p. 127-8).
Somente a obra de arte formalista, inacessível às massas, resiste, depois da decomposição da aura, às imposições da assimilação às necessidades e atitudes dos consumidores, determinadas pelo mercado. Adorno segue uma estratégia da hibernação, cuja fraqueza reside visivelmente em seu caráter defensivo. É interessante observar que a tese de Adorno pode ser comprovada com exemplos da literatura e da música, na medida em que elas permanecem dependentes da leitura solidária e da audição contemplativa, sinalizando, portanto, a estrada real da individualização burguesa. Com relação às artes que dependem de uma recepção coletiva — arquitetura, teatro, pintura — assim como para a literatura e a música de grande consumo (esta vinculada aos media eletrônicos), delineia-se um desenvolvimento que transcende a mera indústria cultural e não invalida, a fortiori, a esperança de Ben jamin numa iluminação profana generalizada. Sem dúvida, também para Benjamin a desritualização da arte com porta um sentido ambíguo. Tudo se passa como se Benjamin receasse a anulação do mito sem uma libertação correspondente —■ como se o mito se confessasse, finalmente, vencido, transformando, no entanto, sub-repticiamente, os seus conteúdos em tradição, para assim triunfar, mesmo na derrota. As imagens que somente a tradição pode arrancar à estrutura mais íntima do mito estão ameaçadas de extinguir-se, depois que o mito revestiu-se com o manto do progresso, perdendo para sempre a ocasião de serem salvas pela crítica. O mito aninhado na modernidade e que se exprime por intermédio da fé positivista no progresso, é o inimigo ao qual Benjamin contrapõe todo o pathos da salvação. A desritualização, longe de ser uma garantia da libertação, representa a ameaça de uma perda específica de experiência.
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IV Benjamin sempre manifestou uma atitude ambivalente com relação à aura 26. Na aura da obra de arte, com efeito, está contida a experiência histórica, carente de renovação, de um “agora” já passado; o desapare cimento antidialético da aura seria uma perda daquela experiência. Já no tempo em que o estudante Benjamin aventurava-se a esboçar o programa da filosofia vindoura (A. S. v. 2, p. 27-41) o conceito de uma experiência não-mutilada ocupava o centro das suas reflexões.’ Benja min polemizava então contra a “experiência por assim dizer reduzida ao ponto zero, ao. mínimo de significação”, isto é, corijra a experiência dos objetos físicos, para os quais Kant havia orientado paradigmaticamente sua tentativa de analisar as condições da experiência possível. Benjamin defende, em contraposição, a experiência dos povos primiti vos e dos loucos, dos clarividentes e dos artistas. Nessa época, ainda, esperava da metafísica a reconstituição de um continuum sistemático da experiência. Mais tarde, atribuiu essa tarefa à crítica de arte; ela deveria transpor o belo na esfera do verdadeiro, pois “a verdade não é um desvendamento que aniquila o segredo, mas uma revelação, que lhe faz justiça” {Origem da tragédia alemã, p. 12). O lugar da “bela ilusão”, como invólucro necessário, é finalmente ocupado pelo conceito da aura, que ao se desagregar, revela o segredo da experiência com plexa: “A experiência da aura baseia-se na transposição de uma reação, co mum na sociedade humana, para a relação do inanimado ou do natural com o homem. Aquele que é observado ou se julga observado, ergue os olhos. Experimentar a aura de uma manifestação significa dotá-la do poder de erguer os olhos” (Baudelaire. p. 157).
A manifestação aurática somente pode ocorrer na relação intersubjetiva do eu com seu interlocutor, o alter-ego. Quando se atribui à natureza o dom do olhar, o objeto transforma-se num interlocutor. A animação universal da natureza é a característica de visões dó mundo mágicas, nas quais a separação entre a esfera dos processos objetivados, que manipulamos, e a esfera intersubjetiva, em que nos encontramos para nos comunicarmos uns com os outros, ainda não está consumada. Em vez disso, ò mundo é organizado segundo analogias e correspondên 26 “Na expressão fugidia de um rosto humano, nas velhas- fotografias, irradia-se a aura pela última vez. É isto que lhes dá uma beleza melancólica e incomparável” M.5., v. 1, p. 158).
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cias, como é ilustrado pelo exemplo das classificações totêmicas. Um resíduo subjetivista da percepção de tais correspondências é constituído pelas ligações cinestéticas 27. A partir da manifestação aurática, Benjamin constrói o conceito enfático de uma experiência que carece da conservação e da atualização crítica para que a promessa messiânica da felicidade possa algum dia realizar-se; por outro lado, fala afirmativamente da perda da aura. Essa ambiguidade exprime-se também no fato de que Benjamin destaca na arte autônoma exatamente aquelas contribuições que caracterizam a arte desritualizada. Também a arte inteiramente despida da sua dimen são de culto, da qual o surrealismo (cujos representantes retomaram o conceito baudelairiano das correspondances) constitui a forma exem plar, tem o mesmo objetivo que a arte autônoma, òu seja, experimentar os objetos na rede de correspondências redescobertas, como interlo cutores capazes de darem felicidade:
“As correspondances constituem a instância à luz da qual o objeto da arte é encontrado como algo que deve ser fielmente reproduzido, màs que por isso mesmo é completamente aporético. Se quiséssemos imitar essa aporia'no próprio material da linguagem, chegaríamos ao ponto de determinar o belo como o objeto da experiência na condição do semelhante” (Ibid., p. 148, nota). A ambigüidade só desaparece quando separamos o momento religioso contido no conceito da manifestação aurática, dos momentos gerais. Com a superação da arte autônoma e a desagregação da aura, desapa recem o acesso esotérico à obra de arte e sua distância religiosa com relação ao observador, e com ela a atitude contemplativa inerente ao prazer artístico solitário; mas, aquela experiência liberada pela ruptura do invólucro da aura já estava contida na experiência da aura, ou seja, a transformação do objeto em interlocutor. Abre-se, dessa forma, toda uma gama de correspondências surpreendentes entre a natureza animada e a inanimada, nas quais as próprias coisas encontram-se conosco nas estruturas de uma intersubjetividade vulnerável. Em tais 27 “O essencial é que as correspondances conservam um conceito de experiência que encerra elementos religiosos. Somente na medida em que se apropriou desses ele mentos, pode Baudelaire avaliar integralmente o sentido exato do colapso do qual ele, como homem moderno, foi testemunha. Somente assim pode ele reconhecer, nesse colapso, o desafio que a . ele só se dirigia, e que ele incorporou nas Fleurs du Mar (Ibid., p. 147). “Baudelaire descreve olhos dos quais se pode dizer que haviam perdido a capacidade de olhar.” (Ibid., p. 158).
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estruturas, a essência que se manifesta escapa ao alcance de um ime diato, privado de distanciamento; â proximidade do outro, rompida na distância, é o indício da realização possível e de uma felicidade mútua 28. 29
A intenção de Benjamin orienta-se para um estado de coisas em que as experiências esotéricas da felicidade se tomem públicas e univer sais. Porque somente em um contexto comunicativo em que a natureza esteja incluída de uma forma fraterna e renovada, podem também os sujeitos erguer os seus olhos. A desritualização da arte encerra o risco de que a obra de arte também abra mão de seu conteúdo de experiência, ao ^enunciar à sua aura e, com isso, tome-se meramente banal; a extinção da aura abre, por outro lado, a possibilidade de generalizar e eternizar a experiência da liberdade. A nudez da felicidade, tomada exotérica, que dispensa a refração aurática, tem afinidades com a experiência do místico, que em estado de êxtase se interessa mais pela atualidade do que está pró ximo e pela presença sensível de Deus que por Deus mesmo. Apenas, o místico fecha os olhos e está só; sua experiência é tão esotérica como sua transmissão. É justamente esse momento que separa a experiência da felicidade, visada pela crítica salvadora de Benjamin, da religiosa. É por isso que Benjamin chama de profana a iluminação que ele exemplifica através dos efeitos das obras surrealistas, que não são mais arte, no sentido da arte autônoma, mas manifestação, palavra, documen to, bluff, e falsificação. Tais obras trazem à consciência o fato de que "só penetramos o segredo na medida em que o reencontramos no quo tidiano, pela força de uma ótica dialética, que reconhece o quotidiano como indevassável e o indevassável como quotidiano” (A. S. v. 2, p. 213). A experiência é profana porque é exotérica20.
Nenhuma interpretação, hem sequer a daqueles que procuram insistentemente lutar pela alma do amigo, da qual à contribuição de Scholem no volume Sobre a atualidade de Walter Benjamin constitui 28 Sobre as especulações de Adorno, relativas à reconciliação com a, natureza, especiãlmente em Mínima Moralia (Frankfurt, 1951), cf. meus dois ensaios em: Philosophisch-politische Profile [Perfis filosófico-políticos]. Frankfurt, 1971. p. 176-99. [Cf/p. 146-9 da presçnte antologia. (N. do Org.)] 29 É também por esse motivo que Benjamin não aceita o êxtase privado do hàxixé como o modelo dessa experiência: "O leitor, o pensador, o flaneur, e também aquele que espera, representam tipos de iluminados, da mesma forma que o come dor do ópio, o sonhador e o embriagado. E são mais profanos” (Ibid., p. 213).
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um exemplo fascinante co, pode dissimular a ruptura de Benjamin com o esoterismo. As opiniões políticas obrigam Benjamin, env vista do fascismo ascendente, a romper com aquele esoterismo da verdade, para o qual o jovem Benjamin reservara o conceito dogmático da doutrina01. Benjamin escreveu uma vez a Adorno “que a especulação só inicia o seu voo; necessariamente ousado, com alguma perspectiva de sucesso, quando em vez .de usar as asas de cera do esoterismo, vê sua força somente na construção” {Cartas 2. p. 793).
