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Portuguese Pages [216] Year 2012
Educar para reencantar a vida Pedagogia e espiritualidade
Jung Mo Sung
Educar para reencantar a vida Pedagogia e espiritualidade 3ª Edição Ampliada
Editora Reflexão
© JUNG MO SUNG, 2012 Editor
Jorge Simões
Editora Executiva
Caroline Dias de Freitas
Revisão Impressão
Jorge Simões PSI7 Gráfica e Editora
Conselho Editorial
Prof. Dr. Antônio Máspoli de Araújo Gomes
Prof. Dr. Edson Pereira Lopes
Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
Tiragem: 1000 exemplares
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora Reflexão. Editora Reflexão Rua Fernão Marques, 226 - Vila Graciosa 03160 030 São Paulo Fone 11 4107 6068 www.editorareflexao.com.br [email protected]
Dados Internacionais de Catalogação na P ublicação (CIP) Câmara Brasileira do L ivro, SP, Brasil
SUNG, JUNG MO
3ª Edição Ampliada
1. Educação 2. Espiritualidade I. Título. I. Série. 06-6456 Índices para catálogo sistemático: 1. Educação 2. Título
CDD-809
Raimundo Silva olha a rosa, não são só as pessoas que não sabem para o que nascem. (José Saramago, História do cerco de Lisboa)
SUMÁRIO Introdução........................................................................................................................ 09 Capitulo 1 A vida e o conhecimento.............................................................................17 1. Os seres vivos, os não-vivos e sistemas complexos..........................................20 2. Ser vivo, ambiente e conhecimento....................................................................24 3. Conhecimento e o sentido da vida humana......................................................29 Capitulo 2. A especificidade do conhecimento humano...........................................31 1. A cognição e a identificação com outros...........................................................33 2. Sofrimento, compaixão e moral..........................................................................37 3. Seres simbólicos frente à natureza......................................................................40 Capitulo 3. Sentido da vida e a educação.....................................................................45 1. Sentido na vida ou sentido da vida.....................................................................47 2. O sentido da educação: um tema pouco presente............................................50 Capítulo 4. Ciência, mito e a noologia..........................................................................60 1. Ciência e o sentido do universo e da existência................................................61 2. Ciência e mito.........................................................................................................62 3. A função heurística do mito.................................................................................64 4. O mito do outro e o nosso...................................................................................68 Capitulo 5. O espírito do capitalismo e o sentido da vida.........................................75 1. Civilizações e o sentido último da vida..............................................................77 2. Viver é um fim ou um meio?...............................................................................79 3. Consumo e o sentido encantado da vida...........................................................83 4. O mal, o sentido da vida e o mito neoliberal....................................................87 5. “A religião da vida cotidiana”...............................................................................94 Capitulo 6. O encantamento do consumo e o desencantamento da educação......97 1. A educação em um mundo des/encantado.......................................................99 2. Educação para o consumo e a cultura midiática............................................104 3. As contradições e o paradoxo do encantamento do consumo.....................107 3.1. Bons pais e pais brilhantes..............................................................................108 3.2. O paraíso para uma criança............................................................................111 3.3. Dinheiro e o encantamento paradoxal..........................................................114 Capitulo 7 Reencantamento da vida e a transformação social...............................120 1. Reencantamento e a transformação social......................................................122 2. Desencantamento e secularização.....................................................................125
3. Reencantamento do mundo e da vida..............................................................128 3.1. Ciências naturais e reencantamento...............................................................130 3.2. Eco-espiritualidade e o reencantamento do mundo...................................132 3.3. Ciências sociais e reencantamento.................................................................134 Capitulo 8. Reencantamento na e da educação.........................................................138 1. A educação e o sagrado......................................................................................139 2. Educação holística e a espiritualidade..............................................................142 3. Reencantar a educação para reorientar a humanidade...................................145 4. Reencantamento, solidariedade e o fetiche da mercadoria............................150 Capitulo 9 O sentido da vida, a fé e a condição humana........................................155 1. Globalização e a imitação do desejo de consumo..........................................158 2. O sentido da vida e a fé......................................................................................161 3. Sentido da vida e a condição humana..............................................................164 3.1. Viver humanamente.........................................................................................164 3.2. A finitude humana e o desejo do infinito.....................................................166 3.3. A linguagem simbólico-religiosa....................................................................168 3.4 Tradições religiosas e a condição humana.....................................................170 Capitulo 10. Uma luta que vale a pena.......................................................................175 1. Pedagogia e a espiritualidade..............................................................................177 2. Uma disciplina ou um conjunto de disciplinas?..............................................282 3. Pergunta pelo sentido e a liberdade humana...................................................285 Sacrifícios humanos e a educação humanizadora.....................................................187 Bibliografia......................................................................................................................207
EDUCAR PARA REENCANTAR A VIDA
INTRODUÇÃO Se perguntarmos a qualquer pai ou mãe por que eles querem que o seu filho ou sua filha estude, que vá a escola e consiga uma boa educação, a resposta será mais ou menos essa: “é porque nós queremos que ele ou ela tenha uma vida boa, ou uma vida melhor, pois se não estudar vai ter uma vida difícil”. E se perguntarmos o que eles querem dizer com uma “vida boa”, provavelmente responderão que uma vida boa significa em primeiro lugar não passar por dificuldades econômicas e ter uma vida confortável. Mas, com certeza irão além do conforto material. Desejarão também que o seu filho ou sua filha seja uma pessoa respeitada na comunidade e na sociedade. Pois todos nós queremos que as pessoas que amamos sejam respeitadas e queridas na sua comunidade. Além disso, se continuarmos aprofundando o assunto, poderão acrescentar que desejam também que o seu filho ou filha seja uma pessoa de “bem”. Uma pessoa de “bem” não significa necessariamente a mesma coisa que ser uma pessoa respeitada pela comunidade. Pois, todos nós sabemos que existem pessoas de bem que não são respeitadas por outras, como há também pessoas respeitadas pela comunidade que no fundo não são pessoas de bem. Mas por que é importante que a pessoa que amamos seja de bem? (E aqui não importa o conteúdo concreto do que se entende por “bem”.) Porque a diferença entre, como dizem as crianças, “ser do bem” ou “ser do mal” é um dos principais critérios para nós nos situarmos na nossa vida e julgarmos os nossos relacionamentos conosco mesmo e com outras pessoas. Todos os seres vivos estão equipados com um mecanismo que lhes possibilita distinguir o que é “do bem”, isto é, o que lhes ajuda na reprodução e na manutenção da sua vida, e o que é “do mal”, aquilo que prejudica a sua vida. Nos seres vivos mais simples, esse mecanismo faz parte da sua própria constituição 9
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biológica, isto é, o processo da evolução das espécies os dotou desse mecanismo. Nós, seres humanos, por outro lado, precisamos, além desse mecanismo biológico, um mecanismo cultural que nos permita distinguir quem são pessoas “do bem” e “do mal.” Sem essa distinção entre “do bem” e “do mal’”, não conseguimos organizar as nossas relações com objetos e pessoas do nosso ambiente e, portanto, não conseguimos tomar decisões na nossa vida. É por isso que as crianças pequenas, quando assistem filmes, dividem as personagens entre os “do bem” e os “do mal”. Uma divisão simples da vida, mas bastante funcional para o mundo deles. Essas respostas típicas e bastante comuns dos pais pressupõem duas coisas: a) reconhecimento do fato de que sem conhecimento/educação não é possível viver, e que acesso a uma boa educação permite uma vida melhor; b) que as pessoas não nascem prontas, nem acabadas, e por isso a esperança de que seus filhos possam ser pessoas melhores e ter uma boa vida. Esperança essa que nasce do amor dos pais pelos seus filhos ou do amor das pessoas pelos seus entes queridos. Na verdade não são somente os pais que pensam assim. Os educadores e educadoras que compreendem a importância da educação na vida das pessoas e se importam com os educandos e educandas também estão lutando para possibilitar uma vida melhor para todos. Eu me lembro de uma professora da rede estadual, que aparentava ter mais de 60 anos, que me procurou após uma palestra que dei sobre como a educação poderia salvar a vida de muita gente e também dar um sentido melhor para a vida. Ela me agradeceu e disse emocionada que aquelas reflexões lhe tinham reafirmado a sua convicção sobre a importância da educação tanto na vida das crianças e na vida dela e tinha mostrado com mais clareza que o sentido da educação vai muito além do salário, da carreira profissional e das dificuldades das escolas públicas na periferia da grande cidade. Eu penso que os jovens estudantes também sabem desses pressupostos da educação. Talvez saibam de modo instintivo ou não muito sistematizado. O que precisamos é discutir essas questões de modo mais explícito para que eles possam ver com mais clareza o sentido da educação e das escolas na vida deles. Não é preciso ter ido a nenhuma faculdade ou ter lido livros científicos para chegar a esses conhecimentos. A vida nos ensina isso. É por isso que quase todos os pais, educadores e jovens do mundo, não importando o lu-
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gar e o tempo em que vivem ou viveram, dariam uma resposta semelhante. É claro também que o conteúdo concreto do tipo de educação e do tipo de conhecimento que é necessário para viver melhor dependerá de quem responde, do seu lugar social e geográfico, e do seu tempo. Além disso, a resposta para o que se entende por “vida melhor” ou “ser melhor” também variará dependendo do lugar social e histórico das pessoas envolvidas na conversação. Há pessoas que buscam em alguma religião ou em algum tipo de espiritualidade ainda não institucionalizada o fundamento do que se entende por “bem”, há também aqueles que buscam esse fundamento na razão (filosofia ou ciência), enquanto que muitos simplesmente aceitam a noção de “bem” e de “vida boa” dominante na sua sociedade que é transmitida por meios de comunicação social de massa. Não importa nesse momento qual é o fundamento da noção de bem que cada indivíduo ou grupo assume para definir o que é uma vida melhor ou uma pessoa melhor, uma pessoa de bem. Todas as formas compartem um mesmo fato: é preciso assumir um sentido para a sua vida para que as coisas e pessoas possam ser “organizadas” dentro da sua visão do mundo. Sem um sentido último da vida, nós não conseguimos estabelecer uma certa direção para a nossa vida. E sem essa direção, não logramos ter um horizonte de compreensão que nos dê sentido às coisas, fatos e pessoas e determine os valores de cada um. Sem direção e sem horizonte de sentido, nós não conseguimos dar um mínimo de unidade ou convergência a fatos e experiências fragmentários que compõem o nosso cotidiano. É por isso que pessoas que não encontraram o sentido para a sua vida se sentem perdidas e têm muita dificuldade em articular os fatos e experiências da sua vida. O nosso cotidiano é um fluir de experiências, sentimentos, ações, encontros... que, no fundo, são pedaços soltos que precisam ser articulados para que adquiram um certo sentido e nos possibilitem o senso do “eu”. Sem um sentido norteador da vida, esses fragmentos não se articulam em torno de algum eixo e nós nos sentimos perdidos diante de tantas experiências e opções desconectadas. A noção de uma “vida melhor” tem dois aspectos fundamentais: o aspecto operacional que permite a reprodução da vida material e espiritual/cultural das pessoas, do grupo e da sociedade; e o sentido da vida que permite que as pessoas e a sociedade possam julgar em que consiste este “melhor” e as levar a caminhar nessa direção. Sem acesso a conhecimento desses dois
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aspectos e sem competência para continuamente rever o modo como se produz e se aplica os conhecimentos operacionais e reavaliar criticamente o sentido da vida e os valores dominantes na sociedade, não se pode buscar uma “vida melhor”. Permitir esse acesso é a missão da educação. Este livro vai enfocar o segundo aspecto: o sentido da vida. O nosso objetivo – permita-me leitor usar a expressão “nosso objetivo” não simplesmente como um plural majestático, mas como um convite para caminharmos juntos na nossa reflexão – é, mais especificamente, reavaliar criticamente o sentido da vida dominante na nossa sociedade e apontar alguns caminhos para um sentido mais humano e encantado da vida. Aliás, hoje pouco se fala no sentido da vida ou da educação. Estamos mais concentrados em saber qual é o método mais apropriado para a educação ou então qual é o melhor caminho para o sucesso profissional, mas quase não nos perguntamos sobre para quê da educação ou por que o sucesso profissional é tão importante nas nossas vidas. Esta ausência de debate sobre a finalidade da educação e da vida mostra que as respostas já foram dadas e aceitas. Mesmo que não tenhamos consciência desse fato. Por isso é que só estamos preocupados com o método, o “como”, e não com a finalidade, o “para quê”. Quando um sentido da vida dominante na sociedade já não é nem mais discutida, é hora de levantar novamente essa pergunta! Esta é uma das funções de uma educação crítica. Eu penso que a cultura de consumo e a ideologia neoliberal estabelecem o parâmetro mais importante para o sentido da vida na nossa sociedade. Não vivemos mais em uma civilização em que se trabalhava para viver, onde as questões econômicas – como trabalho, consumo e acumulação – estavam subordinados à finalidade de viver bem; mas em uma civilização onde vivemos para trabalhar, ganhar mais dinheiro e consumir mais; e o viver bem foi identificado com o sucesso profissional ou a capacidade de consumo. Antes a vida ou certos aspectos da vida e a natureza eram encantadas e elas eram a fonte do encanto da vida das pessoas. Hoje, o encanto se transferiu para o mundo do consumo, para as mercadorias de marcas famosas, e a vida ficou desencantada. A vida sem consumo de mercadorias, objetos de desejo se tornou quase que insuportável, sem nenhum encanto. E como não queremos viver uma vida desencantada, fria e sem graça, corremos atrás de mercadorias que encantem a nossa vida. Ir ao shopping center para fazer
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compras quando nos sentimos “desanimados” (sem alma/vida) ou meio “chateados” (parecendo que a nossa humanidade ficou diminuída, achatada) é uma expressão clara desse fenômeno. O sentido da vida não está mais na vida mesma, mas em consumir mercadorias que encantem as nossas vidas. O problema é que quando fazemos do consumir mais o sentido último da vida, caímos na armadilha que nos conduz a uma ansiedade sem fim (sempre há novas coisas para consumir e assim causar inveja nas outras pessoas ou a inveja de não possuir o que outro tem) e nos leva à promessa de um “paraíso” – a plenitude de consumo – que é muito solitário e frio. Falta o calor humano do encontro das pessoas na amizade e gratuidade, sem a concorrência e inveja da lógica do consumismo. Quando o sentido da vida não está nela mesma, a educação também perde o seu sentido original de possibilitar uma vida boa e formar uma pessoa “de bem” e se concentra em capacitar tecnicamente os jovens para o sucesso econômico. Assim, o valor e o sentido da vida e da educação passam a ser medidos e julgados através do cálculo econômico. Reencantar a vida e a educação em si mesmas é uma tarefa fundamental e urgente! Para isso, apelos ou condenações morais não são suficientes. É preciso desvendar e criticar o sentido da vida dominante na nossa sociedade e propiciar meios para que as pessoas possam repensar o sentido das suas vidas e encontrar ou elaborar um outro que seja mais humano e encantado. Só assim podemos superar a “corrida” que nos conduz à “solidão no paraíso” e reencantar a nossa vida. Esse livro é uma modesta tentativa de oferecer algumas reflexões sobre esse desafio. Nos três primeiros capítulos, que formam o que poderíamos chamar de primeiro subconjunto do livro, vamos discutir a relação entre a vida e o conhecimento, para chegarmos à noção de que “viver é conhecer, conhecer é viver”, e como a capacidade simbólica do ser humano nos leva a perguntar pelo sentido da vida. O capítulo quatro é uma espécie de transição do primeiro para o segundo subconjunto do livro. Ele trata da relação entre a ciência e o mito e analisa o papel do mito e da linguagem simbólica no processo de conhecimento tanto no campo técnico-operacional quanto do sentido da vida. Os capítulos cinco e seis formam o segundo subconjunto e analisam o espírito e a espiritualidade do capitalismo, a sua fé e a sua “religião da vida cotidiana”, e como o encantamento do consumo desencantou a vida e a educação. 13
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Os capítulos de sete a dez, que formam o terceiro subconjunto, discutem diversas propostas de reencantamento que vêm desde as ciências naturais até a educação, passando pelas ciências sociais, e apresentam algumas pistas de como podemos educar para reencantar a vida e encontrar ou elaborar um sentido da vida que tome a sério a nossa condição humana, os nossos limites, as nossas possibilidades e os nossos desejos de transcendência que se expressam em linguagens simbólico-religiosas. O livro, esse conjunto formado por esses três subconjuntos semi-autônomos em relações de interdependência entre si, está atravessado (a) pelas noções de condição humana e da busca da liberdade humana frente aos instintos egoístas e destruidores e imposições culturais e ideológicas da sociedade e (b) pelo espírito de abertura, do abandono das certezas e da aposta na nossa capacidade de dialogar e aprender das sabedorias dos antigos e dos modernos, das ciências naturais, sociais e humanas e das tradições espirituais e religiosas da humanidade. Espero que o leitor ou leitora acompanhe e dialogue com as reflexões apresentadas aqui com o mesmo espírito de abertura e de esperança. Esperança de que podemos construir uma sociedade mais justa, solidária e humana, e que nessa luta consigamos perceber que, apesar de tudo, educar e viver em solidariedade vale a pena. –x–x– O texto aqui apresentado é resultado de um projeto de pesquisa realizado na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), no Programa de Pósgraduação em Ciências da Religião, onde sou professor e pesquiso a relação entre a religião, economia e educação. Por muitos anos eu pesquisei os aspectos teológicos e religiosos do capitalismo e da cultura de consumo. Com o meu pós-doutoramento em Educação, eu ampliei o meu campo de pesquisa para a relação entre a religião, economia e educação. Este é o meu primeiro livro onde trabalho explicitamente com esses três pólos, pois meus dois livros anteriores sobre a educação (Assmann & Sung, 2000; Sung, 2002b) não abordam explicitamente a dimensão simbólico-religiosa na relação entre educação e economia. Eu quero expressar aqui os meus agradecimentos a Umesp por apoiar essa pesquisa e também aos alunos do mestrado e do doutorado com quem
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tive a oportunidade de compartilhar e debater muitas das reflexões aqui apresentadas. Um agradecimento especial a Elizabete Cristina da Costa, Jacirema M. T. dos Santos e Allan Coelho, meus alunos, que leram o original e ajudaram na revisão do texto e com comentários e sugestões. –x–x– Nesta terceira edição, eu acrescentei um capítulo, como um anexo ao final. Ele trata de modo mais explícito a relação entre a teologia, educação e economia, que tem sido objeto de minhas pesquisas nos últimos anos. Os dez capítulos da versão original do livro já fazem referência à espiritualidade e aos mitos, temas tradicionais do estudo da religião, e também à relação entre educação e cultura de consumo. Por isso, este capítulo adicional não rompe com a linha de argumentação e pode ser lido como um passo aditante na reflexão, abrindo novas pistas de reflexão. O título do capítulo anexo, “sacrifícios humanos e educação humanizadora”, é familiar aos leitores que têm lido os meus textos, sejam em livros, artigos ou textos breves na internet. O conceito de “sacrifício” é um conceito chave no meu pensamento que articula o campo da teologia e economia. Diante de um sistema econômico que se funda na exigência de sacrifícios de vidas humanas em nome do progresso, é preciso entender como essa exigência passa do campo religioso para o econômico e repensar seriamente a noção de sacrifício que está presente no nosso cotidiano e na cultura religiosa que marca o nosso continente. E para que essa crítica seja real, precisamos também pensar em alternativas a essa lógica sacrificial. A proposta de uma educação humanizadora vem no sentido de chamar ao diálogo a pedagogia e a teologia diante do desafio de abrir horizontes de esperança que vá além da lógica sacrificial.
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CAPÍTULO 1 A vida e o conhecimento
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A
pós um dia de intenso debate em um seminário para educadores de uma ong, que trabalha com a educação dos jovens em situações de risco nas periferias de Buenos Aires, eu fui a um shopping center procurar algumas lembranças para meus filhos e minha esposa. Entrei e saí de lojas sem encontrar algo que valesse a pena (isto é, algo diferente, bonito, bom e barato!) e, sentindo-me muito cansado, parei para descansar em um banco. Passeando os meus olhos para o entorno eu me deparei com belas plantas de magníficas folhas verdes. Eram tão verdes e bonitas, em um lugar fechado, que eu desconfiei. Seriam naturais ou artificiais? O casal que me acompanhava também ficou curioso e nós três tocamos nas folhas para verificar se eram vivas ou não. De início foi difícil saber, e, após alguns “testes”, chegamos à conclusão de que eram plantas artificiais de alta tecnologia. Esta experiência me fez pensar novamente sobre a diferença entre a vida e a não-vida, entre um ser vivo e um sem vida. Na tarde anterior, ao voltar para o hotel após as primeiras seções do seminário, eu também tinha meditado sobre essa diferença ao ouvir as notícias sobre a “quase-morte” do então papa João Paulo II. Como o leitor pode se lembrar, alguns jornalistas tinham anunciado que o papa havia morrido, notícia essa que foi logo desmentida pelo Vaticano. Após esse desmentido e a notícia de que o papa ainda agonizava, enquanto muitos rezavam pela sua recuperação, diversos jornalistas e especialistas debatiam nos diversos canais de televisão a linha que separa a vida e a morte de uma pessoa. Estas duas experiências nos mostram que falar da vida é, paradoxalmente, algo fácil e difícil ao mesmo tempo. Como diz Ervin Laszlo, “a vida é ao mesmo tempo o mais familiar e o mais misterioso dos fenômenos naturais. Enquanto pensamos ou respiramos, não podemos duvidar de que estamos vivos, mas esta certeza não inclui uma resposta às questões que dizem respeito à natureza da vida.” (1999: 43). Todos nós sabemos que estamos vivos e somos a favor da vida, entretanto percebemos que não é nada fácil definir a vida. Não é objetivo deste livro entrar no debate sobre o que é a vida,
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muito menos em temas polêmicos tais como quando se inicia ou termina a vida de uma pessoa. Entretanto, como não podemos tratar da educação e do sentido da vida melhor sem uma noção mais explícita da vida, vamos neste capítulo apresentar algumas ideias e características da vida que estão na base da nossa proposta. 1. Os seres vivos, os não-vivos e sistemas complexos. A primeira dificuldade que encontramos ao falar da vida é que a vida não existe em si fora dos seres vivos. A vida não é uma substância, algo que existiria antes ou fora dos seres vivos concretos, mas ela só “existe” em seres vivos, é uma qualidade dos seres vivos. Por isso, nos é mais fácil analisar as características dos seres vivos. Também porque estamos preocupados em melhorar a vida concreta dos seres humanos e das outras espécies vivas e não em definir a vida “em si”. A primeira característica que nos ajuda nessa tarefa é a diferença entre os seres vivos e os não-vivos. Objetos não-vivos, como uma pedra, são passivamente impulsionados por estímulos externos, enquanto que os seres vivos reagem a estímulos externos. Por exemplo, quando uma pedra é atirada ao solo, ela não reage e simplesmente se despedaça, ou não, de acordo com a sua composição, força e o ângulo com que foi atirada e o tipo do solo onde ocorreu o impacto; enquanto que se atirarmos um gato vivo ao solo, ele reagirá procurando uma posição corporal mais favorável para atenuar ou evitar os ferimentos na queda. O gato corrigirá o rumo da queda para sobreviver. Como os estímulos externos são inevitáveis, podemos dizer que a vida de um ser vivo só é possível com as constantes correções de rumo que lhe permite aproveitar as oportunidades para prolongar a vida e evitar as ameaças que põem em risco a sua sobrevivência. Ou como diz Richard Lewontin, um famoso biólogo professor de Harvard: “a vida de um organismo consiste em constantes correções de rumo” (2002: 97). Paul Davies diz que, como físico, ele está acostumado a pensar na matéria como algo passivo e inerte, reagindo apenas quando pressionado por forças externas, como quando um pássaro morto cai sob a força da gravidade. “Mas as criaturas vivas têm, literalmente, uma vida própria. É como se contivessem uma faísca interior que lhes dá autonomia, para que possam (dentro de certos limites) fazer o que desejam. Até as bactérias fazem o que
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querem de forma restrita.” (2000: 35). Ele chega a chamar essa “faísca interior” de “liberdade interior” e se pergunta se essa espontaneidade implica ou não que a vida desafie as leis da física ou se os organismos apenas aproveitam essas leis para seus próprios fins. Mesmo sem entrarmos na discussão sobre se essa capacidade de todos os seres vivos de reagirem pode ser chamada de “liberdade interior”, ou se a vida desafia ou não a lei da física, podemos reconhecer que “um dos principais modos pelos quais a vida se distingue do resto da natureza é a sua extraordinária capacidade de ir ‘contra a maré’”(Idem, 55) e que “toda vida é um desvio em relação à matéria nãoviva” (Comte-Sponville & Ferry, 1999:64). A segunda característica dos seres vivos, a característica que define os seres vivos como classe, é que eles produzem-se continuamente a si mesmos, ou são entes com uma organização autopoiética. Autopoiese é um neologismo que une duas palavras gregas: autos, próprio; e poiein, poiesis, fazer, feito, que pode ser traduzido por um outro neologismo: o autofazimento ou autoprodução. Em um processo autopoiético, não há separação entre o produtor e o produto. “O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, esse constitui seu modo específico de organização” (Maturana & Varela, 1995: 89). A especificidade do ser vivo não está no tipo do material com que é composto, mas na sua forma de organização. Como diz Maturana, um dos principais nomes da biologia da cognição, “o ser vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que acontece como unidade separada e singular [...] um ser vivo é de fato um sistema autopoiético molecular, e que a condição molecular é parte de sua definição, porque determina o domínio de vinculação em que existe como unidade composta” (Maturana & Varela, 1997: 15). Em outras palavras, o que chamamos de vida não é constituído por partes que compõem um ser vivo, mas sim pelas relações existentes entre as diversas partes que constituem a unidade do ser vivo. “Para além das leis da Física e da Química, há que se pensar algo mais, a saber, a organização, aquilo que ordena as relações entre as partes. E como o ser vivo, por definição, é aquilo que se reproduz, para compreender o que é a vida, temos que considerar como estrutura central aquela forma de organização que se reproduz a si mesma, ou seja, que se organiza a si mesma, que é, em si, autoorganização.” (Cerne-Lima, 2003: 26).
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Para que a nossa discussão sobre seres vivos como sistemas autopiéticos e de auto-organização fique mais clara, é importante lembramos que a noção de sistema – vivo ou não-vivo – se refere a um todo organizado cujos componentes se encontram em interação dinâmica, aberto ao meio ambiente no que se refere ao aspecto energético, mas fechado sobre si mesmo no aspecto estrutural ou organizacional, isto é, dependem das interações com seu meio ambiente para sobreviver, mas, ao mesmo tempo, tem uma certa autonomia para administrar suas interações com o meio. Outra característica fundamental de sistemas autopoiéticos e de autoorganização – isto é, sistemas complexos – é a sua recursividade, também conhecida como organização circular ou processo circular, isto é, um sistema estável que se retrodetermina (feed back), se realimenta, se recompõe e se reorganiza de maneira plástica e flexível – não mecânica – a partir da interação com seu meio ambiente. Quando essa interação leva a uma situação que se afasta do ponto de equilíbrio pode, muitas vezes, engendrar novas formas de organização e de comportamento. Isto é, o sistema pode entrar em uma situação de instabilidade tal que acaba por fazer emergir novas propriedades que modificam o próprio modo de organização e funcionamento do sistema. Em alguns casos, o sistema anterior dá lugar a um outro sistema e, em casos extremamente virulentos, um sistema pode simplesmente ser dissolvido ou desfeito. Para muitos de nós, formados em uma mentalidade de causalidade linear que se firmou no Ocidente desde Aristóteles passando por Tomás de Aquino, não é fácil pensar que a causa e efeito nem sempre constituem um processo absolutamente linear, isto é, que a causa não é sempre e necessariamente diferente do efeito que ela produz e que ela não é sempre lógica e ontologicamente anterior ao efeito por ela produzido. O fato de trabalharmos com o conceito de sistemas complexos auto-organizativos e autopoiéticos não quer dizer que a teoria da causalidade linear – que diz que A produz o B, que produz o C e assim por diante – deve ser descartada completamente, como alguns poderiam pensar. Substituir completamente a teoria da causalidade linear pela teoria de sistemas complexos ou de causalidade não-linear – que em termos simples diz que A produz o B, que por sua vez atua sobre A que o produziu, ao mesmo tempo em que produz o C e assim por diante – seria negar a complexidade da realidade em nome da teoria da complexidade! A questão é que a teoria da causalidade linear não é a única e não explica
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todos os fenômenos ou aspectos da realidade, especialmente a organização e funcionamento de sistemas complexos. Ao falamos do ser vivo como uma unidade de sistema autopoiético devemos ter cuidado para não perdermos de vista a diferença entre um ser vivo e outros tipos de sistemas autopoiéticos. Por isso, Maturana dá ênfase às moléculas para distinguir seres vivos de outros sistemas autopoiéticos nãomoleculares, isto é, sistemas autopoiéticos de outra classe, como a cultura, que por não serem compostos de moléculas possuem outras características que os tornam completamente diferentes. Maturana insiste nessa diferenciação porque ele acredita que “o mais difícil de compreender e aceitar, no que se refere aos seres vivos, é: a) que o ser vivo é, como ente, uma dinâmica molecular, não um conjunto de moléculas; b) que o viver é a realização, sem interrupção, dessa dinâmica em uma configuração de relações que se conserva em um contínuo fluxo molecular; e c) que enquanto o viver é e existe como dinâmica molecular, não é que o ser vivo utilize essa dinâmica para ser, produzir-se ou regenerar-se a si mesmo, mas que é essa dinâmica o que de fato o constitui como ente vivo na autonomia de seu viver.” (Maturana & Varela, 1997: 16). Paul Davies, por sua vez, enfatiza a noção de informação: “o segredo da vida provém de suas propriedades de informação; um organismo vivo é um complexo sistema de processamento de informações. [...] Por mais extraordinário que possa ter sido a química que ocorreu na Terra primeva ou em algum outro planeta, a centelha da vida não foi produzida por um turbilhão molecular, mas – de algum modo! – pela organização da informação.” Por isso, para ele “a complexidade biológica é complexidade instruída, ou, para usar o linguajar moderno, é complexidade baseada em informação.” (2000: 21 e 32) Essa noção de que o organismo é um complexo sistema de processamento de informações é fundamental não só para compreendermos o que é a vida, mas também para todas as pessoas e instituições envolvidas com o processo educacional. A vida e o viver não consistem em obter informações, mas na capacidade de processar informações, o que chamamos de conhecimento. Essa diferenciação entre informação e conhecimento é fundamental tanto para a compreensão do que é a vida quanto para uma educação realmente comprometida com o bem viver das pessoas. Maturana e Varela também insistem nesse ponto e afirmam que “falamos em conhecimento toda vez que observamos uma conduta efetiva (ou ade23
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quada) de um organismo num contexto assinalado – ou seja, num domínio que definimos com uma pergunta (explícita ou implícita) que formulamos como observadores” (1995:200) e que “desse ponto de vista, toda interação de um organismo, toda conduta observada, pode ser avaliada por um observador como um ato cognitivo. De mesma maneira, o viver é conhecer no âmbito do existir. Aforisticamente, viver é conhecer (viver é ação efetiva no existir como ser vivo).” (Idem: 201). A identificação do processo de vida com o processo de conhecer implica em uma concepção da mente que rompe com o dualismo de corpo/cérebro e mente. As interações de um organismo vivo com o seu meio ambiente são vistas como interações cognitivas, processos mentais, e, assim, a mente não é mais vista como uma coisa que se justapõe ao corpo ou à matéria. Segundo Fritjof Capra, “a mente não é uma coisa, mas um processo — o processo de cognição que é identificado com o processo da vida. O cérebro é uma estrutura específica por meio da qual esse processo opera. Portanto, a relação entre mente e cérebro é uma relação entre processo e estrutura.” (1997: 146) 2. Ser vivo, ambiente e conhecimento. Se é verdade, ou se pelo menos é possível sustentar, que viver é conhecer e que o processo de cognição tem a ver com a conduta efetiva ou adequada de um organismo vivo em um contexto relacional determinado, precisamos analisar, mesmo que rapidamente, a relação entre ser vivo e o seu meio ambiente. Antonio Damásio, neurocientista, sintetiza os problemas básicos da vida de seguinte forma: “encontrar fontes de energia; incorporar e transformar energia; manter, no interior do organismo, um equilíbrio químico compatível com a vida; substituir os subcomponentes que envelhecem e morrem de forma a manter a estrutura do organismo; e defender o organismo de processos de doença e de lesão física.” (2004: 37) Em relação aos animais superiores, incluindo aqui os seres humanos, podemos dividir esses cinco problemas básicos da vida em dois grupos: os 24
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que não dependem da aprendizagem e os que dependem, pelo menos em parte, da aprendizagem. O primeiro problema ou a primeira tarefa – a de encontrar fontes de energia – e o quinto – defender o organismo de processos de doença e de lesão física – exigem para a sua solução um processo de aprendizagem, mesmo que haja partes nessas tarefas que são solucionadas “automaticamente” pelo organismo. Vejamos isso com alguns exemplos. Nós precisamos de oxigênio para sobreviver, mas não precisamos aprender a respirar; nascemos sabendo como respirar e, neste sentido, o nosso organismo soluciona esse problema de uma forma automática. Entretanto, nós também precisamos de alimento como uma outra fonte indispensável de energia para a nossa sobrevivência. A aquisição desse tipo de fonte de energia é fruto da aprendizagem. Quanto ao problema de defesa do organismo, também possuímos alguns conhecimentos automatizados e necessitamos aprender outros. Por exemplo, quando saímos para um ambiente aberto em um dia de frio intenso, o nosso nariz fica vermelho, sem que nós saibamos e queiramos. Isto porque o nosso corpo processa as informações advindas do ambiente e envia mais sangue para o nosso nariz para esquentar o ar e evitar danos ao nosso pulmão. A AIDS tem a ver com essa questão. Como todos nós sabemos, ninguém morre de AIDS, mas sim de doenças que o nosso corpo não consegue mais detectar e nem combater. Em outras palavras, a AIDS nos mata porque incapacita o nosso corpo de conhecer os “inimigos” e de criar mecanismos de combate. É como um vírus de computador destruindo todo o software que comanda o sistema de vigilância, defesa e de contra-ataque do nosso corpo. Além desses conhecimentos não-adquiridos pela aprendizagem, precisamos também de conhecimentos aprendidos para podermos nos defender e evitar doenças e lesões físicas. Por exemplo, não tomar ar frio depois de um banho quente, não reagir diante de um assaltante violento ou esperar pelo semáforo verde em uma rua movimentada. As três outras tarefas – “incorporar e transformar energia; manter, no interior do organismo, um equilíbrio químico compatível com a vida; substituir os subcomponentes que envelhecem e morrem de forma a manter a estrutura do organismo” – são solucionadas pelos mecanismos automáticos do próprio organismo. É claro que, em sociedades humanas com ciências médicas avançadas, encontramos casos em que alguns subcomponentes podem ser substituídos por outros de origem biológica ou artificial através de transplantes ou implantes. 25
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Em suma, os problemas básicos para a vida de um organismo têm uma relação direta com a capacidade do ser vivo de processar as informações advindas do ambiente. Processo de cognição que pressupõe uma relação adequada entre um organismo com autonomia (obedecendo as suas próprias “normas” que se estabelecem em rupturas com as leis da matéria inanimada) e o seu meio ambiente. Esta relação entre o organismo vivo e o seu meio ambiente que permite o metabolismo e a reprodução do ser vivo foi analisada por Maturana e Varela sob o conceito de acoplamento estrutural. O acoplamento estrutural entre o organismo e o meio ocorre entre sistemas operacionalmente independentes. A manutenção dos organismos como sistemas dinâmicos em seu meio depende de uma compatibilidade entre os organismos com o meio, o que chamamos de adaptação. Se, por outro lado, as interações do ser vivo com seu meio se tornam destrutivas, desintegrando-o ao interromper sua autopoiese, consideramos o ser vivo perdeu sua adaptação. A adaptação, portanto, é uma conseqüência necessária do acoplamento estrutural da unidade com o meio, e portanto não deveria surpreender. Em outras palavras, a ontogenia de um indivíduo é uma deriva de mudanças estruturais com conservação de organização e adaptação. É bom repetir: a conservação da autopoiese e a conservação da adaptação são condições necessárias à existência dos seres vivos. (1995: 137) Esta longa e importante citação merece ser comentada. Em primeiro lugar, Maturana e Varela falam de um “acoplamento estrutural entre o organismo e o meio”. A noção de estrutural pode ser entendida como algo que não é conjuntural, isto é, não é passageiro e nem contingente. Apesar de organismo e meio serem sistemas operacionais independentes, eles não existem por si, existem nessa relação de acoplamento estrutural. Como diz Richard Lewontin, “Assim como não pode haver organismo sem ambiente, não pode haver ambiente sem organismo. [...] um ambiente é algo que envolve ou cerca, mas, para que haja envolvimento, é preciso que haja algo no centro para ser envolvido. O ambiente de um organismo é a penumbra de condi-
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ções externas que para ele são relevantes em face das interações efetivas que mantém com aqueles aspectos do mundo exterior.” (2002: 53-54) Lewontin apresenta nessa citação um terceiro elemento que nos possibilita uma compreensão mais precisa da relação entre o organismo vivo e o meio ambiente: o mundo exterior. Isto é, além do organismo vivo e do meio ambiente, existe o mundo exterior. O meio ambiente não é tudo o que está em volta e fora do organismo. Tudo o que está fora do organismo é o mundo exterior, mas nem tudo que pertence ao mundo exterior compõe o meio ambiente de um organismo determinado. Isto porque são os organismos que determinam quais os elementos do mundo exterior devem estar presentes para a formação dos seus ambientes e quais relações entre esses elementos são relevantes para eles. Ele dá um exemplo a partir do jardim da sua casa, onde há árvores e, entre eles, grama e pedras espalhadas pelo chão. Para uma ave (Sayoris phoebe) que constrói seu ninho com palha, a grama faz parte do ambiente, mas não a pedra. Por isso, se um jardineiro retirar todas as pedras isso não faz diferença para ela. Porém, as pedras fazem parte do ambiente do tordo que as usa como bigorna para abrir caracóis e comê-los. Enquanto que os ocos no alto da árvore utilizados pelos pica-paus como ninhos não fazem parte do ambiente de nenhuma das outras duas aves. Além disso, “organismos não só determinam os aspectos do mundo exterior que são relevantes para eles, em função de peculiaridades da sua forma e do seu metabolismo, como também constroem ativamente, no sentido literal da palavra, um mundo à sua volta.” (Idem: 59). Não somente ninhos, buracos e roupas e casas, no caso dos humanos, mas também um tipo de concha, uma camada de tépido e úmido, criada pela água e pelo calor metabólico do corpo. “Ela existe à volta de todos os organismos que fazem metabolismo e vivem em contato com o ar, inclusive as árvores.” (Idem: 59) Em terceiro lugar, o meio ambiente não é algo fixo ou estável que existiria independente dos organismos vivos determinados. Muito pelo contrário, os organismos, além de construírem os seus ambientes a partir do mundo exterior, promovem um processo constante de alterações neles. Todas as espécies, e não somente a espécie humana, “se encontram em um processo de destruição do próprio ambiente por meio do uso de recursos de disponibilidade limitada que são por elas modificadas e que assumem uma forma que não pode voltar a ser usada pelos indivíduos da espécie.” (Idem: 60). Por
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isso, o meio ambiente está em constante mudança, de modo que a adaptação conseguida hoje não garante a sobrevivência no futuro. Para nós humanos, esta é a principal razão da necessidade de uma educação permanente. Em outras palavras, precisamos nos educar permanentemente porque não só modificamos o ambiente com as nossas ações, mas também porque o ambiente é uma constante criação nossa. Essa ideia tem uma implicação séria e está gerando uma importante e ampla mudança nas ciências cognitivas. “Essa mudança exige que nos afastemos da ideia do mundo independente e extrínseco em direção à idéia de um mundo inseparável da estrutura desses processos de automodificação.” (Varela & Thompson & Rosh: 2003: 148-149). O “mundo”, ou melhor, o que nós humanos chamamos de mundo não é predeterminado e a cognição não é uma mera representação desse mundo exterior. Em termos de Lewontin, nós humanos construímos o nosso mundo (o nosso ambiente) com os elementos do mundo exterior1. Para Varela, Thompson e Rosh, “O insight central dessa orientação não-objetivista é a ideia de que o conhecimento é resultado de uma interpretação contínua que emerge de nossas capacidades de compreensão. Essas capacidades estão enraizadas nas estruturas de nossa incorporação biológica, mas são vividas e experienciadas em um domínio de ação consensual e de história cultural. Elas nos possibilitam compreender nosso mundo – ou, em uma linguagem mais fenomenológica, elas são as estruturas por meio das quais existimos, no sentido de ‘temos um mundo’.” (2003: 157). Voltando à citação de Maturana e Varela, o segundo ponto trata da compatibilidade ou da adaptação entre os organismos com o meio como a condição para a sobrevivência dos organismos. Como já vimos, a sobrevivência de um organismo depende da sua capacidade de processar informações e obter energia na relação com o meio. Se essa adaptabilidade cessa, as interações do organismo com o seu meio se tornam destrutivas e a autopoiese do organismo cessa. Como dizem esses dois autores, “a conservação da autopoiese e a conservação da adaptação são condições necessárias à existência dos seres vivos”. Para evitar mal entendido, quero deixar claro que a adaptação, no caso da espécie humana, não significa necessariamente uma total adequação à 1.
Como este capítulo dedica uma especial atenção à noção da vida a partir das ciências naturais, não vamos estabelecer aqui um diálogo com o campo da educação, mas leitores de autores como Piaget podem perceber diversos pontos de contato e/ou convergência. 28
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sociedade estabelecida. Uma interpretação que poderia levar alguns a pensar que essa teoria tem um quê de conservadorismo político. No caso específico dos seres humanos, a necessidade da adaptação a um ambiente natural e social/cultural dado não significa necessariamente uma adaptação passiva de integração total ao status quo e de plena aceitação dos valores sociais dominantes. Mesmo grupos que lutam pela superação de uma determinada ordem social precisam saber processar as informações que advém do ambiente e retirar do meio as fontes de energias necessárias para a reprodução da sua vida. Por exemplo, se um grupo de revolucionários chega a um lugar onde não consegue se adaptar ao clima, não logra retirar da terra os alimentos, não consegue comunicar com as pessoas do lugar, nem mesmo para solicitar a comida, e não compreende absolutamente nada dos costumes do povo local, este grupo morrerá de fome antes de iniciar qualquer atividade político-revolucionária. Por fim, devemos ter sempre em mente que o organismo não é determinado nem pelos seus genes, nem pelo seu ambiente, mas pela interação entre eles. Mas, mesmo essa interação não determina nem o organismo e nem o ambiente, porque essa mesma interação carrega uma marca significativa de processos aleatórios. 3. Conhecimento e o sentido da vida humana. O tema “viver é conhecer”, que desenvolvemos nesse capítulo, é importante em todos os lugares e em todos os tempos, mas hoje se tornou ainda mais crucial. O ambiente no qual vivemos está se transformando profundamente. O ambiente natural está em grande transformação por causa do desequilíbrio ecológico em boa parte causado pelas ações humanas. Em outras situações, o ambiente de um grupo muda porque o grupo mudou para um lugar diferente, como por exemplo, camponeses que são expulsos do campo e vão viver nas periferias das grandes cidades. Nesses casos o impacto é muito maior e mais imediato O ambiente econômico também está mudando profundamente por causa da revolução tecnológica – informática, biotecnologia, telecomunicações, novos materiais, mecatrônica, novas formas de administração e de organização do processo produtivo, etc. – e da globalização. O ambiente social e cultural também está passando por profundas transformações. Os valores tradicionais ou modernos que vinham norteando a 29
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vida das pessoas e da própria sociedade estão sendo modificados ou até mesmo dissolvidos. Essa dissolução das referências culturais antes vistas como sólidas e as profundas transformações no campo econômico-social têm gerado, por exemplo, a banalização da violência, a exacerbação do consumismo e a busca, quase que obsessiva, do corpo e beleza perfeitos. O que alguns teóricos chamam de cultura pós-moderna, outros de modernidade líquida, hiper-modernidade ou modernidade tardia. A confusão dos nomes ou o uso do prefixo “pós” revela que os teóricos ainda não estão de acordo sobre o rumo dessas mudanças. O que sabemos com certeza é que o nosso ambiente, o nosso mundo, está mudando, como não poderia deixar de ser. Mas a velocidade dessa mudança está sendo tão grande que muitos não estão conseguindo se adaptar aos novos tempos. Essa incapacidade de adaptação ou a falta de conhecimento necessário para processar as novas informações do ambiente (para voltarmos à linguagem biológica que usamos antes) estão condenando essas pessoas à morte ou a uma vida infra-humana. Alguns conseguem se adaptar às novas tecnologias e ao novo ambiente econômico, mas se perdem no tocante ao sentido da vida. Sem sentido ou com um sentido de vida ainda confuso, se perdem em uma vida marcada pela corrida sem fim pelo sucesso que gera ansiedade, angústia, agressividade e outras formas de desumanização. O sucesso econômico aparece muitas vezes como sinônimo de qualidade de vida, de uma vida bem sucedida, e, com isso, a própria noção de qualidade é substituída pela de quantidade e a noção de boa vida por uma vida de conforto e excesso. Alguém poderia estar perguntando: por que esse tema do sentido de vida ao final desse capítulo? O que o sentido da vida tem a ver com os seres vivos que precisam preservar a autopoiese e a adaptação ao ambiente? Realmente, os seres vivos em geral precisam somente da conservação da autopoiese e da adaptação ao meio para se manterem vivos. Mas, o homo sapiens é uma espécie “rara”, que precisa de algo mais. Nós humanos não queremos estar somente vivos, necessitamos sentir que vale a pena viver. Necessitamos de um sentido de vida que faça as pequenas coisas que compõem o nosso dia a dia terem sentido e valor. Somos diferentes! Não necessariamente melhores, mas diferentes em relação às outras espécies. Saber dessas diferenças é fundamental para a nossa discussão sobre a educação e o sentido da vida.
