Eu creio, nós cremos. Tratado da fé [2 ed.] 8515020939

O livro é um completo tratado da fé, destinado a estudantes de teologia e a todos os que desejam aprofundar a compreensã

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Table of contents :
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. Opções básicas do curso
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
2. Sentido do cruso
2.1. Relação entre revelação e fé
2.2. Exigências de leitura
2.3. Indicação bibliográfica geral
PARTE I - "EU CREIO"
I. Ponto de partida
1. Quando a fé era o ambiente cultural
2. Quando a subjetividade moderna se impõe
3. Quando a virada sociocrítica se deu
4. Quando ressurgiu a subjetividade pós-moderna
5. Quando se necessita construir uma subjetividade a partir da realidade socioestrutural e cultural no interior do contexto religioso
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
II. A fé no contexto da modernidade e da pós-modernidade
1. Relação entre fé e contexto
2. Contexto histórico-cultural de mudança
2.1. Virada antropocêntrica
2.2. Valorização da história
2.3. Processo de secularização
2.4. Processo de politização
2.5. Éticas da modernidade
2.6. Os meios de comunicação social
2.7. Reverso da modernidade
O prólogo de Zaratustra
2.8. Surto de pós-modernidade
2.9. Novo paradigma
3. Novas tendências da fé
3.1. Da tradição para a decisão
3.2. Da definição para a comunicação
3.3. Da comunicação a certa reserva
3.4. Da confissão para a práxis social
3.5. Da fé em grandes palavras à fé vivida no cotidiano
3.6. Da dimensão intelectual da fé à simbólica e estética
3.7. Da razão instrumental à razão comunicativa
3.8. Do racional ao emocional
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou em grupo
O indíviduo e a modernidade
III. A fé no mundo da subjetividade e da experiência
1. Consideração transcendental da subjetividade
1.1. Perspectiva geral
1.2. A pergunta transcendental
1.3. Natureza do processo teológico
Bibliografia
2. Consideração existencial da subjetividade
2.1. Mudança de perspectiva
2.2. A subjetividade a partir da experiência existencial da modernidade e dapós-modernidade
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A estrutura das experiências de fé
IV. Subjetividade e história
1. "Eu creio" e história
1.1. A aventura da graça
1.2. A trajetória psicológica
a. frase pré-escolar
b. Fase escolar até o limiar da idade adulta
c. A fase adulta
Conclusão
Bibliografia
2. "Eu creio" imerso em circunstâncias históricas
2.1. Um estudo clássico
Bibliografia
2.2. A consciência histórica
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Consciência e história
V. A subjetividade e a sociedade
1. A subjetividade do "eu creio" e a sociedade numa perspectiva formal
Bibliografia
2. A subjetividade do "eu creio" e a sociedade capitalista atual latino-americana
2.1. Considerações gerais
Bibliografia
2.2. A forma atual da sociedade capitalista: um capitalismo avançado,neoliberal e globalizado
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Religião e construção do mundo
VI. A subjetividade e o cosmos
1. A fé no momento da transparência contemplativa
2. A fé no momento da ruptura da harmonia
3. A fé no momento da comunhão
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
O Cântico do irmão sol
VII. Estrutura subjetiva da fé: dimensão antropológica
1. Questões linguísticas
2. Aspecto existencial
3. Aspecto hermenêutico
4. Aspecto práxico
5. Aspecto escatológico
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A realidade de Deus
VIII. A racionalidade da fé
1. Aproximação histórica
1.1. Na Escritura, Patrística e Idade Média
1.2. Na modernidade
2. Questão estrutural
2.1. Natureza da racionalidade da fé
2.2. Significado profundo da racionalidade da fé
3. Exigências variadas de racionalidade
3.1. Fases existenciais
3.2. Nível sociocultural das pessoas
3. Momento atual
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Sobre a fé
IX. A liberdade do ato de fé e sua motivação última
1. Natureza da liberdade do ato de fé
2. Liberdade humana e liberdade cristã
3. Liberdade humana como risco e sofrimento de Deus
4. Liberdade humana como risco e sofrimento do homem
5. Ameaças à liberdade da fé
6. Beleza da fé
7. A sobrenaturalidade da fé
8. A dialética da certeza, firmeza da fé e obscuridade
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Liberdade cristã
X. Fundamento último da fé
1. A aporia da fé
2. Falsos extremos
3. Tentativa de resposta
Conclusão
Bibliografia
Para uma revisão pessoal e/ou grupal
Testemunho divino
XI. Dimensão trinitária da fé
1. Ato criativo e salvífico da Trindade
2. Ação do Espírito no ato de fé
3. A fé como encontro com Cristo
4. A fé como ato diante do Pai
5. Perspectiva trinitária
Conclusão
Bibliografia
Para uma revisão pessoal e/ou grupal
Unidade na Trindade
PARTE II - NÓS CREMOS
A não identidade com a Igreja
XII. Dimensão eclesial da fé
1. Natureza da dimensão eclesial
1.1. Fé recebida da Igreja e transmitida
1.2. "Nós cremos" como uma comunidade de fé
1.3. Dimensão ecumênica da fé cristã
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
2. A fé e seu momento cultural
2.1. A fé como dado cultural
2.2. A "bela unidade": regime de cristandade e neocristandade
2.3. Ruptura da unidade católica
3. A estrutura da fé eclesial
3.1. Consideração geral especulativa
3.2. Diversos níveis da fé
a. Nível do dever
b. Nível teologal
e. Nível cristão
d. Nível eclesial
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Ecclesia mater
XIII. Fé e salvação
1. Necessidade salvífica da fé
2. Necessidade salvífica da prática da caridade e so serviço a Deus e aos demais
3. Necessidade do sacramento (Igreja) para a salvação
4. Reflexão teológico-sistemática sobre esses dados
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Fé como estar e compreender
XIV. A fé trinitária e comunitária
1. A Trindade, origiem de toda comunidade e comunhão
2. O fundamento do "nós cremos" é a Trindade
2.1. Fundamentos teológicos
2.2. Tendências da comunhão
3. Consequências práticas na linha da comunhão e participação
3.1. Na sociedade
3.2. Na Igreja
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A Trindade como mistério de inclusão
XV. Jesus Cristo: centro do "nós cremos"
1. O fato da crise de plausabilidade
2. Fatores socioculturais da crise de plausabilidade
3. Da crise do cristianismo histórico à questão da centralidade de Jesus Cristo
4. As diferentes centralidade de Cristo
4.1. Vertente dogmática
4.2. Vertente histórico-salvífica
4.3. Vertente existencial
4.4. Vertente ecumênico-cristã
4.5. Vertente teocêntrica
Conclusão: retorno a Jesus, centro da Revelação
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A revelação concreta e final
XVI. História da revelação bíblica
1. Relaçao entre história e revelação
1.1. Relação mútua
1.2. Razões da historicidade da Revelação
a. A natureza do projeto criador e salvador de Deus
b. A criação não esgota a realidade de Deus
c. A Revelação histórica enriquece a Revelação da criação
d. O ser humano é histórico
e. A história é o lugar da liberdade e do diálogo
1.3. Características da Revelação histórica
a. Aspecto de progresso
b. Particularidade e universalidade da Revelação
c. Dimensão de práxis da Revelação
d. A dimensão de transcendência na Revelação
2. As grandes etapas da história da salvação
2.1. Fase da promessa
2.2. Fase da realização
2.3. Fase da consumação
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou em grupo
A experiência de um povo
XVII. A Escritura: fonte de fé
1. A Sagrada Escritura: fonte de verdade
2. A inspiração
3. Canonicidade dos livros
4. A verdade na Escritura
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A concórdia dos dois Testamentos
XVIII. A tradição: o que a Igreja crê e vive
1. Problemática
2. Significado humano da tradição
3. Tradição viva da Igreja
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A tradição no coração da Igreja
PARTE III: DESAFIOS ATUAIS
XIX. Fé cósmica
1. O contexto do surgimento da cosciência cósmica
1.1. O momento da harmonia primeira
1.2. O susto da devastação: em busca de suas causas
1.3. Crise dessa percepção
2. Perspectiva holística e ecológica
2.1. Ecologia ambiental
2.2. Ecologia social
2.3. Ecologia mental
2.4. Ecologia integral e espiritual
3. A fé na perspectiva cósmica
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
A divinização das passividades
XX. O diálogo com as religiões
1. Introdução
2. Quadro religioso atual
3. Perguntas básicas do diálogo interreligioso
4. Modelos interpretativos da religião
4.1. Posição ateísta
Bibliografia
4.2. Posição exclusivista ou absolutista
Bibliografia
4.3. Inclusivismo
Críticas
Bibliografia
4.4. Pluralismo
Críticas
Bibliografia
Conclusão
Bibliografia geral
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal
Em busca do amado
XXI. "Nós cremos" na perspectiva da libertação
1. Fé num contexto sociopolítico
2. Figuras da relação entre fé e política
2.1. Política e religião: necessidades humanas
2.2. Diversas figuras históricas
a. Relação de substituição
b. Relação de superação
c. Relação de subordinação
d. Relação de coexistência paralela
e. Relação de implicação não-redutiva dialético-existencial
Conclusão
3. As relações entre ortodoxia e ortopráxis
3.1. Breve história do problema
3.2. Situação do problema
3.3. Definição dos termos
3.4. Posições inaceitáveis
a. Ortodoxia sem referência à práxis
b. Ortopráxis sem referência à ortodoxia
3.5. Posição aceitável
3.6. Pluralismo legítimo
a. Discernimento histórico
b. O balanceamento pedagógico
e. O diálogo entre as Igrejas particulares
Conclusão
Bibliografia
Para uma reflexão pessoal e/ou grupal.
Teologia como reflexão crítica da práxis
CONCLUSÃO
AUTO-AVALIAÇÃO DO CURSO DE TEOLOGIA FUNDAMENTAL
AVALIAÇÃO DO CURSO
FRASES SOBRE "NÓS CREMOS"
ÍNDICE ONOMÁSTICO
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Eu creio, nós cremos. Tratado da fé [2 ed.]
 8515020939

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LIBANIO

EU CREIO NÓS CREMOS

tratado da fé

Edicões Loyola

T HEOLOGICA 1

THEOLOGICA Publicaçôes de Teologia. sob a responsabilidade da Faculdade de Teologia CES - Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus C.P. 5024 (Venda Nova) 31611-970 - Belo Horizonte - MG @5 (0**31) 499-1608- Fax (0**31) 491-7421

THEOLOGICA 1. E11 creio. nós cremos. Tratado da fé

J. B. Libanio, SJ

JOAO BATISTA

LIBANIO

EU CREIO NOS CREMOS TRATADO

��

Edlfi,esloyolo

DA

FE

REVISÃO: Silvana Cobucci Leite DIAGRAMAÇÃO: Miriam de Melo Francisco

Edições Loyola

Rua 1822 n" 347 - lpiranga 04216-000 São Paulo, SP Caiu Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP (§) ( 11) 6914-1922 Ciã) ( 11) 6163-4275 Home pagc e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected] Todos os direitr,, reservudo.f. Nenhuma parte desta ohru pode ser reprodu::ida ou trunsmitida por qualquer ji,rma e/ou quaisquer meios (eletrtinico ou mecânico. inc/uindofotocópia e g,uvuçüo) ou arquil'ada em qualquer .ONTO OI l'ARTIOA-------------

F•to particular com pretensão universal

A subjetividade moderna é extremamente particularista. Todo sujeito é único, individual. E a pretensão de a Revelação ser universal entra em choque violento com ela. Com efeito, a Revelação cristã é um fato particular, acontecido no seio de um povo (Revelação veterotestamentária) e na pessoa de um judeu do século I (Revela­ ção cristã), com significado universal salvífico e na qualidade de Palavra de Deus para toda a humanidade de todos os tempos. A pretensão universal da experiência particular do cristianismo significa que o homem Jesus é a última e definitiva palavra de Deus na história. É o próprio fil ho de Deus. A mentalidade moderna e pós-moderna prima por ser tolerante, relativista, pluralista, de um ecumenismo religioso espiritual amplo, e por isso refoga altamente as pretensões exclusivistas da verdade por particulares, quaisquer que sejam eles: Estado, partido, classe. raça, cultura ou religião. Nesse sentido, a Revelação cristã conflita altamente com essa mentalidade. Em termos estritamente filosóficos. Lessing sustentava que "as verdades históricas, por serem contingentes. não podem servir de prova das verdades de razão, que são neces­ sárias"13. Ora, o fato da Revelação é um acontecimento histórico contingente, logo não pode ser prova de uma Revelação com verdades divinas, necessárias e obrigatórias. Caráter de obrigatoriedade