De forma igualmente decidida, volta-se Benjamin contra, o esoterismo da auto-realização e da felicidade. Benjamin deseja, e isto soa quase como uma crítica a Scholem, “a superação {Ueberwindung) verdadeira, criadora, da iluminação religiosa. . . Ela consiste numa iluminação profana, de inspiração materialista, antropológica”, para a qual o êxtase solitário representa; na melhor das hipóteses, a ante-sala (A.S. v. 2, p. 202). Se voltarmos, neste ponto, à tese de Benjamin sobre a superação da arte autônoma, poderemos compreender por que ela não pode ser uma tese orientada para a crítica da' ideologia: sua teoria da arte é uma teoria da experiência, mas não a experiência da reflexão32 30. * A experiência da aura explodiu o invólucro aurático nas formas da ilumi nação profana, e tornou-se exotérica. Ela não deve a sua existência a uma análise que traga à luz o recalcado e libere o reprimido. Ela é obtida de forma distinta do que teria sido alcançado através da reflexão, ou seja, através da retomada de uma semântica que é extraída do cerne do mito, fragmento por fragmento, e ao mesmo tempo liberada e conservada, messianicamente, nas obras da grande arte, isto é, a serviço da emancipação. O que é inexplicável nessa concepção é, contudo, a singular sucção contra a qual uma crítica salvadora deve defènder-se: sem o seu esforço permanente, segundo essa concepção, os depoimentos, transmitidos pela tradição, relativos a libertações espo30 Zur Aktualitaef Walter Benjamins [Sobre a atualidade de Walter Benjamin]. Por ocasião do 80.° aniversário de Walter Benjamin organizado por Siegfried Unseld. Frankfurt, 1972. si "E, com isso, podemos finalmente exprimir a exigência da filosofia vindoura da seguinte forma: à base do sistema kantiano, produzir um conceito de conhecimento que corresponda ao conceito de uma experiência, da qual o conhecimento é a doutrina” {A.S, v. 2, p. 39). 82 “Dever-se-ia demonstrar que a teoria da experiência representa o centro (que nada tem de secreto) de todas as concepções de Benjamin.” Krumme, P. Zur Konzeption der dialektischen Bilder [Sobre a concepção das imagens dialéticas]. In: Text und Kritik [Texto e critica], p. 80, nota 5.
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radicas do mito e os conteúdos semânticos a ele arrancados, cairiam no vazio; os conteúdos da tradição sucumbiriam, sem deixar vestígios, ao esquecimento. Por quê? Benjamin era visivelmente de opinião que o sentido não é um patrimônio que se possa multiplicar e que as experiên cias do convívio sadio com a natureza, com os outros e com o próprio eu não podem ser produzidas arbitrariamente. Benjamin pensava, ao contrário, que o potencial semântico, ao qual os homens recorrem para investir o mundo com sentido e para tomá-lo experimentável, está enraizado, em primeiro lugar, no mito, e deve ser desvinculado- dele — mas que este potencial não pode ser ampliado, mas somente transfor mado. 'Benjamin receia qúe durante essas transformações as energias semânticas possam evadir-se e perder-se para a humanidade. A filosofia lingüística de Benjamin fornece um ponto de apoio para essa perspectiva baseada na experiência histórica da decadência Çverfallsgeschichtliche Perspektive)\ nela se funda a teoria da experiência83.
V Benjamin aderiu durante toda sua vida a uma teoria mimética da linguagem. Também em seus trabalhos posteriores ele retoma à con cepção do caráter onomatopaico das palavras individuais e mesmo da linguagem como um todo. Para ele, é inconcebível que a palavra tenha uma relação acidental com a coisa. Benjamin compreende as palavras como nomes; mas, ao dar nomes às coisas, o homem pode atingir ou não a sua essência: o ato de nomear é uma espécie de tradução do inominado nos nomes, a tradução da linguagem incompleta da natureza para a linguagem humana. Benjamin não viu a especificidade da lin guagem humana em sua sintaxe (pela qual não se interessa), nem na função representativa (que ele considera subordinada à função expres siva 33 34 *). Benjamin não se interessa pelas propriedades especificamente 33 Já no Programa da Filosofia Vindoura encontra-se a referência: “Um conceito (da filosofia) obtido pela reflexão sobre a essência lingüística do conhecimento produzirá um conceito de experiência correspondente, que abrangerá áreas, cuja classificação sistemática autêntica Kant nao conseguiu realizar” (zí.S. v. 2, p. 38-9). Hamann já havia tentado fazê-lo, durante a vida de Kant. 34 “A palavra deve transmitir algo. Este é o pecado original do espírito da lin guagem. A palavra como acompanhamento exterior (aeusserlich miteilendes), por assim dizer uma paródia da palavra expressamente . comunicável (ausdruecklich mitteilbai-y' (A.S. v. 2, p. 22). * Jogo de palavras intraduzível, cujos elementos são, por um lado init-teilen, comu nicar, dividir, e por outro, mit-eilen, literalmente apressar-se com, concorrer. (N. do Org.)
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humanas da linguagem, mas pela função que a vincula à linguagem animal: acredita que a linguagem expressiva é somente uma forma daquele instinto animal que se manifestaria nos movimentos expressi vos. Ele relaciona esses movimentos, por sua vez, à faculdade mimética de perceber e reproduzir semelhanças. Exemplo disso é a dança, em que se fundem expressão e mímesis. Cita uma frase de Mallarmé:. “A dançarina não é uma mulher, mas uma metáfora, que pode exprimir um aspecto entre as formas elementares de nossa existência: espada, copo, flor e outros” (A. S. v. 2, p. 91). A mímesis original é cópia das correspondências:
“Ê sabido que o círculo vital, outrora regido pela lei do semelhante, era abrangente; governava tanto o microcosmo como o macrocosmo. Aquelas correspondências naturais somente recebem sua importância autêntica com o conhecimento de que cada uma delas estimula e des perta a faculdade mimética, que lhes responde no homem”. O que se exterioriza na fisionomia da linguagem, como nos gestos em. geral, não é uma simples condição subjetiva, mas através dela o nexo ainda não-intérrompido do organismo humano com a natureza circun dante: os movimentos expressivos estão sistematicamente vinculados às qualidades deflagradoras do ambiente.
Por mais aventurosa que pareça essa teoria da linguagem, é correta a suposição de Benjamin de que as expressões constituem a camada semântica mais antiga. A riqueza expressiva da linguagem dos primatas está bem pesquisada, e “na medida em que a linguagem constitui uma expressão emocional através de sons, não existe nenhuma diferença fundamental com relação à faculdade expressiva dos primatas não-humanos” 85.
Pode-se especular que um. acervo semântico básico, originário das formas subumanas da comunicação, teria sido transmitido à linguagem 35 Ploog, D. Kommunikation in Affengesellschaften und deren Bedeutung fuer die Verstaendigungsweise der Menschen [Comunicação nas sociedades simiescas e sua significação para as formas de compreensão entre os homens]. In: Gadamer, H.-G. e Vogler, P., Neue Anthropologie [Antropologia nova]< Stuttgart, 1972. v. 2, p. 141-2. Quanto à filosofia da linguagem de Benjamin, até agora negligenciada no debate, cf. Holz, H. H. Prismatisches Dénken [Pensamento prismático]. In: Ueber W. Benjamin [Sobre W. Benjamin]. p. 62-110.
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humana, apresentando-se sob a forma de um potencial fixo de significa ções, com as quais os homens interpretam o mundo à luz de suas necessidades, produzindo, assim, uma rede de correspondências. Como quer que seja, Benjamin pressupõe essa faculdade mimética, com a qual estaria equipada a espécie no limiar da hominização, antes de ingressar no processo da autoprodução. Entre as convicções fundamentais de Benjamin (não-marxistas), figura a de que o sentido não é produzido pelo trabalho, como o valor, podendo, no máximo, ser transformado com o processo de produção 36. A .interpretação historicamente variável das necessidades alimenta-se de um potencial que a èjspécie deve gerir cuidadosamente, porque pode transformá-lo, mas não enriquecê-lo:
“Nesse sentido, deve-se considerar que nem as forças miméticas, nem os objetos-miméticos (que, podemos acrescentar, conservaram algo das qualidades estimulantes do impositivo e do marcante), permaneceram inalterados no curso dos milênios. Pode-se, pelo contrário, pressupor que o dom de produzir semelhanças — por exemplo na dança, da qual essa é a mais antiga função — e, portanto, também o dom de reconhece-las, transformaram-se no curso da História. A direção dessa mudança parece ser determinada pela crescente fragilidade da faculdade taimética” (Ibid., p. 96-7).
Esse processo tem uma significação ambivalente. Benjamin vê na facul dade mimética não somente a fonte da riqueza das significações, que as necessidades, liberadas na. forma de vida sócio-cultural, fazem jorrar, através da linguagem, sobre um mundo que somente através dela se humaniza; ele vê no dom de perceber semelhanças também o rudimento da compulsão, outrora onipotente, de tornar-se semelhante, isto é, de ser forçado à adaptação, ou seja, a hereditariedade animal. Nesse sen tido, a faculdade mimética é também o signo de uma dependência original com relação aos poderes da natureza: ela se manifesta nas práticas mágicas, sobrevive nas visões animísticas do mundo e se con serva no . mito. A tarefa da humanidade consiste em liquidar aquela dependência, sem qúe as forças da mímesis e o fluxo das energias semânticas se extingam; pois, com isso, malograria a capacidade poética 88 A tese de que “o sentido, a significação, etc. — em termos marxistas — só podem ser gerados pelos processos históricos do trabalho da espécie humana, nos quais ela própria se produz, não foi jamais apropriada por Benjamin”. Lindner, B. Op. cit. p. 55.