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CAPÍTULO 2 A especificidade do conhecimento humano
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o capítulo anterior, vimos a relação entre o viver e o conhecer em todos os seres vivos. A pergunta que vai nos guiar nesse segundo capítulo é: qual é a forma especificamente humana de cognição que diferencia o ser humano de outros animais superiores? A noção de especificidade aqui tem um sentido literal, isto é, que é da espécie humana e que funciona como o diferenciador das outras espécies, o que a lógica clássica chamava da “diferença específica”. É claro que a busca dessa resposta não visa meramente colher mais uma informação sobre a “natureza” humana, mas sim recolher elementos que nos ajudem na formulação de uma proposta educacional para um sentido da vida que nos possibilite um bem-viver. 1. A cognição e a identificação com outros A primeira questão que se nos apresenta quando queremos compreender a especificidade do conhecimento humano é a grande semelhança entre o material genético humano e dos grandes macacos: quase 99% dos nossos materiais genéticos são compartilhados. Não só isso, nós compartilhamos esse mesmo grau de parentesco genético também com outras espécies como leões, tigres, cavalos, ratazanas e camundongos. Portanto, não é na diferença genética que encontraremos toda a resposta. Um outro fator importante é o tempo. Os seres humanos estão separados dos grandes macacos por 6 milhões de anos ou menos, tempo insuficiente para que os processos normais de evolução biológica, que envolvem variações genéticas e seleção natural, criassem todas as habilidades cognitivas necessárias para que os humanos modernos fossem capazes de criar e conservar complexas aptidões e tecnologias no campo das ferramentas, comunicação e representação simbólica, e complexas organizações e instituições sociais. Muita semelhança genética e pouco tempo! Como explicar a grande diferença entre a vida dos seres humanos e a dos macacos ou de outros animais superiores? Só há uma solução possível para esse enigma: o único mecanis33
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mo biológico conhecido capaz de gerar esse tipo de mudança no comportamento e na cognição em tão pouco tempo – não importa se 6 milhões de anos ou um quarto de milhão –, é a transmissão social ou cultural que funciona em escalas de tempo de magnitudes bem mais rápidas do que as da evolução orgânica. Para Michael Tomasello, “uma hipótese razoável seria, [...], que o incrível conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestados pelos homens modernos é o resultado de algum tipo de modo ou modos de transmissão cultural únicos da espécie”. (2003: 8) Esta ideia de que esse tipo de transmissão só ocorre na nossa espécie vem do importante fato de que a evolução cultural cumulativa – as tradições e os artefatos culturais que se acumulam e se modificam ao longo do tempo – não ocorre em nenhuma outra espécie. Essa particularidade ocorre porque os seres humanos são capazes de combinar seus recursos cognitivos de maneiras diferentes das outras espécies. Podemos identificar três tipos básicos de aprendizagem cultural humana: a) aprendizagem por imitação; b) aprendizagem por instrução; c) aprendizagem por colaboração. O que torna possíveis esses três tipos de aprendizagem cultural é uma forma muito especial de cognição social: a capacidade de cada organismo compreender os indivíduos pertencentes a mesma espécie como seres iguais a ele, com vidas mentais e intencionais iguais às dele. “Essa compreensão permite aos indivíduos imaginarem-se na ‘pele mental’ de outra pessoa, de modo que não só aprendem do outro, mas através do outro. Essa compreensão dos outros como seres tão intencionais como si-mesmo é crucial na aprendizagem cultural humana porque os artefatos culturais e a prática social – prototipicamente exemplificados pelo uso de ferramentas e de símbolos linguísticos – apontam, invariavelmente, para além deles mesmos, para outras entidades externas” (Tomasello, 2003: 7). As ferramentas não existem em função de si mesmas, mas apontam para situações-problema que devem solucionar e símbolos linguísticos apontam para situações comunicativas ou processos de comunicação. Portanto, os seres humanos, em especial as crianças, precisam compreender o para quê – um fim exterior – a outra pessoa está usando a ferramenta ou símbolo para aprender socialmente o uso convencional de uma ferramenta ou de um símbolo. Em outras palavras, precisa entender o significado intencional – o “para quê” – do nosso uso dos símbolos e das ferramentas. Sem a finalidade
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não é possível determinar a razão dos meios utilizados e sem a compreensão dessa finalidade não é possível aprender através do outro. No âmbito cognitivo, a nossa herança biológica não é muito diferente a de outros primatas. A única diferença fundamental é que nós seres humanos nos identificamos com outros membros da nossa espécie mais profundamente do que outros primatas. Essa identificação é o processo por meio do qual a criança humana entende que as outras pessoas são seres iguais a ela mesma, seres da mesma espécie, e, por isso, tenta entender as coisas do ponto de vista dessas outras pessoas. Enquanto que os primatas não-humanos e crianças recém-nascidas representam cognitivamente seus ambientes preservando percepções passadas e basicamente sua própria experiência sensório-motora , as crianças, entre um e dois anos de idade, iniciam o processo de comunicar-se simbolicamente com outros agentes intencionais e vão além dessas representações diretas e individuais. Para isso elas precisam desenvolver a capacidade da atenção conjunta e adquirir a linguagem e outras formas de aprendizagem cultural. A diferença qualitativa das representações simbólicas que as crianças aprendem em suas interações sociais se deve ao fato de que essas representações são agora intersubjetivas e perspectivas. Intersubjetivas no sentido de que os símbolos são socialmente compartilhados com outras pessoas; e perspectivas porque o sentido de cada símbolo apreende uma maneira particular de ver algum fenômeno. “O ponto teórico central é que os símbolos linguísticos incorporam uma miríade de maneiras de interpretar intersubjetivamente o mundo que se acumularam numa cultura ao longo do tempo histórico, e o processo de aquisição do uso convencional desses artefatos simbólicos, e portanto sua internalização, transforma fundamentalmente a natureza das representações cognitivas da criança.” (Tomasello, 2003: 133). Na conhecida tese de Howard Gardner de múltiplas inteligências, que define o ser humano como um organismo dotado de um conjunto básico de sete ou oito inteligências (à primeira lista de sete inteligências – a linguística, lógico-matemática, musical, físico-cinestésica, espacial, interpessoal e intrapessoal –, Gardner acrescentou uma oitava, a inteligência naturalista), esse tema se aproxima da sua noção de inteligência interpessoal: “a capacidade de entender as intenções, as motivações e os desejos do próximo e, consequentemente, de trabalhar de modo eficiente com terceiros.” (2000: 57) O que dá à cognição humana o seu poder único e impressionante em relação a outros animais é o fato de usarmos os símbolos linguísticos em 35
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interações discursivas onde as diferentes perspectivas de apreensão e compreensão de algum fenômeno possibilitadas por esses símbolos são explicitamente contrastadas e compartilhadas. Esse compartilhar e contrastar as diferentes perspectivas fornecem a matéria prima a partir da qual as pessoas de todas as culturas podem construir as suas noções flexíveis e multiperspectivadas do que entende por fenômeno ou realidade. Sendo assim, quanto mais perspectivas forem contrastadas, comparadas e compartilhadas em processos dialógicos, mas rico e complexo será o conhecimento do real. Pois o real, por causa da sua própria complexidade, não se deixa captar plenamente por nenhuma perspectiva e nem pela simples somatória das perspectivas. Para evitar mal-entendido, quero deixar claro aqui que o fato de reconhecermos que nenhuma ciência ou teoria esgota a realidade, que nós seres humanos não temos a possibilidade de elaborar ou encontrar um conhecimento absoluto e universal sobre um tema ou sobre a realidade, não significa que qualquer teoria ou proposta cultural é válida. Devemos evitar esses dois extremos: a certeza absoluta e dogmática de um lado, e de outro um puro relativismo, que por cair em um “absolutismo do relativo”, impossibilita a abertura e o diálogo entre as diversas formas e perspectivas culturais e de conhecimento que permitem a emergência de um pensamento crítico capaz de nos ajudar na luta pela superação de situações de dominação, opressão e morte. É no diálogo das diversas perspectivas que podemos nos aproximar mais da compreensão mais adequada do real. E o diálogo é entendido aqui como encontro das pessoas que falam sobre o mundo ou um problema específico, não para impor a sua perspectiva sobre o outro que deve se calar e aceitar, mas para compreender melhor e solucionar o problema ou melhorar o mundo. Como diz Paulo Freire: “o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes”. (1979: 93) Não há diálogo se não se reconhece o outro e tenta ver o mundo através dele; por isso o diálogo não é possível se não há respeito e confiança entre os dialogantes. Nesse sentido, aprender a conviver, um dos quatro famosos pilares da educação proposto pelo documento da Unesco, Educação: um tesouro a descobrir, (Delors & outros, 1999) não é somente importante para a convivência 36
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social pacífica entre pessoas e grupos diferentes, mas também é fundamental para uma compreensão mais complexa, mais rica e apropriada da realidade. Para que essa importante questão fique mais clara, tomemos como exemplo a narrativa de um fato histórico. Muitos livros de história, especialmente os didáticos, contam a versão oficial que, se vai além dos números, datas e nomes de pessoas e de lugar, apresentam somente as razões e as análises na perspectiva dos vencedores ou do regime em vigor. Mesmo que hoje em dia já existam muitos livros de história contando a versão dos vencidos ou tentando fazer uma leitura “objetiva” dos conflitos sociais e de guerras, são raros os livros que contam o sofrimento dos vencidos ou tentam estimular a imaginação dos leitores para colocar-se no lugar, por exemplo, das famílias dos soldados e populações mortas na guerra. Eu, pelo menos, nunca tive a sorte de participar de uma aula de história onde o professor e/ou o livro utilizado nos pedissem para nos colocarmos no lugar dos órfãos ou viúvas produzidos por uma guerra, especialmente do lado dos vencidos e dos considerados culpados. Essa falta de experiência de se colocar na “pele” do outro que sofreu ou sofre as consequências de uma guerra ou de uma injustiça não somente bloqueia um conhecimento mais complexo, com múltiplas perspectivas, do fato histórico ou contemporâneo, mas também não possibilita um melhor desenvolvimento da dimensão moral do ser humano, um aspecto que nos diferencia de outros animais. 2. Sofrimento, compaixão e moral. Como eu posso saber se uma criança com um olhar perdido, lágrimas escorrendo pelos seus olhos diante de uma casa destruída por bombas e pessoas adultas mortas pelo chão, aparentemente seus pais, está sofrendo, sentindo uma profunda dor e saudade? É necessário que essa criança consiga encontrar palavras suficientemente esclarecedoras para que eu possa imaginar a dor que ela sente? Ou somos capazes de nos colocar no lugar dela e compreender o sentido das suas lágrimas, do seu olhar perdido e a sua intenção de não falar conosco? Identificar-se com o outro é a condição para um conhecimento humano e isso vale não somente para a comunicação de assuntos alegres ou meramente descritivos, mas também para sofrimentos e dores. Nós podemos conhecer o sofrimento alheio porque podemos nos colocar na pele da pessoa 37
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que sofre e nos imaginarmos sofrendo. A compaixão, sentir em si a dor do outro, não é um sentimento que existe somente em pessoas espiritualmente desenvolvidas ou nas que assumem explicitamente a solidariedade como um valor fundamental da sua vida. Compaixão faz parte da condição humana, porque faz parte do processo da cognição humana. Pois, a aprendizagem humana requer que nós percebamos o outro como um ser intencional igual a nós, que nos coloquemos na pele do outro. Como todos nós temos essa capacidade básica, sabemos quando uma pessoa está alegre ou triste, mesmo que ela não nos comunique explicitamente o seu estado emocional. Dalai Lama, ao falar de sentimentos humanos básicos, diz que todos nós temos a capacidade de empatia recíproca e que há uma expressão em tibetano que traduzida literalmente significa “a incapacidade de suportar a visão do sofrimento do outro”. É essa empatia, segundo ele, “que nos permite compreender e, até certo ponto, participar da dor dos outros” (2000: 76). Ele não faz , como outros autores que fui apresentando, o caminho das ciências para mostrar como todos nós somos tocados pela dor do outro. O que prova a validade dessa tese é o simples fato de que um grito de socorro provoca sobressalto em todos nós, ou o instinto que nos faz recuar ao ver alguém sendo maltratado ou o sofrimento que sentimos ao presenciar o sofrimento dos outros. Mesmo quando não queremos sentir essa compaixão, nós somos obrigados a fechar os ouvidos ou desviar o olhar para tentar ignorar a dor alheia. O que prova que somos tocados. Mas, ao mesmo tempo, essa possibilidade de desviarmos o olhar nos mostra que podemos criar mecanismos de defesa contra a dor que a dor do outro provoca em nós e nos fazermos insensíveis frente ao sofrimento de uma outra pessoa, impedindo que dessa compaixão nasça uma postura de solidariedade ativa2. Para Piaget, que tratou desse tema especialmente no seu livro O Julgamento Moral da Criança, (1977) o raciocínio moral não deriva do desejo de seguir uma lei ou as regras oficiais de comportamento, mas do envolvimento empático da criança com outras iguais a ela, de ser capaz de ver e sentir coisas do ponto de vista delas, de colocar-se no lugar das outras e sentir a dor delas. Proposta de educação da dimensão moral das pessoas baseada na recompensa e punição não fomenta essa experiência de empatia e compaixão, mas pelo contrário a impede. 2.
Eu tratei mais extensamente desse tema no cap. 8 do meu livro Sujeito e sociedades complexas, 2000. 38
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Essa lógica educacional baseada na recompensa e punição é devedora de uma visão do ser humano reduzido a um ser de cálculo, criado pelos economistas liberais sob o nome de homo oeconomicus: um ser que decide baseado somente no cálculo do lucro x prejuízo, recompensa x punição. Mas como diz Restrepo, “cada vez estamos mais dispostos a reconhecer que o tipicamente humano, o genuinamente formativo, não é a operação fria da inteligência binária, pois as máquinas sabem dizer melhor que nós que dois mais dois são quatro. O que nos caracteriza e diferencia da inteligência artificial é a capacidade de emocionar-nos, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos que nos impactam.” (Restrepo, 2000: 18) Esse reconhecimento do afeto e da compaixão como algo básico da condição humana não pode nos levar ao erro de pensarmos que não precisamos educar e desenvolver esse aspecto moral do ser humano ou que podemos deixar a cargo da “natureza” o desabrochar natural da moralidade em todos os seres humanos. É enquanto um ser moral, um ser que levanta questões éticas e procura viver de acordo com esses valores, que o ser humano se “desprende” da natureza ou do reino dos instintos e das determinações genéticas. O ser humano se torna livre exatamente nesse processo de se “distanciar” da natureza, de tomar distância do domínio dos seus instintos, e de utilizar a capacidade de diferenciar entre o certo e o errado, não somente em função da sua própria sobrevivência, mas também a partir da noção do bem e do mal que foram descobertos ou criados na interação social. Como essa capacidade cerebral de distinguir entre o bem e o mal é um produto do processo da evolução, essa noção de “desprender” da natureza precisa ser relativizada. A natureza nos proveu da capacidade de nos distanciarmos dela, ou pelo menos do reino da determinação genética e dos instintos. Ao falar do ser humano como um ser moral, não podemos ir para o outro extremo da noção de homo economicus e pensar que a “natureza” ou a “essência” humana é compaixão e solidariedade. Nós também somos seres egoístas capazes de fazer ou desejar mal a outras pessoas. Além de criar mecanismos de defesa contra o próprio sentimento de compaixão e de elaborar ideologias, explicações racionais ou religiosas, para justificar os sofrimentos impostos sobre outras pessoas e assim substituir a compaixão pela insensibilidade frente à dor alheia. O ser humano como um ser moral está além do campo puramente biológico. Nós possuímos bases naturais ou predisposições neurais à moral, mas 39
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isso não significa menosprezar o papel da sociedade, da cultura, da razão e da margem de liberdade que possuímos. (Changeux, 1996) Somos seres naturais e culturais, somos organismos biológicos com capacidade simbólica. 3. Seres simbólicos frente à natureza. Organismos vivos não-humanos fazem o que seus genes determinam. Essa tirania dos genes durou 3 bilhões de anos e só foi precariamente superada nos últimos 100 mil anos por uma única espécie, o Homo sapiens, que foi capaz de desenvolver a linguagem simbólica e a cultura. Por isso, nossos padrões de comportamento não são mais determinados geneticamente, mas são, em grande parte, determinados culturalmente. Enquanto que o processo da evolução elimina os genes defeituosos que podem pôr em perigo a espécie, nós humanos podemos optar por manter genes defeituosos em circulação porque nossa cultura não permite que deixemos crianças hemofílicas ou com Síndrome de Dowm morrerem. Como diz Freeman Dyson, “roubamos de nossos genes a liberdade de fazer escolhas e de cometer erros.” (2000: 121) Richard Dawkins, biólogo evolucionista autor do famoso livro O Gene Egoísta (2001) que apresentou uma visão bastante “egoísta” dos genes e do processo da evolução das espécies, também defende a tese de que nós seres humanos somos os únicos sobre a Terra com o poder de nos rebelarmos contra a determinação genética. Além dos genes que se replicam, o autor propôs a tese de que as culturas humanas também se reproduzem e evoluem através de unidades de transmissão cultural que se replicam e os chamou de “memes”. Melodias, ideias, slogans, modas, maneiras de fazer jarros ou construir casas são alguns exemplos de memes. Para ele, “temos o poder de desafiar os genes egoístas de nosso nascimento e, se necessário, os memes egoístas de nossa doutrinação. Podemos até discutir maneiras de cultivar e estimular o altruísmo puro e desinteressado – o que não ocorre na Natureza e que nunca existiu antes em toda história do mundo.” (Dawkins, 2001: 222). Daniel Dennett, filósofo e estudioso da mente e da evolução, assume essa tese de Dawkins e se pergunta: como nós podemos desafiar os genes e os memes egoístas? Pergunta que Dawkins não respondeu. Para Dennett, podemos reconhecer que o acesso aos memes – bom, mau ou indiferente – tem o efeito de abrir um mundo de imaginação para seres humanos, que 40
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de outro modo estariam fechados. Enquanto todos outros seres vivos foram programados pela evolução para avaliar todas as opções em relação à reprodução, o summum bonun, o bem supremo, nós humanos podemos trocar esta busca por outras finalidades, que podem levar ao fanatismo que podem matar ou ao altruísmo. Para entendermos a possibilidade do altruísmo sem negar a busca do interesse próprio do ser humano, é preciso, segundo Dennett, pensar a capacidade do ser humano de repensar o seu bem supremo como a possibilidade de estender o domínio do “self ” (cf. Dennett, 2003: 179-180). Por exemplo, eu posso cuidar dos meus interesses, mas ao mesmo tempo perceber que o meu interesse pessoal inclui também o bem-estar da minha família, dos meus amigos, da minha cidade, do meu time e da minha igreja. Assim, eu estaria, segundo Dennett, cuidando dos meus interesses e sendo altruísta ao mesmo tempo. Sem entrar em discussão se o ser humano sempre busca o seu interesse próprio, mesmo quando age de modo altruísta ou solidário – o que Dennett dá a entender –, é importante retermos aqui a ideia de que essa capacidade de lutarmos contra a tendência egoísta – presente em genes, memes e culturas – e de nos abrirmos para o sofrimento de outras pessoas surge exatamente dessa nossa maior capacidade de conhecimento, da nossa forma específica de cognição que pressupõe colocar-se na pele do outro. É essa maior capacidade de cognição que nos abre mais para a compaixão, amor e solidariedade. E isso foi possível pelo duplo processo distinto mas interligado de hominização e de humanização. Pela hominização o Homo sapiens se distinguiu progressivamente, pelas mutações e seleções naturais, das espécies de que descende; e pela humanização, pela criação de regras, linguagem e cultura, ele se destacou pouco a pouco da natureza. Nós humanos somos de certa maneira “animais desnaturados” (J. B. Vercors): o nosso ponto de partida é natural, mas a nossa espécie foi enxertada de certos processos biológicos – como a posição de pé, o dedo polegar oposto a outros quatro dedos, o desenvolvimento do cérebro, etc. – e de processos históricos e sociais que nos possibilitaram a habitar um universo da cultura. Não habitamos mais apenas o mundo dos fatos, mas o mundo dos signos e dos sentidos. Morin, no seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, diz que “o humano é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária. [...] O homem é, portanto, um ser plenamente biológico, mas se não dispusesse plenamente da cultu41
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ra, seria um primata do mais baixo nível. [...] O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente (mind), isto é, capacidade de consciência e pensamento, sem cultura. A mente humana é uma criação que emerge e se afirma na relação cérebro-cultura.” (2000a: .52) Nesta relação cérebro-mente-cultura, é importante lembrarmos que um dos principais desafios da mente “é extrair o sentido da experiência, seja na rua ou na sala de aula” (Gardner, 2000: 138-139); e que a cultura, entre as mais diversas facetas, é padrão ou teias de significados incorporados em símbolos que os seres humanos tecem e transmitem historicamente e se utilizam para se comunicarem, perpetuarem e desenvolverem seus conhecimentos e atividades em relação à vida. Por isso, Cliford Geertz, antropólogo, diz que “o homem tem uma dependência tão grande em relação aos símbolos e sistemas simbólicos a ponto de serem eles decisivos para sua viabilidade como criatura e, em função disso, sua sensibilidade à indicação até mesmo mais remota de que eles são capazes de enfrentar um ou outro aspecto da experiência provoca nele a mais grave ansiedade.” (1989: 114) Neste mesmo sentido, Morin diz que “somos seres, simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais, espirituais...” e que “a condição humana foi autoproduzida pelo desenvolvimento de utensílio, pela domesticação do fogo, pela emergência da linguagem de dupla articulação e, finalmente, pelo surgimento do mito e do imaginário.” (Morin, 2000b: 38 e 40) Para percebermos melhor o importante papel dos símbolos na vida do ser humano, e assim melhor compreendermos a especificidade do ser humano, acho que vale a pena trazer aqui algumas reflexões de Erich Fromm sobre a agressividade humana. Como vimos no capítulo anterior, um dos problemas básicos da vida é “a de defender o organismo de processos de doença e de lesão física” (Damásio, 2004: 37) e para isso todos os animais são providos de uma agressividade defensiva. Como sabemos, não há animal mais agressivo do que um animal em perigo e acuado. Também no ser humano, “a agressão defensiva é responsável talvez pela maioria dos impulsos agressivos” (Fromm, 1987: 265). Só que o animal percebe como ameaça apenas o perigo presente e claro. Enquanto que o homem, sendo aquinhoado com a capacidade de previsão e de imaginação, reage não somente a perigos e ameaças presentes ou a lembranças de perigos, mas também a 42
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ameaças que imaginam ser possíveis no futuro ou até mesmo ameaças que não existem na realidade mas que foram persuadidos, por líderes ou por meios de comunicação social, por exemplo, a enxergar. “O homem, como animal, defende-se contra a ameaça aos seus interesses vitais. Mas a faixa dos interesses vitais do homem é muito mais ampla do que a dos animais. O homem precisa sobreviver não apenas fisicamente, mas também psiquicamente”, porque “o homem precisa não só de uma estrutura de orientação como também de objetos de devoção, que se transformam numa necessidade vital ao seu equilíbrio emocional.” (Idem: 267) Nesta mesma linha, Morin diz que “alimentamos com nossas crenças ou nossa fé os mitos ou ideias oriundos de nossas mentes, e esses mitos ou ideias ganham consistência e poder. Não somos apenas possuidores de ideias, mas somos também possuídos por elas, capazes de morrer ou matar por uma ideia”. (Morin, 2004: 53) Ideia essa que não habita somente o campo das paixões ou dos mitos, mas também o das racionalizações. Ele lamenta que, infelizmente, não existe uma noologia destinada a estudar e educar os jovens com relação e esse âmbito do imaginário, dos mitos, dos deuses e das ideias, que ele chama de noosfera. Símbolos e mitos que criamos nos permitem superar a tirania dos genes e preservar a vida das pessoas que carregam em si genes que a evolução eliminaria ou das pessoas que não podem cuidar por si só da sua sobrevivência. Nós somos até capazes de doar as nossas vidas, mas também de matar em nome desses símbolos (como a bandeira de um país ou até mesmo de um clube de futebol) e de mitos (como o de superioridade de uma determinada “raça”). Alguém poderia, com a melhor das intenções, propor o fim dos símbolos, dos mitos e até das religiões para evitar que se matem em nome deles. Mas, essa proposta também não permitiria que pessoas continuassem cuidando, por exemplo, de crianças aidéticas em nome de valores humanos expressos e tornados possíveis por causa da nossa capacidade simbólica, esta capacidade que nos permite nos distanciarmos da natureza e criarmos o sonho de uma sociedade mais humana ainda ausente. O símbolo é o que nos permite pensar a partir da ausência. “O admirável na experiência humana não é apenas a capacidade de inferência linear, que todo computador sabe fazer, mas a não linear, hermenêutica, dialética, metafórica, capaz de interpretar a partir da ausência, de ver para além do que existe e supor o que não existe, de desenhar utopias, e assim por diante.” (Demo, 2000: 110) É o que nos faz sermos humanos. 43
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Símbolos nos permitem pensar o ausente, um futuro diferente do presente e até os deuses. Assuntos que têm a ver com o caminhar das nossas vidas, com horizonte de esperança e um sentido para as nossas vidas. Afinal, somos seres que anseiam por um sentido da vida. Segundo Antonio Damásio, “o tal anseio é um traço profundo da mente humana. Este traço está tão enraizado no desenho do cérebro humano e no genoma que permite o desenvolvimento desse cérebro como os traços profundos que nos levam, com grande curiosidade, a explorar sistematicamente o nosso próprio ser e o universo que nos rodeia, os mesmos traços que nos impelem a construir explicações para os objetos e situações desse universo.” (2004: 281). Ademais desse mecanismo biológico poderoso, somos seres que confrontamos com o sofrimento e a morte, real ou antevista, nossas ou de nossos entes queridos. A experiência da compaixão e a consciência antecipada da morte, que outros animais não possuem, nos fazem perguntar sobre a origem e o fim da vida, sobre o sentido da vida.
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CAPÍTULO 3 Sentido da vida e a educação
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omo vimos no capítulo anterior, os membros da espécie humana se tornam especificamente humanos na medida em que se “desprendem” das determinações genéticas da natureza. As formigas e abelhas, por exemplo, são animais “sociais” (vivem e trabalham em grupo social) extremamente eficazes na execução das suas tarefas, mas sempre produzem, em todos os lugares e em todos os tempos, o mesmo. Elas não são capazes de criar algo novo porque elas não são seres livres frente às determinações genéticas. A liberdade humana, mesmo que não total e plena, é o que nos permite produzir diferentes culturas e novidades. Essa característica implica também que nós nascemos sem um sentido de vida pré-determinado pela natureza e que, por isso, temos a tarefa de encontrar ou de criar um sentido que faça a nossa vida e os pequenos e grandes acontecimentos que compõem o nosso cotidiano terem sentido. Antes, porém, de continuarmos a nossa reflexão sobre o sentido da vida, vejamos rapidamente duas formas de pensar essa questão hoje: sentido na e sentido da vida. 1. Sentido na vida ou sentido da vida. A palavra sentido possui três acepções principais: a faculdade de sentir, (por ex., “meus sentidos estão aguçados”), a direção ou rumo (por ex., “siga nesta direção e chegará lá”) e significação (por ex., “esta frase não tem sentido”). O sentido é o que se sente, o que se segue ou se persegue e o que se compreende. Quando falamos do sentido da vida estamos tratando das duas acepções: direção e significado; isto é, se a vida tem uma direção (finalidade) que devemos seguir e se ela tem uma significação. Estas duas últimas acepções supõem uma exterioridade, uma alteridade, em relação ao objeto em questão. Perguntar pelo sentido da vida é perguntar por algo além dela, que está fora dela, para o qual a vida tenderia ou deveria ir. Nesse orientar-se para o que ela não é, a própria vida adquiriria o seu significado. Este algo pode ser visto como uma realidade objetiva – Deus, deu47
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ses, seres sobrenaturais, um estado superior de vida, etc. –, ou um conceito ou valor transcendental, que é visto como fundamento último do sentido da práxis humana no interior da história. No cenário do pensamento contemporâneo, encontramos pensadores que não aceitam a ideia da existência de algo transcendente à vida, algo que vai além da própria vida, e afirmam que há apenas a vida para ser vivida e amada. Para esses não há sentido da vida, mas sentido na vida. Buscar o sentido da vida seria um contrassenso, pois seria amar a vida por causa de outra coisa que não é a própria vida. Como diz André Comte-Sponville, “se há não sentido que não seja do outro, o sentido da vida outra coisa não pode ser que a vida. Isso não deixa alternativa: se a vida tem um sentido, falando de forma absoluta, seu sentido só pode ser a morte.” (Comte-Sponville & Ferry, 1999: 278). Além disso, a própria ideia da “busca de sentido”, que pressupõe que o sentido já existe em algum lugar, seria um contrassenso. “O sentido não é para ser buscado, nem encontrado, é para ser produzido, inventado, criado. É essa a função da arte. É essa função do pensamento. É essa a função do amor. O sentido é menos o objeto de uma hermenêutica do que de uma poesia – ou melhor, não pode haver hermenêutica a não ser onde antes houve poiésis, como se diria em grego, isto é, criação: em nossas obras, em nossos atos, em nossos discursos.” (Idem: 285) Eu penso que essa última afirmação de que o sentido “é para ser produzido” é aceita não somente por aqueles que pensam que só há sentido na vida, mas também por muitos que defendem a tese de que há sentido da vida. Na antiguidade, os pensadores estavam convencidos de que existia um Cosmos, uma ordem natural harmoniosa, fechada e com uma finalidade determinada, e que a sabedoria consistia em descobrir o sentido da vida e ocupar o nosso lugar nesse Cosmos. Na cristandade medieval e nas outras civilizações baseadas nas grandes religiões – como islamismo e budismo –, acreditava-se, (e muitos ainda acreditam), que o sentido da vida foi revelado através dos livros sagrados – Bíblia, Corão – ou através da iluminação. As pessoas deveriam viver de acordo com uma referência moral vista como absoluta. No mundo moderno, muitos pensaram que o sentido último da vida era realizar ou levar a história à plenitude através de progresso tecnológico e/ou ações políticas revolucionárias messiânicas. Hoje, após a crítica à cristandade e a pensamentos metafísicos – da antiguidade e do mundo moderno –, que se propunha atingir o ser essencial e 48
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imutável das coisas e da própria história, a grande maioria dos pensadores reconhece que a noção de transcendência e de conceitos e valores transcendentais são construtos humanos. Isto é, noções construídas por seres humanos para darem coerência ao seu edifício teórico, sistema de pensamento ou sentido à vida. Aceitar que uma noção concreta de absoluto ou de transcendência seja um construto humano não significa que não há algo além da vida que possa ser base para um sentido da vida. Se as pequenas ou grandes coisas que fazemos na vida têm algum sentido, esse sentido – como todo sentido – remete sem cessar a outra coisa que não a ele e para que toda essa cadeia possua, ela própria, um sentido, é necessário fixar um termo que não seja mais relativo, isto é, que seja absoluto. É claro que essa posição não contradiz a tese de Comte-Sponville de que “se a vida tem um sentido, falando de forma absoluta, seu sentido só pode ser a morte.” Em termos biológicos e cronológicos, o fim da vida é a morte. Mas, quando se diz que os sentidos que encontramos nas nossas práxis remetem, em última instância, a um sentido absoluto, a ênfase não é no sentido/fim cronológico da vida, mas em termos de um absoluto que funciona como o fundamento dos sentidos do cotidiano e do sentido da própria vida. Tomemos como exemplo a liberdade humana. Na experiência de efetivar a liberdade na história que se abre à sua frente, o ser humano se vê diante de uma realidade em que a escolha de determinadas configurações exclui as outras. Não se pode manter todas as opções depois de feita uma opção. Isto é, depois de depois de exercida a liberdade, não há mais o horizonte de possibilidades que existia antes da opção. E o horizonte de possibilidades que se abre a partir da opção está delimitado pela opção feita: é a limitação do horizonte ilimitado. Para Manfredo A. Oliveira, o “importante é que o homem é capaz de pensar o limite enquanto limite e isto significa dizer que ele tem o saber do ilimitado que se revela como condição ultima de possibilidade do processo enquanto ultrapassagem permanente.” (Oliveira, 1989: 189). Nós só podemos perceber uma situação concreta como uma situação de mais ou menos liberdade, se tivermos como referência uma noção de liberdade absoluta. É essa referência que nos permite discernirmos uma situação dada e agirmos em busca permanente de mais liberdade. A busca de uma liberdade mais plena, uma busca que tem movido uma parte importante da história humana, pressupõe uma noção de liberdade absoluta da qual pretende se aproximar. É claro que como seres humanos nunca poderemos 49
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atingi-la, mas essa referência ao absoluto é uma condição para se pensar e agir nessa busca permanente de emancipação e mais liberdade, que constitui a vida humana enquanto humana. Independente de se acreditar ou não na existência de seres ou realidades transcendentes – a vida pós-morte, Deus ou seres sobrenaturais, etc. –, muitos pensam que o enfraquecimento das religiões e das teologias não significa o fim da busca da transcendência (que estaria escrita no coração da humanidade pelos valores transcendentais que a própria humanidade aspira e pela própria dinâmica da razão humana) e defendem a noção de sentido da vida. Para esses, é possível viver uma boa vida na medida em que se encontra valores e conceitos, que estando além da própria noção de vida, fundamentam e possibilitam a boa-vida, uma vida com sentido que vale a pena ser vivido e continuamente perseguido. Moacir Gadotti, por exemplo, diz: “O nosso sentido está no outro, no amor. O outro sou eu. A interação é o fundamento do sentido da vida e do desenvolvimento do ser humano. Quanto mais o ser humano interage, mais ele se complexifica incorporando novos elementos à sua identidade que dão sentido à sua vida. [...] Estar com outro é estar consigo mesmo no outro e constituir a humanidade no nosso próprio ser. O sentido da vida está na constituição do humano e da humanidade.” (2004: 132) Não vamos discutir aqui qual das duas correntes é a mais correta ou apropriada para educação. Seria um longo e provavelmente infindável debate. O mais importante para a nossa reflexão não é chegar a uma conclusão sobre qual das duas correntes é a correta, mas continuar a nossa reflexão sobre a estreita relação que existe entre o sentido na ou da vida e a educação. Refletir no sentido de explicitar os sentidos implícitos na vida cotidiana das nossas sociedades e nas práticas e teorias educacionais e de fazer a hermenêutica crítica desses sentidos. 2. O sentido da educação: um tema pouco presente. Quero começar esta seção citando um texto de Gerd Bornheim: Todo comportamento humano se dá no horizonte de um sentido possível. Tudo o que o homem faz, o produto de sua ação, tem sentido, e o próprio fazer humano é provido de sentido. Assim, vemos uma obra de arte ou estudamos uma demonstra50
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ção matemática e reconhecemos nestas entidades um sentido. A rigor, a própria possibilidade do conhecimento já se verifica dentro do sentido que se manifesta progressivamente a nós. (Bornheim, 2001: 167) Primeiro ponto que quero destacar é que toda ação humana é compreendida como humana porque ela se dá em um horizonte de sentido e é, por isso, carregado de sentido. Mesmo que uma pessoa se comporte ou aja de uma determinada maneira por hábito ou impulso, sem ter previamente refletido sobre o sentido da sua ação, essa ação é carregada de sentido, que pode ser interpretada pelo próprio agente da ação ou por outras pessoas. Segundo ponto é a diferença que existe entre a ação propriamente dita e o horizonte de sentido dentro do qual a ação se dá. É sempre dentro de um horizonte de sentido e de um contexto histórico-social que se dá uma ação. Por isso, para compreendermos o sentido de uma ação é fundamental situar o acontecimento dentro de um contexto concreto. Em contextos diferentes, uma mesma ação pode adquirir sentidos diferentes. Por exemplo, um abraço forte de um rapaz em uma moça adquire significados diferentes em um funeral e em uma situação de conquista amorosa. Terceiro se refere ao “no horizonte de um sentido possível”. Mesmo em um único contexto, não há necessariamente um único horizonte de sentido. Um único acontecimento pode adquirir sentidos diferentes para as pessoas que dela participam, se elas tiverem diferentes horizontes. Se retomarmos o exemplo do abraço em um funeral, pode ser que o rapaz que abraça a moça para lhe dar os pêsames esteja mais interessado no contato sensual do que realmente no sentimento de pesar, enquanto que para a moça enlutada o sentido do abraço provavelmente será o de solidariedade na dor. Nas escolas e nas salas de aula também ocorre, mais frequente do que gostaríamos, esse problema de interpretações conflitantes sobre o sentido de uma determinada atividade pedagógica. Esse último exemplo nos remete ao quarto ponto que quero destacar: o ato de estudar e a possibilidade do conhecimento ocorrem dentro de um sentido de vida que se manifesta progressivamente. O ato de conhecer se dá dentro de um horizonte de sentido e é o próprio ato de conhecer que faz o horizonte de sentido se manifestar progressivamente. Em outras palavras, uma determinada educação tem sentido porque se dá dentro de um horizonte de sentido, mas o conhecimento desse sentido não se dá fora da própria 51
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ação de ensino/aprendizagem. O modo como se ensina/aprende vai revelando progressivamente o sentido que ele mesmo pressupõe. Quando um processo educacional não ajuda o educando a conhecer ou construir um sentido que faça valer a pena lutar pela vida e pelo processo de humanização, esse mesmo processo educacional acaba por não oferecer o sentido da sua própria ação educativa. Estabelece-se assim uma circularidade dialética: educação tem sentido dentro de um horizonte de sentido que deve ser aprendido e/ou construído pelo processo educacional. Se um processo educacional não é capaz de gerar o conhecimento desse sentido mais profundo e amplo da vida – que vai além do mero “passar de ano” –, a própria educação perde o sentido e passa a ser uma mera obrigação sem sentido. Para que a educação revele ao educando o próprio sentido do ato de ensinar-aprender, é preciso criar uma situação em que o aprender seja um ato de conhecimento da realidade vivida pelo educando. Ou, em termos de Paulo Freire, diálogo em torno de temas geradores. Podemos encontrar essa mesma preocupação na proposta de ecopedagogia Moacir Gadotti. Ele caracteriza a ecopedagogia como “uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do sentido das coisas a partir da vida cotidiana”, pois “encontramos o sentido ao caminhar, vivenciando o contexto e o processo de abrir novos caminhos, não apenas observando o caminho”. (2000: 79-80) Quando a educação perde a capacidade de desenvolver nos educandos uma nova maneira de ser e de estar no mundo, um novo jeito de pensar a partir da vida cotidiana e da prática (Paulo Freire), ela se burocratiza e se torna sem sentido. Sem sentido porque não abre novas possibilidades, novos sentidos (direção e significado) para a vida que está à nossa frente. Em uma situação assim, como diz o grande cientista da memória Iván Izquierdo, “muitos se perguntam: estudar para quê? Principalmente os adolescentes quando se aproxima a época do vestibular. E até antes disso, quando as intermináveis aulas da escola de primeiro e de segundo grau tentam lhe ensinar coisas para eles inúteis, desconhecedores que são de outro universo que não seja aquele limitado a seu pequeno mundo (o círculo das poucas pessoas e coisas que acreditam conhecer). Estudar para quê? Para namorar, não serve; para inaugurar a longa era de confrontos com os pais, característica dos adolescentes, também não. Para entender os perigos da rua, também não.” (2004: 54)
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A resposta que ele oferece é muito interessante e não muito usual. Ele começa com a ideia bastante tradicional de que a humanidade sempre receitou aos jovens estudar porque povos que mais estudam vivem melhor, coisas que adolescentes, por causa da falta de experiência e estudo, não conseguem enxergar. Depois conclui com um argumento baseado nas ciências médicas: “Quem sabe, estudar sirva só para aprender coisas, para ampliar o mundo em que vivemos. Mas esse ‘só’ é terrivelmente importante. Uma evidência do quanto é importante são os já numerosos estudos mostrando que a incidência e a gravidade da principal doença da memória, o mal de Alzheimer, são menores nas pessoas mais instruídas, e pouco têm a ver com o nível socioeconômico ou a saúde geral do paciente.” (Idem: 54) Ele sai da argumentação sociológica – povo que estuda vive melhor – para uma fundamentação biológico-corporal da importância de estudar. Mas é claro que esse exemplo da prevenção do mal de Alzheimer é pouco convincente para adolescentes e jovens que crêem, por causa da sua própria juventude, que a velhice e esse tipo de doenças degenerativas associadas ao envelhecimento são coisas para outros e não para eles. Mesmo que racionalmente eles aceitem que vão ficar velhos, a velhice está muito longe e não faz parte do seu horizonte a partir do qual as coisas adquirem sentido e valor. Neil Postman, no seu livro O Fim da Educação: redefinindo o valor da escola, diz: “Para que a escola tenha algum sentido, os jovens, seus pais e professores precisam ter um deus a quem servir, ou ainda melhor, vários deuses. Se não têm nenhum, a escola é inútil. O famoso aforismo de Nietzsche é pertinente aqui: ‘Quem tem um porquê para viver pode suportar bem qualquer como.’ Isto se aplica tanto à aprendizagem como à vida.” (2002: 12) Ele usa a noção de deus ou deuses (com d minúsculo) para se referir às narrativas que dão sentido à vida das pessoas. Talvez a noção de mito fosse mais preciso tratando-se desse tipo de narrativas e geraria menos malentendidos. Em todo caso, a sua intenção não é defender as religiões ou os deuses, mas mostrar que somos criadores de deuses porque não podemos viver sem eles. “Nosso gênio consiste em nossa capacidade de produzir sentido por meio da criação de narrativas que dão propósitos a nossos esforços, exaltam a nossa história, elucidam o presente e imprimem direção a nosso futuro. ” (Idem: 14). A finalidade dessas narrativas, deuses ou mitos, não é dar descrição científica do mundo ou da história, mas dar sentido a eles. Sendo assim, para Postman, a veracidade ou a falsidade desses deuses não deve ser verificada através de métodos científicos, mas pela sua capacidade 53
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de proporcionar um sentimento de identidade pessoal, uma identidade comunitária e uma base para a conduta moral e explicações daquilo que não pode ser conhecido. A partir desses pressupostos, ele afirma: “Sem uma narrativa, a vida não tem sentido. Sem sentido, a aprendizagem não tem finalidade. Sem finalidade, as escolas são casas de detenção, não de estudo.” (Idem: 15) A crise ou o fim das grandes narrativas do mundo moderno – especialmente o seu mito do progresso – teria levado também à crise das narrativas que dão sentido à totalidade da vida de uma pessoa ou de uma comunidade. Qual a consequência disso para a educação? Para Postman, a maioria dos educadores não dá muita atenção a esse tipo de pergunta e uma amostra que comprova isso seria o fato de que “houve uma época em que os educadores conquistaram fama por fornecerem razões para a aprendizagem; agora ficam famosos por inventarem um método.” (Idem: 33). Essa afirmação de Postman estimula alguns comentários. Por que será que “houve uma época em que os educadores conquistaram fama por fornecerem razões para a aprendizagem”? Se fornecer as razões, o sentido, da educação dava fama, isto mostra que nesse tempo havia uma carência de razões para a aprendizagem. Mas, como o processo de ensino/aprendizagem sempre fez parte da vida humana – como vimos nos capítulos 1 e 2, viver é conhecer –, a carência não era das razões da educação pensadas em termos abstratos que servissem para todos os lugares e tempos. Com certeza essas razões concretas, contextualizadas, eram necessárias porque a sociedade estava passando por uma profunda transformação, não somente em termos econômicos e sociais, mas também na própria compreensão do que é ser humano, dos pressupostos antropológicos das teorias educacionais e do sentido da vida. Motivo pelo qual é preciso dar novas razões e propor novos modelos de educação, com novos pressupostos antropológicos e um novo sentido de vida. Nesses momentos de transição, surgem espaços para uma disputa no campo das ideias e das propostas educacionais. Essa disputa e as demandas da sociedade e dos grupos envolvidos na educação formavam condições sociais para a fama desses autores. O fato de que hoje esse debate sobre o sentido da educação não dá mais fama mostra que um determinado sentido de vida e de educação foi consolidado e não é mais problema para a grande maioria. Isto não quer dizer que não haja mais autores escrevendo sobre esse tema, seja para reforçar ou para 54
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propor alternativas, mas é sinal de que a sociedade ou o mercado educacional não está mais demandando essa discussão como antes. Após a crise dos anos 1970 do século passado, o capitalismo conseguiu impor um novo sentido para a sociedade e para o sistema educacional. Esse sentido tem a ver com a complexa relação entre o neoliberalismo, o fim do bloco socialista, a cultura de consumo, a cultura midiática, as filosofias e artes pós-modernas, a globalização econômica e a mundialização da cultura. Um terceiro ponto de reflexão a partir da afirmação de Postman é a fama dos inventores de novos métodos pedagógicos. Essa fama revela que há uma carência e uma demanda por novos métodos. Se um novo sentido não é mais necessário, novos métodos sim! Isto porque os métodos conhecidos e praticados não funcionam mais na nova sociedade que está surgindo ou funcionam por um breve tempo mas não conseguem acompanhar a velocidade com que o mundo e a sociedade estão mudando ou simplesmente há uma demanda de novidades para satisfazer o mercado educacional, que como todo mercado em competição anseia por novidades, não importando a qualidade do novo. Buscam-se novos métodos como forma de diferenciação no mercado cada vez mais sedento de novidades por mero fato de seres novidades. Mas, é importante frisar: buscam-se novos métodos, mas não novos sentidos. Essa busca de novos métodos, sem novos sentidos, não significa que pode se adotar um método sem nenhuma relação com algum sentido de vida e de educação. Significa somente que já se aceitou um sentido dado como inquestionável e só se busca um método mais apropriado para realizar esse sentido em novas condições econômicas e sociais. Por exemplo, a demanda por métodos didáticos que possibilitem o uso mais eficiente de novas tecnologias para formar alunos mais competitivos para o mundo globalizado. Assume-se como dado o modelo de globalização econômica vigente e a competitividade como um dos valores fundamentais para a vida e educação. Uma outra posição seria a de propor um novo método para realizar um sentido de vida e de educação alternativo ao dominante hoje. Moacir Gadotti, por exemplo, critica o modo de produção capitalista por sua voracidade e o pelo seu objetivo de crescimento ilimitado que destrói a natureza e exclui uma grande parcela da população mundial dos benefícios do desenvolvimento e propõe o projeto do “desenvolvimento sustentável”. Esse “desenvolvimento sustentável tem um componente educativo formidável: a preservação 55
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do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a formação da consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do sentido das coisas a partir da vida cotidiana. Encontramos o sentido ao caminhar, vivenciando o contexto e o processo de abrir novos caminhos, não apenas observando o caminho. É por isso uma pedagogia democrática e solidária.” (2000: 79-80). A ecopedagogia, apresentada por Gadotti, “pretende desenvolver um novo olhar sobre a educação, um olhar global, uma nova maneira de ser e de estar no mundo, um jeito de pensar a partir da vida cotidiana, que busca sentido a cada momento, em cada ato, que ‘pensa a prática’ (Paulo Freire), em cada instante de nossas vidas, evitando a burocratização do olhar e do comportamento.” (Idem: 82). Um novo sentido de vida exige um novo método pedagógico! Mas um novo método não necessariamente pressupõe um novo sentido. A mudança do ambiente exige também novos métodos, mesmo que se mantenha intocável o sentido da vida e a finalidade da educação. O que Postman, como tantos outros autores, está constatando é que vivemos em um período de grandes transformações na maneira como as empresas produzem (revolução tecnológica e gerencial) e na forma como se articulam e se relacionam empresas e países dentro da globalização econômica. Em outras palavras, o nosso meio ambiente (incluindo aqui o ambiente social e cultural) mudou e os métodos educacionais e de construção de conhecimento que funcionaram tempos atrás não funcionam mais. Recentemente Bill Gates publicou um artigo sobre educação que expressa claramente essa questão. Para ele, as escolas de ensino médio dos Estados Unidos (a high school americana) estão obsoletas. “ Não quero dizer apenas que elas estão falidas, são defeituosas e/ ou têm recursos insuficientes – embora não discuta nenhuma dessas questões. O que quero dizer é que elas foram projetadas há 50 anos para atender às necessidades de outra época. Hoje, mesmo quando funcionam exatamente como foram planejadas, essas escolas não conseguem ensinar nossas crianças o que elas precisam saber.”. E o que precisam saber não passa nem de perto pela pergunta sobre o sentido de vida e da própria educação. O seu objetivo é projetar escolas “para atender às necessidades do século 21” por que ele está temendo pela “força de trabalho de amanhã”. (Gates, 2005: 24). É claro que é importante adequar as escolas para preparar jovens para o mercado de trabalho para o século XXI, mas reduzir toda a preocupação ao 56
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aspecto meramente profissional, aspecto operacional da vida humana, sem tocar nem um pouco sobre o sentido de vida e da pessoa humana que está sendo construído no atual processo de globalização é dar como inquestionável os fundamentos antropológicos e o sentido de vida da atual sociedade capitalista. Steve Pinker, um importante filósofo e psicólogo evolucionista norteamericano, ao discutir o problema das teorias da natureza humana que estão na base das teorias educacionais, diz: “Educação é, na verdade, uma tecnologia que tenta compensar aquilo em que a mente humana é inatamente inepta. As crianças não precisam ir à escola para aprender a andar, falar, reconhecer objetos ou lembrar as personalidades de seus amigos, muito embora essas tarefas sejam bem mais difíceis do que ler, somar ou lembrar datas históricas. Elas têm de ir à escola para aprender a linguagem escrita, a aritmética e a ciência, pois esses conjuntos de conhecimentos e habilidades foram inventados tão recentemente que não foi possível evoluir nenhuma aptidão para eles generalizada em nossa espécie.” (Pinker, 2004: 306-307). Ele também reduz o papel da educação ao aspecto técnico-operacional da vida humana na sociedade. Apesar de também defender a tese de que o ser humano foi posto no mundo para transcender a natureza, isto é, para criar sentidos de vida que vão além das determinações genéticas, ele não relaciona esse desafio com a educação. Por fim, um quarto ponto. Mesmo que uma determinada concepção de finalidade e de sentido da vida e da educação já tenha sido consolidada, não é papel ordinário da educação explicitá-la e permitir que os educandos e educandas, juntamente com os educadores e as educadoras, possam debater e decidir se aderem ou não ao sentido de vida e aos valores dominantes na nossa sociedade? Não seria isso parte essencial do processo educacional para que nesse debate, não somente o sentido da vida, mas também o sentido do próprio ato de conhecer – seja matemática, literatura ou história – vá se manifestando progressivamente e a escola deixe de ser uma prisão, como dizia Postman, e a educação um mero desafio de “passar de ano” ou passar no vestibular? Talvez não seja por acaso e nem só por causa da violência que assola as grandes e médias cidades que muitas escolas públicas e privadas foram literalmente transformadas em lugares parecidos com as prisões que tentam controlar os que estão dentro delas. E quando a comunidade local também não logra entender a importância e o sentido das escolas na vida dos jovens 57
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e da própria comunidade, a escola precisa se proteger dos que a ameaçam desde fora. Quando as pessoas se sentem como que estando em uma prisão, mesmo que só no campo do imaginário, elas acabam por agir como prisioneiras e os que estão ao seu redor tendem a se defender da ameaça ou da insegurança institucionalizando e reforçando mecanismos típicos de uma prisão. Sem problematizarmos esse tema, o debate sobre a educação se reduz, como diz Postman, a um problema de método. Ora, um método pressupõe um fim a ser atingido por um sujeito que está em um determinado lugar ou situação diferente do objetivo almejado. Reduzir o debate ao método ou priorizar esse tema é abdicar de discutir a finalidade da própria educação. Mas, como o método está implicitamente relacionado com a finalidade, em uma situação de crise (uma situação em que há uma incoerência ou incompatibilidade entre a finalidade e o método) uma discussão pedagógica reduzida ao método tende ao fracasso. A educação como tal tem sentido na medida em que se propõe “conduzir” um ser humano para uma condição de “ser melhor”, de mais humanização. Como nos ensinou Paulo Freire, pressupõe a “fé na sua vocação de Ser Mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direitos dos homens.” (1979: 95) Isto é, pressupõe a noção de que o ser humano não nasce acabado e que precisa se desenvolver para realizar a sua “vocação”. Vocação entendida, não como um chamado por um ser divino, mas sim o chamado para realizar o seu potencial de ser humano, para se humanizar. Uma educação que não é capaz de revelar progressivamente o sentido do ato de se esforçar para aprender também não é capaz de revelar um sentido de vida mais humano. Assim, ao invés de colaborarmos com a realização da vocação “para humanização”, podemos reforçar as tendências da desumanização. Essa vocação para a humanização não deve ser entendida em um sentido fundamentalista e a priori, mas como “algo que se vem constituindo na história. Por outro lado, a briga por ela, os meios de levá-la ao cabo, históricos também, além de variar de espaço-tempo a espaço-tempo, demandam, indiscutivelmente, a assunção de uma utopia.” ( Freire, 1999: 99). Humanização e desumanização são conceitos chaves nessa discussão sobre o sentido da vida porque servem de critérios para discernir e escolher entre as diversas opções que vamos encontrando e construindo na nossa caminhada. Tão importantes existencialmente que a ciência não consegue dar
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respostas satisfatórias, muito menos precisas e exatas. As ciências explicam como as coisas e fenômenos funcionam, mas não analisam e discutem a finalidade e o sentido das coisas e dos fatos humanos e sociais. Mas como não podemos viver e tomar decisões no nosso cotidiano sem os critérios que nos permitem discernir entre processos de humanização e de desumanização, os grupos humanos usam a sua imaginação simbólica para expressar e indicar o sentido das suas vidas. Mitos, deuses, utopia, o absoluto, horizonte de sentido, sentido de vida... são temas fundamentais para quem pensa a educação. Fundamentais no sentido de que são fundamentos e estão na base de qualquer teoria educacional como pressupostos que permitem pensar a educação e propor um sistema e processo educacional que tenham sentido para todos e todas que neles participam. Se assim não fosse, a educação não seria uma ação humana. Dessas noções, a de mito é a mais abrangente, pois os mitos são narrativas que falam de deuses, das utopias, do sentido de vida, etc. Por isso, antes de vermos o sentido de vida dominante hoje, precisamos compreender um pouco melhor o que é o mito, qual o seu papel na sociedade e na formulação do que entendemos como ser humano e o processo de humanização.