O caráter de obrigatoriedade da Revelação cristã assume uma dimensão autoritativa e é percebido como uma "imposição opressiva" contra a qual a razão moderna reage virulentamente, ao sentir-se ferida em sua autonomia. Tal Revelação parece não respeitar a diversidade dos povos, culturas e religiões. Com efeito, proposições podem ter sentido em dado quadro cultural ou religioso, mas podem tomar-se objeto irrelevante ou mesmo sem sentido e inaceitável. fora desse quadro. Como ser significativo para fora do mundo ocidental? Eis um desafio à Revelação cristã 14 • Tensão com a razão científica

A razão científica crítico-literária pretende tratar os escritos da Revelação como obra humana, sujeita a todas as regras, equívocos e ambigüidades da Escritura. e não suporta que eles sejam considerados intocáveis, expressões de urna verdade transcendente. 13. G. E. Lessing. Sobre la demo11stració11 e11 espíritu yfuer..a, p. 447, cit. por A. Torres Queiruga, A Revelação de Deus na reali;:ação humana. São Paulo, Paulus, 1995, p. 130. 14. R. Panikkar, "Métathéologie ou théologie diacritique comme théologie fondamentale", in Concilium n. 46 ( 1969), pp. 42s. 33

-------------"[u cRuo"-------------

A razão moderna. sob múltiplas formas. submete a Revelação a suas análises e rejeita tudo o que lhe supera a compreensão. como mitológico. O filósofo francês Henri Gouhier disse que "a ciência moderna nasceu no dia em que os anjos foram expulsos do céu". Por isso. Pascal podia afirmar: "O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora•·is_ O silêncio do Deus da criação é mais terrível que o do Deus da Revelação. A razão científica escreve "o grande livro da natureza em caracteres geométricos" (G. Galilei) e pretende submeter a seu tribunal toda verdade que se apresente em nome de alguma outra autoridade que não ela. Exigências e limites desse caminho

A subjetividade tomou-se doravante caminho obrigatório de qualquer reflexão moderna. Mas ela tem aprisionado e alienado as pessoas diante do escândalo da rea­ lidade social. Nesse sentido, a teologia da libertação propugnou outro ponto de partida. que vem constituindo um dado comum de nosso continente. 111. QUANDO A VIRADA SOCIOCRÍTICA SE DEU Estruturas sociais injustas

A credibilidade da Revelação vem sendo ameaçada entre nós sobretudo por causa de sua escandalosa ineficácia para a transformação duma realidade social injusta. Mais: a fé cristã é acusada de conivente e justificadora dessa situação. Este libelo de acusação à fé cristã foi percebido pelos bispos latino-americanos em Puebla: "Sem dúvida. as situações de injustiça e de pobreza extrema são um sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança ideológica e da organiza­ ção da convivência social e econômica de nossos povos. Em povos de arrai­ gada fé cristã impuseram-se estruturas geradoras de injustiça" 16• O fato dos pobres

As estruturas sociais injustas na América Latina têm nome e rosto 17• Todos eles têm a ver com os pobres e excluídos. Este continente, em que a Revelação cristã é mais aceita por concentrar em si a maior massa de cristãos do mundo, ostenta estru15. G. Gusdorf. A agonia da nossa cfrilização, São Paulo, Convívio, 1978, p. 33. 16. Documento de Puebla, n. 437. 17. lhid., nn. 31-39.

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PONIO Ili l'/\llllll/\-------------

turas sociais escandalosas. como em nenhum outro lugar. A ineficácia de tal Revela­ ção na ordem da práxis desabona-a como divina. Em outros termos, a situação de dominação e opressão da América Latina desacre­ dita uma Revelação que, por ser de Deus, deveria ser fonte e inspiração de libertação. E em nome dessa Revelação se aniquilaram milhões de indígenas. trouxeram-se mi­ lhões de escravos da África e ainda se mantêm alienadas milhões de consciências. Nesse sentido, há estreita vinculação entre a credibilidade da Revelação cristã e da Igreja e a situação de injustiça social do continente latino-americano. A prolongação de tal situa­ ção vem em desabono da força histórica dos que crêem em tal Revelação. Situação de dominação cultural

Ultimamente tem-se ampliado o campo de desafios à Revelação cristã no con­ texto latino-americano. A consciência dos movimentos negro e indígena tem levan­ tado questões sobre aspectos impositivos da Revelação cristã, que não têm respei­ tado a autonomia dessas culturas. A reflexão teológica sobre a Revelação, como vinha sendo conduzida, não oferecia muito espaço a um diálogo com culturas tão estranhas ao mundo ocidental cristão. O problema da inculturação não é só dos países asiáticos e africanos, mas coloca-se também. de modo candente, em nosso contexto. Os povos indígenas e a crescente consciência negra vêm tornando-se interlocutores importantes da e na evangelização. Sem um repensamento mais sério da compreensão da Revelação, não se tem condição de estabelecer sério diálogo 18 • IV. QUANDO RESSURGIU A SUBIETIVIDADE PÓS-MODERNA O novo contexto cultural

O muro de Berlim ruiu. O socialismo real entrou em crise. A pós-modernidade cultural triunfa. O neoliberalismo impera. A subjetividade impõe-se ainda mais exa­ cerbada. Agora, diferentemente do momento da modernidade. ela mostra sua face de vingança e vitória sobre os movimentos sociais. É um rosto vincado de cansaço e de esforços fracassados nas lutas políticas. Já não é uma subjetividade ingênua, que ainda não descobriu a dimensão social. Antes, está decepcionada e arrependida com tanto trabalho e compromisso passado. Está perplexa 19 • 18. J. O. Beozzo cita inúmeros testemunhos vivos de indígenas que retratam esta problemática: J. O. Beozzo, Eiwrgeli:uçiio e V Ce111e11ário. Passado e f11111ro 11a Igreja da América Latina, Petrópolis, Vozes. 1990. pp. 10-20; CNBB-Leste I. Macumba: cultos afro-brasileiros. São Paulo, Paulinas, 1976. 19. M. de França Miranda. Um homem perplexo. O cristão na .wciedade atual, São Paulo, Loyola, 1989. 35

--------------"Eu cRuo"--------Seu caráter religioso

Além disso, domina-a a avidez de satisfação em todos os campos, até no religio­ so. E as respostas são medidas por sua capacidade de responder às demandas. O esquema comercial consumista se estende a toda realidade. As religiões têm entrado nesse jogo gigantesco do mercado da fé. Apresentam­ se, não raro, como tendas, compondo imenso supermercado, aonde o freguês religio­ so vai buscar seu produto e construir sua cesta religiosa pessoal. Nesse cenário se entende a proliferação de denominações religiosas num pluralismo feérico. Não se pode desconhecer essa onda pós-moderna em sua posi­ tividade e negatividade. Em outro momento, vamos trabalhá-la em confronto com a vivência da fé cristã. No entanto, não pode ser considerada o ponto exclusivo de partida de nossa reflexão teológica. Ela tem produzido o obnubilamento dos problemas sociais. E no momento há uma crise social ainda maior, que já atinge até mesmo países que pareciam ter resolvido definitivamente as injustiças sociais.

V. QUANDO SE NECESSITA CONSTRUIR UMA SUBIETIVIDADE A PARTIR DA REALIDADE SOCIOESTRUTURAL E CULTURAL. NO INTERIOR DO CONTEXTO RELIGIOSO Subjetividade imprescindível

Este é nosso ponto de partida. "Eu creio." Não podemos esquecer a definitiva virada antropocêntrica, a necessidade de partir da subjetividade. A experiência pessoal é categoria central de intelecção e de decisão. Passamos definitivamente do mundo da Tradição garantida pela autoridade como fonte de verdade, de valores, de bem, para a experiência pessoal. Distanciamo-nos do primeiro caminho, que partia da Tradição, da Revelação como um dado (fato ou conteúdo), tanto numa perspectiva apologética como numa sistemática. Subjetividade no contexto histórico socioestrutural

Ao adotar o caminho da subjetividade, separamo-nos também do caminho que considera a subjetividade principalmente em sua transcendentalidade como condição a priori do conhecimento, das decisões. Pensamos a subjetividade construída no in­ terior da historicidade e em relação à realidade sociocultural que vivemos. Nem por isso, detivemo-nos exclusivamente no ponto de partida do ver analítico da realidade social especialmente em suas estruturas político-econômicas. Nisso, tentamos superar certo limite da teologia da libertação, como foi praticada em muitos setores. 36

------------PONTO Dr. PARTIDA------------

Subjetividade no contexto sociocultural

Procuramos pensar a subjetividade em sua relação constante. sempre em movi­ mento e modificação, com o campo sociocultural. Esta dimensão é vista antes através do impacto que causa na subjetividade que em sua realidade objetiva descritiva. Por­ tanto, nem é a subjetividade da filosofia moderna européia, nem a realidade social em sua consistência objetiva autônoma. Mas. antes de tudo. a subjetividade, como fator dominante no momento atual. vista em sua configuração histórica e concreta sob o impacto da realidade do Terceiro Mundo. E evidentemente nessa realidade a presença do pobre é decisiva e fundamental. Subjetividade no contexto sociorreligioso

Acrescentamos ainda um fator. Essa subjetividade, sócio-historicamente confi­ gurada, não é considerada em sua secularidade autônoma. Estamos em pleno contexto religioso. É uma subjetividade profundamente afetada pelo pluralismo religioso, pe­ las inúmeras ofertas de crenças. Subjetividade da identidade católica

Todos esses aspectos não definem ainda toda a subjetividade de quem crê. É dentro de uma Igreja católica ("nós cremos") que se vive a própria aventura da fé ("eu creio"), e a partir daí se percorrerá a trajetória do tratado. Portanto, "eu creio" e "nós cremos·•.

Conclusão A fé católica já foi cultura em nosso continente. Pouco a pouco, a modernidade invadiu esses ambientes culturais religiosos, secularizando-os. Fomos também toca­ dos pela onda social, que exigiu uma fé comprometida com a transformação da rea­ lidade. Ultimamente, surge um forte movimento espiritualista com acento sobre a subjetividade individualista. Nossa reflexão teológica não pode prescindir dessa subida da subjetividade, nem também perder a dimensão social e o compromisso com os pobres. Por isso. o cami­ nho que se nos delineia procura respeitar a subjetividade do "espírito do tempo", construindo, porém, uma subjetividade que incorpore as conquistas sociais adquiridas e permaneça fiel à opção pelos pobres. E nossa fé, sempre situada, deve encontrar nessa encruzilhada sua expressão coerente. Bibliografia J. B .. Teologia da Re1·elação a partir da modernidade. São Paulo. Loyola. 31997. pp. 1727. 31-37.

LIBAt-10.

37

-------------"Eu cRno"------------Para uma reflexão pessoal e/ou grupal l. Para que nasce a teologia fundamental na idade moderna e por que até então ela não foi necessária? 2. Qual a questão apologética fundamental levantada pela Reforma? 3. Que deslocamentos trouxe para a teologia fundamental o confronto com o deísmo e com o ateísmo? 4. Em que se diferem a via apologética e a via dogmática do estudo da Revelação? 5. Em que consiste a apologética da imanência e que problema veio resolver? 6. Explique em que consiste a mentalidade antiintervencionista e sua razão de ser. 7. Explicite o confronto entre a modernidade e a Revelação. 8. Que provocou a virada sociocrítica? 9. Que novidade trouxe a compreensão pós-moderna da subjetividade? 10. Em que consiste precisamente o ponto de partida que assumimos? Dinâmica: Júri simulado l. Um aluno assume a defesa da subjetividade moderna e pós-moderna. explicando simplesmente diante dos colegas em que consiste essa subjetividade que vai de­ fender, sem dar as razões. 2. Outros alunos designados ou espontaneamente levantam dificuldades contra a subjetividade: - filosoficamente - teologicamente 3. O defensor procura então ir respondendo às objeções dando as razões da neces­ sidade da virada da subjetividade.