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de interpretar o mundo à luz das necessidades humanas. Este é o conteúdo profano, da promessa messiânica. Benjamin compreendeu a história da arte, desde sua fase religiosa até a pós-aurática, como a história das tentativas de reproduzir aquelas semelhanças ou correspon dências não-sensoriais, mas ao mesmo tempo dissipar o sortilégio que outrora envolvia essa mímesis. Benjamin chamava divinas essas tenta tivas, porque rompem o mito e, no entanto, preservam e liberam a sua riqueza. Tendo seguido até este ponto a reflexão de Benjamin, temos que colocar a questão da origem daquelas forças divinas, ao mesmo tempo preservadoras e liberador as. Também a crítica, com cuja força con servadora e revolucionária conta Benjamin, deve dirigir-se retrospec tivamente a épocas passadas: ela encontra diante de si as formações nas quais depositaram-se os conteúdos extirpados ao mito, ou seja, os documentos de atos passados de libertação. Quem produz esses documentos e quais os seus autores? Visivelmente, Benjamin não queria confiar, idealisticamente, numa iluminação imediata por parte dos gran des autores, pois tal fonte não teria nada de profano. É verdade que ele estava muito próximo de uma resposta idealista a tal questão, pois uma teoria da experiência' fundada em uma teoria mimética da lingua gem não autoriza nenhuma outra resposta. Mas, a isso se opunham as opiniões políticas de Benjamin. Benjamin que descobrira com Bachofen a pré-história, que conheceu Schuler, que estudou e admirou Klages,- e que.se correspondeu com Cari Schmitt, esse Benjamin nã podia, como intelectual judeu da Berlim dos anos 20, ignorar onde estavam os seus (e nossos) inimigos. Éssa consciência levou-o a dar uma resposta materialista.
Este é o pano de fundo da recepção do materialismo histórico, que Benjamin, no entanto, precisava reconciliar com a concepção da história messiânica desenvolvida segundo o modelo da crítica salvadora. Esse materialismo histórico “suavizado” deveria dar uma resposta, ao mesmo tempo materialista, e compatível com a própria teoria benjaminiana da experiência, à questão em aberto relativa ao sujeito da arte e da His tória. O equívoco de Benjamin consistiu em supor que tal tentativa (que correspondia ao desejo dos seus amigos marxistas) fora, de fato, bem sucedida. O conceito de cultura fundado na crítica da ideologia tem a van tagem de incluir metodicamente a tradição cultural como parte da evolu ção social e tomá-la acdssível a uma explicação materialista. Benjamin recuou aquém desse copceito, porque aquela crítica que apropria a
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história da arte na perspectiva da redenção de momentos messiânicos e da conservação de um potencial semântico ameaçado não pode ser compreendida como a reflexão de um processo de autoformação, mas como a identificação e a repetição de experiências enfáticas e conteúdos utópicos. Benjamin também concebeu a filosofia da História como teoria da experiência87. Nesse quadro de referência, contudo, uma explicação materialista da história da arte, à qual Benjamin não quer renunciar por -motivos políticos, não é possível de uma forma imediata. Por isso, tenta ele uma integração dessa doutrina com os postulados básicos do materialismo histórico. Exprime essa intenção, na primeira tese sobre a filosofia da História: o anão corcunda — a teologia — deve tomar a seu serviço o fantoche —- o materialismo histórico **. Essa tentativa está fadada ao fracasso, porque a teoria materialista do desenvolvimento social não pode ser integrada na concepção anarquista dos agoras que interrompem intermitentemente o curso do destino. Uma concepção antievolucionista da História não pode ser usada, como um capuz de monge, para recobrir o materialismo histórico, que supõe progressos não só na dimensão das forças produtivas como também na da dominação. Minha tese é que Benjamin não realizou a sua intenção de- unificar o iluminismo e a mística, porque o teólogo que nele existia não conseguiu colocar a teoria messiânica da experiência a serviço do materialismo histórico. Isto se pode conceder a Scholem. Quero mencionar duas dificuldades: a singular adaptação da crítica marxista da ideologia e a idéia de uma arte politizada. 87 Isio é demonstrado entre outras pela 14.a Tese sobre a filosofia da História; Benjamin interessa-se mais pelos conteúdos de experiência da Revolução Francesa que pelas ’ alterações objetivas que ela introduziu: “A Revolução Francesa concebeu-se como uma Roma ressuscitada. Ela aludia à velha Roma exatamente como a moda alude a um vestuário passado”. * É o seguinte o texto de Benjamin ao qual refere-se Habermas: “É conhecida á lenda do autômato capaz de responder, numa partida de xadrez, a todas as jogadas do seu adversário, ganhando assim a partida. Um fantoche com traje turco, narguilé na boca, está sentado diante do tabuleiro que repousa sobre uma grande mesa. .. Na verdade, um anão corcunda está acocorado ao pé da mesa. Mestre na arte do xadrez, dirige, por meio de fios a mao do fantoche. Pode-se representar na filosofia uma réplica desse aparelho. O fantoche chamado materia lismo histórico ganhará sempre. Ele pode ousadamente desafiar quem quer que seja, se tomar a seu serviço a teologia, hoje, como se sabe, pequena e feia, e que, aliás, não ousa mais mostrar-se” (Benjamin, W. Ueber die Geschiçhte — Tese I — Op. cit. p. 251) . Benjamin refere-se, aqui, provavelmente, ao autômato construí do por Wolfgang v. Kempelen (1734-1804), mencionado no conto de Hoffmann, “Kater Murr”. (N. do Org.)
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VI Benjamin redigiu, em 1935, a pedido do Instituto de Pesquisa Social {Instituí für Sozialforschung) uma exposição em que apresenta pela primeira vez alguns temas do trabalho sobre as Passagens {Paris, capital do século XIX). Olhando retrospectivamente para a longa história que caracterizou a gênese deste trabalho, fala Benjamin, em carta a Adorno, de um processo de fusão que
“conduziu todo complexo de pensamentos, originalmente. motivado pela metafísica, a um estado de agregação em que o mundo das imagens dialéticas é imunizado contra as objeções que a metafísica provoca” {Cartas 2. p. 664).
Ele remete aqui às “novas e abrangentes perspectivas sociológicas que fornecem o quadro de referência, teoricamente assegurado, das armações interpretativas {interpretative Verspannungen)” (Ibid., p. 665).
A resposta de Adorno a essa exposição e a sua crítica ao primeiro estudo sobre Baudelaire que Benjamin ofereceu três anos mais tarde à Zeitschrift für Sozialforshung *, refletem, em minha opinião de forma muito precisa, o modo com que Benjamin se relaciona com as categorias marxistas, e isso tanto no que Adorno compreende como no que deixa de compreender* 88. A impressão de Adorno é que Benjamin se violenta no trabalho sobre as Passagens para fazer ao marxismo concessões que não beneficiam nem a este nem a Benjamin. Censura o procedimento de “aplicar materialisticamente características óbvias, retiradas isoladamente da esfera da superestrutura, relacionando-as a características correspon dentes da infra-estrutura, de forma não-mediátizada e até mesmo causal” (Ibid., p. 705).
Refere-se, em especial,, ao uso meramente metafórico da categoria do ■fetichismo da mercadoria, que Benjamin, numa carta a Scholem, consi * Órgão do Instltut filr Sozialforshung. (N. dq Org.) 88 Cf. as duas cartas de Adorno a Benjamin, de 2 de agosto de 1935 e de 10 de novembro de 1938 {Briefe [Cartas], v. 1, p. 671 et seqs. e p. 782 et seqs.) e a resposta de Benjamin (ibid., p. 790 et seqs.). Cf. também Taubes, J. Kultur und Ideologie [Cultura e ideologia]. In: Spaetkapitalismus oder Industriegesellschaft? [Capitalismo tardio ou sociedade industrial?]. Stuttgart, 1969. p. ,117-38.
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derou tão central para o novo trabalho quanto o conceito da tragédia para o livro relativo ao barroco. Adorno põe em evidência a tendência superficialmente materialista de “relacionar os conteúdos de Baudelaire de forma imediata com características afins da história social de seu tempo, sempre que possível as de caráter econômico”. Com isso, Benjamin dá a impressão de “um nadador friorento que se joga na água gelada”. Esse julgamento agudo, que não perde em pertinência, mesmo considerando-se. sua rivalidade com Brecht, contrasta singularmente com a insistência pouco perspicaz em que o seu amigo introduza (naçhholeri) a “teoria omitida” e a “interpretação ausente”, para que a mediação dialética entre as características da cultura e o conjuntq do processo social se torne visível. Adorno - nunca hesitou, de forma explícita, em atribuir a Benjamin exatamente a intenção crítico-ideológica subjacente a seus próprios trabalhos. E nisso estava equivocado.
Tal fato pode ser demonstrado de forma exemplar na exigência de que Benjamin revisse o conceito da imagem dialética, central para a teoria da experiência — para que “uma purificação da'própria teoria pudesse ser alcançada” (Ibid., p. 672). Adorno não vê a legitimidade do projeto de elaborar uma pré-história da modernidade, que visa à descodificação hermenêutica de uma semântica soterrada e ameaçada de esquecimento, precisamente através da interpretação de imagens dialé ticas. Para Benjamin, desprendem-se, sob o estímulo do novo, em que se realiza a continuidade do sempre-igual, fantasias imagísticas do arcaico, que “produzem, na interpenetração do novo, a utopia”. Benja min fala, em sua exposição, do inconsciente coletivo, no qual deposi tam-se as experiências. Adorno, com razão, critica essa terminologia. Mas, equivoca-se quando julga que o desencantamento da imagem dialética necessariamente reconduz ao pensamento mítico em sua forma intata; porque o arcaico contido na modernidade, no qual Adorno veria antes o inferno que a idade de ouro, contém exatamente aqueles poten ciais de experiência que remetem à condição utópica da sociedade liberada. O modelo desse processo é o retomo que a Revolução Fran cesa efetua à antiguidade romana. Aqui, Benjamin utiliza a comparação com o aproveitamento dos elementos do sonho no momento do desper tar, que o surrealismo transformou numa verdadeira, técnica e que Benjamin considera erroneamente o caso exemplar do pensamento dia lético. Adorno interpreta essas expressões de forma excessivamente literal. Deslocar a imagem dialética, como um sonho, para o interior da consciência, parece-lhe uma deformação subjetivista. O fetichismo da mercadoria, objeta ele a Benjamin, não é um fato da consciência, mas um fato dialético no sentido mais eminente de produzir consciência,
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ou seja, imagens arcaicas nos indivíduos burgueses alienados. Mas, Benjamin não precisa submeter-se a essa exigência, derivada da crítica da ideologia; Benjamin não quer, através das formações da consciência, retroceder até a objetividade de um processo de valorização, por inter médio do qual o fetichismo da mercadoria adquire seu poder sobre as consciências dos indivíduos. Benjamin deseja investigar ■ — e efetiva mente não precisa ir além disso — “a forma de percepção do fetichismo da mercadoria na consciência coletiva”, porque as imagens dialéticas são fenômenos de consciência e não, como supõe Adorno, fenômenos deslocados para a consciência, Sem dúvida, o próprio Benjamin equivocou-se quanto à diferença entre o seu método e a crítica marxista da ideologia. Nos manuscritos póstumos do trabalho sobre as Passagens encontra-se o seguinte trecho: “Se a infra-estrutura de certa forma determina a superestrutura em seu substrato de experiência e pensamento, mas essa determinação não implica num mero reflexo, como deve ela ser caracterizada, abstraindo-se inteiramente de sua gênese (!)? Sob a forma da expressão. A superestrutura é a expressão da infra-estrutura. As condições econô micas, sob -as quais a sociedade existe, encontram sua expressão na superestrutura” (Apud Tiedemann. Op. cit. p. J06).