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CAPÍTULO 4 Ciência, mito e a noologia
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1. Ciência e o sentido do universo e da existência. Frequentemente nos deparamos com noticiários ou livros que nos falam de quantos bilhões de anos é a idade do universo e sobre quantos bilhões de anos faltam para que o universo entre em colapso. Bilhões de anos para cá, bilhões para lá. Surpreendemo-nos fascinados diante de teorias que tentam nos explicar como o universo começou e como deverá acabar, se é que um dia vai acabar. Pois, há, também, cientistas que dizem ser o universo eterno, ou algo assim, na medida em que, segundo as suas teorias, o universo entrará em colapso, mas depois voltará a existir novamente, com uma nova explosão seguida de um novo colapso bilhões de anos mais tarde, num eterno ciclo de explosões e colapsos. Por que cientistas “perdem” tempo investigando acontecimentos distantes de nós bilhões de anos, acontecimentos em que não podemos interferir e que nem interferirão em nossa breve existência sobre o planeta Terra? E por que as imagens de como teria sido a explosão inicial e as fotos do espaço sideral nos fascinam tanto? Afinal, nenhum de nós estará vivo para ver esses acontecimentos ou poderá viajar para galáxias distantes. A espécie humana existe há algumas centenas de milhares de anos e, pelo modo como as coisas estão indo, não deverá subsistir por muito mais tempo do que isso. Na verdade, quando os cientistas elaboram suas teorias e buscam as respostas, não estão buscando somente explicações de como as coisas aconteceram e como deverão ou poderão acontecer daqui a bilhões de anos, mas estão tentando responder também a outras perguntas. Talvez as mais importantes. Perguntas do tipo: de onde viemos? Para onde vamos? Qual é o sentido da nossa existência? Há algo no universo que nos mostre que há vida para além do planeta Terra, isto é, estamos, mesmo, sós neste imenso universo? E talvez a mais secreta das perguntas: existe algo que nos mostre indícios de que o universo não seja fruto de um acaso e que deve ou pode existir um Ser supremo ou um Espírito que impregna todas as coisas? Por
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causa dessas perguntas, nem sempre explicitadas, todos nós (ou quase todos), nos sentimos atraídos por essas teorias e imagens. Perguntar pela origem e o fim do universo e da vida é questionar o sentido da existência. Sentido que, como vimos no capítulo anterior, tem a ver com o rumo (“se você for neste sentido chegará lá”, origem e o fim de uma caminhada), mas também com o sentido/significado da nossa breve existência (“qual é o sentido da minha vida?”). Dois aspectos que exigem dois tipos de linguagem diferentes. 2. Ciência e mito. A pergunta sobre como as coisas acontecem ou como prever a direção que tomará o objeto é respondida pela ciência com a linguagem analíticoexperimental que separa, divide, localiza, mede, calcula e que pretende ser racional e objetiva. As ciências modernas foram construídas sobre a premissa de que esse tipo de linguagem era não somente suficiente, mas que deveria ser a única aceitável. Só que a própria ciência teve que abandonar essa pretensão e reconhecer que não se pode fazer ciência sem utilizar metáforas e analogias. Expressões científicas consagradas como “leis da natureza” ou “seleção natural” são amostras da presença da linguagem analógica e/ ou metafórica mesmo nas ciências naturais. Esta presença de metáfora nos discursos científicos e na linguagem não-científica em geral não é por acaso, nem pela falta de uma maior precisão formal. Isto porque, como dizem G. Lakoff e M. Johnson, “a metáfora não é só uma questão de linguagem, isto é, de meras palavras”, mas pelo contrário, o “processo de pensamento humano é em grande parte metafórico” e “o sistema conceitual humano é estruturado e definido metaforicamente.” (1996: 6) Por isso, R. Lewontin também diz: “Não se pode fazer ciência sem usar uma linguagem cheia de metáforas. Praticamente todo o corpo da ciência moderna é uma tentativa de explicar fenômenos que não podem ser experimentados diretamente pelos seres humanos” e que “toda a ciência moderna se baseia na metáfora de Descartes do mundo como uma máquina, que ele expôs na quinta parte do Discurso sobre o método a fim de compreender os organismos, metáfora depois generalizada como uma maneira de entender o universo como um todo.” (2002: 9-10). Esse tipo de linguagem, metafórica e simbólica, linguagem que liga, associa, conecta, desenvolve campos de evocação buscando significações con62
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textuais, tende a exprimir a afetividade e subjetividade e é a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da nossa própria existência. Se a linguagem analítico-experimental encontra o seu ápice nas ciências modernas, a linguagem metafórico-simbólica o encontra nas poesias e nos mitos. Podemos dizer que os cientistas ao tentarem responder com teorias científicas a perguntas que se relacionam com o sentido da existência humana lançam mão, mesmo que inconscientemente, da linguagem metafóricosimbólica e invadem o campo do mito. Para quem não está acostumado com debates em torno do mito, essa minha afirmação pode parecer contraditória na medida em que o senso comum considera o mito como o contrário da verdade ou da ciência. É comum encontrarmos em revistas tabelas que colocam em uma coluna os mitos sobre um assunto (por exemplo: saúde) e na outra o que a ciência considera como verdades. Entretanto, o mito não se opõe à verdade, não à verdade entendida como tal pelas ciências modernas. Pois, os mitos respondem a outros tipos de questões que não são propostas explicitamente pelas ciências. Mitos e poesias formam um gênero literário diferente das ciências naturais. Enquanto as últimas procuram descrever como os fenômenos acontecem, as causas, as consequências e as leis que regem esses fenômenos, os mitos e as poesias procuram encontrar um sentido para além do que é mensurável, um sentido que dê sentido à vida do sujeito que pergunta. Por causas históricas e equívocos epistemológicos (que não vamos discutir aqui), há, sem dúvida, cientistas ou pessoas leigas devotas das ciências que defendem a tese de que a linguagem analítico-experimental das ciências modernas dão conta desses dois aspectos das nossas perguntas. Como também há muitos devotos dos mitos das grandes religiões ou de novos grupos religiosos que pensam que a linguagem mítico-simbólica nos mostra tanto o sentido quanto as “leis” da natureza. Em outras palavras, há pessoas crentes dos mitos religiosos que acreditam que os seus mitos da origem (por exemplo, o mito da criação narrada na Bíblia) são mais verdadeiros do que teorias científicas que nos explicam a origem do universo e a evolução das espécies. Como também existem “devotos” das ciências que acreditam que as suas pseudoteorias científicas sobre espiritualidade cósmica, o sentido da existência humana ou sobre a morte são mais verdadeiras do que as narrativas religiosas somente porque carregam o carimbo de ciência. Ou então há aqueles que defendem a tese de que não há contradição ou diferença qualitativa entre a ciência e espiritualidade e que as ciências estão descobrindo hoje 63
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o que os antigos místicos já havia descobertos sobre a natureza do mundo e dos seres vivos. Mas como diz Marcelo Gleiser, físico e astrônomo, “certas questões são exclusivas da ciência, enquanto outras pertencem somente à religião. O fundamental é saber discernir os limites de ambas, suas diferentes missões e o simples fato de elas serem necessárias para a nossa existência.” (1999) O problema consiste no fato de que não é fácil separar essas duas dimensões da realidade ou da nossa busca de entendimento da realidade: o “como” e o “por quê e para quê”. Pois sem um sentido implícito, a ação de entender o “como” não tem sentido, não é uma ação humana. Por isso, Gleiser também diz que “cientistas não devem abusar da ciência, aplicando-a a situações claramente especulativas” tentando ou crendo “resolver questões de natureza teológica”. (1997: 40) Sem entrar em discussão sobre o que seriam essas “questões teológicas”, ou se realmente são questões teológicas ou antropológico-filosóficas, somente quero destacar que esse aviso revela essa tentação muito comum de fazer das ciências, em particular as naturais, o único saber legítimo para todas as questões humanas e existenciais. 3. A função heurística do mito. A relação entre ciências e mitos, é claro, não ocorre somente nas ciências naturais. Nas ciências humanas e sociais é mais fácil perceber essa relação, e os teóricos que possuem uma visão que vai mais além do simples campo operacional-técnico das suas ciências reconhecem isso. Celso Furtado, por exemplo, escreveu que “os mitos têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social. (...) os cientistas sociais têm sempre buscado apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar. O mito congrega um conjunto de hipóteses que não podem ser testadas. (...) A função principal do mito é orientar, num plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido.” (1974: 15) O mito não é algo que se opõe à ciência, nem algo que pertence ao passado da humanidade, mas faz parte do fazer ciência – especialmente nas ciências humanas e sociais – e da vida humana porque somos seres que estamos sempre perguntando pelo sentido e construindo um horizonte de sentido baseado em esperanças e intuições ainda não provadas, somente explicadas 64
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e justificadas por mitos que abraçamos e nos quais estamos mergulhados. Como diz Juan Antonio Estrada, a função heurística dos relatos míticos “consiste em oferecer os dados fundamentais para iluminar os acontecimentos da experiência, isto é, dar um sentido. Há que se dar uma significação aos fatos empíricos e oferecer cosmovisões globais que sirvam para localizar e dar sentido à vida humana. Daí nascem a filosofia, a arte e religião; as três remetem, em última instância, aos mitos, aos que prolongam, transformam e superam”. (1997: 43) O questionamento sobre o sentido das coisas e dos fatos para além do empiricamente mensurável, é uma das características que diferencia a espécie humana das outras espécies vivas. Por isso a humanidade vem produzindo, há milhares de anos, religiões, filosofias, poesias, artes etc. Já na década de 1940, Ernest Cassirer escreveu: “É evidente que este mundo [humano] não constitui exceção às regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encontramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; sofreu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. (...) [O homem] Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo.” (1977: 49-50) Por sermos seres simbólicos e vivemos imersos em um mundo simbólico, Edgar Morin diz que “não somos seres explicados somente pela cosmologia, pela física e pela biologia. Somos portadores da cultura na sua universalidade e nas suas características singulares. Somos os criadores e criaturas do reino do mito, da razão, da técnica, da magia”. (2002: 50). Mais ainda, “a aventura do mito começa igualmente com as origens do homo sapiens; inscreveu-se nas grandes religiões ecumênicas e, depois, metamorfoseou-se, nos tempos contemporâneos, em aventuras da ideologia. O mito perdeu seus hábitos tradicionais e introduziu-se na esfera aparentemente laica das sociedades: o mito moderno pode, ao contrário do antigo, dispensar deus e até mesmo a narrativa. [...] Infiltra-se nas ideologias, dá-lhes energia e força 65
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de possessão. Dá às ideias abstratas uma vida, um caráter providencial quase divino.” (Idem: 106) Nesse mesmo sentido, Mircea Eliade, um dos maiores estudiosos do fenômeno religioso do século XX, diz que “o pensamento mítico pode ultrapassar e rejeitar algumas de suas expressões anteriores, tornadas obsoletas pela História, pode adaptar-se às novas condições sociais, mas ele não pode ser extirpado.” (1972: 152). Por isso ele pode ser reconhecido hoje “na obsessão do ‘sucesso’, tão característica da sociedade moderna, e que traduz o desejo obscuro de transcender os limites da condição humana; no êxodo para os subúrbios [ou para condomínios fechados, acrescentaria eu], onde se pode detectar a nostalgia da ‘perfeição primordial’; na intensidade afetiva que caracteriza o que se denominou de ‘culto do automóvel sagrado’.” (Idem: 160). Reconhecer a importância da imaginação simbólica, que nos permite ir mais além dos limites das análises racionais, e dos mitos na expressão e aposta de um sentido de vida não pode significar um simples aceitar dos mitos, símbolos ou religiões. Pois, nem todos os mitos e sentidos de vida veiculados por eles são humanizantes ou fazem bem ao ser humano. A dificuldade no diálogo entre os cientistas e os que levam a sério os mitos, espiritualidades e religiões levou muitos a assumirem posições extremadas. Uns consideram os mitos ou as religiões como simples expressão da ignorância ou alienação humana, enquanto que muitos defensores dos mitos e religiões só vêem nestes um valor positivo. Como tudo na vida e na sociedade, os mitos e religiões também são ambíguos. Na medida em que as nossas crenças e apostas existenciais são alimentadas pelos mitos que abraçamos, esses mitos ou ideias ganham consistência e poder. Por isso, “não somos apenas possuidores de idéias, mas somos também possuídos por elas, capazes de morrer ou matar por uma ideia. (...) As ideias não são apenas meios de comunicação com o real; elas podem tornar-se meios de ocultação. O aluno precisa saber que os homens não matam apenas à sombra de suas paixões, mas também à luz de suas racionalizações.” (Morin, 2000b: 53-54) Devotamos as nossas vidas às causas nobres ou somos indiferentes às mortes das pessoas, apoiamos matanças ou até mesmo matamos por ideias e mitos que nos tomam como as suas criaturas. As grandes matanças na história da humanidade – como Holocausto ou o quase extermínio da população nativa da América após a chegada dos europeus – sempre foram 66
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feitas em nome de ideias ou causas – religiosas ou não – que aparentemente eram grandiosas. Assim como ações heroicas e generosas também são feitas em nome de ideias, causas, mitos ou fé religiosa. Razão pela qual precisamos ajudar os nossos educandos e educandas a adquirirem o conhecimento sobre essa lógica de criadores e criaturas de mitos e a terem critérios apropriados para discernir entre mitos e sentidos de vida humanizantes e os desumanizantes. Diante dessa necessidade e da falta de uma preocupação explícita por parte do sistema educacional, Morin lamenta: “Não existe, infelizmente, uma noologia, destinada ao âmbito do imaginário, dos mitos, dos deuses, das ideias, ou seja a noosfera.” (2002b: 53) Esta noção de noosfera tem a sua origem em Teilhard de Chardin, paleontólogo e pensador francês, que a utilizou para dizer que, como existe a atmosfera na qual vivemos como seres orgânicos, também existe uma esfera das ideias, linguagens, mitos, teorias e conhecimentos – a noosfera –, da qual nos alimentamos para vivermos como seres simbólicos. Como existem ciências que estudam os elementos que compõem a atmosfera, Morin está lamentando pela falta de uma noologia, uma ciência que estude a noosfera. Eu penso que é importante ressaltar que a noologia desejada por Morin não é uma ciência ou um campo de conhecimento que teria função de somente descrever o “como” as pessoas e grupos sociais criam os símbolos e mitos, reproduzindo assim um dos “dogmas” do mundo moderno nem sempre respeitado pelos próprios cientistas de que a ciência só deve descrever, mas não julgar a qualidade ou discernir entre as diversas possibilidades de ação. A preocupação de Morin nasce a partir da constatação de que mitos servem tanto para matar, quanto para dar sentido de vida humanizante e solidário. Por isso, podemos deduzir que a noologia, ou qualquer outro nome que venha a ser aceito pela comunidade acadêmica e educacional, deve também construir critérios de discernimento sobre o valor humano e ético dos vários tipos de mitos e símbolos. Critérios que devem passar pelo “teste” do debate teórico e ser consensualmente aceitos Mesmo não entrando em discussão se já existe ou não uma ciência ou um conjunto de ciências que vêm estudando o que Morin propõe com a noologia, precisamos reconhecer que essa proposta não é fácil e gera muita polêmica. Somos herdeiros de uma cultura marcada por lutas, conflitos, preconceitos e incompreensões em torno desses temas. Entretanto, o que não podemos é, em nome da dificuldade teórica e prática ou por causa de preconceitos contra esse campo de saber, abandonar ou deixar em segundo ou 67
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terceiro plano esse debate. Pois, mesmo que tentemos ignorar a existência de mitos ou simplesmente os desqualificar como erros ou ilusões ou fazer de conta que não é tarefa do sistema educacional a educação sobre o discernimento dos mitos, nós humanos continuaremos sendo criadores e criaturas do reino dos mitos. Abandonar ou negar esse debate é deixar intocado o sentido da vida e da educação que predomina hoje na sociedade e, o pior, não realizar a nossa tarefa de possibilitar a educandos e educandas a aprendizagem de como “tornar visível o que o olhar normatizador oculta” (Gentili e Alencar, 2001: 42) e de como construir ou assumir novos símbolos que apontam e convocam para um mundo mais humano e solidário. 4. O mito do outro e o nosso. Há pouco eu disse que o mito é comumente entendido como falso, como oposto à verdade e à realidade. Essa compreensão do mito não provém somente do preconceito por parte das ciências contra linguagens míticosimbólicas, mas também da nossa experiência cotidiana. Como vemos a realidade e interagimos com ela a partir da nossa cultura, com os seus mitos e símbolos, não conseguimos ver os nossos mitos. Esse mundo simbólico é como óculos que usamos para ver a realidade, e quando vemos a realidade com esses óculos, nós não os enxergamos. Só conseguimos ver os mitos quando são mitos dos outros e na medida em que esses são diferentes dos nossos. É a nossa estranheza em relação aos mitos dos outros que nos faz ver que eles estão mergulhados no mundo simbólico e possuem mitos. Só conseguimos enxergar os mitos como mitos porque não são nossos, são dos outros. Como esses mitos são diferentes dos nossos (se fossem iguais nós não os veríamos como mitos), são julgados como falsos, como sem sentido, como mitos (no sentido de falsidade). Esta é uma das razões dos conflitos e dominações culturais, das intolerâncias com as religiões e mitos de outros povos e grupos sociais. Re s peitar as culturas diferentes, os mitos dos outros, é uma condição necessária para uma convivência pacífica nos dias de hoje. E esse respeito só é possível na medida em que eu descubro progressivamente que o outro é outro, isto é, pertence a e vive uma cultura diferente da minha; e, ao mesmo tempo, descubro a mim mesmo como membro de uma cultura determinada. Pois, descobrir que as minhas “verdades” são construídas com símbolos e mitos,
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como outros grupos sociais constroem as deles é um passo fundamental para essa convivência. Como diz o relatório para a Unesco, Educação: um tesouro a descobrir, “desenvolver esta atitude de empatia, na escola, é muito útil para os comportamentos sociais ao longo de toda a vida. Ensinando, por exemplo, aos jovens adotar a perspectiva de outros grupos étnicos ou religiosos podem-se evitar incompreensões geradoras de ódio e violência entre os adultos. Assim, o ensino da história das religiões ou dos costumes pode servir de referência útil para futuros comportamentos.” (Delors e outros: 1999: 98). Conhecer a tradição cultural, espiritual e religiosa de outros grupos é importante não somente para aprender a viver juntos, mas também para a realização do ser humano como humano. Como vimos no capítulo 2, adotar a perspectiva do outro é uma das características que nos distingue de outros animais. Além de que, é adotando a perspectiva de outro que eu posso conhecer melhor o meu mundo simbólico. Outro ponto importante a destacar é que os mitos não são coisas do passado. As sociedades não funcionam sem que a maioria dos seus membros compartilhe os mesmos mitos fundamentais. Sem esse compartilhar não haveria a convergência de entendimento e de valores morais que possibilitam a comunicação e a convivência entre os seus membros. Por isso é que, além das questões técnico-operacionais, todos os sistemas sociais e educacionais ensinam, consciente ou inconscientemente, implícita ou explicitamente, os seus mitos e símbolos fundamentais. Todos nós aprendemos a ver e a agir de acordo com eles, só que não aprendemos a ver os nossos mitos. Como ver os mitos com os quais nós lemos e compreendemos a realidade e interagimos com pessoas e instituições? Não é uma tarefa fácil, entretanto, penso que um primeiro passo será dado estudando os mitos que não são os nossos, pois os mitos dos outros nos aparecem mais claramente como objetos de estudo. Se esses mitos forem ao mesmo tempo “dos outros” e “nosso”, no sentido de que são mitos de outros grupos sociais e de outros tempos, mas que estão na base do processo histórico-social que gerou o Ocidente é melhor ainda. Por serem mitos dos outros, são mais fácil de estudarmos; e por estarem na base da nossa cultura ocidental, ajudam-nos na compreensão da nossa cultura e dos nossos mitos. O que conhecemos por cultura Ocidental teve duas grandes fontes: o mundo greco-romano e o mundo bíblico. Os mitos dessas duas grandes 69
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fontes ainda continuam presentes no mundo de hoje, retrabalhados, mixados e remixados em diálogo nem sempre pacífico com contribuições de outras culturas e em processo permanente de recriação. Conhecermos um pouco desses mitos é no fundo aprendermos a ver com outros olhos os mitos (nossos e dos outros) e entendermos um pouco mais de nós mesmos. Para os leitores contemporâneos, a forma literária dos mitos antigos talvez não seja tão excitante e atraente como os modernos meios de comunicação que veiculam os nossos mitos. Talvez nem sejam facilmente compreensíveis. Os mitos antigos contam uma história sagrada, relatam como em tempos primordiais uma realidade passou a existir (seja o Cosmos ou apenas um fragmento da realidade ou da vida social), graças às façanhas dos entes sobrenaturais ou de heróis míticos. Os mitos descrevem as irrupções do sagrado ou do sobrenatural no mundo e essas narrativas possibilitam os povos a distinguirem e a organizarem os diversos aspectos da vida, o tempo e o espaço. Mais do que simples narrativa de acontecimentos passados, o mito, como diz Mircea Eliade, “pelo fato de relatar as gestas dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes sagrados, (...) torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.” (1972: 12) Esse caráter de modelo de vida e o de fundação das instituições sociais, econômicas, religiosas e morais são os aspectos mais importantes dos mitos. A vida é como é, as instituições funcionam como funcionam porque, no fundo, são vistas como repetições e reproduções desses modelos e fundações. O que está fora dos limites estabelecidos pelos mitos é visto como loucura ou subversão. Razão pela qual, os mitos antigos e os modernos estabelecem o rumo, os “bons” desejos, os limites e os tabus que não podem ser quebrados. Ações ou propostas que rompem com esses limites e quebram os tabus (não os tabus da cultura anterior que foram quebrados na instituição dos novos mitos, mas os tabus vigentes que quase ninguém nem ousa em falar ou debater sobre) são castigadas violentamente, com violência “purificadora”, violência santa e legítima que purifica a terra dessas violências tidas como maléficas. Esta é a razão pela qual os mitos (repito novamente, antigos e os atuais) estão repletos de violência3. Além dos mitos violentos que podemos encontrar em livros de história ou naqueles que recolhem os mitos, basta ver a violência contida nos discursos míticos das partes envolvidas na atual 3.
Sobre a relação entre os mitos e a violência, vide, por ex., René Girard (1990 e 2000). 70
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“guerra contra o terrorismo e os eixos do mal” ou então nos discursos neoliberais que mitificam o mercado e em nome das “leis” do mercado exigem políticas econômicas que sacrificam a vida de centenas de milhões de pessoa por todo o mundo. A constatação de que todos os mundos humanos são constituídos de mitos e símbolos e a descoberta de que os mitos não são bons nem maus só pelo fato de serem mitos, levantam-nos o desafio de estudarmos os mitos não somente no sentido de reconhecermos a existência e a função social deles, mas no sentido mais crítico de discernirmos o que faz um mito ser melhor do que outro, isto é, que tipos de mitos nos ajudam a construirmos um sentido mais humano para as nossas vidas. Esta proposta de discernimento, já mencionado acima, nos levanta a importante questão do relativismo de todos os conhecimentos e culturas e da possibilidade, ou não, de um critério universalizante ou universalizável para discernir e julgar os mais variados mitos e sentidos de vida em função da humanização das pessoas e das nossas sociedades. Já é bastante conhecida a postura dos pós-modernos mais radicais que negam essa possibilidade. Edward Said fez um comentário a esse respeito que me parece provocador no duplo sentido: irrita e desafia. Ele diz: “O objetivo da atividade intelectual é promover a liberdade humana e o conhecimento. Penso que isso ainda hoje é verdade, apesar da acusação, repetida com frequência, de que ‘as grandes narrativas de emancipação e esclarecimento’ – como o filósofo contemporâneo Lyotard chama tais ambições heroicas associadas à idade ‘moderna’ – já não têm aceitação na era do pós-modernismo. De acordo com essa visão, as grandes narrativas foram substituídas por situações locais e jogos de linguagem; agora os intelectuais pós-modernos enaltecem a competência, e não os valores universais como a verdade e a liberdade. Sempre achei que Lyotard e seus seguidores estão admitindo sua própria incapacidade preguiçosa, talvez até indiferença, em vez de fazer uma avaliação correta daquilo que continua a ser, para o intelectual, um enorme leque de oportunidades, apesar do pós-modernismo.” (2005: 31). Sem dúvida, não podemos aceitar a cultura europeia e a ciência moderna, ou quaisquer outras, como critérios universais para julgar outras culturas e formas de conhecimento. Pois isto seria uma imposição universal de um particularismo. Entretanto, como diz Boaventura Souza Santos, “uma luta contra o monoculturalismo autoritário, que não reconhece a existência de outras culturas deve ir de par com a luta contra o relativismo, não menos 71
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autoritário, que, ao afirmar a igualdade das culturas, as encerra num ‘absolutismo do particular’ que torna impossível o diálogo crítico e a mobilização solidária para além do que separa os diferentes grupos e coletivos sociais. Tal política passa pela aposta num multiculturalismo progressista que saiba reconhecer as diferenças culturais e de conhecimento, e construa de modo democrático as hierarquias entre elas.” (2005: 24) O diálogo crítico e a mobilização solidária exigem a construção de critérios que possam ajudar no discernimento das múltiplas possibilidades e realidades da vida concreta em função da defesa da humanidade e do direito a uma vida digna de todas as pessoas. É uma tarefa exigente, tanto teórica quanto existencialmente, mas necessária para todos e todas que assumem a luta por um mundo em que se vive um sentido mais humano de vida. Antes de retomar, no próximo capítulo, a análise do sentido de vida que se tornou hegemônica na nossa sociedade e no nosso sistema educacional, quero apresentar, ao final desse capítulo, um exemplo do mito que norteia a vida no nosso tempo. Esta citação de trechos de um artigo do famoso publicitário e “marketeiro” político Nizan Guanaes, serve como uma amostra ou ponta de iceberg dos mitos que não vemos porque os vivemos e também como uma pequena introdução aos dois próximos capítulos, onde trataremos do mito fundamental do neoliberalismo e da “espiritualidade” que permeia o nosso cotidiano. Como se trata de um artigo sobre as propagandas da Nike, não pode ser tomado como a narrativa de um mito no sentido estrito, mas nos dá uma boa idéia de alguns dos nossos mitos e de como eles são transmitidos no nosso mundo. “Não há trabalho que mais me emocione ou que eu mais inveje do que o trabalho de Nike. (...). Nike é sublime. Construção madura e violentamente sofisticada do que pode haver de mais poderoso no mundo do marketing: uma relação de afeto entre um produto e seu consumidor. Nike não é um tênis, um calçado, é um modelo de vida. Nike é um estilo e uma visão do mundo. Seus anúncios são evangélicos. Não vendem apenas, doutrinam. Não convencem só, convertem. (...) Ao contrário da maioria das marcas do mundo e sobretudo do Terceiro Mundo, não há um dualismo entre a publicidade de
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marketing e do dia-a-dia da companhia. A Nike empresa é exatamente o que a Nike anuncia. (...)Ou seja, fitness é literalmente o centro da própria companhia. É este mundo de Nike que os sedentários como eu compram junto com o tênis. Nike faz o menino do subúrbio americano, o garotão do meio-oeste ou um waspzinho de Sutton Palace se sentir um jogador de basquete vindo do Harlem. (...) Nike faz a mulher separada e celulitária se sentir Fernanda Keller só porque deu três voltas no quarteirão. De Nike, é claro. Nike faz o boy do Terceiro Mundo se sentir tão bem quanto se tivesse cheirando cola. Por isso um monte de boy que não podia ter Nike tem Nike. Porque se não tiver ele, morre. Boy é cabeça, tronco e Nike. Um intelectual mal-humorado dirá que eles vendem ilusões. É verdade. (...) E não há coisa mais útil para o homem do que a ilusão. Ilusão é gênero de primeira necessidade. É o que nos mantêm vivos. É por isso que no Brasil há televisão em lugares onde não tem nem comida. Sonhar é uma necessidade fisiológica do homem. Nike é sonho. (...) Mr. Nike sabe que nos dias de hoje o melhor ponto de venda de um produto é estar nos cantos perdidos do cérebro e da alma humana.” (1994)
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CAPÍTULO 5 O espírito do capitalismo e o sentido da vida
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1. Civilizações e o sentido último da vida. Final da tarde, centro de uma cidade grande, andando rapidamente ao lado tantas outras pessoas absortas em suas preocupações e perdidas em seus pensamentos, eu me pergunto: como tudo isso pode funcionar? Como é possível que algo chamado sociedade possa existir e funcionar se, à primeira vista, é um amontoado de indivíduos com seus interesses, preocupações pessoais, valores, inúmeros desejos e frustrações? O que faz uma multidão de indivíduos formar uma sociedade? Cada indivíduo tem em si a possibilidade de desejar um número quase infinito de desejos, uma gama mais variada de interesses e pode encontrar ou elaborar os mais diversos sentidos de vida. Se cada um tem essa possibilidade, o conjunto das pessoas de uma sociedade formaria uma somatória de possibilidades tão grande que seria impossível às pessoas se comunicarem umas com as outras e se relacionarem em atividades profissionais, comunitárias. Mas, apesar dessa aparente impossibilidade, as sociedades funcionam. Bem ou mal, funcionam. Se a sociedade existe de fato, e não é um mero amontoado de indivíduos, é porque existe algum mecanismo que reduz ou canaliza esses inúmeros desejos, interesses e sentidos fazendo-os convergir para uma mesma direção. Pois, como diz Nestor Canclini, “nenhuma sociedade nem nenhum grupo suportam demasiada irrupção errática dos desejos, nem a conseguinte incerteza de significados. Dito de outro modo, necessitamos de estruturas nas que se pense e ordene aquilo que desejamos.” (1995: 46) Por isso, uma das questões cruciais para quem quer discutir o papel da educação na sociedade ou estudar o sentido de vida predominante na sociedade é entender como ela funciona, se reproduz e, assim, se mantém no tempo. Isto é, entender qual é o mecanismo concreto que faz os indivíduos terem uma maneira comum de ver o mundo e a vida, mesmo tipo de desejo e, por isso, sejam capazes de se comunicarem e se articularem nas suas atividades e desejos e assim tornarem a vida em sociedade possível. 77
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Os sociólogos observaram que os fatores simbólicos e afetivos, expressos em visões do mundo e ideais, formam a parte indestrutível da vida coletiva e que eles “transfundem energia e a impedem de enfraquecer e perecer.” (Moscovici, 1990: 27) Esses fatores simbólicos e afetivos oferecem um ponto de referência lábil, isto é, instável e ao mesmo tempo adaptável, que é indispensável para a consolidação e a manutenção dos laços que unem uns aos outros. Essa referência é fundamental não somente em termos de laços horizontais na sociedade, mas também nas relações hierarquizadas presentes em todas as sociedades. Como diz Fustel de Coulanges, “para lhes dar regras comuns, para instituir o comando e fazer aceitar a obediência, para fazer a paixão ceder à razão e a razão individual à razão pública é preciso necessariamente alguma coisa mais elevada do que a força material e mais respeitável do que o interesse, mais confiável do que uma teoria filosófica, mais imutável do que uma convenção, alguma coisa que esteja igualmente no fundo de todos os corações e que ali reina com autoridade. Essa coisa é uma crença.” (apud em Moscovici: 1990: 27) Essa crença pode ser sustentada por um mito, por uma ideologia ou por uma ciência ou pseudociência. O importante é que ela exista e que as pessoas que compõe a sociedade sintam “a vitalidade do laço que os une, a força única de sua convicção e o ímã da finalidade que os faz agir em conjunto.” (Moscovici, 1990: 27). De certa forma podemos dizer que não há sociedade sem uma fé, uma crença, que a constitua e a mobilize. Esta é a razão pela qual os autores clássicos da sociologia, como Durkheim e Weber, consagraram obras importantes sobre a religião. Afinal, a religião é uma das principais formas de se expressar e vivenciar em coletividade o sentido último da vida. Nesta mesma direção, Enrique Dussel, filósofo e historiador argentino radicado no México, diz que toda civilização e o conjunto de valores morais e de costumes que possibilitam a vida humana em grupo, ethos, possuem um sentido último. Esse “sentido último pode estar difuso e inconsciente, ou ser difícil de discernir, porém nunca está ausente. Qualquer sistema de civilização se organiza em torno de uma medula, de um foco, um núcleo ético-mítico, os valores fundamentais do grupo. Este pode ser descoberto através da hermenêutica dos mitos básicos da comunidade, sendo a filosofia da religião um dos instrumentos indispensáveis.” (Dussel, 1984: 11).
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Não vamos discutir aqui se a filosofia da religião é ou não um dos instrumentos indispensáveis para a hermenêutica dos mitos fundamentais das sociedades; nem se essa hermenêutica exige ou não uma abordagem inter ou transdisciplinar por causa da complexidade do mundo simbólico, ou da noosfera na linguagem de Morin, e da sua relação com os outros aspectos da sociedade, como o econômico, social e político. O que nos interessa enfatizar neste momento é a necessidade de desvelarmos e analisarmos o sentido último da nossa civilização, os seus mitos básicos que a veiculam e a espiritualidade que a impulsiona. A necessidade dessa tarefa se torna mais premente quando nos lembramos que a ausência de debates sobre o sentido da educação na nossa sociedade nos mostra que um sentido de vida se tornou hegemônico e se apresenta como óbvio para a maioria da população. Tão óbvio que não é mais discutido. E se não rompermos com o que nos parece óbvio, não aprendemos. Aprender algo novo e significativo para as nossas vidas pressupõe sempre se defrontar com uma surpresa, o imprevisto, que cria em nós um certo desconforto. A mente se vê diante de um conflito entre o que o mundo ou a vida nos apresenta e a nossa expectativa formada pelos hábitos estáveis. De tanto estarmos acostumados a vermos e a agirmos de um determinado modo que o habitual nos parece se identificar com o “natural” e esperamos que a vida siga de acordo com essas “leis naturais”. Se não tornarmos visíveis esses mitos travestidos de “leis naturais”, mostrando o seu caráter histórico e social, não podemos debater com seriedade o sentido da vida. O fato de mostrar, de revelar, o caráter histórico-social do sentido último da vida que está por trás das nossas ações pode gerar um certo desconforto que abre possibilidades para uma aprendizagem significativa sobre o sentido da vida. Revelar esse sentido implícito nas nossas ações e na dinâmica da sociedade e capacitar os educandos para um discernimento crítico desse sentido é uma das tarefas fundamentais do processo educacional. Mesmo que o atual sentido de vida seja reafirmado após o debate, as pessoas o assumirão com mais clareza e convicção. 2. Viver é um fim ou um meio? Para percebermos melhor que o sentido de vida predominante na nossa sociedade não é “natural” e nem óbvio, analisemos algumas características 79
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do mundo moderno, especialmente o capitalista, que o diferencia do prémoderno. Max Weber, no seu clássico livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, diz que no capitalismo O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais. Esta inversão do que poderíamos chamar de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista. Mas, ao mesmo tempo, ela expressa um tipo de sentimento que está inteiramente ligada a certas idéias religiosas. (...) Ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é, enquanto for feito legalmente, o resultado e a expressão de virtude e de eficiência em uma vocação (..). (1983: 33) Antes do capitalismo, a aquisição econômica era vista como um meio para satisfazer as necessidades materiais da vida humana. Quando uma família ou uma coletividade conseguia adquirir um montante de riqueza suficiente para garantir a reprodução material da vida por um tempo considerável, parava de trabalhar ou diminuía o seu ritmo de trabalho e se dedicava a outras atividades – como festa, pesca, arte, religião, etc – para viver a sua vida com mais prazer e alegria. Com o capitalismo, “o homem é dominado pela produção do dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida”. Weber chama a atenção para o fato de que essa inversão – do trabalhar e ganhar dinheiro em função do viver para viver em função do ganhar dinheiro – é, do ponto de vista pré-moderno, irracional, pois inverte o que ele mesmo diz poder chamar de “relação natural”. Contudo, esse novo sentido de vida, que nasce da inversão, é “evidentemente um princípio orientador do capitalismo”. Como algo que inverte a relação natural e que é considerado irracional por uma civilização pode se tornar o sentido último da vida e o princípio organizador da nova civilização? Weber desenvolve, no livro acima mencionado, a sua teoria sobre o papel da religião, especialmente o cristianismo 80
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na versão calvinista e puritana, nessa profunda transformação. Não vamos debater aqui essa teoria, por falta de espaço e também porque foge um pouco do objetivo geral do livro, mas queremos deixar destacado que a religião teve um papel significativo nessa grande inversão na relação entre vida e riqueza. Esse papel da religião no surgimento do capitalismo ou do que Weber chamou de “espírito do capitalismo”, nos indica que o surgimento do mundo moderno não foi a passagem de uma civilização marcadamente religiosa para uma baseada somente na razão, sem mitos ou símbolos formando um núcleo ético-mítico fundamental. Pois, sem mitos e símbolos não se constitui o sentido último da vida, muito menos, se esse sentido inverte, como diz Weber, a “relação natural” e apresenta o ganhar dinheiro “como uma finalidade em si, que chega a parecer algo de superior à ‘felicidade’ ou ‘utilidade’ do indivíduo, de qualquer forma algo de totalmente transcendental e simplesmente irracional.” (Ibidem: 33. O grifo é nosso.) Hoje, com a globalização de corte neoliberal e a difusão da cultura capitalista por quase todas as partes do mundo, esse princípio orientador foi radicalizado e disseminado por quase todo o mundo e invadiu quase todas as esferas da vida econômica e social. Michel Albert, um importante executivo do mundo dos negócios na França e economista, diz que antes do atual modelo de capitalismo neoliberal “o dinheiro era rei mas, como todas as realezas seu poder era contido, limitado. Hoje, seu poder tende a invadir todas as atividades sociais”. (1992: 102) Com isso, prevalece hoje o culto do lucro a qualquer preço. Este culto “oferece a vantagem da simplicidade brutal e da clareza; vantagem esta, reforçada pelo seu brilho como único ponto de referência estável, nesta espécie de nevoeiro das incertezas e do desalento em que a perda dos valores morais tradicionais está mergulhando nossa época.” (Ibidem: 238) Mas, se alguém quiser questionar este sentido último da nossa civilização, M. Albert nos alerta: “Lucro para quê? Nunca faça esta pergunta, porque você será imediatamente expulso do santuário, por ter colocado em dúvida o artigo primeiro do novo credo: a finalidade do lucro é lucro. Neste ponto, não se transige. É imperativo abandonar a questão ‘filosófica’ da finalidade, para fixar-se no estudo ‘técnico’ dos meios.” (Ibidem: 239) Isto é, com a vitória “definitiva” do capitalismo após a queda do bloco socialista, não se deve mais discutir sobre a finalidade da vida, da economia, da sociedade e também da educação; a discussão deve se restringir, tanto na educação quanto 81
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na economia, aos meios técnicos e à metodologia mais apropriados para atingir a finalidade última estabelecida. Na medida em que esse sentido último da vida vai sendo internalizado pelas pessoas, parece óbvio que a vida consiste em trabalhar mais para ganhar mais dinheiro, para ganhar mais dinheiro ainda. Não somente as pessoas mais pobres precisam trabalhar cada vez mais horas para poder sobreviver com dignidade, mas também a própria elite. A esse respeito, o colunista de New York Times, David Brooks, faz um interessante comentário: “As elites educadas são as primeiras elites em toda a História a trabalhar mais horas por ano do que as massas exploradas, tal é a voracidade de sua ganância”. (2005) Ganhar mais dinheiro para ganhar mais dinheiro, sem fim e sem limite, pressupõe a possibilidade de uma acumulação ilimitada de riqueza. Só assim o ganhar dinheiro pode se tornar o sentido último da vida. Pois, se pensamos em certo limite para essa busca, vem a pergunta pelo o que vem depois de ganhar o dinheiro; isto é, o ganhar dinheiro se torna um meio para algo mais importante na vida, como, por exemplo, ser feliz ao lado de pessoas amadas (pois é difícil para não dizer impossível ser feliz na solidão) ou se realizar como pessoa humana. Assim, o ganhar dinheiro para ganhar mais dinheiro não é mais o sentido último da vida e o dinheiro volta a ser uma mediação para uma vida boa. Quem não está acostumado com a linguagem econômica do mundo moderno capitalista, poderia se perguntar como seres limitados (os humanos) podem pensar na possibilidade de acumulação ilimitada de riqueza, isto é, em tirar da natureza (que tem seus limites) uma quantidade ilimitada de riqueza. O problema não é só teórico, pois este erro de tentar tirar de uma fonte limitada (o planeta Terra visto só como fonte de matéria prima) uma quantidade ilimitada de riqueza leva o sistema capitalista, e os seus principais agentes econômicos, a destruir a natureza, o ambiente que possibilita a vida humana. Como vimos nos dois primeiros capítulos, não há ser vivo sem um ambiente que lhe possibilite a sobrevivência. Quando os seres humanos pretendem ir além da sua condição, isto é, dos seus limites e possibilidades, tentam agir como deuses e agem como insensatos. Insanidade que coloca em risco a sua própria sobrevivência, além de gerar ansiedades e frustrações sem fim. Mas, um dos segredos da fascinação que o capitalismo exerce sobre as pessoas é exatamente essa promessa de ir além da nossa condição humana e dos limites da própria natureza. Francis 82
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Fukuyama, autor nipo-americano que ficou mundialmente conhecido por defender a tese de que o capitalismo é o final e o ápice da história, diz, por exemplo, que o capitalismo com a sua “tecnologia torna possível o acúmulo ilimitado de riqueza, e portanto, da satisfação de um conjunto sempre crescente de desejos humanos”.(1992: 15) É uma promessa e tanto: a de satisfazer não somente os desejos atuais, mas também “um conjunto sempre crescente de desejos humanos”. Caminho para isso? A acumulação ilimitada da riqueza possibilitada por um avanço tecnológico só possível no sistema de mercado capitalista. Esta é a “boa nova” que os defensores apaixonados do capitalismo pregam. No âmbito pessoal: “seja competitivo e obtenha sucesso no mercado!”, que tudo mais será lhe dado. 3. Consumo e o sentido encantado da vida. Qual é a importância de ser competitivo e ter sucesso no mercado? Esta é uma pergunta sem sentido para muitos hoje, pois está se perguntando pelo que é óbvio. A resposta imediata seria: “é claro que é importante!” Mas a pergunta não é se é ou não importante, mas qual a importância, isto é, para quê? Como vimos acima, com M. Albert, não devemos fazer perguntas sobre o para quê do sucesso econômico, o sentido último e o “bem supremo”, pois isto seria colocá-lo em questionamento e lhe tirar o caráter de óbvio e natural. Thorstein Veblen, um importante economista e sociólogo do final do século XIX nos Estados Unidos, já alertava que a acumulação da riqueza não tem relação com a subsistência, mas com a emulação, o sentimento de rivalidade que incita a imitar e superar o outro. A riqueza se tornou “a prova mais evidente de um grau honorífico de sucesso como coisa distinta de realização heróica ou notável” e, com isso, se tornou “a base convencional da estima social” e confere honra e mérito ao seu possuidor. (1987: 18). O r a , se a riqueza é a base para a estima da sociedade para com o seu possuidor, ela também se torna um requisito para a autoestima das pessoas. A autoestima, com a exceção das pessoas com forte convicção do seu valor, depende muito da estima que outras pessoas têm para com ela, isto é, do reconhecimento que se consegue na comunidade ou na sociedade. Por isso, não basta possuir riqueza, é preciso mostrá-la, ostentá-la através de bens de
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consumo desejados por outras pessoas4. Como diz a colunista social Danuza Leão, “tem graça jantar com Madonna e ninguém saber? Claro que não. Aliás, de que adianta ter todas as glórias da vida - não que jantar com Madonna seja uma delas, apenas um exemplo –, se as amigas não vão saber e se esse acontecimento não chegar aos ouvidos das inimigas, sobretudo? [...] qual o interesse em desfilar usando joias, ter uma BMW ou aparecer na televisão? Para que vejam e comentem, com admiração ou inveja; e também - por que não dizer? – para dar raiva nos outros. [...] Viver dá trabalho, e é uma pena pensar em como são poucas as coisas feitas apenas para nosso prazer pessoal, sem precisar de plateia para aplaudir ou cobiçar”(1999). Essa cultura, na qual o padrão de consumo ocupa um lugar central para a identidade pessoal, relações sociais e o sentido de vida, é chamada de cultura de consumo. Para Mike Featherstone, “usar a expressão ‘cultura de consumo’ significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade contemporânea.” (1995: 121). Isto significa que as mercadorias não são simples produtos materiais, mas que, além da sua utilidade, são bens simbólicos e servem como comunicadores da identidade, de sentimento de pertença, sentido de vida e outros aspectos da vida social. Por isso é que Nizan Guanaes pode dizer com “naturalidade” que “Nike não é um tênis, um calçado, é um modelo de vida. Nike é um estilo e uma visão do mundo. Seus anúncios são evangélicos. Não vendem apenas, doutrinam. Não convencem só, convertem.” (1994). Acima havíamos dito que “nenhuma sociedade nem nenhum grupo suportam demasiada irrupção errática dos desejos, nem a conseguinte incerteza de significados.” (Canclini, 1995: 46). Agora podemos completar dizendo que, na nossa sociedade, o consumir torna o nosso mundo mais inteligível. Através do consumo nós sabemos quem somos e a que grupo pertencemos, qual o nosso lugar na hierarquia social e nos comunicamos com os demais. Mais ainda, essa inteligibilidade da sociedade é possível porque “o consumo é um processo no qual os desejos se convertem em demandas e em atos socialmente regulados.” (Ibidem: 48). Isto é, o desejo de consumo de mercadorias faz convergir os desejos erráticos dos membros da sociedade, fazendo passar de um amontoado de indivíduos a um conjunto de consumidores-cidadãos. E, como tudo isso passa no interior do mercado, os desejos 4.
Eu e Hugo Assmann desenvolvemos mais este tema do desejo e reconhecimento no cap. 4 do livro Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança.
