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Portuguese Pages 59 Year 2022
AMCESTtAL Companhia Das Letras
p reiinpressilo
Copyright © 2022 by Ailton Krenak Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portu
de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa e projeto gráfico Alceu Chiesorin Nunes Preparação
Julia Passos
Revisão Natália Mori
Julian F. Guimarães
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nesta invocação do tempo ances
Krenak, Ailton Futuro ancestral / Ailton Krenak. — Ia ed. — São Paulo : Compa nhia das Letras, 2022. isbn
tral, vejo um grupo de sete ou oito
meninos remando numa canoa:
978-65-5921-154-8
1. Crônicas brasileiras 1. Título. 22-124823 CDD-B869.8
índice para catálogo sistemático: 1. Crônicas: Literatura brasileira Cibele Maria Dias - Bibliotecária
B869.8
Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo
— CRB-8/9/P7
na superfície da água com muita Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone: (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br facebook.com/companhiadasletras instaOTam.com/comDanhiadasletras
calma e harmonia: estavam exerci
tando a infância deles no sentido do que o seu povo,_os Yudjá, cha mam de se aproximar da antiguida-
de. Um deles, mais velho, que esta-
wverbalizando a experiência, falou:
“Nossos pais dizem que nós já esta mos chegando perto de como era
SIMAEie
antigamente”.
Eu achei tão bonito que aque les meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados ha
viam ensinado, e tão belo quanto
que a valorizassem no instante pre sente. Esses meninos que_vej_o em minha memória não estão corren do atrás de umajdeia prospectiva do tempo nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é sEu território, dentro dos rios.
Saudações aos rios, 9 Cartografias para depois do fim, 29 Cidades, pandemias e outras geringonças, 45
Alianças afetivas, O coração no ritmo da terra. 91 Sobre este livro. 119
Sobre o autor. 121
SAI»▲ ▲•s nes
Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem
me sugerem que, se há futuro a ser cogita do, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui. Gosto de pensar que todos aqueles que somos capazes de invocar como devir
são nossos companheiros de jornada, mes
mo que imemoráveis, já que a passagem do tempo acaba se tornando um ruído em nos sa observação sensível do planeta. Mas estamos na Pacha Mama, que njoJLeiiL-fmii-
teiras, então n. apesar de sempre pensar a partir de onde estou — a beira desse no —, quando
disparo minha visão sobre outros lugares da terra, as cartografias sonhadas que vejo in
cluem aquela imagem fantástica do astro nauta que, olhando do céu, exclamou: “A
lerra é azul'". O planeta é mesmo maravi lhoso c é abraçado, em várias tradições de povos ameríndios — da ferra do Fogo ao Alasca —. por urna poética permeada de
sentido mate mal.
Nossos parentes Guarani ia Mata Uiântica, dessa borda de mar que chamam de nhé ere
ou lugar que produz vida, pen
ricas, na África, na Asia... Essas narrativas são presentes que nos são continuamente ofertados, tão bonitas que conseguem dar
mesmo tempo, uma fonte incessante de
sentido as experiências singulares de cada
vida. A primeira ve/ que esses queridos pa
povo em diferentes contextos de ex eri
rentes compartilharam comigo >ua narrati va de criação de mundo, jprciidi que dois
sam na região como uma paisagem c. ao
gêmeos primordiais tiveram que dobrar a Serra do Mar e fazer esse contraforte para
que a Agua Grande, o mar, não avançasse sobre o continente. Achei linda essa histó
ria que explica a topografia — a formação
tiveram uma ou outra reserva instituída pelo governo, os Maxacali passaram os séculos xvii, xviii e xix sem lugar para descansar a
cabeça. Pois agora decidiram ocupar um an
das montanhas, dos vales, dos corpos d’água
tigo território de suas narrativas, e esse povo é capaz de reconstituir toda a fauna e a Hora
de onde se habita. O fato é que os Guarani,
desse lugar onde quase não existem mais bi
assim como os caiçaras da região, estão es
chos e plantas. Em meio ao deserto de pasto
premidos em pequenos sítios, reduzidos a
em que a região foi transformada durante o
ilhas de onde resistem bravamente à especu
século XX, conseguem ver a floresta e invo
lação imobiliária, à ocupação de seus terri
car o nome de todos os insetos, os répteis, os pássaros, os animais peçonhentos, as plantas e os fungos que existiam ali e apontar o lugar de cada um na paisagem. Qualquer estudio
tórios e à violência que devasta esse lugar
que 5cus espíritos enxergam, e suas pala vras traduzem, através _de uma cartografia
afetiva. Os parentes Tikmu’un, também conheci dos por Maxakali, que estão aqui no Vale do
so ficaria admirado com esse inventário e com a maneira que eles são capuzes de resti tuir a essa terra a presença de seres que já
Mucuri, vizinhos do rio Doce, falam linda
foram extintos: os Maxakah estão ali representando todo esse gradiente de vida. Em
mente dessa terra da qual foram excluídos.