A BUSCA DO SENTIDO: UMA ILUSÃO? "Eis sem dúvida um dos paradoxos mais notáveis de nossa situação presente: a questão do sentido se apresenta com maior acuidade do que nunca em nossas existências privadas, está menos que nunca representada na esfera pública. Quando tudo vai bem, ou mais ou menos, podemos sem dúvida manter esse paradoxo à distância. Mas basta passarmos por um acontecimento que transtorne nossa vida, um luto, um fracasso, a perda do emprego, para nos encontrarmos brutalmente confrontados a interrogações metafísicas que teríamos imaginado de outra época: por que nos sacrificar tanto a 38

-----------PONlO nr. MRTll'>A-----------

nossos 'apegos', se os seres humanos são fadados à mudança e ao desapa­ recimento? Por que investir em determinada atividade profissional em vez de em outra, ou mesmo num trabalho qualquer? Quem dentre nós não imaginou um dia ou outro, nem que por hipótese, outra vida, a vida que poderíamos ter tido com outra mulher, com outro homem, se tivéssemos nascido em outro lugar, em outro país, cm outro meio, se tivéssemos tido a possibilidade ou a audácia de partir para não sei que viagem sem vol­ ta? ... Que significação dar à minha vida, se ela não é mais que contingên­ cia? O sentimento da relatividade das nossas existências não passa, é cla­ ro, de uma ocasião entre outras para encontrar a questão do sentido ... Nada impede porém de acreditar em Deus, e muitos cientistas de hoje são crentes. É claro que, de todos os discursos, o religioso é aquele que, por excelência, pretendeu responder à questão do sentido da vida: não apenas ele nos promete a imortalidade como atribui a nossas condutas uma referência moral absoluta, a nossa história um termo último e, no melhor dos casos, salvador. Mas aqui também a dificuldade com que se chocam as grandes religiões não poderia ser subestimada: elas se torna­ ram, nas sociedades laicas, simples problema de opinião privada. Cada um pode escolher sua fé à la carte, temperar seu cristianismo com um pouco de budismo, construir sob medida para si um islã duro ou modera­ do, ser ateu e talmudista, distinguir nas palavras das autoridades o que melhor convém à sua 'sensibilidade' e rejeitar todo o resto ... Assim, é o próprio princípio da verdade revelada que é questionado pela exigência moderna de sempre pensar se possível por si mesmo ...e não por Deus ou por Seus representantes. A exigência de autonomia entra em conflito com o que o discurso religioso tem de mais específico: o momento da Revela­ ção, isto é, da humildade que a consciência da dependência radical em relação ao Outro implica ..." L. Fcrry, "A busca do sentido: uma ilusão?", in A. Comtc-Sponvillc-L. Fcrry, A sabedoria dos modernos, São Paulo, Martins Fontes, 1999, pp. 263. 265.

39

CAPÍTULO

2

A FÉ NO CONTEXTO DA MODERNIDADE E DA PÓS-MODERNIDADE ''A primeira causa do mal-estar da modernidade é o individualismo." Ch. Taylor

Tríplice pergunta

Três perguntas vão ocupar-nos neste capítulo. Qual é a relação entre a vivência da fé e determinada situação social? Que fatores importantes marcam esse contexto de modernidade e pós-modernidade? E, finalmente, quais as tendências da fé na modernidade e pós-modernidade?

1. RELAÇÃO ENTRE FÉ E CONTEXTO Situação, decisão e graça

"Eu creio", "nós cremos". Não há fé fora do contexto cultural em que vivemos. O universo cultural marca-nos a fé. Tanto a Revelação é interpretada e lida a partir dessa situação, como a fé encontra aí suas respostas. O ser humano, que responde ao chamado de Deus, é um ser inteligente, histó­ rico, que vive dentro de determinado contexto social. Por isso, a fé só pode ser enten­ dida e vivida por ele nessa situação histórica. A fé supõe de nossa parte um assentimento, em que nossa inteligência aceita a realidade interpelante da Revelação, do Deus verdadeiro que nos chama à salvação 41

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CRIIO"--------------

comunhão com a Trindade. Mas essa aceitação implica, de nossa parte, pleno obséquio, obediência de fé. É uma atitude pessoal de confiança, de comunhão com Deus. Toda essa realidade é orientada, destinada a um encontro definitivo e pleno com a Trindade. Fé implícita ou explícita

Nem sempre vivemos a fé de maneira declarada. Há um nível profundo, ético­ histórico, em que respondemos com nossa vida a um valor vinculante por ele mesmo. Podemos, porém, nomear esse valor, chamando-o de Deus. Esse Deus pode ser enten­ dido em relação com a pessoa de Jesus. Mais: é-nos dado perceber que a Igreja é a comunidade em que tal fé se nos torna mais explícita. Teologia: reflexão sobre a fé eclesial

A teologia consiste na reflexão sobre essa fé eclesial (lides q11aerc11s i11tellect11111. a fé que busca compreensão). Ela tem a finalidade seja de justificar nossa própria fé. seja de oferecer elementos de ajuda a irmãos na fé que passam por túneis escuros de dúvida, de crise. de incerteza. Crentes e ateus defrontam-se com a fé

A fé é problema de todos. Quem crê é questionado pelo ateísmo que invade todos os setores da sociedade e da cultura, transformando-se em realidade que ques­ tiona a fé por dentro. Em cada pessoa que crê. dorme um ateu. Ao conviver ao lado de tantos que crêem, o ateu. por sua vez, não deixa de ser interrogado por eles. Ou certas realidades ''divinas", como a vida de um santo. o heroísmo da caridade, a pureza corajosa de uma virgem mártir. a renúncia alegre e livre de muitos seguidores de Cristo, enfim a parábola viva de cristãos, terminam por abalar a não-crença do ateu. Em cada ateu, esconde-se um crente. Somos crentes e ateus. Tal realidade vem da estrutura da fé. As condições socioculturais agravam tal tensão, sobretudo a partir da época moderna e contempo­ rânea com as grandes crises do renascimento, da ilustração, do neopositivismo das ciências e técnicas. da primazia da práxis etc. Neste capítulo, queremos debruçar-nos sobre alguns aspectos dessa situação de modernidade e pós-modernidade, e como aí vivemos nossa fé. Como o tema da modernidade e pós-modernidade é muito amplo e já o tratamos em outro momento'. 1 . Teologia da Rel'elação a partir da modernidade. col. Fé e realidade. n. 3 I. São Paulo, Loyola. '1997, pp. 111-162. 42

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procuramos aqui retomar alguns fatores importantes que agem sobre nossa vivência de fé e impingem-lhe novas orientações. li. CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DE MUDANÇA Além da ameaça imanente a toda fé pela sua natureza de mistério, os contextos sociais podem dificultar ainda mais sua vivência. É o caso da modernidade e pós­ modemidade. Que aspectos delas têm provocado dificuldades e rompido a serena tranqüilidade da fé tradicional? 1. Virada antropocêntrica Fé e antropologia

Se a fé é a resposta do ser humano à Revelação, as mudanças na compreensão do ser humano refletem na maneira de ele viver sua fé. Em outros termos. a cada concep­ ção antropológica corresponde uma compreensão da fé e, vice-versa, em cada com­ preensão da fé subjaz uma antropologia. As variações antropológicas afetam diretamen­ te as visões de fé. O ser humano é consciência, liberdade, fonte de valor. Toma consciência de sua dignidade, de sua capacidade de decisão, de sua autonomia. Faz passar pelo crivo de sua percepção e experiência os dados da tradição. Mais. Entende a si mesmo como um ser em diálogo, em comunicação com os outros. Sua própria autoconsciência não se constrói a não ser na relação com o mun­ do, com a história, com os humanos, com a Transcendência. Ele amplia tal consciência para o mundo da política, resistindo aos regimes impositivos, autoritativos. Estabelece a democracia como conquista irreversível de sua consciência política, apesar das oscilações da história. Os momentos de fascismo e negação da democracia não passam de sinais patológicos da sociedade ou soluções radicais e passageiras para doenças graves. Exige-se a volta à democracia o mais rápido possível. InBuência sobre a fé

Decisão. comunhão, participação afetam todos os rincões da experiência humana. incluindo a religiosa. Fora dessa perspectiva antropológica, dificilmente se consegue compreender a maneira como este habitante da modernidade possa vivenciar sua fé. Desloca-se o acento para a decisão precisamente porque essa nova consciência de si leva o ser humano a considerar-se fonte da verdade, relativizando as verdades 43

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objetivas, atribuindo maior importância à autenticidade e veracidade que à verdade em si. Entra-se no novo mundo da interpretação, em que o círculo hermenêutico se estabelece entre o dado objetivo e o universo experiencial do sujeito. Ascensão da burguesia

Tal antropologia corresponde à ascensão da burguesia. Este sujeito histórico é cioso de sua liberdade, consciência, capacidade de decidir, e refuga as injunções, os valores impostos. Atribui, em abstrato, a todo ser humano a situação privilegiada que experimenta. E quando de fato as classes proletárias quiserem, elas também, partici­ par desses mesmos direitos, serão violentamente reprimidas. Defende-se um I iberalis­ mo político e econômico que, no fundo. afirma o predomínio da propriedade privada e de todo tipo de "privaticidade" daqueles que têm, em concreto, o privilégio de usufruir tal situação. Fé e ideologia

Nesse sentido, a fé, em sua expressão subjetiva, vai sofrer desses avatares ideo­ lógicos. ao querer, com razão. valorizar o ser humano como existência, como ser situado no tempo e no espaço, condicionado no conhecer, amar. agir etc. A diferença das situações termina por privilegiar o sujeito burguês possuidor dos bens de produ­ ção ou os íntima e organicamente ligados a ele. 2. Valorização da história Ser humano: sujeito da história

Fundamental na reestruturação da antropologia e, por conseguinte, da fé foi a com­ preensão do ser humano como sujeito da história. A história, percebida como destino ou obra dos deuses ou pura realização da divina providência, terminava obscurecendo a consciência de responsabilidade das pessoas. A fé exprimia-se nessa visão em aceitar um destino já traçado por Deus. Os acontecimentos impunham-se, porque Deus assim os queria. A parcela da liberdade no diálogo com o próprio Deus desaparecia. Historicidade e fé

À medida que a historicidade entra na consciência do homem e mulher moder­ nos, eles entendem a fé em diálogo responsável com Deus, interpretando os aconte­ cimentos como seu resultado e não unicamente determinados por Deus. Eles se sa44

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bem, ao mesmo tempo, em relação aos acontecimentos como alguém que é determi­ nado por eles e os determina. Assim também em relação a Deus sabem-se também no mesmo tipo de relação. Deus é fundamental para entender o que acontece no mundo. mas não dispensa analisar os outros fatores humanos históricos. A própria salvação deixa de ser encarada em sua estaticidade e em seu caráter de último ato da vida para assumir a dimensão de história da salvação universal, particular e pessoal. Toda a humanidade. como humanidade. está envolvida na história da sal­ vação. Um povo em particular - Israel - e uma comunidade privilegiada - a da Igreja primitiva - perceberam uma palavra explícita que nomeia os acontecimentos salvificamente. E cada um de nós pessoalmente pode também ir lendo sua história de salvação à luz do grande desígnio salvífico universal de Deus e de sua manifestação no contexto judeu-cristão. Consciência histórica e critica