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são transformados em demandas econômicas que estão sob a regulação da sociedade, tais como a lei da oferta e procura e a relação ou o contrato de compra e venda. Além disso, “se consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem qualquer probabilidade de trazer satisfação da maneira como o ‘manterse ao nível dos padrões outrora prometeu: não há padrões a cujo nível se manter a linha de chegada avança junto com o corredor, e as metas permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta alcançá-las.” (Bauman, 1998: 56). O fato de as metas permanecerem continuamente distante e as pessoas e toda sociedade continuarem correndo atrás mostra como o consumir se tornou o sentido último da vida. É uma meta “transcendental” que falava Weber, uma meta que está além de todos os limites, uma meta que por mais que lutemos e corramos não atingimos, mas que continua a nos atrair e a nos “chamar”. Por isso mesmo o sentido último da vida. Como vimos antes, o sentido último da vida precisa ser expresso em forma simbólico-mítica. Com as noções de que o mundo moderno é baseado em racionalidade científica e que teria superado toda a dimensão encantada e mágica da natureza e da vida humana, características de uma cosmovisão mágico-religiosa, – o que Max Weber chamou de desencantamento do mundo (Pierucci, 2003) – e de que a economia é o mundo das coisas materiais, muitos poderiam questionar como o consumo de mercadorias e a cumulação de riqueza podem se tornar o sentido último de vida. Na verdade, a economia não é um mundo somente material. Muito pelo contrário. O mundo da economia é também profundamente simbólico e cultural, como todas as coisas da vida humana. Basta ver todo o valor dado à imagem de uma marca ou de uma empresa, como MacDonald, Nike ou Coca-Cola. Por isso, Featherstone diz que “a sociedade moderna está, pois, longe de ser um mundo material profano e simbolicamente empobrecido, onde as coisas, os bens e as mercadorias são tratados como meras utilidades. [...] a cultura de consumo produz uma teia vasta e mutante de signos, imagens e símbolos, e esses símbolos não podem ser conceituados como algo meramente profano.” (1995: 168). Como exemplo, quero citar aqui o modelo de análise da força e da fraqueza das marcas proposto por Thomas Gad (2000), um executivo do mun85
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do do marketing e propaganda. Ao invés de uma análise unidimensional das marcas, este autor propõe um modelo baseado em quatro dimensões. A primeira é a dimensão funcional, que descreve as características únicas do produto ou serviço. A segunda, a dimensão social, trata da experiência do consumidor como usuário. A terceira, a dimensão mental, analisa a criação da experiência individual através da marca, a construção de valores na mente do consumidor, como por exemplo o que a Nike fez com “just do it”. E, por fim, a quarta dimensão: a dimensão espiritual, que vai direto ao coração do sistema de valores do consumidor. Marc Gobé, um outro executivo da área de marketing e propaganda, também propõe algo semelhante. Para ele, uma abordagem baseada na dimensão emocional da marca é fundamental para diferenciar um sucesso ou fracasso no mercado. Por isso, ele coloca como o seu objetivo a criação de marcas “que fará corações bater mais rápido”, que “são baseados nas experiências sensoriais e em uma compreensão dos desejos emocionais mais profundos das pessoas”. (2001: ix). Analisando esse mundo do marketing e propaganda, Sut Jhally diz, em um artigo com um título bastante sugestivo, Advertising as Religion (Propaganda como religião), que as pessoas não querem viver no mundo desencantado pelas ciências modernas, um mundo frio, sem nenhum encanto. Se as religiões tradicionais não conseguem mais reencantar a vida e o mundo da grande maioria da população, o mercado atende esse desejo através de propagandas e mercadorias capazes de reencantar o mundo. “Na propaganda, o mundo das mercadorias interage com o mundo humano ao nível mais fundamental: ele realiza a façanha mágica da transformação e encantamento, traz felicidade e gratificação instantâneas, captura as forças da natureza, e retém dentro de si mesmo a essência das relações sociais importantes (de fato, ele se coloca no lugar dessas relações)” (1989: 218). O mundo das relações humanas, onde podemos encontrar ou construir o sentido mais profundo da vida e a experiência da humanização, é substituído pelo mundo das relações com mercadorias ou das relações entre pessoas mediadas pelas griffes. Neste mesmo sentido, Everardo Rocha, um antropólogo brasileiro, diz que o sistema publicitário é responsável pela principal ideologia aplicada ao consumo e o seu parâmetro é: possuir produtos e serviços é ser feliz. “São cervejas que trazem lindas mulheres, carros que falam do sucesso pessoal, cosméticos que seduzem, roupas que rejuvenescem. Produtos e serviços que, agradavelmente, conspiram para fazer perene nossa felicidade. Consu86
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mir qualquer coisa é uma espécie de passaporte para a eternidade, consumir freneticamente é ter a certeza de ser um peregrino em viagem ao paraíso.” (2005: 127). Para este autor, o específico da cultura moderna, que a diferencia das outras, reside na construção de um sistema simbólico que integra as pessoas e estabelece critérios de diferença que possibilitam a criação de identidades e hierarquias na sociedade com base na produção e consumo de mercadorias. “É neste jogo mágico, envolvendo confecção de mitos e práticas de rituais que acontece o consumo, lugar privilegiado para um exercício permanente de classificação que, ao estilo de um sistema totêmico, fornece os valores e as categorias pelos quais concebemos diferenças e semelhanças entre objetos e seres humanos.” (Ibidem: 137). Em síntese, na nossa sociedade o consumir não visa, em primeiro lugar, a satisfação das necessidades biológicas e materiais da pessoa e da sociedade, mas sim as “necessidades” culturais e existenciais. Encanta, é a fonte de respeito e autoestima, dá sentido à vida, faz convergir os desejos das pessoas e forma grupos, e serve para comunicar e tentar satisfazer os desejos, esperanças e aspirações mais profundas do ser humano. Consumir se tornou algo profundamente espiritual, em uma sociedade que se crê desencantada e secularizada. 4. O mal, o sentido da vida e o mito neoliberal. O sentido de vida predominante na nossa civilização é a busca de acumulação de riqueza. Os governos são julgados e os países classificados em função de seu crescimento econômico. As empresas buscam mais lucro, para gerar mais lucro. As pessoas trabalham cada vez mais para acumular e consumir cada vez mais, não porque seja necessário ou útil, mas porque “somos o que consumimos”, ou melhor, somos tratados de acordo com o nosso padrão de consumo, e também porque o consumir encanta a nossa vida. Se países, empresas e pessoas lutam umas contra outras no mercado e na cultura de consumo para “serem” mais através de ter e ostentar mais riquezas, o outro lado da história é feito de países, empresas e pessoas que são derrotados e deixados para trás na corrida para “ser” mais. Não há como em uma economia baseada somente na lógica da concorrência do mercado não gerar os “derrotados”, os excluídos do mercado e dos benefícios da so87
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ciedade. Todas as sociedades capitalistas têm de lidar com esse lado sombrio da fascinação capitalista. As sociedades capitalistas só conseguem legitimar o seu núcleo míticoético na medida em que respondem prática e/ou teoricamente a este lado negativo do seu projeto. Em outras palavras, viver para acumular mais riqueza só pode funcionar como o sentido de vida da sociedade e da grande maioria das pessoas na medida em que a sociedade dá conta de solucionar o problema da crescente desigualdade social, que hoje em dia chega ao extremo de exclusão social. Sem uma solução, real ou aparente, a sociedade começar a perder a coesão, o espírito que o mantém funcionando e o impulsionando para frente. Na fase liberal do capitalismo, a construção da sociedade moderna era baseada em dois pilares: o mercado e a democracia. Ao mercado era confiada a criação de novas e mais riquezas. Mas a sociedade, ou os seus dirigentes, tinha a consciência do caráter excludente do mercado ou como dizia Schumpeter, na primeira metade do século XX, da sua dinâmica de “destruição criativa” (1984). O sistema de mercado capitalista é essencialmente evolutivo: está sempre mudando, criando novos métodos de produção, novos produtos e novos mercados. Pela sua própria natureza, “incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição Criativa é o fato essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que têm de viver todas as empresas capitalistas.” (1984: 113). E nesse processo de destruição criativa vai deixando para trás e de lado aqueles que não tiveram força suficiente para enfrentar a concorrência dos mais fortes ou dos que não conseguiram sobreviver em novos ambientes econômicos. Para compensar essa lógica da concorrência do mercado, as sociedades capitalistas liberais se utilizaram do pilar da democracia, que tem por natureza uma dinâmica mais inclusiva. A luta histórica pela ampliação dos eleitores – a princípio somente homens proprietários, depois todos os homens livres, depois as mulheres, etc. – em nome dos valores fundamentais da democracia é um exemplo disso. O modelo de social-democracia implantado na primeira metade do século XX em diversos países foi, sem dúvida, uma resposta prática e teórica para o “lado sombrio” do viver em função da acumulação de mais riqueza. Podemos dizer que os programas sociais como saláriodesemprego, educação e saúde gratuita, auxílio-moradia e outros eram uma
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forma de solidariedade institucionalizada da sociedade para com os seus membros economicamente mais fragilizados. Este pacto social foi possível, isto é, as sociedades e os governos lograram impor altos impostos aos mais ricos (sem falar na exploração econômica dos países colônias e do Terceiro Mundo) para financiar programas sociais por causa do conceito de progresso que emergiu do processo de secularização. Um dos aspectos inovadores fundamentais da secularização, além da separação entre o Estado e a Igreja, foi “a transformação da escatologia em utopia: planificar a história torna-se tão importante quanto conquistar a natureza.” (Marramao, 1995: 103). O mundo moderno assume a tarefa de construir no interior da história, no futuro, o “reino dos céus” que na idade média era esperado para após a morte (escatologia). O que antes era “trabalho” de Deus, a salvação, o mundo moderno considera a missão do ser humano: a construção de um mundo utópico, onde se viveria “liberdade, fraternidade e igualdade”. Por isso, Alain Touraine diz que a modernidade “transfere o sujeito de Deus para o homem. A secularização não é a destruição do sujeito, mas sua humanização. Ela não é somente desencantamento do mundo, ela é também reencantamento do homem.” (1994: 243). A história foi compreendida como um objeto a ser moldado ou levado à sua plenitude pelos novos sujeitos históricos: a burguesia liberal, no capitalismo, ou o partido comunista e o proletariado, no socialismo marxista. Essas duas versões da modernidade compartilharam do mesmo mito: o do progresso. O mito de que o futuro pode ser plasmado pela práxis humana e que a história caminha, pelo progresso contínuo, em direção ao seu ápice, à plenitude. E, com isso, pensaram em um ser humano sem limites, com capacidade de acumulação ilimitada da riqueza e a construção de uma sociedade onde todos pudessem realizar plenamente o que cada sistema filosóficoeconômico-político pensava ser a essência do ser humano. Foi em nome dos valores da modernidade que muitos movimentos sociais e políticos se levantaram na América Latina e em outros países do terceiro mundo nos finais dos anos 1950 e nos anos 1960. Diante da crescente desigualdade social e econômica entre os países ricos e os países pobres e entre os ricos e os pobres no interior do país e diante da opressão política, muitos se levantaram em nome da liberdade, igualdade e fraternidade: as promessas e os objetivos do mundo moderno. É nesse período, quando o núcleo mítico-ético do próprio sistema social vigente estava em cheque,
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que vimos na América Latina o surgimento de teorias originais e poderosas como a Teoria da Dependência, a Teologia da Libertação e a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire. Era o tempo em que o sentido da educação e da própria vida em sociedade era objeto de debate e estudo. A partir dos meados de 1970, como uma reação a esses movimentos e teorias surge no cenário internacional uma nova resposta para o “lado sombrio” do sentido de vida capitalista: o neoliberalismo. Em 1974, Friedrich August von Hayek, o “papa” do neoliberalismo, ganha o Prêmio Nobel de Economia. No discurso por ocasião do recebimento do prêmio, ele apresentou as teses básicas que iriam dominar o mundo a partir dos anos 1980, quando Ronald Reagan e Margaret Tatcher assumem poder nos Estados Unidos e Inglaterra, respectivamente. O título da conferência de Hayek, “Pretensão do conhecimento” (1980), já revela a intenção do autor:discutir o que a tradição cristã chamou de pecado original. O conceito de pecado original não trata do primeiro pecado cronológico da humanidade, mas sim do pecado que está ou estaria na origem de todos os outros pecados, ou o mal que está na origem de todos os males. A interpretação da narrativa de Adão e Eva no Jardim do Éden que predominou na cristandade diz que a pretensão de Adão e Eva de conhecer tanto quanto Deus foi o pecado que os expulsou do Paraíso e que, por isso, introduziu na história humana os pecados, os sofrimentos e as dores5. Diante da crise econômica e social que vivia o mundo capitalista nos anos 70, Hayek defende a tese que a causa fundamental daquela situação eram as políticas econômicas de governos que, com suas metas sociais, intervinham no mercado para solucionar os problemas sociais. Isto é, a causa da crise é a tentativa de solucionar problemas sociais através de intervenção na economia. A sua argumentação se baseia em um princípio epistemológico: por causa da complexidade do mercado, não temos a possibilidade e nem a capacidade de conhecê-lo perfeitamente. Toda tentativa de solucionar problemas sociais pressupõe um certo grau de intervenção na economia, mesmo que seja somente através de sistemas de impostos, que taxando mais os mais ricos possibilita recursos para programas sociais. E toda intervenção na economia pressupõe conhecimento do mercado. Como o mercado não pode 5.
Para uma visão alternativa desse mito, vide, por ex., C. Mesters, Paraíso terrestre: saudade ou esperança, Petrópolis: Vozes. 90
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ser conhecido de modo suficiente, essa pretensão de conhecimento do mercado levaria, segundo os neoliberais, a uma situação de menor eficiência do mercado que desemboca em crises econômicas. E as crises econômicas geram mais crises sociais e mais problemas para os pobres. Em resumo, a causa do aumento da pobreza e dos problemas sociais seria a tentativa de solucionar conscientemente os problemas sociais. A solução seria a não-intervenção no mercado, isto é, deixar que o mercado funcione com total liberdade. O neoliberalismo abandona dois dos principais pilares do mundo moderno liberal: (a) a ação consciente e intencional dos seres humanos planejando e construindo uma sociedade (b) onde todos e todas possam viver a liberdade, fraternidade e a igualdade. A promessa neoliberal é que o mercado, se deixado funcionar livremente, irá produzir de um modo não intencional mais benefícios econômicos e sociais do que qualquer outro tipo de organização social. Além da práxis como caminho para uma nova e melhor sociedade, o neoliberalismo abandona também o projeto da modernidade de uma sociedade boa para toda a população. A promessa agora é um mundo de mais consumo e liberdade econômica para aqueles que sobreviverem na concorrência do mercado. “Mercado livre” se tornou a grande bandeira e a grande promessa para todos os problemas sociais. A solidariedade social não deve ser mais um produto da ação social e das políticas institucionais, mas sim resultado nãointencional do mercado. Isto é, para os neoliberais, a solidariedade que funciona não é aquela que é resultado de planos e ações organizadas pela sociedade e o Estado, mas somente aquela que seria produzido pela dinâmica do mercado, que com seus efeitos não-intencionais, como que uma “mãoinvisível”(Adam Smith), geraria os resultados buscados pelos programas sociais. Para essa ideologia não há solidariedade eficiente possível fora das leis do mercado. Em resumo, as boas intenções solidárias prejudicam os pobres, as duras leis do mercado os salvam. Assim, o “pecado original” ou a grande tentação que devemos evitar é a “tentação de fazer o bem”. Aliás, este é o título de um romance escrito por Peter Drucker, o guru dos gurus em administração de empresas. O livro narra a história de um padre reitor de uma universidade católica, Heins Zimmerman, que se mete em problemas porque resolveu ajudar um professor incompetente para o cargo que ocupava. Quando o problema chega até ao bispo O’Malley, ele diz: “‘Abençoados sejam os humildes’, dizem os Evangelhos. Mas, sabe, Tom [padre, seu secretário], nunca vi os humildes fazerem 91
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uma contribuição ou realizarem alguma coisa. Os realizadores são sempre pessoas que se têm em conta suficiente para imporem altas exigências sobre si mesmos, gente altamente ambiciosa. Esse é um enigma teológico de que desisti há muito tempo.” (Drucker, 1986: 52-53). Após essa teologia bem compatível com a lógica do sistema de mercado, o bispo recomenda ao seu secretário que ajude o reitor dizendo que “sua única falta foi ter cedido à tentação de fazer o bem e agir como cristão e padre, ao invés de agir como um burocrata.” (Ibidem: 136). Um bom padre, um bom cristão, é aquele que supera a tentação de fazer o bem e age como um burocrata, isto é, cumpre as “leis do mercado”. Não se pode pretender conhecer as dinâmicas do mercado e querer ir contra as suas leis. Na verdade, o que o livro de Drucker e tantos outros que defendem cegamente a lógica do mercado propõem é a substituição de uma espiritualidade considerada ultrapassada e incompatível com o sistema de mercado por uma outra mais compatível com o espírito do capitalismo. Pois como dizia Roberto Campos, um dos economistas mais importantes no Brasil no último quarto do século passado, “a modernização pressupõe uma mística cruel do desempenho e do culto da eficiência” (1985: 54). “Mística” para superar a tentação e assumir um novo culto. “Cruel” porque esse novo culto significa colocar a vida humana subordinada à lógica da acumulação, do mais lucro para ter mais lucro. Por tudo isso, a grande proposta para todos os problemas econômicos, sociais e políticos é privatizar e, com isso, diminuir o tamanho do estado e a sua capacidade de intervenção. O estado e os políticos são considerados os grandes vilões e culpados de todos ou quase todos os problemas da sociedade. Corrupção no governo? É porque ainda não se privatizou o “resto”. É como se nos setores privados não houvesse o fenômeno da corrupção, como se uma sociedade pudesse funcionar sem um governo e o estado e, o mais importante, como se o interesse das empresas privadas de obter mais lucro fosse sempre e necessariamente idêntico às necessidades e interesses da sociedade e de todos os segmentos da população. Mais ainda, se o mercado tomar conta de tudo, quem irá atender ou se preocupar com as necessidades e as possibilidades de um grande setor da população que está fora do mercado, os excluídos do mercado, os não-consumidores? Pois como diz Paul A. Samuelson, Prêmio Nobel de Economia de 1970, no sistema de mercado as mercadorias devem ir aonde há maior número de votos ou de dólares. E que por isso, “o cachorro pertencente a J.D. Rockfel92
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ler pode receber o leite que uma criança pobre necessita para evitar o raquitismo”. (Samuelson, 1977: 45). Ele reconhece que do ponto de vista ético é terrível, mas não do ponto de vista do mercado. Ora, crianças raquíticas ou pessoas pobres podem não ser consumidoras, tratadas como não-gente ou pessoas de segunda categoria pela cultura de consumo, mas são seres humanos com dignidade fundamental de todos os seres humanos. Há em toda essa lógica e argumentação um grande problema teórico. Se é verdade que, por causa do seu alto grau de complexidade, não podemos conhecer o mercado de um modo perfeito ou algo parecido com isso, como podemos saber que o mercado irá sempre produzir o melhor resultado possível? Não é exatamente porque realmente não podemos conhecer perfeitamente o funcionamento do mercado nas sociedades tão amplas e complexas como a nossa que precisamos estar atentos para os possíveis problemas econômicos e sociais? Se respondermos sim à segunda pergunta, precisamos pensar em metas sociais e em intervenções e regulações. Mas se respondermos não, como fazem os neoliberais, temos que voltar à primeira pergunta: como podemos saber que o mercado livre irá sempre produzir mais benefícios que outras formas de organização econômica? Aceitando o princípio epistemológico assumido por Hayek de que não podemos conhecer suficientemente o mercado, não podemos responder a essa pergunta. O que os neoliberais fazem é um ato de fé no mercado! Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia de 1976, diz, por exemplo, que “subjacente à maior parte dos argumentos contra o mercado livre está a ausência da crença (fé) na liberdade como tal” (1985: 23), liberdade que ele identifica com a liberdade do e no mercado. Eles creem que o mercado livre irá sempre produzir o melhor resultado para a sociedade. Não há como justificar ou provar teoricamente isso. O que eles fazem na prática é criticar o modelo socialista, que não funcionou bem, para afirmar que o mercado livre é a única saída. Só que a crise do socialismo não prova que não poderá haver nada melhor do que o sistema de mercado de corte neoliberal. Hayek (1990), nos últimos anos de sua vida, tentou justificar a sua posição apelando para a teoria da evolução. O mercado seria resultado do processo de evolução das espécies que teria continuado na evolução da cultura humana e desembocado no mercado. Eu analisei em outro livro (Sung, 2002a) o uso da teoria da auto-organização e da evolução para legitimar a ideologia neoliberal e não vou retomar aqui esse tema, mas só quero destacar o fato de que mesmo apelando para a teoria da evolução é preciso ter 93
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fé na evolução cultural como produtora da melhor solução possível para os nossos problemas sociais. No fundo, no coração dessa ideologia está a fé no pretenso caráter sempre benéfico do mercado e a subordinação de tudo às leis do mercado (Assmann & Hinkelammert, 1989; Sung, 1994 e 1998). 5. “A religião da vida cotidiana”. O sentido fundamental da vida na nossa civilização é o de viver em função de acumular mais e mais riquezas, pois essa acumulação ostentada através de mercadorias-signos, especialmente de griffes, nos garante o reconhecimento social, a autoestima e a identidade que nos permite situar em posições de destaque e fazer parte de grupos bem posicionados na sociedade. A complementaridade ao nível macrossocial desse sentido de vida é a ideologia neoliberal que prega que não há salvação fora do mercado, que só o mercado livre pode nos garantir mais eficiência para maior acumulação de riqueza. A constante luta para ostentar mais do que o outro e provocar a inveja nos “amigos e especialmente nos nossos inimigos” faz eclipsar qualquer sentimento de compaixão com a dor e o sofrimento das outras pessoas – principalmente se forem não-consumidoras. A fé no mercado faz parecer sem sentido e contraprodutiva qualquer proposta de solidariedade com os grupos marginalizados e excluídos do mercado e das benesses da sociedade. Mesmo que a pessoa mantenha-se no sentimento de compaixão, se não abandonar o mito neoliberal restringirá a sua visão e ação de solidariedade ao âmbito das relações interpessoais ou ao nível micro-social. Sem dúvida, também importantes, mas não suficiente para solucionar os graves problemas sociais do país e também não para romper com aspectos perversos e errôneos da fé no mercado neoliberal. Encantar a vida através do mundo do consumo e a fé no mito do mercado livre formam pilares essenciais de uma civilização que colocou o mercado no lugar antes ocupado pelo sagrado das religiões tradicionais. As religiões tradicionais saíram ou perderam a força na esfera pública das nossas sociedades, mas as questões fundamentais do ser humano e da sociedade, que antes eram tratadas por essas religiões, não perderam a sua vigência. Agora são tratadas e dirigidas pelo mercado. O capitalismo se tornou uma religião da vida cotidiana (Marx), com suas devoções, espiritualidades, mitos e ritos, só que com a vantagem de não receber as críticas feitas às religiões.
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Nessa “religião”, não há lugar para a solidariedade ao nível macro-social com os mais pobres ou excluídos. Pode-se falar sobre isso, mas poucos defendem mudanças significativas na sociedade e no sentido da vida para que realmente possamos superar os graves problemas sociais, pois isso seria reconhecer a dignidade fundamental dos não-consumidores, o que significaria aceitar a igualdade fundamental entre todas as pessoas, rica ou pobre, consumidora ou não. Isto colocaria em xeque toda a nossa cultura de consumo, todo o nosso sistema de classificação social e construção de identidade pessoal. Afinal, como diz Bauman, vivemos em um mundo onde “cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como produto de predisposições ou intenções criminosas – abusos de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem” onde “os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação – como a própria encarnação do pecado”, (1998: 59). Se a solidariedade com pessoas não-consumidoras não tem muito sentido, menos sentido tem falar em solidariedade com a própria natureza, com os outros seres que juntos formamos e fazemos possível a vida no planeta Terra. Acumulação ilimitada ou o desejo de consumo sem fim não é compatível com um verdadeiro respeito ao ambiente e a aceitação dos nossos limites humanos e os limites do meio ambiente. Discursos em defesa do meio ambiente ou em favor da solidariedade que não rompem com o sentido último da vida e o núcleo mítico da nossa sociedade são apenas discursos para criar uma boa imagem, para manter uma autoimagem de pessoa politicamente correta, mas nada muito mais do que uma mera aparência. Bem de acordo com a nossa sociedade centrada nas aparências e ostentações.
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CAPÍTULO 6 O encantamento do consumo e o desencantamento da educação
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1. A educação em um mundo des/encantado. Muitos que estão mais acostumados com a ideia de que o mundo moderno é um mundo secularizado e desencantado e que, por isso, a ciência e a razão substituíram a religião e os mitos na função de explicar o mundo e dar o sentido à vida devem ter achado estranho o nosso capítulo anterior. Interessante, pode ser, mas estranho. Mesmo aqueles que assumem a tese de que vivemos em um mundo pós-moderno, um mundo que se desencantou das promessas da modernidade e da sua razão e ciência moderna, podem ter dificuldade em aceitar a nossa análise porque a nossa hipótese é que vivemos em um mundo encantado, regido por mitos, e não em um mundo desencantado. Isto não quer dizer que não haja nenhum tipo de desencantamento. Pablo Gentili e Chico Alencar, no livro Educar na esperança em tempos de desencanto, afirmam que “’desencanto’, como toda sua densidade trágica, talvez seja uma boa palavra para definir os tempos que nos cabem viver”. E definem o desencanto como “desilusão, perda de expectativa, decepção e, de uma certa maneira, crise do pensamento utópico”. Para eles, “o desencanto é, por assim dizer, um subproduto do pragmatismo que, por sua vez, costuma ser o eufemismo usado para definir o conformismo, o ceticismo, a aceitação anestesiante das circunstâncias que temos a sorte (ou a desgraça) de enfrentar. ‘Desencanto’ significa sempre, de uma outra forma, tristeza.” (2001: 11) Essa concepção de desencantamento coloca ênfase ou o foco no aspecto mais subjetivo do processo, os efeitos sobre o ser humano e o seu estado emocional, e contrapõe o pensamento utópico, que seria encantado, ao pragmatismo, que é identificado com o conformismo e o ceticismo. Algumas das razões para esse desencantamento seriam: a) o canto das sereias dos avanços científicos e tecnológicos produziu um dos mais brutais e sangrentos séculos da humanidade, o século XX; b) o impacto do terror com o ataque aos Estados Unidos em 11 de setembro 2001 e a guerra contra o terror do governo Bush que marcam o início do século XXI; c) o fantás99
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tico desenvolvimento tecnológico só beneficia uma minoria da população e criou uma situação de desemprego estrutural; d) o ceticismo que nega as utopias; e) o fracasso do socialismo. (Ibidem: 11-15) Entre essas causas, Gentili e Alencar estão mais preocupados, no livro, com os efeitos do desencantamento sobre os jovens. A crise das utopias encontra na população juvenil sua expressão mais perversa. O destino do homem feliz não é a emancipação da sociedade. De Marcuse poucos se lembram. Ganhar dinheiro, aspirar aos midiáticos sonhos de consumo ou deixar-se hipnotizar por uma estética anoréxica parece mais tentador que desejar ‘encontrar a praia debaixo dos paralelepípedos’, expressão emblemática das rebeliões juvenis dos anos 60 e 70.” (Ibidem: 14) Um pequeno comentário antes de seguir com a exposição do pensamento desses dois autores. Eles reconhecem que os jovens perderam ou abandonaram a utopia que movia a geração dos anos 1960/70, a emancipação da sociedade, mas não perderam totalmente os sonhos e motivações para as suas vidas: “ganhar dinheiro, aspirar aos midiáticos sonhos de consumo ou deixar-se hipnotizar por uma estética anoréxica”. Deixar-se hipnotizar é outra forma de dizer que foram encantados, estão sob efeitos de um encantamento que lhes tira a plena capacidade de uma decisão racional e consciente (se é que existe ou é possível uma decisão totalmente racional e consciente). Os jovens podem não se encantar com lutas pela emancipação, mas se encantam, ou pelos menos são tentados, pelo consumo de bens apresentados de forma enfeitiçante e fascinante pelas propagandas e pelos estilos de vida veiculados pela mídia. Estilos esses que vêm sempre associados ao consumo de certas mercadorias ou serviços. No fundo, eles reconhecem a diferença entre estar desencantado com o projeto de emancipação da sociedade e estar totalmente desencantado com a vida, por isso afirmam: “Bem poderia dizer-se que o desencanto dos jovens e, de uma maneira geral, o declínio das aspirações militantes da população adulta, devem-se ao estrondoso fracasso do socialismo, um projeto que prometeu realizar os sonhos de liberdade, justiça e igualdade negados pela realidade excludente do capitalismo. [...] a crise do socialismo realmente existente colocou em xeque o próprio ideal emancipador que o havia inspi100
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rado”. (Ibidem: 15) O desencantamento é com o projeto de emancipação e, particularmente, com o socialismo. Eu penso que eles mesmos perceberam isso, mesmo que não muito claramente, pois logo a seguir afirmam: “Para uma boa parte dos que viverão o século XXI, desencantar-se com o socialismo não significará, provavelmente, encantar-se com a barbárie que propõe o capitalismo na era global.” (Ibidem: p. 16) O que mostra que o capitalismo encanta, mesmo que esse encantamento seja criticado pelos autores como barbárie. Com isso, pudemos ver, através dos autores que afirmam que vivemos em um mundo desencantado, que existe um desencantamento com uma proposta ou uma visão da vida e da história, mas a sociedade continua oferecendo outro tipo de encantamento. Afinal, nós humanos não gostamos de viver em um mundo totalmente frio, sem nenhum encanto. Se é que é possível um grupo social viver um longo período de tempo sem nenhum tipo de encantamento. Essa distinção entre estar desencantado com a promessa e o projeto de emancipação e o desencantamento total não deve nos levar ao equívoco de pensar que não existe desencantamento em outras áreas da nossa vida e da sociedade. O encantamento do consumo não logra encantar todos os aspectos e espaços da vida. Devemos reconhecer, com Gentili e Alencar, que o campo educacional “sofre também a invasão do desencanto” (Ibidem: 17) Não somente em escolas públicas, mas cada vez mais também nas escolas privadas há um desencanto tanto por parte dos/as educandos quanto dos/ as educadores. O desencanto se expressa na perda do sentido próprio do processo educacional, que vai sendo reduzido cada vez mais ao critério econômico-financeiro. Muitas escolas privadas fazem da atividade educacional um empreendimento comercial sem diferença em relação outros tipos de negócios e implantam, na tentativa de não perder os seus “clientes”, a famosa máxima: “clientes sempre têm razão”. A revista Veja publicou recentemente uma reportagem sobre esse assunto abordando a crescente indisciplina nas salas de aula das escolas particulares que tem gerado medo dos alunos por parte dos/as professores/as. (Costa, 2005). Uma das explicações para essa subversão do senso de autoridade é o fato de que os alunos vêem o professor como uma espécie de empregado ou prestador de serviço pago pelos seus pais. Visão que é reforçada pela postura comercial das escolas. A reportagem traz o depoimento da Iole G. Barros, professora aposentada: “ouvi em muitas reuniões com coordenadores o lembrete de que os pais e os alunos 101
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devem ser tratados como clientes e, como tais, têm sempre razão”. (Ibidem: 63). Só que, por definição, a educação pressupõe que o educando nem sempre tem razão e, por isso, precisa ser educado. O menino, quando vai a uma lanchonete como um cliente, tem “razão” ao pedir o sanduíche que lhe apetece, mas quando ele está na escola, mesmo na condição de cliente, ele não tem razão em pedir uma prova fácil só para ter a satisfação de uma nota alta. Mesmo que consideremos os pais, e não os alunos, como clientes da escola, nem sempre o cliente tem razão. Pois, muitas vezes os pais, por diversas razões, querem que os/as educadores/as tratem o seu filho ou a sua filha de uma maneira que tem mais a ver com um tratamento nas lojas do que no processo educacional. E a escola, para não perder um bom cliente – aquele que paga as mensalidades em dia – pressiona o corpo docente para transformar as relações educacionais em um mero relacionamento comercial. Este tipo de problema não ocorre somente nas escolas do ensino fundamental ou médio. Uma ex-aluna minha do mestrado teve uma experiência muito semelhante em um famoso curso de formação de executivos (MBA) ao qual fora convidada para dar aulas. Após uma prova considerada muito difícil pelos alunos, um reclamou da sua nota que considerou inaceitável. Após as ponderações da professora sobre as respostas da prova, esse jovem executivo usou por fim o seu principal argumento: “eu sou o cliente e pago o seu salário, você não pode me tratar dessa forma!” Nessa discussão ele também deixou escapar nas entrelinhas que o salário dele era muito maior do que o dela e assim tentou desqualificá-la no diálogo. Final da história? Pressionada pela direção para tratar mais bem os clientes, ela resolver pedir a demissão. Na maioria das escolas públicas, a situação é ainda mais difícil. As difíceis condições do ensino nas escolas de ensino fundamental e médio são por demais conhecidas para entrarmos em pormenores aqui. (As universidades públicas têm um regime e uma situação completamente diferente.) Eu quero chamar atenção para um aspecto que tem relação direta com o nosso tema: a escola pública como um meio para aumentar o padrão de consumo. Um dos discursos mais comuns para incentivar ou obrigar crianças e jovens pobres a levarem a sério o estudo é: “se não estudar, não vai conseguir bom emprego e não vai poder comprar as coisas que você deseja comprar!” Este tipo de “incentivo” pressupõe e veicula duas ideias básicas: a) o sentido de estudar é somente ou fundamentalmente ganhar mais dinheiro; b) o 102
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sentido último da vida é consumir o que deseja ou o que a mídia lhe indica como o caminho para ser reconhecido na sociedade e para a sua humanização. Isto é, reforça os valores fundamentais da nossa cultura de consumo e reduz a educação ao fator econômico. Não que conseguir um bom emprego não seja importante na vida e na realização da pessoa, mas nesse tipo de frase o conseguir bom emprego é bom só porque possibilita consumir mais. Assim, ir à escola e estudar só tem sentido e valor na medida em que serve como meio para realizar os desejos de consumo. O aprender e conhecer não teria valor em si e não seria um fator importante na humanização independente do padrão de consumo. Só que com o desemprego estrutural que atinge os nossos países chamados “em desenvolvimento” (e também em diversos países ricos), o diploma não é garantia de emprego, muito menos de salário suficiente para comprar tudo o que se deseja. Com isso, a escola apresentada dessa forma perde sentido, e como vimos antes, escola sem sentido se torna uma prisão e na prisão os “presos” se comportam como tais, se rebelando contra as regras e tarefas “sem sentidos” impostas sobre eles. Jovens pobres que não tiveram ajuda para romper com os critérios da cultura de consumo se veem como “consumidores falhos” (Bauman, 1996) e têm a sua frustração aumentada ao freqüentarem escolas que, mesmo inconscientemente, reafirmam os valores dessa cultura. Baixa autoestima, frustração, escola sem sentido, professores desestimulados por causa dos baixos salários – que os alunos percebem como um reforço à ideia de que só têm valor as atividades que rendem um “bom” dinheiro – e poucas experiências prazerosas de aprendizagem por causa de didáticas inadequadas, etc: um coquetel pronto para indisciplina, violência e fracasso escolar. Diante de uma situação assim, faz todo sentido o objetivo do livro escrito por Gentili e Alencar: “tentando fugir do desencanto que insiste em colonizar nossos corpos e almas, os escritos que se seguem são um libelo contra o conformismo e uma aposta nas possibilidades de resignificação dos sentidos da educação e da escola..” (2001: 23). Uma aposta contra a colonização dos nossos corpos e nossas almas! Não mais uma certeza da emancipação, mas uma aposta nas possibilidades de resignificação dos sentidos que nos mobilize para uma nova e permanente luta pela humanização e por uma sociedade mais humana. Como a síntese dessa luta, esses dois autores propõem: “Esperança versus Desencanto, eis o duelo deste início de século XXI.” (Ibidem: 20). Só 103
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que o mundo não vive um desencanto, mas um encanto que nos desumaniza. Se não percebermos isso, a nossa luta será ineficiente, pois tentaremos encantar vidas e o mundo que pensamos serem desencantados, mas que não estão. Assim, não enfrentaremos o primeiro desafio: o de revelar que o mundo vive sob um encanto, mesmo poucos tenham consciência disso. Encantamentos opressivos e desumanizadores nunca se apresentam como um encantamento, mas sim como a única realidade possível. Basta vermos o discurso neoliberal e das propagandas. O duelo não é entre esperança e desencanto, mas sim entre um encantamento desumanizador e outro humanizador. O encantamento do consumo e a fé no mercado liberal geram também as suas esperanças: a esperança da acumulação ilimitada de riqueza e do consumo “absoluto”. Contra essa esperança, precisamos propor uma esperança na realização de um sentido mais humano para as nossas vidas, para a nossa educação e, assim, em uma sociedade mais justa, solidária e humana. No capítulo anterior, eu já mostrei algumas pistas para revelar o caráter encantador, fetichizante, da cultura de consumo e do neoliberalismo. Neste capítulo vamos propor algumas reflexões para ajudar na crítica a esse tipo de encantamento. 2. Educação para o consumo e a cultura midiática. Antes de iniciar essa crítica, eu quero, para evitar mal entendidos, reafirmar aqui uma posição que tenho desenvolvido em todo livro: a crítica aos mitos e ao caráter encantador da cultura de consumo e do neoliberalismo não pode ser entendida como uma crítica absoluta ou metafísica, isto é, uma negação de todos os tipos de mitos, religiões, espiritualidades ou “encantamentos”. Pois, como diz Morin, “Sempre há, por toda parte no planeta, a força motriz dos mitos e das religiões. [...] O ser humano não pode viver sem mito e será novamente possuído por antigos ou inéditos. Esperemos que não sejam utilizados a serviço de novas opressões e de novas mentiras.” (2002: 216) A questão não é se somos a favor ou contra mitos, espiritualidades e religiões; mas que tipo de mitos, religiões e espiritualidades. Em segundo lugar, precisamos lembrar que uma crítica profunda da acumulação da riqueza e do consumo como sentido último da vida não é algo fácil, pois esse sentido tem sido introjetado na nossa sociedade e nas nossas mentes desde há muito tempo. Uma economia baseada na produção cons104
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tante de novidades em quantidades massivas exige não somente uma organização econômica e industrial para isso, mas também uma população sedenta de novas mercadorias. Por isso, já em 1919, Edward A. Filene, um magnata de lojas de departamento em Boston, dizia que “a produção de massa exige a educação das massas, as massas devem aprender a comportar-se como seres humanos em um mundo de produção maciça” (Apud em Lasch, 1983: 101-102). Em outras palavras, as massas precisam ser educadas para a cultura de consumo. É claro que essa educação de um novo sentido de vida não se deu, em primeiro lugar, nas escolas. Esta é também uma das novidades do capitalismo. Nas sociedades pré-modernas e mesmo no início do mundo moderno, o sentido da vida era aprendido nas religiões e na família. Em ambientes rurais, não só o sentido da vida, mas os conhecimentos técnicos e operacionais necessários para o trabalho e a vida na sociedade também eram ensinados na família e em torno das igrejas, com os seus mitos e rituais religiosos. Era uma época em que não havia a separação entre o lar e o lugar do trabalho. Com o surgimento do capitalismo, ocorre uma separação entre o lugar de moradia, o lar, e o lugar de trabalho, a fábrica ou lojas. Com isso, as crianças não podem mais aprender um ofício acompanhando o trabalho dos mais velhos da casa, como costumava ser no mundo tradicional, mas devem ir às escolas para adquirirem um conjunto cada vez maior de informações e conhecimentos necessários para ingressar no mundo do trabalho e na vida social. Nesta fase inicial do capitalismo, o sentido da vida e os principais valores ainda continuam sendo ensinados nas igrejas e nas famílias. Com o surgimento da produção em massa e a necessidade de educar o povo para um consumo massivo, surge um problema: quem irá educar o povo para esse novo sentido de vida, novos valores e novos comportamentos? As religiões, no Ocidente e também no Oriente, não são os meios mais apropriados para isso. Pois, todas as grandes religiões nasceram em sociedades pré-modernas e ensinam que o trabalhar e ganhar dinheiro devem estar em função de uma boa vida, e não o contrário, e que o sentido último da vida é buscar a Deus ou um estado de perfeição espiritual. Sentido e valores que não são compatíveis com as novas necessidades do capitalismo. As escolas modernas também não serviam para essa nova tarefa porque a estrutura curricular para cumprir a sua tarefa de equipar os jovens com os conhecimentos e informações necessários para o mundo do trabalho estava baseada nas ciências modernas. E estas pretendiam ser eticamente neutras 105
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e não tratar de questões como o sentido da vida. Afinal, uma das tarefas assumidas pelas ciências modernas foi a de desencantar o mundo, isto é, de nos oferecer uma visão de universo, da natureza e da vida despida de todo e qualquer tipo de metafísica religiosa ou racional que tivessem a pretensão de dar um sentido uno e objetivo para o mundo; “um universo reduzido a ‘mecanismo causal’, totalmente analisável e explicável, incapaz de qualquer sentido objetivo” (Pierucci, 2003: 145). Além disso, uma mudança tão radical no comportamento, nos valores e no sentido de vida não é resultado de uma exposição teórica, mas sim de um complexo processo de sedução e convencimento, que passa pela substituição de velhos símbolos e mitos tradicionais pelos novos e, principalmente, pela introdução de novos modelos do que é ser humano, pessoas que são apresentadas como portadoras desse “ser” que almejamos e que vão nos indicar o que desejar e fazer para nos realizarmos como seres humanos. Um Francisco de Assis, por exemplo, que trocou a riqueza do seu pai pelo cuidado dos leprosos e pobres, ou um Calvino, com a sua vida austera e puritana, não podem mais ser os modelos de ser humano a serem imitados ou seguidos. Por isso, a importância da propaganda na “educação” das massas para o consumo. Como diz Lasch, a propaganda promove “o consumo como um modo de vida. Ela ‘educa’ as massas para ter um apetite inesgotável não só por bens, mas por novas experiências e satisfação pessoal. Ela defende o consumo como a resposta aos antigos dissabores da solidão, da doença, da fadiga, da insatisfação sexual; ao mesmo tempo cria novas formas de descontentamentos peculiares à era moderna.” (Lasch, 1983: 102) Nesse processo “educacional” participam também filmes, novelas, revistas, etc., todos meios de comunicação de massa. No capitalismo atual, os grandes conglomerados empresariais de comunicação, informação e entretenimento e as grandes agências e campanhas de publicidade produzem e disseminam o sentido de vida, a visão do mundo, os valores e comportamentos a serem seguidos. Essas produções culturais são absorvidas pelos consumidores que vão assimilando e assumindo esses valores, comportamentos e padrões estéticos, internalizando modelos de pessoas felizes e promessas da realização como ser humano. Esse processo pelo qual a produção e a transmissão das formas simbólicas que refletem as experiências e visão de mundo das pessoas é cada vez mais mediada pelos meios de comunicação de massa e a cultura que “acon106
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tece” na e através da mídia pode ser chamada de “cultura midiática”. Podemos dizer que a noção de cultura de consumo se refere mais ao “conteúdo”, enquanto que a noção de cultura midiática se refere mais à “forma” como o conteúdo – a cultura de consumo – é socializado na nossa sociedade hoje. Nesse sentido, a cultura contemporânea é marcada profundamente por essa articulação entre a cultura midiática (a forma da socialização) e a cultura de consumo (o conteúdo socializado). A cultura de consumo veiculada nos meios de comunicação constitui hoje um meio ambiente que fornece às pessoas, desde a infância, (Moreira, 2003) as coordenadas para se localizarem no mundo, para desenvolver o seu senso de pertencimento e de realidade, e conferir o sentido à existência humana. O que significa que ela tem um papel fundamental na elaboração das crenças e desejos das pessoas hoje. Em outras palavras, a concepção e a difusão do que se entende por humanização e o sentido último da vida não é mais um monopólio das religiões, como era no passado, mas é cada vez mais um “serviço” da cultura midiática. O fato de a cultura de consumo ter competido e, em grande parte, substituído, os valores e as doutrinas das religiões tradicionais não significa, como vimos, que ela tenha um caráter antirreligioso. Pelo contrário, é exatamente por portar dentro de si a dimensão simbólico-religiosa que consegue ser tão atraente e fascinante. Se não enfrentarmos esse desafio, será muito difícil reencontrar um sentido para educação que não seja um mero meio para reproduzir a cultura de consumo e a lógica da acumulação que dominam a nossa sociedade. 3. As contradições e o paradoxo do encantamento do consumo. Não é uma tarefa fácil e simples criticar a cultura de consumo e nem é meu objetivo fazê-lo aqui de modo extenso. As reflexões que seguem têm como objetivo apresentar o problema e algumas possibilidades de crítica. Para não alongar demasiadamente, vou propor algumas reflexões a partir de três textos que podem nos ajudar a perceber algumas facetas da complexa questão do consumo e o sentido último da vida. Antes alguns comentários. O primeiro, é importante evitarmos uma perspectiva moralista que credita ao consumismo a maioria dos problemas existenciais das pessoas e da sociedade e propõe uma vida baseada no “mínimo necessário” ou no “suficiente”. Isto porque a própria noção do “mínimo 107