inêio ã unia mentalidade fazendeira, conse-
Diferente de outros povos nativos daqui, que
guem enxergar uni território cheio cie espíri
bonita? Um especialista no assunto me dis
tos e falar com o mundo invisível. Om povo
se que o microplástico viaja pelo nosso cor
como esse, mesmo quando expropriado de
po e já pode ser encontrado nos bebês que
tudo e sem ter nem chão para pisar, ainda
estão nascendo. Achei isso escandaloso,
consegue recriar um lugar para ser habitado.
mas não podemos nos render a narrativa de
Quando penso no movimento do Watu,
fim de mundo que tem nos assombrado, por
percebo sua potência: um corpo d agua de
que ela serve para nos fazer desistir dos nossos
superfície que, ao sofrer uma agressão, teve
sonhos, e dentro dos nossos sonhos estão as
a capacidade de mergulhar na terra em bus
memórias da Terra e de nossos ancestrais.
ca dos lençóis freáticos profundos e refazer
sua trajetória. Assim, ele nos ensina a evitar
um dano maior. No tal capitaloceno que estamos experimentando não restará ne-
Estamos vivendo num mundo onde so
mos obrigados a mergulhar profundamente na terra para sermos capazes de recriar mura
dos possíveis. Acontece que. nas narrativas
nlmmjugar da Terra que não seja como o
de mundo onde só o humano age, essa cen-
corpo desse rio, assolado pela lama. Ela al
tralidade silencia todas as outras presenças. Querem silenciar inclusive os encantados,
cançará todos os recantos do planeta, assim como os polímeros c os microplásticos al-
cançam a barriga de cada peixe no oceano Por que esses animais devem carregar essas
substâncias em sua estrutura tão leve, tão
reduzir a uma mímica isso que seria espi
ritar , suprimir a experiência do corgo em comunhão com a folha, com o líquen cq/orn
que ativa nossa potência transcendente e que suplanta a mediocridade a que o hurnã'. no tem se reduzido. Para mim, isso chega a ser uma ofensa. Os humanos estão aceitan
do a humilhante condição de consumir a Terra. Os orixás, assim como os ancestrais
indígenas e de outras tradições, instituíram mundos onde a gente pudesse experimen tar a vida, cantar e dançar, mas parece que
a vontade do capital é empobrecer a exis tência. O capitalismo quer um mundo tris te e monótono em que operamos como robôs, e não podemos aceitar isso.
Tem um poeta do povo Kuna, do Panamá,
que se chama Cebaldo Inawinapi. Atual
mente, ele é professor numa universidade do Porto, em Portugal, mas não cessa de
fazer visitas à ilha de Kunayala, onde vive seu povo. Ele conta que o nascimento de
uma criança Kuna implica em identificar
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aquele corpo que chega com uma árvore
___ assim como os Krenak, eles relacionam o umbigo da criança a uma planta. Ele diz
que todos os bosques de Kunayala são for mados por pessoas, têm nome, porque cada
planta coincide com alguém que nasceu ali. Esse trânsito entre um corpo humano e
uma planta pode ocorrer com uma bana
neira ou com uma árvore que vive duzentos anos, não importa, 0 importante é 0 cordão
umbilical ser enterrado no ato de plantar,
então criança e planta compartilham 0 mesmo espírito. Quando João Paulo Barre to fala da concepção do corpo feito de barro na tradição do povo Tukano. do alto rio Ne
gro, também está dizendo que não existe
fronteira entre 0 corpo humano e os outros organismos que estão ao seu redor. Faz um tempo que nos convencemos de que_somos
essa coisa excelente chamada gente e fica-
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mos sem quererno^espraiar em outros or
mundos diversos que podem se afetar. E um
ganismos para além dessa sanitária e higiê
termo talhado de maneira artesanal e local,
nica figura humana. Essa configuração do
por um homem quilombola, um brilhante
corpo acatada hoje por muitos é apenas
pensador marginal neste universo colonial,
uma instituição pobre fabricada por uma ci
um critico sempre tranquilo e bem-humora
vilização sem imaginação.
do das tendências políticas.