A consciência histórica liberta o ser humano de uma leitura ingênua, "quixotes­ ca" e fatalista dos acontecimentos. Permite-lhe a superação de um providencialismo religioso alienante. Descobre-se com um serviço, tarcfa, função dentro da história e sociedade. Reinterpreta a transcendência em articulação com a imanência intra-histó­ rica. Consciente dos condicionamentos históricos, o ser humano procura ultrapassá­ los criando projetos novos para o futuro. Nesse movimento, a fé cristã deixa-se reinterpretar em profundidade, desvelando sua dimensão social e prática. 3. Processo de secularização Secularização e surto do sagrado

Fator bastante trabalhado cm décadas anteriores, continua atuante hoje. sob for­ mas até mesmo paradoxais. Sem dúvida. não aconteceu uma secularização enquanto secularismo. Não houve uma perda total da dimensão religiosa e transcendente do ser humano. Desmente tal diagnóstico o surto do sagrado. que eclode até nos países mais avançados. Em princípio, estes deveriam estar definitivamente secularizados. Sentido da secularização

Há, no entanto, uma real secularização no sentido da dificuldade de o homem e a mulher modernos integrarem as experiências religiosas no conjunto de sua vida profissional, familiar e social. Sofrem de verdadeira cisão interna. As experiências secularizadas e religiosas coexistem em suas pessoas de maneira paralela. O sagrado 45

--------------"Eu cRuo"-------------já não é a instância normativa, de referência, que integra as outras experiências e lhes dá sentido. É uma entre tantas. Perda de força dos sistemas religiosos

Com isso, os sistemas tradicionais de valores e de normas. religiosos e morais. perdem sua influência em proveito das experiências pessoais. do pluralismo de posi­ ções. Na sociedade moderna, qualquer pessoa. grupo ou instituição tem o direito de criar seu sistema de valores morais e religiosos e propô-lo aos que o desejarem. Por isso, os sistemas tradicionais perdem o monopólio e sofrem a concorrência de propos­ tas alternativas. Em termos de instituição, a Igreja tende a tomar-se "diáspora"!, "reduto privado", oferecido à escolha de seus fregueses3 • Fazem parte dela os que se decidem por ela. Necessidades do homem e da mulher modernos

O homem e a mulher modernos, vivendo dentro de centros urbanos. industriali­ zados, altamente marcados pela técnica, pela ciência, não carecem de outras referên­ cias para sua vida além das oferecidas pelas diversas esferas em suas respectivas espe­ cialidades. Quando precisam do consolo espiritual. do silêncio religioso. da ambientação sagrada, dirigem-se à religião ou igreja que lhes ofereça melhor resposta. Fé como resposta atualizada

A fé cristã. de algum modo que seja, não pode renunciar a oferecer às pessoas uma resposta a suas reais aspirações. Nesse sentido, os apóstolos devem conhecer as condições objetivas, as necessidades fundamentais, os desejos profundos da atual geração para dirigir-lhe uma palavra inteligível e aceitável. Não significa sem mais pura condescendência. Tal palavra pode assumir forma de crítica, desde que seja entendida e pertinente. Pois, de dentro de suas experiências, muitas pessoas sentem as conseqüências negativas da atual sociedade do desperdício, da poluição e da cultura da morte. A fé pode precisamente ser uma resposta pelo fato de questionar todas essas negatividades e oferecer sentido profundo e verdadeiro para a vida.

23-34.

2. K. Rahncr, Missão e graça: pastoral em pleno século XX. vol. 1, Petrópolis, Vozes, 1964, pp.

3. Th. Luckmann, Lo religión invisible. El problema de la religión en la sociedad moderna. Snlumuncu, Sl11ucmc, 1973. 46

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1( NO UlNIIXIO llJII MODIRN111"nl I llJII l'Ó'i-MODIRNlllJlllll ----

4, Processo de politização Movimentos revolucionários libertadores

Em íntima relação com a consciência histórica. surge também a percepção cres­ cente do papel político do homem e da mulher. Num primeiro momento, uniram-se ao processo de politização os movimentos revolucionários libertadores. Cada continente viveu-os de modo diferente. A Europa foi sacudida pela mobilização estudantil que eclodiu. de modo surpreendente. em maio de 1968 na França. A África, na busca de sua independência. foi atravessada por movimentos de libertação em relação ao velho colonialismo europeu. A América Latina fez experiên­ cias semelhantes nas camadas letradas e no meio do povo. Surgiram vários movimen­ tos revolucionários em busca da libertação do sistema capitalista, que mantém o povo na dupla dependência das classes burguesas e do capital internacional. No meio po­ pular também nasceram movimentos sociais de cunho libertador. Crise das ideologias

Mais recentemente tais movimentos se viram confrontados com uma dupla ex­ periência: o fracasso das grandes ideologias e a necessidade de criar uma nova socie­ dade, um novo ser humano, uma nova ordem. A ideologia socialista sofreu com o colapso econômico e político dos países do Leste europeu4 . O capitalismo continua mostrando sua absoluta incapacidade de re­ solver o problema da pobreza. Alimenta crescente insensibilidade diante das injusti­ ças sociais e estruturais. No máximo, apresenta soluções assistencialistas. As guerras. a política internacional servem ao jogo de interesses dos grandes grupos políticos e econômicos. Tal situação pede nova releitura da fé cristã em chave sociopolítica. 5. Éticas da modernidade Vivemos sob o impacto de três éticas que minam e ameaçam a fé cristã: a ética do desempenho ou progresso. a ética da satisfação e a ética dos condicionamentos, do controle. 4. Frei Betto. Fome de pão e de bele:a. São Paulo. Siciliano, 1990, principalmente em: "O socia­ lismo morreu. Viva o socialismo'". pp. 260ss. e passim: L. Boff, "Implosão do socialismo e teologia da libertação", in Tempo e presença 12 ( 1990), n. 252: todo esse número é dedicado a tal problema: L. Boff. "Implosão do socialismo autoritário e a teologia da libertação", in REB 50 (1990), n. 200, pp. 76-92; "Socialismo e socialismos", in Lua Nm•a, n. 22 (dez. 1990): "Debate -Adeus ao socialismo", in Nol'os Estudos Cebrap. n. 30 Uul. 1991). pp. 7-42: J.-Y. Calvez. "Que) avenir pour !e marxisme", in Etudes 373 (nov. 1990). pp. 475-485. 47

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Ética do desempenho

A ética do desempenho valoriza a produtividade, o resultado. É o reino da razão instrumental. Essa razão estabelece os objetivos com toda frieza e organiza os meios para obtê-los de maneira eficiente, competente. a baixos custos e altos benefícios\ Cria-se um novo ethos. O ser humano comporta-se instrumentalizando facilmente os meios em vista da obtenção de um fim. Encontra nesse próprio movimento sua ética. Delfim Neto, ministro da economia durante o regime militar, não se acanhou em dizer que a economia é a-ética. Em outros termos, significa que o sistema estabelece uma meta de desenvolvimento e a única ética que se deve levar em consideração é a da eficácia dos meios entre si ordenados para alcançar a meta proposta. A morte de inú­ meras pessoas, a miséria de outras, o enriquecimento de uma minoria, tudo isso é visto sob o aspecto da necessidade do desempenho do projeto programado. É a falên­ cia da gratuidade, de valores refratários a esse tipo de funcionalidade eficaz. Ora. a fé nasce de uma dupla atitude de gratuidade: de Deus que se revela e interpela o ser humano, e deste que acolhe o chamado do Senhor na liberdade. Ética da satisfação

A ética da satisfação centra-se na busca do prazer, considerado resposta gratifi­ cante às necessidades. O caráter prazeroso das ações torna-se critério decisivo para sua realização. E as que são desagradáveis só são aceitas se recebem um direcionamento a um prazer, ainda que remoto. A pílula amarga do trabalho cansativo. às vezes desu­ mano, é tragada. envolvida na camada açucarada da remuneração econômica, fonte de enorme gama de prazeres. Várias pesquisas confirmam o império da ética da satisfação. Segundo uma delas, os países mais ricos da Europa ocidental consideram como o maior valor a felicidade da própria pessoa. Esta é entendida como satisfação da necessidade afetiva de um/a companheiro/a, independentemente de qualquer relação pennanente6 . No fundo, está em jogo um individualismo disfarçado, já que o outro só interessa como forma de auto-satisfação. A fé não refuga sem mais o prazer. Entretanto, ela o faz girar em torno do dom. Assume-o à medida que ele traduz a outra face do dom e nunca como núcleo em volta do qual o dom gravita. Inverte a posição dos astros. Do prazer-centrismo, em que tudo gira em torno do prazer, passa para o dom-centrismo, em que o dom é o aol do sistema. �. Ch. Taylor, L, mulalst dt la modm,ité, Paris, Du Cerf, 1994. pp. 28-31. fl, J, !loett.ol, /,., valtur.f du ttmps présent: une enquête européenne. Paris, PUF, 1983. 48

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Btica do controle

A ética do controle é mais terrível. Pratica-se mais do que se defende. Talvez ninguém tenha coragem de defendê-la como sistema de vida. Contudo o universo da propaganda fundamenta-se nela. A. Huxley teve a ousadia de retratá-la com toda a clareza em sua ficção7 • B. Skinner teoriza-a, desenvolvendo um método comporta­ mentista em psicologia8 • Independentemente dessas formas mais elaboradas, vive-se no cotidiano uma batalha violenta de condicionamentos que pautam os comportamen­ tos humanos. Chame-se de moda, de estar atualizado, de seguir a propaganda, de deixar-se conduzir pelos meios de comunicação social e pelas colunas sociais, de etiquetas, de costumes estabelecidos etc. Os condicionamentos avultam exatamente num mundo em que se fala tanto de liberdade. Até nesse afã de liberdade há muito de condicionamento, trabalhado e conduzido por grupos interessados. Além da psicolo­ gia, a sociologia tem também desmascarado a gigantesca força das estruturas condicionantes. A fé reconhece a condição de encarnação e de historicidade de quem crê. Sabe que a mensagem de Deus e as respostas humanas são condicionadas pela cultura, pelas situações históricas. Contudo, afirma-se como dado inegociável da fé sua con­ dição de liberdade. Dupla liberdade: de Deus e do ser humano.

6. Os meios de comunicação social Mídia como conteúdo

Os meios de comunicação social exercem de duas maneiras uma influência na transformação da fé cristã. De um lado, eles são veículos que transmitem mensagens codificadas pelos centros produtores. Estes, por sua vez, situam-se no coração da modernidade técnica, científica. econômica e veiculam os valores que lhes respon­ dam aos interesses. Nesse caso, os meios de comunicação são, por assim dizer, neu­ tros. O conteúdo é dado pela modernidade cultural, econômica. política. Mídia como cultura

Mas eles também têm uma ação própria em virtude de sua natureza de transmitir conhecimentos. sentimentos e valores. predominantemente pela via das imagens. Estão produzindo um novo tipo de cultura. As pessoas modificam seus hábitos mentais. 7. A. Huxlcy. Admirâl'el m111ulo 1101·0. col. Dois Mundos. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. 8. B. Skinncr. O mito da liberdade. Rio de Janeiro, Bloch, 31977.