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necessário” ou do “suficiente” depende do contexto social e histórico e dos valores assumidos pelos grupos. Por exemplo, para um monge budista ou um frade franciscano do século XIII que querem viver as suas vocações de uma forma radical, o suficiente pode ser um pouco de comida diária, uma muda de roupa e um lugar para passar a noite. Enquanto que para um pai de família de classe média com filhos na idade escolar em um país rico, o mínimo provavelmente será muito mais, incluindo carros, telefones, renda suficiente para as despesas “mínimas” de uma família assim. Um segundo comentário é sobre a partir de onde podemos fazer a nossa crítica. Nas culturas pré-modernas religiosas, que ainda sobrevivem em diversos grupos nos dias de hoje, a crítica poderia ou deveria ser feita a partir das suas doutrinas religiosas consideradas reveladas por Deus (seja o do cristianismo, do judaísmo, do islamismo, etc.) ou por seres sobrenaturais ou mesmo ensinadas por pessoas iluminadas (como budismo). Ou então a crítica poderia ser feita a partir de uma noção da verdadeira “essência” ou “natureza” do ser humano elaborada por uma determinada filosofia em nome da razão. Nesses dois casos, tomaríamos os valores da cultura de consumo e as compararíamos com as verdades “objetivas”. O problema é que nem a religião (na verdade uma determinada religião) e nem a razão (uma determinada corrente filosófica) são autoridades aceitas por todas as correntes de pensamento. Primeiro precisaria provar que existe essa verdade objetiva e depois mostrar que a versão apresentada por essa corrente religiosa ou filosófica tem a verdadeira interpretação dessa verdade objetiva. Uma tarefa quase impossível hoje diante do pluralismo religioso e cultural em que vivemos e diante da crítica pós-moderna às pretensões de se obter pela razão humana a verdade definitiva sobre a “essência” das coisas ou do ser humano. Essa impossibilidade ou dificuldade não deve nos levar a desistirmos da fundamental tarefa de criticar – no sentido de analisar e discernir – o sentido último da vida da nossa cultura. Mesmo que não cheguemos a uma verdade objetiva, cabal e definitiva, podemos e devemos iniciar a nossa crítica. Não mais a partir de uma verdade externa ao problema, mas analisando a sua consistência interna. 3.1. Bons pais e pais brilhantes. O primeiro texto que quero analisar é um trecho de um livro que foi um grande best-seller na área educacional, Pais brilhantes, Professores Fascinantes. O 108
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autor Augusto J. Cury, procurando apresentar uma visão de educação que supere a visão consumista dos jovens de classe média e alta e a conivência dos pais com isso, diz Bons pais atendem, dentro das suas condições, os desejos dos seus filhos. Fazem festas de aniversário, compram tênis, roupas, produtos eletrônicos, proporcionam viagens. Pais brilhantes dão algo incomparavelmente mais valioso aos filhos. Algo que todo dinheiro do mundo não pode comprar: o seu ser, a sua história, as suas experiências, as suas lágrimas, o seu tempo. (2003: 21) Neste texto ele contrapõe os bons pais aos pais brilhantes. Os primeiros são “bons pais”, pois atendem os desejos de consumo dos seus filhos, mas não são brilhantes porque ficam somente nisso. Os segundos são brilhantes porque perceberam que isto não é suficiente e dão aos seus filhos algo mais valioso: o seu ser, a sua história o seu tempo. Á primeira vista, uma afirmação sábia: não basta atender o desejo de consumo dos filhos, é preciso participar com a sua vida na vida dele. Mas, se olharmos com cuidado, veremos que essa linha de raciocínio é demasiadamente linear, isto é, há um primeiro passo bom – atender os desejos de consumo – e depois um segundo passo, na mesma linha de progressão – participar com a sua vida na vida do filho – não entraria em nenhuma contradição ou conflito com o primeiro. O primeiro passo é bom e necessário, o segundo é melhor porque completa o primeiro. Só que, como vimos no capítulo I, a vida não funciona assim de uma forma tão linear e precisamos ver se não há nenhum conflito entre o primeiro e o segundo passo. O autor nos diz que há algo mais valioso que nem todo o dinheiro do mundo pode comprar: “o seu ser, a sua história, as suas experiências, as suas lágrimas, o seu tempo”. A sua história e as suas experiências revelam ao filho quem é o pai, a sua identidade para além da sua função profissional, papel de pai e o seu padrão de consumo. Antes que o pai conte suas histórias, o filho conhece o trabalho profissional, quanto sucesso ele obteve na sua carreira e o seu padrão de consumo – características fundamentais na formulação de identidade na nossa sociedade de consumo –, mas isto não significa conhecer a pessoa que é o seu pai. O ser do pai não é revelado pela capacidade de consumo ou a capacidade de financiar o consumo do filho, mas pela sua história, suas experiências, suas lágrimas e partilhar o tempo com o filho. 109
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Isto é, o “pai brilhante” é aquele que mostra que a cultura de consumo não é uma boa cultura, pois confunde o “ser” da pessoa com a sua capacidade de consumo. Talvez este mesmo “pai brilhante” tenha aprendido essa verdade através de experiências que lhe fizeram cair lágrimas, através de erros pessoais ou da incompreensão da sociedade. Assim, este pai partilhará essas experiências e esses aprendizados com o seu filho e passará bastante tempo com o seu filho até que ele aprenda a ver a vida, outras pessoas e a si mesmo para além dos preconceitos da cultura de consumo. E assim poderá ensinar que há muitas coisas que desejamos e pensamos que não podemos viver sem elas que são na verdade desejos introjetados em nós pela manipulação de marketing e propaganda, além da pressão social por causa da “moda”, que sempre é passageira. Poderá ensinar também que há desejos que não são bons e outros que não são realizáveis, porque somos seres capazes de desejar para além do possível e também capazes de discernir se um desejo nosso é um bom desejo ou não. Afinal, muitas vezes a realização de algum desejo nosso pode prejudicar ou colocar em perigo a vida de outras pessoas, do meio ambiente e a nós mesmos. Basta lembrarmos do nosso desejo de consumo e acumulação ilimitados que coloca em perigo o nosso meio ambiente e produz uma séria crise social. Por isso, ao contrário dos “bons pais”, o “pai brilhante” não atenderá todos os desejos de consumo do filho. Também para ensinar que o desejo de consumo sem fim é pernicioso e impossível, e que a frustração desse tipo de desejo faz parte da vida. Por fim, poderá ensinar que as pessoas não consumidoras, os pobres, também são pessoas, com dignidade e direitos, mesmo que não sejam consumidoras. Pois o ser do ser humano não procede do padrão de consumo. Assim sendo, ensinará ao seu filho que ele, o filho, tem a dignidade humana, não porque tem acesso ao consumo de bens caros, mas simplesmente porque é um ser humano capaz de se reconhecer como ser humano. Estes ensinamentos são realmente dignos de um “pai brilhante”. Os “bons pais” da citação, os que atendem todos os desejos de consumo dos filhos dentro das suas possibilidades financeiras, são bons segundo os critérios da cultura de consumo. Eles têm um critério básico para atender os desejos dos seus filhos: a sua capacidade financeira. Os “bons pais” não fazem loucura financeira, mas também não discernem os desejos de consumo dos filos. Pois aprenderam que satisfazer os desejos de consumo torna as 110
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pessoas mais felizes e mais humanas. Pelo menos mais do que aqueles que não podem consumir. Os “pais brilhantes” não são esses mesmos “bons pais” que se tornaram melhores fazendo algo a mais. Pelo contrário, “o pai brilhante” contradiz “o bom”, pois aprendeu a partir das suas experiências de vida, a partir da sabedoria adquirida na sua vida, que ser “bom pai” de acordo com a cultura de consumo é ensinar um sentido de vida que não nos humaniza. O problema do texto, apesar da sua boa intenção, é que não fez uma análise crítica do ambiente cultural em que vivemos e educamos. Com essa crítica não quero desmerecer o livro, mas simplesmente apontar como é difícil romper com a cultura a partir de onde pensamos e superar a “educação” a que fomos submetidos por tanto tempo e tão intensamente através dos meios de comunicação. 3.2. O paraíso para uma criança. O segundo texto que quero analisar é tirado do livro de memórias de David Rockfeller, banqueiro e um dos principais nomes da famosa família Rockefeller. Falando da sua infância que passou na casa dos seus pais, ele diz: Exceto por Louise e alguns filhos dos empregados da propriedade, eu não tinha muita companhia. Às vezes levava alguns amigos de fora para o fim de semana, mas com mais frequência passava meus dias sozinho. Apesar disso, a propriedade era um paraíso para uma criança. Quando estava no início dos meus dez anos, meu pai construiu uma grande casa de jogos no alto da colina de Abeyton Lodge com uma academia de ginástica, piscina coberta, boliche, quadra de squash [...] Havia um número infinito de lugares para brincar, mas lembro-me em geral de ter brincado sozinho ou com um tutor que vinha para o fim de semana. (2003: 36. O grifo é meu) Uma casa só de jogos, no alto da colina, com um número infinito de lugares para brincar! Realmente deveria ser uma propriedade e tanto. Um lugar que qualquer criança a consideraria um paraíso. Mas, o que é um paraíso? O sonho por paraíso faz parte da história da humanidade desde o seu começo. 111
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O mito da “terra sem males” dos indígenas brasileiros, o paraíso perdido do mito de Adão e Eva, o mito do progresso com a sua promessa do paraíso terrestre no futuro da história humana (utopia) e outros tantos mitos espalhados pelo mundo revelam o sempre presente anseio da humanidade pela volta ao paraíso, pela sua construção ou mesmo pela entrada nela através da graça divina. Os detalhes de cada paraíso dependem das circunstâncias sociais e históricas em que um determinado grupo ou sociedade imaginou o seu paraíso. Jesus de Nazaré, por exemplo, falou do “reino dos céus”, o paraíso, como um banquete onde todos são convidados. A metáfora do banquete nos remete para a abundância de comida e bebida compartilhada com amigos. Abundância sem amigos não é um banquete, e uma reunião de amigos sem abundância de comida e bebida também não é. O paraíso que Rockefeller se refere é a casa e o conjunto de brinquedos e jogos disponíveis. A casa é um paraíso porque é a materialização do sentido último da vida, ou melhor algo concreto que sinaliza a realização parcial do seu sentido último da vida: a acumulação ilimitada da riqueza. Isto porque o paraíso é a projeção de uma situação onde se vive em plenitude o que a comunidade pensa como o sentido último da vida. Só que o de Rockefeller era um paraíso meio solitário: “Às vezes levava alguns amigos de fora para o fim de semana, mas com mais freqüência passava meus dias sozinho. Apesar disso, a propriedade era um paraíso para uma criança.”. Este “apesar disso” mostra que havia algo de errado, algo que não lhe satisfazia, mas na cabeça da criança ou do Rockefeller adulto que olha para o seu passado prevalece a mentalidade capitalista: o mais importante não é o relacionamento com outras crianças, mas sim a riqueza da propriedade e a quantidade de jogos disponíveis. A posse dos bens fala mais alto do que o relacionamento humano e, assim, ele prefere a solidão no paraíso. Este fato me lembra uma conversa que eu tive com a minha filha, quando ela tinha algo em torno de seis anos. Estávamos no carro indo a algum lugar quando ela de repente me disse: “pai eu quero ter um montão de brinquedos, muitos brinquedos.”. Uma frase típica do nosso tempo e das crianças que assistem pela televisão a sedução de tantos e tantos brinquedos. Calmamente eu lhe perguntei: “o que você quer: um montão de brinquedo, sem amigos para brincar, ou alguns brinquedos e amigos para brincar com esses brinquedos?”. Ela passou um longo tempo em silêncio enquanto eu esperava alguma reação dela. Quando eu já estava pensando em outra coisa,
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ela de repente me disse: “pai, eu quero alguns brinquedos e amigos para brincar!”. Ela tinha passado aquele longo tempo pensando, imaginando as duas situações, e depois chegou à sua conclusão. Eu penso que foi uma resposta sábia. Pois brinquedos são bons porque servem para brincar; e brincar é muito bom quando o fazemos junto com amigos. Uma criança que quer acumular muitos brinquedos tem muita dificuldade em brincar com outras crianças, pois costuma ter ciúme dos seus brinquedos; além de que não dá para brincar com todos os brinquedos ao mesmo tempo e se gasta tempo demais para decidir com o qual brincar. Na verdade, o próprio Rockefeller admite que a sua infância naquela propriedade, que ele considerava um paraíso, não era o melhor para uma criança. Ele reconhece isso ao dizer: “Nunca fiz parte de um grupo, como a maioria das crianças cujos pais passavam o verão em Seal Harbor. Não tenho certeza de ter percebido o que estava perdendo na época. Gostava de uma série de tutores franceses que meu pai escolhera para me fazer companhia, e eles faziam o melhor que podiam para me divertir, mas eram substitutos inadequados para a companhia de crianças de minha idade.” (Ibidem: 39). Ele havia perdido algo importante na sua infância: a alegria de brincar com os amigos, que faz uma infância ser mais feliz. Casa luxuosa, brinquedos caros e sofisticados e tutores dedicados não substituem a companhia de crianças da sua idade. Uma conclusão sábia. Mas se ele realmente tivesse reconhecido a importância dos relacionamentos humanos e o papel de meio, de mediação, dos bens materiais (brinquedo existe para ser brincados com amigos), ele não teria afirmado que a casa era um “paraíso”. Contudo, as suas memórias mostram uma pessoa dividida entre a cultura capitalista – a busca da acumulação da riqueza e do valor econômico como o critério de discernimento na e da vida – e o bom senso humano que nos mostra que há outras coisas mais importantes e significativas para as nossas vidas. Essa contradição interna aparece em alguns momentos, como quando ele fala do seu relacionamento com o seu pai. Embora eu tivesse 19 anos, foi a primeira vez de fato que meu pai e eu ficamos sozinhos por algum tempo. Ambos estávamos relaxados, e ele falou abertamente de si mesmo e de sua infância. Foi um dos melhores momentos que passamos juntos.” (2003: 78)
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O pai de David sempre provera as suas necessidades e desejos, mas até os seus 19 anos nunca tinha tido tempo para ficar com ele por algum tempo. E este momento foi um dos melhores que ele passara com o seu pai em toda sua vida, muito mais importante do que quando o seu pai lhe passou uma parte da sua fortuna. Por quê? Porque ambos estavam relaxados, “e ele falou abertamente de si mesmo e de sua infância”. Isto é, o seu pai compartilhara com ele a sua história, o seu ser e, talvez, também as suas lágrimas, frustrações e dores. As lágrimas, frustrações e dores não são mencionadas por David, são imaginações minhas sobre uma conversa “de coração aberto” entre um pai e um filho. Estas memórias e reflexões mostram que mesmo um Rockefeller tem dúvidas sobre a validade do sentido último da vida que move as sociedades capitalistas. Se a casa maravilhosa é um paraíso meio triste e solitário, não é paraíso. Se essa casa não é paraíso, o ganhar mais dinheiro para ganhar mais dinheiro e ostentar a mais riqueza não é um bom sentido último para as nossas vidas. Se for, é um sentido triste e solitário, que ao invés de verdadeiros amigos reúne concorrentes na luta pela emulação, (Veblen, 1987) na luta para provocar invejas nos “amigos” e principalmente nos inimigos (Leão, 1999). 3.3. Dinheiro e o encantamento paradoxal. Um dos problemas da cultura de consumo é a rapidez com que mudam as mercadorias que servem de referência para o desejo de consumo das massas e para a classificação social. Em outras palavras, em um dado momento algumas determinadas mercadorias (por ex., celulares) funcionam como referências para fazer convergir os desejos dos consumidores e para classificar os consumidores na escala vertical (quem é melhor consumidor do que outro) e na escala horizontal (a que grupo de consumidores você pertence e se diferencia dos outros). Só que, com a produção massiva, há uma tendência de homogeneização do consumo, por isso se lançam e se buscam novos produtos e novos modelos. Assim, há uma variedade tão grande de mercadorias-signos que se torna difícil saber qual é o melhor produto ou qual é o produto mais desejado e valorizado. Sem um critério concreto claro, fica quase impossível “medir” o sucesso ou o fracasso de uma determinada pessoa dentro da sua comunidade e as pessoas ficam “perdidas” entre tantas referências. 114
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Nas sociedades tradicionais, como o próprio nome diz, esses critérios eram mais tradicionais, isto é, mais estáveis e perduravam por muito tempo. Em uma sociedade centrada na religião, por exemplo, os valores e os comportamentos aceitos como tendo sidos ensinados e pedidos pelos deuses serviam de critério objetivo para pautar as escolhas e as classificações sociais. Um santo – que é um modelo de desejo e comportamento para a comunidade dos fiéis – costumava receber a devoção da comunidade por muito tempo e, por isso, se mantinha como modelo por muito e muito tempo. Nas sociedades capitalistas, diferentemente, as referências e critérios mais visíveis estão sempre se inovando ou modificando. Até mesmo os modelos de desejo – que são utilizados pelas propagandas para nos mostrar o que consumir – mudam constantemente. Diante de um mundo que nos encanta e nos confunde pela multiplicidade enorme de bens de desejo, o preço passa a ser o critério principal para discernir entre tantas mercadorias parecidas. Se você não sabe qual dos dois quadros é o mais bonito, pergunte o preço dos dois e saberá. Se você não sabe a diferença entre uma bolsa Louis Vuitton e uma outra tão bonita quanto aquela, saiba que a bolsa Louis Vuitton custa quinze mil reais. O valor econômico, ou melhor, o seu preço é a prova definitiva da superioridade dessa bolsa e da portadora dela. Se você se perguntar: “para que pagar quinze mil reais por uma bolsa?”, saiba que é uma pergunta que não se faz. A não ser que você não tem esse dinheiro e tem inveja das mulheres que podem comprá-la, ou você não foi bem educado ou educada na cultura de consumo. (Aliás, a marca Louis Vuitton e outras griffes de luxo são tão importantes no nosso mundo que uma pesquisa no Google mostrou que há, por exemplo, 971.000 entradas na internet, para Louis Vuitton e 1.220.000 para Giorgio Armani.) É claro que uma mulher que paga essa pequena fortuna para uma bolsa sempre vai deixar à vista de todos a marca da sua bolsa quando for pendurá-la, por exemplo, em uma cadeira de restaurante. A quantidade do dinheiro se tornou “o” critério a tal ponto que até as crianças o utilizam para responder à clássica pergunta: “o que você quer ser quando crescer?”. A resposta é uma outra pergunta: “qual é a profissão que dá mais dinheiro?”. O valor de uma profissão não está mais associado ao gosto ou aptidão da pessoa, à utilidade para a sociedade ou à possibilidade
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de realizar o profissional como pessoa humana, mas sim ao retorno financeiro. Uma profissão vale quanto ela dá de retorno financeiro. Um critério se torna “o” critério para as importantes decisões sobre a nossa vida na medida em que esse critério é o principal caminho para realizar o sentido último da vida. Não somente isso, esse critério se torna também a principal fonte de motivação para enfrentar os desafios e empecilhos que surgem no nosso caminho para realizar o sentido último. Se o sentido último é ganhar mais dinheiro, o critério é a quantidade de dinheiro envolvido nas opções e a motivação principal para ter disciplinar e vencer os obstáculos é o dinheiro. Por isso, Diogo Mainardi, o colunista da revista Veja, escreveu com a franqueza que lhe é peculiar: Uma grande empresa do setor informático quer que eu faça uma palestra motivacional. Pagando bem, faço qualquer coisa. A única motivação que eu conheço é o dinheiro. Aliás, se o propósito da grande empresa do setor informático é motivar seus funcionários, sugiro dar-lhes um aumento salarial. Pode ser que os funcionários não trabalhem mais, mas certamente serão motivados a fingir que estão trabalhando mais. (2003) O que ele escreveu está perfeitamente coerente com os valores centrais do capitalismo. Ele somente tirou a conclusão lógica dos pressupostos dos discursos em prol do capitalismo e das ideologias que justificam o sentido de vida pregada por esse sistema econômico-sócio-cultural. Se o sentido da vida é viver em função de ganhar mais dinheiro, há lógica em dizer: “A única motivação que eu conheço é o dinheiro”. É a tradução para a linguagem cotidiana da noção de homo economicus, criada pelos economistas liberais, que diz que toda ação humana é e deve ser baseada em um cálculo sobre os ganhos e as perdas econômicas. Mas, ao mesmo tempo Mainardi diz que os funcionários podem não trabalhar mais por causa do aumento salarial, “mas certamente serão motivados a fingir que estão trabalhando mais”. Isto é, ele reconhece que o dinheiro não serve de motivação para tudo; o que quer dizer que existem outras motivações na vida. Logo, podemos concluir que o dinheiro, em alguns ou muitos casos, não é a motivação suficiente ou nem apropriada. Se o dinheiro não é a única motivação das pessoas, mesmo no capitalismo – e as empresas 116
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estão percebendo isso e adotando também outras formas de incentivos não monetários – , ele não pode ser o único e nem o principal critério para todas as decisões e para a escala de valores na sociedade. Isto mostra a contradição no pensamento de Mainardi. Mais do que isso, a contradição no sentido último de vida proposto pela sociedade capitalista contemporânea. Entretanto, é essa ideia que prevalece nas nossas sociedades. O encantamento das mercadorias e da esfera do consumo na cultura de consumo produziu, paradoxalmente, a redução de tudo ao preço, ao valor econômico. Nas sociedades primitivas, a natureza era encantada, isto é, a natureza era vista como possuindo ou possuída por espíritos e a relação dos seres humanos com ela era cheio de respeito e de magia. A natureza não era vista como uma mera fonte de riqueza ou fornecedora de produtos para a sobrevivência do grupo humano, mas sim como tendo uma “dignidade” e valor em si, que chegava a fascinar amedrontar. Assim, todas as relações com a natureza, como a pesca, a caça, o cultivo da terra e colheita, eram impregnadas de um certo encanto e magia. Antes e depois de estações de caça, pesca ou cultivocolheita esses povos celebravam rituais religiosos. Com o surgimento das religiões com deus ético ou religiões éticas – como judaísmo, cristianismo e islamismo –, a natureza começa ser desencantada e o âmbito do encanto se move para o “campo ético-espiritual”. A visão mágica em relação à natureza e aos fenômenos naturais vai sendo substituída por tecnologias racionais e por explicações de ordem científica. Entretanto, isso não significou o desencantamento da vida e das atividades humanas. Na medida em que as experiências espirituais e as relações humanas baseadas na ética passaram a ser consideradas formas privilegiadas de relacionamento com o divino, a vida cotidiana – como o trabalho, as relações familiares, o trato com as pessoas necessitadas, etc – e as práticas explicitamente religiosas se tornaram espaços de encantamento. A vida humana e tudo o que a cerca preservaram o seu mistério e o seu encanto. Com a vitória das ciências modernas na sociedade Ocidental, não somente a natureza foi submetida aos cálculos científicos e econômicos, mas também quase todos os aspectos da vida. A natureza foi explicada pelas “causas mecânicas”, a sociedade pelas forças sociais e o ser humano pelas motivações redutíveis ao cálculo de custo e benefício. Só que, como vimos, os seres humanos resistem a viver em um mundo totalmente frio, reduzido ao cálculo de números e explicações mecânicas, por isso buscou um novo tipo de encanto: o do mundo do consumo. 117
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Agora, na cultura de consumo, o acesso ao encanto não se dá mais pela magia e nem pelas práticas espirituais ou éticas, mas pela capacidade de consumo de mercadorias. As “classificações” da realização da “vocação” humana não se dão mais pelo grau e qualidade de relacionamento com as forças da natureza e nem pela capacidade de seguir os caminhos espirituais e éticos ensinados pelas religiões e pelos santos e profetas, mas pela quantidade de dinheiro disponível ou gasto. O paradoxal é que o acesso ao mundo encantado se dá pelo cálculo financeiro, o cálculo que como os cálculos científicos “desvaloriza os incalculáveis mistérios da vida” (Pierucci, 2003: 160-161). Mais ainda. Antes o encanto podia ser experimentado em todas ou quase todas as esferas da vida humana, porque a vida como tal era considerada uma fonte de mistérios para nós. Agora, o espaço do encanto ficou reduzido à esfera do consumo. Assim, todas as outras atividades são valorizadas na medida em que fornecem o dinheiro para o consumo, – isto é, são mediações para o mundo encantado do consumo –, ou são oportunidades para gozar o encanto do consumo ou para ostentar os bens de consumo desejados pelas outras pessoas. E com isso a natureza, as profissões, as pessoas, as relações humanas perderam o seu encanto, perderam o significado e o valor que estão ou estavam além do seu preço ou da sua utilidade como um instrumento. Em certo sentido, o seu valor “intrínseco”. Podemos perceber isso no campo educacional com a substituição da noção de educador como uma pessoa importante na e para a sociedade pelo de professor, entendido como um profissional que atende as demandas do mercado e é remunerado de acordo com as leis do mercado, no caso das escolas privadas, e de acordo com o que sobra no orçamento, no caso das escolas estatais. O valor da sua profissão e do profissional é medido pela sua remuneração, como tudo (ou quase tudo) mais na nossa sociedade. Como o salário dos professores anda muito baixo, especialmente na rede pública, é uma profissão sem valor social ou sem reconhecimento da sociedade; mesmo que todos estejam de acordo que nenhuma sociedade pode melhorar sem uma boa educação para a sua população. Se a sociedade não valoriza os educadores, ou professores, é claro que a autoestima desse grupo também não vai ser muito alta. O professor Gadotti, após enunciar o fato de que “o brasileiro desvaloriza o professor” (2003: 12), diz: “Por isso continuo me perguntando: ‘Por que sou professor?’ É uma pergunta que ouço com frequência também entre meus pares.”(Ibidem: 13). 118
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Essa pergunta vindo de pessoas que sempre dedicaram as suas vidas para a educação revela a profunda crise em que se encontra o sistema educacional. Não somente em termos de verbas, infraestruturas e salários, mas também no tocante à motivação e o sentido de todo o processo educacional. “Talvez esteja aí a chave para entender a crise que vivemos: perdemos o sentido do que fazemos, lutamos por salário e melhores condições de trabalho, sem esclarecer a sociedade sobre a finalidade de nossa profissão, sem justificar porque estamos lutando.” (Ibidem: 13-14) Se não superarmos essa cultura de consumo, a subordinação da vida ao cálculo financeiro e a absolutização das leis do mercado em todas as esferas da vida e da sociedade, não poderemos reencontrar um sentido mais humano para as nossas vidas e nem superar a crise mais profunda da educação. O encantamento das mercadorias e a fé no mercado acabaram por desencantar todo o resto, e fizeram da vida, da natureza e da educação meras variáveis do cálculo econômico. Sem encontrar um novo sentido para a vida e sem reencantar o ato de viver e de educar não poderemos superar a crise que se abate não somente sobre a educação, mas também sobre as nossas sociedades e o meio ambiente.
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CAPÍTULO 7 Reencantamento da vida e a transformação social
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á um texto de João Sayad, um importante economista brasileiro, que chegou às minhas mãos por acaso, nesses lances de sorte na vida, que sintetiza bem o drama da nossa sociedade que estamos abordando. Há trezentos anos que o capitalismo transforma todas as coisas a nossa volta em quantidade — dólares, francos ou reais. Não sabemos bem quem somos, mas sabemos quanto valemos: somos o carro, a lancha, a casa ou os quadros que temos. A economia capitalista focaliza tudo em torno de cifrões. Em compensação, embaraça tudo o mais. Cada vez nos tornamos mais eficientes, mais baratos e mais produtivos. Mais ricos, ficamos cada vez mais pão-duros. Sobram produtos agrícolas que são jogados nos rios ou estragam nos armazéns. Sobram produtos industriais que atendem necessidades que precisam ser criadas. Sobra mão-de-obra porque gente custa salário. Não podemos gastar dinheiro com os ineficientes, com os aposentados ou com os mais pobres. Sabemos exatamente quanto custa cada coisa e cada decisão. Tudo é muito nítido e claro em reais ou dólares. Mas não temos tempo de nos perguntar sobre o sentido de tudo isso. Por isso, o mundo nos parece embaraçado e fora de foco. (Sayad, 1998) É um breve resumo do que abordamos nos dois últimos capítulos: a cultura de consumo, o espírito do capitalismo, a ideologia neoliberal e a crise do sentido da vida. A redução de tudo ao cálculo econômico deixa tudo “muito nítido e claro em reais ou dólares“, mas, por isso, “o mundo nos parece embaraçado e fora de foco.” Uma das razões para isso é que “não tempos tempo de nos perguntar sobre o sentido de tudo isso”. A busca obsessiva por mais dinheiro e mais consumo, uma corrida sem fim porque a linha de chegada vai se afastando na medida em que nos apro121
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ximamos, nos deixa cegos ou desfocados para ver o “resto” que compõe a vida humana. E o que fica completamente fora de foco é o sentido da vida, pois, nessa corrida por consumo e ostentação, o objetivo a ser alcançado está sempre se movendo para mais longe e tomando as mais diversas formas que nos deixa aturdidos. Mas o sistema de mercado também oferece uma solução para isso. A propaganda “se dirige à desolação espiritual da vida moderna e propõe o consumo como cura” (Lasch, 1983: 103). Os efeitos desse encantamento hipnotizador não recaem somente sobre as pessoas que procuram a cura no mais consumo. Muito pelo contrário, as consequências mais devastadoras recaem também sobre os mais pobres da sociedade, que sofrem com a exclusão social, e o meio ambiente. De uma forma ou outra, todos nós perdemos. Diante de uma sociedade que reduz tudo ao cálculo econômico, cálculo que desfoca o sentido da vida e desencanta tudo o que na vida não é acumulação e consumo, inclusive a educação, vários autores de diversos campos do saber têm proposto o reencantamento da natureza, da vida e da educação. Estas propostas devem ser entendidas não como uma simples volta a uma civilização baseada na religião ou em uma visão mágica do mundo, mas como uma tentativa de ir além dessa redução da natureza, das pessoas e das atividades sociais ao cálculo econômico. Em outras palavras, encontrar valores nas coisas, nas atividades e nas pessoas que transcendam o valor econômico e revelem um sentido de vida que seja muito mais humano e profundo do que simplesmente acumular riquezas e ostentar bens de consumo. Como há diversas propostas e entendimentos do que seja esse reencantamento, vamos abordar somente alguns deles em função do nosso objetivo que é a discussão do reencantamento da educação e do sentido da vida em um mundo aparentemente desencantado. 1. Reencantamento e a transformação social. Têm surgido, nos últimos tempos, diversos autores que propõem um “reencantamento da educação”, mesmo que não utilizem explicitamente essa expressão. Esta nova tendência segue um movimento anterior e mais amplo da busca do reencantamento da própria natureza e do mundo. A expressão “reencantamento da educação” está constituída de dois eixos temáticos: educação e o reencantamento.
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Na sociedade de conhecimento em que estamos vivendo ou para a qual estamos em processo de transição – isto depende do ponto de vista teórico assumido e do lugar social de onde se fala –, a educação ocupa um lugar central. A centralidade da educação é reconhecida tanto por teóricos e analistas de tendências liberais, quanto por aqueles que são críticos do atual modelo de globalização econômica. Entretanto, esta centralidade da educação não pode ser entendida em um sentido único. Os que defendem o atual modelo econômico-social vêem a educação e a produção de conhecimento como chaves na geração de mais riqueza e do crescimento econômico; enquanto que os críticos propõem a educação de qualidade para a maioria marginalizada dos países do terceiro mundo como uma das lutas mais importantes para a superação da pobreza e da exclusão social. A proposta de “reencantamento da educação”, ou similares, vem basicamente de autores que propõe, não somente um novo modelo educacional, mas também um novo tipo de sociedade. Isto é, a expressão “reencantamento da educação” pode ser vista como uma bandeira de transformação social; apesar de que esses propositores nem sempre explicitam o modelo social desejado e quando o fazem nem sempre convergem entre si. O desafio do reencantamento da educação e, portanto, a superação do desencantamento, falta de motivação e sentido, que afeta o campo educacional não é colocado somente por educadores, mas também por diversos pensadores e teóricos sociais. Cristovam Buarque, por exemplo, após dizer que “há uma diferença entre o crescimento econômico e a redução da pobreza”, (1999: 32) afirma que “o primeiro caminho para a erradicação da pobreza está na educação para todas as crianças em escolas de qualidade” (Ibidem: 57) e que “a mais difícil tarefa da luta contra a pobreza na Brasil é a motivação dos professores para serem os vetores desta revolução” (Ibidem: 75). Esta falta de motivação dos professores, que sem dúvida também repercute na motivação ou na falta dela dos muitos alunos, é, de acordo com Buarque, fruto do longo processo de desprezo da sociedade para com os professores e com a própria profissão de professor. O desprezo social pela profissão de professor, especialmente da educação básica, é, ao mesmo tempo, causa da falta de motivação dos professores, como também resultado desta. Entretanto, não podemos reduzir a compreensão desse problema a essa circularidade recursiva, mas devemos entender essa circularidade dentro um processo mais amplo que ocorreu na sociedade moderna: o encantamento das mercadorias e o desencantamento do mun123
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do, da vida e da própria educação, que vimos nos dois últimos capítulos. A educação perdeu a sua “aura”, o seu valor “em si”, e passou a ser vista como mero instrumento de acesso ao mercado de trabalho e, com isso, o ser educador deixou de ser visto como uma vocação – conotação fortemente ligada ao sentido existencial – e passou a ser considerado somente como uma simples profissão. E, reduzido a uma profissão que funciona como preparação somente para o mercado de trabalho – e não mais como uma preparação para a vida –, passou a ser julgada ou valorizada fundamentalmente pelo valor do salário. Na medida em que as décadas de crises econômicas (crise da dívida externa e crise do ajuste econômico) sob hegemonia neoliberal levaram à redução de gastos na educação, o salário dos professos foi comprimido e, com isso, também o seu prestígio social. O que aprofundou o processo de desencantamento, a falta de motivação, dos professores. As dificuldades para os jovens arranjarem os seus primeiros empregos, também resultado dos ajustes econômicos e das grandes mudanças no sistema produtivo e econômico – geradas pela revolução tecnológica e revolução gerencial –, reforçaram por sua vez a falta de motivação dos alunos. Se a falta de motivação e o desencantamento no processo de aprendizagem – que inclui professores, alunos e outros membros do ambiente educacional – é um dos principais desafios para a superação da exclusão social, surge então o grande desafio de reencantarmos a educação. A importância desse desafio reafirma, por sua vez, a importância da educação e dos educadores na luta contra a exclusão social. Isto é, o aumento do número de educadores e de outras pessoas envolvidas no processo educacional engajados nessa luta é uma condição necessária, mesmo que não suficiente, para a transformação da sociedade. Eu quero repetir aqui que o que precisamos é aumentar esse número, pois já há, sem dúvida, muitas pessoas que resistem a esse ambiente de desencanto e continuam comprometidas com essa luta. Para enfrentarmos esse desafio, não podemos restringir a nossa preocupação ao aspecto mais subjetivo do processo de desencantamento do mundo. Precisamos também analisar o aspecto mais objetivo desse processo. Nessa empreitada, não podemos ignorar que o conceito de desencantamento do mundo é entendido, muitas vezes, como sinônimo ou como um conceito muito próximo a de secularização. Razão pela qual, muitos educadores e pensadores que propõe um reencantamento da vida, do mundo e da educação buscam inspirações e/ou fundamentos em pensamentos e sabedo124
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rias religiosas. Entretanto, os conceitos de desencantamento e secularização, apesar de serem correlatos, não são idênticos e apontam para aspectos diferentes do processo de modernização das sociedades. Se o reencantamento é visto como movimento oposto ou antagônico a um único e mesmo processo histórico de desencantamento e da secularização, isso significa pensar também na volta do “casamento” entre o estado e a igreja. Ao passo que se o reencantamento é visto como superação do desencantamento, mas não necessariamente da secularização, poderíamos então pensar em um reencantamento da educação e da vida sem uma necessária dessecularização do Estado e das outras esferas políticas e públicas da sociedade. Por isso, antes de tratarmos mais explicitamente, no próximo capítulo, algumas das propostas de reencantamento da educação, vamos analisar a relação entre o desencantamento e a secularização. 2. Desencantamento e secularização. Hubert Lepargneur é um dos autores que compreendem a secularização e o desencantamento como dois lados inseparáveis de um mesmo e único processo histórico. Para ele, “a secularização designa o processo histórico: 1) segundo o qual diversos elementos da cultura – economia, política, filosofia, literatura, artes, direito – se libertam do controle das Igrejas e dos dogmas” – aspecto que ele considera positivo –; e 2) “segundo o qual o próprio homem se liberta, não só da tutela das Igrejas, de seus ritos e dogmas, mas, mais radicalmente, embora através do primeiro processo, de Deus contestado na sua transcendência, na sua natureza, na sua existência.” (1971: 12-13). Ele vê na secularização um elemento positivo e o negativo. O positivo corresponderia ao que foi conhecido como o da maturidade do ser humano: “a libertação dos mitos, da magia, das alienações do sagrado e das assombrações do além, da prepotência abusiva daqueles que tinham pretensões ao poder espiritual para dominar as formas terrestres da vida social dos homens.”. O lado negativo seria o aspecto destrutivo das religiões, da religiosidade humana e da própria noção de Deus. (Ibidem: 13). Com essa tese, o autor entrelaça de modo inseparável a superação da magia e das assombrações do além, o que tratamos até agora como o desencantamento, com a perda do poder político das igrejas ou religiões. Se aceitarmos essa tese, a proposta de reencantamento da educação e da vida significaria também um retorno do poder político das igrejas ou a submis125
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são da sociedade aos valores de uma determinada religião. O que não é mais aceitável. O receio de que a proposta de reencantamento da educação e da vida signifique a subordinação da sociedade aos ditames da religião é, na minha opinião, uma das razões que dificultam um diálogo mais aberto e frutífero sobre esse tema. Há também, é claro, aqueles que em nome do reencantamento da vida e da educação pretendem “contrabandear” para dentro da discussão a tese da importância da religião ou da crença na transcendência na vida social. Esta tentativa real ou possível faz com que a discussão, por exemplo, sobre a educação da religiosidade ou da dimensão espiritual do ser humano nas escolas seja marcada por tantas dificuldades e desconfianças. Se quisermos superar o desencantamento do mundo realizado em especial pelas ciências modernas, que acabou por nos levar ao encantamento do mundo das mercadorias, precisamos separar o conceito de desencantamento, como a superação da magia, do conceito de secularização, entendido como a separação entre o estado e a igreja e a perda do poder político das igrejas ou da religião “oficial” da sociedade. De acordo com Pierucci, o conceito de “desencantamento em sentido técnico não significa perda para a religião nem perda de religião, como a secularização, do mesmo modo que o eventual incremento da religiosidade não implica automaticamente o conceito de reencantamento, já que desencantamento em Weber significa um triunfo da racionalização religiosa” (2003: 120). Em outras palavras, a vitória da religião baseada na ética, mais racional e sistemática, sobre as religiões baseadas na magia; a vitória do profeta e do sacerdote sobre o feiticeiro. Nessas religiões éticas, a natureza é compreendida como uma criação divina regida pelas leis naturais e se constitui um cosmos ordenado onde o ser humano deve agir de acordo com as regras éticas e religiosas conhecidas e com os resultados previsíveis. O deus ético leva para dentro da vida cotidiana o sentido religioso e a experiência do divino; o que nas religiões de magia era restrito ao espaço e tempo extracotidianos, o âmbito do sagrado. Assim, o desencantamento produzido pela religião do deus ético suscita uma maneira coerente, duradoura e previsível de agir na vida cotidiana. Neste sentido, o desencantamento foi uma liberação. O primeiro processo de desencantamento, realizado pela religião, “desalojou a magia e nos entregou o mundo natural ‘desdivinizado’, ou seja, devidamente fechado em sua ‘naturalidade’” (Ibidem: 145) e estabeleceu um 126
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sentido metafísico unificado para o mundo e a história humana. O segundo processo se dá com a chegada da ciência empírico-matemática que desaloja essa metafísica religiosa e nos apresenta um mundo reduzido aos mecanismos causais, totalmente analisável e explicável em termos quantitativos. Agora um mundo desencantado e sem sentido, porque “o cálculo [das ciências] desvaloriza os incalculáveis mistérios da vida.” (Ibidem: 160-161) Mas, como um mundo sem sentido é intolerável para a grande maioria dos mortais, acabou se criando, com a cultura de consumo, um mundo encantado pelas mercadorias e propagandas, mas com um sentido de vida desfocado. Este é o mundo desencantado ao qual nos referimos hoje. A secularização é um conceito que tem suas origens nos últimos decênios do século XVI e aparece nas disputas do direito canônico na França sobre a passagem de um religioso, quem vive segundo as regras de um convento, ao estado “secular” ou laico. Depois passou também a designar o ato jurídico, politicamente fundado, pelo qual os príncipes reduziam ou expropriavam os domínios e as propriedades da Igreja para destinar a outros fins e proprietários (Marramao, 1995/97). Para Pannenberg (1996), as raízes do processo de secularização, que resultaram na separação da esfera político-pública da esfera religiosa, especialmente do cristianismo, estão localizadas no século XVII. Para ele a separação do religioso do secular é o resultado das guerras religiosas que se seguiram aos conflitos gerados com a reforma protestante. As guerras religiosas ou guerras em nome Deus só terminam quando um lado é forte suficiente para vencer e impor a sua fé sobre os vencidos. Quando isto não acontece, essas guerras provocam muitas mortes e destroem a ordem social. Para restaurar a paz em muitos lugares onde nenhum dos lados conseguia impor a sua fé, as controvérsias em torno da religião tiveram que ser colocadas entre parêntesis. Nesta decisão está o nascimento da moderna cultura secular. “Após as guerras das religiões, a fundação religiosa da sociedade, lei e cultura foi substituída por uma outra, e esta nova fundação foi chamada natureza humana.” (Pannenberg, 1996). Assim surgiu o sistema de moral natural, a teoria natural do governo na forma de contrato social e até mesmo a religião natural. Isto é, a autonomia do mundo e da sociedade em relação ao poder e a influência da Igreja. A secularização, entre outros diversos aspectos, também se refere à “perda dos modelos tradicionais de valor e de autoridade, isto é, o fenômeno sociocultural de vasta dimensão que, a partir da Reforma protestante, con127
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sistiu na ruptura do monopólio da interpretação.”. Em outras palavras, a igreja católica deixou de ter o monopólio da verdadeira e, portanto, única interpretação dos textos bíblicos e da própria verdade e passou a “competir” com as interpretações feitas pelas igrejas da reforma. Com isso, ficou à mostra a historicidade e a relatividade da própria noção de “verdades reveladas”, pois estas não eram mais entendidas da mesma forma pelas igrejas cristãs. A secularização no mundo ocidental teve um caráter libertário, mesmo em termos teológicos, na medida em que deu ao mundo a autonomia e emancipação em relação ao equívoco chamado de “civilização cristã”, que pretendia deter o monopólio da interpretação da realidade e do sentido da vida e ser o fundamento da autoridade na sociedade e no governo; ao mesmo tempo em que libertou a fé religiosa da subordinação ao um determinado modo de organização da sociedade e do estado. A identificação da fé cristã com um modelo de sociedade ou de civilização havia sido quebrada. Talvez o ganho mais importante da secularização que precisa ser continuamente relembrado é a deslegitimação das guerras em nome dos deuses ou das religiões. Pois, nas guerras religiosas ou em nome das religiões, é impossível findar a guerra através das negociações, na medida em que os inimigos são sempre vistos como os representantes do “demônio” ou do mal com que não se pode negociar. Secularização é ainda hoje uma necessidade fundamental para uma solução negociada para muitas das nossas guerras, como a do Oriente Médio e a guerra contra o terror. Por isso, a secularização é um ganho e deve ser distinguido do conceito de desencantamento. Só assim será possível um outro tipo de encantamento da vida que supere o do consumo e não volte a uma organização social onde uma única religião ou visão religiosa do mundo e da vida é imposta sobre os diferentes grupos e culturas e nem uma guerra ou uma política é imposta e legitimada em nome de uma religião. 3. Reencantamento do mundo e da vida. Como vimos acima, as propostas de reencantamento vem geralmente de pessoas e grupos que querem superar o atual de modelo de civilização, geralmente compreendida como desencantada. Essa superação não necessariamente significa a substituição da sociedade capitalista por uma pós-capitalista, (na falta de um nome para outra sociedade, já que poucos ainda insistem na proposta do socialismo como o conhecemos), mas com certeza 128
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a superação do desencantamento da vida ou da “perda do foco” por causa do encantamento pelo consumo. São propostas apresentadas em diversos campos do saber e não somente da educação. Na verdade, as propostas de reencantamento da educação e outras que indicam o mesmo caminho com outros nomes fazem parte de um movimento mais amplo. Por isso, penso que vale a pena ver um pouco desse cenário que está se formando. François Houtart, um importante sociólogo da religião, diz que “reencantar o mundo é uma aspiração contemporânea” diretamente conectada com a criação de uma nova esperança e que “um aspecto central do processo é voltar a descobrir a força do símbolo” (2004: 20). Quando falamos de símbolo, encontramos três sentidos principais. O primeiro é o símbolo como uma analogia emblemática, – por ex., a pomba como símbolo da paz – que é uma concretização de uma realidade ou uma noção abstrata. O segundo é o sentido grego do símbolo: juntar dois elementos de um objeto que permitem as pessoas se reconhecer, cada uma com um elemento em sua mão. Um elemento sempre está referido ao outro e está incompleto enquanto não se une ao outro. E o terceiro sentido tratase dos símbolos lógico-matemáticos, totalmente abstratos que se referem a uma adequação formal. O que importa na nossa reflexão é entender o símbolo como uma linguagem que transmite e revela um sentido (significado e direção) à realidade dada. Isto é, transcende, vai além do meramente factual e aponta para um sentido para além do meramente “material”, colocando as pessoas frente à decisão de aderir ou não a esse sentido e ao mundo ou a realidade possível ainda não-existente que o símbolo aponta. Uma realidade que não é da ordem do mundo fechado da certeza empírico-científica, mas de uma ordem aberta e incerta, que é o campo do sentido e do encanto. Leonardo Boff chama isso de profundidade. O ser humano “possui a capacidade de captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama com os sentidos da exterioridade e da interioridade. Ele apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. São símbolos e metáforas de outra realidade que está sempre além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo.” Assim como os olhos profundos de uma criança que nos remete ao mistério da vida (2002: 55).