Expressão é uma categoria da teoria benjaminiana da teoria da expe riência; refere-se àquelas correspondências não-sensoriais entre a natu reza animada e a inanimada, percebidas pelo olhar fisionômico da criança e do artista. Expressão é, para Benjamin, uma categoria semân tica mais próxima do pensamento de Kassner e do próprio Klages que do teorema base-superestrutura. O mesmo mal-entendido manifesta-se com relação à crítica da ideologia, como Adorno a praticou, quando Benjamin observa sobre alguns capítulos do livro sobre Wagner: “Uma das tendências que me interessaram especialmente nesse trabalho é a de localizar o fisionômico, quase sem mediação psicológica, no espaço social’’ (Cartas. 2, p. 741).
De fato, Benjamin não tinha em mente a psicologia, mas menos ainda uma crítica da consciência necessariamente falsa. Sua crítica diri gia-se às fantasias imagísticas (Bildphantasien) coletivas, manifestando-se no caráter expressivo da vida quotidiana assim como na literatura e na arte, e que se originam da comunicação secreta entre o antigo potencial de significações das necessidades humanas e as condições de vida geradas pelo capitalismo.
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Adorno apela na troca de cartas sobçb o trabalho das Eassagens para o objetivo, “em vista do qual V. sacrificou a teologia” (Cartas 2, p. 672). Com efeito, Benjamin efetuou tal sacrifício, na medida em que passou a aceitar a iluminação mística somente como uma experiência profana, isto é, de uma experiência exotérica generalizável. Mas Adorno, que sem dúvida era melhor marxista que Benjamin, não percebeu que seu amigo jantais renunciara de fato à sua herança teológica, na medida em que sempre imunizou sua teoria mimética da linguagem, sua teoria messiânica da História e sua compreensão conservadora e revolucionária da crítica contra as objeções do materialismo, supondo-se que não se tratasse de um simples fantoche manipulado. Isto se demonstra mesmo quando Benjamin aprêsentava-se como comunista engajado, tal como em sua posição a favor da politização instrumental da arte. Interpreto essa posição, expressa de maneira mais clara num ensaio sobre “O autor como produtor” (Ensaios sobre Brecht. p. 95-116) como uma manifestação de embaraço, decorrente do fato de que a crítica salvadora, ao contrário da conscientizadora, não produz uma relação imanente com a prática política.
A crítica da ideologia é uma força política quando desmascara o interesse particular dos dominadores, atrás do interesse aparentemente geral. Na medida em que ela abala as estruturas normativas que man têm cativa a consciência dos oprimidos e desemboca na ação política, visa a crítica da ideologia à liberação da violência institucional embutida nas instituições. EÍa orienta-se para a anulação participatória dessa violência liberada. A violência estrutural pode também ser liberada de cima, de forma preventiva ou reativa. Assume, então, a forma da semimobilização fascista das massas, as quais não anulam tal violência libe rada, mas a transformam, difusamente, em ação (ausagiererí)*. Demonstrei que o tipo de crítica exercida por Benjamin está deslo cada no quadro de referência de tal crítica da ideologia. Uma crítica que se concebe como um salto em épocas passadas a fim de salvar potenciais semânticos tem reláção altamente mediatizada com a prática política. Sobre isso, Benjamin jamais alcançou clareza suficiente.
Em um dos seus primeiros ensaios “Sobre a crítica da violência”, distingue ele entre a violência que cria o direito e a que o mantém: esta é a violência legítima, exercida pelos órgãos do Estado; aquela é a * termo do vocabulário psicanalítico, habitualmente traduzido pela expressão inglesa acting out: ação, em geral de caráter compulsivo, originária durante o tratamento psicanalítico e na qual se manifesta a presénça do recalcado. (N. do Org.)
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violência estrutural, latente em todas as instituições e liberada durante a guerra.ou a guerra civil80.
A violência criadora do direito não tem, como a conservadora, caráter instrumental; ela se “manifesta”. . A violência estrutural incorporada nas^ interpretações e instituições manifesta-se naquelas esferas que Benjamin,' como Hegel, reservaram ao destino: o destino da guerra e o da família. Obviamente, as modi ficações nessas esferas da História não modificam nada:
“Um olhar voltado para o imediato só consegue perceber um vaivém dialético nas manifestações da violência, em que as que criam o direito alternam com as que o conservam. . . Este movimento pendular dura somente até que novas formas de violência ou as até agora reprimidas triunfem sobre a violência criadora de direito até agora vigente, fun dando assim um novo direito, ao qual já está imanente uma nova decadência” (Ibid., p. 65).
Reencontramos, assim, a concepção benjaminiana de destino, que afirma um continuum histórico do sempre-igual e exclui modificações cumulativas nas estruturas de dominação. Aqui intervém a figura da crítica salvadora; foi, segundo essa figura, que Benjamin construiu, naquela fase, o conceito d.a violência revolu cionária. Tal conceito reveste, por assim dizer, com as insígnias da práxis, o ato de interpretação que salva os movimentos esporádicos pelos quais a obra de arte do passado irrompe do continuum da História, e que os atualiza no presente. Nisso consiste a violência “pura” ou “divina” que visa à “interrupção do ciclo, submetido ao império das formas jurí dicas de caráter mítico” (Ibid.): Benjamin conceptualiza a violência pura no quadro de sua teoria da experiência; por isso, deve despi-la dos atributos da ação instrumental: a violência revolucionária, como a do mito, é uma violência que se manifesta — é a “manifestação suprema da violência pura entre os homens” (Ibid., p. 66). Benjamin refere-se 89 Neste contexto, Benjamin dirige ao parlamentarismo uma crítica, admirada por Cari Schmitt: “Eles (os parlamentos) oferecem o espetáculo lamentável que conhe cemos, porque não permaneceram conscientes das forças revolucionárias às quais devem sua existência. Na Alemanha em especial, a última manifestação de tais violências não teve quaisquer conseqüências para os parlamentos. Falta-lhes o sentido da violência criadora do direito, • que neles está representado; . não é de admirar, portanto,, que não consigam chegar a decisões dignas dessa violência, mas que cultivem, graças à acomodação, uma forma, ilusoriamente destituída de vio lência, de tratar as questões políticas” (A. S. v. 2, p. 53-4).
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coerentemente ao mito soreliano da greve geral e a uma' práxis anar quista, que caracteriza-se pela tentativa de expulsar da esfera da práxis política o caráter instrumental da ação e de negar a racionalidade instrumental {Zweckrationalitat') a favor de uma “política dos puros meios”:
"Tal práxis não pode ser julgada nem por seus efeitos,’ nem por seus objetivos, mas somente segundo a lei de seus meios” (Ibid., p. 58).
Isto foi em 1920. Nove anos depois, Benjamin escreve o seu famoso ensaio sobre o movimento surrealista, através do qual yiria a prevalecer a idéia baudelairiana de uma confraternização entre sonho e .ação. O que Benjamin concebera como pura violência, concretizou-se de forma surpreendente nas provocações surrealistas; nos atos privados de sentido do surrealismo, a arte transformou-se em ação expressiva, e a separação entre ação poética e ação política foi superada. Assim, pôde Benjamin ver no surrealismo a confirmação de sua teoria estética. Contudo, as ilustrações da violência pura, feitas pelo surrealismo, encontraram em Benjamin um espectador ambivalente. A política como representação ou política poética — ao ver tais realizações, Benjamin não perdia de vista a diferença essencial entre ação política e manifestação: "isto significaria colocar em segundo plano a preparação metódica e disci plinada da revolução, dando preferência a uma prática que oscila entre o ensaio e a véspera da festa” (X. 5. v. 2, p. 212).
Incentivado pelo contato com Brecht, Benjamin desprendeu-se, assim, de suas primitivas inclinações anarquistas e passou a ver a relação entre a arte e a práxis política, predominantemente sob o ponto de vista da utilidade organizacional e propagandística da arte para a luta de classes. A decidida politização da arte era um conceito já elaborado, quando Benjamin dele se apropriou. Ele tinha suas razões para recorrer a esse conceito; porém, tal conceito não tinha qualquer relação sistemática com sua própria teoria da arte e da história. Na medida em que Benjamin o aceita sem restrições, admite tacitamente a impossibilidade de derivar de sua teoria da experiência uma relação imanente com* a práxis política: a experiência do choque hão é uma ação, e a iluminação profana não é um gesto revolucionário 40. 40 Cf. Bohrer, K. H. Die gefaehrliche Phantasie ... [A imaginação ameaçada...], especialmente p. 53 et seqs.; cf. também Lypp, B. Aesthetischer Absolutisnuis und politische Vernunft [Absolutismo estético e razão política]. Frankfurt, 1972.