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Substituem a reflexão pela intuição. a palavra-idéia pela imagem-palavra. A fé en­ quanto privilegiava ajides quaerens intellectum se vê fortemente questionada por um novo modo de pensar que não busca a inteligência mas a plasticidade, a imagem, a emoção. a representatividade. A pedagogia e a psicologia estão ainda engatinhando na descrição e conheci­ mento dessa nova geração de crianças e jovens que nasceram na era da informática. dos meios de comunicação. Sua estrutura mental de pensar, de querer, de amar está modificando-se. Ao tocar a totalidade do ser humano, a fé necessita ser expressa de modo que possa acompanhar essa profunda modificação das novas gerações. 7. Reverso da modernidade Desafios de nosso continente

Na América Latina, surgem novos desafios à fé. Trata-se de crer na periferia do mundo9, num continente que vive terrível situação de injustiça em relação aos pobres. Como ser cristão, como "crer" num país de tanta opressão e desordem ética? O mundo da idolatria é mais escandaloso que o do ateísmo em nosso continente 1°. Os deuses do dinheiro. do poder, do prazer, em alianças profundas entre si. desafiam a fé do cris­ tão 11 . Com o reinado solitário do neoliberalismo. a situação dos pobres tornou-se pior. Como enfrentar essa nova situação a partir da fé cristã? Puebla refere-se explicitamente à fraqueza dessa fé do cristão latino-americano. ao constatar tantas estruturas injustas1 1. A esterilidade de sua fé manifesta-se numa práxis que não se compromete com nenhuma libertação. antes reforça uma situação de dominação. Sua credibilidade fica profundamente ameaçada. A ortodoxia da fé é questionada a partir da práxis. Em outro sentido, vale para o continente latino-americano a parábola de Zaratustra. Somos o velho que ainda não sabia que Deus morrera. Deus realmente está morto.já que a fé n 'Ele não oferece impulsos verdadeiros para a criação de sociedade justa e fraterna. É a problemática do século passado que surge com nova figura e revigorada força. 9. L. Boff, Afé 11a periferia do 1111111do, Petrópolis, Vozes, 21979. 10. P. Richard ct ai.. La /11cha de los dioses. Los ídolos de la opresión y la b1ísq11eda dei Dios liberador, San Josc, DEI, 1980; trad. bras., São Paulo, Paulinas, 1982; "V Congreso de Teología. Dios de vida. ídolos de muertc", in Misión abirrta, nn. 5/6 ( 1985), pp. 523-733; J. Sobrino. ·'Reflexiones sobre e! significado dei ateísmo y la idolatría para la teología", in Rei•ista latinoamericana de teología 3 (1986), pp. 45-81. 11. Puebla trata dos ídolos: nn. 405, 493, 500. 12. Pucbla. n. 437.

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relação que como uma subjetividade plantada em si mesma. É uma razão antes inclu1iva, comunicativa, dialógica, intuitiva, criativa que analítica, objetiva, absoluta, logocêntrica, instrumental, práxica. A sociabilidade passa por uma nova percepção do jogo entre as individualidades pessoais e grupais, articuladas em rede, e a globalização uniformizadora, hcgemônica. triunfante. O cosmos deixa de ser um lugar de puro objeto, quer de manipulação, quer de pesquisa. para aparecer como uma gigantesca totalidade de que o ser humano é uma parte. em busca de harmonia com ele. Ele é parte do universo como o universo é parte dele. O Transcendente é visto em sua última realidade de mistério, abrindo as religiões para amplo diálogo em torno do bem para toda a humanidade. É tema demais amplo e complexo para ser tratado nestes poucos parágrafos. Por isso, voltará a ser abordado em outro momento. Ili. NOVAS TENDÊNCIAS DA FÉ Redirecionamento da fé

Evidentemente todos esses fatores não podem deixar a vivência da fé tradicional intacta. Impingiram-lhe inflexões profundas, de modo que se delineiam tendências novas na maneira de vivê-la. Quem freqüentou a catequese anos atrás e quem manuseou a literatura catequética ou teológica tradicional e agora defronta-se com a teologia percebe que aconteceram mudanças profundas na percepção e vivência da fé cristã. Qualquer descrição do fenômeno fica sempre muito aquém da realidade. Entre­ tanto, ela pode ajudar o leitor a compreender melhor sua própria evolução. suas novas perguntas, sua insatisfação perante certas formulações e expressões de fé que ainda circulam no meio religioso. Diversos modos de análise

Pode-se analisar um fenômeno de várias maneiras: ou detendo-se em seus ele­ mentos estruturais, ou percebendo-lhe as tendências, ou. ainda, seguindo-lhe a traje­ tória. Cada um desses percursos teóricos permite aproximar-se do fenômeno e captar­ lhe a natureza. Facilita a quem vive uma experiência mostrar-lhe como esta se desloca de um pólo a outro, assume determinada direção. Determinar-lhe a tendência é, no fundo, mostrar que se sai de um ponto em direção a outro. Os pontos de origem não desapa­ recem sem mais. Alguns podem ser deixados definitivamente; outros vão sendo assu­ midos na trajetória sob novas formas; outros resistem e persistem; outros, aparen55

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temente desaparecidos, fazem incursões imprevistas. A tendência indica antes a pre­ dominância de um movimento que sua definitiva consolidação 19 •

1. Da tradição para a decisão Modernidade em oposição à tradição

Já é lugar-comum afirmar que toda modernidade se define em oposição a uma tradição20 . Nesse sentido, haverá tantas modernidades quantas tradições a que outros movimentos se opuserem. Modernidade deixa de ser um fenômeno de determinado momento da história para designar surtos de novidade dentro de tradições culturais. Por isso pode-se fazer recuar a primeira modernidade ao momento da cultura grega do século VI a.C. em que se supera "a instância normativa do passado fixado na identidade de uma origem, diante da qual o presente deva abdicar de sua novidade". O presente assume a "dignidade de instância de compreensão e julgamento do passado, ou a dig­ nidade do novo advém ao tempo como diferenciação qualitativa na identi­ dade de seu monótono fluir" 21• Modernidade "moderna"

O termo "modernidade" veio consagrar a última modernidade, cujos inícios coincidem com os da era convencionalmente chamada de moderna e que encontraram sua expressão filosófica mais acabada nos séculos XVII e XVIII. Essa modernidade vem batendo à porta da Igreja com suas reivindicações na linha da crítica à tradição em nome do "presente de suas perguntas e problemas". Ela tem favorecido o sujeito como criador de conhecimento e não simplesmente repetidor do livro, da tradição, com todo o risco inerente de uma subjetividade sem referencial objetivo. Rejeição das novidades pela Igreja

Na Igreja católica, por muitas razões historicamente explicáveis, este presente com sua problemática não vinha sendo assumido até as proximidades do concílio 19. W. Kern, "Der freiere Glaube. Faktoren und Tendenzen der heutigen Glaubenssituation", StdZ 97 (1972), n. 4, pp. 219-236. 20. P. Valadier, Essais sur la modernité. Niemche et Marx, Paris, Cerf-Desclée, 1974. 21. H. Vaz, "Religião e modernidade filosófica·, in Síntese [Nova Fase] 18 (1991 ). n. 53, p. 149. 56

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Preocupa cada vez mais às comunidades eclesiais de base o diálogo com a reli­ aiosidade popular. Depois de Puebla, e em parte por sua influência, tem-se incentiva­ do tal diálogo10 • E essa religiosidade, além dos elementos católicos tradicionais vin­ dos da península ibérica com os conquistadores, enriquece-se nos diferentes países do continente com as tradições indígenas e negras. O espírito de comunicação tem afe­ tado também tal encontro. 3. Da comunicação a certa reserva Maior movimento cultural de comunhão

A Igreja católica participa do gigantesco movimento cultural que fomenta o entrelaçamento social da humanidade, o desejo de comunhão entre os povos, a cria­ ção de megablocos políticos, econômicos e culturais, a superação dos conflitos ideo­ lógicos. raciais. culturais em vista de uma visão planetária. Globalização econômica

O capitalismo neoliberal atingiu sua fase planetária por causa de vários fatores. A transnacionalização do capital, a inovação tecnológica. o controle do processo pro­ dutivo, a crença no crescimento ilimitado e na produção de riquezas, bem-estar, paz, felicidade para todos e cada um fazem do capitalismo o grande deus atuaP 1 • Como deus, mostra-se onipotente e onipresente em suas pretensões. A expressão econômica da globalização manifesta-se na transnacionalização do capital, do mercado, da produção e distribuição dos bens. O símbolo mais expressivo e real de tal fenômeno é a circulação veloz dos fluxos econômicos entre as bolsas de valores de todo o mundo segundo o ritmo de suas cotações e fechamento. Trilhões de dólares de capital especulativo circulam diariamente pelo mundo. Globalização total

A globalização afeta todas as dimensões da vida humana. Está produzindo uma transformação cultural. psicológica. espiritual. além de, evidentemente. socioe­ conômica. política e institucional. Nesse sentido. o cristão sofre seu impacto na prá­ tica de sua fé. 30. J. C. Scannonc. E\'l111gl'ii:ació11. rnltura y teología. Buenos Aires, Guadalupe. 1990. 31. M. Arruda. "Ncoliheralismo. Glohalização e ajuste neoliberal: riscos e oportunidades", in Tempo e Presença 17 ( 1995). n. :284. pp. 5-9. 63

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Pasteurização religiosa A globalização cultural tem produzido um duplo fenômeno paradoxal que diz respeito diretamente à cultura e à religião, enquanto elemento fundamental desta. De um lado, as expressões religiosas mais exóticas, cultivadas por uma minoria perdida em algum rincão do mundo, conseguem jogar no grande circuito de informação suas propostas de fé. Nesse sentido, o cristão vê-se envolvido por infinitas propostas reli­ giosas. De outro lado, tem-se produzido uma pasteurização geral da religião, de modo que as pessoas não têm recuado diante da possibilidade de recolher. para consumo pessoal, elementos religiosos os mais diversos. Não se trata propriamente de ecumenismo nem de diálogo religioso, porque simplesmente se sobrepõem elementos heterogêneos sincreticamente. Em resposta a essa perda de identidade, em vez de se buscar um diálogo lúcido e crítico, corre-se o risco de fechar-se numa auto-identidade ortodoxa. Volta-se assim aos tempos anteriores ao diálogo ecumênico e inter-religioso por outras razões.

Perplexidade diante do diálogo Contrariando, de certa maneira, a tendência anterior. surgiu na Igreja católica um movimento reticente ao diálogo. com medo da perda da identidade. Firma-se um neoconservadorismo pouco propício ao encontro com outras visões religiosas. por medo de cair-se na moda do aplainamento religioso geral. tão ao gosto da Nova Era' 2• Não tem sentido nem continuar batendo na tecla de uma ortodoxia rígida. de uma preocupação exagerada com a auto-identidade. de um rigor na integridade ma­ terial do depósito da fé. da afirmação da própria especificidade. de um lado. nem. de outro, entregar-se ao ecletismo e sincretismo sem identidade. Cabe buscar mais o que une do que o que separa os seres humanos, sem, porém, perder as identidades. E ser católico exprime uma dimensão de universalidade, que se define pela comunhão com todas as formas de verdade, de bem, de justiça da huma­ nidade e se exprime em sua própria verdade, bem e justiça. Não respondem ao mo­ mento atual nem a intransigência doutrinal, nem a diluição completa da própria fé.