Quando eu falo em adiar o fim do mun
Já a convergência política foi tema na
do, não é a este mundo em colapso que es
América do Sul nos últimos quarenta ou
tou me referindo. Esse tem um esquema tão
cinquenta anos. Abraça ideias como a de
violento que eu queria mais é que ele desa
que o peronismo argentino podia se fundir
parecesse à meia-noite de hoje e que ama nhã a gente acordasse em um novo. No en
em uma política moderna, de que o Brasil
tanto, efetivamente, estamos atuando no
Ihismo com o capitalismo e produzir uma
sentido de uma transfiguração, desejando
nova experiência de gestão política neoli-
aquilo que o Nègo Bispo chama de confluên^
beral que substituísse o colonialismo.. Pois
ciasse não essa exorbitante euforia da mono
Nêgo Bispo escapa dessa gramática dizendo
cultura, que reúne os birutas que celebram
que o que interessa a ele são as confluências,
a necropolítica sobre a vida plural dos povos
sendo, ao mesmo tempo, capaz de elaborar
deste planeta. Ao contrário do que estão fa
uma crítica que as articula a convergências
zendo, confluências evoca um contexto de
e divergências. Sem negar os eventos politi-
z]O
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ia conseguir juntar uma espécie de traba-
cos nem querer escapar do sentido hislóm n
escapar ao dano, a vida, a bala perdida, e a
das coisas, ele diz que não precisamos ficar
liberdade não seja só urna condição de acej-
subordinados a essa mesma lógica c procura
tação do sujeito, mas urna experiência tão
animar uma perspectiva cm que as con
r,i(ji( ,il que nos lev< jlém da ideia da finituae.
fluências não dão conta de tudo, mas abrem
\ão vamos deixar de morrer ou ,iiaf,uer coisa do genero, vamos, antes, nos transfi
possibilidades para outros mundos. Essas aberturas permitem, inclusive, que
a gente se negue a fazer coro com o discurso colonial como se tosse nossa última chance de conciliação: "Ah, para a gente se enten der como nação, \ amos todos fazer de con
ta que não houve genocídio". Como consi derar uma história de pátria no meio deste
cemitério continental? Temos que nos in surgir, e as confluências podem nos ajudar nisso. Se o colonialismo nos causou lun dano yuas^irrepaiável foi o de afirmar que somoiHodosjguais. .Agora a gente vai ler que desrpenlir isso e evoca, os .ífiluiI^U cartografias afetivas, nas quais abcuJo que ah pode
ter uma cobra, mas não deixa de pa^ar isso
é coragem. A fricção com a vida proporcio na um campo de subjetividade que prepara a pessoa para qualquer tarefa. Em vez de formatar alguém para ser alguma coisa, de veríamos antes pensar na possibilidade de proporcionar experiências que formem pes soas capazes de realizar tudo o que for ne cessário na vida: sem medo de ter cobra dentro d água ou de levar um coice. Porque tudo isso é integrado, são experiências fun damentais para se perceber como sujeito coletivo, para aprender que não estamos sozinhos no mundo. As crianças Krenak anseiam por serem antigas. Isso porque, nas humanidades em que as crianças ainda têm a liberdade e a autonomia de aspirar mundos, elas valori zam muito os velhos. As pessoas antigas têm a habilitação de quem passou por várias eta pas da experiência de viver. São os contado
res de histórias, os que ensinam as medici nas, a arte, os fundamentos de tudo que é relevante para ter uma boa vida. É o que os )
quéchuas chamam de sumak kawsay e que foi traduzido para o castelhano como hienvivir, ou bem viver, em português. Acredito que nossas crianças sabem sobre a seguran ça mental subjetiva que essa experiência pode proporcionar, e por isso não veem a velhice como uma ameaça, mas como um lugar al mejado, de conhecimento, que questiona a hipótese de formatar pessoas para um outro mundo, e não para o lugar onde cada um de nós experimenta o cotidiano. As crianças indígenas não são educadas, mas orientadas. Não aprendem a ser vence doras, pois para uns vencerem outros preci sam perder. Aprendem a partilhar o lugar onde vivem e o que têm para comer. Têm o exemplo de uma vida em que o indivíduo
conta rnenoc om rio indígena. om cão para geração aprendem dez^e no ritmo da terra