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Vejamos algumas propostas de reencantamento em que encontramos hoje. 3.1. Ciências naturais e reencantamento. Um cientista que poucos defensores do reencantamento esperaria engrossar as suas fileiras é o Richard Dawkins, o famoso cientista evolucionista. Entretanto, ele, no seu livro de título bastante sugestivo, Desvendando o arco-íris. Ciência, Ilusão e Encantamento, diz que “acusar a ciência de roubar da vida o calor que a torna digna de ser vivida é um erro tão disparatado, tão diametralmente oposto a meus sentimentos e aos da maioria dos cientistas ativos que sou quase levado à desesperança que erroneamente suspeitam de mim.” Por isso, ele se propõe “buscar uma resposta mais positiva, apelando para o senso de encantamento da ciência, porque é muito triste imaginar o que esses queixosos e negativistas estão perdendo.” (2000:10). Na medida em que ele não aceita a tese de que a ciência desencantou o mundo, no sentido de que tirou da vida o “calor que a torna digna de ser vivida”, isto é, não lhe tirou o encanto e sentido da vida, ele não usa o termo reencantamento, mas somente o encantamento. Para ele, as ciências naturais, na sua melhor expressão, não se opõem à poesia e nem às metáforas úteis que estimulem as imagens e alusões que ultrapassam as necessidades das simples compreensão. Contudo, isso não quer dizer que a ciência possa volta a um mundo de visões mágicas. “A ciência permite o mistério, mas não a magia; permite bizarrias além da mais louca imaginação, mas não os sortilégios e as bruxarias, tampouco os milagres fáceis e baratos.” (Ibidem: 52). Para esta visão de encantamento da ciência, a metáfora ocupa um lugar central. “Não importa como tenha começado, nem o seu papel na evolução da linguagem, nós humanos, de forma única no reino animal, temos o dom poético da metáfora; de notar quando certas coisas são como outras e usar a relação como um fulcro para nossos pensamentos e sentimentos. Esse é um aspecto do dom da imaginação. Talvez essa tenha sido a inovação-chave de software que desencadeou a nossa espiral coevolucionária. Podemos considerá-la um avanço-chave no software de simulação do mundo.” (Ibidem: 394). Outro cientista que faz referência ao reencantamento do mundo, e que é muito citado por autores que querem dar um “estatuto científico” para 130
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as suas propostas de reencantamento, é Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de 1977. A conclusão do seu famoso livro A nova aliança, escrita em parceria com Isabelle Stengers, tem como título “O reencantamento do mundo” (Prigogine & Stengers, 1997: 203). Na verdade, este capítulo final não trata explicitamente desse tema, mas ao denunciar que a ciência moderna, “e a física em particular, desencanta o mundo” (Ibidem: 204) e ao afirmar que “a natureza não foi feita para nós, e não foi entregue à nossa vontade” e que a ciência “pode descobrir-se hoje simultaneamente como ‘escuta poética’ da natureza e processo natural nela, processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo” e ao terminar com a afirmação de que “chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza” (Ibidem: 226), foi muito citado como um “fundamento científico” da proposta de reencantamento do mundo em uma linha mais espiritual ou mística. Parece que esses usos provocaram algumas confusões ou mal entendidos em torno da proposta de reencantamento do mundo feito por Prigogine e Stengers. Tanto que no livro Para Abrir as Ciências Sociais, escrito pela Comissão Gulbenkian (1996), na qual fazia parte Prigogine, há uma referência explícita e um esclarecimento a esse respeito. Após afirmar que o conceito de desencantamento do mundo de Weber resume a trajetória do pensamento moderno que buscou um conhecimento objetivo, liberto de sabedorias reveladas ou ideologias e que isso constituiu um passo fundamental no sentido de libertar a atividade intelectual de pressões externas e mitologias, a Comissão afirma: O apelo no sentido de um ‘reencantamento do mundo’ é de natureza diferente. Não se trata de um desejo de mistificação. Trata-se, antes, de um apelo ao desmantelamento das fronteiras artificiais existentes entre os seres humanos e a natureza, ao reconhecimento de que ambos fazem parte de um universo único, enformado pela flecha do tempo. Pretende-se que o reencantamento do mundo libere mais ainda o pensamento humano.” (Comissão Gulbenkian,1996: 109-110)
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Não se pode afirmar com certeza que Prigogine foi o autor ou propositor desse parágrafo, mas é bastante provável que com essa afirmação a Comissão pretende criticar os usos indevidos, pelo menos na opinião dos autores, da proposta de reencantamento do mundo feita no livro A Nova Aliança. Eu penso que é correto fazer esse tipo de esclarecimento para evitar que uma hipótese ou proposta científica seja usada para legitimar discursos e propostas legítimas que não são científicas e nem precisam ser para serem valiosas. Dawkins se propõe a mostrar o encanto que a ciência pode proporcionar à vida das pessoas, sem fazer uma crítica à epistemologia da ciência dominante hoje. Enquanto que Prigogine, Stengers e a Comissão Gulbenkian propõem, através do conceito de reencantamento do mundo, uma superação ou desmantelamento das fronteiras entre os seres humanos e a natureza – um princípio importante no mundo moderno – e o reconhecimento de que todos nós, os seres humanos, outros seres vivos e os entes não-vivos, fazemos parte de um único mundo. Esta proposta de reencantamento é uma proposta de ampliação e transformação da nossa maneira de ver o mundo e a nós mesmos. 3.2. Eco-espiritualidade e o reencantamento do mundo. Outra corrente importante que carrega a bandeira do reencantamento do mundo é, sem dúvida, o que podemos chamar de eco-espiritualismo: grupos e movimentos ecológicos que não somente defendem o meio ambiente, mas a fazem em nome de algum tipo de espiritualidade e propõem também uma nova espiritualidade para o mundo. Entre inúmeros autores, Leonardo Boff é um dos mais importantes e conhecidos, tanto nacional quanto internacionalmente. No seu livro mais importante sobre o tema, Ecologia: o Grito da Terra, Grito dos Pobres, ele assume a tese de que estamos entrando em um novo paradigma, em “uma nova forma de dialogação com a totalidade dos seres e de suas relações” (1995: 29). Ele reconhece que esse novo paradigma ainda não substituiu o paradigma clássico das ciências modernas, com seus dualismos que divide o mundo em material e espiritual, separa a natureza da cultura, o ser humano do mundo, a razão da emoção, o feminino do masculino e atomiza os saberes. Mas, ele crê que apesar disso está surgindo, por causa da crise atual, uma nova sensibilidade em relação ao mundo como um todo que 132
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está gerando novos valores, sonhos e comportamentos assumidos por um número cada vez maior de pessoas e de comunidades. Neste processo, “ressurge uma atitude de encantamento, reponta uma nova sacralidade e desponta um sentido de intimidade e de gratidão.” (Ibidem: 30-31) Esta atitude de reencantamento pede uma nova aliança com a Terra e, para Leonardo Boff, uma dimensão sine qua non para essa aliança reside “no resgate da dimensão do sagrado. Sem o sagrado, a afirmação da dignidade da Terra e do limite a ser imposto ao nosso desejo de exploração de suas potencialidades permanece uma retórica sem efeito. O sagrado constitui uma experiência fundadora. É ele que subjaz às grandes experiências sobre as quais se constituíram as culturas no passado e a própria identidade profunda do ser humano.” (Ibidem: 179). Para ele a redução do universo a uma realidade inerte, mecânica e matemática e da Terra a um simples repositório de recursos para a exploração dos humanos é fruto da “profanidade” da cultura e das ciências modernas. “Se não conseguirmos refazer o caminho de acesso ao sagrado, não garantiremos o futuro da Terra. A ecologia se transformará numa técnica de simples gerenciamento da voracidade humana mas jamais em sua superação. (...) O primeiro passo a ser dado é, portanto, a recuperação da dimensão do sagrado da Terra, do reencantamento e da veneração do universo.” (Ibidem:180). Para entendermos melhor essa posição, Boff nos lembra que o sagrado não é uma coisa, mas uma qualidade das coisas e nas coisas que nos toma totalmente, nos fascina, nos toca no mais profundo do nosso ser e gera em nós respeito, temor e veneração. Nesse sentido, todas as coisas são potencialmente portadoras da força do sagrado. “Na verdade, são apenas sacramentos, veículos e sinais da Realidade Última, da Divindade, do Criador que está dentro e para além do próprio cosmos, da Terra e da vida.” (Ibidem: 182). Para entendermos melhor porque da insistência dele em apresentar a terra como algo sagrado, algo que por ser sagrado não pode ser tocado de modo profano, é preciso recordar que para ele, e também para muitos outros ecologistas, o imperativo hoje é conservar o mundo e não transformálo. Isto porque o planeta estaria em perigo por causa da sua ”profanação”, isto é, da intensa exploração econômica. Em oposição a isso, eles propõem a sua conservação. Por isso ele diz: “Hoje é imperativo: não modificar, mas conservar o mundo. Mas para conservar o mundo precisamos mudar de 133
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paradigma e converter as mentes coletivas para outros objetivos menos destruidores.” (Ibidem: 298). Para essa mudança é fundamental, segundo Boff, uma nova espiritualidade contra a cultura consumista: a eco-espiritualidade. “Um dos eixos articuladores desta eco-espiritualidade é a vivência da simplicidade, a mais humana de todas as virtudes (...) A simplicidade é que garantirá a sustentabilidade de nosso planeta, rico de infindáveis energias e recursos mas sempre também limitado. A simplicidade exige uma atitude de anti-cultura e de antisistema. A cultura e o sistema dominante são consumistas e esbanjadores. A simplicidade nos desperta a viver consoante nossas necessidades básicas. Se todos perseguirem esse preceito, a terra seria suficiente para todos com generosidade e até com discreta abundância.” (Ibidem: 303). Uma proposta realmente antissistêmica e “revolucionária”, tanto no sentido original do termo revolução: o movimento do planeta que volta à órbita anterior, isto, voltar ao sentido da vida anterior ao capitalismo, produção em função da vida; quanto no sentido político moderno de modificar estruturalmente uma organização social e a sua cultura. Ele sabe que adesão a esse tipo de apelo a um desejo radicalmente novo e diferente para a nossa cultura não é resultado de uma dedução lógica, nem de um convencimento intelectual. Uma aposta radical em um novo sentido de vida ou em um novo desejo requer algo diferente: o testemunho de uma pessoa que viveu ou vive essa aposta e nos mostra que esse caminho vale a pena. Por isso, Boff dedica o último capítulo do seu livro Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres à vida e aos sonhos de Francisco de Assis. Como ele diz: “Uma civilização precisa de figuras exemplares como ele, que servem de espelhos nos quais os sonhos que encorajam as práticas e os valores que alimentam as grandes motivações se mostram convincentemente e conferem sentido para viver, sofrer, lutar e esperar.” (Ibidem: 310). 3.3. Ciências sociais e reencantamento. O tema do reencantamento aparece também em alguns sociólogos que estão explicitamente engajados na superação do atual modelo de sociedade. Michael Löwy tratou desse tema ao estudar o movimento romântico dos séculos XVIII e XIX como um movimento anticapitalista. Para ele, “se o capitalismo é, segundo a expressão implacavelmente lúcida de Max Weber, o desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), o romantismo anticapitalista 134
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deve ser considerado antes de tudo como uma tentativa nostálgica e desesperada de reencantamento do mundo, de que uma das dimensões essenciais era o retorno à religião, o renascimento das múltiplas formas de espiritualidade religiosa.” (Löwy, 1989: 32). Além desse retorno às tradições religiosas e místicas, há também uma volta “para a magia, artes esotéricas, feitiçaria, alquimia, astrologia; redescobrem mitos, pagãos ou cristãos, lendas” (Löwy & Sayre, 1995: 52). E diante de uma ciência da natureza que pretendia ter decifrado os mistérios do universo, o romantismo aspira ao reencantamento da natureza e utiliza como um recurso importante o mito. Mas ele ressalta que nem sempre a oposição romântica à modernidade capitalista significou uma contestação ao sistema em seu conjunto, sendo que muitas vezes foi mais uma reação a certo número de características dessa modernidade que lhes pareciam insuportáveis. A partir do seu estudo sobre romantismo do passado, Löwy defende a seguinte hipótese: Nossa hipótese poderia ser formulada da seguinte maneira: se, por um lado, é reconhecido nosso conceito de romantismo como crítica da civilização capitalista-industrial; se, por outro, é reconhecida que essa civilização – a “modernidade” tal como a concebemos – ainda existe, embora modificada; e se, enfim, é reconhecido que alguns grupos sociais portadores da visão romântica também não desapareceram; nesse caso, podemos esperar que o romantismo continue a desempenhar um papelchave. (Ibidem: 222) É inegável que existem grupos sociais que se utilizam da visão romântica da realidade na sua crítica ao capitalismo. Entre esses movimentos sociais, o movimento ecológico “é provavelmente aquele que levou mais longe a crítica romântica da modernidade, através de seu questionamento do progresso econômico e tecnológico e de sua aspiração utópica a restaurar a harmonia pedida entre o homem e a natureza.” (Ibidem: 254). A eco-espiritualidade de Boff é uma boa amostra disso. Não queremos discutir aqui se a hipótese de que o romantismo continua a desempenhar um papel-chave é ou não sustentável, pois isto extrapola o objetivo deste livro, mas queremos destacar que no pensamento de Löwy o romantismo continua tendo um papel-chave e que “como no passado – por 135
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exemplo, no momento do primeiro romantismo, ou no final do século XIX – o ‘retorno do religioso’ continua sendo uma das formas mais típicas de reação romântica em face do desenvolvimento do mundo produzido pela modernidade.” (Ibidem:255). Mais ainda. Na busca de alternativa global à situação existente, ele diz que “sem nostalgias do passado, não pode existir sonho autêntico do futuro. Neste sentido, a utopia será romântica ou não será.” (Ibidem: 326). Isto é, sem um reencantamento do mundo e da vida, a nova utopia e a nova ordem social não será possível. O que não quer dizer uma volta à fundamentação religiosa do mundo e nem necessariamente um reencantamento baseado em tradições religiosas, mas em todo caso um reencantamento que supere o desencantamento do mundo moderno capitalista. Boaventura Sousa Santos, o conhecido cientista social e um dos principais teóricos do Fórum Social Mundial, também apresenta o tema do reencantamento do mundo associado à superação da atual ordem social mundial. Na sua crítica à racionalidade moderna, que “tende a privilegiar uma forma de representação que conhece (e regula) tanto melhor quanto maior é a distância entre o sujeito que representa e o objeto que é representado”, ele propõe como alternativa o que chama de conhecimento-emancipação que “privilegia o próximo como forma de conceber e compreender o real, mesmo que o real seja o global ou o futuro” e afirma que “só a ligação à proximidade, mesmo a uma proximidade nova e desconhecida, pode conduzir ao reencantamento do mundo.” (Santos, 2001: 115). A noção de reencantamento do mundo está associada à de conhecimento que privilegia a proximidade e que se abre ao novo e desconhecido. O novo, o desconhecido e a proximidade são termos que nos remetem ao mistério do outro, seja a pessoa ou a própria natureza que não se deixa conhecer totalmente e nem se deixa objetivar completamente porque está próxima, mostrando-se como outro ou outra, diferente do “eu” e para além da minha vontade de controlar. O desencantamento moderno está relacionado ao desejo de classificar para poder controlar, dominar e explorar (Bauman, 1999). E nesse processo a distância é fundamental, seja distância física, seja existencial – a postura da pessoa que se coloca “distante” da pessoa que pode estar fisicamente ao seu lado. É a distância que nos permite uma relação fria, desencantada, que é pressuposta para a dominação e colonização. Por isso, Boaventura S. Santos afirma que devemos substituir a cômoda estetização da brutalidade da atual ordem mundial capitalista pelo “agir atra136
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vés do reencantamento das práticas sociais locais-globais e imediatas-diferidas que plausivelmente possam conduzir do colonialismo à solidariedade.” (Santos, 2001: 116). Sem a proximidade da realidade e do sofrimento de seres humanos e da degradação do meio ambiente, sem o reencantamento não é possível passar da dominação ou indiferença para a solidariedade, para um agir solidário. Para François Houtart, “reencantar o mundo é uma aspiração contemporânea” e que se queremos também criar uma nova esperança é preciso voltar a descobrir a força do símbolo”. Mas ele alerta que é preciso observar pelo menos duas condições: “a primeira, de ordem intelectual: combinar o simbolismo com o pensamento analítico, para não cair na irracionalidade; e a segunda, de ordem moral: promover uma ética social pós-capitalista, para não cair na ilusão de uma mudança que se dirige aos efeitos e não às causas.” (2004: 20). Com esse alerta, Houtart articula a noção de reencantamento com a racionalidade e com a ética. Para ele o reencantamento não pode significar irracionalidade ou magia, pois soluções irracionais não produzem sociedades econômica, ecológica e socialmente sustentáveis. Com isso ele distingue a noção de encantamento da de magia ou feitiçaria, onde a vontade e o desejo de pessoais “especiais” teriam poderes de modificar a realidade. É uma noção de reencantamento que não nega o pensamento analítico, mas o supera fazendo uma nova “síntese” entre o símbolo e o pensamento analítico. Além disso, ele defende a tese de que esse reencantamento precisa assumir explicitamente um caráter ético pós-capitalista. Isto porque ele considera o desencantamento moderno como consequência das estruturas econômicas e políticas modernas e não a sua causa. Em outras palavras, não basta somente tentarmos reencantar o mundo no âmbito do imaginário ou na noosfera (Morin), pois sem uma mudança nas estruturas econômicas e sociais capitalistas, o encantamento das mercadorias e o desencantamento da natureza e da vida permaneceriam como seus efeitos.
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CAPÍTULO 8 Reencantamento na e da educação
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V
imos no capítulo anterior como o tema do reencantamento aparece nos mais diversos campos do saber e está ligado ao desejo e à necessidade de reformularmos a nossa maneira de compreender a natureza, a sociedade e a nós mesmos. Alguns autores fazem referência explícita ao espiritual ou religioso, enquanto que outros propõem uma noção de reencantamento dentro do marco de uma razão que reconhece os seus limites e resgata a importância da linguagem simbólica. No campo da educação, como não poderia deixar de ser, também encontramos diversas noções de reencantamento ou propostas de reencantamento da educação. Alguns com referência explícita a essa noção, outros com reflexões que convergem para esse tema. Com intuito de estimular ulteriores reflexões sobre o desafio de reencantarmos a vida e a educação e de encontrarmos um sentido de vida que supere o dominante no capitalismo atual, eu quero apresentar algumas reflexões em diálogo com três modos de abordar esse tema. 1. A educação e o sagrado. Maria Cândida Moraes afirma que uma nova proposta educacional que supere os paradigmas da modernidade deve ir além de uma proposta reflexiva voltada para a ação-reflexão e incluir também a dimensão que envolve o coração, o sentipensamento. Pois, para ela, a integração do sentir e pensar permite que a educação contribua na construção do ser humano como “templo da inteireza, onde pensamentos, emoções e sentimentos estejam em constante diálogo. E o ser que se apresenta por inteiro é belo, é justo, é saudável e é sagrado”. (2003: 126). Educar para o sentirpensar, para Moraes, é reconhecer que a emoção é a base da razão, por isso busca não só o desenvolvimento das inteligências e do pensamento, mas, sobretudo, a evolução da consciência e do espírito. “É educar no caminho do amor, da inteireza e da sabedoria. É educar o outro na justiça e na solidariedade. [...] É educar sem reprimir ou negar a experi139
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ência da comunhão, a experiência do coração, a experiência do espírito e a experiência do sagrado, reprimidos durante séculos em nome de algo que no mundo moderno chamamos de ciência.” (Ibidem: 127) Mas em que consiste essa experiência ou a busca do sagrado? Para ela, “a procura do Sagrado como a Fonte existente dentro de cada um de nós significa buscar a identidade do ser humano pelo autoconhecimento, uma procura cada vez maior de sua profunda unidade, para que o homem e a mulher possam conhecer a si mesmos, desenvolver a capacidade de reflexão e de consciência.” (1997: 109). Com a noção do sagrado na educação ou da educação para a experiência do sagrado, a Maria Cândida Moraes, se aproxima do tema do reencantamento6. O que queremos destacar aqui é o papel do conceito de sagrado nessa proposta de superação do paradigma da racionalidade moderna e do sentido de vida dominante no capitalismo contemporâneo. Para ela, o encontro com o sagrado implica também no encontro com as qualidades do mundo espiritual presente no interior de cada um – a verdade, a beleza, a gratidão, a esperança, o amor e a fé – e que deveriam estar mais presentes nos ambientes educacionais. Uma educação capaz de possibilitar essa experiência liberaria forças transformadoras do próprio indivíduo e também da humanidade Ruy do Espírito Santo, no seu livro O Renascimento do Sagrado na Educação, também apresenta uma proposta semelhante. Ele, como Moraes, não vincula o sagrado com nenhuma confissão religiosa e procura apenas a inserção da espiritualidade na educação, não como uma disciplina específica, mas sim como uma forma “de inserir uma reflexão que irá permear todas as disciplinas e que diz respeito à busca do sentido” (Espírito Santo, 1998: 18). Isto porque, para ele, “a perda do contato com o sagrado é o surgimento da insignificação” (Ibidem: 28), e é o contato com o sagrado que permite o resgate da unidade e da identidade do ser humano. É importante ressaltar que, com a noção de sagrado, Moraes e Espírito Santo procuram oferecer um ponto de referência no interior do ser humano que possa servir como “ponto de Arquimedes” para superar a fragmentação da razão e o “desfocamento” do sentido de vida perdido na correria do consumismo. Moraes explicita também que o sagrado serve de ponto de partida para a transformação pessoal e de toda a humanidade em direção à 6.
Aliás, no seu mais recente livro, escrito em parceria com Torre, SENTIPENSAR - Fundamentos e estratégias para reencantar a educação, (2004), esse termo aparece no subtítulo. 140
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justiça e solidariedade. Por isso ela associa o sagrado com a identidade do ser humano e as potencialidades do que ela chama de “mundo espiritual” presente no interior de cada um. Contudo, precisamos também ressaltar que a noção de sagrado é demasiadamente unívoca nesses autores. Se é verdade que as ciências modernas sufocaram o sagrado e o “mundo espiritual” e que isso produziu prejuízos para o ser humano e para toda a humanidade, também é verdade que a secularização e o desencantamento produziram também ganhos consideráveis para a humanidade. Tais como a separação do estado e igreja que não permite mais, ou pelo menos dificulta, o uso do poder sagrado para justificar injustiças, dominações e guerras; ou então o desencantamento que liberou a razão humana das feitiçarias irracionais e possibilitou avanços científicos que em muito melhoram as condições de vida humana, ao mesmo tempo em que aumentam também o poder de destruição dos seres humanos. O sagrado, as religiões e as espiritualidades são ambíguas como são todas experiência e instituições humanas. A separação da noção do sagrado das religiões não soluciona esse problema ou essa característica inerente à nossa condição humana. Pois como diz Mircea Eliade, um dos maiores estudiosos do fenômeno religioso do século XX, a manifestação do sagrado se dá “como uma realidade de ordem inteiramente diferente da das realidades ‘naturais’” (1956: 24) e possibilita “que se obtenha um ‘ponto fixo’ e permite, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, o ‘fundar o mundo’ e viver realmente” (Ibidem: 37), mas ela é também a manifestação de algo tremendum e gera o sentimento de pavor diante do sagrado. Essa é a razão porque em um lugar sagrado as pessoas devem tomar muito cuidado para não quebrar as regras rituais. O sagrado se manifesta como um mistério que fascina e nos atrai, mas que, ao mesmo tempo, nos dá pavor e medo. Como vimos nos capítulos anteriores, mitos e ritos fundados em uma determinada noção de sagrado servem para matar e para dar vida, para a verdade e a mentira, para o bem e o mal. Se perdermos de vista essa ambiguidade, não cuidaremos da tarefa de educar as pessoas para que sejam capazes de discernir entre símbolos, mito e ritos que em nome de um determinado sagrado podem matar ou defender e promover as vidas das pessoas. Por que alguém ou um grupo social adotaria um sagrado perverso? Porque pior do que um sentido de vida alienante e perverso é não ter sentido nenhum. Razão pela qual o desencantamento e a secularização da sociedade ocidental
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capitalista não significou o fim do encanto, da espiritualidade ou a fé em um determinado sagrado. Em resumo, os “pontos fixos” que nos permitem elaborar ou encontrar sentidos de vida podem ser referências humanizantes ou desumanizantes e perversas. É preciso que a educação volte a discutir o sentido da vida e a espiritualidade que nasce desse sentido, mas é fundamental que essa discussão não seja em termos de sim ou não ao tema do sagrado, espiritualidade e o sentido de vida, mas em torno de como educar para que as pessoas possam discernir e escolher entre os diversos tipos de símbolos, mitos, ritos e sagrados. 2. Educação holística e a espiritualidade. Rafael Yus, no livro Educação Integral: Uma Educação Holística Para o Século XXI, (2002) pretende dar uma visão sistemática e resumida da proposta de educação holística – na qual ele se situa. Reconhecendo que não existe uma definição universalmente aceita sobre a educação holística, por causa da diversidade de abordagens e de ênfases em aspectos determinantes, Yus elenca oito elementos como características dessa proposta educacional: globalidade da pessoa, espiritualidade, inter-relações, equilíbrio, cooperação, inclusão, experiência e contextualização. (2002: 21-25). Não vamos apresentar cada um desses elementos, mas apenas alguns itens que ajudam na nossa reflexão. Ao falar da globalidade da pessoa, Yus diz: “a educação holística está interessada no crescimento de todas as potencialidades humanas: intelectual, emocional, social, física, artística/estética, criativa/intuitiva e espiritual” (Ibidem: 21). Quero chamar atenção aqui à inclusão da compreensão do ser humano como mente, corpo e espírito, “elementos que estão estreitamente relacionados com um todo” (Ibidem: 21). Aprofundando esse tema, ele diz que “talvez o traço mais característico e diferenciador da tradição holística tenha sido, e ainda é a ênfase dada às dimensões espirituais dos alunos, um elemento desprezado pelos sistemas educacionais atuais, ou mesmo reduzido a um determinado dogma”. A espiritualidade é entendida aqui como “estado de conexão de toda a vida, de experiência de ser, de sensibilidade e compaixão, de diversão e esperança, de sentido de reverência e de contemplação diante dos mistérios do universo, assim como do significado e do sentido da vida.”. Desta forma, a educação 142
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holística associa o tema da espiritualidade ao do sentido da vida, que segundo os holistas “tem um significado e um propósito maior do que aquele que pode ser deduzido a partir das leis e de qualquer ideologia” (Ibidem: 22). Falar em espiritualidade e afirmar que a vida tem um propósito maior do que pode ser deduzido a partir das leis ou de qualquer ideologia, pode ser entendido como uma referência a uma verdade ou um sentido que está além da nossa condição humana que só poderia ser encontrado ou conhecido através de algum tipo de iluminação ou revelação. Em outras palavras, uma referência ao campo da religião. Para evitar esse mal-entendido, Yus afirma que “ao contrário do que se pode pensar, o holismo não se interessa pelas explicações religiosas em particular, pois sua função é atender e responder (não ignorar) ao chamado natural da espiritualidade dos aprendizes, e não moldá-los de acordo com especificações de um tipo de cultura, ideologia ou religião” (Ibidem: 22). Por isso a educação holística reivindica a educação da espiritualidade no âmbito escolar, “não tanto como uma ‘disciplina’, mas sim como uma orientação para a experiência interior.” (Ibidem: 109). Na medida em que, nas nossas sociedades, a noção de Deus está fortemente ligada às religiões, a maioria dos educadores holistas estudados por Yus preferem não relacionar o espiritual com Deus e nem seguir uma religião no processo educacional, de modo que buscam mais uma espiritualidade secular de caráter pessoal. Mais ainda, “para se distanciarem das conotações religiosas da espiritualidade, muitos educadores holistas contemporâneos, especialmente na segunda metade do século XX, adotaram a linguagem da psicologia profunda em vez de concepções espirituais.” (Ibidem: 109). A escolha ou não por uma determinada tradição religiosa ou espiritual é deixada por conta de cada pessoa. Essas ideias deixam clara a convergência entre essa proposta educacional e o que estamos analisando aqui como o “reencantamento da educação”. Além disso, Yus faz referência a Ron Miller que afirma que o holismo é, em última instância, uma rebelião do espírito humano, do inconsciente profundo contra a cultura mecanicista e sem significado e chama essa “revolução das sensibilidades” de “reencantamento do mundo”. Esse reencantamento no campo educacional, que passa por trazer espiritualidade para a educação, “significa incentivar os estudantes a envolver seu mundo com um sentimento de encanto pela análise, pelo diálogo e pela criatividade” (Ibidem: 115). Podemos ver nessa corrente educacional mais uma saudável tentativa de superar a cultura moderna mecanicista com uma nova epistemologia, que 143
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enfatiza as conexões humanas e nossas conexões com todo tipo de vida e se opõe ao antropocentrismo destrutivo e ao materialismo da cultura ocidental (cf. Ibidem: 113) e propõe uma antropologia que coloca em um lugar central o que eles chamam de dimensão espiritual do ser humano. É sempre prazeroso encontrarmos propostas educacionais que propõem a busca de um sentido de vida que vá além do que é dominante na nossa cultura de consumo. Entretanto, como podemos ter certeza de que a vida tem um propósito maior do que qualquer explicação humana (a partir das leis científicas e das ideologias), e como podemos saber qual é esse propósito e esse sentido da vida se a razão humana não dá conta e o holismo não se interessa por explicações religiosas? A afirmação de que “a educação holística está interessada na reverência pela vida e pela desconhecida, e nunca completamente conhecida, fonte de vida” (Ibidem: 22) pode nos indicar que o propósito é esse de reverenciar a vida e o seu mistério. Entretanto, apesar de razoavelmente satisfatória, esse tipo de afirmação não nos explica como então podemos saber em que consiste exatamente esse propósito que é maior do que as nossas possibilidades de explicações. Ficaríamos diante do mistério e teríamos de aceitar esse fato: acreditamos que existe um propósito de vida sobre o qual não se pode conhecer e nem explicar. As religiões representam tentativas humanas de, entre outras funções, dar explicações sobre esse propósito ou sentido de vida não explicável a partir das ideologias ou leis científicas. Por isso as religiões falam em “iluminações” ou “revelações” às pessoas especiais – profetas, iluminados, santos, místicos, etc. A substituição de linguagens religiosas por linguagens mais “científicas” e seculares a partir da psicologia profunda, por exemplo da junguiana, não resolve esse dilema do conhecimento do propósito da vida que vai além do conhecimento humano “normal”, a não ser que se faça da psicologia profunda um novo tipo de “revelação” e do holismo um novo tipo de religião, do tipo pós-moderno. O não enfrentamento teórico dessa aporia sobre o conhecimento do sentido da vida, uma questão fundamental para a espiritualidade, pode estar associado ao otimismo antropológico da educação holista. Segundo Yus, “por suas raízes rousseaunianas, a educação holística vê as pessoas como intrinsecamente boas” e “para os educadores holísticos, a educação é um processo de desenvolvimento do interior para exterior, um processo de autodescoberta, de aprender a responder perguntas essenciais como ‘Quem sou eu?”, ‘O que posso ser um dia?’, e ‘Qual é a minha missão na vida?’” (Ibidem: 40). 144
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É esse otimismo antropológico que pode estar na base de certo otimismo epistemológico no tocante ao conhecimento desse propósito maior da vida. Se o ser humano é intrinsecamente bom e a autodescoberta nos leva a aprender a responder a essas perguntas essenciais, não há porque discutir a possibilidade ou não do conhecimento do sentido maior da vida. Bastaria educar para esse processo de autodescoberta, a educação da espiritualidade. Se o ser humano é intrinsecamente bom, porque há necessidade da educação da espiritualidade? Não bastaria deixar a pessoa se desenvolver naturalmente, sem condicionamentos externos artificiais? A necessidade reconhecida da educação mostra que não é suficiente o “desenvolvimento natural” do ser humano. É preciso a educação. E por quê? Porque haveria, segundo essa corrente de pensamento, fatores externos à essência humana que dificultam ou impedem essa autodescoberta e esses seriam a cultura materialista, mecanicista e fragmentária da modernidade, além das religiões dogmáticas das sociedades pré-modernas. Encontramos aqui o mesmo problema encontrado na proposta de trazer o sagrado à educação, analisada acima: o não reconhecimento da ambiguidade humana e também da cultura moderna. Seres humanos, culturas, religiões e sistemas educacionais são todos ambíguos: são capazes de produzir o bem e o mal. O ser humano não é intrinsecamente bom, como a cultura moderna não é intrinsecamente má ou intrinsecamente castradora das dimensões espirituais do ser humano. Assim como nem todo “desenvolvimento espiritual” do ser humano leva à harmonia com o mundo externo e interno da pessoa. Há espiritualidades que desumanizam porque prometem transformar o ser humano em um ser mais do que humano, em um ser sobre-humano. Promessas que iludem e cobram sacrifícios. Reconhecer que, se a vida tem um sentido que transcende as nossas explicações científicas ou ideológicas, não podemos conhecê-lo é uma boa postura existencial e teórica. E educar para um sentido “espiritual” de vida significa também educar para conhecermos e reconhecermos os limites e potencialidades da nossa condição de ser humano, que pode se encantar com o diálogo, a criatividade e causas nobres e solidárias. 3. Reencantar a educação para reorientar a humanidade. Hugo Assmann é, sem dúvida, o autor que, no Brasil, mais tornou conhecida a expressão “reencantar a educação”. Em uma rápida pesquisa na 145
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internet, podemos encontrar mais de 600 entradas quando se pede ao mesmo tempo as palavras “reencantar” e “educação” e mais de 400 para a expressão “reencantar a educação”; e a grande maioria delas faz referências ao Assmann. O seu livro de 1996, Metáforas Novas para Reencantar a Educação, traz um capítulo com o título “Reencantar a educação”. Curiosamente, assim como no livro de Prigogine e Stengers (1997, publicado na França em 1984), esse capítulo não trata explicitamente do tema do reencantamento, mas aponta para “novos cenários de confluência das preocupações epistemológicas, desde diferentes disciplinas, mas em direção a conceitos básicos, se não idênticos, ao menos parecidos. [...] No que se refere à epistemologia, está surgindo uma forma de pensar acentuadamente transdisciplinar”. (Assmann, 1996: 118-119) Assmann, na mesma linha de Prigogine, relaciona a noção de reencantamento a um novo paradigma epistemológico que supera as fragmentações do mundo moderno e das ciências modernas. A sua preocupação é “revitalizar a educação. E é preciso enfatizar também que não se trata apenas de uma nova disposição teórica, mas igualmente de uma atitude prática diante da vida e do mundo. Em síntese, esse assunto tem tudo a ver com uma refundação do ético-político.” (Ibidem: 119). Nesta afirmação ele apresenta os três eixos que compõem a sua noção de reencantamento: uma nova epistemologia, uma postura de vida e um compromisso com a transformação da sociedade em novas bases éticas e políticas. Em outras palavras, ele articula ao mesmo tempo o aspecto sóciopolítico, o subjetivo e o epistemológico. No seu livro Reencantar a Educação (1998), ele se pergunta: “Será que ser educador/a é ainda uma opção de vida entusiasmante? Dá para falar em reencantamento da educação sem passar por ingênuo?” (Assmann, 1998: 22). Com essas perguntas, ele relaciona as noções de “entusiasmo” e “reencantamento”. Etimologicamente, entusiasmo significa “transporte divino”, algo como alguém cheio de espírito de Deus. Nas religiões da antiguidade, era o estado de exaltação do espírito de inspiração divina. Hoje, por extensão, entusiasmo designa o estado de fervor, de emoção intensa de origem religiosa ou estado de exaltação de alguém arrebatado pela inspiração artística ou poética. Também designa a força que impele alguém a criar ou agir com ardor, dedicação fervorosa, paixão, alegria e satisfação. Aqui ele está se referindo mais ao aspecto subjetivo do reencantamento.
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Contudo, não se pode pensar que Assmann está reduzindo a questão ao seu aspecto subjetivo. Ao mencionar o receio de se passar por ingênuo, ele situa histórica e socialmente esse entusiasmo: o mundo “desencantado” capitalista, que reduz tudo ao cálculo econômico e vê o entusiasmo de origem não econômica como algo sem sentido, irracional, e ingenuidade romântica fora do tempo. Logo após aquelas perguntas, Assmann afirma: “No mundo de hoje, a privação da educação é uma causa mortis inegável”; (Ibidem: 22) mostrando mais uma vez que a sua preocupação fundamental é a mudança da postura ético-política com a finalidade de salvar vidas humanas em um mundo que sacrifica, sem muitos remorsos, milhões de pessoas pobres. De onde viria o entusiasmo dos educadores? Ele não faz nenhuma referência a algum espírito divino ou a alguma inspiração de origem artística. O entusiasmo seria fruto do reconhecimento de que a educação é mais do que uma mera atividade profissional em troca de um salário; do reconhecimento de que a educação é um dos principais meios hoje para salvar vidas humanas. Mas, ao mesmo tempo ele tem plena consciência de que não basta uma boa educação sem mudanças estruturais na sociedade e no Estado. Por isso, o entusiasmo deve nascer também do assumir uma causa maior: a luta por mudanças éticas, políticas e econômicas na sociedade. A sua proposta de reencantamento da educação não faz referência à volta da importância da religião ou da espiritualidade religiosa na vida das pessoas e da sociedade. A sua luta não é contra a secularização, mas sim contra um tipo de desencantamento que trouxe o nosso mundo para um “beco sem saída”: a destruição do meio ambiente e a exclusão social de uma grande parcela da população mundial. Por isso ele afirma: “a educação terá um papel determinante na criação da sensibilidade social necessária para reorientar a humanidade”. (Ibidem: 26. O grifo é nosso.) Reencantar a educação para reorientar a humanidade! Nesta proposta de reencantar a educação para reorientar a humanidade aparece claramente a articulação entre a noção de reencantamento e a de sentido da vida. Uma nova orientação, um novo sentido de vida para a humanidade exige um reencantamento do ato de educar e de aprender, um processo que não pode ser determinado somente pelos ditames do mercado e dos cálculos financeiros. Um reencantamento que desencanta o mundo do consumismo e da acumulação, pois revela o “verdadeiro” sentido de vida, um sentido que se funda no próprio ato de viver e de se realizar como ser humano nas relações de diálogo e no conhecimento um do outro e do 147
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mundo que nos cerca, conhecimento que possibilita uma vida melhor e com mais sentido humano. A luta para reorientar a humanidade e salvar vidas faz a nossa vida valer muito mais do que pode ser calculada em termos econômicos, pois estamos falando de algo que vai muito além do cálculo ou da quantidade. Estamos falando de uma experiência de “profundidade” que faz a vida ter graça e encanto. Graça e encanto que não podem ser comprados ou vendidos no mercado e que só podem ser experienciados quando se assume um sentido da vida e lutas que carregam uma marca da gratuidade, algo que está fora da relação de compra e venda. Em síntese, reencantar significa para ele o entusiasmo dos/as educadores/as e dos/as educandos/as, a nova epistemologia e uma nova postura ético-política diante da vida e do mundo. Por isso ele afirma: “reencantar a educação significa colocar a ênfase numa visão da ação educativa como ensejamento e produção de experiências de aprendizagem”. (Ibidem: 29). Para que essas experiências de aprendizagem sejam capazes de “salvar” vidas e de reorientar a humanidade, “o reencantamento da educação requer a união entre sensibilidade social e eficiência pedagógica. Portanto, o compromisso ético-político do/a educador/a deve manifestar-se primordialmente na excelência pedagógica e na colaboração para um clima esperançador no próprio contexto escolar.” (Ibidem: 34) Esperança, sensibilidade social, eficiência pedagógica, uma nova racionalidade e compromisso ético-político são conceitos que circulam em volta e, ao mesmo tempo, constituem a sua noção de reencantamento de educação. Como vimos, Assmann não estabelece nenhuma relação explícita entre a sua noção de reencantamento com as religiões ou com espiritualidades, como fazem outros autores que vimos acima. Entretanto, isso não significa – na minha opinião – que ele não veja nenhuma relação possível entre a sua noção de reencantamento e algum tipo de religiosidade ou de espiritualidade. Até porque ele foi um profícuo autor de livros de teologia que refletiu, entre os anos 1970/95, sobre as lutas para a superação da exclusão social e criticou o que ele chamou de “idolatria do mercado”. Aliás, ele foi um dos primeiros e principais teóricos a analisar a teologia endógena do sistema de mercado capitalista, a sua espiritualidade e o seu sacrificialismo (o tema apresentado no nosso capítulo 5). Mas também é bom deixar claro que para ele nem todas as formas de religião ou de espiritualidade são compatíveis com a sua noção de reencan148
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tamento e com a defesa da vida dos excluídos e marginalizados. Há muitas formas de religião e espiritualidade que servem para exigir e legitimar sacrifícios de vidas humanas. O que ele deixa claro com a sua reflexão, apesar de não dito explicitamente, é que não há necessidade de se apelar para espiritualidade ou religião para propor e viver um reencantamento da vida e da educação. Assim, a sua proposta é “universalizável”, isto é, todos podem assumi-la, na medida em que não se coloca nenhuma pré-condição de caráter espiritual ou religioso, a não ser o entusiasmo para defender a vida humana e reorientar a humanidade nesse nosso habitat frágil. Outro ponto importante para compreender bem a sua proposta de reencantamento é a sua antropologia. Ele critica o neoliberalismo por conceber o ser humano como um ser incapaz de solidariedade no âmbito da economia e da sociedade e, com isso, depositar somente no mercado a tarefa da solidariedade social. Mas, ao mesmo tempo, ele critica aqueles que concebem o ser humano com intrinsecamente solidário e que defendem a tese de que o ser humano não vive essa solidariedade natural somente por causa da alienação capitalista ou qualquer outra força externa. Diz ele: É interessante observar que existe uma (não tão) estranha coincidência: a direita prega a solidariedade congênita dos mecanismos do mercado, e a esquerda prega uma predisposição espontânea para engajar-se pelo social. Em nenhum caso se toma realmente em conta o mistério da maldade humana e as dificuldades da necessária conversão para a fraternura. (Assmann, 1996: 59) Para Assmann, “os seres humanos não são ‘naturalmente’ tão solidários quanto parecem supor nossos sonhos de uma sociedade justa e fraternal” (1998: 20); não somos impregnados de “instintos naturais” adequados para isso. Por isso ele afirma que não devemos colocar em segundo plano o complicado problema da educação para solidariedade, ou a conversão para solidariedade. Ele não está querendo dizer que os seres humanos sejam “naturalmente” perversos ou antissolidários, mas alertando contra uma ingenuidade antropológica que pode nos levar a descuidar dessa importante tarefa de educar
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para a solidariedade dentro do grande objetivo de educar para um sentido de vida mais humano. Como ele mesmo diz: Pretende-se apenas recuperar o lado sábio e realistas dos mitos [...] acerca da ‘queda’ ou ‘corrupção’. A questão do pecado original é uma espécie de chave interpretativa acerca do que se pode esperar dos seres humanos no convívio social. (Assmann, 1998: 20) É claro que, ao falar do pecado original, ele não está se referindo ao senso comum sobre esse tema: a ideia de que pelo pecado de Adão e Eva a humanidade foi condenada ao sofrimento e que esse pecado, transmitido de geração em geração, só seria perdoado pelo batismo. Assmann está tomando o conceito de pecado original no seu sentido mais profundo: o reconhecimento do mistério do mal na humanidade e a nossa incapacidade ou dificuldade de realizarmos o bem que queremos realizar. Muitas vezes nós sabemos o que é o bem e o queremos realizar esse bem, mas há algo em nós que nos impede ou que nos atrapalha. Por isso nos arrependemos depois. O problema aqui não é nem a ignorância e nem a falta de boa vontade. Há o conhecimento e o desejo de se fazer o que é certo, mas há algo que nos dificulta. O pecado original é um conceito teológico para se referir a essa nossa condição humana, a esse mistério do mal entre nós. Por isso ele fala da solidariedade como resultado de uma conversão, de uma luta interior movida pela força desse entusiasmo, do reencantamento da educação e da vida. 4. Reencantamento, solidariedade e o fetiche da mercadoria. Todos autores que trabalham com a ideia de reencantamento têm em comum a proposta de superação do paradigma mecanicista e fragmentário da modernidade. Isto é, o reencantamento tem a ver com uma nova forma de ver a vida e a realidade que nos cerca: a ênfase nas conexões e interdependência de todas as coisas e seres vivos entre si e com a totalidade do mundo existente. A palavra chave é a “re-ligação” do que foi artificialmente separado e isolado, sem a relação com o todo, pela razão moderna. Outro aspecto comum a autores, especialmente do campo das ciências humanas e sociais, é a crítica à redução de tudo e da vida à quantidade e ao 150
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cálculo econômico, que nega um sentido e uma dignidade para além desses números. É a busca de um sentido para além do economicamente mensurável, o que Leonardo Boff chamou de “profundidade”. É a busca de um reencantamento que seja capaz de dar um sentido à vida que seja muito mais humano do que a busca obsessiva por mais consumo e mais acumulação. Alguns autores associam explicitamente essa busca com a espiritualidade ou com a religiosidade humana, outros não e “fundam” essa busca no reconhecimento dos limites da razão humana, na percepção do mistério da vida, na experiência de estar e ser “próximo” e no entusiasmo por defender a vida. Um terceiro aspecto bastante presente, que decorre das duas anteriores, é a associação da noção de reencantamento da vida e da educação com a noção de solidariedade, com uma nova postura ético-política. Em um outro livro, Competência e Sensibilidade Solidária: Educar para Esperança, (Assmann & Sung, 2000), eu e Hugo Assmann trabalhamos longamente o tema da solidariedade, por isso não vou aprofundar aqui como a educação para solidariedade pressupõe: a) uma nova epistemologia que mostre a interdependência de todos os seres – que faz o “destino” de cada um estar conectado com o “destino” dos outros e da totalidade –, o que chamamos de solidariedade como um fato; b) e uma sensibilidade e abertura ao sofrimento das pessoas que estão fora do meu “mundo”, o que chamamos de solidariedade como uma exigência ética. O que quero chamar atenção aqui é que não é possível superar o consumismo e a busca da acumulação ilimitada como “o” sentido da vida sem abraçar a solidariedade como um valor fundamental na vida das pessoas e da sociedade. O desencantamento das mercadorias de marcas famosas e o reencantamento da vida e da educação passam pelo reconhecimento de que a fonte da humanidade não está nas mercadorias, mas sim no próprio ser humano. A solidariedade real, não a de mera aparência e de conveniência, nasce desse reconhecimento de que a outra pessoa, por mais pobre e excluída que seja, é uma pessoa com toda a dignidade humana. Nasce do protesto e rebelião contra a sociedade que não a reconhece e não trata como pessoa porque não é consumidora de mercadorias-símbolos. Em síntese, o reencantamento da vida e da educação é a busca de um novo sentido de vida, um sentido mais humano, que pressupõe e é, ao mesmo tempo, constituído de uma nova forma de ver e compreender a vida e a realidade que nos cerca (nova epistemologia), a descoberta da “profundidade” e a vivência de um entusiasmo para além do econômico-quantita151
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tivamente mensurável (uma nova espiritualidade) e a solidariedade com os injustiçados em busca de outra sociedade (uma nova postura ético-política). Essa busca, como vimos nos capítulos anteriores, não é a de encantar um mundo completamente desencantado, mas sim a de reencantar a vida e a educação em um mundo em que o encantamento do mundo do consumo, das mercadorias-símbolos, levou ao desencantamento das outras dimensões e aspectos da vida. Por isso, é fundamental retomarmos a análise do mistério do encantamento das mercadorias nas sociedades capitalistas. As pessoas desejam consumir mercadorias-símbolos para serem reconhecidas por outras pessoas do seu grupo. Esse desejo de reconhecimento no interior de uma concorrência sem fim para ver quem consome mais e melhor é, como vimos antes, uma luta sem fim, uma corrida sem, angustiante e destruidora da humanidade das pessoas, da sociedade e do meio ambiente. Além disso, é um grande equívoco porque faz da posse da mercadoria a “chave” da humanização e, assim, faz da mercadoria a fonte da humanidade. Este é um dos aspectos do que Marx chamou de fetiche da mercadoria. À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada misterioso nela (...) Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. O caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso. (Marx, 1985: 70) Neste texto, Marx nos fala de duas dimensões da mercadoria no capitalismo. A mercadoria enquanto valor de uso, enquanto produto útil para atender às nossas necessidades, não tem nada de muito complicado, é uma coisa trivial. Mas, enquanto mercadoria, algo produzido para ser vendido no mercado, “é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas” e chega a possuir um “caráter místico”. É uma linguagem surpreendente: um autor conhecido pela maioria como “materialista” falando de temas religiosos não no campo religioso, mas no campo econômico. Essa análise me lembra uma das minhas primeiras aulas de Marketing na Faculdade de Administração de Empresas da Universidade de São Paulo. O
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professor nos disse que uma mercadoria tem quatro aspectos ou dimensões: o produto como tal, a sua utilidade, como eu vou me ver possuindo essa mercadoria, e o que os outros vão pensar de mim se eu possuir essa mercadoria. Depois nos perguntou qual desses aspectos era o mais importante. Nós no nosso “realismo ingênuo” respondemos que era o segundo aspecto, a sua utilidade. Ele nos mostrou que o mais importante para o Marketing é o quarto, depois o terceiro, o segundo e, por fim o primeiro aspecto. O produto em si e a sua utilidade não são os aspectos mais importantes na produção capitalista, mas sim o que os outros vão pensar de mim como o consumidor desse produto e depois como eu vou me ver. O reconhecimento ou não dos outros gerando a minha auto-imagem são os aspectos mais importantes no mundo das mercadorias. Voltando à análise do fetichismo de Marx, podemos perceber nessa citação que a separação radical entre o campo econômico e o campo religiososimbólico não faz muito sentido na medida em que a mercadoria “se transforma numa coisa fisicamente metafísica”. Na verdade Marx antecipou o que muitos economistas e administradores aceitam hoje: o valor econômico dos símbolos (imaginem o valor econômico das marcas McDonald, CocaCola, Armani, etc.) e o valor simbólico dos bens econômicos (como Nike que não vende um tênis, mas sim um estilo de vida). Podemos dizer que nessa análise encontramos uma convergência com o aspecto epistemológico das propostas de reencantamento. Uma análise complexa que não separa radicalmente os diversos aspectos e dimensões da realidade. O outro desafio é o desvelamento desse caráter teológico-místico das mercadorias, sem o qual não é possível ou não é eficaz a proposta de um sentido de vida mais humano e o reencantamento da vida e da educação. Marx, após dizer que o caráter misterioso da mercadoria provém da forma capitalista de produção – um tema importante e extenso que não vamos abordar aqui porque vai além dos objetivos deste livro –, diz: para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho,
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tão logo são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (Marx, 1985: 71) Marx diz que o fetiche da mercadoria encontra uma analogia no mundo da religião. Analogia é um método que utilizamos para compreendermos fatos ou processos difíceis de serem descritos de um modo direto e imediato. Buscamos a analogia com algo já conhecido para entrarmos em um novo assunto ou um novo campo. Ao estabelecer essa analogia entre a religião e o mundo das mercadorias no capitalismo, Marx está dizendo que uma mesma lógica, ou lógicas semelhantes ocorrem nesses dois campos distintos. E que para entendermos o mundo do fetiche da mercadoria precisamos entender primeiro o mundo das religiões. É claro que uma compreensão superficial e preconceituosa do mundo religioso vai prejudicar a compreensão do mundo do fetiche da mercadoria e, por conseguinte, a compreensão das manhas teológicas e místicas que estão por detrás do sentido último da vida dominante nas nossas sociedades hoje. No fundo, encontramos aqui uma convergência entre essa posição de Marx com a de Morin, quando ele fala da necessidade de uma “noologia”: somos seres simbólicos e qualquer coisa pode se tornar símbolo de algo “sagrado” nas nossas vidas e nas nossas sociedades. Em resumo, para reencantarmos o mundo e vivermos um sentido de vida mais humano e solidário, precisamos também nos debruçar sobre o mundo das religiões e dos símbolos. Pois, sem uma compreensão crítica desse mundo, a educação para um sentido de vida mais humano não é possível ou não é eficaz.
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CAPÍTULO 9 O sentido da vida, a fé e a condição humana
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E
u quero começar este último capítulo citando novamente um texto de Morin: Não existe, infelizmente, uma noologia, destinada ao âmbito do imaginário, dos mitos, dos deuses, das ideias, ou seja a noosfera. Alimentamos com nossas crenças ou nossa fé os mitos ou ideias oriundas de nossas mentes, e esses mitos ou ideias ganham consistência e poder. Não somos apenas possuidores de ideias, mas somos também possuídos por elas, capazes de morrer ou matar por uma ideia. (Morin, 2002b: 53) Não vamos nos deter aqui na discussão sobre se já existe ou não o que Morin descreve como noologia. Na minha opinião, muito do que ele propõe já é debatido, em abordagens inter ou transdisciplinares, por diversos autores que fazem parte de um campo de estudo relativamente novo conhecido como “ciências da religião”7. É claro que nem tudo o que é discutido e produzido dentro desse campo converge com a proposta de Morin, mas, sem dúvida, já há produções significativas que analisam e debatem a “noosfera” e a sua relação com outros aspectos e dimensões da vida concreta das pessoas e da sociedade. O que quero retomar aqui é o fato de que somos seres produtores de símbolos, mitos, deuses e narrativas que adquirem consistência e poder ou influência sobre nós mesmos, os seus criadores. Não há como negar isso, tanto no sentido de negar a sua existência quanto no sentido de querer acabar com esse processo. A ilusão de que não somos ou que podemos não ser assim só reforça uma situação de submissão aos mitos e deuses (ex7.