4. Da confissão para a práxis social Acento sobre o aspecto subjetivo da fé A virada antropocêntrica, que deslocou o pólo dinamizador da fé mais para a experiência das pessoas e menos para o simples acolhimento da tradição e da doutrina 32. A. Natalc Tcrrin. Nova Era. A religiosidade do pós-modemo. São Paulo. Loyola. 1996. 64

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FÉ NO CONHXTO DA MODERNIDADE E DA PÓS-MODERNIDADE----

já formulada. provocou. num primeiro momento, uma concentração no sujeito que crê. Seus sentimentos, experiências, desejos, problemas, perguntas, movimentos afetivos e emocionais ocuparam lugar fundamental na vivência da fé. E, mesmo quan­ do praticam obras de caridade, as pessoas procuram aquelas em que o lado afetivo e emocional próprio e do destinatário desempenha papel decisivo. As estruturas sociais permaneciam freqüentemente intocadas por essa fé. Sinto­ máticos eram os exemplos de muitos cristãos que saíam de encontros religiosos em que a dimensão subjetiva da fé ecoava como enorme novidade em face da visão tra­ dicional e, ao voltar a seu campo de trabalho. melhoravam muito sua relação pessoal com os companheiros. funcionários, empregados. Mas não se perguntavam pelas reais relações de justiça. Empresários sorriam para os operários em nome de sua fé cristã, mas não questionavam a justiça social dos vínculos empregatícios. Virada para a prática social

A nova tendência veio responder a tal problemática. Deslocou a dimensão da fé como simples proclamação da bondade, salvação de Deus, alegria de ser irmão, para a realização de tal fé na prática social, sobretudo no referente às estruturas da sociedade. O documento de Puebla assinala com clareza tal tendência ao questionar a ine­ ficácia de uma fé que convive com situações de extrema injustiça sem ter força de transformá-la33• E, de certo modo. ainda mais insistentemente bate na mesma tecla o documento de São Domingos34• O esforço das teologias políticas européias3s e do Terceiro Mundo36 é de recuperar a dimensão crítico-social e de prática transformadora da fé cristã. Em suma, essa tendência desenvolve a dimensão libertadora da fé cristã. Articula-se em profundidade com o aspecto da "promoção da justiça" 37• Da ortodoxia para a ortopráxis

Implica, no fundo, uma passagem da ortodoxia para a ortopráxis, submetendo a doutrina à verificação da prática da caridade, da justiça. E a partir dessa práxis pode33. Documento de Puebla, nn. 28, 306, 436,437,452. 34. Ceiam, Conclusões de Sanro Domingo, nn. 24, 33, 44, 116, 123, 161. 248. 35. Exemplares foram a teologia política de J. B. Metz e da esperança de J. Moltmann. 36. Vários tipos de teologia da libertação foram desenvolvidos no Terceiro Mundo. 37. R. Antoncich, Los cristianos ante la injusticia. Hacia una lect11ra /atinoamericana de la doctrina social de la iglesia, Bogotá, Ed. Grupo Social, 1980; R. Antoncich-J. M. M. Sans, Ensino social da Igreja. Trabalho, capitalismo, socialismo, reforma social, discernimento, insurreição e a 11ão-1•iolê11cia. Petrópolis, Vozes, 1986; R. Antoncich, "Teología de la liberación y doctrina social de la lglesia", in 1. Ellacuría-J. Sobrino (orgs.), Mysterium Liberationis. Conceptos fundamentales de la Teología de la Liberación, I, Madrid, Trotta, 1990, pp. 145-168. 65

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se refletir, esclarecer, criticar a doutrina. Não se trata necessariamente de um reducionismo de toda a doutrina à práxis, mas da verificação de sua autenticidade. Certa secularização da fé

A práxis trouxe, sem dúvida. certa secularização da fé religiosa tradicional, ao negar-lhe os elementos que impediam o compromisso social. Em muitos casos. a dinâmica secularizadora foi mais longe, conflitando e desfazendo a religiosidade popular. Hoje busca-se encontrar um equilíbrio entre a práxis libertadora e a religio­ sidade popular tradicional sapiencial. 5. Da fé em grandes palavras à fé vivida no cotidiano A grande palavra da fé na Idade Média

A fé cristã na Idade Média soube cativar e entusiasmar as pessoas. de modo especial os jovens. apresentando-lhes grandes ideais. falando "grandes palavras". �rovocando-os ao heroísmo. Os santos são parábolas vivas dessas epopéias sagradas. As vezes esse fenômeno ultrapassava o caso de algum santo em particular e atingia conventos inteiros, grupos de religiosos ou de leigos. O exemplo de um são Francisco arrastou milhares atrás de si. Assim os francis­ canos em seu apogeu contaram com 142.000 frades. O esplendor litúrgico de Cluny, em seus anos áureos no século XII. abrigou quatrocentos monges 38 • Ecos na modernidade

Esse surto religioso se repetiu, a seu modo, também na modernidade. Basta citar o exemplo da Espanha, que, logo depois da guerra civil em que o general Franco saiu vitorioso. viveu anos gloriosos de entusiasmo religioso. As ordens religiosas regurgitaram de vocações. As vítimas da guerra do lado franquista foram consideradas mártires. E esse heroísmo alimentou a juventude espanhola para façanhas heróicas. Descrédito diante das grandes palavras

As últimas décadas têm transformado tal visão da fé cristã. As pessoas deixam­ se cada vez menos impressionar por palavras, por discursos grandiloqüentes, por gestos 315s.

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38. L. Moulin. La vie q11otidie1111e des religieux au moyen áge. X'-XV', Paris, Hachette. 1978. pp.

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espetaculares. Desconfiam que por trás das palavras haja engodo, que nos exemplos heróicos haja desequilíbrios psíquicos. Suspeitam de interesses ideológicos e corporativos subjacentes aos grandes projetos vindos da esfera religiosa. Vêem alian­ ças políticas e ideológicas espúrias que infeccionam a pureza de tal fé. Crescimento da suspeita religiosa

Quando uma figura religiosa, talvez de autêntica vida cristã, ocupa demasiada­ mente os meios de comunicação social, imediatamente se levantam suspeitas de in­ teresses econômicos e ideológicos. Sabe-se muito bem o preço de cada minuto nesses meios e a facilidade com que algumas pessoas os ocupam. Isso não é pensável sem enormes forças econômicas por trás. Tudo isso enfraquece a visibilidade da fé pro­ posta por tais figuras. Busca de sentido religioso em meio ao tédio

Por outro lado, está-se à procura de um sentido religioso para o cotidiano, para a "insustentável leveza do ser", rompendo o niilismo dominante. A melancolia, que asse­ dia o habitante da modernidade, está a pedir uma fé vivida na pequenez das ações diárias. sem lustre, sem esplendor, e um sentido maior que amarre os pequenos sentidos. Mais que ninguém a juventude sente essa melancolia, como muito bem exprime o cantor espanhol Joaquín Sabina: "Vivo en el número siete, calle Melancolía, quiero mudarme hace afias ai barrio de la alegría. Pero siempre que lo intento, ha salido ya el tranvía Y en la escalera me siento, a silhar mi melodía". De outra maneira o mesmo cantor exprime a vulgaridade do cotidiano sem sen­ tido, numa sucessão de experiências que se sucedem sem vínculo, sem lógica. sem urna estrutura unificante. "Cada noche un rollo nuevo Ayer el yoga, el tarot, la meditación Hoy el alcohol y la droga Mafíana el aerobic y la reencamación". E termina confessando que assim é a vida, cheia de banalidades inconseqüentes: "Que voy a hacerle yo Si me gusta el guisqui sin soda El sexo sin boda Las penas con pan". 67

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Mane da utopia

Em termos políticos, tal situação significa a morte da utopia. Este fato acontece por razões bem diversas. Morre a utopia porque já não é preciso imaginar alternati­ vas novas que empenhem energias criativas. A tecnologia consegue pragmaticamen­ te realizar os sonhos. Nesse sentido, em 1967. H. Marcuse escreve o livro O fim da utopia 39 • Não há espaços para a utopia porque a democracia liberal americana já atingiu a perfeição das relações humanas. É o fim da história e do último homem40 • Depois da queda do socialismo em 1989, a crise da utopia é diferente. Os so­ nhos de uma sociedade alternativa no horizonte socialista foram destruídos, quando apareceu o horror do que se fez com e do socialismo. Fé vivida no cotidiano

Uma reflexão sobre a fé necessita encontrar uma pista para superar assim um cotidiano vivido em momentos estanques, sem passado. sem perspectiva de futuro. mostrando na malha dos acontecimentos o fio condutor do amor de Deus. Pode-se redescobrir nessa situação a experiência que o místico Inácio fez de maneira tão maravilhosa de encontrar a Deus em todas as coisas e da qual a "contemplação para alcançar amor" é excelente expressão41 • 6. Da dimensão intelectual da fé à simbólica e estética Fé e Vaticano I

A dimensão intelectual da fé chegara a sua expressão máxima na definição dogmática do concílio Vaticano 1. Fé é crer "ser verdadeiro o que Deus revelou" 42, acentuando o aspecto de "verdade"43. Entre o racionalismo onipotente e o tradicionalismo demitente, o concílio quis manter a força da razão, de um lado. e, de outro, sua incapacidade diante da Revelação. Para tanto, distingue um duplo nível de verdade, natural e sobrenatural. A fé relaciona-se diretamente com as verdades sobrenaturais. 39. H. Marcuse, O fim da lltopia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969. 40. F. Fukuyarna, O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992. 41. J. Stierli, Buscar a Deus em todas as coisas. Vida ,w convívio do mundo e oração inaciana. col. Experiência inaciana, 7, São Paulo, Loyola. 1990. 42. DS 3008. 43. DS 3032.

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FI ilustrada

A teologia do concílio Vaticano II valorizou não só a dimensão existencial da fé como também sua coerência intelectual com a Ilustração. Ela procurava responder à pergunta: Como uma pessoa, que já passou pela Ilustração, pode autenticamente crer? Fez-se enorme esforço de estar à altura dos conhecimentos científicos modernos. interpretando a tradição teológica em consonância com eles. Organizaram-se então muitos cursos para os fiéis a fim de atualizar-lhes o conhecimento religioso. Até hoje, a Igreja pós-Vaticano continua privilegiando os cursos de batismo, de crisma, de noi­ vos etc. Deu-se mais importância às leituras bíblicas, tanto no interior da liturgia como em grupo ou particular. Onda pós-moderna

Ultimamente tem surgido uma nova onda vinda da pós-modernidade. A parte sim­ bólica e estética, que não tinha sido muito desenvolvida nos anos pós-conciliares, cresce em importância. A fé busca traduzir-se em símbolos, não necessariamente vestidos de palavras, mas em sua nudez visual. É uma tendência que apenas se esboça. Romano Guardini: precursor

Entretanto, já na década de 20. Romano Guardini publicava uma jóia de livro sobre os sinais sagrados44 • Mostrava a riqueza que se encerra nos sinais sagrados. como o sinal-da-cruz. a mão, o estar de joelhos e de pé, o caminhar, bater no peito, os degraus, a porta e outros. E acrescentava: "Vivemos num mundo de símbolos, mas não captamos a realidade que eles representam. Pensamos palavras, mas não coisas... Palavras. palavras! Eis por que nosso pensamento está longe da realidade: ele não a capta. Eis por que nossa linguagem é inexpressiva: não possui nem vida, nem relevo". R. Guardini antecipava muitos dos sentimentos da nova geração. O simbólico vinha sendo afogado por cascatas de palavras, de discursos. Já se levantava contra o encurtamento do simbólico este mentor da juventude alemã cristã dos anos imediata­ mente anteriores e seguintes ao advento do nazismo. "Pensai na raça abominável de frases de efeito. Se quereis sentir o vazio, escutai os discursos públicos: é de doer! Nada de tão vazio! Rompem tudo, 44. R. Guardini. \011 heilige11 Zeiche11. Würzburg, Deutsches Quickrnhaus, 1922.

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como só pode fazer a estupidez; aviltam o sublime. A palavra que emergia do fundo dum coração cálido de sangue, cheio de vigor, torna-se insípida até o desencorajamento, quando os jornais e as reuniões públicas se apropriam dela, a devoram." Essa perda do simbólico atinge também os atos. os gestos. Hoje o protesto de Guardini tornou-se realidade. Há um cansaço com a vacuidade dos discursos, com a formalidade dos atos e gestos. Há uma busca nova do simbólico em todos os seg­ mentos da sociedade. A geração jovem

Os jovens se apaixonam pela música. pelos festivais, pelas grandes celebrações. Recente pesquisa feita em Belo Horizonte sobre a juventude reflete tal tendência4 \ Entre as atividades culturais pelas quais os jovens têm mais interesse estão a música. a dança. o cinema, o teatro com 76% de preferência. enquanto preferem as atividades intelectuais somente 7,16%. 74,83 dos jovens dizem que ouvem música todos os dias. Se se comparam essas atividades do mundo simbólico e artístico com outras ativida­ des. fica ainda mais clara a tendência. 90.66% dos jovens dizem que não participam de movimentos sociais e comunitários; 54,16 nunca ou raramente têm hábito de ler­ e nessa idade a maioria é estudante; 45.48 nunca ou raramente lêem jornal. Quanto à televisão. 86% dos jovens mostram sua preferência pelos musicais, e só 3% pelos noticiários. Estética nas experiências religiosas

Tais manifestações de busca do mundo da estética e do simbólico nas atividades culturais seculares têm sua correspondência nas experiências religiosas. Os encontros carismáticos. as celebrações mais vivas e participativas, recheadas de simbolismos, têm encontrado maior acolhida por parte da nova geração jovem. Nos meios populares

Nos meios populares acontece o mesmo. Dentro do campo religioso, realizam­ se maravilhosas celebrações litúrgicas nos encontros das comunidades eclesiais de base. Quem tem assistido aos intereclesiais de CEBs tem experimentado exuberante 45. Opinião Consultoria e Pesquisa. Arquidiocese de Belo Horizonte, Pesquisa surv ey sobre a

j111•ent11de, Belo Horizonte, 1992.