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A intenção de Benjamin era colocar o materialismo histórico “a serviço” da teoria da experiência; mas tal intenção, conduziria a uma identificação de êxtase e política, que Benjamin não podia desejar. Liberar a tradição cultural dos potenciais semânticos que devem ser preservados num estado de coisas messiânico, não é a mesma coisa que liberar a dominação política da violência estrutural. A atualidade de Benjamin não reside numa teologia da revolução41. Sua atualidade toma-se clara, ao contrário, quando tentamos, num procedimento inverso, colocar sua teoria da experiência “a serviço” do materialismo histórico.
VII Uma teoria dialética do progresso, como a que o materialismo his tórico pretende ser, deve ficar alerta diante do risco de que aquilo que se apresenta como progresso venha a revelar-se posteriormente como a perpetuação de um estado de coisas só aparentemente superado. Por isso, um número cada vez maior de teoremas do contra-Iluminismo são incorporados à dialética do Iluminismo, um número cada vez maior de elementos da crítica do progresso são incorporados à teoria do pro gresso — com vistas a uma idéia do progresso suficientemente sutil e inflexível para não se deixar ofuscar com a mera aparência da emanci pação. Essa idéia deve, no entanto, opor-se à tese de que a própria emancipação mistifica 42. No conceito de exploração desenvolvido pela crítica marxista, a pobreza e a dominação coincidiam. O avanço do capitalismo ensinou-nos, entrementes, a diferenciar entre fome e opressão. As privações que podem ser combatidas pelo aumento do bem-estar são diferentes rias que necessitam, para desaparecerem, um acréscimo de liberdade. Bloch intro duziu essa distinção em seu trabalho sobre “O direito natural e a digni dade humana” — tais diferenciações no conceito do progresso são im postas pelo próprio sucesso das forças produtivas desenvolvidas sob 41 Cf. Salzinger, H. W. Benjamin ■—• Theologe der Revolution [W. Benjamin — teólogo da revolução]. Kuerbiskern, 1969, p. 629-47, 42 Nessa perspectiva, a teoria crítica é vista como uma “sofística moderna”, como por exemplo em Bubner, R. Was ist kritische Theorie? [O que é a teoria crítica?]. In: Hermeneutik und Ideologiekritik [Hermenêutica e crítica da ideologia]. Frank furt, 1971.
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o capitalismo 43. Quanto mais se delineia nas sociedades desenvolvidas a possibilidade de conciliar repressão com bem-estar, vale dizer, gratificar exigências dirigidas ao sistema econômico sem que as exigências genuina mente políticas precisem ser atendidas, tanto mais desloca-se a ênfase, da abolição da fome para a emancipação. Benjamin foi um dos primeiros dentro da tradição marxista que identificou um elemento adicional no conceito de exploração e no de progresso: ao lado da fome e da opressão, a renúncia, ao lado do bem-estar e da liberdade, a felicidade. Benjamin via a experiência de felici dade, que ele chamava iluminação profana, vinculada à salvação da tradição. O desejo de felicidade só pode realizar-se, eSíquanto não se exaurir a fonte daqueles potenciais semânticos de que necessitamos para interpretar o mundo à luz de nossas necessidades. Os bens culturais são a pilhagem que os dominadores arrastam consigo em seu cortejo triunfal; por isso, o processo da tradição deve ser arrancado ao mito. É certo que a liberação da cultura não é possível sem eliminar a repressão anco rada nas instituições. Mas, por um momento surge a suspeita: seria talvez uma emancipação sem felicidade e sem auto-realização tao pos sível quanto um bem-estar relativo sem eliminação da repressão? Questão não-destituída de perigos e que nada tem de ociosa, no limiar da pós-história, em que as estruturas simbólicas estão gastas e erodidas, esva ziadas de suas funções imperativas. Benjamin não teria colocado essa questão. Ele sempre insistiu numa felicidade radicalmente espiritual e radicalmente- sensual, sob a forma de uma experiência de massas; sentia-se aterrorizado com a perspectiva da perda definitiva dessa experiência, pois ele, com o olhar fixo na condição messiânica, observava como o progresso sempre foi, em mo mentos sucessivos, fraudado de sua realização pelo próprio progresso. O conteúdo político das teses histórico-filosóficas consiste, portanto, numa crítica à versão kautskyana do progresso. Mesmo se não fizermos valer, para cada uma das três dimensões, que o progresso no aumento do bem-estar, na ampliação da liberdade e na promoção da felicidade não representa um verdadeiro progresso, enquanto o bem-estar, a liberdade 43 Bloch, E. Naturrecht und menschliche Wuerde [O direito natural e a dignidade humana]. Frankfurt, 1961: “A utopia social visava a felicidade humana, o direito natural e a dignidade humana. A utopia social prefigurava relações em que os explorados e os exaustos não mais existissem; o direito natural construía rela ções em que os humilhados e os ofendidos desaparecessem”. Ibid., p. 13. Cf. também minhas observações em Philosophisch-politische Profile [Perfis filosófico-políticos]. Frankfurt, 1971. p. 216 et seqs.
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e a felicidade não se generalizarem, é pelo menos plausível afirmar uma hierarquia entre as três dimensões, segundo a qual bem-estar sem. liber dade não é bem-estar, e liberdade sem' felicidade não é liberdade. Benjamin estava profundamente impregnado dessas idéias: não podemos ter certeza nem sequer dos progressos parciais-, antes do Juízo Final. Benjamin integrou essa concepção enfática naquela visão do destino segundo a qual as transformações históricas não operam verdadeiras transfor mações, a não ser que se reflitam na ordem da felicidade: “A ordem do profano deve erguer-se sobre a idéia da felicidade.” Nessa perspectiva totalizante, o desenvolvimento cumulativo das forças produtivas e a transformação orientada das estruturas da interação são reconduzidas a uma reprodução indiferenciada do sempre-igual. Ante o olhar maniqueísta de Benjamin, que só conseguia perceber o progresso nos contornos da felicidade, a História se desenrola como a rotação de um planeta extinto, no qual ocasionalmente relampejam centelhas. Isto obriga a interpretar o sistema político e econômico por meio de conceitos que somente seriam adequados- com relação a processos culturais: na ubiquidade da culpa submergem, até se tomarem irreconhecíveis, aquelas tendências evolu tivas que apesar de sua parcialidade questionável, ocorrem não somente nas dimensões das forças produtivas e da riqueza social, mas inclusive na dimensão em que as diferenciações são infinitamente difíceis, tendo em vista o impacto da repressão. Refiro-me aos progressos, sem dúvida precários e ameaçados de repressão, na esfera da legalidade, quando não nas estruturas formais da moralidade. O sentido histórico que per mite perceber os progressos profanos ameaça definhar na recordação melancólica das renúncias e na invocação dos momentos evanescentes da felicidade. É certo que tais progressos engendram suas regressões; mas, são justamente estas que dão início à ação política. A crítica benjaminiana do progreèso vazio dirige-se contra um re formismo sem ajegria, cuja sensibilidade há muito está embotada, tor nando-se incapaz de perceber a diferença entre a reprodução aperfeiçoada da vida e uma vida plena, ou pelo menos não-malograda. Mas, essa crítica só se toma aguda quando consegue tomar visíveis os aperfeiçoa mentos, em si não desprezíveis, da vida. Estes não criam novas memórias, mas dissolvem memórias antigas e fatídicas. As negações graduais da pobreza e mesmo da opressão têm, é preciso admitir, a singular pro priedade de não deixarem vestígios: aliviam, mas não realizam, pois somente o alívio recordado seria o prelúdio da realização. Confrontam-se, quanto a isto, duas posições, ambas já muito esvaziadas. O contra-Iluminismo, apoiando-se em antropologias pessimistas, pretende que as
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imagens utópicas da auto-realização constituem, ficções, úteis à vida, de uma criatura finita, que não poderá jamais transcender sua mera existên cia em direção a uma existência melhor. A teoria dialética do progresso, por outro lado, prognostica confiantemente que uma emancipação bem-sucedida significa também auto-realização. A teoria benjaminiana da experiência poderia, se constituísse o núcleo do materialismo histórico e não seu revestimento, contrapor à primeira posição uma experiência fundada, e à segunda uma dúvida profilática.
Aqui se fala somente em dúvida: naquela dúvida que se impõe a partir do materialismo semântico de Benjamin. Podemos^excluir a possi bilidade de uma emancipação privada de sentido? A emancipação sig nifica,. nas sociedades complexas, a transformação participativa das deci sões administrativas. Poderiam, algum dia, os homens emancipados confrontar-se mutuamente no espaço ampliado da formação discursiva da vontade (diskursive Willensbildung'), e contudo serem privados da luz que lhes permitiria interpretar sua vida à base de padrões ideais? A vingança de uma cultura saqueada durante milênios para fornecer legitimações ao poder consistiria, nesse caso, no momento em que fossem enfim abolidas todas as antigas repressões, em esvaziar-se dos seus con teúdos, ao mesmo tempo que de todas as formas de violência. Sem o influxo daquelas energias semânticas às quais se dirige a crítica salvadora de Benjamin, as estruturas do discurso prático, finalmente concretizadas, acabariam por perder sua substância. Benjamin não está longe de apropriar-se da acusação contra-iluminista de que a utopia seria uma reflexão vazia, a fim de enriquecer a sua própria teoria do progresso. Mas quem buscar, nesse ponto, a atualidade de Benjamin se exporá à objeção de que os esforços emancipatórios, tendo em vista uma realidade política inabalável, não podem ser levianamente sobrecarregados com novas hipotecas, por mais subli mes que sejam — first things first. Penso, contudo, que um conceito diferenciado do progresso gera uma perspectiva que não inibe simples mente a coragem, mas torna a ação política mais certeira. Porque em circunstâncias históricas que impedem de pensar a revolução e justificam a expectativa de processos de transformação a prazo extremamente longo, também a concepção da revolução como processo de autoformação de uma nova subjetividade deve alterar-se. Para essa mudança, a herme nêutica conservadora e revolucionária de Benjamin, que decifra a história da cultura na perspectiva da salvação para o ato revolucionário, pode indicar um caminho.