No Brasil podemos citar os Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP, UMESP, UFJF e outros. Quanto à terminologia, há autores que defendem a de “ciências das religiões” e também outros que propõe “ciência das religiões” ou então “ciência da religião”. (Vide por ex, Teixeira, 2001; Filoramo & Prandi, 1999)
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plicitamente religiosos ou não) de plantão que estão dominando na nossa sociedade. O mundo moderno pretendeu substituir a religião pela razão/ciência e Deus pelo sujeito humano, por isso produziu uma visão quase que totalmente negativa em relação, não somente às religiões tradicionais que predominavam nas sociedades pré-modernas, mas a tudo que se refere ao imaginário simbólico, mitos e espiritualidades. E resultado foi, na verdade, a produção de um novo tipo de encantamento, novos deuses e novos tipos de fé e espiritualidade. O que mostra que nós humanos realmente somos seres simbólicos e, como tais, não podemos prescindir desses elementos nas nossas vidas. Se esses elementos são imprescindíveis nas nossas vidas e se em nome deles muitas mortes e sofrimentos foram exigidos e justificados, ao mesmo tempo em que em nome deles muitos deram a sua vida para defender os injustiçados e os oprimidos, precisamos educar os nossos jovens para que saibam discernir as diferenças entre os diversos tipos de crenças, símbolos, mitos, ritos e deuses. Só assim podemos superar a noção de educação reduzida à instrução e aos aspectos técnico-científicos, nunca nos esquecendo que o nazismo foi fruto de uma civilização ilustrada e científica e tecnologicamente avançada. Só com esse discernimento do mundo simbólico que nos aponta o sentido último das nossas vidas, podemos também superar a ingenuidade de crermos que todas religiões, tradições espirituais são boas ou más em si ou de que o capitalismo é uma sociedade desencantada e que não possui uma teologia e uma espiritualidade que nos aliena, condena à miséria milhões de pessoas e coloca em perigo o nosso meio ambiente. É dessa forma que podemos superar a ilusão de que podemos viver sem um sentido da vida, ilusão essa que simplesmente legitima o sentido da vida dominante no capitalismo. Antes de entrar na discussão sobre quais podem ser os critérios para esses discernimentos e de como podemos trabalhar com essas questões nos nossos sistemas educacionais, eu quero retomar a relação entre esta discussão sobre o sentido da vida e o processo econômico e social mais amplo, a globalização e a superação da exclusão social. 1. Globalização e a imitação do desejo de consumo. O atual processo de globalização econômica exige a criação de um mercado consumidor cada vez mais amplo e mais homogêneo. Só assim as 158
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marcas e modelos globais podem ser criados, produzidos massivamente e distribuídos para o mundo todo. Isso significa que o processo social da demonstração ou da ostentação de bens de consumo e o desejo de imitação desse padrão de consumo por massas de consumidores precisam ser também de escala mundial. É por isso que grandes ídolos esportivos ou artistas, como Ronaldinho, Beckham e outros, ganham fortunas para “educar” os povos (consumidores) de todas as nações que o sentido da vida está em ser como eles, em comprar o que eles indicam, e assim padronizar os desejos de consumo das pessoas por todo o mundo. Fazer do consumo de mercadorias-símbolos o sentido último da vida é uma peça chave na globalização econômica capitalista contemporânea. O problema é que essa pressão consumista é marcada por profundas e sérias contradições. (Gonzáles-Tablas, 2000: 201-213; UNDP, 1998). Entre elas, queremos destacar três. A primeira é o conflito entre a homogeneização da cultura de consumo e a diversidade de contextos histórico-culturais. Não estamos falando somente da “invasão cultural” de Hollywood e Cia, mas também do predomínio dos valores e padrões estéticos veiculados pelas propagandas e pelas mídias sobre os valores e padrões estéticos e culturais locais; e o consequente complexo de inferioridade ou baixa autoestima da população local. Você pode imaginar o sentimento de frustração difusa e quase que permanente de um jovem negro ou asiático que assume Beckham como modelo de ser humano? Ele pode tentar comprar, mesmo com muito sacrifício e privações, as mercadorias que Beckham diz desejar, mas ele nunca poderá atingir o padrão de homem-masculino que ele internalizou. O segundo conflito é que o padrão de consumo que se deseja imitar não é acessível à maioria da população mundial, especialmente nos países ditos “em desenvolvimento” e nos países pobres. Mais do que isso, como Celso Furtado sempre nos alertava desde a década de 1960, “a adoção de padrões de consumo imitados de sociedades de níveis de riqueza muito superiores torna inevitável o dualismo social” (1992: 44). Os super-ricos e ricos concentram cada vez mais riquezas no desejo de se manterem na corrida pela imitação do padrão de consumo da elite dos países ricos ou da elite global. Não só os super-ricos e ricos, mas também a classe média também desejam consumir o que a nossa elite lhes aponta; e os pobres lutam entre si para ver quem consegue chegar primeiro no padrão de consumo que está logo acima do seu. Sem romper com esse desejo de imitação do consumo que serve de guia principal do sentido da vida na nossa sociedade, não há como vencer 159
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ou enfrentar de fato a lógica da globalização atual e a exclusão social, ou no dizer de Celso Furtado, o dualismo social. A concentração de riqueza e a conseqüente exclusão social são o outro lado da moeda de uma sociedade movida pelo desejo de imitar o padrão de consumo dos países mais ricos. (Sung, 1998). Paulo Freire também fez da crítica a esse mimetismo um dos pontos centrais da sua Pedagogia do Oprimido. Ele disse que o fato de os oprimidos “hospedarem” dentro de si o seu opressor é o grande problema para que os oprimidos participem da elaboração da pedagogia da sua libertação. Por isso, “somente na medida em que se descubram ‘hospedeiros’ do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora.” (1979: 32) Isto porque a estrutura do seu pensar se encontra, como não poderia deixar de ser, condicionada pelas contradições vividas nas situações concretas e, por isso, o ideal do homem que eles querem ser é o opressor porque “estes são o seu testemunho da humanidade” (Ibidem: 33), isto é, os seus modelos de ser humano. Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustrado” da chamada classe “superior”. (Freire, 1979: 53) O outro lado desse desejo de imitação é a baixa autoestima: “a autodesvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles têm os opressores.” (Ibidem: 54). O terceiro conflito consiste no fato de que esse padrão de consumo, que se espalha pelo mundo como a meta a ser atingida para ser reconhecida como pessoa, é ecologicamente insustentável pelo seu impacto sobre os recursos, renováveis e não renováveis, do nosso planeta e pelos lixos e resíduos de todo tipo, que superam em muito a capacidade de absorção do meio ambiente local e planetário. Em síntese, a nossa discussão sobre a educação para um sentido da vida alternativo ao da cultura de consumo capitalista tem impactos na vida pes160
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soal, nos problemas econômicos e sociais dos nossos países e no meio ambiente. É uma questão fundamental em todos os sentidos. 2. O sentido da vida e a fé. O primeiro passo para discutirmos o sentido da vida é o desvelamento e a crítica do sentido da vida que predomina na nossa sociedade. Mas isto não é suficiente. Pois se criticamos e não propomos nenhum sentido alternativo, não resta às pessoas senão a alternativa de voltar ao sentido que a sociedade oferece e impõe através dos seus instrumentos culturais e educacionais. Afinal, não podemos viver sem nenhum sentido. Como diz um velho ditado popular: “o amor antigo só se esquece com o novo”. Qual pode ou deve ser um sentido alternativo da vida? Quando analisamos algumas propostas de reencantamento da educação, já começamos a discutir essa questão. Entretanto, precisamos assumir que não é uma tarefa fácil. Primeiro porque não há nenhuma instância, instituição ou ramo da ciência que possa dizer com certeza “este é o sentido!” Afinal já superamos ou devíamos ter superado a fase do monopólio de interpretação do sentido da vida por uma determinada religião ou por uma determinada ciência; apesar de que o capitalismo continua tentando manter esse monopólio. Devemos reconhecer que nenhum tipo de conhecimento e nenhuma corrente no interior de qualquer ciência têm condição para isso. Segundo, e o mais importante, é que um sentido da vida não se torna o sentido da vida para uma pessoa se essa pessoa em questão não o assume existencialmente, isto é, não adianta um determinado sentido da vida ser imposto como “o” verdadeiro se não há adesão por parte das pessoas. Por isso, o melhor caminho e a tarefa que os/as educadores/as podem assumir é ajudar os/as educandos/as a adquirirem ou construírem conhecimentos que lhes possibilitem o discernimento entre os diversos possíveis sentidos da vida. Este reconhecimento da impossibilidade de se apontar para um único e verdadeiro sentido da vida não significa que não há já caminhos realizados por outras pessoas ou por tradições de sabedorias espirituais de quem podemos aprender. Essa aprendizagem não deverá ser centrada no “conteúdo”, mas no modo como elas caminharam, como elas realizaram as suas buscas. Caminhos já percorridos e experiências acumuladas por outras pessoas ou grupos podem nos ajudar como mapas, conselhos e pistas no nosso próprio caminhar. Esta é a razão pela qual devemos estudar as tradições espirituais 161
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e religiosas da humanidade. Não só para conhecer as tradições de outros povos e culturas, para aprender a conviver com os diferentes, mas também para aprender com elas a aprender a sermos mais humanos. Uma outra questão importante é que o sentido da vida que a sociedade ensina desde a nossa infância e que é vivida pela maioria da população sempre aparece como o mais óbvio e natural. Esta é uma das razões pelas quais não se discute, ou se discute muito pouco, o sentido da educação e da vida nos dias de hoje. Se o sentido dominante é visto como “natural” e dá uma falsa sensação de segurança e certeza, o assumir ou buscar um sentido alternativo para a vida aparece mais claramente como uma aposta, como um ato de fé. Na verdade, todos os sentidos de vida são sempre uma aposta, pois ainda não chegamos “lá” para termos certeza da validade do sentido assumido em um ato de fé. (A fé é entendida aqui em uma dimensão antropológica.) Assim sendo, a fé, em um sentido mais amplo e antropológico, “constitui uma componente indispensável – uma dimensão – de toda existência humana” (Segundo, 1985: 31). Para evitar mal-entendido quero deixar claro aqui eu não entendo pela fé algo como certeza dogmática, pois a fé não é sinônimo de certeza, muito pelo contrário. Quem tem certeza não precisa fazer ato de fé. Aliás, hoje em dia é consensual que nem as ciências naturais podem nos oferecer certezas absolutas, mas somente verdades aceitas enquanto não se prova que elas estão equivocadas ou são insuficientes. A fé ou a aposta em um determinado sentido da vida tem a função de estruturar significativamente a nossa existência e de hierarquizar os valores até chegar a um valor “absoluto”, ao qual subordinamos todo o resto. A fé religiosa não nega essas características, pois como diz Juan Luis Segundo, um dos maiores teólogos latinoamericanos do século XX, “aquilo que chamamos de ‘fé’ no sentido religioso da palavra está compreendido nesta dimensão antropológica como um caso particular”. (1985: 31) Em outras palavras, a fé no sentido religioso é uma forma específica de uma dinâmica mais ampla que é a dimensão antropológica da fé. Jurandir Freire Costa, um conhecido psicanalista brasileiro, comentando sobre a participação dos religiosos dominicanos na dinâmica social brasileira na época da ditadura militar, diz que “a ação dos religiosos prova que fé não é idealismo vazio, e, sim, indício de vitalidade cultural”. Ele reconhece que a tradição secular considera a fé como “sinônima de crença irracional em verdades reveladas de natureza sobrenatural”, mas afirma que “à luz do 162
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evento dominicano, essa impressão se esfumaça. No episódio, a fé surge como o ato que, com ou sem o adjetivo espiritual, funda os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.” Seguindo com a reflexão, ele afirma que “na atitude dos religiosos, fé nem é blindagem cega contra dúvidas nem flerte com idéias totalitárias. É coragem de sustentar princípios que fazem da vida terrena uma empresa com sentido” e que isso vale tanto para a fé do religioso em Deus, como para a do cientista na ciência e a do humanista nos melhores aspectos das pessoas, etc. (2005). A fé, seja do religioso, do cientista ou do humanista, com ou sem adjetivo espiritual, é o que possibilita que a vida tenha um sentido e serve como primeiro motor da práxis humana. Quem não tem nenhuma fé não consegue estruturar significativamente a sua existência e, por isso, fica paralisado por causa da desorientação total. Nesse sentido, a fé não é sinônima de confiança, pois a falta de confiança nos paralisa por timidez ou abatimento, enquanto que a falta de fé nos paralisa por desorientação. O fato de Jurandir F. Costa explicitar que ele está se referindo à fé dos dominicanos que lutaram contra a ditadura mostra que a fé é, como também diz mais explicitamente Segundo, uma dimensão mais geral do ser humano e que, por isso, precisamos adjetivá-la e contextualizá-la para poder discernir a sua “qualidade”, para distinguir a fé que nos humaniza daquela que nos desumaniza. Distinguir, por exemplo, a fé desses dominicanos ou de Gandhi da fé de um neoliberal que crê piamente no caráter sempre benéfico do mercado capitalista e, por isso, impõe ou apóia medidas econômicas que sacrificam muitas vidas humanas. A diferença fundamental entre a fé dos dominicanos e a de um neoliberal não está no fato de que a fé dos primeiros tenha uma inspiração explicitamente religiosa e a do segundo não, mas em que eles apostam as suas vidas, qual é o sentido último da vida que assumem. Para esse processo de discernimento, é importante agregarmos a racionalidade autocrítica para não cairmos na irracionalidade. Uma determinada fé não pode ser o critério para discernir entre vários tipos de aposta de sentido da vida, pois assim cairíamos na absolutização de uma fé sobre as outras. Como vimos antes, a fé e o reencantamento não devem cair na irracionalidade, pois no campo da irracionalidade é o mais forte que prevalece e não a verdade ou a justiça. É preciso manter o binômio fé-razão, em uma tensão dialética permanente. Como diz Morin, “a aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. [...] A fé incerta, como em Pascal, Dostoievski, Unamuno, Adorno, Goldmann, é um dos mais preciosos suportes que a cultura 163
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européia produziu; o outro é a racionalidade autocrítica, que constitui nossa melhor imunização contra o erro.” (2000b: 62-63). 3. Sentido da vida e a condição humana. Se o sentido da vida é sempre resultado de uma aposta, em que devemos apostar? Mesmo que não podemos definir de antemão e de uma forma mais detalhada ou específica, podemos propor algumas diretrizes mais gerais que poderão nos ajudar na determinação do “objeto” da aposta. 3.1. Viver humanamente. A primeira diretriz, a de partida, é: o sentido da vida humana não pode ser algo que nos reduza a uma condição sub-humana ou que nos prometa elevar-nos a uma condição supra-humana ou pós-humana. Isto é, o sentido da vida humana é se humanizar, viver humanamente. Isto parece óbvio, mas não é tão simples assim. É claro que o sentido da vida humana não pode ir além da nossa condição humana, no sentido de superarmos a nossa condição, deixarmos de ser o que somos, ou de ir aquém, no sentido de voltarmos a uma condição anterior a do humano. Mas, essas tentações estão sempre muito presentes. Isto pode ser percebido de duas formas: a) a insistência com que diversos autores falam da necessidade de assumirmos a nossa condição humana; b) da constante tentação e promessas de atingirmos a infinitude ou a plenitude, (conhecimento absoluto dos mistérios da vida, certezas sobre as realidades sobrenaturais, realização de todos os desejos, uma vida de harmonia plena e total, etc.) que no fundo significam nos livrarmos das características fundamentais da nossa condição. Humberto Maturana, no prefácio à segunda edição em espanhol do livro De máquinas e seres vivos, diz que, diante da pergunta pelo sentido da vida e do viver, chegou à conclusão de que a vida não tem sentido fora de si mesma, que o sentido da vida de uma mosca é viver como mosca, ‘mosquear’, ‘ser mosca’, que o sentido da vida de um cachorro é viver como cachorro, ou seja ‘ser cachorro ao cachorrear’, e que o sentido da vida de um ser humano é o viver humanamente ao ‘ser humano no humanizar’. E tudo isso no sentido de que o ser humano é somente o 164
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resultado de uma dinâmica não-proposital. Tais reflexões me permitiram reconhecer e aceitar que o sentido de minha vida era minha tarefa e minha única responsabilidade.” (Maturana & Varela, 1997: 12) Não vamos discutir aqui se a vida humana tem ou não uma dinâmica proposital, isto é, se há algum propósito guiando o processo da evolução da vida e do nosso viver – pois essa discussão foge do objetivo do nosso livro e também porque creio que não se chegará tão logo a um consenso sobre esse tema –, mas, independente dessa questão, estou plenamente de acordo que o sentido da vida humana é “viver humanamente ao ‘ser humano no humanizar’”. Se a vida humana tivesse o seu sentido fora da própria vida humana, a vida humana seria um mero instrumento ou um meio para um fim mais supremo. E, em nome desse fim mais sublime, se exigiria sacrifícios de vidas humanas. Quando seres humanos propõem um sentido da vida que vai além da vida mesma, eles estão, na verdade, criando ídolos – criações humanas elevadas à categoria de absoluto. Como muito bem diz Horkheimer, “qualquer ser limitado - e a humanidade é limitada - que se considera como o último, o mais elevado e o único, se converte em um ídolo faminto de sacrifícios sanguinários, e que tem, ademais, a capacidade demoníaca de mudar a identidade e de admitir nas coisas um sentido distinto”. (1976: 68) A afirmação da vida humana como tendo valor e sentido em si mesma exige a negação de todas as formas de idolatria, de todos os seres que se declaram ou são declarados por seus adoradores como absoluto e doadores de valor e sentido para a vida humana. Isto vale tanto para diversas imagens de deuses que exigem sacrifícios de vidas humanas, para o Estado Comunista do tipo soviético que sacrificou milhões de pessoas em nome da revolução, quanto para a ideologia neoliberal que considera o mercado como algo absoluto ao qual o ser humano deve se submeter e só considera o indivíduo humano como portador de dignidade na medida em que se adentra ao mercado e se torna um consumidor competente e, assim, exclui e sacrifica vida de milhões de pessoas. A noção de ídolos – deuses que exige sacrifício de vidas humanas – e a crítica radical à idolatria – adoração a deuses sacrificiais que dá consciência tranqüila aos vitimadores e culpabiliza as vítimas inocentes, invertendo completamente a verdade e a noção de justiça – não são criações teóricas de 165
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pensadores modernos. Na verdade, Horkheimer e outros pensadores que trabalham com esse conceito se inspiram na crítica feita pelos profetas Isaías, Jeremias e outros da Bíblia Hebraica (também conhecido pelos cristãos como Antigo Testamento) e também do Novo Testamento. Nesse sentido, podemos considerar esses profetas e outros autores dos “textos sagrados” como sábios pensadores da vida pessoal, social e mítico-religiosa, independente de se eles foram ou não pessoas “inspiradas”. Este é um exemplo de como podemos aprender com as sabedorias acumuladas nas tradições religiosas e espirituais como discernir os diversos tipos de mitos, deuses e sentidos da vida. 3.2. A finitude humana e o desejo do infinito. O tema da condição humana é também central na proposta educacional de Morin. Se fôssemos resumir em uma única frase o seu livro Os Setes Saberes Necessários para à Educação do Futuro, poderíamos dizer: educar para a condição humana. Ele diz na introdução desse livro: “a condição humana deveria ser o objeto essencial de todo o ensino” (2000a: 15). E o estudo dessa nossa condição “não depende apenas do ponto de vista das ciências humanas. Não depende apenas da reflexão filosófica e das descrições literárias. Depende também das ciências naturais renovadas e reunidas, que são: a Cosmologia, as ciências da Terra e a Ecologia.” (Morin, 2000b: 35). Um dos aspectos centrais da condição humana, além de reconhecimento de que “somos seres, simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais, cerebrais, espirituais” (Ibidem: 38), é a aceitação da nossa finitude. Nós seres humanos, pela nossa própria condição, somos capazes de desejar e pensar a infinitude. O segredo de muitas religiões, igrejas, correntes místicas ou ideologias político-econômicas modernas está na promessa da realização do desejo da infinitude. E como nós humanos temos uma grande capacidade de nos autoenganarmos, aceitamos essas promessas e suas racionalizações mistificadoras e nos submetemos às suas exigências sacrificiais. Estou pensando aqui em muitas promessas religiosas que garantem a vida eterna ou a plenitude em troca de cumprimentos de certas leis ou práticas místico-religiosas e também na obsessão pelo consumo infinito e acumulação ilimitada do capitalismo. A corrida pelo consumo infinito ou a busca pela juventude e beleza eterna são alguns dos sintomas da busca pela negação da nossa condição humana nos dias de hoje (Sung 2005: cap. 8). 166
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No passado, a certeza de se atingir o infinito era baseada em discursos religiosos, enquanto que no mundo moderno voltamos para a conquista da natureza e “a lei do progresso dizia-nos que este continuaria até ao infinito. Não havia limites para o crescimento econômico, nada de limites para a inteligência humana, nada de limites à razão. O homem tornara-se para si mesmo o seu próprio infinito”. (Morin & Kern, 1993: 144). Hoje podemos e devemos rejeitar estes falsos infinitos ou falsas promessas de se atingir o infinito e assumir a nossa condição humana de finitude. Mais do que isso, devemos assumir a nossa finitude não como uma limitação ou falha, mas sim de modo positivo como uma característica essencial do nosso ser, o que nos faz ser o que somos. Uma pergunta que surge é: como nós podemos saber e assumir que somos finitos? A noção de finitude não é a primeira que formulamos ao pensar a questão da infinitude e finitude; primeiro descobrimos o infinito e só depois o finito. O ser humano é um ser “aberto”, isto é, um ser que se coloca no mundo como infinitude, diante de um número sem fim de possibilidades. É a resistência do “outro”, seja da natureza que se resiste a se moldar aos seus desejos ou de outras pessoas que lhe coloca os limites, que faz o ser humano se reconhecer como finito, como tendo limites. Podemos verificar isso de modo mais fácil na educação de uma criança. De início ela pensa que a sua vontade é ilimitada e, aos poucos, no processo de educação, percebe e aprende que a sua liberdade não é infinita e nem o seu desejo tem um poder sem limite sobre o mundo e outras pessoas. O amadurecimento consiste também no reconhecimento dos seus limites, das suas finitudes e, é claro, das suas potencialidades. O próprio conhecimento do seu verdadeiro potencial surge com o reconhecimento dos seus limites. Nesse sentido, podemos dizer que a obsessão pelo consumo ou acumulação sem limites mostra um aspecto imaturo ou infantil da nossa civilização. A aceitação e a valoração positiva da nossa finitude requer que tratemos no processo educacional de temas que revelam, ao mesmo tempo, o nosso desejo de infinito e a nossa condição de finitude. Por exemplo, o tema da morte. A espécie humana é a única que têm consciência da morte e, por isso, deseja a imortalidade, deseja sobreviver à morte. A consciência da morte é algo específico da nossa espécie, entretanto as sociedades modernas expulsaram a morte do cotidiano. Os cemitérios não ficam mais à vista da população e os cemitérios construídos recentemente mais parecem jardins do que cemitérios; os lutos não são mais públicos – não carregamos mais sinais de 167
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luto – e consideramos de mau gosto as conversas sobre a morte ou sobre a dor da perda de algum ente querido. Até mesmo igrejas falam pouco desse assunto e há muita dificuldade de se conseguir assistência, por exemplo, de padres em ocasiões de velório ou funeral. Parece que há um acordo secreto para banir os sinais da morte do nosso cotidiano, enquanto que nunca se matou tanta gente nas cidades como hoje. É claro que não estou propondo que tratemos da morte de uma forma macabra, mas esse é apenas um exemplo de como tentamos apagar da nossa mente os sinais da nossa condição de finitude. Outra forma mais positiva de abordarmos o tema da nossa finitude e, com isso, do sentido humano da nossa vida, é abordar os símbolos, mitos e narrativas que explicitamente se referem para além do nosso limite. A única forma de nos referirmos ao que está além do nosso limite é com a linguagem simbólica. A linguagem religiosa, por exemplo, é um bom exemplo das linguagens simbólicas que fazem referências ao nosso desejo e à nossa possibilidade de pensarmos o infinito e a plenitude. O perigo está em tratarmos essa linguagem simbólica como sendo uma linguagem descritiva de uma realidade ao alcance das nossas mãos ou das nossas ações. 3.3. A linguagem simbólico-religiosa Muitos dos equívocos com respeito às tradições religiosas e espirituais consistem exatamente no erro de considerar a linguagem religioso-espiritual simbólica como descrições “científicas” de um mundo sobrenatural. Tanto os que defendem ardorosamente a religião como uma “ciência do sobrenatural”, quanto os que a depreciam como uma péssima ciência, como uma ciência para crianças e ignorantes, cometem o mesmo erro de não perceber a especificidade da linguagem simbólico-religiosa. Do mundo sobrenatural e de Deus, não podemos descrever como descrevemos o nosso mundo. Aliás, nós temos dificuldade até mesmo em descrever e compreender o nosso mundo e a nós mesmos, quanto mais do sobrenatural e de Deus, que é muito maior do que a nossa capacidade humana de compreensão – assumindo aqui a hipótese de que eles existem. Alguém poderia então contrapor: “para que falar dessa linguagem e desse imaginário simbólico se não podemos ter certeza sobre essas realidades que nem sabemos que existem?” Há muitas respostas possíveis para essa pergunta pertinente. Vou oferecer somente duas, buscando apoio em pen168
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sadores que não são do campo religioso para evitar qualquer pré-conceito a favor ou contra. O primeiro é Max Horkheimer, o famoso filósofo neomarxista da Escola de Frankfurt. Ele diz que “o conhecimento consciente do desamparo, da nossa finitude, não se pode considerar como prova da existência de Deus, senão que tão somente pode produzir a esperança de que exista um absoluto positivo” (1976: 103). Assim, Deus não é objeto de certeza ou de constatação, mas de esperança. O ser humano pode ter a esperança de que existe um absoluto positivo, mas não pode representar ou descrever apropriadamente esse absoluto porque o mundo em que vivemos é algo relativo e a nossa linguagem é humana. Aliás, até Santo Tomás de Aquino dizia, na Suma Teológica, que de Deus nós sabemos mais o que ele não é do que o que ele é. Mesmo assim, Horkheimer faz referência à teologia, não como a ciência do divino, do sobrenatural ou de Deus, mas como “a consciência de que o mundo é um fenômeno, de que não é a verdade absoluta nem o último. A teologia é - me expresso conscientemente com prudência - a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra”. (Ibidem: 106). Em outras palavras, ele fala da teologia como uma forma de nos lembrarmos que somos relativos, finitos, e que nada e ninguém nesse mundo pode ser considerado absoluto e em nome disso exigir sacrifícios de vidas humanas. Falar de Deus é, para ele, uma expressão da esperança de que a injustiça e o injusto não terão a última palavra. Uma segunda perspectiva é apresentada por Roberto Mangabeira Unger, brasileiro, professor de filosofia de direito em Harvard. No seu livro Paixão, ao discutir o problema da personalidade a partir do “nosso desejo de sermos aceitos uns pelos outros e de nos tornarmos, por meio dessa aceitação, mais livre para nos reinventarmos” (1998: 7), ele retoma o problema da teologia e da sua linguagem. Para ele, “o uso de linguagem teológica pode ser melhor explicada pela procura de metáforas capazes de expressar a qualidade infinita, intratável e transbordante que distingue subjetividade e intersubjetividade das formas particulares de vida social em que estão mergulhadas.” (Ibidem: 33). Em outras palavras, a linguagem teológica, e por extensão as linguagens religiosas, são metáforas que tentam expressar aspectos e dimensões do ser humano e das relações humanas intersubjetivas que não se deixam se prender e nem se esgotar dentro das relações sociais institucionalizadas ou rotinizadas. 169
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Unger não é nem o primeiro e nem único autor a interpretar a linguagem teológica como uma linguagem simbólico-metafórica para expressar dimensões e desejos do ser humano que escapam às linguagens descritivas, como as das ciências modernas. Uma outra forma de dizer essa ideia eu aprendi com um conhecido biblista, Carlos Mesters. Ele diz que a Bíblia, como também outros livros religiosos sagrados, não é uma janela que nos mostra o que está além do nosso mundo, mas é um espelho que nos mostra aspectos e dimensões da nossa vida que temos dificuldade em enxergar (Mesters, 1974). 3.4 Tradições religiosas e a condição humana. Será que essas visões não são demasiadamente antropológicas e assim entram em conflito com as visões religiosas ou oriundas de tradições religiosas? É claro que algumas pessoas com convicções religiosas que se aproximam da certeza sobre realidades sobrenaturais ou do “mundo espiritual” podem estar se sentindo incomodadas com a reflexão aqui apresentada. Mas é preciso deixar claro, em primeiro lugar, que o objetivo é exatamente criar incômodos para que as pessoas se sintam impelidas ou convidadas a refletir sobre assuntos que não estão acostumadas ou que já consideram completamente resolvidos. Em segundo lugar, como vimos antes, a convicção e a fé não são sinônimas da certeza e nem podem ser. Em terceiro lugar, há uma diversidade muito grande de concepções religiosas e espirituais no interior de uma mesma religião ou Igreja e por isso é natural que haja discordâncias. O mais importante, especialmente no campo da educação, é que ninguém se sinta com a última palavra e que o diálogo tenha como objetivo aumentar o nosso conhecimento sobre o assunto para que possamos melhorar a nossa capacidade de discernir e de escolher entre os diversos sentidos da vida e entre as diversas pequenas opções que devemos fazer no caminhar da nossa vida. Feita essa explicação, eu quero citar aqui dois autores religiosos para mostrar que a minha reflexão é compatível com a concepção religiosa ou espiritual do sentido da vida, mesmo que não a pressuponha. Isto é, não é preciso ter uma fé religiosa ou negar a sua fé religiosa para poder dialogar com as reflexões apresentadas. O que é necessário é ter uma disposição honesta para refletir sobre a sua fé, no sentido antropológico mais amplo e/ou
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no sentido religioso, que tem guiado a sua vida e ter também a vontade de ajudar outras pessoas a conhecer melhor esse assunto tão importante. Juan Luis Segundo desenvolve uma muito interessante teoria sobre a revelação de Deus a partir da noção de comunicação. Se Deus se revela ao ser humano, essa revelação é um processo de comunicação e como toda comunicação precisa preencher dois requisitos: ser uma novidade que faz diferença na vida da pessoa que escuta e ser compreensível para ela. “A diferença transmitida começa a significar – a comunicação começa a se estabelecer – quando o receptor percebe o que ela deve afetar ou mudar na sua própria existência ou conduta. Isto é, quando a diferença percebida se relaciona com outra diferença correlativa (não idêntica) que deve afetar a existência do receptor.” (1989: 367). Nesse sentido, ele diz que a “revelação divina” não é um depósito de informações doutrinárias corretas, mas “sim processo pedagógico verdadeiro. É um ‘processo’, um crescimento de humanidade, e nele o homem não aprende ‘coisas’. Aprende a aprender.” (Ibidem: 373) Em outras palavras, para Juan L. Segundo, a revelação de Deus para com a humanidade é um processo pedagógico, e não um conjunto de doutrinas, onde o ser humano aprende a aprender a crescer na humanidade, isto é, aprende a aprender a se humanizar. A razão é simples: se Deus se deixa conhecer pelo ser humano, esse conhecimento irá tornar o ser humano melhor e esse processo de se tornar melhor não pode ser um simples acúmulo de mais informações que não modifica a sua pessoa, mas sim um caminhar onde ser humano é o sujeito do seu processo de humanização. Se uma das finalidades da revelação de Deus é mostrar o verdadeiro sentido da vida humana, o sentido da vida humana é se humanizar; e o caminho religiosoespiritual é o caminho pedagógico da aprendizagem desse processo. O segundo autor que quero trazer aqui é o atual Dalai Lama. A insatisfação traz a cobiça, que nunca pode ser saciada. Se o que o indivíduo procura é por natureza infinito como a qualidade de tolerância, a satisfação passa a ser irrelevante: quando mais estimulamos nossa capacidade para a tolerância, mais tolerante nos tornamos. No que se refere a qualidades espirituais, a satisfação não é necessária, pois é desejável que estejamos sempre em busca de crescimento. Mas se o que buscamos é finito, o perigo é que, ao conquistá-lo, não fiquemos satisfeitos. No 171
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caso do desejo da riqueza, ainda que a pessoa conseguisse tomar conta da economia de todo um país, é muito provável que em seguida começasse a pensar em conquistar a de outros países. O desejo pelo que é finito nunca é de fato satisfeito. (Dalai Lama, 2000: 180-181) Este belo texto desafia o nosso modo mais ocidental, linear, de pensar. Por isso vale a pena uma reflexão mais vagarosa sobre ele. Dalai Lama contrapõe o desejo pelo finito, que traria a cobiça que nunca pode ser saciada, ao desejo pelas coisas infinitas. Ele valoriza mais a busca pelo infinito, podendo ser compreendido como indo à direção oposta do que estamos propondo até aqui. Entretanto, a chave de interpretação do seu texto não está na oposição entre o finito e o infinito, mas na noção de satisfação. Quem procura o que por natureza é infinito, como a qualidade tolerância, sabe que não é capaz de atingi-lo, porque se reconhece um ser finito, e por isso não busca a satisfação desse desejo. Assim sendo, não se importa com a não satisfação de não atingir o infinito das qualidades espirituais. Por outro lado, as pessoas que buscam algo finito, como um bem econômico, creem que é possível realizar ou satisfazer a cobiça de ter todos esses bens materiais. Só que o desejo pelos bens econômicos não tem fim. Mas como a pessoa crê que, por tratar de bens finitos, pode satisfazer esse desejo infinito continua buscando sem fim essa satisfação, gerando assim “destruição de nosso meio ambiente e, conseqüentemente, dos males causados a outros. Que outros? Principalmente os pobres e os fracos.” (Dalai Lama, 2000: 181) O desejo pelo que é finito não é satisfeito. O desejo pelo que é infinito também não. A diferença é que quem procura os bens infinitos, como a tolerância, compaixão e outras qualidades espirituais, não se importa com a não satisfação, pois se reconhece um ser finito que está buscando algo infinito, que é impossível de ser alcançado. Assim está satisfeito só com o seu caminhar, com o seu melhoramento espiritual. Enquanto que quem busca satisfazer os desejos pelos bens materiais, finitos, não consegue se perceber como um ser finito e busca insaciavelmente a satisfação impossível. É um belo jeito oriental de falar da aceitação da nossa finitude como uma sabedoria que faz bem para cada um de nós e também para o meio ambiente, os pobres e os mais fracos. Tanto a finitude, quanto essa linguagem simbólico-religiosa-espiritual – que nos permite descobrir a nossa finitude, expressar a nossa subjetividade 172
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e intersubjetividade, criticar as exigências sacrificiais dos ídolos e manter a esperança de que a injustiça (e quem sabe também a morte) não terá a última palavra –, fazem parte da nossa condição humana. Assumir essa nossa condição humana, para nos realizarmos como seres humanos nos humanizando, é, na minha opinião, uma referência fundamental e enriquecedora para a nossa busca pelo sentido da vida, que seja, ao mesmo tempo, humano e reencantado.
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CAPÍTULO 10 Uma luta que vale a pena
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stamos chegando ao fim da nossa caminhada. Espero que o leitor tenha me acompanhado até esse momento e sentido que, de uma forma ou outra, esse refletir juntos valeu a pena. Neste último capítulo, que também tem a função de fecho provisório do livro e abertura para novas reflexões e desafios, eu quero compartilhar algumas ideias “verdes”, isto é, ainda não maduras, mas que já indicam um processo de amadurecimento. Árvores com frutos verdes embelezam o pomar e encantam a vista e a nossa vida 1. Pedagogia e a espiritualidade. Paulo Freire, no seu livro Pedagogia da Esperança, dizia que nós somos “vocacionados para a humanização e que temos na desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação” e que essa vocação de “ser mais” não é “algo a priori da história é, pelo contrário, algo que se vem constituindo na história” e que ela “além de variar de espaço-tempo, demanda, indiscutivelmente, a assunção de uma utopia”. (1999: 99). Nós já discutimos o tema da humanização como a vocação ou o sentido da vida, mas a discussão feita até aqui nos trouxe para uma nova pergunta: “em que consiste a humanização?”. Qual é o modelo de ser humano, “a utopia do ser humano”, que devemos usar como critério de discernimento entre a humanização e a desumanização? Como vimos, este modelo e a noção concreta da vocação humana ou do sentido da vida não estão dados a priori e nem estão escritos “nas estrelas” ou respondidas definitivamente nos livros sagrados ou em algum livro de filosofia ou ciência. Nas nossas reflexões sobre o reencantamento da vida e da educação e também sobre a condição humana, já apresentamos algumas características que poderiam compor esse “modelo” de humanização. (A noção de “modelo”, é claro, está sendo usada aqui como referência, e não como uma “forma” onde devemos colocar os/as educandos/as.) Aqui queremos apresentar algumas reflexões de cunho mais pedagógico. 177
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Philippe Perrenoud, ao discutir a educação para solidariedade, afirma que, como nenhum valor tem um fundamento totalmente objetivo, não podemos justificar inteiramente pela razão o valor da solidariedade. Na medida em que os valores “se inserem em uma representação do mundo, em uma visão do sentido de existência, em uma filosofia, às vezes em uma religião”, (2005: 93) ele afirma que a escola pode colaborar em duplo sentido para o desenvolvimento da solidariedade como valor. 1. Afirmando-a como tal, não abstratamente, mas através de exemplos extraídos da história humana, da atualidade, da literatura, como também através de práticas, que realizam uma forma de solidariedade entre os alunos da classe, entre seus pais, entre os professores da escola ou ainda entre a escola e a comunidade próxima da qual ela faz parte. 2. Inscrevendo-a em uma cultura histórica, geográfica, jurídica, científica e literário que lhe confere sentido e fascínio. (Perrenoud, 2005: 93) Assim como Leonardo Boff que propôs São Francisco modelo de ser humano para que as pessoas desejassem assumir a causa da ecologia e dos pobres, Perrenoud também propõe o mesmo caminho de apresentar as histórias das pessoas que viveram intensamente a solidariedade como modelo de ser humano. Ao mesmo tempo, ele propõe a experiência concreta dessa solidariedade por parte dos alunos e de toda a comunidade educacional. Em segundo lugar, ele propõe que se inscreva a solidariedade como valor em uma narrativa que lhe confira “sentido e fascínio”: um dos temas que viemos discutindo nesse livro. Eu trouxe esse texto de Perrenoud não para discutir o tema da solidariedade – que é fundamental no processo de humanização –, mas para enfocar o método pedagógico proposto por ele para dar valor, sentido e fascínio/ encanto a algo que é “espiritual” – no sentido usado por Dalai Lama. Solidariedade, como um ou um dos valores norteadores da vida, não pode ser ensinada ou fundamentada pela pura razão moderna, mesmo que a razão seja também necessária. É preciso: (a) o “testemunho” de vida das pessoas que nos mostre que vale a pena apostar a nossa vida nesse sentido, (b) uma aprendizagem experiencial que faça os/as educandos/as experimentarem
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corporal e existencialmente a validade dessa aposta e (c) uma narrativa que lhe dê sentido em um nível mais amplo. É claro que em uma sociedade pluralista como a nossa, essas narrativas e pessoas “estudadas” precisam provir de diferentes tradições humanísticas e religiosas. É preciso que estudem vidas de pessoas e tomem contatos com narrativas de diversas tradições, religiosas ou não, também para mostrar que em tempos, lugares e culturas diferentes foram criadas soluções e narrativas diferentes para tentar responder aos problemas parecidos ou convergentes e, assim, relativizar todas as experiências e narrativas, evitando assim absolutização de algo humano. Relativização que não significa aqui a diminuição do seu valor, mas sim a necessária contextualização histórico-geográficosócio-cultural. Umberto Eco, o famoso semiólogo e escritor italiano, no seu diálogo com o cardeal Marini, fala de uma noção que pode nos ajudar a aprofundar a nossa discussão e a própria noção de fé antropológica: “a religiosidade laica”. Ele acredita que “existem formas de religiosidade, e logo sentido do sagrado, do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal e providente.” (Eco & Martini, 1999: 80) Eu não sei se a noção de “religiosidade laica” proposta por Eco é a melhor, mas penso que nos ajuda na comunicação de um aspecto fundamental da vida humana. Também Morin e Kern fizeram referência explícita à religião para tratar desse tema. Eles não propõem uma religião com Deus e a noção de providência e nem uma religião secular do mito do progresso, mas uma religião sem Deus e sem a promessa do paraíso na terra ou após a morte. Então, “para quê evocar a palavra religião? Porque temos necessidade, para procurar a hominização e civilizar a Terra, de uma força comunicante e comungante. É necessário um arrebatamento, religioso nesse sentido, para operar nos nossos espíritos a re-ligação entre os humanos, a qual por si mesma estimula a vontade de ligar os problemas uns aos outros.” (Morin & Kern, 1993: 150) (Parece-me que ultimamente Morin tem utilizado mais o termo re-ligação, evocando a religião, do que o uso explícito da palavra religião). Os conceitos de “religiosidade laica” ou “religião sem Deus” parecem estranhos e até contraditório para a maioria de nós que estamos acostumados a pensar a religião como uma “re-ligação” do ser humano com Deus. Entretanto, essas expressões aparentemente paradoxais servem para nos mostrar
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uma dimensão fundamental do ser humano: a busca pelo sentido último da vida e a conseqüente aposta na possibilidade de se viver uma vida mais humanamente significativa e de construir uma sociedade mais justa. Mesmo pessoas que não creem na existência de um Deus ou de seres divinos compartilham com os que creem a mesma necessidade e o desejo de um sentido último da vida que nos encante e faça valer a pena a nossa existência. Podemos nos referir a isso como a “religiosidade” presente em todas as pessoas, mesmo naquelas que não creem em Deus ou não pertencem a nenhuma religião. Afinal, as religiões e tradições espirituais não criam a “religiosidade” nas pessoas – essa necessidade e desejo de um sentido último que encante a vida –, mas somente procuram responder, bem ou mal, às questões que nascem da “religiosidade” humana presente antes e também fora das religiões. Umberto Eco, após propor a noção de religiosidade laica, faz uma interpretação da vida de Jesus a partir dessa perspectiva. Ele propõe ao Cardeal Martini imaginar que Deus não existe, que a religião foi um modo de homem encontrar a coragem para esperar a morte e construir narrativas capazes de fornecer-lhe uma explicação e um modelo, uma imagem exemplar. E que chegando à plenitude de tempo, em um determinado momento, teve “a força religiosa, moral e poética de conceber o modelo do Cristo, do amor universal, do perdão aos inimigos, da vida oferta em holocausto pela salvação do outro”. E ele conclui dizendo que se ele fosse um viajante proveniente de uma galáxia distante e se visse diante de uma espécie que soube propor tal modelo, “julgaria redimida esta espécie miserável e infame, que tantos horrores cometeu, apenas pelo fato de que conseguiu desejar e acreditar que tal seja a verdade.” (Eco & Martini, 1999: 89). Eu penso que essa bela análise serviria também para outras grandes pessoas que a humanidade conheceu. Conhecer a vida dessas pessoas, – crendo ou não que elas sejam pessoas que de um modo ou outro “revelaram” uma faceta de Deus –, pode nos ajudar muito no nosso caminhar para uma vida mais humana e encantada, para a nossa humanização. Esses exemplos de vida podem nos ajudar a aprender a aprender ser humano e nos acompanhar na nossa caminhada com e em busca de um sentido da vida mais humano. Pois, como diz Moacir Gadotti, “o sentido das nossas vidas está mais no caminhar com sentido que no alcançar o sentido.” (2004: 361) Isto porque o sentido da vida verdadeiramente humano sempre se nos mostra estando além do nosso caminhar, como algo impossível de ser atin180
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gido porque infinito, e assim nos revela que somos seres finitos ansiando pelo infinito e nos ensina, como diz Dalai Lama, a não cairmos na cobiça e na insatisfação eterna porque nos mostra a nossa condição de finitude e assim nos mantém humildes diante do mistério da vida. Só assim podemos encontrar o encanto na própria vida e no viver; e não cair no erro de procurar a razão e o encanto do viver no consumo insaciável das mercadorias ou na busca da dominação sobre outras pessoas. V. S. Ramachandran, um conhecido neurocientista que estuda, entre outras coisas, como e por que sentimentos religiosos se originam no cérebro, nos conta um pequeno caso que nos ajuda na nossa reflexão. Ele pensa que a redução da crença religiosa a uma mera combinação de desejo mágico e um anseio da imortalidade – a clássica explicação das ciências modernas para negar a religião – não explica os arroubos de intenso êxtase religioso experimentados por seus pacientes com ataques no lobo temporal. Ele reconhece que essas pessoas poderiam simplesmente estar sofrendo de alucinações e delírios do tipo dos esquizofrênicos, mas se questiona porque essas alucinações ocorrem, principalmente quando os lobos temporais estão envolvidos e, o mais intrigante, porque esses pacientes alegam de que Deus fala diretamente com eles ou que experimentaram uma “luz divina que ilumina todas as coisas”, ao invés de terem alucinações com porcos ou perus. Para ele, a única conclusão clara nesses estudos “é que existem circuitos no cérebro humano que são envolvidos com experiências religiosas e que estes se tornam hiperativos em alguns epiléticos” (Ramachandran & Blakeslee, 2002: 239). E falando de um paciente que sofria de ataques epiléticos e dizia receber revelações divinas, Ramachandran faz um comentário genial: “Era vivo e egocêntrico e tinha a arrogância de um crente, mas nada da humildade dos profundamente religiosos.” (Ibidem: 230). O discernimento desse neurocientista sobre a “qualidade espiritual” desse paciente não foi baseado em dados empíricos da neurociência, não somente porque ainda não existem conclusões científicas sobre esse assunto, mas porque a ciência não foi feita para isso. Stephen Jay Gould, um importante biólogo evolucionista, chama isso de “magistérios não-interferentes”. Ele não vê como a ciência e a religião podem ser unificadas, ou mesmo sintetizadas, porque a “a ciência tenta documentar o caráter factual do mundo natural, desenvolvendo teorias que coordenem e expliquem esses fatos. A religião, por sua vez, opera na esfera igualmente importante, mas completa181
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mente diferente, dos desígnios, significados e valores humanos – assuntos que a esfera factual da ciência pode até esclarecer, mas nunca solucionar” (Gould, 2002: 12). Ramachandran utiliza um critério bastante sensato, desenvolvido por muitas tradições espirituais e religiosas: a diferença entre a arrogância de um crente, de quem se sente com certeza sobre Deus, e a humildade das pessoas profundamente religiosas que tiveram realmente a experiência do mistério da vida e, quiçá, do divino, e se sentem pequenas, humildes e sem certezas. Um critério simples, mas extremamente importante. E ao fazer essa distinção, ele responde indiretamente à pergunta científica: o mapeamento das atividades cerebrais não é capaz de explicar todas as experiências religiosas, nem de fornecer critérios para discernir entre essa variedade de experiência. 2. Uma disciplina ou um conjunto de disciplinas? Outra questão surge quando estamos mais próximos do final do livro: esta educação que possibilita um discernimento dos símbolos, mitos e deuses que nos aponte para um sentido da vida humanizante deve ser tarefa de uma disciplina determinada ou de todas as disciplinas? Esta é uma pergunta típica de quem precisa transformar propostas mais gerais em ações concretas. Eu penso que deve ser uma tarefa de todo ambiente educacional, de todas as disciplinas e também do modo como a escola vive o seu cotidiano e se relaciona com a família do corpo discente e a comunidade. O aprender a aprender discernir símbolos e sentidos de vida é algo tão complexo que requer a contribuição de todas as disciplinas. História e geografia, por exemplo, podem contribuir mostrando como as civilizações e sociedades foram produzindo, impondo sobre outros povos ou assimilando esses símbolos, mitos e sentidos e como a organização do espaço físico e social expressam esse processo. Ou então a matemática trabalhando, por exemplo, com a noção de infinito e de finitude; a biologia com a dinâmica da vida; português estudando como os textos literários refletem e expressam as questões fundamentais da existência humana, seja na descrição de fatos cotidianos, seja nas reflexões mais “profundas” sobre o mistério e o sentido da vida; a filosofia ou sociologia mostrando, por exemplo, o processo de alienação que ocorre na cultura de consumo e assim por diante. 182
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Mas, ao mesmo tempo, uma tarefa tão complexa e importante como essa precisa de uma disciplina específica que sistematize as contribuições feitas por outras disciplinas e desenvolva temas e experiências que precisam de uma atenção mais específica. Assim como quem for se responsabilizar por essa tarefa precisa de uma formação também apropriada8 para isso, não podendo ser alguém somente com boa vontade ou simplesmente “emprestada” de uma outra disciplina. Esse prática de tomar emprestado de outra disciplina é uma forma concreta de mostrar o pouco valor que se dá a esse tema da educação da dimensão simbólica do ser humano que possibilita uma melhor convivência com os diferentes e permite encontrar um sentido mais humano e encantado da vida. Morin, falando da necessidade de uma ciência antropossocial religada, “que concebesse a humanidade em sua unidade antropológica e em suas diversidades individuais e culturais”, reconhece que essa religação ainda está fora do alcance das ciências e que por isso é importante que o ensino de cada uma delas fosse orientado para a condição humana. E aqui ele não está falando somente das ciências humanas e sociais, mas também das naturais, pois a condição humana é ao mesmo tempo físico-químico-biológicoantropológico-social-simbólico. E diz ao final de uma lista de ciências e as suas funções nesse processo, que “um ensino sobre os mitos e as religiões seria orientado para o destino mítico-religioso do ser humano. De fato, as religiões, mitos e ideologias devem ser considerados em seu poder e ascendência sobre as mentes humanas, e não mais como ‘superestruturas’.” (2000b: 41-42). Morin reconhece que essa disciplina ou ciência “noologia” está ainda por ser construída ou, diríamos nós, os trabalhos dessa área precisam ser mais conhecidos e desenvolvidos. No caso do ensino fundamental e médio no Brasil temos a disciplina do Ensino Religioso, que foi e ainda é objeto de polêmica ou de preconceito (tanto a favor quanto contra), sem falar das visões extremamente simplificadoras sobre o assunto. O Parâmetro Curricular Nacional (PCN) do Ensino Religioso, fundamentado na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.393/96), entende o conhecimento do fenômeno religioso como parte integrante da formação básica de todo 8.