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----A 1( NO CONIIXlO DA MOOl'.RNIOAllr r 11" rô,;-MOOF.RNIOAl>F.-----

riqueza simbólica41'. Estas celebrações não teriam chegado a esse nível simbólico e estético tão expressivo, se as comunidades não as vivessem durante o ano como experiência ordinária. 7, Da razão instrumental à razão comunicativa Ideologia do capitalismo avançado

O império da razão instrumental manifesta-se. na análise de J. Habcrmas. sob a forma de ideologia do capitalismo avançado. A ciência e a técnica tornam-se-lhe ins­ tAncias legitimadoras sem referência ética. A realização do cidadão da modernidade se faz pela racionalidade técnica. A ideologia da ciência e da técnica oferece uma definição tecnicista da vida humana, fazendo-a girar em torno de ganhar mais dinheiro. para desfrutar mais tempo livre, prescindindo das relações de justiça e das conseqüências ecológicas. E, no fun­ do, gera profunda e constante insatisfação. Racionalidade comunicativa

O projeto habermasiano orienta-se na direção de que a realização humana se faça por intermédio da racionalidade comunicativa. Em vez de deixar imperar a rela­ ção do trabalho, da ação técnica que se faz entre o ser humano e a natureza. propugna­ se a ação comunicativa ou a interação entre as pessoas. Ao criticar a absolutização da razão técnico-instrumental, resgata-se a ação co­ municativa e moral sobre -a técnica. Não se deixa que a razão técnica e científica colonize o "mundo da vida", a esfera da ação comunicativa ou social47 • Críticas à razão instrumental

Uma nova geração de pensadores dirige poderosas baterias teóricas contra a hipertrofia da razão científica e técnica da modernidade. Em palavras contundentes. Manfredo de Oliveira resume tal posição: 46. M. de Barros Souza. "Quando celchração e vida se confundem". in REB 49 (1989). pp. 535545; id., "Uma grande festa de compromisso (A liturgia no VI Encontro lntereclcsial)". in REIJ 46 (1986). pp. 539-546. 47. F. X. Herrero. "J. Habcrmas: teoria crítica da sociedade", in Síntese 6 (1970), n. 15. pp. 1136; ver tamhém: id .. "Hahermas ou a dialética da razão", in Síntese 13 (1985). n. 33. pp. 15-36; id., "Racionalidade comunicativa e modernidade". in Síntese 14 (1986), n. 37. pp. 13-32. 71

--------------"Eu cRuo"-------------"O diagnóstico das críticas da razão moderna não poderia ser mais sombrio: a razão foi posta a serviço da dominação sobre a natureza e sobre os ho­ mens, trazendo, assim, para a vida humana uma repressão cada vez mais intensa" 48• Crise do paradigma da subjetividade

Entra em crise o próprio paradigma da subjetividade, que a modernidade criara. lJma razão pensada a partir da subjetividade padece de uma visão reducionista. É a subjetividade que determina o outro de si, e nisto ela reifica, objetiva a alteridadc. Habermas: filosofia da linguagem

Para superar esse impasse, J. Habermas trabalha a filosofia da linguagem, enten­ dida como reflexão que explicita os pressupostos da ação humana comunicativa. O fato de o ser humano comunicar-se em linguagem implica a pretensão de validade e. portanto, de colocar-se à espera de uma resposta do outro. Supõe-se que o outro tam­ bém tenha capacidade de avaliar a pretensão de validade do discurso proposto e res­ ponder. E, por sua vez. acolhe-se a resposta no mesmo pressuposto de validade. Há uma afirmação da própria subjetividade, autonomia e liberdade. mas nenhum movi­ mento de objetivação e reificação do outro. Pois qualquer tipo de manipulação con­ tradiz tal contexto dialogal intersubjetivo. Novo sentido de racionalidade

Emerge de tal processo lingüístico um novo sentido de racionalidade que não quer dominar. impor. manipular o mundo e os outros seres humanos, mas relacionar­ se, comunicar-se, argumentar. M. de Oliveira observa com pertinência: "Racionalidade é, aqui, sinônimo de acareação crítica de propostas levanta­ das a respeito dos fatos do mundo, de nossas vivências subjetivas e das normas vigentes nas comunidades humanas. Quem fala se põe na esfera de uma possível argumentação: toda ação comunicativa radica numa possível sociabilidade baseada num diálogo crítico de sujeitos" 49• 48. M. de Oliveira. "A crise da racionalidade moderna: uma crise de esperança". in Síntese [Nova Fase] 17 (1989). n. 45. p. 28. 49. ld., ihid., p. 30.

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t( NO l'ONTtJA •·(.: l>IMF.N'iAO ANTROl'OIÓGICA-----

Ela fez esse trabalho analisando a realidade a partir dos interesses de libertação dos pobres reais e concretos que são milhões em nosso continente. Qualquer outra libertação passa, de certo modo. pela imprescindível libertação dos pobres. Sem esta, todo o processo libertador claudica.

V. ASPECTO ESCATOLÓCilCO Eé: início da visão

Os três aspectos anteriores dão a dimensão intra-histórica do agir humano. Mas o homem é transcendência. A fé responde a essa dimensão, não simplesmente numa correspondência à natureza intelectual, espiritual do homem, mas arrancando-o do limite de sua criaturalidade e inserindo-o gratuitamente na vida de Deus. A fé é inchoatio visionis. isto é, início da vida definitiva de comunhão amorosa imediata com a Trin­ dade. Mais: ela é o início de um infindo mergulhar em Deus para dentro da eternida­ de. É credere in Deum, Deus como fim. Deus que é eternidade. A expressão credere in Deum encontra nesse aspecto sua mais plena realização. Corresponde a um Deus que está sempre a revelar-se e o fará durante toda a eternidade - Deus reveland11s. A fé cristã tem a pretensão de, sem negar a dimensão de tempo. de historicidade. do agora, ser o início já começado da plenitude de vida eterna. Trento define-a como "início da salvação humana" (DS 1532). A dimensão de eternidade da fé pertence à sua própria natureza, já que seu ob­ jeto principal é Deus. Ela se apóia no testemunho divino. Deus é eternidade. Só par­ ticipa da eternidade aquilo que participa de Deus. Fora de Deus só temos o tempo. que ele mesmo criou. Se podemos superar o tempo, não depende de nós, mas do dom mesmo de Deus. Ao dar-nos o dom da fé, que é também resposta nossa. estabelece­ mos com Deus uma relação que goza da mesma vida de Deus. Essa mútua doação garante-nos a eternidade. O ato de fé é elevado por Deus de nossa condição puramente natural para uma intencionalidade que termina nele mesmo enquanto dom gratuito e eterno. Deus nunca nos quis confinados em nossa pura natureza humana, limitada ao horizonte de relações analógicas com ele e com as criaturas. Chamou-nos, em seu próprio Filho, a uma inti­ midade única. pessoal, supracriatural, da qual a fé é o início. Relação entre tempo e eternidade

Uma correta compreensão da relação entre a fé e a vida de felicidade plena no céu supõe uma intelecção da relação tempo-eternidade. Numa maneira rude de 167

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intelecção, a eternidade é vista como a fase que começa depois do tempo terrestre. Entretanto, ela é a presença do Absoluto de Deus que penetra já agora nossa história temporal. Toda vez que o homem participa desse Futuro Absoluto de Deus, no tempo transitório presente de sua vida participa da eternidade e já se estrutura em vista dela. K. Rahner trabalha em profundidade essa dimensão da fé, articulando o Futuro Absoluto com nossa realidade presente e nossos futuros históricos. Ele afirma: "O Futuro absoluto é o verdadeiro e próprio futuro do homem: é para ele possibilidade real, oferta, o que vem sobre ele, isso que está por chegar e cuja aceitação é a última tarefa da existência" 29• A seriedade dos futuros históricos lhe vem por mediatizar o Futuro Absoluto. No entanto, o Futuro Absoluto relativiza todas as outras realidades. Santo Tomás define com Boécio a eternidade como "interminabilis vitae tola simul et perfecta possessio" - posse perfeita, ao mesmo tempo completa, da vida interminável3°. Participar dessa vida é já participar da eternidade. Para são João o conceito de "vida" implica a presença da eternidade no tempo. De dentro da vida (tempo) emerge a vida (eternidade}, pois quem crê tem (e não terá) a vida eterna (Jo 3,36; 5,24). Sua reflexão teológica está construída sobre a presença da vida definitiva e eterna na fé, na participação da eucaristia, no batismo. São atos do tempo e no tempo, mas que carregam, por assim dizer, em seu bojo. a eternidade. Pela fé, ensina-nos são Paulo, tomamo-nos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo (GI 4,7; Rm 8,17). Ser herdeiro, ser filho de Deus, é já viver a realidade definitiva, de que se é herdeiro. Fé e visão: participação do mesmo Deus

A razão metafísica de a fé ser o início da visão está em que em ambas - fé e visão_ - se atinge de maneira imediata a mesma realidade: vida íntima de Deus. A maneira é diferente. A fé, de modo incoativo; a visão, de modo pleno. A fé "no espe­ lho e de modo confuso" e a visão no "face a face" (lCor 13,12). A fé e a visão exprimem dois modos diferentes de participar do mesmo Deus trino. Na Gaudium et spes do concílio Vaticano II se trata longamente da relação entre o aspecto práxico da fé nesta terra e seu alcance escatológico, na linha de lCor 13,8; 3,14; 10,11 3 1• 29. K. Rahner, Escritos de teología. VI. Madrid. Taurus. 1967, p. 78. 30. S. Th. 1, 10 a. 1. 31. Concílio Vaticano li. Cia11di11m et spes. nn. 39, 57, 34, 11. 168

------[SJRIIIIIAA IUIIITIVA OA

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l>IMINSÃO ANIROPOIÓGICA------

Conclusão O ser humano crê com a totalidade de seu ser: inteligência, coração, prática. Realiza-o enquanto é tempo e eternidade, imanência e transcendência. Por isso sua fé o lança para além desse tempo. para dentro da eternidade de Deus. que lhe possibilita esse ato. A fé é esse jogo de liberdades. Deus convida e possibilita a resposta. O ser humano responde, embalado pelo próprio convite-graça de Deus. Bibliografia LraANto, J. B., Fé e política. Autonomias específicas e articulações mrítuas, São Paulo, Loyola.

1985, pp. 15-39.

Para uma reflexão pessoal e/ou grupal 1. Lendo os diversos aspectos antropológicos da fé. que compreensão de ser huma­ no aí presente você percebe? 2. Explique por que o ato de fé implica necessariamente um conhecimento racional, mas também o supera. 3. Considerando a etimologia do verbo "crer", que aspecto aparece aí de maneira mais explícita? 4. Explique estas expressões latinas: Deus revelatus - Deus revelans - Deus revelandus Credere Deum - Credere Deo - Credere in Deum 5. Indique a diferença entre as expressões fides quae e ftdes qrw. 6. Defina concisamente os diversos momentos da fé: - momento existencial - momento hermenêutico: dimensão subjetiva e objetiva da fé - momento práxico - momento escatológico 7. Defina os horizontes de compreensão da fé ao longo da história: a. momento metafísico-cosmológico b. momento antropológico c. momento histórico-dialético Dinâmica: Visualização de um aspecto da fé Dividir a turma em cinco grupos. Cada grupo assume um dos aspectos da fé: subjetivo-existencial. objetivo, hermenêutico, práxico. escatológico. 169

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Cada grupo procura visibilizar esse aspecto por meio de um cartaz, ou dramatização, ou desenho, ou símbolo. Eventualmente procede à sua explicação. O ideal seria que isso não fosse necessário, dada a clareza da visibilização.