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Uma teoria da comunicação lingüística que reintroduza as intuições de Benjamin numa teoria materialista da evolução social deve pensar conjuntamente duas frases de Benjamin. Estou pensando na afirmação de que “existe uma esfera de compreensão recíproca entre os homens, livre de violência, na medida em que é completamente inacessível a ela: a esfera autêntica do entendimento mútuo, a linguagem” (A. S. v. 2, p. 55).
E estou pensando na advertência que corresponde àquela afirmação: “Pessimismo em toda linha! Sem dúvida e sem restrições ... mas sobretudo desconfiança, desconfiança e desconfiança quanto a qualquer perspectiva de entendimento entre classes, povos e indivíduos. E con fiança ilimitada somente na I. G. Farben. e no aperfeiçoamento pacífico da Força Aérea” (Ibid., p. 214).
índice analítico E ONOMÁSTICO A ação, 23, 46, 100, 101, 118, 201 discursiva, 44 estratégica, 22, 25, 44, 111, 112 modelo teleológico da, 101, 103 política, 25, 106, 136, 199, 201, 204, 205 ação comunicativa, 13, 14, 16, 19, 20, 25, 31, 41, 55, 60, 103, 104, 110, 111 ação instrumental, 13, 14, 16, 24, 41, 100-4, 111,113, 200 Adler, Max, 82 Adorno, Gretei, 142 Adorno, Th. W., 10-2, 23, 35-9, 41-5, 48-51, 55-8, 60-4, 66-73, 89, 97, 120, 134, 135, 139-50, 164, 169-71, 183, .185, 186, 189, 190, 196, 197, 199 ainda-não-atualizado, 46 ainda-não-consciente, 45, 46, 160 ainda-não-ser, 46, 55 alegoria, 62, 176 como chave do conhecimento, 90 alienação(ões), 31, 47, 48, 51, 87, 96, 99, 147 anámnesis, 45, 49, 65, 152, 154, 157 antiarte, 33, 134 anticomunismo, 165 antimodernismo, 135 antinomismo, 130 antipsiquiatria, 137
anti-semitismo, 77, 92, 93, 98, 99, 142 Apel, C.-O., 10 Aragon, Louis, 171 Arendt, Hannah, 11, 23-6, 58, 68-72, 91, 100-17, 120, 171 Aristóteles, 46, 110, 152 arte, 23, 31-6, 39, 48, 49, 60, 69, 72, 90, 91, 130, 133-5, 137, 160, 164, 172-8, 181, 183, 184, 186-8, 194, 195, 198, 201 aurática, 35, 130 autonomia da, 173, 177, 182-4, 188, 190 autônoma, dissolução da, 60, 134, 174-6, 178 desestetização da, 33, 72, 137 desritualização da, 182, 183, 186, 188, 189 de-sublimação da, 61, 134 função simbólica da, 33, 175, 176 politização da, 199, 201 superação da, 185 assimilação dos judeus, 78, 84 aura, 61, 175, 177, 187-9 artística, 184 auto-exílio de Deus, 128 autolimitação de Deus, 39, 126, 129 autonegação de Deus, 126
B Baader, Franz von, 94, 120, 156 Bachofen, J. L, 160, 194
208 Balzâc, H. de, 62 Basaglia, 137 base-superestrutura, teorema, 198 Baudelaire, Charles, 143, 169, 170, . 177-9, 181, 187, 188, 196, 197 Bauer, Otto, 82 Baumgardt, David, 94 Behrmann, J., 185 belo, 62/ 176 destruição da. transcendência do, 137 Bendavit, Lazarus, 81 Benjamin, W., 10, 11, 23, 33-6, 40, 58-73, 89-91, 95, 97, 120, 123, 129, 130, 135, 143, 148, 157, 169-72, 174-83, 185-206 Benn, Gottfried, 154, 157 bens, culturais, 91, 172 de salvação, 72 Bergson, Henri, 91 Bleichrode, Isaak, 124 Bloch, Ernst, 11, 23, 45-57, 64, 65, 67-71, 73, 95-7, 120, 129, 137, 148, 151-67, 202, 203 Bõcklin, 157 Bõhme, Jakob, 94, 120, 127, 151, 158, 185 Bohrer, K. H„ 171, 201 Brand, Willy, 132 Brecht, B., 70, 169-71, 178, 197, 199, 201 Brenner, H., 170 Breton, André, 171 Buber, Martin, 78/9, 81, 82, 93 Bubner, R., 202 Buerger, P., 171 burguesia, 34, 62, 144, 174
c Cabala, 27, 39, 59, 78-80, 86, 90, 94, 96, 120, 123, 124, 126, 128; 131, 158 fontes da, 122
capitalismo, 16, 43, 44, 133, 163, 181, 198, 202, 203 tardio, 15, 17, 22, 32, 34, 35, 43, 136, 138, 149, 150 Carnap, Rudolf, 12, 70 cassação de direitos civis, 108 Cassirer, Ernst, 82, 88-90 çategorias, 14, 42, 43 Çelan, 170 Chacon, V., 10 Chaplin, Charlie, 139 Chomski, 17 ciência(s), 13-6, 28, 35, 72, 84, 148, 185 histórico-hermenêuticas, 13, 14, 20 humanas, 12, 87, 123, 124, 126 naturais, 13, 14, 20, 81, 87 civilização, 36, 84, 90 alemã, contribuição dos judeus à, 98 classe(s), 36, 47 luta de, 25, 201 operária, fetichização da, 133 classicismo alemão, 89 coação, 16, 19, 24, 101, 114 social, 142, 143 Cohen, Hermann, s81, 82, 84 Cohn, Jonas, 82 colagem dos vasos, 40, 66 comunicação, 13, 19, 21, 24, 25-7, 54, 55, 63, 65, 66, 100, 101, 145-7, 193 linguística unificadora, 102 processo de, 19, 21, 28, 112 comunidade judaica, 79 conceitofs), 29, 42, 63, 79, 103, 125 conhecimento, 13, 14, 20, 27, 29, 30, 38, 60, 96, 117, 125, 126, 145,. 146, 154, 191 crítica do, 17, 20 processo do, J3, 20, 126 consciência, ’ 14, 26, 38, 45, 46, 50, 52, 63, 73, 141, 153, 156, 198 antecipante,' 50, 63, 160
209 falsa, 19, 21/2, 29, 43, 59, 60, 153 fenomenológica, 29, 46 operações da, 86, 87 consenso, 24, 26, 30, 35, 43, 44, 55, 58-60, 101, 126 falso, 25, 31 verdadeiro, 25, 31 conteúdo(s), 29, 43 proposicional, 18 contracultura(s), 22, 34, 72 subversivas, 134 contrafala, 102 contra-Iluminismo, 202, 204 contra-revolução, 132 contravalores, 135 Cooper, 137 Corbusier, 164 creatio ex nihilo, 127 criação, 39, 127, 128 é autonegação, 127 processo da, 126 produz o nada, 127 sujeita a alienação, 127 crítica’ 13, 30, 32, 46, 71, 158, 166, 172 cultura, 30, 31, 34, 36, 39, 47-51, 54, 59, 60, 65, 66, 72, 78, 87, 89-91, 119, 134, 172-76, 178, 183, 194, 197, 203 burguesa, 60, 134, 137, 175, 183, 184 crítica da, 17, 20, 21, 43, 44, 49, 50, 62' dissolução da, 172, 173
D Daele, W. van. den, ‘185 desenvolvimento social, 52, 53, 161, 195 de-sublimação surrealista, 34 dialética, materialista da natureza, 127 negativa, 39, 40, 42, 49, 55 Dilthey Wilhelm, 14, 29
direito, .58, 59 natural, 16, 118, 176, 202 discurso, 18-20, 54, 55, 59 prático, 18-22, 24-6, 44, 55, 138, 205 terapêutico, 22, 26, 44 divino, processo vital do, 127 dominação, 111, 113, 202 política, 101, 115, 145, 202 totalitáriq, 106 , ' ' Durkheim, Êmile, .35 dúvida que não duvida de si mesma, 86
E Eckart, mestre, 83 Economia, 72, 95 Política, 44, 149 Eden, Schaare Gan, 28 ego, 141, 142, 144, 145 Ehrlich, Eugen, 93 Eichendorff, 147 Eichmann, 69, 71, 106 Elias, Norbert, 70, 120 elitismo democrático, 106 emancipação da consciência e senti dos, 133 enfermidade, despatologização da, 137 Engels, Friedrich, 158, 166 Enzensberger, H.-M., 134, 171 epistemologia, 82, 83 positivista, 21 Erikson, E. H., 120 escatologia judaico-cristã, 41 espaço, político, 106, 110, 114 público, 105, 108, 115 social, 104, 198 esperança, 45-51, 53, 56, 57, 60, 63-5, 96, 151-3, 156, 157 Espírito, 41, 49, 52, 61, 97, 145, 153, 171 absoluto, 36, 38, 184, 185 essência, 8Ó, 90 e existência, 41
210
Estado, 14-6, 20, 22, 23, 50, 58, 62, 81, 106, 108-10, 113, 136, 199 moderno, 24, 72, 109, 112, 130, 136 legitimação do, 15 estética, 34, 164, 184 estudantes, consciência política dos, 11 . ética, 71, 94 do trabalho, 34 eu, 140, 141, 145, 146 e alter-ego, 187 Eurípides, 56 excedente, cultural, 153 utópico, 47, 54 existencialismo, 78, 79 experiência, 20, 61, 133, 142, 189 a priori da, 20 êxtase e política, 202 Ezer, Ben, 71