Há no Brasil diversas Faculdades de Ciências da Religião, em projeto ou em funcionamento, que pretendem dar esse tipo de formação. Enquanto esses tipos de cursos vão se consolidando e se espalhando, eu penso que esta formação mais apropriada poderia ser também realizada em programas de especialização que trabalhem esses temas na perspectiva do que Morin chamou de “noologia”. 183
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cidadão e cidadã, pois não há uma formação para cidadania sem a compreensão adequada dos mitos que norteiam os valores do seu grupo social e sem o respeito pelos mitos e valores de outros grupos étnicos ou culturais. Nesse sentido, é importante frisar que o estudo dos mitos “seculares” e do fenômeno religioso é, sem dúvida, uma parte importante do que Morin chama de noologia. No caso do ensino superior, os cursos voltados para a formação ético-filosófica ou alguns cursos mais especificamente voltados para o mundo do mítico-religioso poderiam se ocupar desse tema. Para evitar mal-entendido, quero deixar bem claro aqui que não estamos nos referindo ao proselitismo a uma determinada religião ou à catequese de uma determinada denominação religiosa9. Nem mesmo estamos defendo a adesão à crença na existência “real” de seres sobrenaturais ou de Deus. Estamos somente reconhecendo que somos seres produtores de símbolos e mitos e que precisamos nos educar e educar as novas gerações para vivermos de modo mais humano na “noosfera”. Em todo caso, o objetivo deste livro não é discutir qual ciência ou disciplina deve tratar desse importante tema do sentido da vida e do “destino mítico-religioso” do ser humano, mas sim da necessidade de discutirmos mais este tema nos nossos ambientes educacionais e também na sociedade em geral. Na medida em que os alunos e alunas começam tomar consciência de que o sentido das suas vidas podem ser modificado, que eles podem questionar o sentido da vida imposta pela cultura de consumo capitalista, assumido e vivido por eles sem uma clara consciência de todo esse processo, e que podem aprender das suas tradições culturais e espirituais e também de outros grupos sociais e culturas novos sentidos da vida e novas formas de se relacionar com outras pessoas, com a sociedade, com a natureza e consigo mesmo, vão perceber que estudar tem um sentido que vai muito além da preparação para o trabalho profissional. Os alunos e alunas vão começar se sentir mais sujeitos das suas vidas e assim vão se sentir sujeitos do seu processo educacional, juntamente com educadores e educadoras que assumem esse desafio. 9.
O fato de Rio de Janeiro e Bahia terem adotado o ensino religioso confessional nas escolas públicas – o que eu considero um equívoco – cria mais dificuldade para debates e ações produtivas nesse campo. Já existe uma discussão desenvolvida sobre esse tema e também diversas dissertações e teses sobre esse assunto. A FONAPER (Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso) tem sido um dos pólos importantes dessa discussão. 184
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3. Pergunta pelo sentido e a liberdade humana. Rubem Alves, o conhecido filósofo e educador brasileiro, escreveu um texto que eu gosto muito: Não, Deus não é um substantivo. É esta estranha conjunção, todavia, que enuncia a absurda ligação entre a morte que se anuncia e a vida que brota, a despeito de tudo. Se fosse isto, eu poderia continuar a falar de Deus, como fundamento misterioso de uma teimosia de ter esperança. Foi então que encontrei Bloch como precursor; ele já escrevera aquilo que naquele momento eu estava me dizendo: “onde está a esperança ali está a religião”. (Alves, 1987: 35) O que significa dizer que Deus não é um substantivo, mas uma estranha conjunção todavia? Deus não é algo ou alguém sobre quem podemos falar e apontar como fazemos com as coisas que compõem o nosso mundo. Deus é, para Rubem Alves, o fundamento misterioso que permite esperar para além do que está dado, para além da dominação, injustiça e alienação apresentadas como imutáveis e “naturais”. Deus é o nome que Rubem Alves e tantas outras pessoas dão à força misteriosa que nos permite resistir e lutar contra as injustiças do mundo e também contra a nossa tendência de se acomodar e de procurar somente os nossos interesses imediatos. É essa estranha conjunção todavia que permite ver o que ainda não é visível ou o que foi escondido ou tornado ausente pela ideologia dominante. Boaventura Souza Santos (2004) diz que a razão e a ideologia dominantes na sociedade produzem a “não-existência” desqualificando e tornando invisível, ininteligível ou descartável fatos, valores e ações que não cabem na lógica da dominação vigente ou que a ameaçam. O descrédito ou desqualificação das possibilidades reais de mudanças sociais que já estão se dando, por exemplo, em projetos educacionais criativos e alternativos ou nas lutas de movimentos sociais que resistem à cultura dominante e se mobilizam para afirmar a dignidade humana e a capacidade de lutar de todas as pessoas, mesmo as mais marginalizadas, é um exemplo dessa produção da “nãoexistência”.
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Contra esse processo da produção da “não-existência”, é preciso uma compreensão da vida e da sociedade que faça possível essas ausências se tornarem presentes, mostrando o que foi escondido e negado. Essa nova forma de compreensão pressupõe uma nova postura existencial frente à vida e à sociedade, uma postura fundada na estranha conjunção todavia que nos abre para esperança e sensibilidade solidária. Uma nova compreensão e compromisso que leva a potencializar o futuro diferente que já está latente no nosso presente. E para falarmos desse futuro, o ainda-não, que já se manifesta como sementes de um fruto que se colherá a linguagem simbólica é fundamental. Por isso, educar para discernir os mitos, símbolos e deuses e para encontrar um sentido da vida que reencante a nossa vida é uma tarefa vital na construção de um futuro mais humano. Não se trata do debate sobre a existência ou não de deuses ou seres sobrenaturais ou espirituais, mas sim de salvar a vida das pessoas e dar um sentido mais humano para as nossas vidas e das pessoas que nos cercam. Perguntar pelo sentido da vida e procurar construir uma sociedade onde se possa viver um sentido mais humano da vida é, de certa forma, tornarse livre dos condicionamentos genéticos que movem os nossos instintos e viver, na medida do possível, a liberdade frente à dominação cultural e ideológica imposta pelo capitalismo vigente. Liberdade, reencantamento da vida e humanização são características do horizonte utópico que nos atrai e “convida” a lutarmos com esperança, sensibilidade solidária, eficiência pedagógica, uma nova racionalidade e compromisso ético-político. Percorrer esse caminho e reconhecer a beleza e o mistério da vida, as suas alegrias e as suas dores, os limites e as possibilidades, e encontrar dentro de cada um de nós e no interior das relações de reconhecimento mútuo com outras pessoas a força para continuar lutando para superar as dificuldades e construir um mundo melhor para todos e todas é encantar-se com a vida, é sentir que, apesar de tudo, vale a pena viver e lutar. Comprometer-se com a educação das novas gerações para desencantar o mundo fetichizado das mercadorias e reencantar a vida é um sentido da vida que vale a pena ser assumida.
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SACRIFÍCIOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO HUMANIZADORA10 Eu quero iniciar este texto reconhecendo que um debate sobre sacrifício não é algo usual nos seminários, congressos ou encontros sobre educação. Se estivéssemos em um ambiente só da teologia ou das ciências da religião, seria normal. Mas, não na área da educação. Eu penso que esse tema foi solicitado a mim por causa da minha formação em teologia e ciências da religião, além da minha recente incursão no campo da educação, e dos meus textos sobre o sacrificialismo do mercado neoliberal. E como há relação entre pedagogia e neoliberalismo, podemos deduzir que é possível que haja uma relação entre o sacrifício e a pedagogia. Em um continente como o nosso marcado pela tradição cristã, estamos sempre nos confrontando com a imagem de Cristo crucificado que nos relembra a doutrina religiosa hegemônica sobre a salvação: “Deus nos amou tanto que enviou o seu filho para morrer na cruz e nos salvar através desse sacrifício”; ou então, “não há salvação sem sacrifício”. Essa imagem de um Deus que precisa sacrificar o seu filho amado para salvar a humanidade marcou a infância de uma grande parte da população da América Latina e está no mais fundo da nossa consciência social. Por isso, não é muito fácil fazer um debate racional sobre o sacrifício, pois sempre aparecem reações e argumentações movidas por “razões inconscientes”. Uma reação possível pode ser a de considerar esse tema como totalmente irrelevante. Talvez porque esse tema seja doloroso demais para ser tratado, ou porque se internalizou tanto essa teologia que a assume como uma verdade inquestionável e não vê razão em “perder tempo” com essas discussões, ou então porque assumiu completamente o mito de que vivemos em um mundo moderno secularizado, onde a religião teria perdido toda capacidade de guiar a vida das pessoas e da sociedade. Porém, mesmo nesse caso, seria necessário analisar porque pessoas racionais assumem mitos como esse. Outra reação pode ser a de deslocar a reflexão sobre o sacrifício para a critica da religião em geral e do cristianismo ocidental em particular como as 10. Este texto é uma versão ligeiramente modificada do apresentado no Encontro “Um diálogo teológico-educativo para uma cultura da paz”, na Universidade Nacional de Costa Rica, em 2008.
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únicas criadoras e mantenedoras do sacrificialismo que tanto mal fez e faz à vida das pessoas e da sociedade. Assim, todo esforço seria voltado para criticar as religiões, como se o fim delas e do cristianismo em particular pudesse, por si, criar um mundo sem sacrifícios. Uma terceira reação possível é a de assumir uma postura agressiva contra todas as formas possíveis de sacrifícios, como um tipo de catarse, e correr assim o risco de perder a capacidade de raciocínio crítico frente a esse tema tão complexo. Espero que possamos manter uma atitude de diálogo e de reflexão crítica sobre o tema do sacrifício na religião e na pedagogia, que eu considero de grande importância nos dias de hoje. Afinal, essa é a única ou a melhor maneira de ajudarmos na nossa luta por um mundo mais humano e justo. 1. Sacrifício na vida cotidiana. Ao nos aproximarmos do tema do sacrifício, percebemos que além das noções propriamente teológicas do sacrifício, encontramos na nossa vida cotidiana diversos tipos de uso da palavra sacrifício. Vejamos alguns deles para situarmos melhor a nossa reflexão. Um primeiro tipo muito comum é usado, por exemplo, pelos pais: “Eu me sacrifiquei tanto por você, meu filho, e você não reconhece (ou não me retribui)...”. À primeira vista, essa frase é uma mera chantagem emocional, mas, se olharmos com cuidado, veremos que ela reproduz no âmbito da vida cotidiana alguns elementos básicos do sacrifício religioso: a) os pais devem cumprir o seu papel, mesmo que certas coisas sejam contra a vontade deles, porque está estabelecido pelas leis da natureza ou por Deus (fatos ou ações agradáveis não são considerados como sacrifícios); b) esse sacrifício de fazer ou de abdicar certas coisas não vale por si, mas só na medida em que recebe recompensas posteriores; c) a pessoa que é beneficiária do sacrifício deve retribuir de acordo com as mesmas leis que exigiram o sacrifício para que esse não tenha sido em vão; isto é, o beneficiário se torna um devedor; d) quando e na medida em que a recompensa é entregue, a lógica sacrificial transforma algo que era um mal (ações ou renúncias que os pais fizeram contra gosto) em um bem. Se não há retribuição ao sacrifício, o sacrifício foi em vão. Por isso, para que o sacrifício não seja em vão, é fundamental que as recompensas prometidas ou esperadas sejam realizadas a todo custo. Isto vale tanto para sacrifícios no âmbito do meramente humano, quanto para 188
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âmbitos religiosos, isto é, na relação de seres humanos com seres divinos ou Deus. Um segundo tipo pode ser visto nas frases como: “Estudar é um sacrifício que vale a pena”, ou “é preciso fazer sacrifícios para vencer nas Olimpíadas”. Aqui não há uma cobrança por parte de outra pessoa. Trata-se de uma situação em que o indivíduo tem um objetivo que deseja e se vê diante de outras opções também desejáveis, mas que conflitam com o seu objetivo maior. É muito improvável ganhar uma medalha de ouro em uma Olimpíada se o atleta treina meio período e frequenta todas as festas disponíveis, assim como ser bem sucedido em uma carreira profissional ou acadêmica sem estudar muito. Se ele realmente deseja vencer, precisa ter disciplina e deixar de fazer coisas prazerosas que conflitam com o seu objetivo maior. A noção de sacrifício aqui é um pouco diferente da primeira, e tem mais a ver com o espírito de disciplina, que sempre implica em renúncia de algo desejável ou prazeroso em nome de um objetivo maior ou mais desejável. É claro que se o treinamento ou dedicação ao estudo não traz nenhum benefício, prazer ou sensação de realização e os resultados não são alcançadas, a pessoa pode encarar o período de preparação como um sacrifício em vão. Mas, se a preparação em si traz algum prazer ou realização pessoal, esse tempo não será visto como um sacrifício em vão. Um terceiro tipo pode ser visto na seguinte cena: imaginemos que um menino está em estado terminal. A enfermeira contratada para passar a noite cuidando dessa criança deseja dormir, mas tem que fazer o sacrifício de se manter acordada olhando para o menino que está morrendo em troca do pagamento. Se não lhe pagam, o sacrifício dela foi em vão. Mas, a mãe do menino que passa a noite ao seu lado não está lá por causa de um contrato de trabalho, nem como um ato de sacrifício, mas porque ela deseja estar lá. Quando o seu marido lhe diz para ir descansar, ela responde dizendo: “eu sei que não posso fazer nada, mas não posso sair daqui, não quero dormir”. Se o menino morrer na manhã seguinte, a mãe não interpretará a sua noite não-dormida como um sacrifício em vão, porque para ela a noite não foi um sacrifício; ela não ficou lá por uma exigência divina ou em nome do cumprimento de alguma lei, esperando por uma recompensa que compensasse a sua noite não dormida. Ela ficou lá por amor ao seu filho. A “exigência” para ela ficar ao lado do seu filho não veio de fora, de uma autoridade superior, mas de dentro dela, do seu amor pelo seu filho. Por isso, o seu “não posso sair” não foi um ato de obrigação ou submissão, mas um ato de liberdade, 189
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porque nascido do amor. Nesse caso, a palavra “sacrifício” não é adequada; a mais correta é “dom de si”. Eu penso que essa diferença entre “sacrifício” e “dom de si” é fundamental para podermos criticar corretamente a lógica e exigências sacrificiais. Essas três noções de sacrifícios que vimos são usadas no âmbito da vida cotidiana e pessoal. E o uso do termo sacrifício para o segundo e terceiro exemplo, a renúncia de algo por uma questão de disciplina na busca de um objetivo maior e o dom de si, não é apropriado porque cria confusão na compreensão de experiências e fatos muito distintos. Mas, a noção de sacrifício que mais nos interessa e que mais importa hoje não é nenhuma dessas que ocorrem no âmbito das relações interpessoais, ou no âmbito do que poderíamos chamar de modo bastante impreciso de “vida privada”. O sacrifício que mais afeta a vida dos povos e que mais importa para religião, teologia e pedagogia é o que se exige no âmbito da “vida pública”, no âmbito da economia, da política e da sociedade. Ao dizer isso, eu não estou querendo dizer que uma educação que leve as pessoas a lutarem para atingir objetivos que exigem disciplina e renúncia, ou ensinar o valor de uma vida permeada de “dom de si”, não seja uma tarefa fundamental para nós educadores. Muito pelo contrário. Mas essas atitudes não são propriamente de sacrifício. O uso da noção de sacrifício como uma forma de chantagem emocional também é uma questão a ser considerada, mas há uma noção mais presente e atuante, ao mesmo tempo menos conhecida, que precisamos focar. 2. Sacrifício na economia e política. Após o ataque às Torres Gêmeas no 11 de setembro de 2001, a “guerra contra o terror” e a ocupação norte-americana do Iraque e Afeganistão, não podemos falar de sacrifício sem nos referirmos ao conflito políticocultural-militar que ocupa quase que diariamente os noticiários do mundo todo. A noção de sacrifício está presente tanto no lado islâmico radical, que faz dos ataques suicidas uma forma de auto-sacrifício na luta contra o “mal” representado pelos Estados Unidos, quanto no lado dos Estados Unidos e da coalizão que os apoia. Para não alongarmos demasiadamente, vou citar dois trechos de discursos do ex-presidente Bush. No seu discurso aos veteranos de guerras na Casa Branca, no dia 11 de novembro de 2002, Bush disse: “Neste feriado, de 11 de novembro, ameri190
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canos refletem sobre os grandes sacrifícios do serviço militar. E nós prestamos honra a cada homem e a cada mulher que tem aceitado esses sacrifícios. (...) Especialmente neste tempo de guerra, nós vemos nos nossos veteranos um exemplo de coragem e sacrifício e serviço que inspira a nova geração e levará este país à vitória11.” Mas, em nome do que esses sacrifícios são exigidos, aceitos e lhes prestado honra? Segundo Bush, e os ideólogos norte-americanos, a exigência desses sacrifícios nasce de uma obrigação que o seu país tem com os seus compatriotas e com o mundo todo. No seu discurso ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 2005, Bush disse: “Nós temos uma obrigação solene – nós temos a obrigação solene de parar o terrorismo nos seus estágios iniciais. Nós temos a solene obrigação de defender nossos cidadãos contra o terrorismo, de atacar as redes terroristas [...] e promover uma ideologia de liberdade e tolerância que irá refutar a visão sombria dos terroristas12.” Não vou discutir aqui as razões e as consequências da ocupação norteamericana do Iraque e Afeganistão, mas quero destacar aqui a noção de sacrifício nesses discursos. Segundo a ideologia defendida pelo governo Bush, não há opção para os Estados Unidos: era e ainda é preciso cumprir uma obrigação: defender a liberdade e, mais ainda, promover essa liberdade no mundo todo. Estados Unidos se veem como missionários que receberam de Deus a grande missão de levar a luz e a liberdade ao mundo e derrotar os inimigos da liberdade que querem impor ao mundo a sua visão sombria e opressiva. E essa missão exige sacrifícios dos soldados e do povo norteamericano porque há povos e grupos que não aceitam essa grande dádiva e, pior, ousam se rebelar contra esses missionários e atacar os Estados Unidos e o Ocidente com atos terroristas. Para que essa guerra seja realmente confirmada como um cumprimento de uma missão divina de levar a luz e a liberdade ao mundo dominado pela escuridão e opressão e para que a morte dos soldados norte-americanos seja realmente um sacrifício, é preciso que a vitória seja conquistada. Pois sem uma vitória clara e definitiva no campo militar e político-cultural-econômico, com o fim das insurgências e a implantação do sistema de mercado livre e da democracia liberal no Iraque e em outros lugares, a guerra não teria sido uma “missão divina” e os sacrifícios teriam sido em vão. Matar e morrer nes11. Discurso disponível na Internet: http://www.whitehouse.gov/news releases/2002/11/20021111-2.html. 12. Disponível na Internet.http://www.whitehouse.gov/news/releases/2005/09/20050914-4.html
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sa guerra só se justifica na medida em que as promessas que obrigaram a ida à guerra se cumpram. Se não, essa guerra foi uma simples guerra e não uma missão religioso-civilizatória, e os sacrifícios dos soldados norte-americanos foram somente mortes sem sentido; e a matança dos iraquianos e afegãos, meros assassinatos. E pior de tudo, o seu deus que lhes deu essa missão não é deus “verdadeiro”. Por isso, os setores da sociedade norte-americana que interpretam essa guerra como uma obrigação religioso-moral não podem aceitar a retirada do seu exército antes da vitória definitiva. Como vimos acima, essa lógica sacrificial não é uma exclusividade dos Estados Unidos nessa guerra ou nas outras; os radicais islâmicos, assim como outros grupos radicais, que utilizam os seus “mártires” como instrumento militar-religioso também se vêem e se justificam dessa forma. São dois inimigos compartilhando uma mesma lógica. Só há um ausente nessa equação: os sacrificados contra a sua vontade, os povos submetidos e mortos nessa missão libertadora. Voltaremos a esse tema mais a frente. Além do campo político-militar, que hoje mostra mais claramente a sua lógica sacrificial, devemos olhar também para o campo econômico. Vejamos rapidamente alguns discursos de políticos, economistas e administradores que mostram a presença desse tema do sacrifício e religião no interior do campo econômico. Já no ano de 1972, Mário Henrique Simonsen, um dos principais economistas brasileiros e que foi ministro de economia em diversos governos militares, disse que “a teoria econômica ainda deverá evoluir o bastante para ensinar os governantes a minimizar os sacrifícios necessários ao progresso13.” Essa afirmação exige uma análise, mesmo que breve. Simonsen não discute a premissa do progresso como um fim que deve ser alcançado. Como todos ou quase todos pensadores do mundo moderno, o progresso é assumido como “o bem” último a ser alcançado na vida social. Ao mesmo tempo, ele reconhece que não é possível alcançar esse fim último sem sacrifícios. Não há outro caminho possível, os sacrifícios são necessários. A noção de sacrifício aqui não é no sentido de “dom de si” ou de “renúncia-disciplina”, como vimos acima, mas o de sofrimentos ou mortes impostos ou exigidos pelo progresso. É por isso que ele afirmou 13. SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2002. 6a.ed., Rio de Janeiro: APEC, 1976, p. 28. (1a. ed., 1972). O grifo é nosso. 192
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que é preciso aprender a minimizar esses sacrifícios necessários. Aprender a minimizar, mas não pretender acabar com algo que é necessário. Se o sofrimento é necessário para algo que é “o” bem, esse sofrimento deixa de ser um “mal” e passa a ser uma mediação para o bem. É exatamente essa inversão do mal em bem que é a função da lógica sacrifical. Ao dizer que é um sacrifício necessário para a salvação ou para o bem último da sociedade, os sofrimentos e mortes impostos e exigidos pelo processo de modernização e progresso deixam de ser um mal a ser combatido e se torna um “sacrifício necessário”. No final da década de 1960 e bem no início de 1970, quando o texto de Simonsen foi escrito, a ideologia neoliberal ainda não tinha conseguido a hegemonia que viria obter a partir de 1980. Seja talvez por isso que Simonsen defende a tese de que a teoria econômica precisa evoluir na direção de poder ensinar os governantes a minimizar os sacrifícios necessários. Porém, devemos nos lembrar que o capitalismo é um sistema econômico-social que tem o progresso econômico, a acumulação de mais riqueza, como o seu objetivo último. Max Weber sintetizou o espírito do capitalismo da seguinte forma: “De fato, o summum bonun desta ‘ética’, a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista, pois é pensado tão puramente como uma finalidade em si, que chega a parecer algo de superior à ‘felicidade’ ou ‘utilidade’ do indivíduo, de qualquer forma algo de totalmente transcendental e simplesmente irracional. O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais. Esta inversão do que poderíamos chamar de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista14.” 14. WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo. 3a. ed.,S.Paulo: Liv. Pioneira, 1983, p.33. O segundo itálico é acréscimo meu. 193
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O fato de que o capitalismo puritano, com a sua ética de trabalho, foi substituído nos dias de hoje por um capitalismo marcado pela cultura de consumo não significa que o sentido último da vida tenha sido alterado, pois os ricos que já possuem uma riqueza que não poderiam consumir em várias vidas continuam ainda assim buscando mais riquezas. Ou como afirmou Robert Lutz, então presidente da Chrysler, em uma entrevista: “É nosso dever sagrado - para com os acionistas e para com o sistema econômico no qual operamos - lucrar o máximo possível15”. O princípio orientador do capitalismo continua o mesmo: a busca de mais dinheiro como o “bem supremo”, isto é, como o valor transcendental. Ou então, como diz Michel Albert, economista e empresário francês, “O oxigênio do capitalismo é a esperança do lucro. Sem essa esperança, não há empresa16”. E ele nos adverte: “Lucro para quê? Nunca faça esta pergunta, porque você será imediatamente expulso do santuário, por ter colocado em dúvida o artigo primeiro do novo credo: a finalidade do lucro é lucro. Neste ponto, não se transige. É imperativo abandonar a questão ‘filosófica’ da finalidade, para fixar-se no estudo ‘técnico’ dos meios17.” É dentro desse marco de pensamento que o sistema capitalista se apresenta como o melhor sistema econômico para a humanidade dizendo que o melhor caminho do progresso econômico é a evolução tecnológica e que essa é mais bem obtida no sistema de concorrência e troca totalmente livre. E num sistema de concorrência e de troca totalmente livre, isto é, em um sistema de mercado totalmente livre, sempre haverá grupos sociais e até povos que irão sendo eliminados do sistema ou que passarão por sofrimentos causados pela lógica desse sistema econômico. Esses são os chamados sofrimentos ou sacrifícios necessários para o progresso. Se o objetivo é maximizar o progresso econômico, assumido como o objetivo último ou como caminho da “salvação” da humanidade, não tem muito sentido tentar minimizar os sacrifícios necessários para a maximização do progresso. Pois essa minimização diminuiria o ritmo do progresso e, para os crentes desse novo credo, isso faria mais mal ainda para os pobres que precisariam desesperadamente do progresso para sair da sua pobreza. Essa é, em síntese, a ideologia neoliberal, que se tornou hegemônica no mundo a partir da década de 1980. 15. Exame. São Paulo. 06/11/96, p.52 16. ALBERT, Michel. Capitalismo X capitalismo. São Paulo: Fundação Fides-Loyola, 1992, p. 87. 17. Ibidem, p. 239. 194
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Em outras palavras, a insensibilidade social frente aos sofrimentos dos pobres e dos “incompetentes” é uma exigência do sistema. Por isso, a necessidade de assegurar essa insensibilidade e, com isso, a não intervenção nas leis do mercado para atingir as metas sociais em prol dos excluídos do mercado. Mas, os seres humanos são compassivos pela sua própria natureza. Isto é, faz parte da natureza humana ser tocado pela dor ou sofrimento da outra pessoa porque isso faz parte do nosso processo de cognição. Façamos uma breve pausa na nossa reflexão sobre sacrifício na economia e na política para vermos essa questão. Como eu posso saber que uma criança com um olhar perdido, lágrimas escorrendo pelos seus olhos diante de uma casa destruída por bombas e pessoas adultas mortas pelo chão, aparentemente seus pais, está sofrendo e com medo? Não é necessário que ela encontre palavras para expressar o sofrimento e a dor que ultrapassam a sua capacidade de compreensão e de fala, pois nós somos capazes de nos colocar no lugar dela e tentar imaginar e compreender o sentido das lágrimas e do seu olhar perdido. Uma das condições para conhecimento humano é a nossa capacidade de identificarmos com o outro18. E isso funciona não somente para a compreensão de sofrimentos e dores, mas também para assuntos alegres ou meramente descritivos. A compaixão, sentir em si a dor do outro, não é um sentimento que existe somente em pessoas ética ou espiritualmente desenvolvidas ou nas que assumem explicitamente a solidariedade como um valor fundamental da sua vida. Compaixão faz parte do processo da cognição humana. Pois, a aprendizagem humana requer que nós percebamos o outro como um ser intencional igual a nós, que nos coloquemos na pele do outro. Como todos nós temos essa capacidade básica, sabemos quando uma pessoa está alegre ou triste, mesmo que ela não nos comunique explicitamente o seu estado emocional. Há um modo muito simples de comprovar como todos os seres humanos em sua condição “normal” são tocados pela dor alheia. Um grito de socorro provoca sobressalto em todos nós, ou quando vemos alguém sendo maltratados, o nosso instinto nos faz recuar mostrando que sentimos algo ao presenciar o sofrimento dos outros. Mesmo quando não queremos sentir essa compaixão, nós somos obrigados a fechar os ouvidos ou desviar o olhar 18. Vide por ex., TOMASELLO, Michael. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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para tentar ignorar a dor alheia. O que prova que fomos tocados. Até os mais insensíveis, ao desviarem o seu olhar, mostram que foram tocados. Mas, ao mesmo tempo, essa possibilidade de desviarmos o olhar nos mostra que podemos criar mecanismos de defesa contra a dor que a dor do outro provoca em nós e nos fazermos insensíveis frente ao sofrimento de outra pessoa, impedindo que dessa compaixão nasça uma postura de solidariedade ativa19. Pensadores que assumem a defesa do sistema de mercado livre propõem uma postura ativa para desenvolver a insensibilidade social frente aos sofrimentos dos menos competitivos, os pobres e excluídos do mercado, como um fator necessário para a modernização e progresso econômico. Por ex., Roberto Campos, um dos principais economistas brasileiros do século XX, diz explicitamente que “a modernização pressupõe uma mística cruel do desempenho e do culto da eficiência20”. “Mística” para superar a tentação da compaixão e solidariedade que impediria o livre funcionamento do mercado e para assumir o novo culto ao progresso econômico sem limites. “Cruel” porque esse novo culto significa colocar a vida humana subordinada às leis do mercado e aos números do lucro. No âmbito das empresas, a exigência de sacrifícios se dirige mais diretamente aos funcionários que devem se devotar completamente à “missão” da empresa de gerar o máximo de lucro para os acionistas. Norberto Odebrecht, um dos maiores empresários brasileiros, diz que “aqui dentro [a sua empresa] o negócio é sacrifício(...). Quer dizer, é preciso saber inclusive se se está disposto a sacrificar a família em benefício da organização. Porque a organização no fundo é uma religião21”. Se a compaixão é uma característica do ser humano e uma pré-condição para o conhecimento humano, essa insensibilidade social para com os excluídos do mercado precisa ser ensinada e aprendida. Os crentes do caráter providencial do mercado livre aceitam que as pessoas possam ser compassivas no nível das relações interpessoais, mas combatem a sensibilidade e compaixão em termos sociais, pois isso implicaria na “tentação” de fazer o bem no nível sócio-econômico, isto é, na tentação de minimizar e até tentar acabar com o que eles consideram os sacrifícios necessários para o progres19. Eu tratei mais extensamente desse tema no cap. 8 do meu livro Sujeito e sociedades complexas. Petrópolis: Vozes. 2002. 20. CAMPOS, Roberto, Além do cotidiano, Rio de Janeiro, Record, 2a.ed., 1985, p.54. 21. Exame. n.591, 30/08/95, São Paulo, p.49.
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so econômico. Isso exige que o sistema capitalista, enquanto um sistema social, mantenha um processo pedagógico que eduquem as pessoas a serem socialmente insensíveis ou a defenderem os sacrifícios necessários em nome do mercado. 3. Crítica ao circuito sacrificial e a pedagogia. Eu penso que uma discussão mais profunda sobre o sacrifício deve tomar em sério a contribuição dada por René Girard no estudo da função social do sacrifício no início da humanidade: “apaziguar as violências intestinas e impedir a explosão dos conflitos22”. Mas, infelizmente não temos tempo aqui para desenvolver mais longamente a rica e complexa teoria girardiana sobre a relação entre a violência e o sagrado. Por isso, eu vou continuar a minha reflexão assumindo principalmente as teses de Franz Hinkelammert sobre a lógica sacrificial nas sociedades ocidentais apresentadas especialmente nos seus livros Crítica da razão utópica23 e Sacrifícios humanos y sociedade ocidental24, e tentando apontar questões que podem nos oferecer pistas e discussões para o campo da pedagogia. Para avançarmos na nossa reflexão sobre o que Hinkelammert chamou de “circuito sacrificial” burguês e a pedagogia, eu quero chamar atenção para alguns pontos. O primeiro é o surgimento, no mundo moderno, de uma nova noção da história humana e do lugar da realização da utopia de um mundo de abundância e plenitude sem sacrifícios. A utopia medieval do céu, que se chegaria após a morte, é transformada na utopia de um futuro a ser construído pelas ações humanas, uma noção de futuro que surge dentro do mito moderno do progresso. Há uma afirmação de Habermas que apresenta de modo bem sintético o que queremos tratar aqui: “o conceito de progresso serviu não apenas para a secularização de esperança escatológica e para utópica abertura do horizonte de expectativas, mas igualmente para, com a ajuda de construções teleológicas de história, obstruir mais uma vez o futuro enquanto fonte de inquietação25.” 22. GIRARD, René, A violência e o sagrado, São Paulo, Paz e Terra-Unesp, 1990, p. 27. 23. HINKELAMMERT, Franz J. Crítica de la razón utópica. Ed. ampliada y revisada. Bilbao: Desclée, 2002. 24. HINKELAMMERT, Franz J . Sacrificios humanos e sociedade ocidental:Llucifere a Bbestia São Paulo: Paulus, 1995 25. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p. 23. 197
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Com o conceito mítico do progresso moderno, as esperanças utópicas da realização plena dos melhores desejos humanos deixaram de ser depositadas na vida pós-morte, pela ação sobrenatural de Deus, para ser construída no interior da história pela ação humana. Na medida em que esse futuro está aberto à humanidade e a história caminha para ele, o futuro deixa de ser uma fonte de inquietação. Isto é, o fim da história, o sentido e o término da história deixaram de ser objeto de reflexão teórica e de preocupação existencial. Não havendo mais dúvida ou inquietação em relação às possibilidades da ação humana, que substituiu o Deus medieval no papel de “sujeito da história”, e nem sobre o sentido da história – o progresso tecnológico que possibilitará a libertação dos humanos das cadeias das necessidades da natureza –, tudo ficou reduzido à técnica, às discussões sobre as melhores técnicas e o melhor sistema social capaz de maximizar esse avanço tecnológico. A acumulação de riqueza que alavanca esse progresso tecnológico que permite mais acumulação passou a ser visto como o círculo virtuoso que nos levaria à “salvação” ou libertação da nossa condição humana como conhecemos. No capitalismo contemporâneo, predomina uma noção de tecnociência de vocação fáustica, cuja meta não é ampliar as capacidades do corpo humano, mas é ultrapassar a condição humana com a organicidade e materialidade do corpo humano para, em última instância, atingir a imortalidade26. Diante desse futuro tão desejável, tudo e todos/as que são empecilhos para a realização dessa utopia de liberdade e abundância se tornam inimigos da humanidade. Todas as pessoas e grupos sociais e culturas que não são competentes suficientes para acompanhar e fazer avançar o progresso, todos os grupos e povos que não aceitam ou não são capazes de se adaptar à cultura cristã ocidental e a sua noção de livre mercado devem ser considerados como empecilhos e sacrificados. Esses são os sacrifícios necessários impostos aos “incapazes” que resistem à boa-nova da liberdade do mercado. As violências explícitas das guerras ou as violências tornadas invisíveis pela normalidade dos sistemas sociais sacrificiais não são vistas como violências na medida em que são consideradas violências redentoras27. 26. Sobre essa discussão, ver por ex., SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002; FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro póshumano. Conseqüências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 27. Sobre a noção de “violência redentora”, violência que não é percebida como violência porque, por ser sagrada, purifica a comunidade das violências que a podem destruir, vide GIARD, R., Violência e sagrado, São Paulo: Paz e Terra-Unesp, 1990. 198
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Sabemos que com a crise das metanarrativas modernas e o avanço da cultura pós-moderna ou da modernidade líquida (Zygmunt Bauman), o mito do progresso não é mais louvado em academias ou meios de comunicação. Mas essa lógica sacrificial continua sendo difundida. Pois, as academias e escolas continuam deixando de lado ou em segundo plano a discussão sobre o sentido último da vida e da história humana e se concentram em questões técnicas e operacionais do conhecimento e da ação humana. Ao reduzir a vida e o processo pedagógico às questões técnicas, funcionais, ocorre o que Bauman chamou de a substituição da responsabilidade moral pela técnica: “A responsabilidade técnica difere da responsabilidade moral pelo fato de esquecer que a ação é um meio para alcançar para além dela mesmo. Como as conexões exteriores da ação são efetivamente removidas do campo visual, o próprio ato burocrático se torna um fim em si mesmo. Pode ser julgado apenas pelos seus critérios intrínsecos de adequação e sucesso. [...] Quando desembaraçado de preocupações morais, o ato pode ser julgado em termos racionais inequívocos. O que importa então é se o ato foi executado de acordo com o melhor conhecimento tecnológico disponível e se o resultado alcançou a melhor relação custo-benefício. Os critérios são claros e fáceis de operar28.” Essa redução gera um processo de desumanização. Pois, só os seres humanos podem ser objetos de proposições éticas e, na medida em que a responsabilidade técnica substitui e nega a responsabilidade moral, os seres humanos são reduzidos a cifras ou a funções dentro do sistema dominante. Além disso, a ilusão de que os seres humanos poderão chegar à plenitude ou perfeição continua sendo alimentada tantos pelos meios de comunicação (por ex., a busca pela saúde ou beleza perfeita) e até mesmo por muitos grupos de esquerda. Enquanto a ilusão da construção plena do Reino da Liberdade pela ação humana no interior da história persistir – fomentada pelas ideologias seculares ou por discursos religiosos –, a noção de sacrifícios necessários continuará. Só na medida em que assumimos os limites e as potencialidades da condição humana é que os sacrifícios de vidas humanas deixarão de ser vistas como necessários, e, portanto, justificáveis. Por isso, eu penso que é fundamental assumirmos seriamente o que Paulo Freire chamou de caráter inacabado ou inconcluso do ser humano: “O cão e a árvore também são ina28. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 125. 199
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cabados, mas o homem se sabe inacabado e por isso se educa. Não haveria educação se o homem fosse um ser acabado. O homem pergunta-se: quem sou? de onde venho? onde posso estar? O homem pode refletir sobre si mesmo e colocar-se num determinado momento, numa certa realidade: é um ser na busca constante de ser mais e, como pode fazer esta auto-reflexão, pode descobrir-se como um ser inacabado, que está em constante busca. Eis aqui a raiz da educação29”. A educação que nasce da descoberta do inacabamento do ser humano não pode cair na ilusão de que um dia o ser humano será totalmente acabado, liberto da sua condição humana de inconclusão. Como Freire disse, uma educação verdadeiramente humanizadora é “a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação30”, isto é, a que luta contra as forças desumanizantes, ao mesmo tempo que reconhece que a libertação plena é impossível no interior da história – seja através do sistema de mercado livre, seja através de qualquer outro sistema social. Para Edgar Morin, essa tarefa é a de educar a partir e para a condição humana31, para o conhecimento e a aceitação das nossas potencialidades e limites e, com isso, aprender a realizar o nosso potencial de humanização, mas também a conviver com frustrações inevitáveis nascidas da diferença entre os nossos desejos, a nossa capacidade de imaginar a perfeição e a nossa condição humana. Processos educativos, realizados em espaços educacionais formais ou não, que não educam para a reconciliação do ser humano com a sua condição humana e dos limites e contradições de todos os sistemas sociais e para o reconhecimento da humanidade dos outros, dos diferentes, acabam, mesmo que inconsciente e não intencionalmente, justificando e reforçando a lógica sacrificial dominante hoje. 4. Sacrificialismo e a crítica teológica Um segundo ponto está diretamente ligado ao anterior. Na lógica sacrificial dominante, a ordem social vigente é sacralizada como o único caminho para a realização da ordem social perfeita. Como há uma distância entre a ordem social almejada e a atual, o caminho que liga esses dois pólos é 29. FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 27. 30. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 43 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006p. 46. 31. Vide pro ex., MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000. 200
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visto como um desdobramento, um desenvolvimento ou um processo de aperfeiçoamento totalizante da atual ordem social. Com isso, a ordem social vigente é sacralizada e os problemas causados ou não resolvidos são imputados aos inimigos da salvação, aos opositores do sistema dominante, que precisam ser sacrificados. Nas lógicas sacrificiais dos grupos que se opõe à ordem vigente, o que se sacraliza é o processo libertador em curso ou proposto. Nos dois casos, na medida em que se sacraliza uma determinada ordem ou uma visão do processo histórico, não há espaço para alternativa a não ser o caminho dos sacrifícios necessários. Sem uma crítica à sacralização das ordens sociais, atual ou aquela a ser construída, não é possível criticar a exigência dos sacrifícios necessários. Para isso, precisamos fazer uma rápida incursão à teologia. Mas, antes, eu quero deixar claro que a teologia não é entendida aqui como um saber sobre as realidades sobrenaturais ou uma sistematização das verdades absolutas reveladas por Deus. Essa noção não é a única na história do pensamento teológico, e nem é a mais apropriada para a tradição bíblica ou para tradições teológicas críticas. Para não alongar essa discussão, quero citar aqui Max Horkheimer: “Em nenhum caso se considera aqui a teologia como a ciência do divino ou a ciência de Deus. A teologia significa aqui a consciência de que o mundo é um fenômeno, de que não é a verdade absoluta nem o último. A teologia é – me expresso conscientemente com prudência – a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra32.” A tradição teológica ocidental, desde o estoicismo passando pelo cristianismo ocidental influenciado pela filosofia grega, compreende a Deus como criador e o fundamento da ordem, do cosmos. Com isso, a moralidade foi fundada na luta contra as paixões, em busca do domínio de si, e na obediência aos preceitos da ordem, identificando essa com a vontade de Deus. E o sentido da vida foi entendido como abandonar a insegurança, a contingência e a imprevisibilidade da história humana em busca do absoluto, do perfeito, do necessário. Para José Comblin, um dos mais importantes teólogos da América Latina, “a fuga para o eterno e o absoluto é um truque da consciência para esconder uma fraqueza. A fuga para o eterno se apoia nos mitos e deles se serve para tentar desmentir a realidade provisória e esquecer seu 32. HORKHEIMER, Max. “La añoranza de lo completamente otro”. em: MARCUSE. H., POPPER, K. e HORKHEIMER. M, A la búsqueda del sentido. Salamanca: Sígueme, 1976, pp. 67-124. Citado da p. 106. 201
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caráter frágil. Pois, para um homem é um desafio ter que enfrentar permanentemente a fragilidade de sua condição e a incerteza do que é e pode33.” Mesmo que essa ordem sacralizada exija sacrifícios e justifique situações humanamente injustificáveis, para a maioria é melhor se submeter a uma ordem que dá segurança e um “lugar” na história sagrada – seja no sentido religioso tradicional, seja no sentido moderno do mito do progresso – do que viver a insegurança da condição humana. Diante desse modo de pensar tão arraigado na consciência e no inconsciente coletivo da humanidade desde os tempos mais antigos, precisamos propor novas formas de pensar. Eu quero apresentar aqui somente dois exemplos. O primeiro vem do campo da teologia. A tradição profética sempre criticou todas as formas de sacralização ou de absolutização como idolatria. É bom lembrarmos aqui que ídolo é um deus que exige sacrifícios de vidas humanas. Essa crítica profética vai desembocar na afirmação de Oséias: “é amor/misericórdia que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus [promover justiça e direito em favor dos pobres] mais do que holocaustos” (Os 6,6), que também foi assumido por Jesus. E o Novo Testamento vai apresentar Deus, não como fundamento da ordem, mas como amor. E o amor não cria ordem, mas sim desordem. Pois, amor só existe na liberdade e a liberdade só é liberdade quando se é livre em frente à lei e aos ditames da ordem vigente. Com isso eu não quero dizer que devemos lutar contra todas as formas de ordem e propor a desordem como solução, pois isso também seria outra forma de absolutização: a da desordem. Precisamos educar as pessoas a relativizarem a ordem e aprenderem a viver na ordem relativizada, a ordem que vive nos limites da desordem e dessa tensão reproduz a sua vida e se renova. O segundo exemplo tem a ver exatamente com essa nova visão sobre a relação entre ordem e desordem na reprodução de um sistema social ou natural. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química, criou a expressão “estruturas dissipativas” para mostrar como sistemas complexos funcionam de um modo não totalmente ordenado, mas no limite da desordem e que sistemas totalmente em equilíbrio são sistemas mortos. Eu não quero entrar aqui em discussão sobre esse tema, também porque não é minha área de conhecimento, mas trouxe esse exemplo para mostrar como até mesmo o ensino 33. COMBLIN, José. O provisório e o definitivo. São Paulo: Herder, 1968, p.74. 202
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das chamadas ciências naturais, como a física e química, pode ajudar a criar um modo de pensar que resista às ideologias sacrificiais. Educar para uma crítica ao sacrificialismo e para solidariedade e justiça não pode ser um processo centrado somente no debate e no ensino desses temas, ou “conteúdos”, mas implica também no ensino-aprendizagem de um novo modo de ver a realidade, o mundo e a vida. 5. Pedagogia e o sentido humanizante da vida. Um terceiro ponto. Nessa tarefa de criticar a sacralização da ordem e a absolutização de um sentido da vida, é fundamental que a pedagogia problematize e promova diálogos e debates sobre o sentido, o fim da vida e das ações estratégicas. A educação tem um papel fundamental na capacitação das pessoas para reproduzirem as suas vidas e encontrarem um sentido de vida humanizante. Nesta tarefa, é preciso lidar com dois aspectos da vida humana: a) aspectos técnico-operacionais, que tem a ver com habilidades necessárias para produção dos bens necessários para a reprodução da vida e da capacidade de interação com outras pessoas na sociedade, como a capacidade de comunicação e conhecimento de regras sociais; b) o sentido da vida e das ações. É na discussão sobre o sentido da vida que o ser humano vai além da sua condição animal e dos instintos. Mas, infelizmente o sistema educativo está quase que reduzido ao campo das questões técnico-operacionais. A redução da preocupação educacional ao aspecto técnico-operacional da vida não significa, é claro, que o ser humano não precisa mais encontrar ou aderir a um sentido da vida. Significa apenas que um sentido da vida foi tornado “o” sentido, um sentido “natural” e inquestionável, por isso o sistema educacional não precisaria capacitar as pessoas para escolher o sentido da vida. Nas sociedades antigas, cabia à religião o papel principal de educação desse sentido; hoje a mídia e a cultura de consumo tornaram-se as principais agentes dessa educação. Um quarto ponto tem a ver com a relação entre a emoção, a sensibilidade e a razão. Como vimos antes, a educação para insensibilidade social é uma necessidade de sistemas sacrificiais. No passado, a visão sacrificial de Deus – um Deus que necessita sacrificar o seu filho para salvar a humanidade – teve um papel fundamental na sociedade Ocidental. Hoje, essa teologia ocupa um lugar secundário na legitimação do sistema. 203
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Com a modernidade, a separação da emoção da razão e a redução dessa a questão técnica, passaram a ter um papel importante nesse processo. Com essa separação entre o racional e o emocional e a prioridade do primeiro sobre o segundo, todas as vezes que a compaixão frente ao sofrimento dos sacrificados questiona a racionalidade do sistema, a compaixão é desqualificada como um empecilho a uma razão clara e neutra promotora do progresso. Não há melhor forma de educar para insensibilidade do que reduzir a educação ao campo da racionalidade instrumental e qualificar de irracional todas as emoções associadas ou que nascem da compaixão. Mesmo que não tenhamos tempo para aprofundarmos essa importante questão, eu quero propor algumas ideias como provocação para debate. Para Humberto Maturana, “ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional34”, que a condição de possibilidade da nossa racionalidade é o seu fundamento emocional. Ele nos alerta que “as emoções não são o que correntemente chamamos de sentimento. Do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são predisposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação”35. Sendo assim, uma racionalidade que se funda na emoção “compaixão” é muito diferente de uma racionalidade que se funda na emoção da violência frente aos “inimigos” da humanidade que precisam ser sacrificados. Essa separação radical entre a emoção e a razão, que vem acompanhada da redução da razão à razão instrumental, bloqueia também a formação moral das pessoas. Como mostrou Piaget36, o raciocínio moral não deriva do desejo de seguir uma lei ou as regras oficiais de comportamento, mas do envolvimento empático da criança com outras iguais a ela, de ser capaz de ver e sentir coisas do ponto de vista delas, de colocar-se no lugar das outras e sentir a dor delas. Como diz também Restrepo, “cada vez estamos mais dispostos a reconhecer que o tipicamente humano, o genuinamente formativo, não é a operação fria da inteligência binária, pois as máquinas sabem 34. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 15 35. Ibidem, p. 15. 36. PIAGET, Jean. O julgamento moral da criança. Sao Paulo: Mestre Jou, 1997.
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dizer melhor que nós que dois mais dois são quatro. O que nos caracteriza e diferencia da inteligência artificial é a capacidade de emocionar-nos, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos que nos impactam37.” Na medida em que as escolas não educam o aspecto emocional e a sua relação com a razão, a própria discussão sobre ética corre um sério risco de se tornar um debate meramente escolástico, sem real repercussão na vida concreta das pessoas e no seu modo de ver o mundo. Além disso, a perda da visão do conjunto e a concentração de todo o foco nas partes, através do sistema de especialização que marca as ciências modernas e o monopólio do método analítico, como vimos acima, atrofia também a noção de responsabilidade moral. Não basta que os critérios sobre as ações humanas sejam claros e fáceis em termos instrumentais, técnicos, mas é preciso antes de mais nada que sejam humanizadores. É uma tarefa da “educação libertadora” propor critérios que se fundam na articulação dessas duas responsabilidades, técnica e moral. Não basta justapormos ou somarmos essas duas responsabilidades – como uma proposta “integral” ou holística –, mas precisamos articulá-los em uma nova síntese que não oponham de um lado os defensores da técnica e de outro os da moral. E essa é uma tarefa que não é fácil, mas fundamental se queremos fazer parte da construção de um mundo mais humano e justo, factível e não somente ideal. Pois não basta fazermos críticas contundentes contra sistemas sacrificiais, se não somos capazes de propor caminhos pedagógicos e políticos que nos permitam construir uma nova sociedade, que, sem superar as ambiguidades humanas e os limites da história, seja mais humana e menos sacrificial. Eu digo “menos sacrificial”,pois uma sociedade totalmente sem sacrifício, nos seus mais diversos sentidos, não é possível no interior da história humana; e, como vimos acima, a ilusão de construir essa sociedade sem sacrifício leva a circuitos sacrificiais. Menos sacrificial porque os sacrifícios inevitáveis– no sentido de renúncia e disciplina – não serão impostos somente nos ombros dos mais fracos, mas compartidos por todos e todas. Também porque assumirá que o mal é mal e não cairá na tentação de inverter o mal em bem, através da culpabilização das vítimas em nome de um deus-ídolo sacrificial. 37.
RESTREPO, Luis Carlos. O direito à ternura. 2a. ed., Petrópolis: Vozes, 2000, p. 18. 205
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Por fim, eu penso que cabe também à teologia e à pedagogia a importante tarefa de abrir horizontes de esperança que dê sentido “esperançoso” aos passos que damos a cada dia na direção da nossa humanização, na direção da liberdade para a qual fomos chamados e/ou aspiramos e experienciamos no interior das lutas pela libertação.
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