A REALIDADE DE DEUS "Ao dar existência a esse novo ser humano, Deus se declara a favor de sua Criatura, ele confirma sua obra como Criador, seu propósito e o sentido da Criação por ele visado. É a boa qualidade original e natural do ser humano e do cosmo que o próprio Deus está tornando visível ao criar o novo ser humano. Pois, mesmo que o pecado tenha pervertido o ser humano e obscurecido o mundo, ele não anulou nem substituiu a Criação de Deus. Não destruiu a natureza boa, dentro da qual Deus criou o ser humano. Ele apenas a tornou inacessível, sem efeito e - como o próprio Deus - desconhecida do ser humano. A natureza humana, entretanto, não deixou de ser boa, tal qual Deus a criou. Assim também a graça de Deus não pára de ser sua graça livre e íntegra pelo fato de a pessoa huma­ na atentar contra ela e cair no pecado. Continua em vigor o desígnio do ser humano para a comunhão com Deus e com seu próximo. Continua a unidade por Deus intencionada e ordenada, da vida física e anímica da pessoa humana. Continua a orientação da existência humana temporal­ mente limitada, para sua vida eterna com Deus. O pecado e suas conse­ qüências são transgressão e punição, injustiça e desgraça em terrível con­ figuração, porém enquadrados na natureza humana criada por Deus, e não sua destruição. Ao criar o novo ser humano, Deus diz - a despeito de toda injustiça e desgraça - pela segunda vez um 'sim' para essa natureza humana por ele criada, ele confirma a si mesmo como seu Criador em meio à humanidade pervertida, em meio ao mundo entrevado. Por isso o novo ser humano é chamado, em 2Tm 3, 17, de 'o homem... perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra'. O novo ser humano é [ ... ] a restauração do primeiro Adão na pessoa do segundo Adão (1 Cor 15,45)." K. Barth, Dádiva e louvor. Artigos seletos, São Leopoldo, Sinodal, 1986, pp. 358s.

170

CAPITULO

8

,

A RACIONALIDADE DA FE "Dois excessos: excluir a razão. só admitir a razão."

Pascal

Perguntas diversas

No capítulo anterior vimos como o ato de fé tem uma dimensão intelectual. Fé é também conhecimento. A tradição ocidental valorizou muito essa dimensão da exis­ tência humana até o exagero. Por isso a questão fé e razão adquiriu uma relevância maior, a ponto de justificar que nos façamos novas perguntas sobre esse tema. Uma primeira pergunta se refere ao itinerário histórico. Como foram as vicissi­ tudes históricas da trajetória fé e razão? Indo mais fundo. perguntamos: qual é a re­ lação estrutural entre fé e razão? A racionalidade no ser humano concreto tem exigên­ cias diferentes conforme a idade, a condição sociocultural. Então uma terceira per­ gunta, portanto, reza: quais são as diferentes exigências de racionalidade da fé nos momentos da vida humana e na atual conjuntura? Racionalidade: intrínseca à natureza da fé

"Eu creio" não é um simples movimento afetivo. Somos seres racionais. A fé deve, sem reduzir-se totalmente à razão, ser coerente com ela. A racionalidade é uma questão intrínseca à própria fé. No entanto, a relação entre ambas nem sempre foi tranqüila. Houve tensões. Estas assumiram formas históricas. Assim, existe, de um lado, uma tensão estrutural permanente entre fé e razão. como dimensão do próprio mistério da fé, e, de outro. formas históricas que podem chegar ao extremo do conflito. Nesse caso, o diálogo lúcido e a liberdade crítica permitem superá-lo. 171

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1. APROXIMAÇÃO HISTÓRICA 1. Na Escritura, Patrística e Idade Média Aspecto racional no Antigo Testamento

A dimensão racional da fé já aparece no Antigo Testamento. Embora ele tenha concentrado sua atenção sobre a confiança e a esperança nas promessas de Deu�. apresenta sinais para o povo continuar esperando sua realização. Evidentemente ela� se darão plenamente quando chegar a pessoa de Jesus Cristo. O povo de Israel reconheceu em muitos sinais a manifestação da presença Am

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Todas essas faces da razão são verdadeiras e cumprem papel importante no proces10 cultural. No entanto, quando só esse lado é considerado, há um encurtamento do ser humano que afeta diretamente o campo da fé. Cabe olhar a outra face da razão. Ampliação do conceito de razão

Sem sair da racionalidade, há outras faces dessa mesma razão. Cabe ampliar-lhe o âmbito restrito. Questiona-se a absoluta e total objetividade da observação científi­ ca. Esse questionamento vem das próprias ciências da natureza. Segundo a física quântica, o observador é um elemento constitutivo do processo de observação. ao escolher aparelho, processo, ângulo de observação etc. Além do mais, o método cien­ tífico hoje está cada vez mais consciente de que sua aspiração ao conhecimento ab­ solutamente exato se torna impossível no campo da microfísica. A probabilidade, a estatística entram com seu nível de incerteza. Desta forma, os fatores de relatividade levam a testar, controlar, ampliar ou falsificar sempre os resultados dos conhecimen­ tos das ciências. Assume-se a condição de provisoriedade das certezas científicas até que se prove o contrário. Estabelece-se a obrigação de contínua autocorreção, aperfei­ çoamento. Com isso, o dogmatismo científico rui 14• As ciências hermenêuticas ampliaram ainda mais o papel do sujeito na produção do conhecimento. A objetividade da razão implica, por ser humana, um nível neces­ sário de subjetividade. O modo humano de conhecer é interpretar. E nesse processo interpretativo o sujeito influencia com sua pré-compreensão. Pode-se falar de uma razão vital, que deriva do ser, consubstancial ao que se é. Depende fundamentalmente da atitude diante do mundo. É uma razão comprometida com a totalidade; não separa vida e pensamento. Reflete um espírito de simplicidade, de espanto, de criança. Submete-se ao real. escuta-o. É uma razão axiológica. Faz pensar no que santo Tomás chamava de "intellectus", Pascal de "coração". Bergson de "intuição" 15.

li. QUESTÃO ESTRUTURAL 1. Natureza da racionalidade da fé Tensão estrutural da vida humana

Os problemas históricos concretos revelam que deve haver algo mais profundo na relação entre fé e razão. Não se trata somente de questões fortuitas e aleatórias. É uma tensão estrutural decorrente da própria estrutura humana de existir. 14. A. Ganoczy, Unendliche Weiten. Naturwissenschaftliches Weltbild und christlicher Glaube. Friburgo/Basiléia/Vicna, Herdcr, 1998, pp. 16-19. 15. Ph. Bénéton. "L' Art de penscr'', in J. Chanteur-J. Verneue et ai., LA vie intérieure. Une nouvelle demande. Annales 1996-/997. AES. Paris, Fayard, 1998, pp. 159-196. 179

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"Fé X razão" é uma tensão humana. Assumindo o termo "fé" em sua mais ampla extensão de confiança, amor e entrega a outra pessoa (humana ou divina), percebe-se que o ser humano se debate permanentemente entre os dois movimentos fundamen­ tais de amar e conhecer. Ama conhecendo, conhece amando. Mas nunca o conhecer esgota o dinamismo do amor. Este é sempre maior. Amar somente o que se conhece e porque se conhece já não seria amor. Se o amor encontrasse uma razão que o justificasse e explicasse totalmente, já não seria amor. Faltar-lhe-ia a dimensão intrínseca de dom, de gratuidade, de confiança. Nessl' sentido, a fé participa dessa dimensão de confiança. gratuidade, entrega do amor. Racionalidade própria da fé

Em outros termos, a fé tem uma racionalidade original. Situa-se no horizonte da interpretação da própria existência humana. A racionalidade da ciência trata de obje­ tos. A da fé volta-se para dentro da existência do cientista e pergunta pelo sentido de ele fazer ciência, de ele existir, de se comprometer com o saber científico. A fé não é rationalis mas rationabilis. Não é rationalis (racional) porque não procede a partir da evidência da verdade crida. Fé não é ciência. Não pode ser redu­ zida à natureza racional do conhecimento científico. Funda-se no testemunho de Deus. Mas é rationabilis (razoável), porque é consentâneo. de acordo com a complexidade e profundidade da natureza racional do ser humano, o fato de amar, acreditar, esperar. Tais atos ultrapassam a racionalidade puramente verificativa. empírica das ciências. Vão para além da razão, mas não contra a razão. Não brotam "da razão", mas não se fazem "sem a razão'' 16• A razoabilidade do ato de fé, de amor, de esperança, tanto na relação com as pessoas como em relação a Deus, se verifica por meio dos sinais. Creio nas pessoas que oferecem sinais externos de credibilidade. A fé em Deus, enquanto ato humano. tem a razoabilidade dos inúmeros sinais que Deus nos deixou de sua Revelação. Fé entre os extremos: racional e afetivo

A fé oscila entre os dois extremos: puro racional e puro afetivo. Sempre a esprei­ tam os exageros, tanto do fideísmo como do racionalismo. Exatamente como a expe­ riência da fé humana, do amor humano. Alguns querem ter a absoluta certeza racional da amizade, do amor. São racionalistas, pragmáticos e calculistas no amor. No fundo, não crêem nem amam. Se assim procedem em relação à fé, em última análise, não têm fé. Acreditam em sua razão e não em Deus. 16. J. Alfaro. Fides, spes, carilas. Adnotationes in Tractatwn de vin11tib11s tlieologicis. Ad 11s11111 priva1111n a11diton1111, cditio altera, Roma. PUG. 1968. pp. 348s.

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Outros se entregam a um amor cego, emocional, sem juízo, que, em última análise, significa um nível de racionalidade infantil. Amam, mas se enganam freqüen­ temente no amor. Não se trata de um amor humano maduro. No caso da fé, ela seria Imatura. Na história da fé cristã, estão presentes sempre os dois elementos, mas não em igual proporção. Há momentos em que se salienta mais um aspecto que outro. Predomínio do racional

Depois do concílio tridentino até o Vaticano li, o aspecto racional foi mais sa­ lientado. Em Trento, frisou-se o aspecto racional em oposição aos reformadores que valorizavam muito mais o aspecto da experiência subjetiva, da confiança. O concílio Vaticano I e sobretudo a apologética clássica, que o seguiu, signifi­ caram o esforço de mostrar ao máximo a racionalidade da fé. Certos movimentos como o modernismo, a nouvelle Théologie, vieram contrapor-se. Onda anti-racionalista: busca de equilíbrio

Hoje predomina uma onda anti-racionalista com tendências fideístas, em parti­ cular nos movimentos de leigos de natureza carismática. Impõe-se uma reflexão séria ·sobre a importância e imprescindibilidade da racionalidade na fé. Só que a natureza da racionalidade da fé é original, distinta da pura racionalidade científica. Ciência-razão e afetividade emocional espreitam, em suas formas extremas. o desenrolar da fé. São ora ameaças, ora provocações, ora envolvimentos. A fé procura fugir de Cila sem, porém, cair em Caribde. 2. Significado profundo da racionalidade da fé Racionalidade e verdade do ato de fé

A racionalidade no ato de fé quer acentuar o caráter de realidade e de verdade daquele que é o término de tal ato: a Trindade. Pretende mostrar que a fé não é fruto do arbítrio, nem é aleatória. Pressupõe uma realidade que a fundamenta: o próprio Deus trino. Mais: a fé não nasce das carências profundas do ser humano, nem é um discurso compensatório de nossas fraquezas e impotências, como se afirmou tantas vezes nas pegadas de L. Feuerbach. Só é humano crer numa realidade existente. Oferecer um preito obsequioso só tem sentido se aquele que o recebe existe e o merece. Do contrário, seria um avilta­ mento e uma alienação. 181

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A fé vem responder a uma dimensão profunda do ser humano: a busca da ver­ dade. Desde o primeiro balbuciar, o homem pergunta: que é isto? Essa capacidade