F Fahrenbach, H., 17 fala, 17, 102, 104 conteúdo semântico da, 27 expectativas de validade na, 18 recíproca, 110’ felicidade,' 203, 204 fenomenologia, 84, 86, 133 Feuerbach, JL„ 52, 153 Fichte, J. G., 82, 97 filologia, 122-4 filosofia, 39, 71, 79-82, 84-6, 89, 90. 94, 95, 97, 99, 120, 152-4, 158-61, 166, 167, 185, 191, 195 alemã, 77, 165 do idealismo alemão, 78 judaica, 83, 98 política, 176 protestante, 96, 159 Física, 94, 155, 184 força(s), militar e impotência interna, 111 produtivas, 22, 34, 49, 53. 56,
•63, 65. 67, 141, 181, 182, 202, 204 fome, 152, 202, 203 Foucault, 137 Frank, Jakob, 129 Freitag, B., 10, 13 Freud, 10, 14, 29, 45, 70, 120, 121 Friedeburg, Ludwig von, 11
G Gadamer, H. G., 1.2, 29, 124, 137, 192 Gaza, Nathan, 129 Gehlen, Arnold, 70. 104, 154 George, Stephan, 91 Goebbels, 107 Gõring, 107 Goethe, 67, 83, 88-90, 162, 178 Goldsheid, Ludwig, 93 Gorsen, Peter, 13.7 Gramsci, Antonio, 26 Gropius, 164 Grünberg, Cari, 93 grupos de pressão, 129 Guilherme II. 81 Gumplowicz, Ludwig, 93
H Habermas, Jürgen, 9-39, 41-5, 47, 51-61, 63, 65-7, 69, 70, 73, 77, 100, 119, 120, 132, 139, 147, 151, 159. 169, 182, 195 Hahn, E,, .10 Hamann, 94, 191 Hauser, A., 182 Hebel, Johann Peter. 121 Hecht, Koppel, 94 Hegel, 14, 29, 37. 39, 45, 65, 79, 94, 97, 113, 120, 127, 141, 142, 145-7, 149, 153, 154, 158, 159, 164, 184, 200 Heidegger, 70, 80, 88-90, 98, 152, 154, 164 >
211 hermenêutica, 12, 23, 27-9, 44, 58-60, 83, 124, 149, 205 Herz, Marcus, 81 Himmler, Heinrich, 106 História, 15, 21, 26, 29, 32, 41, 42, 51-3, 57, 59, 62-4, 66, 71, 80, 90, 91, 96, 99, 105, 115, 119, 131, 137, 141, 154, 155, 159, 160, 163, 176, .177, 179, 180, 182, 193, 194, 200, 204 filosofia da, 36, 37, 41, 44, 64, 88, 91, 96, 123, 126, 130, 149, 155, 195 teoria messiânica da, 199 teoria revolucionária da, 127 Hitler, Adolf, 107 Hobbes, Thomas, 112 Hõlderlin, 94, 128, 158, 170 Hõnigswald, Richard, 82 Hoffmann, E. T. W. A., 195 Hohn, G., 10 Holz, H. H., 170, 192 Horkheimer, Max, 10, 37, 50, 64, 70, 93, 97, 120, 141, 148 humanidade, crise da, 87 humanismo, 81, 83, 88 Hume, David, 18, 68 Huss, John, 129 Husserl, Edmund, 77, 84, 86-8
I idealismo, 52, 78-80 alemão, 78, 87, 95-7, 168 identidade, 37, 38, 41, 42, 45, 47, 48, 57, 61, 131, 140, 144, 147, 149 ideologia, 15, 16, 21-3, 34, 43, 46, 48, 49, 54, 58, 60, 77, 115, 182 crítica da, 22, 25, 33, 44, 49, 60, 149, 153, 173-6, 178, 181, 184, 185, 190, 194, 198, 199 Iluminismo, 35, 37, 40, 49, 50, 81, 94, 97, 124, 128, 129, 140, 141,
149, 167, 180, 184, 195 dialética do, 37, 44, 91, 202 ilusão, bela, 134, 137, 172-4, 187 inconsciente coletivo, 65, J.97 indústria cultural, 36, 50, 183, 186 infra-estrutura, 66, 196, 198 instituições, 21, 24-6, 43, 71, 103, 105, 112, 114, 115, 136, 140, 142, 199, 200, 203 interação social, 111 interesse(s), 14, 22, .-88, .117, 166 comunicativo, l3, 16, 41 instrumental, 16, 29 técnico, 13, 41 intersubjetividade, 17, 55, 57, 66, 106, 114, 187, 188 irracionalismo fascista, 87
J Jaspers Karl, 70, 108, 164 Jefferson, Thomas, 106, 108 Joel, Karl, 94 jogo de soma-zero, 113 Jouvenel, B. de, 23 judaísmo, 78, 79, 83, 84, 94, 124, 130, 131, 170 judeu(s), 77, 79, 80, 82 assimilação dos, 78, 84, 92, 120, 121 como ator, 92 cultos, 78, 92, 93, 121, 130 e alemães, 119, 120 e não-judeus, 97 idealismo alemão dos, 99 igualdade de direitos dos, 78 influência dos, na ciência alemã, 98 profetas, 84 renascimento do povo, 122 ricos, 93 Jung, 160 Jünger, Ernst, 77, 78, 98, 154, 155
212
K Kafka, 70, 120, 121, 185 Kant, 14, 81-3, 88, 90, 108, 117, 146, 161, 168, 187, 191 Kassner, 198 Kempelen, Wolfgang von, 195 Kierkegaard, 79, 123 kitsch, 47, 50, 51, 164 Kittsteiner, H. D., 179 Klages, 160, 164, 194, 198 Klee, 63, 91 Koch, Thilo, 97 Kothe, F. R., 35 Kraus, Karl, 65, 120 Krohn, W., 185 Krumme, P., 171, 190
L Laing, 137 Lask, Emil, 82 Lavater, 122 Lawrence, D. H., 164 legitimação, 21, 43 lei(s), 24, 84, 103, 110, 112, 129 Leibniz, 68, 153, 158 Lenk, E., 171 Lethen, H., 170 liberdade, 47, 95, 103, 105, 108-10, 144, 153, 156,'160, 163, 165, 186, 189, 202, 204 e necessidade, 38 Lichtenberg, 122 Liebert, Arthur, 82 Liebmann, Otto, 82 Lindner, B., 171, 180, 193 linguagem, 21, 59, 60, 80, 85, 86, 90, 103, 118, 147, 192, 206 lingüística, 85 Locke, 68/ 153 Lõwith, Karl, 70, 120, 159 lógica, 71, 80, 152 formal, 145 Luhmann, N., 12, 17, 19, 112, 147
Lukács, Georg, 70, 89, 97, 162, 164 Luría, Isaak, 39, 40, 94, 127, 128 lutas operárias, 112 Lypp, B., 201
M Madison, 103 Maimon, Salomon, 82 mal, 95, 127 Mallarmé, 192 Mannheim, Karl, 93, 154 Mao-tsé-tung, 135 Marcuse, Herbert, 10, 11,. 23, 31-5, 40, 56, 67, 68, 70-3, 97, 120, 132-8, 148, 172-8 Marx, Karl, 44, 45, 48, 52, 70, 93, 96, 108, 120, 121, 127, 129, 141, 148, 149, 153, 158, 163, 166, 184, marxismo, 46, 47, 53, 82, 95, 143, 158, 163, 165 massa(s), 16, 33, 36, 138, 175, 177, 185, 203 matéria, 51, 52, 95, 96, 126, 158, 161 materialismo, 47, 95, 158, 166 dialético, 164 histórico, 52, 53, 59, 95, 152, 194, 195, 202 mediação, categorias da, 38 Meinecke, Friedrich, 79 ‘ Mendelssohn, Moses, 81, 83, 122 mercadoria, fetichismo da, 133, 183, 196-8 messianismo, 99, 128 metacomunicação, 18 meta-hermenêutica, 29, 30 meta-história, 131 Mills, C. W., 113 mística, 40, 94, 96, 120, 195 judaica, 11, 79, 94, 120, 170 misticismo, 94, 128, 131, 158 judaico, 27, 39, 79, 86, 95, 121, 122, 125, 129 mito(s), 37, 51, 59, 60, 66, 89, 90,
213
152, 159, 160, 180, 181, 186, 190, 191, 193, 194, 200, 203 modelo, comunicativo puro, 41 psicanalítico, 26 modo de produção, 23, 66, 109, 112 Morus, Thomas, 152 movimento messiânico, 130 mudança, 42
N nacionalidade judaica, negação da, 120 nada, 127, 151, 159 Nagel, 12 não-Deus, 131 não-identidade, 23, 35, 37, 38, 41, 42, 58, 61, 63, 144, 145 não-mais-consciente, 45, 160 não-violência, 58 natureza, 13, 36, 37, 41, 47, 48, 52, 53, 62, 80, 95, 96, 129, 141, 148, 157, 159-62, 168, 180, 184, 189, 191, 193, 198 necessidades não-materiais, 134, 136 negação, 129 negatividade, 32, 61 negativo, violência do, 128 Neurath, Otto, 84 neurose, 19, 21, 22 cura da, 26 Newton, 162 Nietzsche, 135, 154, 156, 157 niilismo, 46, 127-30 norma(s), 16, 19, 21, 24-6, 43, 55, 102, 117 novo, 153, 181
o obra de arte, 162, 174, 177, 181, 185, 187-9, 200 autonomia da, 32, 186 dissolução da, 35
reifiçada, 183 reprodutibilidade técnica da, 33, 35/6 Oehler, Christoph, 11 Oetinger, F. C., 94, 158 opinião(ões), 14, 103, 116, 117, 154 Oppenheimer, Franz, 93 ordem, não-depressiva, 20 repressiva, 35 totalitária, 38 organização, social, 19, 41 terrorista, 107 t-.
p papel social, 93 Paracelsus, 158 Parsons, T., 26, 100-2, 113, 114 paz perpétua, 81 Péguy, Charles, 107 Peirce, 14, 29, 126 pensamento, 37, 61, 63, 82, 99, 104, 116, 117, 124, 126, 127, 131 crítico, 71, 146 discursivo, 116 judeu, 91 Platão, 45, 65 Plessner, Helmut, 70, 87, 93, 94, 96, 120 Ploog, D„ 192 pobreza, superação da, 109, 202 poder, 16, 17, 23-6, 58, 66, 100-3, 107, 108, 111-8, 136, 156, 165, 175, 180, 205 conceito comunicativo do, 103, 110 legitimidade do, 105, 111 sistema de, 21,. 101 política, 69, 72, 108-11, 136, 137, 175 Popper, Karl, 12, 70 positivismo, 12-4, 17, 54, 141, 168 práxis, 25, 36, 39, 55, 72, 88, 103-5, 108, 110, 111, 115, 136, 137,
214
150, 173, 175, 185, 200, 201 comunicativa, 118 falsa, 17 revolucionária, 130, 167 processo, comunicativo, 115 cultural, 204 de produção, 193 histórico, 158 político, 110 social, 51, 52, 113, 152, 160, 197 progresso, 66, 91, 154, 179-81, 202-4 proposições, 18, 19 protesto estudantil, 107, 108, 132, 133, 135 Proust, Marcei, 92 pseudomaterialismo, 38 psicologia, 84, 180, 198
Q questão judaica, 97 sem judeus, 99
R racionalidade, 22, 95, 102-4 racionalismo, 84, 87 razão, 37, 84, 140, 147, 151, 152, 155 comunicativa, 42, 55 de-sublimação da, 137 instrumental, 55 negativa, 38, 42, 50 real, 45, 55, 61, 63, 66, 137 reflexão, 14, 28, 85, 97 Reichenbach, Hans, 85 reificação, 44, 49, 96 Reinhold, 82 relação(Ões), de mercado, 72 de produção, 22, 34, 56, 162, 163 existenciais repressivas, 137 sociais, 101, 115, 141, 173 religião(ões), 15, 39, 69, 72, 79., 84,
124, 130, 152, 153, 184, 185 repressão social, 13, 110, 203-5 Reuchlin, 122 revelação, 28, 30, 84, 124, 125 revolta estudantil, 171, 173 revolução, 64, 71, 107, 130, 132, 154, 201, 202, 205 Rilke, R. M-, 91 Robespierre, 180 Rodin, A., 91 romantismo, 96, 135, 147, 164, 179 Rosenkranz, 89 Rosenroth, Knorr von, 120 Rosenzweig, Franz, 79-81, 86, 120 Rotschild, 94 Rousseau, J.-J., 43 Rubin, W. S., 171 Runciman, W. G., 116 ruptura dos vasos, 39, 40, 128
s saber, objetividade do, 20, 29, 41 Salomon, Gottfried, 93 salvação, 80, 125, 131, 167, 179, 186 Salzinger, H., 202 Sartre, J.-P., 1.19 Scharang, M., 170 Scheler, Max, 77, 93, 94 Schelling, 9, 52, 79, 94, 96, 97, 120, 127, 151, 158-62 Schelsky, Helmut, 157 Schleiermacher, 124 Schmitt, Cari, 97, 98, 194, 200 Schmitt-Rottluff, 157 Schoenberg, 185 Scholem, Gershom, 11, 23, 27, 28, ^30, 39, 40, 59, 68-71, 73, 86, 119-31, 143, 169, 170, 189, 190, 195, 196 Schroyer, T., 10 Schütz, A., 120 Schuler, 194 Schulz, Walter, 17 Schumpeter, 106, 112 V
215
Schweppenhaeuser, H., 170 sempre-igual, 200, 204 sentidos, 142, 153 ser, 46, 51-3, 55-7, 152, 155 ser-em-possibilidade, 46, 47, 52, 53, 161 ser-segundo-a-possibilidade, 46, 53 Simmel, Georg, 77, 83, 89, 91-4, 120 Sinzheimer, Hugo, 93, 98 sionismo, 78, 122, 130sistema(s), administrativo, 111, 114 das necessidades, 185 de propriedade, 163 econômico, 34 político, 25, 112-5, 137 simbólicos, 27 sócio-cultural, 34 situação lingüística ideal, 19, 20, 58-60 sobre-história, 155 socialismo, 95, 134-6, 152, 153, 159, 160, 163 sociedade(s), 16, 21, 22, 24, 26, 35, 50, 72, 78, 84, 93, 96, 105, 112, 131, 133, 136, 146, 148, 203, 205 burguesa, 109, 149, 173 de consumo, 135 de massa, 25, 108, 109 industrial, 163 sociologia, 72, 93 Sohar, 94-6 sonho, 45, 64 e ação, 201 Sorel, G., 59 Spaeth, Johann Jakob, 94 Spinoza, 82 Stalin, Joseph, 135 Steinwachs, G., 171 Streicher, Julius, 97, 98, 107 subculturas jovens, 135 subjetividade, 140-2 burguesa, 139, 142, 144 transcendental, 14 substância, 61 sujeito e objeto, 38, 42, 161
Sultan, Herbert, 93 superestrutura, 35, 51, 153, 196, 198 surrealismo, 33, 61, 62, 130, 135, 171, 188, 197 Szondi, Peter, 170
T Taubes, J., 196 técnica(s), abstrata, 164 sem violentação, 162 telos, 55, 57, 95, 14t teologia, 95, 148, 165, 195, 199 teoria, 49, 55, 84, 88 consensual da verdade, 19-21, 30 crítica, 21, 31, 37, 42, 44, 54, 66 crítica da sociedade, 10 da ação, 110, 113 da arte, 34, 190, 201 da ciência, 83, 84, 91 da competência comunicativa, 12, 17, 20, 147 da comunicação lingüística, 206 da experiência; 190, 191, 195, 197, 200, 201, 202, 205 da impossibilidade da teoria, 149 da verdade, 126 dialética do progresso, 202, 205 do conhecimento, 36, 37, 65, 84, 91, 123, 126, 130 do objeto, 123 dos interesses cognitivos, 13, 14, 63 e prática, 12, 14, 17, 20, 25, '47, 116, 125 estética, 31, 33, 183 falsa, 17 messiânica da verdade, 30 mimética da linguagem, 191, 192, 194, 199 pura, 88 revolucionária da História, 127 sistêmica, 12, 26, 180 social, 44, 135, 138, 149
216 terrorismo, 130 Tiedemann, R., 170, 179, 181, 198 tikun, 39, 40 todo, 146 tora,. 27, 28, 30, 79, 119 escrita, 125 oral, 125 totalitarismo, 38, 71 tradição(Ões), 29, 30, 60, 66, 73, 83, 90, 120, 124, 126, 131, 153, 179, 181, 182, 185, 190, 191, 203 apropriação da, 24 conceito místico da, 125 cultural, 194, 202 da ciência judaica, 122 judaica, 78 judaico-cristã, 148 místicas, 123 oral, 86 permanece oculta, 123 processo da, 91 religiosa, 73, 130, 131 teuto-jud.aica, 98, 121 troca, justa, 182 princípio da, 149
u Unger, Richard, 94 universal, 61 e particular, 145 Unseld, Siegfried, 190 utopia, 20, 23, 35-8, 45-51, 53-8, 63-6, 73, 95, 152, 153, 157, 159, 163-7, 171, 197, 205
V valor(es), culturais, 90, 114 de culto, 182 de exposição, 182 de troca, 38, 162 de uso, 34, 162 vanguarda, 72, 177 artística, 135
judia, 120 vanguardismo, 33-5 Varnhagen, Rahel, 71, 88 verdade, 18, 21, 27, 28, 31, 37, 48, 60, 63, 125, 147 conceito messiânico da, 125 Vico, G., 135 vida, 18, 137 material, 174 perfeita, 20, 204 social, 30, 113 violência, 23-6, 30, 37, 48, 55, 58, 59, 63, 100-2, 105, 110-2, 114, 115, 119, 133, 141, 145, 165, 199, 200, 205, 206 conservadora de direito, 58 divina,. 59, 200, 201 estrutural, 115, 202 geradora de direito, 58, 200 revolucionária, 59, 200 vir-a-ser, 161 Visconti, L., 135 Voegelin, Eric, 70 Vogler, P., 192 vontade, absoluta, 127, 205 coletiva, 136 final, 156
w Wagner, R., 198 Waismann, Friedrich, 84 Weber, Max, 13, 18, 23, 26, 72, 100-2, 112, 130, 182 Wellmer, Albrecht, 149 Welm, A., 10 Weltz, Friedrich, 11 Wiesenthal, L„ 171 Wittgenstein, Ludwig, 70, Tl, 84-7 Wyneken, Gustav, 169-71
z Zima, P., 10 Zwi, Sabbatai, 129 >•
GRANDES CIENTISTAS SOCIAIS Textos básicos de Ciências Sociais, selecionados com a supervisão geral do Prof. Florestan Fernandes. Abrangendo seis disciplinas fundamentais da ciência social - Sociologia, História, Economia, Psicologia, Política e Antropologia a coleção apresenta os autores modernos e contemporâneos de maior destaque mundial, focalizados através de introdução crítica e biobibliográfica, assinada por especialistas da universidade brasileira. A essa introdução crítica segue-se uma coletânea dos textos mais representativos de cada autor. pode ser conside rado o último re presentante da Es cola de Frankfurt, com a morte de Adorno, Horkheimer e Marcuse. Não se limita, contudo, a continuar a tradição da teoria crítica. Influen ciado pelo pensamento anglo-saxônico bem como pelas grandes correntes da filosofia ale mã, tenta estabelecer uma ponte entre esses dois mundos aparentemente incomunicáveis. Assim, continuou a crítica ao positivismo, ini ciada pelos frankfurtianos, através de uma lei tura imanente dos principais autores anglosaxônicos. Da mesma forma, prosseguiu a crítica da cultura. Mas em vez de limitar-se a denunciar a unidimensionalização e a indústria cultural, Habermas tentou inserir essa crítica no contexto mais geral de uma teoria do capi talismo tardio. A seleção de textos, ao mesmo tempo que elu cida o pensamento de autores como H. Arendt, Scholem, Adorno, Marcuse, Bloch e Benjamin, situa-se com relação a eles, num movimento reflexo pelo qual a temática habermasiana ilu mina a reflexão desses pensadores, e estes, por sua vez, põem em evidência o pensamento de Habermas.
ISBN 85-08-03550-0
9788508035502